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TESE PARA O XXXIX CONGRESSO NACIONAL DE PROCURADORES DE ESTADO Nilza Aparecida Ramos Nogueira Procuradora do Estado de Minas Gerais Mestre em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Endereços eletrônicos: [email protected] [email protected] PROJETO DE NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC): Decisão fundamentada, formação de precedentes e óbices à remessa necessária Porto de Galinhas 2013

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TESE PARA O XXXIX CONGRESSO NACIONAL DE PROCURADORES

DE ESTADO

Nilza Aparecida Ramos Nogueira

Procuradora do Estado de Minas Gerais Mestre em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Endereços eletrônicos: [email protected] [email protected]

PROJETO DE NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC):

Decisão fundamentada, formação de precedentes e óbices à remessa

necessária

Porto de Galinhas

2013

RESUMO

O Projeto de Novo Código de Processo Civil Brasileiro (NCPC) está em trâmite na Câmara

dos Deputados, PL n. 8.046/2010, em fase de ir a plenário. O NCPC, na esteira das reformas

que vinham sendo empreendidas no Código de Processo Civil em vigor, pretende simplificar

o procedimento, uniformizar jurisprudência e atender aos princípios da isonomia e da

segurança jurídica. Com amparo nesse ideário, está-se fortalecendo o papel da jurisprudência,

criando-se regras de formação de Precedentes Judiciais e o Incidente de Resolução de

Demandas Repetitivas. Diante dessa realidade e considerando a forma de legislar por meio de

cláusulas abertas e de conceitos jurídicos indeterminados aflora o dever de fundamentação

ainda mais clara, precisa e atrelada aos fatos concretos que envolvem a controvérsia jurídica.

A presente tese objetiva tomar em consideração as regras do § 1º do art. 499 do NCPC, que

especificam hipóteses em que uma decisão judicial não se considera fundamentada para, a

partir delas, em cotejo com as disposições sobre precedentes judiciais e, de forma especial,

com os “poderes” conferidos aos magistrados nessa seara, estabelecer relações com a

construção coerente e democrática do direito, notadamente em razão do recrudescimento da

jurisprudência como óbice à remessa necessária, na forma do art. 507, do mesmo NCPC.

Trata-se de uma leitura que considera a construção do direito também com potencial para

fazer valer a soberania popular, eis que tem como eixo a participação dos sujeitos do processo

em igualdade de condições de rediscutir e problematizar o texto normativo a partir do

programa normativo do Estado brasileiro.

Palavras-chave:

Processo. Decisão jurídica. Contraditório. Fundamentação. Conceitos jurídicos

indeterminados. Precedentes Judiciais. Remessa Necessária.

ABSTRACT

The Project for New Brazilian Civil Procedure Code (NCPC) is pending in the House, PL n.

8.046/2010, go under the plenary. The NCPC in the wake of the reforms that had been

undertaken in the Code of Civil Procedure in force, aims to simplify the procedure, uniform

law and meet the principles of equality and legal certainty. Pursuant to this ideology, we are

strengthening the role of law, creating rules of formation of Judicial Precedent and Incident

Resolution Demands Repetitive. Given this reality, and considering how to legislate by means

of open clauses and vague legal concepts arises the duty to state reasons even more clear,

precise and linked to the facts surrounding the dispute legal. This thesis aims to take into

account the rules of § 1 of Art. 499 of the NCPC, which specify cases in which a judicial

decision is not considered reasoning for from them, in comparison with the provisions on

judicial precedents and, in particular, the "powers" granted to magistrates in this harvest,

establish relationships with building coherent and democratic rights, especially because of the

upsurge of law as an obstacle to referral required, in accordance with art. 507, the same

NCPC. It is a reading that considers the construction of the right also with the potential to

assert popular sovereignty, lo whose axis the participation of the subjects of the process on an

equal basis to revisit and question the normative text from the normative program of Brazilian

state.

Keywords:

Procedure. Legal Decision. Contradictory. Reasoning. Indeterminate legal concepts. Judicial

Precedents. Review Required.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 5

2 CÓDIGOS DE PROCESSO CIVIS BRASILEIROS: REFORÇO DA AUTORIDADE

DO JUDICIÁRIO E FORMAÇÃO DE PROVIMENTOS JUDICIAIS .............................7

3 O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL(NCPC): REQUISITOS DE QUALQUER

DECISÃO, FORMAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA E REMESSA NECESSÁRIA .........9

3.1 Mitigação das hipóteses de remessa necessária ...............................................................9

3.2 O art. 499 do PL 8.046/2010 (NCPC) .............................................................................11

4 OS ÓBICES À REMESSA NECESSÁRIA - ART. 507, § 3º, DO NCPC …………...18

4.1 Súmulas, Precedentes e Decisão em Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas

………………………………………………………………………………………………...20

4.1.1 Súmulas Vinculantes .....................................................................................................20

4.1.2 Súmulas de jurisprudência dominante .........................................................................22

4.1.3 Decisão proferida em Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas ...................23

5 PROPOSIÇÕES CONCLUSIVAS ....................................................................................25

REFERÊNCIAS ....................................................................................................................27

1 INTRODUÇÃO

O Projeto de novo Código de Processo Civil (NCPC), Projeto de Lei n. 8.046/2010,

aprovado na Comissão Especial da Câmara dos Deputados no último dia 17 de julho, com

previsão de ir ao plenário na segunda quinzena do mês de agosto de 2013 (o que não ocorreu

até a presente data, 29/08), apresenta dispositivos que reforçam o papel da jurisprudência no

Direito brasileiro, na esteira do que vinha ocorrendo com as reformas do Código de Processo

Civil em vigor, de 1973.

O NCPC estabelece regras específicas sobre o que passa a denominar “Precedente

Judicial”, realizando uma aproximação da formação da jurisprudência brasileira, cujo direito

se filia ao sistema romano-germânico, à do common law, seja pela nomenclatura ou pelas

características. Amplia as hipóteses em que não se aplica o reexame necessário, agora

denominado de remessa necessária, conforme art. 507 e § 3º.

O propósito expresso na Exposição de Motivos do Anteprojeto de novo Código,

relativamente à jurisprudência, é de uniformização para garantir isonomia e segurança

jurídica, o que justifica o aperfeiçoamento da técnica de recursos repetitivos, a criação de

regras de formação e alteração de jurisprudência dominante e a instituição do Incidente de

Resolução de Demandas Repetitivas.

O presente ensaio visa a tomar em consideração as regras do NCPC que intensificam

a força da jurisprudência numa perspectiva de legitimidade e coerência na formação das

decisões jurídicas que embasarão tantas outras, de modo a não mitigar a eficácia dos direitos-

garantias processuais expressos no texto da Constituição de 1988 e a resguardar o interesse

público que envolve decisões sujeitas à remessa necessária.

A proposta é, pois, de fazer uma leitura do incremento da jurisprudência sob a ótica

do Processo, como delineado no texto constitucional, cuja eficácia inclui primordialmente o

direito à garantia de influência na formação dos provimentos, de forma que todos os sujeitos

do processo tenham igual direito de interpretar e contribuir com os argumentos que, no

debate, sobressaiam como os melhores para o caso, numa relação forte entre contraditório e

fundamentação.

O art. 499 do NCPC potencializa a percepção colocada no parágrafo anterior, desde

que sua aplicação seja consistente, de modo especial quando se tratar de apresentar razões

sobre alcance a ser dado a conceitos jurídicos indeterminados e no cotejo entre casos, para

averiguar sua identidade, ou não, com julgado que lhe esteja servindo de paradigma, ou cuja

tese jurídica deva ser objeto de consideração. 5

A finalidade última da tese é defender, em bases internas ao ordenamento jurídico

brasileiro, uma concepção que afaste ou, pelo menos, minimize a produção antidemocrática

de provimentos judiciais em detrimento do interesse da coletividade, com afronta ao direito

fundamental ao Devido Processo.

É que, paradoxalmente, temos regras produzidas democraticamente (Constituição e

leis) que colocam o Estado mesmo, por duas de suas funções (executiva e judiciária), diante

de um espaço público discursivo propiciador da rediscussão de textos normativos, na fase de

aplicação, mas aqui com a participação direta do Estado como parte que sofrerá os efeitos de

determinações imperativas oriundas de sua função judiciária. Mas a produção democrática da

própria lei processual insere textos que, se não compreendidos dentro da orientação do

Processo Constitucional, abstrato e indicador do procedimento a ser seguido e, além disso,

dos direitos fundamentais-garantia que devem ser observados à luz dos fundamentos do

Estado brasileiro, previstos no art. 1º da Constituição de 1988, acabam por permitir o

desvirtuamento desse instituto potencialmente democrático e viabilizador do exercício da

soberania popular.

6

2 CÓDIGOS DE PROCESSO CIVIS BRASILEIROS: REFORÇO DA AUTORIDADE

DO JUDICIÁRIO E FORMAÇÃO DE PROVIMENTOS JUDICIAIS

O Regulamento n. 737, de 25 de novembro de 1850, foi a primeira legislação que

trouxe regras processuais para as causas cíveis no Brasil, mas, mesmo no período de vigência

deste, as Ordenações Filipinas ainda regiam o processo civil. No interregno temporal até a

Constituição de 1934, os Estados-Membros tinham competência para legislar sobre direito

processual. (MIRANDA, 1996, p. 4)

Em 1939 foi publicado o Código de Processo Civil como lei, como codificação

emanada do Poder Legislativo, embora feito pelo Presidente da República, no uso da

atribuição conferida pelo art. 180 da Constituição da República de 1937 (MIRANDA, 1996,

p. 4). Uma das justificativas das regras ali estatuídas era a de conferir centralidade, reunião de

normas de processo, dada a existência de vários códigos estaduais.

Da exposição de motivos do Decreto-Lei n. 1.608, de 18 de setembro de 1939,

subscrita pelo Ministro Francisco Campos, extrai-se já a preocupação com a efetividade do

Processo, posto que destacado o pensamento de tornar eficaz o instrumento de efetivação do

direito. O primeiro traço de relevo na reforma do Processo haveria de ser a função que se

atribui ao juiz, de direção do Processo e intervenção na busca da verdade. Também

prevaleceria a chamada concepção publicística do Processo, conforme Chiovenda: a atuação

da vontade da lei num caso determinado. Essa seria a perspectiva em que avultaria a figura do

julgador. O juiz é o Estado administrando a justiça; não é um registro passivo e mecânico de

fatos.

Em 1973 é publicado o Código de Processo Civil que ainda se encontra em vigor,

sob o ideário de reformar o anterior para adotar nova técnica, com simplificação do sistema

do Processo Civil, especialmente os procedimentos especiais, redefinição de institutos e maior

rigor terminológico, cuja orientação teórica sofreu forte influência de Liebman.1

Entre as inovações está a do reforço da autoridade do Judiciário: “O projeto consagra

o princípio dispositivo (art. 266), mas reforça a autoridade do Poder Judiciário, armando-o de

poderes para prevenir ou reprimir qualquer ato atentatório à dignidade da justiça (art. 130,

III)”. (Exposição de Motivos do Código de Processo Civil, Lei n. 5.869/73). Privilegia o valor

segurança, com prevalência do procedimento comum ordinário, de cognição exauriente.

1 Sobre o assunto, conferir BUZAID, Alfredo (1982, p. 17). Destaca-se a influência de Liebman relativamente à ação e às suas condições. (LIEBMAN, 1980, p. 199, 200-205).

7

Nesse cenário, vieram reformas do Código de Processo Civil em vigor, a partir do

ano de 1994, com a criação do instituto da tutela antecipatória dos efeitos da decisão e a

alteração no sistema recursal, criando-se a “súmula impeditiva de recursos”, a técnica de

julgamento dos recursos repetitivos, com real fortalecimento do papel da jurisprudência.

O NCPC segue essa tendência e, relativamente à uniformização da jurisprudência,

traz regras que permitem iniciar uma teorização da decisão jurídica, ou judicial, como o

denomina o NCPC, com reflexos diretos na formação do que agora se denomina de

“Precedente Judicial”, de que cuidaremos mais adiante.

Embora elaborado sob o paradigma de Estado propugnado pela Constituição de 1988

e indique pretender se afinar à sua orientação, o NCPC ainda mantém regras que destoam da

descentralização na construção do direito, a propósito do que determinam o art. 1º, I e II

(soberania e cidadania) e parágrafo único e o art. 5º, LV, ambos da CR/88, o que revela o

afastamento do legislador de linhas procedimentais constitucionais garantistas, com

repercussão negativa na eficácia de um Estado que consinta o homem como um ser autônomo,

apto a cuidar de si próprio e de assumir responsabilidades (POPPER, 1987, p. 192).

O caminho para uma sociedade aberta (POPPER, 1987) não deve pretender conter as

mudanças e os conflitos, mas admitir que nos permaneçamos humanos, passíveis de erros, de

tropeços, mas insistindo em acertar; que não retornemos “às bestas”, mas marchemos “para o

desconhecido, o incerto e o inseguro, utilizando a razão de que pudermos dispor para planejar

tanto a segurança como a liberdade.” (POPPER, 1987, p. 217).

Nesse sentido, a busca de segurança jurídica deve conviver com a liberdade e a

isonomia no direito, ou seja, os textos normativos não bastam para garantir igualdade.

Dependem de reconstrução democrática permanente, assegurando que as angústias dos

interessados venham compor a solução adequada para o caso.

8

3 O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL(NCPC): REQUISITOS DE QUALQUER

DECISÃO, FORMAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA E REMESSA NECESSÁRIA

A exposição de motivos do Anteprojeto de NCPC deixa expresso o intento de

instituir um novo Código de Processo que proporcione o reconhecimento e a realização de

direitos; um código harmônico internamente, cujos objetivos fundamentais são a coerência

substancial, a simplificação e a segurança jurídica.

A finalidade de busca de decisão jurídica em prazo razoável se conforma à

Constituição da República, mas a demora na solução de demandas judiciais não pode ser

atribuída primordialmente à lei processual, visto ser de conhecimento notório a dificuldade

estrutural da função judiciária. Por isso mesmo é que examinamos com reserva correntes de

pensamento que vêm se solidificando como “senso comum” de que “há recursos demais”, que

as partes veiculam pedidos “protelatórios”, que é preciso privilegiar o autor que “tem razão”2,

entre outras.

O sistema recursal é inerente ao direito fundamental ao contraditório e à ampla

defesa, à isonomia, não sendo dado ao legislador, na fase de justificação, nem ao julgador, no

momento da aplicação, tomar como premissa, aprioristicamente, que há razão para uma das

partes ou que os argumentos trazidos em impugnação de qualquer decisão judicial possam ser

considerados protelatórios.

A estruturação e o exercício da atividade jurisdicional do Estado de forma eficiente é

imposição constitucional, mas não se legitima se buscado por meio de criação de técnica que

possa comprometer o direito fundamental à efetiva participação na construção do provimento.

3.1 Mitigação das hipóteses de remessa necessária

O NCPC, com a redação dada pela Comissão Especial na Câmara dos Deputados,

apresentado em 17 de julho do ano em curso,3 prevê, no art. 507, a remessa necessária. Seu §

2º trata das hipóteses em que não se aplica o disposto no caput conforme o valor da

condenação. Já o § 3º, que é o que nos interessa, deixa expresso não se aplicar, também, o

disposto no artigo quando a sentença estiver fundada em súmula do Supremo Tribunal Federal

ou do Superior Tribunal de Justiça; acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo

Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos; entendimento firmado em

2 Nesse sentido, p. ex., MARINONI,2008; BEDAQUE,2007. 3 Dados disponíveis em <www.camara.gov.br>.

9

incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência e

entendimento coincidente com orientação vinculante firmada no âmbito administrativo do

próprio ente público, consolidada em manifestação, parecer ou súmula administrativa.

Essa previsão do Projeto nos dá a dimensão do incremento que o NCPC confere aos

julgados de Tribunais Superiores, na linha do que vinha sendo feito no Código de Processo

Civil em vigor, a exemplo do art. 475, § 3º, incluído pela Lei n. 10.352/2001; dos art. 543-B e

543-C, incluídos pelas Leis n. 11.418/2006 e n. 11.672/2008, respectivamente.

Paralelamente à força dos julgados aflora o poder colocado nas mãos dos

magistrados, seja ao autorizar a escolha de um entre muitos recursos representativos da

controvérsia sem qualquer demarcação de critério; conferir o poder de determinar a suspensão

dos recursos existentes em segunda instância, ou deixar a cargo do relator a decisão sobre se é

ou não relevante a matéria para admitir a participação de terceiros que tenham interesse na

controvérsia.

O fortalecimento do poder dos magistrados vem arrimado em cláusulas abertas e em

conceitos jurídicos indeterminados, o que faz avultar a subjetividade do julgador. A escolha

de determinado recurso representativo de controvérsia, sem nenhum critério, pode impedir

que determinada tese, apta a infirmar outra, seja tomada como fundamento de decidir. Do

mesmo modo, não pode caber apenas ao relator dizer se é ou não relevante a matéria, porque

não atende à construção democrática do direito e desrespeita a soberania popular, como

imposto na Constituição de 1988. As mesmas objeções podem ser opostas ao art. 557,

também do CPC em vigor, com a redação dada pela Lei n. 9.756/98.

Essas previsões legais fortalecem a jurisprudência como poder dos “membros” do

Órgão Judiciário. Da forma como postas as regras e se não aplicadas em sintonia com outras

garantias processuais não asseguram efetiva participação e, de outro lado, têm a

potencialidade de minar a construção do direito de forma coerente, com aplicação das mesmas

teses jurídicas para situações idênticas, ou não, se houver elemento a justificar a revisão dos

motivos determinantes e a evolução em sentido diverso.

A deferência aos julgamentos dos Tribunais Superiores já é, pois, uma realidade,

agora afirmada e recrudescida no NCPC.

Com José Alfredo de Oliveira Baracho (1984) entendemos que a tutela do processo

se efetiva pelo reconhecimento do princípio da supremacia da Constituição sobre as normas

processuai. O Processo Constitucional visa à proteção dos princípios constitucionais,

especialmente aqueles conferidos aos indivíduos, para se oporem às decisões legítimas das

autoridades públicas. 10

[...] O Processo Constitucional move-se em abstrato, não para regular um direito, mas sim estabelecer a legitimidade de uma lei, fonte mesma do direito. [...] A formulação de um Processo Constitucional que possa ser instrumento de absorção das crises e dos conflitos, a nível institucional, torna-se necessária para o Estado democrático, que somente assim poderá corresponder aos apelos da sociedade contemporânea” (BARACHO, 1984, p. 346, 347, 354).

É preciso definir que eficiência se busca no processo: eficiência como simples

resolução de conflitos (com rapidez e economia – tempo e dinheiro) ou como resolução de

conflitos por meio de sistema judiciário que se orienta estruturalmente para alcançar decisões

baseadas em fundamentos jurídicos pertinentes, participados e adequados ao caso

(TARUFFO, 2008, p. 185 et seq.). Ademais disso, a efetividade, em primeiro plano, só pode

ser do Direito, e não do Processo apenas, pois é o Direito (“pré-visto” na lei) que não foi

fruído e que deverá ser então estabelecido ou reestabelecido, conforme o caso (TAVARES,

2009).

Eis a questão: a lei processual coloca a jurisprudência como óbice à remessa

necessária, o que põe, de um lado, o interesse público4. De outro, o impedimento ou a

limitação do debate de questões de fato e de direito em face de súmulas, precedentes,

acórdãos, decisões. Daí trazermos a lume o teor do art. 499 do NCPC, que estabelece

requisitos para qualquer decisão judicial, os quais contribuirão para minimizar os efeitos

contrários a um processo legítimo, especialmente em face de decisões que tratam diretamente

de alguma controvérsia que envolve interesse público.

3.2 O art. 499 do PL 8.046/2010 (NCPC)

O art. 499, § § 1º e 2º, do NCPC, dispõe: § 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: I – se limita a indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo; II – empregue conceitos jurídicos indeterminados sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III – invoque motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;

4 Interesse público é colocado no sentido de “conjunto de interesses da coletividade e dos cidadãos enquanto membros dessa coletividade”, tutelados pelo ordenamento jurídico.(BACELLAR FILHO, 2010, p. 111). “É dizer, o interesse público fundamental, básico, primário, reside em que o poder público deve fomentar e propiciar que os cidadãos possam desfrutar do livre e solidário exercício e desenvolvimento de todos os direitos humanos, sem exceção. Nesta tarefa, insisto, está obrigada uma Administração pública que pretenda ser coerente e consistente com os princípios do Estado social e democrático de Direito, um dos quais é justamente o incentivoe a promoção dos direitos humanos fundamentais da pessoa.” (RODRÍGUEZ-ARANA MUNOZ, 2010, p. 62) (Tradução livre nossa).

11

V – se limita a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. § 2º No caso de colisão entre normas, o órgão jurisdicional deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada.

As disposições dos §§ 1º e 2º do art. 499 representam um grande avanço em relação

aos requisitos de que se deve revestir qualquer decisão judicial, comparativamente ao previsto

no Código de Processo Civil em vigor, e sua boa aplicação deverá ser objetivo a ser

incansavelmente buscado, notadamente diante das novas regras sobre a formação e a eficácia

dos agora denominados precedentes judiciais, como ainda trataremos.

Decisão fundamentada será aquela que supere as hipóteses do § 1º do art. 499, aliada

ao efetivo contraditório, na forma do art. 10 da Parte Geral do novo Código, o qual determina

que, em qualquer grau de jurisdição, o órgão jurisdicional não pode decidir com base em

fundamento a respeito do qual não se tenha oportunizado manifestação das partes, ainda que

se trate de matéria apreciável de ofício.

Os fundamentos determinantes de uma decisão são extraídos da fundamentação e são

indeclináveis na formação dos precedentes, na forma do art. 520 e seguintes do NCPC, cuja

tese jurídica extraída da decisão paradigma será utilizada para uniformizar entendimento.

Nesses termos, passamos a ler, por item, as hipóteses em que o § 1º do art. 499 do NCPC

considera como não fundamentada qualquer decisão judicial.

De acordo com a alínea “a”, não se considera fundamentada qualquer decisão

judicial que se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo. Significa

dizer, então, que deverá ser apresentada a relação entre questão de fato e fundamento jurídico,

acompanhada das razões da escolha da incidência de ato normativo.

Esse ponto traz à tona o paradigma procedimentalista habermasiano que nos permite

afastar o ideal formalista, de apenas subsumir o fato à norma, de adotar o direito pressuposto

no texto legal, para alcançar um paradigma procedimental, participativo, apto a modificar a

autocompreensão de “todos”, não apenas de grupos de especialistas, elitizados, ou órgãos

oficiais. (HABERMAS, 2003)

O Processo, como espaço de intersubjetividade e de intertextualidade5, deve permitir

o equilíbrio entre poder e interesses concorrentes por meio da normatividade da Constituição6.

É exatamente o que a configuração de Processo trazida no texto constitucional nos autoriza a 5 Intertextualidade é um termo utilizado por Luis Alberto Warat (2002). 6 Nesse sentido, HABERMAS, 1995.

12

concluir: obtenção de consenso obtido por meio da participação fundada em argumentos

racionais7, em que os destinatários são, também, autores do ato.

A alínea “b” considera como não fundamentada qualquer decisão que empregue

conceitos jurídicos indeterminados sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso.

Exigência importantíssima, especialmente diante de regras legais cada vez mais abertas e

compostas de conceitos jurídicos indeterminados que demandam “preenchimento valorativo”.

A integração da norma demanda a exteriorização da compreensão do intérprete sobre

o conceito jurídico à luz da situação concreta. Logo, é um ponto extremamente sensível, posto

ser passível de legitimar o ponto de vista de um dos sujeitos do processo, como se fosse o

melhor, o que potencializa a dissociação da construção paulatina do alcance de determinados

conceitos e a quebra da isonomia no direito.

O grande objetivo conferido ao modo de legislar por meio de cláusulas abertas e

conceitos jurídicos indeterminados é exatamente o de conferir “mobilidade” ao ordenamento8

e ensejar a construção do alcance de termos ou conceitos indeterminados ou a determinação

da consequência de determinada regra pela jurisprudência, de forma a que o ordenamento se

mantenha permanentemente aberto e atual.

Daí a necessidade da consignação do motivo concreto da incidência de conceitos

jurídicos indeterminados para o caso. Isso porque, além de a fundamentação nesses moldes

permitir a insurgência objetiva e pontual dos envolvidos, também viabiliza a construção

“paulatina” e “participada” do direito, o que revela a potencialidade de, nessa forma de

estruturar provimentos judiciais, conferir as características de “coerência” e “integridade”,

além do caráter democrático do direito, na forma do art. 5º, LV, e do art. 93, IX, ambos da

Constituição da República.

Ilustra a construção paulatina do alcance dos conceitos jurídicos indeterminados e

das cláusulas abertas julgado de Agravo Regimental pelo Supremo Tribunal Federal em

pedido de suspensão da tutela antecipada, cujo objeto de discussão é a importação de

pneumáticos usados, à luz de “manifesto interesse público” e de “grave lesão à ordem e à

saúde públicas.”

Para atingir a conclusão, O STF teve de avaliar os critérios legais relativos à

suspensão e, para tanto, observou precedentes.

7 Racionais no sentido de argumentos já debatidos quando da produção da norma, dentro de critérios jurídico-constitucionais. Não qualquer argumento ou que escape inteiramente do debate legislativo, prévio, mas argumento de rediscussão do que já se tem como posto. 8 Sobre o tema, conferir COSTA, Judith, 1999, e JORGE JÚNIOR, 2004.

13

O manifesto interesse público foi aquilitado a partir de dano ambiental representativo

de grave lesão à ordem pública e fez-se ponderação entre as exigências para preservação da

saúde e do meio ambiente e o livre exercício da atividade econômica (art. 170 da Constituição

Federal). Observou-se, ainda, sobre a grave lesão à ordem pública, o manifesto e inafastável

“interesse público à saúde e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225 da

Constituição Federal)” (STA 118 AgR, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Tribunal Pleno,

julgado em 12/12/2007, DJe-036 DIVULG 28-02-2008 PUBLIC 29-02-2008 EMENT VOL-

02309-01 PP-00001 RTJ VOL-00205-02 PP-00519)

Extraem-se da ementa do referido julgado inúmeros conceitos dependentes de

preenchimento para sua integração. O próprio art. 4º da Lei 8.437/92, que delega competência

ao presidente do Tribunal para suspender, em despacho fundamentado, a execução da liminar

nas ações movidas contra o Poder Público ou seus agentes, é recheado de conceitos que

demandam integração. Além disso, a situação objeto de exame no caso do julgado referido

envolve cláusulas abertas como o direito fundamental à saúde e ao meio ambiente

ecologicamente equilibrado diante da importação de pneumáticos usados.

Esse julgado ilustra, in concreto, a importância de o NCPC fixar requisitos

obrigatórios da fundamentação.

A alínea “c” do mesmo § 1º do art. 499 considera não fundamentada qualquer

decisão judicial que invoque motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão.

Esse ponto diz diretamente com a necessidade de uma teoria da decisão jurídica, no que tange

a critérios interpretativos.

Os métodos de interpretação são abstratos e, como não há critérios para escolher o

método interpretativo que prevalece em caso de conflito, podem se apresentar resultados

conflitantes. (...) A leitura de decisões mostra que os tribunais não problematizam as formas de interpretação. Utilizam os métodos casuisticamente e legitimam os mais variados resultados. Em uma das poucas manifestações explícitas sobre as formas de interpretação no STF, o Min. Marco Aurélio pronunciou-se a favor de uma interpretação rigorosa, baseada na abordagem gramatical e excluindo a atuação do juiz de acordo com suas preferências e opiniões sobre o justo. Mas as soluções interpretativas dadas pelo STF mostram que o rigor textualista não se aplica em muitos casos, faltando linha condutora em assuntos de interpretação. Na verdade, os métodos de interpretação são instrumentos para a nossa argumentação. Não oferecem soluções definitivas, claras e automáticas. (...) Por outro lado, o aplicador possui uma margem de liberdade na escolha da interpretação que seguirá. Conforme aumenta o grau de abstração da norma, verificando-se baixa densidade normativa, aumenta a liberdade do aplicador (...) Ao fiscalizar a constitucionalidade, o julgador pode e deve analisar decisões dos demais poderes, verificando o caráter correto de suas interpretações. Mas, ao fazer isso, deve fundamentar sua decisão com argumentação específica e exaustiva, não sendo suficientes referências genéricas e argumentos e preferências morais.

14

Tampouco é satisfatório invocar um princípio constitucional, pois isso raramente oferece uma base sólida para a decisão. (DIMOULIS; LUNARDI, 2011, p. 264 e 265)

Nos lindes do presente ensaio e com amparo na compreensão transcrita, temos que

essa alínea trata de um aspecto da decisão intimamente ligado e complementar à anterior,

porque o uso de princípios como da “isonomia”, da “segurança jurídica”, da “supremacia do

interesse público”, de forma genérica, pode, em tese, justificar decisão pela procedência ou

improcedência de uma mesma determinada pretensão.

Assim, a argumentação específica do julgador, relacionando fato e direito, é

impostergável, além de ser imprescindível a demonstração do por que se está a invocar esse

ou aquele princípio e se está a chegar à conclusão final, de forma a deixar muito bem

delineados os motivos determinantes da decisão, permitindo-se extrair a tese jurídica

relacionada a um fato concreto.

Decisão que não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de,

em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador também é considerada não

fundamentada pela alínea “d”, apta, em tese, a assegurar a eficácia do direito fundamental ao

contraditório, como garantia de influência9, evitando-se a atuação criativa dos juízes ancorada

em argumentos de sua preferência, conforme critério interpretativo que decidir adotar para o

caso.

Contrariamente ao que agora o NCPC determina, são recorrentes decisões de

Tribunais afirmando que o magistrado não está obrigado a enfrentar todos os argumentos

deduzidos pelas partes, bastando que indique aquele(s) que lhe formou(aram) o

convencimento, a exemplo dos seguintes julgados do Superior Tribunal de Justiça: EDcl nos

EDcl no AREsp 290.381/PE, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA,

julgado em 25/06/2013, DJe 01/08/2013; AgRg no REsp 1321920/PE, Rel. Ministro MAURO

CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 06/08/2013, DJe 13/08/2013;

EDcl no REsp 721.751/SP, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em

03/05/2007, DJ 31/05/2007, p. 333.

O não enfrentamento de todos os argumentos viola o direito ao contraditório como

garantia de influência, especialmente por fazer prevalecer determinado ponto de vista. Não

basta, pois, consignar, genericamente, que os “demais” argumentos não são aptos a 9 O professor Aroldo Plínio Gonçalves defende a instrumentalidade técnica, que garante um processo que “[...] se constitua na melhor, mais ágil e mais democrática estrutura para que a sentença que dele resulta se forme, seja gerada, com a garantia da participação igual, paritária, simétrica, daqueles que receberão os seus efeitos”.9 Esta instrumentalidade técnica não se confunde com a instrumentalidade defendida no Brasil, que encaminha o protagonismo judicial, situação que centra a atividade jurisdicional na figura do Estado-Juiz.(GONÇALVES, 1992)

15

infirmarem a conclusão adotada pelo julgador, assim como não é suficiente que o julgador

“adote” aquele(s) que “ele” entender serem suficientes para embasar a decisão. O magistrado

tem o dever de enfrentar todos os argumentos, explicitando por que esse ou aquele outro não é

apto a infirmar sua conclusão, o que exige a indicação de todos os argumentos jurídicos

levantados pelas partes e sua relação com os fatos, e, se se tratar de cláusula aberta, princípio

ou conceito jurídico indeterminado, atender aos demais requisitos, conforme alíneas

anteriores.

A alínea “e”, seguindo a mesma orientação para fundamentação específica em

relação à(s) questão(ões) de fato, considera não fundamentada decisão que se limita a invocar

precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem

demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos.

Esta alínea se soma às anteriores para viabilizar uma teoria da decisão jurídica,

conferindo condição de possibilidade de estabelecer seu conteúdo numa linha de coerência e

integridade10 e, assim, de evitar discrepâncias entre provimentos jurisdicionais, o que vem

atender ao fito de isonomia no direito.

Um ponto de destaque nesse inciso diz respeito à necessária indicação, pelo julgador,

dos “fundamentos determinantes” do precedente ou do enunciado da súmula e demonstrar por

que tais fundamentos se ajustam, ou não, ao caso o que propicia um elo com a formação dos

precedentes, conforme arts. 520 a 522 do NCPC, que ainda será objeto de breves

considerações à frente.

Por fim, a alínea “f” preceitua que qualquer decisão que deixar de seguir enunciado

de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de

distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento, não se considera

fundamentada.

Para esta alínea, as mesmas considerações da anterior, observando-se que as alíneas

“e” e “f” são especialmente contributivas para teorizar o incremento dos precedentes como

fonte de direito para o caso, podendo delas extrair características similares às dos precedentes

do sistema de common law no que pertine às técnicas de confronto, interpretação e aplicação

dos precedentes, o distinguishing [quando há distinção entre o caso concreto em julgamento e

o paradigma] e o overruling [técnica de superação do precedente] , sempre a partir da ratio

decidendi, ou da tese jurídica firmada nas decisões anteriores-paradigmas.11

10 Coerência e integridade no sentido proposto por Ronaldo Dworkin, como um romance em cadeia. (DWORKIN, 2007) 11 Para melhor compreensão do tema, conferir DIDIER Jr.,2012, p. 385-416.

16

A adoção desses critérios quando da preparação da decisão evita que o magistrado

coloque na decisão uma compreensão particular sua a respeito da situação e, assim, destoe de

toda uma orientação que se vinha construindo ao longo do tempo sobre determinado conceito

jurídico ou sobre a consequência de determinada regra em aberto. Podemos

comparativamente denominar de vedação do “marco zero” (WARAT, 2002).

Vedar o marco zero no Processo, para nós, é não acolher a possibilidade de o Estado-

juiz reafirmar um discurso formal e convencional, baseado em conceitos predefinidos e de sua

preferência, não abertos ao debate, revelador da posição de autoridade em confronto com o

ideal democrático que o Processo Constitucional deve viabilizar (NOGUEIRA, 2013, p. 155).

Inadmitir o marco zero na construção jurisprudencial do alcance de cláusulas abertas

e de conceitos jurídicos indeterminados significa também tentar se desvencilhar de diretrizes

retóricas, “fórmulas ocas, sem significação de base, através das quais veladamente se

introduzem critérios axiológicos” (WARAT, 2002, p. 18) .

Portanto, o estabelecimento de critérios legais a serem seguidos na construção dos

entendimentos que virão a compor o conteúdo das súmulas, dos acórdãos e das decisões em

incidentes de resolução de demandas repetitivas é inadiável à construção permanente do

Estado Democrático de Direito, admitindo qualquer cidadão como legítimo intérprete da

Constituição e das leis para, errando e tentando acertar o caminho na busca da realização

dessa forma de Estado, possamos todos desenvolver uma autocompreensão de mundo que nos

permita sermos considerados cidadãos autônomos, capazes de agir e de nos autodeterminar,

numa perspectiva que transcende a decisão proferida para cada caso.

De outro lado, a aproximação do sistema jurisprudencial brasileiro ao do

desenvolvido no common law há de ser vista com cautela, porque o direito brasileiro pertence

à família romano –germânica, que tem na lei sua fonte primária. Pelo menos a lei deve ser o

ponto de partida para a realização de interpretação e integração do direito, conforme

retomaremos mais adiante.12

12 Conferir DAVID, 2002, p. 77 e 103-105.

17

4 OS ÓBICES À REMESSA NECESSÁRIA - ART. 507, § 3º, DO NCPC

Nos termos do art. 507, § 3º, do NCPC, não se sujeita à remessa necessária decisão

que se alinhe a (1) súmula do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça;

(2) acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em

julgamento de recursos repetitivos; (3) entendimento firmado em incidente de resolução de

demandas repetitivas ou de assunção de competência e (4) entendimento coincidente com

orientação vinculante firmada no âmbito administrativo do próprio ente público, consolidada

em manifestação, parecer ou súmula administrativa.

Nesse momento, atingimos o ponto fulcral do presente ensaio: incremento da força

da jurisprudência, mitigação do instituto da remessa necessária e impostergável relação que

deve haver entre contraditório e fundamentação das decisões jurídicas13, ainda com maior

veemência diante da matéria objeto de decisão sujeita a remessa necessária.

Sem embargo de posições desfavoráveis à compatibilidade da previsão de remessa

necessária com o princípio da isonomia14, o instituto se manteve no NCPC e a finalidade da

nossa primeira aproximação com a matéria é de conferir a ampliação das hipóteses em que a

remessa necessária fica prejudicada e, especialmente, indicar as inovações sobre a formação

de decisões jurídicas e o consequente reflexo nos precedentes e súmulas.

As regras do art. 499 do NCPC, ao nosso sentir, trarão um grande avanço no

processo de formação e consolidação da jurisprudência, de modo especial por viabilizar ao

Procurador – aqui considerando especificamente decisão sujeita à remessa necessária -

impugnar qualquer decisão judicial que não cumpra os requisitos aí estabelecidos, o que

permitirá melhor controle e evitará a formação de julgados em bases não esclarecedoras, os

quais, futuramente serão objeto de invocação e, assim, sucessivamente, formando-se um

círculo vicioso: o Estado não consegue prosseguir no debate de questões de interesse público,

ainda que por outros fundamentos, e aquelas decisões-paradigma prevalecem a despeito de,

em muitas situações, se tratar de casos distintos, ou com alguma peculiaridade.

Ademais disso, o § 1º do art. 499 acaba por introduzir uma metodologia de

elaboração da decisão jurídica15 apta a reverter aspectos da realidade da jurisprudência

brasileira, que, não raras vezes, se apresenta discrepante em relação a uma mesma

13 Conferir LEAL, 2002. 14 A respeito, MADEIRA, 2009. 15 Estamos empregando a expressão “decisão jurídica” ao longo da tese, em substituição à prevista no NCPC “decisão judicial” por entendermos que define melhor a decisão participada: proferida com base no ordenamento jurídico.

18

controvérsia; utiliza termos vagos sem estabelecer uma relação clara e precisa com a situação

concreta; realiza interpretação sem considerar uma linha de entendimento que se vinha

formando a propósito da questão ao longo do tempo, provocando, abruptamente, mudança de

entendimento, entre outras situações que, ao contrário de uniformizar entendimento, acaba por

incrementar a não aceitação da decisão pelas partes porque não resultante de um consenso.

Dessa forma, o art. 499 contém regras norteadoras de uma teoria da decisão jurídica

que repercute diretamente na formação da jurisprudência, de forma positiva, desde que outros

dispositivos do NCPC não sejam utilizados para subverter o propósito de, não somente

racionalizar a formação da jurisprudência, mas também, e principalmente, que essa formação

se dê em bases democráticas.

Com Mauro Cappelletti, temos que o processo jurisdicional é mesmo potencialmente o

mais democrático, eis que se desenvolve em direta conexão com as partes interessadas, que

têm o exclusivo poder de iniciá-lo e de determinar o seu conteúdo, cabendo-lhes ainda o

fundamental direito de serem ouvidas (CAPPELLETTI, 1999, p. 100). Mas o acolhimento de

determinadas regras sem uma leitura sob o paradigma de Direito Democrático acaba por

desvirtuar o Processo Constitucional, a exemplo do art. 6º da Parte Geral do NCPC, segundo

o qual o “juiz”, ao aplicar o ordenamento jurídico, atenderá “aos fins sociais e às exigências

do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a

proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência”.

Embora a proposta legislativa de NCPC pretenda estar em sintonia fina com a

Constituição, ainda inclui regras como a do art. 6º, supra; a do art. 139, inciso III, que confere

ao Estado-Juiz o “poder” de indeferir “postulações meramente protelatórias”; o IV, de dilatar

os prazos processuais e alterar a ordem de produção dos meios de prova, adequando-os às

necessidades do conflito de modo a conferir maior efetividade à tutela do direito. Essas

aberturas deixam margem à liberdade do magistrado dentro de um eixo formalista e

positivista.16

Assim, uma leitura atenta e aprofundada do NCPC ainda não nos permite extrair dele

uma base propiciadora do afloramento da soberania popular, no sentido de, em primeiro lugar,

acolher um “conceito de Constituição que não se orienta pela fixação de conteúdos

previamente decididos, mas que percebe a Constituição como estabelecimento de

procedimentos, nos quais haverá, então, a decisão sobre conteúdos” e, em segundo lugar, de

16 Sobre as características do positivismo jurídico e da admissão da discricionariedade judicial, conferir DIMOULIS, 2006; HART,2009; DWORKIN,2002.

19

que esta esteja na competência exclusiva daqueles “que são afetados por suas próprias

decisões – e não aos administradores e funcionários.” (MAUS, 2010, p. 171).

4.1 Súmulas, Precedentes e Decisão em Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas

O NCPC institui, em Capítulo Próprio, o Precedente Judicial, arts. 520 a 522, dentro

do Procedimento Comum, cujas regras aqui também evidenciam clara aproximação com os

precedentes do sistema de common law, tendência que já vinha sendo considerada por

processualistas como Fredie Didier Jr. (2012, p. 385-416).

O art. 520 do NCPC trata da uniformização e estabilidade da jurisprudência e

determina, no parágrafo único, que os tribunais editem enunciados correspondentes à súmula

da jurisprudência dominante.

O art. 521 estabelece disposições que vêm para conferir efetividade a esse propósito

e prevê a obrigatoriedade de os juízes e tribunais seguirem decisões e precedentes do

Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; enunciados de

súmula vinculante, enunciados de súmulas de jurisprudência dominante, acórdãos e

precedentes em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas

repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos, entre outros,

fixando uma ordem nos incisos I a VI.

A leitura da íntegra do art. 521 nos leva a reafirmar a necessidade de ênfase às

peculiaridades de cada caso, visto que os provimentos vão se formando e vão adquirindo uma

dimensão transcendente, já que serão tomados em consideração para a decisão de casos

idênticos. Logo, além de ser uma resposta àquelas partes, à pretensão a direito levantadas

pelas partes, “a sentença deve ser tal que quaisquer pessoas que estivessem ali naquele caso

obteriam a mesma decisão” (THEODORO JÚNIOR; NUNES; BAHIA, 2010, p. 39-40).

Vamos dedicar, então, breves considerações sobre os óbices à remessa necessária.

4.1.1 Súmulas Vinculantes

A súmula com efeito vinculante não é novidade do NCPC. Foi incluída na

Constituição da República pela Emenda Constitucional n. 45, de 2004, art. 103-A, e

regulamentada pela Lei n. 11.417/2006. Terá por objetivo a validade, a interpretação e a

eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos

20

judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e

relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.

Vê-se que o conteúdo da súmula vinculante deverá ser equivalente a uma tese

jurídica que possa ser aplicada a casos vários. Essa vinculação é complexa e precisa ser

teorizada na forma do art. 499 do NCPC, já que impõe uma decisão judicial que adote, ou

não, a tese veiculada no conteúdo da súmula e, para tanto, novamente emerge a necessidade

de verificar a incidência ao caso.

Sgarbossa e Jensen (2008), em artigo relativo às súmulas vinculantes, apontam a

complexidade de sua inserção no direito brasileiro, com destaque para as sériaas repercussões

nos interesses de particulares e, portanto, no acesso à justiça, visto que, embora não vincule

diretamente o particular, o faz por meio dos efeitos mediatos e reflexos, pela vinculação da

Jurisdição ao julgado vinculante.

Outro aspecto diz respeito a “o quê” é vinculativo: é a súmula, não o enunciado. O

enunciado é explicativo, é esclarecedor, é informativo. Daí que não basta que o Estado-Juiz

faça referência ao enunciado. É impostergável que verifique a jurisprudência que deu

embasamento à Súmula para constatar se a situação fática subjacente àquele enunciado é

idêntica à que está sendo resolvida.

Esta reflexão é feita pela atenção à teorização do direito do common law, cuja

principal regra estruturante é a do Stare decisis, que tem fonte inspiradora em razões de

isonomia: casos iguais devem ser decididos da mesma maneira. É a regra do precedente

vinculante (binding precedent).

A regra do Stare decisis impõe uma vinculação do juiz em nível horizontal (em

relação a suas próprias decisões anteriores) e vertical (relativa a precedentes de jurisdição

superior). A questão é que, no direito de Case Law, a vinculação se dá apenas em relação à

ratio decidendi (próprio fundamento da decisão judicial, imprescindível para a tomada da

decisão), aquela da qual se extraem as regras de direito aplicáveis ao caso e que se liga,

portanto, aos fatos materiais que estão sob exame no precedente. Por isso, só se alcança a

ratio decidendi para o fim de concluir pela vinculação, ou não, analisando-se o repositório de

decisões, nos quais se identificarão os fatos analisados. Essa é, portanto, a orientação para

fazer incidir a Súmula Vinculante do direito brasileiro.

Observa-se, pois, que o art. 499 do NCPC fixa requisitos que visam, em última

análise, à consideração dos fatos, com fundamentação específica. No que se soma aos

preceitos dos arts. 520 e 521 do NCPC, os quais tornarão formalmente exigíveis as regras de

fundamentação de decisões que façam incidir precedente ou súmula ao caso, ou que se 21

neguem a fazê-lo. Nesses moldes e conforme nossos argumentos jurídicos até aqui expostos,

teremos afastada a mera aceitação da interpretação pré-formatada e, de outro lado, a

viabilização da condição de debate sobre o melhor argumento.

A efetiva participação no debate sobre a incidência do julgado não legitima criação

de ilicitude decorrente de falta de oportunidade de influência, porque o elemento a mais

próprio do momento de aplicação não ficará desacobertado do diálogo. Assim, poderemos ter

como legítimas futuras decisões proferidas na esteira daquela primeira, num caminho de

sedimentação do entendimento.

4.1.2 Súmulas de jurisprudência dominante

O mesmo raciocínio se impõe em relação às súmulas de jurisprudência dominante

quanto à sua incidência, conforme as questões de fato subjacentes. Os motivos determinantes

ou a tese jurídica serão adotados, ou não, conforme a situação fática.

Não obstante, também precisamos retomar aqui a questão da “espinha dorsal” do

NCPC que ainda revela centralização de poder no Órgão Oficial do Estado, na pessoa do

magistrado, e que precisa ser avaliada para tentarmos afastar essa ideologia desconectada da

concepção constitucional de Processo.

Com efeito, não nos parece coerente com a construção do Direito Democrático, por

exemplo, tomar o art. 959 do NCPC como uma regra direcionada ao magistrado, cabendo a

ele decidir sozinho sobre a ocorrência, ou não, de “relevante questão de direito”, que enseje

“conveniente” prevenção ou composição de divergência entre órgãos fracionários do tribunal.

Entendemos que a leitura de qualquer dispositivo deve partir da concepção de

procedimento em contraditório numa perspectiva constitucional de descentramento de poder,

de participação efetiva, de acolhimento de todos os sujeitos como iguais e, assim, com igual

direito de interpretar, de debater, de influenciar e de formar a opinião.

Outras disposições, como a do art. 1042, § 2º, segundo a qual, quando o recurso

estiver fundado em dissídio jurisprudencial, “é vedado ao órgão jurisdicional inadmiti-lo com

base em fundamento genérico de que as circunstâncias fáticas são diferentes, sem demonstrar

a existência da distinção”, haverão de influenciar a interpretação de textos de artigos que,

aprioristicamente, estariam a indicar a possibilidade de decisões destoantes da busca de

sintonia fina das disposições do NCPC com a Constituição, o que haverá de se dar de modo

especialmente eficaz em relação às garantias processuais mesmas. Previsões como as relativas

aos recursos repetitivos e sobre a repercussão geral em Recurso Extraordinário deverão ser

22

também lidas sob essa ótica. Caso contrário, o protagonismo judicial em detrimento do

Devido Processo é inevitável.

O texto do art. 1.048 do NCPC também deixa entrever esse perigo. Suas disposições

permitem ao magistrado decidir - decisão irrecorrível - a partir do preenchimento valorativo

do que vier a considerar como questão relevante “do ponto de vista econômico, político,

social ou jurídico” se há, ou não, repercussão geral. Essa integração da norma não prescinde

da consideração dos elementos que compõem a fattispecie.17

Além disso, o § 3º do mesmo artigo fixa hipóteses em que automaticamente se

considera presente a repercussão geral a partir da jurisprudência, o que nos leva a retornar a

todas aquelas questões levantadas a propósito do bem vindo art. 499.

4.1.3 Decisão proferida em Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas

Quanto ao Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas é admissível quando,

estando presente o risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica, houver efetiva repetição

de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão de direito, na forma do art.

988 do NCPC. Trata-se de um instituto inspirado no Musterverfahren do direito alemão.

O incidente, se por um lado, tem o condão de estabelecer um entendimento prévio –

como se fosse uma consulta ex ante à segunda instância - sobre determinada questão de

direito, o que representa “segurança jurídica” sob o ponto de vista da uniformidade de

entendimento, por outro, o exame será apenas da questão de direito com base em um

“processo originário”, cuja participação na exposição oral será “privilegiada” do autor e do

réu daquele processo originário, restando aos demais interessados apenas requerer juntada de

documentos e diligências necessárias à elucidação daquela questão de direito e tempo mais

restrito de sustentação oral.

Positivamente, o § 9º do art. 988, prevê que o incidente pode ser instaurado quando

houver decisões conflitantes sobre mesma questão de fato. Numa leitura conjunta com o § 3º

do art. 994, que determina que o conteúdo do acórdão abrangerá a análise de todos os

17 Poderíamos vislumbrar aqui a presença do “programa normativo” e do “âmbito normativo” de que falava Friederich Müller. Ingeborg Maus faz imersões na teoria da racionalidade de Friederich Müller, apontando críticas. Explica que, para Müller, a prática jurídica encontra-se sob o “primado da vinculação normativa”, não excluindo a inclusão de conteúdos fáticos no procedimento de concretização em geral. Müller inclui, no conceito de norma jurídica, o programa normativo e o âmbito normativo. O primeiro é o comando legal formulado no texto normativo e o âmbito normativo se constitui de componentes factuais realmente relevantes sob o aspecto normativo. Assim, “desloca o âmbito de regulação da norma, sob aspectos específicos, para dentro da norma”. A partir desse raciocínio haveria uma medida considerável de racionalidade (MAUS, 2010, p. 97-99). Essa teorização pode ser vista como um aspecto da metodologia de fundamentação do art. 499.

23

fundamentos suscitados à tese jurídica discutida, sejam favoráveis ou contrários, teremos um

fechamento da possibilidade das fugas para cláusulas abertas, no sentido de adoção de

fundamentos genéricos ou de conceitos vagos para justificar a decisão, sem uma ligação

específica com a situação concreta.

Essa relação ainda toma uma postura de maior relevância em razão de que, na forma

do art. 995, julgado o incidente, a tese jurídica será aplicada a todos os processos que versem

sobre idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal e,

também, aos casos futuros que versem idêntica questão de direito e que venham a tramitar no

território de competência do respectivo tribunal, até que esse mesmo tribunal a revise.

De outro lado, chamamos a atenção para os seguintes pontos:

a) referência do caput do art. 988 a presença de risco de ofensa à isonomia e à

segurança jurídica a justificar a admissibilidade do incidente. Isonomia e segurança jurídica

são conceitos que dependem de “preenchimento valorativo” em face da situação concreta, o

que atrai do risco da prevalência de determina ponto de vista.

b) alcance da expressão “efetiva repetição de processos que contenham controvérsia

sobre a mesma questão unicamente de direito”. O dispositivo não apresenta nem mesmo um

número indicativo do que se consideraria repetição (vinte, trinta processos) e remanesce a

dificuldade de se entender o que seja uma “questão unicamente de direito”18, o que nos leva a

indagar se estaríamos admitindo um direito abstraído da realidade social, meramente formal...

c) a regra do § 2º do mesmo art. 998 deve sobressair para minimizar a dificuldade de

racionalizar a escolha de situações potencialmente aptas à admissibilidade do incidente,

determinando que “o registro eletrônico das teses jurídicas constantes do cadastro conterá, no

mínimo, os fundamentos determinantes da decisão e os dispositivos normativos a ela

relacionados.”

Enfim, para assegurar a legitimidade do procedimento previsto no § 2º do art. 998,

extensível, inclusive, ao julgamento dos recursos repetitivos e da repercussão geral em

recurso extraordinário, por força do § 3º do art. 989, faz-se imprescindível a observância das

regras do art. 10 da Parte Geral, segundo o qual não pode o magistrado decidir com base em

fundamento a respeito do qual não tenha oportunizado a manifestação das partes, e do art.

499, § 1º, ambos do Projeto de novo Código de Processo Civil.

18 A propósito, conferir DUTRA, 2012, p. 124-139.

24

5 PROPOSIÇÕES CONCLUSIVAS

O Novo Código de Processo Civil vem ancorado novamente na intenção de assegurar

efetividade ao Processo, no sentido de decisões jurídicas proferidas em tempo razoável, bem

como de garantir isonomia e segurança jurídica.

Entre as alterações na Lei processual ganham destaque disposições sobre a

fundamentação de qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença e acórdão e a

conformação de Precedente Judicial em capítulo próprio, arts. 499 e 520 a 522 do Projeto.

A relação entre as regras do art. 499 do NCPC e aquelas que tratam dos precedentes,

bem como dos recursos nos Tribunais Superiores e, também, das decisões a serem proferidas

em Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, é de suma importância para viabilizar a

eficácia do direito fundamental ao contraditório como garantia de influência na formação de

provimentos, nos moldes em que delineado no texto da Constituição da República de 1988.

Essa teorização sobre a formação dos julgados/precedentes ganha especial relevância

em razão de eles figurarem como óbice à remessa necessária.

O Estado, por sua representação judicial, deve assegurar que a interpretação e

aplicação de leis e atos normativos se dêem em conformidade com a Constituição. Não está

autorizado a, como parte, negligenciar a eficácia de garantias constitucionais, sendo conivente

com prática de determinação de alcance de cláusula aberta ou conceito jurídico indeterminado

por meio de argumento de autoridade, inviabilizador do respectivo controle.

Nesse sentido, as regras do § 1º do art. 499 do NCPC, aliadas especialmente à norma

contida no art. 10 da Parte Geral do NCPC, têm a potencialidade de garantir que a

interpretação e aplicação do direito abranjam todos os envolvidos nessa tarefa, não em um

plano de neutralidade ou de parcialidade, mas de forma participada, buscando a rediscussão

da regra posta e, por meio da normatividade da Constituição, decidindo pela norma mais

adequada à solução da controvérsia.

Nessa linha de compreensão, aplicadas as regras de fundamentação de forma

consistente, haverá um grande avanço que permitirá ir-se afastando uma visão continuísta do

direito, com mera remissão a normas preexistentes, sem submetê-las ao efetivo debate, aberto

a todos.

Estamos cogitando, portanto, de regras que virão para sustentar a construção

democrática e coerente do direito, afastando-se a conjectura de um “novo começo” em cada

julgado, numa percepção meramente utilitarista no exercício da interpretação e aplicação,

25

quanto mais se essa nova construção valorativa partir de um “sentimento” oficial estatal não

problematizado, embora veiculado no interior de procedimento em contraditório.

O que estamos propondo é, pois, não se desconsiderar a pré-compreensão dos

sujeitos do processo, todos com igual direito de interpretar e influenciar a decisão, e

resguardar o debate aberto sobre o interesse da coletividade que o caso envolver. De outro

lado, não se privilegiar um direito voltado tão somente para construções passadas, sem a

realização de novos exames, nem apenas para o futuro, sobrepondo razões utilitaristas à

matéria jurídica.

O Processo Constitucional se apresenta como um instituto jurídico-constitucional

apto a mediar o enfrentamento de interpretações e concretizações que embaraçam a

reconstrução democrática do direito para o caso, visto exigir o respeito aos direitos

fundamentais de igualdade entre os sujeitos do processo e esse direito fundamental abrange

desde a produção das provas até a consideração dos argumentos de todos os interessados; a

ampla defesa e o contraditório; a fundamentação racional, isto é, decisões judiciais embasadas

em fundamentos normativos e bem explicados, que expressem claramente o sentido em que

estão sendo empregados os conceitos. Além disso, não descura da eficácia que deve ser

assegurada às demais garantias processuais constitucionais, como as de direito ao advogado,

duração razoável do procedimento, apenas para destacar as que dizem diretamente com a

interpretação e aplicação do direito, assegurando que todos os interessados delas tomem parte.

Segundo essa concepção, haverá um ganho teórico com a vigência das regras do art.

499 do NCPC em desfavor da autonomização da função judiciária do Estado e favorável à

vinculação à lei e ao direito, não no sentido de vinculação ao valor, o que as cláusulas abertas

e os conceitos jurídicos indeterminados encaminham, mas uma vinculação crítica e

problematizada da norma efetuada por todos os sujeitos do processo, em igualdade de

condições.

A norma jurídica passa a ser composta do texto legal confrontado com a situação de

vida. Logo, a lei é o ponto de partida de uma (re) construção para o caso, de forma conjunta e

aberta a todos os interessados, não podendo ser-lhe agregadas concepções de valor

especialmente preferidas e nem admitir a imposição de um direito ampliado pelas percepções

morais, éticas, políticas, econômicas da função judiciária, transformando-se a Jurisdição numa

instância moral superior e imune à crítica e ao impostergável controle.

É nesses moldes que defendemos sejam aplicadas as leis, em um procedimento

orientado pelo Processo, com vinculação à lei e ao direito, observadas as garantias processuais

constitucionais. 26

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