título: estÉtica conceitual do lixo · elemento dentro da pintura chamam a arte para a realidade,...

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86 ISSN 1809-2616 ANAIS VI FÓRUM DE PESQUISA CIENTÍFICA EM ARTE Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Curitiba, 2008-2009 __________________________________________________________________ ESTÉTICA CONCEITUAL DO LIXO Daysi Margareth Junqueira Schmidt * [email protected] Resumo: O mundo pós-moderno abriga uma vasta gama de procedimentos artísticos. Na modernidade, a liberdade tornou-se o álibi, não só para romper com a tradição, mas também para estimular a procura pela essência e pela purificação definitiva da forma. Essa liberdade que se conecta ao subjetivo desafia constantemente nossa compreensão relativa a questões como a veracidade e autenticidade, tanto a materiais quanto aos procedimentos artísticos contemporâneos. Marcel Duchamp tornou-se precursor ao questionar a identidade do objeto artístico em face do crescimento indiscriminado de propostas abstratas. O lixo contesta o sistema e se torna conceito quando dirige nossa atenção a perguntas difíceis de natureza moral e estética. É por meio da arte que o lixo se transforma em idéias e conceitos, onde encontra senso artístico e potencial estético. Palavras-chave: Arte; Cotidiano; Lixo. O mundo pós-moderno abriga uma gama incomensurável de procedimentos artísticos, que envolvem desde o material, a técnica, o conteúdo, a linguagem, os processos, entre outros tantos elementos que constituem a criação artística. Hoje, ao visitarmos qualquer exposição de arte ou museu de grande porte, percebemos a real dimensão que o conceito “arte contemporânea” pode atingir. Observa-se uma profusão desmedida de conteúdos dispostos em toda ordem de materiais, que se prestam como suporte as idéias do artista. Com o modernismo e mais precisamente com Cézanne, libertamo-nos definitivamente da tradição clássica ou acadêmica e aprendemos a privilegiar a forma pictórica, por meio de diferentes processos de análise visual. A arte moderna fundamenta-se em emoções sentimentos e sensações, com a clara intenção de arrebatar o espectador a uma esfera sensível e subjetiva. Com o quadro denominado, “Quadrado preto suprematista”, de Malevich inicia-se o processo de SCHMIDT, Daysi Margareth Junqueira. Especialista em História da Arte (EMBAP). Atualmente trabalha na empresa Ludus Jogos Educativos, atuando junto ao ensino fundamental e médio na criação e desenvolvimento de jogos pedagógicos para as diferentes áreas do conhecimento.

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Page 1: Título: ESTÉTICA CONCEITUAL DO LIXO · elemento dentro da pintura chamam a arte para a realidade, como um convite ao devaneio. Pedaços de papel, impressos, ou qualquer outro tipo

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ISSN 1809-2616

ANAISVI FÓRUM DE PESQUISA CIENTÍFICA EM ARTEEscola de Música e Belas Artes do Paraná. Curitiba, 2008-2009__________________________________________________________________

ESTÉTICA CONCEITUAL DO LIXO Daysi Margareth Junqueira Schmidt∗

[email protected]

Resumo: O mundo pós-moderno abriga uma vasta gama de procedimentos artísticos. Na modernidade, a liberdade tornou-se o álibi, não só para romper com a tradição, mas também para estimular a procura pela essência e pela purificação definitiva da forma. Essa liberdade que se conecta ao subjetivo desafia constantemente nossa compreensão relativa a questões como a veracidade e autenticidade, tanto a materiais quanto aos procedimentos artísticos contemporâneos. Marcel Duchamp tornou-se precursor ao questionar a identidade do objeto artístico em face do crescimento indiscriminado de propostas abstratas. O lixo contesta o sistema e se torna conceito quando dirige nossa atenção a perguntas difíceis de natureza moral e estética. É por meio da arte que o lixo se transforma em idéias e conceitos, onde encontra senso artístico e potencial estético.Palavras-chave: Arte; Cotidiano; Lixo.

O mundo pós-moderno abriga uma gama incomensurável de procedimentos

artísticos, que envolvem desde o material, a técnica, o conteúdo, a linguagem, os

processos, entre outros tantos elementos que constituem a criação artística. Hoje,

ao visitarmos qualquer exposição de arte ou museu de grande porte, percebemos a

real dimensão que o conceito “arte contemporânea” pode atingir. Observa-se uma

profusão desmedida de conteúdos dispostos em toda ordem de materiais, que se

prestam como suporte as idéias do artista.

Com o modernismo e mais precisamente com Cézanne, libertamo-nos

definitivamente da tradição clássica ou acadêmica e aprendemos a privilegiar a

forma pictórica, por meio de diferentes processos de análise visual. A arte moderna

fundamenta-se em emoções sentimentos e sensações, com a clara intenção de

arrebatar o espectador a uma esfera sensível e subjetiva. Com o quadro

denominado, “Quadrado preto suprematista”, de Malevich inicia-se o processo de

SCHMIDT, Daysi Margareth Junqueira. Especialista em História da Arte (EMBAP). Atualmente trabalha na empresa Ludus Jogos Educativos, atuando junto ao ensino fundamental e médio na criação e desenvolvimento de jogos pedagógicos para as diferentes áreas do conhecimento.

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esquematização, purificação e destilação da forma pictórica e o total repúdio as

narrativas e as descrições.

A liberdade tornou-se o álibi decisivo, não só para efetivar o rompimento com

o tradicional, como também, estimular a busca pela essência e purificação definitiva

da forma. Porém, essa liberdade desmedida, que se liga ao subjetivo, tende

constantemente a desafiar nosso entendimento a respeito das questões que

envolvem a veracidade e autenticidade, tanto dos materiais, quanto dos

procedimentos artísticos contemporâneos. A liberdade exaustivamente exercida na

modernidade torna-se seu próprio algoz e dá início a um debate que abala as bases

que até então exerciam monopólio absoluto sobre as representações artísticas.

Marcel Duchamp torna-se precursor ao questionar a identidade do objeto

artístico, em face da proliferação desenfreada de propostas abstratas. Duchamp,

como um autêntico representante do movimento Dada, irreverente e provocador,

lança à semente que levará quatro décadas para desabrochar, mas agora, sob a

denominação de arte conceitual.

É por meio da arte que se traduz em idéias e conceitos, que o lixo encontra sentido

artístico, podendo, dentro da proposta de neovanguarda modernista, adquirir

potencial estético.

UMA VISAO FILOSÓFICA

A Arte Contemporânea sob a ótica de Theodor Adorno

Theodor Adorno viabiliza nosso entendimento a respeito das questões

estéticas contemporâneas, tendo como imperativo a crítica a sociedade capitalista, a

preocupação em desenvolver um pensamento que não fosse apenas de gênese

abstrata, mas que também fosse comprometido com as finalidades da razão. Nada

escapa à racionalização, nega dessa maneira a chamada “arte pela arte”. Para

Adorno o fazer artístico e tudo que este “fazer” envolve, como a forma, o material, o

conteúdo, a linguagem, a construção, o estilo, a técnica etc assumem um lugar

especial no contexto artístico contemporâneo pois se tornam indicadores precisos da

ligação existente entre a obra e o seu momento histórico. Adorno diz que “o

conteúdo social sedimenta-se na forma de obra de arte” 1.

1 FREITAS, Verlaine. Adorno e a Arte Contemporânea. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p. 25.

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Adorno considera que estamos constantemente em confronto com as

exigências do sistema que buscam novas soluções expressivas, por meio de

materiais inusitados e atípicos, que denunciam e chocam nossa sensibilidade. Para

ele, essa aparente irracionalidade no uso indiscriminado de materiais, acaba sendo

mais verdadeira, e, portanto, mais racional que a irracionalidade a que somos

submetidos diariamente. Diante da pressão cotidiana, novos materiais cumprem a

tarefa de representar o caos urbano e social resultantes do desenvolvimento.

Na visão de Adorno a busca por novos materiais tornou-se algo imutável

dentro da arte contemporânea, pois, por meio dos elementos que compõe a obra de

arte, evidenciam-se características que denunciam o momento social em que a obra

foi pensada. Segundo ele, ”uma lei inexorável da arte moderna é a busca incessante

por novos materiais”2. Sob a ótica de Adorno, “o material encontra-se entre a forma e

o conteúdo”3, já que a forma remete a uma realidade histórica, enquanto o conteúdo

aponta para os problemas sociais, que, segundo Adorno, devem fazer parte das

produções artísticas contemporâneas.

DE CÉZANNE ÀS COLAGENS CUBISTAS

Diante da declaração de Braque, “partimos todos de Cézanne” 4, sua geração

de pintores e as gerações seguintes, vem rendendo-se e apoiando-se, nas

profundas descobertas e transformações trazidas por Cézanne. Transformações

irreversíveis as novas produções artísticas, tanto no modo inovador da pintura, como

também na maneira, pela qual, passamos a observá-la.

Cézanne rompe com as técnicas amplamente difundidas pelas academias,

como a perspectiva, o claro-escuro e suas nuances, o branco impressionista e traz a

luz uma nova concepção na representação do volume. Para tentar resolver o volume

a ser representado em uma superfície rasa, Cézanne dispôs gradualmente a terceira

dimensão em planos fragmentados de forma a deslocar os ângulos de visão. Deixa

de se servir do jogo do claro e escuro, das sutis nuances de cores, dos tons

degradantes, abandonando assim, drasticamente às sombras e a luz e criando uma

atmosfera de luz pictórica própria. Usa a geometria como forma de ordenar o volume

2 FREITAS, Verlaine. Adorno e a Arte Contemporânea. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p. 42.3 FREITAS, 2003. p. 41.4 DICIONÁRIO DA PINTURA MODERNA. São Paulo: Hemus, 2004. p. 67.

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das massas e equilibrar a composição, esforçando-se na busca por novas

propostas, visando, sobretudo, à unidade da estrutura.

Figura 1 – Cézanne. Bosque e Rochedos (1982). Óleo sobre tela, 100 x 73 cm. Museu Metropolitan, Nova York.

Picasso e Braque se apossaram das inovações introduzidas por Cézanne

passando também a se preocupar com o que para eles era considerado o maior de

todos os problemas da pintura, a representação em perspectiva, ou seja, em três

dimensões, sobre uma superfície lisa ou achatada da tela. Além disso, buscavam

meios de concretizar a forma buscando a sua posição dentro de um espaço

tridimensional. Para esses pintores que se voltaram contra a escola impressionista e

sua visualidade excessiva, buscaram “mediante cristalização geométrica, inspirada

em Cézanne, às propriedades permanentes dos objetos e sua estabilidade em

espaço fechado, sem perspectiva ou luz” 5.

Consequentemente a deformação das figuras torna-se inevitável, pois tanto

Picasso quanto Braque acreditavam haver barreiras entre a representação de um

determinado objeto dentro uma estrutura que tende a se planalizar. Seguindo os

caminhos traçados por Cézanne em diminuir do espaço visual, Picasso rompe com a

forma fechada da pintura nascida na renascença. Traz um objeto representado na

tridimensionalidade para um plano bidimensional, distorcendo a forma em

segmentos. Pelo contínuo exercício de transformação do espaço tridimensional em

espaço plano, foi possível prover efetivamente essa mudança mediante a colagem

de papéis coloridos diretamente sobre a tela, já que a planaridade obtida com o

resultado dessas investigações permitiu esse avanço.

5 DICIONÁRIO DA PINTURA MODERNA. São Paulo: Hemus, 2004. p. 76.

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Figura 2 – BRAQUE, Georges. Ária Bach (1912-13). Colagem de papel sobre desenho 67 x 46 cm. Galeria Nacional de Washington.

As colagens tornam-se passaportes para a abstração. Ao inserir este novo

elemento dentro da pintura chamam a arte para a realidade, como um convite ao

devaneio. Pedaços de papel, impressos, ou qualquer outro tipo como o de jornal ou

de embrulho ganha traços de tinta ou lápis, que gradativamente foram se juntando a

outros materiais como areia, pedaços de pano e de madeira, cartas de jogos, caixas

de fósforos, entre tantos outros. Para Picasso e Braque, “basta agregar ao quadro

estas figuras vulgares, inertes, mortas, para que se vivifiquem em contato com a

obra de arte” 6.

A REVOLUÇAO DO READYMADE

Duchamp não só assimilou as lições de Cézanne como também as do

cubismo e passou das análises segmentadas e fracionárias para a real sensação de

movimento. Por meio de traços seqüenciais baseados nos estudos fotográficos sobre

o deslocamento de corpos humanos, realizados por Muybridge, obteve como

resultado de suas pesquisas, figuras cadenciadas e com ritmo próprio, referenciais

precisos da mecanicidade que caracteriza o fim do século XIX e o início do século

XX. Segundo Octavio Paz, “os quadros de Duchamp são a presentificação do

movimento: a análise, a decomposição, e o reverso da velocidade”7.

6 DICIONÁRIO DA PINTURA MODERNA. São Paulo: Hemus, 2004. p. 249.7 PAZ, Octavio. Marcel Duchamp ou o Castelo da Pureza. São Paulo: Perspectiva, 2004. p. 8.

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Duchamp afirmou que, “em suas mudanças nosso tempo só se afirma para

negar-se e só se nega para inventar-se e ir mais além”8. A pintura retiniana, ou seja,

aquela puramente visual torna-se insuficiente para ele que procura então, segundo

suas palavras, “substituir a pintura-pintura, pela pintura-idéia”9. As inclusões das

colagens cubistas contendo fragmentos de realidade fecundaram sua poética

fornecendo-lhe meios para se desvincular de vez por todas, da chamada pintura

“olfativa”10. A idéia torna-se então a real revolução. Para Duchamp, a arte desliga-se

do compromisso visual, da sensação subjugada pela visão. Inaugura os readymade

e juntamente com eles, uma nova forma de se conceber a obra de arte. Tudo passa

a ser arte, surgindo assim à negação absoluta de todo o sistema de valores

acadêmicos e institucionais, resultando na antiarte. O pensamento Dada endossa

sua proposta.

Figura 3 – DUCHAMP. Roda de Bicicleta (1913). Readymade.

Acreditando nos princípios da filosofia agnóstica, a qual, não é possível atingir

as coisas em si, mas somente a relação existente entre elas, Duchamp eleva a arte

a um status intelectual. “Desde o princípio, foi um pintor de idéias e que nunca cedeu

a falácia de conhecer a pintura como uma arte puramente manual e visual”11. Passa

então, a conceber a arte não mais pela representação plástica ou estética, mas, por

meio de ações intelectuais, introduzindo o elemento psicológico, o subjetivo e o

8 PAZ, 2004. p. 8.9 PAZ, 2004, p. 9.10 PAZ, 2004, p. 9.11 PAZ, 2004, p. 10.

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individual na composição. Quando Duchamp faz a transferência de objetos comuns

de seus contextos habituais, apropriando-se deles de maneira conceitual, na

verdade, o ato é que se torna determinante. O ato em si é quem concede ao objeto o

status de obra de arte. Cai por terra o fetichismo que imperava em torno do fazer

artístico e abre-se espaço para o gesto, a intenção, a representação, a idéia, o

símbolo. Para Duchamp o pensamento também pode ser arte.

QUANDO A IDEIA VIRA ARTE

A arte clássica sempre privilegiou ao longo de seu domínio suportes tidos

como acadêmicos, como a tinta, o metal, a pedra e a madeira, e somente se

manifestava por meio de práticas como a pintura, a escultura, a gravura e o

desenho. A invasão da arte conceitual acaba com a definição específica de suportes

ou de materiais para a arte. A fotografia, os vídeos, o ar, a luz, o som, a palavra, a

sociedade, a economia, a política, os alimentos, as questões ambientais, o lixo, as

sensações, os sentimentos, as diminutas percepções, os sentidos em toda

globalidade e a vida em todas as minúcias e abrangências, passam a fazer parte

das práticas conceituais pós-modernas.

Não existem mais materiais específicos para a arte, o material surge do

contexto onde está inserida a idéia, o contexto torna-se mais importante que a obra

em si, gerando, por fim, uma quebra em torno da adequação do objeto. Apoiando-se

nas descobertas de Duchamp, tudo pode ser arte, o pensamento é quem passa a

classificar o material de acordo com a idéia. O objeto serve para refletir um conceito,

estabelecendo ligação com os pensamentos e com as percepções.

Após a revolução proposta por Duchamp, o mundo da arte voltou a sofrer

intervenções em suas regras básicas somente no final da década de 40, tendo como

cenário a derrota fascista e o início da era nuclear e da Guerra Fria. Na década

seguinte, o modernismo contestou o conservadorismo político por meio de um

realismo pictórico, muito embora, neste mesmo contexto um novo rumo estava

sendo traçado do para a arte moderna.

paralelamente ao florescimento do modernismo, na década de 50, houve também uma regeneração da vanguarda, em um conjunto de atividades artísticas não vinculadas a um meio específico. As

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sementes de uma arte conceitual autônoma podem ser localizadas aqui12.

A escola moderna americana do pós-guerra, representada por artistas como,

Jackson Pollock, Clifford Still, Barnett Newman, Mark Rothko, marcou a investida da

arte “gestual” produzida nos Estados Unidos. Em outra vertente da mesma escola

americana, Robert Rauchenberg e Jasper Johns denominados de Neodadas,

passam a resgatar elementos do cotidiano, traçando um paralelo com a vida real,

como fez Duchamp, abrindo inúmeras possibilidades a futuros e inovadores

experimentos. As associações artísticas entre imagem somada ao uso de objetos

triviais, sempre farão referência à vida comum e diária. A ligação inegável desses

objetos com a realidade abriu caminhos para a introdução de novas técnicas e

materiais que até então, nunca tinham sido associadas às práticas artísticas

convencionais. Como profetizou Duchamp, a arte chama o cotidiano para perto do

espectador.

Não muito distante das idéias e das produções de Rauschenberg e Johns,

surgia o Pop, assim como outras neovanguardas modernistas que rejeitavam

completamente a especificidade do meio. Trabalhos como do Grupo Fluxus e mais

especificamente os de Joseph Beuys, na Alemanha, passam a interferir na vida

sócio-política do país, como um prenúncio à politização das atividades artística que

marcarão os próximos anos. A arte desenvolvida a partir dos anos setenta enreda-se

em questões delicadas, com temas que revelam a cruel realidade social, política e

econômica determinada pelo sistema capitalista.

os artistas estabeleceram parâmetros políticos para as atividades artísticas, adaptando a marginalidade social da prática da vanguarda modernista a uma forma de expressar a experiência da marginalidade cultural e de dar voz àqueles que, por vários motivos, são excluídos da experiência cultural mais importante13.

Do outro lado do Atlântico os Novos Realistas apóiam-se no resultado da

produção industrial e nas possibilidades introduzidas pelo cotidiano das grandes

metrópoles, como a urbanização das cidades, seguidas pelas leis que regulam o

mercado e a mídia. Os Novos Realistas estabelecem parâmetros sociológicos para

suas produções. Vêem nos fenômenos sociais gerados pelos agrupamentos

urbanos, surgirem elementos plásticos potenciais, resultantes desse novo olhar.

12 WOOD, Paul. Arte Conceitual. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. p. 17.13 ARCHER, Michel. Arte Contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 236.

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Esse movimento percebe e reconhece o mundo como uma obra de arte total,

para tal, acreditam apropriar-se de legítimos elementos que compõe o universo

cotidiano. Na visão de Restany, os novos realistas, “mostram-nos o real nos

aspectos vários da sua totalidade expressiva. E por intermédio dessas imagens

objetivas é a realidade completa, o bem comum da atividade dos homens, a

natureza do século XX, tecnológica, industrial, publicitária, urbana, que é intimada a

comparecer”14. Os objetos duchampianos resgatados pelos novos realistas ganham

nova conotação, não questionam ou agridem, apenas comungam com a vida

moderna as mesmas atividades.

Figura 4 – TINGUELY. Grande Meta Maxi-Maxi Utopia. (1987). Montagem.

É diante da apropriação de registros industriais como a sucata e as sobras

que os Novos Realistas pretendem revelar a potencialidade do mundo. Passam a

agrupar inúmeros elementos surgidos com o alastramento da indústria. Agregam

destroços, restos, sucata, como elemento verídico da nova realidade pós-moderna.

Para os Novos Realistas “a apropriação do real é a lei de nosso presente”15. Assim

na visão de Restany, a arte assume a dimensão de sua vontade expressiva

autorizada pela pós-modernidade a traduzir a linguagem atual.

ARTE CONCEITUAL NO BRASIL

14 RESTANY, Pierre. Os Novos Realistas. São Paulo: Perspectiva, 1979. p. 148. 15 RESTANY, 1979, p. 152.

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A contribuição brasileira para a arte conceitual e particularmente em resposta

ao Pop norte americano, não refletiu o desenvolvimento e as tecnologias de massa,

de riqueza e de poder que caracterizou a cultura pop produzida nos Estados Unidos.

No Brasil se deu em face de uma atmosfera de repressão política, social e cultural,

em que a ditadura militar impunha um regime baseado na negação total a liberdade

de expressão e de opinião dos indivíduos, levando suas ações até as últimas

consequências, como a perseguição política, o desaparecimento e a morte de vários

militantes.

Em sua obra, Cildo Meireles conjugou objetos duchampianos não como um

retrato documental da realidade de um país, como fizeram os artistas americanos.

Cildo hostiliza o poder e utiliza para isso imagens simbólicas ligadas a ele, fazendo

referência à opressão social imposta à sociedade. Interfere sobre o objeto e volta a

inseri-lo novamente no circuito. Criou uma série de obras intituladas Inserções em

circuitos ideológicos (1969) como a obra, Projeto Coca-Cola (1970).

Figura 5 – MEIRELES, Cildo. Projeto Coca-Cola (1970).

Pierre Restany esteve no Brasil em 1978, lançando o Manifesto do Rio Negro.

Reconheceu nas apropriações de materiais industrializados feitos pela brasileira

Sonia Von Brusky, um referencial preciso da assimilação da cultura urbana. Sonia

procura a força da imagem brincando com materiais rudes de forma solta e leve.

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Figura 6 – BRUSKY, Sônia Von. Fósseis Pós-Industriais (2000).

Integrou todos os movimentos de vanguarda brasileiros a partir de 1968,

obtendo premiação em 1993 pela Associação Paulista dos Críticos de Arte. Não

escapa da militância política durante os anos da ditadura militar, atuando sempre na

busca de fragmentos que relatam o cotidiano. Trabalha com o que resulta dos

agrupamentos urbanos, extraindo deles a matéria-prima para a criação de seus

“fósseis pós-industriais”.

Para esse crítico, a obra criada por Sonia Von Brusky baseia-se na carga de

“autoexpressividade globalizante desta linguagem da cidade”.16 A globalização

encarrega-se de inventariar a realidade que passa a ser uma experiência

compartilhada por todos os que convivem em grandes centros urbanos. Para

Restany, somos atingidos pela urbanização e pela globalização e a arte cumpre a

missão de fazer uma nova leitura da realidade que nos cerca.

IDEIAS PARANAENSES

O estado do Paraná não ficou imune à utilização de materiais não

convencionais em atividades artísticas. Nos anos 70, enquanto a arte paranaense

estava voltada para o resgate da representação das matas e paisagens do Paraná,

o 32º Salão de Arte Paranaense, decidiu priorizar questões contemporâneas e

premiar obras que estivessem em sintonia com a realidade e que refletissem os

problemas atuais.

16 RESTANY, Pierre. O novo humanismo da cultura Urbana. Disponível em: <www.mac.usp.br >. Acesso em: fev. 2006.

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A obra premiada com o segundo lugar foi uma instalação intitulada

Automovelho (1975), do paranaense Luiz Rettamozo, que apresentou a carcaça

cortada de um Ford 1934 entupido de balões e todo amarrado com barbante, sobre

um chão repleto de sinais de trânsito. Rettamozo reinventa as práticas de Duchamp,

destrói a simbologia que se associa ao automóvel como um objeto de status e de

poder. Segundo o artista Fernando Velloso, o uso do barbante faz uma ponte até a

censura já que para esse artista “a cultura é coisa perigosa”, “deve ser amarrada”.

Figura 7 – RETAMOZZO, Luis. Automovelho (1975).

Ainda um segundo exemplo pode ser incorporado por meio da nova e

promissora safra de artistas contemporâneos paranaenses. Cleverson Salvaro, 26

anos, artista curitibano, não se preocupa em teorizar nem explicar suas criações,

simplesmente faz arte porque gosta do que faz, não se enredando em questões

teóricas ou filosóficas que justifiquem aquilo que cria. O artista mesmo define: “tem

gente que acredita que a arte se concretiza quando é vista por alguém, eu perdi

minha opinião sobre isso em algum lugar da história da arte”.17 Nasce com Salvaro

uma arte desprovida de justificativas ou compromissos.

Dentre suas criações e produções artísticas que abrangem instalações e

intervenções, não conseguiu escapar ao campo de ação exercido por materiais

desprezados. Foi ocasionalmente suscetível aos restos e ao entulho. Na obra

intitulada Barraco do Salvaro, usou de forma ocasional vassouras usadas, velhas,

como restos, amontoadas verticalmente umas sobre as outras.

17 SALVARO, Cleverson. Restos imortais de uma cidade. Depoimento a Gazeta do Povo. Curitiba, 1 jun. 2004.

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Figura 8 – SALVARO, Cleverson. Barraco do Salvaro (2004).

A abordagem conceitual do lixo chama tanto artistas como o público à

responsabilidade, despertando a consciência social e fazendo com que a sociedade

renda-se a esse importante instrumento referencial contemporâneo.

Duchamp conseguiu transformar objetos em idéias e máquinas em símbolos.

O lixo são símbolos contemporâneos que saem das máquinas. O lixo é o sinal real

da mecanização das nossas necessidades, resultante da chamada vida “civilizada”,

já que efetivamente tornou-se testemunha cabal de nossas atividades. Marcel

Duchamp não só desmistificou o objeto e os procedimentos artísticos que o

envolvem, como também abriu espaço ao cotidiano coletivo, tornando possível por

meio de materiais como o lixo, o acesso de todos à arte.

Torna-se imperativo para Adorno que a união entre vários aspectos que

envolvem uma obra de arte reflitam o contexto histórico em que ela emerge. O lixo

espelha fielmente a sociedade atual, o nível de industrialização e de

desenvolvimento econômico atingido pela civilização. O lixo nas sociedades pós-

modernas faz do consumo sua moeda corrente, fazendo com que os desejos e

aspirações de hoje se convertam no lixo de amanhã. O lixo traz à tona verdades

subjetivas, conceituais disfarçadas por um sistema que tende a ocultar e encobrir a

sensação efêmera e ilusória que o consumo proporciona. Ele liberta a beleza para

dizer verdades por meio da “feiúra” contida em materiais desprezíveis, que cumprem

a missão de elucidar a situação caótica resultante do desenvolvimento.

O lixo envolve-se com questões cruciais, contradizendo a sensação de

estabilidade que o sistema tenta impor, tornando-se um puro instrumento de

contestação, ao mesmo tempo em que, comunga com o desenvolvimento e com as

tecnologias. Dessa maneira, o lixo adquire capacidade de transfigurar-se em um

perfeito objeto de investigação conceitual.

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REFERÊNCIAS

ARCHER, Michel. Arte Contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

DICIONÁRIO DA PINTURA MODERNA. São Paulo: Hemus, 2004.

FREITAS, Verlaine. Adorno e a Arte Contemporânea. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

PAZ, Octavio. Marcel Duchamp ou o Castelo da Pureza. São Paulo: Perspectiva, 2004.

RESTANY, Pierre. Os Novos Realistas. São Paulo: Perspectiva, 1979.

RESTANY, Pierre. O novo humanismo da cultura Urbana. Disponível em: <www.mac.usp.br >. Acesso em: fev. 2006.

SALVARO, Cleverson. Restos imortais de uma cidade. Depoimento a Gazeta do Povo. Curitiba, 1 jun. 2004.

WOOD, Paul. Arte Conceitual. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.