textualidade da cidade contemporânea na experiência homoerótica [ ferreira ]

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MA RCELO SANTANA FE RRE l RA TEXTUALIDAD DA CIDADE CONTEMPORÂN NA EXPERIENCIA HOMOEROTIC A A / Toda vez que saía para dar uma volta, tinha a sensação dc que estava deixando a si mesmo para trás e, ao se entregar ao movimento das ruas, ao reduzir-se a um olhar observador. ele se descobria apto a fugir da obrigação de pensar, e isso, mais do que qualquer outra coisa, Ihe trazia uma certa paz, um saudável vazio interior.O mundo estava fora dele. em volta, à frente e a velocidade com que o mundo se modificava sem parar tomava impossível para Quinn deter-se em qualquer coisa por muito tempo. O movimento era a chave da questão, o ato de colocar um adiante do outro e se abandonar ao fluxo do própi'io c01'í)o Pau! Alista A rua está tingida de tons delicados de azul e de verme'lho. prenunciando um domingo momo e arrastado. A chuva que provit- velmente banhou a cidade durante a madrugada se aculllula em poças irregulares nas calçadas, servindo de espelho paiii os rapazes que saem de uma boato gay do subúrbio clo Rio de Janeiro, o que se expressa em seus gestos ampliados no reflexo dos círculos concêntricos de cada poça de água. Silo rostos juvenis, impregnados de cansaço e de alegria, muitas vezes contrastantes com os rostos sisudos dos seguranças que tentallt organizar a saída dos frequentadores. Filas de rapazes, homens e mulheres se itrrilstam pelas iuils próximas. Alguns se aproximam de barracas de cachorro-quc'ntt e ainda têm fôlego para mais unia cerveja e alguns cig:mos. A

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Page 1: Textualidade da cidade contemporânea na experiência homoerótica [ Ferreira ]

MA RCELO SANTANA FE RRE l RA

TEXTUALIDADEDA CIDADE CONTEMPORÂNEA

NA EXPERIENCIA HOMOEROTICA

A

A /

Toda vez que saía para dar uma volta, tinha a sensação dcque estava deixando a si mesmo para trás e, ao se entregar ao

movimento das ruas, ao reduzir-se a um olhar observador. ele sedescobria apto a fugir da obrigação de pensar, e isso, mais do

que qualquer outra coisa, Ihe trazia uma certa paz, um saudávelvazio interior.O mundo estava fora dele. em volta, à frente e a

velocidade com que o mundo se modificava sem parar tomavaimpossível para Quinn deter-se em qualquer coisa por muito

tempo. O movimento era a chave da questão, o ato de colocarum pé adiante do outro e se abandonar ao fluxo do própi'io

c01'í)oPau! Alista

A rua está tingida de tons delicados de azul e de verme'lho.prenunciando um domingo momo e arrastado. A chuva que provit-velmente banhou a cidade durante a madrugada se aculllulaem poças irregulares nas calçadas, servindo de espelho paiiios rapazes que saem de uma boato gay do subúrbio clo Riode Janeiro, o que se expressa em seus gestos ampliados noreflexo dos círculos concêntricos de cada poça de água. Silorostos juvenis, impregnados de cansaço e de alegria, muitas vezescontrastantes com os rostos sisudos dos seguranças que tentalltorganizar a saída dos frequentadores.

Filas de rapazes, homens e mulheres se itrrilstam pelas iuilspróximas. Alguns se aproximam de barracas de cachorro-quc'ntte ainda têm fôlego para mais unia cerveja e alguns cig:mos. A

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cid2tde amanhece e pessoas já se encaminham às padarias e aossupermercados para fazerem suas compras de domingo. Rostosbagunçados pelo sono se misturam aos rostos festivos, e a socia-bilidade plena e ritualística dos notívagos se dilui na imensidãodo bairro da Praça Seca. Acabou mais uma noite de música, dedança, de corpos perfumados e de corpos diversos no territóriofebril de uma boîte. Resta esperar mais uma noite, tão próximaquanto um verso que se refaz nli respiração tensa de quem es-creve um poema nutrido pela mutabilidade de uma cidade comoo Rio de .Janeiro.

Se pudéssemos rever as imagens da última noite, talvez conse-guiríamos compreender uma parte do sentido de uma experiênciacoletiva como a que se deu no interior da boîte. Para isso, noentanto, precisaríamos do apoio de um interlocutor sensível, quese esgueirasse, como uma espécie de tânus, pelo território quefossemos gradativamente elaborando. Então, imaginemos queo tempo se desloque e que já não seja, ainda, a manhã de umdomingo em que chuvisco na Praça Seca. Ainda é sábado e sãosete horas da noite. O que encontramos? Saindo de Madureira,passamos pelo Campinho e chegamos até uma rua em frentea um famoso supermercado. Madureira é cinza e barulhenta,irregularmente pincelada pelo azul de suas luzes promocionaise pela fumaça dos carros que se deslocam, velozes, pelos seusconhecidos viadutos. Campinho é uma passagem, baixo espremidoentre um lugar cheio de evocações singelas e um outro limiar,o início da Praça Seca. Subimos uma ladeira íngreme, lugar quemistura casas de classe média a escolas e uma enorme favela,sustentada sobre pedras que parecem pâr permanentemente àprova a capacidade de sobrevivência dos indivíduos às condiçõesadversas de existências.

Alguns comerciantes já se arrumam, preparando carvão e gelopara aquecerem alimentos que venderão e preparando bebidasque serão consumidas pelos frequentadores de uma importanteboîte gay no cenário das possíveis sociabilidades entre indivíduosgays do subúrbio do Rio de Janeiro e de bairros próximos. Nascasas e nos bares, as pessoas fazem as coisas que são normaisem seu dia a dia. Um barulho de televisão, um latido de cachorroe uma garrafa de cerveja que se abre são os nossos primeirossons aliados na inserção no território gay. A noite se aprofunda,embora não saibamos nos localizar apenas a partir do relógio.

A cada hora da noite, a partir das ll horas, um preço é col)ratiopara que se entrc na boîte.

A fila de notívagos aumenta e se tornit mais densa em algumaspartes. Alguns garotos já se aproximam da fila vendendo bzilasde menta e chicletes para que lls pessoas possam begízz" /rzlr//odurante a noite. Os perfumes se misturan] e o som da boato lúnos invade, vazando dos muros e da porta da boîte. A noitevai óomóar. Na fila, já nos depztramos com uma diversidade clcsujeitos que portam alguns signos interpretáveis, e outros aindaou definitivamente opacos para nós. Roupas coloridas e pretas semisturam, rapazes se juntam a grupos lá formados paul convirsarem, funcionários de outras boates vêm se agregar à massa cle

pessoas que se compõe. Estamos na fila e entramos na boate, umsegurança nos inspeciona e, finalmente, após quase 40 minutosna fila, empurramos a porta da pista principal da boate. "Do youbelieve in lide ater love?", nos pergunta a primeira música da noite.Sim, parecemos responder. Acreditamos que, ali, haja uma formade existência que dialoga com as racionalidades técnico-científicasarticuladas sobre a experiência sexual entre pessoas do mesmosexo, com a violência das ruas naturalizada nas notícias de jornale com o tempo histórico em que ela mesma se formula.

São três pistas de dança e mais um terraço, onde a luz fortecomprime a escuridão de cantos em que casais já se constitueiiiUm Jogo de sinuca e uma moça que vende crepes acenan] comobandeiras que nos indicam a existência de muitos lugares numamesma boîte. Andamos entre os ambientes, assistimos aos gruposde rapazes que rebolam ao som do/un& e da atual música baianaVersos eróticos se misturam à distribuição gratuita de cerveja cde água durante a noite. Parece tão belo o que vemos. Mas, aomesmo tempo, tão denso e tão confuso. Precisamos de textos qucnos enviem ao que vemos para que reconsideremos o visto comoum texto. A cidade é um texto. Então, nos lembramos do./7áne//r,personagem do século XIX, estudado na poesia e na prosa dcBaudelaire, como um dos últimos heróis da modemidade, atentoàs transformações pelas quais importantes capitais europeiaspassaram e, ao mesmo tempo, resgatado pelo pensador juclcualemão Walter Benjamin na sua tentativa de articular uma formade apreensão sensível da modernidade. Benjamin se confrontacom a modernidade e busca considerar a realidade hist(trica comoum texto, interpretando alguns dos seus mais importantes signos c

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elaborando textos que se assemelham, cada vez m:tis, a tnundos,que buscamos percorrer atentos às suas diversas estruturas. Textoe mundo pareciam ter uma similitude nas culturas anteriores àcultura da informação e do advento da burguesia como classeeconomicamente dominante. Benjamin retoma o esforço dosprimeiros românticos em interpretar a textualidade da realidade,empenhado, através de seu próprio itinerário biográfico, em darum estatuto heurístico aos elementos que recolheu em sua própriaexperiência histórica

O dom de encontrar se/ e/balzçczs entre as coisas e a própriaexistência humana p2trece ter se degradado com o iidvento dassociedades letradas. O homem pnmí/iuo tinha mais opominidadese mesmo necessidade de recolher nas coisas e nos fenómenos da

natureza um índice de similitude com sua própria experiência. Daíque o sentido de leitura tenha se restringido na cultura modernae, ao mesmo tempo, tenha assumido uma nova fisionomia.Diz-nos Benjamin em sua reflexão sobre a semelhança:

originalmente escrito em 1933, expressa a sua preocupação eminaugurar, em relação à própria modernidade, uma forma clc

leitura das coisas imediatas que se apresentam à sua experiência'mundana", encaminhando-se à uma tradução dos elementosimediatos através de grades de inteligibilidade permitidaspelo campo do conhecimento histórico e filosófico. Portanto,Benjamin (1993) busca apresentar e citar as coisas, mais do quesimplesmente interpreta-las previamente. A con6lguração profanadas mercadorias e dos corpos humanos na cidade de Paras, porexemplo, garantia o estudo histórico da transição do século)(IX ao século XX, traduzida como época de consolidação dapernlutabilidade entre a existência privada e pública dos indiví-duos modernos e da centralidade da burguesia na regulação dztssociedades capitalistas.

CÍ/ar o presente é uma fon)aa de traduzi-lo e, ainda, de retiraras coisas de lun cenário estável e racional para submetê-lasa uma nova configuração mlelnpes/íoa, como a que se dáa partir de uma ./7õzneNe: por Paris, capita] do sécu]o X]X, deacordo com a ilcepção de Baudelaire e do próprio Benjamin. Abusca de uma outra fisiononaia do tenapo se torna possível, notrabalho benjaminiano, a partir da interrupção da temporaliditclecronológica e vulgar das cidades e da inauguração de um textoem que finalmente os objetos são confrontados como revelaçãode uma série de condições históricas precis2ts. Por exemplo, aocitar as prostitutas em seus 2tforismos,' Benjamin busca problematizar a condição de mercadoria vivida pelos próprios artistasnas sociedades capitalistas modernas. As prostitutas vendem umilmercadoria por serem uma mercadoria. A prostituta enunciada notexto de Benjamin deve ser lida como uma imagem do processode proletarização vivido por importantes extratos das sociedadesmodernas, dentre eles os trab2ilhadores e os próprios artistas,como são pensados pelo próprio Baudelaire

Voltando aos rapazes que rebolam na boîte visitada pornós numa noite de sábado no Rio de Janeiro, percebemos qut'os corpos se abrigana no cenário complexo da pista de dano'a,ganhando uma visibilidade 2ifeita à especificidade da situação.Além disso, as relações que os indivíduos estabelecem entre sino interior da boîte acabam por dialogar com as assimetrias histo-ricamente presentes na forma hegemónica de institucionalização

O dom de ser semelhante, do qual dispomos, nada mais é queun] fraco resíduo da violenta compulsão, a quc estava sujeito ohomem, de tornar-se semelhante e de agir segundo a lei da seme-lhança. E a faculdade extinta de tornar-se semelhante ia muitoalém do estreito universo em que hoje podemos ainda ver assemelhanças. Foi a semelhança que pemiitiu, há milênios, que aposição dos astros produzisse efeitos sobre a existência humanano instante do nascimento.i

A compulsão do homem primitivo não sofreu apenas umadegradação, mas a capacidade de encontrar semelhanças migroupara a experiência da linguagem, campo a que se voltou Benjaminna defesa de uma concepção onomatopaica da origem dalinguagem humana. A primitiva capacidade de ler do homem serestringiu historicamente, não se desdobrando nos dois estratosa que se referia, quando, por exemplo, um ser humano podia[er as vísceras de um animal e a posição dos astros ao mesmotetllpo que encontrava uma destilação daqueles elementos naexistência dos indivíduos. Ler, posteriormente, só se desdobradana referência aos signos linguísticos.

A leitura, no seu sentido mágico e profano, se alinhava aodiálogo cntre a experiência sensível e aos aspectos extrassen-síveis da existência humana. O importante texto de Benjamin,

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.!de experiências afetivas. Uma mistura de referências estápresente na pista de dança da boîte e podemos recolher algunselementos como imagens dialéticas da temporalidade históricaatual. O Je/tzín/no e o /}zascu/!no se confrontam e se rearranjam,garantindo uma interrupção do fluxo banal das horas no bojode uma sociedade capitalista. Na dança vertiginosa ao som deum /uné, o corpo "grotesco", tal como pensado por MikhailBakhtin em sua pesquisa sobre Rabelais,' e o carnaval se fazempresentes como expressão do antidogmatismo, da fisicalidade eda superação do corpo puro ou mesmo idealizado através dosdiscursos científicos e sociais dominantes. O corpo "grotesco'inaugura, sempre de maneira transindividual, uma fomla de tempo-ralidade imemorial, em que a praça e o mercado se opõem aodiscurso hegemónico. "A experiência física do carnaval expressanão apenas um escapismo negativo, mas também um aspectopositivo. O carnaval não é um tempo desperdiçado, porém umtempo preenchido com profunda e rica experiência."s

Om, de acordo com a ãutom citada e a discussão apreendidanos textos de Benjamin, podemos vislumbrar os corpos quebailam na boîte como corpos cônscios de uma interrupção d2t

temporalidade da produção e, ao mesmo tempo, como imagensque revelam a contraposição às hierarquias idealizadas entremacho e fêmea ou entre a/ipo e passíz;o. Não que esses termosnão se façam presentes nos contextos pesquisador, mas eles nãoorganizam previamente as relações que se estabelecem entre osindivíduos e os grupos.

Além d;t pista de dança em que toca /u/zé, na primeira pistade dança um show de peldomzen é um instrumento precioso parauma indagação política. No momento em que a música vai seespiaiando pela pista, condensando-se em determinados gestos deindivíduos, que parecem fazer um show pam seus públicos maispróximos, anuncia-se o show da madrugilda, feito por um grupode artistas lá conhecidos das pessoas que frequentam a boate emquestão. Um dos mais conhecidos artistas começa a falar sobrevidit e morte, lembrando de um peldozmez"recentemente falecido.O artista se empolga e acaba inventando uma piada na hora,narrando a chegada de um gay ao céu. Muitos santos negam aentrada do gay no paraíso, mas a personagem central da pequenanarrativa procura invocar os santos mais próximos de uma catlsózgay e cita o Santo Antânio de Categeró, que, por ser negro, talvez

se sensibilizasse com o apelo clo gay. Todos os santos desdenhamda candidatura do gay ao paraíso, mas alguns deles, e talvez atémesmo Jesus Cristo, estejam se preparando para uma diversão,arrumando os cabelos e a maquiagem. O público ri bastante, ealguns dos outros artistas, constrangidos, ficam de costas parti opúblico, visivelmente preocupados com a narrativa. No entanto,a narrativa do pel#ormer é uma expressão clara da fisicalidadeintensiva da experiência coletiva nil boate, misturando referênciase nomes s:tarados à musicalidade e à brincadeira profana durantea noite, instituindo uma forma de ritual semelhante ao carnaval.questionando as moralidades dominantes que negam qualquerforma de reconhecimento da legitimidade da parceria civil entrepessoas do mesmo sexo. Oportunamente, a brincadeira dialogacom o contexto de desqualificação moral e política das parceriasentre pessoas do mesmo sexo, ao mesmo tempo que valoriza oriso e o deboche como formas de resistência à atualidade. Tal

imagem também pode se aproximar da reflexão sugerida porMichel Foucault em relação à própria ciência histórica, já que oautor -- um historiador do presente -- afirmztva que a "atu2ilidadenão é apenas aquilo que se pode estudar, mas aquilo de quedevemos nos desprender a fim de inaugurar formas novas deconhecimento e de enunciação.ó

Na perspectiva foucaultiana, portanto, percebemos uma pro-funda preocupação com a relação entre o conhecimento e a

diferenciação do pesquisador em relação à sua própria arualidadeA própria concepção de experiência en] Michel Foucault não se

assenta em princípios da fenomenologia, já que o ztutor consicjeuva que a experiência era uma forma de dissolução de fonnas desubjetividade consideradas necessárias, até o momento em queo próprio pesquisador percebia a importância de mode#cczr-scatravés do movimento de interpretação do passado e de desnaturalização do presente. Em entrevista concedida em 1980, Foucault(1994) diferencia-se da perspectiva fenomenológica, ao defenderuma espécie de deus /geffuação como efeito das suas investiga-ções genealógicas e nào um reencontro dos elementos primeirosda subjetividade na experiência cotidiana. O propósito de MichelFoucault, no entanto, não se efetivava apenas em suas pesquisasde cunho mais acízdêmfco, mas principalmente em suas interven-ções que davam uma continuidade aos seus próprios textos. Emuma importante entrevista concedida em 1982 a Gilles Barl)ecletrc

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Michel Foucault problematiza a questão do prazo?r seNHa/ eacaba respondendo a questões sobre a cultura gay e a noçãode experiência sexual. Dois momentos importantes da entrevistapodem ser destacados a fim de podermos dialogar com o campocitado desde o início do texto. Inicialmente, Foucault problematizaa tendência, reconhecida nos anos de 1980, en] se estabelecerum importante vínculo entre sexualidade e dfrPí/os, e afirma:

contrário: "De forma algumas Deixemos quc ela escape na nacdidado possível ao tipo de relações que nos é proposto en] nossasociedade, e tentemos calar no espaço vazio em que estamos novaspossibi[idades de re]ação". ]'ropondo um novo direito de re]ação,veremos que pessoas não homossexuais poderão enriquecer suasvidas modificando seu próprio esquema de relações.'

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É significativo o entendimento de Michel Foucault nos excertosanteriores acerca da relação entre a cultura gay e a história. Aoinvés de se submeter a uma luta pela /ióenação dos gays na suacrescente dissolução na normalidade geral das relações instituídasmis sociedades ocidentais, a cultura gay poderia negar-se a sever diluída no reconhecimento de sua simetria em relação aosafetos heterossexuais. A relação entre subjetividade e história, cle

acordo com o autor, deve ser estabelecida de forma efetiva, ouseja, deve-se também buscar criar novas liberdades na enunciaçãodo fardo da história. Evidentemente que o ztutor se nutre dasreflexões de Nietzsche sobre a história no século XIX, já que ofilósofo defendia a necessidade cle se reconhecer em que medidao conhecimento histórico seria impeditivo da ação, ou melhor, daprópria vida. Uma história que se nutre do modelo antropológicoda memória deveria se tecer a partir da continuidade cronológicae do reencontro empático entre passado e presente. Uma históriac#ê/ít'a garante o próprio estranhamento do presente, dízgzJí/o qz/(somos, daquilo que tios tomamos e daquilo de que estatutos enl

pias de /zos dz8e/concfar. O próprio Walter Benjamin (1993) citaNietzsche em uma das suas reses sobre o conceito de história,relembrando a importância que a história deve assunü em relaçãoàs necessidades da vida e do próprio presente. Em relação àcultura gay, Foucault (2004) acaba por apresentar uma defesacorajosa da relação entre subjetividade e ética, pois as formasde relação estztbelecidas entre pessoas do mesmo sexo podemabalar os modos de existência individual e coletivo historicamentereconhecidos como legítimos. Na boîte citad2t anteriormente'muitos abetos não rangenclápeís pela linguagem e pelas práticasdominantes circulana pelos seus corredores e pelos corpos tiosinclívíduos que se envolvem com outros no interior das tramastecidas durante a noite

No qz/ar70 escuro da boîte, uma quantidade inimaginável dc'pessoas se comprime no espaço exíguo cle um banheiro tnascu-lino en] que fot-atll arrebentadas as lâmpitdas a tim de se gziiiintii

O fato de fazer amor com alguém do mesmo sexo pode muitonaturalmente acarretar toda uma série de escolhas, toda umasérie de outros valores e de opções para os quais ainda não hápossibilidades reais. Não se trata somente de integrar essapequena prática bizarra, que consiste em fazer amor com alguémdo mesmo sexo, nos campos culturais preexistentes; trata-se decriar fomlas culturais.7

Ora, no fragmento acima, podemos perceber que o autor nãose opõe às lutas do século passado que propunham unl reconhe-cimento da legitimidade das relações entre pessoas do mesmosexo, mas afirma a necessidade de óz/go a 17zaís, embora extrema-mente mais complicado, que seria a inauguração de formas derelação com estatutos diferenciados das relações já estabelecidas.Obviamente que ares das suas investigações se fazem presentesna entrevista, já que o autor tencionava encontrar um ponto decontato entre a formação da subjetividade ocidental e a própriaatualidade, afirmando a importância da amizitde e de novosafetos não gerenciáveis pelos saberes estabelecidos que pudessemconstituir modos de existir não cindidos em papéis preestabe-lecidos. Além do momento anterior, o autor também afirma quea condição das relações entre pessotts do mesmo sexo é reflexoda tensão que os sujeitos experimentariarii, já que se situariamnum espaço vazio a partir do qual a intensidade da experiênciadeveria d#brpncfar-se da história e não simplesmente se submetera ela. De acordo com o próprio Michel Foucault,

(...) a cultura gay não será então simplesmente uma escolha dehomossexuais por homossexuais. Isso criará relações que podemser, até certo ponto, transpostas p:ira os heterossexuais. Ê precisoinverter um pouco as coisas, e mais do que dizer o que se disseem um certo momento: "Tentemos reintroduzir a homossexua-lidade na normalidade geral das relações sociais", digamos ao

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o ritual das sexualidades nâmades e sem rosto. Na escuridão dobanheiro, as pessoas parecem se encontrar e trocar carícias apartir da irregularidade do espaço e da própria exiguidade. Nocontexto contemporâneo, em que as racionalidades científicasdesenvolvidas em torno da AIDS parecem ter afrouxado odiscurso do medo e do risco imanente às práticas sexuais nãohegemónicas, alguns grupos de indivíduos que se relacionamcom outros do mesmo sexo inventaram modos transitórios deuso do prazer. Numa outra boato, na zona sul do Rio de Janeiro, adistância geográfica e política é suprimida com o ritual clo quartoescuro. Na mesma noite em que estávamos transitando pelosespaços da boîte do subúrbio, seria possível escutar gemidos e verpráticas sexuais de risco no meio de aglomerados de indivíduosque buscam identificar os seus potenciais parceiros na penumbrae através do toque, que permite a criação de uma imagemsobre o corpo de quem está mais próximo. O corpo gro/esmo,presente em sua genitalidade, se opõe ao corpo sarízdo ou ocorpo pela/amado imagem suportável e consumível nas atuaisrelações entre homens, pelo menos nos meios de comunicaçãode massa. O corpo presente nos quartos escuros dííz/oga como risco real, impregnando o ar com o cheiro de saliva, de fezese de esperma. Mais uma vez, o corpo real e sua nlesclagem aoutros corpos celebra a "livre interação"P com o mundo exteriore impõe, provisoriamente, a importância de orifícios e protusões.Uma forma cultural possível se elabora nos quartos escuros,respondendo à mercantilização dos corpos nas distintas mídiascontemporâneas e à banalização das relações entre homens. Orisco das relações sexuais na penumbra não poderia ser entendido,portanto, como uma questão de ordem puramente biográficaou psicológica. Existem formas de relação entre os corpos quecelebram a desindividualizaçào dos afetos, rearticulando a vidaindividual e coletiva ao caráter imprevisível das tensões dosencontros na cidade.

A desindividualização dos afetos, dessa forma, expressa oestatuto histórico e coletivo da própria experiência homossexual ,um amplo espectro de relações que os indivíduos podem estabelecer com outros do mesmo sexo. Do cheiro do quarto escurosomos lançados, através da insistência da rememoração, às ruasdo bairro da Lapa, que ficam {nu?zdacZízs de urina no decorrerdas noites de sexta-feira e sábado. Após o consumo de cerveja e

outras bebidas alcoólicas, homens e rapazes se posicionam c'm

diferentes muros de uma rua específica da Lapa para urinaren),garantindo a formação de novos territórios de observação depúblicos híbridos interessados em assistir à exibição de corpos ede pênis diferentes. Na rua específica, novos bares foram cons-truídos e eles são maciçamente ocupados por frequentadores cle

uma boîte gay próxima. Nas mesas dos novos bares, os gruposde indivíduos observam, avaliam e se divertem com a diversidadede corpos dlsponz'pais ao olhar. Numa noite específica, no meioda multidão que caminhava de um lado para outro da Lapa, umrapaz, entre seus amigos e amigas, coloca o seu pênis para forzi eurina, enquanto continua andando. A sua juventude, a sua roupztfacilmente reconhecida como uma rozzPa cZa nzodíz se aliavam àsua naaior permissividade, garantindo uma suspensão provisóriacla funcionalidade das ruas de uma cidade. Ele andava pela ruae o seu corpo era misturado às cores e aos afetos de uma noitequente na Lapa. Mais do que um rapaz no meio da rua, eran] opau e o mÜo que habitavam o trecho quem/eda cidade, permitindoque se constituísse uma experiência coletiva em que o corpo purodas idealizações científicas e mediáticas não estava presente

Na boate no subúrbio do Rio de Janeiro, muitas vezes a parcia-lidade dos corpos se impunha às formas mais naturalizadas deabordagem e de efetivação da cone entre homens. Mergulhandonas tramas intensas da boate, percebemos o quanto o fedor, aprecariedade, o gemi/íz/ e o transitório eram uma expressão clamaterialidade das relações, não subsumidas na forma domin;an-te de se estabelecerem vínculos entre os corpos. Os perfumesdo início da noite, a fumaça dos cigarros e o cheiro de chicletede menta são apenas os precursores de misturas imprevisíveis,como a de um rapaz que sai do quarto escuro com sua calçapreta salpicada de esperma. Na luz penetrante da manhã que seiniciava, a calça preta com pontinhos brancos era um destroçoda genitalidade e da provisoriedade dos encontros em uma boatogay. A assumida transitoriedade das relações afetivas, objeto cleextrema preocupação de especialistas da conduta humana, nãopode ser entendida como resultado de uma sociedade que primapela fugacidade dos encontros. Trata-se de uma celebração deaspectos não racionalizáveis da existência individual e coletivapois permite a efetivação de práticas eróticas para além do purohedonismo e do individualismo contemporâneos.

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A textualidade da noite ainda prossegue e os signos do con-sumo se espraiam pelo território observado. Cabelos coloridos,plerc/ngs, corpos scznadose roupas de grite se confrontam a corposcomuns, de trabalhadores, de estudantes, de velhos e de moçosque querem dançar e beber, namorar e transar, observar e seremobservados. O próprio corpo dos peido/"l?zc?rs se modificou emquase uma década de nossa deambulação por boates gays. Algunscorpos são o próprio objeto do espetáculo durante a noite,por serem excessivamente contrastantes com a concepção debeleza divulgada pelas mídias e consumida pelos indivíduos. UmpeJgormer, especificamente, se mexe ao som da dança do ventre,mostrando seu ventre enomle e enumerando os alimentos queconsumiu durante um período de festividades. Numa das noitesem que rezllizou o seu show, consumiu um enorme sanduíchede uma lanchonete famosa antes de subir ao palco. O alimentoexcessivo, gorduroso, cheio de sabor e de cheiro distinto daquelea que estamos habituados é oferecido em diferentes ambientesda boato, em que a própria bebida alcoólic2t é consumida emprofusão, garantindo a cotnposição de um /ape/e de cerveja e decopos descartáveis na continuidade das noites. Além do peido/merobeso e satírico, outros artistas portam os signos do consumismocontemporâneo, ao aparecerem com corpos rrnóa/bízdos emacademias de musculação.

As práticas vislumbradas no interior da boate questionam oestatuto pemlanente da noção de iclenti(hde homossexual. Devido:l uma multiplicidade de favores, os modos de elaboração de sinaesmo como sujeito de determinadas práticas e abetos no bojodas sociabilidades entre homens que se relacionam com homensnão são a mecâniczi expressão da construção da identidade sexual.A performztnce dos indivíduos pode ser mais importante que asua identidade; as práticas entre homens nem selllpre traduzem] construção de identidades fixas. Neste sentido, as práticas nointerior cla boato podem ser compreendidas historicamente, poiso anual contexto em que vivemos permite uma relativa experi-mentação dos afetos inimaginável em outros contcxtos históricos,mas que necessitan] ser reconhecidas en] sua intensidade, ouseja, em sua temporalidade para além da história. É ex21tamente

nessa clireção que elas podem ser vislumbradas como imagensde unia forma de experiência. Uma "experiência", de acordocom a acepção de Walter Benjanlin, se constitui na inauguração

de uma temporalidade "outra" no interior do tempo vulgar oucronológico.:' De acordo com Aganlben, a concepção de históriílem Benjamin diz respeito à necessidade de, para o miiterialistahistórico, se parar o tempo a cada instante.'' Ora, o "instantecle que fala Benjainin é o "instante" do perigo tanto individualqultnto coletivo e, mesmo, o abrigo tecido pelas palavras atravésdo estudioso da história que busca construir uma formtt clcpercepção políticíl sobre os acontecimentos que passam. O texto,em Benjamin, é unia fom)a de paralisação do tempo cronológico ca inauguração de uma experiência. A experiência se articula numadiferenciação dos homens em relação à sua própria história

Um fragmento sensível desse processo se dá na configuraçãodo território en] que realizamos nossa deambulação. Os prédios eas realidades sociais distintas formam uma espécie de cns/a/, emque a própria totalidade do processo histórico vens espelhar-se,mas os elementos que conseguimos identificar são cognoscíveisa pitrtir do contexto em que nos encontramos. Ou seja, podemosdizer que toda a história das práticas sexuais entre homens vensespelhar-se no instante fugidio dos encontros no interior de umaboîte específica, mas a especificidade dos encontros impõe umaperspectiva sobre outrora, por ser, na sua forma de /e.r/o, uma6zgomc/darei:, em que o passado pode ser reconhecido, masem que o presente inaugura uma certa distensão do tempo. Taloperação nos é sugerida pelo próprio Walter Benjamin em ulnidas suas lembrançzis biográficas, que garantiram a elaboração clcuma perspectiva sobre a história e sobre o tempo:

Primeiros socorros

Um bairro extremamente confuso, uma rede de ruas, que anosa fio eu evitara, tornou-se para mim, de um só lance, abarcávclnuma visão de conjunto, quando um dia uma pessoa anaadamudou-se pura lá. Era como se em sua janela uln projetor estivesseinstalado e decompusesse a região com feixes de luz.:s

A confusão das ruas e a irregularicl2tde de um determinzicloespaço se tomam, involuntariamente, o espaço em que o estudiosodo passado encontra uma certa sugestão de unidade. A partir damudança de uma pessoa amada para um bairro, zls construçC)csganham unia luminosidade. No caso da boîte em questão, a suapresença num contexto híbrido garante uma suposta uniclaclt

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ao território, e, mais do que isso, o estudo das práticas entrehomens no interior da boate garante uma aproximação à totali-dade da história da própria homossexualidade masculinzi no Riode Janeiro. Mas, para isso, é necessário instituir uma experiência.E o caso dos indivíduos que se dirigem à boîte, no meio debairros dormi/idos e de passagem. Ali, naquela boîte simplese escondida, um certo relampejo da noção de experiência sefaz presente. Compreender a relação que se estabelece com aAIDS nas sociedades contemporâneas se torna possível a partirdo contexto específico; interpretar a polissemia dos abetos entrehomens também é permitido pelo acesso ao elemento cotidianoe provisório que se estabelece no interior da boato. A próprianoção de identidade sexual é permanentemente questionadapelas atitudes e pelos afetos que vislumbramos na boîte. Paraisso, torna-se necessário cffar o acontecido, para permitir umaperspectiva política acerca da atualidade no que díz respeito àspráticas homoeróticas masculinas.

A diversidade cle elementos que são importantes para a invençãode práticas homoeróticas coloca em questão o caráter polifónicoda atualidade. Muitas gerações se encontram no interior de umamesma boîte gay, portando szknos que se historicizam diantedos sermos anuais. Por exemplo, percebemos a juvenilização daspráticas sexuais entre homens, devido à presença considerável derapazes nos contextos pesquisados. Muitos estratos de práticas secomprimem numa mesma noite: indivíduos muito jovens e suapostura flexível e mesmo (Z/Ê'nzlnada em determinados momentos,o que os valoriza ou desqualifica diante de potenciais parceiros;indivíduos com mais de 20 anos que porkain os signos da juventudena contemporaneidade; e indivíduos mitos velhos que carregamos sinais dos tempos que viveram e que ainda sào importantes nasua conduta cotidiana. Essas gerações se distinguem no fluxo datemporalidade cronológica, mas se encontram e se cotláron/ózmno espaço-tempo da boato pesquisada. Numa pista de dançamais escondida da boîte, músicas dos anos de 1970 e 1980 sãoco?npaHÍ/batias por indivíduos de idades diferentes, acarretandoa suspensão das separações rígidas entre pessoas de geraçõesdistintas. O espaço da boîte permite uma provisória suspensãoda história, negando-lhe sua inevitabilidade e inaugurando umaexperiência níz e c/íz história.

A e:xPemêncÍa na história é permitida pelos objetos maiscostumeiros e insignificantes possíveis. No atual estágio clo capita-lismo mundial, a presença de mercadorias estrangeiras em nossopaís garante uma fruição através do lazer. No caso da boîte citadaas músicas de diferentes épocas constituem a atmosfera en] qucsujeitos se constituetn a pztrtir do encontro/confronto com outrosIndivíduos mais velhos percebem seus parízc/!amas de condutae de valores relativizados diante de novos modos de conaporta-mcnto e de desejo entre homens, mesmo que incorporem umziparte da atualidade em seus próprios comportamentos. Una beijoentre pessoas de idades diferentes é uma forma de experiência nahistória permitida pelo espaço-tempo da boate. O uso de roupassimilares por indivíduos de gerações diferentes também impõeuma imagem aos seus observadores: signos do czzPÍ/a/!s/no a/zzír/desfilam pela boîte, permitindo uma relativa flexibilidade cle

elementos para que se construa uma performance no bojo dt'uma boîte. A experiência da história se revela na imediaticidadedas relações, em seu fugidio contorno expresso na cotidianei-dade de piilavras, expressões e gestos específicos. Na própriacotidianeidade, suspensa na elaboração de um texto, a história-- e a história da homossexualidade masculina -- é reconhecida esuperada, já que a intensidade dos abetos e dos olhares trocadosresiste à sua dissolução no suposto curso homogêneo do tempohistórico. Recentemente, nas páginas de jornais de grandecirculação, ficamos sabendo de um jovem gay que lutou com nlztistrês adolescentes que agrediam continuamente frequentiidores clcuma boate gay na zona sul do Rio de Janeiro. A uio/êncía contraas minorias encontra distintas respostas na história, e uma dassuas faces é o confronto explícito (extraordinário). Mas a tensãodos encontros no interior de uma boate também está carregadade violência, desejo, ambiguidade e intensidade. Por exemplo,os Jovens mais efeminítdos tendem a ser ridicularizados c'

submetidos a uma hierarquia em que, geralmente, eles aparecctncoillo possuindo menor importância ou sendo apen2is objetode chacota. No entanto, em vários espaços da boîte, diferentesindividualidades elaboram formas de relação em que as hicrai-quias se suprimem, ou então, permitem provisórias trocas. Opara/cu/ózrdas interações entre os indivíduos no interior da l)Datepesquisada se ilumina através da relação com o bísfódco, Ritose dissolvendo no mesmo. Esta relação é defendida por Waltcl

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Benjamin em sua construção de uma concepção materialista dehistória: "0 cronista que narra os acontecimentos, sem distinguirentre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de quenada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdidopara a história.":'

A tensão entre os momentos vividos e os acontecimentosdo passado permite uma narrativa sensível do curso da história,em que a acuidade do historiador se alimenta da perspectivado cronista, ou seja, de quem se preocupa em ler o relampejo dopassado num traço do presente. Benjamin (1993a) lembra, porexemplo, da consciência histórica dos participantes da Revoluçãode 1848, em Paras, que, no término do primeiro dia de combate,em pontos distintos da cidade e de forma independente, dispararam tiros contra os relógios clãs torres, tencionando a enter

rupção da história oficial e garantindo o encontro fugidio entreas lutas do presente e os anseios não atendidos do passado. Talconfiguração se dá continuamente na relação entre as minoriase a sua própria época. A luta de inclívíduos que se relacionamcom outros do mesmo sexo se distingue das lutas do passado,mas a cada obstáculo enfrentado pelas pessoas, a cada tensãoentre naoralidades distintas, garante-se o reencontro do presentecom um passado que se tornou citável. Embora se consumaa diversidade sexual em programas de televisão e em médiassegmentadas para diferentes públicos, a violência se expressa,inclusive, entre os próprios homens que se relacionam comhomens. A transitoriedade de fitos como o do rapaz que apareceunas manchetes de jornal se alimenta, também, das respostasprovisórias que as pessoas no interior de uma boîte dào ao seupróprio tempo histórico. Além disso, o ritmo do prazer e dafugacidade dos encontros se articula como uma contraposiçãoao modelo higiênico de relação entre os indivíduos.

Na mesma noite em que ./7a?za7mos pela boate, poderíamoster sabido dos seguintes fatos: um pai assassinou o seu filho porsaber que ele era homossexual; numa novela cla Rede Globode Televisão, a cena do beijo entre dois personagens homos-sexuais foi suprimida do último capítulo; indivíduos que saemde diferentes boates têm sido agredidos por pessoas que rondamas áreas onde se desenrolam soc-íízbí/idades entre pessoas que serelacionam com outras do mesmo sexo; em ltaboraí, um grandemunicípio do EstáGIo do Rio de Janeiro, homossexuais têm sido

assassinados por garotos de programa. Estes fatos se agregam it

história das minorias sexuais em nosso país, indicando a complcxidade da situação que os homens que se relacionam comhomens enfrentam na atualidade. A cena do bago roubada daaudiência foi representada numa boate em São Gonçalo, em quea pei:7bnmerda noite perguntava às pessoas o que haviam achadodo último capítulo da novela da Rede Globo. Os casais que seelaboraram durante a noite se beijaram em protesto à b@/enízízçàodo espetáculo, dialogando com a estranheza da atualidaclePersonagens caricatos e uma falsa tolerância têm impregnado arelação das médias com a experiência homossexual masculinaVivemos numa espécie de naturalização da exceção, e violênciascotidianas se impõem, de forma quase opaca, aos olhares nãoatentos à trama das práticas sociais cotidianas. Por isso, maisuma vez, nos esforçamos em construir imagens sobre os destroçosdo passado recente e clo próprio presente não reconhecidoTais imagens se opõem à concepção de uma história linear, emque o progresso das sociedades seria o fÉ'/os do desenvolvimentotecnológico. Novas gerações precisam interpretar os sinais dahistória efetiva das práticas homossexuais entre homens para quenão sucuml)am à ideia de uma suposta tolerância hegemónicaem relação às minorias.

A boate pesquisada seria um gueto? Mais prudente interpreta-lacomo mimada espécie de estrutura fechada em si mesma, masque reflete a totalidade do processo histórico em que se constituiuA boîte é uma mercadoria e, para nós, um objeto histórico.Interpreta-la como manada é um recurso que herda a reflexão clopróprio Walter Benjamin sobre a história. Diz-nos Benjamin:

O materialista histórico só se aproxima de um objeto históricoquando o confronta enquanto manada. Nessa estrutura, clereconhece o sinal de uma imobilização messiânica dos acon-tecimentos, ou, dito de outro modo, de uma oportuniclaclcrevolucionária de lutar por um passado oprimido.''

Pesquisar um objeto histórico como manada implica construiruma imagem que dê conta da expressão do passado no prc?se/?/(

e da totalidade da história naquilo que é ínfimo. A concepç'ílomessiânica no curso da história visa a uma sa/unção do passitclo,ou seja, à sua citação. Um passado reconhecido é, necessaria-mente, um passado salvo do esquecimento. Logo, a bo:tte leal)ra,

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algumzts vezes, un] gueto. Nos cantos escuros e na própriaclaridade, o tecido social inventado no interior da boate nãoestá disponível a qualquer tipo de indivíduo. Trata-se de umaín/edorízaçâo das hierarquias impostas historican lentc às relaçõesentre homens, ou seja, tais relações devem se dar em espaçosprecários e transitórios, a fim de esczipar do processo de vigi-lância e controle ininterrupto sobre aquilo que não é normal. Noentanto, tal precariedade e transitoriedade revelam os interstíciosdas próprias cidades contemporâneas, construídas a partir deprincípios de visibilidade e de catalogação das anormalidades e

das contingências. No entanto, a boîte não pode ser reduzidaà sua condição de gueto. Ela está re/óz/ípamen/e permeável àatualidade, nem que seja através da presença dos signos maishegemânicos do incentivo ao be(donísl}70 coletivo e da construçãode índíu fda/!óZades-Padrz2o, como aquelas em que as pessoas serelacionam com outrzts na tentativa de submetê-las à condiçãode objeto (de consumo). Além disso, o próprio espaço da boîtegarante a elaboração de abetos contemporâneos, protegidos daclaridade do dia e da funcionalidade dos espaços sociais. Asminorias sexuais necessitam de espaços precários, em que possamsobreviver ao jugo da aleatoriedade das horas incorporadas àprodução capitalista e à normatização dais condutas. Na penúltimaPasseata pelo Orgulho Gay, Lésbico e Transgênero, realizada nobairro de Copacabana, no ano de 2007, por exemplo, as imagensmttis consumíveis de famílias nucleares e casais de gays convi-vendo harmonicamente no asfalto das ruas de Copacabana sechocavam com as práticas coletivas de intensificação dos prazeres,articuladas em lugares distantes do percurso da passeata. Atrásde quiosques, no final da tarde e no decorrer da noite, gruposde pessoas se relacionavam sexualmente e se desvencilhavamda sugestão de bom comportamento em voga no asfalto, duranteo dia. Grupos de policiais se silenciavam em frente zl casais derapazes mais ousados que descontavztm a quantidade de vezese de horas em que não podiam se beijar no bojo das tramascomuns de uma cidade.

Tais imagens se ampliam na escuridão e no ritmo nervoso daspistas de dança da boate pesquisada. A 2tlegria da noite, misturadaao cheiro de corpos perfumados e suados, não pode ser consi-derada apenas uma expressão negativa da massificação daspróprias minorias e muito menos da concepção de que se trata

de uma fruição passiva permitida pelas sociedades contempo-râneas. Há uma sensibilidade coletiva que se gesta na boate e qucnão foi devidamente reconhecida. Trata-se de um consumo dosprodutos da sociedade capitalista contemporânea, mas ao mesmotempo sua imc'ncío na prática coletiva, em que o ritmo é maisimportante que o slgne#cado de uma letra e em que as melodiasimpõem uma celta desenvoltura aos corpos e aos próprios abetos.Os corpos parecem se coadunar numa provisória ausência deditames externos. Corpos e prazeres se opõem às identidades eaos controles cotidianos das condutas. Dentro da boîte, estamostambém dentro de uma espécie de mfcrozrea/idade, en] quealguns homens se referem aos seus amigos utilizando pronotllesfemininos e em que brilhos exagerados nas camisas se refugiamdas cores hegemónicas que mantêm a atmosfera previsível cla

produção, da escolarização e do lazer alienado. Banhamo-nos nasmúsicas que tocam na boîte e "nos movemos", "nos sacudimos",'descemos até o chão", "deixamos bem claro o que queremos emnosso olhar" e consumimos a cerveja e o cigarro mesmo involtm-tário que impregna nossas roupas e nossa lembrança.

A textualidade da cidade contemporânea citada diversasvezes não se resume aos elementos indicados pela boate. Hádiversos signos espalhados pelo Rio de Janeiro contemporâneoque revelam, de acordo com a nossa percepção, aquilo queentendemos por experiência homossexual masculina. Trata-se deuma produção coletiva, em que o contexto histórico e espacialfornece algumas condições importantes para que os indivíduosse fomlulem como sujeitos cle suas opç(liessexuzlis. Essa experiênciacoloca em questão o caráter não individualizado de uma prática, láque remete ao lugar, a uma determinada hora, a um cleterminitdomomento histórico. Além disso, permite a suspensão do jugo dahistória, como dissemos anteriormente

O conceito de experiência é fundamental para que enten-damos o itinerário do pensador Walter Benjamin e mesmo ascontribuições do pensador Michel Foucault, especificamente'no que se refere ao tema da sexualidade. Nutrindo-se do legadokantiano, mas não se restringindo a ele, os autores citadosdefendem uma concepção de experiência que amplia o sentidodo que entendemos por história. A crise da experiência nussociedades modernas -- em que os indivíduos não conseguiammais ligar sua própria vida ao património cultural -- não iinpcclt'

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que percebemos imagens de experiência, como aquelas quedizem respeito às sexualidades periféricas. Experiência não é oque garante um reencontro do sujeito que doa o sentido ao quese realiza. Experiência, na acepção dos autores citados, é o quepermite um reconhecimento-desprendimento da própria história.Reconhecer o presente permite um desprendimento em relaçãoa ele mesmo. É o que afia;na Benjamin em sua reflexão sobre aciência histórica:

Agora, resta afastamlo-nos, provisoriamente, daquilo que vimosna boîte pesquisada, a fim de permitir que o texto se refol'ct'como abrigo daquilo que passou. Mesmo passado, aquilo quc'se findou recomeça na melodia de umii música, na cor de umaroupa, na trama da cidade e nas páginas dos jornais de granclccirculação. Esquecer o que se viveu é uma forma de acatar aimprevisibilidade, e lembrar é un] modo de celel)rar a inten-sidade, mais do que se apegar a uma identidade. Misturamo-nosaos outros na Praça Seca. Já é domingo e, numa das manchetesdo jornal, apresenta-se uma última estatística sobre a quantidadede bo/mossexuaís assassin2idos no Brasi] no ano passado. A cictacle

nào para. Passam os ânibus, e o ritmo da boîte se desfaz; queremos, agora, pensar e pesquisar sobre a violência em relação àsminorias sexuais no contexto do estado do Rio de Janeiro.

Os acontecimentos que cercam o historiador, e dos quais elemesmo participa, estarão na base de sua apresentação como un]texto escrito com tinta invisível. A história que ele submete aoleitor constitui, por assina dizer, as citações desse texto, e somenteelas se apresentam de uma maneira legível para todos. Escrever:l llistória significa, portanto, citar a história. Ora, no conceitode citação está implícito que o objeto histórico em questão seja:truncado de seu contexto.16

NOTASArrancar o objeto de seu contexto significa cita-lo, buscando

uma fisionomia das épocas históricas. Mas tal fisionomia sóse constrói através de um movimento de supressão da históriacontínua. No texto, a atualidade se conftonu, como imagetn, aocontinuísmo e às concepções cronológicas do que se entende portemporalidade histórica. Objetos arrancados de seu contextonecessitam de uma interpretação renovada da história. Assimtambém quando se produz um obstáculo a uma história quedetermina nossas ações e nossos sentimentos. No caso em quemtão, o que determina o reconhecimento dos indivíduos que serelacionam com outros do mesmo sexo? Resta buscar não o reco-nhecimento através de um trabalho de detetive, mas as trilhas doque permitiu uma outra forma de se relacionar com a vida e como tempo. A diluição de si na experiência possivelmente significauma resistência ao nominalismo de alguns movimentos sociaise do discurso cientificizante. Portanto, as imagens sugeridasnào indicada uma representação ociosa da história em que aexperiência cotidiana ficaria totalmente diluída na temporali-dade oficial. As imagens sugeridas indicam a tensão produzidapelo confronto de existências cotidianas com o próprio tempohistórico. O lazer que une as imagens permite uma distensão aquem viveu os momentos narrados e ao próprio narrador dasimagens.

BENJAMIN, 1993a, p. 113

E7azzene, neste contexto, se refere a uma forma de caminhar na cidade,atendo-se aos 2ispectos hist(5ricos e mesmo subjetivos que identiHcam umadeterminada época. Obvizlmente que o sentido de ./7a/?arie é superadonit obra de Charles Baudelaire. O "andar atento" na cidade ensejou ummétodo nos estudos de Walter Benjamin sobre a modernidade, e o autorconsidera que Baudelaire Ihe tenha fornecido a imagem nazis fol-te cleumii atenção sensível ao caráter de novidade e de transitoriedade emquestão no século XIXI.

BENJAMIN, i993b.

CLARK, 2004

CLARK, 2004, P. 3i8

' FOUCAULT, 2004.

FOUCAULT, 2004, P. ii9-t20

B FOUCAULT, 2004, P. 122

9 CLARK, 200410

11

BENJAMIN, 1993a

AGAMBEN, 2005

12 Foi-ma de tempo inaugurada fora das anual'ras da cronologia vigenteTrata se do momento em que uma época passada entra en] conexão cono presente em que se elabora uma perspectiva sobre a história

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nENJAAiiN

BENJAblIN

BENJAMIN

BENJAÀ'íiN

i993b, p. 35.

1993a, p. 223.

1993a, p. 231

zo06, p. 518.

B RAN CA FALABE LLA FAB RIC IOLUIZ PAULO DA MOITA LOPES

A DINÂMICA DOSA

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identidades sociais percebidas como estáveis envolve alteraçãode "regimes de verdades",' compreendidos como sistemas abertosque podem adquirir novas configurações. Subjacente a essadiscussão, está a ideia de que práticas discursivas constituem otecido flexível desses regimes, cuja natureza porosa pode sermodulada. Contudo, se os discursos são a principal forçapropulsora de teias semânticas, o arranjo /í#zzz/ a que eles conduzem é o resultado de intenso trabalho artesanal de váriosparticipantes, não se encontrando estacionado em algum lugar,em unia forma acabada, pronta para utilização. Novas tramasdiscursivas só ganham existência por meio de processos complexose intersubjetivos de tessitura.:

Neste trabalho, exploramos esse movimento criativo ao focalizarun] evento de letramento escolar, centrado em questões relativasàs sexualidades e levado a efeito na sala de aula de uma escolabrasileim. Argumentamos que regimes de verdade aparentemenlc'estáveis podem ser problematizados quando os alunos são enco-rajados a se enganar em processos de reposicionamentos coletivos,possibilitados por uma aborclagena dos letnimentos como práticas

FOUCAULT, M. !#íca, saxtla/idade, po/alça. Rio de Janeiro: ForenseUniversitária, 2004.