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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (UERJ) CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES INSTITUTO DE PSICOLOGIA DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA SOCIAL E INSTITUCIONAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL (PPGPS) LINHA DE PESQUISA: HISTÓRIA, IMAGINÁRIO SOCIAL E CULTURA. TESE DE DOUTORADO VOANDO COM A PIPA: ESBOÇO PARA UMA PSICOLOGIA SOCIAL DO BRINQUEDO À LUZ DAS IDÉIAS DE BRUNO LATOUR MARIA DE FATIMA ARANHA DE QUEIROZ E MELO ORIENTADOR: PROF. DR. RONALD JOÃO JACQUES ARENDT Rio de Janeiro/ São João Del Rei, 2006

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (UERJ)

CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES

INSTITUTO DE PSICOLOGIA

DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA SOCIAL E INSTITUCIONAL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL (PPGPS)

LINHA DE PESQUISA: HISTÓRIA, IMAGINÁRIO SOCIAL E CULTURA.

TESE DE DOUTORADO

VOANDO COM A PIPA: ESBOÇO PARA UMA PSICOLOGIA SOCIAL DO

BRINQUEDO À LUZ DAS IDÉIAS DE BRUNO LATOUR

MARIA DE FATIMA ARANHA DE QUEIROZ E MELO

ORIENTADOR: PROF. DR. RONALD JOÃO JACQUES ARENDT

Rio de Janeiro/ São João Del Rei, 2006

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (UERJ)

CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES

INSTITUTO DE PSICOLOGIA

DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA SOCIAL E INSTITUCIONAL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL (PPGPS)

LINHA DE PESQUISA: HISTÓRIA, IMAGINÁRIO SOCIAL E CULTURA.

TESE DE DOUTORADO

VOANDO COM A PIPA: ESBOÇO PARA UMA PSICOLOGIA SOCIAL DO

BRINQUEDO À LUZ DAS IDÉIAS DE BRUNO LATOUR.

MARIA DE FATIMA ARANHA DE QUEIROZ E MELO

ORIENTADOR: PROF. DR. RONALD JOÃO JACQUES ARENDT

Rio de Janeiro/ São João Del Rei, 2006

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Agradecimentos

Ao meu orientador, professor Ronald João Jacques Arendt, por ter me permitido encarnar pássaros, formigas e vira-latas nos movimentos em que precisei voar, buscar provisões e perambular pelo meu campo-tema. À minha filha Lis e ao meu marido Roberto pela tolerância que tiveram durante os momentos em que precisei me ausentar de seu convívio. À minha família, especialmente minha mãe, pela acolhida de sempre, pelos mimos e pelos apoios incondicionais, durante as minhas idas ao Rio de Janeiro. Aos amigos do PPGPS/UERJ que integraram o grupo de pesquisa do professor Ronald Arendt entre 2003 e 2007, pelas intensas trocas realizadas. Divido a autoria deste trabalho com eles e, em especial, com aqueles que tiveram a paciência para ler, corrigir e sugerir exaustivamente as melhores formas de dizer as coisas: Marli Lopes da Costa, Irme Salete Bonamigo e Carlos Marconi. Aos amigos da Universidade Federal de São João del Rei, especialmente aos colegas da Brinquedoteca e do Laboratório de Pesquisa e Intervenção Psicossocial (LAPIP), meu ninho habitual, pela aposta que fizeram no meu trabalho. À professora Marília Matta Machado que, sem o saber, em 2003, pavimentou o início do meu caminho em direção à uma Psicologia Social do Objeto, quando me ofereceu um exemplar da revista da Abrapso. Ao professor José Arthur Rios, autor do primeiro texto que li sobre a pipa, que me despertou a convicção de que este era um tema possível e que, por contato telefônico, me orientou na a busca de inúmeras referências bibliográficas sobre o assunto. Ao engenheiro Sílvio Voce, eolista apaixonado que, gentilmente, me concedeu, em longo contato telefônico, informações preciosas sobre o meu tema de pesquisa. Aos Zés: Zé Eloy Maldos, Zezé Vasconcelos e Zé Roberto Vitral (da DIGITRON) com seu fiel escudeiro Tiago, por me ajudarem a sobreviver nos embates com o meu computador. Eles foram a minha saída diplomática com essa máquina maravilhosa e recalcitrante. À Universidade Federal de São João del Rei e à CAPES que, pelo suporte financeiro, viabilizaram este processo. Sem o Programa de Qualificação Interinstitucional (PQI), nada disto teria acontecido. À CEMIG, especialmente à Cristina Diniz, ao Hélvio Vasconcelos, ao Luis Carlos Mendes, à Moema, pela atenção e pela parceria nos eventos em que estivemos juntos.

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Aos amigos do Museu Regional de São João del Rei (IPHAN): Fátima Vasconcelos, Stélvio Figueiró, Renata Kosucinski e Célia Vitral, que empreenderam junto com a Brinquedoteca da UFSJ a aventura de realizar a exposição de pipas. Aos amigos Márcia Roos e Thomas Charles Tatkin, meus assessores para assuntos aglofônicos. Aos que nos ofereceram generosamente suas lembranças, nas narrativas, depoimentos e textos que coletamos: Alberico Zanetti, Benito Mussolini, Cristina Márcia das Neves, “Fabinho” Cristóvão de Souza, Hélvio Vasconcelos, Luis Henrique Simas “Mamão”, Márcia Maria Nunes de Mendonça Abdalla, Maria Cristina Campos Amorim, Oscar Araripe, Paulo Afonso Palumbo, Ronaldo Simões Coelho, Sérgio Murilo Silva Castro. Além da confiança, da atenção, do entusiasmo e do carinho, todos foram peças fundamentais nas ações que desempenhamos na parceria com as pipas. Muito especialmente, aos queridos pipeiros do Morro do São Caetano, meus pequenos grandes mestres: meninos e meninas (ainda que em número restrito) de todas as idades que, junto com seus incríveis brinquedos, construíram comigo as “Narrativas de um Diário de Campo”. A todos aqueles cujas agências produziram efeitos na construção deste trabalho.

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RESUMO

Neste trabalho, tentamos empreender o esboço para uma Psicologia Social do

Brinquedo, elegendo a pipa como nosso objeto de estudo. Para um Estudo Ator-Rede em

Psicologia Social, utilizamos uma expressiva parcela das contribuições de Bruno Latour e

colegas para dar conta dos movimentos de conservação e mudança, típicos dos jogos

tradicionais, verificados na trajetória em rede realizada por este brinquedo. Buscando

desenvolver a nossa pesquisa de campo dentro de uma abordagem simétrica, fizemos o

seguimento da pipa e pudemos observar as diferentes traduções operadas no objeto, assim

como o embricamento de materialidade e socialidade que compuseram as histórias tecidas

por pessoas e materiais. Os dados coletados em nosso campo-tema nos mostraram como as

pipas têm sobrevivido às mudanças por que têm passado, resistindo à ameaça de extinção,

ao mesmo tempo em que se mostram potentes como deslocadores de ações: possibilitam

interações em aprendizagens tipicamente informais, provocam estratégias e destrezas, na

sua construção e no seu uso, proporcionam uma abertura diplomática para a elaboração de

um código de regras em torno da brincadeira, funcionam como elementos aglutinadores nos

vários eventos que protagonizam.

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ABSTRACT

In this thesis, we tried to undertake a sketch for a Social Psychology of the Toy,

electing the kite as our object of study. For an Actor-Network Study, we used an expressive

portion of Bruno Latour´s and his colleagues contributions in order to visualize

conservation and changing movements, typical of traditional games, verified in the network

trajectory made by this toy. Developing a symmetric approach in our field research, we

followed the path of the kite and we could observe the different translations powered in the

object as well as the interface between materiality and sociality that have composed the

stories woven by people and materials. Data collected in our theme-field showed us how

kites have survived, resisting a threat of extinction, at the same time they show themselves

as powerful movers of actions: creating possibilities of a typically informal learning

interactions, provoking strategies and skills in their construction and use, providing a

diplomatic opening for elaborating a code of rules around the game, and working as the

binding elements in several events where they are protagonists.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 10

• Como pássaros, formigas e “vira-latas”. 10

CAPÍTULO I: ESBOÇO PARA UMA PSICOLOGIA SOCIAL DO BRINQUEDO.

14

• Por que uma Psicologia Social do Brinquedo: construindo nosso objeto. 14

• A questão do objeto na Antropologia Simétrica de Bruno Latour. 23

• Expandindo conceitos. 25

• Um novo papel para os objetos. 29

• Os objetos também têm história. 33

CAPÍTULO II MAS DE ONDE VEM O LATOUR?

37

• De como buscar a simetria depois que fizeram bifurcar a natureza. 37

• Um Latour pragmatista. 44

• Latour, herdeiro de Tarde. 50

• Latour, um construtivista não moderno. 52

• Empreendendo traduções. 54

CAPÍTULO III A PIPA NO EMARANHADO DOS FIOS DE UMA LONGA REDE.

58

• Um Estudo Ator-Rede para a pipa. 58

• Uma extinção há muito anunciada. 62

• Uma história tecida por um emaranhado de fios. 65

• A pipa na rede: uma questão de tradução. 70

CAPÍTULO IV Parte 1. SEGUINDO AS PIPAS COM A METODOLOGIA DA T.A.R.

81

• Regras e princípios metodológicos. 81

• As maneiras de realizar um Estudo Ator-Rede sob a orientação da TAR. 91

• As astúcias do pesquisador. 93

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• Seguindo a pipa. 95

Parte 2. CONTROVÉRSIAS METODOLÓGICAS. 100

• Um campo-tema mobilizando controvérsias. 100

• A postura do pesquisador. 102

• O cenário como actante. 104

• Dos atores e do seu seguimento. 107

• As primeiras abordagens. 110

• Buscando aliados. 112

• A procura do “meio-justo”. 113

• “Sob os auspícios da oferenda” 116

• Tornar-se um aliado. 119

• Termos de consentimento ou termos de constrangimento? 120

• As boas questões. 123

CAPÍTULO V A PIPA NAS GUERRAS.

128

• Da tática à prática (ou vice-versa). 128

• O jogo, o jogo agonístico e a abordagem etológica. 132

• Guerras de lá e de cá: estratégias em ação. 136

• O estabelecimento de bases e a conquista de território. 139

• As negociações diplomáticas e a formação de alianças. 144

• O cerol como actante. 148

CAPÍTULO VI AS APRENDIZAGENS CONSTRUÍDAS DURANTE A BRINCADEIRA DE PIPAS: O QUE ESTÁ EM JOGO.

156

• A pipa e as aprendizagens informais 156

• Os brinquedos-ponte, a transmissão cultural e a Zona de

Desenvolvimento Proximal.

159

• Aprender: traduzir e deixar-se afetar. 164

• Apontando para uma Psicologia Ator-Rede. 168

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• Os rituais e as aprendizagens de convivialidade. 183

CAPÍTULO VII A PIPA COMO OBJETO SOCIOTÉCNICO: A CONQUISTA DO ESPAÇO AÉREO.

190

• Para além de Dédalus e Ícaro. 190

• A interferência: fazendo a diferença para atingir um fim. 192

• A composição: multiplicando possibilidades. 200

• O obscurecimento reversível: abrindo a caixa-preta. 206

• A delegação: perpetuando nos objetos uma ação praticada. 209

• Na tentativa de superar dicotomias. 211

CAPÍTULO VIII A PIPA COMO FE(I)TICHE

215

• Fe(i)tiche: ao mesmo tempo fabricação e realidade. 215

• Buscando simetrias. 218

• Pelo entendimento de um mundo integrado. 221

• A pipa como objeto sagrado: singela ligação entre céu e terra. 222

• A pipa protagonizando eventos: Os festivais da CEMIG e

Uma exposição de pipas no Museu.

232

• A pipa operando efeitos. 236

CONCLUSÃO 242

• É preciso colocar um ponto final. 242

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 248

ANEXOS:

• Pequeno dicionário dos soltadores de pipas. 263

• A pipa sob o olhar da psicologia social: narrativas de um diário de

campo.

268

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INTRODUÇÃO

Como pássaros, formigas e vira-latas.

Fim da pesquisa. A sensação é de atordoamento. O que fazer com o mar de

inscrições que conseguimos produzir a partir do seguimento do curso da ação que nos

propusemos a fazer? Podemos morrer afogados ou podemos criar um estilo de nado que nos

definirá numa relação absolutamente singular com a água, ou neste caso, com o nosso

objeto pesquisado. Como ordenar os dados de forma a fazer uma boa fabricação, tornando-

a interessante para aqueles que vão lê-la? Terá alguma relevância para alguém? Que rumo

tomar agora que decretamos um “fim”? Latour (2006) chama a nossa atenção para essa

dificuldade por ocasião do término de uma pesquisa. Diz que elaborar um relatório de

pesquisa é algo tão complexo quanto dissecar uma drosófila ou enviar um telescópio ao

espaço. Ao invés de observar através dos vidros que compõem o arsenal de um laboratório

onde se testam misturas, os pesquisadores das ciências moles escrevem textos. Escrever um

bom texto, ao final de uma pesquisa, parece-nos uma dificuldade análoga àquela de um

cineasta que tem a pretensão de fazer um bom filme. Com todas as cenas tomadas, sem um

modelo ao qual possa seguir - pois correria o risco de estar copiando algo já feito - tem que

fazer a emenda dos pedaços para uma boa montagem com a expectativa de elaborar uma

costura inédita que deixe o seu produto diferenciado: pode sair uma obra de arte, ou um

filme absolutamente banal como tantos outros.

Muitas imagens podem nos socorrer para ilustrar este estado de perplexidade com

que são acometidos alguns pesquisadores no término de suas pesquisas. Uma das que mais

nos inspira é a de uma formiga parada no meio da cozinha, sem saber para onde ir,

pequena, desamparada diante de um mundo enorme, correndo o risco iminente de ser

destruída pela pisada de algum humano incauto. Contaram-nos, certa vez, que os

entomologistas detectaram os movimentos realizados pelas formigas na busca pela

sobrevivência em três versões: caminhando aleatoriamente, farejando na busca de pistas e

seguindo as trilhas deixadas pelas congêneres. Pensamos que, para construir conhecimento,

nós, humanos, fazemos movimentos parecidos. O caminhar aleatório se traduz por essa

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necessidade de perambular no seguimento dos fenômenos que desejamos entender. Ao

trocar propriedades com o meio, como o fazem os andarilhos, estamos nos dando a chance

de traçar novas conexões onde antes elas não existiam, através de trilhas jamais percorridas.

Nada parecido com o que os turistas endinheirados, protegidos pelos pacotes oferecidos

pelas agências de viagens, fazem para evitar situações inesperadas que podem lhes

perturbar o desfrute de roteiros cuidadosamente selecionados. É aqui, nesta diferença, que

entra a nossa opção teórico-metodológica.

Fazer um Estudo Ator-Rede nos oferece a opção de sermos formigas, andar pelos

pequenos caminhos, caminhar devagar, manter o nariz colado nas pistas e viver momentos

de perplexidade, ao invés de fingir que tudo sabíamos, antes de começar a viagem,

alimentando a ilusão de que as coisas estavam sob o nosso controle, de que iríamos a

campo testar hipóteses previamente formuladas para apenas espelhar uma realidade já

existente. Caminhamos aleatoriamente, farejamos em todas as direções e procuramos,

naqueles que nos antecederam, pistas para encontrar alimento. As trilhas, deixadas por

aqueles que têm ou tiveram a mesma finalidade, servem de indícios para a nossa busca, ou

seja, as redes em que estamos inseridos, como nós entre outros nós, funcionam como apoio

para chegar às fontes de provisão.

Começamos esta viagem como pássaros que precisaram abandonar o ninho para

conhecer coisas novas, vivemos o drama da formiga perdida em busca de alimento (ou

trilhas que levem a ele) e terminamos o percurso como um cão vira-lata andarilho, cheio de

pulgas e carrapatos, mas que traz muitas histórias para contar. Esta é a função do

pesquisador, se estamos fazendo a escolha por um Estudo Ator Rede: tomar de empréstimo

várias outras experiências para traçar novas conexões que vão enriquecer a nossa

abordagem do mundo e do fenômeno que estamos estudando.

A Teoria Ator Rede, escolhida como a abordagem com a qual tentaremos operar

sem a menor garantia de sucesso é, segundo Latour (2006), uma expressão inadequada, pois

provoca muitos mal entendidos: com relação à palavra teoria, pois também se pretende um

método; com relação à palavra ator, que não se restringe só ao elemento humano; com

relação à palavra rede que pode dar margem a outras interpretações, tamanha é a sua

utilização, contemporaneamente, com o advento da internet. Ainda assim, tornou-se mais

conhecida do que as expressões Sociologia da Tradução ou Ontologia do Actante Rizoma

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que também definem esta forma de trabalhar. Além do mais, pondera o autor, seu acrônimo

em inglês, ANT (de Actor Network Theory), quer dizer também “formiga”, imagem cara

pelo significado que podemos lhe atribuir: a de um “viajante míope que só pode seguir

traços farejando-os e andando às cegas em grupo”1 (ibidem, p. 18/19)

Num primeiro movimento deste trabalho, tentaremos traçar alguns pontos para

demarcar e defender algumas balizas estabelecidas neste estudo em que fizemos a opção

por estudar um brinquedo. Perguntas que consideramos emblemáticas foram lançadas por

pessoas de nosso convívio demonstrando o seu estranhamento com relação às nossas

escolhas: “Quem iria querer estudar um objeto tão banal como a pipa?”, “Mas de onde vem

o Latour?”, “Quem ou o que é o Ator-Rede?” foram interrogações que nos estimularam a

ser tão claros o quanto possível para incluir no assunto o maior número de pessoas,

permitindo que também participassem da conversação. Foi para elas que buscamos

respostas nos capítulos iniciais. No Capítulo I, esboçamos a construção de uma Psicologia

Social do Brinquedo, já tomando a pipa, este objeto nem tão banal, como foco do estudo.

No Capítulo II, apresentamos as referências que inspiram e dão suporte à nossa empresa,

saciando um pouco a curiosidade em torno de Bruno Latour, autor a quem mais recorremos

neste trabalho. No capítulo III, defendemos a possibilidade de um Estudo Ator-Rede para

as pipas, como uma forte alternativa para inspirar a investigação das redes que se tecem

entre homens e objetos.

O Capítulo IV é um divisor entre o primeiro e o segundo movimento deste trabalho

e está, ele mesmo, dividido em dois segmentos: no primeiro, estão contidos os princípios e

regras metodológicas que legitimam a metodologia por nós utilizada; no segundo,

discutimos alguns pontos que, nesta eleição, se tornaram controvertidos durante a nossa ida

à campo. O segundo movimento a que nos referimos já se verifica na escrita das

“controvérsias metodológicas”, sendo aquele em que nos permitimos “contar histórias”,

trazendo ao nosso texto a possibilidade de operar misturas com os relatos daquilo que

fomos encontrando no nosso “campo”. Com esta inspiração, escrevemos sobre a pipa nas

guerras, sobre as aprendizagens realizadas a partir da pipa, sobre o seu papel nas

sociotécnicas e sobre os efeitos de encantamento provocados por este fantástico objeto,

respectivamente, nos capítulos V, VI, VII e VIII. Para finalizar, tecemos algumas

1 Tradução nossa

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considerações sobre nossos achados, sem qualquer pretensão de encerrar o assunto ou de

apresentar uma versão generalizante dos fatos.

Nos anexos, fizemos constar o texto integral do nosso Diário de Campo e também o

Pequeno dicionário dos soltadores de pipas no morro do São Caetano. Acrescentamos um

CD onde reunimos uma grande quantidade de imagens coletadas durante a pesquisa e que

compuseram um fotoclip exibido durante a exposição de pipas destinada ao jovem visitante,

no Museu Regional de São João del Rei, estando, por esta razão, numa linguagem que

objetivou despertar o interesse da população infanto-juvenil: fundo musical e efeitos foram

pensados com este fim.

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CAPÍTULO I

ESBOÇO PARA UMA PSICOLOGIA SOCIAL DO BRINQUEDO

O papagaio está prontinho, já dormiu pronto. A manhã de verão está cheia de vento, que sopra de rijo. É de boa ciência saber a direção dele pela inclinação da folha da palmeira. Além da linha na mão, o olhar ardente e ligeiro. Mas ainda não é tudo. O verdadeiro empinador precisa levar também um coração de menino, cuja força permite a total identificação, a mais íntima comunhão, entre o homem e o papagaio. O homem pisando o chão e o papagaio bailando no espaço de repente se transforma numa coisa só. A linha leva a alma do empinador, que por ela sobe e se prolonga e penetra no corpo do papagaio: eu inteiro estou lá em cima, livre no vento bailando.... É uma alegria criadora. A cada instante o papagaio se inventa, renasce de tua mão. Perdida a noção de tempo, o prazer se acumula, gerando uma força mágica, feita de luz que canta e planta flores que dançam no fundo de tuas pupilas. (MELLO, 1983, p. 67)

Por que uma Psicologia Social do brinquedo: construindo o nosso objeto.

Em nosso projeto, defendemos a busca por uma Psicologia Social do Objeto, tomando o

brinquedo como nosso foco privilegiado. Trabalhamos com a idéia de estudar o objeto nas

relações que o fizeram derivar, no tempo e no espaço, daquelas travadas entre humanos e

não humanos permitindo fazer durar as interações. O estudo dos objetos na Psicologia já

conta com um caminho apontado pela contribuição de diversos autores, chamando a

atenção para a necessidade desta empreitada.

Tomamos de empréstimo a Domenech et alli (2003) a constatação de que as disciplinas

das Ciências Sociais têm reivindicado a necessidade de uma teoria das coisas concretas,

uma cultura material cujo estudo tem sido negligenciado em prol do estudo de uma

dimensão simbólica e lingüística das produções sociais. Segundo estes autores, existe uma

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15

cultura material (objetos, coisas) que também joga na constituição e manutenção das

identidades sociais2.

Bauer (2003), diante do advento das novas tecnologias, também discute a necessidade

de buscar uma Psicologia Social dos Objetos, das coisas concretas que, em sua criação, em

sua feitura, em seus usos e trocas, jogam um papel importante na forma como vivem as

pessoas num mundo em que a sua sobrevivência depende da utilização de objetos. Diz o

autor que a Psicologia Social dispõe de uma literatura ex post facto acerca dos objetos, ou

seja, “[...] Há uma Psicologia Social da percepção do objeto, mas não da criação do

objeto”(p.11) E acrescenta : “As coisas têm ações inscritas dentro delas. Elas nos convidam

a fazer algo” (p. 13). Diz este autor (ibidem) que, mais do que a capacidade de simbolizar

dos humanos, talvez seja a necessidade de produzir e usar objetos o que mais nos diferencie

das outras espécies animais. Não fazemos nada sem objetos e temos um mundo infestado

deles. Os brinquedos, como qualquer outro artefato humano, têm uma história de ações

neles inscrita que nos convida à descoberta, à invenção e à negociação, quando envolve as

pessoas na sua concepção, na sua feitura e no seu uso. Estudar uma Psicologia Social do

Brinquedo nos convida a pensar no brinquedo enquanto um artefato, uma fabricação.

Abordando o papel do brinquedo no desenvolvimento da criança, Vygotsky (1984) já

fazia a referência a um estudo de Lewin sobre a natureza motivadora dos objetos que, de

certa forma, ditam/sugerem o que deve ser feito: “uma porta solicita que a abram, uma

escada que a subam, uma campainha que a toquem” (p. 126). Neste estudo mencionado por

Vygotsky, Lewin chega mesmo a expressar matematicamente a trajetória do movimento de

uma criança num campo, em função do posicionamento dos objetos e de seus respectivos

efeitos de atração e repulsão.

O próprio Vygosty (ibidem) oferece para a abordagem sociohistórica a idéia de que a

relação homem/mundo não é direta, mas mediada pelos instrumentos fabricados pelo

homem ao longo de sua filogênese com o intuito de transformar a realidade/natureza, pela

ação de seu trabalho. A idéia de mediação ou atividade mediada tem sido definida como

pessoas trabalhando com, transformando e estendendo, no tempo, artefatos e práticas

herdadas de gerações anteriores (Rogoff e Chevajay, 1995). O processo de mediação se dá

2 A palavra social assumirá, ao longo do trabalho, uma conotação um pouco diferente de como até então tem sido entendida, referindo-se apenas a humanos. Ver mais no capítulo II e III.

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através de instrumentos e também de signos, considerados instrumentos mentais. Os

instrumentos são provocadores de mudanças externas, pois ampliam a possibilidade de

intervenção na natureza. Segundo Cole (1998), estes artefatos ou instrumentos tiveram a

função de organizar o meio físico e o ser humano numa co-evolução de ambas as partes. A

forma humana de vida dependeria das habilidades desenvolvidas no uso de instrumentos,

fato que mudou radicalmente a forma de usar algumas partes do nosso corpo (Washburn,

1960, apud Cole 1998).

Como ponto de acordo entre esta abordagem e a contribuição a seguir, os brinquedos

são concebidos como artefatos produzidos por humanos mediados pelos contextos em que

estão imersos e que, ao longo da história, surgem como uma cópia de objetos da realidade

que se oferecem às crianças como suportes de suas brincadeiras, ou construídos por elas

próprias a partir de modelos e materiais disponíveis no ambiente, feitos em tamanho menor

e compatível com as dimensões dos “pequenos adultos”, tal como antes eram vistas as

crianças. Prestam-se para entendimento e elaboração da realidade em que vivem as crianças

dentro de seu grupo social.

Benjamin (1984), ao referir-se à história cultural do brinquedo, ressalta que estes

objetos nasceram nas oficinas de artesãos, sendo produtos secundários das indústrias

manufatureiras: animais de madeira surgidos das sobras do trabalho do marceneiro,

soldados de chumbo como aproveitamento dos restos do trabalho do caldeireiro, as bonecas

de cera como subproduto das fábricas de velas e assim por diante. Para este autor, os

brinquedos são um mudo diálogo simbólico entre a criança e seu povo, mesmo quando não

imitam os instrumentos dos adultos. Primitivamente, ressalta o autor, os brinquedos teriam

sido objetos de culto que, mais tarde, graças à imaginação das crianças, transformaram-se

em objetos lúdicos. O chocalho, por exemplo, serviu como instrumento de defesa contra os

maus espíritos e não é por acaso que costuma ser dado ao recém nascido, oferecendo-lhe

proteção na sua condição de indefeso. Igualmente, o arco, a bola, a roda e o papagaio

teriam tido uma função nos rituais e atividades do mundo adulto para depois se

transformarem em brinquedos. Grande parte dos jogos, por sua vez, teria inspiração em

atividades de sobrevivência que os homens desenvolveram ao longo de sua filogênese: a

luta de dois animais pela presa (osso, objeto sexual), na dinâmica de jogos como o futebol,

o pólo; a defesa do ninho pela fêmea, nos papéis desempenhados pelo goleiro, assim como

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em outros jogos que envolvem redes e cestas; a atividade de perseguição, nas brincadeiras

de gato e rato. Ou, como nos apresentam Carvalho & Pontes (2003), os exemplos do

brincar de casinha como uma necessidade de a criança reproduzir o comportamento de

nossos ancestrais na busca por abrigo e a brincadeira de papagaios como marcando, na

ontogênese, os esforços realizados pela humanidade para dominar os ares, como na lenda

de Ícaro. Avedon & Sutton-Smith (1971) trazem a informação sobre as origens de jogos

praticados contemporaneamente e constatam que aproximadamente a metade deles evoluiu

de atividades que faziam parte da vida comum: comunicação, transporte, guerra; 10%

derivaram de cerimônias religiosas; 15% foram inventados especificamente para a

recreação; 25% permaneciam com sua origem desconhecida. Falamos dos jogos, mas não

podemos esquecer que, como toda interação entre humanos, eles são mediados por objetos

que assumem a condição de lúdicos.

Outra contribuição estimulante para um estudo dos brinquedos é a de Pierre Levy

(1993, 1996a). Suas idéias permitem pensar as técnicas das quais os objetos são resultantes

como um processo de virtualização3 não só das ações, mas também dos corpos e das coisas.

O martelo, o arado, o barco à vela, a roda, enfim, qualquer objeto fabricado pelo homem

atende a este movimento de virtualização que torna perene e compartilhável aquilo que se

deu no âmbito do aqui, agora e feito por um. Levy (1996a) coloca o objeto como

catalisador de inteligência coletiva, algo que seria desconhecido dos animais. Segundo ele,

os mamíferos superiores de quem descendemos conheceriam, no máximo, presas, as quais

funcionariam como proto-objetos, operadores primitivos de socialização. Nas relações

estabelecidas entre humanos, o objeto estaria presente, induzindo-as ou regulando-as. Cada

objeto encerraria múltiplas histórias, reportando-nos a um tempo e a um espaço que já não

estão ali, senão em vestígios, numa linguagem muda que fala à sensibilidade de seus

possíveis interlocutores.

Levy (ibidem) toma um brinquedo, a bola, para ilustrar esta idéia de objeto que

funciona, tipicamente, como um catalisador das relações sociais e como um indutor de

3 A virtualização, para Levy (1996), é a dinâmica de descobrir as características generalizantes de alguma coisa, de transformá-la, reinventá-la, problematizá-la na busca de uma solução.

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estratégias coletivas, cumprindo com o que chamou de função de hominização4. Na

condição de ferramenta, material ou artefato, a bola passa de mão em mão durante as

atividades coletivas, agindo como um operador de socialização.

O objeto marca ou traça as relações mantidas pelos indivíduos uns frente aos outros. Ele circula, física ou metaforicamente, entre os membros do grupo. Encontra-se simultaneamente ou alternadamente nas mãos de todos. Por esse motivo, cada um pode inscrever nele sua ação, sua contribuição, seu impulso, sua energia. O objeto permite não apenas levar o todo até o indivíduo, mas também implicar o indivíduo no todo (p. 130).

Indutores de usos comuns, os objetos são veículos das competências sociais,

mensageiros da memória coletiva, catalisadores de cooperação, implicando os homens

entre si, ao mesmo tempo em que os conectam com o mundo físico. No nosso entender,

portanto, a concepção do objeto em Levy é bastante próxima ao papel de mediador

desempenhado pelos objetos enquanto resultados das redes sociotécnicas defendidas por

Latour, como veremos a seguir.

Tendo sido alunos de Serres, ambos, Levy e Latour podem compartilhar de uma

proximidade de pensamento, ao tomarem o objeto como um pivô das associações travadas

entre os humanos.

A bola joga, e as equipes se situam em relação a ela, não o contrário. Como quase-objeto, a bola é o verdadeiro sujeito do jogo; funciona como um traçador de relações no coletivo flutuante em torno dela. (SERRES, 1999, p. 144)

Para Latour (2001), há uma simetria a ser explorada entre sujeitos e objetos: os

humanos criam objetos interferindo diretamente sobre eles, mas estes objetos também

interferem nas formas de viver, de ser e estar no mundo dos homens. Nossas vidas não

transcorrem isoladamente da ação que os objetos exercem sobre nós, ocorrendo de

4 É interessante verificar que também em Levy está a idéia de que o humano se constrói nesta parceria com os objetos.

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constituirmos certas díades em que humanos e não humanos5 tornam-se entidades híbridas.

Para pensar a questão do brinquedo, um objeto só se torna lúdico na relação com aquele

que com ele brinca, pois, do contrário, será um objeto como qualquer outro. A relação entre

o brinquedo e o humano evoca mais uma simetria porque, na mesma medida em que o

humano confere um sentido lúdico a determinado objeto, este objeto tem a capacidade de

convidá-lo a determinadas ações lúdicas, muitas vezes desafiadoras de destrezas, estratégias

cognitivas, afetivas e sociais, operando-se modificações em ambas as pontas.

As técnicas, ou sociotécnicas, como nos aponta Latour (2001), são mediadores, ao

mesmo tempo meios e fins, “artefatos que penetram no fluxo de nossas relações e que

recrutamos incessantemente” (p.227). Segundo o autor (2001), os objetos têm uma

importância decisiva na vida dos humanos, “refazendo as relações sociais por intermédio de

novas e inesperadas fontes de ação” (ibidem, idem). As ferramentas, nesta abordagem, são

“a extensão de habilidades sociais a não humanos, representando uma habilidade ensaiada

na esfera das relações sociais” (p. 241/242). Haveria uma troca de propriedades entre

humanos e não humanos: “do que se aprendeu de não-humanos e se transferiu para a esfera

social e do que se ensaiou na esfera social e se re-exportou para os não humanos” (p.243).

O adjetivo sociotécnico aparece para representar um híbrido dessa relação entre humanos e

não humanos, reintegrado pólos que comumente aparecem como opostos. Nas palavras de

Latour (2001)

Conceber a humanidade e a tecnologia como pólos opostos é, com efeito, descartar a humanidade: somos animais sociotécnicos e toda a interação humana é sociotécnica. Jamais estamos limitados a vínculos sociais. Jamais nos defrontamos unicamente com objetos [...] Objetividade e subjetividade não são pólos opostos, elas crescem juntas e crescem irreversivelmente. (p.245)

Vivemos, portanto, num mundo em que uma grande quantidade de objetos nos

precede, marcando um tipo de ação que é sempre mediada. A nossa relação com estes

objetos produz um híbrido que implica numa natureza mista de/em nossas intervenções

5 Os não humanos compõem os coletivos com os humanos, tendo a potencialidade de se revelarem actantes, ou seja, de exercerem ou sofrerem algum tipo de ação, participando de um processo. É tudo que, não sendo humano, joga a favor da construção da nossa humanidade.

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com a realidade. Não é o instrumento em si que determina os efeitos que dele advêm, nem

o humano que realiza qualquer ação a revelia dos artefatos de que dispõe, mas a construção

deste híbrido sociotécnico e de como se faz a sua utilização.

Enveredando pela história das técnicas como parte do tecido social que lhes

possibilitou a emergência, temos condições, a partir dos objetos, sejam eles mais simples

ou mais elaborados, de reconstituir a história da civilização pelos vestígios que nos

oferecem. Simondon, em seu livro Du mode d’existence des objets techniques, escrito em

1958, nos diz que, pelo exame dos objetos (sua forma, seus materiais, a técnica utilizada em

sua confecção), é possível falar do estado das técnicas de um tempo. De fato, objetos

artísticos ou lúdicos – brinquedos e jogos - nos mostram vestígios ou são indicadores de

determinadas inovações sociotécnicas de um tempo. Jacomy (1996) nos traz o exemplo do

realejo (brinquedo musical) como um dos primeiros instrumentos dotados de manivela,

antes mesmo de sua utilização em outras máquinas. Ou das teclas, hoje usadas nos

computadores, que já tinham aparecido antes, no piano e nas máquinas de escrever.

Mumford, em Technics and Civilization, de 1934, faz uma observação semelhante quanto

ao papel desempenhado por brinquedos e outros instrumentos no estímulo a importantes

invenções, dando, como exemplos, as bonecas que se mexiam sozinhas, os relógios dotados

de figuras animadas, a lanterna mágica que deu ensejo ao cinema e todos os objetos que,

contendo, a princípio, o desejo de satisfazer um certo espírito lúdico, posteriormente

instigaram a imaginação mecânica dos inventores de técnicas que estão por aí, nos objetos

que povoam o nosso dia-a-dia.

Os objetos se integraram de forma tão natural ao nosso cotidiano, que só lhes damos

valor no momento em que eles nos faltam. Não nos damos conta de que são o produto de

um longo processo que se desenvolve desde que o homem, premido pelas suas necessidades

de sobrevivência, começou a criar meios para deixar as suas tarefas menos árduas, na

tentativa de multiplicar a sua capacidade de agir sobre a realidade física compartilhada com

outros. É raro pararmos para pensar o quanto objetos banais - como, por exemplo, a cadeira

em que estamos sentados - carregam uma história de invenções e descobertas que fazem

uma grande diferença na maneira como vivemos. Olhar para um objeto, ao nosso redor,

como se ele fosse inédito, nos impõe um trabalho de reflexão de como seria o mundo sem

ele e de todo o traçado histórico que tornou possível o seu aparecimento e o seu uso, das

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ações que ele nos incita a praticar, das restrições que ele nos impõe, dos modos de agir que

ele nos sugere ou provoca. O que parece ter sempre existido não passa de uma fabricação

que surgiu por conta de uma necessidade que impulsionou seu aparecimento. O

reconhecimento da existência destes objetos, por sua vez, ao longo da história, traz a

necessidade de modificação em outros domínios da vida dos homens, produzindo novas

formas de ser e estar no mundo.

Os objetos guardam uma história que inclui a necessidade de seu aparecimento,

envolvendo uma rede variada de eventos e materiais que se interpenetram e se miscigenam,

produzindo uma história que se inscreve em seus produtos, sempre híbridos. Podemos

utilizar esta matriz para o entendimento do homem na sua relação com as tecnologias,

dentre elas as mais recentes: as digitais, por exemplo. Cada um de nós, com seu

computador, forma uma unidade bastante singular que potencializa funções nunca

sonhadas, antes que esta tecnologia existisse e que este par se constituísse.

Com os brinquedos não acontece diferente. Eles são frutos de uma longa história em

que as tecnologias vigentes em cada época vão lhe conferindo um contorno específico.

Antes fabricado artesanalmente a partir dos restos de material utilizado nas oficinas dos

artesãos, beneficiou-se pelas engrenagens movidas à corda, sendo depois animado por

pilhas e hoje chega aos modos de brincar virtualizados pelas tecnologias digitais.

Atualmente lhes damos tanta importância, a ponto de termos espaços destinados a produzi-

los, comercializá-los, abrigá-los e estudá-los: queremos saber qual a sua importância na

vida das pessoas.

Buscando no Dicionário Aurélio o significado para a palavra brinquedo,

encontramos: “1.Objeto que serve para as crianças brincarem; 2.Jogo de crianças,

brincadeira; 3. Divertimento, passatempo, brincadeira; 4. Festa, folia, folguedo,

brincadeira”.

Nos dicionários etimológicos da língua portuguesa a que tivemos acesso,

verificamos que a palavra brinquedo vinha de brinco que, além do sentido usual de

pingente para as orelhas, também significava distração infantil, gracejo, brinco de crianças.

Para a palavra brincar, da qual brinquedo e brinco são rizotônicos, apontam-se como

origens próximas ou remotas algumas hipóteses: anglosaxônica, de springan, no sentido de

pular e de bli(n)kan, no sentido de gracejar, sendo ambas formas convergentes; latina,

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através das formas vinclu, vincru, vrinco, das quais brinco seria uma corruptela. A palavra

brinco, que deu origem a brincar e brinquedo é de utilização mais antiga na história (século

XVI), com a aparição da palavra brinquedo datada de 1844 (século XIX). Igualmente do

latim jocari, vem a palavra jouer, brincar, interpretar (jogo de faz-de-conta), em francês,

que dá origem à jouet, brinquedo. Para toy, no inglês, a análise etimológica aponta a

palavra como derivada de tracier, do francês, fazendo a indicação de que o significado

possa estar ligado a rastro, trilha, provavelmente aludindo a algo que leva a, que deixa

traços, que segue ou imita.

A análise etimológica da palavra brinquedo nos mostra duas coisas: que não

podemos pensar este objeto independentemente da ação de brincar; e que não podemos

pensar este objeto sem verificar a sua trajetória histórica.

Para empreender essa busca de uma Psicologia Social do Objeto, tomando o

brinquedo como nosso objeto em questão, elegemos um objeto lúdico – um brinquedo -

para buscar a compreensão de sua história, dos seus usos, das relações que suscita em sua

construção e seus usos. Apesar de toda esta mobilização em torno das novas tecnologias,

constatamos que há práticas lúdicas extremamente antigas e tradicionais que se mantêm

inabaláveis na preferência de alguns grupos, deixando potentes alguns brinquedos enquanto

catalisadores de ações e fazendo com que, em torno deles, aconteçam interações resultantes

de nossa condição sociotécnica. Uma bola, uma pipa, um jogo de tabuleiro ou um software

poderiam ser um desses possíveis objetos lúdicos privilegiados, mas escolhemos a pipa

porque é um brinquedo que nos oferece a possibilidade de reunir histórias muito variadas:

tem uma história bastante rica envolvendo usos e costumes de grupos sociais diversos; é

encontrada em várias partes do mundo e tem versões particulares em cada lugar; é um

brinquedo-brincadeira extremamente popular que carrega histórias de fabricação e usos

reveladores; trata-se de um brinquedo utilizado amplamente, independentemente da classe

social, de enorme sucesso entre todas as faixas etárias; é tida como uma brincadeira

tradicional cuja aprendizagem se realiza de maneira informal.

Além dessas razões, algo que muito nos instigou nesta escolha foi verificar que era

possível estabelecer um diálogo entre as informações que íamos encontrando sobre as pipas

com muitas das idéias que faziam parte do referencial teórico escolhido, tornando-nos

possível traçar um esboço desta Psicologia Social do Brinquedo. A escolha de um

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brinquedo funcionou apenas como a porta de acesso para buscar uma Psicologia Social

expandida em suas fronteiras e em seus campos de atuação para além das interações entre

indivíduos, levando em conta as associações entre humanos e não humanos ao produzirem

efeitos na construção de fatos.

Segundo Moraes (2003), uma Psicologia Social baseada nas idéias de B. Latour

teria sua tradução no acompanhamento de como se fabricariam homens e objetos em

constante processo de transformação mútua.

[...] em lugar de vínculos entre homens, trata-se de seguir os vínculos entre humanos e não humanos e mais do que isso trata-se de perguntar pelos efeitos que tais vínculos produzem. [...] Então uma Psicologia Social não é aquela que lida com o homem em sociedade, mas aquela que acompanha, segue o processo de fabricação do homem e dos objetos (MORAES, 2003, p. 4).

Da mesma forma, Spink (2003) realça a importância do estudo dos objetos por

considerar que o social não é dependente, nem independente das matérias, mas produz

redes de materiais heterogêneos e é produzido simultaneamente por elas. Na defesa desta

idéia, podemos citar Law & Mol (1995):

Talvez materialidade e socialidade se produzam juntas [...] Talvez, então, quando nós olhamos para o social nós também estejamos olhando para a produção de materialidade. E quando nós olhamos para os materiais nós estejamos testemunhando a produção do social (p. 274)6

A questão do objeto na antropologia simétrica de Bruno Latour

Para Latour, caberia, em lugar de estudar as ciências “sancionadas”, estudar as

ciências abertas e incertas, aquelas que ainda estão quentes, em construção, para capturar o

movimento da emergência do objeto novo, produto de uma ampla rede de fatores.

6A tradução é de nossa responsabilidade.

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Tomando para estudo os processos que emergem das inovações técnicas e

científicas, a Antropologia das Ciências entende os eventos7 como fatos totais resultantes

de múltiplas redes, na medida em que levam em consideração as várias instâncias que

concorrem para o seu aparecimento: os laboratórios, as universidades, as políticas públicas,

os financiamentos privados, as relações de consumo. Tanto o conteúdo como o contexto

das inovações técnicas e/ou científicas são estudados por esta área do conhecimento,

passando ao largo da tendência de naturalizar os objetos, relegando-os como alvo de estudo

das ciências naturais; ou de sociologizá-los, considerando-os como simples componentes

no cenário da vida dos humanos. Aos objetos, o Centre de Sociologie de l’Inovation (CSI)8

confere especial importância, uma vez que são estudados sob a ótica dos vínculos sociais

que humanos e não humanos estabelecem através do tempo (DOSSE, 2003). O fato

científico passa a ser compreendido como a expressão de uma rede que tem seus efeitos em

escala. Segundo Latour (1994a), “as redes são ao mesmo tempo reais como a natureza,

narradas como o discurso, coletivas como a sociedade” (p.12).

O princípio de simetria generalizada, postulado por Latour e Callon, propõe a

introdução dos objetos no campo de investigação das ciências humanas. O objeto é

inseparável de tecido social do qual faz parte, nas suas etapas de produção, apropriação e

difusão (DOSSE, 2003). A história dos objetos é reveladora de toda uma rede de ações

desencadeadas em/por vários tipos de atores que não só os humanos. O mundo das coisas é

composto de lógicas numerosas e heterogêneas onde se conjugam o econômico, o social, o

natural. Nada está posto definitivamente, tudo é passível de negociações entre várias

instâncias que se cruzam em redes cujas extensões podem ser imprevistas e ilimitadas.

Natureza e sociedade não mais representam pólos em oposição. As idéias de uma natureza

imutável, cujas leis de funcionamento só precisam ser desvendadas, e de uma sociedade

como única detentora de historicidade são superadas por uma compreensão de mundo em

que humanos e não humanos são passíveis de modificações ao longo de uma história que

continua a se fazer, atingindo igualmente homens, objetos e elementos naturais.

7O termo evento é tomado de Whitehead por Latour para definir uma situação em que humanos e não humanos se mesclam para produzir determinado efeito. Substitui a noção de descoberta em que só a ação dos humanos é levada em conta, deixando imóveis e a-históricos os não humanos. A noção de evento destaca o fato de que todos os actantes produzem efeitos e sofrem modificações deles advindas. 8Bruno Latour juntamente com outros estudiosos como Michel Callon, também integrante do CSI, e John Law, da Lancaster University constituem um grupo conhecido como 4 S: Social Science Studies Society.

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Discutir a questão do objeto em Bruno Latour implica estudar a rede que inclui a

todos os que fazem parte dos coletivos9 e exercem alguma ação sobre a realidade. Diz o

autor (2006) que é muito mais por falta de vontade que por falta de dados que não se estuda

o papel dos objetos na formação das associações. O papel dos objetos sofre uma profunda

modificação desde que o conhecimento passa a ser visto como uma atividade situada que

ocorre em lugares diversos – rua, laboratório, cozinha, atelier – enfim, outros contextos que

têm intimidade estreita com a vida cotidiana e as preocupações comuns, tornando difícil

seguir qualquer processo nas sociedades ditas industriais sem que um objeto apareça para

mediar as interações, implicando mesmo numa redefinição daquilo a que chamamos

“interação social”. Vivemos em um mundo cenarizado por objetos, repleto de coisas que

fazem parte das relações que estabelecemos com os outros elementos que povoam o

mundo, sejam eles humanos ou não humanos.

O mundo social tem sido alvo de estudos de forma apartada daqueles que

investigam o mundo dos objetos. Dentro da idéia de simetria buscada entre humanos e não

humanos, os objetos não são mais vistos como meros intermediários, mas como mediadores

eles próprios: produzem efeitos e por isso são considerados actantes10, quando modificam

uma situação dada, introduzindo nela uma diferença. São eles que acrescentam um “não sei

o quê” (Latour, 1994c, p. 3) às relações diferenciadas que os humanos estabelecem, quando

os comparamos com os primatas.

Expandindo conceitos

Nas idéias de Latour, o conceito de mediação passa por uma “explosão” que amplia

suas possibilidades de alcance, abandonando o constrangimento de aplicar-se apenas ao

humano. O conceito de mediação em Latour (1994c) remete à idéia de meio de onde deve

partir toda a análise sociológica, pois se trata de um ponto médio em que a ação de localizar

e globalizar se encontra como um operador que concentra e dispersa as interações, dando

simetria a humanos e não humanos, na emergência da novidade, da criação. Mediar é

9 Coletivo entendido aqui como uma associação entre humanos e não humanos. 10 Actante é uma palavra originária da semiótica que, segundo Latour (1994c), “permite ampliar a questão social a todos os seres que interagem numa associação e que intercambiam suas propriedades” (nota n. 24).

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interferir, é fazer a diferença na produção de um efeito e não se trata de uma ação exclusiva

do homem. Alguma coisa acontece que não é o simples transporte de força para a matéria,

nem a simples projeção de uma idéia sobre os materiais. Ao agir, estamos sempre sujeitos à

surpresa de nossa ação, sempre somos ultrapassados por aquilo que fabricamos, pois

estaremos dividindo esta ação com outros actantes. Qualquer ceramista, qualquer arquiteto,

engenheiro, ou marionetista, usando os exemplos oferecidos por Latour (2002c), reconhece

que as coisas com as quais trabalha oferecem resistências, impõem estratégias, não são tão

facilmente domináveis. Há uma conjunção de fatores que facilitam ou dificultam este

domínio e a ação nunca se dá linearmente numa relação de causa e efeito, mas sempre em

rede, pela associação inesperada de vários actantes.

Outro conceito que sofre um movimento de expansão à luz do pensamento de

Latour (1994c) é o de interação. Para defini-la, segundo o autor, tem sido observada a

presença de elementos constitutivos como: 1. Envolvimento de pelo menos dois atores; 2.

Que se comunicam; 3. Cujo comportamento evolui em função das modificações trazidas

pelo comportamento do outro e vice-versa. Esta definição pode aplicar-se a todos os

primatas, pois trata-se de uma interação simples, realizada face a face, que se mantém

somente porque na co-presença de seus participantes. Diz o autor (ibidem) que nós,

humanos, não temos apenas interações, pois a definição clássica deste fenômeno se

ajustaria muito bem aos macacos cuja vida social se desenvolveria através de interações

progressivamente complexas.

Para Latour (ibidem), a interação deve ser entendida de uma forma um pouco

diferente, prevendo que a ação esteja dividida entre outros tipos de actantes, dispersos em

outros quadros espaciais e temporais. Estaremos, assim, falando de uma “inter” ação que se

opera entre elementos heterogêneos e díspares, não só entre humanos. As sociedades

humanas diferem basicamente das sociedades dos outros primatas pela capacidade de

extrapolar a simples relação social marcada pelas contingências do aqui e agora,

perenizando-a através de seus objetos. Os babuínos, por exemplo, só têm seu corpo e o

engajamento de sua memória para deter o conjunto de relações que travam uns com os

outros, localmente. Já os homens possuem artefatos que permitem escapar do aqui e agora

das interações sociais, dando-lhes a chance de globalizá-las através de uma série de

registros. As sociedades humanas foram capazes de fabricar um tipo de interação a que

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Latour chamou de interação enquadrada, graças à produção de um mundo em que as

relações são mediadas tanto por humanos, como também por não humanos. Entre os

homens, as interações são distintas daquelas estabelecidas pelos macacos porque: 1. Há um

trabalho para ficar local (por canalização11, partição12, focalização13, redução14) e 2. Há um

trabalho para ficar global (por instrumentação15, compilação16, pontualização17,

ampliação18). Estes dois trabalhos se devem à existência de artefatos, híbridos de humanos

e não humanos que dão a dimensão de nossa humanidade. Os humanos não limitam suas

interações ao contínuo esforço da atenção e da vigilância de seus corpos sempre presentes,

como no caso dos macacos. Nas suas interações, eles apelam a outros elementos, outros

tempos, outros lugares, outros atores ausentes na situação.

Assim, Latour (2006) analisa as interações humanas pelo seu avesso, ou seja, pelo

que elas não são:

As interações não são homogêneas, pois há uma multiplicidade de participantes que

não são feitos das mesmas qualidades ou dos mesmos materiais e nem sempre

antropomórficos, mas estão ali reunidos nas interações para contribuir com o desenrolar da

ação em curso. As formas de existência que compõem uma interação são múltiplas porque

incorporam atores não humanos, mobilizados e implicados, tornando possível entender a

relação entre o âmbito global e o âmbito local, pois as ações de outros continuam a se

desenrolar à distância, no tempo e no espaço, através de novos tipos de mediadores. A

heterogeneidade faz parte das redes que misturam entidades díspares, como veremos

abaixo, para o caso das interações desenvolvidas em torno da pipa.

Nenhuma interação é sincrônica, pois o tempo, assim como o espaço, está

multiplamente dobrado. Diz Serres (1999) que qualquer acontecimento na história é

multitemporal, pois a idéia de contemporâneo remete, ela mesma, simultaneamente, a algo

que é do passado, apontando para um tempo que ainda está por vir. Ao tomar as pipas como

11No sentido de encaminhar, de dirigir, organizar através de vários meios. (Adaptação feita a partir de FERREIRA, 1986) 12 No sentido de partir, de dividir em partes, de decompor (ibidem). 13 No sentido de por foco em, de voltar a atenção para (ibidem). 14No sentido de variar a escala para uma menor (ibidem). 15No sentido de utilizar instrumentos para a consecução de um fim, ampliando o alcance das ações no tempo e no espaço (ibidem). 16No sentido de reunir inscrições de natureza ou de procedência variada (ibidem). 17 No sentido de deixar pontual, reduzido a um ponto num conjunto de outros pontos (ibidem). 18No sentido de tornar mais amplo, variar a escala para maior (ibidem)

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eixo de análise, verificaremos que, sendo suportes das brincadeiras de meninos em pleno

século XXI, estão agregando soluções técnicas de épocas diferentes, passíveis ainda de

maiores avanços em tempos futuros.

As interações não são sinópticas, pois nem todas as entidades envolvidas no evento

podem estar visíveis num momento dado. A cada instante, agentes diferentes podem ganhar

visibilidade, enquanto outros retornarão ao anonimato, dependendo do quanto eles

interferem no evento com a produção de efeitos. O vento “pão-duro” ou a ventania que

estanca o fio, o puído da linha na hora de um cruzo, as partes mais fracas no bambu usado

para construir uma pipa podem produzir efeitos decisivos durante a interação sem, no

entanto, estarem visíveis o tempo todo. Isto para não falar das famílias com suas

recomendações, do carro da polícia vigiando a contravenção do cerol, dos carrapatos

escalando as pernas dos meninos. Todos são actantes e fazem parte deste coletivo que se

compõe na atividade de soltar pipas.

Nenhuma interação é isotópica, agindo somente em um lugar, em determinado

momento. Quando as interações acontecem, elas misturam actantes heterogêneos que não

estão presos à cena em questão, podendo ter procedências outras que não exclusivamente o

lugar em que os encontros acontecem. Veja-se, por exemplo, no caso da pipa, em que

brincantes e materiais envolvidos extrapolam o lugar da brincadeira, remetendo a outros

quadros espaciais: meninos de vizinhanças variadas utilizando materiais (linhas e papel

seda) comprados em lojas mais ou menos distantes, tendo construído, com bambu tirado

dos fundos de quintais, as pipas cuja tecnologia surgiu do outro lado do mundo, há pelo

menos dois mil anos atrás.

As interações não são isobáricas, ou seja, nem todos os participantes das interações

participam delas com igual capacidade de imprimir pressão sobre os demais: alguns

participantes se impõem com mais força do que outros. Os intermediários19 são previsíveis,

mas podem se transformar em mediadores no momento em que fazem com que a ação

bifurque bruscamente, de forma inesperada. Nos momentos em que fazem uma

interferência decisiva para mudar o curso da ação, em que a pressão se concentra em

determinados actantes, é aí que eles têm o poder para manter, interromper, modificar. Mas

19 Como veremos no capítulo IV, parte II, um intermediário é um elemento cujos efeitos já são conhecidos, ao contrário dos mediadores de quem não podemos prever os efeitos.

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essa pressão, longe de estar concentrada em alguns, pode se revezar entre os vários

mediadores do evento, nem sempre presentes, ao mesmo tempo, no mesmo lugar. Em

suma, o jogo pode virar a qualquer momento, alternando o poder entre os participantes em

função do que eles podem facilitar ou obstruir a ação de que tomam parte. O poder não

paira sobre os actantes a espera de encarnação ou é um atributo prévio de alguns em

detrimento de outros, mas uma resultante da concentração de forças em determinados nós

da rede, sempre passível de mudança.

A interação enquadrada, portanto, típica dos humanos, inclui elementos mais

complicados que vêm sendo construídos ao longo de muito tempo: as palavras que

utilizamos, os objetos que portamos, os enquadramentos de tempo e espaço presentes entre

as pessoas que, por sua vez, estão enquadradas por suas histórias de vida numa rede

emaranhada de tempos, lugares, pessoas e materiais muito diferentes. As interações entre

humanos fazem mais do que ajustar simplesmente os elementos delas participantes. Elas

constroem e se constroem paradoxalmente em forma de quadros - porque circunscrevem

localmente – e, ao mesmo tempo, em forma de redes – porque deslocam tempos, espaços,

pessoas, levando a um quadro cada vez mais global. A história dos humanos é construída,

mas não apenas socialmente20 construída, num movimento que vai de ponto em ponto, do

local ao global, que é local e global21 simultaneamente.

Um novo papel para os objetos

Depois da divisão arbitrária em que as “coisas” ficaram no domínio das ciências

exatas e as relações sociais, de outro lado, passaram a ser objeto de estudo das ciências

humanas, os objetos só podiam, até então, aparecer de três modos: 1. Como ferramenta fiel,

só lhe cabendo transmitir uma intenção social para perpetuar uma ação, há muito praticada,

sem acrescentar nem retirar nada dela, agindo à semelhança de um escravo; 2. Como infra-

estrutura que oferece uma base sobre a qual as relações sociais se desenvolvem,

conduzindo-as, fixando-as, normatizando-as, agindo à semelhança de um chefe; 3. Como

uma tela de projeção para refletir o social, significando e transportando signos. Tendo

20 Se limitarmos este social exclusivamente a humanos. 21 Veremos melhor essa relação local/global no capítulo III.

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apenas essas três funções, os objetos permaneciam invisíveis e seria impossível engajá-los

engenhosamente na construção do que chamamos sociedade. Mas, segundo Latour (1994c),

os objetos fazem muito mais do que desempenhar essas três funções e só será possível

perceber a sua ação se entendermos diferentemente o que até agora se tem tomado como

campo de estudo das ciências, divididas modernamente entre ciências da natureza e

ciências humanas. As ciências humanas foram moldadas para resistir ao objeto, passível de

estudo apenas pelas ciências naturais. Nas análises sociais, o objeto aparece com freqüência

com uma conotação nem sempre positiva: mercadorias, bens de consumo, máquinas,

objetos de arte, sempre como fetiches22 ou telas nas quais nos projetamos, tornadas mais

potentes do que são de fato, constituindo-se em alvo que precisamos combater.

Tem sido comum também encontrarmos pontos de vista que demonizam as

técnicas, colocando-as como estranhas e nocivas ao homem: máquinas que escravizam,

técnicas que condicionam, objetos que dão poder porque fetichizados. Entretanto, nas

técnicas, ou melhor dizendo, nas sociotécnicas segundo Latour (ibidem), há uma ação

compartilhada entre humanos e não humanos que, desde sempre, trocaram propriedades.

Dizer que as técnicas são sociais porque são socialmente construídas é vago e tautológico

para Latour (1994c, 2001) porque não se explica, desta forma, por que os objetos, a

matéria, ou os não humanos estão sendo constantemente recrutados e socializados nas

relações entre humanos, trazendo sempre algo de imprevisível para refazer essas interações,

diferentemente dos outros primatas que constroem socialmente sua sociedade porque não

dispõem de artefatos. A ação técnica é o que nos permite mobilizar, pela delegação a não

humanos, ações que foram executadas anteriormente e distantemente. Por essa delegação,

tornamos o passado presente, escapamos do imediatismo das relações e nos diferenciamos

dos símios, pois o quadro que envolve essas relações está sempre constituído de atores

híbridos: objetos sociotécnicos construídos a partir da associação entre humanos e não

humanos que ajudam a cenarizar as relações, no tempo e no espaço. Quando nos

associamos a não-humanos, as nossas ações e interações podem durar além do tempo

presente e dos nossos corpos, traduzidas numa outra matéria a quem delegamos o poder de

22 Latour (2002a) ultrapassa o sentido desta palavra, sugerindo a composição do termo fé(i)tiche para fugir da escolha cominatória entre fato e fabricação, como veremos no capítulo VIII.

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promover efeitos à distância, o que, segundo Latour (1994a), seria completamente

impossível a um babuíno ou a um chimpanzé.

Poderíamos, neste ponto, facilmente nos questionar sobre a procedência dos

símbolos. De onde vêm os símbolos? – pergunta Latour (1994c). Seriam seres originários,

essenciais? Existiriam desde sempre guardando a presença das relações sociais travadas por

humanos? O autor não nega a existência nem a importância dos símbolos, mas não lhes dá

a primazia de fazer durar as relações entre humanos, pelo menos não a princípio. Para o

autor, são os inúmeros objetos ausentes entre os macacos e onipresentes entre os humanos

que dão durabilidade e solidez às interações. A negociação de humanos e não humanos para

a fabricação de artefatos é o dado primeiro que atesta a nossa humanidade, se imaginarmos

a mais rudimentar das relações. Em seguida e por intermédio de inscrições, feitas com o

auxílio de artefatos, torna-se possível o surgimento da capacidade de simbolizar. Os

símbolos, na visão deste autor, viriam muito depois, quando os humanos tivessem

desenvolvido uma capacidade cognitiva mais elaborada e estável, resultado das múltiplas

totalizações realizadas nas suas interações enquadradas, após as muitas e incansáveis

inscrições que permitiram ao homem organizar as situações da vida diária. Nas palavras de

Latour, “as novas capacidades cognitivas devem menos aos poderes dos símbolos do que

aos instrumentos que os têm” (ibidem, p. 15).

Aqui, também percebemos semelhanças e diferenças com os postulados da teoria

sociohistórica. Nesta abordagem, encontramos a noção de artefato primário como objeto

construído para perpetuar uma ação realizada pelo homem, fazendo-a durar no tempo e no

espaço. Os artefatos secundários, enquanto uma representação dos objetos, já estariam

remetidos a uma atividade simbólica desenvolvida por humanos a que Vygotsky chamou de

“funções psicológicas superiores”. Estas funções teriam sua origem nas bases biológicas23

numa interação incessante com o mundo físico24 e com o mundo social25. Ainda aqui há

muitas semelhanças com as idéias propostas por Latour que nos estimulam a buscar

convergências. Muito próxima também nos parece a idéia de virtualização das ações

teorizada por Levy (1996a), conforme vimos acima, do objeto como catalisador de relações

23 Em relação a essas bases biológicas, Vygotsky utiliza a expressão “funções psicológicas inferiores”. 24 Os não humanos poderiam, entretanto, compor o mundo físico ao qual Vygotsky se referiu, integrando a idéia de contexto ou mundo material. 25 Entendido ainda como fruto das interações entre seres humanos, sem a inclusão de não humanos nesta análise.

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sociais, mensageiro da memória coletiva. Também em Levy (ibidem), a virtualização do

aqui e agora parece compatível com o raciocínio desenvolvido pelo autor em foco, quando

este fala dos símbolos como o resultado das inscrições feitas pelo homem na tentativa de

buscar uma estabilização da realidade.

O que realmente se apresenta como novo, nas concepções latourianas, é o papel

desempenhado pelos objetos, não mais relegados a um plano secundário, agindo como

intermediários. Como diferença marcante entre Latour e as outras abordagens, temos o fato

de que o objeto ganha outro status, não sendo mais uma simples prótese do humano.

Constitui-se como um dado de nossa humanidade, sendo meio humano, meio não humano,

híbrido sociotécnico fabricado a partir de uma rede variada de elementos, um multiplicador

de possibilidades.

Para Latour (1994c), seria impossível simbolizar, se não dispuséssemos dos objetos

como resultado das trocas mais amplas que incluem também os feitos provocados por não

humanos. Mas se pensarmos ao inverso, será que seríamos capazes de fabricar objetos se

não tivéssemos a capacidade para simbolizar? Para a teoria sociohistórica é este justamente

o ponto: as funções psicológicas superiores surgem devido à especificidade das trocas

sociais entre os humanos, sem a preocupação de levar em conta, nas suas explicações, o

Princípio de Simetria Generalizada na série de negociações feitas entre os actantes numa

dada situação. O autor cujas idéias aqui apresentamos, contrastando com as visões já

consagradas, coloca a ênfase sobre os objetos como possibilitadores de ações que não

ocorreriam sem a sua existência, “destronando” assim a capacidade criadora de um homem

todo-poderoso, no domínio sobre uma natureza dada como pronta. Para construir sua

humanidade, o homem precisa negociar com outros elementos sem os quais sua

sobrevivência não se torna possível.

Para Latour (1994c), as interações nuas não podem mais ser o ponto de partida. Os

humanos desenvolvem suas interações sempre dentro de quadros que incluem os não-

humanos e por isso transbordam para todos os lados: nossas interações são enquadradas,

como já afirmamos e, portanto, sociotécnicas. A sociedade, por sua vez, tida como um a

priori pelas teorias sociais, não mais é vista como causa de nada: aparece como uma

conseqüência, um ponto de chegada, sempre provisório e instável e, tal como a natureza,

sempre em construção. Ambas, natureza e sociedade, não estão dadas e prontas, mas são o

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resultado parcial das controvérsias travadas entre os atores envolvidos (LATOUR, 2000,

2001).

Segundo Latour (1994c), não será mais necessário apelar para uma “estrutura”

social para entender a passagem do nível micro ao nível macro, pois, ao nos deslocarmos de

interação para interação, estaremos percebendo tanto o trabalho de localização, como o de

globalização, levados pelos corpos e pelos objetos, em sua troca de propriedades. Torna-se

fundamental, portanto, para o entendimento dos fenômenos da realidade, seguir as ações de

humanos e não humanos com quem nos misturamos na fabricação dos híbridos que povoam

os nossos coletivos.

Os objetos também têm história

Cada objeto sociotécnico pode ser tomado dentro do que Latour (1999) chama de

série paradigmática26, assim como podemos imaginá-lo, em uma série sintagmática27. O

martelo, por exemplo, freqüentemente evocado neste tipo de ilustração, resulta de uma

interação partilhada com não-humanos que, para tanto, foram extraídos, recombinados e

socializados para perenizar uma ação no tempo e no espaço. Numa longa série

paradigmática através da história, o martelo sofrerá todos os tipos de transformações que

vão dar ensejo à emergência de possíveis substitutos em sua incrível variedade de formas,

todos descendentes do martelo primitivo. Na série sintagmática, o mesmo objeto pode ser

visto sob outro ângulo, na interação atual que se dá com seu usuário, ao imprimir na ação

de seu punho a regulação de uma força, de uma tensão a que seu braço sem jeito ainda não

se conformou.

Latour (2000, p. 152) fala desses objetos banais em nosso cotidiano como “caixas-

pretas”28 cuja função é óbvia e não desperta nenhum tipo de dificuldade ou estranhamento.

26 Entendemos que a palavra paradigmática é usada, neste caso, para qualificar um eixo de análise no qual as formas de um protótipo servem de modelo para os demais objetos de um mesmo grupo, ao longo do tempo. (Dicionário da Enciclopédia Mirador, 1975, p. 1277) 27 Entendemos como sintagmático o eixo no qual podemos perceber, no presente, como se dá a utilização de um determinado objeto com todos os desdobramentos que podem emergir numa interação sociotécnica (adaptação feita a partir do Dicionário da Enciclopédia Mirador, 1975). 28 Caixas pretas, segundo Latour, são “fatos inegáveis”, “máquinas altamente sofisticadas”, “teorias eficazes”, “provas irrefutáveis”, enfim, tudo aquilo que é dado como certo, pronto, usado por todos -“ponto de passagem obrigatória”-, cuja força e solidez apontam para uma grande quantidade de associações que mantêm coesa uma multidão de aliados, com a expectativa de operar bons efeitos (LATOUR, 2000, p. 230).

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Menciona um abridor de latas comum sendo utilizado pela primeira vez por uma criança,

impondo/sugerindo todas as estratégias necessárias para dominar a técnica nele embutida

ao longo de uma série que pode ser tomada, a título da nossa reflexão, nos dois eixos

mencionados acima: paradigmático porque congela, pereniza todo o esforço contido neste

objeto, desde a primeira vez em que se tornou imperativo o simples ato de abrir uma lata,

fato que nos remete: à necessidade de usar latas, ao aparecimento da tecnologia para

conservar e armazenar alimentos, ao tipo de material adequado para a embalagem e para o

transporte, aos múltiplos designs que foram assumindo lata e abridor, à construção dos

hábitos alimentares humanos, numa cadeia que chega até à situação atual, dentro de uma

condição de estabilização provisória de toda a rede; e sintagmático, porque impõe uma

forma específica de manejo para obter o efeito desejado: a força, a inclinação da mão, o

ponto de apoio na lata, o ritmo e a direção dos movimentos. Tudo o que poderia nos parecer

absolutamente simples de ser feito pode tornar-se uma ação de extrema complexidade para

alguém que jamais tenha conhecido ou manipulado este instrumento. Esse exercício pode

ser desenvolvido para qualquer objeto sociotécnico que nos rodeia, constituindo-se em uma

chave para a análise de nossa própria humanidade: haverá uma história para contar que será

a nossa própria história; a concretude do objeto em questão será a de um híbrido que terá,

na sua fabricação, as propriedades de não humanos emaranhadas com as nossas

propriedades, pois será matéria extraída, recombinada e socializada; sua presença,

obscurecida pela sua obviedade, carregará uma ação delegada por nós no tempo e no

espaço, podendo significar um convite, uma permissão, uma interdição, possibilidades

diversas desenvolvidas a partir de materiais muito heterogêneos cujo resultado em nada se

parece conosco, nem com a matéria bruta de que são feitos29.

A pipa30, nosso objeto de estudo, tal como no caso do martelo, também faz parte de

uma longa série paradigmática que atualiza incessantemente o primeiro esforço que fez o

homem para voar. Através de todos os objetos criados a partir dela, dotados de uma

variedade de formas que combinam e recombinam vários elementos, a pipa primitiva se

29 Veja-se o exemplo de uma cerca para conter os rebanhos. 30 No Dicionário da Enciclopédia Mirador, define-se pipa como “uma espécie de papagaio de papel. O papagaio, por sua vez, é o nome comum dado às várias formas de um brinquedo de crianças que consiste numa armação leve feita de varetas e forrada com papel; destina-se a ser mantido no ar, contra o vento, por meio de um fio longo. Uma longa tira, o rabo, pendendo-lhe do vértice inferior, assegura-lhe relativa estabilidade” (p. 1272)

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metamorfoseia, dando origem a outros artefatos voadores que serviram de base para uma

série de descobertas científicas, como veremos adiante. Ilustrando a idéia de que “as

técnicas suscitam em torno delas um turbilhão de mundos novos” (1999, p. 2), Latour

lembra a cena do filme 2001, Uma odisséia no espaço de Stanley Kubrick em que um reles

osso, utilizado como instrumento por um macaco antropóide, é lançado para o alto e,

através de múltiplas piruetas, chega a transformar-se numa estação espacial do futuro.

Podemos imaginar, da mesma forma, como as pipas planas31, as pipas caixa32 ou do tipo

parafólio33 tiveram como herdeiros os aeroplanos, os teco-tecos, os aviões movidos à

hélice, os jatos, os aviões supersônicos, os mísseis e toda uma série interminável de objetos

voadores, como se pode constatar nas páginas da história da aviação. O ingênuo balão,

parente da pipa, pode ser visto numa série paradigmática que tem o satélite artificial como

elemento mais recente de sua evolução, sempre superável pela última descoberta científico-

tecnológica. Como qualquer outro objeto, a pipa também toma parte numa série

sintagmática: nas mãos de quem a constrói e/ou empina, promove aprendizagens variadas

sobre os materiais a serem usados na sua construção, sobre a geometria de suas formas,

sobre a força e a direção dos ventos propícios a fazê-la subir, sobre o manejo da linha,

sobre a sutileza dos movimentos desenvolvidos para provocar determinados efeitos no ar,

sobre a composição do cerol para tornar a linha mais cortante, sobre guerrear com outras

pipas e pipeiros, sobre tolerar a frustração de perder o objeto numa disputa, ou sobre aceitar

a incapacidade de construí-la ou de fazê-la subir adequadamente.

Podemos dizer, em relação aos objetos, que eles multiplicam nossas possibilidades,

pois, além de cumprir com funções já conhecidas, são capazes de nos oferecer esquemas de

ação inéditos, nunca antes experimentados. Latour (ibidem) toma de empréstimo a Stanley

Gibson (apud Latour 1999) a noção de promissão, palavra que mistura promessa e

permissão, para aplicá-la aos objetos, opondo-a a idéia de prótese. Os objetos não podem

ser encerrados na função de apenas prolongar um órgão humano. Eles podem autorizar,

tornar possível, sugerir, influenciar, fazer obstáculo, entre outros efeitos que são capazes de

promover. Acima de tudo, abrem um fluxo de possibilidades não imaginadas em qualquer

31 Cuja vela ou armação é plana. 32 Que têm o formato de caixa, são tri-dimensionais. 33 Que têm a forma assemelhada à estrutura de um pára-quedas.

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interação, como verdadeiros mediadores, deslocando, traduzindo e até mudando nossas

intenções iniciais.

A pipa ou o papagaio34 não se constituiu como uma prótese do homem, pois a

capacidade de voar, que é inerente aos pássaros, não integra o repertório das ações

humanas. Não se trata, portanto, de ver este objeto como um prolongamento de um órgão

humano, inclusive porque ele em nada se assemelha a qualquer das partes de nossa

anatomia. A pipa foi o primeiro objeto mais pesado que o ar que deu aos humanos a

promessa e a permissão para o vôo, encabeçando assim a longa série paradigmática de que

estivemos aqui falando e da qual continuaremos a falar mais tarde. Sob vários olhares e

enfoques, tentaremos seguir a ação que este objeto vem traçando no tempo e no espaço:

uma trajetória em rede que mescla a ação de elementos muito heterogêneos.

Não há como nos definir sem os objetos, nem há como definir os objetos sem nos

definir. Segundo Serres (1999), a “hominicidade” (p. 257) depende de todas as coisas que

nos cercam, sendo o peso do objeto o que dá início a um novo contrato social muito mais

denso que nos libera do aqui e agora dos contratos em tempo real que regem as interações

dos animais. Com a entrada dos objetos nos coletivos, emerge a era do direito - na qual os

objetos estão em jogo; da ciência – na qual os objetos engendram relações e constroem

novas possibilidades, sendo intermináveis as relações que comporemos com os objetos em

toda a história da civilização.

34 Entre outras muitas denominações que recebe.

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CAPÍTULO II

Mas de onde vem o Latour?

O comparatismo opera por meio de curtos-circuitos e, como se vê na eletricidade, eles produzem faíscas estonteantes (SERRES, 1999, p. 94)

Integramos, desde o início do doutorado, um grupo de pesquisa que se dedicou ao

estudo das idéias de Bruno Latour, autor de cujas idéias lançamos mão para desenvolver o

nosso trabalho. Para tanto, uma apresentação de Bruno Latour torna-se necessária, embora

não tenhamos a intenção de esgotá-la plenamente. Como pondera o próprio autor (2000, p.

145, 146, 148), ao depararmo-nos com um objeto novo, podemos dizer o que ele é, falando

de suas ações e submetendo-o a provações para, então, verificar se ele resiste e sobrevive.

Por esta razão, além desta apresentação, tentaremos dar a Bruno Latour um tratamento

simétrico ao que estamos dando ao nosso objeto de estudo, ou seja, deixando que ele se

revele a cada capítulo, testando a aplicabilidade das suas idéias no seguimento dos vários

movimentos de uma pipa em ação. Se ambos, ao final do trabalho, resistirem aos testes de

força que lhes impusermos, teremos então definido o autor e o objeto estudado pela sua

performance, como costumamos fazer com os heróis.

De como buscar a simetria depois que fizeram bifurcar a natureza.

A curiosidade em torno do autor é freqüente. É fácil dizer onde nasceu, quais

estudos realizou, a formação que teve, de quem foi discípulo, suas publicações mais antigas

e mais recentes. Filho de um negociante de vinhos no interior da França, não segue o métier

paterno. Opta pelos estudos em filosofia na universidade e, graças ao serviço militar, vai à

África e descobre a antropologia, tendo sido bastante influenciado pelo trabalho de Marc

Augé, na Costa do Marfim. Percebe, nesta formação empírica como antropólogo, que o

tratamento dado às culturas estudadas estava longe de ser o mesmo aplicado à nossa própria

cultura: íamos ao coração das outras culturas investigando “seus patrimônios, festas e tudo

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que permanecia de alguma forma arcaico” (Latour, 2005, p. 5), mas deixávamos intocado o

nosso “centro de produção de verdades” (ibidem, p. 6). É na disposição de fazer um

programa de pesquisa inspirado na idéia de uma antropologia simétrica que Latour teve a

oportunidade de ir aos Estados Unidos e fazer pesquisas num laboratório onde se

desenvolviam relevantes pesquisas na área da neuroendocrinologia. Anuncia aos seus

pesquisados que, a partir de então, terá para eles o olhar de alguém que estuda uma tribo

exótica, utilizando os mesmos métodos antropológicos aplicados, por exemplo, à uma tribo

africana. Como resultado deste trabalho, publica, em 1997, com Steeve Woolgar, Vida de

Laboratório, livro em que nos é possível verificar que alguns conceitos por ele usados,

tiveram, assumidamente, a inspiração em outros autores. Para desenvolver seu ponto de

vista sobre a atividade de laboratório, evoca Michel Serres, de quem foi discípulo, com o

conceito de “circunstâncias”35 e a idéia de por ordem no caos; em Bourdieu, resgata a

noção de credibilidade36 com relação aos investimentos feitos pelos pesquisadores; toma de

empréstimo à Brillouin, da teoria da informação, a noção de ruído, utilizando-a de maneira

bastante metafórica para caracterizar a emergência de um enunciado dito científico que

difere entre outros enunciados equiprováveis num campo agonístico; a idéia de construção

de Knorr-Cetina é usada para mostrar que um laboratório funciona como se fosse uma usina

de fatos, num lento e prático processo em que as descrições são mantidas e refutadas. Em

outros trabalhos (1994a, 2006) não nega a semelhança das redes com a idéia de rizoma

postulada por Deleuze e Guattari. Seguir os rastros de todas essas e outras influências nas

suas demais produções, entretanto, não é a tarefa a que estamos nos propondo. Tentaremos

aqui mapear apenas, em linhas gerais, algumas das principais idéias que servem de guia ao

pensamento do nosso autor em foco, dentro da nossa possibilidade de alcance, neste

trabalho.

35Ao invés de eliminar as circunstâncias que permitem a emergência de um fato científico para que só apareça o produto final de sua construção, Latour (1997) chama a atenção para o fato de que a prática dos cientistas é “influenciada, parcialmente dependente ou causada pelas circunstâncias” (p. 271). O conceito de circunstância já havia sido desenvolvido em uma perspectiva filosófica por Michel Serres (1977) de quem Latour foi discípulo. 36A noção de credibilidade nos dá a dimensão do custo de uma informação “científica”, dos esforços despendidos para que as fabricações da ciência tenham crédito, levando em conta os investimentos em dinheiro dos organismos de financiamento, o tempo e a energia já empregados nessa construção, a carreira dos pesquisadores em questão, perfazendo, nesta rede, uma síntese das noções econômicas (dinheiro, orçamento, rendimento) com as noções epistemológicas (certeza, dúvida, prova). (LATOUR, 1997)

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A preocupação de Latour com a questão de um tratamento simétrico nos

procedimentos desenvolvidos pelas ciências nas nossas sociedades já fazia parte de um

movimento em curso que até hoje percorre todo o seu trabalho. Em Jamais fomos modernos

(1994a), Latour examina a postura daqueles que levantaram a bandeira do modernismo. O

autor entende que aqueles que se julgaram modernos, na ânsia de desbancar as antigas

verdades, funcionaram sob a lógica da exclusão, pois, ao introduzirem novas idéias,

promoveram a ruptura e o apagamento daquelas que representavam o pensamento anterior,

tido como obsoleto.

A cena moderna, segundo Latour (ibidem), instaura um novo regime de pensamento

em que se opera uma dupla ruptura: no tempo, por oposição a uma antiguidade

supostamente arcaica; e entre grupos de vencedores e de vencidos, nas guerras das idéias

pela supremacia de uma suposta “verdade” dos fatos. Com estas premissas, muitas outras

cisões foram instaladas, ficando toda a lógica de pensar as ciências viciada por essa

necessidade de purificação através divisão.

Na hipótese de Latour (1994a), a constituição moderna da verdade designa dois

conjuntos de práticas que precisam estar apartadas uma da outra para terem alguma

eficácia: 1. As práticas de “tradução”, responsáveis pelas misturas que fazem surgir

incessantemente os híbridos de natureza e cultura; 2. As práticas de “purificação” que

negam as misturas efetuadas entre humanos e não humanos, operadas pelo conjunto de

práticas anteriormente mencionado e, portanto, só fazem sentido em função deste.

Essas práticas de purificação deixaram o trabalho das ciências calcado nas

separações entre o antigo e o novo, natureza e sociedade, ciência e senso comum. A própria

divisão da ciência se construindo estaria pautada nestas divisões.

Segundo Hochman (1994), a proposta de Latour é uma reação tanto às concepções

internalistas da ciência, que colocam o conhecimento científico em um lugar privilegiado

entre outros tipos de conhecimento e sujeito às suas próprias leis, assim como às análises

que priorizam o contexto de descoberta dos fatos científicos, também chamadas de

externalistas. Latour tenta fugir de ambos os casos quando os apresenta como duas formas

de um reducionismo frequentemente cometido: “É como se fossem dois líquidos que

podemos fingir misturar pela agitação, mas que se sedimentam tão logo deixados em

repouso” (Latour, 1997, p. 20). O seu trabalho situa-se entre aqueles que fazem o esforço

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de traçar detalhadamente relações entre contexto e conteúdo, sem isolar a “dimensão

cognitiva” dos “fatores sociais” que circundam a produção científica e dela fazem parte.

Da Escola de Edimburgo37, herda os princípios do Programa Forte de David Bloor e

Barry Barnes, em oposição ao que se chamou de Programa Fraco. O Programa Fraco se

apóia na idéia de que é suficiente cercar a dimensão cognitiva das ciências com uns poucos

“fatores sociais” para ser chamado de historiador ou sociólogo. Um Programa Forte é

aquele que deve levar em conta o contexto social e o conteúdo das ciências, exigindo

simetria em todas as explicações do desenvolvimento científico (LATOUR, 1997).

Segundo Palácios (1994), apesar de datar da virada do século XIX para o XX, a

proposição - de que haveria uma relação a ser investigada entre conhecimento científico e o

contexto social no qual era produzido - marcou uma abordagem singular no Programa Forte

de Bloor e Barnes, gerando muitas controvérsias nos debates contemporâneos da Sociologia

das Ciências, na década de 70. Até então, a sociologia do conhecimento seguia por duas

vertentes: uma que estudava o conhecimento comum, orientada para o entendimento, da

cultura, das crenças compartilhadas pelos membros de um grupo social, mais centrada,

portanto, na investigação antropológica das sociedades primitivas; outra que se dedicava a

estudos sobre o conhecimento científico, fosse investigando a história das descobertas

científicas, fosse fazendo a análise das instituições contemporâneas onde se desenvolve a

atividade científica. Esta última divisão estabeleceu tacitamente uma atribuição de

encargos. À Sociologia das Ciências eram atribuídos os estudos sobre as instituições da

ciência moderna e a investigação histórica das inovações científicas, centrados no “contexto

da descoberta”. À Filosofia das Ciências caberiam os estudos relacionados com o conteúdo

do conhecimento científico, na busca de relações entre o conteúdo mesmo da descoberta

científica e as questões filosóficas a ela inerentes.

Na década de 70, houve uma ruptura nos limites entre a Sociologia das Ciências e a

Filosofia das Ciências, mesclando-se os objetos de estudo dessas duas disciplinas. A

Sociologia das Ciências consolidou-se como área de especialização reconhecida e abriu

novas frentes de investigação da atividade científica. O Programa Forte aparece, então,

37A “Escola de Edimburgo” agrupava sociólogos da Unidade de Estudos da Ciência da Universidade de Edimburgo, como Barry Barnes e David Bloor que, através de suas obras, passam a ser conhecidos pela singularidade das idéias defendidas em torno do Programa Forte (PALÁCIOS, 1994).

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neste momento, para formalizar a ruptura entre a abordagem tradicional da Sociologia das

Ciências e esta abordagem emergente (PALÁCIOS, 1994).

O Programa Forte da Escola de Edimburgo, de acordo com Palácios (1994), apóia-

se em quatro princípios: de Causalidade, defendendo uma relação estreita entre as variáveis

sociais e os conteúdos das teorias científicas; de Imparcialidade, investigando tanto o

verdadeiro como o falso, o racional e o irracional; de Simetria, tomando os mesmos padrões

de explicação, quer se trate de acerto ou erro nas ciências; de Reflexividade, aplicando-se

também à própria Sociologia.

Em Latour (1997), encontramos o comentário de que o Programa de Bloor era

triplamente forte: fortemente crítico, fortemente criticado e fortemente criticável, dando

indícios de que, embora herdeiro do Programa, este autor seria também seu dissidente. Com

Latour, o Princípio de Simetria foi extremizado e estendido para a análise dos elementos

que compunham os pólos Natureza e Sociedade. Estes dois pólos, ainda muito marcados no

Programa de Bloor, deixavam insustentável qualquer posição que buscasse romper com os

dualismos instaurados pelo pensamento moderno. A separação entre a representação das

coisas (ciências) e a representação dos humanos (política) permanecia intocada nos

trabalhos da Escola de Edimburgo. Para implementar de fato um Princípio de Simetria,

Latour (1992) propõe um movimento ainda mais radical, ao que chama de “mais uma volta

depois da volta social”(p. 277).

A assimetria, anterior a Bloor, explicava “a verdade” com a Natureza, ou seja, com

o positivismo das ciências naturais, deixando “o erro” para o estudo das ciências sociais. Às

ciências duras, era dado o estatuto do exato, do verdadeiro, enquanto que às ciências moles,

creditava-se a investigação do erro: uma ciência para estudar os elementos naturais e uma

ciência para estudar os elementos humanos. A simetria introduzida por Bloor busca,

segundo Latour (ibidem), a explicação do erro e da verdade no pólo da sociedade, fazendo

“uma volta social”. Às estruturas sociais, Bloor, fortemente influenciado pelas idéias de

Durkheim que tem o social como causa e princípio de todas as coisas, teria atribuído um

papel preponderante na explicação dos sucessos e fracassos no desenvolvimento da ciência,

mantendo assim a assimetria dos modernos.

Latour propõe um segundo princípio de simetria para explicar a Natureza e a

Sociedade, atribuindo-lhes igualdade de tratamento e chocando-se, portanto, com a

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distinção bipolar estabelecida por Kant, a mesma usada pela Constituição Moderna da

Verdade. Para Latour, nem Natureza nem sociedade são puras, assim como não estão

previamente dadas. Ambas são o resultado das trocas de propriedades entre elementos

humanos e elementos não-humanos (1994b). As misturas que ocorrem incessantemente

entre esses elementos advêm dessa cena experimental que faz fluir as práticas de tradução -

negadas pelos modernos - gerando novos laços sociais e redefinindo, ao mesmo tempo, do

que são feitas a natureza e a sociedade.

A modernidade, segundo Latour (1992), se apóia em dois iluminismos:

• Para destruir o obscurantismo, a dominação e o fanatismo, a modernidade

usou o pólo Natureza, instituindo as ciências naturais para representá-la e

para desbancar as falsas pretensões do pólo social.

• Para desbancar o cientificismo e as falsas pretensões do pólo natural, os

modernos usaram as explicações sociais (economia, psicanálise, sociologia,

semiótica).

Inspiração em Whitehead

Nenhum dos dois iluminismos abdicou da idéia de explicar o mundo a partir de

pólos. Assim, Latour (2002) recorre à Whitehead para rechaçar essa lógica assentada em

pólos que tem marcado o pensamento ocidental. Operou-se, nessa forma dos modernos de

entender o mundo, o que Whitehead chamou de “bifurcação da natureza” que ocorre

quando aceitamos a premissa de que o mundo deve ser dividido em dois conjuntos de

coisas: um composto pelo que está na natureza, matéria de que o universo é constituído, das

coisas reais cujas qualidades primárias seriam independentes da existência de um

observador; outro, composto por qualidades que nossos sentidos atribuem a estes elementos

do mundo, sendo, portanto, qualidades secundárias. O primeiro conjunto seria passível de

estudo pelas ciências, enquanto que o segundo seria a “matéria da qual nossos sonhos e

valores são construídos” (Latour, 2002, p. 2). Com esta divisão, os modernos criaram uma

situação impossível de resolver, um paradoxo em que o conhecimento só se torna possível

como uma tentativa de aproximação das qualidades primárias (coisas em si) pelas

qualidades secundárias (representações). Aos primeiros elementos, os modernos atribuíram

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fixidez e a-historicidade, manobra para tornar o mundo possível de ser capturado pela

percepção humana. Aos segundos, maior dinamismo, historicidade e independência com

relação aos primeiros. Como resultado, dois conjuntos de elementos separados por um

verdadeiro “abismo ontológico” (Latour, 2002 a, 2002b), auto-suficientes para existirem de

forma independente, sem precisarem se afetar mutuamente. Trata-se de uma visão que

congela, em grande medida, a possibilidade de transformação nas pontas, sem levar em

conta que estas estão em contínua mistura, produzindo híbridos incessantemente e

indefinidamente.

Evidenciando o gosto pelas idéias do filósofo Alfred Whitehead, Latour encontra

afinidades com o trabalho de Isabelle Stengers, filósofa empenhada na tarefa de traçar as

linhas de uma cosmopolítica, empreendimento próximo ao que Latour chama de uma

epistemologia política. A bifurcação da natureza foi, segundo Whitehead (apud Stengers,

2002), um verdadeiro veneno para o pensamento moderno. No livro em que Stengers

(ibidem) tem como proposta debruçar-se sobre o pensamento deste filósofo, ampliando-o e

desdobrando-o para refletir sobre questões da contemporaneidade, aponta para a bifurcação

da natureza como uma divisão artificial entre o sujeito e o mundo que nem sempre foi

assim: a natureza, tomada como objeto de conhecimento e o humano dotado de consciência

crítica, tornado pelos teóricos do conhecimento como protótipo do sujeito cognoscente, foi

uma construção e, como tal, é passível de ser testada na sua capacidade de operar ou travar

o conhecimento.

Os primeiros pensadores que propuseram distinguir uma natureza “objetiva”, caracterizada pelas qualidades ditas “primárias” (os pequenos corpos mudos e figurados), da natureza da qual nós fazemos a experiência, rica de odores, de cores, de significações, eram certamente aventureiros. Mas a distinção tornou-se hoje “palavra de ordem”, transmitida sob o modo de evidência, vetor de absurdidade, produtor de impasses que não são somente intelectuais mas também práticos, até políticos (p. 21)38

Para as questões que giram em torno da divisão sujeito x objeto, Whitehead (apud

Stengers, Ibidem) propõe uma substituição, colocando em seu lugar questões sempre

pragmáticas: devemos estar prontos para experimentar aquilo que pode produzir novos 38 Tradução nossa.

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hábitos, o que pode tornar possível novas convenções. É com esta inspiração que Stengers

(ibidem) usa o pensamento especulativo de Whitehead para lutar “contra o empobrecimento

da experiência, contra a confiscação daquilo que faz sentir e pensar” (p. 34). Não se trata,

segundo a autora, de substituir a idéia de bifurcação da natureza por outras detendo um

poder ainda maior, mas de permitir que a aventura de pensar divergentemente possa ter

lugar a cada vez que formos confrontados com algum modo de existência que nos provoque

a pensar e sentir de uma outra forma.

Um Latour pragmatista.

Ao longo da extensa e recente produção de Latour, outras influências, que não

temos a pretensão de esgotar, vão sendo percebidas. Comungando com bases

metodológicas muito semelhantes às de Vinciane Despret, psicóloga que se dedica a

estudos etológicos, podemos perceber que é muito forte a influência dos pragmatistas

William James e John Dewey de quem Latour se declara discípulo (BARRON, 2003).

Uma semelhança que encontramos entre James e Latour é a forma como definem

seus métodos. James (1974), em sua “Segunda Conferência”39, define o pragmatismo como

um método, uma teoria genética do que se entende sobre verdade, que volta as costas aos

princípios firmados, aos sistemas fechados, às pretensões ao absoluto e às origens. Ao

contrário do racionalismo, que se sente à vontade na presença de abstrações, o pragmatismo

“sente-se mal longe dos fatos, fala das verdades no plural, pensa sobre sua utilidade, sobre

as condições de êxito com que trabalham” (p. 17). O pragmatismo é tomado por James

(ibidem) como um método que se harmoniza com várias teorias, flexionando-as, tomando-

as como instrumentos e pondo-as a trabalhar na indicação de “caminhos pelos quais as

realidades existentes podem ser modificadas” (ibidem, p. 12).

Contra o racionalismo como uma pretensão e um método o pragmatismo acha-se completamente armado e militante. Mas, em princípio, pelo menos, não visa resultados particulares. Não tem

39 Escrita em 1907 e intitulada “O que significa o Pragmatismo”, esta conferência compõe uma série de outras escritas por James, na primeira década do século XX, reunidas na obra “Pragmatismo: um novo nome para velhas maneiras de pensar”, com o objetivo de explicitar as idéias postuladas por esta nova corrente filosófica cujos princípios também eram compartilhados por filósofos como Charles Pierce e John Dewey.

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dogmas e doutrinas, salvo seu método. Como o jovem pragmatista italiano Papini disse muito bem, situa-se no meio de nossas teorias, como um corredor em um hotel. Inúmeros quartos vão para ele. Em um, pode-se encontrar um homem escrevendo um volume ateístico; no próximo, alguém de joelhos rezando por fé e força; em um terceiro, um químico investigando as propriedades de um corpo. Em um quarto, um sistema de metafísica idealista está sendo excogitado; em um quinto, a impossibilidade da metafísica está sendo demonstrada. Todos, porém, abrem para o corredor, e todos devem passar pelo mesmo, se quiserem ter um meio prático de entrar e sair de seus respectivos aposentos. (p. 13)

A Teoria Ator-Rede, defendida por Latour e seus pares, segue a mesma tendência

observada quando do surgimento do pragmatismo, definindo-se como um método, mais do

que como uma teoria. Podemos entendê-la mais como um instrumento do que como um

produto, “mais um pincel do que a paisagem que ele pinta” (Latour, 2006, p. 208). Está

interessada no seguimento de eventos que ocorrem não mais somente em laboratórios, mas

que têm sua inserção na vida comum, resultando em conseqüências práticas para seus

atores. A Teoria Ator-Rede tem encontrado sua aplicação nas áreas mais diversas da

pesquisa: da engenharia, da medicina, da música, da psicologia, da religião, do direito,

enfim, nas ciências duras ou moles, onde quer que as controvérsias se instalem, onde quer

que algo esteja surgindo como invenção ou polêmica.

Quando seus informantes misturam em uma mesma frase organização, “hard-ware”, psicologia e política, não comece a achar que eles estão errados por misturarem tudo; tente, ao contrário, seguir as associações que eles fazem entre estes elementos que lhe teriam parecido totalmente incompatíveis uns com os outros se você tivesse seguido a definição usual do “social” (ibidem, p. 206).40

Na Teoria Ator-Rede, a idéia de uma teoria geral das relações, ou filosofia das

preposições, além de influências como a de Gabriel Tarde, que veremos adiante, é mais

diretamente herdeira do pensamento de Serres. O trabalho de Serres (1999) tem como

proposta abranger o traçado de mapas e a tessitura de redes numa abordagem sem fronteiras

40 Tradução nossa.

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disciplinares. Pela lógica das traduções que operam aproximações e efetuam passagens,

Serres vê as idéias de tempo e espaço em forma de redes e não mais regidas pelas linhas

retas, elegendo a figura de Hermes como a de um “mediador livre que passeia nesses

tempos e espaços dobrados e que, portanto, tem a função de estabelecer conexões” (p. 87).

De Serres aos pragmatistas, num trajeto inverso, os caminhos percorridos para conceber a

Teoria Ator-Rede são muitos e erráticos, quase um zig-zag nos quais nem sempre dá para

perceber claramente a costura das muitas influências que compõem a obra de Latour.

Se examinarmos o pragmatismo, na versão de James e Dewey, veremos que o que

lhes interessa é o valor prático dos conceitos que só se validam na própria experiência,

tendo como fim enriquecê-la. Para este que, segundo James, é apenas um método, não há

conceito que possa ser tomado como final. “Nomes encantados” como Deus, Razão,

Absoluto, Matéria, Energia não podem ser tomados como definitivos, pois deles temos que

extrair sempre o seu valor prático, pondo-os para trabalhar dentro da corrente da nossa

experiência.

Para Latour (2006), também há palavras encantadas que não podem ser tomadas

como definitivas. Entre outras palavras como “natureza” e “sociedade”, sempre produtos

instáveis emergindo de redes de elementos muito heterogêneos, detém-se na análise da

idéia de social. Para ele, “social” é uma má palavra, se usada como adjetivo, designando

uma matéria da qual são feitos os eventos, como se determinasse e pré-existisse as

interações. O social é, para Latour, algo em construção, a ser explicitado, pois não sabemos

de antemão de que o mundo é feito, uma vez que as associações podem se redefinir

constantemente e que sempre teremos novos elementos aspirando a fazer parte de sua

composição. Por isso, o social não pode ser estabelecido previamente e

transcendentemente. Latour (2006) nos dá fartos elementos para estabelecermos a acepção

de “social” que nos convém em contraste com aquela que é comumente veiculada pelas

chamadas “Ciências Sociais”. No entendimento corrente para o termo social, encontrâmo-lo

como uma sombra projetada sobre outras atividades, como explicação óbvia e antecipada

para toda uma série de eventos cujos atores já se encontram agrupados. Para Latour

(ibidem), “social” não é um domínio particular, mas um princípio de conexão que deve ser

encarado como uma espécie de fluido em circulação que novos métodos de investigação

devem ser capazes de permitir seguir. Para tanto, ressalta que, como pesquisadores,

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deparamo-nos com uma série de incertezas41, quando pretendemos seguir os rumos que

tomam os fenômenos. “Seguir” os acontecimentos, traçar as conexões entre os vários

agentes que agem e fazem agir a outros é a tarefa de um Estudo Ator-Rede. São os

relatórios que narram estes estudos e constituem os lugares onde misturamos os fatos,

fazendo desta experimentação uma prova de força das idéias candidatas a um processo de

verificabilidade.

O conceito de verificabilidade ou validação de uma verdade em James é

incrivelmente próximo do que Latour (2006) define por accountability42. James (1974), no

prefácio de O significado da verdade43, diz que esta (a verdade) não é inerente a uma idéia.

Ao contrário, ela acontece a uma idéia, que se torna verdadeira pela ocorrência dos eventos.

Sua validação é, por assim dizer, construída, validada, verificada junto a um milhão de

outros processos em nossas vidas, à semelhança do campo agonístico no qual ocorrem as

fabricações científicas relatadas em Latour (1997, 2000). Para Latour (2006),

accountability é um movimento inerente a esse processo que vai acontecendo na fabricação

dos relatórios de pesquisa: um compte rendu presta contas, constrói, faz a validação das

idéias em um campo de disputas, “recusando-se a deixar de lado a questão da sua

veracidade”(2006, p. 184). É através deste processo que - coincidem estes dois autores,

Latour e James - um fato científico poderia ser construído. Mais que um “prestar contas”,

um relatório de pesquisa “leva em conta” e “dá-se conta” de uma verdade que, antes, não

tinha passado pelo processo de validação.

Quando James (1974) define o pragmatismo em sua Segunda Conferência, ele fala

de como uma nova verdade é assimilada às crenças em estoque, de como esta nova idéia se

torna verdadeira, quando enxertamo-la “no velho corpo da verdade, que se desenvolve,

assim, de modo semelhante à árvore que cresce pela atividade de uma nova camada de

câmbio” (p. 16). Em acordo com Dewey e Schiller, o autor (ibidem) faz referência às

antigas verdades como tendo também passado pelo estatuto de validação, antes de serem

admitidas como verdadeiras.

41 Das quais falaremos no próximo capítulo. 42 Palavra não traduzida na edição em francês de Latour (2006). 43 Obra escrita em 1911.

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Elas também em certo tempo foram plásticas. Foram também chamadas verdadeiras por razões humanas. Mediaram também entre verdades ainda mais antigas e o que, naqueles dias, eram observações novas. [...] A trilha da serpente humana, pois, está sobre tudo (p. 16)

Essa idéia dos pragmatistas se assemelha ao argumento que Latour desenvolve em

Ciência em ação (2000). Toda a ciência, tida como uma fabricação humana, tem duas

faces, como as de Janus: uma jovem, em construção, a dos fatos quentes, ainda moles,

aspirando por validação num campo de disputas; e outra, madura, já estabelecida e tida

como verdadeira, na medida em que as controvérsias em torno dos conteúdos em questão já

cessaram, podendo-se fechar a “caixa preta” de um conjunto de idéias aceitas por todos,

uma vez que se tornaram proveitosas para aqueles que com elas trabalham, pelo menos até

que novas controvérsias venham a desestabilizá-las.

Outra idéia encontrada em Latour (2002d) com assumida inspiração jamiana é a

concepção de corpo e de aprendizagem. Utilizada também por Despret (2001) com relação

ao estudo das emoções (apud Latour 2002d), a concepção de corpo de James é a de um

corpo que aprende a ser afetado por outras entidades, tanto humanas como não humanas,

que o colocam em movimento, deixando-o, ao mesmo tempo, mais vinculado e mais

interessante. O corpo é uma interface em que, através de uma trajetória dinâmica, as

aprendizagens vão sendo registradas, à medida que nos tornamos sensíveis ao que está ao

nosso redor: um corpo que se afeta é um corpo ligado ao mundo em que vive, sendo o seu

contrário um corpo empobrecido dos outros, centrado apenas em si. Esta idéia fará uma

enorme diferença se tomarmos para reflexão as questões da aprendizagem, da pesquisa e da

produção de conhecimento, pois o privilégio de um sujeito cognoscente sobre um mundo

que está passivamente à espera de ser conhecido passará a ceder espaço a uma prática a que

Despret(2002) chama de meio justo44: uma troca de propriedades entre partes que se

encontram (antigas e novas verdades, pesquisadores e pesquisados, os que já estão e os que

chegam, parceiros, colegas, oponentes...), num diálogo em que a novidade vai se validando

a um custo menor para o que antes estava estabelecido. Ao invés da imposição de uma(s)

parte(s) sobre outra(s), da substituição de uma(s) pela outra(s), como pretendeu o projeto 44 Ver também no capítulo IV. Parte 2., no segmento a que chamamos “Controvérsias Metodológicas”.

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moderno, as partes se transformam no contato com versões heterogêneas, reunindo

propriedades através do ajuste de práticas e interesses híbridos, meio pelo qual estas partes

recebem, umas das outras, a chance de transformação mútua. É a James que Despret

recorre na empreitada deste fazer conhecimento, tomando como valor a condição de que

este conhecimento seja interessante, de que nos dê a possibilidade de enriquecer a realidade

e não de simplesmente dublá-la, fórmula extensamente utilizada pelos modernos.

Teriam ignorado, então, os supostos modernos que não se pode negar a própria

herança, uma vez que esta funciona como um lastro de possibilidades para a entrada de

novos elementos e não necessariamente para sua evitação? Como fazer a articulação com o

diferente, com o que chega? Como realizar as misturas entre elementos díspares, humanos e

não humanos? O quanto deixar-se afetar pelo outro resultará em misturas proveitosas? Será

possível conviver com o resultado dessas misturas?

Para um pragmatista como James, este duelo entre antigas e novas verdades é

constante e compreensível na arena humana, mas a pacificação não se opera pela

eliminação de outras versões, mas através da possibilidade de realizar, com estas,

aproximações ao menor custo.

Essa idéia nova é, então, adotada como sendo a verdadeira. Preserva o estoque mais antigo de verdades com um mínimo de modificações, estendendo-as o bastante para fazê-las admitir a novidade, mas concebendo tudo em caminhos mais familiares o quanto possível. [...] Temos uma teoria verdadeira exatamente em proporção à capacidade de solver esse “problema de máxima e mínima”. Mas o êxito em resolver esse problema é eminentemente um caso de aproximação.[...] Em um certo grau, portanto, tudo aqui é plástico (JAMES, 1974, p.15).

Outro pragmatista com quem Latour (2006) estabelece um elo é Dewey, através da

idéia de público. O público é algo produzido pelas ciências sociais que deveriam ter o

compromisso de oferecer uma multiplicidade de versões daquilo que somos, maneira de

pensar completamente contrária a de uma ciência com uma única e totalizante visão dos

fatos cuja pretensão é a de ser um reservatório de universalidade. Com a idéia de público de

Dewey, Latour (ibidem) defende uma sociologia sempre renovada pelos novos ingredientes

que vão sendo introduzidos nos coletivos. Arendt (2006) toma a acepção de público em

Dewey, referindo-se às conseqüências inesperadas de nossas ações frente às quais não

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haveria especialistas, ou seja, “de uma experimentação coletiva que coloca cientistas e

cidadãos no mesmo barco e que tem relação óbvia com o conceito de simetria” (p. 5/6),

como sugere Latour, ao reatar o conhecimento cientifico e o conhecimento do senso

comum, sem mais necessidade das purificações operadas pelos modernos.

O que Latour (2004, 2005b) traz como proposta para a composição de um mundo

comum é a diplomacia, esta disciplina pela qual será possível estabelecer negociações e

alianças para o atingimento deste meio justo em que a troca de propriedades poderia fazer

emergir uma terceira possibilidade em que nenhuma das partes isoladas anteriores ao

contato prevalece, mas uma outra versão mais enriquecida pelo encontro de ambas. Para os

modernos, a diplomacia não se fazia necessária, pois as outras culturas apenas precisavam

ser domesticadas para uma nova posição, via processo pedagógico. Ensinadas a ser como

cabia aos tempos modernos, as culturas precisavam se transformar pela ciência, marcando a

distinção entre fatos e valores.

Latour, herdeiro de Tarde.

Para Latour (1992), ao contrário do pensamento moderno, a atividade ontológica

não se encontra nas extremidades, podendo ser redistribuída entre os vários actantes, dentro

de uma perspectiva em redes. Com a idéia de redes, podemos ter tantos pólos quantos

forem os atores, assumindo uma composição plural do mundo, em função da qual o autor

(ibidem) coloca as idéias de mônadas45, campos, forças, redes, dando suporte ao seu

pensamento.

É assim que Latour (2001a) assume que a Teoria Ator-Rede tem um antepassado.

Localiza em Gabriel Tarde uma referência respeitável para compor a árvore genealógica de

uma causalidade em redes. Este autor, segundo Latour (ibidem), foi, na virada para o século

XX, uma figura maior na sociologia francesa, enquanto Durkheim era ainda um iniciante na

carreira de professor. Com o passar do tempo, Durkheim torna-se o maior representante da

45 A palavra mônada vem do grego com o significado de unidade, elemento mínimo, indivisível do real. O termo foi utilizado pela primeira vez pelos pitagóricos que se referiam à mônada como a primeira unidade da qual derivam todos os números. Foi utilizada por outros filósofos e também pela especulação cristã. Com o renascimento, a noção de mônada ganha um sentido filosófico de grande importância através da concepção de “unidade de todas as coisas, inserida na multiplicidade, que reflete em si, de forma contracta, o universo” (PITTA, 1991: p. 934). Esta idéia foi retomada por outros pensadores.

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sociologia na França e Tarde perde o prestígio, caindo no esquecimento. Ou seja, a história

da sociologia atribui a Tarde o papel de vencido, suas idéias perdem a validade, passando a

ser encaradas como meras especulações. Em pleno exercício do Princípio de Simetria de

um programa realmente forte, Latour dedica-se ao resgate e re-habilitação das idéias

tardianas.

Em Monadologia e Sociologia, livro de Tarde re-publicado em 1999, Latour vai

encontrar dois argumentos que dão apoio à Teoria Ator-Rede:

• A divisão entre a natureza e a sociedade é irrelevante para entender o

mundo das interações humanas.

• A distinção entre macro e micro sufoca qualquer tentativa de entender como

a sociedade está sendo gerada. (LATOUR, 2001a, p. 117).

Latour (ibidem) analisa as razões pelas quais as idéias de Tarde não encontram um

solo fértil para o seu desenvolvimento, permitindo a Durkheim a condição de vencedor

ancorado na sua visão macrossocial: a sociedade da época não comportaria um pensador

das redes, fato que só se tornou possível contemporaneamente, quase um século depois,

num tempo em que as redes são usadas amplamente como modelo de funcionamento.

Apoiado em Tarde, Latour (ibidem) propõe que substituamos o termo social por

associação. Uma rede é formada pela associação de elementos heterogêneos, variados,

mínimos. A análise de Tarde, em oposição àquela de Durkheim, é microssocial: é do

pequeno que tudo começa e é lá que encontramos a chave para entender o grande. A

mônada é o material primeiro do qual todo o universo é composto. Tarde não só se recusou

a tomar a sociedade como a ordem maior e mais complexa para análise, como também se

negou a considerar o humano como único material de sua composição.

Da mesma forma que o primeiro argumento de Tarde, esboçado acima, a Teoria

Ator-Rede não respeita qualquer fronteira entre a natureza e a sociedade, nem tenta explicar

os níveis inferiores tomando os níveis superiores como referência. Sociedades, para estas

abordagens, não passam de associações. Há sociedades de estrelas, há sociedades de

átomos, há sociedades de células, há sociedades de organismos e há sociedades de humanos

que não devem gozar de nenhuma condição especial porque são simbólicas ou porque são

capazes de gerar macro-organizações. Se para Durkheim devemos tratar os fatos sociais

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como uma coisa, em Tarde encontramos a idéia de que todas as coisas constituem

sociedades, que qualquer fenômeno é um fato social e que toda ciência tem que lidar com

assembléias de mônadas.

O segundo argumento desenvolvido por Tarde aparece como uma conseqüência do

primeiro: do micro ao macro ou do macro ao micro, o que temos é uma variação de escala,

uma extensão ou uma redução, sendo o nível macro possível de alcançar apenas

estatisticamente. A “estrutura social” para a abordagem das redes resulta, em caráter

provisório, da repetição, da rotinização e da simplificação de elementos locais traduzidos

para um idioma geral. Para ser um bom sociólogo, Latour re-edita Tarde com a afirmação

de que devemos olhar para baixo, para o pequeno, para o particular, para o detalhe e para as

micro-histórias. É lá que as mônadas diferem ao desenvolver sua ação imprevista, ao se

chocarem, ao concorrerem, ao compartilharem sua existência, umas com as outras, sem que

haja nenhuma força superior regendo seu destino. Contrariamente às mônadas de Leibniz,

as mônadas da abordagem das redes não obedecem a um princípio divino de harmonia pré-

estabelecida: elas se agregam e diferem incessantemente no seu movimento de existir. Para

a concepção tardiana, tendo Latour como defensor, existir é diferir, é produzir efeitos.

Podemos definir uma entidade quando conhecemos suas propriedades, sendo estas

conhecidas através dos efeitos provocados pelo seu detentor. De uma lógica das essências,

passamos a uma lógica das performances.

Latour, um construtivista não moderno.

Além da influência da monadologia de Gabriel Tarde e de várias idéias dos

pragmatistas mencionados, Latour (2002c) também se assume como um construtivista. Mas

um construtivista não moderno. Matthews (1994) nos ajuda a entender por que pensar um

construtivismo não moderno, apontando, como um paradoxo inerente ao construtivismo

inspirado nos padrões modernos, ao qual estamos acostumados, a criação desta necessidade

de sempre se fazer uma correspondência entre idéias e realidade como uma condição para o

conhecimento. Trata-se, segundo Matthews (ibidem), de um erro herdado do paradigma

epistemológico empiricista aristotélico que se manteve em toda doutrina construtivista. O

construtivismo é “o famoso velho lobo empirista vestido de ovelha contemporânea [...] é o

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vinho empirista, tão criticado pelos construtivistas, servido em garrafas novas” (p. 81), diz

ele. Tal ocorre, pois o paradigma em que se apóia o construtivismo moderno re-edita o

modelo empirista que preconiza uma realidade lá, composta de coisas em seu estado puro, e

de um sujeito pelo qual tudo passa, no qual tudo se centra, cuja mente é ativa na cognição

porque intui formas e organiza as experiências proporcionadas por seus sentidos.

Qualquer epistemologia que formule o problema do conhecimento em termos de um sujeito que observa um objeto e se pergunta até que ponto o que vê reflete a natureza ou a essência do objeto é quintessencialmente aristotélico ou, mais geralmente, empirista (MATTHEWS, 1994, p. 83).

Toda construção, seja ela teórica, seja ela material, está muito mais a mercê de

circunstâncias variadas do que geralmente podemos nos dar conta. Nem tudo está sob, ou

passa pelo controle do homem, segundo Matthews (ibidem). Aqui, já nos é possível

considerar a proposta de Latour como sendo construtivista, mas de um tipo em que se não

se toma mais o velho paradigma da correspondência como condição para o conhecimento.

Para continuar utilizando a palavra construtivismo sem cair na escolha cominatória entre

construção e realidade, Latour (2002c) propôs, inspirado em Ian Hacking (1999, apud

Latour, ibidem)46, algumas garantias para compor o que chamou de “uma abertura

diplomática diferente” para a interminável querela entre realistas e construtivistas:

A primeira garantia toma a realidade como premissa. Para Latour (1997, 2002c), a

realidade é aquilo que resiste à pressão de uma força e que não pode ser mudado à vontade,

sendo levada em conta, portanto, como real. O que existe é aquilo que deixa traços, o que

produz efeitos, sendo estas marcas uma conseqüência dessa existência que não se aplica

apenas aos humanos.

A segunda garantia prevê um processo de revisão contínua com relação às entidades

que pleiteiam o direito à existência, uma vez que não foram levadas em conta num mundo

previamente arrumado por alguns. Para pensarmos num mundo comum, é preciso garantir

que as vozes dos novos candidatos à existência sejam ouvidas, não estando estas vozes

limitadas somente aquelas dos humanos.

46 Hacking, I.(1999) The Social Construct of What? Cambridge, Mass, Harvard University Press.

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A terceira garantia entende o “mundo comum” como uma meta a ser alcançada e

não como algo dado: não está pronto de uma só vez e para sempre e deve ser construído

progressivamente por todos, jamais sob a regência de uma única lógica.

A quarta garantia engaja humanos e não humanos numa história de associações

impossíveis de serem desfeitas. A separação de humanos e não humanos, natureza e cultura

não pode ser mantida sob pena de se esvaziarem as nossas fabricações. Tais associações de

mente e matéria são, para Latour (ibidem), “uma fonte indispensável de energia”, aquilo

que garante a durabilidade do que construímos, perdurando e resistindo, no tempo, para

além de nossa existência.

A quinta garantia é a de que não fiquemos paralisados pela escolha absurda sobre o

que é ou não é construído, mas que a superemos em prol da avaliação do que é uma boa ou

uma má construção. As boas construções seriam aquelas realizadas sob o signo da

inclusão, engajando a maior quantidade possível de actantes, tornando-os cada vez mais

interessantes e interessados do que eram no ponto inicial do processo. Latour (2006)

comenta que, no francês, afirmar que uma coisa é construída é o mesmo que dizer que

podemos identificar-lhe uma origem humilde, visível e interessante, não estando mais em

questão se as coisas são ou não construídas, mas se estão bem ou mal construídas.

Para Latour, portanto, o conhecimento é construído, mas depende de muitas outras

coisas além da mente dos humanos: envolve uma rede heterogênea de materiais,

representações, financiamentos, pressões econômicas, disputas políticas, numa cadeia

infindável de elementos. Uma característica diferencial deste “construtivismo não

moderno” é que a correspondência não é mais a condição para o conhecimento, uma vez

que não há mais pólos apartados a se fazer corresponder (de um lado sujeito que conhece e,

de outro, um objeto que é conhecido).

Empreendendo traduções.

Vinho velho em garrafas novas? Sim e não, pois até o vinho difere quando

envelhece. Suas propriedades não são as mesmas de quando era verde: há uma mudança no

seu bouquet, na sua coloração, no quanto fica mais encorpado. Já não é o mesmo, sofreu

sedimentações, houve mudança na sua química, ficou apurado. Da mesma forma, ocorre

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com as idéias na Sociologia da Tradução como também é chamada a Teoria Ator-Rede.

Pela Sociologia da Tradução47, podemos entender o conhecimento como um processo em

cadeias que deslocam elementos (interesses, objetivos, enunciados, imagens) e que vão

fazendo um movimento de manter algumas propriedades, ao mesmo tempo em que vão

diferindo do que eram em seu início, num desenrolar sem fim.

Recorremos aqui a uma fábula usada por Despret (2001) e Stengers (2002) para

ilustrar esse movimento de tradução que temos a chance de fazer a todo momento com

aquilo que nos é dado como herança. Conta esta fábula árabe que um homem velho,

sentindo a proximidade da morte, chama os três filhos e oferece-lhes o único bem que resta

para ser deixado como herança, composta por 11 camelos, cabendo-lhes a seguinte divisão,

feita segundo a vontade do pai: ao primogênito caberia a metade dos camelos; ao segundo

ficaria um quarto deles e ao terceiro restaria um sexto. Os filhos mergulham em

perplexidade, após a morte do progenitor, sem saberem como haveriam de dar conta

daquela situação. Recorrem a um velho sábio da cidade vizinha e este lhes oferece, como

possibilidade de ajuda, o empréstimo de um camelo velho e magro que lhes ajudará nas

contas da divisão almejada. O que fazer diante da vontade do pai? Como utilizar a sugestão

oferecida pelo velho sábio? Haveria uma solução para aquela herança? As duas autoras

analisam a fábula como uma oportunidade de refletir sobre as nossas heranças e, neste caso,

sobre como podemos tomá-las como um problema que possa valer a pena resolver.

Segundo Stengers (2002), a fábula remete a um problema de “confiar” nas

possibilidades de resolução para determinada situação que parece não ter saída. Quando o

que se apresenta é o encaminhamento a um estado de guerra entre irmãos, a aposta destes

recai na busca de uma solução “emprestada” que aparece de forma bizarra na figura de um

camelo velho que deixará a divisão possível, mas sequer será incorporado à herança, depois

da partilha. Obviamente que o décimo segundo camelo não era a solução, mas serviu para

que os filhos construíssem uma a partir do problema que o pai lhes havia legado como

herança. “A solução passa assim não pela submissão a um enunciado problemático, mas

pela invenção do campo onde o problema encontra sua solução” (p. 28), diz Stengers. Para

47 Que veremos melhor no próximo capítulo.

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esta autora, o décimo segundo camelo é a oportunidade de especular sobre algo novo,

partindo do que já é velho e conhecido.

Despret (2001) vê o décimo segundo camelo como o que nos pode ser emprestado

dos outros, de todos aqueles que povoam este mundo, do que nos permite pensar a nossa

experiência de uma outra forma. Não se trata de recusar a herança, tomando-a como

impossível, nem de aceitá-la passivamente, sem acrescentar-lhe outros elementos que a

tornem operante na produção de modificações. Trata-se de inventar uma nova maneira de

nos tornarmos dignos dessa herança, colocando-nos o papel de ser, ao mesmo tempo, vetor

e produto dela.

Pensamos que o que está em jogo nestas reflexões é se vamos aceitar ou negar as

nossas heranças como ponto do qual partir, ou se vamos tomá-las como ponto final ao qual

chegar e, destroçando-as, não ter muito como seguir adiante. Os filhos poderiam muito

bem ter iniciado uma guerra, ou poderiam ter matado os camelos e dividido a sua carne,

como sugeriu uma das autoras em seu texto. Talvez estas fossem algumas das soluções

inspiradas na maneira moderna de agir, aquela baseada na ruptura, no apagamento do

antigo. O que percebemos foi que, respeitando o legado e a vontade do pai, os filhos

conseguiram achar uma solução absolutamente incomum e inesperada que nos pareceu

bastante mais próxima de uma saída diplomática. A diplomacia é um esforço de modificar

o quanto possível os termos iniciais de uma contenda para torná-los viáveis às partes

envolvidas no seu esforço de negociação. É, por excelência, um campo de traduções, onde

se operam aproximações, onde se efetuam passagens, onde o meio justo é buscado, onde se

faz a troca de propriedades, onde as misturas acontecem produzindo as mais surpreendentes

invenções.

Encontramos, no pensamento de Latour, muitas idéias já vistas em outros autores.

Podemos vê-lo contrapondo-se tenazmente ao pensamento moderno em sua negação a toda

forma de fazer análises a partir de escolhas cominatórias. A forma de entendimento da

realidade partindo dos extremos é abandonada em prol de um caminhar pelo meio, pelo

ponto médio onde as coisas se misturam e onde se opera o movimento de tradução e de

produção de híbridos. Podemos vê-lo tomando de empréstimo algumas idéias de

pensadores modernos, pois, assim como Law (2003), Latour não se obriga a aceitar ou

negar por inteiro o pacote da modernidade. Para nós, Latour é coerente com os princípios

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que adota na abordagem das redes. Ele é o próprio híbrido produzido a partir das inúmeras

traduções que foi operando sobre idéias que mantém ou com aquelas das quais diverge. É

nessa tensão que se produz a originalidade de seu pensamento.

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CAPÍTULO III

A PIPA NO EMARANHADO DOS FIOS DE UMA LONGA REDE

As pipas têm uma história que data de muitos séculos e se confunde com a própria história da civilização, sendo utilizadas como brinquedos, instrumentos de defesa, armas, objetos artísticos ou de ornamentação. Hoje elas se apresentam como lindos pássaros de fabricação humana, parentes dos antigos mitos aéreos, irmãs dos inventores, amigas das crianças e amuleto dos sábios. Ao conhecermos sua história, sua influência em cada um dos acontecimentos humanos, agrada-nos saber que cada pipa, um simples “papagaio”, é a imagem aérea das almas pacientes, segundo dizem os antigos ritos chineses (VOCE, 2002, p. 7).

Um Estudo Ator-Rede para a pipa

Nos capítulos precedentes, defendemos a construção de um esboço para o que

estamos chamando de uma Psicologia Social do Brinquedo, empreitada para a qual as

idéias do grupo de pesquisadores do Centre de Sociologie de l’Inovation (CSI), em especial

as de Bruno Latour, tornaram-se as nossas principais referências. Estas idéias revelaram-se

extremamente operantes nos movimentos que fomos executando nas buscas sobre o nosso

brinquedo de eleição. Neste capítulo, pretendemos defender a Teoria Ator-Rede como

instrumento conceitual e prático para seguir os movimentos traçados nesta construção

simultânea de homens e objetos em que materialidade e socialidade se mesclam, tendo

como resultado a nossa condição de humanidade.

Convém explicitar que, na extensa produção de Latour, veremos que nos textos em

que se dedica a compor, inicialmente, uma teoria inspirada na lógica das redes (1996b,

2003), a denominação que encontramos com freqüência é Teoria Ator-Rede, expressão

mantida pelo autor, apesar de considerá-la inadequada, conforme comentamos na

introdução deste trabalho. Em suas produções mais recentes, entretanto, outras variações

em torno da expressão Teoria Ator-Rede vão surgindo e se afirmando como novos

compostos que não param de proliferar.

Em Latour (2006), encontramos a expressão Estudo Ator-Rede para designar o tipo

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de investigação que tem por objetivo cartografar as situações de um social não mais tido

como anterior às relações estabelecidas entre os atores, mas definido como algo em

constante modificação, como resultado de associações entre entidades surpreendentes, fato

que vem quebrar as certezas sobre a composição do mundo em que habitamos. Para o autor

(ibidem), um mundo em constante mudança exige outros métodos de investigação que

possam dar conta de campos ainda não explorados, de exigências que se tornam urgentes.

Os Estudos Ator-Rede estão inspirados nesta concepção com a qual será possível

estudar novas associações sempre imprevistas e cada vez mais freqüentes:

microorganismos, inovações técnicas, catástrofes naturais, enfim, efeitos resultantes das

interações travadas por humanos e não humanos... Tomando o exemplo da física, que

ultrapassou a sua fase pré-relativista, o autor coloca para a sociologia o desafio, que aqui

estendemos às outras ciências, de pensar seus campos de estudos de forma relativista. Os

quadros de referência que ainda vigoram nas ciências sociais foram suficientes somente

enquanto as mudanças no mundo se operaram de maneira mais lenta. Com a velocidade das

transformações vividas neste último meio século, será necessário, entretanto, operar uma

revolução relativista para dar conta da complexidade nas relações travadas no mundo

contemporâneo.

Tornou-se urgente, para as ciências humanas, a exploração de novos domínios que

podem passar pela tecnologia, pela saúde, pelos mercados, pelas artes, pela religião, pela

lei, estabelecendo-se elos onde antes apenas estavam disciplinas isoladas umas das outras.

A Teoria Ator-Rede proporciona uma forma alternativa para a prática das ciências,

podendo ser uma ferramenta útil para redimensionar campos de estudo tradicionalmente

limitados. Uma Sociologia Ator-Rede ou uma Psicologia Ator-Rede, levando em conta o

estudo dos objetos como mediadores e não mais como intermediários, são algumas das

propostas que podem ser encaminhadas. Entendemos que é através de um Estudo Ator-

Rede que se torna viável uma Psicologia Social do Brinquedo, uma das traduções possíveis

para uma Psicologia Ator-Rede. Segundo Latour (op. cit.), as ciências sociais (psicologia,

sociologia, história, geografia, lingüística,...) multiplicaram suficientemente as formas de

existência com as suas construções, sendo necessário levar em conta a complexidade, a

quantidade e diversidade das ações deflagradas. A ação nunca está restrita a um ator, pois

este é apenas “um alvo móvel de um enxame de entidades que se fundem sobre ele” (2006,

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p. 67): acontece sempre em redes, se desloca, é ultrapassada , influenciada, dominada ou

retomada por outros; traduzida e distribuída entre as várias formas de existência, nem

sempre antropomórficas. Por esta razão, um Estudo Ator-Rede conta com incertezas, nem

sempre sendo possível decidir se elas provêm do observador ou do fenômeno observado.

O autor (op. cit.) nos aponta os cinco tipos de incertezas com as quais deveremos

lidar quando realizamos um Estudo Ator-Rede. A primeira delas é a de que não temos

grupos estáveis em sua composição, havendo muitas maneiras contraditórias de atribuir

identidade aos atores num evento. Temos atores que se deslocam em reagrupamentos

constantes, sendo difícil atribuir-lhes um perfil que seja consensual por muito tempo.

Mesmo tendo representantes, estes não representam a diversidade própria dos grupos. No

caso dos pipeiros que seguimos, essa realidade ainda é mais contundente: os movimentos

em que se juntavam ou se separavam eram aleatórios e a composição dos grupos era

instável e flutuante.

A segunda incerteza se deve à natureza das ações, num evento. Nem sempre somos

capazes de compreender as formas de existência que produzem efeitos sobre um fenômeno

observado, em um dado momento. O que age ou faz agir quando alguém solta pipas? Que

ações compõem o curso de um evento como este? Percebemos que as fontes de ação estão

por todos os lados. A todo o momento, a ação vai sofrer interferências muito variadas,

partindo de agentes que estão na cena, mas nem sempre são visíveis.

Como conseqüência da incerteza anterior, temos o crescimento da lista de entidades

que participam do curso de uma ação. Esta é a terceira incerteza com a qual nos deparamos.

As fontes de interferência sobre o curso de determinada ação nos obriga o tempo todo a

rever quem são os participantes do acontecimento que estamos seguindo. Além das próprias

pipas, o vento poderia ser uma fonte de ação óbvia, mas não única. O relevo do local onde

os meninos brincam, por exemplo, exerce uma enorme influência sobre a brincadeira,

obrigando os deslocamentos no plano inclinado, o que torna a brincadeira muito diferente

de quando ela é desenvolvida à beira de uma praia. Um vasto inventário de seres pode

irromper para transformar os objetivos iniciais: clima, relevo, animais, pessoas, outros

objetos. Não nos é mais possível falar de interações face a face, uma vez que nos

deparamos com longas cadeias de mediação compostas de elementos de toda a natureza

(LATOUR, 2006).

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A quarta incerteza é sobre quem poderá se encarregar do estudo de formas de

existência tão variadas. Os fatos que encontramos podem ser tão controvertidos que não

temos certeza de quais ou quantas disciplinas poderão estudá-los, fazendo-se necessário o

abandono da divisão artificial entre as dimensões social e técnica num Estudo Ator-Rede.

Psicologia? Etologia? Sociologia? Engenharia? História? A qual dessas disciplinas caberia

o estudo das pipas? Poderíamos nos nutrir das trocas realizadas numa zona de interface?

Diz Serres (1999), que os espaços “entre” são mais complicados do que se pensa,

encontram-se estranhamente desprovidos de pesquisadores, constituindo um desafio, uma

aventura arriscada que, ainda assim, valeria a pena empreender.

A quinta incerteza refere-se a como elaborar os relatórios de pesquisa de um Estudo

Ator-Rede, prestando contas dos dados obtidos a partir de um olhar mais voltado para as

ciências sociais. Afinal, o que estaria no âmbito destas ciências? O quanto podemos reduzi-

las ao estudo daquilo que é exclusivamente humano? Existiria algo exclusivamente

humano? O que podemos qualificar de humano que não exija a parceria com outros

elementos do mundo? Pensamos que um Estudo Ator-Rede estaria cada vez mais distante

do estabelecimento de fronteiras arbitrariamente traçadas entre as disciplinas, de modo que

será inevitável conviver com essa incerteza com relação à forma de elaborar nossos

relatórios.

A idéia de um Estudo Ator-Rede voltada para os objetos é seguir os atores quando

eles deixam rastros através das coisas. Sendo-lhe atribuído um novo papel, os objetos

introduzem diferenças nas situações, acrescentando durabilidade às competências sociais.

Levar em conta que o desenvolvimento de qualquer ação se faz num zig-zag de humanos e

não humanos é, portanto, o propósito de qualquer Estudo Ator-Rede.

É por causa da ligação com os humanos que os objetos saem da condição de

intermediários e tornam-se mediadores ao longo de qualquer ação em curso. Assim,

segundo Latour (2006), é preciso buscar estratégias para fazer falar os objetos. É

especialmente através do estudo das inovações e das controvérsias travadas em torno dos

objetos que poderemos observar por mais tempo o lugar privilegiado que

ocuparam/ocupam nas interações, mantendo-se no papel de mediadores visíveis.

Outra forma de fazer falar os objetos é reconstruir o seu traçado, utilizando dados

trazidos pelo trabalho do arqueólogo ou do etnólogo: reconstruir instrumentos de

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civilizações desaparecidas ou compreender os modos de ação de povos que não nos são

familiares apresentam-se como formas de compreender a mediação dos objetos nas

interações. Relacionar dados sobre um objeto que protagoniza as interações junto com os

humanos pode nos informar sobre a influência exercida nas redes às quais pertence ou

pertenceu, antes de tornar-se invisível pelo hábito ou pela obsolescência.

Latour (2006) nos chama atenção sobre o fato de que, para alguns objetos, é difícil

reconstituir o traçado ao longo do tempo. Para estes casos, arquivos, coleções de museu,

relatórios de historiadores podem ser artifícios para a reconstrução de seus rastros. Se tudo

isto falhar, diz o autor, ainda é possível recorrer à ficção para tornar imagináveis os elos

destes objetos com os humanos, operação para a qual teríamos muito que aprender com os

artistas. É pela coleta e pelo cotejo de dados sobre os vários mediadores que se articulam

em forma de rede que o social se tornará visível aos olhos daqueles que lêem o relatório de

um Estudo Ator-Rede

Para a pipa, tentamos acompanhar a controvérsia em torno de sua extinção, assim

como tentamos seguir as marcas de seu traçado ao longo da história com material alusivo às

suas incertas origens, às lendas que a cercam, ao deslocamento pelos lugares em que foi

assumindo traduções singulares. Para tanto, lançamos mão daquilo que pudemos encontrar

nos livros, mas não nos furtamos de seguir os eventos em que este brinquedo figura como

protagonista.

Uma extinção há muito anunciada.

Os papagaios de papel, objetos antiqüíssimos no oriente, surgiram de necessidades

da vida cotidiana, sendo usados primitivamente pelos adultos para fins práticos

(principalmente bélicos), ou religiosos. Hoje são um folguedo universal, um instrumento de

lazer que agrada a todas as idades e resistem incólumes na preferência de determinados

grupos, apesar das circunstâncias contrárias à sua manutenção: a densidade da rede elétrica

nos espaços urbanos colocada em risco pelos fios do papagaio que, por sua vez, põe em

perigo a segurança dos próprios pipeiros; o advento das tecnologias digitais na ludicidade

do homem contemporâneo que, pela valorização da velocidade e da simulação dos jogos de

computador, poderiam deixar a pipa num status de franca obsolescência; a necessidade do

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brincar protegido em espaços fechados, a salvo das estatísticas da violência nos grandes

centros urbanos. Estas são circunstâncias, entre outras, que apontam para uma tendência à

extinção deste jogo-brinquedo tradicional. No entanto, crescem em quantidade e

sofisticação os torneios e associações em torno do brinquedo, tornando-o ainda mais

difundido em várias partes do mundo. Para cada uma das possíveis causas de sua extinção,

há argumentos que jogam no sentido contrário, através de algumas constatações que

deixam a pipa cada vez mais atraente.

Para uma extinção causada pelo aumento da malha elétrica nas cidades, já apontada

por Lapa Carneiro em Portugal (1964) e Roger Piñon na Bélgica (1964), o amazonense

Thiago de Mello (1983) opõe o fato de que a pipa não encontra seus mais fiéis redutos na

área rural. Ao contrário, é no espaço urbano das cidades onde ela é mais fervorosamente

utilizada na condição de um esporte, uma brincadeira, um jogo agonístico, uma estratégia

bélica entre grupos que variam de status e finalidades.

Para o fato de que o advento dos jogos virtuais tornaria a pipa um objeto em

extinção por absoluta obsolescência, podemos observar que, assim como o balão não

arquivou a pipa, ou o avião não arquivou o balão, os brinquedos dotados de maior

investimento tecnológico não necessariamente determinam o desaparecimento dos

brinquedos mais antigos. Ao contrário, ambos passam a coexistir, contribuindo cada um ao

seu modo para compor espaços lúdicos que são diferenciados, porém não excludentes.

Ademais, cada um deles (brinquedo contemporâneo e brinquedo tradicional) possui tal

especificidade, que não chegam a concorrer entre si. Poderíamos talvez falar de nichos em

que um ou outro atinge uma preferência mais arraigada, principalmente se levarmos em

conta as condições socioeconômicas que permitem a aquisição de cada um deles. Se parece

óbvio que os jogos de computador necessariamente implicam num determinado poder

aquisitivo por parte das famílias que os oferecem às suas crianças, nada nos autoriza a

afirmar que a pipa é uma exclusividade de extratos da população com menor poder de

consumo. Outro dado que devemos aqui mencionar é a sensação de liberdade descrita pelas

pessoas com quem conversamos durante a nossa pesquisa. Ao contrário dos jogos de

computador que mantêm os jogadores confinados a um espaço mais ou menos restrito,

dando-lhes a chance de realizar, com poucos movimentos, a sua “brincadeira” - na grande

maioria das vezes, de forma solitária através do confronto com um parceiro virtual -

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encontramos na brincadeira de pipa exatamente o seu oposto: realiza-se em grandes espaços

ao ar livre; necessita de movimentos amplos e de técnica apurada para desenvolver as

manobras; não dispensa a adesão de parceiros na estratégia de lançamento do artefato às

alturas; é incentivada pela oposição de adversários para desenvolver o que Pontes et ali

(2003) chamam de “guerra no ar” e, por fim, desenvolve nos brincantes uma sensibilidade

às condições do tempo que é construída ao longo do processo.

Uma outra diferença, além do inesperado provocado pelas questões climáticas que

podem mudar a brincadeira a todo o momento, é que os jogos de computador já trazem uma

configuração pronta para a brincadeira, construída previamente pelos seus programadores-

criadores. Há um script determinado e previsto, anteriormente e externamente à brincadeira.

Na pipa, tudo deve passar pela habilidade daquele que a lança aos ares, desde a sua

fabricação – pois o pipeiro de verdade é aquele que também é construtor do seu brinquedo,

do seu cerol, de uma identidade que ele imprime ao objeto – até as estratégias de luta

utilizadas nas disputas entre pipas.

Uma última circunstância que conspira para o desaparecimento das pipas é a

necessidade de um brincar protegido da violência dos grandes e complexos centros

urbanos. As ruas eram, outrora, o espaço por excelência da brincadeira de pipa, muito mais

até que os quintais das casas. Hoje, não apenas verifica-se uma drástica diminuição dos

espaços não construídos devido à alta densidade populacional dos centros urbanos - fato

que pressionou no sentido do aproveitamento máximo dos espaços - como também

constatamos que os espaços públicos tornaram-se hostis ao desenvolvimento das

brincadeiras, devido ao alto grau de insegurança proporcionado pelo aumento do trânsito de

veículos e das estatísticas de criminalidade. Também para esta circunstância há atenuantes.

Da mesma maneira que a necessidade de oferecer às crianças formas de brincar protegidas

da violência das ruas impulsionou o aparecimento das brinquedotecas, uma solução para

soltar pipas de maneira segura, nos centros urbanos, encontra adeptos nos torneios

esportivos promovidos por entidades variadas como clubes, associações de bairros e, pelas

próprias companhias de eletricidade. Este é o caso da CEMIG (Companhia Energética de

Minas Gerais) que contribui com o patrocínio de eventos em várias cidades do estado de

Minas Geais. Em São Paulo, Sílvio Voce, técnico de aviação aposentado, dedica-se, entre

outras atividades relacionadas à pipa, à promoção de campeonatos e revoadas de pipas em

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um “pipódromo”, localizado em um parque da capital paulista, tendo tido como

patrocinador para sua construção um fabricante das linhas utilizadas na prática do esporte.

Tanto nos eventos patrocinados pela CEMIG, como naqueles organizados por Voce, são

divulgadas normas de segurança no sentido de preservar o esporte dentro de condições

protegidas para os seus praticantes.

Uma história tecida por um emaranhado de fios

A pipa tem uma história tecida por longos fios que se emaranham e se desenrolam

em várias redes. Num breve movimento de mapear suas conexões, encontramos a pipa

relacionada com várias histórias: com a história da civilizações, desde a sua invenção em

tempos distantes; com a proto-história da aviação e das técnicas ligadas ao trabalho dos

engenheiros (a matemática e a física); com a história dos usos e costumes dos povos – com

o folclore, portanto; com a história das idéias e crenças religiosas, pois encerra todo um

simbolismo de vôo e de ascensão que tem a sua marca nas aspirações da humanidade pela

ascensão e transcendência. Neste trabalho, tentaremos flagrar os deslocamentos realizados

pelas várias redes em que fomos encontrando as pipas, desde os primórdios de seu

aparecimento até o atual estado em que se encontra na rede dos eventos que nos

propusemos a seguir. Verificamos que a pipa se deslocou por essas redes, passando de

objeto sagrado de rituais ancestrais a um objeto de usos e costumes sociais de grupos

humanos em diferentes áreas do planeta, tendo um papel importante como objeto

sociotécnico ligado a toda a proto-história das conquistas do espaço aéreo pelo homem.

Chega, contemporaneamente, à condição de brinquedo ou de engenho capaz de dar

propulsão a algumas práticas esportivas, numa rede que se diferenciou das demais. Como

dirá Law (1997), em exemplo narrado mais adiante neste capítulo, a pipa não se deslocou

nessas redes, mas antes, passou por um movimento de tradução que foi lhe conferindo

diferentes versões em função do papel desempenhado em cada um dos coletivos que pôde

compor.

Segundo Voce (2002), a versão mais antiga da pipa teria nascido em

aproximadamente 200 a.C., passando pela Coréia, Japão, Sudeste Asiático, ilhas da

Oceania, Europa, África e, por fim, Américas. Crouch (2003) já aponta o surgimento da

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pipa de superfície plana por volta de 1000 a.C., na China. Mesmo com controvérsias, várias

fontes admitem e confirmam que a pipa teria, de fato, o seu aparecimento na China ou na

Malásia, difundindo-se posteriormente pelo nordeste do Japão e outros países do sul da

Ásia, Coréia e Ilhas do Pacífico.

Para Kent (1997), a pipa teria surgido em 500 a.C. e depois teria sido levada para o

Japão por missionários budistas no século VII, espalhando-se por todo o Pacífico através

das rotas dos comerciantes e exploradores. A mesma autora, entretanto, apresenta outra

versão para o fenômeno da “universalidade”48 da pipa, ao considerar que esta pode ter sido

inventada independentemente em vários países do mundo. Aponta registros datados de 400

a.C. que descrevem o “pombo de Tarento”, invenção voadora atribuída a um cientista

grego, chamado Archytas, contemporâneo e amigo e Platão, que se ocupava da aplicação da

matemática a problemas técnicos. Kent (ibidem) acrescenta, ao caso grego, a descoberta de

um papiro egípcio de cerca de 500 a.C. cujas imagens descrevem um palácio lendário em

construção nas nuvens, num ponto entre o céu e a terra, tendo águias como transportadoras

de algum tipo de material. Imagens semelhantes foram encontradas por arqueólogos, em

esculturas de pedra ainda mais antigas, também no Egito, mostrando um grupo de pessoas

no nível do solo segurando uma linha. Kent supõe que as águias mencionadas podem ter

sido uma forma poética de nomear pipas, já que esta prática de transporte também foi

detectada em uma era anterior, no Japão. A instigante pergunta é se pipas gigantes podem

ter sido usadas como mecanismo de transportar materiais para as alturas em tempos

remotos, hipótese que não nos parece de todo descabida, pois a pipa, tal como os barcos à

vela, são partidários do mesmo princípio de utilizar a energia dos ventos como propulsora

de movimento49.

Na Europa, a pipa teria sido introduzida no século XIII pelos exploradores que

retornavam da Ásia. Pontes et ali (2003) mencionam a descrição que o explorador italiano

Marco Polo fez, ao retornar da China, acerca do processo de construção e vôo de uma pipa,

marcando uma vez mais o Oriente como berço do brinquedo. Crouch (2003) pondera que

há muitas razões para aceitar as lendas japonesas e chinesas, assim como o testemunho de

Marco Polo, sugerindo que os primeiros humanos a se aventurarem no ar o fizeram através

48 O que estamos chamando aqui de universalidade é o fato de a pipa aparecer em muitas regiões do planeta, mesmo que sob diferentes traduções. 49 Ver, no capítulo VII, as pesquisas realizadas por Clemmons (2002) sobre as pirâmides voadoras.

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de grandes pipas.

Rios (2003) nos conta uma popular lenda chinesa que atribui a Meng Chi a invenção

da primeira pipa. O camponês estava passeando, quando um golpe de vento arrancou-lhe o

chapéu da cabeça. Preso por um cordel, o chapéu manteve-se bailando no ar, intrigando o

fazendeiro com a sua performance. Meng Chi o retirou e o amarrou a um fio maior, criando

assim a primeira versão da pipa.

Através de Kent (1997), temos a informação de que a difusão das pipas na Europa

se deu através das rotas estabelecidas com o Oriente para o comércio da seda. Hart (1967)

oferece uma hipótese alternativa para a entrada da pipa na Europa, atribuindo-a ao contato

dos povos europeus com os árabes, no norte da África, tendo aí chegado pelos caminhos

traçados desde o sul da Ásia. Segundo este autor, não há indício de que a pipa teria sido

conhecida no continente americano, antes que as grandes navegações possibilitassem um

maior contato dos povos entre os vários continentes. Percebemos, por estes dados, que a

difusão deste objeto ao qual nos dedicamos foi se fazendo pelos contatos e contágios

realizados através dos povos que se deslocavam sobre o globo50, nas trocas realizadas entre

eles, tornando-se evidente, ao mais superficial estudo, o fato de que, em cada lugar, o

brinquedo foi assumindo identidade própria em função das formas, das técnicas de

construção, dos usos a ele atribuídos e, principalmente, dos nomes que foi recebendo em

cada lugar: na Inglaterra e EUA, é kite; na Espanha é cometa, ou melhor, la cometa51, no

feminino; na Itália, é aquilone; na China é cheng do feng52, que pode ser traduzido como

“harpa dos ventos”, aludindo ao ruído que faz quando nela se amarram dispositivos que

produzem sons de harpa; na Alemanha é drachen, conservando a tradição chinesa de

fabricar pipas em forma de dragões; no Chile, recebe o nome de volantin; na Argentina é

barrilete; em outros países da América Latina também recebe o nome de cometa, só que no

masculino; na França, chama-se cerf-volant53, cuja tradução literal é cervo voador, nome de

um pequeno coleóptero com chifres; em Portugal, chamam-na de papagaio, batismo que

encontra suas raízes no pássaro colorido, de forma idêntica a kite, na língua inglesa. No

Brasil, o mesmo acontece com as denominações da pipa em função da região em que nos

50 Ver na galeria de imagens, ao final deste capítulo, o mapa da provável rota de difusão da pipa. 51 Nome do quadro de Francisco Goya também apresentado na galeria de imagens, no final deste capítulo. 52 Ver mais sobre esta denominação no capítulo V. 53 Ver mais sobre esta denominação no capítulo VIII.

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encontramos. O nome mais comum é pipa, provavelmente aludindo ao formato de um

barril. Mas na região norte, chamam-na de papagaio por influência portuguesa. Na Bahia, é

mais comum a denominação de arraia ou simplesmente raia, por lembrar o formato do

peixe. Em algumas regiões do Sudeste, o nome é cafifa e, no sul, especialmente em Santa

Catarina, aparece com o nome de pandorga.

O etnólogo Lapa Carneiro (1964) aponta a precariedade e a generalidade de seu

estudo em Portugal, sendo quase todos os registros sobre o brinquedo, oriundos de língua

estrangeira. Diz o autor, baseado na monografia Le Jeu du cerf-volant en Wallonie, do

belga Roger Piñon (1964), que o papagaio já existia na Alemanha no ano de 1450 e, em

1660, na Catalunha. Ressalta que a difusão deste objeto pode ter se dado por via terrestre ou

por via marítima e que não cometeríamos grande erro se afirmássemos que o papagaio já

era bastante conhecido, há muitos séculos, por todos os países europeus.

Segundo Bittencourt (1960), o folclore português tem sua origem fundada nas

milenares tradições européias, de forma que, mesmo não sendo portuguesas, aquelas que

nos chegaram eram portadoras da marca lusitana. No Brasil, o fenômeno de apropriação do

brinquedo segue os mesmos moldes de sua difusão pelas várias partes do mundo: em cada

lugar, vai assumindo feições particulares que se justificam pela variedade dos usos,

costumes e disponibilidades contextuais.

Kishimoto (1993) atribui a veiculação dos jogos tradicionais como a pipa à tradição

milenar da transmissão oral no folclore. Em seu livro, encontramos a informação de que a

pipa teria sido introduzida no Brasil pelos portugueses, primeiramente, no Maranhão, no

século XVI, espalhando-se por todo norte e nordeste, onde até hoje é um brinquedo-

brincadeira concorridíssimo nos meses ventosos.

A informação que credita aos portugueses a introdução da pipa no Brasil é

encontrada também no Dicionário do Folclore Brasileiro, de Luís da Câmara Cascudo

(1988). Esta versão é contestada por Voce54 que defende o conhecimento do artefato pelos

escravos africanos que já o utilizavam em sua terra natal, adaptando-o com o objetivo de

sinalizar aos quilombos a aproximação dos “capitães do mato”, como eram chamados os

caçadores de escravos. Eram objetos construídos a partir dos recursos disponíveis nos

sertões, operando-se a substituição do papel por palha de folha de palmeira, como já o

54 Em comunicação pessoal, no mês de março de 2004.

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tinham feito os pescadores das ilhas do Pacífico. Questiona-se para aquela época a

utilização do papel como elemento integrante das velas das pipas por ser este ainda raro e

pouco difundido. Acredita-se que os primeiros papagaios trazidos pelos portugueses fossem

de pano - à semelhança das velas das embarcações - embora mais leves e proporcionais às

estruturas utilizadas.

Há lendas e suposições de que a existência de objetos voadores semelhantes teria

ocorrido em tempos diferentes e em várias civilizações. Não se sabe ao certo se estes

objetos teriam sua origem em determinado lugar, espalhando-se através dos movimentos

humanos realizados sobre a geografia do planeta, ou se estes objetos nasceriam ímpares em

cada região, mas, ao mesmo tempo, síncrones com todos aqueles inventados em outros

lugares e em outros tempos, como resposta às necessidades de ordem prática vivenciadas

pelos humanos55 e tendo os pássaros como elementos inspiradores para suas tentativas de

vôo.

Assim, um objeto com determinadas propriedades e destinado a certos usos poderia

ser encontrado em versões mais ou menos semelhantes, mas guardando algumas diferenças

em função das particularidades do tempo e espaço em que é construído. Aqui verificamos a

dinâmica do universal e do particular se atualizando, não como uma oposição, mas como

um movimento de mestiçagem em que o universal assume o contorno de um contexto

específico e o local se conecta com suas raízes universais: como se o específico fosse uma

dobra do geral, como se o universal pudesse se desdobrar em muitos particulares.

Kishimoto (1993) apresenta três hipóteses para a universalidade de temas e valores

que aparecem em diversas populações distantes: 1. teria havido uma conservação dos

elementos de uma humanidade primitiva, apesar das migrações feitas pelas raças; 2. teria

havido um contato direto entre as diversas raças, fazendo-se uma transmissão desses

elementos comuns de uma tribo à outra; 3. teria havido uma criação independente e

simultânea por diversos povos. Destas três hipóteses, buscando alguma consonância com as

idéias de Latour, entendemos que apenas a primeira - a de uma humanidade primitiva - é

aquela que nos parece mais descabida, devido à suposição de que esta humanidade estaria

dada previamente, sendo diametralmente oposta à idéia de que os humanos se constituíram

como tal a partir de sua relação com os não humanos em associações que historicamente

55 Ver mais sobre as pandorgas pescadoras, no capítulo VII.

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resultaram em nossa condição sociotécnica. A segunda hipótese – a da transmissão de

aprendizagens de uma tribo a outra pelo contato – parece constar do que até aqui estivemos

reunindo através dos dados que explicam a saída da pipa do oriente para outras localidades

do planeta, através das rotas dos comerciantes. A terceira hipótese – a da criação

independente e simultânea por diversos povos que não tiveram contato entre si – está de

acordo com a idéia de Leroi-Gourham (1984 a, 1984 b) sobre a criação das técnicas como

um movimento para fazer face às exigências da vida cotidiana com todos os desafios que

esta nos impõe. Avedon & Sutton-Smith (1971) se opõem à idéia de que a pipa teria

surgido como a atualização de um instinto, mas aceitam a sua difusão como resultado da

migração das atividades de um grupo a outro. As duas últimas hipóteses nos parecem

ótimos exemplos de como atuam as redes e de como a Teoria Ator-Rede - TAR pode nos

ajudar na compreensão destes fenômenos.

A pipa na rede: uma questão de tradução

Para falar de transferência de tecnologia, Law (1997) re-conta uma estória ocorrida

entre dois países: a Suécia e a Nicarágua. Na primeira, existia uma máquina de fabricar, a

partir de refugo florestal, briquetes que serviam de combustível para a indústria. Na

segunda, país pobre de combustível, cogitava-se a possibilidade de utilização da mesma

máquina. No momento em que a máquina se move da Suécia em direção à Nicarágua,

muitas coisas começam a mudar e sofrer ajustes: a matéria-prima muda, outras relações

sociais e técnicas são envolvidas, novos atores entram em cena (devastação florestal, a

geografia do país, a guerra civil, as pragas agrícolas). No final das contas, após negociações

com elementos muito variados, os briquetes, na Nicarágua, passam a ser fabricados de

refugo de algodão, são agora utilizados em fornos domésticos, seus preços são testados e

estabilizados, tornando-se uma empreitada de sucesso, em outro país. Houve uma

“transferência” de tecnologia? Segundo Law (ibidem), houve uma tradução de tecnologia,

pois as tecnologias não se originam em um ponto e se espalham: são passadas de mão em

mão, sofrem modificações nessa tradução, tornando-se cada vez menos reconhecíveis.

Como qualquer fenômeno da realidade, trata-se de um caso analisável pela TAR ou pela

“Sociologia da Tradução”, pois a máquina em questão, ao longo de seu deslocamento,

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começa a representar diferentes papéis e a implicar também papéis diferentes para todos os

outros atores a quem estava conectada, na rede que lhe dava sustentação. Ocorreu uma

mudança naquilo que foi transferido e também nas relações daqueles envolvidos. A

“transferência” da máquina da Suécia até a Nicarágua ocasionou traduções que fizeram

emergir novas relações. “A rede de atores não somente depende de outros, como cria

outros” (Law, 1997, p. 13). Quando as traduções se operam, através da cadeia de

mediadores por que passam os elementos, são as conexões das redes que vão oportunizando

o trabalho da diferença.

Para refletir sobre as questões acima colocadas, ou seja, da conservação e da mudança,

do local e do global, do micro e do macro, utilizaremos a TAR por entendermos que estas

dicotomias se prestam mais ao encobrimento do que ao entendimento dos fenômenos com

os quais nos deparamos na realidade. É a mesma Teoria Ator-Rede, assim como o conceito

de tradução, que nos servirão de inspiração para pensarmos a questão da pipa como objeto

sociotécnico, da pipa como um fe(i)tiche e das aprendizagens realizadas através da

brincadeira de pipa, servindo também como linha mestra para metodologia que

pretendemos utilizar.

A Teoria Ator-Rede nasceu no interior de um campo chamado Estudos da Ciência e

Tecnologia e vem sendo trabalhada, desde os anos 80, para atender ao Princípio de Simetria

instaurado pela Antropologia das Ciências. Consiste em manter, sob o mesmo arcabouço de

análise, elementos humanos e não-humanos, evitando toda a visão compartimentalizada da

realidade. Em linhas gerais, a Teoria Ator-Rede defende a idéia de que, se os seres

humanos estabelecem uma rede social, não é porque eles interagem apenas com outros

seres humanos, mas é porque interagem com outros materiais também. A composição do

que chamamos de social não se deve simplesmente a pessoas, mas igualmente a máquinas,

animais, textos, dinheiro, arquiteturas, laboratórios, instituições... A TAR permite

verificarmos uma multiplicidade de materiais heterogêneos conectados em forma de uma

rede que tem múltiplas entradas, está sempre em movimento e aberta a novos elementos

que podem se associar de forma inédita e inesperada. Todos os fenômenos são efeitos

dessas redes que mesclam simetricamente pessoas e objetos, dados da natureza e dados da

sociedade, oferecendo-lhes igual tratamento.

A Teoria Ator-Rede acrescenta à noção matemática de rede a noção de ator que poderia

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ser-lhe completamente incompatível, se imaginamos que apenas o elemento humano pode

ter agência. Segundo Latour (1996b), a rede, tal como é concebida na matemática, é traçada

por alguém - um matemático ou um engenheiro. Na Teoria Ator-Rede, é uma entidade

híbrida quem realiza o traçado: nem peça inerte de matéria sendo moldada, nem mãos

autônomas realizando um plano pré-concebido, mas ambos conectados produzindo um

efeito que nunca é definitivo. Por isso, as redes são sociotécnicas.

Para clarificar a noção de rede e dissolver mal-entendidos, Latour (1996b, 2003),

propõe definir esta entidade pelo que ela não é:

• Não é uma rede técnica como as redes de esgoto, as redes telefônicas, as redes

ferroviárias, as redes de computadores. Estas podem ser consideradas metáforas para as

redes em questão, mas são apenas o produto final das conexões, um estado estabilizado

de várias associações de elementos.

• Não se propõe a ser uma rede de atores exclusivamente humanos como se poderia

pensar no caso das instituições, das organizações, dos estados e nações, pois estes

freqüentemente se remetem às relações entre atores humanos e não levam em conta os

elementos não humanos.

• Também não se propõe a ser uma rede de significações, de informações, nem se refere à

rapidez de contato sem intermediários, pois ela inclui a matéria de que são feitos os

mediadores destas conexões.

Em suma, a Teoria Ator-Rede faz uso de várias propriedades das redes mencionadas acima,

mas acrescenta um ator ao trabalho. Aliás, como já comentamos em capítulo I, a palavra

ator torna-se inadequada, pois nas teorias sociais ela freqüentemente designa o ator

humano, com intenções e desejos. A palavra actante cabe melhor na TAR porque significa

algo que produz ou que sofre algum tipo de efeito, algo que pode ser a fonte de uma ação,

sem implicar numa motivação especial de atores individuais humanos.

Latour (1996b) segue defendendo as vantagens da utilização das descrições em redes

para descrever os fenômenos da realidade:

• A questão longe/perto. Pela utilização de redes, podemos livrar-nos da tirania da

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distância e da proximidade. O que se valoriza nas redes é a conectabilidade entre seus

elementos, mais do que a sua proximidade. Tomando emprestado o exemplo utilizado

por Latour (ibidem), posso estar mais próxima de minha mãe quando falo com ela ao

telefone, do que estou de alguém que está bem ao meu lado na cabine de onde faço uma

ligação de longa distância. Ou, em outro caso, as tubulações de água e eletricidade

podem estar próximas em centímetros e completamente distanciadas, pois, uma vez

paralelas, nunca se conectarão. Em suma, há elementos muito próximos que podem

resultar remotos porque não estão conectados, assim como pode acontecer de elementos

estarem muito distanciados geograficamente, mas de estarem altamente associados e,

portanto, muito próximos. As distâncias que têm separado uma versão de pipa de outra

não têm sido suficientes para causar o estranhamento daqueles que dela fazem uso. Em

qualquer versão, a pipa será reconhecida como aquele objeto voador que se presta a

associar humanos e não humanos na tarefa de elevar-se ao ares.

• A questão grande/pequeno. A noção de rede permite dissolver a distinção da escala

pequeno/grande, pois uma rede nunca é maior que outra: ela é mais duradoura ou mais

intensamente conectada. De acordo com o modelo vigente, a sociedade é vista sob a

ótica de uma base e de um topo, de um micro e de um macro-social, pressupondo

formas de estudo diferenciadas para cada um desses níveis, o que torna completamente

irrelevante seguir o movimento de um elemento que vai do individual ao coletivo e

vice-versa. O modelo de redes recupera uma margem de manobras sem que tenhamos

que escolher entre o nível local e o nível global, permitindo pensar uma entidade global,

altamente conectada, que permanece sempre local. O que interessa é seguir um dado

elemento, descobrindo o número de conexões que ele mobiliza: se altamente conectado

a ponto de tornar-se estratégico ou se fracamente conectado a ponto de tornar-se sem

importância e correr o risco de extinção. As pipas, por exemplo, têm resistido a este

risco porque provavelmente são mantidas por redes informais que são mais fortes do

que as tentativas organizadas para decretar-lhes o desaparecimento. Pelo fato de terem

uma ontologia que envolve diferentes facetas, estes objetos estão sempre fazendo novas

e inesperadas conexões que lhe permitem a sobrevivência, sempre buscando uma nova

tradução: pipas como objetos sagrados, pipas como suportes de invenções, pipas como

objetos lúdicos, pipas como suportes de aprendizagens, pipas como parceiras nas

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campanhas de preservação ambiental são algumas dessas inúmeras facetas.

• A questão dentro/fora. Nas redes, não há um dentro, nem há um fora, nem há bordas,

nem sombras. Não se trata de pensar as redes como superfícies planas, nem

bidimensionais ou mesmo tridimensionais. As redes podem ser pensadas como tendo

tantas dimensões quantas conexões existirem entre seus elementos. Os objetos são

analisados pela quantidade de conexões que os sustentam nas redes: os objetos mais

fortes e estáveis, porque possuem maior capilaridade, são chamados por Latour (2004)

de “cabeludos”, enquanto que “carecas” são os objetos fracamente vascularizados, de

poucas conexões, podendo estar sujeitos ao desaparecimento. A partir da idéia de redes,

torna-se possível descrever uma sociedade complexa que não mais pode ser capturada

pelas noções de níveis, camadas, categorias, estruturas (Latour, 1996b). A partir desta

argumentação, pela maior probabilidade de estabilização do que de extinção, encaramos

a pipa como um objeto “cabeludo”, altamente conectado, rico em associações que lhe

permitem assumir sempre novas traduções em cada cultura e em cada área em que

verificamos os seus efeitos.

Definir se uma determinada interação está no âmbito do local ou do global seria pura

perda de tempo, segundo Latour (2006), pois é completamente desnecessário traçar uma

distinção desta natureza. Como vimos também no capítulo I, as interações humanas

misturam elementos de diferentes dimensões em função dos tempos e espaços que trazem à

cena onde se efetuam os contatos. Um Estudo Ator-Rede terá como tarefa re-situar o

global, seguindo o traçado feito pelos objetos através do processo de delegação56.

É importante destacar que a idéia de rede não funciona para designar o que já está

cartografado, mas refere-se ao movimento mesmo de cartografar o traçado dos atores,

flagrado durante o estudo, mais ou menos da mesma forma como fazem os entomologistas,

através da construção de pontos por onde passam as formigas, tornando possível estudá-las

sem interferir nos seus deslocamentos.

A relação micro e macro, segundo Latour (ibidem), pode ser considerada de duas

maneiras diferentes: uma que se assemelha ao encaixe das bonecas russas, em que o

56 Ver, no capítulo VII, a delegação como um dos quatro significados de mediação sociotécnica.

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pequeno está contido no maior; outra que pensa a relação em termos das conexões

estabelecidas, ou seja, o que é pequeno é o pouco conectado, enquanto que o que é grande

tem a vantagem de estar intensamente ligado. Para a TAR, o global não é visto como um

lugar mais vasto que contém lugares menores, mas um outro site, tão local quanto qualquer

outro, só que se nutrindo de uma rede mais densa.

Ainda de acordo com o autor (2006), fazer um Estudo Ator-Rede significa capturar

essas conexões sem decidir antecipadamente em qual escala deverão encaixar os eventos

estudados. Essa tarefa caberia somente aos atores, uma vez que, em seus comportamentos,

vão poder inadvertidamente mobilizar poucas ou muitas conexões, do entorno mais

próximo à humanidade inteira, dependendo se são capazes de negociar compromissos mais

locais ou mais globais. Observar essa variação de escala e os deslocamentos de um quadro

de referência a outro é o trabalho do pesquisador ao traçar as redes que está acompanhando.

Pensemos no exemplo da pipa mobilizando interações entre brincantes de uma cidade

do interior de Minas Gerais. Os meninos brincam nas ruas com seus pares e seus

brinquedos numa interação que poderíamos tomar por local. Mas até onde? Até quando?

Dispondo de uma tecnologia milenar que se deslocou desde o Oriente até as Américas,

tomando as situações em que são vigiados por um veículo da polícia, quando noticiamos o

evento em que o cerol da linha de uma pipa atinge um motoqueiro, ou mesmo quando

ocorrem acidentes com a fiação elétrica, toda uma quantidade de actantes surge em cena:

um menino sofre um acidente fatal quando tenta puxar a linha de uma pipa presa num fio

de alta tensão e torna-se assunto de destaque na reportagem de um telejornal veiculado em

cadeia nacional, ao que se segue a necessidade de empreender campanhas para conter o uso

do cerol, lideradas, em sua grande parte, pelas companhias de energia elétrica que se

mobilizam, divulgando, uma vez mais, as normas de segurança para soltar o tão amado

papagaio. É desta forma que uma escala muito mais ampla é configurada porque se

estabeleceram muito mais associações, ficando o evento, portanto, passível de se situar num

nível macro. Um outro exemplo muito comum dessa variação de escalas entre o micro e o

macro pode ser mobilizado: se a operação de resgatar a pipa presa num cabo de alta tensão

resulta em um “apagão”, como é possível de acontecer nos meses da temporada, de uma

interação local entre meninos tentando se divertir nas suas folgas, passa-se a algo que pode

interferir na vida de toda uma cidade. Essa mudança súbita de escala também pode ser

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observada quando um festival de pipas é organizado numa cidade pequena e, em dado

momento, alguns de seus participantes trazem em conversas a lembrança de uma

reportagem que viram na TV, em um lugar do outro lado do globo, mostrando um festival

realizado em torno do papagaio: eles deslocaram para um contexto micro uma escala macro

do fenômeno vivido, conectando-se à experiência de outros que elegeram o mesmo

brinquedo, apesar das diferenças que cada um dos objetos, no seu respectivo contexto, foi

capaz de apresentar. O elo que une essas cenas, às quais poderíamos atribuir uma dimensão

local ou global, está exatamente nos objetos que receberam a delegação para perenizar no

tempo e no espaço uma ação idêntica de atores tão distantes.

Para Latour (2006), o nível “macro”, ou seja, com alto grau de abrangência, só pode ser

alcançado estatisticamente. Chama de panoramas a essas tomadas empíricas que tudo vêem

e nada vêem, dando a impressão de ter o controle total sobre o que está sendo observado.

São, segundo o autor (ibidem), uma oportunidade de ver “toda a história”, mas nos deixam

privados de ver o que ocorre nas interações locais, em seu pleno acontecimento. Nestas, a

que o autor nomeou de oligópticos, o expectador tem a impressão de que são interações

face a face onde não há nenhuma mediação artificial. No entanto, essas interações não

param de mostrar suas fragilidades, apontando para a falta de controle que temos sobre as

inúmeras mediações que fazem parte das redes que lhe permitem a emergência.

Ao fazer um Estudo Ator-Rede do objeto, será necessário, conforme Latour (2006),

prestar atenção nas redes que lhe permitem a existência, assim como nas diferentes

maneiras pelas quais este objeto pode eventualmente renovar o repertório já padronizado

das interações sociais.

As categorias dentro/fora, perto/longe, grande/pequeno, em cima/embaixo, local/global,

na TAR, são substituídas pela idéia de associações e conexões com as quais podemos

qualificar elementos que não são de origem exclusivamente natural, social ou técnica. A

TAR nos fala de todos os tipos de atores que são criados pelas múltiplas conexões que

estabelecem e são mantidos pelas redes que performam. Diferentemente do enfoque

dualista e fazendo jus ao Princípio de Simetria Generalizada, a TAR é marcada por

múltiplas associações e múltiplas entradas num campo de tensões onde a síntese não é um

resultado necessário. As identidades dos atores, assim como suas propriedades, também não

são dadas de uma vez por todas: serão sempre apostas nesse campo de tensões

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heterogêneas, passíveis de modificações pela entrada de novos elementos em conexões

inesperadas. Nas palavras de Law (1997), com a TAR, “estamos no campo de criação de

ligações, de sua produção, de trazê-las à existência de forma mais ou menos bem

sucedida... Estamos no campo da produção de nossos objetos de estudo, de produzir

realidades e conexões entre essas realidades” (p. 16)

Como já mencionamos no capítulo anterior, a TAR também é conhecida como

“Sociologia da Tradução” (ibidem), pois se preocupa em investigar como alguns tipos de

interação conseguem estabilizar-se e reproduzir-se mais do que outros; como atores e

organizações mantêm unidos os elementos que os constituem; como os elementos de uma

rede vão se mesclando, se modificando, se complexificando, fazendo novas conexões e se

estabilizando em alguns resultados provisórios, entre eles aquilo a que chamamos de

sociedade. Neste trabalho, a pipa para nós é um objeto emblemático para entender como se

articulam as redes que lhe dão sustentação. Trata-se da análise de um caso particular que

pode nos ajudar a entender, pela metodologia da TAR, como fenômenos semelhantes

ocorrem em outras áreas, ou pode simplesmente ser apenas válido para o fenômeno em

questão, levando-se em conta os elementos que estão envolvidos.

Law (1997), assim como Latour (2000), defende a idéia de que toda teoria congela um

esforço de conhecer a realidade, valendo-se para tanto de uma série de traduções. A

tradução é um processo que ocorre em cadeias que deslocam interesses, objetivos,

enunciados, imagens, em que os elementos vão passando de um lugar a outro, de uma rede

a outra, tornando-se muito diversos do que eram no início. A própria TAR sofre

transformações quando nós a colocamos em um lugar diferente, ligando-se a outras teorias,

introduzindo outros elementos, fazendo novas conexões. Com a TAR, estamos lidando com

práticas diversas e locais, ao invés de ficarmos amarrados a uma prática que se pretende

única e universal. O entendimento da noção de redes pode estar muito próximo da noção de

estrutura, mas dela difere basicamente porque, nas redes, as ligações não estão previstas

nem garantidas: elas precisam ser descobertas e podem acontecer de forma inesperada.

Além do mais, a noção de redes tenta romper com toda a fixidez que pode ser preconizada

com a noção de estrutura.

A Teoria Ator-Rede e a noção de tradução se reforçam mutuamente e não podem ser

vistas separadamente, constituindo-se numa resposta às questões colocadas pelos estudos

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sobre a ciência e tecnologia, uma vez que, dentro do Princípio de Simetria Generalizada,

passa-se a considerar os actantes (humanos e não humanos) em suas ontologias variáveis

numa trajetória que é reticular.

A idéia de tradução que inspira a TAR conjuga dois movimentos: o de associação (pelas

conexões estabelecidas nas redes) e o da ação (através das cadeias de tradução que vão

produzindo a diferença). A tradução significa deslocamento, desvio de rota, invenção,

mediação, criação de um elo que não existia antes, dando espaço para a emergência da

novidade e enfatizando a atividade de fabricação e circulação de enunciados. Devido a esse

transporte, a tradução implica, ao mesmo tempo, em similaridade e em diferença: algo se

mantém e, ao mesmo tempo, algo se desloca e se modifica. Por essa razão, Law (1997) diz

que toda tradução também é traição, pois nunca haverá uma representação definitiva da

parte da realidade que se deseja capturar. A busca de constância apontará para as

semelhanças, para a manutenção de um padrão, mas o próprio movimento de tradução

implicará em deslocamentos e modificações. É nessa tensão que trabalha a Teoria Ator-

Rede.

Os jogos tradicionais cabem bem no espírito das descrições feitas pela TAR em que as

similaridades e diferenças vão se desdobrando em cadeias de tradução. Eles são

caracterizados pela manutenção e pela mudança nas suas manifestações. Podemos constatar

ao redor do mundo as inúmeras traduções por que passam os jogos ditos tradicionais. Há

um padrão que se mantém minimamente estável e que nos permite reconhecer o jogo, assim

como há mudanças que vão ocorrendo nos ambientes em que vai sendo encontrado,

assumindo novas feições, de acordo com a cultura, com os grupos de brincantes, com a

geografia e as condições materiais do lugar, de acordo com as conexões que vai

estabelecendo na rede. Ao passar de mão em mão, o jogo/brinquedo é traduzido e passa a

ter uma autoria coletiva, indo de um enunciado local a outro de implicações gerais e vice-

versa.

A pipa passa por um movimento de tradução semelhante. Sempre reconhecida como

uma armação revestida por material que faz resistência ao vento e que pode ser lançada ao

ar presa por um fio, a pipa comporta uma grande variedade de versões: nos tamanhos,

formas e denominações que assume, nos materiais empregados para a construção de sua

“vela” (seda, algodão, papel, plástico, nylon) e da sua estrutura (bambu, vime, fibra de

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carbono...). Por essa razão, escolhemos usar a denominação pipa ou, por vezes, papagaio,

mesmo sabendo que outras denominações apontem para variações em suas formas,

conferindo-lhe versões diversas.

Como objeto sociotécnico, a pipa tem inspirado diferentes traduções nos diversos

grupos de humanos pelos quais vai passando. Classificada como uma brincadeira

tradicional e de rua, ela é sustentada por redes que a mantêm a revelia de todas as apostas

em sua extinção. Um objeto datado de milênios, que hoje é tido como proeminentemente

lúdico, conserva em aberto a controvérsia sobre a sua existência.

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GALERIA DE IMAGENS DO CAPÍTULO III

Mapa provável da difusão da pipa pelos continentes.

“La Cometa”, quadro do pintor Francisco Goya.

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CAPÍTULO IV

PARTE 1. SEGUINDO AS PIPAS COM A METODOLOGIA DA T.A.R.

Pipa, pra subir, tem que estar amarrada na ponta de uma linha. E a outra ponta é uma mão que segura. É assim que a pipa conversa; através da linha. A mão puxa a linha e sente a linha firme, puxando pra cima, querendo ir. É a pipa dizendo: “Me deixa ir um pouco mais...” Mas se a linha responde frouxa, é a pipa dizendo que está sem companheiro, o vento foi embora, e ela quer voltar para casa... (ALVES, 2002, p.10)

Regras e princípios metodológicos

As regras e princípios e metodológicos aqui discutidos estão diretamente implicados

com a metodologia da Teoria Ator-Rede que, segundo (Latour, 1996b), foi concebida pela

fusão de três eixos de preocupação que legitimam uma prática de estudo integrada, levando

em conta: 1. todas as entidades que atuam nas redes, constituídas de material heterogêneo,

destacando a simetria entre os elementos humanos e não humanos; 2. o traçado das próprias

redes, em sua dinâmica particular, pelas cadeias de tradução e, finalmente, 3. um quadro

metodológico para registrar tal construção. Em capítulos anteriores e posteriores a este, nos

ocupamos dos itens 1 e 2. Iremos, neste capítulo, ao longo dos seus dois segmentos, nos

dedicar à discussão dos aspectos metodológicos compatíveis com a TAR para dar conta da

tarefa de seguir as pipas em ação e verificar os efeitos por ela produzidos. Neste primeiro

segmento, trabalharemos os princípios e regras metodológicas que inspiram um Estudo

Ator-Rede, as astúcias de que um pesquisador frequentemente lança mão neste processo de

pesquisa e um esboço geral do que foi o nosso seguimento das pipas. No segundo

segmento, levantaremos alguns pontos que, numa comparação com as estratégias habituais

de fazer pesquisa, podem se constituir em controvérsias.

Cientes de que as opções epistemológicas estão subjacentes aos métodos e técnicas,

propomo-nos a seguir uma “ciência em ação”, tomando, para tanto, como marco inicial, os

princípios e regras metodológicas lançadas por Latour (1985, 1996b, 1997, 2000, 2003).

Nestes textos, o autor aborda mais extensamente a tarefa daqueles que constroem fatos e

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artefatos, assim como rediscute o papel dos pesquisadores à luz de princípios e regras que

buscam ser simétricas para todos aqueles envolvidos nos eventos de fabricação.

Quando escreve “Vida de Laboratório” (1997) em parceria com Steve Woolgar, Latour

assume a noção de simetria como base moral de seu trabalho. A busca de explicações

simétricas implica, como já temos visto, na recusa de várias distinções: entre o que emerge

do social e o que emerge da técnica; entre fatos e artefatos; entre fatores externos e fatores

internos como ponto de partida para o entendimento da gênese de fatos e artefatos; entre

senso comum e raciocínio científico... Situando-se numa perspectiva simétrica, o

pesquisador é definido como resultante dos conflitos de apropriação ocorridos no contexto

do laboratório ou campo de estudo, como ponto de uma vasta e heterogênea rede de

elementos.

Para o autor (ibidem), existe, no debate histórico, a tendência de que os fatos

construídos sejam vistos como fatos descobertos, obscurecendo as circunstâncias que

permitiram a sua emergência enquanto uma construção57. A idéia da criação de fatos,

enquanto ficções científicas convincentes, aplica-se tanto à atividade dos pesquisadores em

laboratório, como aos pesquisadores de outros campos. Nestes, ao invés do laboratório, o

pesquisador tem o texto como lugar de suas experiências, utilizando-o para construir uma

descrição, para colocar em cena conceitos e personagens, para invocar fontes e relacionar

argumentos. Com estas ações, pretende-se diminuir a desordem do mundo pela proposta de

enunciados mais verossímeis que outros dentro de uma determinada controvérsia. Para criar

ordem a partir da desordem, o pesquisador começa por penetrar em seu campo de estudo às

apalpadelas para, lentamente, do ruído e da confusão, fazer emergir “bolsões de ordem”

(1997, p. 290)58.

57 Por esta razão, fizemos a opção de não separar o que Despret ((2002) chama contexto de justificação do contexto de descoberta. Referenciais teóricos aparecem, em nosso texto, misturados com os dados coletados com os quais operamos as nossas reflexões sobre a pipa. Assim, tentamos nos manter coerentes com a idéia de não fazer separações entre a fabricação dos fatos e suas circunstâncias. 58De acordo Latour (1997, p. 288), inspirado em Serres, esta relação ordem/desordem é bastante familiar aos biólogos, segundo os quais a própria vida é resultado da bricolagem, do acaso, da mutação e da desordem.

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A única forma de fazer uma organização emergir da desordem, defende Latour

(ibidem), é conservar um traço através de uma inscrição59. Fatos e artefatos, pela ação de

cientistas e engenheiros, surgem por meio da produção constante de um foco de

organização criado a partir da desordem. Todo o conhecimento produzido na história da

ciência seria fruto do trabalho de mobilização e transporte de inscrições, fazendo com que

pessoas, acontecimentos e lugares sejam levados aos centros de acumulação (CA)60. A

forma de tornar possível esta operação é a invenção de meios que tornem estes elementos

(a) móveis para que sejam transportados, (b) estáveis para que não se distorçam, nem se

decomponham, (c) combináveis para que possam ser agregados ou embaralhados como um

maço de cartas61.

Pesquisar necessariamente coloca-nos numa tomada de posição diante de caixas-

pretas62, seja para acompanhar as controvérsias que as encerram, seja para acompanhar as

controvérsias que as reabrem. Será tarefa do pesquisador, que aparece como meta-regra

inegociável, permitir a não especialistas o acompanhamento de uma controvérsia, por mais

tempo e de forma mais independente, mostrando o máximo possível como os elementos se

interligam uns com os outros, de como se articulam em redes mais – ou menos – extensas,

através de ligações mais – ou menos – fortes (LATOUR, 2000).

59Uma inscrição é uma operação material de criação de ordem em que se produz um híbrido que diz alguma coisa, que oferece informações (imagens, gráficos, textos), usadas como camada final em um texto científico (LATOUR, 1985, 1997, 2000). 60Os centros de acumulação são locais onde: (a) acumulam-se inscrições para que tudo se torne familiar, finito, próximo e útil; (b) faz-se o trabalho de intensificar uma das três características das inscrições: mobilidade, estabilidade, permutabilidade. É desta forma que o conhecimento transita, indo e voltando dos centros de acumulação, numa rede de materiais muito heterogêneos, com o objetivo de atuar à distância (LATOUR, 1997, 2000). 61Este é o processo de criação dos “móveis imutáveis”, composto pelas sete astúcias do pesquisador (LATOUR, 1985, 2000, 2003), como veremos mais adiante. 62Como já apontado, uma caixa-preta é quando um fato ou um artefato é dado como pronto, adquirindo uma estabilidade provisória na medida em que cessam as controvérsias ao seu redor. Diz-se então que fechamos a caixa e ela assim permanecerá enquanto fato e artefato funcionarem bem. Se alguma coisa deixa de funcionar ou se algo ou alguém ficou excluído, voltamos às controvérsias e reabrimos a caixa (LATOUR, 2000).

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Dentro da perspectiva de um conhecimento construído em redes, explicitaremos os

“princípios” e, posteriormente, as regras metodológicas63 deles decorrentes, tentando

sempre fertilizar a discussão no campo de estudo da psicologia que é onde se situa o

seguimento de nossa ação.

Princípios:

1. Os fatos são construídos coletivamente: passam de mão em mão, se deformam e se

traduzem, dificilmente mantendo-se estáveis e inalterados. Nas fabricações

realizadas pela ciência e pela tecnologia, não há objeto ou teoria que não passe por

várias mãos e se valha de elementos heterogêneos (humanos e não humanos) que

trocam propriedades, fazendo-se e refazendo-se incessantemente. A pipa, nosso

objeto de estudo, é um objeto que, ao passar de mão em mão, vai se modificando ao

mesmo tempo em que produz diferentes efeitos, evidenciando uma história de

traduções que faz do global e do local meras variações de escala. É esse caráter

coletivo das fabricações que lhe confere legitimidade. Este princípio implica

diretamente na primeira regra metodológica.

2. Os objetos novos emergem como sobreviventes dos testes de força a que são

submetidos e têm os cientistas e engenheiros como seus representantes. São

“construções” cuja existência pode ser posta em dúvida64. O pesquisador é, antes

de tudo, um fabricador de fatos: mobiliza partes da realidade para transportá-la,

combiná-la e recombiná-la nos centros onde se acumulam as informações. É

paradoxal, no nosso caso, afirmar que um objeto de aproximadamente três mil anos

possa se constituir em um objeto novo. Entretanto, a pretensão de lançar um foco de

luz sobre um objeto, ao mesmo tempo banal e potente na mobilização de conexões

tão duráveis, pode vir a torná-lo um objeto novo pelas controvérsias que se

instauram ao seu redor. A pipa tem resistido com bravura aos testes de força que lhe

63Segundo Latour (2000, p. 36), os princípios são “os fatos empíricos que temos em mãos”, gerando decisões quanto à forma de considerá-los. Estas decisões constituem as regras metodológicas tomadas como necessárias para o estudo deste campo que o autor chamou de “ciência, tecnologia e sociedade”. 64A pesquisa, como qualquer outro campo agonístico em que há forças se digladiando, tem a ação do pesquisador orientada para um “campo” que não se confunde com um território, mas toma a forma de uma rede por onde o pesquisador deve viajar. Colocamo-nos à prova como representantes daquilo em nome de que falamos, ou seja, da controvérsia que testemunhamos. A controvérsia será ganha se conseguirmos reunir num ponto o maior número de aliados (LATOUR, 1997, 2000).

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atribuem uma condição de obsolescência ou que lhe decretam a extinção. Um objeto

novo, segundo Latour (2000), freqüentemente emerge como uma formação

complexa a partir de articulações inéditas com outras disciplinas, pela importação

de objetos já sedimentados que foram novos em algum ponto do tempo e do espaço.

Este princípio se desdobra diretamente na segunda regra metodológica.

3. Estudar/descrever fatos e máquinas é a mesma coisa que entender a tessitura das

redes que lhes dão sustentação em suas associações mais fracas ou mais fortes.

Quando estudamos/descrevemos os movimentos da pipa, certamente estamos

estudando e descrevendo a tessitura das redes que lhe permitem continuar existindo;

estaremos falando da história dos elementos humanos e dos elementos não humanos

que estão envolvidos nas várias traduções pelas quais tem passado e vai passando

em tempos e espaços diversos: estaremos falando ao mesmo tempo de uma natureza

e de uma sociedade que aparece como uma estabilização dessas redes. Este

princípio está ligado à terceira e a quarta regra metodológica.

4. Quanto mais esotérico o conteúdo da ciência e da tecnologia, mais elas se

expandem externamente. A questão dentro/fora das redes encontra aqui uma

possível tradução, pois quando o conteúdo da ciência e tecnologia se supõe

esotérico, a salvo de pressões externas, é quando ele faz pressão para vazar pelas

bordas da rede. Não há conteúdo científico ou tecnológico que sobreviva

enclausurado: para não sucumbir ao esquecimento, sempre transbordará e se

expandirá externamente. Obviamente, a pipa está longe de fazer parte de um

conhecimento esotérico, pois, na condição de um jogo tradicional e de rua, ela se

populariza e se difunde à semelhança de um contágio.

5. Os fatos duros não são regra, mas exceção, devendo-se perguntar sempre quem

será atacado ou alijado por eles. Quando abrimos as caixas-pretas, quando nos

propomos a pesquisar um assunto, estaremos abrindo e/ou reabrindo controvérsias e

pondo a dureza dos fatos à prova, uma vez que eles são também uma fabricação65.

A diferença é que, tornando-se consensuais, aceitos e produtores de efeitos, esses

fatos, que se tornaram pontos de passagem obrigatória, tornam-se fatos mais difíceis

65Que, uma vez feita, também pode ser desfeita, bastando que as associações que compõem essa rede se enfraqueçam.

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e mais caros quanto ao desafio de sua veracidade. A pesquisa é uma oportunidade

de testar os fatos duros, de promover um movimento para dissolver preconceitos,

para abrir e acompanhar controvérsias, para produzir novas inscrições que possam

ser confrontadas com as já existentes, para eventualmente criar objetos novos. Este

princípio tem implicação direta nas regras metodológicas 5 e 6.

6. A história da tecnociência é, em grande parte, a história dos recursos espalhados

ao longo das redes para acelerar a mobilidade, a fidedignidade, a combinação e a

coesão dos traçados que possibilitaram a ação à distância. São os recursos

espalhados por essas redes que mantêm apertados os nós da rede por onde transita o

conhecimento acumulado. É o trabalho de pesquisa e de produção de inscrições que

possibilita esta ação à distância que mantém juntos os aliados envolvidos numa

controvérsia. Este é o princípio que inspira a sétima regra metodológica.

As regras metodológicas propostas por Latour (2000) serão um norte na abordagem de

um campo de estudo dificilmente previsível, raramente estático e, em alguns casos,

ontologicamente mutável. São estas regras que possibilitam flexibilizar a nossa postura

enquanto pesquisadores, assumindo que o mundo é muito mais “bagunçado” do que

imaginamos, quando temos a pretensão de fazer da metodologia uma prescrição de higiene

(LAW, 2003).

Regra 1: Estudar a ciência/ tecnologia em ação e não a ciência ou a tecnologia pronta. Ou

chegamos antes que fatos e máquinas se tenham transformado em caixas-pretas (CP), ou

acompanhamos as controvérsias que as re-abrem. Devemos, nesse seguimento, superar

duas limitações: a da organização por disciplina e a da organização por objeto.

Essa regra nos leva a perguntar sobre o que fazer com as caixas-pretas da Psicologia.

Podemos pegá-las, usá-las e fortalecê-las. Podemos rejeitá-las e assim re-abrir

controvérsias. Ou podemos transformá-las de tal modo que as deixaremos irreconhecíveis.

Para tanto, a Psicologia pode abrir um campo inesgotável de estudos, agregando outros

aliados, expandindo suas fronteiras e seus campos de pesquisa. A ação de pesquisar não

estará encerrada numa perspectiva disciplinar, pois as conexões das redes que sustentam

um determinado objeto de estudo poderão ser imprevistas e díspares. O seguimento da ação

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de um objeto como a pipa, por exemplo, estará sujeito a transpor as barreiras que

artificialmente se traçaram entre a as várias histórias: da tecnociência, da religião, da

infância, do brinquedo, do comércio, do folclore, da aviação, das guerras...

Regra 2: Não procurar qualidades intrínsecas, mas as transformações que um fato ou

afirmação sofre nas mãos de outros.

Como efeitos desta regra metodológica para a Psicologia, não podemos mais entender

como qualidades intrínsecas de uma entidade, o seu modo de estar no mundo, de agir e de

relacionar-se, a sua cognição e a sua forma de emocionar-se. Será preciso examinar os

muitos modos como estas “qualidades” emergem após o estudo da rede que lhes dá

sustentação. Só então poderemos trabalhar com a idéia de que algo foge à descrição das

redes. Nem pessoas, nem objetos - para pensar simetricamente - possuem qualidades

intrínsecas, mas são o resultado provisório de estabilizações que as redes lhes

possibilitaram, através das conexões que performaram. A pipa não é um objeto em si, mas o

que fizeram dela nas suas várias traduções, sempre numa tensão de algo que se mantém e

de algo que vai se modificando.

Regra 3: Não poderemos utilizar um efeito ou uma conseqüência como causa para a

solução da controvérsia.

Nas diversas caixas-pretas fabricadas pela Psicologia, é comum fazermos um movimento

pendular entre o que é provocado por uma natureza básica e inerente ao nosso aparato

biológico e as explicações que fazem recair todo o peso num social dado previamente. Por

esta regra metodológica, não podemos tomar a natureza para explicar como são os

indivíduos, pois ela é apenas um elemento entre vários, na rede que os constitui. A própria

natureza já é uma estabilização provisória em um campo agonístico. Igualmente serão

pessoas e objetos numa rede que mescla muitos outros elementos, inclusive a natureza.

Regra 4: Não podemos usar a sociedade como causa para explicar uma controvérsia.

Devemos considerar simetricamente os esforços para alistar humanos e não humanos.

Em continuidade com o raciocínio anterior, a sociedade não está previamente dada e não é

construída de uma vez e para sempre. Portanto, se levarmos em consideração pessoas e

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objetos como nós na rede, o social não pode ser considerado como causa a priori das ações,

na relação que esses elementos estabelecem uns com os outros. Nessa construção em rede,

outros elementos - que não só humanos - jogam na constituição das singularidades. Objetos

assim como pessoas têm um papel decisivo nesse processo. Para o Princípio de Simetria

que orienta a metodologia da TAR, não faz sentido colocar pessoas de um lado e objetos do

outro, quando realizamos um estudo. A TAR nega que as pessoas sejam necessariamente

especiais principalmente porque se abre a questão sobre o que queremos dizer quando

falamos de pessoas (LAW, 1992).

Regra 5: Como pesquisadores, devemos ser tão indefinidos quanto os vários atores que

seguimos. Sempre que houver a diferença interior/exterior, devemos acompanhar os dois

lados simultaneamente, incluindo a todos que realizam o trabalho.

A indecisão ou indefinição pode ser entendida como uma ausência de pré-julgamentos na

tentativa de entendimento dos fenômenos que aparecem como sendo da alçada da

Psicologia. Se os atores acham que alguma coisa não é consistente, que é controversa ou

artificial, nós também o devemos fazer, inclusive com relação a controvérsias históricas já

resolvidas. É esta postura que garante a possibilidade do estranhamento do rotineiro e a

emergência de um objeto novo. As teorias fabricadas pela Psicologia podem ser caixas-

pretas, mas estarão sempre passíveis de serem re-abertas. Acrescente-se que o abandono da

dicotomia interior exterior para o entendimento dos fenômenos pela metodologia da TAR

também resulta em conseqüências vitais para a psicologia. O que é exterior ao sujeito que

não encontre uma tradução em sua maneira de ocupar um nó na rede? O que é interior ao

indivíduo que não tenha uma expressão/tradução nas relações que estabelece na rede?

Regra 6: Diante da acusação de irracionalidade, não olhamos para qual regra lógica foi

infringida, nem que estrutura social poderia explicar a distorção, mas sim para o ângulo e

a direção do deslocamento do observador, bem como para a extensão da rede que assim

está sendo construída. Não devemos tomar posição a respeito da ir/racionalidade, mas

considerar o movimento do observador em relação ao observado.

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Esta regra produz uma mudança na postura assimétrica que a Psicologia tem tomado ao

longo de toda a sua história com relação ao desvio66 e à diferença. O que é visto como

transtorno/doença passa a ter outra abordagem sob a ótica das redes, pois, ao invés de

decretar o que é lógico ou ilógico gerando uma postura de segregação e patologização,

passaremos a verificar a sócio-lógica das associações: (a) como são feitas as atribuições de

causas e efeitos; (b) que pontos estão interligados; (c) que dimensões e que força têm essas

ligações; (d) quem são seus porta-vozes; (e) como os elementos são modificados durante a

controvérsia (LATOUR, 2000, p.331).

Tanto os pesquisadores como os objetos que emergem das redes que estudam

estarão passíveis de modificações durante a controvérsia, abrindo-se a possibilidade de

questionar os a priori de todos os lados. Poderemos considerar como controvérsia no

campo da Psicologia os vários tipos de ação do psicólogo em cada caso - um processo

diagnóstico, um processo terapêutico - enfim todas as oportunidades que oferecem a chance

da abertura de caixas-pretas67. A “saúde” ou a “doença” mental como objeto da Psicologia

perderia a sua força em prol do estudo das redes que dão sustentação à pluralidade dos

casos, ou à variedade de outras temáticas que se nutrem de áreas do conhecimento para

além das fronteiras disciplinares. É desta forma que, por esta regra, a Psicologia não

poderia mais estar na posição de julgar o que é lógico ou ilógico, mas assumiria o

compromisso de mudar o ângulo e a direção do olhar do pesquisador para descrever um

fenômeno em questão.

O que o fenômeno Pipa pode oferecer para as controvérsias instaladas no campo da

Psicologia? Até o momento, encarada como um fenômeno marginal, campeã nas

estatísticas de acidentes variados, a pipa pode nos ajudar a entender uma série de questões

66Os modernos, na sua ânsia de purificação, tomaram o desvio e o erro como algo a ser evitado, operando-se sobre ele um movimento de censura e patologização. Moraes (2000, 2004b) desenvolve, com base nas idéias de Canguilhem, uma interessante argumentação sobre o normal e o patológico que pode fermentar esta discussão. 67No campo da Psicologia, podemos encontrar como caixas-pretas: 1. conceitos estabelecidos consensualmente, pois se tornaram, em determinado momento no campo agonístico, mais fortes que outros tantos conceitos equiprováveis, mas que precisam ser revistos pois alijaram ou deixaram de fora um grande número de pessoas, como é o caso das teorias do desenvolvimento ou das teorizações sobre a norma e o desvio; 2. casos de pessoas que estão em sofrimento pois se sentem desconfortáveis em sua forma de estar no mundo: tal como acontece com as máquinas, algo para estas pessoas “não funciona” e elas buscam ajuda no desejo de desatar os nós da rede que dá sustentação a esse estado de coisas, em prol de uma outra tessitura que lhe permita uma maior capacidade de vinculação (dentro da idéia de tornar-se cada vez mais vinculado e, portanto, cada vez mais diferenciado).

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relacionadas às aprendizagens - das destrezas, da ocupação do espaço, das regras que

regulam as interações, do controle das emoções, da arregimentação de aliados humanos e

não humanos, da percepção das condições climáticas e dos ciclos da natureza, da

construção de uma postura ecológica.

Regra 7: O trabalho intelectual não deve ser separado da rede em que se insere. Teorias

ou abstrações não estão separadas das coisas de que falam, o que significa estar sempre

viajando pelas redes ao longo de sua maior extensão. A informação é ter alguma coisa sem

ter a coisa em si, é o meio termo entre a presença e a ausência. Antes de atribuir qualquer

qualidade especial à mente ou ao método das pessoas, devemos examinar os modos como

as inscrições são coligidas, combinadas, interligadas e desenvolvidas.

As teorias psicológicas, como quaisquer outras, não podem sobreviver fora da rede que lhes

deu origem. Portanto, quanto mais vascularizada for uma teoria psicológica, maior a sua

chance de sustentação, sendo maior o alcance de seus efeitos. Este fato implicaria num

constante colocar-se a prova no campo agonístico, assumindo a provisoriedade do

conhecimento até que ele se transforme em caixa-preta, ou seja, até que se torne consensual

e, portanto, objetivo68. Nesse processo, seria imperioso não utilizar o conhecimento

acumulado como arma de rotulação/manipulação dos casos em controvérsia. Generalizando

radicalmente o Princípio de Simetria neste campo, nenhuma teoria psicológica com

pretensões a universalizar modelos de homem e concepções de saúde e doença poderia

sobrepujar ou obscurecer o caso particular que se encontra à nossa frente. Cada caso, por

sua vez, estaria passível da mesma regra metodológica, ou seja, não poderia ser estudado

como uma abstração em separado da rede que lhe possibilitou a emergência. Fato e

contexto são inseparáveis. No caso de um fenômeno considerado “desvio”, o contexto é o

mesmo daquele que constrói a idéia de “norma”, sendo coadjuvante na sua emergência,

assim como é decisivo na promoção de sua censura.

68Segundo Latour (2000), “subjetivo” é a qualidade atribuída ao enunciado de quem fala em seu próprio nome, podendo não enunciar mais do que sonhos ou devaneios. “Objetivo” é a qualidade atribuída ao enunciado de quem fala em nome de muitos, uma vez que a construção de um fato é um processo absolutamente coletivo.

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As maneiras para realizar um estudo sob a orientação da Teoria Ator-Rede

Segundo Law (1997), a descrição de um caso particular pode ser um estudo ator-rede

exemplar. Uma das características da tradução é que ela pode ser local e global ao mesmo

tempo, pois pode ser “lida” através de vários casos particulares. Por esta razão, as

narrativas assumem um papel preponderante nos estudos ator-rede, podendo ser feitas a

partir dos fragmentos. Destas considerações, o autor destaca algumas propriedades da TAR:

• Os casos examinados pela TAR não podem ser contados em uma única narrativa, pois

não há uma história que possa capturar todos os aspectos da realidade, nem há uma

condição de neutralidade ou independência por parte de quem narra. Uma grande, única

e definitiva história nega e exclui outras possibilidades de narrar os fatos, sem levar em

conta que o narrador é refém de seu tempo, de sua história e de seus interesses. Há

sempre várias formas de narrar um mesmo caso, dependendo de que ponto da rede

tomamos para “ler” o caso em questão, de que elementos privilegiamos para tecer a

nossa narrativa. Para sermos legítimos, é preciso assumir que, de algum lugar que será

sempre uma escolha particular, estamos nos propondo a contar uma multiplicidade de

histórias.

• Um objeto estudado com a orientação da TAR não pode ser tomado de forma

centralizada, pois a pressão se faz tanto para unir como para separar coisas. A

centralização consumada pode motivar a descentralização e, inversamente,

descentralizar pode ser um movimento necessário para chegar-se a um centro. O

aparente confronto entre a centralização e a descentralização, entre unidade e diáspora,

entre estabilidade e instabilidade, entre singularidade e multiplicidade aparece como

uma marca da tensão em que trabalham as redes.

• Uma rede pode ser conhecida através de um conjunto de pequenas histórias de como os

elementos que estabelecem conexões se reúnem momentaneamente por ambivalências e

por oscilações. A ramificação das relações, as lacunas e as incompletudes fazem parte

da descrição de como os fenômenos se articulam performando uma rede. A

preocupação com a consistência foi deslocada na TAR porque a ordenação é um

processo provisório e uma vez que as coisas podem estar ordenadas diferentemente em

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outro instante. Segundo Cukierman (2000), a coerência é meramente contingencial,

nunca uma essência, aparecendo como efeito de um quadro que se estabilizou por um

momento.

• A TAR pode ser conhecida como uma arte de descrever texturas que formam um

padrão, um remendo intelectual, como diz Law (1997). A TAR possibilita descrever de

que forma as várias histórias funcionam como pedaços que podem se ligar numa colcha

de retalhos por similaridade e por diferença. Entre as muitas pequenas histórias, podem

subsistir padrões que não precisam se reduzir à cronologia da narrativa, pois é possível

estarem fora da colcha. Pode ser também que não exista um padrão único e coerente,

que cada história sobre práticas locais e específicas baste a si mesma. Quer-se evitar

qualquer gênero de narrativa cuja pretensão é uma globalização. Uma conclusão é vista

como um fechamento de possibilidades, idéia completamente avessa à proposta das

redes e das narrativas plurais.

• A TAR insere seus objetos de estudo no campo dos experimentos, das tentativas, das

invenções e suas narrativas alternativas versam sobre as estratégias da produção de

objetos e sujeitos. De acordo com Latour (1996b), a melhor forma de explicar é

explicitar as conexões entre os elementos em uma rede ou mostrar como um elemento

contém muitos outros. Ao colocar várias histórias, uma ao lado da outra, e ao tecer as

costuras entre elas, podemos fazer emergir a diferença pela criação de novas relações,

escapando da ditadura do já estabelecido. Em Latour (2000), quando produzimos

conexões, podemos produzir coerências onde elas não estão dadas. Fabricar um fato é

produzir provas, coisas para serem vistas, observadas, comparadas, confrontadas. É isto

que fazem os laboratórios, quando funcionam como centros de tradução e de produção

de fatos.

A metodologia da TAR, então, consiste basicamente em mobilizar a realidade69,

seguindo os atores na rede e em examinar as inscrições, ou seja, investigar textos, imagens

e dados. Os elementos coletados pelos pesquisadores em qualquer campo de pesquisa

69Mobilizar a realidade é, para Latour (2001a), o trabalho de construir móveis imutáveis, tal como foi feito com a floresta amazônica, na experiência narrada neste livro. Trata-se de um dos nós que compõem a rede que dá sustentação ao fato científico.

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precisam ser transportados para se tornarem visíveis “sinopticamente”, para que possamos

operar com eles e para que se constituam em “móveis imutáveis”.

O seguimento dos atores em suas redes pode se dar por uma série de procedimentos

que variam desde os experimentos de laboratório, às expedições de campo para coleta de

material, às entrevistas, aos questionários70, à pesquisa etnográfica, para falar dos já

consagrados métodos utilizados. Segundo Latour (2004), não há uma divisão entre as

ciências da natureza e as ciências humanas, sendo este seguimento dos atores nas redes

válido para as “humanas ciências”.

As astúcias do pesquisador

Escrever textos, para Latour (2003), tem tudo a ver com o método da TAR, pois esta

atividade funciona como semelhante àquela que é desenvolvida em um laboratório, lugar

em que experimentamos múltiplas combinações para verificar seu efeito. Como qualquer

híbrido, a entidade autor-texto troca propriedades - o autor fazendo o texto e o texto

fazendo o autor - para produzir algo que não estava necessariamente previsto em seu início,

única maneira de entender a produção do novo. Torna-se fundamental o exame das

inscrições, pois elas tornam possível o transporte daquilo que se mobilizou na realidade,

uma vez que podem viajar através do tempo e do espaço, possibilitando uma comparação

com outros trabalhos pelas similaridades e diferenças traçadas. Entre as inscrições,

podemos ter os dados, as imagens e os textos. Estes últimos oferecem credibilidade ao que

é exposto, estabelecem equivalências entre problemas e carregam o trabalho a outras

pessoas e instituições. (LATOUR, 1985, 2000). Sem as inscrições, os fenômenos só

poderiam ser conhecidos pelo imediatismo dos sentidos. São elas que permitem que os

fenômenos passem a ser reconhecidos, mensurados e vistos em perspectiva.

70 Uma solução para os questionários, segundo Latour (2000), é fazer com eles “aquilo que fizeram com as pessoas, ou seja, extrair deles alguns elementos e colocá-los em outro formulário mais imóvel e mais combinável” (p.380). Entendemos que a mesma lógica se aplica a outros instrumentos para mobilizar e transportar a realidade numa cadeia de inscrições que possam ser manuseadas, traduzidas, confrontadas e combinadas.

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De acordo com Latour (1985), é graças à perspectiva que os objetos podem ser

percebidos com coerência óptica, mesmo passando de uma condição tri-dimensional para

uma condição bi-dimensional, quando são transportados através de imagens. Essa invenção

gráfica e geométrica faz com que as imagens possam fazer tantas viagens de ida e volta, do

local ao global, mantendo-se estáveis em suas formas. É o que garante acelerar a

mobilidade das imagens, manter a sua imutabilidade e ampliar as possibilidades de re-

combinação. Quando representamos em perspectiva os objetos do mundo, assim como os

objetos vindos da ficção ou da crença (projetos, utopias, mitologias, imagens religiosas),

eles ganham em coerência óptica e em poder de convencimento, como se fossem reais. Por

isso, as inscrições de todos os tipos (textos e imagens) são importantes para os

pesquisadores porque, tanto mais nítidas, combináveis, re-desenháveis e passíveis de

superposição, tanto mais elas oferecem a vantagem de uma prova: um argumento que pode

fazer diferença numa discussão.

Para resumir a metodologia que norteia o trabalho de todo o pesquisador, Latour

(1985) identifica sete práticas de tradução:

1. Mobilização da realidade que implica o transporte de quaisquer estados do

mundo para algum lugar onde são reunidos e trabalhados por comparação ou

confrontação com outros trabalhos.

2. Fixação das formas para que o material sofra o mínimo de deformação possível

durante o transporte, possibilitando o seu reconhecimento apesar do

deslocamento.

3. Achatamento pela passagem da condição tridimensional para a bidimensional,

ou seja, para que fiquem visíveis numa folha de papel onde podemos dominá-

las.

4. Variação da escala para podermos dominar o infinitamente grande e o

infinitamente pequeno. Uma galáxia ou um genoma só se tornam visíveis e

trabalháveis quando adaptamos suas escalas nas imagens que examinamos. As

latitudes e longitudes, os anos luz, tempos e distâncias se tornam domináveis e

compreensíveis porque fazemos variações em suas escalas, adaptando-as ao

possível de ser capturado pelo olhar.

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5. Recombinação e sobreposição de traços para promover efeitos visuais que

fazem emergir o que costumamos chamar de estruturas, padrões, leis. A

impressão de criarmos esses padrões vem da possibilidade de podermos jogar

com as inscrições como se elas fossem um jogo de cartas, criando relações onde

não esperávamos encontrar.

6. Escritura de um texto que incorpore o relato das etapas anteriores. As inscrições

transportadas, fixadas, reunidas, achatadas, reduzidas ou ampliadas e finalmente

recombinadas resultam na literatura científica.

7. Fusão com as matemáticas para que as imagens se tornem formas geométricas,

diagramas, cifras, colunas, equações. As inscrições podem ser primárias,

secundárias, terciárias nestes últimos termos, pelo processo de matematização,

para que componham os centros de cálculos.

Essas sete astúcias, tal como as chama Latour (1985), não devem ser isoladas umas

das outras. É em seu conjunto que caracterizam o trabalho do pesquisador, acrescentando

mobilidade, fidelidade e combinação aos dados com os quais lida. Todos estes passos são

tentativas empreendidas pelo pesquisador/cientista para tornar a realidade estável, através

da fabricação de totalizações parciais, uma vez que nada é dado – nem natureza, nem

sociedade - ou construído de uma vez e para sempre.

Seguindo a pipa

Neste trabalho, pretendemos lançar mão da metodologia da TAR para seguir a pipa

em seus movimentos, nas redes que foi/vai estabelecendo para manter-se em ação, pelo

exame dos papéis que assume e das metáforas que encarna: como disparador de

aprendizagens, como tela de projeções antropomórficas, como instrumento sociotécnico

que ensejou descobertas científicas, como inspiradora de inscrições (imagens e textos).

Num primeiro momento, estivemos debruçados sobre as inscrições que nos

permitiram conhecer a pipa em sua história, daquilo que ficou plasmado nos livros e nos

deu acesso a uma quantidade de informações que nos chegaram atravessando tempos e

espaços. Estivemos seguindo a pipa, em sua ação, pela observação que dela fizemos, nos

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vários eventos em que foi um catalisador de associações: nos festivais do papagaio

promovidos pela CEMIG, nos eventos promovidos pela Brinquedoteca da UFSJ e na

brincadeira acontecendo nas esquinas e arredores dos lugares por onde caminhamos durante

a temporada71 em que os ventos lhes são propícios. Visitamos e ouvimos as pessoas

responsáveis pela promoção, nestes últimos 24 anos, dos Festivais do Papagaio, que

fizeram a opção de respeitar a alta vinculação deste brinquedo/brincadeira tradicional,

utilizando-o como aliado nas campanhas pedagógicas sobre o uso da eletricidade e dos

recursos ambientais, ao invés de tê-lo como oponente a ser extinto. Recolher e acolher a

multiplicidade de narrativas sobre a pipa foi uma parte de nossa estratégia metodológica,

mediante entrevistas72 com pessoas que têm a pipa como objeto privilegiado em sua

biografia. Na maior parte das vezes, estas foram pessoas com idades que variavam entre 30

e 70 anos. Nestas narrativas, estiveram sempre presentes os aspectos da paixão quase

religiosa pelo objeto, os aspectos da aprendizagem e da sua transmissão, os aspectos de

engenho e arte emergentes da tarefa de sua construção.

A partir dessa coleta de dados, verificamos como a pipa se situa nas traduções

deflagradas pelas diferentes associações estabelecidas em sua versão local. O local e o

global são versões que, em momento nenhum, podemos entender como opostas, como

vimos no capítulo anterior. Tentamos, sempre que possível, trabalhar nesta tensão que o

modelo das redes nos oferece: centralizando - pelo exame do que parece ser regular e

semelhante na comparação com outras práticas - e, descentralizando, naquilo que a pipa

oferece como singular, nas práticas locais.

71Pelo fato de não ocorrer durante a época das chuvas e ser mais facilmente colocada no ar durante a temporada dos ventos, a pipa é uma brincadeira sazonal. No caso de São João del Rei, ocorre, predominantemente no período compreendido pelos meses de junho e julho (que coincide com o mês das férias), interrompendo-se com o reinício das aulas em agosto, apesar deste ser considerado um dos meses mais ventosos. Não havendo chuvas durante os meses de verão, elas também aparecem nas férias de dezembro e janeiro, prolongando-se por fevereiro até o reinício das aulas. 72Entendemos que as entrevistas funcionaram como um convite às pessoas para contar histórias, para atribuir sentido ao objeto em questão, dentro das atividades da vida. Não estabelecemos uma quantidade pré-determinada de narradores para entrevistar. Como veremos, no próximo segmento da metodologia, os entrevistados ou narradores, como preferimos chamá-los foram sendo indicados uns pelos outros. A única condição para ser narrador foi o envolvimento com o brinquedo.

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A temporada de pipas constituiu-se em um campo fértil para a observação73 de

como se dão as relações entre aqueles que brincam com o seu objeto lúdico, assim como

com os outros incluídos na brincadeira, seja como colaboradores ou como opositores nas

chamadas “guerras no ar”74.

As aprendizagens realizadas neste contexto informal da brincadeira de rua foram

outro item observado: desde a construção da pipa até a sua colocação no ar, há uma

quantidade de mediações75 que nos proporcionam um espaço de reflexão sobre a questão da

aprendizagem de um corpo que se afeta, que se mobiliza no contato e no manejo com os

materiais, com os outros humanos e com os efeitos suscitados por estas relações.

O acompanhamento e registro sistemático desses eventos foi uma das nossas

estratégias metodológicas para produzir inscrições. Para produzi-las, utilizamos

instrumentos tais como o tradicional diário de campo, além de máquina fotográfica digital e

eventualmente um gravador. Esses instrumentos compõem um arsenal de objetos que têm a

ação de “aumentar a mobilidade, a estabilidade ou a permutabilidade dos elementos”

(LATOUR, 2000, p.370) e que, portanto, foram bem-vindos por acelerarem um ciclo de

acumulação.

Entendemos que as inscrições levantadas, através das narrativas76 dos brincantes, do

registro das observações da brincadeira durante a temporada de pipas, assim como das

imagens77 colhidas durante os eventos, nos ofereceram material para tecermos a colcha que

fez emergir os padrões e texturas de um quadro que temos a pretensão de apenas olhar em

uma estabilização provisória, na forma como os elementos desta rede se articulam.

Tomamos o nosso texto como um laboratório das várias inscrições disponíveis,

buscando coerência numa mistura experimental para a constituição de um todo que é o

resultado deste trabalho. Além das narrativas dos brincantes, estamos acrescentando aos

73Tivemos uma pesquisa de campo sazonal durante os anos de 2005 e 2006. 74No capítulo V, trabalharemos melhor as circunstâncias que oportunizam o aparecimento desta expressão que é a utilizada no estudo dos papagaios de Belém, realizado por Pontes e Magalhães (2003), para designar as disputas inerentes à brincadeira com a pipa, brinquedo que assume características especificas em termos dos comportamentos que deflagra e dos vocabulários que mobiliza em cada lugar, fato que se torna um indicador das tradições locais, apontando onde estas se conectam com o mesmo tipo de atividade desenvolvida em outros lugares. 75Mediação entendida aqui como aquilo que está no meio e que interfere; refere-se aos efeitos provocados tanto por humanos como aqueles deflagrados por não humanos. Ver capítulo I. 76Utilizamos o gravador para registrar e transportar essas narrativas. 77Registramo-las através do recurso das fotos digitais, colhidas durante o seguimento dos eventos em que a pipa figurar como actante ou em pesquisas na internet.

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capítulos fragmentos de textos literários78 em que a pipa tenha figurado como actante.

Temos verificado que a pipa é um elemento bastante utilizado na literatura e nas artes79. Há

muitos artistas populares que tomam a pipa como inspiradora de obras que versam sobre o

lúdico, assim como há muitos escritores e poetas que tiveram a pipa registrada em

fragmentos de suas obras. Infelizmente, apesar da quantidade de imagens que armazenamos

em nossos arquivos, tomadas das fotos em câmera digital ou da internet, não nos foi

possível estender, para uma pesquisa iconográfica mais detalhada, os limites de nossos

estudos. As imagens, neste trabalho, funcionam apenas como recurso ilustrativo.

A questão da autoria assume, com a TAR, um novo viés, ou melhor, uma outra

tradução. Já que “quem conta um conto aumenta um ponto”80, nossas narrativas estarão

sempre atravessadas por muitas vozes. Integrar um grupo de pesquisa em torno de

determinados temas e autores já seria suficiente para um compartilhamento de orientações

que vão se mesclando no trabalho de fabricação de inscrições. As traduções81 serão

inevitáveis e bem-vindas.

Como para qualquer objeto, não se trata de tarefa simples esse seguimento da pipa,

ainda mais se tratando de um objeto voador que, em sua dança ontológica82, assumiu

diversos papéis ao longo da história, sempre se metamorfoseando e pulando de uma rede à

outra. A pipa aparece como um objeto cuja ontologia é sustentada por redes variadas e

requer ser estudado nos efeitos que produz em determinados grupos. Torna-se importante,

para nós, dentro da metodologia da TAR, descrever as cadeias que promovem tais efeitos,

pois se trata de um objeto que não se esgota em si mesmo, que tem vínculos nas práticas

que associam humanos e não humanos, abrindo-se a muitas possibilidades de ação. Como a

78Na perspectiva de uma antropologia simétrica, tentamos amenizar as barreiras que separam o texto acadêmico do texto literário, buscando contar “uma boa história”, tornando-a “psicologicamente relevante”, para seguir a sugestão de Spink (2003). 79Mello (1983) nos dá notícias de como as pipas, como elementos plásticos e dotados de grande harmonia na relação forma e espaço, têm inspirado pintores contemporâneos de diversos países e estilos. Segundo o autor, podemos encontrar a pipa em quadros de Portinari, Guignard e de Di Cavalcante. 80Ditado popular que captura bem o movimento de “traição” que se opera nas cadeias de tradução, quando a informação vai passando de boca em boca dentro da tradição da oralidade. 81Que, segundo Law (1997), vão suscitar traições, no sentido de que vão acrescentar algo na cadeia, marcando diferenças em relação ao que era no início. 82Segundo Law (1997), existe uma natureza dançante na ontologia das entidades pois sua identidade e suas propriedades nunca são dadas definitivamente, sendo a sua ordenação o resultado provisório das conexões que estabelecem em determinadas redes. Uma “coreografia ontológica” encerra essa possibilidade de os elementos desempenharem diferentes papéis em uma rede.

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boneca contadora de histórias de que nos fala Spink (2003), a pipa é ao mesmo tempo uma

história social e um artefato.

Entendemos que o trabalho de seguir a pipa em ação requer o movimento de soltar-

se ao sabor do vento, mas, ao mesmo tempo, a necessidade de ter uma linha que nos ligue

ao chão, sem o que a pipa não voa83. Para nós esta é uma boa imagem de um trabalho de

pesquisa: voar tão alto quanto pudermos, porém sem perder a nossa ligação com o solo.

Pretendemos que essa ligação seja a metodologia da TAR, suficientemente flexível para

nos dar a liberdade de voar, ao mesmo tempo em que nos impele a buscar coerência nas

empreitadas para realizar uma boa fabricação. Da mesma forma que os humanos, os objetos

também têm uma história a ser contada, são nós de uma rede bem ou mal vinculada,

produzindo bons ou maus efeitos. Descrever estes vínculos e aquilo que eles movem nos

possibilita ir além dos objetos, pela verificação de como as trocas de propriedades entre

humanos e não humanos modificam a ambos e operam modificações na realidade. Contar a

história dos objetos é resgatar a nossa própria humanidade.

Pois se não somos mais capazes de reunir coisas para contar grandes histórias sobre o crescimento ou declínio das redes, então o que há para contar? (LAW, 1997, p. 13)

83Em Minas, chamamos de “pipa voada ou avoada” aquela que teve a linha cortada e perde a direção. Nesse caso, não tem dono e passa a ser disputada por todos até ser capturada por alguém. É provável que essa denominação também seja usada em outros lugares.

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CAPÍTULO IV

PARTE 2. CONTROVÉRSIAS METODOLÓGICAS.

Estou pensando na pergunta que a Irme me fez por e-mail mandado lá da França que me provocou muito: se eu fiquei satisfeita com a minha pesquisa de campo. A rigor, a pesquisa de campo não estaria terminada pois ainda está prevista a temporada de pipas do meio deste ano. Mas fiquei pensando que a questão do campo é um pouco mais ampla do que o espaço do território que eu percorri acompanhando os meninos na brincadeira de pipas. Como diz o Spink, naquele texto nosso conhecido, o campo se tece a partir de um conjunto de coisas, emerge de uma rede de circunstâncias que incluem a pesquisa bibliográfica, as observações, as entrevistas, os acontecimentos marcantes que têm relação com o tema, enfim, essas coisas todas que ele chama de campo-tema. Depois, tem o fato de não termos uma atitude a priorista, com uma hipótese prévia para ser testada; nem a posteriorista, só dando conta do que aconteceu, tendo a caixa preta já se fechado. O que estamos propondo é nos fabricar como pesquisadores juntamente com a nossa pesquisa. Aí fica difícil responder se estamos ou não satisfeitos. Vai depender da nossa voracidade ou do que fizer falta quando estivermos costurando o texto da tese. Taí, acho que eu ainda não sei responder. Mas a provocação está me ajudando a pensar mais. Mais uma reflexão para fazermos: Quando parar? O que é suficiente? Quantas entrevistas? Quanto tempo de Diário de campo? É etnografia? É o quê?

Um campo-tema mobilizando controvérsias

Tomadas as posições com relação aos nossos referenciais teórico-metodológicos,

nesta parte do nosso trabalho dedicar-nos-emos a discutir algumas questões que se tornaram

controvertidas, ao longo do período em que seguimos os nossos atores e assim careceram

de uma reflexão sobre a nossa postura como pesquisadores.

Uma das controvérsias se situa já em torno da idéia do que seria o “campo” na

pesquisa, pois definimos campo não apenas como as porções de chão que percorremos no

seguimento dos eventos em que a pipa estava presente, mas como o fez Spink (2003),

tomando as idéias de K. Lewin, ao considerá-lo como “a totalidade de fatos psicológicos

que não são reais em si, mas são reais porque causam efeitos” (p.21), incluindo todos os

elementos presentes nas redes que pretendemos traçar. Segundo este autor (ibidem), o

campo não poderia ser restrito a um lugar específico onde o pesquisador poderia estar ou

não estar. Pensamos que um campo, como qualquer outra entidade que possamos tomar

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para entendimento, emerge de uma configuração particular, pela articulação de elementos

que se mesclam para a produção de determinados resultados. Nesta concepção de campo,

estaríamos falando de um “campo-tema”, “processo contínuo e multitemático” (ibidem, p.

23) em que materialidade e socialidade jogam papéis simétricos e preponderantes na

descrição das redes que nos interessam traçar, narrando situações que, em muitos

momentos, ofereceram pontos para controvérsias em relação a um modo corrente de fazer

pesquisa na academia. Nosso campo-tema não é o de uma boneca contadora de histórias,

exemplo utilizado pelo autor em questão, mas é o campo-tema de um objeto que

igualmente conta histórias nas quais uma multiplicidade de seres, de tempos e lugares

distantes tomam parte, incluindo, obviamente, o próprio narrador. Como pesquisadores,

finda a reunião de dados e inscrições que conseguimos produzir, somos responsáveis por

tornar o nosso relatório de pesquisa uma história psicologicamente relevante, tentando fazê-

lo falar sobre questões que fazem sentido para a disciplina sobre a qual pretendemos fazer

contribuições. Neste sentido, acreditamos que o nosso esforço para realizar um Estudo

Ator-Rede possa servir como experiência “com” e “contra” a qual pensar, em outros

estudos que se farão à semelhança do nosso. Chamamos a esta parte de “Controvérsias

Metodológicas”, exatamente por estarmos colocando à prova uma maneira de seguir

eventos, tomando de empréstimo as orientações encontradas nos estudos etológicos de

Vinciane Despret (1996, 2002, 2003) e do que Latour (2000, 2006) considera como

características de um Estudo Ator-Rede. Trata-se de uma abordagem que está propondo

uma outra maneira de situar o pesquisador em relação aos objetos interrogados.

Quando realizamos o estudo da pipa, dos seus usos e traduções locais, buscando

abrir possibilidades para a construção de uma Psicologia Social do brinquedo, a opção por

fazer um Estudo Ator Rede levou-nos à utilização de estratégias pouco usuais, deixando em

controvérsia uma série de questões correntes sobre a ação de pesquisar e sobre a postura do

pesquisador: Qual o papel do pesquisador? Como fazer o conhecimento dos atores que

desejamos estudar? A qual distância? Como ficam pesquisadores e pesquisados, ao final da

pesquisa? Ao fazermos esta escolha, construímos o entendimento de que o ato de pesquisar

implica na aceitação dos riscos que advirão daquilo que não conhecemos e que só farão

sentido se nos deixarmos afetar pelas propriedades daqueles a quem pesquisamos,

aceitando transformarmo-nos em algo que não éramos no início da pesquisa. Entende-se, a

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partir de Despret (2002), que o ato de pesquisar permite uma transformação mútua em que

pesquisadores e pesquisados permitem que suas histórias se misturem. Desde que as partes

tornam-se disponíveis para escrever juntas uma história, ambas podem ser capazes de

redefinir suas práticas nos termos de um compromisso partilhado. Esta redistribuição das

praticas é de tal forma indeterminada, segundo a autora (ibidem), que a ação do pesquisador

torna-se “produto e vetor” (p. 158) das ações realizadas por aqueles que estão sendo

interrogados.

A postura do pesquisador

Defendemos a idéia de que a postura do pesquisador será a de um tradutor, assim

como a de um porta-voz e um fabricador de fatos. Tradutor porque lançará mão das práticas

de tradução já mencionadas84 no transporte da parte da realidade que estará pesquisando.

Porta-voz, pois estará na posição de quem fala em lugar de algo ou alguém que não pode ou

não sabe falar: será aquele que irradia ou que representa a controvérsia e estará tão mais

apto a esta tarefa quanto mais aliados puder arregimentar durante a sua pesquisa.

Fabricador de fatos, pois através da produção de inscrições, estará alimentando um enorme

ciclo de acumulação de conhecimento. Cabe ressaltar que o pesquisador, dentro da postura

simétrica postulada pela TAR, não ocupa posição de nenhum privilégio frente aos

elementos que compõem o campo pesquisado. Ele é mais um nó na rede, interferindo e

sofrendo interferências das ações que estiver acompanhando. Desta forma, a prescrição de

neutralidade perde o sentido, pois se remete a uma concepção de pesquisa engendrada à luz

do pensamento moderno a partir de uma divisão purificadora entre saber científico e saber

do senso comum. O pesquisador deve estar inteiro – com toda a sua bagagem de vida - e

vinculado/misturado ao seu campo de pesquisa: ele também faz parte do campo.

Perguntaram-me onde eu morava. –Aqui no bairro!, respondi vagamente. “–Mas aonde?”, insistiram. Acabei me rendendo: - Ali, naquela casa branca, confessei. –Ah! Então foi você que abriu a janela e depois fechou, naquela hora, hein?! Minha amiga Marli bem que me chamou a atenção quando lhe contei o acontecido: afinal de contas, quem observa quem? Não será esta a posição de simetria que buscamos na

84 Ver as astúcias do pesquisador na parte I deste capítulo.

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pesquisa? Lembro do último texto que li do Law85 em que ele diverge da postura asséptica do pesquisador, cumprindo um ritual de higiene: “comer grãos epistemológicos; lavar as mãos antes de se misturar com o mundo real para buscar pureza nas produções”. Eu não podia estar mais lambuzada de mundo real do que naquele momento. (Trecho do Diário de Campo)86

Trazendo características femininas para o campo da pesquisa, Despret (2002) faz um

histórico da atuação daquelas que se tornaram pesquisadoras, aproveitando a sua posição

marginal enquanto mulheres para desenvolver toda uma outra atitude em relação aos seus

pesquisados, contrastando com a forma que até então era corrente numa academia povoada

por homens. Dentro dessa condição, algumas formas de agir emergem como hábitos de

uma pesquisadora:

• A vontade de polidez, na aprendizagem das boas maneiras, quando abordamos um

grupo para ter o seu acolhimento, levando em conta o interesse daquele a quem a

investigação se endereça, conduz à negociação de um “meio justo”, de uma boa

distância que atenda aos interesses de ambos dentro de uma proposição de

transformações mutuas. Esta “polidez no fazer conhecimento” vê as “boas

questões” como sendo aquelas que podem ser engendradas pelo grupo pesquisado

juntamente com o pesquisador e que, sendo interessantes para os pesquisados,

provocarão também o interesse do pesquisador.

• A renúncia ao controle, num dispositivo experimental que cede espaço ao

imponderável da surpresa, permite que outras agências apareçam e possam ser

levadas em conta e promove uma torção na lógica dos trabalhos eminentemente

experimentais, tomando, assim, o número de variáveis e a influência do

pesquisador, não como efeito parasita a erradicar ou a controlar, mas como um

problema a negociar.

• O gosto pelas individualidades, especificidades e contextos traz a multiplicidade e a

complexidade dos pontos de vista daqueles que falam e nos fazem falar, nutrindo

desconfiança em relação às generalizações, uma vez que a pretensão à

universalidade sempre serviu para impor o ponto de vista dos dominantes.

85 (2003, p. 3) 86 Partindo da idéia de ampliar o conceito de campo, tudo que entrou como enxerto do nosso texto, inclusive as citações que aparecem com afastamentos à esquerda, está em itálico. Para os fragmentos do nosso Diário de Campo, doravante faremos a indicação da referência com as iniciais D.C.

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Segundo Latour (2006), são todas essas entidades que falam e fazem falar em contextos

específicos que se oferecem como objetivo do seguimento de um Estudo Ator-Rede (EAR).

A própria expressão Ator-Rede realça o fato de que não existe um ator agindo

isoladamente, pois a ação está sempre se deslocando na cena, introduzindo alguma

diferença numa situação dada, assumindo formas nem sempre antropomórficas. Daí, o

termo actante, emprestado da literatura. Por isso, os elementos cuja ação estamos seguindo

com a pretensão de narrar em nossos relatórios de pesquisa não serão meros intermediários,

mas mediadores. Para Latour (ibidem), um intermediário é aquele que veicula sentido ou

força sem provocar transformação, ou seja, definir seus imputs é suficiente para saber seus

outputs. Para um mediador, não basta conhecer seus imputs para predizer quais serão os

seus efeitos, pois é preciso levar em conta, a cada vez, a sua especificidade. Os mediadores

não transportam simplesmente os elementos: eles transformam, traduzem, distorcem e

modificam os elementos que transportam e não são, portanto, inócuos. Um Estudo Ator-

Rede marca a sua diferença com relação às outras formas de investigação quando toma os

meios ou instrumentos que aparecem na construção dos eventos como mediadores e não

como simples intermediários. As entidades que cenarizam as interações produzem efeitos

visíveis, introduzem alguma diferença numa situação dada, fazem agir algo ou alguém e,

por isso, devem ser levados em conta e estar presentes em nossos relatórios. Devido à suas

ligações com os humanos, os objetos saem da condição de intermediários e passam a

condição de mediadores. Assim, consideramos que o cenário em que fizemos o seguimento

da ação em questão é, entre outros, um actante fundamental, pois se remete a um contexto

específico que deslancha a ação de outros atores.

O cenário como actante

Algo que me chamou muito a atenção nessas idas ao campo é como o espaço desempenha um papel importante na brincadeira. Não dá pra soltar pipa em qualquer lugar. No caso desses descampados, em que ainda há vazios de construção, a brincadeira torna-se mais fluida, mais espalhada, em contraste com as pipas empinadas sobre lajes. No caso observado, temos um espaço propício. Em contrapartida, nos centros urbanos mais densamente povoados, os espaços para soltar pipas são literalmente criados sobre as lajes das construções, conforme já tivemos a oportunidade de presenciar, aumentando a probabilidade de acidentes. (D.C.)

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Diz Huizinga (1996) que todo jogo tem um espaço considerado sagrado onde se

desenrola a ação de jogar, tal como um tabuleiro, uma quadra, um palco, uma arena. Com a

pipa não é diferente, mas as fronteiras deste espaço são mais elásticas. Temos claro também

que cada elemento da paisagem, neste caso, contribui para que o seguimento da pipa seja

absolutamente singular, mobilizando alguns comportamentos que só farão sentido porque

fazem parte deste contexto, ainda que encontremos semelhanças com outros tantos, em

muitas outras partes mundo afora.

Não estamos em qualquer lugar do planeta. Não se trata de um parque

cuidadosamente arborizado num grande centro urbano, nem de uma paisagem à beira-mar.

Estamos na cidade mineira de São João del Rei, mais precisamente no bairro do

Residencial São Caetano, loteamento outrora pertencente à Ordem Salesiana, atualmente

área residencial ainda moderadamente ocupada, com espaços vazios de rede elétrica e

tráfego escasso de veículos, dados que são altamente propícios à prática da brincadeira de

pipas. Trata-se de um bairro novo que ocupa um dos morros de uma cidade em que a

topografia é acidentada, como na grande parte das cidades das Minas Gerais. O Residencial

São Caetano (RSC) está entre três outros bairros: o Guarda-Mor (GM), no morro vizinho, o

São Caetano, ao fundo, e o grande Tejuco, abaixo, bairro de onde os outros foram

derivando e constituindo identidade própria a partir de sua ocupação. O RSC, por ser o

mais recente, ainda está na memória das pessoas como um local de aventuras, tanto no que

diz respeito às pipas, como nos longos passeios em família, aos domingos, ou nas

brincadeiras das crianças em férias. Encerra, entretanto, um outro lado não tão idílico: à

noite, por ser retirado e afastado das vistas e do movimento da cidade, é procurado por

casais de namorados e por jovens que consomem drogas, cujo acesso se dá através de

veículos, sempre muito discretos.

[As mães] se empenham em acompanhar as crianças, pois temem que possa acontecer algo. Os acontecimentos que envolveram o local, num passado muito recente, aterrorizaram todo mundo. Falaram dos “filhinhos de papai” que vinham consumir drogas por aquelas bandas. E também comentaram sobre o crime que ocorreu por causa de drogas. Elas lamentam, pois o lugar é muito bonito, as crianças se divertem muito lá e é perto dos lugares onde moram. Basta descer e atravessar as porteiras, uma na lateral e outra no fundo do campinho que é usado para quase tudo: jogo de bola, pipódromo, pista de bicicross, piquenique. (D.C.)

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Na parte de baixo, próxima ao córrego do Lenheiro, onde se encontra uma das

principais avenidas da cidade, a densidade populacional é maior. Mas subindo-se as várias

e íngremes ladeiras que conduzem ao topo do bairro, a quantidade de casas vai diminuindo

até que chegamos a locais onde se encontram vários lotes à venda com casas esparsas aqui

e acolá. Mais acima ainda, podemos avistar o que comumente chamamos de morro da caixa

d’água em cuja base, entre o RSC e o GM, encontra-se um local de pasto e, ao mesmo

tempo, por ter o mato baixo, um campinho onde os meninos costumam jogar futebol e

também soltar pipas. O acesso a este campinho, pelo lado do RSC, se faz através de um

grande portão com uma estrada de terra para carros que dá acesso à caixa d’água, no alto do

morro. Um pouco mais abaixo, há outras passagens construídas de tocos de árvores e arame

farpado que impedem a passagem do gado que pasta na região e também permitem a

entrada de pessoas, uma a uma, por entre a cerca, dando em uma trilha que leva ao

campinho e se bifurca em outras pequenas trilhas que sobem o morro.

Através dessas mães, passo a conhecer essas outras entradas novas que vão para o GM. Saindo do campinho, depois de atravessar uma das porteiras, saio num espaço gramado e plano onde os meninos andam de bicicleta. O morro onde estávamos faz uma depressão até começar um outro morro adiante que vai dar na estrada. (D.C.) A esta altura, os meninos que eu estava seguindo já estavam na colina seguinte. A paisagem era linda e dava gosto admirá-la outra vez. O efeito para mim era quase terapêutico por uma série de questões: o dia estava luminoso, com céu, grama, pipas, tudo resplandecendo sob o sol; o ar estava ameno, eu não sentia mais dor e lamentei que não pudesse registrar aquele momento com a digital. Dias depois, um pouco por acaso, soube que aquela área seria loteada ainda este ano e provavelmente uma parte daquela paisagem não existiria mais. (D.C.)

Apesar da proximidade do centro da cidade, é uma paisagem com características

bem rurais: vacas e cavalos compõem a paisagem e funcionam como reservatório de

micuins e carrapatos nos meses secos. As ruas do bairro são calçadas com bloquetes de

cimento, mas há trechos em que os bloquetes foram arrancados ou o mato cresceu demais,

evidenciando uma conservação precária: há muita terra na época da seca que coincide com

o inverno, ou muita lama nos meses de verão, tempo de chuvas.

Há ruas que fazem limite com o bairro do Tejuco em que o terreno é muito

acidentado, verdadeiras ribanceiras por onde os meninos sobem e descem à caça das pipas

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que são cortadas. A vegetação que cobre esses barrancos é, em geral, baixa e arbustiva, mas

há árvores esparsas de pequeno porte. É comum encontrar cavalos, vacas e jumentos

pastando nos terrenos ainda não ocupados.

Embora a ocupação das encostas já venha ocorrendo, há pelos menos 20 anos, como

extensão natural da cidade cujo crescimento se dá, partindo do centro histórico que beira o

córrego do Lenheiro em direção aos morros ao redor, o número de casas do RSC tem

aumentado mais intensamente nos últimos 5 anos. Em geral, são casas de famílias de classe

média que buscam locais mais tranqüilos e que sejam próximos ao centro da cidade.

Binho se senta ao meu lado. Começa a contar que não briga mais por causa de pipa. Diz que morava na rua de baixo e vem aqui desde que era pequeno. Lembra que “antes, não tinha nada mesmo, aqui em cima”. Mas que, “mesmo com mais casas e mais rede elétrica, ainda era um bom lugar para soltar pipas”. (D.C.)

A atividade de pipas é bastante significativa em todos os bairros da cidade durante a

temporada, mas os bairros mais altos, principalmente onde não há uma malha muito densa

de fios de eletricidade, são pipódromos em potencial. O bairro RSC é procurado por

aqueles que desejam soltar pipas, vindos de diferentes localidades da cidade, pois, além das

condições propícias já mencionadas, também está localizado entre três outros bairros e

possui um espaço praticamente não habitado que é o pasto e o morro da caixa d’água,

conforme mencionamos.

Os operários conversam na obra. Mais um lote ocupado, menos espaço para soltar pipas na quadra, pois logo haverá rede elétrica. Fico imaginando este bairro daqui a uns dez anos. Terá uma configuração completamente diferente da que tem hoje. Talvez não exista mais um campinho que funcione como pipódromo, ou mesmo para jogar futebol, para andar de bicicleta e fazer piquenique. Se estas anotações forem lidas por algum dos meninos, eles certamente vão lembrar dos anos de uma infância que não volta mais. (D.C.)

Dos atores e do seu seguimento

Não se pode dizer que há um grupo de pipeiros que possa ser representativo de um

determinado tempo ou lugar. Há grupos muito variados que falam e agem das maneiras

mais diversas. Eles estão, a todo instante se compondo e se redefinindo na dependência de

muitos fatores: as idades, as disponibilidades de tempo, as vizinhanças, as relações de

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amizade ou rivalidade... A composição dos grupos que brincam de soltar pipas é bastante

diferente, se fazemos a observação num domingo ou num dia de semana durante as férias

escolares. No primeiro caso, o dos domingos e feriados, os grupos mesclam meninos de

idades variadas (entre 4 e 14 anos), rapazes (entre 15 e 20 anos) e até pessoas mais velhas

como pais e tios que aproveitam sua folga para levar meninos menores e soltar pipas junto

com eles. Tivemos a oportunidade de verificar que há famílias inteiras (pai, mãe, filhos,

filhas, avó, vizinhos, sobrinhos e até cachorros) que sobem o morro juntas para soltar pipas

e fazer piqueniques. São grupos que se espalham pelas esquinas, criando redutos de

convivialidade que, por conta da brincadeira, podem ou não rivalizar com grupos de outras

esquinas. Sendo a pipa uma brincadeira que atinge, indistintamente, pessoas de idades

muito variadas, é difícil precisar uma faixa etária específica, uma vez que é essa troca

intergeracional o que nos parece ser o dado de maior riqueza na construção das

aprendizagens tecidas em torno desta atividade. No segundo caso, dos dias de férias

escolares, durante a semana, em que os pais continuam trabalhando, a faixa etária é mais

restrita, podendo variar entre 7 e 20 anos, numa composição de grupos mistos, em que os

maiores têm a incumbência de tomar conta dos menores, sempre com o compromisso de

não se afastar demais de determinados limites estipulados pelas mães. Os meninos muito

pequenos (entre 2 e 6 anos) costumam participar da brincadeira só se acompanhados pelos

pais ou responsáveis de maior idade (só pai ou tio, pai e mãe mais alguém da família, uma

avó, um vizinho) que os introduzem na brincadeira, transmitem as regras e zelam pela sua

segurança. Por isso, praticam a brincadeira de pipas preferentemente nos domingos e

feriados, quando podem contar com a presença dos adultos. A quantidade de brincantes em

cada grupo varia muito também. Dificilmente encontramos alguém isolado soltando pipas.

Como já mencionamos, soltar pipas não costuma ser uma ação solitária, pois requer alguém

para ajudar em afazeres múltiplos (puxar a linha, segurar a pipa para erguê-la,

desembaraçar quando o brinquedo se enrosca em algum lugar...), assim como se torna

menos ameaçador estar acompanhado, no caso de ser necessário explorar novos espaços,

correr atrás de uma pipa avoada, disputá-la, ou entrar num “cruzo” com pipas de outros

grupos. Temos verificado que a quantidade de meninos varia entre dois e dez por grupo.

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Diante deste quadro mapeado em observações preliminares em que pudemos seguir esta

atividade lúdica, fizemos dois tipos de acompanhamento de grupos, diferentes em sua

composição:

• Acompanhamentos, nos fins de semana, dos grupos marcados pela composição

familiar em que pelo menos um progenitor, parente ou responsável adulto estava

presente.

• Acompanhamentos, nos dias de semana, durante as férias escolares, de grupos que

têm a permissão da família para soltar pipas na companhia de meninos maiores a

quem é confiada a guarda dos menores.

Além desse seguimento dos grupos em ação, durante a temporada das pipas, realizamos

entrevistas com pipeiros conhecidos na cidade. São pessoas que guardam memórias da

brincadeira praticada em outros tempos, conhecem das artes e artimanhas do ofício e têm

enorme prazer em nos oferecer suas narrativas. Acreditamos que as informações colhidas

nestas entrevistas nos ajudaram a iluminar muitas das observações que fizemos em campo.

Os nossos narradores foram pessoas que encontramos por indicação daqueles que

tiveram contato com nossas intenções de pesquisa. O primeiro acesso realizado se deu

através de uma colega de trabalho cuja vizinha, enfermeira, viúva de pipeiro e construtor de

pipas, desejou preservar o acervo de pipas deixadas pelo marido no espaço de nossa

Brinquedoteca universitária. No ato de doação, tomamos conhecimento de alguns dados

altamente relevantes da biografia da doadora e perguntamos da sua disponibilidade em nos

prestar uma entrevista para a pesquisa. Através das informações prestadas neste breve

contato, pudemos começar a tecer uma rede de pessoas do ramo que iam indicando nomes

de antigos parceiros de brincadeira, conhecidos, parentes e até familiares de figuras

lendárias na cidade. De alguma forma, cada um eles parecia ter uma narrativa singular

sobre sua relação com a pipa. As entrevistas foram agendadas para não coincidir com o

trabalho de campo durante a temporada das pipas. Contamos com um grupo de narradores

que se compôs de: um comerciante, uma carnavalesca, um ferroviário aposentado, uma

enfermeira, uma professora, um engenheiro da CEMIG, um funcionário público

aposentado, um contador, um pedreiro, um dos rapazes seguidos em campo. Fizemos a

devolução de uma cópia de cada entrevista aos respectivos entrevistados para que pudessem

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realizar os reparos (inclusões e exclusões que consideravam adequadas e/ou necessárias),

tornando-os, desta forma, participantes e co-autores dos textos escritos/transcritos. Após

este procedimento, todos eles assinaram os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido

sem nenhuma ressalva.

Além da transcrição das entrevistas e das observações registradas no diário de campo,

as fotos foram outro tipo de material coletado durante as observações. Fizemos tomadas

panorâmicas do grupo durante a brincadeira de rua com o compromisso de só divulgar as

fotos para a demonstração de algum dado que não expressasse nenhum aspecto pessoal

sobre a pessoa fotografada. Sendo as fotos tomadas em câmera digital, tivemos recursos

que nos permitiram distanciar, aproximar, recortar e até inserir elementos que garantiram a

preservação da identidade dos participantes, apesar de, muitas vezes, eles próprios pedirem

para serem fotografados para se verem depois.

Perguntei se podia fotografar o grupo trabalhando. Os menores se candidataram imediatamente. Queriam se ver nas fotos. Pediram para as fotos serem maiores para se verem melhor. Pepê e Lana fizeram pose com as pipas na mão. Lalá pediu para ser fotografada. (D.C.)

As primeiras abordagens

Em nossa primeira ida a esta região em que seguiríamos os pipeiros, a sensação de

estar “sem lugar” foi grande. Como fazer a abordagem? Como apresentar o trabalho? A

quem me dirigir? Serei bem recebida? Serei ignorada? O que esperar daquela relação?

Decidimos fazer o acesso aos grupos que brincavam soltando pipas nas ruas do

bairro Residencial São Caetano mediante uma breve apresentação da pesquisadora e das

intenções do trabalho com o pedido de licença para acompanhar aquele grupo.

Explicávamos que, se houvesse qualquer sinal de constrangimento do grupo,

abandonaríamos aquele local e procuraríamos outro grupo para observar, o que nunca

chegou a acontecer. Ao contrário, demonstravam interesse e começavam a pedir mais

detalhes sobre a pesquisa. Sempre que havia um membro mais velho, fosse adulto ou

companheiro mais experiente, era a ele que nos dirigíamos primeiro, facilitando a aceitação

de nossa presença. Era este membro que nos dava o passaporte para conhecer os outros

componentes do grupo.

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Pego bloco, boné e câmera digital e, sem pensar muito, corro para o local do evento. Chego à esquina tentando não ser notada. Sento-me a alguma distância (uns 8 metros) na esperança de me fazer invisível. Em vão! Sou muito estranha para eles: mulher, mais velha, portando sapatos e vestida demais para os padrões do grupo, cuja indumentária é short ou bermuda, camiseta e chinelo. E ainda por cima, carregando coisas muito diferentes de pipas, carretéis, latas e canos de PVC (utilizados para enrolar a linha). Tento me aproximar um pouco e pergunto se posso tirar uma foto das pipas. “- Fazer o quê, né?!”- me responde de má vontade um dos rapazes. Durante o tempo em que estava só observando à distância, não sei se por acaso – pode ser uma prática corriqueira – ou para me intimidar, o mesmo rapaz desfiou toda uma série de palavrões dos bem cabeludos. Seria para demarcar um território essencialmente masculino? Achei que minha presença estava mal digerida. Resolvi me apresentar. Disse que era professora da universidade e que estava fazendo um trabalho sobre as pipas em SJDR. Perguntei se incomodava se ficasse só olhando. Eles ficaram curiosos e o clima ficou mais relaxado, bem mais amistoso.(D.C.)

Apesar de ficarem intrigados com a minha presença, creio que o motivo maior para

seu estranhamento foi o fato de alguém se preocupar em seguir/observar uma atividade

praticada tão corriqueiramente. Durante tantas vezes já tinham estado ali no morro falando

seus palavrões, pulando o muro das casas, pedindo água, sendo alertados para os perigos do

cerol, correndo pelo mato e arranjando confusão com outros grupos de meninos na caça de

alguma pipa avoada e nunca tinham sido motivo de interesse para ninguém a não ser para

os pares, para os rivais, para os motoqueiros e para a CEMIG, a companhia de energia

elétrica, temendo acidentes provocados pelo uso do cerol nos fios. O fato de alguém que

trabalhava na Universidade querer observá-los tirava-os da condição de moleques a procura

de um lazer barato, passando-os para o papel de protagonistas de uma outra história. A

diferença parecia grande, senão significativa. Eles passaram a ser “alguém que contava”

(Despret, 2002, p. 258), dando-nos a chance de contar uma outra história, diferente daquela

em que apareciam sempre como os vilões.

Buscando aliados

Como nas pesquisas de Goodall (apud Despret, ibidem), entendemos a importância

de buscar um aliado no grupo do qual desejamos acolhida, pois é este mediador que poderá

nos ensinar as regras de polidez valorizadas no grupo. É com este elemento que deveremos

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aprender as formas de como nos comportar. Como em qualquer outra situação em que

adentramos numa região na qual não temos uma inserção anterior, torna-se fundamental a

busca de alianças. É basicamente uma regra de educação, nem sempre respeitada, mas que

faz toda a diferença. Por que não traria bons efeitos para os hábitos de um pesquisador?

Nossa escolha, neste primeiro contato, recaiu sobre um homem mais velho que

acompanhava o grupo de rapazes.

Fiquei sabendo que ali havia dois irmãos cujo pai, um senhor, ficava só olhando, montado numa bicicleta. Apresentei-me a ele também. Achei que esse movimento foi vital para o meu papel de “olheira”. O Sr. Luis (o pai) me explicou que morava lá embaixo, em outro bairro, mas que lá “a barra era pesada” e ele preferia vir com os filhos para este morro. Vinha sempre aos domingos, pois, nos outros dias, havia trabalho. A sua presença garantia, de alguma forma, uma segurança para os meninos, no caso de uma disputa mais acirrada. (D.C.)

Na maioria das vezes, foi com os pais que acompanhavam seus filhos na atividade

de soltar pipas no morro que eu estabeleci contatos para me apresentar e pedir permissão

para seguir o grupo, sempre com resultados de aceitação: uma conversa, uma informação,

um tipo de legitimidade que não conseguiria sem esse gesto. Como nem sempre havia

adultos ou rapazes mais velhos a quem pedir a acolhida, a apresentação podia ser feita a um

ou mais meninos que compunham os grupos.

Me apresentei, falei da pesquisa e perguntei se podia ver a brincadeira. O menino me olha desconfiado, mas não nega a possibilidade da minha presença. Digo-lhe que, se eu estiver incomodando, posso me retirar e pedir licença para observar outro grupo. Ele responde que está tudo bem. Falo meu nome e pergunto o dele.(D.C.)

Em outra situação, foi uma mulher que me introduziu nas regras de polidez do

grupo, acolhendo-me e ensinando-me as maneiras de agir daqueles a quem eu observava.

Era mãe de 3 crianças e, juntamente com o marido, vinha soltar pipas na rua de baixo, às

vezes acompanhada de vizinhos e parentes, em um grande grupo. Alice foi o meu

termômetro, a minha professora, a minha ponte com aquele grupo. A partir dela, pude obter

a aceitação do seu grupo familiar, de vizinhos e aderentes que protagonizaram os eventos

em torno das pipas, nos finais de semana durante a temporada das férias de julho de 2005.

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Foi através dela que eu pude confirmar as fantasias que os meninos nutriam sobre a minha

presença, lá no morro.

Alice andava ao meu lado comentando o que os meninos perguntavam a meu respeito. As fantasias expressas eram as mais engraçadas: ela é estrangeira? Por que ela está aqui? O que tanto ela quer saber sobre as pipas? Será que ela é da polícia? Penso que houve um espaço de confiança para que Alice pudesse fazer esses comentários pelo fato de eu estar ali tentando praticar uma pesquisa, a procura do “justo meio”, possibilitando um encontro em torno de apostas comuns, fazendo uma cortesia a quem estava me possibilitando uma ligação com o grupo pesquisado. Eu estava pedindo a um membro do grupo que me ensinasse as regras de polidez e hospitalidade daqueles por quem eu desejava ser acolhida. (D.C.)

A busca do meio justo

William James é, segundo Despret (2002), um dos pensadores mais polidos por privilegiar,

como valor do fazer conhecimento, a capacidade de tornar algo interessante, uma vez que,

para ele, um conhecimento só é válido se enriquece a realidade de um mundo já existente,

alargando horizontes ao invés de duplicar o que já se encontra nele. James é um defensor

do conhecimento que se tece ativamente entre as pontas, pois entende que a atividade de

conhecer não está limitada a uma delas. O mundo não está passivo a espera de ser

conhecido por um único e poderoso sujeito cognoscente. Se, ao invés, deslocamos nossa

atenção ao que se dá a conhecer, descobriremos que “o que realmente existe são as coisas

se fazendo e não as coisas prontas”(apud Despret, ibidem, p. 144).

Foi através de Alice que pude negociar distâncias nada usuais entre pesquisador e

pesquisados: trocamos presentes; tomei conhecimento das muitas histórias sobre aqueles

que estavam ao nosso redor soltando pipas; aprendi sobre como combinar as cores nos

papeis de seda das pipas e de como realizar algumas manobras, das regras de boa educação,

e, enfim, no trato com o brinquedo.

Me preparei, durante toda a semana para honrar o compromisso que havia assumido com o grupo que soltava pipas na rua de baixo, na tarde do último domingo. Tendo verificado que havia meninos sem pipas, pensamos juntos na possibilidade de eu poder contribuir para sanar esta falta. Havíamos combinado, então, de que eu traria as varetas de bambu e

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o papel de seda, material que não me foi nada difícil de apanhar na Brinquedoteca, daquilo que restou da oficina de pipas promovida no ano passado. Os meninos ficariam encarregados de trazer a cola e a tesoura. Desta forma, todos estariam engajados e partilhariam da responsabilidade em uma atividade que interessava a todas as partes. Eu ainda não tinha conseguido construir uma pipa, eles estavam sem material, que sobrava na universidade. Não seria esta uma oportunidade de termos a chance de nos transformarmos mutuamente de uma maneira que nos deixaria, ao mesmo tempo, mais interessantes e mais interessados?(D.C.)

O “meio justo” em pesquisa do qual fala a Despret (2002) implica na negociação

das apostas comuns entre os participantes de um evento, sendo a pipa o elemento em torno

do qual giravam os nossos interesses. As distâncias e os papéis não são dados a priori, mas

frutos das práticas de mediação que vão ocorrendo entre pesquisador e pesquisados. Diz

Latour (2006) que o fato de estar em pé de igualdade com aqueles a quem estudamos não

pode ser considerado uma fraqueza e sim uma qualidade: atores e observadores “estão no

mesmo barco todo o tempo e jogando o mesmo papel na formação de grupos” (p. 51). Os

pesquisados não são mais objetos passivos a espera de que o saber acadêmico lhes confira

alguma interpretação, mas verdadeiros parceiros que nos autorizam a incluí-los em nossas

histórias. Não estamos em campo para dizer a eles o que fazer, mas para criar junto com

eles algo que não pré-existia ao nosso encontro.

As maneiras pelas quais uma parte se deixa ativar pela outra são muitas e variadas.

Na pesquisa realizada em torno das pipas, por exemplo, as formas de recrutamento

operadas sobre a pesquisadora ocorreram de maneira muito semelhante ao episódio vivido

por Heinrich (1991) narrado por Despret (2002). Na tentativa de recrutar e entender os

corvos, o pesquisador passa a ser ele mesmo recrutado com eficiência pelos seus

pesquisados, uma vez que foi sensibilizado por aqueles a quem tentava

compreender/pesquisar. Aprendendo a recrutá-los, o pesquisador é recrutado através dos

seus apelos. Para isto, foi apenas suficiente estar disponível para eles, deixando-se

atravessar por suas emoções, “convertendo o meio em um pouco de si mesmo” (p. 224).

A pipa é um objeto extremamente insinuante em suas formas, cores e movimentos e

recruta de uma maneira muito eficaz. Nosso olhar passa a ser treinado para sua

identificação na paisagem, de forma que nos tornamos sensíveis a todas as questões que

gravitam em seu entorno. Além disso, os pipeiros são seres muito buliçosos e barulhentos.

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É impossível ficarmos indiferentes aos seus gritos de ordem, de vitória ou de advertência,

aos seus pedidos para abastecê-los com água, aos seus chamados para o campo.

Depois de muitos dias de chuva, uma nesga de sol num janeiro molhado. É tempo de férias. Sorrateiramente, emerge no céu um ponto colorido. É sempre assim que começa: como se fosse uma semente que faz brotar magicamente um jardim florido. Agora já são três. Não, cinco! Mais uma! E outra! O convite é irrecusável. Já não dá pra reagir com indiferença, como se eu não tivesse nada a ver com o caso. Meus objetos de estudo bailam no ar como acenando a necessidade de que eu vá a campo. (D.C.)

Logo que acordei, bem cedo pela manhã, o intenso nevoeiro já dava indícios de que teríamos um dia de sol. Lá em casa, haviam me informado de que alguns dos meninos foram me procurar, tinham pedido água e quiseram saber onde eu estava. (D.C.)

Durante a pesquisa, ocorre um recrutamento recíproco entre os atores e os

observadores, uma vez que esses papéis não são estáticos. Da mesma forma como, ao entrar

em campo, nós sensibilizamos aqueles a quem observamos com a nossa proposta, ocorre

também de sermos recrutados quando nos tornamos objeto de interesse para eles.

Do papel de intrusa, estrangeira, “da polícia”, eu pude abandonar a minha posição

de professora e virar aluna, durante a “oficina” para confecção de pipas, improvisada no

meio da rua. Algo meu ficou com eles, algo deles passou a ser parte de mim. Nossas

histórias se cruzavam. A maneira de me verem e de me julgarem estava mudando.

Junto com Dezinho está JP e vêm chegando mais dois que passo a conhecer, o Zu e o Tanaca. Os primeiros haviam falado de mim para os segundos: “Essa é aquela moça que eu te falei, que tá fazendo o trabalho sobre as pipas”, fez a apresentação. Os segundos queriam saber de mais, do que eu ia fazer. (D.C.) Finão, de aproximadamente 12 anos, sentou-se na minha frente e disse que ia fazer uma pipa. Perguntei se podia ir fazendo junto com ele pra aprender. Falava comigo com ares de professor: “Vou fazendo e você vai fazendo também. Assim você aprende! São três varetas: uma maior e duas, um pouco menores, de tamanhos iguais. Você amarra a linha na ponta de cima da vareta que vai ficar em pé e vai enrolando até chegar na que vai cruzar, você tem que medir bem pra ficar no meio, senão a pipa vai subir torta. Tem que prender essa vareta, passando a linha pra lá e pra cá, cruzando. Aí você enrola a linha na vareta que está em pé até chegar na outra vareta que cruza. Vai enrolando a mesma linha até o fim da vara principal. Aí, depois, você vai passando a linha fazendo a armação e amarrando bem em cada ponta. Aí, você pode cobrir com o papel de seda.” Minha armação, “pra variar”, ficou toda torta. Alice ia me corrigindo, dizendo onde eu deveria desatar para retomar o processo de onde eu havia errado... Ela está cortando alguns

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detalhes no papel de seda e vai me ensinando a colar. “Você tem que cortar os pedaços que vão por cima um pouco maiores que os vazados que você fizer e colocar só um fiozionho de cola. Vou deixar esse aqui pronto pra você fazer em casa. Da próxima vez, você traz pronto. Aí você já aprendeu”. Quanto ao papel de seda, também me ensinou que nem toda cor combina, quando a pipa está no alto. Pelo que eu entendi, cores muito semelhantes perdem o contraste, lá em cima, pois parece que é tudo igual. Por exemplo: duas cores claras; verde com azul; amarelo com verde; rosa com vermelho etc. Foi assim que saí de lá com uma tarefa para cumprir em casa. Acho que eles precisavam checar meu aprendizado. (D.C.)

“Sob os auspícios da oferenda”

Havia terminado de ler um dos livros da Despret e tomei este encontro com minhas pipas e seus pipeiros como aquele que poderia ser dar “sob os auspícios da oferenda”. Por que não? O que me impedia? Talvez alguma daquelas normas de higiene que vê a pesquisa como um movimento de purificação em que pesquisadores têm que manter-se resguardados de qualquer mistura com aqueles a quem interroga. Pois bem, decidi correr o risco!(D.C.)

Posso dizer que, em várias ocasiões, exercitamos uma prática comentada por

Despret (2002) na lida com seus pesquisados: as trocas “sob os auspícios da oferenda” (p.

150). Como uma forma de retribuição por eu ter levado o material para a confecção das

pipas, a família de Alice ofertou-me a pipa “Leleca é nois” que foi a estrela de uma boa

parte da tarde.

Todos saíram satisfeitos e eu saí de lá com outras duas pipas que me foram gentilmente ofertadas: a super cobiçada construída por Leleca durante a oficina e a outra igualmente cobiçada “Leleca é nois”. Argumentei que não poderia levar a última. Sabia da importância que ela tinha e que ela só fazia sentido nas mãos de Leleca. Alice falou que eles gostariam muito que eu a levasse, que ficariam aborrecidos se eu a recusasse. Leleca falou que era pra exposição. Foi aí que percebi que a idéia de fazer a tal da exposição de pipas tinha se tornado irreversível. Sem dúvida, foi o encontro marcado pela troca de oferendas. (D.C.) ...Tentando fazer a minha pesquisa inspirada na forma como as etologistas mulheres se permitiram abordar o campo de uma maneira mais intuitiva, fazendo intervenções “sob os auspícios da oferenda”, tenho feito isso com os meus pipeiros: nós trocamos presentes. Não me sinto constrangida por isso. Muito ao contrário. Tenho o maior prazer em abastecer-lhes de papel, varetas e linha, quando me pedem. Às vezes, a brincadeira pára justamente porque faltam estes elementos. (D.C.)

Se eu podia passar tanto tempo com aquele grupo que me oferecia tantas

oportunidades, como ficar indiferente às suas demandas? Como não me sensibilizar com os

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seus pedidos de material que, afinal, só objetivavam a continuidade da brincadeira? Da

primeira vez mais discretamente, o pedido de linha logo ficou mais explícito com todas as

instruções necessárias ao seu cumprimento.

Os meninos estão com suas varas comentando sobre as romãs que pegaram. Vão embora alegando que está muito calor. Só restam Tião e Lalá. Os meninos param, olham para trás e perguntam se eu tenho “dos grandes”. Outro corrige: “Ela não tem. Ela não solta pipa!” Pergunto: “Um dos grandes o quê?” “De linha”, eles me respondem. Falam que o carretel custa R$1,40 e se eu posso trazer pra eles amanhã. Concordo em dar-lhes linha. (D.C.)

Os meninos voltam a me pedir linha e até me indicam onde comprar: Bar do Deci, Bar do Lacerda, no supermercado Esquinão, Lojinha do Bosco, Armarinho S. José. Dizem que deve ser da marca Corrente, pois as outras são fracas, estancam a toa e não pegam cerol. Dezinho diz que os meninos estão escolhendo demais: “A ‘muié’ já vai trazer linha e vocês ainda estão escolhendo?? (“Muié”, “dona”, “dona do caderno”, “ela” são algumas das formas como se referem a mim). Todos começam a rir.(D.C.) Em compensação, também podia ser alvo da generosidade dos meus pesquisados. Ele me dá sua linha para eu segurar e Zu também oferece. Estão sendo generosos com a pesquisadora, provavelmente me dando a oportunidade de sentir a mesma sensação que eles sentem ao puxar a linha tensa pelo vento. (D.C.) JP fica do meu lado conversando enquanto Zu me pede para segurar a pipa que ele acaba de pegar para que possa desembolar a rabiola. JP lhe adverte: “Não vai demorar muito que ela precisa trabalhar”.(D.C.)

As trocas entre pesquisador e pesquisado são inevitáveis e, assim, espera-se que

ocorram dentro de uma relação de respeito e confiança. A etimologia da palavra respeitar

nos aponta para o latim re-spectare, ou seja, olhar duas vezes (Despret, 2006, p. 216).

Trata-se de uma responsabilidade assumida com aqueles que nos permitem misturar suas

histórias com as nossas, quando lhes oferecemos o conhecimento de como se tecem as

narrativas em que os incluímos. Mais que objetos, trocávamos experiências, ofertávamos,

uns aos outros, histórias que podíamos protagonizar juntos. Um dos compromissos

assumidos durante o nosso trabalho de seguir a pipa em ação foi o de disponibilizar para

leitura o texto do diário de campo e das nossas entrevistas aos respectivos atores/autores.

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Enquanto isso, ela sentou-se no meio fio para ler as cópias do diário de campo que eu havia lhe dado para conhecer. Expliquei que pretendia mostrar-lhe o que havia escrito das observações feitas com aquele grupo. Era para que avaliasse se as observações estavam corretas, se faltava alguma coisa que eu havia esquecido ou se eles gostariam que eu retirasse alguma observação inadequada. Ela poderia ler com calma em casa e depois me dar um retorno. Ficou um bom tempo entretida com a leitura e não se animou a soltar pipa comigo, conforme havíamos combinado. “Está bom de ler. Não estou conseguindo parar”, ela comenta. (D.C.).

Na semana seguinte, ela me conta que leu as folhas do meu diário de campo para

seus filhos, quando iam para a cama dormir e que as crianças adoravam se ver incluídas

naquela história. Oferecer o texto do diário foi uma forma de colocar a prova o meu relato e

fortalecer a nossa relação de confiança, mostrando que não havia nada a esconder.

A curiosidade em torno do meu bloco de notas fazia com que alguns deles me

pedissem papel fazer giriquinhos, para desenhar, para escrever ou rabiscar (quando ainda

não sabiam ler, como no caso dos menores) e mesmo para lembrar de uma história que

tínhamos vivido juntos.

Sheik chega perto, olha meu bloco de anotações e exclama: “Tudo isso?” O outro menino a quem apelidam de Shreck quer saber do que se trata. Comento com os meus conhecidos que eles ainda não me apresentaram aos novos amigos e que por isso eles ainda não sabem o que eu estou anotando. Outro menino, apelidado de Bigodão, também fica interessado: “É com ela (referindo-se a mim) que vocês iam soltar pipa?” Sheik responde que sim e eu acrescento que era quando íamos lá para o campinho e para o morro da Caixa D’água. Sheik constata que está fazendo um ano que isso aconteceu. Foi nas férias de julho do ano passado. (D.C.)

O Dezinho perguntou se este era aquele caderno que eu anotava da outra vez que nos vimos, há quase um ano atrás. Falei que sim. Os outros meninos ficaram curiosos. Se posicionaram em torno de mim para ver o tal caderno. Li um trecho do que tinha escrito. Um deles achou que era muita paciência de minha parte. “Pra quê você escreve?”, pergunta. “Pra alguém ler, um dia. Talvez até mesmo vocês”, respondo. Explico que faz parte da minha pesquisa registrar o movimento com as pipas. (D.C.)

Tornar-se um aliado

O que seria tornar-se uma aliada de um grupo de pipeiros, ou pelo menos reconhecida como

alguém que não lhes faria mal e que, ocasionalmente, poderia funcionar como provedora,

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defensora ou porta-voz? Como co-optar a pesquisadora em ações que lhes fossem

convenientes? Ou recrutá-la em testemunhos para questões que lhes fizessem sentido? Que

função atribuir a alguém que só observava e anotava os movimentos realizados no calor da

brincadeira? Penso que estes efeitos só se podiam medir com o tempo, mas já se esboçavam

ao longo dos contatos feitos, em poucas palavras e pequenos gestos. Vale lembrar que as

alianças travadas ao longo desta rede foram muito variadas e não se limitaram aos grupos

de meninos de quem segui a brincadeira. Aqui posso incluir os meus entrevistados, a

CEMIG, o pessoal da UFSJ, do Museu Regional e outros. Fui aliada e tive aliados.

Penso que fui apoio logístico em diversas ocasiões quando forneci elementos que

podiam lhes garantir a continuidade da brincadeira, ou dando-lhes proteção em situações de

ameaça, como quando eles se refugiaram ao meu lado durante a ronda do Tático Móvel.

Percebo que a aproximação de Lalá tem a ver com a aproximação de um carro de polícia que passa por nós. Os policiais nos encaram com uma expressão sisuda, olhando feio para nós. Lalá diz que tem medo deles. Os meninos dizem que ninguém ali fez nada e que não há razão para ter medo deles. “Ainda bem que eles não pararam para ver se a nossa linha tinha cerol!” (D.C.)

Ou quando pude assumir a defesa de um deles, intercedendo junto à mãe para que não

levasse uma surra.

Subimos a ladeira juntos. Bem no alto, aparece a mãe de Sheik. Ele agora era só um menino assustado que chorava com medo de apanhar. Perguntei se ele queria que eu conversasse com ela. Ele queria. Me apresentei e expliquei que estive acompanhando a brincadeira do grupo durante toda a tarde. A mãe me falou da sua preocupação, pois o perdeu de vista... A mãe de Sheik prometeu que hoje ele não iria apanhar, mas que não haveria outra vez. (D.C.)

Ou quando pude segui-los e acompanhá-los na subida do morro da caixa d’água.

Ficaram algum tempo soltando suas pipas lá na esquina, mas um deles propôs irem para o campinho. Houve uma discussão sobre as mães deixarem. Mas eles resolveram ir assim mesmo. Perguntei se podia ir junto e eles logo aceitaram. “Ela vai também!”, “Ela vai também!”, uns falaram pros outros. Me senti bem-vinda.(D.C.) O Angu me fala: “Ainda bem que tem um adulto com a gente”. Pergunto se os pais sabem que eles estão ali. Angu diz que não, mas que se eu estivesse junto, eles estariam mais

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protegidos. A responsabilidade pesou, mas penso que seria pior se eu não tivesse vindo, uma vez que eles viriam de qualquer jeito. (D.C.) ...No dia seguinte, chegando lá, ouvi um “Êêêêhhh!, saudando a minha chegada. Desta vez são apenas 4 meninos: os irmãos Gui e Angu, Paulinho e, pra minha surpresa, Sheik. Pergunto se as mães sabem que estão ali. Eles responderam que sim e que elas permitiram que viessem na condição de que eu estivesse presente.(D.C.) Ou mesmo quando percebi que uma exposição com objetos do seu interesse poderia lhes

cativar a atenção.

Os meninos começam a comentar que viram as fotos da pesquisa na exposição do Museu. Alguns se impressionaram com a pipa chinesa, em forma de dragão. É nesse momento que tenho finalmente um feed-back da presença deles na exposição de pipas. Todos receberam convites nominais, extensivos às famílias, mas nem sempre eu estava no Museu e assim, não sabia ao certo quem tinha comparecido. Os meninos sentam no meio fio para conversar. (D.C.) Penso que, em várias ações pontuais, pude advogar em causa deste grupo e pude, com o

tempo, ser aceita em seu convívio como alguém com quem podiam contar. Tornar-se um

aliado, em pesquisa, para nós, significa que podemos ser afetados pelos interesses daqueles

a quem pesquisamos.

Termos de Consentimento ou Termos de Constrangimento?

Mas, nem só de alianças se fez a pesquisa. Como a maioria dos meninos era menor

de idade, assumi compromissos perante o Comitê de Ética. Sempre que foi possível,

fizemos contato com os pais, em geral moradores de quarteirões próximos, para esclarecer

o trabalho e encaminhar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Seria uma forma

de informar sobre a pesquisa, dar a referência de onde me encontrar em caso de dúvida,

legitimar a minha ação durante este período. Foi uma necessidade surgida inclusive para

explicar o por quê do aparecimento dos materiais (vareta, papel de seda e linha) que

integraram as trocas que estávamos fazendo. Enquanto que, nas entrevistas, todos os

narradores aceitaram prontamente assinar os termos, a maior parte daqueles que foram

endereçados às famílias dos menores que soltavam pipas não voltou: dos 18 Termos de

Consentimento para observação da brincadeira, apesar de terem sido encaminhados

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pessoalmente, disponibilizando nome, endereço e telefone da pesquisadora, apenas dois

voltaram assinados. Um papel escrito com a demanda de uma assinatura causou grande

estranheza em se tratando de uma ação cujo seguimento se daria num espaço público.

Houve um consentimento apenas tácito e amistoso. Entendemos que o não retorno dos

termos se deu como a ameaça vivida pelas famílias ao encarar um papel assinado como

algo desproporcional aos nossos propósitos de pesquisa. Como já mencionamos,

disponibilizamos várias cópias das nossas anotações para o conhecimento do conteúdo do

nosso diário de campo, mas foi em vão. Apesar dos comentários positivos ao nosso texto,

houve um esquecimento sintomático e sub-reptício para fazer o retorno dos papéis.

Qualquer insistência de nossa parte soaria como um constrangimento. Assinar um papel

dando consentimento para a realização de uma pesquisa, na rua, num período do dia em que

eles próprios não tinham controle total sobre a ação de seus filhos, não fez qualquer sentido

para a grande maioria dos pais.

Uma das minhas preocupações, nestes dias, é o fato de ter tido muito pouco retorno dos termos de consentimento para a observação da brincadeira de menores. Considero que este tem sido um dos maiores entraves da pesquisa de campo. De 18 termos de consentimento entregues, apenas 2 voltaram assinados. “De boca”, eu estou autorizada, ninguém vê qualquer problema, mas assinar um papel autorizando causa muita insegurança para eles por ser uma conduta formal e estranha à sua rotina. A resistência dos pais (poderíamos falar de recalcitrância?) na assinatura deste termo pode ter várias explicações. A leitura do termo pode estar sendo um item problemático. Será que todas as famílias têm condições de ler e entender o que está escrito? Estou subestimando-os, ou superestimando-os?Estarei assustando-os? Será que falhei na confecção do texto e ele não está suficientemente claro? Será que não foi suficiente, na minha tentativa de agir com reciprocidade, eu explicitar o meu lugar de moradia e de trabalho, meu telefone, o tipo de pesquisa, o que ela pedia de envolvimento dos participantes, a garantia de sigilo, a não identificação dos menores, o oferecimento da referência de pessoas que são conhecidas comuns, minhas e deles (uma funcionária da UFSJ e uma ex-vizinha) e todas as informações contidas no termo? Independentemente do que está escrito, a existência de um documento assinado pode significar um compromisso muito maior do que uma autorização verbal, dada a informalidade da última e o aspecto burocrático da primeira. (D.C.)

Uma outra constatação me surpreendeu e, ao mesmo tempo, me alertou para o risco

na pesquisa com menores: passar de pesquisadora à aliciadora. Segundo a fala de um dos

meninos, sempre muito transparentes nos seus comentários, uma das mães fez a fantasia de

que eu poderia colocá-los num carro e levá-los embora, caso assinasse o termo. Se, em

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alguns casos, como no grupo de meninos que acompanhei em julho do ano passado, a

minha presença podia funcionar como elemento tranqüilizador, em pelo menos um caso era

motivo para deflagrar fantasias: “Quem é essa que fica debaixo deste sol, atrás dos

meninos? Só pode ser uma louca ou uma santa! Em troca do quê ela dá papel, linha e vareta

para os meninos?” foi o comentário que a mesma mãe explicitou na conversa comigo,

quando estive em sua casa, apresentando a pesquisa. É paradoxal porque a grande maioria

daqueles a quem acompanhei são menores e brincam nas ruas sem nenhuma supervisão de

adultos. Uma vez ou outra, aparece uma irmã ou a própria mãe desesperada com o sumiço

deles, quase sempre no final da tarde quando eles não cumprem o horário combinado para

voltar para casa. Quase todos os meninos me levaram até suas casas para conhecer as mães

que me receberam de forma bastante cordial. Para ser simétrica e mesmo por ser inevitável,

eles sabiam onde eu morava. Mas para evitar fantasias e falatórios, eles nunca entraram em

minha casa. Dizia-lhes que seriam muito bem vindos se viessem com os pais ou

responsáveis. Apenas pediam água e alguma pipa que se enroscasse no telhado.

Dezinho propõe levar-me até sua casa para falar com a mãe dele. Da outra vez que estivemos lá perto, a mãe havia saído e eu só consegui falar com a mãe de Zu e Bu. Neste dia, visitei várias mães em suas casas, levada pelos meninos. Foi também o dia em que eles descobriram exatamente onde eu morava e passaram a ter minha casa como referência. Para checar se era mesmo verdade que eu morava na casa branca que eles podiam avistar lá da rua de baixo, um grupo veio tocar a campainha e pedir água. Nossas trocas estavam ficando cada vez mais simétricas. (D.C.)

Mesmo sem o retorno dos “termos”, entendemos não ter infringido nenhum

princípio ético na ação de seguir a brincadeira de pipas num espaço público e aberto a todo

tipo de presença. Estar no morro seguindo os meninos era uma ação que qualquer um podia

fazer, fosse com inocência ou com má intenção. Toda a nossa ação foi testemunhada

amplamente a céu aberto. A presença da pesquisadora era apenas mais uma, entre pessoas,

animais, objetos, elementos da paisagem. Temos plena convicção de que esta presença não

foi inócua, mas também não foi nociva.

Sabemos que esta postura envolve riscos, mas decidimos assumi-la, ou toda a

pesquisa estaria inviabilizada. Mantivemos as anotações como já estávamos fazendo, com a

substituição dos nomes por apelidos ora inventados por nós, ora escolhidos pelos próprios

meninos que desejavam se reconhecer no meu texto. Assim, ao longo do registro das nossas

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observações, como menores, os meninos não foram expostos em suas identidades nem

tampouco qualquer um dos seus comportamentos foi passível de julgamento: limitamo-nos

a descrever os atores com a preocupação de que qualquer cena exposta fosse uma

oportunidade para subjetivá-los positivamente, jamais como ocasião para o seu

assujeitamento, ou para sua desqualificação. Em nosso entendimento, não haveria razão

para privá-los desta co-autoria, mas rendemo-nos ao compromisso assumido com o Comitê

de Ética sobre garantir a privacidade dos atores, apesar de entendermos que, como aliados

que recrutaram a pesquisadora nas histórias que eles a motivaram a contar, eles foram co-

autores de todo o enredo.

As boas questões

Segundo Despret (1996), toda questão de pesquisa guarda uma duplicidade de base

para a qual devemos buscar um instante de equilíbrio. Perguntar “quem sou eu e como é o

meu olhar para que o objeto me apareça tal qual é” seria um tipo de construtivismo estéril

calcado no pólo da subjetividade. Perguntar “quem é esse objeto e por que o vejo assim”

cairia num relativismo enclausurado, por outro lado, no pólo da objetividade (p. 136). A

proposta para um trabalho de pesquisa em Psicologia se situaria num espaço “entre”, de

meio, de construção entre os mais variados actantes, contemplando as idéias defendidas até

aqui.

Narrando as diferentes formas de fazer estudos em Etologia, a autora (ibidem),

demonstra que uma pesquisa a priorista estabelece, por antecipação, as questões a serem

investigadas, de como será feita a manipulação das variáveis, testando hipóteses e impondo

ao real os limites das respostas a serem encontradas, à semelhança de um sistema de

espelhos. É típica da démarche experimental. Uma pesquisa a posteriorista, em contraste,

não coloca nenhuma questão de maneira explicita, pois espera que os fatos ocorram

primeiro para depois fazer a emissão de hipóteses. Nesta orientação, recolhem-se fatos

anedóticos, tenta-se dar-lhes sentido pela criação de elos entre eles, tem-se mais a

preocupação de observar a variedade do que a variação. É típica da démarche

antropológica. Entendemos que a nossa pesquisa com as pipas ocorreu num espaço em que,

embora não tenhamos nos furtado de algumas perguntas iniciais, privilegiamos as

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narrativas, a diversidade dos comportamentos, a nossa proximidade com o objeto, o

seguimento cotidiano dos eventos para produzir a sua inscrição numa história. Mais correto

seria dizer que tentamos realizar o nosso trabalho durante o curso da ação nos eventos para

os quais concorriam vários elementos nos espaços que percorremos. Na medida em que

não temos mais a necessidade de purificação da démarche experimental, podemos aceitar

que a pesquisa se faça em lugares nada convencionais: as oficinas, as ruas, os ateliês, as

cozinhas e outros contextos com uma intimidade estreita com a vida cotidiana passam a ser

lugares interessantes onde podemos seguir o curso de uma ação se tecendo a partir de uma

causalidade em redes.

Mas como fazer a delimitação de um foco no seguimento do curso de uma ação que

se faz de forma reticulada? Como estabelecer “aprioridades” num Estudo Ator-Rede? Quais

serão as nossas boas perguntas, levando em conta os interesses dos nossos narradores?

Nesse sentido, a pesquisa não se torna mais fácil, pois nos coloca frente à dificuldade de

seguir os “atores” que se espalham em todas as direções, “como um enxame de abelhas que

uma criança vem perturbar. Que ator preferir? Qual deles é preciso seguir por mais tempo?”

(Latour, 2005, p. 178) Esse fato nos põe diante da necessidade de abdicar do controle total

da situação, uma vez que este se revela impossível.

As questões que nos serviram de ponto de partida, especialmente aquelas que

justificavam a nossa busca por uma Psicologia Social do Objeto, estiveram orientadas para

entender as interações como eventos em que humanos e materiais se misturam para a

produção simultânea de ambos. A pipa, objeto de nossa eleição, como brinquedo,

brincadeira, ou esporte, tem arregimentado grupos de pessoas desde a antiguidade,

assumindo feições e significados que vão se desenrolando no tempo e no espaço. Ela

permanece viva enquanto prática lúdica engenhosa, num tempo em que a tecnologia digital

já é parte de nossas vidas.

A pipa pode ser considerada o próprio dinossauro dos brinquedos. A pergunta sobre

a possível causa da extinção dos dinossauros já teve muitas possibilidades de resposta por

parte das ciências, mas continua tendo uma comprovação difícil: ninguém até hoje pôde

afirmar com certeza porque os dinossauros desapareceram da face da Terra. Mas

imaginemos que um tipo de dinossauro pudesse ser estudado, uma vez que sua

sobrevivência permanecesse assegurada e constatada nos dias de hoje. Não seria

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interessante investigar o porquê de sua manutenção, quando todas as condições apontam

para a sua extinção iminente? Traçando a história de seus usos, desde tempos longínquos,

o que é que permite à pipa continuar ocupando um lugar na rede de eventos que ainda hoje

permanece atuante na vida dos humanos? De que forma sobrevive? Que tipo de vínculos a

mantêm viva? O que a sustenta? Como se transmite o conhecimento sobre as práticas de

sua construção e de seu uso? Como é a relação daqueles que a elegem como seu objeto de

brincar? Estamos assim nos propondo, se não a reabrir, a criar esta controvérsia que, aqui

enunciada, poderá assumir novas feições ao longo do trabalho. Como num diagnóstico

muda a enunciação da queixa ao longo do processo, numa pesquisa, as questões vão se

modificando, tornando-se outras, num devir que é próprio do ato de pesquisar. Ao longo da

pesquisa, alguns deslizamentos ocorreram para, por exemplo, pensar as controvérsias em

torno do cerol, ou de como as pipas se prestam aos mais variados fins, agindo e fazendo

agir outras entidades.

Entendemos que descobrir as boas questões é uma ação proporcional à possibilidade

de deixar aparecer o inédito, de poder ver algo diferente do que aquilo que o pesquisador

foi treinado para observar. Parafraseando Beauvoir no que tange ao devir mulher, Despret

(2002) pontua que não nascemos pesquisadores: tornamo-nos, a todo instante, através de

nossas experiências e nossas práticas. Nós mudamos ao longo da pesquisa e assim também

ocorre com as nossas questões. Acreditamos que um problema de pesquisa é sempre a

abertura de um campo de polêmica que nunca será estático, sempre se metamorfoseando à

medida que o tempo passa. Desta forma, a controvérsia sobre a sobrevivência da pipa irá se

traduzindo, a cada capítulo, buscando novas traduções que vão enriquecê-la e re-situá-la

nas redes que lhe servem de apoio.

Metodologicamente, já de início, acreditamos que o Fenômeno Pipa possa

contribuir para enriquecer as questões de uma Psicologia Social através das controvérsias

aqui explicitadas sobre como nos colocamos em ação, na busca por uma maneira mais

simétrica de recrutar e sermos recrutadas pelos atores dos eventos seguidos. A seguir,

através de uma gama variada de histórias, veremos que o traçado feito por este objeto vem

de muito longe, fazendo desvios e, muitas vezes, impondo lacunas, num rastro nem sempre

fácil de identificar. Tentaremos, por fim e na medida do possível, responder as perguntas

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cabíveis em qualquer Estudo Ator-Rede, especialmente se estamos nas sendas da

Psicologia. Segundo Despret (2002),

...torna-se uma exigência levar em conta o que vai modificar a maneira mesma pela qual se definem a prática e a relação dos pesquisadores com aqueles a quem interrogam. A questão não é mais se nossas proposições são interessantes para eles ou para nós, mas como nós vamos nos transformar junto com eles (p. 259).

O que Despret evidencia com esta exigência é, ao mesmo tempo, a necessidade e o

risco de que a pesquisa seja uma prática de transformações mútuas. Ao nos transformarmos

junto com os nossos pesquisados, veremos que as mudanças não se operaram por

substituição, mas pela reunião de propriedades resultantes das trocas efetuadas, à medida

que os atores vão se deixando afetar uns pelos outros. Todas as vezes que entidades

entraram em contato, sempre que a experiência nos proporcionar o encontro de influências,

haverá o que aprender e este evento será do interesse da Psicologia, ou mesmo da ciência,

de forma ampla. Para Latour (2004, 2005), uma boa questão se remeterá ao fato de, como

pesquisadores, não só podermos nos transformar junto, mas de sermos capazes de aprender

com nossos pesquisados novos modos de entrar na política para a composição de um

mundo comum.

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GALERIA DE IMAGENS CAPÍTULO IV

Campinho na base do morro da Caixa d’água O mesmo local no ângulo oposto, com visto do bairro do São Caetano. vista da cidade ao fundo

Meninos brincando numa das ruas do Bairro Grupo que acompanhamos em outra rua do do São Caetano. mesmo bairro.

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CAPÍTULO V

A pipa nas guerras

Éolo, o deus dos ventos, tem muita dificuldade em aceitar o fato de ser o único invisível entre todos os elementos. Por isso faz de tudo para aparecer e ser visto: balança as árvores, faz as folhas caírem, cria ciclones, move moinhos, espalha a fumaça, põe as nuvens dançando nos céus, levanta poeira e tantas outras coisas mais. Fica orgulhoso de se mostrar desse jeito, de aparecer. Um certo dia ele observa corpos coloridos voando no horizonte. Pensa que é panapaná, aquela revoada de borboletas. Presta mais atenção e vê que é outra coisa: trata-se de uma invenção dos homens, controlada por mãos de crianças, de jovens, de adultos e de velhos. São os papagaios navegando nos ares, enfeitando os céus, alegrando os corações. Éolo quer aprender tudo sobre eles, pois descobre que se trata da primeira parceria que tem com os seres humanos. Da sua parte, ele ajuda os papagaios a subir, a fazer estripulias, mas são os homens que controlam os movimentos dos papagaios, ajudando e sendo ajudados pelos ventos. O que mais surpreende Éolo, porém, é saber que, no começo, os papagaios também eram usados como armas de guerra e, com o tempo, as crianças se apropriaram deles e os transformaram em brinquedos. Éolo, o deus dos ventos, tem uma idéia genial: vai procurar Ares, o deus das guerras e lhe sugerir que siga o exemplo dos papagaios e que transforme todas as armas de guerra em armas de brinquedo. Tomara que a idéia de Éolo seja aceita e que, assim, o mundo possa brincar mais e ser cada vez mais pacífico (SIMÕES COELHO, 2006). 87

Da tática à prática (e vice-versa).

As guerras fermentam estratégias que cooptam diversos tipos de invenções. Scheps

(1996) destaca o papel das guerras e dos conflitos vivenciados pela humanidade na sua

ligação com as técnicas, cada guerra puxando uma técnica diferente no decorrer do tempo.

Virilio (1996) mostra que algumas das técnicas desenvolvidas durante as guerras

transformaram-se, posteriormente, em objetos lúdicos, como o caso dos simuladores de vôo

usados pela Força Aérea Norte Americana - para economizar vidas humanas e gasolina 87 “Armas e Brinquedos”, texto enviado por Ronaldo Simões Coelho, educador, psicanalista, escritor de livros infantis, para a exposição de pipas realizada numa parceria entre o Museu Regional de São João del Rei e a Brinquedoteca da UFSJ, em maio de 2006)

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para os bombardeios - que viraram war games: antes jogados por generais, passam a ser

entretenimento de garotos nas casas de diversão virtual. Opera-se, nestes casos, o oposto da

situação mencionada no primeiro capítulo, ou seja: se brinquedos dão a oportunidade para o

aparecimento de alguns avanços tecnológicos, como foi o caso da lanterna mágica para o

cinema, ou da pipa para o avião e seus sucessores, em outras situações, algumas técnicas

criadas para dar solução a algumas necessidades humanas acabam virando objetos lúdicos.

No Oriente, a pipa tem sua história associada às estratégias utilizadas pelos generais

chineses em ocasiões de guerra, sendo a versão bélica a mais extensamente aceita, quando

se fala da sua invenção. Segundo Rios (2003), era primordialmente utilizada como

sinalizador para recrutar, para as frentes de batalha, os soldados que precisavam cultivar a

terra nos intervalos das lutas. Conta-se que a pipa era suporte para erguer fogos de artifício,

apetrechos sonoros e toda uma série de artefatos que os generais podiam lançar mão como

instrumentos durante as guerras. Conforme Streeter (1974), um desses generais, da dinastia

Han, usou a pipa para medir a distância entre o seu exército e as paredes de um palácio, o

que lhe deu a chance de escavar um túnel e entrar na fortaleza inimiga sem ser detectado.

Esta façanha foi possível, pois a linha do solo (1), a pipa marcando um ponto a uma certa

altura (2) e o fio que liga a pipa ao empinador (3) traçam um triângulo retângulo cujos

lados podem ter sua medida, calculada hoje pelo difundido teorema de Pitágoras. Streeter

(ibidem) chama a atenção para o fato de que se acrescenta, a esta versão, uma outra um

tanto lendária de que o referido general tinha uma estatura reduzida que lhe possibilitou

voar até o acampamento inimigo amarrado a uma pipa para aterrorizar os soldados

inimigos, incitando-os a retornar aos lares e abandonar as frentes de combate. Seguindo o

mesmo estilo, outro general dessa dinastia, cerca de 200 a.C., numa atitude desesperada

diante do cerco do inimigo, fez voar sobre o acampamento inimigo pipas equipadas com

cordas de metal esticadas com o fim de produzir ruído semelhante ao de um assobio para

aterrorizar os soldados que acreditaram ser este um aviso sobrenatural para recuar diante do

perigo. Seria por essa razão que até hoje as pipas têm, na China, o nome de “harpas do

vento”.

Outras lendas, tendo a pipa como protagonista, ainda são veiculadas. Como nas

lendas não se sabe o quanto de verdade é transmitido, resta-nos entendê-las como uma

necessidade de perpetuar, através dos relatos que passam através das gerações, os feitos

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extraordinários que nos causam uma profunda impressão, que têm um lastro relativo de

verdade e que os povos aumentam e deformam a cada vez que são contados. Outro desses

feitos, relatado por Streeter (ibidem), também procedente do Oriente, foi o de uma lenda

japonesa que descreve o roubo de valioso objeto do castelo de Nagoya, em que o ladrão usa

uma pipa para ser içado para o interior dos muros sem chamar a atenção dos guardas.

Para além das lendas, com relação aos objetos eólicos utilizados em estratégias

militares, Pontes et alii (2003) mencionam determinados tipos de bandeiras com formato de

cone, utilizadas pelos romanos, no primeiro século depois de Cristo, semelhantes às

“birutas”. Tais bandeiras não apenas serviam como estandartes de batalha como

funcionavam para mostrar a direção dos ventos, o que dava aos arqueiros romanos uma

vantagem a mais em relação aos adversários para o lançamento das suas flechas. Os

mesmos autores datam de 1405 a primeira referência conhecida ao vôo da pipa na Europa,

em um manuscrito sobre tecnologia militar.

No século passado, o avião teve papel preponderante na I Grande Guerra, dando

supremacia às facções que o utilizavam como instrumento para bombardeios aéreos sobre

as regiões inimigas. Mesmo com a invenção do avião, as pipas tiveram seu emprego outra

vez resgatado para fins militares, quando os exércitos francês, inglês, alemão, italiano e

russo incorporam-nas para compor unidades de observação nas frentes de combate. Durante

a II Guerra, a marinha americana aperfeiçoou a técnica de observação com um aparelho

misto de pipa e avião, dotando-o de artefatos giratórios que ficavam na cauda dos comboios

mercantes para detectar a presença de submarinos e bombas de profundidade. Segundo

Rios (ibidem), a idéia partiu do Tenente Paul Garber, escoteiro e pipeiro desde a infância

que, com seu papagaio acrobático, marcou o momento em que a pipa passa de brinquedo a

esporte.

Kent (1997) mostra que a inspiração da pipa para as guerras vai além. Francis

Rogallo, um engenheiro americano, desenvolvia pesquisas aeronáuticas para fins militares

quando, em 1948, patenteou uma asa delta flexível, concebida para içar foguetes nos

primórdios do programa espacial americano, oferecendo a base para o desenvolvimento dos

planadores. Hart (1967) ressalta que erguer homens e tracionar torpedos foram apenas

alguns dos usos que as pipas tiveram para fins militares durante as grandes guerras, antes

que o avião assumisse a supremacia nos ares. Além de ser utilizada para distribuir panfletos

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e cartas, o autor menciona que as forças aliadas, durante a segunda guerra, atribuíam muito

valor às pipas como barreira de proteção às escoltas: as pipas caixa, desenhadas para serem

grandes displays de propaganda, voavam ao longo das linhas ocultando a barreira de fios

dos olhares adversários.

A produção tecnocientífica - utilizando um termo mestiço que resulta da imbricação

dos domínios da metis88e da episteme89 - nos oferece alguns exemplos notáveis de como os

inventos foram germinando ao sabor das negociações feitas por grupos de interesses. Joliot

e a bomba atômica são o assunto de grande parte de um capítulo tecido por Latour (2001a)

para mostrar que as descobertas científicas não estão à margem dos acordos feitos entre

cientistas e entre estes e seus patrocinadores, ou seja, aqueles que dispõem dos recursos que

permitem o fluxo que dá vitalidade ao trabalho científico. Os caminhos percorridos são

plenos de desvios, brechas que se abrem e se fecham, impondo articulações. A metis tanto

quanto a episteme não sobrevivem se não estiverem consistentemente ligadas a uma rede

que as vascularize e lhes permita a vida.

Segundo Rios (2003), para sobreviver, as técnicas devem adaptar-se às novas

modas, manias e experiências, pois, caso contrário, perecem e são enviadas ao museu de

antiguidades que acumula as peças e as geringonças que perderam a sua serventia para os

humanos. Este autor adverte que a pipa, apesar de ter tido o seu nascedouro em culturas

arcaicas, não é uma criação primitiva. Se, no Oriente, evoca-se o seu caráter lendário

durante as guerras, ou quase sempre ligado a forças sobrenaturais, no Ocidente, a pipa

assumiu nova aplicação, tornando-se um instrumento da ciência. Ainda assim, não perdeu a

sua face guerreira, popularizando-se por integrar as chamadas “guerras no ar”.

A questão das disputas é um item de grande importância no caso das brincadeiras de

papagaios, a ponto de Pontes e Magalhães (2003) terem dado, ao seu trabalho sobre os

papagaios, um título bastante ilustrativo90. É bem verdade que não podemos afirmar que

todos aqueles que soltam pipas o fazem para guerrear: alguns o fazem por razões puramente

artísticas, outros vêem na prática de soltar pipas um ato místico, outros ainda o fazem pela

88 Metis = forma de inteligência particular que cultivavam os gregos, combinando faro, sagacidade, artimanha, atenção vigilante e senso de oportunidade de que se utilizam os caçadores e pescadores (DESPRET, 2002, p. 218). 89 Episteme = do grego epistemé que significa ciência. (CUNHA, 1982) Ver mais sobre metis e episteme no capítulo VII. 90 “Guerra no ar: tradição e cultura do papagaio em Belém”.

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sensação de paz e liberdade que obtêm. Mas o fato é que, dificilmente, podemos retirar do

brinquedo a sua faceta bélica. Como parte da brincadeira, está a guerra.

As guerras com pipas são um passatempo bastante popular em vários lugares do

mundo e encontram sua tradução peculiar de norte a sul do Brasil. Exigem astúcia, amplos

espaços e têm como objetivo cortar a linha da pipa oponente. Esta proeza depende da

combinação da habilidade nos movimentos com a qualidade na confecção de uma mistura

cortante composta de vidro moído e cola que é passada na linha de cada uma das pipas

guerreiras. Apesar de ter esta composição básica, o “cerol”, como é chamada essa mistura,

tem receitas muito variadas que dependem dos materiais disponíveis em cada região.

A disputa, na brincadeira de pipas, não é obrigatória, mas é praticamente inevitável,

entre grupos que soltam o brinquedo num mesmo território. É o que constitui o atrativo em

torno desta atividade, pelo menos sob a ótica de alguns. A guerra é um ingrediente que

instiga pela experiência de testagem de determinados limites: da pipa, do cerol utilizado na

linha, do soltador, do grupo do qual faz parte, das condições do vento, enfim, de todo um

entorno cuja composição pode surpreender.

O jogo, o jogo agonístico e a abordagem etológica.

Huizinga (1996), em livro escrito em 1938, traça um histórico do jogo desde as suas

origens mais remotas até a contemporaneidade, não lhe sendo difícil mostrar um certo fator

lúdico em todos os processos culturais enquanto um criador das formas fundamentais da

vida social. De acordo com o autor, nas sociedades primitivas, o jogo está presente, tal

como nas crianças e nos animais, observando-se nele todas as características consideradas

lúdicas: ordem, tensão, movimento, mudança, solenidade, ritmo, entusiasmo. Se, entre os

animais, o jogo é desprovido de expressão verbal, em sua fase mais tardia entre os humanos

o jogo está associado às formas mais elevadas de cultura. Huizinga (ibidem) entende o jogo

como uma atividade que encerra características que o definem como tal:

• É uma atividade voluntária, pois o jogo sujeito a ordens deixa de ser jogo, podendo

ser, no máximo, uma imitação forçada. Fazendo contraponto ao trabalho, é

praticado nas horas de ócio, só ligando-se às noções de obrigação ou dever quando

constitui uma função cultural reconhecida, como o culto ou ritual.

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• É um “intervalo” na vida cotidiana, uma supressão da vida real para uma esfera

temporária de atividade com orientação própria em que o enlevo e o entusiasmo

podem chegar ao arrebatamento.

• É uma atividade que precisa de limitação, no tempo e no espaço, de maneira

material ou imaginária, deliberada ou espontânea: arena, mesa de jogo, círculo

mágico, templo, palco, tela, campo de tênis, todos são “lugares sagrados” em cujo

interior se respeitam determinadas regras. Tem um início e um fim previstos.

• É regido por regras consentidas que criam ordem na confusão da vida, indicando a

sua ligação com a estética: há no jogo, uma busca pelo belo através de qualidades

como o ritmo e a harmonia.

• Vem acompanhado de um sentimento de tensão e alegria, na busca por uma solução

que é o seu desenlace. Nos jogos individuais ou nos jogos coletivos, o sentimento

de incerteza diante do desfecho, assim como os esforços para chegar ao final

colocam à prova capacidades físicas e morais na ação de ganhar e, ao mesmo

tempo, de ser fiel às regras.

Huizinga (1996) chega a uma explosão no conceito de lúdico, situando esta atividade

como a raiz de toda a cultura e promovendo, assim, uma inversão na tese de que brincamos

porque somos culturais. Para ele toda a cultura emerge porque brincamos, sendo as

construções humanas como a música, a poesia, a ciência, resultados da atividade lúdica em

seus níveis mais sofisticados.

O mesmo elemento lúdico encontrado nas mais valorizadas atividades humanas,

Huizinga também encontra nas guerras observadas ao longo da história. Falar em jogos de

guerra é quase uma redundância no pensamento deste autor para quem a luta pode ser

considerada uma forma de jogo mais intensa e enérgica e, “ao mesmo tempo, a mais óbvia

e primitiva” (p. 101). A expressão jogos agonísticos está associada aos gregos que em tudo

achavam um propósito para organizar competições. Essa associação, entretanto, não se

limita ao período da história grega, pois, com muita freqüência, os jogos de guerra fizeram

parte da história dos humanos.

Huizinga (ibidem) constata o quanto as idéias de jogo e combate estão misturadas desde

tempos primitivos, na medida em que toda a luta, quando se encontra limitada por regras,

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apresenta o caráter de um jogo. Para os gregos, por exemplo, as competições eram

realizadas com uma seriedade mortal, sendo difícil separar o agõn do jogo: o lúdico e a

guerra se encontram imbricados nos jogos agonísticos, pois, encerrando mais que um

caráter antitético, esses jogos pressupõem a ida às suas últimas conseqüências. Segundo o

autor, “a essência do lúdico está contida na frase ‘há alguma coisa em jogo’” (p. 57) e essa

alguma coisa seria ganhar, condição esta que propicia um estado de satisfação ao vencedor.

A luta está presente como uma manifestação de vida, sendo mais antiga e original do

que as próprias formas de organização humana. A disputa pela presa, alimento ou objeto

sexual, sempre esteve presente, como um dado de sobrevivência, entre os animais e entre os

humanos. O jogo de luta, essencial para manter a vida das espécies em circunstâncias de

escassez, pode ser encarado como uma função adaptativa, tendo suas manifestações mais

precoces no “brincar de brigar” dos filhotes. Não é novidade ver filhotes e meninos

brincando de brigar.

Para os humanos, os jogos de guerra assumem algumas especificidades que se

verificam de forma muito tênue entre os animais, ou mesmo não se verificam. A principal

diferença é a utilização de objetos91 enquanto instrumentos ou armas para o combate, o que

nos remete às considerações feitas no Capítulo I, onde resgatamos a nossa condição

sociotécnica, pela via das idéias de Latour. As noções militares de estratégia, tática e

logística seriam o resultado de um longo caminho percorrido pelos humanos em sua

condição sociotécnica e conseqüente surgimento da função simbólica, ambos – condição

sociotécnica e função simbólica - refazendo-se e atualizando-se incessantemente na troca

de propriedades entre humanos e não humanos.

Huizinga (1996) fala do jogo entre os animais como tendo, igualmente para os

humanos, uma função maior que meramente biológica ou fisiológica. Menciona exemplos

de formas lúdicas animais muito complexas e sofisticadas, como de alguns pássaros que

exibem elementos muito próximos do nosso comportamento: as danças executadas pelos

91 Poderíamos atribuir como diferença, entre o comportamento lúdico de humanos e de animais, o fato de utilizarmos objetos (brinquedos). Mas nem isto chega a ser exato, pois os animais que domesticamos também são capazes deste comportamento, embora não possamos ainda associá-lo ao exercício de uma função simbólica. O que parece constituir-se como tipicamente humano é uma conjunção de fatores que ocorrem em rede nos comportamentos lúdicos: a atribuição de papéis, a ritualização das ações, a utilização de objetos e o enquadramento dessas interações em cenários, o que caracterizaria a interação enquadrada da qual falamos no capítulo I.

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faisões silvestres, as competições de vôo realizadas pelos corvos, a ornamentação do ninho

feita pelas aves do paraíso, as melodias entoadas pelas aves canoras.

Apesar de fazer este tipo de referência ao jogo nas espécies animais, Huizinga atribui a

esta modalidade de comportamento um certo caráter essencialista, principalmente quando

faz referência ao jogo entre os humanos. Pelas suas próprias palavras, “reconhecer o jogo é,

forçosamente, reconhecer o espírito, pois o jogo, seja qual for sua essência, não é material”

(p. 6). É a essa visão essencialista que, com inspiração nas idéias de Latour, desejamos nos

contrapor, colocando o jogo como uma função adaptativa das espécies vivas, que funciona

como um motor, uma matriz de estratégias criativas diante de situações problemáticas e

pragmáticas e que giram em torno de algum objeto. Poderíamos dizer que a

complexificação da atividade lúdica, que teria suas raízes em domínios remotos de nossa

filogênese, é uma função adaptativa de todo organismo biológico que ocorre ao longo de

todo o ciclo vital humano? Poderíamos defender uma continuidade genética e funcional

entre o comportamento lúdico dos animais e o comportamento lúdico dos humanos, na

tentativa de contemplar uma abordagem simétrica para a etologia e a psicologia, como

campos que podem se reforçar no entendimento dos coletivos?

Carvalho e Pontes (2003) propõem, a partir de uma abordagem etológica ou

evolucionária, o entendimento dos aspectos motivacionais humanos básicos onde ancoram

as suas perspectivas de análise. Os autores realçam a posição de que as disposições

humanas básicas para explorar, para exercitar competências, para competir, para fantasiar e

compartilhar com outros seres humanos apareceriam como expressão precoce (p.24), nas

crianças, através da sua ludicidade, registrando-as como aspectos básicos, indicadores das

formas de sobrevivência que podemos verificar presentes em muitas brincadeiras,

igualmente observadas como características marcantes no decurso de toda a história da

espécie: as motivações de ataque (investida contra o oponente), de medo (defesa contra o

ataque do oponente que pode causar destruição) e de contenção (esquema de revezamento

de turnos e/ou papéis intra-times ou inter-times para a consecução do objetivo pretendido),

essenciais em qualquer jogo ou disputa, especialmente se nos referimos aos jogos

agonísticos. Este revezamento é menos óbvio por ocorrer mais tipicamente em jogos de

campo. Na brincadeira de pipas, podemos entendê-lo como um movimento de continência

em função dos acordos estabelecidos pelos grupos sobre quem pode ter a posse do

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brinquedo, principalmente quando ele é “cortado” e cai, havendo um código de regras que

rege a brincadeira e protege os jogadores da barbárie. Diríamos que os movimentos de

expansão (investida) e retraimento (contenção) em sua alternância, fazem parte do próprio

processo da vida.

Guerras de lá e de cá: estratégias em ação.

Em Cabul, empinar pipas era um pouco como ir para a guerra. Como em toda guerra, você precisa se preparar para uma batalha. Durante algum tempo, Hassan e eu fizemos nossas próprias pipas... Corríamos para o bazaar e comprávamos bambu, cola, barbante e papel de seda. Passávamos horas a fio aparando o bambu para a vareta central e as outras duas que se cruzavam para fazer armação, cortando o papel finíssimo, indispensável para a pipa debicar e voltar a subir com facilidade. E, é claro, tínhamos que fazer nossa própria linha, ou tar. Se a pipa era o revólver, o tar, o fio cortante recoberto de cerol, era a munição. (HOSSEINI, 2005, p.56 )

As estratégias nos cruzos (ou cruzas92) são variadas, assim como as formas de fazer

a caça à pipa que “avoa”. A estratégia básica é enlaçar a linha da pipa adversária para que,

com o atrito, o cerol possa concretizar o corte. Mas as variações são grandes: na altura onde

a linha é cortada (mais próximo à mão, mais próximo ao cabresto, na porção superior, na

porção inferior da linha), no tipo de manobra utilizada (dando a volta por cima e debicando;

“dando um nike”93 e subindo; puxando pela rabiola; cortando para outros apararem...); na

forma de abordar a pipa adversária (rápido e cirúrgico com ação calculada; insinuante e

demorado com aproximação progressiva; fazendo a maior emboleira...). Essas estratégias

dependem das circunstâncias, tal como ocorre em qualquer tipo de guerra.

Mello (1983) se refere à “trança”, nome dado à cruza, lá no Amazonas, como um

“campo encantado de glórias a agonias” (p. 71), oferecendo maneiras clássicas de trançar,

só para fazer o outro papagaio cair, ou para “cortar e aparar”, objetivando a posse do

brinquedo do outro.

92 Cruzo = é a disputa entre pipas quando as linhas destas se cruzam com a intenção de cortar a pipa do adversário. 93 Dar um nike = fazer uma manobra para pegar a pipa adversária dando a volta por baixo, como o desenho da logomarca do tênis Nike.

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No primeiro caso, para apenas cortar: 1. Atacar por baixo da linha e começar a

puxar firme a linha retesada; 2. Entrar por cima e dar linha, devagar ou com força,

dependendo do vento; 3. Atacar por cima na base do peitoral94 do outro só soltando linha,

sem revirar para não acabar em emboleira95.

No segundo caso, para além de cortar, também aparar, mais três receitas infalíveis:

1. Ir por cima, atacando perto do peitoral, dar linha, cortar, revirar rápido para apanhar o

outro pela rabiola; 2. Entrar por baixo com o papagaio sempre mais longe que o outro,

puxar e cortar, debicando (flechando em descida) para apanhar o papagaio em queda que o

vento vai levando; 3. Dar por baixo pegando só pela rabiola e colher bem rápido para que

não encoste na linha do outro, pois aí, já dá outro efeito.

Todas estas manobras vão depender das condições que se apresentarem no

momento. Segundo Mello (1983), “além do vento, do papagaio, da linha, do cerol, da mão

e do coração, o trançador precisa de reflexo afiado e rapidíssima capacidade de decisão” (p.

80).

Numa das versões de um antigo livro chinês, Sun Tzu (2004) pontifica que “na arte

da guerra, não existem regras fixas. Só podem ser talhadas segundo as circunstâncias.” (p.

56). A mesma orientação se aplica para as estratégias bélicas que verificamos com as pipas,

pois as circunstâncias vão depender de que tipo de pipa está em jogo, da perícia e da

experiência do empinador, da qualidade do cerol, das condições do vento e do terreno. Uma

estratégia comumente verificada na brincadeira de pipas é a escolha do lugar mais propício

em função da direção das correntes de vento, deixando o empinador em condições de

vantagem para ser um receptor privilegiado das pipas que são cortadas. Algo equivalente é

mencionado por Sun Tzu (op. cit.) quando ele designa “buraco do céu” como aquele lugar

que, pela sua topografia, funciona como uma verdadeira armadilha para os exércitos

inimigos que ficam sem visão, sem saída e, encurralados, sem margem de manobra para

combater.

No campinho, uma pipa voa e carrega a rabiola de outra. Um dos meninos comenta que com a mudança do vento, os piões do Tejuco vão todos vir nesta direção. Binho grita: “Tomara! Tomara! Que venham todos pra cá!”(D.C.) 94 Peitoral é a linha que é amarrada ao eixo do papagaio, atravessando-o transversalmente e ligando-o com a linha do carretel para que possa ser empinado. 95 Quando as linhas dos dois papagaios se emaranham.

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O vento está soprando do RSC (residencial São Caetano) em direção ao GM (Guarda Mor). Vem vindo uma pipa vermelha avoada que os meninos resgatam. Deixam duas pipas e duas latas com linha sob minha tutela enquanto correm atrás da avoada. É provável que outras caiam nesta direção por causa da direção do vento. (D.C.)

A cata à pipa avoada também tem sua ciência e aquilo que alguns atribuem à sorte,

percebemos ser mais uma combinação de várias destrezas que se somam para produzir o

efeito do êxito numa boa caçada.

Voa a pipa do Bigodão. Ele corre para tentar recuperá-la. Voa outra de alguém lá da rua de baixo. Outra turma corre para apanhá-la. Assim, os meninos exercitam sua métis, esse tipo de inteligência prática aprendida de caçadores e pescadores que mistura faro, sagacidade e senso de oportunidade. (D.C.)

À semelhança de como ocorrem essas caçadas em diferentes partes do mundo,

verificamos como podem estar próximos os meninos do Brasil, do Afeganistão ou de

Angola.

Sentei no meio fio próximo ao pai e começamos a conversar. Ele me contou ser militar, falou sobre a sua ida a Angola numa força de paz da ONU, dizendo que lá, os meninos também soltavam pipas, tal como fazem os nossos aqui. (D.C.)

Por uma conexão que não saberíamos mapear, os tempos e espaços se dobraram

propiciando esta proximidade que só poderíamos ser capazes de entender pela lógica das

redes. Observemos a semelhança entre os fatos narrados num trecho do best-seller “O

caçador de pipas” com um trecho do nosso diário de campo e outro do livro de Mello.

A brincadeira começava mesmo depois que uma pipa era cortada. Era aí que entravam em cena os caçadores e pipas, aquelas crianças que corriam atrás das pipas levadas pelo vento, até que elas começassem a rodopiar e acabassem caindo no quintal de alguém, em uma árvore ou em cima de um telhado. Essa perseguição se tornava bastante feroz; bandos de meninos saiam correndo desabalados pelas ruas, uns empurrando os outros... E quando um desses caçadores põe a mão em uma pipa, ninguém pode tirá-la dele. Isso não é uma regra. É o costume. (HOSSEINI, 2005, p.58) Outra pipa voa e muitos grupos correm para apanhá-la. Surgem 6 homens que eu não sei se apareceram por causa da pipa ou se estavam passando por acaso. Aparece menino

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correndo de tudo quanto é lado. Finão diz que já vai embora. Pino aposta que vai pegar de volta uma pipa sua que cortaram. Vem chegando Paolo com uma pipa que ele catou e mais outro menino. Todos pararam no meio da rua, enquanto aconteciam os cruzos, com a intenção de poder ver melhor. Pino corta uma. Muita confusão. Uma porção de pipas cortadas ao mesmo tempo e muitas brigas para disputá-las. Os meninos correm e gritam. Gente corta e é cortada o tempo todo nesse dia... Dizem eles que “pipa voada não tem dono”. Tem que correr pra pegar. “A gente quebra mato no peito pra pegar uma pipa que avoa. Tem que correr muito para pegar a pipa. A gente corre dos outros também pra não pegarem a gente”. (D.C.) Papagaio quedando atrai imediatamente, saídos de todas as direções, dezenas de crianças, com adultos de permeio, decididos a apanhá-lo. Muitos correm levando uma vara comprida. Quem agarrar primeiro, mas agarrar sozinho mesmo, com a mão ou com a vara, pela rabiola ou pela linha, grita “É meu!” e fica com o papagaio. É sagrado e ninguém põe dúvida. (MELLO, 1983, p. 81)

Quando estão em manobras, os meninos lembram as formações dos exércitos: o

deslocamento em blocos que avançam ou recuam de acordo com as oportunidades que vão

aparecendo reproduzem as estratégias militares para a tomada dos territórios inimigos.

A movimentação é grande, pois as posições vão se alterando pra lá e pra cá. Mas os territórios se mantêm de alguma forma. Ficam os bolinhos de meninos, misturados por idade, em pontos mais ou menos definidos. Uma pipa foi cortada pelo grupo de além esquina, mas não deu pra aparar. (D.C.) A esta altura, os meninos já se deslocaram em bloco, ladeira acima. Esse deslocamento dos meninos, juntos e sempre em frente, me lembra muito um pelotão de guerra avançando para tomar território. (D.C.)

O estabelecimento das bases e a conquista de território

Para soltar pipas, os meninos estabelecem bases que podem variar das lajes das suas

casas até espaços descampados em que podem se reunir para ficar juntos em pequenos ou

grandes grupos, mantendo posições.

Os grupos elegem “pontos” de sua preferência, mais ou menos próximos de seus locais de referência: casa ou alguém mais velho que lhes serve de abrigo. Mas percorrem até duas quadras para “caçar” uma pipa que cai. O espaço é literalmente conquistado, do mais conhecido e seguro, para o menos conhecido e desabrigado. Esse dado faz parte do clima de aventura que envolve a brincadeira. (D.C.)

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A conquista de território é, com certeza, um dado proeminente na brincadeira de

pipas, se nos dedicamos a investigar a sua vocação para as guerras. A maior parte das

guerras não ocorreria como uma questão de disputa de territórios ou mesmo das fontes de

provisão que neles poderíamos encontrar, tornando-se, assim, um item estratégico para a

sobrevivência e para a organização dos grupos? Em torno desse sentimento de

territorialidade se tecem algumas normas de boa educação entre aqueles que convivem. O

fragmento da entrevista que fizemos com um dos pipeiros pode ilustrar este aspecto.

Mo - E cada um tinha um território. Se eu ia soltar pipa lá perto da casa do João, tinha que ser do jeito dele. Eu não podia cortar ele. Mo - E se você fizesse alguma coisa que não fosse aceita pelo dono do pedaço? Mo - Ele cortava a minha pipa. F - Se você cortasse a dele no território dele? M - Ia ser complicado. Eu ia levar uns coques. Ele juntava os amigos dele e me pegava. F - Como é delimitado esse território? Mo - Não tem como delimitar lá em cima. Tem o espaço físico lá em baixo. Se alguém chegasse perto da casa da minha mãe, tinha que obedecer ao que eu falasse. F - E você costumava visitar outros territórios? M - Ah, sim. Eu ia lá sim. Por que lá tinha e ainda tem o campo do Social. Lá não tinha nada cercado ainda, era tudo aberto. F - E você então tinha que ficar sob as regras do outro? Mo - Sim. Ele dizia: “Você vai entrar naquela lá. Na outra, deixa que eu entro. Por exemplo, se eu estivesse soltando pipa com o João e se cortassem a dele, eu ia lá e aparava pra ele, trazia de volta pra ele. Se ele cortasse qualquer pipa, ela ia embora, mas se cortassem a minha, ele ia lá e aparava pra mim. Era uma certa troca, uma disciplina, uma coisa bem territorial mesmo, específica de cada um. F - É parecido com a demarcação do território entre os animais? Mo - O ser humano é igual. É a mesma coisa quando você vai visitar alguém, uma amiga sua. Tem a regra dentro da casa dela, não é? Ela pode ser liberal de tudo, mas, chegando lá, você tem que obedecer a certas regras. Mesma coisa se ela for te visitar. F - É uma regra de educação, então? Mo – É. Mas tem gente que atropela as coisas. F - E aí, como é que fica? O que acontece? Mo - Tem que sair correndo. (Risos) (Fragmento da entrevista com Mo)

Estudos etológicos mapeados por Despret (1996) falam sobre a questão territorial

entre os animais. Para Wynne-Edwards (1969, apud Despret 1996), o comportamento

territorial, ao lado do comportamento hierárquico, revela-se enquanto uma estratégia de

sobrevivência, garantindo, em escala, a regulação da densidade demográfica como uma

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forma de evitar o esgotamento das fontes de provisão: pode, assim, ser entendido como

uma convenção adaptativa e, ao mesmo tempo, como um comportamento social que tem

por objetivo beneficiar o grupo todo. A socialidade para Wynne-Edwards (ibidem) é

entendida para além da gregariedade: “o animal social será aquele que aceita, pelo sistema

de convenções, a restrição de seu interesse individual em proveito do interesse do grupo ou

da espécie” (p.42), idéia que Freud também teria defendido em duas obras voltadas para a

reflexão sobre o processo civilizatório. Convergem com estas as idéias de Lorenz (apud

Despret, ibidem) de que o sentimento de territorialidade é uma necessidade que os

indivíduos têm na repartição do espaço de convivência, tendo a agressão um papel

regulador nessas distâncias. Em ambos os autores mencionados acima, o território é visto

como uma necessidade, dentro de uma argumentação utilitarista.

Na questão da pipa, a disparidade entre a quantidade de seres e recursos se verifica

de modo peculiar. Comparado a outros jogos, um diferencial da brincadeira de pipas é que

esta não acontece num espaço restrito, tido como campo sagrado onde se desenvolve a ação

dos brincantes: uma quadra, um tabuleiro, um picadeiro, uma tela, um palco. O território da

brincadeira de pipas, a princípio dado pela proximidade de uma base, torna-se sempre uma

conquista: porções de chão e de céu que podem vazar em função de várias circunstâncias,

transcendendo os limites estabelecidos em terra e ultrapassando, portanto, as limitações de

um espaço plantado, na dependência de pelo menos dois fatores: o quanto que a linha

alcança e o quanto que o vento sopra. O espaço aéreo ocupado pelas pipas se estende ao

sabor de quantos metros de linha o empinador dispõe para cobrir o maior território possível,

desde que os ventos permitam o lançamento da pipa para mais alto e mais longe.

O Sr. Geraldo morava lá na Colônia, um bairro distante, e tinha vindo visitar a irmã que morava ali perto. Aproveitou para trazer os meninos para soltarem pipas aqui em cima. Ficou interessado na pesquisa e começou a me contar do seu tempo de garoto. Disse que havia um sujeito chamado “Perriga” que soltava pipas lá nas Águas Gerais e que era mestre em cortar todo mundo. Era imbatível. Suas pipas tinham uma rabiola muito longa e ele dava tanta linha que, soltando pipas lá do outro morro, conseguia vir catar e cortar as pipas de quem soltava aqui no S. Caetano. (D.C.)

Durante as nossas observações no campo, pudemos pensar a questão territorial, no

caso das pipas, de pelo menos duas formas. A primeira dizia respeito ao espaço aéreo a ser

demarcado pela presença de determinada pipa ou grupo de pipas não concorrentes com

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relação às demais: um grupo hegemônico resguardando para si determinado pedaço de céu

e eliminando aquelas que se atravessassem no seu caminho. Esse pedaço de céu era

escolhido em função de algum ponto tomado como referencial, relacionado com o território

em terra, de onde saiam as pipas, aquele que podia estar mais próximo ou mais distante de

um ponto referencial daquele que brinca. Em geral, é um território plantado, mais próximo

da casa, da região de moradia ou de um elemento humano mais experiente. Para as crianças

menores que não têm permissão para o afastamento sem a presença de um adulto ou

responsável, o território permitido é aquele que funciona como limite ao qual se submeter.

Ir além destas fronteiras implica em transgressão de uma norma familiar.

Os meninos menores gravitam em torno de meninos maiores que, em alguns casos (preferentemente nos fins de semana), podem ter como ponto de referência um adulto que, por sua vez, pode estar ali para se divertir junto, para mostrar alguma habilidade com o brinquedo, para olhar e até para garantir alguma segurança em caso de brigas. (D.C.) Houve uma época em que a minha mãe só deixava eu soltar pipas em cima da janela. Ela não deixava eu ir pra rua. Então, o que eu fazia? Pedia aos meninos da rua pra colocarem a pipa acima da fiação e eu ficava trepado na janela soltando pipas. Tudo por que a minha mãe não deixava eu ir para a rua. Quando a pipa vinha pra cima de onde eu morava, eu não podia mais enxergar. Aí, os meninos, do outro lado da rua, ficavam monitorando a pipa que eu estava soltando. Por que minha mãe não deixava eu ir para a rua. (P.A., entrevistado) E a pipa é assim: você solta perto da sua casa. Futebol, eu saia daqui pra jogar futebol lá no Tejuco, lá em Tiradentes. Mas pipa tem um ponto de referência. Tinha a casa lá onde você morava. (M., entrevistado)

Era comum, pelo menos entre os meninos um pouco maiores, cruzar quarteirões

para soltar pipas numa região mais bem abastecida de outros brincantes com suas

respectivas pipas. Para os brincantes maiores, o território pode se alargar enormemente pelo

fato de terem autonomia para um afastamento em relação a esses pontos referenciais. É

comum os grupos que se deslocam serem heterogêneos, uma vez que os maiores podem

garantir o cuidado dos menores. Só neste caso o deslocamento é facultado aos menores.

Planejam entrar lá no campinho para disputar com o pessoal do Guarda-Mor. Parece uma estratégia de tornar possível, espacialmente, a abordagem de/pelos outros grupos. Os 5 se separam: três sobem e 2 descem a rua. Agora são seis meninos que, espalhados, ocupam 2 quadras ao longo da rua. Tive que atravessar a rua para ver as pipas em função da

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mudança do vento: 3 meninos estão num extremo, três estão no outro. Moreus está sem a rabiola que ficou perdida numa construção. Observo que tem um menino menor que está com uma pipa de “orelha” integrando o grupo. Veio com Binho e deverá voltar com ele, pois está sob seus cuidados. (D.C.)

Uma outra forma de ver a mesma questão nos foi oferecida pela quantidade de

deslocamentos que fazíamos quando os meninos iam em busca das pipas concorrentes, sem

as quais não haveria a oportunidade de cruzar, nem de criar situações para obter novas

pipas, ou seja, para efetuar as caçadas.

Comecei a caminhar e a pensar que a brincadeira de pipa era mesmo uma atividade nômade. Quanto eu havia andado nestes dois últimos dias, subindo e descendo ladeira! Havia espaço suficiente para estes deslocamentos e para os muitos grupos que subiam o morro para empinar suas pipas. Até o momento, não se podia falar de superlotação ou de disputa acirrada pelo espaço que até sobrava. Cada grupo numa esquina, num terreno, numa ladeira podia se movimentar em prol de estar mais perto ou mais longe das intenções de cruzo de outro grupo. Comecei a lembrar das observações do Kropotikine, que a Despret comenta num de seus livros96, mostrando que a luta pelo espaço só ocorre quando as condições do terreno apontam para a escassez. Se há muito espaço, para que brigar? O cruzo, até então, tinha sido uma opção, inclusive prazerosa, de testar de habilidades e de colocar alguma adrenalina na brincadeira. Havia céu para todo mundo empinar sua pipa. (D.C.)

Este fragmento do nosso diário de campo chama a atenção para o fato de que, nas

guerras com a pipa, o território disputado não está ligado apenas à preservação de um

espaço de céu ou de terra em que se garanta a hegemonia de determinado grupo em função

de um referencial de segurança. É claro que há céu para todos. O problema é que não há

pipa para todos, sendo mais disputados os territórios em que elas estejam em maior número,

oferecendo as possibilidades de serem conquistadas. São estes os territórios em que

podemos encontrar a abundância das fontes de provisão. São territórios que surgem

exatamente porque neles estão os brincantes para realizar as disputas. As pipas avoadas são

um atrativo para aumentar o arsenal de cada brincante ou para construir um.

Fico pensando que o caráter nômade da brincadeira de pipas ocorre, não por uma

necessidade de evitar conflitos quando o território já está muito ocupado, mas justo ao

contrário, para caçar uma boa briga, para lucrar com o resultado dela, ou seja, mais pipas. É

96 Despret, 2002.

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um movimento semelhante ao nomadismo que se opera como uma procura pelas fontes de

alimento. Sem outras pipas pra cruzar e aparar, como e o quê caçar?

Estaremos falando de dois territórios diferentes quando pensamos no espaço

plantado e no espaço visto a partir de alto?

No dia 12 de março de 2006, na TV Câmara, foi exibido no Programa Papo Certo o

lançamento do livro “A mosca Azul”, do Frei Beto. Ao responder uma das perguntas do

auditório, referiu-se a noção de territorialidade preconizada pela Igreja Católica como uma

noção calcada no arcaísmo: a divisão em paróquias restringia a possibilidade de pensar o

território como algo que pode fazer conexões não previstas, balizadas por uma outra lógica

pela qual a minha paróquia poderia ser formada por alguém com quem tenho afinidade, do

outro lado da cidade e não necessariamente restrita ao meu bairro. A territorialidade

pensada a partir da TAR seguiria a mesma lógica: não estaria presa aos constrangimentos

geográficos, pois as ligações podem se fazer para além do micro e do macro, do grande e

do pequeno. Está mais próxima da idéia de Deleuze e Guattari (1980 apud Despret, 2002),

segundo a qual o território é uma emergência: emerge como resultado de ritmos e

qualidades próprias. Assim, não temos uma territorialidade, mas territorialidades. No caso

da pipa, as duas formas de pensá-la - espaço aéreo e espaço terrestre – não nos obriga a

fazer uma escolha entre uma delas. Ambas contam e interferem nas disputas se alternando

ou se combinando para produzir efeitos. Acreditamos que, no caso das pipas e no caso da

internet, apesar de parecerem atividades antitéticas, o território pode ser melhor entendido

como essa emergência a partir dos pontos das redes que o compõem.

As negociações diplomáticas e a formação de alianças

O verdadeiro objetivo da guerra é a paz (Sun Tzu, 2004, p. 11). A maior habilidade é vencer o inimigo sem lutar. (Idem, p. 11).

A brincadeira de pipas é regida por um determinado código de regras que está longe

de ser estático. A regra da “pipa avoada não tem dono” é uma das mais conhecidas, mas, a

todo instante, está sendo testada e negociada com os pedidos de devolução por parte

daqueles que tiveram suas pipas cortadas.

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As negociações diplomáticas são um item necessário nas relações, pois as leis que

regem os contratos estão continuamente sendo colocadas à prova, uma vez que, mudando

as condições de sua emergência, as regras entram facilmente na obsolescência. Despret

(1996) pode enriquecer esta discussão, se tomarmos o exemplo dos cratéropes, pássaros

surpreendentes pelo seu comportamento nada convencional cujas regras de convivência são

descritas como um compromisso ao qual certos grupos parecem chegar, fazendo o que a

autora chamou de uma reinvenção ativa das relações. Como toda criação ativa, toda

invenção, estes compromissos podem tomar formas diversas e originais, assumir uma

tonalidade particular entre dominantes e dominados e colocar em ação um inventário

comportamental surpreendente entre os pássaros. (p. 15)

Da mesma forma, Latour (2004, 2005) chama a atenção para a necessidade de

cultivarmos a nossa habilidade diplomática, uma vez que estaremos lidando sempre com

um mundo em construção, passível de permitir a entrada de novos integrantes que

reivindicam um lugar no que poderíamos chamar de “mundo comum”. A todo o momento,

somos confrontados com questões do tipo: “Quem somos? Quantos somos? Podemos viver

em conjunto?” Este conjunto que recruta cada vez mais humanos e não humanos em uma

história e em um mundo comum requer o aprendizado de habilidades que o pensamento

moderno, calcado em ações de ruptura e denúncia, nos fez esquecer. Como uma abertura

diplomática tem lugar nos conflitos já instalados ou em vias de serem deflagrados? A

brincadeira de pipas poderia ser uma experimentação desse aprendizado? Acreditamos que,

no caso da pipa, essa abertura à negociação pode ser ensaiada pelos brincantes como parte

das estratégias de guerra durante as ações desenvolvidas. Ensaiando a diplomacia para um

mundo comum, as “guerras no ar” podem ser um exercício, um esporte que dá ensejo à

aprendizagem de um código de regras de sobrevivência que nunca é definitivo. Podemos

verificar como, através da brincadeira de pipas, os meninos exercem ou, em outra ponta, se

esquecem de negociar os limites desses contratos.

Foram brincar de “cruzinho” que consistia em soltar pipas e cortar uns aos outros sem correr riscos de perder os brinquedos. Apenas contabilizavam a quantidade de vezes que cortavam para ver quem era o melhor. Era uma forma de brincar sem ser pra valer, um brincar de certa forma protegido das perdas que poderiam acontecer se estivessem guerreando com outros grupos. Um brincar de brigar? Os meninos simulam “cruzos” e se deslocam o tempo todo, morro acima e morro abaixo. Quando uma pipa voa, é um

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alvoroço porque eles temem que o vento leve a avoada para um lugar em que eles não a alcancem e onde os outros podem pegar. O vento sopra que é uma beleza. Eles pedem ajuda uns aos outros e se xingam também: “Peraí, viado! Não entra agora não que a minha linha embolou!”(D.C.) No alto do morro, mais acima de onde estamos, aparece Samuel com uma pipa flecha. Ele se mantém à distância, não se aproxima. Pergunto aos meninos se o conhecem e eles dizem que sim. Eles não estão brincando juntos e fico curiosa para saber como vão resolver algum conflito que ocorra. Não sei por quê, mas os meninos fazem a fantasia de que Samuel é meu filho quando pergunto por quê não brincam juntos: “Ele é seu filho?”. Explico que o conheço, moramos na mesma rua, mas ele não é meu filho. “E se uma das pipas de vocês voar e ele aparar?”, perguntei. “Ele disse que entrega”, falou Angu. “E se a pipa dele voar e um de vocês apanhar?”, continuei. “A gente devolve”, afirmou. Percebi que já tinham se entendido a este respeito. A proximidade deles já havia apontado para a necessidade de algum acordo com relação às questões de território. Questões diplomáticas! (D.C.)

Samuel não era do grupo, mas brincava muito próximo aos meninos, de forma que a

concorrência poderia se estabelecer como um risco para ambas as partes. Para converter um

adversário em potencial em um aliado confiável, foi preciso que uma abertura para negociar

tornasse possível algum tipo de acordo. Despret(2002) coloca essa questão de forma bem

direta, fazendo-nos pensar que, apesar de difícil, trata-se de um aprendizado que precisa ser

exercitado ao longo de todas as fases da vida e se opera num movimento que altera as

partes envolvidas, traduzindo premissas iniciais em outras que vão trazer a marca de uma

transformação: Um adversário é sempre um aliado em potencial se nós podemos conciliar

compromissos que deixam interesses díspares conciliáveis (p. 266).

Mas os acordos nem sempre são levados a sério e é aí que as guerras se instalam.

Fiquei curiosa para saber das regras. Se cair na sua casa, a pipa é sua, não vale pedir se tem alguém que solta pipa ali. Mas vale tentar, caso ninguém solte pipas. Aí, sim, você pode ter sua pipa de volta. As pipas avoadas são de quem pegar, não vale pedir de volta. É nesse caso que dá briga: “O dono da pipa cortada quer ela de volta e quem pegou não quer devolver”.(D.C.) [...] Paulinho avisa: “Não toma, não. É brinquedo!” De longe não dá pra ver os detalhes, mas Gu ficou com a pipa sem maiores brigas. Desta vez é a pipa de Paulinho que voa e um menino corre para apanhá-la. (D.C.)

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[...] Paulinho tomou a pipa que avoou de um menino. Angu fez o mesmo. O “brinquedo” tinha acabado, mas ninguém avisou nada pro pessoal de lá. Veio um rapazinho tomar a pipa capturada e Angu faz pirraça: “Se eu não ficar com ela, ninguém fica”, quebrando a pipa em seguida. Achei que o tempo ia ferver. Fiquei à espreita para ver no que dava, mas não aconteceu nada. Será que a minha presença intimidou os meninos do grupo de lá? (D.C.)

A nossa investigação sobre as regras que regulam a convivência na brincadeira de

pipas nos oferecem a oportunidade de perceber que elas são incrivelmente econômicas,

limitando-se a duas ou três que se desdobram em todo o resto: são poucas, regidas pela

simplicidade e sua aprendizagem ocorre na própria lida dos participantes em relação aos

companheiros do próprio grupo ou em relação aos grupos rivais.

1. Pipa avoada não tem dono. É de quem pegar.

2. Quando se brinca junto, não vale pegar a pipa de quem é do mesmo grupo.

3. Se houver confronto, os adversários têm que ser do mesmo tamanho. Se não, é covardia.

Esta última é uma regra de cavalheiros, ensinada e garantida pelos familiares que estão

junto com os menores, como parte de uma boa educação. Mas a verdade é que nem sempre

isto acontecia.

Mello (1983) acrescenta que, em Manaus, durante uma disputa por uma pipa

avoada, se mais de um agarra o papagaio ao mesmo tempo e se instala a dúvida sobre quem

ficará com o brinquedo, a lei é guisar, que significa destruir o papagaio ali mesmo, por todo

mundo para que ninguém fique com ele.

Coxinho está na beira de uma das depressões do morro. “Tá vendo aquela pipa laranja e preta, lá no GM? Era pra ser minha! Naquele dia que você veio com a Cristina, eu aparei e vieram os rapazes e me tomaram de volta. Eles eram maiores e a gente teve que devolver”. (D.C.)

Mas simplicidade não quer dizer obviedade. As regras são praticadas ativamente,

são testadas e negociadas o tempo todo pelos participantes e colocam a prova uma serie de

sentimentos que nem sempre são fáceis de elaborar. Aos menores é mais doloroso a

tolerância à frustração a que sempre são confrontados.

Aparece uma avoada. Era a pipa de Ajax que tinha sido cortada. Gabe corre para apanhá-la e disputa com outro menino que desce a rua como um foguete. Ajax relaxa quando percebe Gabe no encalço de sua pipa e os meninos maiores gritam: “Já pegou, já pegou!”

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Gabe se lança sobre a pipa, falando as palavrinhas mágicas para evitar perder a avoada recém alcançada: “Ta na mão!” Donald, que era o nome do rapaz branquinho, vem atrás impondo o respeito do outro menino que recua quando ele explica: “Tá todo mundo junto aqui!” Mas acontece o inesperado: Gabe se recusa a devolver a pipa de Ajax: “Avoada não tem dono. Fui eu que peguei e ela agora é minha!” exclama, tentando fazer valer a regra geral. Ajax fica bravo e os outros tentam interceder: “Tá todo mundo brincando junto aqui. Devolve pra ele!”. Gabe se mantém firme. Ajax ameaça o menino: “Vou te encher de porrada, moleque! Devolve a minha pipa!” Gabe percebeu que era uma questão de sobrevivência e acabou devolvendo. Foi uma cena emblemática e a última deste dia de observação. Havia duas regras conflitantes em jogo: 1.“Avoada não em dono. É de quem pegar” e 2. “Tá todo mundo brincando junto”, o que significa que os do mesmo grupo não podem se cortar. Deve haver solidariedade entre os do mesmo grupo. Gabe, ainda iniciante, prestou atenção na primeira e ignorou a segunda. E quase apanha por isso. (D.C.)

Era aquela velha história: mesmo não tendo dono, quando avoadas, as pipas aparadas podiam ser recuperadas se os solicitantes fossem maiores e mais fortes que os novos detentores do brinquedo. Coisas da sobrevivência, mais ou menos no estilo “Manda quem pode e obedece quem tem juízo”. (D.C.)

O cerol como actante.

As pipas avoadas fazem agir um batalhão de atores que se espalham à semelhança

de um enxame de abelhas na caça ao brinquedo que segue o curso dos ventos. Mas, de

todos os elementos que encontramos na brincadeira de pipas, talvez seja o cerol o actante

mais poderoso em termos da quantidade de entidades que agem por sua influência. O cerol

é um actante poderosíssimo nos meses ventosos e de férias. É alvo de campanhas

arraigadas por parte das companhias de eletricidade, da polícia, das pessoas acidentadas de

uma maneira geral que condenam o seu uso e alertam contra o seu perigo. No site

www.cerol.com.br, encontramos informações detalhadas através das reportagens que dizem

respeito aos acidentes provocados pelas linhas das pipas afiadas com cerol, das campanhas

de advertência, das leis que, em diversos estados brasileiros (São Paulo, Minas Gerais,

Santa Catarina, Rio de Janeiro) regem a ação dos infratores, dos modelos de antenas criadas

para dar proteção aos motoqueiros. Há um grande espaço para fotos e depoimentos

retratando as vítimas dos acidentes com cerol. Na seção de perguntas mais freqüentes, o

organizador do site deixa claro que não tem posição contrária às pipas, mas condena o cerol

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como ingrediente da brincadeira. As palavras mais mencionadas são “perigo”, “ameaça” e

“acidentes”. As leis prevêem multa aos infratores por cada conjunto de pipa + linha

encerada e posterior incineração do material apreendido. As patrulhas do Tático Móvel

fazem a ronda para coibir a utilização do cerol, em regiões com tráfego regular de veículos

e pessoas e, por esta razão, verifica-se a busca de lugares altos, com pouca fiação e com

pouco movimento. O RSC era um desses lugares, mas começava a deixar de sê-lo, devido à

contínua ocupação durante os últimos anos. As áreas consideradas seguras para a prática do

esporte guerreiro estavam rareando cada vez mais e os meninos corriam o risco de ficar

sem a brincadeira que preenchia boa parte de suas horas de lazer.

Passa um carro da polícia e “os homens” olham feio para os meninos. Eles se chegam para o meu lado, como se estivessem todos comigo. Cumprimento o policial que me olha com “cara de poucos amigos”. Falaram que a polícia estava tomando as pipas com linha e tudo, por causa dos acidentes. De fato, eu havia lido uma notícia, num jornal local, falando que haveria uma multa de R$130,00 para as famílias de quem estivesse soltando pipas com cerol. Ouviam-se notícias pela TV sobre os casos em que os motoqueiros estavam ficando muito feridos com as linhas afiadas das pipas. Houve até mortes em BH e São Paulo. A controvérsia que ressurgia todos os anos, nesta época, era grande. Tinha até um programa de rádio em que o “Cabo Dedé” dava conselhos aos meninos para brincarem com segurança. (D.C.)

É interessante notar que São João del Rei não dispõe, no centro da cidade, de um

lugar que possa servir como base para o lançamento para as pipas, não há um parque

municipal, há pouquíssimas quadras públicas para a prática de esportes, sendo escassas as

opções de um lazer barato para os jovens e para a população em geral. Em breve, com a

ocupação dos bairros morro acima e a proibição do cerol, os meninos só poderão brincar

em condições de ilegalidade.

A conversa começou a girar em torno do cerol cuja receita básica era vidro moído e cola de madeira. Uns faziam e outros o compravam pronto em tubinhos, nos mesmos armarinhos onde conseguiam as linhas e as folhas de papel de seda para encapar as pipas. (D.C.)

O vidro é uma invenção antiqüíssima cuja origem podemos encontrar nas ocasiões

em que navegadores fenícios, ao cozinharem seus alimentos com fogueiras sobre a areia da

praia, observaram que se produzia, da combinação do fogo e da areia, um líquido

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transparente que escorria e se solidificava depois de frio. Mas a sua combinação com cola

para virar ingrediente de uma guerra travada com brinquedos tem uma origem mais recente.

Buscamos ajuda dos dicionários etimológicos para verificar a possível data de aparição

deste vocábulo, uma vez que em nossas pesquisas não encontramos qualquer referência às

origens desta mistura. O vocábulo cerol, apesar da sua difusão e naturalização como parte

da brincadeira de pipas, tornando-se quase que um ponto de passagem obrigatória nas

últimas cinco décadas, não aparece na maioria dos dicionários etimológicos da língua

portuguesa da primeira metade do século passado, fazendo-nos pensar que esse material

existia sob outra denominação, ou simplesmente não existia nesta combinação e para este

fim. No Novo Dicionário da Língua Portuguesa, verificamos que o cerol existia como

mistura a ser usada nas atividades de sapateiro, em nada ligada aos fins que hoje lhe

atribuímos.

Cerol - mistura de cera, pez e sebo com que os sapateiros enceram o linhol para coser a

sola (FONTINHA, s.d.)

Já em Ferreira (2004), além desta utilização pelos sapateiros, o vocábulo já faz a

designação que conhecemos em nossos dias, identificando-o como sendo de uso corrente

no Maranhão e no Rio de Janeiro.

Cerol – [De cer (i) + ol] s.m. 1. Massa de cera, pez e sebo com que os sapateiros untam as

linhas de coser sola. 2. Bras. MA RJ. Mistura de cola de madeira e vidro moído que as

crianças passam na linha dos papagaios para cortar as de outros; cortante. * Bras. RJ.

Passar o cerol = matar.

Alguns indícios apontam para a utilização do cerol mais precocemente, nos estados

do Norte (Maranhão, Pará e Amazonas) e Rio de Janeiro, nas décadas de 30 e 40. Dois dos

nossos entrevistados com idades acima de 70 anos declaram não ter conhecido o cerol na

brincadeira de pipas nos períodos em que transcorreram sua infância e adolescência,

passadas no interior de Minas Gerais, durante as décadas de 30 e 40, indicando que a sua

chegada nesta região se processou mais tardiamente do que nos estados referidos acima.

Não tinha esse negócio de um enrolar com o outro igual faz aqui. Hoje eles passam aquele cerol no fio pra poder cortar a pipa do outro. Não tinha disso, não. Naquele tempo, não tinha o tal de cerol, nem nada. Isso foi desde a década de 30. Hoje tem a história do cortar. Mas na nossa época, não tinha isso, não. Quando elas embaraçavam uma na outra, nós puxávamos devagar e, lá no chão, a gente desembaraçava as linhas, cada um saía com a

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sua e não tinha isso, não. A gente soltava mesmo pra se divertir. (B., ferroviário aposentado)

Hoje, parece que não é mais brinquedo Hoje perdem um tempo fazendo uma pipa pra soltar e ver logo a sua pipa cortada. Isso não leva a nada. O prazer é colocar a pipa no alto e ficar com ela lá, manobrando. A diferença hoje é que eles gostam de cortar a pipa. Tem esse tal do cerol que é um perigo. A gente vê o pessoal falando, pedindo pra não passar cerol na linha da pipa... Realmente eu não sei quem inventou o cerol, não sei quem foi o jerico que teve essa idéia. (A., funcionário público aposentado)

As mães [...] comentam sobre a questão do cerol. Falam do programa do Cabo Dedé, advertindo dos perigos de acidentes. Uma delas pondera que não deixava o filho usar cerol, mas todos os outros meninos usavam e a pipa do filho passava a ser presa fácil. Assim, acabou por permitir que ele também usasse, pois a brincadeira ficaria sem graça.(D.C.) Quando eu era menor, eu não soltava pipa com cerol não. Os maiores, sim. Eu não usava porque eu era criança e geralmente eu me cortava. Mas eu fui crescendo e perdia muito as pipas. Por ser pequeno e porque os grandes não queriam nem saber, eu ia perdendo muito. Aí, eu fiquei cansado de perder. Ficar só perdendo, só perdendo, não tem graça. É a mesma coisa quando você entra em briga e você não quer saber só de apanhar. Você quer bater também, né? Apesar de que, às vezes, você só apanha. Mas se você der um chute, você acha que você bateu. Então... (F, estudante)

Eu acho que é assim, que nem a gente vê numa cidade como SP. Lá em SP, há segurança e, ao mesmo tempo, não há. Então o que acontece: eu já estou ali num lugar em que eu sei que se eu soltar a minha pipa, vai vir gente me cortar e eu vou ficar sem ela. Aí, vai acabar meu dia, vou ter que começar tudo de novo: pegar vareta, amarrar, fazer aquela rabiola. E vai sempre ter alguém pra me cortar. Então é o seguinte: se eu sei que vão me cortar, a gente tem que se preparar para competir, se prevenir pra competir com as outras pipas. Ou elas vão me cortar ou eu vou cortar elas. (S., pedreiro e fabricante de pipas) Antigamente, tinha (o cerol), mas não era tão difundido. Porque era uma coisa perigosa, uma cultura, uma educação totalmente diferente. O cerol sempre foi feito na base da cola madeira que é tóxica, você tem que colocar no fogo, misturar, tinha que ter um ponto. Era uma coisa só de pessoas mais adultas. Só algumas pessoas tinham o domínio ou a facilidade pra fazer isso. Você tinha que quebrar lâmpada (era melhor essa lâmpada incandescente), tinha que triturar até virar um pó que era perigoso, se você ingerisse ou aspirasse também era um veneno. Era uma coisa perigosa, mas com o decorrer do tempo, foi se difundindo. Quando a coisa é ruim, parece que ela se difunde mais rápido do que quando ela é boa. Mas eu não sei te explicar exatamente quando isso aconteceu. Só sei te dizer que não foi uma coisa imediata, não. Foi gradual. F – Alguns grupos usavam e outros não. Parece que hoje todo mundo usa. H – Todo mundo usa. Exatamente. F – Fiquei curiosa pra saber como houve essa difusão do cerol.

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H – Hoje, praticamente, você não vê ninguém soltando pipa sem o cerol. Você vira presa fácil e não existe mais nada. Porque se você está com uma pipa no ar, hoje, não existe mais aquele sonho, aquela vontade... Hoje, se você colocou uma pipa no ar, você está chamando alguém pra disputar com você. Eu imagino que seja isso, não sei não. (H., engenheiro da CEMIG)

Estes depoimentos nos permitem entender pelo menos uma das razões pelas quais o

cerol se tornou ponto de passagem obrigatória: soltar pipas sem usar o cerol num ambiente

onde todos o usam significa perder o brinquedo muito facilmente. Também sentimo-nos

provocados a mover uma investigação sobre onde, como e por que surge o cerol que passa

a ser alvo de polêmica nas décadas de 50, a princípio por causa dos riscos de acidentes com

a rede elétrica...

E foi um episódio muito chato porque eu atrapalhei a rua. O cerol agarrava naquela capinha de borracha da fiação. Quando o cerol agarra ali, a gente que era moleque ficava raspando, puxava prum lado, puxava pro outro, dava linha e puxava. Como, naquele tempo, era um fio mais fino, ele explodia e estourava, a luz da rua todinha apagava, era uma confusão danada porque ficavam aqueles dois pedaços de fio na rua, era uma preocupação danada de alguma criança se machucar. A gente ficava escutando a vizinhança falar que se queimasse a televisão, eu é que ia pagar tudo. Minha mãe, como sempre, era muito preocupada, ficava nervosa. Tinha poucos telefones na rua, mas o pessoal sempre dava um jeito de ligar pra CEMIG. Mandavam aquele carro verde. Há 30 anos atrás, a CEMIG não era o que é hoje. Eles achavam que eram os donos do pedaço, eram uma empresa pública ainda. Ficavam preocupados com o que ia acontecer e quem tinha feito aquilo. Por três vezes, fui eu mesmo. Tive que pagar o pato, escutar sermão, escutar falação, ficar de castigo e apanhar. Foi bom? Foi bom! Porque mais tarde eles trocaram a fiação. Tanto é que hoje, naquela rua, a fiação é subterrânea. Então a turma solta pipa com muito prazer. Quem dera se naquela época já fosse essa fiação. Quantas pipas não ficaram presas nos fios? Era uma dificuldade danada porque eram muitos fios e ficava difícil empinar as pipas. Só se o vento estivesse muito forte. Mas era sair de um fio e ficar agarrado no outro. Foram várias as vezes em que a gente acabava de fazer uma pipa, ia tentar soltar e agarrava. Aí vinha aquela frustração danada. Puxa vida, eu solto pipa há tantos anos e até hoje eu não aprendi a tirar ela do fio. E enrolava que a gente tinha que começar tudo de novo. Era folha, era rabiola. (P.A. , contador, funcionário público) A energia elétrica é assim... você não vê a não ser que ela dê algum problema. Aí ela aparece, quando você junta os dois cabos. Na ânsia de tirar uma pipa que está agarrada, os fios vão encontrando, você vai fazendo força e acontece o curto. Porque aquele espaçamento que existe entre os fios é uma segurança. A energia tem que passar. No momento em que ela é interrompida, ela dá um curto. (H., engenheiro da CEMIG)

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...e, depois, como risco generalizado aos brincantes e pessoas ao redor, especialmente para

os motoqueiros que, desavisadamente, sofriam cortes graves promovidos pelas linhas

cortantes que lhes atravessavam o caminho, algumas fazendo vitimas fatais. Motos e

motoqueiros se multiplicaram nas últimas décadas, transformando-se em ágeis mensageiros

na entrega e no transporte de quase tudo: documentos, remédios, bebidas e mesmo pessoas

no esquema de moto táxi. As antenas para proteção instaladas nas motos surgem para

amenizar os riscos nesta perigosa convivência entre motoqueiros e linhas cortantes.

Passa um motoqueiro de entrega de bebidas, perguntando sobre a localização de uma rua. Afinal, é dia de jogo e as pessoas se reúnem também para beber diante da televisão. Conheço finalmente o modelo de antena para evitar que o motoqueiro seja ferido pela linha com cerol. São duas hastes de metal presas ao guidon da moto que se erguem até acima da cabeça do condutor e fazem um gancho nas pontas superiores, servindo como anteparo que chega antes de qualquer das partes do corpo do motoqueiro. Uma idéia simples e engenhosa. Um dos meninos me informa que há outros modelos. Registro a antena com um desenho no meu bloco. (D.C.)

Avedon & Sutton-Smith (1971) comentam que, no sudoeste da Ásia, soltar pipas era

uma atividade comum entre homens adultos que costumavam entrar em disputas para cortar

as linhas uns dos outros. Temos também notícias através da literatura de que o cerol, pelo

menos a partir da década de 60, era conhecido e utilizado no Afeganistão, país do Oriente

Médio.

Se a pipa era o revólver, o tar, o fio cortante recoberto de cerol, era a munição. Íamos para o quintal, enchíamos uns duzentos metros de barbante com aquela mistura de cola e vidro moído. Depois o pendurávamos entre as árvores para secar. No dia seguinte, enrolávamos a linha pronta para a guerra num carretel de madeira. Quando a neve derretia e começavam a cair as chuvas de primavera, todos os meninos em Cabul ostentavam nos dedos talhos horizontais, traços reveladores de um inverno inteiro passado nessas batalhas. Lembro de como meus colegas e eu nos reuníamos para comparar as cicatrizes de guerra no primeiro dia de aula. Os cortes eram doloridos e levavam umas duas semanas para sarar, mas isso não tinha a menor importância. Aquelas eram as marcas da estação que eu tanto amava e que, mais uma vez, tinha acabado depressa demais. (Hosseini, 2005 p.56) Manuel me mostra a qualidade do cerol e me dá a linha para experimentar com o dedo. O seu dedo está sangrando e cheio de outros cortes. Lembro do romance “O caçador de pipas” que menciona o fato de os meninos exibirem, no primeiro dia de aula, os cortes provocados pelo cerol afiado como cicatrizes de uma guerra travada durante as aventuras

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de férias. No Afeganistão ou no interior de Minas Gerais, os traços da brincadeira encontram seus pontos de encontro. Não é incrível?(D.C.)

É intrigante e polêmico o assunto em torno do cerol, pois, ao mesmo tempo em que

ele tem origem e rota de difusão incertas, ele reacende o interesse em torno das pipas que,

de um brinquedo meramente contemplativo, retorna para o rol de artefatos com finalidades

guerreiras, travando-se em torno dele toda uma série de disputas e estratégias que não eram

postas antes. Há perguntas que não saberemos responder, pois não encontramos qualquer

informação a respeito: Quem inventou o cerol? Por quais conexões um material usado pelos

sapateiros passou a fazer parte do repertório daqueles que soltam pipas? Como? Em que

partes do mundo ele serviria como ingrediente para introduzir mais adrenalina na atividade

de soltar pipas? O que é claro, para nós, é que o cerol foi incorporado na brincadeira de

pipas a ponto de tornar-se um ponto de passagem obrigatória. Mas o seu traçado, ao longo

da história, é o que Latour chama de “evanescente”97. Poderia ter tido sua origem na Ásia,

como nos indica Avedon & Sutton-Smith (op. cit.), e ter se difundido de forma errática por

outras partes do mundo sem que nos fosse possível determinar o traçado exato destas

conexões? Seu uso pelo mundo poderia ter se intensificado como um refugo das práticas

bélicas desenvolvidas nas duas guerras do século XX? Faria o corte sistemático da pipa

adversária parte de uma estratégia modernista de exclusão, de eliminação das concorrentes?

Ou poderia ser encarado como uma maneira de democratizar mais ainda o acesso a novos

brincantes pela caça ao brinquedo?

-Piedade! Não diga “eliminar”. A exclusão me parece o ato mais escabroso da história, e mesmo tudo que diz respeito ao homem. Não, não eliminemos, muito pelo contrário, incluamos. (SERRES, 1999, p. 174)

O apelo feito por Serres nos dá a dica para pensar de que forma podemos co-optar o

que ele chama de “dinamismo do mal”. Diz ele que até o câncer, conjunto de células

malignas que devemos rejeitar e cortar a todo custo, pode nos ensinar a negociar um

contrato de simbiose, pois é assim que a própria vida o faz.

97 Latour chama de traçado evanescente o rastro deixado por um determinado actante que é difícil de observar no mapa, pois é menos marcado e suas conexões são constantemente interrompidas. Ainda assim, diz que vale a pena pelo menos fazer a tentativa de segui-lo (2006, p. 267)

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Aposto até que os melhores cuidados do câncer passarão, amanhã, por um método que, em vez de eliminá-lo, aproveitará seu dinamismo. ...Façamos a inseminação do leite talhado: isso produz, as vezes, queijos deliciosos. (ibidem, p. 252/253)

A controvérsia em torno do cerol se atiça a cada temporada por causa dos efeitos

que promove, desde as guerras entre as pipas, os acidentes, os festivais da CEMIG, a

substituição dos cabos de energia elétrica de postes para uma fiação subterrânea, as antenas

das motos, as rondas do Tático Móvel, os programas do cabo Dedé, o receio das famílias, o

movimento dos meninos atrás das pipas avoadas. Um dos nossos entrevistados arrisca

propor uma solução, algo que funcionaria de forma semelhante às leis que regem a

polêmica da ocupação dos espaços públicos por fumantes e não fumantes.

S – Eu penso assim: existem as áreas, as áreas dos brigões e dos não brigões. Você olha um pai e um filho que vão ao campo, a um lugar tranqüilo, o pai mesmo pensando na segurança da criança. Você chega num campo que é grande. Mas já tem outros que já não querem ficar quietos. Basta eles perceberem que ali tem uma brincadeira de pai e filho pra eles se deslocarem pra tentar cortar a pipa da criança, entendeu? F – Você acha que deveria haver um respeito por essas áreas de quem quer brigar e de quem não quer brigar. S – Sim. Deveria haver um grande respeito. Todo mundo é livre. Se a pessoa quer brincar e pede pra não entrar na pipa da criança... e basta virar as costas pra ver que, sem mais nem menos, tem uma criança chorando... Acho que isso não pode acontecer. Acho que ninguém pode tirar a alegria de uma criança. Eu penso assim. (S., entrevistado)

Mas entendemos que o nosso papel não é decidir como resolver a controvérsia no lugar dos

atores, mas traçar as conexões que nos permitam encontrar algum sentido de ordem nos

eventos registrados. Talvez o pensamento de Serres nos ajude a encontrar uma forma para

que possamos aproveitar este dinamismo maléfico que o cerol traz à brincadeira de pipas

para torná-lo o motor de alguma aprendizagem.

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CAPÍTULO VI

APRENDIZAGENS CONSTRUÍDAS DURANTE A BRINCADEIRA DE PIPA: O

QUE ESTÁ EM JOGO.

A pipa que o menino maluquinho soltava era a mais maluca de todas. Rabeava lá no céu, rodopiava adoidado, caía de ponta cabeça, dava tranco e cabeçada e a sua linha cortava mais que o afiado cerol. E a pipa quem fazia era mesmo o menininho, pois ele havia aprendido a amarrar linha e taquara, a colar papel de seda e a fazer com polvilho o grude para colar a pipa triangular, como o papai lhe ensinara do jeito que havia aprendido com o pai do pai do papai. (ZIRALDO, 1980, p. 48-49)

A pipa e as aprendizagens informais

Apesar de muito utilizada por professores para motivar a aprendizagem de conceitos

da geometria ou de noções que envolvem a física, não podemos dizer que a atividade de

construir uma pipa e colocá-la no ar seja algo que se aprende na escola. A brincadeira de

pipa ou papagaio está dentro de uma dupla classificação de jogos que se costuma entender

como sendo “tradicionais” e “de rua”, regidos por uma lógica diferente daquela que inspira

a transmissão dos conteúdos escolares, pois acontece de forma espontânea, nem sempre se

dá sob a supervisão de um adulto e não carece dos recursos formais da leitura a da escrita.

Ainda assim, a brincadeira perdura, a cada ano, mobilizando uma grande quantidade de

pessoas, independentemente da idade e da classe social a que pertencem. Pudemos fazer

essa constatação em alguns episódios que nos ligaram à prática deste esporte, fosse nos

festivais em torno da cultura98 do papagaio a que comparecemos, fosse no seguimento da

brincadeira durante a nossa pesquisa de campo.

98 O que estamos aqui chamando de cultura é o resultado provisório de uma rede de interações que ocorrem sistematicamente num determinado tempo e espaço, marcando, pelas suas regularidades, uma determinada forma de ser e estar no mundo de um grupo. Uma vez que estamos trabalhando com Latour, entendemos que essas redes haverão de incluir associações de humanos e não humanos. Estes últimos enquanto recursos materiais disponíveis são peças chaves na formação das culturas, uma vez que potencializam determinadas práticas pela sua presença, permitindo traduções outras, específicas e possíveis a partir das condições ambientais de cada lugar. Para Latour (2006), “uma cultura é, ao mesmo tempo, o que faz agir as pessoas, uma abstração completa criada pelo olhar do etnólogo, e o que é gerado ao longo das interações pela inventividade incansável dos participantes”. (p. 245)

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Segundo Pontes e Magalhães (2002), os jogos tradicionais oferecem regras que são

passadas de criança para criança, ao longo de séculos, sem nenhuma referência escrita,

deflagrando, ao mesmo tempo, uma série de arranjos e ajustes, em cada lugar e grupo em

que se atualizam. Os autores falam de uma “estrutura” da brincadeira, com o cuidado de

não entender esta “estrutura” como um elemento rígido e determinante de tudo o que se

segue, nem de tomá-la como uma realidade empírica, uma vez que é abstraída após a

repetição de muitas experiências de regularidade. As formas de brincar, ao contrário de

uma idéia de fixidez, seriam passíveis de modificações no tempo e no espaço, “em função

da rede de relações especificadas dentro de um grupo” (p. 214).

Cavalli-Sforza e Feldman (1981, apud Pontes e Magalhães, 2003a) introduzem a

expressão transmissão cultural, por analogia ao processo de transmissão biológica, como

uma forma que um grupo encontra de perpetuar uma característica, nas gerações que se

seguem, através de mecanismos de ensino e aprendizagem. No modelo destes autores

(1982) essa transmissão cultural pode ser vertical (quando ocorre dos pais para a criança);

horizontal (feita entre membros da mesma geração); e oblíqua (entre não parentes de

gerações diferentes). Considerando as observações que fizemos, todas as três modalidades

de transmissão acontecem na brincadeira de pipas, sendo esta uma das razões pelas quais a

pipa tem tanto poder de aglutinação, gerando desde efeitos de confraternização até aqueles

que mobilizam intensas disputas.

O estudo de Anjos, Silva, Santos, Pontes e Magalhães (2001), em relação à

percepção que as crianças têm acerca de como aprenderam a brincar de pipa e peteca,

verificou que uma maioria significativa respondia que havia feito a aprendizagem

“sozinha/em pares”, enfatizando a idéia de uma aprendizagem colaborativa, ao lado da

modalidade imitativa 99, ambas defendidas por Pontes e Magalhães (ibidem) para o caso da

pipa. De fato, quando perguntados sobre como aprenderam a soltar pipas, a maioria

daqueles com quem estivemos respondeu “sozinho/com parceiros”. Mas também houve

quem respondesse ter aprendido com pais, tios, primos ou irmãos mais velhos,

99 Trata-se de um dos três tipos que Tomasello e colaboradores (1993) destacam para a aprendizagem cultural: a aprendizagem imitativa, quando o aprendiz internaliza algo da estratégia comportamental do demonstrador; a aprendizagem instruída, essencialmente vygotskyana, quando os aprendizes internalizam as instruções para auto-regular suas funções cognitivas (memória, atenção...) e aprendizagem colaborativa, quando pares entram em colaboração para construir algo novo, podendo contribuir para a manutenção e/ou evolução cultural (Pontes e Magalhães, 2003a).

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principalmente se estavam na presença deles, durante o nosso acompanhamento de fins de

semana. Acreditamos que esta aprendizagem pode se dar a partir de diferentes fontes, sendo

aperfeiçoada a cada vez que o brincante vai a campo, dentro do espírito de uma

aprendizagem verdadeiramente colaborativa. De início, realizam aprendizagens que

podemos entender como sendo imitativas ou instruídas, na companhia de pessoas de uma

geração à frente. Mas, logo, os brincantes com quem estivemos enveredam pelas

aprendizagens realizadas com companheiros de faixas etárias próximas às suas, no que o

estudo mencionado chamou de aprendizagem colaborativa. Esta, feita entre pares, seria a

que enseja as maiores possibilidades para a emergência de novidades no repasse de uma

prática cultural devido aos ajustes consensuais que vão se produzindo e se espalhando

numa nova e bem sucedida versão alcançada pela díade/tríade (podendo haver mais pares),

numa diferenciação quanto aos estados iniciais da interação. O que merece ser destacado é

que a cultura, tal como a natureza e a sociedade, não é algo pronto ou estático, estando

sempre em constante fabricação pelos seus membros: ao ser transmitida, ela é modificada,

algo de novo se re-constrói e se re-inventa, ocorre uma tradução que é ao mesmo tempo

uma traição100, conforme argumenta Law (1997). Estas reflexões são igualmente válidas

para as formas de construção do brinquedo, para a confecção do cerol101 ou para o

vocabulário utilizado durante a brincadeira, como veremos adiante.

As pipas oferecem aprendizagens calcadas na informalidade dentro de grupos heterogêneos. Os meninos menores gravitam em torno de meninos maiores que, em alguns casos (preferentemente nos fins de semana) podem ter como ponto de referência um adulto que, por sua vez, pode estar ali para se divertir junto, para mostrar alguma habilidade com o brinquedo, para olhar e até para garantir alguma segurança em caso de brigas. O que mais impressiona é que não é uma aprendizagem do tipo “primeiro você faz isso, depois você faz aquilo”, algo organizado em passos, numa seqüência demonstrativa. A coisa acontece em movimento, em situação. E parece que é eficaz, pois não há sinais da anunciada extinção da brincadeira, desde a década de 60, como uma conseqüência da instalação das redes elétricas. (D.C.) Associar a forma da aprendizagem da brincadeira à sua manutenção no tempo pode ser um dos fios desta longa rede. A eficácia da aprendizagem parece proporcional à sua informalidade e ao prazer a ela associado. Resta-nos saber o que mais há, além dessa

100 Ver Capítulo II. 101 Ver capítulo VII.

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informalidade e do prazer que impera nas disputas ocasionadas pelo jogo102.O que dizer, por exemplo, das formas de construção de uma pipa, da habilidade de confeccionar o cerol, da agitação de quem vai se lançar num cruzo para ganhar ou perder? Que emoções essas ações mobilizam? Quais destrezas são mobilizadas na lida com os elementos não humanos: o vento, as nuvens, a chuva, a linha, o papel de seda, o bambu das varetas da armação?(D.C.)

Aprender a construir uma pipa pode parecer uma tarefa simples para os leigos,

desavisados ou para aqueles com grande experiência. Mas não é tão simples como aparenta

ser e implica numa certa dose de tolerância à frustração para quem deseja se submeter à

experiência. Nas situações em que pudemos observar a construção de pipas, os que já

sabiam mostravam a sua habilidade aos “iniciantes”, meninos e meninas. Alguns pegavam

o “jeito” mais rapidamente, outros se debatiam por não conseguirem construir seu

brinquedo tão prontamente como imaginavam. Houve casos de muita irritação diante da

constatação da própria inabilidade para a montagem com a demanda de que os mais

experientes suplementassem a atividade de construção. Na Oficina de Pipas promovida pela

Brinquedoteca da UFSJ, em 2004, houve quem levasse sua pipa pronta para não correr o

risco de não saber montar uma e houve adultos que facilitaram a tarefa para filhos e

sobrinhos, dando o brinquedo praticamente concluído, ou ensinando a fazer

“jalequinhos”103, “curicas”104 ou “capuchetas”105.

Os brinquedos-ponte, a transmissão cultural e a zona de desenvolvimento proximal.

PA – Engraçado que me voltam à lembrança coisas de uns 37 anos atrás. Se não for de uns 40. É maravilhoso lembrar de pipa. É bom demais! Como já te falei, eu via o pessoal da rua soltando e comecei a soltar pipa com papel de pão. Depois, teve um rapaz do começo da Rua Santo Antônio que me ensinou a fazer um giriquinho que era a coisa mais linda. Era feito assim como se fosse uma costela. A gente dobra o giriquinho... F – Era uma dobradura? PA – Uma dobradura! (Trecho da entrevista com P.A.)

102 Falo de jogo aqui, pois as regras lhe conferem esta conotação. Ganhar e perder, a todo instante, são contingências da dinâmica de soltar pipas. 103Nome dado no Rio de janeiro a um tipo de pipa feita com folha de papel de jornal ou de caderno, recortada com a mão ou com a tesoura e empinada com poucos metros de linha por crianças pequenas (até 4 anos). 104Nome que recebe o mesmo brinquedo no Pará e no Maranhão. 105 É a tradução do jaleco e da curica em São Paulo.

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Segundo Pontes e Magalhães (2002, 2003), jalecos, curicas ou capuchetas são o que

poderíamos chamar de “brinquedos-ponte”, ou seja, brinquedos que reproduzem, de forma

simples e tosca, o brinquedo original, servindo para introduzir as crianças menores na

brincadeira. Chamam-no de “brinquedo do brinquedo”, uma versão simplificada, uma

“tradução” acessível para as crianças que não conseguem dispor de toda a habilidade para

lidar com o objeto de referência. Nas palavras dos autores

Brinquedos-ponte fazem a ponte com o brinquedo principal, introduzem ou mantêm uma prática alternativa, institucionalmente estabelecida, de um brinquedo culturalmente desenvolvido no mundo infantil. (p. 96)

Pontes e Magalhães (ibidem) acreditam que a curica, o jaleco ou a capucheta, são

objetos substitutos encontrados para os papagaios, que se adaptam às possibilidades dos

grupos de poucas habilidades ou posses e que cumprem com a função de facilitar a

transmissão cultural da brincadeira, permitindo a sua manutenção106.

Além dos brinquedos-ponte, os autores (2002) introduzem a idéia do brinquedo-

parente ou brinquedo aparentado. Trata-se de um brinquedo que circula paralelamente ao

brinquedo principal, guardando semelhanças com suas características e fazendo parte do

clima da brincadeira. Poderíamos dizer que são coadjuvantes, verdadeiras variações em

torno do tema principal, mas não menos operantes, uma vez que funcionam como

instrumental para alcançar determinado fim que concorre para a ação em curso. No caso do

papagaio, um brinquedo aparentado identificado por nós, durante o seguimento das pipas,

foi a marimba, também chamada de bole no Amazonas tendo como variação o culhão de

gato (Mello, 1983). A marimba ou bole é um brinquedo composto de uma linha que tem na

sua extremidade uma pedra ou algo que funcione como peso. É usada para laçar as linhas

das pipas que estão caindo, para desenlaçar alguma pipa presa fora do alcance das mãos,

comumente em árvores e às vezes, perigosamente, alojadas em postes com fiação elétrica.

O culhão de gato tem duas pedras amaradas nas extremidades e funciona com o mesmo

propósito da marimba.

106 Os autores ponderam que a brincadeira de papagaio já está de tal forma assegurada em sua permanência cultural que os respectivos brinquedos-ponte, hoje, já não fariam falta.

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O papel dos brincantes mais experientes torna-se bastante relevante nesta introdução

à brincadeira e no contato com a feitura do objeto lúdico. Remete-nos ao conceito de zona

de desenvolvimento proximal desenvolvida por Vygotsky e ampliada por seus seguidores.

A zona de desenvolvimento proximal foi concebida por Vygotsky (1984) tendo por

base uma situação de aprendizagem calcada numa condição de assimetria, ou seja:

companheiros mais experientes serviam de alavanca às aprendizagens realizadas por

aqueles com menor nível de desenvolvimento, constituindo-se uma zona de transição em

que as capacidades dos segundos ficariam potencializadas pela ação dos primeiros. Este

conceito preconiza o desenvolvimento em níveis: real (aquele que permite ao sujeito operar

sem ajuda externa, a partir do que já conquistou) e o potencial (em que o sujeito opera com

a ajuda de um outro mais experiente), sendo o espaço entre estes dois níveis uma zona de

construção de aprendizagens. Vygotsky trabalha com a idéia de que o processo de

desenvolvimento das aprendizagens tem um percurso que vai de níveis menos complexos

até níveis mais complexos e pressupõe a interação entre sujeitos inseridos em contextos

sócio-históricos determinados, sendo estas trocas sociais o que impulsiona a conquista dos

níveis de aprendizagem mais elaborados. Muito se tem utilizado a noção de zona de

desenvolvimento proximal no âmbito das aprendizagens escolares e também na esfera das

brincadeiras. Pretendemos avaliar de que forma ela nos poderá ser útil à luz de uma

ampliação de seu escopo, já buscada pelos últimos trabalhos dos seguidores da abordagem

sociohistórica. Particularmente, interessa-nos a possibilidade de entender a zona de

desenvolvimento proximal na perspectiva de um Princípio de Simetria Generalizado,

fazendo a inclusão das associações com não humanos quando nos referimos às

mediações107 .

Verba e Isambert (1998) apresentam pesquisa em que foram investigados os

mecanismos de colaboração entre crianças na faixa etária de dois a quatro anos: a

colaboração, especialmente em atividade lúdicas (jogos de construção, de regras, de faz-

de-conta), em que a criança maior fornece "idéias" e comanda a organização com maior

eficácia e responsabilidade; a tutela com ajuda e intervenções (verbais e práticas) por parte

do parceiro mais experiente, cabendo à criança menor aceitar ou não a ajuda; o modelo de

107 Em Latour, a idéia de mediação é ampliada: é tudo que interfere, que faz a diferença, tudo que está no meio quando se deseja alcançar determinado objetivo, levando em conta a ação de humanos e não humanos, assim como seus efeitos. Ver ampliação deste conceito no capítulo I e no capítulo VII.

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referência em que o parceiro mais experiente funciona como modelo a ser imitado, nos

seus comportamentos e estratégias de resolução de problemas. Dentro das observações

realizadas pelas autoras, percebe-se que as interações se dão quase que exclusivamente de

forma assimétrica, pressupondo ganhos apenas para a criança mais nova.

Entretanto, Newman, Griffin & Cole (1989) ampliam essa perspectiva para o

entendimento da zona de desenvolvimento proximal como um espaço deflagrador de

aprendizagens em ambas as pontas, ampliando-a para a noção de zona de construção. Este

conceito pressupõe espaços de trocas dos quais podem emergir aprendizagens em qualquer

idade, a partir do compartilhamento e negociação de significados, num movimento de ação

recíproca em que ambas as partes se transformam. No jogo ou ação lúdica, esta idéia tem

um sentido essencial pelo fato de que crianças, mais velhas e mais novas, sempre obterão

ganhos em seus respectivos papéis, assim como na dinâmica de papéis que se sucedem ao

longo da brincadeira. Não estamos defendendo aqui a idéia de que todas as aprendizagens

ocorrem em condições de simetria. Ao contrário, reconhecemos que uma relação de ensino-

aprendizagem tem sua marca original assentada na assimetria, embora seu objetivo maior

seja a conquista de uma situação entre iguais, onde vigorará a simetria. A proposta é válida

para as aprendizagens formais, sendo-o mais ainda para as aprendizagens informais como é

o caso da brincadeira de pipas.

Pontes e Magalhães (2003a) chamam a atenção para as relações entre os

brincantes108 como um fator presente na transmissão da cultura. Destacam que esta relação

mais-experiente versus aprendiz, na cultura da brincadeira, pode “assemelhar-se, em alguns

casos, à aprendizagem dos velhos ofícios, em que a forma de pagar pela oportunidade de

aprender é dada por meio do trabalho” (p. 9). Dão como exemplo, no caso do papagaio, a

colaboração que se estabelece entre o aprendiz e o experiente, quando o primeiro leva o

papagaio a uma certa distância para que o segundo possa, puxando a linha, colocar o

brinquedo no ar. Em troca da ajuda, o aprendiz pode segurar a linha e fazer algumas

manobras.

Os autores acima citados consideram que a brincadeira não se restringe aos que dela

participam ativamente, pois todos aqueles que estão ao redor do grupo que brinca também

108 Não só para a relação “experiente-aprendiz”, mas também para a relação “aprendiz-aprendiz” e “experiente-experiente”.

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participam do evento109, sendo esta uma característica das brincadeiras de rua. Como pólo

aglutinador de interações, essas brincadeiras atraem observadores que podem assumir

diferentes papéis110 no jogo, ao mesmo tempo em que dele partilham. Acrescentamos que a

noção de entorno da brincadeira nos parece ser fundamental para destacar outros elementos

não humanos (o vento, as mudanças no tempo, a topologia do terreno, o tipo de material

usado na fabricação da pipa, a rede elétrica, os carros, as bicicletas, outros elementos da

paisagem como postes, meios-fios, vegetação) que fazem a mediação do que está

acontecendo, reforçando o caráter de rede das aprendizagens que tecem e são tecidas como

uma condição de transmissão da cultura.

Na brincadeira de pipas, dentro do que observamos durante as nossas idas a campo,

ocorre uma composição de grupos muito heterogêneos quanto às habilidades para lidar com

o brinquedo, havendo usufruto de todas as partes, num certo acordo implícito em que as

tarefas se organizam bastante informalmente: os maiores exibem sua performance em troca

de pequenos favores dos menores; os menores prestam seus pequenos serviços em troca da

observação da “técnica” exibida pelos maiores, assim como de alguma proteção em caso de

briga.

A pipa é um brinquedo-brincadeira em que podemos encontrar todas as

características apresentadas pela abordagem etológica que Carvalho e Pontes (2003a)

recuperam: a necessidade de compartilhamento com outros para desenvolver a brincadeira -

pois dificilmente os empinadores de pipas fazem o seu lançamento ao ar sem a cooperação

com outros companheiros; o desafio para desenvolver destrezas na superação de um limite -

o de projetar-se nos ares através do objeto e de mantê-lo sob controle com as manobras

desenvolvidas à distância com a linha; a motivação para o ataque e para a defesa nas

disputas ocorridas entre os participantes do jogo - que assume maior ou menor gravidade

em função da parcela de agressividade mobilizada pelos grupos envolvidos111. A

brincadeira de pipas, ousaríamos dizer, nos oferece a possibilidade de aprendizagem desse

sentido de oportunidade que nos afeta de corpo inteiro, algo que nos incita a testar nosso

limites no estabelecimento de relações entre os vários actantes que fazem parte de nosso

mundo comum.

109 Como já definimos na nota 6, p. 24. 110 Podem prestar pequenos favores, apenas observar, comentar, dar palpites, apanhar as pipas cortadas. 111 Como chegamos a comentar no capítulo anterior.

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Aprender: traduzir e deixar-se afetar

Uma vez que estamos falando da transmissão cultural de saberes e práticas, parece-

nos impossível não abordar a questão ensino-aprendizagem. A pipa, na perspectiva de

nosso estudo, é um objeto que, em sua materialidade, é ao mesmo tempo disparador e

resultado de inúmeras aprendizagens dentro de um grupo.

Uma análise etimológica das duas palavras – ensinar e aprender – pode nos ajudar a

defender o raciocínio que se seguirá.

Ensinar - do latim insignare quer dizer colocar uma insígnia, um sinal; assinalar,

fazer insigne, memorável. (Cretella Jr. & Cintra, 1953) Acrescentamos aqui tornar

diferente, diferenciar.

Aprender - do latim apprehendere quer dizer apreender, pegar, prender, conquistar.

(Ibidem). Acrescentamos aqui guardar, reter, ter como parte de si, incorporar.

Ensinar e aprender poderiam ser atividades encaradas sob a ótica do lúdico,

contendo todas as características de um jogo, como o verso e reverso de uma mesma

moeda, mobilizando os sujeitos por inteiro, afetando-os em sua totalidade. Nem sempre

prazeroso, pois implica em renúncia; nem sempre alegre ou tenso, pois envolve emoções

variadas; nem sempre limitado no tempo e no espaço, pois as aprendizagens não têm hora

pra acontecer; mas sempre criando alguma ordem na confusão da vida, mesmo que, a

princípio, instale um pouco de desordem.

A aprendizagem, como uma incorporação de saberes e fazeres, só faz sentido se a

pessoa dispõe dela para operar efeitos sobre si e sobre o mundo. Essa possibilidade de

lançar mão de determinados conhecimentos torna-se possível uma vez que o aprendido faça

sentido e seja digerido/transformado como parte daquele que aprende, ou seja, desde que se

opere uma “tradução”, desde que se ache um nexo entre o que se pretende ensinar e o que

se pode aprender de um assunto num determinado momento. Caso contrário, acreditamos

que a aprendizagem de fato não se processa, podendo meramente ocorrer o que Visca

(1987) chama de aprendizagem mimética112. Para sermos fiéis a TAR, na abordagem das

112 Aquela que ocorre por uma pressão circunstancial – como na urgência de uma prova – mas logo se perde porque resta como corpo estranho, sem fazer sentido na vida daquele que supunha ter aprendido.

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aprendizagens, entendemos que cada sujeito tem suas aprendizagens ligadas a uma rede que

lhes dá sustentação e que se origina em vários coletivos. Uma aprendizagem desconectada

não se sustenta enquanto uma bagagem vivencial que possa vir a ser utilizada: aquele que

está numa posição passiva de apenas receber o conhecimento pronto e “enlatado” fica

impedido de realizar a sua tradução e de acrescentar a sua marca. O conhecimento estará

irremediavelmente solto e sem sentido, sendo tão mais perecível quanto menos requerido

for. Aí está justamente um dos pontos de relevância no estudo das pipas, pois a

aprendizagem de construí-la e lançá-la ao vento nunca careceu de nenhuma sistematização.

Há algo que resiste, pela via do lúdico e do informal, que garante a sua manutenção,

independentemente dos conteúdos programáticos veiculados intencionalmente como bens

de transmissão cultural, nas aprendizagens sistemáticas previstas pelas agências educativas.

Se tomarmos a palavra traduzir com o significado de tornar uma linguagem

compreensível, transformar um enunciado problemático numa linguagem de um outro

enunciado particular, poderíamos, então, entender a aprendizagem como uma ação que

traduz: na transmissão de um saber ou uma prática, tanto aquele que ensina como aquele

que aprende precisam encontrar pontos de passagem para tornar a tradução113 possível, para

tornar o aprendido parte de si, imprimindo nele a sua marca. Latour (2001a) toma a palavra

translation a partir de seu duplo sentido, tanto podendo significar o deslocamento de uma

linguagem à outra, como de um lugar a outro. Em ambos os casos, entendemos que o

processo de tradução se aplica às aprendizagens, pois, para aprender, precisamos

necessariamente realizar essas passagens lingüísticas e geográficas, operando, sobre a

cadeia de mediadores, movimentos que, ao mesmo tempo, conservam e deformam os

registros em questão. Para aprender, precisamos viver a aventura de abandonar as

referências, assim como precisamos nos defrontar com a possibilidade de decifrar códigos

desconhecidos, nos efeitos provocados no âmbito dos coletivos.

No caso específico das pipas, a tradução deste conjunto de saberes e práticas que a

mantem, tal como podemos entender pela Teoria Ator-Rede, aparece como um conceito

chave para a análise de como a brincadeira encontra diferentes versões quando olhada sob

os ângulos dos diversos nós que constituem a rede que lhe dá sustentação. Em qualquer

113 Ao invés da palavra transmissão, que pode pressupor a passagem de informação sem deformação, entendemos que será melhor usar a idéia de tradução adotada em nosso estudo.

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desses nós, haverá versões extremamente particulares do objeto que funciona como

paradigma.

Além da noção de tradução, interessa-nos utilizar a idéia de que, para aprender,

precisamos da materialidade de um corpo que se afeta, que é colocado em ação por outras

entidades (humanas e não humanas), tornando-se sensível ao que está ao seu redor. A pipa

é um artefato que mobiliza uma aprendizagem que se opera de corpo inteiro, deixando

marcas e produzindo efeitos na história pessoal de cada um que a utiliza.

Em How to talk about the body (2002d), Latour tenta escapar da definição de corpo

tomado como uma substância, “residência provisória de algo superior - uma alma imortal, o

universal, ou pensamento – mas o que deixa uma trajetória dinâmica pela qual nós

aprendemos a registrar e nos tornar sensíveis àquilo de que é feito o mundo”114 (p. 1)

No modelo com que estamos acostumados a trabalhar, assentado nas rupturas

instaladas pelo pensamento moderno, de um lado há o corpo dentro do qual está o sujeito,

como uma essência, e lá fora está o mundo povoado de objetos, havendo intermediários - a

linguagem - para estabelecer as conexões entre ambos. A aprendizagem, numa perspectiva

moderna, cumpre a função de apurar115 um sujeito que já está lá, mas não é fundamental

para dar-lhe a condição de alguém que possa afetar e ser afetado pelos outros. No caso da

pipa, podemos dizer que a afetação de um corpo que aprende é literal e contundente,

deixando marcas indeléveis.

Uai, se você falar com a minha mãe, ela vai falar que eu quase morri por causa de pipa. Eu estava em cima da laje, soltando pipa. A laje lá de casa tinha aquele beiralzinho pequenininho. Eu fui me afastando, afastando, afastando - tava cortando uma - e eu bati com o calcanhar, virei, caí, cortei o dedo. Segurei no beiral, lá, bati. Ia cair em cima de um tanque... caí deitado em cima de um tanque. Meu dedão ficou muito machucado, pois cortou unha, cortou osso... Mais um pouquinho, amputava meu dedo. Aí, meu pai chegou em casa e disse: “Não te falei, vagabundo?!” (risos) “Cadê a pipa?” Aí, ele quebrou tudo. Tive que ir costurar, dar ponto. Meu pai saiu pra trabalhar e eu voltei pra laje pra soltar pipa (Risos). (Trecho da entrevista com Mo)

Se pretendemos passar ao largo das dicotomias instaladas pelo pensamento

moderno, entendemos que nem sujeito nem mundo são dados a priori, estando ambos em

permanente construção: o sujeito é modificado/afetado quando aprende e o mundo também

114 A tradução é de nossa responsabilidade. 115 No sentido de que há uma essência que precisa ser aprimorada, como num processo alquímico.

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não será o mesmo depois da aprendizagem, pois terá sofrido uma tradução por aquele que

aprendeu. Os humanos nunca estiveram no mundo sem intercambiar propriedades com os

não humanos, sem se deixar afetar por eles. A idéia de ser um entre outros, de afetar e de

deixar-se afetar pelo que está ao redor, dá uma conotação política à questão das

aprendizagens, implicando num compromisso de articulação do sujeito e seu mundo. A

lógica das conexões vale igualmente para os sujeitos e suas fabricações: para ser

interessante e ter valor é preciso estar articulado, afetado por entidades cujas diferenças vão

ser incorporadas de maneiras novas e inesperadas. Nas palavras de Latour (2002 d),

Um sujeito desarticulado é alguém que, não importa o que os outros digam ou façam, sempre sente, age e fala a mesma coisa. [...] Por oposição, um sujeito articulado é alguém que aprende a ser afetado pelos outros – não por si próprio. (ibidem, p.3)

As articulações, para o autor, oferecem mais chances de produzir objetos novos do que

o modelo de ciência vigente que busca a exatidão da réplica e, portanto, cai na tautologia.

As articulações são muito mais férteis na produção de diferenciações e assim, muito mais

ricas.

Para Latour (2002d), quando um indivíduo aprende, ele se deixa afetar e se torna cada

vez mais diferenciado porque terá estabelecido mais e mais conexões, tornando-se mais

interessante e enriquecido na relação com o seu entorno (uma rede de elementos variados e

heterogêneos do qual ele também é parte). Se o conhecimento é concebido como o

resultado de uma articulação e a aprendizagem como uma forma de se deixar afetar, de se

deixar tocar em toda a materialidade do corpo, então poderíamos questionar as bases em

que as aprendizagens são propostas, quando assentadas numa visão moderna, ao separar o

corpo do mundo e trabalhar a transmissão de conhecimento como uma cópia a ser imitada.

Apontando para uma Psicologia Ator-Rede

Latour (op. cit.) utiliza oito pontos para discutir o significado do que vem a ser

científico, numa epistemologia política alternativa, valendo-se das idéias defendidas por

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Isabelle Stengers e Vinciane Despret116, em seus trabalhos. São estes mesmos pontos que

tentaremos aqui tomar como base para pensar a fabricação do conhecimento e a sua

passagem às novas gerações, já tentando operar a nossa tradução no que entendemos que

possa ser uma situação de ensino-aprendizagem não moderna. Estes princípios, se

relacionados com as nossas observações sobre a pipa, dão-nos a oportunidade de fazer

algumas reflexões que podem ser úteis para uma Psicologia Ator-Rede.

1. Não há uma metodologia única para construir conhecimento, muito menos para

ensinar e aprender. Cada pessoa, a partir de sua história e das redes que a compõem,

terá um estilo único de realizar esta tarefa que estará sempre passível de

modificações em função das novas conexões que forem ocorrendo, fato que a

deixará tão mais diferenciada quanto mais vinculada estiver (ARENDT, 2004).

Pensar numa causalidade em redes nos deixa em melhores condições de entender como

determinado ator, na mescla com outras entidades, pode produzir a si e ao mundo de

maneira absolutamente singular e, ao mesmo tempo, intensamente vinculada. Ser um

sujeito não é algo atribuível a uma suposta e prévia interioridade. Esta, diz Latour (2006) é

construída de uma maneira complicada: para que “um corpo anódino e genérico seja

transformado em pessoa [...], um fluxo de entidades lhe permite existir” (p. 305), pois,

como todas as outras coisas, há um trabalho de fabricação de cada sujeito, idéia que o nosso

autor toma claramente de empréstimo a Gabriel Tarde.

Existir é diferir, a diferença seria o lado verdadeiramente substancial das coisas, o que elas têm, ao mesmo tempo, de mais próprio e mais comum. [...] A identidade é apenas um mínimo, uma espécie infinitamente rara de diferença como o repouso não é mais que um caso do movimento, como o círculo é apenas uma variedade da elipse (TARDE apud LATOUR, 2006, p. 27).117

116 Estas autoras, segundo Latour (2002d), nos deixam uma lição quando oferecem “a pedra de toque para distinguir a boa da má ciência” (p. 11) Tradução nossa. 117 Tradução nossa.

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Equivocadamente, segundo estes autores, partimos da identidade para entender o que as

coisas são, mas é o que elas têm de comum que deveria ser o nosso ponto de partida. Como

atores, podemos verificar o traçado que os vários grupos aos quais pertencemos foram

deixando em nós: as marcas para fazer emergir aquilo que somos. Isto, entretanto, não quer

dizer que estamos na mão única da determinação - e nem tampouco na via da autonomia,

pois as entidades que se cruzam para a emergência dos atores funcionam numa causalidade

em redes que dispensa a sociedade e a natureza como únicas matrizes produtoras de efeitos

naquilo a que chamam de exterioridade. Há outros elementos subjetivadores,

personalizadores ou individualizadores que, em fluxo e de forma mais sutil, permitem

transformarmo-nos em indivíduos e conquistar uma interioridade. Também chamados de

plug-ins118, esses recursos vão nos possibilitando acessar cada vez mais conexões que nos

subjetivam, ampliando o nosso acesso ao mundo. Pela multiplicação de nossas conexões

com a realidade, recorrendo a um grande numero de subjetivadores, constituímos, portanto,

nossa interioridade e, assim, quanto mais conectados, mais subjetivados estaremos.

Tomando o exemplo tão caro a Latour em vários dos seus textos (2002c, 2006), utilizamos

a ligação entre os marionetistas e suas marionetes: na relação entre estas duas pontas, algo

se passa ao longo dos fios que permite às marionetes se mexerem. É na passagem, no

espaço entre, que as traduções acontecem, numa relação mais sutil que aquela meramente

de causa e efeito. Ao contrário de pensar que, para ser livre, um sujeito deve estar liberado

das conexões que o mantêm, a Teoria Ator-Rede postula a idéia de que alguém

desvinculado revela uma situação de empobrecimento. Uma marionete sem fios não se

move; com poucos fios tem movimentos limitados; com muitos fios, promove-se uma

sofisticação crescente de sua performance. Tudo vai depender da relação que se estabelece

entre marionetista e marionete.

Da mesma forma, verificamos ocorrer, na relação da pipa com seu empinador, uma

dessas possíveis formas de subjetivação. As formas de lidar com o brinquedo são bem

ilustrativas dos estilos pessoais que vão se constituindo na biografia de cada um,

permitindo as várias maneiras de ser e fazer em parceria com o objeto. Arriscaríamos dizer

que a pipa poderia ser mais um plug-in, um tipo de subjetivador, uma vez que, através desta

118 Figura tomada da informática que, na proposta de Latour (2006), significa aquilo que nos deixa acessar, visualizar, fazer conexões com quadros que fazem crescer as nossas possibilidades de ação.

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atividade, abre-se um rico campo de experimentações nas interações que os brincantes vão

estabelecendo com o mundo: cada pessoa terá sua própria maneira de fazer a sua pipa e de

colocá-la no ar e comporá, a partir das experiências que afetaram seu corpo, sua forma

particular de constituir-se como um sujeito. As observações em nosso diário de campo

indicam a formação dessas idiossincrasias na lida com este objeto lúdico.

Nesta tarde, ficou mais ou menos delineado para mim o quanto que cada um imprime um estilo próprio na atividade de soltar pipas que pode ou não ser típico de outras atividades que desempenha. Cada um dos meninos podia ser observado a partir de uma determinada maneira de se comportar. Brincando de brincar, ensaiando as regras do próprio jogo, eles se revelavam na forma de lidar com os outros e com seus brinquedos. Provavelmente, são “estilos” construídos ao longo de sua história em função das redes que puderam se tecer ao seu redor. Jona, por exemplo, costumava ser muito “esquentado”, reclamando muito e brigando com os outros a cada vez que sua pipa se enroscava ou caía. Podemos dizer que era de um estilo “zangado”. Sheik, se protegendo de maiores aventuras, grande parte do tempo numa posição mais recuada, assumia um estilo “cauteloso”, soltando sua pipa numa lógica de risco calculado. Samuel fazia o estilo “ermitão”, buscando isolamento do contato com o grupo. Para ele, soltar pipas parece ser uma atividade mais solitária, de conquista do objeto, como se este fosse um troféu. A impressão que me dá é que um grupo com o qual brincar não lhe fazia falta. O Angu me parecia ser mais do estilo “esperto”, que sabia aproveitar as oportunidades, brigando ou se recolhendo em função das necessidades de sobrevivência em campo. De qualquer forma, falo de estilos não como se fossem moldes estáticos. Pelo contrário, são moldes relacionais que podem se modificar em função da configuração da rede nas quais estão inscritos. Há momentos em que Jona tem que ser mais amistoso, Sheik assume uma atitude mais ousada num cruzo, Samuel se mistura com um grupo e Angu nem sempre consegue se dar bem. (D.C.)

Acrescentaríamos sobre esta oscilação entre a regularidade nos estilos e a necessidade

de flexibilizá-los em função das circunstâncias, algo que é corrente na clínica da Psicologia

e que se encaixa muito bem com as palavras de Serres (1999):

Quando as relações permanecem sãs, ou normais, elas flutuam desse modo; somente são patogênicas as relações fixas e cristalizadas. (p. 153)

As maneiras como cada um usa a pipa para se construir como pipeiro e como uma

pessoa intensamente conectada e afetada com/pelos elementos que fazem parte da

brincadeira abrem um enorme espaço de possibilidades para tornar-se diferenciado a partir

dessa relação com os outros e com as coisas.

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M - Eu, desde criança, desde uns 8 ou 9 anos de idade, vindo de uma família grande com poucos recursos financeiros, tinha poucas diversões disponíveis: eram a bola, o finco, bolinha de gude e a pipa. Eu optei pela pipa. Então eu, desde os 8, 9 anos sou apaixonado por pipa. M - Primeira coisa é aprender a regra de sobrevivência: você tem que cortar o outro, senão ele te corta. F - Isso é inevitável? M - Isso é! A gente tem que cortar pra não ser cortado. Tem que ter o respeito um pelo outro. Quando você sabe que o cara é melhor que você, você respeita ele. F - E quando é pior, sai cortando? M - Sim. Essa é a vida normal. Quando você encontra uma pessoa acima de você, com força e inteligência, você fica submisso. Quando você está acima de alguém, é essa pessoa que abaixa e que fica submissa. A mesma coisa é na pipa, na bolinha de gude, no futebol. Então tem essa regra, da sobrevivência e do respeito. Tem a persistência: pipa tem que ter persistência: se não tem vento agora, mais tarde tem; se não acertei em fazer essa, se ela não ficou boa, mais tarde eu consigo. Tem a perfeição: quem mexe com pipa é mais perfeccionista. Senão, não adianta. Uma pipa no alto, a uns 300 metros de altura, para você dominar ela, ela tem que estar perfeitinha. Se não tiver perfeita, como você vai dominar ela, dar de bico prum lado, dar de bico pro outro? O soltador de pipa é diferente do que joga bola porque tem um estilo, uma exigência de perfeição. (Trecho da entrevista com Mo)

O início deste fragmento da entrevista de Mo nos faz lembrar do exemplo dado por

Despret (2002) em que alguns pássaros garantiam o território e a preferência da fêmea

frente aos possíveis adversários, cantando mais alto e melhor. Esta era uma forma de inibir

as ações do invasor que se intimidava com a superioridade do mais hábil e abandonava as

suas intenções de disputar com o primeiro. A atividade com as pipas, se lavada a sério, é

uma daquelas em que a busca pela perfeição e pela constante superação de limites se impõe

como uma das regras principais, embora nem sempre explícitas.

Então, eu era enjoado. Pra pipa, eu era perfeccionista mesmo: a pipa tinha que ser grande, do flamengo, rabiola com 20/30 metros, com cerol, sempre a primeira a ser colocada no alto... E eu não corria, não dava um passo. Se eu tivesse que correr pra colocar a pipa no alto, eu largava a pipa pra lá. Precisa ser perfeccionista, tem que obedecer a um ritual. Isso era eu que fazia... Porque tem muitos que talvez não tenham essa relação. O cara que fala que soltou pipa não pode ter soltado só por um ano. Tem que ter soltado pipa uns 20 anos pra dizer que soltou pipa. Porque aí ele aprendeu de tudo, fez de tudo. Tem que ser persistente, tem que ter muita disciplina. E é uma coisa boba, a pipa. Mas vai estudando o fundo disso aí. É uma relação entre eu e aquele objeto que, para quem gosta... Pra quem não gosta, parece bobagem. Mas quem viveu essa relação durante 20 anos... O que eu lembro da minha vida, quando eu era guri? Casa da minha avó: pipa. Casa do meu pai:

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pipa. Meus amigos: pipa. E passei isso prum filho meu. Os outros não estão nem aí. (Fragmento da entrevista com Mo.)

Sobreviver, persistir, respeitar os que eram melhores e buscar a perfeição foram as

aprendizagens oferecidas a este que teve a pipa como brinquedo de sua escolha,

funcionando como um recurso de subjetivação, uma oportunidade de construir e colocar à

prova o seu estilo pessoal.

2. Para ser ensinado/aprendido, o conhecimento precisa ser interessante; e ser

interessante é necessariamente ser articulado, estar sintonizado com o outro, fazer

eco nos projetos de vida e nas motivações do outro. Ser simplesmente exato não dá

a garantia de um conhecimento interessante. Além de exato, como pretendem ser as

verdades científicas, ele pode ser igualmente enfadonho, redundante e, portanto,

estéril, porque mal articulado.

Verificamos que a brincadeira de pipas se revela mais interessante em função da

quantidade de situações da realidade que tem a chance de mobilizar. A pipa é um objeto

talhado para induzir à vivência de grandes aventuras, por estabelecer múltiplas relações

com tudo e todos ao seu redor. Não se trata só da pipa, pois há muito mais coisas

acontecendo: é encontro, é movimento, é troca, é surpresa, é disputa. Sendo uma atividade

que ocorre ao ar livre, há muito mais heterogeneidade e quantidade de elementos com os

quais trocar. No caso particular da pipa, que é um brinquedo típico de determinadas épocas

do ano em que as condições do vento são propícias, teríamos o elemento da sazonalidade119

como uma forma de despertar e desenvolver a sensibilidade dos brincantes para os ritmos e

ciclos da natureza e do ambiente social120.

119A idéia de sazonalidade do esporte que prevê os meses ventosos e sem chuvas já é hoje questionada, uma vez que há pipas de material plástico à prova d’água. O único elemento climático definitório para soltar pipas continua sendo o vento. No contexto pesquisado, entretanto, há um acordo tácito de soltar pipas apenas nos meses de férias ou naqueles que os antecedem mais imediatamente para evitar a concorrência com as atividades escolares. 120 Por ambiente social, aqui poderíamos incluir os humanos envolvidos com suas destrezas, assim como os materiais de que são feitas as pipas, o espaço disponível para a brincadeira (laje, campo, quadra, pipódromo, rua, morro) as circunstâncias em que se desenvolve a atividade (permissão/proibição; segurança/insegurança; férias/não férias;...)

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As pipas são uma porta aberta para experimentar coisas muito variadas. A relação com

pessoas de diferentes idades, a interação com elementos do clima e da paisagem, a relação

consigo próprio na testagem de destrezas e limitações fazem da pipa um verdadeiro

laboratório, tornando incrivelmente interessantes as aprendizagens construídas em torno do

brinquedo, até porque elas não são impostas e vão se processando em situação, ao contrário

dos conteúdos propostos pela escola, instituição que tem sido reiteradamente acusada de

reproduzir o hiato entre a vida real e a aprendizagem feita entre muros, deixando enfadonha

e sem cor a tarefa de aprender e construir conhecimento. As narrativas sobre as aventuras

vividas e as histórias que se assemelham àquelas contadas pelos pescadores trazem uma

tonalidade diferente à prática do brinquedo, deixando lembranças marcantes naqueles que

as viveram.

E eu era uma pipa, de cores bacanas, que não dava de lado, que não prendia no cabresto, que tinha uma linda rabiola, de pano, num dia de bom vento, linha dez nova, sem falha, bem envidrada, gilete no rabo, sem nó, longe de poste, principalmente da Central, bambu, mangueira, paineira, tamarineira, fio de luz, e eu de cima do telhado, sem camisa, no sol, bem seguro, soltava linha, via a outra, dava linha, calculava, tentiava, dava um pouco de lado, dibicava, mergulhava, entrava por baixo, arrastando, levantando, sentindo a outra, puxando, cortando, só no encosta, e depois dando linha ligeirinho, dibicando, dibicando rápido, e trazendo a outra no dipindura, devagarinho, devagarinho.(ARARIPE, 1983, p. 51) As estratégias, as brigas, os deslocamentos, vão ocorrendo ao sabor das necessidades, nada previamente programado. Aliás, o que não há, nas brincadeiras de pipas, é um plano muito antecipadamente elaborado. Se compararmos as outras brincadeiras, tudo ou quase tudo na brincadeira de pipas é devir, acontecendo ao sabor do próprio vento, ou por conta da chegada de outras pipas. Mas, nesta falta de um “plano” prévio, os meninos tentam fazer o seu melhor, se superando a cada momento, construindo seu domínio sobre este objeto impossível. As pipas são um desafio constante. (D.C.) Era o melhor lugar para soltar pipas, mas ficou perigoso e os pais proibiram de ir lá. Eles já tinham feito piquenique lá. Fizeram pipoca e tudo. Contaram que, uma vez, vinha voando um pato que eles caçaram, cozinharam e comeram. Perguntei quem havia cozinhado o pato, pensando ter sido uma das mães. “Foi um amigo nosso que é maior. A gente levou o pato pra ele, ele depenou e cozinhou. Uma delícia!” A conversa tinha virado para a culinária. Daqui a pouco íamos trocar receitas. (D.C.) Uma outra coisa que me chamou atenção é que a pipa não é só a pipa. Junto com ela, sempre aparecem outros elementos lúdicos como a bola, os cachorros, as bicicletas. A aventura é a tônica, a pipa é o pretexto. Nos momentos de calmaria, outras aventuras - perigosas ou saborosas - são trazidas à cena nas trocas entre narradores e ouvintes. (D.C.)

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3. Ensinar/aprender/conhecer é uma empreitada de riscos. Posições pré-estabelecidas

na assimetria devem ser colocadas à prova. O risco pode ser o abandono do

privilégio de estar no comando (de quem detém a verdade, de quem sabe), como

pode ser abdicar das certezas de um conhecimento que já perdeu sua validade, em

prol de um outro, desconhecido, que, por esta condição, é ameaçador.

O processo de ensinar/aprender como uma empreitada de riscos e não como uma

evitação de erros passa a fazer toda a diferença nas maneiras como cada sujeito vai se

posicionar diante do mundo. Se não nos colocarmos em risco, não tem aprendizagem e

também não tem jogo. Também não há vida, se nos poupamos de viver o caos e o risco que

são motivadores de novas oportunidades. Desde muito cedo na infância, a vivência, de

situações em que podemos experimentar riscos de uma forma mais ou menos protegida

enseja aprendizagens de elaboração daquelas situações que nos provocam grande

impressão. Correr riscos não é fácil, assim também como não o é experimentar perdas.

Pepê, de 4 anos, continua com sua pipa. Já fez várias vezes o esforço de mantê-la no ar, mas acaba por ter que baixá-la quando a rabiola se enrosca. É um espetáculo vê-lo, tão pequeno, com tanta habilidade para soltar o brinquedo. É um “pitoquinho”, de casaco e touca de lã, fazendo as maiores manobras para manter sua pipa no ar. O movimento do braço que segura a linha é amplo e constante, quando ela está no ar. Luisinho o ajuda a soltar sua pipa mais uma vez. Outra pipa começa a “entrar” na pipa do Pepê. A mãe grita pra ele baixar e avisa o pai: “’tão entrando na pipa do Pepê!”. O pai dá carta branca: “Deixa ele! Dá linha, Pepê!” Paolo, o irmão, tenta ajudar. É a maior gritaria. Cada um fala uma coisa. “Vai cruzar”, grita a mãe. “Deixa ele!”, grita o pai. “Sai daí, Pepê!”, grita um outro. Afinal, o Pepê consegue o direito de permanecer no ar por sua “conta e risco”. “Dá linha, dá linha!”, gritam. Mas não adianta. Cortaram a pipa do Pepê que nem parece se importar. Parece que já estava preparado. Penso que o melhor para ele foi poder assumir a disputa e perder com honra. Parecia orgulhoso de ter cruzado, mesmo perdendo o brinquedo. O Sr. Juca provoca: “Aí, Pepê, seu pai deixa sua pipa voar com um monte de linha!” Leleca rebate: “Ele voa com quanto ele quiser. Tem que aprender!” (D.C.)

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4. Olhar para as recalcitrâncias121 em humanos e não humanos é uma estratégia de

sobrevivência. Aprender/ensinar tem muito a ver com esse olhar, porque são essas

recalcitrâncias que podem nos propiciar uma re-orientação de estratégias na busca

por melhores efeitos. As formas de recalcitrar podem variar muito de humano para

humano e de não humano para não humano, mas sempre poderão ensejar muitas e

valiosas aprendizagens para todas as partes envolvidas.

As recalcitrâncias, seja de humanos ou de não humanos, são poderosos indicadores

de uma indisponibilidade para realizar negociações por parte de pelo menos um dos

segmentos envolvidos, impedindo que uma possível troca de propriedades configure novas

versões sobre o que estava dado à princípio. Por outro lado, podem promover

oportunidades para desenvolver novas estratégias de domínio do que antes não

conhecíamos muito bem. Na atividade de construir e empinar pipas, por exemplo,

enfrentamos variadas formas de recalcitrância provenientes de diversos actantes: da própria

pipa e dos materiais que a compõem, do vento, dos outros pipeiros. Abaixo, transcrevemos

fragmentos que ilustram uma boa quantidade de negociações que precisamos fazer com

alguns elementos nesta empreitada em que humanos e não humanos não são meros

intermediários, mas ativos mediadores.

Como eu já tinha me prevenido com taquara, e ela já estava pra lá de seca, foi só chegar e talhar. Cortei no prumo. Fui afinando as varetas com canivete e ainda dei uma alisada com lâmina de barba. Passei lixa fina. Tem gente que prefere vareta comprada pronta, de pinho roliço. Dessas não gosto. Minhas varetas faço eu mesmo, passando a mão a gente não sente nó no bambu. Armei o quadro com linha forte. Trancei bem trançadinho. Escolhi no bazar papel de seda do melhor, de quatro cores: amarelo, azul, verde e rosa. Cortei tudo em gomos e ajustei. A cola foi de farinha bem apurada. Com o dedo lambuzado, espalhando bem, segui as linhas das seis pontas. Dobrei o papel e esbati. Na minha cabeça, tinham esvoaçado peixinhos, canastras, maranhões, pipas, papagaios e pandorgas, porém achei que nenhum ficaria mais importante no ar que uma estrela de papel de seda bem distribuído nas cores. Quando a estrela ficou montada, deixei descansar ao relento pra secar. Só depois é que curvei e balancei para dispensar cauda de pano ou papel. Armei o estirante com equilíbrio. Olhei, vi que estava boa mesmo, era uma das melhores estrelas que tinha feito em toda a minha vida. Botei enfeite de franjas e bandeirinhas, combinando com as cores dos gomos. Ficou um brinquedo de dar gosto de soltar no espaço. 121 Recalcitrância é qualidade dos actantes cujas manifestações não são facilmente controladas, resistindo às tentativas de domesticação por parte de outros actantes. Para um estudo sobre a recalcitrância, ver mais em Tsallis (2005).

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(DIAFÉRIA, 1984, p. 31,) -Dá linha, Guga. Dá linha que ela sobe. O vento estava pão-duro, naquela tarde de sábado. Só Guga insistia em colocar a pipa no vento. Os amigos desistiram da tarefa, agora só davam auxílio moral. E palpites bobos. - O vento está gorando... recolhe que vai cair. (KUPSTAS, 1988, p. 7) Então ele pelejou para trançar comigo e não conseguiu porque eu não me entregava para ele. O caso dele era me pegar com o dele muito mais longe e eu não me entregava, me desviava o tempo todo, e findamos nos trançando, para ver quem era mesmo mais famão. (MELLO, 1983, p. 83)

5. Oferecer ocasiões de diferir é outro ponto fundamental. Para tanto, torna-se

imprescindível deixar falar o que até então estava mudo, permitindo a interferência

do interesse, da dúvida ou da discordância. Para que haja aprendizagem, a

articulação entre quem ensina, quem aprende e o conteúdo aprendido deve ser

interessante, afetando e modificando a todos.

Em que brincar com pipas pode fazer a diferença para quem realiza esta prática? Que

ocasiões este objeto lúdico oferece para que as pessoas se diferenciem e alcancem melhores

condições em relação a quem nunca brincou? No fragmento abaixo, dois de nossos

narradores resumem o que a pipa lhes acrescentou enquanto bagagem vivencial.

Acho que a pipa faz a gente aprender muitas coisas: 1. Não existe coisa melhor do que fabricar o seu brinquedo. É um aprendizado saber fabricar um brinquedo. 2. Você não fica parado quando solta pipa. Você tem que se movimentar. Você está fazendo uma série de exercícios. 3. A criatividade: se você não tem dinheiro pra comprar papel de seda, você vai usar papel de pão, vai usar carbono, vai usar papel higiênico, vai usar folha escrita, vai colar com angu, vai colar com grude. E não assusta não, porque cola muito bem. Engraçado falar, mas cola muito bem. 4. Esperar a hora certa pra dar o bote. Quando você é criança, você não sabe distinguir esse momento. Então você vai, cruza afoitamente e é por isso que, entre os menores, a tendência é ser cortado. Eles ainda não aprenderam a esperar pela hora certa. E a experiência dos maiores é saber esperar a hora certa, fazer uma pipa bem feita, fazer um cerol bem feito. Tipo eu não vou cortar ele agora não porque a pipa dele está com mais força, ou está muito baixa e, se eu debicar pra pegar a pipa dele, vou agarrar com minha pipa lá naquela árvore. (P.A., entrevistado)

Tudo que aprendi para a pintura aprendi com as pipas. Inclusive o bom combate. Todos os gestos elegantes (exceto os genéticos e os recentemente aprendidos), de apuro e leveza, todas as linhas riscáveis, eu aprendi com as pipas. Inclusive uma sociologia, uma filosofia,

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uma moral, uma estética eram também aprendidas ali. Não conhecia o menino que soltava a pipa mas, por ela, eu sabia se ele era bom ou mau, ou ambos, se era artista ou não, se era honesto, astuto ou oportunista, e mesmo se tinha sorte, poder; se era um grande combatente, alguém que valesse combater. Como pela telas, pelas pipas podia-se conhecer o pintor. Eram pipas feitas por ele e, por elas, ele voaria nos céus; tinham que ser bem feitas, com talento, paixão, apuro técnico. Um brinquedo de valer a pena; pois o que queria aquele menino, aquele pintor senão voar e ser invisível. Invisíveis meninos-homens da Água Santa; meninos prodigiosos, de pipas pequeninas, muito bem envidradas em linha 24, muito leves, cheias de arte e poder. [...] Arte, vida, cor. Jamais esquecerei a pipa que eu mesmo fiz de papel fino amarelo e roxo. Amarelo, verde e roxo, agora me lembro. Talvez fosse meu primeiro quadro. (ARARIPE, 2006)

6. Nem distância, nem empatia definem uma boa aprendizagem/um bom

conhecimento/ uma ciência bem articulada. A distância e a empatia, nas

aprendizagens não modernas, parecem ser uma questão de foco e de ângulo: muito

perto e muito longe, muito envolvimento ou indiferença dificultam a abordagem do

objeto novo. Estar muito/pouco envolvido, muito perto ou muito longe, é uma

condição que pode fazer falhar aquele que ensina/aprende, aquele que pesquisa ou

aquele que faz ciência porque ele não pode esquecer a sua tarefa, nem a chance de

se diferenciar junto com aquilo que pesquisa. A empatia se refere aos possíveis

vieses, paixões e preconceitos que interferem nas situações em questão. Eles não só

podem aparecer como devem ser colocados à prova. Quanto à distância, não se

trata, segundo Latour, daquela entre dois pólos contemporâneos

(observador/observado; quem ensina/quem aprende...), mas entre os conteúdos do

mundo antes e depois do fenômeno. Se há uma distância entre o novo repertório de

ações do pesquisador, do cientista, da entidade122 aprendensinante123 e aquele que

foi ponto de partida, então nada foi em vão: todas as partes se diferenciaram,

tornaram-se mais vinculadas e mais interessantes. A empatia e a distância só serão

úteis se ajudarem a maximizar as ocasiões para que o fenômeno investigado ofereça

outras questões para além das questões iniciais levantadas pelo investigador.

122 No sentido proposto por Latour (2002a), significa tudo quanto existe ou pode existir. 123 Termo cunhado por Fernandes (2001). Muito antes, Vygotsky já havia cunhado em russo o termo obuchenie que teria como tradução algo análogo à “ensinagem”, demonstrando a indissociabilidade do ensino/ aprendizagem. Ver Oliveira (1993, p. 57)

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A questão da distância e da empatia na brincadeira de pipas encontra uma tradução na

forma como os brincantes se posicionam frente às dificuldades de modular os espaços de

interação com seus brinquedos e pares em momentos decisivos. Estar muito perto implica

em perder o foco da ação, atrapalha a avaliação das estratégias e manobras em curso. Estar

muito longe não permite uma ação com envolvimento, com a vontade de produzir efeitos.

Aprender a hora e a distância adequadas a cada momento dá a chance ao pipeiro de

construir aquele sentido de oportunidade do qual falamos acima.

Tem hora que a gente está buscando um adversário e tem hora em que é o adversário que está buscando a gente. Então, depende muito se ele vem buscar a gente, se é ele quem faz a volta. Porque quem faz a volta é quem vem buscar. Agora, eu conheço pessoas que toda vez que iam soltar pipas, ou a pipa agarrava nos fios ou ele era cortado. Ele nunca conseguiu cortar a pipa de ninguém. Ele ficou tão frustrado que desistiu de soltar pipa. Hoje, o que eu consigo entender é que ele era muito apavorado. Ele não sabia esperar. Tem que saber esperar a hora certa. Vamos supor que minha pipa está com força e a pipa do outro não está com força. A minha linha então vai correr mais depressa em cima da linha dele. Essa é a hora de cruzar. Às vezes a pipa dele está com força, o vento está tocando ela com mais rapidez. Então, aí, não é hora não, pois a vantagem é dele. A linha dele vai correr primeiro que a linha da gente. (Trecho da entrevista de P.A.)

7. Como efeitos da prática científica, da fabricação do conhecimento, de um processo

de ensino/aprendizagem, podem surgir generalizações boas e más. Tanto melhores

serão as generalizações quanto mais conexões ocorrerem entre variados fenômenos,

gerando o reconhecimento da maior quantidade de diferenças, “por engajar o

destino de umas poucas entidades na vida e no destino de muitas outras”124

(LATOUR, 2002d, p. 9). Ao contrário, as generalizações más são aquelas que

tiveram a pretensão de serem tomadas como verdadeiras e de se assumirem como

universais porque, num determinado tempo e lugar, obtiveram sucesso. As boas

generalizações se legitimam pela extensão da rede em que circulam e pelos efeitos

que produzem, não pela imposição de alguns poucos quando estes entendem que as

diferenças são irrelevantes.

Uma das perguntas possíveis a este estudo é se ele será válido para entender outros

contextos em que a pipa apareça. Nossa resposta será negativa se tivermos a pretensão de 124 Tradução nossa.

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generalizar as observações feitas neste caso para outras realidades. Seria, então, uma má

generalização, pois estaríamos impondo a outros uma forma de funcionar que é válida para

este grupo, num tempo e espaço dados. Não temos a intenção de ser uma única e totalizante

versão sobre pipas e pipeiros nas interações que estabelecem. Apenas demos conta do que

observamos. Mas nossa resposta seria positiva se tomássemos a possibilidade de estas

informações se combinarem com outras pesquisas para intercambiar propriedades,

verificando semelhanças e diferenças entre elas: seria um outro passo possível, mas não

imprescindível, pelo menos para o momento. É mais ou menos assim que ocorre entre

grupos que usam as pipas de maneiras diferentes. Se um grupo quiser impor a outro sua

forma de lidar com o brinquedo, deflagra-se, provavelmente, um estado de guerra. Mas se

as comparações, por semelhanças e diferenças puderem acrescentar algo ao repertório

daqueles que brincam, mesmo sob perspectivas diferentes, informações são trocadas e

coisas são aprendidas.

Traduções ocorrem possibilitando o surgimento da novidade. Muitas ações que observo na brincadeira de pipas trazem marcas longínquas das práticas tradicionais, ensinadas de pai para filho numa aprendizagem informal, calcadas na transmissão oral. Outras, entretanto, já apontam para mudanças que vão ocorrendo no próprio fazer da brincadeira, no intercâmbio entre os vários grupos, seja no linguajar, seja nas estratégias. Um exemplo são as expressões que vão aparecendo e se difundindo em cada região. Basta um menino sair de São Paulo para passar as férias em Minas Gerais (ou vice-versa) para que a utilização de um novo termo passe de um grupo a outro, de uma região a outra. Note-se que a pipa é um folguedo que ocorre predominantemente nas férias de julho, pois a incidência das chuvas, pelo menos nesta região, é menor, ou seja, é nas férias que mais se exercita a prática com o brinquedo e é nas férias que os brincantes têm mais chance de se deslocar para outros lugares. (D.C.) O Dezinho me chama a atenção para a “nova moda”, apontando para o céu. Eram as pipas flecha. Diz ele que, antes, a gente quase não via uma pipa flecha, mas que uns meninos do Rio tinham colocado uma no ar e que cada dia iam aparecendo mais pipas flecha. (D.C.)

8. Permitir um mundo comum deve ser o destino de uma epistemologia política, da

fabricação de fatos científicos, de qualquer processo ensino/aprendizagem. Não é

possível conquistar um mundo para todos, se o ponto de partida já foi estabelecido

previamente, longe dos olhares dos interessados. Articulações poderão ser avaliadas

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como boas (ou más), na política ou na ciência, quanto mais inclusivas forem, quanto

mais diferenciações permitirem, quanto mais falantes deixarem os nós da rede.

Como compor “um mundo plural, mas comum” é o assunto de um dos livros de Bruno

Latour (2005) e penso que é a questão onde se localiza todo o esforço de construção da sua

Epistemologia Política. Qual será a tradução deste esforço quando fazemos as reflexões

concernentes ao nosso objeto de estudo? Como as pipas e todas as ações que elas provocam

no seu entorno podem nos trazer contribuições para pensar este mundo comum? Se um

mundo comum não pode ser dado por antecipação por alguns poucos em detrimento

daqueles que chegam a seguir candidatando-se à sua composição, penso que precisamos

passar por questões que implicam em aceitar e manter uma atitude de conformidade com as

diferenças estabelecidas previamente, ou, ao contrário, em nos posicionarmos na busca por

outras soluções. Essa divisão traçada entre os que já se encontram e outros que aparecem

posteriormente é praticamente o mote para a maior parte dos conflitos que encontramos no

mundo, seja entre idéias no âmbito pessoal ou no âmbito científico125, seja entre grupos que

disputam por recursos ou poder. Qualquer facção que se declara em guerra em relação à

outra, reivindica para si o privilégio da verdade ou da primazia sobre algo que funciona

como o pivô da contenda. Como já vimos126, o pensamento moderno estabeleceu divisões

que agravam e legitimam esta tendência ao conflito, especialmente no olhar que as ciências

lançaram sobre grupos que não fossem os legisladores das próprias causas, em detrimento

das causas defendidas por outros: de culturas diferentes, de outras gerações, de outras

crenças, de outros valores. Assim, todas as teorias com apelos ao universal se encontram

passíveis de conter em si o germe do enquadramento e da discriminação do diferente,

daquilo que não é o seu espelho. Se pensarmos no papel das relações que se estabelecem

durante a brincadeira de pipas, muitas destas discussões podem ser atualizadas: a disputa

pelo brinquedo com o advento do cerol, a possibilidade de estabelecer relações mais

diplomáticas entre os grupos, a aprendizagem da convivialidade, como veremos a seguir,

são todas questões em que podemos verificar o exercício desta composição de mundo, mais

que meramente um ensaio para a vida.

125 Ver no capítulo II como o pragmatista William James trata dessa relação entre antigas e novas idéias. 126 Idem capítulo mencionado na nota anterior.

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Na volta pra casa, as idéias continuavam a dançar na minha cabeça. “Ensaio da vida?” Por que não a própria vida? Por que o brincar é visto como o ensaio de algo futuro se o aqui e agora é a própria vida se tecendo? Todas as habilidades requeridas na ação de soltar pipas já fazem parte de um repertório de ações em que cada um exerce e exercita em tempo real o que se faz necessário na brincadeira. [...] Penso que não podemos olhar a brincadeira só como um ensaio para o futuro. Esta seria uma forma completamente adultocêntrica de pensar (como bem me chamou atenção o Fernando), como se a infância devesse sempre espelhar a vida dos adultos, como se nada pudesse ser recriado. Este espelhamento até pode acontecer, mas não como uma fatalidade e sempre como uma possibilidade de reinvenção. (D.C.)

O olhar do adulto, nas sociedades ocidentais, é um dos mais centrados e auto

referenciados que temos a chance de encontrar em tudo aquilo que se postula como regra a

ser seguida, colocando as outras idades do ciclo vital numa posição de tutela. No aspecto da

brincadeira, não é diferente. O esforço de simetria, que está longe de ser confundido com

uma postura de neutralidade, poderia oferecer uma oportunidade para a composição deste

mundo comum.

O encontro com o que é diferente não deveria, então, pressupor um jogo de trocas em que, através do conhecimento mútuo, pudéssemos incorporar as características do outro, sem necessariamente copiá-lo numa ação de submetimento? A recíproca não deveria ser também verdadeira? Em todas as ocasiões em que pessoas ou povos de diferentes culturas entram em contato, pacificamente ou beligerantemente, há um saldo de práticas e costumes que se interpenetram e ficam como marcas deste encontro em ambas as partes. [...] Vejo o jogo como um exercício da capacidade (que uns adquiriram e outros não) de se colocarem no lugar do outro, de estudar as suas estratégias, de enriquecer as suas próprias, de ensaiar, de errar, de acertar, de aprender. Não será o fio de toda esta discussão a busca, entre duas entidades diferentes que se encontram e testam suas forças, por um certo equilíbrio que tem, no jogo, o seu melhor cenário de experimentação?(D.C.)127

Tornar falantes os nós da rede, deixando aparecer o que estava à margem, permitindo o

posicionamento daqueles que não podiam até então aparecer, é parte deste exercício de

convivência com o diferente. Verificamos que, na brincadeira de pipas, há momentos em

que as diferenças podem aparecer e aí, têm que ser confrontadas e negociadas e, em outros,

elas desaparecem completamente.

127Trecho do diário de bordo do nosso grupo de pesquisa, quando me foi confiada a tarefa de registrá-lo. Aqui, é tomado como parte do nosso campo-tema, como o fizemos com todos os outros fragmentos.

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Adorava o inverno em Cabul. Adorava por causa do suave tamborilar na minha janela à noite, quando estava nevando;por causa do barulhinho da neve fresca debaixo das minhas galochas pretas; do calor do fogareiro de ferro fundido enquanto o vento assobiava pelos quintais e pelas ruas. Mas principalmente porque, quando as árvores ficavam congeladas e a neve recobria as estradas, o gelo entre mim e baba diminuía um pouco . E a razão disso eram as pipas. Baba e eu morávamos na mesma casa, mas vivíamos em esferas de existência completamente diferentes. As pipas eram a minúscula área de interseção que havia entre essas esferas (HOSSEINI, 2005, p. 55) Algo que me surpreende é o fato de que a pipa nivela as diferenças: mais velhos e mais novos; os que estudam em escolas comuns e aqueles que estudam em escolas especiais; bons alunos e maus alunos; meninos comportados e meninos delinqüentes; os mais ricos e os mais pobres. Todos parecem ser iguais com uma pipa no alto. Lá em cima, as diferenças não parecem ser muito importantes. Quando se entra num cruzo, dificilmente, sabemos quem está na outra ponta do fio. (D.C.)

Um menino que estudava na APAE, outro que tinha os membros superiores atrofiados

pela talidomida, um rapaz que foi assassinado durante o período da pesquisa, já tendo ele

próprio passagem pela polícia, gente mais velha e experiente, gente miúda que precisa de

cuidados, meninos e meninas, ainda que estas de forma bem escassa, são brincantes que

compõem um universo bastante plural na brincadeira de pipas128. Esse obscurecimento das

diferenças, não significa, entretanto, a sua negação. No caso das pipas, ele simplesmente

acontece, por acaso, sem o conhecimento das partes, tornando possível a disputa

unicamente em termos das destrezas requeridas no esporte.

M - A gente não tem mesmo idéia. Eu estou aqui soltando pipa. Tem outra ali a 300 metros. Eu não sei quem tá lá: se é homem, se é mulher, qual é a idade. Eu fui lá pra ver o “carioca”: “Foi você, pirralho?”, ele falou. Me chamou de pirralho e eu tinha 12/13 anos, na época. Ele era carioca mesmo e vinha passar as férias na casa do tio dele. Quando ele vinha aqui nas férias de julho, ninguém colocava a pipa no alto, só eu. E era uma disputa danada. Eu cortei ele e ele veio para saber de mim. F - E qual era a idade do carioca? M - Ah, era um homem casado de uns trinta e tantos anos. E a diversão dele era cortar a pipa dos outros. Fazia cerol no mesmo estilo meu: era só cola e vidro moído, mais nada. Farinha, areia, pó de ferro, nada disso. Era vidro moído e cola. (Fragmento da entrevista com Mo. ) Entre as pipas “aparadas” estava a do Pepê. Falei que conhecia uma daquelas pipas. Contei, para surpresa deles, que tinha sido de um menininho de 4 anos. Um misto de pena 128Sabemos que essa diversidade não é exclusiva das pipas e pode ser encontrada em outras formas de brincar.

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e admiração pelo menino, mas não cabiam julgamentos, pois as regras eram iguais para todos. Naquelas circunstâncias, ninguém sabe quem está segurando a linha embaixo de cada pipa. E todos sobrevivem sem traumas. (D.C.)

Realçar as diferenças quando a tendência for homogeneizar, torná-las planas quando a

tendência for discriminar talvez fosse uma boa estratégia nesse exercício de compor um

mundo plural e comum.

Pra não dizer que não falei sobre as questões de gênero 129

As questões de gênero não foram a nossa preocupação neste trabalho, mas não

pudemos nos furtar de, pelo menos, oferecer ao leitor a descrição daquelas situações em

que a pipa aparece para reforçar algumas tendências já marcadas pela a cultura, assim como

outras em que as mesmas são contrariadas. Assim, temos consciência de que esta não foi

uma controvérsia adequadamente seguida, razão pela qual se encontra aqui precariamente

tangenciada uma vez que nem sequer chegamos a buscar provisões no trabalho daqueles

que já têm um caminho pavimentado sobre o assunto.

Sabemos que a brincadeira de pipas é, tradicionalmente, uma brincadeira

masculina. Não que as meninas e mulheres estejam impedidas de participar do evento. Elas

estão lá, no entorno da brincadeira, assumindo diversos papéis, mas é raro encontrá-las no

comando da situação, entrando nos cruzos ou disputando por uma pipa avoada. Conforme

uma das nossas narradoras:

MC - Quando eu era criança, eu percebi que meu primo que soltava pipa corria e brincava. E eu queria brincar com ele. Meus pais falavam que a pipa era coisa de menino. Então eu ficava naquela fissura pra brincar com pipa, entendeu? E aquilo ficou marcado na minha cabeça: “é de menino, é de menino”. Eu fiz minha graduação em Viçosa. E lá, a gente tem uma área muito ampla, uma área maravilhosa. E aí, os pais levavam os filhos, os meninos pra soltar pipa. Mas por quê? O que é que tem de mais. Deve ser tão bom! Daí que eu queria ver, sentir como era uma pipa. E comprei uma, soltei e achei lindo, maravilhoso. Consegui soltar porque tinha muito vento, mas sem técnica. Isso foi num final de semana. Eu morava dentro do campus mesmo. Depois, no outro dia, quando eu fui dar aula - inclusive foi numa aula de recreação – um dos meninos falou: “Oh, adivinha quem

129 Esta seção, originalmente, não fazia parte do trabalho e foi introduzida para contemplar uma justa observação do professor Ivan da Costa Marques, durante a defesa desta tese.

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estava soltando pipa?” Aí começaram a me chamar de moleque. E eu comecei a pensar: “Gente, por que isso?”(Fragmento da entrevista com MC) Mais abaixo, há outra família; pai, mãe, filho de 12 e filha de 5, acompanhados de outra mãe com dois filhos, um menino de 10 e uma menina de 7. Aceitam conversar comigo. Dizem que moram no Tejuco e que às vezes vêm aqui, nos finais de semana ou dias de férias, para soltar pipas. A menina de 7 anos solta uma pipinha improvisada, quase um giriquinho. Não tem uma pipa, pois, explica a mãe, “o pai dela acha que pipa não é coisa de menina”. O grupo está em ritmo de piquenique. (D.C.)

Das mulheres que entrevistamos, todas eram partidárias das pipas sem a utilização

do cerol, atualizando, como professoras ou como mães, a preocupação com as regras e

aprendizagens que o brinquedo poderia suscitar. Agindo desta forma, funcionavam como

verdadeiras guardiãs das regras de “boa educação”, evitando, a todo custo, a face guerreira

que tantos perigos poderia ocasionar e realçando muito mais a atividade voltada para a

confecção e para a estética do brinquedo. Nas nossas observações de campo, as mulheres

podiam assumir papéis variados, como no caso de Alice.

...Alice logo advertiu que o filho não iria devolvê-la, pois “pipa cortada não tem dono”. Só que, num rasgo de boa vontade, quando viu o garotinho, o menino maior aceitou devolver a pipa dele. No mesmo instante, ocorreu à mãe o movimento de me devolver a pipa que eu havia disponibilizado ao Pepê quando cheguei. “Já que você teve sua pipa de volta, devolve a pipa dela Pepê”, falou Alice.(D.C.) [...]Há uma pipa da Lilica Ripilica130 que Alice fez e que é empinada por Leleca, seu marido e fabricador de pipas. Alice está com o maior cuidado com a pipa, pois diz que teve muito trabalho para fazer. Fica feliz que sua pipa consegue subir, ainda mais se estava sendo testada por Leleca. Paolo quer dar palpite no jeito como a mãe deve soltá-la. Tem uma pipa entrando na Lilica e a corta. Mas logo é recuperada, pois estava baixa e cai perto. [...] Leleca, que tinha ido em casa, chega com uma pipa rosa para acalmar Lana. Ela esteve indócil todo o tempo, pois não tinha nenhuma pipa para soltar. Estava bem aborrecida, mas abriu um largo sorriso diante da pipa. [...]Lana vinha logo a seguir com a sua pipinha de listras roxas e cor de rosa, bem de menina. Ela também me pede ajuda para tirar a sua pipa que logo cai no mato. (D.C.)

130 Lilica Ripilica é uma ratinha, ícone de uma marca famosa de roupas para meninas.

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Nas situações observadas, Alice que, na maior parte das vezes, ia soltar pipas com o

marido e os três filhos, era capaz de confeccionar pipas, seguir seus filhos num bom cruzo,

disputar, ela própria, um cruzo, fazer valer as regras de boa educação no trato com o

brinquedo e até de brigar para que estas regras fossem adequadamente cumpridas.

A pipa do Pepê é cortada por Tanaca. Alice fica brava e vai tomar satisfações, lá na outra extremidade da rua: “Por que você cortou a pipa do meu filho, ô palhaço? Você sabia que era dele!” Alice fica secando Tanaca. Diz que a pipa dele também vai sobrar. Alice faz movimento para ir embora e deixar Tanaca pra lá, mas este baixa sua pipa e dá pra Alice que considera justo o ressarcimento: “É pela sacanagem! Se não fosse, eu não aceitava”. Assim que chegou de volta ao seu grupo, deu a pipa que era de Tanaca para um menino que a pediu. Ao mesmo tempo, a pipa de Pepê cortada por Tanaca foi resgatada e trazida de volta. Mais tarde, Alice reconhece que foi injusta, pois alguém lembrou que, num outro dia, o Pepê cortou a pipa de Tanaca, quando ele estava soltando com Leleca e as coisas ficaram assim mesmo. Vira-se pra mim e diz: “Pode anotar aí: Fui injusta!”, diz ela preocupada. (D.C.)

Pudemos perceber que, culturalmente, as meninas têm um papel menos ativo na

brincadeira de pipas, ao mesmo tempo em que, aos meninos, é permitida uma condição de

mobilidade que lhes oportuniza a vivência de aventuras à medida que se afastam dos

territórios permitidos pelas famílias. Durante as nossas idas a campo, houve uma ocasião

em que duas adolescentes acompanharam seus respectivos namorados subindo o morro

para soltar pipas. Este gesto foi observado, pelos meninos a quem eu seguia, com uma

manifestação que era um misto de estranheza com recriminação:

“Ó!, Muié aqui no morro??? Eu que não trazia minha namorada para cá. Aqui não é lugar de menina”. (D.C.)

A aceitação de mulheres no território em que há grupos de meninos soltando pipas

está ligada à dois tipos de presença: das meninas menores que gravitam em torno de

primos, tios e irmãos mais velhos, de quem são tuteladas; das tias, mães e avós que

acompanham os menores, introduzindo-os nas regras da brincadeira e fazendo valer o seu

cumprimento. Estas últimas podem soltar pipas e até entrar em cruzos, mas estarão sendo

vistas pelos meninos no cumprimento de uma função organizadora das regras e

mantenedora de uma certa ordem.

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A cultura aqui, conforme explicitamos na nota 98, p. 156, aponta para um

resultado sempre provisório de uma rede de interações que, pela sua ocorrência sistemática,

produzem regularidades que vão fazendo agir as pessoas. Como tudo o mais que, ao ser

feito, também pode ser desfeito, ao mostrar a regra, a cultura também aponta as exceções.

Foi assim que também tivemos a notícia de mulheres imbatíveis pela sua técnica de

cortar num cruzo ou de homens que, contrários à utilização do cerol, tinham a pipa como

uma atividade contemplativa e de relaxamento. Tanto podemos constatar os estereótipos

culturais, como podemos vê-los desmoronar em casos particulares. Não podemos entender

o masculino ou o feminino como uma essência dada a priori, apesar das inegáveis

diferenças biológicas que compõem os seres vivos. Da mesma forma, como todas as outras

fabricações que se tecem nas redes compósitas e heterogêneas, o que temos hoje como

papéis desempenhados por homens ou mulheres, mais ativos ou mais passivos, mais

beligerantes ou mais contemplativos, são um resultado mais ou menos estável de uma série

de circunstâncias, fazendo parte de apostas lançadas ao longo de uma história que está

sempre diferindo em função de novas articulações. Nem natureza, nem cultura são,

isoladamente, causas de nada, pois elas mesmas já representam um estágio de estabilização

provisória.

Os rituais e as aprendizagens de convivialidade

Depois da pequena “confusão”, os meninos se sentam na encruzilhada de duas ruas para conversar. Falam do assunto de sempre: venturas e desventuras vividas no esporte. Um deles comenta que os meninos do GM disseram que vinham dar tiro neles. Parece que se acalmam nessa conversa sentada. Há um movimento de re-afirmar o sentimento do grupo, de saber que podem contar uns com os outros nos bons e maus momentos. Uma pipa voa e parte do grupo se dispersa outra vez. Alguns correm, outros se mantêm sentados. Os movimentos do grupo ocorrem ao sabor desses eventos: ora se juntam, ora se separam. Onde há promessa de maior emoção, se junta a maior quantidade de meninos: quando os cruzos ocorrem, quando uma pipa cai ou é aparada. Às vezes, os meninos do mesmo grupo cortam os companheiros sem querer. Houve um momento em que as pipas ficaram muito juntas e algumas tiveram suas linhas partidas. Neste caso, eles pedem para os companheiros apararem suas pipas avoadas para que elas não caiam muito longe e se percam. (D.C.)

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[...] Pino oferece o seu chup-chup a todos: “Quer? Quer? Quer?”. Estão todos sentados se confraternizando. A brincadeira de pipas oferece esses momentos intervalares de ócio, de convivência despreocupada para fazer contraste com os momentos tensos da guerra em que precisam exibir suas destrezas. (D.C.) [...] Parece que estão desfrutando da oportunidade de se encontrarem e fazer algo em comum. A pipa aglutina, mas, às vezes, me parece um mero pretexto. Os que estão sem pipas oferecem seus préstimos propondo um revezamento aos que estão com suas pipas: “Deixa eu segurar pra você?!”(D.C.)

Verificamos que a atividade de soltar pipas oferece aos brincantes algumas formas

de convivência muito particulares. As “guerras no ar” aglutinam coletivos variados que se

somam provocando efeitos poucos previsíveis. Mas, dentro da sua imprevisibilidade,

notamos que há um curso de ações que se alternam em fluxo, da calmaria à ebulição, da

reunião à diáspora. Em algumas ocasiões, tem-se a impressão de que o brinquedo funciona

como mero pretexto para que as pessoas se encontrem para viver aventuras, para contá-las,

para fazer e re-afirmar laços, para correr riscos juntos. Poderíamos mesmo dizer que soltar

pipas encerra rituais com as várias funções a que se prestam, nas interações.

Despret (1996) faz o inventário dos estudos realizados sobre os rituais em várias

espécies animais. Segundo a autora, os rituais são comportamentos para os quais os

etólogos têm tido interesse em investigar, encontrando informações que podem nos ajudar a

entender o comportamento entre os humanos.

O estudo dos rituais em animais tem permitido aos pesquisadores a compreensão de

como os membros de determinada espécie testam as estratégias de cooperação e

competição também verificadas no jogo. Os rituais são encontrados em diversas espécies de

animais, desde babuínos a pássaros, como uma forma de testar o elo social e a fiabilidade

da motivação e das intenções dos parceiros. Entre os pássaros, temos o excelente exemplo

do cratérope ecaillé, um tipo de faisão do deserto cujo estudo é descrito por Depret(1996),

que se reúne com seus congêneres ao amanhecer do dia para desenvolver um tipo de dança

altamente elaborado em que as posições vão se alternando através de movimentos que os

deixam bastante vulneráveis aos ataques de predadores, uma vez que estão em uma região

desabrigada e, ao mesmo tempo, porque estão frágeis e famintos, imediatamente antes da

hora em que se alimentam.

O entendimento dos rituais entre os animais, hoje, ultrapassa a via dos

determinismos fixos. Para além da função de controlar e inibir a agressividade, como o

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pensava Lorenz (apud Despret, ibidem), os rituais são estudados como um comportamento

que tem um duplo papel: sustentar, ao mesmo tempo, formas elaboradas de cooperação e

competição. Houve um deslizamento da tradição clássica que considerava o ritual como um

momento de coesão, de pacificação, e de inibição da agressividade, simbolizado pela

harmonia dos participantes, para uma nova posição em que as relações são também

percebidas em termos de competição e conflito. Ou seja, os rituais se prestam para afirmar

tanto as semelhanças quanto as diferenças. Segundo Despret (ibidem), é através dos rituais

que se torna possível aos indivíduos perceber as motivações e intenções de um parceiro

potencial na relação, a fiabilidade e a qualidade da competência de cada um dos membros

do grupo.

A proximidade de um inventário comportamental entre um jogo e um ritual é grande

e não temos a intenção de empreender a tentativa de determinar se o ritual funda o jogo ou

se, ao contrário, o jogo funda o ritual, como pensava Huizinga (1984). O fato é que, seja no

jogo, seja no ritual, observa-se que são ocasiões em que podemos verificar como os

membros de um grupo experimentam uns aos outros na sua disponibilidade para cooperar e

na sua força para competir e suportar o stress.

Nestas ocasiões em que as competências e os laços podem ser testados e afirmados,

alguns dos entrevistados relatam o fato de que, na brincadeira com as pipas, para além das

guerras, as pessoas desenvolverem um clima de camaradagem, nas trocas estabelecidas.

PA – Quantas vezes acontecia isso: você não tinha cerol, pedia cerol emprestado pro outro. Não tinha linha, pedia linha emprestada pro outro, emprestava a linha pro outro, emprestava pipa. E ficava por isso mesmo. (Trecho da entrevista com P.A.) Fo – Você aprende a ser mais solidário, eu acho. É um aprendizado, cara! As pessoas falam que a pipa não dá futuro. Não dá futuro, é uma distração, mas você aprende a ser solidário com os outros. Às vezes, eles falam ... quem tem muito, não distribui o que tem. Quem não tem nada ou tem pouco consegue dividir o pouco que tem. Quando um tem mais do que o outro, procura sempre dividir. (Trecho da entrevista com Fo)

Acreditamos que, na brincadeira com as pipas, algumas das funções dos rituais

podem ser encontradas. Tanto pode funcionar como um espaço de convivialidade onde

podem ser afirmados os laços entre os participantes, como pode se dar enquanto um espaço

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de experimentação das competências em que as destrezas daqueles que brincam são

colocadas à prova. Algumas lideranças acabam por emergir nessas situações.

Pino diz que cortou 4, o Tanaca diz que cortou 1, Moreus contabiliza 4, outro diz que foram 5 as que conseguiu cortar. Começam com aquela conversa de disputar quem cortou mais pipas e parece que tudo vale nestas que parecem “histórias de pescador”. Os outros é que vão contestando e dando o limite de realidade. (D.C.) Combinam de botar todas as pipas no alto para fazer os cruzos. Comentam sobre as pipas, o cerol, as manobras. Vão brincando e falando sem parar. Duas das pipas voam ao mesmo tempo no cruzo. Os meninos disputam para ver quem cortou primeiro. Contabilizam, de tempos em tempos, quantas cortaram. Brincam como se estivessem brigando pra valer: “Solta, viado! Vê se não prende aí!” (D.C.) Diero virou o “herói do dia”. Deve ter uns 18 anos, pois comentou, certa vez, que tinha feito o serviço militar, mas é o mais velho deste grupo heterogêneo que tem se encontrado mais regularmente nestas tardes. Chama a atenção dos meninos, distribui as pipas cortadas, ocasionalmente equilibra conflitos. (D.C.)

No caso dos animais, em que não se chega a uma interpretação em termos

lingüísticos, a suposta estereotipia dos rituais não mais é vista como uma informação, mas,

antes, como um suporte para a informação. No caso dos rituais entre humanos, há o

diferencial da linguagem simbólica que, no processo de trocas, engendra e é engendrada

durante os momentos de convivência. No caso das pipas, há uma invenção intensa de

termos, trocados e aprendidos durante os eventos, que nos proporcionaram a coleta

daqueles que reunimos sob a rubrica de um “Pequeno dicionário dos soltadores de

pipas”131. Neste, termos mais comuns e difundidos em outras regiões são usados

juntamente com aqueles típicos do local da pesquisa. A alternância entre a escala local e

global aparece de forma bastante evidente nesta apropriação recíproca de palavras e

expressões que vão se difundindo ao sabor dos encontros.

Fa – Onde você ouviu esse termo (referindo-me a “guarda-louça”)? Fo – Ah, saiu do pessoal lá do outro morro lá, do pessoal dos outros morros. Um inventa lá do outro lado e chega no ouvido do outro. Por isso é que eu te falo. Esse é o intercâmbio pela linguagem. Às vezes as pessoas acham que nesse negócio de pipa só acontece briga e não é assim. Se não fosse por esses intercâmbios, não teria amizade entre ninguém. Nem ia ter nem tanta palavra. (Trecho da entrevista com Fo)

131 Ver nos anexos.

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Outro exemplo no vocabulário dos pipeiros que presenciei, nesta ida a campo, foi a expressão “dar um nike”. A logomarca de um tênis famoso servindo como inspiração para batizar uma manobra em que a pipa faz um movimento circular por baixo para pegar a adversária. Demais!(D.C.) O Iago pergunta aos outros meninos como era mesmo “aquele grito”. Dezinho põe a boca no cano e grita alguma coisa que não compreendo. Os meninos perguntam se eu anotei o grito. Confesso que não entendi e eles repetem pausadamente, dizendo que era em angolano: “Uaititipaiada!” Pergunto o que significa, mas eles não sabem, por que é um angolano “inventado”. (D.C.)

Alguns dos termos mais usados, nos gritos de vitória ou nas provocações, são repetidos

sem que os meninos (velhos ou novos) saibam exatamente o que eles significam.

Nessa hora, a gente grita –“Pega, pangaré!”, “Pega, goiaba!”. Por que pangaré e por que goiaba?, perguntei. “Goiaba é uma fruta e pangaré é um cavalo”. Mas não sabiam o porquê. Fiquei curiosa. (D.C.)

Outros tentam uma explicação:

Ma - Com isso, eu aprendi um monte de nomes: “tomar na mão”, “goiaba” (quando dá bobeira e perde a pipa)... F – Me conta aí: por que “goiaba”? Ninguém ainda soube me explicar o porquê dessa palavra aplicada às pipas. Ma – Bem, isso é dedução minha, né? Eu vejo a meninada gritar “Ô, Goiaba!”, “Ô, pangaré!”. Pangaré é menino bobo, quando demora muito a cair a ficha, quando ele está atrasado. O “goiaba” é o menino que está do outro lado. Seria o adversário, de quem está se tentando tomar a pipa e ele acaba perdendo, na mão. É o perdedor. “Perder na mão” é quando ele perde a pipa com a linha toda. Esse é o goiaba. Mas porque chamam assim, eu não sei. Posso até procurar saber. (Trecho da entrevista com Ma)

Depois, em outras conversas, vim a saber que, sendo a goiaba uma fruta fácil e sem

valor, facilmente achada nos quintais ou à beira das ruas, o emprego desta palavra com

relação ao perdedor indicava sua pouca importância.

Talvez, de todas as aprendizagens que a pipa proporciona nesta intensa troca, se a

pessoa tem a chance de avaliar a brincadeira em perspectiva, fazendo a comparação entre o

tempo de menino e um outro tempo em que se encontra em melhores condições para lidar

com a situação, seja a vivência da perda a mais interessante.

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Uma coisa engraçada que a gente percebe é que, com o passar do tempo, a gente troca de lugar: quando você é pequeno, alguém corta uma pipa e aquela pipa está voando, tem aquela quantidade de moleque pequenininho tudo correndo atrás daquela pipa. Se ela cai numa horta você tenta pular o muro pra pegar, se cai num telhado você sobe pra pegar... Aonde a pipa vai, você corre pra pegar. São vários moleques correndo atrás de uma pipa. Quando você cresce, se a pipa vai embora, você não está nem aí. Pode uma estar caindo perto de você que você não pega. O prazer passa a ser cortar e não disputar a pipa naquela correria. Depois de uma certa idade,você assume a perda por inteiro. Quando você é pequeno, não. Se você é cortado, você sai correndo e ainda pode recuperar a pipa. Por que? Porque parece que a criança ainda não consegue aceitar aquela perda. Ela sabe que, se ela correr atrás, ela pode tentar recuperar a pipa e sentir menos a perda. Com uma certa idade, você não sofre tanto pela perda. Voou? Voou! O que valeu foi na hora em que você cruzou, se você cruzou mal ou não, se o cerol do outro estava melhor ou não. Deixa que a gurizada pega aquela pipa. Talvez porque o seu poder aquisitivo melhorou um pouco, você pode fazer, comprar, ter outras pipas. A maioria do pessoal compra. Apesar de que eu conheci pessoas que faziam pipas como se estivessem fazendo uma coisa de arte. Eles faziam pipas perfeitas F – Nunca antes tinham falado dessa perda na brincadeira de pipas do jeito que você falou, variando com a idade. Mas é uma coisa que já tínhamos observado lá na pesquisa de campo. Um rapaz mesmo já havia feito o comentário de que quando ele era moleque ele corria, mas que agora ele queria mais que as pipas caíssem em cima dele. Deixava a correria para os menores. PA - Isso eu percebi porque eu participei das duas fases. (Trecho da entrevista com P.A.)

Por causa do cerol, a posse do brinquedo é considerada uma “posse fugaz”. A perda

iminente faz parte do jogo e a sua aceitação com mais tranqüilidade é considerada um sinal

de maturidade. Aos “crescidos” fica a tarefa de exibir competências e conduzir os menores

na brincadeira, permitindo o seu acesso e equilibrando as disputas.

Os meninos que brigam começam a chorar: um quer a linha desembolada e o outro quer a linha consertada. Diero interfere como o maior do grupo: “Os dois podem parar de chorar! Chega de briga!”, fala na maior moral. Os meninos se acalmam e começam a conversar. Bu quer mandar os dois para a “Fábrica de Respondão”. (D.C.)

Ma – Ih! Já vi menino dando pescoção um no outro. Ainda mais se tiver um muito pequeno perdendo a pipa e tiver um menino maior junto. Se um menino de outra tribo, de outra turma pegar, tem de devolver porque o menino é pequeno. F – Então é porque o menino é pequeno? Ma – É. De menino pequeno você não toma. Porque aquilo é um brinquedo do menino. Mas se forem meninos mais ou menos da mesma faixa etária, aí vale a regra (referindo-se à “pipa avoada não tem dono”). F – O menino que é pequeno tem essa proteção? Por causa da idade?

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Ma – É. Por causa da idade. F – E quem os protege? Ma – Os maiores. Sempre tem algum adulto. O Chico sempre estava no meio, onde tinha muito menino assim. F – E o que o Chico fazia? Ma – Bom, aí ele falava: “quem tem mais facilidade de arrumar outra pipa? Então vamos dar pra quem tem mais dificuldade senão vai acabar a brincadeira. Se um fica com duas e o outro fica sem nenhuma, a brincadeira acaba”. (Risos) Ele dava um jeito de equilibrar. Às vezes, tinha pipas extras para distribuir e melhorar a brincadeira (Trecho da entrevista com Ma).

As aprendizagens deflagradas com as pipas não terminam aqui. Outras relacionadas

com a sensibilidade às variações do tempo e com as formas de construir e usar o brinquedo

serão abordadas no próximo capítulo.

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GALERIA DE IMAGENS CAPÍTULO VI

Meninos construindo suas pipas na rua. Oficina de pipas na UFSJ, 2004.

.

PORTINARI, Menino com pipa, Rio de Janeiro, 1954. (Óleo sobre tela, 60 x 73 cm)

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CAPÍTULO VII

A PIPA COMO OBJETO SOCIOTÉCNICO: A CONQUISTA DO ESPAÇO

AÉREO.

O primeiro vôo do homem ficou registrado na lenda. Dédalo e seu filho Ícaro, presos no labirinto de Creta pelo rei Minos, tentaram alcançar a liberdade voando. Construíram asas de cera e penas e conseguiram escapar. Ícaro, apesar das recomendações do pai e embevecido pela possibilidade de dominar os ventos, morreu porque negligenciou a prudência e chegou muito perto do sol que derreteu a cera das asas, precipitando-o ao mar (VOCE, 2002, p.10).

Para além de Dédalus e Ícaro

Desde a aurora dos tempos até a era dos mísseis balísticos e das naves espaciais

impulsionadas pela energia atômica, muito tempo se passou até que os humanos fizessem

todos os acordos necessários à emergência dos objetos sociotécnicos132 que hoje nos

acompanham nas tarefas mais banais. Surpreende-nos, entretanto, que um objeto hoje usado

como um passatempo para crianças e adultos tenha sido, em seus primórdios, o primeiro

objeto voador que, casual ou intencionalmente, o homem fez subir aos céus, explorando as

forças do vento, sendo apontado como invento marcante em toda a pré-história da aviação.

Atualmente, de cunho essencialmente lúdico, as pipas tiveram, outrora, seu uso nas

estratégias bélicas e inspiraram a construção de diversos objetos científicos, atravessando

diferentes épocas e culturas, ao longo da história da humanidade.

Conta a lenda que Ícaro, o primeiro homem a voar, era filho de Dédalus, conhecido

por sua habilidade de artífice e solucionador de problemas. Na área de trabalho dos artífices

e engenheiros, qualquer ação é mediada, todas as coisas se desviam da linha reta, não há

caminho a priori concebido, pois tudo implica na mobilização de muitas entidades para a

132 A expressão objeto sociotécnico, na verdade, é uma redundância, pois todo objeto produzido pelo homem em parceria com outros materiais é fruto das sociotécnicas. Ainda assim, continuaremos a usá-la para destacá-la da noção corrente de um objeto passivo e a-histórico.

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consecução de um objetivo. Para os gregos, enquanto a episteme designava o percurso reto

da razão e do saber científico, a metis representava o conhecimento técnico, aquele que lida

com as questões práticas da vida comum e é freqüentemente relegado a um plano inferior.

A palavra grega daedalion, que significa labirinto, ilustra bem o caminho torto, avesso à

linha reta que nos desafia para as soluções engenhosas. Segundo Latour (2001a), os objetos

técnicos, assim como os fatos científicos trilham um caminho bastante tortuoso, cheio de

desvios inesperados e interconexões não previstas. Ambos os objetos, o técnico e o

científico, são resultantes de uma rede traçada por coletivos de humanos e não humanos

que coadjuvam para o seu aparecimento. Os fatos que marcam a história da construção de

um objeto técnico trazem articulações insuspeitadas que não dependem somente da

eficiência dos engenheiros sobre a matéria, mas, antes e principalmente, de uma parceria

feita nos coletivos que incluem não humanos. Esta associação de elementos num coletivo

permite a emergência de um terceiro elemento composto, um ator híbrido, um alguém mais

que passa a existir. O objeto sociotécnico é um híbrido composto pela associação entre

humanos e não humanos com uma nova forma de atuar, de fazer-se presente, inaugurando

relações antes inexistentes.

A história da tecnologia de vôo, por exemplo, é caracterizada por um

aperfeiçoamento que foi ocorrendo por longos períodos na história. Para além de Dédalus e

Ícaro, foram gerações de construtores anônimos que desenvolveram uma variedade de

artefatos voadores, desde brinquedos até as invenções que marcaram o aparecimento de

objetos mais sofisticados. Segundo Crouch (2003), verifica-se, na história da aviação,

períodos de avanços modestos, intercalados por interlúdios de rápidas mudanças que

tiveram como resultado saltos de performance e alterações drásticas na aparência das

máquinas. Foram as pipas, segundo este autor, os primeiros objetos voadores construídos

pelas mãos humanas, usadas para quase tudo, da pesca à sinalização, servindo a uma

variedade de funções. Constituíram, desde tempos imemoriais, o único engenho

aerodinâmico capaz de manter-se no ar por tempo significativo, capacitando pesquisadores,

no decorrer da história, a fazer testes com estruturas voadoras, desenhar novos modelos de

asas e controlar diversos sistemas de vôo de forma coordenada.

A mediação técnica, segundo Latour (2001a), assume alguns significados que

tentaremos aqui examinar avaliando a sua pertinência para o caso da pipa, o nosso objeto

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sociotécnico em questão: interferência, composição, obscurecimento reversível,

transposição da fronteira entre signo e coisas, ou delegação. Interferir e tornar possível,

compor com outros humanos e não humanos, desaparecer pela eficácia, tornando-se foco

em caso de pane e, por último, receber a delegação de ações e mensagens são ações que os

objetos podem desempenhar simultaneamente ou alternadamente. Não há uma hierarquia

de uma dessas ações sobre as outras. A enumeração que faremos será a título de

apresentação.

A interferência: fazendo a diferença para atingir um fim.

Em primeiro lugar, a interferência significa que as técnicas se constituem enquanto

um programa de ação para o atingimento de um determinado fim: é o que interfere

(interferir = ferir entre), o que faz a diferença. É graças à interferência das técnicas que o

termo mediação assume o significado de uma cadeia de passos, objetivos e intenções que

permitem chegar ao final de um labirinto, à resolução de um problema. A criação de um

novo ator ou de um novo vínculo faz emergir outra entidade, modificando as proposições133

originais.

A invenção e a fabricação de qualquer ferramenta no reino animal ou humano são,

segundo Latour (2001a), cercadas de brechas. Trata-se de um caminho que nunca é reto, à

semelhança do labirinto de Dédalus. Para cada objetivo colocado, há uma infinidade de

interrupções ou desvios quanto à concepção de uma forma para atingi-lo. Numa busca

marcada por ensaios e erros, a trajetória é, várias vezes, corrigida até que, por intuição ou

insight134, os obstáculos são removidos e o objetivo é alcançado. O autor fala de dois ou

mais sub-programas encaixados na história da criação de ferramentas, evidenciando um

caminho sempre cheio de desvios, quando falamos da metis.

Na história dos vôos empreendidos pelo homem, isso não ocorreu de forma

diferente. A história das pipas nos mostra a quantidade de modificações realizadas para

uma performance cada vez mais elaborada deste objeto. O desejo de voar do homem

133Uma proposição, segundo Latour (2001a), tomando de empréstimo a Whitehead, não significa um enunciado que pode ser verdadeiro ou falso. Sua utilização se dá para designar associações, bem ou mal articuladas, entre humanos e não humanos, naquilo que podem oferecer a outros atores num evento. 134 No sentido da descoberta súbita da solução de um problema.

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mobiliza, desde a Antigüidade, a construção de artefatos voadores que funcionaram como

verdadeiros programas nos quais foram se encaixando vários subprogramas. Começando

por uma simples armação envolvida de material que opusesse resistência ao ar, evidencia-

se uma combinatória que assume feições variadas, dependendo dos materiais existentes

para mobilizar no ambiente.

As variações em torno dos materiais estão diretamente ligadas às disponibilidades

locais. Para a fabricação do que chamamos de vela, tem-se o registro da seda para os

mandarins chineses, quando a pipa era um objeto destinado exclusivamente às mãos de

mandatários ou homens religiosos; do algodão nas pipas européias trazidas ao Brasil pelos

colonizadores portugueses; do papel, quando a sua fabricação em larga escala o tornou

barato; da folha de palmeira difundida entre os povos da África e entre os pescadores das

ilhas do Pacífico. Dos nossos entrevistados fica a lição de improvisar o seu próprio

brinquedo mesmo nas situações de grande escassez que são compensadas com soluções

bastante criativas.

[...] pipa é uma coisa barata. Você pode confeccionar uma pipa com materiais que vão desde um saquinho de leite ou saquinho de pão até pipa de tecido... (Fragmento da entrevista com Ma) [...] se você não tem dinheiro pra comprar papel de seda, você vai usar papel de pão, vai usar carbono, vai usar papel higiênico, vai usar folha escrita, vai colar com angu, vai colar com grude. (Fragmento da entrevista com P.A.)

Para a armação, verificamos variações que dependem do tamanho da pipa. Segundo

Voce (2002), o material para a estrutura pode ser a vareta japonesa, o bambu, a tala de

meriti135, a vareta de pinho ou de vime. Em nossa região, a vareta para a montagem da

armação da pipa é comumente retirada do bambu. Antes farto, nas hortas das casas e à beira

dos córregos, hoje se tornou mais raro, implicando em deslocamentos maiores para a sua

busca. Ainda assim, manter a habilidade de cortar e afiar o bambu que será usado na

construção do brinquedo ainda é a prática corrente para aqueles que se dispõem a essa

empreitada de construção: dificilmente se compra varetas prontas para o consumo. Não

sabemos se é um dado relevante para as outras fibras como o vime ou como o meriti, mas

135 Palmeira típica da região amazônica (Pontes e Magalhães, 2003)

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para o bambu há que se ter atenção para a época certa da colheita para que haja alguma

expectativa de durabilidade das varetas.

F – Onde que ele apanhava essas varetas? M – Às vezes a gente entrava lá naquela estrada que vai pra Fazenda do Pombal. Ali tem muito bambuzal. E a gente vinha com os bambus tudo dentro do carro (risos). Ou, às vezes, ia na casa de alguém conhecido que tinha bambu. Mas normalmente apanhava no mato mesmo. F - E a durabilidade desse bambu? Quanto tempo pode durar essas varetas? M – Ah, isso eu não tenho idéia não. Escolhendo o bambu certo na época certa, aí dura bastante. O bambu, se você apanha em época errada ele caruncha. F – E qual que é a época certa? M – (Risos) F – Não tem uns meses que pode e outros em que não se pode colher? M – Deve ser justamente nesse período de maio a agosto porque não tem muita chuva, não tem muito sol... F – Mas então é uma coincidência?! M – Deve ser por isso que o período das pipas seja esse. F – Será?? Deve ter outros componentes também. M – Deve ser. Por que se você apanha o bambu na época das águas, além de ele demorar muito pra secar, ele fica meio poroso quando você aperta. Já viu? Aí, não serve. Tem que ser um bambu firme mesmo. Porque isso tudo é feito à mão. F – Então as pipas que são confeccionadas em dezembro ou janeiro, elas são feitas com bambu colhido antes? M – Ah, é. Já tem bambu guardado. (Fragmento da entrevista com Ma.)

Na falta de bambu, vime, meriti ou outros materiais mais tradicionalmente usados, o

desejo de continuar brincando com uma pipa impõe estratégias de improvisação muito

variadas na construção de uma pipa.

Fo - Às vezes a gente vem com pipa aqui para o morro, corta a do colega e o colega diz “Entrega aí! Estava cruzando ali e o cara me cortou. Entrega aí e tal”. E você entrega. Até eu buscar outra lá em casa. Porque subir esse morro toda hora é dose. Fa – Por isso que você já vem com a bolsa armada, né? Fo – É, já venho com cola, tesoura, só falta arranjar um bambu por aqui. Fa – Dá pra arranjar bambu por aqui? Fo – Ah, dá! Eu já fiz pipa até com galho de árvore. Esses galhinhos fininhos de árvore. Fa – E funciona? Fo – Funciona! Foi até um outro colega nosso que fez. Ele fez e ela subiu. Só ficamos preocupados de quebrar mais fácil. Era um dia em que o vento estava forte demais. Eu estava com uma pipa mais ou menos do tamanho desta, pequenininha mesmo. De tão forte que o vento estava, as pipas estavam arrebentando mesmo. Fa – Aí tanto podia ser por causa do galho como podia ser por causa do vento.

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Fo – Por isso eu fiquei preocupado no dia que a gente fez, entendeu? Mas a pipa que eu trouxe tinha arrebentado e eu já estava morando mais longe daqui. Até eu descer, ir lá e pegar outra pipa pra subir... Aí eu peguei, arrumei um galho, amarrei com plástico, pus a linha e coloquei no alto. Fa – Mas deve ter ficado uma vela de barco, hein? Fo – Mas subiu. Ficou bom. Você acredita que ficou bom? Ficou bom mesmo. Fa – Ah, eu queria ver essa pipa! Fo – Uai, eu consegui! Quem não tem cão, caça com gato, né? (Mais risos) Pra mim, se ficasse bom ou ruim, tinha que ser aquela mesmo, entendeu? (Fragmento na entrevista com Fo)

As pipas maiores podem requerer uma vara de bambu inteiro, ou podem ser usados

materiais inventados mais recentemente como a fibra de vidro ou fibra de carbono.

Algumas pipas podem assumir proporções gigantescas, como a francesa que mede 2000

metros quadrados de superfície de tela. Para que seja erguida, é necessário que haja ventos

estáveis e moderados, uma grande equipe de pessoas especializadas para fazer manobras e,

em alguns casos, veículos para puxá-la (RIOS, 2003). As linhas também dependem do

tamanho da pipa para que se decida seu calibre. Da linha 10 aos cordonês 0000 (urso)136 e

até cabos de aço, os tipos de sustentação em terra vão depender do peso e do tamanho da

pipa, assim como da resistência que ela oporá ao vento.

O vento é um actante fundamental na brincadeira de pipa, sendo a calmaria o terror

dos pipeiros, tal como o foi para os navegantes que tinham a vela como artefato propulsor

de suas embarcações, na época das grandes navegações. Sem vento, não se empina pipa137.

É preciso conhecer a velocidade, direção e força dos ventos para realizar adequadamente

todas as manobras que o esporte requer. Não é à toa que já chamamos de eolistas aos

praticantes da atividade de soltar pipas e outras geringonças movidas pela força dos ventos.

As folhas das árvores não se movem, nem mesmo as das bananeiras, que são mais leves. [...] Não adianta tentar, que o papagaio não sobe. Nem mandando empinar bem distante e colher depressa, em braçadas firmes: o papagaio sobe, mas não se sustenta e desce, desgracioso. O vento vem, é certo, quando as nuvens se escurecem em prenuncio de aguaceiro. Vem, chega vem cantando, vergando palmeiras, sacudindo mangueiras. Mas é vento de temporal, e ninguém é louco para levantar um papagaio em céu de tempestade. (MELLO, 1983, p. 93/94) 136 O cordonê (0000) marca Urso é o calibre de linha mais forte apropriado para segurar pipas de maiores dimensões (Voce, 2002). 137 Atualmente, já são desenvolvidas pipas para voar com pouco vento, embora a quantidade de manobras aumente e se complexifique.

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O vento pára de soprar. Os meninos têm mais dificuldade para soltar suas pipas. Sentam do meu lado, dando uma pausa. Comento que ouvi falar que tem uma música de chamar o vento. Os meninos dizem que conhecem: “Vem vento caxinguelê, cachorro do mato vem te morder”, ou, em outra versão: “Vem vento, vem meu amor, vem vento, vem, por favor”. E não é que o vento veio!! A brisa começou a soprar leve e depois com mais força. A pipa de Paulinho voltou ao ar; depois, a que estava com Sheik. O vento começou a soprar cada vez mais forte. A pipa de Sheik ficou louca. (D.C.)

Para Mello (ibidem), outra forma de chamar o vento, consiste em emitir dois

assovios longos, um agudo, outro mais grave, repetindo várias vezes. Fala também da

eficácia do assovio que Dorival Caimi aprendeu com os pescadores da Bahia que o inspirou

na canção “Vamos chamar o vento”.

Os ventos! Toda a vez que a gente saía na rua, a primeira coisa que a gente fazia era por o papagaio de pé na mão com o rabo dependurado pra ver se ele balançava com o vento. Ali, nós olhávamos a direção do vento. Então a gente corria contra o vento, soltando a linha. Aí, ele ia só subindo, só subindo. Era assim que a gente fazia. Em Pará de Minas, raríssimo era o dia que não estava de vento. Nossa, mas ventava demais da conta! (Fragmento da entrevista com B.) Aproveitei para perguntar como a gente fazia para saber que o vento estava bom. “Olhando se a copa das árvores está balançando bem e também olhando para as pipas que estão no ar. Se as pipas estão aprumadinhas, como se fossem cobras prontas para dar o bote, é porque tem vento soprando”, responde ele. Diante deste comentário, achei que a função da primeira pipa empinada no dia era, acima de tudo, dar indícios das condições do vento, como se fosse uma biruta nos aeroportos. (D.C.)

Tomamos conhecimento de outras formas de verificar a direção dos ventos: o

balançar das árvores, a direção para onde voa o pano das bermudas, para onde voa a terra

jogada para o alto...

Outras constatações básicas para estas bandas: ventos fortes e constantes indicam

que a chuva está sendo levada para longe; vento soprando em várias direções diferentes

indica mudança de tempo; serra branquinha significa que a chuva está chegando, do

contrário só está passando para cair lá em Tiradentes138. A sensibilidade aos efeitos

provocados pelos ventos é uma aprendizagem privilegiada pelos brincantes, faceta da metis

138 Tiradentes é cidade histórica e turística situada a mais ou menos 15 quilômetros de São João del Rei.

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desenvolvida pelos bons pipeiros. Como no exemplo dos marionetistas e suas marionetes,

visto no capítulo anterior, o que se passa ao longo dos fios sofre uma influência direta da

ação dos ventos.

Alguns, como Binho, conversam com elas como se fossem gente. Outros mantêm conversação através dos movimentos que imprimem na linha. Deliciam-se em provocar certos efeitos. Parece tão mágico como quando o bebê percebe que, com seu movimento, pode produzir efeitos no móbile acima de seu berço, puxando uma cordinha. Só que, na pipa, outros actantes entram em cena para complicar essa relação de causa e efeito que não é nada linear: a altura em que a pipa está, a intensidade do vento, uma falha na construção do objeto, a qualidade da linha são fatores que podem enviesar a suposta linearidade desta relação. (D.C.)

As falhas na construção são outro fator crucial na performance que a pipa terá,

quando tiver que subir. Os cuidados na amarração do cabresto ou tem-tem, tanto quanto os

detalhes da construção da vela e rabiola, repercutem na forma como o brinquedo vai se

erguer e permanecer no ar.

M – O cabresto tem que ficar mais ou menos a um terço da cabeça da pipa, sem contar o rabo, né? É justamente pra dar essa inclinação. Aonde vai ser puxada a pipa, é sempre na cabeça. É o lugar mais alto dela... F – E pode variar um pouquinho o tamanho... M – Pode. Não é sempre a mesma medida. A não ser que você faça em série. Aí, você faz a primeira pipa. Testou. Se aquele tamanho deu certo, então as outras todas que você fizer, você vai usar aquela medida. Entendeu? F – O cabresto vai variar de acordo com o tamanho da pipa. M – É. De acordo com o tamanho, o formato, o peso... F – E como é que o Chico descobria essas medidas? M – Ele ia testando. Ele ia testando. F – Então ele tinha que confeccionar, sair, testar... (Fragmento da entrevista com Ma)

F – O que é preciso pra ser um bom fabricante de pipas? S – A gente precisa de uma boa atenção, de uma boa pesquisação, a gente tem que pesquisar. Eu paro, olho, pego um papel e uma caneta e vou fazendo uma maquete, um desenhinho e aí, vou estudar onde vão ser encaixadas as varetas. Aqui no Bichinho, eu cheguei, sentei no Cruzeiro e fiquei olhando pra Igreja139: como vou fazer? Como vou puxar isso aqui? Como vou fazer essa torre? Ela é quadrada e eu vou ter que fazer ela numa forma só? Como vou usar essa forma de um jeito que vai subir? Como vou poder

139 Ver foto da “pipa igreja” na galeria de imagens, ao final deste capítulo.

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mostrar pro povo que essa é a igreja do lugar de onde eu vim? (Fragmento da entrevista com S.)

Algo que interfere, não exatamente na performance da pipa em seu vôo, mas na sua

capacidade em guerrear contra outras pipas é a qualidade do cerol passado no fio que é

utilizado como elemento cortante. A mistura, que primeiramente apareceu nas oficinas de

sapateiros e depois passou a ser item indispensável nas disputas aéreas140, apesar de

simples, tem segredos nas suas receitas, tornando os seus detentores mais cotados para

serem os melhores guerreiros.

M - O negócio é a lâmpada florescente. Eu lavava ela pra tirar o gás, quebrava ela, punha numa latinha dessas de Nescau, um ferro grande pra quebrar, depois coava... amassava que ficava igualzinho a areia, uma farinha. Parecia um açúcar refinado. E depois passava tudo na meia fina da minha mãe. Sempre tinha uma meia fina velha lá. Aí punha esse visgo141 no sol, não fazia no fogão. F - E como você passava o cerol na linha? M - Com a pipa no alto. Só deixava de passar num pedacinho. Depois começava a soltar a pipa e ia soltando a linha e passando o cerol. A linha ia escorrendo (correndo pela mão cheia de cerol). Não pode deixar falhas na linha; o cerol não pode ser fino, nem grosso, nem empelotado. Quando o cerol é ruim, a gente chama de “água de batata”. (Fragmento da entrevista com Mo) H - Com o tempo é que a gente foi aprendendo a fazer as pipas e a fazer o cerol. Só que o cerol já era perigoso. Como a gente não tinha dinheiro pra comprar cola madeira, a gente fazia o cerol de grude. O cerol de grude deixava a linha pesada e a pipa não conseguia voar. Eu tive vários amigos com quem eu soltava pipa. [...]Em alguns lugares vendem cerol pronto, naqueles vidrinhos de plástico parecendo embalagem de iogurte. Só que a gente desconfia que seja feito com uma areia fininha, não é com vidro. Porque é complicado amassar vidro. Ficar socando e depois coar é complicado. Como o vidro é feito de areia, tem um efeito, mas não é tão bom.

Mas, na falta dos ingredientes básicos da receita, criar maneiras alternativas de

confeccionar o cerol atesta o quanto os pipeiros são adeptos das soluções engenhosas.

Um fato interessante é que nós descobrimos que a cola de madeira que a gente comprava era a mesma cola que tinha nos correios para selar as cartas, a goma arábica. Não sei se

140 Ver o capítulo V. 141 O visgo a que se refere traz na sua mistura uma resina que brota num tipo de árvore com apenas dois exemplares na cidade que só o autor da receita sabe identificar e não conta pra ninguém.

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esse era o nome certo. Era aquela cola que a gente enfiava o pincelzinho para passar no envelope. Que que a gente fazia? De dois em dois dias, a gente ia lá no Correio, pegava a goma arábica, colocava em outro vidrinho e trazia pra casa pra fazer cerol. Quando acabava, a gente ia lá e fazia de novo. A gente não tinha dinheiro pra comprar cola. Aquela cola de madeira já era derretida. A gente colocava um pouquinho só de água pra ela ficar um pouco mais rala. Um dia, depois de uns cinco ou seis meses, o pessoal do correio percebeu que a cola estava acabando depressa demais. Aí eles ficaram de tocaia. Só que um amigo nosso foi pego. E ele teve que confessar que a cola que ele estava tirando de lá era pra fazer cerol (Risos).(Fragmento da entrevista com P.A.) Fo – Tem o comprado e o que você pode fazer em casa. Tem dois tipos de cerol: o do grude com maisena ou farinha de trigo, não sei ao certo. Eu costumo fazer mais com cola madeira. Você compra ela em pó e depois você derrete. É uma que vem em pó, porque não vende mais em tablete. Antigamente, vinha em tabletes. Você compra em lojinha, derrete, mistura o vidro, põe na mão e passa. Essa cola é que sustenta o vidro na linha, só faz o vidro ficar grudado na linha. Pode também fazer com cola branca. Tem que ter uma coisa que grude, entendeu? Com essas colas de escola, também dá pra fazer. Também não precisa ser vidro. Pode ser com pedra de asfalto. Fa – Pedra de asfalto?? Fo – É. Fa - Onde vocês encontram pedra de asfalto, se por aqui só tem bloquete de cimento? Fo – Você conhece aquelas pedras tipo parecendo mármore? Fa – Sei. Umas branquinhas? Fo – É. Fa – E isso é cortante? Fo – As pedras de asfalto são tipo essas. São pretas por fora, mas na hora que você amassa, sai aquele pó branco, ela vai ficando um pó branco, tipo um vidro. Fa – Os meninos sabem dessa receita? Fo – Eles eu não sei, mas eu já vi por aí. Isso daí, foi eu e meu primo que inventamos porque a gente ia soltar pipa e não tinha cerol, não tinha nada. Colocar pipa no alto sem cerol é a mesma coisa que pedir pra perder ela. (Fragmento da entrevista com F.)

Quando falamos do significado de interferência na mediação técnica, já não

teremos uma pessoa ou uma pipa como elementos isolados, mas uma associação – “pessoa

empinando uma pipa” – que mobiliza modificações em ambos os lados, transformando-se

num terceiro elemento híbrido em que, simetricamente, vão atuar várias forças: a pessoa, a

pipa construída com determinados materiais, os ventos, as condições climáticas, outros

pares pessoa-pipa, o local e o tempo em que se está desenvolvendo a ação de soltar pipas,

enfim, uma rede heterogênea de elementos concorrendo para um determinado propósito. O

híbrido resultante dessas associações, por sua vez, se define tanto pelas suas ações como

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pelos efeitos destas que, afinal, são diferentes dos efeitos que causavam, antes deles se

vincularem. Nada se dá de forma isolada, pois uma rede está sendo mobilizada.

A composição: multiplicando possibilidades

Toda a ação põe em marcha uma série nova composta de vários atuantes, ou seja,

toda a ação comporta o desdobramento de outras séries ou subprogramas. É a multiplicação

de subprogramas que resulta na composição. São tantos os desvios que podem acontecer

em um programa de ação, que é comum cairmos em um emaranhado de soluções - um

labirinto. Para atingir um determinado fim, a utilização de vários subprogramas em um

programa de ação torna-se necessária na produção de uma ferramenta composta.

A composição, em segundo lugar, é uma característica da técnica muito evidente no

caso da pipa, uma vez que esta foi sofrendo ajustes ao longo de sua história: em si mesma e

enquanto suporte para outras invenções. A vela plana, por exemplo, sem nenhuma

envergadura, foi o mais antigo modelo de pipa conhecido. Depois, apareceram os modelos

curvos, com uma envergadura da vela num ângulo de 10 a 20° para uma maior estabilidade,

podendo dispensar a cauda. A seguir, encontramos as pipas celulares, assim chamadas

porque são tridimensionais, com faces em diferentes planos. Dentro da classificação

extremamente engenhosa das “pipas-caixas”, temos as pipas leves contendo partes soltas e

os modelos tipo caixa que possuem uma estrutura rígida que os torna mais resistentes.

Quando as conhecemos, a pergunta mais comum é: “Isso voa?” Foi, entretanto, usando

pipas caixas como asas que Santos Dumont construiu seu primeiro protótipo de avião. As

do tipo parafólio já são semelhantes aos pára-quedas, pois não têm armação: seus gomos se

armam pela força do vento, sendo capazes de levantar grandes pesos. Os comboios de

pipas, os trens de arraias, os trens de pássaros, os trens delta-celulares são, por sua vez, uma

composição de vários tipos de pipas, em cada conjunto, destinadas a voar juntas, exigindo

grande habilidade para montá-las e para soltá-las (VOCE, 1994, 2002, 2003).

O que é importante verificar nesta dinâmica é que cada invenção vai puxando outra

por imitação, complementação, contaminação ou por acoplamento. Às vezes, lógicas muito

heterogêneas precisam ser combinadas para dar origem ao menor projeto, dada a

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complexidade de alguns problemas para os quais buscamos soluções. Como pondera Rios

(2003), as invenções têm a tendência a se agrupar por famílias, a perecer ou a germinar com

o passar do tempo Acrescentaríamos que o conhecimento, tecnológico ou científico, nada

resiste às mestiçagens que as necessidades da vida vão impondo como desafio para as

fabricações que vão surgindo.

Para Latour (2001a), a ação não é uma propriedade somente de humanos, “mas de

uma associação de atuantes” (p. 210), ou de actantes, como aqui preferimos chamar. É o

que verificamos na história das técnicas relacionadas aos objetos voadores, nos séculos

XVIII, XIX e XX, mais especificamente no caso das pipas.

No século XVIII, a pipa aparece como importante coadjuvante na descoberta de

fenômenos e na invenção de instrumentos científicos. Trata-se de uma ilustração exemplar

da composição como característica dos objetos sociotécnicos:

• Em 1749, levantou termômetros a mais de 3000 pés, usada para medir as

variações de temperatura em diferentes altitudes pelo meteorologista escocês

Alexander Wilson.

• Em 1752, na Virgínia, Benjamin Franklin demonstrou a natureza elétrica do raio

ao pendurar uma chave no fio de uma pipa durante uma tempestade. O metal da

chave funcionou como elemento para atrair a descarga elétrica do raio,

experiência que conduziu ao desenvolvimento do pára-raios. (KENT, 1997;

HART, 1967)

• Neste mesmo século, arquitetos franceses usam a pipa para atingir o topo de

monumentos que precisavam medir. Segundo Rios (2003), De Rozier, em 1783,

inicia a navegação aérea com um balão movido a ar quente, mas este invento

não chega a anular a utilização da pipa.

No século XIX, todos os experimentadores de máquinas voadoras usaram pipas nas

pesquisas em que vários inventos relacionados à conquista do espaço aéreo vão marcar o

nascimento da aviação:

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• Em 1851, Giffard inventou a injeção de vapor no balão e, em 1852, conseguiu

sobrevoar o hipódromo de Paris em seu dirigível.

• Em 1853, George Cayley, matemático e praticante da pipa, inspira-se na vela

dos barcos para desenvolver uma experiência de ascensão humana em objetos

planadores, retomando a idéia aerodinâmica do vento como elemento

estabilizador que deu origem a toda a engenharia aeronáutica. A pipa

proporcionou a Sir George Cayley o desenho de seu primeiro modelo de asa

artificial.

• Em 1884, outros dois franceses, Renard e Krebs, constróem o primeiro dirigível

movido a eletricidade capaz de retornar ao ponto de partida.

• Em 1886, Maillot constrói um papagaio de 72 metros quadrados de superfície

com capacidade para erguer o peso de um homem.

• Em 1898, Lawrence Hargreaves, emigrante inglês residente nos EUA, cria uma

pipa revolucionária em forma de caixa com capacidade para levantar pessoas.

• Em 1899, muitos anos após Cayley fazer voar seus pára-quedas voadores, os

irmãos Wright inauguraram seus próprios inventos aeronáuticos com uma pipa

que foi especialmente desenhada para testar um sistema de controle que fez voar

suas primeiras máquinas (CROUCH, 2003).

• Segundo Rios (2003), a pipa logo teria sido co-optada para interesses militares

na tentativa de fazer fotografias aéreas sem intervenção direta do homem. Com

um dispositivo fotográfico pendurado à pipa, foram obtidos grandes progressos

na atividade cartográfica. Ainda no último terço deste século, a pipa torna-se

instrumento regular de pesquisa para os serviços meteorológicos europeus e

norte-americanos. O que hoje é feito através de satélites teve o balão-sonda

como objeto intermediário e a pipa como artefato precursor para fazer com que

os instrumentos de medição da umidade do ar, da velocidade e da direção dos

ventos atingissem alturas insuspeitadas.

O século XX foi decisivo para uma grande e definitiva arrancada das invenções que

fizeram parte da conquista do espaço:

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• Em 1900 e 1901, respectivamente, o americano Roch e o francês Bort,

conseguem que seus papagaios meteorológicos atinjam 4.850 e 5000 metros de

altitude.

• Em 1900, o conde Ferdinand von Zeppelin criou o balão dirigível que levou seu

nome e teve a sua produção intensificada por ocasião da guerra, entre 1914 e

1918.

• Em 1901, Guglielmo Marconi anexa uma antena a um modelo de pipa do tipo

hexagonal e consegue fazer a emissão de ondas hertzianas da Cornualha até a

Terra Nova.

• Em 1903, Alexander Graham Bell, o inventor do telefone, previu a instalação de

motores em estruturas voadoras inspiradas nas pipas-caixa de Hargreaves, mas

não obteve sucesso com a empreitada e abandonou o projeto.

• Em 1903, Samuel Alexander Cody, um artista de circo americano, consegue

atravessar o Canal da Mancha numa canoa rebocada por uma pipa complexa

multicelular, inspirada no modelo de Hargreaves, posteriormente adotada pelo

Ministério da Guerra inglês para fins bélicos.

• Em 1906, o brasileiro Alberto Santos Dumont consegue a proeza de voar num

aparelho mais pesado que o ar, dando voltas em torno da Torre Eiffel. Santos

Dumont, profundo conhecedor das pipas, em infância passada na fazenda de

plantação de café de propriedade de seus pais, em Minas Gerais, iniciou suas

tentativas de conquistar o espaço aéreo com invenções mais leves que o ar. O

consagrado modelo “14 bis” que deu fama a Santos Dumont foi obtido através

da adaptação de um motor a duas pipas-caixas que funcionaram como asas.

Neste início de século, através das múltiplas possibilidades de compor com outras

lógicas, a pipa aparece em novas modalidades esportivas, incorporando materiais e

tecnologias recentes. Os “kiteiros”, como são chamados os pipeiros que portam sofisticadas

pipas industrializadas, já aparecem como novidade nos parques dos grandes centros

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urbanos e o kiteboarding, o kitesurf, e o kitebuggy despontam em praias australianas ou em

praias cariocas, ganhando um número crescente de adeptos142.

Segundo Rios (2003), para sobreviver, as técnicas têm que se adaptar às novas

modas, manias e experiências, pois, caso contrário, perecem e são enviadas ao museu de

antigüidades que acumula as peças e as geringonças que perderam a sua serventia para os

humanos. Um dos elementos praticamente extintos na atividade de soltar pipas por conta da

difusão no uso do cerol foi a manivela ou tomador. Ao mesmo tempo em que o cerol vai se

difundindo, o tomador vai desaparecendo.

H - Na época antes dessa competição com o cerol, nós tínhamos assim um aparato, toda uma parafernália de manivela (o tomador), tínhamos o hábito de usar o tomador que era uma manivela com um furo por onde a linha passava. Com o advento do cerol, verificou-se que era uma coisa que não dava certo. Só de passar o cerol nesse fio, nessa manivela, já ia limpando ele com o risco de ele arrebentar. Depois, apareceu a lata que era muito mais fácil. A gente via os meninos jogarem a lata no chão, deixavam a linha lá para depois desembolarem. Quando surgia uma situação de emergência que ia requerer uma estratégia pra cortar ou pra fazer uma evolução ou uma manobra com a pipa e que precisasse de liberdade ou uma ação mais rápida, o menino deixava a lata no chão, ia tomando, ia deixando a linha e depois ia recolhendo essa linha. F – O tomador já seria um obstáculo? H – Sim, nessa manobra. Por que aí ele teria que ser rápido e também todo o cerol, aquele material cortante, ia ficar na manivela, naquela madeira que era o guia por onde a linha passava. A manivela ou o tomador era pra ser que nem um molinete. A função dele era dar praticidade pra não ter um grande esforço, ter um guia e você já ter a linha ordenada. Era quando não havia essa competição que provou depois que a manivela não ia ajudar, que só ia atrapalhar. (Fragmento da entrevista com H.) PA - Só que a manivela143 não serve para colocar cerol porque aquele tubinho por onde vai passar a linha, quando você toma, tira o cerol todinho. É muito bom pra você soltar e se divertir, mas para cruzar não serve. Quando a gente passa cerol, usa é a lata. Hoje o pessoal usa tubo de PVC. É mais leve e é mais prático porque enfia no braço. F – E serve pra sentar também (risos). PA – Isso mesmo! (Fragmento da entrevista com P.A.)

Rios (ibidem) adverte que a pipa, apesar de ter tido o seu nascedouro em culturas

arcaicas, não é uma criação primitiva. Se, no Oriente, evoca-se o seu caráter lendário

durante as guerras, ou quase sempre ligado a rituais religiosos, no Ocidente, a pipa assumiu

142 Ver em www.pipaskitesecia.com.br. 143 Ver foto do tomador ou manivela na galeria de imagens ao final deste capítulo.

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nova aplicação, tornando-se um instrumento da ciência. Mas isto não é tudo. A pipa foi e

continua sendo usada como artefato engenhoso nas invenções que o homem tem utilizado

para a realização de tarefas básicas de sobrevivência, como é o caso da pesca. Em seu The

creative book of kites, Sara Kent (1998) assinala que, além do cunho religioso e beligerante,

as pipas têm assumido, por vários séculos, na região do Pacífico, o papel de levar as linhas

de pesca para além das águas mais rasas, com a vantagem de não projetar as sombras

humanas ou de perturbar a superfície das águas, ambos os elementos afugentadores dos

peixes.

Este método, fundamental para os povos que habitam os arquipélagos da Malásia e

Polinésia onde é forte a atividade da pesca, é detectado em outras partes do mundo, como

na Ilha de Santa Catarina, sendo lá chamada de “a pandorga pescadora”144. No livro de

Mello (1983), temos o relato de que esta invenção começou por acaso no litoral catarinense,

entre os pescadores que praticam uma modalidade de pesca chamada espinhel145. Conta-se

que a técnica foi descoberta de certa feita em que um dos pescadores levou, no barco, o

filho com sua inseparável pandorga. Espinhéis armados e pandorga no ar, surge a idéia de

pendurar uma porção de anzóis na linha da pandorga: um espinhel de pandorga. A idéia

logo se propagou, foi testada, ajustada em seus detalhes técnicos (amarrar uma pedrinha

como peso no início dos anzóis para fazê-lo submergir, estabelecer duplo comando às pipas

para que não caíssem, utilizar folha de plástico impermeável à água para a confecção da

pandorga, colocar a linha do espinhel – mais grossa e chamada de linha madre - paralela à

linha da pandorga ...) e se generalizou na ilha, rumando para outras praias do estado. Não

temos informação da permanência dessa prática ainda hoje.

Em seu livro, Evolução e Técnicas II, Leroi-Gourhan (1984b), ao falar das técnicas

de pesca, menciona esta modalidade, utilizando o papagaio, como sendo das mais

correntes:

Em primeiro lugar, recolhe-se um número suficiente de teias de aranha, que são seguidamente dispostas em forma de anel, com uns 5 centímetros de extensão. Este anel é fixado a uma linha de 50 metros presa à cauda de um papagaio de papel cuja corda, por sua vez, mede igualmente 50 metros de comprido. O pescador reboca o papagaio de papel fixo à sua canoa enquanto a isca de teias de

144 Ver foto da pipa pescadora na galeria de imagens ao final deste capítulo. 145Aparelho de pesca formado por uma extensa corda na qual se prendem, de espaço em espaço, linhas armadas de anzóis (FERREIRA, 1986, p. 568).

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aranha, deslizando cintilante à superfície da água, atrai uma variedade de peixe-agulha cujos dentes se prendem nos fios da teia sem dela se conseguir libertar (p. 65).

Como etnólogo, Leroi-Gourhan (1943, 1945) fez pesquisas com povos no Oceano

Pacífico, geograficamente distantes uns dos outros, de maneira que seria impossível

qualquer contato ou qualquer influência cultural entre as tribos investigadas, descobrindo

que alguns instrumentos por eles utilizados tinham as mesmas formas e as mesmas

características. A partir desta descoberta, elaborou a hipótese de que existiriam tendências

técnicas verificadas em várias partes do mundo que se imporiam como uma necessidade da

sobrevivência dos humanos. Apesar de constatar que o desejo de voar desencadeou uma

multidão de representações em todos os povos – materializado por uma multidão de ícaros

– o autor limita-se a comentar o papagaio como uma técnica difundida em todo o Pacífico,

colocando os modelos indonésios, chineses e japoneses, como os mais perfeitos. Com

exceção da prática de pesca mencionada acima, Leroi-Gourhan (1984a) localiza a atividade

com papagaios como sendo estritamente lúdica. Além do papagaio, dentre os artefatos que

utilizam a força do vento como elemento propulsor, menciona os pendões e a vela das

embarcações.

O obscurecimento reversível: abrindo a caixa-preta

Voltando a Latour (2001a), depois do significado da composição que estivemos

acima ilustrando, o terceiro significado para a mediação técnica é o obscurecimento

reversível. O que o autor quer dizer com esta expressão é que a mediação técnica torna-se

tão necessária quanto invisível até que ela nos falte com toda a cadeia de programas e

subprogramas contendo os mais variados actantes humanos e não humanos que lhe

proporcionaram a emergência. Estamos rodeados de objetos sociotécnicos que nos fazem

existir e agir de maneira diferente daquela anterior ao seu aparecimento. Segundo o autor

(1996a), “a técnica não é feita apenas de matéria: ela é feita de um conjunto de matéria e de

pessoas cuja geometria muda conforme ela funcione ou não” (p. 163). Podemos fazer o

exercício de imaginar como seria a vida das pessoas sem a água encanada, sem a

eletricidade, sem o carro, sem o avião, sem o computador? Sim, a partir do caos que se

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instala quando vivenciamos a experiência da falta de algum desses elementos. Eis porque o

seu obscurecimento é reversível. Cada objeto é uma “caixa-preta” que, se aberta, traria à

tona uma série de actantes, entre humanos e não humanos, que foram se entrelaçando no

tempo e no espaço. São, segundo o autor, essas entidades silenciosas que contribuem para

que realizemos as tarefas mais banais do cotidiano. Cada objeto, se olhado de maneira

inédita, traz em seu bojo múltiplas histórias que foram se entrelaçando até chegarem a fazer

parte da legião de artefatos considerados imprescindíveis na realização de nossas ações.

Quando estamos diante das coisas prontas, não nos é possível avaliar a quantidade de estratégias e esforços movidos para tornar possível determinado efeito que se tornou óbvio simplesmente porque passou a existir e está ali, diante de nossos olhos. Entretanto, há construções realizadas pela humanidade que nos causam espanto devido à sua grandiosidade, despertando a curiosidade em torno dos métodos utilizados na sua concretização frente aos escassos recursos da época de seu surgimento. É o caso das pirâmides egípcias e das pesquisas que têm sido desenvolvidas para tornar reversível o obscurecimento em torno de seus métodos construtivos. Através do programa “Pirâmides Voadoras”(Flying pyramids soaring stones), veiculado pelo History Channel, no ano de 2005, tomamos conhecimento das experiências realizadas pela Dra. Maureen Clemmons do Instituto de Tecnologia do Sul da Califórnia. Através de um processo a que chamam de Engenharia Inversa, o grupo de pesquisadores tenta mapear o caminho inverso daquele que marcou o aparecimento de determinadas tecnologias, associando a experimentação de materiais (engenharia) com a busca por evidências históricas (arqueologia), oferecendo uma compreensão das idéias que permitiram o surgimento da inovação técnica, neste caso, fazendo experiências para colocar à prova a hipótese de que os egípcios teriam usado a força dos ventos para erguer as pirâmides com a ajuda de pipas enormes. Tentaram, assim, repetir com os mesmos materiais existentes na região, há 5 mil anos – torres de madeira, cordas de cânhamo e pipas gigantes feitas de linho - o erguimento de um obelisco de 11 toneladas que foram tracionadas pela força eólica através de pipas de diferentes tamanhos em função das várias velocidades que os ventos iam tomando. Pelo resultado da experiência, que durou cerca de sete anos, esta hipótese foi considerada plausível, uma vez que os dados históricos corroboravam o fato de que os egípcios eram hábeis na lida com as embarcações à vela nas navegações pelo Nilo, acrescentando-se o fato de que os ventos são intensos e constantes no deserto. 146 (D.C.)

Egípcios aplicando conhecimentos náuticos para mover monumentos com pipas

gigantes? Seria mais um caso de tradução de tecnologia como aquele relatado por

Law(1997) sobre a fábrica de briquetes que se move da Suécia em direção à Nicarágua147.

146. Ver, ao final do capítulo, foto da experiência obtida em www.archeologee.com ou www.speak.com. 147 Ver capítulo III.

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Segundo Clemmons (2002), se as pipas podem resolver um enigma do passado, quem sabe

poderiam guardar alguma chave para aplicar no futuro.

A pipa é um objeto que se manteve nas práticas humanas até os dias atuais. Como

todo objeto sociotécnico, também deixa alvoroçados muitos grupos de humanos quando

algo não vai bem na sua performance. Nos detalhes da sua fabricação, na confecção do

cerol, nas estratégias de elevar-se, nas manobras operadas nas disputas, em todas as etapas,

deparamo-nos com problemas que precisam de coadjuvâncias no sentido de obter soluções

para que a pipa volte a bailar no ar.

Mas, e se a pipa desaparecesse? Se ela fosse simplesmente extinta? Se caísse em

desuso, alguém sentiria sua falta como elemento básico para o desempenho de outras

tarefas? No caso da pipa, o mais paradoxal é que, embora anunciada por tantas vezes, a

sua extinção não ocorreu. Talvez isto se deva ao fato de jamais ter pretendido ser muito

mais do que um artefato calcado na simplicidade engenhosa e sábia que emprestou, a todos

os seus sucessores, as memórias dos primeiros passos dados pelo homem em direção à

conquista do espaço aéreo. O balão, o pára-quedas, o avião, todos são artefatos que

combinaram histórias de sub-programas iniciados desde os primeiros vôos da pipa. A

pesquisa aeroespacial trouxe inovações em torno de novos materiais como o nylon, a fibra

de vidro, a fibra de carbono. Novas formas de vôo e de aterrissagem também foram

desenvolvidas utilizando a tecnologia da pipa como ponto do qual partir. E o que nos causa

impressão é que, longe de decretar a obsolescência da pipa, esses avanços retornaram ao

solo da experimentação original, fazendo surgir outros tipos de pipas com características

cada vez mais sofisticadas: as que voam com pouquíssimo vento, as desmontáveis, as

impermeáveis, as asas deltas, as pipas gigantes. Todos esses novos tipos despertam o

interesse dos adultos, esportistas e profissionais que se dedicam ao estudo das máquinas

eólicas.

Picon (1996) comenta que o aparecimento e o desaparecimento das técnicas nunca

se fazem de maneira abrupta, sendo sempre gradual a passagem de um sistema técnico a

outro. Segundo este autor, não existem sistemas técnicos puros, pois elementos de um

antigo sistema podem permanecer, enquanto outros podem anunciar a chegada de

novidades, havendo uma coexistência pacífica entre o antigo e o novo, em determinados

períodos. O que provavelmente muda é a forma como as pessoas fazem a destinação de

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seus usos. O caso da pipa também é exemplar nesta lógica, pois ela se manteve como um

antepassado remoto ao lado de seus sucessores contemporâneos.

Para Latour (2001a), os artefatos não são meramente a cristalização das relações

sociais, pois as sociotécnicas incluem, para além de um social dado como estável, relações

outras que não apenas aquelas entre humanos. Essas articulações (pessoas e matérias), ao

mobilizarem os coletivos, transformam a idéia de artefato numa mistura de mediadores ora

compostos de um, ora compostos de muitos, trazendo a baila uma história que é o próprio

labirinto de multiplicidades. Os próprios objetos, assim como os humanos, são mediadores

sociais, desempenhando um papel em nossas vidas, porque trocam conosco várias

propriedades, mobilizando não humanos que refazem as relações sociais “por intermédio de

novas e inesperadas fontes de ação” (p. 227), na formação dos coletivos, idéia que nos leva

ao próximo significado de mediação técnica.

A delegação: perpetuando nos objetos uma ação praticada.

O quarto significado de mediação técnica é o da transposição da fronteira entre o

signo e as coisas ou da delegação. As técnicas, segundo Latour (1994c, 1996, 2001a), não

apenas produzem modificações na forma de expressão dos coletivos, como trazem

modificações substanciais aos seus usuários, porque além de terem um significado – por

fazerem parte de uma história de humanos – elas mesmas podem produzir um significado.

Isto ocorre porque elas são um ponto numa cadeia de transformações que vão articulando e

definindo práticas: as técnicas congelam e retêm significados que têm a propriedade de

enunciar outras mensagens, além daquela original, fazendo o deslocamento de um

significado a outro. No caso de um quebra-molas, como ilustra o autor, desloca-se o

significado “diminua a velocidade para não atropelar as pessoas” para “vá devagar para

proteger a suspensão de seu carro”. No caso de outros objetos, os significados serão tantos

quantos usos as pessoas puderem encontrar, através da ação que lhes delegarem, no tempo e

no espaço. Se pensarmos na faca, na energia atômica, nas tecnologias digitais, um sem

número de delegações poderá ser feito para tantos usos quantos pudermos atribuir a estes

objetos. É esta delegação que permite perpetuar nos objetos uma ação praticada, fazendo

com que ela continue viva, mesmo que seu ator já não esteja mais ali, naquele momento. Os

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objetos, portanto, trazem a delegação técnica de um esforço congelado de muitos

investidores cuja presença é detectada mesmo sem estarem presentes, fazendo deles

verdadeiros híbridos entre humanos e não humanos pela fusão e cristalização de ações e

matéria, ao percorrerem uma cadeia de articulações148.

Podemos observar a delegação de ações que fazemos aos objetos se considerarmos

alguns elementos a nossa volta que contêm uma grande parcela de humanidade, dizendo-

nos o que podemos fazer e o que não devemos fazer. No argumento de Latour (1996a), “a

moralidade de nossas sociedades deve muito a essas permissões e proibições” (p. 161),

delegadas aos objetos com os quais convivemos: o cinto de segurança que nos lembra

fisicamente do compromisso que assumimos de nos defendermos, até contra nós mesmos; o

relógio que nos autoriza a saber da hora; o despertador que nos projeta à manhã seguinte

para lembrar do compromisso de não perdermos o horário; assim, também verificamos

delegações, no caso do quebra-molas, das portas automáticas, das TVs, dos

microcomputadores...

Muitas ações no intuito de concretizar a possibilidade de elevar-se nos ares e voar

foram delegadas às pipas, como vimos acima, tanto nas descobertas científicas, como nas

tarefas da vida cotidiana. Em nossa pesquisa, para além das ações lúdicas e aquelas

relacionadas às guerras149, verificamos que a pipa se presta para ser suporte e possibilitador

de inúmeras outras mensagens. É sabido que, com a função de sinalizador, a pipa tem sido

utilizada, ao lado de rojões e fogos de artifício, para informar a chegada das drogas a

determinados lugares. Em nossa cidade, informaram-nos de que através das rabiolas das

pipas foram transportadas substâncias proibidas para o interior dos muros de uma

instituição que trabalha com a desintoxicação de alcoólatras. Entretanto, o uso mais

incomum, nestas várias delegações feitas ao objeto, foi o de ser pretexto para o roubo de

frutas e também de ser mensageiro de bilhetes de amor, conforme o narrador abaixo.

De repente, nós deixávamos a linha da pipa esbarrar no galho das jabuticabeiras. Aí, juntava todo mundo pra desembaraçar, uns subindo nos ombros dos outros. Enquanto subíamos, tirávamos do bolso um saquinho de sal. Antigamente, o sal vinha num saquinho de pano de algodão. Nós comprávamos aquele saquinho de sal, despejávamos o sal em

148Uma articulação seria, segundo Latour (2001a), uma tessitura de materiais inertes e vivos, materiais simbólicos e concretos promovendo a descoberta de soluções onde nenhuma era antes viável. 149 Ver capítulo V.

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outra vasilha e ficávamos com aquele saquinho na mão. Nós enchíamos o bolso de saquinhos de sal vazios e corríamos pra soltar pipa. Aquele que estava lá desembaraçando o fio da pipa começava a tirar as jabuticabas dos galhos. Enchia aquele saquinho e passava pro de baixo. E aí, a gente só ia passando os saquinhos. Vinha vindo gente e a gente falava: “Ô, gente, peraí, tá difícil de desembaraçar”. Uns em cima dos ombros dos outros e a gente começava a cansar. Aí a gente se revezava. Era assim: nós enchíamos seis, sete saquinhos de sal com as jabuticabas das hortas dos outros. Soltar pipa era bom pra roubar as jabuticabas das hortas dos outros (risos). Era uma beleza, sabe?

As pipas serviam muito pra outras coisas também. Tinha namorado lá que tinha vontade de conversar com certas moças, mas o regime era seguro e não tinha muito jeito. Então eles falavam assim pra gente: “Olha, vou amarrar um bilhete aqui no papagaio e vocês dão um jeito de soltar pra pipa baixar lá na casa de Fulano de Tal. Dá um jeitinho de ela cair lá” Então a gente fazia isso e ganhava um trocado: eles davam uns duzentos réis, trezentos réis, quatrocentos réis.... Então a gente dava um jeito de soltar a pipa e fazer ela baixar lá naquele lugar. E conseguia fazer ela baixar. Conseguia! Quando ela baixava, a gente corria, batia palmas lá naquela casa, vinha a empregada e falava: “Que é que vocês querem?” A gente falava: “É que o nosso papagaio caiu aí. Faz favor, vai lá e pega pra nós!” E no rabo do papagaio tinha o bilhete. (Fragmentos da entrevista com B.)

A pipa, como qualquer outro objeto sociotécnico, encerra esta história iniciada em

terras e povos distantes, revelando um caminho percorrido pelas ações empreendidas pelo

homem na tentativa de voar. Com ela e através dela, iniciou-se o congelamento de todo o

esforço de praticar a ação de voar. Da mesma forma que outros objetos, ela também pode

encerrar outras mensagens, contendo outros significados, na medida em que sua utilização

os for suscitando.

Na tentativa de superar as dicotomias.

Em seus trabalhos, Latour rejeita a idéia de um social como dado e prévio gerando

tudo a seguir. Para o autor a idéia de “social” teria uma melhor tradução com o termo

“coletivo”, pois este é capaz de comportar os elementos não humanos que foram excluídos

na elaboração do que hoje é chamado de “social”. A sociedade, ou a natureza, como tudo o

mais, não é, mas está em permanente construção que se opera através da combinação e da

negociação das mediações humanas e não humanas. Não faz sentido, para o autor, manter

as divisões estabelecidas pelo pensamento moderno entre natureza e sociedade, pois, na

prática, esta divisão sempre foi calcada na artificialidade e, de fato, nunca existiu. Assim, o

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conceito de mediação é ampliado e se estende a outros atores – ou actantes - não humanos

que participam na produção dos eventos. Nestes, tanto faz parte o mundo mental dos

humanos, como participa o mundo físico das coisas. Eis a proposta de uma antropologia

simétrica que anima o pensamento latouriano.

Verificamos que outras separações são heranças do pensamento moderno,

especialmente aquela entre o pensar e o fazer com a qual iniciamos este capítulo. Ao

colocarem a episteme como sendo o caminho reto da razão na elaboração do conhecimento

e a metis como a trajetória de ensaios e erros resultantes da busca tortuosa pela solução dos

problemas da técnica, os gregos marcaram a divisão hoje existente entre o mundo dos

intelectuais que sonham, pensam, fazem perguntas ao mundo - e tentam respondê-las - e o

mundo dos técnicos, dos engenheiros e dos artesãos que trabalham com a matéria e buscam

estratégias para torná-la cúmplice em seus projetos. A esse respeito, Lesgard (1996) nos

oferece a interessante imagem de colinas em cujos cumes habitam os intelectuais, longe do

tumulto das águas, fazendo a profissão de pensar, enquanto, lá embaixo, vivem os

engenheiros, corrigindo o curso dos rios, utilizando a força da sua corrente para gerar

energia ou para irrigar plantações, sob o olhar preocupado das populações ribeirinhas que

temem as enchentes. Por que fazer e pensar se constituíram em ações tão distanciadas? Por

que a técnicos e engenheiros não é dada a condição da dúvida e para os intelectuais e

filósofos a dúvida é o ponto de partida? Mais uma divisão arbitrária estabelecida pelo

pensamento moderno. Ambos os grupos, para pensar e para fazer, hesitam e trilham

caminhos plenos de desvios. Não há caminho reto, não há essências puras, não há mundo

pronto e acabado, segundo Latour. Através de um Estudo Ator-Rede, torna-se possível que

objetos da ciência e da tecnologia sejam sócio-compatíveis aos nossos olhos.

As técnicas são, por vezes, encaradas como autônomas e ameaçadoras, como se

fossem os opostos do humano, uma criação diabólica que se voltaria contra os humanos,

seus criadores. A tecnofobia foi um sentimento marcante, especialmente no século XX,

devido ao vertiginoso desenvolvimento das técnicas, constituindo-se em matéria de análise

de Simondon (1989) no livro Du mode d’existence des objets techniques150 e de outros

pensadores contemporâneos. Segundo Latour (1996a, 2001a), as técnicas parecem

autônomas porque guardam um caráter de imprevisibilidade devido à própria incerteza das

150 Já mencionado por nós no Capítulo I.

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nossas ações e das nossas fabricações. As técnicas não são, portanto, fetiches, ou seja,

objetos encantados que comandam as nossas ações, tornadas maiores do que são de fato.

Elas são fe(i)tiches: ao mesmo tempo fatos e fetiches como veremos, no próximo capítulo,

tomando a pipa como objeto âncora de nossa análise.

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GALERIA DE IMAGENS CAPÍTULO VII

Pipa Igreja – Festival do Pipagaio -Tiradentes 2005 Pipa pescadora (Newman,1974)

Tomador ou manivela Experiência de Clemmons (2002)

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CAPÍTULO VIII

A PIPA COMO UM FE(I)TICHE

De permeio a preces e agradecimentos coletivos, no vale cheio de luz, o pai empinava o papagaio feito de palha, descaindo, ao sabor do vento, a maior quantidade de linha que conseguira reunir. Quando chegava ao fim e o papagaio já era um ponto colorido pequenininho lá muito longe, com um brado e um gesto solene, o patriarca liberava o pássaro mágico, deixava-o voar sozinho, com ele levando todo o mau fado e qualquer quebranto que porventura estivesse comprometendo a vida do menino (MELLO, 1983, p. 36)

Fe(i)tiche: ao mesmo tempo fabricação e realidade.

Os produtos da ação humana, ao longo da história, adquiriram o estatuto de

verdades que não passam de fabricações, por vezes tornadas maiores que seus próprios

criadores. Os fenômenos da realidade em que estamos imersos têm uma história e são

construções resultantes de múltiplas influências, não importa se estamos falando de fatos

científicos ou de crenças religiosas. Como fabricações, não deixam de ser reais e de operar

efeitos sobre nossas vidas.

Das idéias de Latour, uma delas nos será fundamental para estudar a relação dos

sujeitos com a atividade lúdica, assim como o papel do brinquedo, este artefato construído

pelos humanos e que hoje se constitui como um objeto valorizado nas práticas dos homens

contemporâneos: a idéia de fe(i)tiche ou de fatiche. Trata-se de um termo que comporta

uma composição entre as palavras fetiche e fato. Latour (2002a) chama a nossa atenção

para a etimologia das palavras feitiço, fetiche e fato como contendo a mesma raiz151, ou

seja, daquilo que é feito, fabricado. Através desta análise, o autor observa que a idéia de 151No dicionário Aurélio de Português, encontramos o significado das palavras feitiço, fetiche e fato: Feitiço{de feito + iço}; 1. Adj. Artificial, factício; 2. Postiço, falso; 3. Malefício de feiticeiros; 4. Ver bruxaria; 5. Ver fetiche; 6. Encanto, fascinação, fascínio. Fetiche; 1. Objeto animado ou inanimado, feito pelo homem ou produzido pela natureza, ao qual se atribui poder sobrenatural e se presta culto, ídolo; manipanso. Fato 1. Coisa ou ação feita; 2. Aquilo que realmente existe, que é real.

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fetiche, como algo construído e fabricado, também aparece marcada na etimologia de

palavras análogas em outras línguas como a demonstrar que o fetiche assume inteiramente a

condição daquilo que, criado pelo homem, pode acrescentar alguma coisa, ao invés de

simplesmente inverter a origem da ação, dissimulando o trabalho humano de manipulação.

Segundo Latour (ibidem)

A palavra fetiche e a palavra fato possuem a mesma etimologia ambígua... A palavra fato parece remeter à realidade exterior, a palavra fetiche às crenças absurdas do sujeito... Ao juntar as duas fontes etimológicas, chamaremos de fe(i)tiche a firme certeza que permite passar da prática à ação, sem jamais acreditar na diferença entre construção e compilação, imanência e transcendência. (p.46)

Ao nos determos na palavra fetiche, verificamos que ela já tem sido usada em outros

domínios trazendo semelhanças e diferenças com a versão composta e utilizada atualmente

por Latour. Segundo Sebeok (1988), a palavra deriva diretamente do termo português

feitiço, cunhado por marinheiros portugueses no século XV. Foi aplicado, inicialmente, na

costa oeste do continente africano, aos objetos de culto que os negros carregavam junto ao

próprio corpo, venerando-os por acreditarem que estes objetos, utilizados como talismãs e

amuletos, tinham o poder de enfeitiçar. Em seu livro O culto dos deuses fetiches, Charles de

Brosses (1760, apud Sebeok) registra este fato e coloca-se como inventor do termo fetiche

que depois será utilizado pelos antropólogos como

[...] um objeto inanimado venerado por selvagens por causa de seus poderes mágicos, supostamente inerentes, ou por ser animado por um espírito. Num sentido ainda mais amplo, fetiche chegou a referir-se a uma coisa irracionalmente reverenciada (SEBEOK, p.12).

Trata-se de uma palavra de uso problemático que, com o tempo, abriu brechas para

outras interpretações e significados em função do terreno que a absorvia. Tanto feitiço

como fetiche são termos freqüentemente encontrados na literatura com o significado de

"algo feito", tendo relação com as estratégias utilizadas pelo homem para controlar o

mágico, o sobrenatural, outorgando a outrem a origem de sua própria ação. Segundo

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Sebeok (1988), tanto Charles de Brosses como Auguste Comte interpretam o fetiche como

uma base para suas teorias a respeito da origem da religião. Nessas teorias, as religiões

primitivas tomam coisas vivas ou coisas inanimadas para atribuir-lhes o poder de captar

forças naturais: objetos ou acontecimentos são sacralizados, passando a ser adorados e

reverenciados pelo seu suposto poder de funcionar de maneira positiva para influenciar e

mudar as relações sociais naturais, na cura de doenças, inclusive para induzir a uma

disposição erótica. Sebeok considera que foi nesta última acepção que o termo penetrou na

literatura psicanalítica.

No discurso clínico da psicanálise, o termo fetiche foi adotado para descrever como

um objeto aparentemente isento de significado sexual para a maioria das pessoas pode se

revestir de um determinado poder para despertar e/ou intensificar a atividade sexual. Trata-

se de um fenômeno construído gradativamente na história do portador do fetiche que torna

o objeto indispensável na sua atividade sexual, chegando a substituir o parceiro sexual vivo.

O objeto do fetiche passa a ter, portanto, um valor fabricado pelo fetichista que acredita e

age como se este objeto fosse mais do que realmente é, dotado de poderes sem os quais sua

atividade sexual não ocorreria a contento.

O termo fetiche também foi utilizado no discurso marxista para analisar o

relacionamento das pessoas com os produtos de consumo. Quando um artigo de consumo é

investido de poderes que nele não estão presentes nem lhe são inerentes, elevamos esta

mercadoria ao status de fetiche, estratégia continuamente utilizada pela propaganda para

estimular o consumo através da criação de necessidades secundárias. Ou seja, os produtos

não são comprados apenas pelo seu valor de uso, mas por todos os pseudopoderes que

carregam. Neste caso, percebemos uma dupla fabricação: a do produto em si e a da

necessidade de consumi-lo, artificialmente criada pela fetichização do objeto.

Tanto na psicanálise como na teoria marxista, o fetiche aparece como um objeto,

fabricado ou construído, investido de poder que, por um processo de ritualização, passa a

exercer um certo fascínio sobre os sujeitos que fazem dele uma ferramenta para o que

acreditam ser uma ampliação de suas possibilidades relacionais. Nos dois casos, o poder

dos objetos é suposto, estando a serviço da ilusão. A palavra fetiche é utilizada em seu

sentido negativo, como um movimento de submissão ao objeto que, ritualizado, esvazia a

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ação do sujeito: o objeto-fetiche comanda a ação, enredando o homem em comportamentos

estereotipados sobre os quais ele não tem mais domínio.

Apesar de comungar com a idéia de fabricação humana, a palavra fetiche, em

Latour (2001a, 2002a), passa a associar-se a um outro registro, mais positivo, abandonando

o cunho patologizante da psicanálise, ao mesmo tempo em que introduz simetria no

processo de atribuição de sentidos aos objetos da realidade. Torna-se possível ultrapassar a

dicotomia entre fato feito ou fabricado versus fato encantado com o efeito mágico que ele

produz. Surge uma fusão de ambos os significados com o termo fe(i)tiche, sem, entretanto,

incorrermos em uma contradição.

Desta forma, poderíamos alocar na categoria de fe(i)tiche desde os amuletos

utilizados pelos negros na Costa do Marfim, aos ídolos religiosos venerados pelos

portugueses - para falar das religiões como uma necessidade humana de criar poder e força

em algo para além do próprio homem, assim como poderíamos falar do discurso científico

em que fatos são engenhosamente produzidos, gerando conseqüências que nos afetam a

todos, adquirindo uma enorme força na maneira como nos conduzimos em nossas vidas, em

nossa relação com a natureza e com outras entidades (humanas e não humanas). Fetichistas

e antifetichistas são postos em pé de igualdade, simetricamente colocados numa forma de

ver as coisas a que Latour (2002a) chamou de Antropologia Simétrica.

Por que não confessar simplesmente que não há nem fetichismo nem antifetichismo, e reconhecer a eficácia singular desses "deslocadores de ação" aos quais nossas vidas estão intimamente ligadas? (p.31) Não há mais razão para abdicar da palavra "fetiche" como da palavra "fato", sob o pretexto de que os modernos teriam acreditado na crença e quiseram desacreditar os fatos para ater-se aos fetiches. (p.46)

Buscando simetrias.

Diz Latour (2002a) que a separação entre o objeto feito como fato, assentado em

sólidas causas objetivas, e o fetiche como objeto encantado, projeção de uma miscelânea de

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crenças sem importância, é obra de um tipo de pensamento que se estabeleceu com a

modernidade. Os pensadores modernos produziram um processo de separação que resultou

na clivagem de várias instâncias, na forma como os sujeitos passaram a entender a

realidade: fatos x fetiches, crença ingênua x ciência, sujeito x objeto, natureza x cultura,

teoria x prática, coisa x representação, interioridade x exterioridade, ciências da natureza x

ciências humanas.

Ou bem [o cientista] construiu socialmente seus fatos e acrescenta ao repertório do mundo apenas suas fantasias, preconceitos, hábitos e memória, ou bem os fatos são reais, mas então ele não os fabricou em seu laboratório. Essa contradição parece tão fundamental que ocupa, ininterruptamente, há três séculos a filosofia das ciências (p.37).

O que Latour propõe é fugir da escolha cominatória, é contornar essas clivagens,

abandonando a dureza das categorias cartesianas, em prol de um tipo de pensamento que

não seja dicotômico, sempre na busca por restaurar a integração dos todos que foram

cindidos pelo pensamento moderno.

Fatos e valores emergem igualmente das redes em que o trabalho de fabricação se

processa ativamente misturando elementos muito heterogêneos. Ciência e religião possuem

discursos próprios cuja eficácia está atrelada a maneiras particulares e distintas de atuar

sobre a realidade, mas ambos nutrem-se de fabricações humanas e operam como

deslocadores de ação. Latour (2002b) entende os discursos da religião e da ciência como

situados em domínios diferentes, mas reconhece que tanto um como outro fazem uso de

cadeias de mediadores para provocar seus efeitos. A ciência, através de seus

procedimentos, cálculos e modelos, tenta produzir informação precisa e confiável, enquanto

a religião pretende reafirmar, através da iconografia cristã, o movimento que renova a fé

diante dos mistérios, através das mensagens proferidas. No caso da ciência, o discurso quer

informar com objetividade. No caso da religião, tal como na linguagem do amor, busca-se o

enlevo, a transformação pela fé.

Tanto o discurso religioso como o discurso científico levam a coisas que não podem

ser diretamente observadas, valendo-se de cadeias de mediadores que conduzem nossa

observação para direções que são próprias a cada um dos campos. A cadeia de mediadores

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da ciência leva ao que é invisível porque seu objeto está muito distante e não se alcança

pela intuição, mas pelo incansável trabalho de pesquisar, recortar, traduzir a realidade em

representações confiáveis. A cadeia de mediadores da religião também conduz ao invisível,

sendo o seu objeto inalcançável porque ele é simplesmente difícil de renovar: a fé em seus

mistérios. Ambos, entretanto, se colocam a tarefa de encontrar uma “verdade”- uma

fabricação -, buscando a continuidade do fluxo na cascata de mediações, sempre um passo

além.

O que nos interessa nestes argumentos de Latour (2002a, 2002b) é a possibilidade

de entender a inserção do brinquedo em um tipo de discurso que, para nós, tanto pode estar

na cadeia de mediadores utilizados pelo discurso científico - quando encerra as ações de

descoberta e invenção como expressões do pensamento criativo - como pode fazer parte de

uma cadeia de mediadores da comunicação que transporta e que transforma - como no

discurso da religião. Tal como nos discursos da ciência e da religião, o lúdico se estrutura

sobre o fluxo de uma cascata de mediadores, pois está constantemente representando,

significando e ressignificando. O brinquedo como objeto não se esgota em sua concretude e

deixa falar, pois permite um fluxo constante de sentidos que traz o passado ao presente e

projeta o presente no futuro152. O brinquedo teria, ao mesmo tempo, um valor funcional e

um valor simbólico, ou seja, tem um uso em potencial porque é simbólico – tem uma

significação social; e tem um valor simbólico, porque se presta a vários usos (Brougère,

2000).

Desta forma, o objeto lúdico pode ser compreendido através dos dois tipos de

registro: o que informa e o que transforma. No primeiro tipo, o brinquedo conteria sua

própria história, a ser desvelada, descoberta em sua condição de artefato que mobilizou e

cristalizou em materiais as ações lúdicas praticadas, inserido em um contexto sócio-

histórico-cultural determinado, abrindo um campo de descoberta e invenção pelo ato

criativo. No segundo registro - como comunicação que transforma - o brinquedo constitui-

se numa linguagem que re-inventa, que subverte, que significa e re-significa, re-

estabelecendo uma via mestiça (Serres) ou híbrida (Latour) que dá aos sujeitos a

possibilidade de expressão "des-enformada", à fala que transporta e que arrebata.

152 A ação de brincar ocorre sob a mesma lógica: uma menina, quando materna sua boneca, traz do passado a referência que a inspira, ao mesmo tempo em que se projeta no futuro a partir de um repertório das ações que um dia será capaz de realizar em toda a sua plenitude.

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Pelo entendimento de um mundo integrado.

A palavra fe(i)tiche ou fatiche, adotada por Latour (2002a) para expressar ao mesmo

tempo fato e feitiço, objeto feito e objeto encantado, traduz bem a idéia de que categorias

dicotômicas e freqüentemente colocadas como antagônicas podem voltar a um estado de

entendimento integrado e serem traduzidas à luz de uma restauração que as coloca no

estatuto de tudo o que é fabricação humana. Restaurados os objetos dessa fabricação, a

dupla noção de saber e de crença poderia ser abandonada, permitindo aos "atores por eles

mesmos", enunciarem seus próprios discursos, livres da censura de rótulos arbitrariamente

criados e impostos pelas categorias científicas psicologizantes e normatizadoras,

habilmente guardadas em escaninhos disciplinares.

Os antifetichistas se fundam sempre numa acusação de que os outros é que são os

crentes e que, incrédulos, eles estão imunes à crença ou à manipulação. Para ultrapassar a

noção de crença como uma forma menos valorizada de apreender a realidade, o autor

propõe que lancemos o olhar aos cientistas, em sua prática de laboratório, ou aos adeptos

dos cultos em seus ritos, pois eles certamente são capazes de entender essa natureza

ambígua de fatos e fetiches. As imagens que criamos como objetos de culto, os nossos

ídolos, seja no campo da religião, seja no campo da ciência, são fabricações - fé(i)tiches -

de que nos valemos para entender o mundo e a nós mesmos.

No laboratório, os fatos são fabricados por uma longa e complexa negociação, por

uma cadeia de articulações que os vão produzindo. Trata-se de um fenômeno que depende

das qualidades do humano, assim como das qualidades dos não humanos envolvidos; há

uma parte controlada e uma outra parte inesperada e insuspeitada que surge na esteira das

surpresas que nossa própria fabricação nos traz. Nem por isso os fatos são enfraquecidos:

nem somos completamente autores dos fatos, nem os fatos o são deles próprios. Há uma

complexidade nos fatos que, longe de fragilizá-los, enriquece a sua fabricação.

Com o fé(i)tiche acontece a mesma coisa, pois ele é igualmente fabricado, sendo

que o reconhecimento dessa fabricação também não pode constituir um elemento para o seu

enfraquecimento. Pelo contrário, a sua fabricação o torna “mais forte, muito mais reflexivo,

ricamente investido numa prática coletiva...” (Latour, 2001a, p. 313).

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Com a noção de factiche ou fe(i)tiche, Latour (2001a, 2002a) sugere um movimento

completamente diferente: é pelo fato de ser construído que ele é tão real; é por ter tantas

ligações que ele ganha autonomia. A mediação humana, restaurada tanto no fato como na

crença, recoloca o estatuto de mistura entre fabricação e realidade. Fatos e fetiches são, ao

mesmo tempo, ambos: fabricação e realidade. Passa-se ao largo da divisão que coloca fatos

como reais e crenças como ilusórias. Fatos e crenças são fabricados e reais na medida em

que operam deslocamentos de ação, que produzem efeitos, sejam eles bons ou maus.

A divisão operada pelo pensamento moderno entre fato e crença reforça uma atitude

assimétrica frente a outras culturas, negando a necessidade de fabricarmos a nós e ao

mundo para agir e argumentar. A noção de crença se tornou um fardo, segundo o autor,

pois, além das religiões, a própria ciência foi colocada em questão. Na ânsia antifetichista

de desmontar as crenças e condenar à ingenuidade os seus portadores, foram deixadas de

lado as bases do que é ser humano. Aceitando os nossos fé(i)tiches, colocando-nos diante

das fabricações que empreendemos em parceria com outras entidades, temos a chance de

avaliá-las pelos efeitos que elas produzem. Cada produto das associações que fazem os

humanos com os elementos que com eles co-existem passa a implicar responsabilidade e

compromisso com a sua existência.

A pipa como objeto sagrado: singela ligação entre o céu e a terra.

Os objetos que usamos surgem de desejos e necessidades reais e são causa de

inúmeros comportamentos. A mesma argumentação poderá ser usada para os objetos que se

prestam aos nossos cultos. É sabido que esses objetos a cujo culto nos dedicamos,

explicitamente ou implicitamente, guardam histórias que justificam a sua simbologia.

Alguns outros fizeram o caminho contrário e, hoje, dessacralizados, passam a um outro

estatuto de utilização, muitos deles tornados brinquedos153.

Tanto Benjamin (1984) como Ariés (1978) colocam-nos diante da idéia de que os

brinquedos, primitivamente, eram objetos utilizados nos afazeres e rituais do mundo adulto 153 Mesmo na condição de brinquedos, estes objetos funcionariam como fe(i)tiches pois continuariam a operar como deslocadores de ações, ao mesmo tempo como fatos reais e fatos encantados, não estando, portanto, tão dessacralizados.

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que, graças à imaginação infantil, foram resgatados como peças para realizar as várias

experimentações das realidades físicas e sociais que as crianças costumam empreender.

Com o tempo, a brincadeira se libertou de seu simbolismo religioso e perdeu seu caráter comunitário, tornando-se ao mesmo tempo profana e individual. Nesse processo, ela foi cada vez mais reservada às crianças, cujo repertório de brincadeiras surge então como um repositório de manifestações coletivas abandonadas pela sociedade dos adultos e dessacralizada (ARIÉS, 1978, p. 89).

Embora nem todos os brinquedos infantis sejam heranças do mundo adulto, pois

pensando assim estaríamos negando a capacidade inventiva das crianças para criar seus

próprios objetos lúdicos, não podemos negar o fato de que alguns deles derivam dos ritos e

objetos sacralizados que sobreviveram com novas traduções no imaginário infantil, como

parece ser o caso do papagaio ou pipa. Além disso, ambos os autores mostram que o

brinquedo, tal como o entendemos hoje, em sua origem relativamente recente, surge

reforçando e sendo reforçado com a “invenção” da categoria de infância, gestada ao longo

destes últimos séculos154. É, predominantemente155, na relação com a criança que o

brinquedo aparece com toda a sua força de realidade e de encantamento, operando efeitos

inesperados. Pessoas de idades muito variadas compartilham a paixão pelo papagaio.

O meu neto aprendeu no grupo mesmo. Acredita? Ele é doido pra me pedir trocado pra comprar papel.[...] Perguntei o que que era aquilo ali. Ele disse que estava pondo cara no papagaio. Depois ele cortou uma meia-lua, deu uns furinhos no meio, colou aquilo e parecia uma boca rindo com os dentes. Ficou interessante. Depois ele foi soltar a pipa. Eu é que era o recurso dele pra tudo: pra comprar papel, cola, linha... Aí, eu ia com ele também: “Você já pensou o tanto de dinheiro que você já me pediu para as pipas? Pois agora você vai fazer duas pipas: uma pra você e outra pra mim.” Ele fez duas e eu danei a soltar pipa com ele também. Quando a minha pipa acabava, eu passava a usar da dele. Ele não queria que eu fosse atrás dele, mas eu perguntava aonde ele ia e ia atrás. Chegava lá e encontrava ele junto com uns meninos, perto da Rodoviária, em frente à garagem da

154 O reconhecimento da infância, enquanto uma etapa do desenvolvimento do ciclo vital, aparece como resultante de uma longa cadeia de fatos que têm relação com as mudanças ocorridas em diversos domínios, todos estes estabelecendo redes que permitiram o reconhecimento do brinquedo como um objeto de valor para a sociedade contemporânea. 155 Mas não exclusivamente, pois se verifica que alguns objetos mantêm sua força mobilizadora em outras idades da vida humana.

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Viação Sandra. Dizia pra ele: “Você já soltou muita pipa. Agora passa ela pra mim” (Trecho da entrevista com B.)

O entrevistado diz que não teve participação no aprendizado da pipa que fez o neto,

mas assumiu a sua participação no aprendizado feito por outros meninos e pela avó que

moravam na roça. Três gerações, nestes fragmentos de entrevista, aparecem para mostrar

que o trato com este brinquedo não tem idade para acontecer.

[...] Mas quem aprendeu em primeiro lugar e soltou pipa foi a minha avó. A minha avó. Ela achou tão interessante aquilo lá que falou: “Mas como é que você faz?” Eu chamei e expliquei como é que fazia: “Mas tem que dar uma corridinha. A senhora corre?” Ela falou: “Ah, com essa saia comprida eu não sei se dá, não!” Lá na roça, a saia delas vinha até lá embaixo, no pé, aquelas saias de algodão, amarradas na cintura com barbante. Era assim naquele tempo. Eu falei: “É desse jeito!” Dei uma corrida. Quando a pipa subiu, eu voltei. Quando eu vi, vinha ela pelejando pra correr atrás de mim. Eu falei: “Ó, vó, tá lá! Agora, a senhora tem que aprumar ela”. Ela quis saber como é que aprumava. “É assim: pega o barbante, vai dando esses arranquinhos, assim”. Ela fez e começou a pegar o jeito. Eu fiquei ensinando uns truques pra ela: “Se a senhora puxar assim pro lado direito, ele lá em cima tomba mais pro lado direito. Se puxar pro lado esquerdo, ele tomba mais pro lado esquerdo” Eu fui ensinando pra ela e ela fez. Depois, na hora de voltar, a certa altura, ela tinha que dar linha. Eu falei pra ela soltar a manivela: “Encosta na barriga, segura aqui e deixa ela rodar sozinha”. Ela fez isso e ficou dando risada com a boca sem nenhum dente. E lá ia o papagaio subindo e ela dando risada com a boca aberta: “Ai, que coisa mais boa! Mas ainda tem mais linha. Olha aqui como é que tem mais linha”, ela falou. “Mas não pode dar tudo não, vó, de jeito nenhum! Porque, lá em cima, o vento é muito forte. Pode até lhe suspender e a senhora vai embora!”. Ela gostou tanto que, quando a minha mãe chegou lá na janela da casinha pra chamar a vó, ela disse: “Não posso ir agora. Tô soltando papagaio. Você devia vir também!” (Fragmento da entrevista com B.)

Outros brinquedos também operam esse efeito de encantamento, mas no caso da

pipa, Rios (2003) faz uma série de considerações que nos permitem pensar este objeto

como um instrumento dedicado aos rituais religiosos. Ao voltar o olhar para o céu, azul ou

cheio de nuvens cinzentas, o homem sempre o teve como motivo de atração e desafio. A

necessidade de elucidar os mistérios da vida tem impelido os homens à fabricação de

deuses e doutrinas religiosas para aplacar um sentimento de pequenez diante de um mundo

extraordinariamente grande, incompreensível e, muitas vezes, fora de seu controle. Por esta

razão, quase todas as mitologias retomam formas de diminuir ou eliminar a distância que

separa céu e terra, deuses e humanos. Trataremos aqui de alguns dos simbolismos que nos

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possibilitam pensar a pipa como um objeto sagrado de culto em culturas arcaicas156.

Verificaremos que a pipa, para além de seu valor lúdico, encerra a capacidade de ser um

deslocador de ação, um operador de realidade do qual ainda se valem todos aqueles que lhe

atribuem um valor de encantamento cujas raízes podem ser verificadas em tempos remotos.

Observaremos, também, que a tentativa de ascender aos céus é uma constante em todas as

religiões a partir da utilização dos mais diversos artifícios, sendo a pipa apenas um deles.

Na religião budista, o “milagre da corda”, também chamado de rope trick pelos

anglosaxões, é tão conhecido na tradição hindu, que se tornou célebre entre os faquires e

prestidigitadores. O ritual é realizado para demonstrar alguns poderes milagrosos com o

objetivo de convencer e converter seguidores para a doutrina. Consiste em criar a ilusão de

uma corda que se eleva muito alto no céu, na qual o mestre faz subir um jovem discípulo

até que desapareça. Após esta elevação, lança uma faca ao ar, cortando os membros do

aspirante em muitos pedaços que caem um após o outro (ELIADE, 1991a).

Segundo Eliade (ibidem), o milagre era muito popular na Índia onde seu registro

aparece nos séculos VII, IX e XIV. Vários relatos descrevem o espetáculo com variações de

cordas para fios, escadas de nós, novelos de linha, mas sempre numa tentativa de ascensão

aos céus. Apesar de típico do faquirismo indiano, é também encontrado na China, nas Ilhas

Neerlandesas, na Irlanda, no México antigo e no folclore irlandês. O autor assinala que, em

diversas regiões européias, encontram-se lendas em que aparecem, juntos ou separados,

dois temas: a) mágicos que cortam seus próprios membros e b) feiticeiros e feiticeiras que

desaparecem no ar por meio de cordões. É sobre o segundo tema que se debruça, neste

capítulo, o nosso interesse, para o estudo sobre as pipas.

Seja por auto-sugestão ou prestidigitação, o milagre da corda tem como roteiro

imaginário uma história de ascensão que, segundo Eliade (ibidem), pode ser entendida se

levarmos em conta símbolos e ritos religiosos arcaicos. Basicamente, essa corda, escada,

fio, cipó ou ponte é aquilo que, no começo dos tempos, servia de ligação entre o Céu e a

Terra, entre o mundo dos deuses e dos homens. Por essa ligação, os deuses desciam a Terra

para reencontrar os seres humanos e estes podiam subir ao Céu, já que não morriam. Os

dois mundos se comunicavam até que, por erro de um ancestral mítico, a corda foi cortada,

156Utilizaremos o termo arcaico no sentido de ancestral e, de maneira nenhuma, o entendemos com a conotação de atrasado.

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a comunicação foi interrompida e a ascensão só pôde ser feita pelas almas, após a morte

dos vivos. Instaurou-se, nesse momento, um movimento de separação entre Céu e Terra,

corpo e alma, cindindo um todo em duas partes. Só aos homens piedosos ou mágicos era

concedido o privilégio de subir aos céus por uma corda, sendo esta considerada, por

excelência, um meio de reencontrar-se com os deuses.

Nas especulações cosmológicas e fisiológicas hindus, as imagens da corda e do fio,

abundantemente utilizadas, têm a função de articular tudo o que é vivo: do Cosmos ao

homem, tudo o que tem existência no tempo, implica numa “articulação”, ou numa

“trama”, sendo a não trama o equivalente à desarticulação, à dispersão, ao não ser. Para

existir, deve-se estar unificado e integrado. A teia de aranha, a trama e a tecedura aparecem

como uma imagem forte para traduzir a possibilidade de unificação através de um centro,

numa situação em que viver equivale a ser tecido, a estar ligado.

Na mitologia grega, encontramos a imagem da “corda de ouro” com a qual Zeus

podia puxar para si todas as coisas e manter os laços que seguram a unidade indestrutível

do universo, assim como as ligações entre o homem e os poderes superiores. Na Austrália,

os medicine-men157 também falam que, ligado ao seu corpo, há um cordão milagroso, uma

corda mágica com a qual afirmam subir ao céu e têm a chance de realizar proezas

maravilhosas. Verifica-se que há, com relação a essa corda mágica, uma mesma articulação

de elementos, na Austrália, na Índia e no folclore medieval europeu: ciência, magia, corda

mágica, ascensão, vôo celeste. Percebem-se, tanto na especulação filosófica hindu como

entre os pensadores gregos, as imagens arcaicas da corda, do fio e da tecedura como ponto

de partida para as teorias cosmológicas e para a descrição da condição humana (ELIADE,

1991a).

A gente descobre que, no fundo, acaba fazendo parte daquele bambu e daquele papel que ficam lá em cima voando. A sensação de soltar pipa é uma coisa que a gente sente, mas a gente não consegue explicar. Por quê? Como é possível estar num extremo da linha e, do outro lado, aquela pipa lá no alto? Eu sentia inveja! Por que a gente não podia trocar de extremo? Eu queria voar, mas estava preso. É uma sensação de leveza e ao mesmo tempo uma sensação de impotência porque a gente fica no chão segurando uma coisa que está voando. É uma liberdade provisória porque, se o tempo acaba, se o vento acaba, a pipa cai. É uma coisa gostosa de sentir e gostosa de viver. (Trecho da entrevista com P.A.)

157 O que teria uma tradução equivalente a “curandeiros”.

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Quanto ao “vôo mágico”, há um vasto conjunto de mitos, ritos e lendas, segundo

Eliade (1957). O autor estabelece uma distinção entre duas grandes categorias de fatos: o

grupo de mitos e lendas que fala das aventuras dos antepassados míticos, daquelas relativas

aos homens-pássaros (ou providos de penas de pássaros) e o grupo de ritos e crenças que

implicam na experiência do vôo ou da ascensão celeste. Nesta segunda categoria, a imagem

do vôo traduz, em termos plásticos, a capacidade de elevar o espírito, de abandonar o

próprio corpo e viajar. Trata-se de uma técnica de êxtase conhecida no fenômeno do

xamanismo158 que é utilizada para fazer a iniciação do aprendiz através de uma “viagem”

que comporta a experiência de “morte” e “ressurreição” simbólicas, tendo este ritual o

objetivo de buscar uma ultrapassagem da condição humana. O autor considera difícil a

localização das origens desse ritual, mas chama a atenção para o seu arcaísmo e

universalidade, já que é encontrado nas mitologias e folclores de um sem número de

lugares. Tal como a imagem da corda, o vôo mágico é solidário de um grupo de mitos

relativos à origem dos humanos numa época em que céu e terra eram um só. O simbolismo

do vôo está próximo do simbolismo das asas: ascensão, abolição do peso, compreensão das

coisas secretas, das verdades profundas, dos poderes da inteligência. A inteligência como a

mais rápida das aves ou as asas significando um atributo daquele que é capaz de

compreender são idéias resgatadas por Eliade (1957) em antigos textos hindus. Constata-se

então que a imagem do vôo e seus simbolismos paralelos têm a função de traduzir um

rompimento das amarras com a experiência cotidiana a partir de um duplo objetivo - de

transcendência e liberdade – “uma mutação ontológica do ser humano” (p. 95), algo que

implica numa mudança de nível, na passagem de um modo de ser a um outro.

Nas antigas lendas da China, onde a pipa teria seu provável nascedouro, há também

o mito de uma época primordial em que céu e terra eram um todo semelhante a um ovo

com uma ligação que permitia idas e vindas de deuses e humanos: os deuses vinham

misturar-se aos humanos e estes subiam ao céu escalando uma montanha, árvore ou escada,

ou, ainda, deixando-se carregar pelas aves. Algumas versões aludem a um caos, outras a

uma imagem paradisíaca desta configuração de mundo. O fato é que, como resultado de

certo acontecimento mítico, houve um corte abrupto desta ligação e a separação se instituiu,

158 Vem da palavra xamã, de origem asiática, que significa esconjurador, mago, exorcista. Trata-se de uma religião de alguns povos asiáticos ou de tribos indígenas norte-americanas, baseada na crença de que os espíritos, bons e maus, são dirigidos pelos xamãs (FERREIRA, 1986).

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desaparecendo árvore, cipó ou montanha. Segundo Eliade (1983), verifica-se em toda a

história da China o que poderíamos chamar de “nostalgia do Paraíso”, ou seja, uma busca

de retorno, através do êxtase, a essa situação primordial de unidade e totalidade.

Uma outra idéia que vem corroborar a importância do simbolismo da corda, do vôo

mágico e da ascensão, no estudo da pipa, é a de que estas imagens exprimem matizes novos

em contextos diferentes. Segundo Eliade (1991a), “as imagens ajudam e até forçam o

homem a pensar, a tornar suas idéias precisas, a descobrir continuamente significações

novas, a aprofundá-las e articulá-las” (p. 203). Para o autor, quando estudamos os

símbolos, não se trata de fazer um trabalho de redução, mas de integração, buscando

descobrir o que permanece constante em fatos aparentemente heterogêneos, procurando os

vários fios que os ligam, assim como as múltiplas versões que os vão revestindo de novas

significações, em contextos particulares.

Seguindo as imagens das cordas e fios, também encontramos, no texto de Eliade

(ibidem), os ventos como cordas cósmicas que mantêm coeso o universo. A ciência secreta

e os poderes mágicos nos dão a faculdade de voar nos ares e subir aos céus. As técnicas

iniciáticas arcaicas do milagre da corda e do vôo mágico teriam a função de assegurar ou

restaurar a comunicação entre o mundo dos deuses e o mundo dos humanos, entre céu e

terra na sua unidade perdida. Incessantemente, o homem buscaria restabelecer esta

comunicação e realizar a sua ascensão, recorrendo aos rituais - ou às tecnologias.

Em épocas remotas destituídas de avanços tecnológicos, em que os ritos e magias

eram as fabricações possíveis aos homens, o papagaio, em sua simplicidade construída de

bambu, papel, fio ou barbante foi um artefato mágico através do qual um reles mortal subia

ao céu levado pelos ventos. Conforme Rios (2003), é provável que o homem tenha efetuado

um movimento para transferir aos objetos voadores alguns de seus anseios de

transcendência. Verifica-se que, em várias épocas da história, são utilizados objetos dotados

de força mágica que auxiliam o homem a realizar o movimento ascensional do vôo: cavalos

alados, pássaros, vassouras, cordas e... pipas! Em vários países, diz o autor, “o ato de

empinar pipa se faz acompanhar de rituais que marcam sua função mágica” (p. 11). Não

está em questão se estas experiências são verdadeiras ou se resultam de sonhos ou fantasias,

mas a força mobilizadora da experiência imaginária como constitutiva do ser humano,

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paralela à experiência diurna das atividades práticas (ELIADE, 1957), assim como seus

efeitos.

Eu sempre tive vontade de ser uma pipa. Bem leve, sem levar nas costas nada que pese (o que é pesado leva a gente pra baixo...) Papel de seda, taquara fina que enverga, mas não quebra, linha forte, um pouquinho de cola e, pronto! Lá está a pipa pronta para voar... As cores e as formas (que são tantas!) a gente escolhe aquelas que o coração está pedindo. Pipa, pra ser boa, tem que se parecer com os nossos desejos. (E eu penso que as pessoas também, para serem boas, têm de ter uma pipa solta dentro delas...) Não é preciso vento forte. Uma brisa mansinha deve chegar para levá-las até lá em cima, perto das nuvens. É por isso que elas têm de ser bem leves. O vento chega, as folhas das árvores tremem, e lá vão elas subindo, pra dentro do vazio do céu... (ALVES, 1986, p.6 a 9)

A idéia de fe(i)tiche postulada por Latour (2001a, 2002a), ao nosso ver, traz-nos a

possibilidade de percebermos humanos e não humanos nessas trocas de propriedades em

que, ao delegarmos papéis às nossas fabricações, ao nelas nos projetarmos, conferimo-lhes

a capacidade de operar mudanças enquanto na condição de deslocadores de ações. É aí que

reside a força dos discursos religiosos que fazem uso, como no discurso das ciências, de

cadeias de imagens que se articulam na tentativa de dar consistência e concretude às

“visões do espírito”159.

Mello (1983) notifica que as pipas ou “papagaios”, como são chamadas no

Amazonas, já apareciam em práticas religiosas malaias, há mais de três mil anos. Pelo fato

de ligar o homem ao céu, nos cerimoniais religiosos, o papagaio assumia a condição de

objeto sagrado que os monges precisavam proteger dos olhares estrangeiros curiosos.

No folclore da Polinésia, conta-se uma lenda sobre a disputa entre dois deuses do

vento, os irmãos Range e Tane, que utilizaram artefatos voadores para medir a sua força.

Tane teve a cauda de sua pipa presa e enroscada aos galhos de uma árvore o que resultou

em sua derrota. Esta lenda, até hoje, é revivida pelo povo da Polinésia: durante a batalha

pela supremacia dos ares, a pipa que voa mais alto é tida como possuída pelo espírito

vitorioso de Range (KENT, 1998).

159 Em texto intitulado “Visões do espírito. Uma introdução à antropologia das ciências e das técnicas” (1985), Latour chama a atenção para a necessidade que têm os humanos de recorrer às imagens para melhor explicar (ou traduzir) as suas fabricações. Seriam as imagens artifícios de entendimento e registro da realidade dos quais se valem os humanos para construir as longas cadeias de mediadores tanto no discurso científico, como no discurso religioso (LATOUR, 2002a).

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Na Malásia, em cerimônias secretas, centenas de pipas feitas de folhas de palmeira

serviam de oferendas para apaziguar os deuses que comandavam os ventos, na intenção de

conter a destrutividade dos tufões que varriam as ilhas. Nesta região, as pipas também

desempenhavam um papel vital para a indústria da pesca, a semelhança do que nos relata

Mello (1983) sobre a pipa pesqueira no litoral de Santa Catarina, como vimos no capítulo

dedicado à pipa como objeto sociotécnico.

Os chineses já soltavam pipas, havia pelos menos 200 anos antes de Cristo: como

oferendas aos deuses, como forma de intimidar o inimigo, ou como meio de atrair

magicamente condições de bem viver. Até hoje, no Oriente, encontramos rituais em torno

do vôo da pipa. Mesmo com a difusão mundial do objeto na condição de um brinquedo, a

pipa continua carregando ilustrações de motivos religiosos e místicos, como atrativos da

felicidade e da sorte, nas ocasiões em que são celebrados nascimentos, comemoradas

vitórias ou como objeto dos rituais de fertilidade. As imagens estampadas nas pipas nos dão

a dimensão de seu simbolismo: imagens de dragão para atrair a prosperidade; de tartaruga

para atrair longa vida; de corujas para atrair sabedoria; outros símbolos para afastar maus

espíritos, trazer esperança, ajudar na pesca, atrair o desenvolvimento dos filhos (VOCE,

2002).

Segundo Mello (1983), na China antiga, o papagaio era o principal elemento nas

cerimônias de celebração do sétimo aniversário do primogênito de cada família. Feito de

palha, era elevado pelo patriarca que o deixava subir até que a linha findasse, momento em

que o soltava, deixando voar sozinho o pássaro mágico que com ele levava todo o mau

agouro que pudesse comprometer a vida da criança. A esta cerimônia, os chineses dão o

nome de Levar Embora o Demônio.

Dentro dos mesmos moldes, no dia 5 de maio de cada ano, em cada lar japonês onde

tenha nascido um menino, realiza-se uma celebração denominada Festival do Menino.

Nesta ocasião, a família faz voar um objeto alado em forma de carpa, acompanhado de

pipas magnificamente pintadas à mão. Esta prática encontra similares na Coréia, lugar onde

se costuma fazer, nas pipas, a inscrição da data de aniversário de toda criança do sexo

masculino que nasce (KENT, 1997).

Kent (ibidem) destaca que, por centenas de anos, em todo dia 9 do nono mês de

cada ano, realiza-se na China o Festival de Subir Mais Alto. Este evento teve suas origens

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no fato de que, certa vez, uma família inteira foi salva da morte por seu amor às pipas.

Conta a lenda que um pai de família sonhou que uma catástrofe se abateria sobre seu lar e,

sem saber o que fazer para evitar a profecia, o homem, de forma sábia e serena, levou sua

mulher e filhos para um lugar tranqüilo no campo onde passariam as suas derradeiras horas

dedicados ao que lhes trazia mais felicidade: o passatempo de soltar pipas. Ao retornar ao

lar, eles descobriram que sua casa havia desabado, destruindo tudo o que lhes pertencia.

Constataram que a ingênua atividade lúdica os havia poupado da morte e, daí por diante,

este ato passou a ser visto como uma forma feliz de passar a mesma data. Nos céus,

papagaios de todas as formas e cores aparecem para repetir esta celebração, concorrendo ao

feito de subir ao máximo, impulsionados pela força do vento. Para atrair a boa sorte dos

participantes, a forma predominante das pipas é a de dragão, nome que até hoje se conserva

na palavra alemã que designa o brinquedo – drachen.

O simbolismo religioso também parece estar presente na palavra francesa que

designa a pipa. A palavra cerf-volant, que nomeia popularmente o lucanus160, tem uma

tradução literal - “cervo voador” - que pareceria absurda. Entretanto, assinala Rios (2003),

verifica-se que o cervo, em tempos pré-históricos, tinha um simbolismo religioso ligado à

criação contínua e recriação mística, devido ao fato de realizar, de tempos em tempos, uma

renovação de seus chifres. Segundo Eliade (1983), o cervo era considerado, além de

antepassado mítico dos celtas e dos germanos, um símbolo de fecundidade, sendo também

a caça preferida da aristocracia guerreira. Era, ainda, usado como animal funerário, uma

espécie de “guia dos mortos”, sendo a sua morte, durante as caçadas, celebrada em

solidariedade à morte trágica das figuras heróicas, entre os povos que ocupavam uma zona

que se estendia desde a China até a Europa ocidental. Atribuir à pipa a imagem de um

cervo voador equivaleria ao movimento de sacralização de um objeto dotado de uma

função ritualística análoga: de elevação, de criação, de contato com o sagrado.

Mas qual a relação entre a pipa dos rituais descritos e as pipas que protagonizam os

eventos que presenciamos? Entendemos que estas conexões só se tornam compreensíveis se

utilizarmos a lógica de um tempo e de um espaço dobrados, idéia que nos remete a um

pensamento que é topológico, não mais euclidiano. Diz Serres (1999), que a topologia é o

160 Nome de um inseto dotado de pequenas antenas a semelhança de chifres. Lucanista, tradução de cervolantista, é uma palavra derivada de lucanus e designa, na França, o equivalente ao que chamamos de pipeiro.

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ramo da matemática que trabalha com as proximidades e os rasgos, enquanto a geometria

trabalha com as distancias bem definidas e estáveis. Como estamos trabalhando com a

lógica Ator-Rede, tentamos operar aproximações e efetuar passagens, o que justifica as

comparações inesperadas entre espaços e tempos não mais lineares. Não estamos mais com

a preocupação de medir e mensurar fenômenos, mas de arriscar o estabelecimento de elos

entre eles. Muitos milhares de quilômetros separam Minas Gerais da China, 4500 anos nos

separam da época em que a primeira pipa se elevou nos céus, mas esta funciona aqui como

o objeto presente em tempos e espaços que estariam muito distantes se utilizássemos uma

linha reta, mas passíveis de estarem ligados se pensarmos num espaço e num tempo

dobrados.

Os festivais de pipas acontecem nos mais variados lugares, além daqueles que

mencionamos. São poucos, mas expressivos, os sites que podemos acessar no Brasil com a

temática das pipas se comparados ao número de sites internacionais abordando o assunto,

mas estes já nos dão uma idéia da mobilização que podemos encontrar em outros países

com relação aos eventos em torno das pipas161, sejam festivais, revoadas ou projetos

pedagógicos.

A pipa protagonizando eventos:

Os festivais da CEMIG

Deixaremos registradas aqui as nossas impressões sobre alguns eventos

protagonizados pela pipa a que tivemos acesso, como uma mostra da capacidade deste

brinquedo para operar efeitos de encantamento e aglutinação.

Um desses episódios foi o chamado “Festival do Papagaio”, que tem lugar na cidade

de Belo Horizonte. Como já tivemos a oportunidade de comentar, a CEMIG (Companhia

Energética de Minas Gerais) tem realizado um trabalho em torno da cultura do papagaio162.

161 Para maiores informações sobre pipas no Brasil, consultar www.pipas.com.br da equipe do engenheiro aeronáutico Silvio Voce; www.eaqui.com.br/pipamodelismo do engenheiro mecânico e de segurança do trabalho Ken Yamazato; www.zecadaspipas.hpg.com.br do pipeiro carioca Zeca das Pipas; www.portaldaspipas.com.br; www.pipaskitesecia.com.br; www.spinne.com.br; 162 Papagaio tem sido o termo utilizado em Belo Horizonte, apesar de pipa ser mais corrente na região de Minas que estamos investigando. Papagaio e pipa, entre outros termos, designam o nosso objeto em questão.

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Esta ação da CEMIG tem o objetivo de diminuir a porcentagem de acidentes que têm como

causa a não atenção às medidas de segurança durante a brincadeira de pipa. Verificou-se

que a brincadeira de pipa promovia tal envolvimento das pessoas, no momento em que a

praticavam, que estas se descuidavam das normas de segurança necessárias à prevenção de

acidentes. Foi desta forma que a CEMIG constatou que o maior índice de acidentes com a

rede elétrica tinha como causa, em alguns períodos do ano, a brincadeira com papagaios:

pipas enroscadas na rede elétrica, atropelamentos, quedas de lajes, quedas em buracos

fundos e motoqueiros cortados com o cerol das linhas foram alguns dos acidentes mais

comuns verificados durante a temporada de pipas. Ao invés de promover campanhas cujo

objetivo seria a extinção do brinquedo e da brincadeira, como já havia sido tentado

inocuamente, em outras épocas e lugares163, a CEMIG fez a opção de ter a pipa como uma

aliada nas campanhas educativas sobre as normas de segurança envolvendo as redes de

distribuição de energia, associando-se ainda a uma preocupação com a preservação

ambiental. O referido Festival do Papagaio tem acontecido ao longo dos últimos 24 anos,

mobilizando cerca de vinte mil pessoas que chegam ao Parque das Mangabeiras, movidas

pelo desejo de empinar papagaios, encontrar com velhos amigos, ensinar e aprender

técnicas de empinagem, passar adiante a amigos, filhos, netos, sobrinhos, uma

aprendizagem que provavelmente se teceu de maneira informal, por pura diversão.

Foi com o intuito de observar este evento que comparecemos ao festival, no ano de

2004. Ao fazer a aproximação do local, já ia se insinuando toda uma série de vendedores

que exibiam uma enorme quantidade de pipas penduradas em longos e coloridos varais,

estendidos nas ruas e avenidas que davam acesso ao bairro164 em que se situa o parque165.

Há uma grande praça, a Praça do Papa, que servia de preâmbulo daquilo que aconteceria

adiante. Foi primeiramente nesta praça que encontramos uma amostra do que se poderia ver

Apesar de sofrer algumas modificações no seu formato e, por conta destas, ter nomes variados em cada região, o brinquedo é reconhecido em sua série paradigmática como o mesmo objeto. Durante todo o trabalho, usamos de forma indistinta uma ou outra terminologia. 163 Thiago de Mello (1983) comenta, em seu livro, a caça às pipas empreendida por um chefe de polícia em Manaus na época de sua adolescência que, segundo o poeta, “era uma pessoa grande que, em menino, tinha sido ruim de papagaio, ruim de bola e, pior de tudo, ruim de infância”(p. 41). No Rio de Janeiro, em 1958, uma campanha parecida foi deflagrada pela LIGHT, através da imprensa, despertando a reação negativa de outro poeta, Carlos Drummond de Andrade. 164O bairro das Mangabeiras, em Belo Horizonte, é um lugar onde moram pessoas de alto poder aquisitivo. 165O Parque das Mangabeiras é área de proteção ambiental e tem sua entrada ao final de uma avenida do bairro das Mangabeiras que, no dia do evento, se encontrava completamente engarrafada. Tivemos que estacionar o carro e seguir a pé.

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em seguida, ao penetrar na área de proteção ambiental. Ao elevar o olhar para cima, o que

se via era comparável a um céu pontilhado de estrelas multicoloridas que se moviam sem

cessar numa cadência quase musical. Em baixo, linhas e carretéis se confundiam entre os

mais variados grupos.

Famílias inteiras e grupos de pipeiros organizados costumam comparecer a este

evento de maneira tão fiel que a CEMIG nunca precisou de grande divulgação para que o

festival acontecesse nesses 24 anos, em data já conhecida e esperada166, de forma

semelhante a outros “festivais do papagaio”167 de que temos notícias. O Festival do

Papagaio de Belo Horizonte conta com uma estrutura simples, eficiente e bem montada, por

parte da CEMIG, repetindo uma receita que faz sucesso a cada ano: em 2004, o concurso168

contou com grupos de street dance, funk, banda de música, uma grande tenda colorida

estrategicamente colocada para fazer fachada à área de soltar as pipas, um palhaço devoto

ao festival que faz a sua animação em grande estilo, desde 1980, juízes, comissão

organizadora, segurança oferecida pela polícia e, claro, milhares de pessoas com suas pipas.

Era um dia para o encontro motivado pela pipa cuja força aglutinadora nem sempre pode

ser encontrada em outros objetos. Tivemos a oportunidade de flagrar pipeiros mais velhos

com seus antigos carretéis de madeira, mãe e filha com pipa em forma de “menina

superpoderosa”, muitas duplas de pais e filhos, por vezes acompanhados de cachorros,

famílias reunidas que se divertiam num domingo de sol e céu claro. Os concorrentes

disputavam, nas categorias beleza e originalidade, a prêmios que variavam de R$ 250,00 a

R$ 400,00, tentando fazer jus a um tema, considerado difícil por uma das organizadoras,

que era “Com segurança não se brinca”169. Nestes moldes, ou em formato semelhante,

temos notícia de que festivais ou torneios em torno deste brinquedo também acontecem em

outros lugares do Brasil. Trata-se de um fenômeno verificável em muitas partes do mundo

que tem sua tradução local em termos das formas construtivas, das designações atribuídas

ao objeto, das regras utilizadas durante a brincadeira, do vocabulário específico de cada

grupo. O fato a ressaltar é que o papagaio - ou a pipa - proporciona uma atividade lúdica 166 O Festival do Papagaio promovido pela CEMIG ocorre sempre no primeiro domingo do mês de agosto. 167Ver no site www.zecadaspipas.hpgvip.ig.com.br a quantidade de eventos envolvendo as pipas que acontecem com regularidade em vários pontos do planeta. 168As pipas candidatas não podem ser de plástico, nem seus fios podem ter cerol, pois é contra as normas de segurança e, portanto, contra o regulamento. 169“No ano passado, o tema Água doce foi mais fácil de contemplar e as pipas ficaram mais bonitas”, diz uma das coordenadoras do evento.

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que afeta uma quantidade surpreendente de pessoas170, independentemente da idade, da

condição social e da nacionalidade. Foi, provavelmente, o primeiro momento em que

tivemos clareza das proporções de público que a pipa era capaz de arregimentar.

Comparecemos a outros festivais patrocinados pela CEMIG: o Festival do Pipagaio171, em

setembro de 2005, na cidade de Tiradentes e dois em São João del Rei, em julho de 2005 e

julho de 2006, os três executados de forma mais doméstica, mobilizando assim, públicos

bem menos expressivos pela sua fraca divulgação e sem a tradição construída pelo

primeiro, ao longo destes 16 anos.

Uma exposição de pipas no Museu.

Este evento foi em parte sugerido/insinuado por parte daqueles a quem seguíamos

durante a pesquisa feita em campo. Sendo objetos com os quais se relacionavam de maneira

intensa, as pipas mostradas no Museu foram elementos atrativos das atenções deste e de

outros grupos, especialmente constituídos de escolares e educadores. A exposição foi,

acima de tudo, uma forma de tentar corresponder aos interesses e expectativas dos parceiros

e aliados que tivemos durante a pesquisa. Abaixo, um trecho do nosso diário de campo.

Neste mês de maio, foi promovida uma Exposição de Pipas pela Brinquedoteca da UFSJ em parceria com o Museu Regional de SJDR como parte da estratégia de atrair o jovem visitante para um ambiente pouco visitado pelas gerações mais recentes e, especialmente, pelas camadas populares. Além disso, havia o desejo de compartilhar os dados da pesquisa com a comunidade, o interesse da brinquedoteca de divulgar seus trabalhos e o da CEMIG em patrocinar mais um evento em que pudesse divulgar suas cartilhas sobre a necessidade de seguir as normas de segurança para evitar acidentes com as pipas. Em exposição, havia pipas enormes, coloridas, com formatos pouco usuais: em forma de caixa, de estrela, de carambola, de diamante, de grandes pássaros, de aviões, reproduzindo a Igreja do Bichinho.... Um artista emprestou um enorme banner com pipas estilizadas que penduramos nos balcões do prédio do Museu. Tinha uma pipa chinesa em forma de dragão, pendurada bem na porta de entrada. Outra, com as cores da bandeira, atravessando “os céus” da sala de exposição comemorando os tempos de Copa do Mundo. Além das pipas, os biombos serviam de suporte para a parte da pesquisa que dava conta de informações da origem da pipa, da chegada da pipa ao Brasil, dos deslocamentos feitos pelos continentes, seguindo vários tipos de rota, da utilização da pipa nos vários inventos

170É estimada uma quantidade de 20 mil pessoas para o público que comparece fiel ao Festival de Papagaios em Belo Horizonte. 171 “Pipagaio” foi o termo inventado para designar, ao mesmo tempo, pipa e papagaio.

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científicos; havia quadros de artistas locais e reproduções de imagens pesquisadas na internet em sites nacionais e estrangeiros ilustrando festivais e outras obras de arte que tinham a imagem da pipa. As pessoas mais velhas se demoravam mais lendo os fragmentos literários que falavam das pipas, enquanto os mais jovens ficavam mais curiosos para saber se as pipas grandes realmente podiam subir. Tinha também um fotoclip com as fotos dos festivais patrocinados pela CEMIG a que eu tinha comparecido e também com as quase 40 obras do Portinati que tinham a pipa ou a brincadeira de pipas como motivo. Bateu o recorde de visitações em relação às outras exposições. Os meninos perguntavam muito e, sempre que eu podia, estava lá para conversar com eles e ouvir seus comentários e histórias. Os adultos também tiveram um comparecimento expressivo: pais acompanhando seus filhos, avós acompanhando seus netos, pares de amigos relembrando seus tempos de menino, grupos de meninos interessados. Numa das conversas de que participei, dois conhecidos comentavam a expressão “dar carioca” que era algo equivalente do termo “tentear”. Só que, no Rio, diziam eles, esse movimento de tentar por a pipa no alto se dava mais no sentido vertical, pela falta de espaço. Outros termos foram acrescentados ao nosso “Pequeno Dicionário dos Soltadores de Pipas” que também fazia parte das atividades interativas que estavam na exposição. O mural de contribuições ficou repleto de poemas, pequenas histórias, desenhos, pequenas pipas artesanais e até um bordado em ponto de cruz de uma menininha soltando pipa na praia, feito por uma das vovós que compareceram ao evento. (D.C.)

O período da exposição, previsto para uma semana, estendeu-se por mais três outras

e cumpriu com o objetivo de atrair público jovem para os espaços do Museu Regional, além

de propiciar o encontro de vários outros segmentos: pipas comuns com pipas exóticas;

textos, objetos, sons e imagens; construtores e empinadores; lembranças do passado com

aventuras do presente; professores e alunos; pesquisadora e parceiros.

A pipa operando efeitos.

Na trilha dos efeitos operados pelas pipas, pudemos flagrar, nos testemunhos dos

nossos entrevistados e mesmo na literatura, aqueles que colocam este objeto no estatuto de

um poderoso deslocador de ações, mobilizando:

[...] lembranças do passado, ...

Aí, nós chamamos os avós pra eles ajudarem na confecção e para soltar. Só que aí, só eles (referindo-se aos avós) brincaram, ‘tadinhos’. Os meninos não gostaram e falaram pra não chamar mais não. (risos). Era só eles que faziam, só eles que falavam, o chá ficou só

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pra eles. Então os meninos não quiseram que chamasse de novo não. Porque envolve! Teve um senhor que, quando começou a contar suas histórias com as pipas, [...] ele chorava com as lembranças. Era um apaixonado. Era tão apaixonado com as pipas quanto a gente. (Trecho da entrevista com M.C.)

[...] emoções vividas durante um cruzo diante da incerteza de ainda poder continuar com o

brinquedo, ...

Falando da emoção, uma coisa eu também percebi: todas as vezes que eu ia cruzar, o meu sangue e minha adrenalina disparavam. Eu não sei. Acho que é a sensação de risco que você corre. Até há uns dois ou três anos, quando eu ia cruzar, até o momento de uma linha tocar na outra, sem saber se eu ia voar ou ia cortar, a adrenalina e a pulsação iam lá em cima. Quando eu sentia que tinha voado, a adrenalina caia. Quando eu sentia que tinha cortado a outra, parece que a adrenalina durava mais um pouco. Ao mesmo tempo, acontecia que, quando eu olhava pra cara do outro menino, era uma cara de decepção. Quando a gente cortava, era uma cara de alegria. A gente chamava o outro de Pangaré, de mais isso e mais aquilo. Mas quando a gente voa, a cara da gente vai lá em baixo. Quando a gente vê aquela linha caindo e a meninada tentando pegar a linha, cada um tentando tirar um pedaço da linha da gente... Você não é mais dono. É, como se diz, uma posse passageira. Porque a pipa está lá no alto. Você pode cortar e você pode voar. Parece até uma nuvem passageira. E o que mais me deixava fascinado nessa história toda é que a pipa está lá em cima, você não sabe se você vai conseguir guardar ela de novo. Quanto mais você fica com ela no alto, você corta um, você corta dois, você não sabe quantos você vai cortar, ou se você é o próximo. É como se fosse uma roleta russa. Dificilmente alguém cortava aí uns oito ou nove e ainda conseguia ficar com a sua pipa. É muito difícil porque a linha começa a ficar puída, o outro cerol também já bateu na sua linha. Mais hora menos hora, sua pipa vai embora. A não ser que quando você soltar sua pipa não tenha nenhuma outra pra cortar. Aí, dá pra recolher ela de volta. Na maioria das vezes, quem coloca a pipa no alto com cerol pra cortar, num lugar onde tem outras pipas, não consegue mais recolher. Aí, você fala: Por que? Porque uma hora você vai. É uma probabilidade. Você ganhar todas na pipa é muito difícil. Porque sempre vai ter alguém que passou cerol mais recentemente, às vezes seu cerol já gastou um pouco, o melhor lugar da linha deles pode bater num lugar ruim da sua linha. Então você fica pensando: “Será que eu vou agora? Será que eu vou cortar?” (Trecho da entrevista de P.A.) Não haverá mais profunda sensação de desamparo do que a desse momento doloroso em que um adversário, de cerol ou de arte mais aguçada, corta a tua linha – e lá se vai o teu papagaio, sozinho e perdido, levado pelo vento, vai cair lá longe, muitas vezes se afoga nas águas do rio. De repente abre-se um vácuo dentro de ti, a linha inerte e humilhada na tua mão: é como se tivesse decepado um pedaço da tua alma. (MELLO, 1983, p. 73) [...] diante da expectativa da morte, ...

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Até mesmo na doença dele, quando ele imaginou que o caso dele pudesse ser cirúrgico com a expectativa de passar dois meses no hospital, ele já começou a providenciar material (vareta e papel) pra ter o que fazer dentro do hospital. Com menos intensidade, mas fazia as pipas. Não deixou de fazer nada. Fez a pipa até quando deu. Não desistiu de nada. Na verdade, ele não tinha medo de morrer. Ele não tinha medo nenhum. Ele só achava que era cedo demais. Ela achava que podia fazer muito mais coisas, ver os filhos dele crescerem. F – Você acha que as pipas podem ter ajudado nesse processo? M – Bastante! Se você está numa expectativa do que você não sabe o que vai acontecer, você apenas pressupõe, pelos casos que já existem, que vai acontecer de uma certa maneira, se você tiver muito tempo livre pra pensar, você acelera aquele processo. Então as pipas ajudaram muito a consumir o tempo dele em uma atividade útil. (Trecho da entrevista com Ma)

[...] ou tendo a pipa como uma forma de terapia, como um efeito relaxante e apaziguador...

Como eu já disse, por causa da pipa, a gente se distrai. Quando você chega em casa, as vezes você chega cansado procurando um relaxamento...Se você vem de soltar pipa, você já chega em casa relaxado porque você não estava pensando em nada. Aí, você esquece. É como se fosse uma terapia pra uma pessoa. Eu ouvi numa reportagem que agora tem uma terapia nos asilos em que eles usam os cachorros pra poder distrair os idosos porque eles são largados nos asilos sem os familiares procurarem eles. Então quem dá o carinho que eles precisam são os cachorros. A pipa seria mais ou menos isso. É tipo um abastecimento, entendeu? Um abastecimento a mais. Pipa seria isso. (Trecho da entrevista com Fo.) [...] como uma forma de agradecer aos céus,

Eu acho que tinha mais de cinqüenta criaturas em volta de mim, tinha até criança de colo, espiando eu empinar a estrela. Meu brinquedo estava preso no firmamento, grudado no ar. Mandei subir pela linha retesada um telegrama, que é como a gente chama uma rodela de papel crepom na direção do estirante. Foi muito divertido. As pessoas perguntavam como eu tivera a idéia de fazer aquela estrela. Então eu contava que estava alegre por causa de meu pai. Só isso. Ainda hoje, quem conhece minha cidade se lembra com encanto da minha estrela matutina, e há quem diga que, quando ela boiou no azul, todos se sentiram tocados pela alegria de um garoto empinador de estrelas. (DIAFÉRIA, 1984, p. 33)

[...] de retomar o gosto pela vida...

Mestre Antônio, sentado do lado de fora da cabana, terminava de fazer, com todo o capricho, a rabiola da pipa. Assobiava uma velha canção do mar... À medida que ia dando forma de estrela ao brinquedo, ia se sentindo mais orgulhoso. Parecia que Mestre Antônio tinha um objeto de arte nas mãos... Sentia-se, também, mais jovem! Deixou até escapar uma exclamação: - Ah! Que linda assim, a pipa... tão cheia de cores!

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Mas, na verdade, era a vida de Mestre Antônio que voltava a ser colorida... Resolveu experimentá-la. Pouco a pouco foi soltando linha e a pipa voava e dançava no céu como se quisesse se exibir para seu criador! Olhando para o alto, o coração de Mestre Antônio também voava no azul do céu! (ALVES, 1992, cap. XIII)

Tanto como objeto sociotécnico, elo de uma imensa cadeia de mediadores que

compõem a história da conquista aeroespacial, como na condição de objeto sagrado ao qual

devotamos um culto que nos reintegra a um universo não mais cindido entre céu e terra,

podemos entender a pipa como um fe(i)tiche.

Na lógica de Latour (2001a), fetichismo seria delegar ações aos objetos, esquecendo

o que há de humano neles. Num outro pólo, o antifetichismo seria a acusação de que os

objetos não são nada, mas apenas uma projeção de humanos. Para ultrapassar essa

dicotomia, poderíamos simplesmente admitir que o fe(i)tiche ou o fatiche é, ao mesmo

tempo, a inclusão de humanos e não humanos na participação de um evento - mundo

mental dos humanos e mundo físico das coisas - fazendo emergir uma fabricação. A

mediação, antes exclusivamente humana, passa a ser estendida a outros atores que

participam da ação, dadas as oportunidades que as circunstâncias oferecem. Nesta lógica, já

não seríamos conduzidos a reducionismos e poderíamos levar em conta uma série de

actantes, antes obscurecidos nas redes desordenadas e controvertidas que permitiam o

aparecimento de um fenômeno.

Desta forma, entendemos a pipa, o nosso objeto, como um fe(i)tiche privilegiado,

inserido nas cadeias de mediadores de dois discursos: o da religião e o da ciência. Na

cadeia de mediadores da ciência, como vimos no capítulo anterior, prestou-se a fazer a

mediação técnica para o aparecimento de uma longa série de objetos que permitiram a

conquista do espaço aéreo pelo homem. Na cadeia de mediadores da religião, evoca uma

ligação perdida entre o céu e a terra que torna mágico o movimento de sua ascensão,

produzindo não só efeitos de encantamento, mas outros tantos que funcionam como

verdadeiros deslocadores de ações.

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GALERIA DE IMAGENS CAPÍTULO VIII

Festival de pipas em Nagasaki,Japão Festival de Papagaios CEMIG BH 2004 (STREETER, 1974)

Festival do Pipagaio Tiradentes, 2005 Festival de pipas São João del Rei ,2006

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É PRECISO COLOCAR UM PONTO FINAL.

Quando realizamos o projeto deste trabalho, optamos por utilizar, como metáfora, a

figura de um pássaro para ilustrar os movimentos que, então, tentávamos empreender na

busca pela delimitação do nosso objeto de pesquisa. Para nós, estes movimentos estavam

ocorrendo à semelhança de pequenas viagens, vôos para aqui e para acolá, visões

panorâmicas demais, céus ora nublados, ora ensolarados, descidas para verificação do

terreno, tentativas de aterrissagem, retorno ao ar, busca por uma bússola que orientasse o

nosso norte.

Os pássaros, animais dotados de asas, trazem, em sua espécie, o primitivo potencial

para alçar vôo, para planar nos ares e para, intuitivamente, sentir os indícios que a natureza

lhes dá quando realizam suas manobras. Foram elementos de quem os homens sempre

invejaram a capacidade de subir aos céus e em quem se inspiraram para a construção de

seus objetos voadores. As pipas, os balões e todos os seus sucessores tiveram os pássaros

como primeiros modelos, sendo através de sua observação que se tornou possível a

construção de um conhecimento sobre a aerodinâmica. Durante a elaboração desta tese,

precisamos viver, como os pássaros, a aventura da aprendizagem do vôo, o que implicou

para nós, a necessidade de rompermos com as amarras, de ficarmos mais leves para buscar

a desejada passagem de um nível a outro, de um modo de ser a outro.

O seguimento da pipa nos proporcionou uma rara oportunidade de participar de

eventos a céu aberto em que uma enorme quantidade de actantes concorria para a produção

de efeitos absolutamente inesperados. Para além das incertezas de um Estudo Ator-Rede

que ora podem emergir dos atores e das ações investigadas, ora podem irromper das

limitações do próprio pesquisador, a pipa e as ações que se desenrolam ao seu redor são,

por excelência, um ninho de incertezas, pois nunca sabemos exatamente o que vai

acontecer. Poderíamos com tranqüilidade utilizar a fala de um dos meninos que, na caça de

uma pipa avoada, declarou “quebrar mato no peito” para conseguir seu intento. Realizar um

Estudo Ator-Rede foi algo desse gênero, exatamente o contrário de transitar por uma via

pavimentada e sinalizada.

Propusemo-nos a esboçar uma psicologia social do objeto, ou seja, incluir os objetos

no campo de nossas investigações fazendo girar os humanos em torno deles e não o

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inverso. Quando falamos dos humanos, eles se apresentaram gravitando na órbita do objeto

escolhido, através das relações estabelecidas com elementos heterogêneos, das destrezas

eliciadas nestas interações, das ações multiplicadas, de tudo o que este objeto suscitou nas

maneiras de ser e estar num mundo repleto de objetos.

Na tentativa de realizar um Estudo Ator-Rede para um brinquedo como a pipa,

buscamos seguir o seu movimento através das redes que lhe deram sustentação ao longo

dos tempos e lugares por onde se deu seu deslocamento e sua conseqüente tradução.

Pudemos flagrar o quanto a história dos homens está imbricada com a história deste objeto

que até hoje resiste assumindo traduções que lhe permitem continuar a existir em redes

muito diferentes daquelas que a sustentavam no passado. O que mudou nessas redes? Como

se operou a mudança? O que pudemos aprender com as pipas, com as ações tecidas em

torno delas, com os efeitos por ela deflagrados? O que pôde (ou não) ganhar uma psicologia

social, aqui colocada em letras minúsculas, pois não tem a pretensão de ser nem única nem

definitiva? Poderemos conviver com tantas perguntas? Sobreviveremos a tantas incertezas?

Seria tão mais confortável dar respostas bem medidas por metodologias exaustivamente

esquadrinhadas e fazer de conta – pois fazendo de conta também se brinca – ter encontrado

uma ou duas verdades.

É provável que decepcionemos alguns de nossos interlocutores por não

apresentarmos resultados e conclusões. Tentar encontrar um sentido de ordem, ao invés de

decidir como resolver as controvérsias foi mais a tônica do nosso trabalho. Na verdade, no

seguimento das pipas, utilizando a imagem de Latour e tentando ser fiéis ao que se propõe

um Estudo Ator-Rede, deparamo-nos com aquele “enxame” que, provocado por uma

criança travessa, fez voar abelhas para tudo quanto é lado. Assim, assumimos ter podido

seguir apenas algumas delas: foram aquelas “abelhas” em que a teoria pôde iluminar o

campo e vice-versa. Já não sabemos, portanto, se a pipa foi pretexto para estudar a TAR e

as idéias de Bruno Latour, ou se estas foram a chave de acesso para o estudo da pipa.

Arendt (2006)172 pondera, inspirado em pragmatistas como James, que os resultados

de uma pesquisa não podem ser fechados. Se, para o conhecimento acadêmico tradicional a

verdade era a verificação de algo que aconteceu, na abordagem que estamos utilizando todo

o trabalho de verificação de uma idéia se dá pela abertura de um processo que coloca as

172 Em comunicação pessoal.

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“verdades” à prova, devendo nossas escolhas servir como um instrumento de criação para a

nossa ação e nosso pensamento. Por isso devemos arriscar como pessoas e como

pesquisadores, como se arriscam os pipeiros no “jogo” de soltar pipas. Quando colocamos

uma pipa no ar, nunca temos certeza de que podemos recolhê-la outra vez. Como nos falou

um de nossos entrevistados e tomamos como uma das preciosas lições aprendidas, a nossa

posse sobre o brinquedo é fugaz, mas o que importa é poder colocá-lo no alto: perscrutamos

o terreno, a direção dos ventos e a destreza dos adversários; empreendemos estratégias,

podendo ganhar ou perder num cruzo; aprendemos a controlar as explosões de alegria,

raiva, frustração; realizamos de tudo um pouco para um melhor conhecimento do que

estamos nos propondo a fazer. Tornamo-nos diferenciados e não seremos mais os mesmos

depois do “jogo”.

Foi este espírito lúdico que nos proporcionou o entendimento de que ser simétrico

não é estar neutro, assim como a simetria não tem nada a ver com ausência de poder. Há

muito poder em jogo, no desenrolar de um jogo. A diferença é que ele - o poder - não pode

e não deve ficar impunemente concentrado nas mesmas mãos: ele tem que cumprir um

esquema de revezamento, deve haver uma alternância de mãos pelas quais passa, da mesma

forma como uma bola circula numa partida de futebol, como “avoa” uma pipa num

esquema de “posse fugaz”. Se houver a retenção de uma bola em jogo, ou se alguém jogá-la

para fora do campo, o jogo pára. Se todas as pipas ficarem com um só brincante, não haverá

com quem cruzar e a brincadeira ficará limitada.

Apesar de sua simples e engenhosa construção e de a reconhecermos com todo o

encantamento que provoca, a pipa mudou, como não poderia deixar de sê-lo. Não é mais a

pipa de seda dos mandarins e religiosos, colocada no alto em tom cerimonial. Nem o objeto

que serviu como sinalizador de muitas mensagens durante as guerras, da China antiga até as

travadas no século passado. Também não é mais aquela que permitiu aos cientistas a

elevação de termômetros para a medição de temperaturas a grandes altitudes, ou que

compôs o primeiro protótipo de avião inventado pelo homem. Não sabemos se a pipa

pescadora ainda é utilizada nas praticas de sobrevivência dos habitantes das ilhas do

Pacífico ou mesmo no litoral de Santa Catarina. Sabemos, entretanto, a práticade soltar

pipas, antes restrita a homens adultos, nas suas atividades diárias e nas disputas com a linha

encerada, pode ser verificada hoje em todas as idades e classes sociais. Com o advento do

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cerol, a brincadeira também mudou: de um passatempo meramente contemplativo, a pipa

voltou a inspirar estratégias guerreiras. O cerol, que antes era “coisa de gente grande”,

tornou-se perigosamente difundido entre brincantes mais jovens e seus efeitos, na produção

de acidentes, especialmente com a rede elétrica, movem campanhas acirradas por parte das

companhias de energia. Os festivais de pipas para divulgar as normas de segurança

passaram a ter lugar em grandes parques ou áreas para a prática do esporte ao ar livre. Há

novos esportes, como o kite surfing e o kite buggy, usando a pipa como propulsora. Foi

assim que a pipa passou a se ligar a movimentos de preservação ambiental, atraindo um

público fiel. Hoje, podemos vê-la ainda como ícone caro de uma plasticidade singela que

continua inspirando escritores, poetas, artistas plásticos, músicos, anúncios televisivos.

Saltando de rede em rede, com a mudança dos coletivos que gravitaram em torno dela, a

pipa sobrevive e arrebata ainda muitos adeptos. Talvez porque, além de ser um

divertimento ultra barato, ela envolve uma série de circunstâncias que fazem interagir

muitos elementos, humanos e não humanos, numa rede bem urdida por fios visíveis e

invisíveis: as pessoas estão articuladas quando soltam pipas, coisas acontecem, aventuras se

tecem, o mundo fica mais interessante.

As pipas mudaram ao longo do tempo. Os nossos parceiros de pesquisa também.

Em nossa cidade, alguns deles pensam em organizar uma associação de pipeiros com a

ajuda da professora que tem desenvolvido seu trabalho pedagógico, nas aulas de educação

física, em torno da pipa. O Museu Regional de São João del Rei jamais será o mesmo

depois da desejada invasão do jovem visitante à exposição de pipas. Há planos para tornar

permanente, no calendário de eventos do mês de julho, o festival de pipas de São João del

Rei com a parceria da CEMIG. Os pipeiros do morro do São Caetano já não vêem a pipa

como uma atividade marginal para pequenos marginais. Num momento em que se discute o

quanto uma expressiva parcela das crianças deste país está sendo alijada do seu direito de

brincar, revertendo o dinamismo natural das suas infâncias para jogos verdadeiramente

mortais, percebemos o quanto lhes faz falta o sentimento de que podem ser parte de alguma

coisa que valha a pena. No caso dos meninos que seguimos, observamos que, antes na

condição de arruaceiros, estes puderam se ver como interessantes, como “alguém que

contava”. Não tinham idéia de que a ingênua pipa de seus infindáveis “cruzos” tivesse

tantas histórias. Passaram a conhecer melhor o seu brinquedo, a valorizá-lo mais como uma

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prática lúdica legítima, complexa, mais bem acolhida agora, uma vez que foi assunto de

tanto interesse.

Até os passarinhos mudaram neste seu convívio com a pipa, para além do

compartilhamento do mesmo espaço aéreo. Os ninhos de passarinhos que temos

encontrado, aqui no morro do São Caetano, além de palha, folhas e pequenos gravetos,

passaram a ser construídos também com as fitinhas das rabiolas que enfeitaram e deram

equilíbrio às pipas que subiram aos céus, nas últimas temporadas.

A pesquisadora também mudou. Assumimos uma forma de pesquisar e de escrever

que não está mais restrita ao intelecto. Deixamos-nos afetar de corpo inteiro. Depois deste

processo, já não olhamos para o céu com ingenuidade: nosso olhar ficou arguto para

discernir objetos voadores. Já não sentimos o movimento do ar com indiferença: estamos

sempre avaliando sua direção e sua intensidade como se houvesse, dentro de nós, uma

“biruta” imaginária para informar nossas pipas e nossos pipeiros se o vento está soprando a

nosso favor, ou melhor, contra, pois pipa precisa fazer resistência ao vento para poder voar.

Aquela alegria criadora de que fala o poeta amazonense Thiago de Mello sempre nos

invade quando vemos uma pipa no ar. Os caminhos percorridos durante a pesquisa estarão

repletos de lembranças: o campinho verde do morro da caixa d’água, as ruas empoeiradas

ou enlameadas, os cavalos e as vacas soltas no pasto, os cachorros vira-latas que nos

acompanhavam, os carrapatos que nos enlouqueciam. Isto sem falar na gente miúda e

buliçosa que nos cumprimenta na rua, ou que vem saciar a sede, pedindo água na porta de

nossa casa. Devemos voltar ao campo, mas sem o bloco de notas. Será preciso empunhar

uma pipa, vivenciar com freqüência o fracasso inevitável pela nossa imperícia, usar o

objeto como pretexto para realizar aprendizados que até poderiam ocorrer sem ele; mas

principalmente, continuar correndo riscos.

Serres nos diz que não há aprendizado sem riscos. Para ele, a aprendizagem é esse

lugar mestiço ao qual se chega quando estamos em mudança. Esta travessia exige que

abandonemos o ninho, que contrariemos o que pensávamos saber antes, que aceitemos o

estranho como parte de nós. Trata-se de uma viagem em que nos abrimos à possibilidade de

todos os sentidos. Brincar e aprender fazem parte dessa cadeia de processos que nos

impelem a abandonar as referências, fazer travessias – e travessuras. É com Serres que nos

propomos a colocar um ponto final neste trabalho.

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De fato, nada aprendi sem que tenha partido, nem ensinei ninguém sem convidá-lo a deixar o ninho. Partir exige um dilaceramento que arranca uma parte do corpo à parte que permanece aderente à margem do nascimento, à vizinhança do parentesco, à casa e à aldeia dos usuários, à cultura da língua, à rigidez dos hábitos. Quem não se mexe, nada aprende. Sim, parte, divide-te em partes. Teus semelhantes talvez te condenem como um irmão desgarrado. Eras único e referenciado. Tornar-te-ás vários, às vezes incoerente com o universo que, no início, explodiu, diz-se, com enorme estrondo. Parte, e tudo então começa, pelo menos a tua explosão em mundos à parte. Tudo começa por este nada. (Serres, 1993, p. 14/15)

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (UERJ)

CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES

INSTITUTO DE PSICOLOGIA

DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA SOCIAL E INSTITUCIONAL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL (PPGPS)

LINHA DE PESQUISA: HISTÓRIA, IMAGINÁRIO SOCIAL E CULTURA.

TESE DE DOUTORADO

(Anexos)

VOANDO COM A PIPA: ESBOÇO PARA UMA PSICOLOGIA SOCIAL DO

BRINQUEDO À LUZ DAS IDÉIAS DE BRUNO LATOUR

MARIA DE FATIMA ARANHA DE QUEIROZ E MELO

ORIENTADOR: PROF. DR. RONALD JOÃO JACQUES ARENDT

Rio de Janeiro/ São João Del Rei, 2006

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SUMÁRIO

Anexo 1 Pequeno dicionário dos soltadores de pipas no morro do São Caetano em São João del Rei.

263

Anexo 2 A pipa sob o olhar da Psicologia Social: narrativas de um diário de campo.

268

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Pequeno Dicionário dos soltadores de pipas no morro do São Caetano em

São João del Rei

Afinar, afiar o bambu = tornar as talas de bambu finas o suficiente para utilizá-las na confecção da armação da pipa. Água de Batata = cerol ruim, que não presta. Armação = esqueleto da pipa composto por varetas de bambu e linha. Em outros lugares, o bambu pode ser substituído por outros materiais como a tala de meriti, o vime, a taboa, entre outros. Arraia, Raia = tipo de pipa quadrada que lembra uma arraia. É feita com apenas duas varetas que se cruzam, não tem rabiola e às vezes é decorada com franjas. Também é chamada de “quadrado”, “cafifa” ou “camofa”. Arrastar = quando uma pipa cruza com várias outras num mesmo movimento de arrastão. (Araripe, 2006) Avoada = quando a linha da pipa é cortada e esta voa sem rumo ao sabor do vento. Avoar = diz-se que uma pipa “avoou” quando ela foi cortada e lavada pelo vento. Aparar = quando uma pipa é laçada por outra, após ter sido cortada, num cruzo. Aparo, zona de = espaço coberto pela linha das pipas que têm condição de capturar as pipas cortadas que voam. Aprumar = colocar a pipa em vôo estável (Voce, 2002) Bambu = planta originária da Malásia, muito comum em várias regiões do país, caracterizada por caules que se tornam ocos; é de farta utilização para os mais diversos fins, tanto práticos como decorativos. Colhido na época certa, o bambu produz material durável do qual podem se extrair as varetas para construir a armação das pipas. Em São João del Rei, embora em franca diminuição, ainda se encontram bambuzais nas hortas das casas, principalmente à beira de córregos e riachos. Banhar a linha = expressão usada com o significado de apossar-se da linha da pipa de outro de forma oportunista. Barriga = é a curvatura que faz a linha da pipa, quando ela está alta. Batizar a linha = usar a linha disponível no carretel até o fim, deixando a pipa o mais alto possível. Cabresto = também chamado de tem-tem, é o que mantêm a pipa num ângulo determinado em relação ao vento. São os fios (estirantes) que prendem a pipa à linha, variando a sua quantidade e comprimento em função do tamanho e do peso da pipa. Cachanga = pipa grande. Cafifa = o mesmo que raia, arraia, quadrado, camofa. É um tipo de pipa quadrada lembrando a forma de uma arraia que é empinada sem rabiola. Caixão, canecão = tipo de “brinquedo-ponte” (brinquedo do brinquedo) da pipa, confeccionado com uma folha de papel dobrada ao meio, no eixo vertical, em cujas laterais são feitas outras dobras. Nas pontas dobradas, são amarradas duas linhas (imitando o cabresto de uma pipa) que se fundem em uma só, por onde é puxado o arremedo de brinquedo para fazer resistência ao ar. Uma outra versão deste brinquedo-ponte da pipa é o giriquinho ou jalequinho, embora estes já contenham talas cruzadas, numa estrutura mais parecida com a armação de uma pipa. Camelo = pipa grande, mal feita e feia.

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Camofa = o mesmo que cafifa, quadrado, arraia. Camofeiro = é aquele que gosta de soltar camofa. Carioca, dar = fazer com que a pipa oscile de um lado para o outro em sua subida, através de movimentos feitos com a mão do soltador, com o objetivo de alcançar uma altura em que o vento seja suficiente para deixá-la equilibrada. Cerol = mistura de vidro moído e cola de madeira usada para passar na linha da pipa com o objetivo de deixá-la cortante. Embora esta seja a receita básica, há variações que incluem outros ingredientes. Cerol de Angu = o mesmo que água de batata. É o cerol ruim, mal feito, que não corta. Cerol de grude = cerol feito com farinha e água, que não cola direito. Cheio de doce = qualidade daqueles (pipa e pipeiro) que vêm se insinuando para um cruzo, uma espécie de sedução para entrar num cruzo. Cheio de linha = quando a pipa é cortada com muita linha, implicando grande prejuízo para o perdedor. Chicote = linha com cerol que fica no final da rabiola. Cordonê = tipo de fio mais grosso, a semelhança de um barbante que serve para soltar pipas de grande porte. Cortar e aparar = quando surge no campo de luta um papagaio muito lindo ou muito bom, trata-se de trançar de tal jeito que ele, além de cortado, seja também aparado pela rabiola. É descido como um troféu de batalha. (Mello, 1983, p. 78) Cortar na mão = é quando a pipa é cortada com muita linha, perto da mão do empinador. Cortante = o mesmo que cerol. Cruzar = fazer com que a linha de uma pipa se cruze com outra na tentativa de cortá-la. Cruzo = é a disputa entre pipas quando as linhas destas se cruzam com a intenção de cortar a pipa do adversário. Cruzinho = é brincar de fazer cruzo sem o perigo de perder a pipa. Neste brincar de brincar (“brincadeira-ponte”), apenas as habilidades dos brincantes são testadas, ganhando o jogo aquele que cortar os outros por mais vezes. As pipas cortadas sempre voltam aos seus donos para que a brincadeira continue. Cuecão = pipa reta que não está morgada, desajeitada como uma cueca grande. Culhão-de-gato = termo que, no Rio de Janeiro, é o mesmo que marimba (Araripe, 2006). Dar carioca = fazer movimentos para que a pipa suba sem dispor de muito espaço ou ajuda para levar a pipa a uma certa distância. Dar de lado= o mesmo que andar de lado. É quando a pipa fica torta, pendendo para um lado devido a um defeito de confecção (as medidas das metades que deveriam ser simétricas não são iguais, a pipa perde o equilíbrio e aderna). Dar de cima = investir contra outra pipa para fazer um cruzo. “Dá de cima!” é uma espécie de incentivo ou provocação para um cruzo. Dar linha = soltar a linha para que a pipa suba. Dar um nike = fazer uma manobra para pegar a pipa adversária dando a volta por baixo, como o desenho da logomarca do tênis Nike. Debicar, dibicar = movimento que a pipa, provocada pelo empinador, faz da esquerda para a direita e vice-versa, na vertical e na horizontal também (Voce, 2002). O mesmo que flechar. Descair = dar linha ao papagaio. Dipindura = ato de uma pipa trazer outra pendurada na linha. No dipindura. (Araripe, 2006)

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Destancar = a mesma coisa que estancar. Embaraçada = linha misturada. Embicar = movimento de mergulho da pipa, provocado por puxões longos e de arranco. Emboleira = embolar a linha de uma pipa na outra durante um cruzo com a intenção de arrastá-la, trazê-la de volta. Empinar = ato de por a pipa no ar. Entrar = movimento de invasão sobre outra pipa com o objetivo de cruzar as linhas para o corte da pipa adversária. Entrar por baixo = tática que consiste em entrar por baixo e ir levantando ou dando linha para cortar a outra pipa. (Araripe, 2006) Envidrado = o mesmo que cerol (Araripe, 2006). Envidrada = qualidade da linha cheia de cerol (Araripe, 1983). Escamas, de = pipa que tem como modelo linhas inclinadas que se cruzam no meio da armação, imitando um esqueleto de peixe. Estancar = quando a linha da pipa se parte abruptamente sem ter sido cortada por outra. Pode acontecer se a linha está puída, se algum nó se desfaz, ou pela força do vento. Falha = erro de fabricação que enfraquece a linha. (Araripe, 2006). Fininho = cerol bem feito e afiado. Fitinha = tirinhas coloridas cortadas de papel de seda, de sacos de plástico reciclado ou ainda de restos de fita cassete que são presas a uma linha que pende da pipa constituindo o que se chama de rabiola. Fincar = o mesmo que embicar, ou seja, fazer um movimento de mergulho com a pipa. Flecha = pipa quadrada em forma de arraia empinada com um dos bicos para cima como um grande losango em que a cabeça parece a ponta de uma flecha. Também chamada de cafifa, camofa e quadrado. Alguns apontam como diferença entre a cafifa e a flexa o fato de a última ter rabiola e a primeira não. Flechar = quando o papagaio avança caminhando sinuoso para o lado que se quer, a favor ou contra o vento, para cima ou para baixo. (MELLO, 1983, p. 78) Freguês = é aquele cuja pipa é cortada pela linha do adversário numa disputa. Funda = pedra ou qualquer outro objeto que faça peso numa linha que é arremessada sobre a linha de uma pipa para capturá-la. O mesmo que marimba. Ganhar vento = ganhar força, subir. Giriquinho = é uma versão de brinquedo-ponte da pipa, construída com duas talas que se cruzam perfurando uma folha de papel, frequentemente de caderno, rasgada toscamente com a própria mão, imitando uma pipa. A ela é presa a cauda também feita de papel rasgado. Provavelmente a palavra giriquinho é uma corruptela de girininho pela semelhança que a imitação da pipa assume com um girino (cabeça + cauda longa). Goiaba = é o perdedor, aquele que tem sua pipa cortada. O mesmo que “freguês” e “patinho”. Sendo a goiaba uma fruta fácil e sem valor, facilmente achada, o emprego desta palavra com relação ao perdedor indica sua pouca importância. Grude = cola de farinha de trigo ou maisena. Assim também é chamado o cerol ruim. Guarda louça = é aquele que evita entrar em um cruzo, principalmente quando a linha está de sua pipa está “lisinha”. Palavra que aponta para a fragilidade de pipa ou do pipeiro, no sentido de se guardar de maiores riscos. Imbicar = descer verticalmente de cabeça para baixo (MELLO, 1983, p. 78) O mesmo que embicar.

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Jalequinho = Diminutivo de jaleco, o termo pode ter sido atribuído à pipa-ponte pela sua semelhança a um pequeno jaleco (a folha branca de caderno) no cabide (a cruzeta feita com as talas). O mesmo que giriquinho. Tem outras denominações em função da região. Lanceada = o mesmo que cruza ou trança. Lancear = o mesmo que cruzar, trançar. Ambos são termos usados no Maranhão. Linha 10, linha 24 = linhas mais comumente usadas nas pipas. Liso, estar = estar com a linha sem cerol. Lisinha ou lisinho = qualidade da pipa ou do pipeiro que não dispõe de cerol. Aqui, novamente, o objeto e aquele que o porta aparecem indiferenciados nas qualidades que assumem. Mandar = significa cortar a pipa, mandar para outro canto. É uma ação praticada por quem corta. “Sobrou”, assim como “mandou”, significa que uma pipa foi cortada, sendo que mandar é ação praticada por aquele que corta, enquanto sobrar é uma ação sofrida por quem é cortado. Marimba = pedra ou qualquer outro objeto que faça peso numa linha que é arremessada sobre a linha de uma pipa para capturá-la. O mesmo que funda. Mocar = esconder. “Tá mocado” = tá escondido. Morgar = vergar as talas do bambu da armação da pipa para que ela fique mais sensível à ação do vento. Nó = laço apertado unindo duas ou mais linhas. Orelha, de = feitio de pipa que tem destaque nos dois triângulos laterais superiores, como se fossem orelhas. Pangaré = é menino bobo, quando demora muito a “cair a ficha”, quando ele está atrasado. É o menino que não foi ágil o suficiente para manter a sua pipa. É um termo usado em acréscimo à “goiaba”, com relação ao perdedor da pipa numa disputa. Patinho = é a vítima, aquele cuja pipa foi cortada; o mesmo que freguês. Perder vento = perder força, cair. Perriga = o mesmo que pião, pipa grande e bonita. Pião = pipa grande e bonita Picar = cortar em pedaços, destruir a pipa ou a rabiola numa disputa. Poída, puída = linha fragilizada, fácil de romper. (Araripe, 2006) Prego = cara chato que fica implicando ou regulando as coisas; no último caso, pode significar pão duro. Pulir = o mesmo que puir. Quando o cerol gasta e a linha fica lisinha. Quadrado = mesma coisa que cafifa, arraia, flecha e camofa. Rabiola = linha enfeitada com fitinhas que pende da pipa para lhe dar equilíbrio. Rabioleiro = aquele que gosta de cortar as outras pipas pela rabiola. Rebolar = quando a pipa se move pra lá e pra cá, como numa dança. O mesmo que dançar, bailar. Rodinha, dar = quando a pipa faz círculos no ar devido a um defeito de fabricação (comum quando a rabiola é pequena, desproporcional ao tamanho da pipa). Seda, papel de = tipo de papel fino e colorido comumente utilizado para encapar as armações feitas de varetas de bambu. Sobrar = refere-se tanto à pipa quanto ao soltador, mas, ao contrário de “mandar” é uma ação sofrida por quem é cortado. “Sobrou”, assim como “mandou”, significa que uma pipa foi cortada. Sureco = é o mesmo que cafifa, quadrado, flecha, caixote, arraia.

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T, pipa em = modelo de pipa onde se destaca a figura de um T, pelo cruzamento de uma faixa vertical a uma faixa horizontal, sobre um fundo de outra cor. Taboa = planta utilizada para construir a armação de certas pipas, assim como o bambu, a tala de meriti, o vime, dependendo dos materiais disponíveis na região. Tá com medo tabaréu é de linha e carretel! = grito de guerra dos meninos soltadores de pipas no Rio de Janeiro (Araripe, 2006) Tá na mão = palavra de ordem para indicar aos outros disputantes que você pegou uma pipa avoada. Tem-tem = o mesmo que cabresto Tentear, tentiar, tintiar, tintear = são os movimentos que se imprime à pipa para que ela suba e ganhe vento com a altura. Tindenguinha = pipa pequena Toquinho = puxão leve e curto para a pipa dançar. Trançar = lutar com outro papagaio. Termo utilizado no Amazonas. O mesmo que cruzar, em algumas cidades da região sudeste ou lancear no Maranhão. Trança = o mesmo que cruza, lanceada. Uaititipaiada! = grito de exaltação entre os brincantes de pipa no morro do São Caetano, São João del Rei. De um suposto idioma angolano inventado, os meninos o usam à semelhança dos movimentos realizados por um time para comemorar um feito relevante. Vareta = material firme e, ao mesmo tempo, flexível usado para confeccionar a armação das pipas. Pode ser obtido a partir do ato de cortar e afinar o caule de vegetais como o bambu, a taboa, a palmeira de meriti, vime, entre outros. X, pipa em = modelo de pipa em que se destaca um X, pelo cruzamento de duas faixas inclinadas, sobre um fundo de outra cor. Zoador = é um pedacinho de papel na linha superior da armação que faz zoar (barulho semelhante ao vôo de um besouro) o vento, quando a pipa se movimenta. Obs: Este pequeno “dicionário” teve suas expressões e termos colhidos durante a nossa pesquisa de campo nas temporadas dos anos de 2005 e 2006 e sempre estará incompleto, pois, a todo o momento, os brincantes estarão inventando novas maneiras de se expressar, durante os eventos em que soltam suas pipas.

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A PIPA SOB O OLHAR DA PSICOLOGIA SOCIAL: NARRATIVAS DE UM DIÁRIO

DE CAMPO.

Dia 09. 01. 2005

Depois de muitos dias de chuva, uma nesga de sol num janeiro molhado. É tempo de férias.

Sorrateiramente, emerge no céu um ponto colorido. É sempre assim que começa: como se

fosse uma semente que faz brotar magicamente um jardim florido. Agora já são três. Não,

cinco! Mais uma! E outra! O convite é irrecusável. Já não dá pra reagir com indiferença,

como se eu não tivesse nada a ver com o caso. Meus objetos de estudo bailam no ar como

acenando a necessidade de que eu vá a campo.

O campo está ali, literalmente, sob minhas janelas. A algaravia impera. Gritos mais

entusiasmados - melhor dizendo, excitados - denunciam que tem pipa voada. Alguém foi

cortado. Pernas e rodas se movem freneticamente para o resgate. Vai ter briga? Quem vai

arrebatar mais um troféu?

Chega de observar à distância. Pego bloco, boné e câmera digital e, sem pensar muito,

corro para o local do evento. Chego à esquina tentando não ser notada. Sento-me a alguma

distância (uns 8 metros) na esperança de me fazer invisível. Em vão! Sou muito estranha

para eles: mulher, mais velha, portando sapatos e vestida demais para os padrões do grupo.

E ainda por cima, carregando coisas muito diferentes de pipas, carretéis, latas e canos de

PVC (utilizados para enrolar a linha). Na esquina em questão, no alto do morro ainda

descampado pela ausência de construções, encontra-se um grupo bastante heterogêneo.

Neste momento, no que a vista consegue alcançar, já há treze pipas no ar e uma caindo. Em

terra, há quatro rapazes, um homem mais velho e três meninos de bicicleta. Ao lado de uma

das bicicletas, sobre a relva que cobre um terreno baldio sem cercas, repousam por volta de

dez pipas, saldo das empreitadas daquela tarde. Os meninos comentam que o seu cerol é

ruim, que o dos rapazes é melhor. Os rapazes oferecem aos meninos o pacote das pipas

cortadas por “dez contos”. Os meninos não respondem, mas nota-se o interesse. Melhor

dizendo, era admiração por tantas pipas “cortadas e, ainda por cima, aparadas”. A formação

é bem típica: os mais hábeis exibem suas performances e os meninos menores ficam ao

redor, olhando e soltando timidamente as suas pipas, quase que sob a proteção dos maiores.

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Usufruem o aprendizado e a proteção. Não se conheciam de antes. Passaram a interagir ali,

em torno da pipa, vindos de lugares diferentes e moradores do bairro.

Tento me aproximar um pouco e pergunto se posso tirar uma foto das pipas. “- Fazer o quê,

né?!”- me responde de má vontade um dos rapazes. Durante o tempo em que estava só

observando à distância, não sei se por acaso – pode ser uma prática corriqueira – ou para

me intimidar, o mesmo rapaz desfiou toda uma série de palavrões dos bem cabeludos. Seria

para demarcar um território essencialmente masculino?

Achei que minha presença estava mal digerida. Resolvi me apresentar. Disse que era

professora da universidade e que estava fazendo um trabalho sobre as pipas em SJDR.

Perguntei se incomodava se ficasse só olhando. Eles ficaram curiosos e o clima ficou mais

relaxado, bem mais amistoso. Fiquei sabendo que ali havia dois irmãos cujo pai, um senhor,

ficava só olhando, montado numa bicicleta. Apresentei-me a ele também. Achei que esse

movimento foi vital para o meu papel de “olheira”. O Sr. Luis*173 (o pai) me explicou que

morava lá embaixo, em outro bairro, mas que lá “a barra era pesada” e ele preferia vir com

os filhos para este morro. Vinha sempre aos domingos, pois, nos outros dias, havia

trabalho. A sua presença garantia, de alguma forma, uma segurança para os meninos, no

caso de uma disputa mais acirrada. Contou-me que era aniversário de sua esposa, naquele

dia, e também da esposa do outro rapaz, um terceiro, que vinha chegando de um outro

ponto, na rua de traz. Era aniversário das duas mulheres, mas estas ficaram em casa,

enquanto eles vinham soltar pipas.

A movimentação é grande, pois as posições vão se alterando pra lá e pra cá. Mas os

territórios se mantêm de alguma forma. Ficam os bolinhos de meninos, misturados por

idade, em pontos mais ou menos definidos. Uma pipa foi cortada pelo grupo de além

esquina, mas não deu pra aparar. Um dos rapazes sai correndo de bicicleta, na tentativa de

agarrá-la. O Sr. Luis, o pai, diz que além das pipas, os meninos gostam de fazer trilha. Por

isso, naquele caso, as bicicletas fazem parte do jogo.

Um dos garotos menores tem um saco de supermercado preso na rabiola da pipa. Fiquei

curiosa e perguntei o porquê. A resposta é que o saco ajudava a pipa a ficar direita. Meu

entendimento é que a função do saco era dar o equilíbrio que faltava devido a algum defeito

da pipa. Acho que vi um rasgo nela.

173Os nomes que aqui constam são pseudônimos.

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São 18:30, chuva se aproximando, nuvem escura contrastando com o colorido das pipas.

Hora de ir embora. Perguntei se os encontraria de novo, pois pensava em voltar. Estariam

ali no sábado seguinte.

-Se eu olhar de longe, tem chance de eu saber que são vocês pelo modelo da pipa?-

pergunto.

-Ah!É difícil porque a gente usa as pipas que aparou também, responde o rapaz.

Mas o rapaz muda de idéia e combina: - Vou estar com uma pipa em T. Quando você olhar,

já sabe que sou eu.

25.01.2005

14:00. Sol a pino durante toda a tarde. E eu olhando pela janela, fazendo a leitura de um

texto para o próximo encontro do grupo de pesquisa. Conflito! Eu deveria era estar lá fora.

Mas deveria estar aqui dentro também. Infelizmente trata-se de uma impossibilidade física

(pelo menos por enquanto) estar em dois lugares ao mesmo tempo. Tento uma solução

intermediária: assim que o sol baixar um pouco, eu desço e vou encontrar com os meninos.

17:30. Vou até a janela para fechá-la e aproveito para avaliar a paisagem. Lá estão dois

meninos em primeiro plano, soltando suas pipas. Mais adiante, mais dois ou três. Em outros

planos do morro, mais grupinhos. Desta vez, não vejo rapazes mais velhos (17, 18 anos). Só

os garotos aproveitam as últimas semanas de férias.

Néo (9 a) e Samuel (11 a) que eu já conheço do outro dia estão com suas pipas. Dão conta

da minha chegada. Nesse momento, uma senhora que estava próxima dos dois se retira. Era

a madrinha de Néo que veio ver o que estava acontecendo, talvez para chamá-lo para voltar

pra casa, um pouco que tomando conta. Os dois meninos conversam e se provocam, um

acusando o outro de não ter algumas habilidades: não saber fazer uma pipa, não saber fazer

cerol, não saber cruzar. Mas continuam lá, fazendo piruetas com as pipas. Os pés estão

descalços, desprotegidos da quantidade de vidro picado espalhado pelo chão, restos de

alguma receita cortante. Há outra dupla que se aproxima pela rua de trás. Néo e Samuel

baixam suas pipas. Estão “lisinhos” (sem cerol) e temem perder suas pipas para a dupla que

chega. Contam que no outro dia, aqueles mesmos garotos cortaram suas pipas e não

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quiseram devolver. Deu até Briga. Cai uma pipa na quadra adiante. Samuel corre para

tentar pegá-la. Volta de mãos vazias.

Néo e Samuel conversam sobre o modelo de suas pipas. Néo provoca dizendo que não foi

Samuel quem fez a dele. Ficam querelando.

Aproveito para perguntar dos modelos de pipas. Eles não se fazem de rogados e falam: “de

escamas”, “de T”, “de orelha”, “de X”, “de cruz”, “de listras”, com escudos dos times de

futebol. Não entendi a história das escamas. Néo se prontificou a desenhar no meu bloco de

notas.

Perguntaram-me onde eu morava. –Aqui no bairro!, respondi vagamente. “–Mas aonde?”,

insistiram. Acabei me rendendo: -Ali, naquela casa branca- confessei. –Ah! Então foi você

que abriu a janela e depois fechou, naquela hora, hein?!

Minha amiga Marli bem que me chamou a atenção quando lhe contei o acontecido: afinal

de contas, quem observa quem? Não será esta a posição de simetria que buscamos na

pesquisa? Lembro do último texto que li do Law em que ele diverge da postura asséptica do

pesquisador, cumprindo um ritual de higiene: “comer grãos epistemológicos; lavar as mãos

antes de se misturar com o mundo real para buscar pureza nas produções” (2003, p. 3). Eu

não podia estar mais lambuzada de mundo real do que naquele momento.

Graças a Deus, logo esqueci daquele mea culpa por causa de um movimento dos meninos

com suas pipas. Não sei se foi para fechar o dia, para mostrar habilidade ou se para

experimentar um pouco o risco, eles se lançaram, primeiro Néo, depois Samuel, para cruzar

com uma pipa amarela que parecia bem segura de si, talvez porque bem armada com um

bom cerol, plantada a uma quadra adiante de nós. Não deu outra: a pipa amarela cortou sem

dó nem piedade, primeiro Néo, depois Samuel. A coisa me pareceu meio kamicase, mas

consciente. Eles não pareciam muito surpresos, afinal estavam “lisos”. Mas, logo depois,

tomaram a decisão de pedir as pipas de volta. Fui atrás para ver o que acontecia.

-Entrega, vai!?, pediram. –Entrega aí, ô!

O menino, maior (talvez uns 14 anos), chamado Fernando, conseguiu a proeza de cortar e

aparar com a linha da sua pipa amarela as duas pipas dos meninos inconformados. Ia

puxando, vitorioso, os dois novos troféus e teve uma resposta categórica: -Cortou, tá

cortada! Perdeu! Se tava sem cerol, quem mandou cruzar?

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Néo e Samuel sumiram contornando a quadra pelo outro lado. Nem se despediram.

Comecei a conversar com o Fernando que estava todo orgulhoso e cercado por dois

meninos menores, descalços e sem camisa. Eram admiradores. Estavam ao redor, talvez

prestando alguns pequenos favores em troca de aprendizagem.

Nesse instante, no lusco-fusco do final da tarde, apareceu a mãe de Néo, gritando pelo seu

nome. Era pra que ele fosse para casa tomar banho.

O dia findou e os meninos, Néo e Samuel, voltaram para casa de mãos vazias. Fernando, ao

contrário, aumentou um pouco seu arsenal.

Obs: Por acaso, conheci a mãe de Samuel. Disse-me que, para ela, a pipa era um tormento.

Teme que o filho se envolva em confusão, ou se machuque. Em casa tem um cômodo só

pra guardar a bagunça que Samuel faz com as pipas. Não sabe de onde ele tirou o gosto

pelo brinquedo, pois nem ela nem o marido soltam pipas, apesar dos insistentes convites do

filho. Desde bem pequeno, comenta ela, que o menino tem paixão pelo objeto: “vivia

olhando pro céu e apontando. Aprendeu sozinho, olhando os outros meninos.” Antes,

moravam em apartamento e, desde que mudaram para o bairro, o Samuel não dá sossego

com a história das pipas. Às vezes pensa até em mudar-se.

Outras observações:

Algo que me chamou muito a atenção nessas idas ao campo é como o espaço desempenha

um papel importante na brincadeira. Não dá pra soltar pipa em qualquer lugar. No caso

desses descampados, em que ainda há vazios de construção, a brincadeira torna-se mais

fluida, mais espalhada, em contraste com as pipas empinadas sobre lajes.

Os grupos elegem “pontos” de sua preferência, mais ou menos próximos de seus locais de

referência: casa ou alguém mais velho que lhes serve de abrigo. Mas percorrem até duas

quadras para “caçar” uma pipa que cai. O espaço é literalmente conquistado, do mais

conhecido e seguro, para o menos conhecido e desabrigado. Esse dado faz parte do clima

de aventura que envolve a brincadeira.

No caso observado, temos um espaço propício. Em contrapartida, nos centros urbanos mais

densamente povoados, os espaços para soltar pipas são literalmente criados sobre as lajes

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das construções, conforme já tivemos a oportunidade de presenciar, aumentando a

probabilidade de acidentes.

Outra coisa que me chamou a atenção foi o fato de que os meninos observados até agora

preferem estar de pés descalços. Todos têm chinelos e sapatos, mas alegam que fica mais

fácil correr sem eles. Ocorre de muitas vezes virem calçados para a rua e deixarem os

sapatos ou chinelos de lado, num canto do meio fio. Muitos já perderam seus calçados por

esquecimento, desta forma. O mais preocupante é que há sempre muito vidro espalhado

pelo chão e o risco de cortar o pé é grande. Não é à toa que a brincadeira de pipas é um

tormento para as mães.

Outra questão é a informalidade da aprendizagem dentro de grupos heterogêneos. Os

meninos menores gravitam em torno de meninos maiores que, em alguns casos

(preferentemente nos fins de semana) podem ter como ponto de referência um adulto que,

por sua vez, pode estar ali para se divertir junto, para mostrar alguma habilidade com o

brinquedo, para olhar e até para garantir alguma segurança em caso de brigas. O que mais

impressiona é que não é uma aprendizagem do tipo “primeiro você faz isso, depois você faz

aquilo”, algo organizado em passos, numa seqüência demonstrativa. A coisa acontece em

movimento, em situação. E parece que é eficaz, pois não há sinais da anunciada extinção da

brincadeira, desde a década de 60, como uma conseqüência da instalação das redes

elétricas.

Associar a forma da aprendizagem da brincadeira à sua manutenção no tempo pode ser um

dos fios desta longa rede que se tece. A eficácia da aprendizagem é proporcional à sua

informalidade e ao prazer a ela associado? Resta-nos saber o que mais há, além dessa

informalidade e do prazer que impera nas disputas ocasionadas pelo jogo174.O que dizer,

por exemplo, das formas de construção de uma pipa, da habilidade de confeccionar o cerol,

da agitação de quem vai se lançar num cruzo para ganhar ou perder? Que emoções essas

ações mobilizam? Quais destrezas são mobilizadas na lida com os elementos não humanos:

o vento, as nuvens, a chuva, a linha, o papel de seda, o bambu das varetas da armação?175

174 Falo de jogo aqui, pois as regras lhe conferem esta conotação. Ganhar e perder, a todo instante, são contingências da dinâmica de soltar pipas. 175 Numa dessas ocasiões em que fui acompanhar o evento, aproximava-se uma grande e escura nuvem vinda do oeste. Um dos meninos arriscou uma avaliação: “Só vai passar por cima. Olha lá como está na serra. Já limpou”.

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26/05/2005

Volto ao lugar onde colhi as últimas observações. Dos meninos que havia observado da

última vez, apenas Néo e Pedro estavam na brincadeira. Outros meninos compunham agora

o grupo.

No momento em que cheguei, eram quatro meninos ao todo: Néo, Pedro, um outro a quem

esqueci de perguntar o nome, os três com idades entre oito e nove anos e um mais velho

com idade entre 13 e 14 anos. Como os dois últimos não me conheciam, me apresentei e

pedi licença para observá-los em sua brincadeira. Três pipas já estão no ar. Um dos

meninos está sentado no chão jogando pedrinhas. Sua pipa ainda está em terra. Os outros

fazem manobras com suas pipas. Perguntei se ia ter “cruzo” e eles responderam que não

tinha outras pipas para cruzar: quando é colega, não corta.

Néo, sentado, explica que não está soltando pipa porque a pipa dele está sendo empinada

pelo primo cuja pipa estava rasgada. “Mais tarde, eu brinco!”, diz ele. Sentou-se ao meu

lado e ficou olhando curioso um caminho de formigas: “O que será que elas estão

levando?”, exclama.

Enquanto isso, as linhas dos outros três meninos se enroscaram e uma das pipas foi pega

pela linha da pipa do outro.

“-Se a minha ´tivesse boa, eu acabava com vocês”, ameaça Pedro fingindo irritação. Néo

retoma a pipa que havia emprestado a Pedro que continuava a ameaçar: “Minha linha tá

lisa. Mais tarde vocês vão ver!”

A conversa começou a girar em torno do cerol cuja receita básica era vidro moído e cola de

madeira. Uns faziam e outros o compravam pronto em tubinhos, nos mesmos armarinhos

onde conseguiam as folhas de papel de seda para encapar as pipas.

Uma das manobras realizadas com as pipas mudou o rumo da conversa, tendo agora como

foco as expressões usadas por eles. Pedi-lhes que explicassem o que era “descarregar” e

“debicar”, ao que prontamente me responderam:

-Descarregar - é dar linha para a pipa;

-Debicar ou embicar - é fazer a pipa dar um mergulho, cair de bico.

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Uma pipa se rasgou ao cair no chão. Três dos meninos resolvem ir embora. Deixam com

Néo as linhas e a armação da pipa rasgada. Querem que Néo guarde na casa dele que fica

no mesmo quarteirão para continuarem a brincadeira no dia seguinte.

29/05/2005

Caminho em direção ao mesmo local onde havia observado os meninos da vez passada. Há

três meninos com suas pipas. Nem Néo nem Samuel estão lá. Os meninos parecem de outro

bairro. Explico que estou fazendo uma pesquisa sobre as pipas e peço licença para observar

sua brincadeira. Eles quase não falam, só acenam com a cabeça que sim. Entretanto, seus

movimentos parecem ser de uma fuga velada. Vão se afastando aos poucos, subindo a rua e

ficando cada vez mais distantes. Entendi que ficaram pouco a vontade com a minha

presença. Resolvi caminhar em direção a um pasto que também funciona como campo de

futebol e lugar para piqueniques de onde podia se avistar uma boa concentração de pipas

sendo empinadas. Foi uma dessas pipas que me chamou a atenção: era vermelha, maior do

que as outras e não tinha rabiola. Merecia uma investigação, pois era muito diferente das

outras. Ultrapassei a “porteira” que impede a passagem do gado para o lado de cá do morro,

segui uma trilha estreita que me levou até o espaço multifuncional e deparei com um grupo

muito heterogêneo: seis pipas no ar, um rapaz de mais ou menos 15 anos, dois meninos

entre 6 e sete anos, mais dois de dez anos, 2 pipas aparadas. Tento me aproximar do grupo

de meninos que discutem sobre as pipas cortadas. Um dos meninos está sentado sobre o

cano de PVC onde enrola a linha. O cano assume a função de tamborete. Pergunto que pipa

é aquela que não precisa de rabiola. Eles me explicam que é uma pipa feita com apenas

duas varetas a que chamam de “pipa flecha” ou “pipa arraia”. Um pouco mais adiante,

perto de uma árvore, está outro grupo: dois meninos de uns oito anos acompanhados pelo

pai de um deles. Depois que me apresento e falo da pesquisa o Sr. Marquinhos, o pai,

comenta que o filho e o sobrinho empinam pipa desde os três anos de idade. Junto com ele

estava o pai de PP, o menino que estava empinando a pipa diferente. Falou sem muita

cerimônia que o filho tinha problemas desde pequeno, que nasceu com problema e que

havia estudado na APAE. Agora estava numa escola regular. Engraçado é que se o pai não

tivesse falado, eu não perceberia nada de diferente no menino que empinava a pipa arraia.

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Ele me parecera igual aos outros, tendo como única diferença a pipa diferente que lhe

conferia um maior status frente aos outros. A maneira de empinar, de se mover, de realizar

as manobras com a pipa não me davam nenhum indício de que fosse “diferente”.

Aproveitei para perguntar com quem aqueles meninos haviam aprendido a empinar pipas:

dois responderam que “os maiores vão ensinando os menores”; três responderam “com o

pai”; um respondeu “com o tio” e um respondeu “com o irmão”. Falaram também que só

vêm no sábado e no domingo, durante o período de escola, mas costumavam brincar mais

durante as férias. Um deles comentou: “Se você vier aqui nas férias, você vai ver como isso

tudo aqui fica cheinho”. Outro menino lembrou de um senhor, “um velhinho, meio japonês,

pai do Bruno” que construía uma pipa tipo avião. Pedi-lhes que me mostrassem onde

encontra-lo da próxima vez que nos víssemos. Dois meninos estão empinando uma pipa-

ponte a que chamam de “giriquinho”. Pedem uma folha do meu bloco para fazer outro.

Aparecem mais seis pipas, cinco dos meninos com idades entre 7 e 9 anos, vindos de outro

bairro, o Bonfim.

Neste momento paro para fazer um balanço mais recente da situação. No que minha vista

consegue alcançar, são 8 meninos, dois pais, 2 cachorros (um macho e uma fêmea), duas

bicicletas. Há mais meninos em terra do que pipas no ar, o que é muito comum de

acontecer. Às vezes, algum deles baixa a pipa e vai fazer outra coisa, inclusive correr para

aparar as pipas que têm chance de ser apanhadas. Os dois meninos acompanhados pelo pai

de um deles voltam a soltar pipas em cooperação. Uma pipa foi cortada e cai em nossa

direção. Correria para pegar. Consigo contar uns dez meninos correndo atrás dela.

Aparecem meninos que eu não havia visto antes. Eles saem de traz de uma vegetação mais

alta. Havia um grupo lá, atrás dos arbustos que eu não havia percebido. São uns cinco

meninos maiores.

Às 16: 20, há uns 12 meninos no pasto. As 16: 25 já são 17.

O pai do menino da pipa arraia fala que vai ter jogo do FLAxFLU. Quer ir embora e chama

o filho para vir com ele. Os dois levam um dos cachorros.

Os meninos se separam em dois grupos: de um lado ficam oito meninos empinando pipas,

de outro ficam 7 meninos mais um pai observando, sentados sob a sombra da árvore. Um

outro menino chega de bicicleta com mais duas pipas. Fica observando e preparando sua

pipa.

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Surge uma bola. Os meninos que estavam sentados sem empinar pipa se levantam e

resolvem jogar. O lugar é plano e o mato é baixo, adequado ao jogo. Como havíamos

falado antes, funciona também como um campinho de futebol.

De dentro do mato, surgem 6 meninos que estão empinando pipas. Depois, mais cinco

meninos saem do mesmo mato com carretéis feitos com canos 100 de PVC. A brincadeira

fica claramente dividida agora com um número ainda maior de integrantes para cada grupo:

12 meninos ficam empinando 4 pipas e outros 10 ficam jogando bola. O pai fica segurando

uma vara de bambu na sombra da árvore, ao lado do cachorro que ficou e mais as

bicicletas.

Uma pipa foi cortada e 4 meninos correm para apará-la. Todos param para ver no que vai

dar. Gritos e correria.

Passado o frenesi que paralisou o jogo de bola, os grupos retomam as atividades de antes. O

pai que ficou ameaça de ir embora. Ele veio para ver soltar pipa e não pra jogar futebol.

Dois dos meninos que estavam jogando bola retomam a Brincadeira de pipas. Outros dois

passam por mim contando um caso. Não deu pra ouvir. O pai está impaciente. Fica bravo

com os dois meninos. Agora quer ir embora para assistir uma missa e os meninos estão

retardando a sua saída.

O jogo de bola continua. Um dos meninos pergunta se eu vou ficar ali. Pergunto se estou

atrapalhando. Diz que não. Ele quer é que eu guarde o seu celular enquanto joga bola.

O pai finalmente consegue se retirar com os dois meninos.

Está ficando frio, pois o sol começa a declinar. Esqueci do casaco e sinto que fui picada por

algum inseto na perna. O clima está seco, propício aos micuins e carrapatos, ainda mais que

estamos num local de pasto. Decido voltar.

Outras observações:

A brincadeira de pipas é regida por um determinado código de ética que está longe de ser

estático. A história de “pipa avoada não tem dono” é uma das regras mais conhecidas, mas,

a todo instante está sendo testada e negociada com os pedidos de devolução por parte

daqueles que tiveram suas pipas cortadas. Uma outra coisa que me chamou atenção é que a

pipa não é só a pipa. Junto com ela, sempre aparecem outros elementos lúdicos como a

bola, os cachorros, as bicicletas. A aventura é a tônica, a pipa é o pretexto. Por último, algo

que me surpreende é o fato de que a pipa nivela as diferenças: mais velhos e mais novos; os

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que estudam em escolas comuns e aqueles que estudam em escolas especiais; os mais ricos

e os mais pobres. Todos parecem ser iguais com uma pipa no alto. Lá em cima, as

diferenças não parecem ser muito importantes. Quando se entra num cruzo, dificilmente,

sabemos quem está na outra ponta do fio.

11/06/2005

15:35. Consigo contar, olhando ao redor, umas 12 pipas mais próximas. Mais longe, em

outros morros que não conseguiria acessar, há mais. Quando saio para observar as pipas,

olho para o céu e vejo onde está a maior concentração de pipas. É para lá que me dirijo.

Desta vez, vou para um outro lugar onde não havia estado antes. Na rua abaixo, onde havia

uma grande quantidade de mato alto, houve a terraplanagem do terreno, o equivalente a

dois lotes de 360 metros quadrados, deixando-o como uma grande clareira, uma espécie de

aterro onde 4 meninos empinavam suas pipas. Há outros dois meninos menores que

parecem morar na casa que está colada ao terreno. Diria que o lugar virou um mini

pipódromo. No momento em que vou chegando, uma pipa é cortada meio por acaso e vem

aparada (também meio por acaso) na linha de um deles. “Quem cortou?”, perguntavam um

pouco surpresos.

Um outro comenta excitado: “Eu vi ela entrar, a listradinha. Olha o tamanho dela!”

Me apresentei, falei da pesquisa e perguntei se podia ver a brincadeira. O menino me olha

desconfiado, mas não nega a possibilidade da minha presença. Digo-lhe que, se eu estiver

incomodando, posso me retirar e pedir licença a outro grupo. Ele responde que está tudo

bem. Falo meu nome e pergunto o dele. Chama-se Dedê e tem 12 anos. Logo, ele sai de

perto para ver a pipa que o companheiro aparou sem querer.

Uma outra pipa cai e Dedê sai correndo, deixando duas pipas no chão sob a guarda dos

amigos. Um dos três meninos que permanecem na clareira faz um comentário sobre o que

saiu correndo: “Ele nem solta pipa. Vem aqui para correr atrás das pipas que caem.”

Um homem sai da casa colada ao pipódromo para procurar os dois meninos menores. Ralha

com eles, pois estavam se escondendo em uma casa em construção.

“-Olha a verdinha dando linha!”, fala um dos meninos, mostrando uma pipa que se

insinuava para a cruzo. O menino meio que fica de prontidão preparando sua pipa de três

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listras, mas a verdinha desce um pouco e se esquiva. São dois os meninos empinando pipas,

neste momento.

Sai um menino do mato próximo com uma pipa na mão.

Dedê e Polo conseguem colocar suas pipas no ar sem nenhum esforço. Não houve

necessidade de que um ajudasse o outro. Era dia de vento bom, supus. Agora são os quarto

meninos com suas respectivas pipas. Estão bem próximos uns dos outros e assumem uma

arrumação quase em linha, como se estivessem pescando alguma coisa no céu. Fazem

movimentos constantes, alternados com a ausência de qualquer movimento. À esquerda, no

alto e do outro lado do morro, consigo ver mais seis pipas e, à direita, mais três. Ao fundo,

mais longe, tem mais quatro. Ao todo, avisto dez pipas do lugar em que estou.

A pipa verdinha continua mostrando sinais de que vai para o cruzo com um dos meninos.

Um deles atiça: “Iago, cruza lá então!”

No céu, os urubus planam tranquilamente. Como a tarde é um sucesso de pipas, faço a

hipótese de que o vento está propício e de que os urubus podem nos dizer algo com seu

vôo. Há uma boa quantidade de urubus voando bem alto. Um dos meninos comenta que

tem dia de vento bom que não tem tanta pipa no ar. Afinal, se o vento não está bom, por

que tanta pipa no ar? Não me senti a vontade para perguntar e esclarecer minha dúvida,

pois os meninos estavam concentrados com a possibilidade de um cruzo, naquele momento.

“-Não entra, não, viado!”, grita um dos meninos para um outro que está na rua paralela

acima e a direita.

“-Olha lá! Cheio de linha!”, grita o mesmo menino, entusiasmado.

As atenções voltam-se para uma pipa que cai no morro, indo na direção à caixa d’água, o

ponto mais alto. Gritos excitados, mas não consigo ver a pipa caindo. Só dá pra ver dois

meninos correndo em sua direção.

Mais outra pipa foi cortada e cai atrás de um conjunto de casas morro acima.

Dedê baixou sua pipa. Outro menino pergunta a ele se naquela rua tem saída para o

pasto/campo de futebol. Dedê, como lhe chamam os amigos, corre para pegar uma pipa que

caiu e deixa o amigo sem resposta.

“Ali, a avoada!”, fala um dos meninos referindo-se a uma pipa vermelha que caiu. No

morro, correm quatro meninos para disputá-la. Cai uma outra, mais longe, atrás das casas.

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4:25. O sol começa a cair e as casas da rua acima sombreiam o lugar onde estamos.

Começa a esfriar, mas no morro da caixa d’água ainda há muito sol. À frente e ao fundo, há

pipas muito altas. Quase não dá pra vê-las. São pontinhos no céu.

“-Sabe quem tá soltando [pipa], Puquinha? O Orega e o Caicai”, fala o Dedê, já de volta da

“caçada”, dando conta dos conhecidos que tinha visto na última andança. “-Cadê o

Tchusca?”, procura.

O Tchusca tinha se retirado porque alguém tinha cortado a pipa dele. Voltou ladeira abaixo

explicando: “Pegou no meu cabresto”

A pipa listradinha, que havia sido aparada meio por acaso e estava no chão, entrou em cena,

na falta da outra. Parecia um jogador no banco de reserva, sendo convocado para o jogo. A

brincadeira continuava.

Me desloquei ladeira acima. Dois rapazes maiores estão empinando pipas. Do meu novo

ângulo de observação, vejo 6 pipas à direita e 7 pipas à frente. Lá no campo/pasto, vejo

duas, mas muitos meninos estão lá, pelo menos uns 8. O movimento já vai declinando por

causa da temperatura que cai. Os rapazes descem a rua e eu os perco de vista. Me desloco

mais um pouco e encontro outro grupo. Na esquina, há um rapaz de 29 anos com o filho e o

sobrinho de 8 e 9 anos, respectivamente. Depois aparece o amigo do rapaz que tem 26 anos.

Me apresento de novo. Eles estão em movimento e se justificam: “Se a gente não andar,

eles entram na gente. Eu já pedi para eles não entrarem”. Ao contrário dos outros grupos,

sua diversão não é cruzar. Para eles a melhor parte da brincadeira é colocar a pipa no alto.

12/06/2005

Quando vinha chegando em casa, na subida da rua, vi uma moça com uma pipa na mão e

um grupo com duas mulheres e um menino. É com intenção de achá-los que desço a

ladeira. Mas não consigo mais encontrá-los. Lamento, pois era a oportunidade de conversar

com mulheres que empinam pipas, o que tem sido raro encontrar. O dia estava muito bonito

e mais quente que o anterior. Por que teriam ido embora? Por que desistiram tão cedo?

Comecei a caminhar e a pensar que a brincadeira de pipa era mesmo uma atividade

nômade. Quanto eu havia andado nestes dois últimos dias, subindo e descendo ladeira!

Havia espaço suficiente para estes deslocamentos e para os muitos grupos que subiam o

morro para empinar suas pipas. Até o momento, não se podia falar de superlotação ou de

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disputa acirrada pelo espaço que até sobrava. Cada grupo numa esquina, num terreno, numa

ladeira podia se movimentar em prol de estar mais perto ou mais longe das intenções de

cruzo de outro grupo. Comecei a lembrar das observações do Kropotikine, que a Despret

comenta num de seus livros (1996?), mostrando que a luta pelo espaço só ocorre quando as

condições do terreno apontam para a escassez. Se há muito espaço, para que brigar? O

cruzo, até então, tinha sido uma opção, inclusive prazerosa, de testar de habilidades e de

colocar alguma adrenalina na brincadeira. Havia céu para todo mundo empinar sua pipa.

Na esquina da rua, encontrei Dedê e Polo, do dia anterior, na companhia de outros dois

meninos e o pai de um deles. Me apresentei ao pai e aos dois meninos que ainda não

conhecia, um de 12 e outro de 14 anos. Falei da pesquisa. O pai ficou curioso e ao mesmo

tempo solícito. Começamos a conversar sobre a brincadeira. Os meninos que estavam

empinando as pipas pararam e começaram a participar da conversa interessados. O pai

falava sobre os inventos176 que tiveram a pipa como suporte. Os meninos não tinham a

menor idéia de que a pipa tinha servido pra tanta coisa. O pai lembrou uma oficina que a

universidade havia proporcionado há muito tempo atrás, no antigo festival de inverno que

hoje é “Inverno Cultural”. Perguntou se haveria outro como aquele. Todos moravam no

Tejuco, bairro que fica lá embaixo, descendo a ladeira. Vinham sempre que podiam e

quando o vento permitia para empinar as pipas aqui no S. Caetano: porque aqui era alto,

porque tinha pouco fio elétrico para atrapalhar e pouco movimento de carro. O pai falou

que só podia vir aos domingos, pois nos outros dias ele trabalhava. Achava importante

acompanhar os garotos para ficar olhando e evitar qualquer perigo. Mas lamentou que o

vento não estivesse bom naquele dia. As pipas não conseguiam se manter no alto por muito

tempo. Aproveitei para perguntar como a gente fazia para saber que o vento estava bom.

“Olhando se a copa das árvores está balançando bem e também olhando para as pipas que

estão no ar. Se as pipas estão aprumadinhas, como se fossem cobras prontas para dar o

bote, é porque tem vento soprando”, responde ele. Diante deste comentário, achei que a

função da primeira pipa empinada no dia era, acima de tudo, dar indícios das condições do

vento, como se fosse uma biruta nos aeroportos. A esta altura, os meninos estavam todos

sentados no meio fio com suas pipas no chão, participando da conversa. Perguntei a eles o

que eles achavam que a pipa podia ensinar a eles. “Nada. Ela não fala!”, respondeu um

176 Muito do que eu havia escrito sobre a pipa como objeto sociotécnico este pai resgatava naquela conversa.

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deles. Será que não fala mesmo? Será que só o que fala pode ensinar? Fiquei pensando no

quanto a pipa, esse elemento híbrido de mente e matéria era desafiador das destrezas,

catalisador de aprendizagens, deslocador de ações. Era impossível não vê-lo como um tipo

de ensinante. Os meninos não se dão conta deste fato. Eles têm a ilusão de que são eles que

sempre estão no comando.

Desci a rua. Tinha decidido que minha observação neste dia seria itinerante. Queria

encontrar outros grupos que estivessem com a pipa no ar. Em vão! Na subida, avistei um

grupo maior e heterogêneo empinando pipas numa rua onde é mais difícil passar carros e

que faz fronteira do S. Caetano com o Tijuco. Havia dois cachorros se dirigindo para lá. Fui

atrás dos cachorros que iam na direção ao grupo. Um dos componentes do grupo, um rapaz

de 17 anos, estava com a pipa no chão. Nela estava escrito o nome de Dudu. Perguntei se

ele era o Dudu e me apresentei novamente. Mais adiante duas mulheres, mães de quatro

crianças que brincavam com as pipas. A primeira, Alice, mãe de três crianças, 1 menino de

8, outro de 4 e uma menina de 3. A outra, Nádia, mãe de Viny, 5 anos. O pai das primeiras

crianças, Leleca, 25, também estava presente e mais um menino de 12 anos, irmão de

Dudu. Um pouco diante, estava a D. Maria, mãe de Nádia. Além deles, 2 cavalos pastavam

quando um homem chegou para recolhê-los. Os cachorros continuavam ao redor. O grupo

achou que os cachorros eram meus porque chegaram junto comigo. Alice, casada com

Leleca, falou que o marido confeccionava pipas com os escudos dos times de futebol.

Chegava a vender cada uma das pipas por R$ 4,00 aos meninos lá do Tejuco. “Criança fica

doidinha com pipa”, comenta. Diz ela que, no outro dia, o filho lhe deixou apertada quando

perguntou “por que a pipa subia?” A resposta improvisada foi que “O vento bate na folha

de papel e ela sobe”. Leleca, o pai, arrisca outra resposta: “É porque ela ocupa um espaço

no ar quando tá voando”. Os meninos brincam ao redor, fazendo movimentos com a pipa.

Peço para me explicarem como provocam cada um daqueles movimentos. Alice falou que

conhece bem os movimentos: “Para rebolar, a gente dá uns puxões curtos e rápidos. Para

embicar, os puxões são longos e de arranco. Pra botar no ar, tem que ver para que lado está

o vento”. Paolo diz que também sabe fazer pipa que nem o pai, mas quando não consegue,

quebra tudo. A conversa vai ficando animada. Descubro que eles moram no Tejuco, mas a

casa da vovó fica naquela ribanceira e dá pra ver o muro da horta dela, ali do meio fio onde

estamos sentados. É meio que uma divisa entre Tejuco e São Caetano. Nádia me pergunta

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sobre as atividades do Inverno Cultural deste ano e que é promovido pela Universidade.

Quer saber quais são as atrações (cantores famosos que virão fazer shows) e eu fico de me

informar para contar a ela. Já estava parecendo uma conversa de vizinhos, quando a vovó

disse que estava ficando frio e que estava na hora de ir embora. Não tinha vento mesmo.

Aparecem três menininhas, uma de 9 anos e duas de 6. A Nádia disse que elas também

costumam soltar pipas, mas, naquele momento, estavam prontas para sair e não deram

muita conversa. Me despeço e sigo em frente para subir outra ladeira.

Na rua de cima, encontro um grupinho de quatro meninos, descendo suas pipas. Parei e me

apresentei de novo. Eles me deram a maior conversa, ficaram interessados. Os nomes foram

inventados: Dezinho, JP e Coxinho. Disse a eles que não tinha importância. As idades eram

de 9, de 10 e dois de 14 anos. Dois eram do Tejuco e dois eram do bairro mesmo.

Brincavam juntos. Dois deles, de 9 e 14 anos, tinham brigado naquele dia porque a pipa do

mais novo tinha caído na horta da avó do segundo que pegou a pipa para ele. A horta era da

avó e não dele e, segundo o prejudicado, ele não tinha o direito de ficar com ela. Só se a

horta fosse dele. Aí, sim, ele podia ficar com a pipa. Fiquei curiosa para saber das regras.

Se cair na sua casa, a pipa é sua, não vale pedir se tem alguém que solta pipa ali. Mas vale

tentar, caso ninguém solte pipas. Aí, sim, você pode ter sua pipa de volta. As pipas avoadas

são de quem pegar, não vale pedir de volta. É nesse caso que dá briga: “O dono da pipa

cortada quer ela de volta e quem pegou não quer devolver”. Dizem eles que “pipa voada

não tem dono”. Tem que correr pra pegar. “A gente quebra mato no peito pra pegar uma

pipa que avoa. Tem que correr muito para pegar a pipa. A gente corre dos outros também

pra não pegarem a gente. Nessa hora, a gente grita –‘Pega, pangaré!’, ‘Pega, goiaba!’”. Por

que pangaré e por que goiaba?, perguntei. “Goiaba é uma fruta e pangaré é um cavalo”.

Mas não sabiam o porquê. Fiquei curiosa.

Quando a pipa é bonita, chamam de “pião” ou “perriga”. “Quando a pipa é feia, é lixo

mesmo”, falam os meninos. Disseram que empinavam pipas desde pequenos. Aprenderam

com familiares (pai, tio, primo). Durante as aulas, brincam de pipa só aos domingos. Nas

férias é todo dia, o dia inteiro. Basta ter vento. Perguntei de onde vinha esse vento. “De

todo lado”, responderam. “Mas não há diferença no vento, dependendo de onde ele vem?”,

provoquei. Um deles falou que já tinha visto um desenho na escola que falava da direção

dos ventos, mas que ele não sabia direito para onde era o norte. O sol estava se pondo.

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Apontei para lá e falei que ali era o oeste. “Ah! Então, para lá (apontando na direção

contaria) é o leste”, um deles fala. Aí ficou a discussão de onde seria o norte e o sul.

Falei que sempre via uma ou duas pipas ali no fim da rua, todo dia de manhã e de tarde, e

se eles sabiam de quem eram. “Aposto que é do Chester e do Dondon. São dois irmãos. São

loucos por pipas e sabem colocar as pipas no ar mesmo com pouco vento”. Prometeram me

apresentar de uma próxima vez, mas que, se eu quisesse vê-los, era só ir até a caixa d’água.

Não a grandona, que era perigosa, mas a outra, do fim da rua. Contaram que na caixa

d’água do alto do morro, a grandona, tinham encontrado pessoas mortas. Gente que não

pagou as dívidas com as drogas. Já tinham sido 7 pessoas que a polícia encontrou. Era o

melhor lugar para soltar pipas, mas ficou perigoso e os pais proibiram de ir lá. Eles já

tinham feito piquenique lá. Fizeram pipoca e tudo. Contaram que, uma vez, vinha voando

um pato que eles caçaram, cozinharam e comeram. Perguntei quem havia cozinhado o pato,

pensando ter sido uma das mães. “Foi um amigo nosso que é maior. A gente levou o pato

pra ele, ele depenou e cozinhou. Uma delícia!” A conversa tinha virado para a culinária.

Daqui a pouco íamos trocar receitas.

Estava na hora de voltar. Nos despedimos. Encontrei com a mãe e depois com o pai de um

deles que morava no Tejuco, o JP, o mais novo que tinha 9 anos. Me apresentei de novo e

falei do motivo de estar conversando com os meninos. Eles comentaram que sempre que

podiam vinham com o filho, pois ficavam preocupados. Ele ainda era muito pequeno e

moravam mais longe.

Já estava no quarteirão seguinte quando ouvi chamarem meu nome. Será que era pra saber

se eu não tinha dado nome falso? Olhei pra trás e acenei. “Tchau, até sábado! Você vem?”.

Fiz sinal positivo. Os três acenaram e deram tchau outra vez, confirmando meu nome:

“Tchau, Fátima!”

19/06/2005

Hoje é domingo e tem jogo do Brasil. Mas há muitas pipas no ar. Saio à procura dos grupos

com quem já estabeleci algum contato. Na rua acima, há dois rapazes soltando pipas.

Converso rapidamente com eles. Ambos são do Tejuco, um tem 22 anos e outro tem 24.

Trabalham de servente, mas gostam de empinar pipas quando estão de folga. Desde

pequenos soltam pipas cuja aprendizagem se fez com familiares, pai e tio. Acabaram de

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cortar uma pipa. Pergunto sobre a qualidade do cerol e eles afirmam que não usam cerol,

pois acham perigoso. Cortaram a pipa só na linha mesmo. Tinham trazido duas pipas cada

um, mas já tinham sido cortadas. Quando as pipas acabam e não há como soltar, eles vão

embora.

Caminho em direção à rua de baixo e paro na bifurcação de duas ruas, onde há um grupo

grande e heterogêneo. Alguns deles já são meus conhecidos da última vez que estivemos

“em campo”. Era a família que soltava pipas composta por Pepê, 4, Lana, 3, Paolo, 8,

Leleca, o pai, 25, e finalmente, Alice, a mãe. Junto com eles, estavam o Sr. Juca com seus

dois filhos, Gui de 9 e Gugu de 11 anos. Mais adiante, estava Dudu com uma pipa vermelha

e preta, com rabiola bicolor nas mesmas cores. Mais 4 meninos estavam para dentro do

meio fio, comentando e olhando para baixo, mas sem pipas. Deste ponto dava pra ver uma

quantidade grande de pipas no céu, com origem nos mais diversos pontos da cidade. Alice

consegue identificar a origem de todas elas. Umas estão no “Cerrado”, outras na Rua do

Ouro, muitas são do Tejuco mesmo, meninos soltando pipas de seus quintais e lajes, ou em

grupos nas ruas lá embaixo.

Os meninos correm para qualquer pipa voada que tenha chance de ser alcançada. Alice

comenta com relação à correria de Paolo: “Só esse ano, já gastou 4 chinelos com essa

correria”. O movimento é grande. Uma pipa azul corta a pipa de Dudu. A pipa é cortada,

mas ninguém se abala muito. Creio que não há muito apego às pipas, pois faz parte da

brincadeira perder e ganhar os objetos. “Ela entrou e eu nem vi”, comenta Dudu com

relação à pipa que lhe cortou.

Hoje tem muito vento e, portanto, tem muita pipa no ar. Próximas estão 2 pipas vermelhas e

1 preta. O Gui está com uma pipa flecha branca, feita de saco de plástico de supermercado.

Neste momento, há pelo menos 25 pipas no nosso ângulo de visão, muitas delas bem altas.

16:40. O grupo está bem grande. Há 13 meninos, 2 rapazes e um senhor. Leleca, que tinha

ido a sua casa, chega com uma pipa preta, onde está escrito em branco com letras muito

bem desenhadas “Leleca é nois”, de fabricação própria. Traz, também, mais linha e água

para as crianças, a pedido de Alice. A sua pipa é uma pipa personalizada. A rabiola é

supercolorida para chamar bastante atenção.

Chega Luisinho, primo de Alice, um rapaz de 18 anos, brincando com uma linha em cuja

extremidade está amarrada uma pedra. Uma funda? O Fernando já havia mencionado esta

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atividade entre os meninos lá no Pará. Chamava, se não me engano, de brinquedo parente

(porque acontecia ao redor e pertencia à mesma família da brincadeira de pipas). O rapaz

faz giros com a pedra. Pergunto o que é. Alice, que faz o papel de minha intérprete, explica

que é para uma brincadeira que se chama “cruzinho” ou “marimba”. Consiste em atirar o

peso da extremidade da linha em direção às linhas das pipas que estão baixas para tomá-las.

Também é usada para cruzar com outras linhas, outras marimbas. Luisinho disse que não

brinca mais de pipa. Já brincou muito, mas agora parou. Está mais ocupado. Toca clarineta

numa orquestra e numa banda. Também já se formou do terceiro ano. Neste momento,

chega Pino, bastante revoltado porque “uns bacanas cortaram a sua pipa e ela caiu no

quintal de uma casa”. Alice pergunta por que ele não a pediu de volta. Ele responde que,

“na casa dos bacanas, só faltam soltar os cachorros, quando eles pedem as pipas que caem”.

Alice protesta: “Você está muito revoltado hoje, você mesmo me contou que no outro dia a

dona da casa azul, que é professora lá na escola Estadual, deu uma pipa pra você, quando cê

pediu água pra ela”. Pino confirmou. Mas disse que agora ia empinar pipa lá da laje dele

que era pra ninguém ver onde ele estava, que ninguém mais ia “banhar a linha dele”.

Explicou que “banhar a linha” significava “roubar a linha” do outro. Os bacanas tinham

banhado a linha dele.

Paolo, filho de 8 anos de Alice, corre barranco acima, para pegar uma pipa que avoa. Alice

protesta. Está com um pé calçado e outro não. Resmunga: “Deixa ele reclamar que o joelho

dá choque, que o pé tá doendo e que não consegue enfiar na chuteira”.

Muitas pipas estão avoadas ao redor. Pepê, de 4 anos continua com sua pipa. Já fez várias

vezes o esforço de mantê-la no ar, mas acaba por ter que baixá-la quando a rabiola se

enrosca. É um espetáculo vê-lo, tão pequeno, com tanta habilidade para soltar sua pipa. É

um “pitoquinho”, de casaco e touca de lã, fazendo as maiores manobras para manter sua

pipa no ar. O movimento do braço que segura a linha é amplo e constante, quando ela está

no ar. Luisinho o ajuda a soltar sua pipa mais uma vez. Uma pipa começa a “entrar” na pipa

do Pepê. A mãe grita pra ele baixar e avisa o pai: “tão entrando na pipa do Pepê!”. O pai dá

carta branca: “Deixa ele! Dá linha, Pepê!” Paolo, o irmão, tenta ajudar. É a maior gritaria.

Cada um fala uma coisa. “Vai cruzar”, grita a mãe. “Deixa ele!”, grita o pai. “Sai daí,

Pepê!”, grita um outro. Afinal, o Pepê consegue o direito de permanecer no ar por sua

“conta e risco”. “Dá linha, dá linha!” Mas não adianta. Cortaram a pipa do Pepê que nem

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parece se importar. Parece que já estava preparado. Penso que o melhor para ele foi poder

assumir a disputa e perder com alguma honra. Parecia orgulhoso de ter cruzado, mesmo

perdendo o brinquedo. Não seria a primeira vez. Alice conta que o pai já tinha perdido

muitas pipas feitas por ele mesmo, “cada uma mais linda que a outra”. Quando a pipa caía

do outro lado da cidade onde Leleca tinha família, todo mundo já sabia que a pipa era dele,

só pelo jeito de fazer a colagem.

O sol vai se pondo. No céu, a lua começa a aparecer. Alice conta para Leleca que Paolo

está se enfiando “naquele buraco” (uma cratera perto da rua esburacada onde os cavalos se

metem para pastar). “Pior pra ele. Vai dormir sozinho com os carrapatos”, responde o pai.

Alice diz sentir saudades de quando brincava por ali, na sua infância. Diz que havia uma

enorme manilha que saía do outro lado do bairro, onde eles entravam para viver grandes

aventuras. Pergunta pra Luizinho se ainda existe a manilha. Luizinho diz que deve haver,

mas deve estar cheia de terra e mato, não dá mais pra andar lá.

Combinei com Alice que, da próxima vez, iria trazer uma pipa para nós duas empinarmos.

Quando nos despedimos, ela me lembrou deste combinado: “Não esquece de trazer sua pipa

pra gente soltar, hein?!

Subi o barranco em direção à rua de cima. Encontrei Samuel que havia perdido a sua pipa.

Ela se quebrou quando caiu em cima da laje de uma casa. Não deu pra recuperar.

Achei outro grupo com 5 meninos, apoiados na placa de “vende-se” de um lote. Quatro

deles eram do bairro de Matozinhos, do outro lado da cidade, e um era do Tejuco. As pipas

já estavam com a rabiola enrolada e eles, prontos para descer o morro, mas ainda

conversando fiado sobre os feitos daquela tarde. Entre as pipas “aparadas” estava a do

Pepê. Falei que conhecia uma daquelas pipas. Contei, para surpresa deles, que tinha sido de

um menininho de 4 anos. Um misto de pena e admiração pelo menino, mas não cabiam

julgamentos, pois as regras eram iguais para todos. Naquelas circunstâncias, ninguém sabe

quem está segurando a linha embaixo de cada pipa. E todos sobrevivem sem traumas.

26/06/2005

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Outro domingo. Pela manhã, tive o cuidado de observar a folhagem das árvores, conforme

já haviam me ensinado, para ver se o vento estava bom pra pipa. Tudo parado. Será que vai

dar pipa hoje?

À tarde, elas começam a aparecer. Desci até a rua onde havia a indicação de um grande

número de pipas, no mesmo local onde havia encontrado a família de Alice. Lá, no

comecinho da rua, estava Seu Juca com os dois filhos, acompanhados de colegas. Eram 7

meninos ao todo. Além do Gui e do Gu, estavam Julinho, Sheik e Paulo com 11 anos, mais

Coxinho com 14 e Iago com 16. Comento com eles da animação da rua com tantas pipas

naquele dia. A conversa fica animada. Querem saber mais do que estou fazendo. “A

senhora é estrangeira?”, pergunta um deles. Digo que não, que sou daqui mesmo e que

moro aqui no bairro. “Pois parece estrangeira”, rebate. Parecem interessados em falar da

brincadeira que lhes ocupa. Tem uns modelos novos de pipa no ar, neste dia. São as pipas

flecha, construídas com apenas duas varetas e que sobe sem rabiola. Eles desfiam os nomes

pelos quais costumam designar o brinquedo: “cafifa”, “flecha”, “sureco”, “caixote”, “pião”,

“papagaio”. Um dos meninos tem uns pedaços de papel preto presos na linha superior da

armação. Diz ele que são “zoadores” para fazer barulho quando puxa e bate o vento. Tem

um cachorro rottewiller amarrado no galho de uma árvore. Pertence ao Sr. Juca. Faz

barulho quando passam duas motos, mas no restante do tempo, está calmo observando o

movimento.

Alguém pergunta sobre o Inverno Cultural. Querem saber se vai ter alguma coisa de pipas.

Comento que poderemos organizar um torneio e talvez uma exposição. Perguntam onde vai

ser. Fico sem saber dizer direito. Pretendo pensar sobre o assunto, já que há o interesse.

Para isso, precisaria recrutar alguns aliados. Talvez a Cemig pudesse dar algum patrocínio.

Conto pra eles que no ano passado teve um torneio de pipas, lá no morro do Cristo. Eles

não gostaram da idéia de ser lá. “Lá só tem alemão. Vão roubar as nossas pipas”. Pergunto

o que eles estão chamando de “alemão” e eles respondem: “É gente ruim, que faz coisa

ruim” Fiquei sem entender e eles também não souberam explicar o porquê daquela

conotação, mas perguntei onde eles achavam que deveria ser o torneio. A resposta veio

óbvia: “Aqui mesmo”.

Andei um pouco mais para ver quem eram as outras pessoas que estavam na rua. Encontrei

um pai, outro Sr. Juca com os filhos gêmeos, o César e o Silas, de 11 anos, acompanhados

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de mais um amigo, o Lucas de 8 anos. O Sr. Juca comenta que ali só tem nome bíblico.

Moram no Tejuco e costumam vir soltar pipas aos domingos, pois nos outros dias trabalha

de mecânico. Comenta que cada época no ano é propícia a um tipo de brincadeira. Nestes

meses começava a temporada das pipas, mas era o mês de agosto, por causa dos ventos, que

era o auge dessa atividade. Quando chovia, as bolas de gude eram a preferência da

garotada. No caso das pipas, como tinham que subir o morro, preferia vir com os meninos,

pois estes sempre correm o risco de encontrar algum moleque “barra pesada”.

Mais adiante, há outro grupo. Encontro com os meninos que conheci no outro dia e que me

deram a maior conversa. Eles me cumprimentam pelo nome ao que retribuo. O Dezinho me

chama a atenção para a “nova moda”, apontando para o céu. Eram as pipas flecha. Diz ele

que, antes, a gente quase não via uma pipa flecha, mas que uns meninos do Rio tinham

colocado uma no ar e que cada dia ia aparecendo mais pipas flecha. Junto com Dezinho

está JP e vêm chegando mais dois que passo a conhecer, o Zu e o Tanaca. Os primeiros

haviam falado de mim para os segundos: “Essa é aquela moça que eu te falei, que tá

fazendo o trabalho sobre as pipas”, fez a apresentação. Os segundos queriam saber de mais,

do que que eu ia fazer. A princípio, o Tanaca conta que pegou dez naquele dia. No minuto

seguinte, reconhece que foram apenas duas. Zu diz que cortou 4. O Dezinho e o JP estão

sem pipas. Brinquei dizendo que precisava trazer algumas para esquentar a brincadeira. “É

isso mesmo! É isso mesmo!”, gritaram entusiasmados os meninos. “Traz pipa pra gente”

Prometi pensar no assunto, mas ponderei que talvez fosse melhor trazer material pra cada

um confeccionar a sua, já que todo mundo ali sabia fazer pipa. “OK, você trás a vareta e o

papel que a gente traz a cola, a linha e a tesoura”, combinaram.

Andei um pouco mais para cumprimentar Alice, Dudu e mais um casal que acompanhava

Alice, sua irmã e o namorado. Alice me pergunta sobre a pipa que eu deveria ter trazido.

Expliquei que achei a pipa, mas não sabia onde havia posto o carretel. Fui relapsa e não

cumpri com o prometido. Responsabilidade redobrada para minha próxima vinda, ainda

mais que os meninos esperavam que eu lhes trouxesse o material para a confecção de suas

pipas.

Dudu estava com uma pipa preta com tiras vermelhas e amarelas se cruzando num

quadrado. Perguntei a Dudu quanto tempo levava para fazer uma daquelas. “Uma meia

hora, mais ou menos”, respondeu. Leleca e outros 5 rapazes estavam sentados no meio fio

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com suas pipas no chão: Rodrigo, Dezinho, Pino e mais dois a quem não perguntei o nome.

Leleca estava com a sua famosa “Leleca é nois” e Rodrigo, com quem havia estado no

outro dia, estava com uma pipa de escamas multicoloridas. Belíssimas pipas! Pareciam

troféus exibidos com o maior orgulho. Afinal, ali estava o resultado de trabalho paciente,

engenho e arte.

Pepê está usando um boné vermelho. A mesma animação de sempre. Junto com ele estão

outros meninos, um da mesma idade e outros um pouco maiores. Lana marca sua presença

entre os meninos. A brincadeira está animada. Os meninos menores correm em bloco com

suas pipas, procurando vento. Um dos meninos corre olhando pra cima em direção à pipa,

com o risco de tropeçar e cair. Os adultos gritam: “Olha pro chão, menino. Senão você vai

cair!”

Lá na rua de cima tem um casal com uma panela. “O que eles estão fazendo?”. Não é que

eles estão soprando bolinha de sabão? Dá pra acreditar?”, comenta Alice. Percebo que há

uma criança com eles.

O assunto do Festival de Inverno retorna, pois Pepê quer encontrar pessoalmente com uma

dupla de cantores de quem é admirador. A mãe deseja lhe proporcionar este encontro.

Seguindo o assunto sobre a universidade, Alice comenta que tentará fazer o vestibular outra

vez. Ela quer fazer o curso de biologia, pois gosta muito de experimentar, principalmente

na cozinha. Se não der, ela vai fazer um curso de mestre cuca lá em Barbacena, no centro

profissionalizante do Grogotó. Pergunto se ela está trabalhando. Ela comenta que as idas do

Pepê ao médico têm lhe deixado pouco tempo para realizar alguma atividade. Fiquei

curiosa sobre o estado de saúde do Pepê, pois não havia notado nenhum indício de que

estivesse doente. Ela fala, com um misto de mágoa e pesar, que ele sempre teve problemas,

desde que nasceu: anemia e agora uma dificuldade de respirar que lhe deixava com dor no

peito. Logo ficava cansado com qualquer esforço. Os médicos da cidade não souberam

diagnosticar e ela teve que levar o menino a BH.

Pepê vai me mostrar como ele faz rabiola para suas pipas. O menino resiste, a princípio,

mas logo não se faz de rogado. Enrola a linha no dedinho, dá uma volta rápida para fazer a

laçada, prende a tirinha de plástico, vai acrescentando as outras tirinhas ao fio. A expressão

no rosto afogueado do menino é impagável, um pouco de maroto, um pouco de orgulhoso

com o feito.

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Leleca diz que vai fazer uma pipa pra mim com o “escudo” da UFSJ. Certifica-se das cores;

“É verde e branco, não é?”

Desta vez, não só eu, mas todo o grupo consegue ver um casal de tucanos que passa. Na

verdade eram três. Pousaram em uma árvore e depois levantaram vôo. É interessante que o

nosso olhar passa a ficar treinado em observar o céu, depois que começamos a estudar as

pipas. Bem mais cedo, na manhã daquele domingo, eu já havia visto, além dos pássaros que

normalmente freqüentam a região, um bando de maritacas de um verde quase reluzente. Os

biquinhos de lacre, as andorinhas e os pica-paus também estavam na área. Estávamos nos

familiarizando com assuntos aéreos, com certeza.

03/07/2005

Me preparei, durante toda a semana para honrar o compromisso que havia assumido com o

grupo que soltava pipas na rua de baixo, na tarde do último domingo. Tendo verificado que

havia meninos sem pipas, pensamos juntos na possibilidade de eu poder contribuir para

sanar esta falta. Havíamos combinado, então, de que eu traria as varetas de bambu e o papel

de seda, material que não me foi nada difícil de apanhar na Brinquedoteca da universidade

do que restou da oficina de pipas promovida no ano passado. Os meninos ficariam

encarregados de trazer a cola e a tesoura. Desta forma, todos estariam engajados e

partilhariam da responsabilidade por uma atividade que interessava a todas as partes. Eu

ainda não tinha conseguido construir uma pipa, eles estavam sem o material que sobrava na

universidade. Não seria esta uma oportunidade de termos a chance de nos transformarmos

mutuamente de uma maneira que nos deixaria, ao mesmo tempo, mais interessantes e mais

interessados? Havia terminado de ler um dos livros da Despret e tomei este encontro com

minhas pipas e seus pipeiros como aquele que poderia ser dar “sob os auspícios da

oferenda”. Por que não? O que me impedia? Talvez alguma daquelas normas de higiene

que vê a pesquisa como um movimento de purificação em que pesquisadores têm que

manter-se resguardados de qualquer mistura com aqueles a quem interroga. Pois bem,

decidi correr o risco!

Cheguei à rua com meu “amarrado” de varetas e folhas de papel de seda, mais duas pipas

que tinha em casa com respectivo carretel de linha 10, mais bloco, mais câmera. Estava o

próprio cabide. Havia umas sete pipas no ar e um grupinho de 5 meninos. As outras duas

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pipas estavam com meninos num ponto da rua um pouco mais abaixo. Logo no início da

rua, encontrei alguns meninos conhecidos que foram logo me pedindo as pipas. Expliquei

que eram para soltar conforme havia prometido a Alice, mas que se quisessem poderiam

fazer suas pipas com o material que estava trazendo. O Sr. Juca, um dos pais presentes no

domingo passado estava lá, na sombra de alguns arbustos. Logo adiante, encontrei Alice e

Lana. “Olha! Ela veio mesmo!”, exclama assim que me vê. Falei que ficaria muito feio se

não cumprisse o prometido, pois já havia falhado da última vez. Caminhamos em direção

ao ponto onde estava a maior concentração de meninos soltando pipa. Alice andava ao meu

lado comentando o que os meninos perguntavam a meu respeito. As fantasias expressas

eram as mais engraçadas: ela é estrangeira? Por que ela está aqui? O que tanto ela quer

saber sobre as pipas? Será que ela é da polícia? Penso que houve um espaço de confiança

para que Alice pudesse fazer esses comentários pelo fato de eu estar ali tentando praticar

uma pesquisa, a procura do “justo meio”177, possibilitando um encontro em torno de

apostas comuns, fazendo uma cortesia a quem estava me possibilitando uma ligação com o

grupo pesquisado. Assim como Goodall com o David, eu estava pedindo a um membro do

grupo que me ensinasse as regras de polidez e hospitalidade daqueles por quem eu desejava

ser acolhida (Despret, 2002). Leleca estava lá com Pepê e Paolo. Pepê havia perdido a sua

pipa de teia. “Me dá um dessas?”, apelou. E eu não resisti: “Toma! Quem sabe você me

ensina a soltar, Pepê?” Havia mais meninos que eu não conhecia. Nos apresentamos e outra

vez os meninos me perguntaram para o que era aquele material, se eu daria pipas a eles. Ao

invés de dar, convidei-os a utilizar o material para fazerem suas próprias pipas. Afinal,

todos eles saberiam fazê-las. O grupo que eu acabara de conhecer ficou reticente, mas todos

curiosos. Eram meninos maiores com idades entre 13 e 19 anos. O de 19 era um rapaz com

os membros atrofiados provavelmente pela talidomida. Alice me falou que eu precisava

conhecê-lo: soltava pipa com apenas um dedo e fazia de tudo que os outros eram capazes

de fazer. Havia também uma menininha de 6 anos, Lalá, irmã de um deles. Foi uma das

primeiras a se arriscar na construção de uma pipa. Para os menores, não parecia tão

177 O “justo meio” é para Despret (2002), “o ponto de partida necessário para me permitir de encontrar o que os gregos chamavam o ‘justo meio’ da ação: um pouco de muito, um pouco de muito pouco; um pouco de muito se a tendência é muito pouco. A ação justa se constrói em seu ajustamento” (p. 143). Em pesquisa, seria o ponto médio em que se faria o ajustamento de práticas e de interesses híbridos, possibilitando a distribuição das ações entre aqueles que interrogam e aqueles que são interrogados, recebendo uns dos outros a chance de se transformarem mutuamente, tornando-se cada vez mais interessantes e competentes.

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arriscado fazer a construção de uma pipa. Para os maiores, o desafio poderia expô-los à

avaliação de suas competências perante os pares que não poupam críticas e provocações.

Alice mobilizou Leleca a pegar cola e tesoura, já que os meninos que se comprometeram a

fazê-lo não tinham aparecido ainda. Enquanto isso, ela sentou-se no meio fio para ler as

cópias do diário de campo que eu havia lhe dado para conhecer. Expliquei que pretendia

mostrar-lhe o que havia escrito das observações feitas com aquele grupo. Era para que

avaliasse se as observações estavam corretas, se faltava alguma coisa que eu havia

esquecido ou se eles gostariam que eu retirasse alguma observação impertinente. Ela

poderia ler com calma em casa e depois me dar um retorno. Ficou um bom tempo entretida

com a leitura e não se animou a soltar pipa comigo, conforme havíamos combinado. “Está

bom de ler. Não estou conseguindo parar”, ela comenta. Segundo um dos meninos, se era

difícil soltar pipa sem vento para quem já sabia, imagine pra quem não tinha prática. Não

seria por falta das pipas que eu havia levado, pois, neste momento, um menino desceu a

ribanceira carregando a pipa cortada do Pepê que imediatamente foi reconhecida por ele.

Alice logo advertiu que o menino não iria devolvê-la, pois “pipa cortada não tem dono”. Só

que, vendo o Pepê, num rasgo de boa vontade, o menino maior aceitou devolver a pipa

dele. No mesmo instante, ocorreu o movimento de me devolver a pipa que eu havia

disponibilizado ao Pepê quando cheguei. “Já que você teve sua pipa de volta, devolve a

pipa dela Pepê”, falou Alice.

Em pouco tempo, mesmo os “reticentes” quanto ao uso do material que eu levei estavam

todos ao redor, pedindo uma vareta, uma folha de papel seda, um pedaço de linha, o carretel

todo e assim por diante. Perguntaram onde eu havia comprado. Expliquei que era o material

que estava na Brinquedoteca. Eles comentaram que as cores mais bonitas podiam ser

encontradas na Colegial, mas que lá era mais caro. Disseram que nessa loja tinha até papel

de seda dourado, coisa que eu nunca vi, uma novidade para mim. Fiquei de investigar.

Finão, de aproximadamente 12 anos, sentou-se na minha frente e disse que ia fazer uma

pipa. Perguntei se podia ir fazendo junto com ele pra aprender. “Vou fazendo e você vai

fazendo também. Assim você aprende! São três varetas: uma maior e duas, um pouco

menores, de tamanhos iguais. Você amarra a linha na ponta de cima da vareta que vai ficar

em pé e vai enrolando até chegar na que vai cruzar, você tem que medir bem pra ficar no

meio, senão a pipa vai subir torta. Tem que prender essa vareta, passando a linha pra lá e

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pra cá, cruzando. Aí você enrola a linha na vareta que está em pé até chegar na outra vareta

que cruza. Vai enrolando a mesma linha até o fim da vara principal. Aí, depois, você vai

passando a linha fazendo a armação e amarrando bem em cada ponta. Aí, você pode cobrir

com o papel de seda.” Minha armação, “pra variar”, ficou toda torta. Alice ia me

corrigindo, dizendo onde eu deveria desatar para retomar o processo de onde eu havia

errado. Mais adesões foram acontecendo em torno do material. Leleca resolveu fazer uma

pipa que começou a ficar super cobiçada. Perguntei se podia fotografar o grupo

trabalhando. Os menores se candidataram imediatamente. Queriam se ver nas fotos.

Pediram para as fotos serem maiores para se verem melhor. Pepê e Lana fizeram pose com

as pipas na mão. Lalá pediu para ser fotografada. Depois veio o irmão maior que disse que

não queria ser fotografado a princípio, quando estava no grupo com seus pares. Fez pose e

colocou óculos escuros para sair na foto com a irmã. No meio fio, Leleca faz rabiolas

cortando sacos plásticos de supermercado. Lana ajuda do jeito dela. Acaba atingindo a

famosa pipa do pai, a “Leleca é nois”. O pai se lamenta com ela: “Assim você acaba

comigo!” Depois acaba revendo a sua posição: “Não tem importância. A gente faz outra e

eu dou um jeito de consertar essa”. Os meninos começam a reclamar das varetas: “Quem

afinou essas varetas?”, perguntam em tom de censura. Explico que foi o pessoal dos

serviços gerais da UFSJ que cortou e afinou as varetas retiradas do bambuzal que fica no

fundo do campus da universidade. “Tá mal cortado!” reclamam. Alice retruca: “Ô povo

estressado. Vêm soltar pipa e ficam reclamando de tudo. Mas bem que estão usando!” Ela

está cortando alguns detalhes no papel de seda e vai me ensinando a colar. “Você tem que

cortar os pedaços que vão por cima um pouco maiores que os vazados que você fizer e

colocar só um fiozionho de cola. Vou deixar esse aqui pronto pra você fazer em casa. Da

próxima vez, você traz pronto. Aí você já aprendeu”. Quanto ao papel de seda, também me

ensinou que nem toda cor combina, quando a pipa está no alto. Pelo que eu entendi, cores

muito semelhantes perdem o contraste, lá em cima, pois parece que é tudo igual. Por

exemplo: duas cores claras; verde com azul; amarelo com verde; rosa com vermelho etc.

Foi assim que saí de lá com uma tarefa para cumprir em casa. Acho que eles precisavam

checar meu aprendizado.

Não posso dizer que consegui soltar pipa neste dia. Será mais correto dizer que olhei mais

tempo para o chão, para o movimento de construção das pipas do que para o alto. Cheguei

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ao local com duas pipas que lá ficaram, dadas a outros meninos por Leleca e Pepê. Todos

saíram satisfeitos e eu saí de lá com outras duas pipas que me foram gentilmente ofertadas:

a super cobiçada construída por Leleca e a super cobiçada “Leleca é nois”. Argumentei que

não poderia levar a última. Sabia da importância que ela tinha e que ela só fazia sentido nas

mãos de Leleca. Alice falou que eles gostariam muito que eu a levasse, que ficariam

aborrecidos se eu a recusasse. Leleca falou que era pra exposição. Foi aí que percebi que a

idéia de fazer a tal da exposição de pipas tinha se tornado irreversível. Pedi a ele pra pensar

na história daquela pipa, de como teve a idéia de fazê-la, de como a construiu, de como e

por que escolheu aquelas cores, das batalhas travadas no ar, enfim de tudo que havia ficado

deles no objeto. Falei que gostaria de coletar essa história de cada pipa quando pensei em

fazer a exposição. Sem dúvida, foi o encontro marcado pela troca de oferendas. Será esta

uma das formas de expressar a “politesse du faire connaissance” de que nos fala a Despret ?

13. 07.2005

Hoje é quarta-feira e, apesar do frio, o dia está ensolarado e o vento está ótimo para soltar

pipas. Voltei a fazer as minhas visitas ao campo depois de uma gripe que me deixou de

cama neste último fim de semana. Além disso, tivemos uma frente fria que fez despencar a

temperatura e o movimento das pipas diminuiu, pelo menos no meu desejo de não viver o

conflito de querer estar lá e, ao mesmo tempo, não me sentir em condições para sair de

casa. Tem umas seis pipas no ar, vistas pela minha janela. Desço para ver o movimento e

encontro 4 meninos que brincam juntos, alguns deles já conhecidos. “Quem está aí com

vocês?” pergunto a um deles que me esclarece: “Eu, aquele ali, o baixinho fazendo rabiola

e um deficiente”, referindo-se a Binho, de 19 anos, que não tem nada e deficiente.

Chamam-no assim porque seus braços foram atrofiados pela talidomida. Logo eles se

retiraram para um pouco além no quarteirão. Achei que poderiam estar constrangidos com a

minha presença e resolvo descer a rua para ver outro grupo. No terreno baldio que se presta

a um pipódromo, brincam 4 meninos. Me apresento e peço licença para observar a

brincadeira. Eles dizem não se importar. O Túlio já era meu conhecido de outro dia em que

estive no mesmo lugar. Lá também estava o Vity e mais dois, um pouco adiante. Têm por

volta de 12 anos. Os dois primeiros estão na direção das linhas dos meninos com quem eu

havia estado lá em cima. A pipa do Túlio é amarela e preta, a do Vity é amarela com o

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biquinho inferior rosa. As pipas dos outros meninos estão mais altas. Atrás de nós, consigo

ver mais duas à direita e mais três à esquerda. Os outros dois meninos vêm subindo a rua

com pipas na mão. Um deles é o Dedê que se chega ao grupo. Falam sobre não ter vidro

para fazer cerol. O outro é o Tchusca. Ambos também já são meus conhecidos da vez em

que estive aqui. Agora, os 4 meninos estão com suas pipas no chão, enrolando suas linhas.

Ouço gritos: “Avoada ali!”, “Cadê?”, “Espera aí, Dedê!”. Dedê sai correndo para ver a

avoada que cai perto. Logo depois, corre Tchusca que é seguido por Túlio. Conseguem

apanhar a avoada. Discutem onde colocar a pipa que resgataram. A pipa de Tchusca é,

segundo um dos meninos, “uma pipinha rosinha”. Ele se defende: “Foi o que eu consegui.

Não tinha pipa com X, nem cerol tinha lá”, referindo-se ao lugar onde comprou o

brinquedo.

“Olha lá outra avoada preta cheia de linha!” Mais 4 meninos e um cachorro aparecem para

resgatá-la. Dedê e Tchusca voltam correndo com a notícia: “Ninguém pegou, não!”

Há pessoas me observando na casa recém ocupada em frente ao “pipódromo”. São novos

vizinhos e nós não nos conhecemos ainda. Devem estranhar a minha presença ali, ainda

mais anotando sem parar.

Túlio e Tchusca colocam suas pipas no ar outra vez. Dedê escolhe uma das pipas

encostadas para lançá-la ao ar. Vity o ajuda levando a pipa a uma certa distância. É Vity

também quem ajuda Túlio a abri r o vidro de cerol. Vai soltando a linha ao mesmo tempo

em que passa pela mão cheia de cerol. Parece outra maneira de passar cerol na linha. Já

tinha visto passar o cerol na linha amarada a duas extremidades quaisquer, especialmente

nos postes das ruas ou nas árvores. Vinicius coloca sua pipa no ar sozinho. Dedê se oferece

para ajudá-lo: “Deixa eu levar pra você!” Retribui a Vity o favor que havia recebido dele

momentos antes. Mas a pipa não consegue subir. Tchusca e Túlio avisam da direção do

vento. Eles mudam de posição, mas a pipa teima em cair. Vity fica com a linha de Tchusca

enquanto este tenta colocar a pipa teimosa no ar, mas sem sucesso. Dedê se oferece: “Me dá

aí Tchusca, deixa eu levar ele ali pra você”. A pipa finalmente sobe. Tchusca dá linha e ela

sobe mais.

Olhando pro céu, Túlio começa a identificar as pipas de quem conhece: “Aquela é do

Fulano (não consegui anotar o nome). Ele desenha bem pra caramba” Os meninos se

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distraem. Por pouco, a linha da pipa que Dedê solta não entra na linha de Tchusca. Trocam

palavrões impublicáveis.

Agora, as 4 pipas estão no ar. Repete-se aquela cena em que os meninos estão enfileirados

com suas respectivas linhas parecendo pescar.

Duas pipas voaram depois de uma cruza. “O cerol do Túlio tá bom pra caramba”,

comentam os meninos. Mais cruzas. Momentos de emoção. A pipa de Túlio foi cortada e a

outra está tentando aparar com a linha. Os meninos recolhem às pressas a linha que restou

sobre a rede elétrica. De repente, os meninos estão sem suas pipas depois das cruzas. O

vento não lhes é favorável, pois quando avoam, as pipas caem todas mais para cima do

morro, rua acima. Esperamos para ver qual seria o próximo passo. Eles conversam tentando

elaborar o acontecido: “Se eu tivesse linha pra descarregar, eu cortava a aparava ele”, diz

Túlio. “Fui obrigado a jogar por cima” fala Dedê. Túlio avalia a sua média: Tá bom! Hoje

já tinha cortado duas mesmo. Dedê contesta: “Cortou nada! Ela tava avoada” “Mas foi a

minha linha que cortou ele”, defende-se Túlio. Dedê fala que tem dez contos e que vai

comprar um pião dos grandes. Túlio continua achando que “se tivesse mais linha, tinha

cortado ele. Duas foram embora com a minha linha”.

Dedê tenta colocar outra pipa no ar. É vermelha e tem um X preto. É o único que tem a pipa

no ar, dos quatro. Tchusca ainda tem a pipinha rosa, mas está na sua mão. Logo ele a coloca

no ar com uma rabiola emendada com dois sacos plásticos, um verde e um amarelo. Os

meninos discutem quem ficou mais tempo no cruzo178. A pipa rosinha baixa.

Perguntei onde os meninos compravam suas pipas. Todos falaram que faziam, menos Vity.

Mas afirmaram que qualquer padaria, bar ou armarinho vendia.

A pipa de Tchusca que estava muito alta acabou voando. Só restava a de Dedê.

Perguntaram as horas. Eram 16:15. Perguntei até que horas eles costumavam ficar

brincando. A resposta: “Até umas 5 horas, ou quando não tiver mais pipa pra soltar”. “Até

quando escurece”, sentenciou um dos meninos.

“Deixa eu estrear sua pipa aí, Dedê!”, pediu um dos meninos. Era a única pipa que havia

sobrado. Cada um dos meninos enrola a sua linha nos pedaços de cano de PVC. Se não

aparassem nenhuma avoada, a brincadeira ia terminar. Em breve, como o vento não estava

muito favorável, eles desistiram e foram embora.

178 Ainda não tenho certeza se o nome certo para a disputa é “cruzo” ou “cruza”, ou se valem os dois.

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14.07.2005

Quinta-feira. Vou ao “pipódromo” de ontem encontrar com os 4 meninos que estão

soltando pipa: tem o Tchusca, o Iago, o Pião e o Teteus que logo me reconhece. É filho de

uma colega do curso de francês e já tínhamos estado juntos numa festa. Os meninos

comentam que já tinham aparado duas pipas, já estando uma delas, a preta, no ar. Atrás de

nós, duas pipas estão plantadas no Guarda-Mor. Mais a frente, há três. As pipas dos

meninos que observo estão no cruzo com as de trás. Os meninos se animam: “Vai, cruza

com aquela lá! Dá linha, dá linha!” incentiva um deles. “Quer parar de me ensinar? Eu sei

mais do que vocês!”, responde o outro. A cruza quase que resulta na outra pipa cortada.

Cai uma avoada. Teteus cuja pipa está sem linha, é convocado para pegá-la e sai correndo

montado em sua bicicleta. Volta explicando que “já tinha três lá pra pegar”. Os meninos

começam a se queixar de sede. Teteus sabia que eu morava perto dali. Acabei por me

oferecer para pegar água para eles. Por que não?

Quando voltei, já dava pra contar umas 12 pipas no ar contando com as que estavam com

os meninos que eu observava.

A pipa de Iago começou a fazer umas espirais no ar. Quis saber como ele conseguia aquele

efeito. “Ela faz sozinha. É quando a rabiola tá mal feita, faltando fitinha”. Noto que Teteus

consegue o mesmo efeito com outra pipa.

A pipa do Tchusca enrola sua rabiola em outra lá em cima da rua. “Puxa aí!” “Eles vão

pegar a minha pipa na mão179. Ta vendo? Eles cortaram!”

Três pipas voaram em cruzas próximas. Tchusca manda as pipas que estão no ar pegarem

as avoadas com suas linhas. Momentos de frisson. Os meninos fazem movimentos para

apararem as avoadas com as linhas de suas pipas. Um deles consegue pegar uma avoada

pela rabiola. Vem caindo outra, “Vai lá, Pião! Joga a linha!” Mas as duas terminam caindo

e os meninos não conseguem apará-las. Os meninos se xingam.

Tchusca e Teteus se preparam para lançar uma pipa que estava na reserva.

Mais uma pipa avoada. Alguém lá no campinho consegue apará-la com a linha.

Momentos de calmaria. As pipas estão voando alto.

179 “Na mão” é quando a pipa é cortada com muita linha, perto da mão do empinador.

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De novo a gritaria: um dos meninos vai para um cruzo, mas este não dá em nada. A pipa

rosa consegue se safar do assédio da outra. Mais gritaria e os meninos correm na direção

oposta. “Olha a arraia! Lá vem ela!” Trata-se de uma enorme pipa flecha (ou arraia, como

também é chamada) que vem na direção do aterro. Não tinha como não pegar. Parecia um

presente caído do céu. Não houve disputa entre os meninos para ver quem ficava com a

arraia. O Teteus, único sem pipa ficou com o “pião”. Disse que tinha que levar para a

escola para mostrar.

Teteus vem me mostrar como corta o cerol de uma das bobinas enroladas. “Pode pegar.

Não corta, não! Olha como tá grossa!”

Teteus coloca o seu pião no ar. “Lá em BH, eles só soltam isso!”

Passam dois homens junto com o PP, garoto da pipa flecha que encontrei um dia desses lá

no campinho. O grupo estava com um cachorro preto (o mesmo que os acompanhava na

ocasião) e traziam uma garrafa pet. Teteus pergunta o que tem dentro. “É garapa”. Teteus

duvida: “Garapa mesmo?” O homem fica irritado: “É sim, garoto burro! Não me viu

passando com a cana? Nós moemos e fizemos garapa. Quer um pouco?” Teteus não se faz

de rogado e aceita. O homem vira-se para mim e pergunta: “Aceita?” Agradeci. Os dois

homens e o PP com o cachorro atrás descem a rua.

Começou a fazer sombra em algumas partes do aterro quando o sol começou a declinar.

Estava esfriando. Desloquei a pedra em que estava sentada para um lugar em que ainda

batia sol. Teteus me mostra mais uma vez o seu pião flecha. “Olha só o tamanho!”

Todas as pipas avoadas iam na direção ao alto do S. Caetano. Comentei com os meninos

que o pessoal de lá devia estar pegando todas. Perguntei por que soltavam pipa ali naquele

lugar, pois era mais baixo e havia rede elétrica. Eles falaram que lá em cima ficava muito

cheio.

Teteus consegue soltar a vermelhinha, pipa da qual Tchusca havia falado mal. “Pipa ruim,

pipa feia”, dizia Tchusca blasfemando contra o brinquedo que não queria subir. Os dois

passam a se revezar, dividindo a pipa vermelha que está bem alta agora. Há 5 pipas lá à

frente, mais no alto do morro e mais 4 atrás, no Guarda-Mor. Tchusca consegue aparar um

pedaço de rabiola. Uma pipa começa a rodar. Um dos meninos grita: “Dá linha que a gente

corta”. Teteus prepara a marimba.

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Os meninos começam a conversar sobre as pipas do Rio e de BH. Depois falam sobre os

jogos do BH Shopping. O Hot Zone é logo lembrado. E os hambúrgueres do MacDonalds?

Comparam com os hambúrgueres de SJDR. Os daqui ganham longe no preço e no tamanho.

As coisas estão tranqüilas até a pipa vermelha, que está com o Tchusca, se enroscar com

uma verdinha, lá no alto. Tchusca avoa. Iago que estava no ar durante um bom tempo com

a pipa preta entra num cruzo e perde a pipa. Os meninos reclamam de perder a linha: “É por

isso que, se tivesse uma arma agora, não ia dar certo. Sabia que tem gente que mata por um

carretel de linha? Agora já ta custando 4,00 reais um com 457 metros. A gente entra num

cruzo e fica só com 10 metros”. Teteus me pergunta se eu sabia que ele tinha operado o

ouvido. Começa a contar a cirurgia, de como tinha sentido a anestesia. Depois fala da

cirurgia da avó. Os meninos se chegam para contar aventuras parecidas. Tchusca diz que

vai ao dentista.

Dá pra ver 5 pipas sobre o campinho. Tchusca e Teteus correm para pegar a linha que ficou

caindo com a pipa. Os meninos começam a ficar sem opção. Uns convidam para ir ao S.

Caetano. Entendo que é um campo de futebol onde jogam bola.

Me dizem que a flecha vai ser desmontada para virar uma pipa comum. Segundo os

meninos, “a flecha é mais difícil de soltar porque tem que ficar puxando mais longo. As

outras dá pra ficar puxando menos”. Uma sirene toca lá do outro lado do morro. Os

meninos ficam ouvindo, pois é a sirene da Escola Estadual. Imaginam o que está

acontecendo lá. Dá pra perceber que todos estudam lá, pois começam a comentar uns com

os outros que ainda não estão de férias, mas já não há o que fazer na escola naquela

semana. Estão todos de mãos vazias. Só o “Pião” (Tchusca) consegue se manter com a

pipinha rosa. Descem a rua falando das pipas que cortaram.

Já que os meninos foram embora, vou para a rua atrás daquela onde moro. Em cima da laje

estavam Binho e mais dois meninos menores com suas pipas. Na rua mais abaixo, havia um

grupo soltando pipas também. Deste lado do morro dava pra avistar umas 25 pipas no vale.

Bri, irmão de Binho se distrai e entra em Binho cortando a pipa dele. Binho ficou muito

bravo com aquela desatenção. Reclamou, xingou, e desceu a ribanceira furioso, pois “não

tinha mais nada para fazer ali”. Na briga, a pipa de Bri desceu solidária, quase em

penitência. A linha tinha enroscado nos galhos. Enquanto ele desenrolava a pipa dos galhos,

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me ofereci para ajudar. Ele me deu a linha para segurar, já que estava com o carretel entre

as pernas. Fiquei com a impressão de que os distraí e atrapalhei a brincadeira. Eles se

deslocaram correndo mais para cima da rua. Decidi parar por ali. Despedi-me e agradeci.

Do alto da laje da construção abandonada atrás da minha casa, Néo, o menino que

acompanhava Bri, se despediu.

Fim de tarde. 9 pipas do lado do Guarda-Mor. Quando chego na rua de casa, encontro outra

vez Néo e Bri que resolveram sair do seu posto, no alto da laje, se deslocando para a rua da

frente, onde eu moro. Imaginei que fosse para tentar catar as pipas do Guarda-mor. Resolvi

ficar com eles mais um pouco. Estava meio culpada por achar que a minha presença tinha

atrapalhado e que poderia ter provocado o corte da pipa de Binho. Ajudei-os a desembolar

uma linha que estava presa e me encostei no poste para observá-los, fazendo o possível para

não distraí-los. Naquele ponto da rua, já há fiação elétrica e eles estavam jogando uma

marimba para passar a linha de suas pipas para o outro lado do fio que ligava a eletricidade

na casa. Era grande o movimento de pipas cortadas, especialmente as que o vento trazia lá

do Guarda-Mor. Toda hora tinha uma avoada. Os meninos não fizeram nenhuma cerimônia

comigo. O Néo me pede para segurar a pipa dele enquanto ele corre para pegar uma pipa

que foi cortada lá no outro quarteirão. Fico lá plantada com a pipa do menino, enquanto Bri

sobe no muro lá da minha casa para desengatar a rabiola da pipa dele. Ofereço para pegar

uma vassoura alta para ajudar no trabalho, mas ele não aceita. Outra pipa avoada e muitos

gritos. Bri me pede para segurar a pipa dele enquanto ele corre atrás, na direção contrária a

que foi Néo. Desta vez, fiquei parecendo um cabide de carretéis de pipas. Os meninos iam e

vinham na coleta frenética das avoadas do fim de tarde. Bri voltou com mais uma

conquista. Já tinha três pra cada um, só de pipas aparadas naquele dia. Uma delas foi doada

a Bri por Néo para equilibrar a desigualdade, pois um tinha 4 e outro tinha 2. Néo me passa

de novo o carretel, mas Bri permanece ao meu lado. Estou com medo, pois tem uma pipa

entrando na linha de Néo. Não sei o que fazer. Tentei me desviar da pipa invasora, mas foi

inútil. Fui cortada. Como explicar pro Néo, agora? Bri não viu maiores problemas. Disse

que não tinha importância, que aquela pipa tinha sido aparada como as outras e que eles

tinham mais. Néo agora está bem longe e não consigo falar com ele. Bri resolve ir encontrar

com o amigo, pois já está bem escuro. Leva as pipas que estão num amarradinho e se

despede.

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Ai, meu Deus, como sou desastrada! Foi o dia da culpa. Soltar pipas exige um certo esforço

de concentração. Não se pode ficar soltando pipas com desatenção, pois o preço a pagar é a

perda da pipa desavisada, cortada por uma concorrente. Todas são concorrentes em

potencial até que se negocie o contrário. Lembrei que, neste mesmo dia, um dos meninos lá

do pipódromo contava a anedota de um sujeito bêbado que soltava pipa de costas e só se

deu conta de que havia perdido a sua pipa quando caiu no chão sem ter mais o suporte da

linha. Eu deveria estar mais atenta para não provocar qualquer desatenção por parte dos

meninos, pois não podia ignorar que era um elemento distrativo para eles.

15.07.05

Na esquina, encontro o Moreus da rua de baixo, Bri e Guilherme soltando duas pipas. Uma

das pipas ainda está no chão. O vento está ótimo. À direita, acima, na área ainda

desocupada de casas, em frente à casa do médico, há uma dupla de meninos. Mais na altura

do campinho, há duas pipas. Os três meninos comentam sobre elas. Apontam para uma

avoada e mais outra, cheia de linha. Um deles provocou: “Vamos pra lá”, ao que o outro

retrucou negativamente, pois tinha combinado com a mãe de permanecer ali: “Se a minha

mãe aparecer, ela tem que me encontrar”.

Começa a fazer calor sob o sol. Tiro o meu casaco de lã. Lá embaixo, no Tejuco, consigo

avistar pelo menos umas 5 pipas.

Há muitas nuvens no céu, o tempo começa a ficar abafado. Passa um pássaro piando.

Moreus está com uma pipa amarela e vermelha que ele diz ter feito ele mesmo. A rabiola

enrola na pipa e ele tem que descê-la com a ajuda de outro rapaz que surgiu. A pipa de Bri

está alta. Os meninos conversam sobre a linha e sobre uma pipa “dorada” que apareceu na

rua deles. Moreus coloca a pipa de volta no alto. O assunto agora se volta para as pipas

cortadas, como se fossem histórias de pescador. Gui, o menino que conheci hoje, coloca sua

pipa no alto também. Ele se reveza com o rapaz branquinho que chegou depois. A pipa de

Gui é branca com um asterisco de listras vermelhas. Aparece uma avoada. Os meninos

comentam que a avoada vai cair perto da casa do rapaz branquinho. Ele corre na maior

disposição, na esperança de apanhá-la.

Os meninos comentam sobre os cruzos das Águas Férreas. Observa-se, na paisagem, muitas

pipas partindo de vários pontos, estando juntos, em cada um deles, uns três ou quatro

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meninos. Passa um carro e uma moto levantando muita poeira. No grupo que estou

observando agora tem dois sentados e dois em pé. O vento hoje está numa direção contrária

a que estava ontem. A pipa de Gui faz circunvoluções no ar. O rapaz branquinho aponta

uma avoada. O Bri diz que não compensa ir lá. Os meninos vão se deslocando com suas

pipas e subindo a ladeira. Surgem duas pipas no espaço: uma preta e uma com o desenho de

uma seta. A preta se insinua: “Olha a preta dando linha aí, Tião!Uma já foi!”

15:00 O vento começa a mudar de direção. Bri começa a discutir com alguém: “Não vou

cortar, não!” Moreus se interessa: “Quem que é, Tião?” A esta altura, os meninos já se

deslocaram em bloco, ladeira acima. Esse deslocamento dos meninos, juntos e sempre em

frente, me lembra muito um pelotão de guerra avançando para tomar território.

Surge um quinto menino, o Gegê a quem os outros perguntam sobre a aula daquele dia.

“Quem foi, hoje?” um pergunta pro outro. Fiquei com a impressão de que os meninos não

tinham ido à escola, naquele dia. Percebo que os dois meninos que chegaram por último, o

rapaz branquinho e o Gegê, estranharam a minha presença. Senti a necessidade de me

apresentar, de explicar o que estou fazendo e pedir licença a eles também. Há 3 pipas no ar

e 5 meninos brincando neste grupo. Parece que estão desfrutando da oportunidade de se

encontrarem e fazer algo em comum. A pipa aglutina, mas, às vezes, me parece um mero

pretexto. Os que estão sem pipas oferecem seus préstimos propondo um revezamento aos

que estão com suas pipas: “Deixa eu segurar pra você?!”

Planejam entrar lá no campinho para disputar com o pessoal do Guarda-Mor. Parece uma

estratégia de tornar possível, espacialmente, a abordagem de/pelos outros grupos. Os 5 se

separam: três sobem e 2 descem a rua. Chega Binho e mais outro que se encontram com os

três que subiram a rua. Binho chega com uma garrafa d’água. Procura um lugar para

abrigar a garrafa do sol e a esconde numa saída (tipo um bueiro próximo ao meio fio) por

onde escoa a água da chuva. “O dia já tá quente. Tomar água quente? Ah, não!” Depois de

esconder a garrafa, oferece aos outros: “Tá mocado!” Bri pergunta se a água é pra beber.

“Não! É pra jogar fora! Que pergunta!”, exclama Binho irritado.

Enquanto isso, os meninos passam cerol na linha. Comentam que o vento está mudando.

Outra vez a pipa de Moreus se enrola na rabiola. No campinho, uma pipa voa e carrega a

rabiola de outra. Um dos meninos comenta que com a mudança do vento, os piões do

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Tejuco vão todos vir nesta direção. Binho grita: “Tomara! Tomara! Que venham todos pra

cá!”

Agora são seis meninos que, espalhados, ocupam 2 quadras ao longo da rua. Tive que

atravessar a rua para ver as pipas em função da mudança do vento: 3 meninos estão num

extremo, três estão no outro. Moreus está sem a rabiola que ficou perdida numa construção.

Observo que tem um menino menor que está com uma pipa de “orelha” integrando o grupo.

Veio com Binho e deverá voltar com ele, pois está sob seus cuidados. Moreus tenta

consertar sua rabiola que está em tão péssimo estado que um dos meninos ao vê-la,

decretou: “Acabou!” Moreus retruca: “Acabou nada!”

Caiu uma pipa num telhado adiante. Dois dos meninos saem para apanhá-la. Binho

consegue movimentos muito velozes com uma pipa amarela. Em determinado momento, a

rabiola enrola e a pipa cai. Gabe, o menino menor que está sob os cuidados de Binho vai

buscá-la, enquanto Binho assume uma pipa de orelha. A outra, a amarela, pertencia a Gabe

e Binho estava ajudando o menino a colocá-la no ar. Binho ajuda Gabe a acrescentar a

rabiola na pipa amarela, enquanto Gabe assume a pipa de orelha. Podia ser a rabiola curta a

causa da pipa amarela não subir adequadamente. Binho diz para Gabe: “Puxa a linha para a

minha pipa subir um pouco! Meu pião ficou ‘canal’! Parece grande, mas é um giriquinho!”

Gabe assume a sua pipa amarela.

Guilherme vai ajudar Gabe a soltar a amarela, mas aparece uma avoada. Gritos: “Goiaba!

Pangaré!”

Desta vez, Gabe coloca, sozinho, a sua pipa no ar. Os meninos descem a rua e me vejo

sozinha sentada no meio fio. Resolvo ir atrás deles. Estão todos parados na sombra do muro

da construção da esquina. Sento no cimento de uma saída de água. Gabe, Binho, Bri e

Moreus estão com suas pipas no ar. Binho comenta: “Ou o vento está mudando de novo, ou

o meu pião está uma merda!” Binho se movimenta e chama Gabe, que está sob sua

responsabilidade, para vir com ele. Vem outra pipa “entrando”. Os meninos que estavam

em pontos diferentes, voltam a reunir-se.

As pipas estão bem altas. Vem vindo uma pipa azul. Os meninos comentam que a pipa

amarela do Gabe está muito chamativa. Dão conta de outras pipas que vêm subindo.

Olham-nas como adversárias em potencial: próximas o suficiente para um cruzo e também

fora do grupo. “Olha a azulzona! Aí vem ela!”, diz Binho. “Não tô nem conseguindo ver

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minha pipa!”, fala Gabe que se diverte com todos os detalhes: “Olha o barulhinho, fica

olhando o barulhinho da minha pipa!”

Moreus comenta: “Não gosto que os outros me busquem. Eu gosto é de buscar!”

Todos os meninos estão sentados na calçada, só Gabe está de pé. Gabe é o mascote do

grupo. Os maiores alertam Gabe: “Vê se dá linha aí! Se você continuar dando bobeira, vai

se dar mal!” Gabe arrisca um mergulho com sua pipa. O operário que está no telhado de

uma casa em construção reclama: “Olha essa linha! Tem pescoço aqui!”

Passa um casal de maritacas.

Binho chama a atenção de Gabe: “Vou já te passar um arrastão! Ô Gabe, você vai perder a

sua pipa!” Gabe não se cansa de fazer acrobacias.

Chega o Ajax com sua pipa de cruz e se junta ao grupo. Há 8 pipas na direção do morro e

há sete meninos no grupo ao meu lado. Vejo Samuel descer com a mãe e o irmãozinho. Ele

olha com um olho comprido para o grupo, mas segue em frente muito sério. Binho

descobre que tem muitas pipas atrás de nós. “Dá até pra fazer um concurso”, diz ele. Tem

uma pipa branca e 2 azuis vindo nesta direção. Um dos meninos chega à conclusão de que

as duas estão juntas, ou melhor, juntos devem estar aqueles que as soltam.

Muitas nuvens escuras no céu. Está um mês de julho muito estranho, pois não costuma

chover nesta época.

Aparece uma avoada. Era a pipa de Ajax que tinha sido cortada. Gabe corre para apanhá-la

e disputa com outro menino que desce a rua como um foguete. Ajax relaxa quando percebe

Gabe no encalço de sua pipa e os meninos maiores gritam: “Já pegou, já pegou!” Gabe se

lança sobre a pipa, falando as palavrinhas mágicas para evitar perder a avoada recém

alcançada: “Ta na mão!” Donald, que era o nome do rapaz branquinho, vem atrás impondo

o respeito do outro menino que recua quando ele explica: “Tá todo mundo junto aqui!” Mas

acontece o inesperado: Gabe se recusa a devolver a pipa de Ajax: “Avoada não tem dono.

Fui eu que peguei e ela agora é minha!” exclama, tentando fazer valer a regra geral. Ajax

fica bravo e os outros tentam interceder: “Tá todo mundo brincando junto aqui. Devolve

pra ele!”. Gabe se mantém firme. Ajax ameaça o menino: “Vou te encher de cacete,

moleque! Devolve a minha pipa!” Gabe percebeu que era uma questão de sobrevivência e

acabou devolvendo. Foi uma cena emblemática e a última deste dia de observação. Havia

duas regras conflitantes em jogo: 1.“Avoada não em dono. É de quem pegar” e 2. “Tá todo

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mundo brincando junto”, o que significa que os do mesmo grupo não podem se cortar.

Deve haver solidariedade entre os do mesmo grupo. Gabe, ainda iniciante, prestou atenção

na primeira e ignorou a segunda. E quase apanha por isso.

16.07.05

Sábado. Havia fogo no mato da rua de baixo. A fumaça era grande e ardia nos olhos. Achei

que seria impossível soltar pipas ali, naquele dia. O vento estava bom para pipas e também

para alastrar o fogo. Depois, soube que o fogo tinha sido provocado por um dos moradores

da rua de baixo, na tentativa de exterminar um ninho de cobras que foi descoberto por ali.

Alguém comentou que, numa hora dessas, as cobras vão se refugiar bem onde não há fogo:

entram na casa das pessoas.

Havia 4 rapazes e dois meninos. Depois chegou um homem de moto com uma garrafa pet

cheia de água. Era o pai de um dos meninos a quem eu me apresentei e expliquei o que

estava fazendo, pedindo licença para observá-los. O Sr. Geraldo morava lá na Colônia, um

bairro distante, e tinha vindo visitar a irmã que morava ali perto. Aproveitou para trazer os

meninos para soltarem pipas aqui em cima. Ficou interessado na pesquisa e começou a me

contar do seu tempo de garoto. Disse que havia um sujeito chamado “Perriga” que soltava

pipas lá nas Águas Gerais e que era mestre em cortar todo mundo. Era imbatível. Suas

pipas tinham uma rabiola muito longa e ele dava tanta linha que, soltando pipas lá do outro

morro, conseguia vir catar e cortar as pipas de quem soltava aqui no S. Caetano. Disse que

era capaz de eu ainda encontrar familiares dele morando ali nas Águas Férreas. Comentou

que hoje estava diferente, muito mais fácil, que os meninos tinham mais dinheiro dos pais

para comprar linha. No tempo dele, emendavam todo pedacinho de linha que encontravam.

Agora só se via linha largada no chão. Um desperdício! O Sr. Geraldo trabalha com estanho

há 25 anos e só pode vir soltar pipas no fim de semana. Logo o movimento começou e ele

foi demandado a correr atrás de umas pipas avoadas com os meninos dele. Mais pipa

avoada e o Sr. Geraldo consegue aparar uma. Agora o Sr. Geraldo também tem uma pipa.

Segui pela rua e encontrei Finão que me avisou que Leleca estava tentando tirar um pião do

mato. Fui falar com ele. Disse-me que a “minha” pipa estava lá com ele. Que eu não tinha

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aparecido no outro domingo e que ele não pôde me dar. Era um presente. Outro presente.

Ele falou que ia buscar em casa.

Outra pipa voa. Agora Finão, que estava sem pipa, também corre atrás e consegue pegar. O

menino que perdeu a pipa vem tentar recuperá-la. Finão pede ao Sr. Geraldo para dizer que

foi ele quem pegou a pipa numa estratégia de impor respeito ao menino maior. “Moço, me

dá ela?” simula Finão com o Sr. Geraldo, no momento em que o menino chega: “Devolve

aí!”, diz o menino. “Acabei de dar pra ele!”, diz o Sr. Geraldo, referindo-se a Finão. O

menino que perdeu a pipa senta do outro lado da rua e começa a observar a brincadeira,

desconsolado. Achei que ele ainda tinha esperanças de recuperar a pipa num descuido do

outros meninos. Os quatro rapazes que brincam na outra esquina vieram pedir um pouco de

rabiola.

Paolo, filho de Alice, chega com uma pipa verde com o meu nome escrito em branco. Era a

pipa que Leleca tinha feito pra mim. O verde era porque a UFSJ tinha as paredes pintadas

dessa cor. Alice vem vindo atrás de Paolo, já que, lá embaixo, a fumaça não permite

permanecer. Para minha desgraça, comenta sobre o domingo passado em que não pude

estar presente por conta da gripe e do frio. Disse ela que foi um dos melhores dias, que

havia muitas pipas no ar e que o movimento de corta-corta foi grande. Falou também dos

acontecimentos daquela semana que tinham abalado a vizinhança. Dois dos rapazes que

estavam soltando pipas juntos naquele domingo tinham brigado a noite e um matou o outro

com um tiro na cabeça. Diz ela que o rapaz que morreu foi um dos envolvidos num

assassinato que houve ali na caixa d’água ao qual todos fazem referência, mas que era um

rapaz sofrido e marcado por coisas ruins: o padrasto tinha assassinado a mãe na sua frente

e, tempos depois, ele mesmo se encarregou de matar o padrasto. Alice estava triste e eu

estarrecida com os fatos. O tempo tinha passado sem a gente perceber. O Sr. Geraldo volta

para o local, pois descobre que na correria de aparar as pipas havia perdido a sua carteira.

Ficamos procurando durante algum tempo. Já estava ficando frio, o movimento das pipas

declinava e voltamos para nossas casas. Naquele dia, a pipa tinha sido o elo de ligação para

histórias muito diferentes.

17. 07.05

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É domingo. Há muita gente pelas esquinas aqui do bairro. Dia em que as famílias vêm

soltar pipas juntas. Primeiro, encontro com um rapaz do Bonfim, que tem 14 anos,

acompanhado do tio e do primo. Mais adiante, estão Moreus e Bri e mais dois meninos de

12 anos. Mais abaixo, há outra família; pai, mãe, filho de 12 e filha de 5, acompanhados de

outra mãe com dois filhos, um menino de 10 e uma menina de 7. Aceitam conversar

comigo. Dizem que moram no Tejuco e que às vezes vêm aqui, nos finais de semana ou

dias de férias, para soltar pipas. A menina de 7 anos solta uma pipinha improvisada, quase

um giriquinho. Não tem uma pipa, pois, explica a mãe “o pai dela acha que pipa não é coisa

de menina”. O grupo está em ritmo de piquenique. Trouxeram biscoitos e água. Me

oferecem.

Mais na esquina, em frente à casa do médico, há três meninos, dois de 9 e um de cinco

anos, acompanhados de um rapaz. Vou descendo por aquele acesso até chegar à rua onde

costumo encontrar a família de Leleca e Alice. Aparecem Finão e Pino que estão com suas

pipas. Uma pipa amarela voa. Finão se prepara para apará-la. Dois rapazes desencorajam

Finão. Dizem que eles é que vão apará-la, mas é Finão quem pega. Voa mais uma pipa com

as cores do Flamengo que cai na direção de uma laje.

Finão volta e me pergunta se cobri a pipa que Alice fez pra mim. Me faz um convite com

ares de professor oferecendo a linha de sua pipa : “Quer debicar um pouco?” Fico com a

pipa alguns instantes, mas justo nessa hora, uma pipa se aproxima para um cruzo. Passo o

carretel de volta para Finão com medo de perder a pipa.

Finão e Pino dividem a pipa amarela e discutem sobre como devem mantê-la no ar. Outra

pipa voa e muitos grupos correm para apanhá-la. Surgem 6 homens que eu não sei se

apareceram por causa da pipa ou se estavam passando por acaso. Finão diz que já vai

embora. Pino aposta que vai pegar de volta uma pipa sua que cortaram. Vem chegando

Paolo com uma pipa que ele catou e mais outro menino. Todos param no meio da rua,

enquanto aconteciam os cruzos, com a intenção de poder ver melhor. Pino corta uma. Muita

confusão. Uma porção de pipas cortadas ao mesmo tempo e muitas brigas para disputá-las.

Os meninos correm e gritam. Gente corta e é cortada o tempo todo nesse dia.

Leleca fica atrás de Pepê . Já havia ajudado o filho a colocar a pipa no ar. Os adultos ficam

atrás, dando instruções: “Vai lá Pepê, dá linha! A pipa de Pepê voa assim mesmo. Moreus

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se prontifica a tentar pegá-la e assim o faz, trazendo a pipa de volta, depois de algum

tempo.

O Sr. Juca, pai de Gu e Gui provoca: “Aí, Pepê, seu pai deixa sua pipa voar com um monte

de linha!” Leleca rebate: “Ele voa com quanto ele quiser. Tem que aprender!”

Paolo acha um rolo de linha no meio da rua. “De quem é essa lata cheia de linha?” Era de

um dos filhos do Sr. Juca.

Caminhamos pela rua para ver o movimento mais adiante. Há uma pipa da Lilica

Ripilica180 que Alice fez e que é empinada por Leleca. Alice está com o maior cuidado com

a pipa, pois diz que teve muito trabalho para fazer. Fica feliz que sua pipa consegue subir,

ainda mais se estava sendo testada por Leleca. Paolo quer dar palpite no jeito como a mãe

deve soltá-la. Tem uma pipa entrando na Lilica e a corta. Mas logo é recuperada, pois está

baixa e cai perto.

Chegam três meninas, todas com 6 anos, que se chegam e ficam ao meu redor. Perguntam o

que eu estou anotando. Leio um pedaço das anotações e elas parecem ficar com a

curiosidade satisfeita. Pedem uma folha pra desenhar e a minha caneta também.

Quando recupero minha caneta, Leleca, que tinha ido em casa, chega com uma pipa rosa

para acalmar Lana. Ela esteve indócil todo o tempo, pois não tinha nenhuma pipa para

soltar. Estava bem aborrecida, mas abriu um largo sorriso diante da pipa.

Ouve-se um palavrão. Leleca ralha com Paolo. Alice não aceita que os filhos falem

palavrão. Nem soltando pipas, onde isto é comum e freqüente. Ambos têm a preocupação

com regras de boa educação e com as que regem a brincadeira. Estão o tempo todo dando

conta das crianças que brincam ao redor, sejam as suas ou as dos vizinhos e conhecidos.

18.07.05

Segunda-feira. Na esquina, encontro dois rapazes de 18 e 19 anos. Um deles está com um

giriquinho que ele pegou lá em baixo. Subiram juntos o morro.

Um pouco depois, quando já estou na rua em que costumo encontrar com a família de

Alice, encontro Binho acompanhado de dois meninos e um rapaz. Quando uma pipa voa,

aparecem mais meninos vindos da rua de cima. Bri está com a pipa mais alta, branca e

vermelha. Moreus passa por mim e nos cumprimentamos. Pino aparece com uma pipa azul

180 Lilica Ripilica é uma ratinha, ícone de uma marca famosa de roupas para meninas.

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diferente, pois ele recobriu com papel de seda o bico de cima onde só costuma ter linha. Os

meninos estão todos do mesmo lado, um perto do outro, segurando as suas linhas. A pipa

azul do Pino cai. Os meninos dão palpite. Acham que ele deve tirar o bico pra ela subir

direito. Logo depois, com bico e tudo, ele consegue colocá-la no ar de novo. Mais 3 pipas

sobem no grupo. Eles se movimentam em bloco para a frente e para o lado, como se

estivessem em manobra de guerra. “Olha a de orelha aí, ô!” Há oito pipas no ar e nove

meninos em terra. Uma pipa foi cortada e aparada. “Olha lá, a listrada cortou e aparou

sozinha!”, um deles observa.

Aparece o Finão que me pergunta se já colei o meu pião com o papel que Alice me deu. Ele

sempre me cobra essa tarefa que eu ainda não pude cumprir, pois estou sem varetas para

fazer a armação. E pior. Não tenho certeza de que sou capaz de dar conta do recado.

Pergunto a ele se ele sabe de que lado está o vento hoje. Os meninos que estão perto

apontam para as pipas e dizem que o vento vem de lá. “Achei que fosse da direção

contrária, levando as pipas pra lá” argumentei. Eles ficaram confusos. Acho que ainda não

tinham parado para pensar nisso.

Binho está entusiasmado: “Esse cerol meu é bom demais. Picamos tudo na pipa. Quem

catar, é só vareta. Creio em Deu Pai! Aparei e piquei a linha da pipa!”

Um menino convida o outro para tirar uma pipa agarrada na árvore.

Lalá aparece correndo descalça. A rabiola do Bri enrola em outra pipa. A conversa que se

ouve é mais ou menos assim: “Piquei tudo!”, diz um. “Quase que você manda eu junto com

ela!”, diz o outro. “Cortei uma aqui na mão, não sei de quem é!”, diz um terceiro.

Cinco meninos resolvem ir aparar as pipas do Guarda Mor. Sobem a ribanceira em direção

à rua de cima. Um menino está ao meu lado afinando varetas de bambu. Os meninos

comentam sobre uma receita de cerol com barro. Finão diz que não é bom. Binho comenta

que cerol bom é o da Paraíba feito com clara de ovo. Voa uma pipa e vejo oito meninos

correndo atrás. Passa uma menina de bolsa a tiracolo com um giriquinho feito de folha de

caderno. O vento esfria. Há muitas nuvens ameaçando a virada do tempo. Outra virada.

Binho gosta de falar das suas pipas: “Vê o meu pião como é que fica? Parece a Carla Perez

de tanto que rebola!”

Uma das pipas tem a linha arrebentada. Diz-se que “estanca” a linha. Ajax consegue pegar

uma flechinha preta feita de saco de lixo. Esclarece que fez uma parecida de manhã, mas

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não é a mesma. Aparecem 2 mocinhas procurando Moreus. Binho informa que ele foi pro

Guarda-Mor. Diz que vai subir também e, se elas quiserem, podem vir junto. Pergunto se

posso acompanhá-los e eles aceitam. A turma, ou parte dela, ainda está na rua de cima que

está pura terra porque arrancaram os bloquetes de cimento. Há muita poeira. Lá, há uma

construção abandonada em cuja laje os meninos costumam soltar as pipas. Binho está

saindo desta construção. As meninas se integram ao grupo. Há 7 pipas no ar. Pino diz que

cortou 4, o Tanaca diz que cortou 1, Moreus contabiliza 4, outro diz que foram 5 as que

conseguiu cortar. Começam com aquela conversa de disputar quem cortou mais pipas e

parece que tudo vale nestas que parecem “histórias de pescador”. Os outros é que vão

contestando e dando o limite de realidade. Eles acham o máximo que eu anote as suas

fanfarronices.

Houve uma mudança de planos. Diante da demanda das mocinhas, a turma que estava indo

pro Guarda-Mor faz o caminho inverso para ir jogar vôlei. As seis pipas vão descendo o

morro junto com o grupo.

Em poucos instantes, o movimento diminui. São quase 5 horas. Começa a escurecer por

causa das nuvens e fica frio. Os meninos se despedem.

A pipa é uma das atividades de lazer que as crianças e os jovens praticam nos tempos de

férias. Apesar de ser uma brincadeira contagiante, que arrebata a disputa entre vários

grupos, é comum ver que ela se alterna com outras atividades como os jogos de vôlei e

futebol, no inverno e com a piscina durante os meses quentes do verão, quando não chove.

24.07.05

Passei 4 dias fora da cidade. Havia acabado de chegar de viagem e meu corpo tinha dúvidas

se eu iria ao campo naquele dia. Mas era domingo, dia de encontrar grupos variados aqui no

alto. O sol estava pleno e o movimento das pipas no céu me convenceu. Não podia perder

tempo. Deixaria para descansar depois. Nem tirei a poeira da roupa e já estava lá na rua

com meus apetrechos. Me dirijo à rua de baixo, onde costumo encontrar a família de Alice.

Logo na esquina da rua, encontro com 4 rapazes. Cumprimento-os e pergunto se o dia está

bom para as pipas. Um dos rapazes diz que já cortou quatro. Mais adiante, encontro com

Pepê e Lana. A linha de Pepê estava toda embolada. Ele descobriu que tinha formiga no

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local e me pediu ajuda para tirar a pipa que estava presa no mato. Parei para ajudá-lo a

desenrolar a linha e soltá-la dos galhos dos arbustos que cobrem a encosta. Lana vinha logo

a seguir com a sua pipinha de listras roxas e cor de rosa, bem de menina. Ela também me

pede ajuda para tirar a sua pipa que logo cai no mato. Parece que hoje é o dia das rabiolas

enroscadas nos galhos. Provavelmente o vento está contribuindo.

Era o dia da procissão de São Cristóvão, me conta Alice, quando a encontro atrás dos

meninos. Lá de cima, podíamos ver a procissão de carros buzinando que passava lá na rua

do córrego. Uma longa e barulhenta fila de carros e motos enfeitados, festejando o

padroeiro dos motoristas. O santo vinha num andor transportado na carroceria de um

caminhãozinho. Nunca tinha visto procissão assim. Mas achei que tinha tudo a ver.

Passa o rapaz a quem eu cumprimentei quando entrei na rua. Alice brinca dizendo que ele é

pai de 10 filhos. Ele nega, diz que são só 4.

Alice coloca a pipa de Leleca no ar. Por um momento, me pediu, ou melhor, me ofereceu

para segurar a linha, assim como o Pepê já tinha feito antes. Fiquei achando que este gesto

podia significar confiança e, ao mesmo tempo, o oferecimento de uma oportunidade para eu

vivenciar o brinquedo nas mãos, já que me viam sempre anotando. Pepê chega me

perguntando se eu posso ajudá-lo a colocar a sua pipa no alto, me envolvendo na

brincadeira. Lana, com o maior orgulho, disse que ela sozinha já conseguia fazer isso, sem

ajuda. Me senti completamente incluída.

Binho passa de pipa nova. Pergunto pela “Carla Perez”. Ele responde que já voou. “Então

foi recente?”, argumento com ele, pois antes de viajar eu o vi vários dias com a pipa verde

com orelhas pretas. “Foi essa semana”, ele respondeu. Continua com a mesma animação.

Gosta de falar, de comentar, de andar pra lá e pra cá, completamente tomado com a

atividade. Está inteiro na ação, de corpo e alma, como poderíamos dizer.

Alice comenta, depois de ver que a pipa de Leleca foi cortada: “Aí, Pepê, já ‘mandaram’ a

do seu pai.!” “Mandar” significa cortar a pipa, mandar para outro canto, me explica Alice.

Penso que é uma ação praticada por quem corta. “Sobrou”, assim como “mandou”,

significa que uma pipa foi cortada. “Sobrar” refere-se tanto à pipa quanto ao soltador, mas

ao contrário de “mandar” é uma ação sofrida por quem é cortado.

Os meninos vão se reunindo em um ponto da rua. Chega um casal conhecido de Alice com

2 meninos pequenos, entre 2 e 3 anos e mais um cachorrinho pequeno. O de 3 anos está

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soltando uma pipa. O casal assume a função de orientar e ajudar os dois meninos pequenos

a soltarem suas pipas, como eu já havia observado com as famílias que encontrei

anteriormente.

Chega mais um casal que eu já conhecia, os pais de Pepelu, primo de Pepê. Ele era o

menino que, da outra vez, saia correndo com a sua pipa sem olhar pro chão.

O grupo está grande: há 5 meninas e 10 meninos, mais os adultos (pais e tios) e o tal

cachorrinho que mais parece uma pelúcia. Está solto, sem coleira e se coloca sempre ao

lado dos donos, sua referência, depois das voltinhas que dá em torno dos meninos que

soltam suas pipas.

O sol se põe, mas ainda dá pra contar umas 14 pipas à frente, só na rua em que estamos. Os

primos de Pepê e Pepelu estão dividindo agora uma pipa com a ajuda dos pais. As duas

irmãs conversam sobre assuntos variados. Pepê vem pro meu lado junto com Lana. Querem

escrever no meu bloco. Com a ajuda de Alice, Pepê escreve meu nome e o dele. Tenta uns

rabiscos com a letra de ondinha e me pergunta o que tem escrito. “Acho que você vai ter

que me ajudar. Conta pra mim o que tem escrito. Me dá uma dica!”, falo pra ele. As

famílias se preparam para ir embora. Já está escuro. Nos despedimos e ficamos de nos

encontrar no próximo fim de semana.

25.07.05

Segunda-feira. Um grupo solta pipas na rua de trás. Vou encontrar com eles. São 7meninos:

o “Sheik”, Ioiô, Angu, Gui, Coxinho, Cochinho, Cara de pombo. Os meninos se divertem

falando dos apelidos. O Sheik sabe meu nome e sobrenome. Me chama de Fátima Queiroz,

pois é conhecido da Cristina, que nos ajudou na Oficina de Pipas que a Brinquedoteca

ofereceu no ano passado aos filhos de funcionários e professores da Universidade.

Passa um carro da polícia e “os homens” olham feio para os meninos. Eles se chegam para

o meu lado, como se estivessem todos comigo. Cumprimento o policial que me olha com

“cara de poucos amigos”. Falaram que a polícia estava tomando as pipas com linha e tudo

por causa dos acidentes. De fato, eu havia lido uma notícia, num jornal local, falando que

haveria uma multa de R$130,00 para as famílias de quem estivesse soltando pipas com

cerol. Ouviam-se notícias pela TV sobre os casos em que os motoqueiros estavam ficando

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muito feridos com as linhas afiadas das pipas. Houve até mortes em BH e São Paulo. A

controvérsia que ressurgia todos os anos, nesta época, era grande. Tinha até um programa

de rádio em que o “Cabo Dedé” dava conselhos aos meninos para brincarem com

segurança. Penso em procurar o Cabo Dedé, um dia desses.

Ficaram algum tempo soltando suas pipas lá na esquina, mas um deles propôs irem para o

campinho. Houve uma discussão sobre as mães deixarem. Mas eles resolveram ir assim

mesmo. Perguntei se podia ir junto e eles logo aceitaram. “Ela vai também!”, “Ela vai

também!”, uns falaram pros outros. Me senti bem-vinda. Os meninos levaram algum tempo

enquanto se preparavam. Enrola a linha aqui, desembola rabiola ali, iam se deslocando

devagar, rua acima. Perguntaram se eu sabia soltar pipas e me fazem a proposta de trazer

duas pipas das bem grandes, com linha, que aí eles me ensinavam a soltar. Também falaram

que eu podia dar dinheiro a eles que eles comprariam a linha.

A gente ia andando e eles iam soltando as suas pipas. Tinha um “churuquinho”??

(flechinha) feito de plástico que voava loucamente. Descemos os oito a ladeira que dava na

direção de uma das entradas do campinho. Cruzamos um portão de ferro por onde eu ainda

não tinha entrado antes. O Angu me fala: “Ainda bem que tem um adulto com a gente”.

Pergunto se os pais sabem que eles estão ali. Angu diz que não, mas que se eu estivesse

junto, eles estariam mais protegidos. A responsabilidade pesou, mas penso que seria pior se

eu não tivesse vindo, uma vez que eles viriam de qualquer jeito.

Foram brincar de “cruzinho” que consistia em soltar pipas e cortar uns aos outros sem

correr riscos de perder os brinquedos. Apenas contabilizavam a quantidade de vezes que

cortavam para ver quem era o melhor. Era uma forma de brincar sem ser pra valer, um

brincar de certa forma protegido das perdas que poderiam acontecer se estivessem

guerreando com outros grupos. Um brincar de brincar? Os meninos simulam “cruzos” e se

deslocam o tempo todo, morro acima e morro abaixo. Quando uma pipa voa, é um alvoroço

porque eles temem que o vento leve a avoada para um lugar em que eles não a alcancem e

onde os outros podem pegar. O vento sopra que é uma beleza. Eles pedem ajuda uns aos

outros e se xingam também: “Peraí, viado! Não entra agora não que a minha linha

embolou!”

Um deles reclama de sua pipa: “Camelo véio!” Quando eu pergunto, ele explica que

“camelo” é uma pipa ruim e grande.

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Combinam de botar todas as pipas no alto para fazer os cruzos. Comentam sobre as pipas, o

cerol, as manobras. Vão brincando e falando sem parar. Duas das pipas voam ao mesmo

tempo no cruzo. Os meninos disputam para quem cortou primeiro. Contabilizam, de tempos

em tempos, quantas cortaram. Brincam como se estivessem brigando pra valer: “Solta,

viado! Vê se não prende aí!”

A pipa de Sheik faz um barulhinho de besouro porque ele adaptou nela um “zoador” que é

um pedacinho de papel na linha superior que faz zoar o vento quando a pipa se movimenta.

Uns estimulam os outros: “Vai!”, “Pega!”, “Aí, Sheik , vira ni mim!”

Chegam outros meninos no campinho. “Olha lá os guris, lá no campinho! É melhor subir

um pouco!” São 7 meninos, mas nem todas as pipas estão no ar. No momento, há 5. Na

conversa, eles utilizam expressões que anoto para perguntar o que significam exatamente e,

quem sabe, para fazer uma relação das expressões usadas localmente: “Um Pequeno

Dicionário de Soltadores de Pipas”

“Estancou! Vai tomar no --!” “Pára de falar palavrão!”

(Estancou = a linha se parte abruptamente sem ninguém cortar; na mão= quando a pipa é

cortada com muita linha, mais próxima da mão)

Falam sobre o cerol do Angu. “É o melhor, por isso tá cortando todo mundo!”

As 4 pipas que estão no ar dançam freneticamente até se embolarem umas nas outras. Uma

delas é cortada. E mais outra. Gritos. Agora só o Paulinho está com sua pipa no ar.

Duas pipas vindas lá do alto do S. Caetano voam em direção ao campinho. Paulinho corre

para pegá-las enquanto carrega a sua. Sheik chega falando que cortou 6. Paulinho volta da

caçada, mas o pião foi apanhado por outro. Os meninos discutem por causa de rabiola

picada. Nos cruzos, eles não perdem as pipas uns pros outros, mas as rabiolas ficam

danificadas, vão se perdendo.

“Olha aí, Angu, prepare-se para ir de novo!”, diz Paulinho. “Dá linha, Sheik!” E assim vão

comandando as ações, uns dos outros.

Os meninos se distraem e eu fico atrás do grupo para não atrapalhá-los, sem que eles me

vejam. Um deles pergunta: “A mulher foi embora?!”, ao que respondo. “Oi! A mulher tá

aqui!” “Ah!”, responde ele.

Lá no fundo, vindas da rua que costumo freqüentar, vejo mais 4 pipas. Quem estará lá?

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Ouvimos um alarme disparado em uma das casas do bairro. Já é a quarta vez que ouvimos o

barulho de alarmes disparados, vindo de pontos diferentes. Tem muito alarme disparando

hoje. Por que será?

Houve uma pausa: os meninos estão se organizando com as suas pipas, desenrolando as

rabiolas e as linhas. Depois fazem subir suas pipas mais ainda, dando mais linha. Ao fundo,

mais uma pipa avoada que está inacessível, pois o vento a carrega em outra direção. Os

meninos nem se abalam. Estão espalhados pelo morro. Ao longe, ouvem-se gritos, assovios

e palavras de ordem: “Pega! Dá linha!” As vozes são de homens adultos.

Angu reclama com Jona: “Nossa Senhora! Que que você arrumou com meu cabresto?”

Sheik corta Paulinho. “Que é iiissuu! Foi o primeiro que me ‘mandou’!”, diz Paulinho.

“Mentira que já te cortei duas vezes”, responde Sheik.

A linha de Sheik se embola com a de Jona que xinga: “Mas que bosta! Agora vai ter que

desembolar!” Um dos outros o chama de rabioleiro ( que só cruza catando a rabiola)

Lucas vai ajudar Coxinho a subir com a pipa. A rabiola engata no mato e arrebenta.

Coxinho briga com Lucas e este se aborrece. Diz que vai embora porque cortou o dedo no

cerol da linha. Fala que vai pra casa botar remédio. Coxinho ameaça contar pra mãe dele

que ele voltou sozinho, pois o trato era todos ficarem juntos.

Mais barulhos no alto do morro: duas vacas estão mugindo atrás de nós

Os meninos ficam com sede. Sheik arrisca: “Ô, Fátima, pega lá água pra nós!”

Não dá pra negar. Saio pra pegar água. Falo que vou me demorar uns dez minutos.

Retorno com uma garrafa pet cheia de água. Fico curiosa para saber o nome dos pássaros

pretos de rabo comprido que vejo ao ultrapassar a porteira. Sheik me alcança assim que

concluo a trilha de acesso ao campinho na direção do morro. Os meninos saciam a sede.

Coxinho me pede para segurar a pipa para que ele a erga. Solto a rabiola que ficou presa na

folhagem rasteira do morro.

Jona está com sua pipa verde no ar. Paulinho está com uma pipa de seta e Gui põe agora

uma vermelha no ar. A pipa anda de lado e faz círculos. “Ta andando de lado!” Quase se

cruza com a de Sheik que é preta com rabiola vermelha, preta e branca. Com o céu azul ao

fundo e o sol forte, o espetáculo é bem colorido.

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Paulinho fala que está desanimado, pois as pipas dos companheiros estão altas e não podem

fazer o cruzinho. As pipas experimentam acrobacias: voam rasantes, andam de lado, umas

buscando as outras. De repente, das 6 que estavam no ar, ficam 3: 2 voam e 1 fica com a

rabiola enroscada na linha da outra (foi aparada pela rabiola)

Dá pra ouvir os gritos de um jogo de futebol, atrás do mato. Os meninos ficam curiosos

para saber onde fica esse lugar.

O sol está escondido atrás de uma nuvem, deixando o morro todo sombreado. Começa a

ventar frio.

Os meninos estão espalhados no morro. Há 2 mais a frente, o Sheik no meio e três na

retaguarda. Os de trás cortam as pipas dos da frente. Os meninos vibram quando

conseguem cortar alguma pipa.

“Dá tóquinho! Dá tóquinho para debicar!” diz um dos meninos instruindo outro.

Coxinho fica sem sua pipa vermelha que cai numa das poucas árvores que há no pasto.

Acha que não dá pra apanhar e que está muito rasgada. Não sabe se vale a pena o esforço.

Um dos meninos pergunta a hora. Aviso que já são 5:15. Jona fala que antes de ir embora,

precisa cortar mais uma vez, como se fosse uma “saideira”. Os meninos se aglomeram para

os últimos cruzinhos. Falam de ir embora. Perguntam de novo as horas.

Paulinho sobe na árvore e resgata a pipa que Coxinho tinha dado como perdida, enquanto

este fica no comando da pipa de Paulinho. Coxinho quer entrar num cruzo, mas Paulinho

não autoriza: “Se cortarem, você vai ter que ir apanhar!”

Os meninos se animam com o final de tarde. Coxinho lamenta por sua pipa. Rasgada do

jeito que está, não sobe mais. Sugeri que usasse a armação para cobrir com novo papel. “E

dinheiro para comprar a folha?”, ele se queixa.

Rasgada assim mesmo, instantes depois, ele consegue colocá-la no ar. O que estava

contando era poder soltar a pipa ainda hoje, neste final de tarde.

Agora, era tudo silêncio no morro. Só as vozes dos meninos, de vez em quando, e o barulho

do vento, principalmente quando este batia no zoador da pipa de Sheik. Estava esfriando.

Paulinho fala em tomar um café quentinho.

Os meninos estavam se demorando naquela saideira. Achei que podiam estar me

aguardando para se decidirem a vir embora. Resolvi me despedir tentando precipitar a saída

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deles, pois estava preocupada com a possível preocupação das mães. E não é que eles

vieram mesmo atrás de mim?!

Paulinho chega na minha frente ao fim da trilha que leva à porteira. Os outros meninos vêm

andando em outra trilha que converge com aquela por onde estou caminhando. Pegaram um

atalho por dentro do mato mais alto por onde evito passar porque tenho medo de cobras.

Alguns meninos se reúnem comigo para esperar os outros. Sheik diz que cortou umas nove

pipas. Gustavo fala que cortou 15, Gui cortou 4, Coxinho cortou um tantão, nem sabe

quantas, Jona diz que cortou 8.

Saímos juntos pela porteira por onde só passa gente magrinha. Os meninos falavam de

fome, cansaço e frio, de misto quente, de banho e cama quentinha, mas também

continuavam a se gabar das façanhas da tarde. Subimos a ladeira juntos. Bem no alto,

aparece a mãe de Sheik. Ele agora era só um menino assustado que chorava com medo de

apanhar. Perguntei se ele queria que eu conversasse com ela. Ele queria. Me apresentei e

expliquei que estive acompanhando a brincadeira do grupo durante toda a tarde. A mãe me

falou da sua preocupação, pois o perdeu de vista. Ele estava vestindo uma camisa de listas

azuis e amarelas bem largas para ser identificado ao longe, mas havia sumido do lugar onde

combinaram que ele deveria ficar. Contou que, naquele dia, a polícia já tinha estado duas

vezes na rua S. João e todos estavam alarmados com o que estava acontecendo. A mãe do

Angu e do Gui também estava preocupada a procura deles. Falei que morava no bairro e

que a situação também me preocupava. A mãe de Sheik prometeu que hoje ele não iria

apanhar, mas que não haveria outra vez. Amanhã ele iria para a casa de parentes e não viria

soltar pipas. Agradeceu por eu ter acompanhado os meninos. Nos despedimos e eu agradeci

a compreensão.

Foi uma tarde marcada pela ambigüidade. A paz que vivemos lá em cima do morro entrava

em contraste com os alarmes disparados e as rondas da polícia. As duas coisas pareciam

não combinar, mas estavam mais próximas do que poderíamos imaginar. Comecei a me

sentir responsável, caso alguma coisa acontecesse a algum dos meninos.

26.07.05

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Terça-feira. Estava escrevendo o complemento da metodologia para mandar ao COEP,

quando fui interrompida pela campainha da porta. Era um garoto que tocava

insistentemente para que alguém o ajudasse a resgatar uma pipa que havia ficado presa no

nosso telhado. Desisti de continuar o que estava fazendo quando avistei pela janela o grupo

de meninos que havia acompanhado no dia anterior. Quando cheguei à esquina, eles não

estavam mais lá. Havia um grupo no morro da caixa d’água e imaginei que fossem eles.

Segui para lá. Na verdade não tinha muita certeza, pois, depois da bronca da mãe do Sheik,

achava difícil que eles retornassem ao local.

Chegando lá, ouvi um “Êêêêhhh!, saudando a minha chegada. Desta vez são apenas 4

meninos: os irmãos Gui e Angu, Paulinho e, pra minha surpresa, Sheik. Pergunto se as

mães sabem que estão ali. Eles responderam que sim e que elas permitiram que viessem na

condição de que eu estivesse presente. Ai, meu Deus! Imagina se eu não viesse!

Estamos bem próximos ao campinho onde há um grupo de crianças brincando com uma

bola, na companhia de um adulto. Uma mocinha de uns 13/14 anos improvisa um

jalequinho ou giriquinho com uma folha de caderno. Brincam debaixo de uma árvore e rola

um piquenique. Não demora muito e o grupo retorna em direção ao Guarda-Mor.

De onde estou sentada, consigo perceber o acesso que liga o campinho ao Guarda-Mor. É

idêntico à porteira que dá acesso ao Residencial S. Caetano, feita de tocos de árvores e

arame farpado por onde só passa gente magrinha.

O vento está soprando do RSC (residencial São Caetano) em direção ao GM (Guarda Mor).

Vem vindo uma pipa vermelha avoada que os meninos resgatam. Deixam duas pipas e duas

latas com linha sob minha tutela enquanto correm atrás da avoada. É provável que outras

caiam nesta direção por causa da direção do vento.

Sheik chega reclamando que ele pegou a pipa, mas o Angu quis ela pra ele. Agora há 4

pipas para 4 meninos, mas a vermelha que foi aparada continua objeto de controvérsia.

Angu argumenta que o Sheik ia dar a pipa pro Gui e depois não deu mais. Sheik retifica:

“Eu ia emprestar, falei emprestar!”

Paulinho põe uma pipa no alto. A linha passa raspando a minha orelha. Sorte que o cerol

não estava bom.

Angu e Sheik chegam com arranhões que não se cansam de mostrar. Acho que esperam de

mim algum cuidado. Lamento não ter trazido o spray.

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Mudo de posição, pois toda a hora tem linha passando na minha cabeça. Os meninos

brincam de fazer cruzinho. Sheik fala que já cortou 7, idem para Angu e Paulinho. Gui

cortou 5.

Sheik retoma a querela sobre a pipa vermelha que foi aparada. “O Angu vai me tomar essa

pipa”. Angu ouve: “Por que vou te tomar essa pipa?”. Sheik retruca “Esse seu risinho

aí...?!”

O vento pára de soprar. Os meninos têm mais dificuldade para soltar suas pipas. Sentam do

meu lado, dando uma pausa. Comento que ouvi falar que tem uma música de chamar o

vento. Os meninos dizem que conhecem:

“Vem vento cachinguelê, cachorro do mato vem te morder”, ou, em outra versão: “Vem

vento, vem meu amor, vem vento, vem, por favor”.

E não é que o vento veio!! A brisa começou a soprar leve e depois com mais força.

A pipa de Paulinho voltou ao ar; depois, a que estava com Sheik. O vento começou a soprar

cada vez mais forte. A pipa de Sheik ficou louca.

Toda hora, eu tinha que mudar de lugar. O vento mudava de direção e lá estava eu na reta

da linha das pipas. A pipa amarela de Gui foi cortada e Angu pede a Sheik para ir buscá-la.

A pipa de Angu começa a rodar. A do Paulinho estanca com o vento. Gui vai atrás.

Angu fala que está morrendo de sede. Diz que esqueceu a água de novo. Já estava até

imaginando a próxima fala, que eu apostava que seria do Sheik , quando aconteceu: “Ô,

Fatima, pega lá água pra gente!”. Concordei. Achei que estávamos fazendo uma troca justa.

Quando voltei com a água pela trilha que dá acesso ao campinho, avistei num ponto alto do

Guarda-Mor um grupo de meninos soltando umas 7 pipas. Quase que me desviei, quando

ouvi os gritos do Sheik : “Ô Fátima, é aqui!” Ele bebeu primeiro e passou para o Angu.

Soube que na minha ausência, tinham encontrado a garrafa deixada no dia anterior e tinham

bebido água dela. Pedi que não perdessem a tampa e coloquei a garrafa trazida hoje perto

de um arbusto que podíamos identificar de longe.

O céu estava se cobrindo de nuvens que deixavam sombras no morro, aplacando o sol forte

que estava fazendo. O vento estava mudando de novo. O tempo estava mesmo ficando

diferente.

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Os meninos continuaram a brincadeira de cruzinho. Lá no GM, a brincadeira também está

animada. Há pelo menos 12 meninos, mas só 6 pipas no ar. Me desloco outra vez para ficar

olhando os meninos por trás.

Os irmãos Angu e Gui estão com suas pipas no alto enquanto Paulinho e Sheik arrumam

suas pipas para colocá-las no ar. A pipa de Angu é cortada. Gritos de “Pega! Pega!

Pangaré! Goiaba!” Os gritos ecoam e se multiplicam por causa da acústica do morro.

Parece que tem muitas pessoas gritando. Só agora pude reparar neste fenômeno.

Há um grupo de meninos com pipas descendo o GM em direção ao campinho. Parece uma

parte do grupo que estava no morrinho. Lá, ainda permanecem umas 7 pipas. São 4 os

meninos que chegam.

Paulinho deixa cair sua pipa. Angu avisa que ela rasgou muito. Paulinho pede para levantar

assim mesmo. Neste momento, consigo contar umas 15 pipas, entre as dos meninos de cá e

as dos meninos de lá. A pipa do Angu foi cortada e um dos meninos recém-chegados corre

para apanhá-la. Paulinho avisa: “Não toma, não. É brinquedo!” De longe não dá pra ver os

detalhes, mas Gu ficou com a pipa sem maiores brigas. Desta vez é a pipa de Paulinho que

voa e um menino corre para apanhá-la.

Tem 5 pipas bem altas, lá no GM. Há umas 8 lá atrás. Sheik diz que vai parar de brincar e

entrar “na moral”. Mas também reconhece que está lisinho e se arrisca a perder a pipa. Me

pergunta que horas são. Quem sabe a hora sirva como álibi para conter a sua tentação de

“entrar na moral” e poder voltar pra casa mantendo sua pipa?

Gui me pede para segurar a sua linha enrolada na lata e me pergunta onde está a água.

Aponto para o matinho e dá pra ver o sol brilhando na garrafa transparente.

Estávamos conversando sobre a hora que tinham combinado com as mães para voltar pra

casa, quando Sheik avista o Paulinho metido em um conflito. Paulinho tomou a pipa que

avoou de um menino. Angu fez o mesmo. O “brinquedo” tinha acabado, mas ninguém

avisou nada pro pessoal de lá. Veio um rapazinho tomar a pipa capturada e Angu faz

pirraça: “Se eu não ficar com ela, ninguém fica”, quebrando a pipa em seguida. Achei que o

tempo ia ferver. Fiquei à espreita para ver no que dava, mas não aconteceu nada. Será que a

minha presença intimidou os meninos do grupo de lá?

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Angu e Sheik resolvem ir embora. Os meninos do GM vêm chegando. Os meninos tomam

a trilha para voltar. Acompanho-os até certa parte, mas resolvo dar umas voltas lá pelo GM.

Me despeço deles e combino de encontrá-los no dia seguinte.

Há meninos pequenos brincando no campinho com as mães. Passo a conhecer uma delas e

começamos a conversar. Diz que mora no GM há 20 anos e que vem sempre ao campinho

com suas crianças, uma de 11 e outra de 9. Há uma outra mãe que está com seu filho.

Ambas se empenham em acompanhar as crianças, pois temem que possa acontecer algo. Os

acontecimentos que envolveram o local, num passado muito recente, aterrorizaram todo

mundo. Falaram dos “filhinhos de papai” que vinham consumir drogas por aquelas bandas.

E também comentaram o crime que ocorreu também por causa de drogas. Ambas

lamentam, pois o lugar é muito bonito, as crianças se divertem muito lá e é perto dos

lugares onde moram. Basta descer e atravessar as porteiras, uma na lateral e outra no fundo

do campinho que é usado para quase tudo: jogo de bola, pipódromo, pista de bicicross,

piquenique. As mães se mostram receptivas quando falo da pesquisa. Comentam sobre a

questão do cerol. Falam do programa do Cabo Dedé, advertindo dos perigos de acidentes.

Uma delas pondera que não deixava o filho usar cerol, mas todos os outros meninos

usavam e a pipa do filho passava a ser presa fácil. Assim, acabou por permitir que ele

também usasse, pois a brincadeira ficaria sem graça. Através dessas mães, passo a conhecer

essas entradas novas que vão para o GM. Saindo do campinho, depois de atravessar uma

das porteiras, saio num espaço gramado e plano onde os meninos andam de bicicleta. O

morro onde estávamos faz uma depressão até começar um outro morro adiante que vai dar

na estrada. Caminhei até o morro do GM onde eu estava avistando aquelas pipas, quando

vinha trazendo a água. O grupo era formado por rapazes (2 de 13, 1 de 14 e 1 de 17 anos, 1

de 18 e 1 de 20). Conheci outra mãe que estava com 3 crianças (de 4, 6 e 8 anos). O menino

menor, segundo a mãe, era louco por pipas. Conta ela que a noite ele dorme falando das

pipas e que, mesmo de olhos fechados, faz o movimento de enrolar a linha no carretel com

as mãozinhas. A tarde é de férias e, mesmo sendo um dia de semana, há familiares

acompanhando suas crianças. Vem chegando a avó do menino com duas tias. Agora, há dez

pipas do lado de cá deste pipódromo natural.

Foi uma surpresa conhecer o lado de lá do campinho. Soube que, em algum ponto do

morro, há uma nascente. Um dos meninos se compromete de me levar lá para conhecer.

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27.07.05

Ia batendo o portão para sair de casa, quando ouvi uma voz que vinha descendo a ladeira,

em direção na minha direção: “Pode voltar que eu tô chegando!” Era a Cristina, a moça que

confeccionava pipas, já bastante conhecida dos meninos e também bastante minha

conhecida, pois foi em função da sua demanda que organizamos a oficina de pipas na

UFSJ, no ano passado. Desta vez, ela vinha buscar o seu álbum de rascunhos com dezenas

de modelos de pipas que ela gostava de inventar. O álbum estava sob minha guarda, assim

como as suas armações estavam alojadas no espaço da Brinquedoteca enquanto ela não

achasse um pouso mais estável para morar, depois que havia se separado do marido,

também no ano passado. Fomos juntas até o campinho. Desta vez, eu já estava armada com

água e spray para eventuais arranhões que os meninos arranjassem com a lida das pipas por

dentro do mato. Lá no morro, encontramos 5 meninos e um cachorrinho preto. Parecia que

eles já me aguardavam pelas caras de “demorou!”. No momento em que chegamos, dois

rapazes do GM estavam pegando de volta 2 pipas aparadas. Era aquela velha história:

mesmo não tendo dono, quando avoadas, as pipas aparadas podiam ser recuperadas se os

solicitantes fossem maiores e mais fortes que os novos detentores do brinquedo. Coisas da

sobrevivência, mais ou menos no estilo “Manda quem pode e obedece quem tem juízo”.

Os meninos (Jona, Sheik , Paulo, Angu e Coxinho) estavam chateados, pois se

estivéssemos lá há mais tempo, teríamos podido, pela presença de um adulto, evitar a

retomada das pipas aparadas. Mas logo esqueceram e foram olhar o álbum de desenhos da

Cristina. “Você vai ter que me ensinar a fazer umas dessas”, falaram.

No GM, há 11 meninos soltando pipas. 4 dos meninos sentam para se organizar com as

pipas e linhas enquanto Cristina se despede. Ela diz que tem pavor de picada de inseto e

tem muita coisa pra fazer lá embaixo. Diz que depois me liga, pois quer ajudar a recobrir os

esqueletos de pipas para fazer uma exposição.

Há duas pipas no ar e duas em terra. Coxinho, que estava mais distante do grupo, se

aproxima e pergunta se não vão brincar de cruzinho. Dois dos meninos não querem por a

pipa no alto. O cachorro de Paulo está mancando, pois sua pata está machucada. Os

meninos explicam que ele foi atropelado lá na rua deles. Mas ainda assim ele segue o dono

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aonde quer que vá e a qualquer movimento que faça. Nunca o perde de vista nas suas idas e

vindas com as pipas.

No alto do morro, mais acima de onde estamos, aparece Samuel com uma pipa flecha. Ele

se mantém a distância, não se aproxima. Pergunto aos meninos se o conhecem e eles dizem

que sim. Eles não estão brincando juntos e fico curiosa para saber como vão resolver

algum conflito que ocorra. Não sei por quê, mas os meninos fazem a fantasia de que

Samuel é meu filho quando pergunto por quê não brincam juntos: “Ele é seu filho?”.

Explico que o conheço, moramos na mesma rua, mas ele não é meu filho. “E se uma das

pipas de vocês voar e ele aparar?”, perguntei. “Ele disse que entrega”, falou Angu. “E se a

pipa dele voar e um de vocês apanhar?”, continuei. “A gente devolve”, afirmou. Percebi

que já tinham se entendido a este respeito. A proximidade deles já havia apontado para a

necessidade de algum acordo com relação às questões de território. Questões diplomáticas!

Os meninos estão em pleno cruzinho. Uma das pipas voa e é o Paulo quem corre para

apanhar. O cachorro o segue. Parece que as pipas que sobraram no ar se organizam em 2

contra 1. Coxinho põe sua pipa branca no ar, mas ela está rasgada, não pára no alto e anda

de lado.

Sheik , na maior folga, me testa: “E aí, Fatima, pega biscoito lá pra gente!”

Era de esperar: já tinha levado água, spray, agora só faltavam os biscoitos. Desta vez não

me dei por achada: “Tô achando que vocês querem é fazer piquenique, hein?!” e não falei

mais nada. Nem eles. Era só pra ver se colava.

“Olha a pipa do Sheik dançando!”, diz Angu. Logo, um dos meninos a corta e Sheik corre

para apanhá-la. Angu baixa sua pipa para ajudá-lo. Angu puxa a linha da sua pipa outra vez

e a coloca no ar. Ele corre e ela sobe fácil, mas em seguida, estanca.

“Sai fora, viado! Não vai me cortar não!”, diz Jona. Paulo coloca sua pipa vermelha no ar.

O cachorro corre para onde ele corre. Quando não está junto com ele, tem os olhos fixos

nele.

A pipa de Coxinho se embola com a pipa de Angu. Ficam desenrolando as linhas das duas

pipas. Coxinho volta e eu lhe pergunto por que o Sheik , que estava próximo a ele, não está

colocando a sua pipa no ar. “Ahh! Ele é medroso!”, diz o menino.

Angu corta a de Paulo cujo cachorro se aventura a fazer uma volta maior, dando mais

distância dele. Coxinho fala para Jona: “Você podia ter trazido suas duas pipas grandes!”

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O cachorro vai para o campinho passear. Jona pede ajuda a Coxinho para colocar sua pipa

no ar.

Perguntei a Coxinho se ele tinha trocado de pipa. Ele disse que a pipa que estava soltando

não era dele, era do Angu (ou do Sheik , não lembro bem). “Se tivesse uma pipa, eu ia

brincar pra caramba!”

Nuvens escuras se aproximam. O vento vira. Ameaça chuva. Vou andando morro abaixo

junto com os meninos. Sheik, que está com sua pipa no ar, pega a pipa de Paulo pela

rabiola. Paulo alega: “Posso ser pangaré, mas eu entro num cruzo!”

Paulo tenta arrumar a linha da sua pipa cortada, mas Angu se precipita para cima dele.

“Não entra agora não, hein! Tô desembolando a linha. Angu me pede para desenrolar a

linha dele que enroscou num matinho. Logo em seguida, ocorre a mesma demanda por

parte de Sheik. Jona também me pede ajuda para colocar a sua pipa no ar. Sem dúvida,

estão me atribuindo tarefas, como se eu fosse um deles. Sheik ajuda Coxinho a colocar sua

pipa no ar e Samuel se integra ao grupo com sua flechinha branca. Aparece mais uma pipa

roxa de um rapaz que vem andando pelo campo. E mais outra, um piãozão também roxo, só

que com um desenho no meio. O pião estava com muita linha dada lá pelo pessoal do GM.

Os meninos estão cautelosos, mas o show é bonito. Há 7 pipas coloridas bem próximas

bailando pra lá e pra cá. Mas o vento favorece quem está do lado de cá do morro. Se

alguém for cortado lá no GM, é para cá que o vento vai trazer.

Sheik está com aquela “camisa de mãe ver e saber onde ele está”.

Os meninos voltam a subir o morro. É sempre assim, esses vai e vem. Já não fico pensando

que eles estão fugindo de mim.

A pipa roxa foi cortada por um dos meninos que observo. Sheik está fora da linha de fogo:

com a pipa mais baixa e encostado num canto do morro para não esbarrar em ninguém,

nem ser assediado. É uma posição de segurança. Subo o morro atrás deles. Aparece um

solzinho bom entre as nuvens, iluminando as cores da tarde: relva, pipas e as camisas dos

meninos ficam ainda mais coloridas.

A outra pipa roxa com desenho, lá do GM, está com bastante linha e agora se insinua para

os meninos. “Olha lá a roxinha!”, fala Angu. Sheik se candidata. Mas as pipas de Angu e

Sheik são cortadas e caem morro acima. Angu me fala que já cortou umas 20. O pião do

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GM está alto, mas mais próximo deles. Comento com Angu que, se ele cair, o vento vai

trazê-lo para o alto do morro.

Aparecem duas pipas amarelas vindas lá do GM. Os meninos logo dão conta delas. Agora,

conto 6 pipas no alto do morro: uma preta, 2 amarelas, 1 roxa, a flechinha branca e uma

listrada.

“Ah, estancou! Alá que bosta!”, reclama um dos meninos da linha que parte. Estamos

subindo o morro cada vez mais. Lá em cima, encontro com Samuel e elogio a sua

flechinha. Ele diz que pegou, não foi ele que fez. Pergunta se eu já vi alguma flechinha com

papel de seda. A maior parte das flechas que tenho visto, de fato, é de plástico de sacola.

Mas já tinha visto umas feitas de papel de seda, nos dias em que “a nova moda foi lançada”.

A linha de Jona enrola na linha de Samuel. Jona fica bravo como é do seu estilo: “Quem

mandou entrar? Agora vai ter que desembolar a linha”. Sheik pede a Samuel para não

entrar. Instantes depois, um dos meninos corta a flechinha de Samuel. Ela plana no vento

antes de cair. Samuel se isola. Paulo troca de pipa: desce a vermelha e sobe a de

“orelhinha” que logo é cortada. Jona esbraveja porque alguém tenta “entrar” na linha dele.

Angu comenta que ele só gosta de entrar, que não gosta que os outros entrem nele. Já tinha

ouvido um comentário semelhante por parte de Moreus, num outro dia. Algo que

corresponde ao fato de gostarem mais de atacar do que de ser atacados, ou de gostarem

mais de ter a iniciativa do que se defender da iniciativa de outros. Jona e Angu discutem:

“Põe no alto aí, ô pangaré!” Paulo chega do resgate de sua pipa e é cortado de novo. Me

movimento para sair de debaixo das linhas. Os meninos perguntam se vou embora e explico

para onde estou indo. Tento me posicionar atrás deles para não atrapalhar. Desta vez, sou

eu que desço o morro. 2 deles vêm atrás e 4 ficam mais acima. A flechinha de Samuel está

com Coxinho, mas eles vão devolvê-la. Samuel, por sua vez, está com a pipa de Jona. Há

três pipas emboladas. Os meninos riem e se divertem com a confusão. O Sheik cortou o

Angu “na mão”, Coxinho apara duas pipas de uma vez, os meninos se xingam: “Sai daí, ô

frutinha do mato! Viado! Camofa!” (Camofa é a mesma coisa que cafifa ou flecha, ou

quem a solta). Pipa e soltador, nesses casos se confundem, são uma mesma entidade.

Jona puxa a pipa roxa com a pipa do Angu. A flechinha é cortada de novo. “É camofeiro!”

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Sheik chama minha atenção: “Fátima, você viu como é que corta camofa?: A gente pega a

linha e sai puxando” Angu vai ajudar Samuel a pegar a camofa (ou cafifa) cortada, dizendo

que nunca soltou uma, que não sabe soltar pipa daquele tipo.

Chega Eliane, mãe de Samuel com o seu irmãozinho de dois anos. Começamos a conversar

enquanto os meninos sobem o morro e eu os perco de vista. Ela continua perplexa com o

gosto que Samuel tem pelas pipas. E como ele acaba contagiando os pais nessa brincadeira.

Nos seus guardados, há uma infinidade de pipas, todas “conquistadas”, como troféus. Diz

que o filho não vê graça em comprar, que as pipas que ele apanha é que têm valor para ele.

Às vezes estão rasgadas e amassadas, mas são essas que o encantam. A mãe acaba

confessando que, num outro dia, se viu correndo atrás de uma pipa para dar ao Samuel.

Parece mais resignada com as histórias das pipas de Samuel, mas continua reclamando que

o filho se esquece até de comer, que se machuca, que se esfola e, às vezes, nem conta nada

pros pais. Eliane concorda que as pipas representam uma conquista para o Samuel. Se

admira de eu conhecer os meninos pelo nome e fica curiosa para conhecer as anotações da

pesquisa. Me prontifico a levar pra ela. Samuel deixa o irmão segurar a sua flecha. Passa

um bando de andorinhas.

Aparecem duas pipas do GM que deram bastante linha para chegarem aqui perto. São as

mesmas de antes, uma amarela e uma roxa com enfeite no meio. Angu e Sheik estão se

dirigindo para a depressão que há no morro. Aviso os meninos que vai chover. Eles me

perguntam, incrédulos, como eu seu que vai chover. Aponto para a nuvem preta que está

vindo em nossa direção e para os primeiros pingos que já estão caindo. Não só dava pra

ver, como dava pra sentir a chuva chegando. Me despeço deles na esperança de que eles

venham atrás. Sigo pela trilha de volta. Eles ainda ficam naquele movimento de saideira até

se decidirem a abandonar o morro. Mas a chuva realmente está cada vez mais próxima.

Ainda posso vê-los quando chego à rua com Eliane. Se despedem ao longe, mas espero que

eles não tardem a voltar pra casa.

Nesta tarde, ficou mais ou menos delineado para mim o quanto que cada um imprime um

estilo próprio na atividade de soltar pipas que pode ou não ser típico de outras atividades

que desempenha. Cada um dos meninos podia ser observado a partir de uma determinada

maneira de se comportar. Brincando de brincar, eles se revelavam na forma de lidar com os

outros e com seus brinquedos. Provavelmente, são “estilos” construídos ao longo de sua

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história em função das redes que puderam se tecer ao seu redor. Jona, por exemplo, era

sempre muito “esquentado”, reclamando muito e brigando com os outros a cada vez que

sua pipa se enroscava ou caía. Podemos dizer que era de um estilo “zangado”. Sheik, se

protegendo de maiores aventuras, grande parte do tempo numa posição mais recuada,

assumia um estilo “cauteloso”, soltando sua pipa numa lógica de risco calculado. Samuel

fazia o estilo “ermitão”, buscando isolamento do contato com o grupo. Para ele, soltar pipas

parece ser uma atividade mais solitária, de conquista do objeto, como se este fosse um

troféu. A impressão que me dá é que um grupo com o qual brincar não lhe faz falta. O

Angu me parece ser mais do estilo matreiro, de aproveitar as oportunidades, brigando ou se

recolhendo em função das necessidades de sobrevivência em campo. De qualquer forma,

falo de estilos não como se fossem moldes estáticos. Pelo contrário, são moldes relacionais

que podem se modificar em função da configuração da rede nas quais estão inscritos. Há

momentos em que Jona tem que ser mais amistoso, Sheik assume uma atitude mis ousada

num cruzo, Samuel se mistura com um grupo e Angu nem sempre consegue se dar bem.

30.07.05

Era sábado. Havia chegado de viagem. Tinha passado dois dias fora da cidade. As mordidas

de inseto mal tinham parado de coçar. Mas a tarde estava esplêndida e o morro estava cheio

de crianças. Debaixo de uma das árvores, um grupo misto de umas 12 crianças

acompanhadas de 5 moças fazia um piquenique. Encontrei Coxinho, Paulo e seu cachorro,

Jona, Paulinho e uns 4 rapazes que eu não conhecia muito bem. Eram 5 pipas no ar. Os

meninos não me deram muita bola, pois hoje estavam acompanhados dos rapazes maiores.

Perguntei dos irmãos Angu e Gui e do Sheik . Não se preocuparam muito em responder.

Mais alguns instantes e o Coxinho me pergunta se eu trouxe água. Tinha esquecido no

afobamento de vir para o morro.

O vento estava na direção da caixa d’água. Coxinho me fala que estava voando muita pipa

hoje. Paulinho se chega. Coxinho se senta ao meu lado e chama Paulinho: “Vamos sentar

aqui com a Fátima!”, diz ele.

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Os meninos do GM estavam com pelo menos 5 pipas altas na direção dos morros vizinhos.

Coxinho se queixa de sede e eu me proponho a ir buscar água. Penso que deveria ter

lembrado de trazer de uma vez.

Quando voltei, achei, na beira do campinho um grupo de rapazes e dois meninos. Vinha

outro rapaz com varas de bambu para marcar as traves de um campo de futebol

improvisado. Com ele, vinham mais 4 meninos e mais dois rapazes com uma bola, já

iniciando uma pelada. “Dá água aí, moça!” me falam os rapazes. Coxinho toma da água que

eu trouxe e oferece aos que estão sentados no grupo.

Estavam agora dois grupos claramente divididos: os da bola e os da pipa.

Coxinho senta-se de novo ao meu lado e comenta como era bom aquele lugar. “Queria

morar por aqui!” Perguntou se eu já morava aqui no bairro quando mataram o rapaz aqui no

morro. Me conta que ele foi morto por causa de R$15,00, dívida de droga. “Um dos que

matou, já morreu”, referindo-se ao crime de duas semanas atrás que me foi contado por

Alice.

Passa por nós uma família: pai, mãe, 2 crianças pequenas e 3 mocinhas. Vão soltar pipas

numa parte do morro mais acima de nós.

No campinho, o grupo da bola se mistura ao grupo das pipas. Ao todo, entre rapazes e

meninos, consigo contar 18. Coxinho está na beira de uma das depressões do morro. “Tá

vendo aquela pipa laranja e preta, lá no GM? Era pra ser minha! Naquele dia que você veio

com a Cristina, eu aparei e vieram os rapazes e me tomaram de volta. Eles eram maiores e a

gente teve que devolver”. Coxinho comenta que hoje foi um dos melhores dias. Mostrou

uma pipa vermelha que ele aparou assim que eu saí para pegar água. Perguntei onde ele

morava e ele me respondeu que era nas Águas Férreas, perto do Sheik. Eram primos em

segundo grau. Logo reclama que os meninos não estavam respeitando as regras do

cruzinho: “Ô, eu parei, hein!” Mas não adiantou: as duas pipas que estavam assediando a de

Coxinho terminam por cortá-la e ela cai longe, depois da vegetação que tem beirando a

depressão do morro. Ele não sabe se será possível apanhá-la na região em que caiu, além da

depressão, onde o morro começa a subir de novo. Pergunto se é lá que tem uma nascente.

“Se for lá, aí mesmo é que não vai dar pra pegar”. O menino me deixa segurando a sua

linha enquanto desce para investigar. Eu o perco de vista quando desaparece pelo mato na

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virada da trilha. Ele reaparece, vira-se para trás e acena para mim. Retribuo o aceno. Ele

resgata a pipa e vem voltando. Quase comecei a ficar preocupada.

O sol começa a se por. Coxinho vem voltando pela trilha com sua pipa amarela que tem um

pit bull estampado nela. Os outros meninos já baixaram as pipas. O jogo de futebol

continua animado. No alto do morro, há mais duas pessoas. Consigo enxergar 7 silhuetas: 3

rapazes passam andando com as pipas, mas a família permanece lá. Os rapazes passam e

me cumprimentam. A família vem descendo também. Saio do morro com Coxinho e

caminhamos juntos até o final da trilha.

31.07.05

Domingo, último dia de férias. Céu de Brigadeiro, brisa boa. Assim que saí de casa cruzei

com Samuel que estava sentado no meio da rua de cima a espera de alguma pipa avoada.

Me fala que estou atrasada, muita pipa já tinha voado hoje e eu tinha perdido o movimento.

Logo na esquina da rua de baixo, encontro com os irmãos Angu e Gui, com o pai, mais o

primo dos meninos, sobrinho do Sr. Juca. Havia uma quantidade de pipas grande para cada

canto que a gente olhasse. Fui saudada por Marcelo (11) com um “Olha a dona do caderno

aí!”

Tem 4 pipas no ar e 2 no chão, em preparo, no local por onde passo. Um rapaz que está

com Marcelo, apesar do fone de ouvido, consegue escutar quando eu passo e os

cumprimento. Comenta que é muito bom soltar pipas escutando um som, principalmente

quando tem cruzo.

Voa uma pipa cheia de linha. Mais adiante sobra uma linha que todos disputam.

Aparece Isabela (10) soltando um giriquinho. Marcelo diz que ela vem todo sábado, que já

é conhecida por aqui. Continuo andando em direção ao fundo da rua, quando Gui desce a

ribanceira com um monte de linha. Vem o irmão e pergunta: “Mamou?”, referindo-se à

linha.

Olhando em direção ao vale do Tejuco, dá pra contar umas 20 pipas. À esquerda, pra cima

do SC, tem mais umas 10 no meu ângulo de visão.

Encontrei Finão, o meu pequeno professor, com D. Maria José e o neto Viny. Sentei pra

conversar e perguntei pelos outros. A vovó falou que eles ainda viriam.

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Finão e Viny se revezam na pipa. A linha estanca duas vezes e eles têm que apanhar, senão

a pipa voa e outros podem pegar.

Coxinho está na rua de cima com um boné branco. Ele acena para mim e eu retribuo o

aceno sem saber direito que era ele. É Finão quem me diz.

Alice está atrasada e assim resolvo subir a ribanceira em direção à rua de cima enquanto ela

não vem. Aqui em cima, está cheio de gente. Cruzo com 3 meninos portando suas pipas

debaixo do braço e mais 3 mulheres. Uma delas está com um feixe de alecrim do mato

amarrado em forma de vassoura e outra com uma toalha que está bordando. Estão voltando

de um passeio ali por cima.

Descubro mais 5 pipas aqui deste lado. Entre as pessoas, está o Néo, meu vizinho, que há

muito tempo não via. Perguntei onde ele tinha andado. Disse-me que passou as férias

viajando para aqui perto, onde tinha parentes. Estava com outro menino (8) acompanhado

do pai que era amigo do pai de Néo. José (45), o pai, que trabalha com metalurgia, estava

acompanhando os meninos. Disse já ter soltado muita pipa quando era garoto e, chegando

mais perto para não deixar que os meninos o ouvissem, confessou que estava pagando os

pecados dele: “Agora é que eu entendo o que eu fiz minha mãe passar com essa história de

pipa. Tem que vir junto. Pode acontecer muita coisa!”

Mais adiante, encontro outro pai soltando pipa com seus dois filhos, Marcos (9) e Mateus

(6). Flávio (49) é dentista, mora no Tejuco e escolheu soltar pipas no SC por causa da

ausência de fiação elétrica. Tinham decidido vir meio em cima da hora e resolveram eles

mesmos construir uma pipa improvisada com uma folha de papel ofício onde um dos

meninos desenhou uma bandeira do Brasil. Tentaram colocar a pipa no alto algumas vezes.

Mateus acha que a pipa não sobe porque está muito pesada. O papel não é o adequado.

Tinha que ser de seda que é leve. A pipa subiu, mas não se manteve muito tempo no ar.

Precisavam de mais vento por causa do peso da pipa. Deixei-os a vontade para fazer suas

tentativas.

No GM tem umas 12. Desço para o lugar onde costumo encontrar com Alice. Ela está lá

com os seus meninos, 2 irmãs, o cunhado, a sobrinha de quase 5 anos, o sobrinho Pepelu,

Paolo, Douglas, o Francisco e, finalmente, Leleca.

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A irmã de Alice comenta que 3 motoqueiros morreram com o pescoço cortado por linha

de pipa, em São Paulo. As duas moças também falam dos cachorrinhos que foram

encontrados abandonados ali no mato perto de nós.

A pipa do Pepê é cortada por Tanaca. Alice fica brava e vai tomar satisfações, lá na outra

extremidade da rua: “Por que você cortou a pipa do meu filho, ô palhaço? Você sabia que

era dele!” Alice fica secando Tanaca. Diz que a pipa dele também vai sobrar. Alice faz

movimento para ir embora e deixar Tanaca pra lá, mas este baixa sua pipa e dá pra Alice

que considera justo o ressarcimento: “É pela sacanagem. Se não fosse, eu não aceitava”.

Assim que chegou de volta ao seu grupo, deu a pipa que era de Tanaca para um menino que

a pediu. Ao mesmo tempo, a pipa de Pepê cortada por Tanaca foi resgatada e trazida de

volta. Mais tarde, Alice reconhece que foi injusta, pois alguém lembrou que, num outro dia,

o Pepê cortou a pipa de Tanaca, quando ele estava soltando com Leleca e as coisas ficaram

assim mesmo. Vira-se pra mim e diz: “Pode anotar aí: Fui injusta!”, diz ela preocupada.

Cai uma pipa e Leleca corre para pegá-la, ribanceira acima. Alice grita incentivando:

“Corre, Tigrão!”, cena que se repete mais algumas vezes durante a tarde.

Os adultos (vó, tio, tia, mãe) estão todos em torno das crianças pequenas, evitando que as

linhas se cruzem , desenrolando as rabiolas equilibrando pequenos conflitos.

Cai uma avoada e 5 correm para pegá-la. Ela vem caindo devagar, quase planando. Muitos

gritos de “Corre! Corre! Pega! Pega!”

Tem 5 crianças correndo com suas pipas. As linhas se enrolam. As 3 moças correm para

socorrê-las e arrumar a confusão que se formou. Alice pede para escrever que hoje foi “o

dia do tumulto”. O cunhado quer ir embora. Alice fala que ele está estressado, que o

Francisco ainda quer brincar. Ouve-se um choro. Alice pensa que é do Pepê e vai ver onde

e como estão as crianças. As 2 moças (Alice e a irmã) estão vindo com as 4 crianças.

Pepelu, sobrinho de Alice passa chorando. “Desse tamanho quer correr atrás de pipa”, diz a

mãe. D. Zezé chama Viny, pois já é hora de ir embora. Ele diz que só vai embora quando

Alice for. Os meninos pedem para desenhar e escrever no meu bloco. O Pepê da Alice

escreve Fátima do jeitinho dele. Lana faz umas ondinhas e pergunta pra mim o que ela

escreveu. Peço pra ela “traduzir” que eu anoto. Ela diz que escreveu “pantera” e assim eu

anoto do lado das ondinhas, lembrando do tempo em que eu era professora das classes de

alfabetização. “Vai ficar aqui pra gente saber o que você escreveu”. Já estávamos prestes a

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nos despedir, pois já estava escuro. As férias haviam terminado, mas quem sabe as pipas

continuavam nos fins de semana de agosto.

Subi a ribanceira em direção à rua de cima. Encontrei uma pipa largada na grama. Enrolei a

rabiola dela e dei de cara com o Coxinho que disse que aquele camelo ele é que tinha

aparado. Depois apareceu Paulinho com 8 pipas cortadas. Coxinho me deixa segurando a

linha enquanto vai apanhar uma avoada. Paulinho diz ter aparado tantas, que já deu, já

vendeu, de tanta pipa que tinha nas mãos.

Sopra um vento frio. Aparece a primeira estrela no céu, mas ainda há pipas no ar. Os gritos

dos meninos ainda ecoam pelo morro, dando sinal de que tem pipa avoada.

07.08.05

Hoje é domingo, o primeiro domingo de agosto. É o dia do Festival do papagaio que a

CEMIG promove, lá em BH, mas este ano não deu pra ir. Estava regando as minhas plantas

de manhã, quando dois meninos passaram lá por casa. Eu os reconheço e falo com eles.

Perguntam quando vai ter mais pesquisa. “Hoje vou estar lá. Vocês vão?” Eles

responderam afirmativamente e combinamos que nos veríamos mais tarde.

Saindo de casa, avistei apenas duas pipas. Não via o céu assim vazio num domingo há pelo

menos dois meses. Encontro com JP e Emerson soltando pipas com seus pais, a irmãzinha e

mais a cachorra Shelly, uma pit bull bem amistosa. São os dois meninos que passaram lá

por casa pela manhã. Pergunto por que está tudo tão vazio e os pais arriscam algumas

hipóteses: “É o vento! Não tem vento!”, “Ou é porque as férias acabaram!”, “Pode ser

também por causa do leilão de bezerros, lá no campo do SC”, “Tem procissão!”

Sento com eles no meio fio para conversar um pouco.

Os meninos estão tentando colocar as pipas no ar, mas tá difícil “Vento de hemorróidas!

Vento de TPM!”, reclama Emerson sem saber direito o significado do que estava dizendo.

O fato é que o vento estava “de frescura”, difícil, naquela tarde.

Emerson começou a me ensinar algum vocabulário de quem solta pipa: Quando manda a

pipa, é “patinho”, ou “freguês”, “cafifa” tem cara de flecha.

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O pai quer ir embora, pois ainda quer pintar a bicicleta para sair pro trabalho no dia

seguinte. Ele trabalha de pedreiro: “Não tem pipa pra cruzar. Vamo embora! Agora só vai

ter pipa em dezembro”, ele desanima os meninos que vão fazendo cera para ficar.

Aparece uma pipa amarela. É de Samuel. Mais 4 meninos vão subindo a rua pelo lado do

SC: um de bicicleta, outro de patins e 2 a pé.

O pai dos meninos fala em ir embora de novo. Os outros meninos caminham em direção ao

Bonfim passando pelo campinho e pelo Guarda-Mor. O pai fica intrigado com o nome:

“por que Bonfim? Por que Guarda-mor? Alessandra, a mãe, arrisca uma explicação:“ O

Guarda-Mor era alguém responsável pela guarda do ouro que tinha uma casa no morro para

vigiar tudo lá de cima. Aí, o morro ficou conhecido como morro do Guarda-Mor”.

Perguntamos pelos outros meninos, em especial o Dezinho, com quem eu vi os dois

meninos pela primeira vez. Alessandra me informa que o Dezinho está com o pé todo

enfaixado: “Por causa de pipa, disse a mãe dele, largou o prato de comida, saiu correndo e

enfiou o pé no buraco”.

Maira, a irmã de Emerson e JP, amarra uma linha no chinelo e sai puxando, como o fazem

os meninos com as pipas. Será que ela quer que o chinelo suba? Emerson Brinca que aquele

será um “chinelo voador”. Pergunto se ela quer uma folha do meu bloco para fazer um

giriquinho e ela aceita. O pai vai fazer, mas logo os irmãos tomam a incumbência. JP se

oferece para fazer um “canecão”, ou “caixão”, que também é um tipo de brinquedo-ponte

do papagaio, mas que tem a forma diferente daquela do giriquinho. No primeiro caso, tem

as talas que perfuram a folha de papel, é mais parecido com pipa e também tem que colocar

rabiola. No segundo, são só as dobras formando uma espécie de caixa que é presa com

linha para opor resistência ao ar e não precisa de rabiola. Foi assim que os meninos me

ensinaram, fazendo inclusive desenhos no meu bloco. Aprendi um pouco mais.

13.08.05

É sábado. O tempo está bonito e sopra uma brisa boa. Mas nada de pipas no ar. Apareceu

uma pipa vermelha pela manhã, tentando provocar a emergência de outras, mas nada!

Ninguém apareceu. Nem aqui, no São Caetano, nem no Guarda-mor que são os morros que

consigo ver daqui. A pipa vermelha não ficou por muito tempo. Está acontecendo a Feira

no Parque de Exposições com diversas atrações durante estes dias. Será que o declínio do

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movimento das pipas pode estar relacionado ao evento? Será que é por que as férias

terminaram?

Vamos ver o que acontece amanhã, dia dos pais.

09.01.2006

Nas primeiras semanas de férias no mês de dezembro, já dava pra ver as pipas no ar.

Infelizmente, não pude comparecer ao campo devido, primeiramente, a questões

domésticas e depois porque tive problemas de saúde. O dia 09 caiu numa segunda-feira.

Ainda me restabelecendo, não consegui evitar o chamado. Estava na hora de tomar uma

atitude e voltar ao campo. Os meninos estavam na esquina atrás da quadra da minha casa.

Ao chegar, encontro um grupo de meninos, uns já conhecidos da temporada passada e

outros a quem ainda não tinha visto soltando pipas por ali. Dos conhecidos, identifiquei

Moreus, Pino e Ioiô. Dos que eu havia visto menos, estavam os irmãos Zu e Bu. Estavam

em turma. Alguns deles, para se deslocar com a pipa no ar e ultrapassar o obstáculo dos fios

elétricos com a linha, atiram o cano com a linha enrolada. Eles estavam se deslocando para

o campinho e resolvi acompanhá-los, uma vez que obtive a sua permissão para tanto.

Caminhamos pelos terrenos baldios cheios de mato até chegar à trilha que leva ao pasto. Ao

contrário do que eu imaginava, eles não pararam de andar. Ultrapassaram a porteira que dá

acesso do campinho, indo em direção ao morro do Guarda-mor.Ao lado da casa em

construção que fica no cucuruto desta colina, encontro alguns conhecidos da outra

temporada. Lá estavam Aparecida e o filho, acompanhados de um rapaz que estava sentado

na grama ao lado deles. Cumprimentei-a pelo nome e ela ficou surpresa por eu ainda ter a

lembrança do nosso encontro, nas férias passadas. Comentou que, sendo férias e não

havendo chuva, eles viriam soltar pipas. Este comentário tem muito a ver com o fato de que

o mês de janeiro em outros anos não foi um mês propício às pipas por causa da freqüência

das chuvas. Neste ano, a onda de calor, a falta de chuvas e a temporada de férias

conspiraram a favor do aparecimento das pipas, coisa que só verificamos, em 2005, de uma

forma muito mais atenuada.

A esta altura, os meninos que eu estava seguindo já estavam na colina seguinte. A paisagem

era linda e dava gosto admirá-la outra vez. O efeito para mim era quase terapêutico por uma

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série de questões: o dia estava luminoso, com o céu, grama, pipas, tudo resplandecendo sob

o sol; o ar estava ameno, eu não sentia mais dor e lamentei que não pudesse registrar aquele

momento com a digital. Dias depois, um pouco por acaso, soube que aquela área seria

loteada ainda este ano e provavelmente uma parte daquela paisagem não existiria mais.

Ao me aproximar mais do grupo de meninos, percebi que o assunto girava em torno de uma

pipa cortada e outra pipa aparada, respectivamente pelo Pino e pelo Moreus. Os menores

estão com suas pipas na mão. Comentam sobre o conjunto de casas que foi construído

recentemente, ali, na planície abaixo de nós. Falam da rapidez da construção e trazem

notícias de conhecidos a este respeito. As pipas com as quais tinham intenção de guerrear,

somem e eles ficam sem muito motivo para estarem ali. Alguns propõem de irem nadar. Na

verdade, estão caçando o que fazer num dia bonito de férias. Eles começam a se deslocar

fazendo o caminho de volta. Falam que “hoje estava tudo de bom: vento, sol, só o Rodrigo

que não veio”. E eu nem sei quem é o Rodrigo. No campinho, dá pra avistar Samuel

passando na companhia da mãe e do irmão. Estavam indo em direção ao São Caetano. Os

meninos vão andando e parando com as suas pipas no ar. Ultrapassam o campinho e pegam

a trilha que leva até a porteira. Param na beira da rua e jogam os canos por cima da fiação

elétrica. Ficam um instante na sombra e depois resolvem ir embora. Voltamos ao nosso

primeiro ponto de encontro. Ioiô e Pino ficam na beira da rua de trás, plantados no meio fio

enquanto Moreus e os outros vão para cima da construção abandonada. Pino entra num

cruzo com uma pipa vermelha e perde a sua pipa. Moreus aparece perguntando o que tinha

acontecido. Ao fundo, dá pra ver o evento. A pipa vermelha faz algumas evoluções até

deixar cair a pipa preta de Pino que tinha sido aparada pela linha da primeira. Segundo os

meninos, ao observar a queda da pipa cortada de Pino, dá pra ver que ela caiu

exatamente....em cima da laje da casa de Pino. “Cagão! Pino cagão!”, dizem eles. Os

irmãos Zu e Bu fazem menção de descer a ribanceira. Dizem que se chegarem tarde, o pai

dá couro neles. Bu fala que vai pra casa, pois não quer perder a novela “Almas gêmeas”.

Vejo os meninos descerem a rua. Vão descendo devagar, sempre de olho no céu. Pino e

Moreus, que estavam de volta de uma caçada, seguem atrás. Por último, vai Ioiô.

Há pipas esparsas no céu. Dá pra vê-las em diversos pontos do vale do Tejuco, fazendo

contraste com o verde dos morros e o azul do céu. Posso contar umas 20. Os meninos

param. Ainda não se decidiram sobre ir mesmo para casa. Quem sabe queriam mais

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distância de mim? Quem sabe, ao avistarem outras pipas, o interesse por um cruzo tenha

ficado forte outra vez ?

O sol ainda é forte às 18:00. Com a claridade, as pipas parecem girinos boiando na luz.

Qualquer cor que tenham, parecem todas transparentes, translúcidas. Os meninos

finalmente somem da minha vista. Os passarinhos de rabo em pé estão numa animação só

na esquina da rua. Como vou andando devagar, parando pra anotar, eles nem se abalam

com a minha presença. Há uma brisa boa soprando nos galhos dos arbustos. Cachorros

latem ao longe. Um menino ou outro grita no vale.

Fico pensando que o caráter nômade da brincadeira de pipas ocorre, não por uma

necessidade de evitar conflitos quando o território já está muito ocupado, mas justo ao

contrário, para caçar uma boa briga, para lucrar com o resultado dela, ou seja, mais pipas. É

um movimento mais semelhante ao nomadismo que se opera como uma procura pelas

fontes de alimento. Sem outras pipas pra cruzar e aparar, como e o quê caçar?

11.01.2006

Fui para a esquina da rua de trás. Encontrei Bri, Binho e mais três meninos cujo nome eu

não lembrava. Havia 8 pipas nas redondezas, todas altas. O sol estava encoberto e tinha

vento bom. Bri estava com uma pipa enfeitada de prateado e dotada de zoador. Já havia

uma pipa aparada no chão. Bri chama a atenção do grupo para uma pipa que vinha “quente”

e acha que ela é do Moreus. O grupo se divide. Bri e o rapaz maior descem a rua para testar

o cerol. Binho fica com o Zu e o menino que tinha o cabelo comprido na temporada

passada, o Tião. Binho reclama que o pé está machucado. Moreus aparece dizendo que

voou. Tinha sido cortado pelo Binho. O problema todo foi que Binho ficou contra o sol e

sem poder ver direito, cortou Moreus sem querer. Binho oferece uma nova pipa só na

armação para Moreus como uma forma de ressarcimento. Desculpa-se dizendo que foi sem

querer. Um carro vem descendo a rua e passa por nós. São Miriam e Fred, meus vizinhos da

rua de baixo. O Fred que é meu colega, professor da engenharia, pergunta o que estou

fazendo ali. Explico que seguir os meninos na brincadeira de pipas faz parte da minha

pesquisa. Ele lamenta que lá na engenharia não tenha a chance de fazer “dessas coisas”.

Comento que essa tem sido uma parte boa do doutorado. Mesmo com muito sol na cabeça e

algumas dificuldades a enfrentar no campo, ainda é muito estimulante acompanhar esse

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tipo de atividade. Miriam conhece alguns dos meninos, pois foi professora deles e comenta

do talento de Binho para o desenho. Pino vem subindo com outro rapaz. Ao todo, já são 6

meninos no grupo que se forma. Estão com sede e querem água. Aparece uma garrafa, mas

a água está quente. Usam a água para lavar as mãos sujas de cerol. A pipa de Bri corta e

apara mais uma. Parece que o cerol dos meninos está bom. Aparece uma pipa branca que os

meninos identificam como sendo do Samuel. Moreus se anima para cortar, mas Binho diz

que a pipa é o maior camelo, que não vale a pena. Moreus fala que a dele também é um

camelo. Os meninos apontam os cruzos que estão acontecendo em algumas partes do céu.

Ficam a procura de pipas mais distantes para cruzar. Há 3 pipas contra o sol. Alguém corta

Moreus. Os meninos se espalham. Vem uma nuvem e cobre o sol, deixando um fundo cinza

sobre o qual se destacam as pipas. Binho senta para tomar água. Diz que está de ressaca do

sol. Os meninos se movimentam pra lá e pra cá. O grupo é composto agora por mais ou

menos uns 11 meninos que se dividem em grupinhos de 2 ou 3, indo pra onde as

oportunidades aparecem.

Binho se senta ao meu lado. Começa a contar que não briga por causa de pipa. Diz que

morava na rua de baixo e vem aqui desde que era pequeno. Que antes, não havia nada

mesmo, aqui em cima. Mas que, mesmo com mais casas e mais rede elétrica, ainda era um

bom lugar para soltar pipas. Tinha melhorado desde uns tempos para cá, pois antes dava

muita briga quando os meninos dos outros morros perdiam suas pipas pra aqueles que

estavam do lado de cá. Desciam o morro deles e subiam aqui rapidinho pra tomar de volta o

que tinham perdido. Mas quase todos foram embora e as brigas acabaram. Agora, eles até

vêm soltar pipa aqui, mas não brigam mais. A turma quase toda se conhece, os maiores

tomam conta dos menores. Lembrei do Gabe que tinha vindo sob os cuidados dele nas

férias passadas. Ele me falou que o Gabe agora estava morando aqui, pois a mãe dele tinha

casado e tinha vindo morar na cidade.

Os meninos se xingam de “viado” cada vez que se sentem ameaçados pela linha dos

companheiros mais próximos, mas acabam se entendendo.

A pipa de Samuel, que está soltando pipa sozinho na casa que o pai está construindo, voou ,

assim como a pipa que entrou no cruzo com ela. A pipa dele foi aparada, mas a outra não.

Samuel ficou zangado. Um dos meninos, o Fungo, foi lá na construção tomar satisfações de

Samuel. O Fungo voltou dizendo que o pai de Samuel tinha pegado um pau para brigar e

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que a mãe xingou os meninos. Já era a segunda pipa de Samuel que voava naquele dia. A

primeira tinha sido uma branca e esta era estampada com a bandeira do Brasil. Caiu

ribanceira abaixo e promoveu a maior correria Um dos meninos do grupo que observo

conseguiu apanhá-la. Depois da pequena “confusão”, os meninos se sentam na encruzilhada

de duas ruas para conversar. Falam do assunto de sempre: venturas e desventuras vividas

no esporte. Um deles comenta que os meninos do GM disseram que vinham dar tiro neles.

Parece que se acalmam nessa conversa sentada. Há um movimento de re-afirmar o

sentimento do grupo, de saber que podem contar uns com os outros nos bons e maus

momentos (ver o significado dos rituais na “dança do craterope”). Uma pipa voa e parte do

grupo se dispersa outra vez. Alguns correm, outros se mantêm sentados. Os movimentos do

grupo ocorrem ao sabor desses eventos: ora se juntam, ora se separam. Onde há promessa

de maior emoção, se junta a maior quantidade de meninos: quando os cruzos ocorrem,

quando uma pipa cai ou é aparada. Às vezes os meninos do mesmo grupo cortam os

companheiros sem querer. Houve um momento em que as pipas ficaram muito juntas e

algumas tiveram suas linhas partidas. Neste caso, eles pedem para os companheiros

apararem suas pipas avoadas para que elas não caiam muito longe e se percam.

Voou uma pipa atrás de nós. Bri estava soltando um pião preto rasgado e saiu correndo para

tentar pegar a avoada, engatando a pipa preta em todos os galhos por onde ia passando.

Binho se divertiu com a cena. A corrida para caçar uma pipa voada é, sem dúvida, um

ponto alto na brincadeira.

As 16:45, havia umas 15 pipas na área em que estávamos, todas altas. O sol estava menos

forte que nos outros dias, muitas nuvens escuras passando e uma brisa soprando. O grupo

se desloca pela rua e eu tento segui-lo. Fazem agora o movimento de dispersar. Binho vem

voltando e pergunta “quem tem relógio aí por essas quebradas?” Aviso que são 17:10.

Moreus diz que vai pra casa ver “Malhação”. Desde a hora que anunciam a retirada até a

hora em que vão embora mesmo, ainda transcorrem alguns minutos. Em geral, eles não

baixam as pipas para voltar. Costumam fazer o caminho pra casa com suas pipas no ar,

como se fossem balões sinalizadores. Ainda pode surgir alguma oportunidade durante o

trajeto. Consigo vê-los descendo a rua em grupos de 2 e 3 meninos. Na rua de baixo, avisto

um menino e uma menina, ambos pequenos, soltando suas pipas. Serão Pepê e Lana?

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15.01.2006

Domingo cheio de sol. Ao contrário do que eu esperava, o movimento de pipas estava fraco

no São Caetano. Pela manhã, avistei com binóculo uma família soltando pipas no morro do

GM. Estavam no topo de uma das colinas e tinham ido até lá de carro, um fusquinha azul.

Ficaram pouco tempo. Logo a tarde, no campinho, estavam 2 meninos, um mais velho e

outro pequeno, acompanhados de uma moça de saia longa que penso ser a mãe deles. Um

olhar mais atento e dá pra perceber que a moça é a Eliane e os meninos são, obviamente,

Samuel e o irmão menor. O sol está forte. Eliane caminha para se abrigar na sombra de uma

árvore. Samuel solta uma pipa preta. Mas não se demoram muito. Tento avistar se há

movimento na rua de baixo, de onde costumam vir os meninos que soltam pipa aqui no SC.

Nenhum movimento a não ser umas pipas esparsas lá pros lados do Tejuco. Fico pensando

que para entender o movimento das pipas é preciso saber o que ocorre no calendário de

eventos da cidade. Os sinos bateram de um jeito diferente hoje. Pode ser que seja festa de

algum santo. Ou é um evento religioso, ou, como nos outros dias, os meninos interrompem

os folguedos para ver as novelas. No início de agosto do ano passado, as pipas rarearam um

pouco por causa do fim das férias, um pouco por causa do funcionamento do Parque de

Exposições. A onda de calor já seria o suficiente para deixar as pessoas longe do sol. Na

televisão, as reportagens mostravam as pessoas das grandes cidades padecendo com as altas

temperaturas. Aqui em SJDR, apesar de mais fresco, o sol ferve. Lembro do grupo que

observei na semana passada cuja estratégia era buscar abrigo do sol na sombra de um muro.

O sol está declinando. São 18:00, horário de verão. Vou observar pra ver se alguém se

animou.

Avistei um grupo na esquina perto da casa do moço da Ferbom. Apressei-me a ir encontrar

com eles. Ia chegando perto quando um deles me saudou: “Fátima!”. “Oi!”, respondi. Era o

Dezinho. “Fazendo pesquisa?”, ele pergunta. Falei que os tinha avistado e vim encontrar

com eles. O Dezinho tinha machucado o pé na última temporada e ficamos um bom tempo

sem vê-lo. Tinha notícia dele por outros meninos que o conheciam. Falaram-me que ele

estava trabalhando com computadores. Havia mais 4 meninos com ele: Diego (10),

Iago(14), Sérgio(14) e Manuel (15). As pipas são predominantemente listradas. Os meninos

reclamam do vento: ora tem, ora não tem. O Iago disse que ia embora: não tinha vento e

não tinha pipa pra cruzar. Os meninos começam a conversar. Pergunto por que não tinham

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aparecido antes. Responderam que não tinha vento. Quis saber por que os sinos estavam

tocando. Eles não sabiam de nada. Falaram que era enterro. O Dezinho perguntou se este

era aquele caderno que eu anotava da outra vez que nos vimos, há quase um ano atrás.

Falei que sim. Os outros meninos ficaram curiosos. Se posicionaram em torno de mim para

ver o tal caderno. Li um trecho do que tinha escrito. Um deles achou que era muita

paciência de minha parte. “Pra quê você escreve?”, pergunta. “Pra alguém ler, um dia.

Talvez até mesmo vocês”, respondo. Explico que faz parte da minha pesquisa registrar o

movimento com as pipas.

O vento começa a soprar. Os meninos se animam de novo. Consigo ver muitas pipas ao

longe, umas 10 pipas. Dezinho se arrisca com uma pipa mais pra perto da Igreja de São

José. Os meninos avisam que ele pode voar. Dezinho cortou a pipa adversária, mas a sua

linha engatou e o pião ficou agarrado numa antena. Os outros meninos ficam posicionados

em fila com suas pipas, uma cena muito comum quando soltam pipas em grupos. Dezinho

pede ajuda ao menino mais novo, mas ele diz que está cansado. Iago diz que vai embora,

que está com fome. Depois de muito pelejar e muito reclamar, Dezinho consegue

desprender sua pipa. Mas depois a perde de vista. As pipas estão muito altas. Só dá pra vê-

las seguindo a linha iluminada pelo sol. Iago estranha: “esse sol está se escondendo no

lugar errado! Era bem ali!” Lembrei que a linha do poente varia conforme a estação. Os

meninos estão com suas pipas bem altas e distantes. Agora devem ser umas 15 que dá pra

contar. Os meninos procuram pipas pra cruzar. Os 4 maiores estão com suas pipas no alto.

O menor está sentado na calçada. Estão todos abrigados na sombra do muro da casa.

Dezinho comenta que seu pião mudou de cor, lá no alto. Um deles está em pleno cruzo.

Dezinho recolhe a sua pipa, mas não sabe por que. Os meninos descem a rua e eu vou atrás.

Vem uma menininha com um cachorro para chamar Dezinho. Diz que a mãe o chama para

ir à missa. Ele argumenta não poder ir naquele momento “porque o pião está lonjão, lá no

Barbosa”. A menina se conforma com a desculpa esfarrapada e dá meia volta. Dezinho se

apressa a por o seu pião no alto novamente para dar veracidade à justificativa que mandou

para sua mãe. São quase 19:00 e o sol ainda está bem forte. Dezinho reclama que não tem

nenhum pião pra cruzar, mas logo acha “um pião maneiro”. Os meninos avistam umas

pipas avoadas. O Iago pergunta aos outros meninos como era mesmo “aquele grito”.

Dezinho põe a boca no cano e grita alguma coisa que não compreendo. Os meninos

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perguntam se eu anotei o grito. Confesso que não entendi e eles repetem pausadamente,

dizendo que era em angolano: “Uaititipaiada!” Pergunto o que significa, mas eles não

sabem por que é um angolano “inventado”. Dezinho fala para fazerem silêncio, pois acha

que a mãe dele está chamando. Era um assovio. Dezinho desce a rua e os 4 meninos

permanecem. Teria o Dezinho ido embora mesmo com o chamado da mãe? Os meninos

falam que o Dezinho está enrolando. “A linha ou a mãe dele?”, pergunto. “Os dois!”,

responde um dos meninos com um riso maroto. Iago fala que está com saudades da escola.

Soube que as aulas recomeçavam no dia 6 de fevereiro. 3 dos meninos estudavam no

Estadual, e dois estudavam na E.E.Iago Pimentel.

Os meninos se deslocaram até a rua atrás da minha casa. Pararam um pouco atrás da

construção abandonada. As pipas estão longe, muito altas. Diego que está sem pipa provoca

Iago. Eles atiram pedrinhas um no outro. Eles continuam andando e eu atrás deles. Dois

meninos vão pro alto da laje da construção e dois descem a rua. Manuel corta duas pipas e

apara 1 . Deste lado, dá pra avistar umas 15 pipas iluminadas. Manuel me chama e mostra o

resultado da pescaria. Como Diego estava sem pipa, ficou com a aparada. Manuel diz que o

SC é o melhor lugar para soltar pipas. Dá pra ver as pipas de todo o vale. Se as pipas vão

longe, dá pra pegar. Os outros meninos vêm se juntar à dupla. Manuel me mostra a

qualidade do cerol e me dá a linha para experimentar com o dedo. O seu dedo está

sangrando e cheio de outros cortes. Lembro do romance “O caçador de pipas” que

menciona o fato de os meninos exibirem, no primeiro dia de aula, os cortes provocados

pelo cerol afiado como cicatrizes de uma guerra travada durantes as aventuras de férias. No

Afeganistão ou no interior de Minas Gerais, os traços da brincadeira encontram seus pontos

de encontro. Não é incrível?

Os meninos conversam sobre as pipas distantes. Diego reclama que a linha de uma das

pipas quase corta sua orelha. Passa uma moto e os meninos tiram a linha do caminho.

Perguntam onde eu moro. Falo que é na rua de trás. Falam nomes de algumas pessoas para

saber se são meus vizinhos. Digo que não sei direito o nome de todos os vizinhos. O Diego

pergunta se eu moro sozinha. Digo que não, que moro com marido, filho, cachorro e essas

coisas que todo mundo tem ou vai ter. Diego comenta que tem mulher, que ela é da idade

dele e entrega os outros: “Todos têm!” A mãe de Iago aparece para chamá-lo. Reclama que

está longe. Ele se defende e pede o meu testemunho. Já vi esse filme antes.

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São 19:30, o sol se põe atrás da serra. Os meninos se despedem e começam a descer o

morro. Vão andando com suas pipas no alto. Dá pra vê-las daqui do alto onde estou. Subo

mais um pouco na direção oposta. Estou suada, mas a brisa que corre começa a refrescar.

Ao longe, toca um funk. Dá pra ouvir uma batucada, uma sirene disparada, grilos,

passarinhos e um cachorro latindo. Ainda há uma pipa solitária no morro do GM. Tem um

cheiro bom de mato no ar.

16.01.06

Fui até a rua de baixo, pois consegui ver que lá estava sendo empinada uma pipa amarela.

Desci e encontrei um grupo conhecido: Pino, JP, Zu, Lalá, Tião e mais 2 meninos que eu

ainda não sei o nome. Pedi licença para acompanhá-los e prometi não atrapalhar. Sentei na

sombra sobre o degrau de uma casa que o Pino disse que estava vazia. Zu passou chateado

como que abandonando o grupo e a brincadeira. Foi por causa de uma pipa que ele

esperava que o Pino desse a ele. Foi embora desaparecendo no mato que tinha no final da

rua. Pino, Tião, Lalá e W ficaram sentados no meio fio. JP passa com Tutem com a

incumbência do grupo de comprar chup-chup no casa adiante. Tião descobre que sua pipa

foi rasgada e quer saber quem foi. Lalá solta uma pipa lilás com um grande furo no papel

de seda. Está com uma bermuda rosa, deixando a calcinha laranja aparecer. Não usa nada

na parte de cima. Os 2 meninos chegam com os chup-chups e se juntam aos outros que

estão na sombra em frente ao portão da garagem da “casa que não tem ninguém”. Tião está

sentado no chão da rua brincando com o celular de Pino. Pino oferece o seu chup-chup a

todos: “Quer? Quer? Quer?”. Estão todos sentados se confraternizando. A brincadeira de

pipas oferece esses momentos intervalares de ócio, de convivência despreocupada para

fazer contraste com os momentos tensos da guerra.

Há uma pipa preta enroscada no poste. Está muito alta e os meninos não sabem como tirá-

la. Pino solta uma pipinha na tentativa de desagarrar o pião preso no poste.

Os meninos se levantam para iniciar a brincadeira. W leva o pipa para Pino puxar. JP está

com uma pipa preta e Tião continua reclamando da sua pipa furada. Pino consegue tirar a

pipa presa no poste com a ajuda da pipa que W estava segurando. Picou a rabiola,

separando-a da pipa que caiu. Pino está definitivamente no comando. Atira umas moedas

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para que W vá comprar mais chup-chups. Quer que ele traga 4, mas só dá dinheiro

suficiente para comprar 2. W fica chateado. Diz que ele vá, então. JP diz que pode ir no

lugar dele. W diz que só roubando mais dinheiro para trazer 4. Os meninos começam a

conversar sobre dinheiro. Um diz que um dos conhecidos pegou R$120 do pai. Tião diz que

se um filho dele tirasse esse tanto de dinheiro enquanto ele se mata de trabalhar, ele até

matava. Lalá se aproxima de mim e pergunta se eu tenho uma folha de papel. Digo que só

tenho folha de bloco. Ela aceita e diz que vai escrever uma carta para a mãe dela em casa.

Percebo que a aproximação de Lalá tem a ver com a aproximação de um carro de polícia

que passa por nós. Os policiais nos encaram com uma expressão sisuda, olhando feio para

nós. Lalá diz que tem medo deles. Os meninos dizem que ninguém ali fez nada e que não

há razão para ter medo deles. “Ainda bem que eles não pararam para ver se a nossa linha

tinha cerol!”

W chega com os chup-chups. Passam 3 homens a pé. Um deles é pedreiro e conhecido

nosso. Me cumprimenta e pergunta pelo meu marido. Os meninos estão se refrescando na

sombra. Tião ainda está inconformado com a pipa rasgada. Decide fazer outra e rasga o

papel que sobrou, deixando só a armação. Os meninos retomam o assunto dos policiais,

sobre o que fariam se eles parassem. Começam a lembrar das vezes que fizeram coisas

erradas. Talvez tenha sido um desses momentos de mostrar as cicatrizes, mas o fato de eu

estar ali ouvindo pode ter configurado uma certa mostra de seus handcaps.

Descem 3 homens. Um deles é pai do Gui e do Angu com que eu havia estado na

temporada de julho. Estão cortando caminho para ir para casa.

Tião diz que vai fazer um piãozinho só de uma cor. Pino diz que na quarta-feira vai para as

Águas Santas para nadar. Três meninos sobem o barranco em nossa direção. Um deles é

Finão, meu pequeno professor de pipas. Tomam a direção contrária e não me vêem. Não vi

pipa nenhuma com eles. Pino vai na mesma direção para cruzar com uma pipa do GM. Tião

e Lalá também os seguem. JP e Tutem permanecem onde estamos. Começamos a

conversar. Eles dizem que o pessoal do GM dá linha e vem catar as pipas do lado de cá.

Passam 2 homens de bicicleta reclamando que tem menino tirando mangas de seus quintais.

Lembro da narrativa de Sr. Benito contando que muitas vezes a pipa era pretexto para

colher as frutas nos quintais alheios. Era só deixar a pipa cair lá, fingir que está

desembolando a linha enquanto os outros enchiam os saquinhos com as frutas.

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O grupo de meninos vem voltando e entre eles o Finão que finalmente percebe a minha

presença: “Tá aí de novo?” Digo que sim e que tinha sentido a sua falta. Vem contando que

hoje cortou umas 4, soltando pipa lá de sua horta. Pino vem chegando com sua pipa preta e

propõe a JP brincar de cruzinho. Os 2 estão com pipas pretas. Pino pega na rabiola da pipa

de JP. Tião está deitado na relva à beira do meio fio apreciando a brincadeira. Pino grita: “É

brinquedo! É brinquedo!” e JP recupera a sua pipa. Pino convida outra vez: “Não quer

brincar, não? Vamo brincar de cruzinho? Põe no alto aí, ô pangaré!”, provoca. Lalá solta

agora uma pipa amarela que Pino corta. JP diz que vai beber água. A pipa amarela era pra

ser do Zu e JP quer levar pra ele. Pino quer que ele encha a garrafa de água e para forçá-lo a

fazê-lo, resolve ficar com a pipa preta de JP que ele havia cortado no cruzinho. JP se sente

enganado: “Mas era brinquedo!”, esboçando um choro. Era um abuso do maior sobre o

menor. Fico na dúvida sobre intervir ou não. Decido esperar um pouco pra ver se

encontravam uma solução por eles mesmos. JP concorda em pegar água para Pino para ter

sua pipa de volta. Pino estava usando o artifício de brincar de cruzinho para depois se

apossar das pipas. W ameaça de quebrar a pipa. Se não podia ser dele, também não seria de

Pino. Tião intercede por JP dizendo que ele vai pegar a água. Enquanto isso, W fica

bajulando Pino para que ele lhe dê a pipa de JP. Tião some. Lalá também. W vai colocar no

alto a pipa de JP, mas não consegue. JP se oferece para ajudar. A pipa sobe e Pino corta

outra vez. JP apara e aproveita para legitimar a sua posse. Pino quer a rabiola, mas afinal

deixa JP levar o que já era seu. JP pergunta se pode levar a pipa do Zu. Pino consente. W

reclama pois Pino já havia prometido a pipa pra ele. Pino o incentiva a correr atrás dos

meninos, mas W desiste vendo que os outros correm mais. Pino faz W de ajudante. A

rabiola embola e Pino manda W desembolar. “Só se você me der a pipa!” Afinal, W vai

esticando até a linha terminar. Pino solta a pipa e começa a enrolar a linha. “Vai embora,

Pino?” Pino responde que vai, mas acha uma pipa pra cruzar.

A brincadeira de pipa, como toda brincadeira, cumpre uma função adaptativa no aqui e

agora, mas não deixa de servir como palco de experimentação das relações que poderão ser

travadas num futuro próximo ou distante. Fico pensando na “Arte cavalheiresca do arqueiro

Zen”. Mas, na pipa, nem tudo é cavalheiresco. As relações de poder às vezes são perversas,

como em qualquer outro contexto.

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Subo a ribanceira para encurtar o caminho sinuoso traçado pelas ruas. No topo, encontro

um menino de boné observando o movimento. Era Samuel. Soube que era dele a pipa com

quem Pino havia ensaiado um cruzo e não uma pipa do GM como eles lá embaixo haviam

pensado. Viemos andando e conversando até a construção que seu pai está fazendo, vizinha

a minha casa. Ele reclamou muito de um menino alto e magro. Sua mãe estava na obra e

veio conversar comigo sobre o evento ocorrido na semana passada. O tal Fungo que estava

no grupo de Binho a tinha ameaçado. Ela ficou com medo, mas bancou a valente. Falou que

ficava apreensiva quanto a possibilidade de Samuel se meter em confusão. Comentei com

ela que às vezes os meninos tinham que fazer uma retirada estratégica para não se meterem

em confusão. Enquanto conversávamos, Samuel estava de olho em duas pipas que

ameaçavam um cruzo. Uma delas ia sobrar e ele poderia aparar. A mãe disse que ele até

estava vendendo pipas e que ele já tinha juntado R$7. Vendia as mais bonitas a R$1,50 e as

feiosas por R$0,50.

17.01.2006

Dia muito quente. Sol a pino. São 15:30. Vou ao encontro de 2 pipas que avistei na rua de

baixo, onde tenho encontrado com os meninos. O tempo, além de quente, está abafado. Há

pouco vento. Só de vez em quando sopra uma brisa fraca. Quando cheguei ao ponto da rua

em que estava o menino soltando pipas, não mais o encontrei. Tinha ido embora. Sentei no

degrau da entrada da mesma casa e resolvi esperar um pouco. Na minha caminhada para cá,

deu pra avistar apenas 2 pipas no vale, ambas saídas das suas bases sobre as lajes de suas

respectivas casas.

Pude avistar o menino que estava soltando a pipa na rua de baixo soltando a sua pipa na rua

de cima. Um outro menino apareceu no ponto em que eu estava. Parecia uma brincadeira de

pega-pega, esconde-esconde, eu sei lá o quê. Ouvi-o perguntar ao outro onde a pipa tinha

caído. Não deu pra ouvir a resposta, mas com certeza os meninos estavam se deslocando à

cata dessa tal pipa. Identifiquei os 2 meninos. Um deles era o Zu e o outro era o Finão.

Segui em frente para ver se encontrava o terceiro menino, mas ele não estava mais lá.

Desci a ribanceira e encontrei 6 meninos na empreitada de caçar uma pipa que havia

engatado na árvore. Além do Zu, JP, Tutem, e Finão, havia 2 meninos cujo nome eu não

sabia ainda. Estavam com varas de bambu tentando desengatar a pipa da árvore. Descobri

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que os 2 meninos menores eram o Gustavo, primo de Finão e o Bu, irmão de Zu. JP

pergunta se já estou com outro caderno. Digo que ainda é o mesmo e que dá para procurar o

desenho que a irmã dele fez para mim, na temporada passada. Acho que ele gostou de ver

que o desenho continuava lá, como uma prova de sua passagem pelo meu caderno. Surgiu

um sétimo menino, outro Marcos (8). Os meninos brincam correndo pra lá e pra cá com as

varas de bambu na mão. Estão só com uma pipa, na condição de caçadores. Tião aparece

no fim da rua, soltando uma pipa. Havia refeito a pipa quebrada de ontem. Cede um pouco

sua pipa para Zu manobrar. Lalá aparece logo em seguida com a mesma pipa com que

brincava ontem. Os meninos estão com suas varas comentando sobre as romãs que

pegaram. Vão embora alegando que está muito calor. Só restam Tião e Lalá. Os meninos

param, olham para trás e perguntam se eu tenho “dos grandes”. Outro corrige: “Ela não

tem. Ela não solta pipa!” Pergunto: “Um dos grandes o quê?” “De linha”, eles me

respondem. Falam que o carretel custa R$1,40 e se eu posso trazer pra eles amanhã.

Concordo em dar-lhes linha.

Um dos meninos fala que logo logo, o Pino e os outros estariam aqui. O Zu fala que eles já

tinham posto o pião deles no ar, lá em cima, na rua de trás. Vemos 2 meninos passando

com suas pipas. Decido ficar onde estou para definir o melhor ponto de observação ao invés

de repetir aquela brincadeira de gato e rato. Lalá passa por mim e eu lhe pergunto: “E aí,

escreveu aquela carta?” Ela diz que sim, que era pra mãe dela e que escreveu um monte de

coisas. O pião de Tão esbarra no terreno inclinado e Lalá vai em seu socorro. O pião sobe

outra vez e o fio enrola nos galhos de um arbusto. Tião consegue desembaraçá-lo. Agora, o

pião de Tião baila soberano nessas bandas de azul. O silêncio desta tarde quente só é

quebrado pelo piar dos passarinhos, pelo som de um telefone que toca distante e agora pelo

roncar de uma moto que vem subindo da esquina da rua. Opa! Aparecem duas pipas vindas

da rua de trás. Depois, quietude total. As pipas somem da minha vista. Só o pião de Tião

enfeita o ângulo da minha paisagem. Os gritos dos meninos, indício mais seguro de que há

pipas no ar, não são ouvidos neste momento. Tião é um menino calmo, fala devagar, um

pouco que suspirando. Tem sido dele a primeira pipa que aparece para inaugurar a

brincadeira até que outros venham lhe fazer companhia.

Lalá, que tinha ido em casa, volta depois de uma meia hora, com uma garrafinha de coca-

cola. Tião reclama do vento: “Vem, pára. Vem, pára! Que é isso?”. Passa uma moça se

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protegendo do sol com uma sombrinha armada. Me aproximo para conversar com Tião e

Lalá. Pergunto se ele gosta mais de soltar pipa sozinho ou com mais gente. Tanto ele me

como Lalá dizem gostar mais de soltar quando há mais gente porque podem cruzar, brincar.

Quis saber se havia chance de ter movimento mais tarde quando o sol baixasse e tivesse

brisa. Tião disse que sim, que tudo dependia do vento. De fato, por volta das 18:30,

consegui avistar algumas pipas no vale, mas quase todas vindas das lajes das casas.

18.01.2006

Hoje é quarta-feira. Avistei 2 pipas no ar por volta das 15:30. O sol tinha dado uma trégua e

começou a soprar uma brisa boa. Havia nuvens gordas e brancas no céu, deixando o clima

mais ameno, uma vez que a sua sombra nos livrava do sol direto. Desci até a rua de trás

onde encontrei Lalá e Tião. Logo adiante, estava o Zu e foram chegando Tutem, JP e outro

menino que se apresentou como JP. O Zu e o Tutem me cobraram os carretéis de linha que

eu lhes havia prometido. Descobri uns trocados no bolso e perguntei se dava pra comprar.

Eles saíram em comitiva para pegar a linha no armarinho próximo. Tião resolve desafiar o

Finão que está soltando pipa do terraço da casa dele. Mas é o Finão que pega a pipa do

Tião. Lalá ficou um pouco mais próxima enquanto Tião foi duelar com Finão. Ela reclama

que sua calça está caindo. Confirmo sua idade (6) e reparo que ela está sempre de pés

descalços. Ela vai subir as calças que caem e perde a linha que afinal está presa na lata de

leite que funcionava como carretel. Lá vai ela correndo com as calças caindo e a lata

fazendo barulho quando arrastada no chão da rua.

Tião ficou por lá por baixo, na ribanceira que dá na rua S. João. Lalá continua pra lá e pra

cá. Comenta que os meninos foram comprar linha e não voltaram. Um menino vem subindo

a ribanceira e vem me cumprimentando: “Ei, Fatima meus primos chegaram todos felizes

com a linha que você deu pra eles” Era o Dezinho. Diz que hoje não teve trabalho e ele veio

soltar pipas. Conversam sobre o sol que voltou castigando e esquentando as latas. Lalá diz

que prefere o cano, mas ela não tem. Dezinho diz que o pai é pedreiro e arrumou pra ele.

Ele também soltava pipas quando era criança e que mesmo hoje vem de vez em quando

com o irmão, tio de Dezinho. Dezinho põe a pipa no ar. Sua linha tem cerol e a de Lalá não

tem, está lisinha. Ela fala que o vento está mudando e some por alguns instantes. Dezinho

comenta que a tia brigou com os meninos por aceitarem a linha de uma desconhecida. O

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Dezinho disse que me conhecia e se ofereceu para me apresentar à tia dele. Fomos até lá e

eu tive a oportunidade de apresentar a pesquisa sobre as pipas. Fiquei de mandar os termos

de consentimento dando mais detalhes da pesquisa, inclusive com meu telefone para que

ela pudesse esclarecer qualquer dúvida que tivesse.

Voltamos para a rua de baixo (ou a primeira estrada como a chamam os meninos).

Encontramos o Xande, um rapaz que integrava o grupo de Binho, passando cerol na sua

linha. Sentei na sombra, em frente à garagem da tal casa. O Dezinho se sentou ao meu lado,

mas logo saiu correndo para colocar o seu pião no alto. O vento começava a soprar,

favorecendo as pipas a descerem o vale. Os meninos a quem eu tinha dado linha e que

estavam soltando pipas em cima da laje da casa de JP, quando passei com Dezinho,

apareceram na rua. Perguntam se eu tinha folhas de papel seda para cobrir suas pipas. Digo-

lhes que vou providenciar e fiquei de trazê-las no outro dia. O Xande falava ao celular ao

mesmo tempo em que segurava a linha da pipa com a outra mão. Bu trouxe o seu

velocípede em forma de motinho e se sentou ao meu lado para conversar. Antes, havia me

procurado e não tinha me visto porque havia um arbusto entre nós. Mais tarde chega o

Fungo e adiante, o PH com um corte de cabelo do Teves. JP e Tutem ficaram antes de mim;

Fungo, Xande e PH adiante de mim. Dezinho e Zu subiram a ribanceira. Fungo e Zu

entraram num cruzo e ficou a controvérsia de quem tinha cortado quem. Um rapaz do grupo

de Binho vinha descendo a ribanceira. Xande pergunta se ele não vai soltar. Ele disse que

estava trabalhando com o pai e agora é que ele ia em casa pegar o pião dele. São 17:30.

Dezinho chega perto incomodado com os cortes no dedo, sangrando e tingindo a sua linha

de vermelho. Lalá volta com a sua pipa. Passa um avião bem alto, coisa raríssima de ver

nessas bandas. Lá adiante, há uma pipa vermelha que eu suponho ser de Samuel. Aqui na

rua, há 4 pipas no ar, mas em terra são 9 empinadores. Alguns estão em preparação para o

lançamento. O grupo, hoje, está bem heterogêneo com relação às idades. Há 3 rapazes, há o

Dezinho, adolescente, e os 4 meninos com idades entre 7 e 10 anos. Descem a ribanceira 3

homens para cortar caminho. Um deles é o pai do Gui e do Angu. Pergunto pelos meninos e

ele me diz que vão vir no domingo.

O tão temido Fungo demonstra cuidado com Lalá porque sabe que sua linha está bem

afiada. Os meninos estão bem espalhados agora. Vão, voltam, enrolam a linha, baixam o

pião, sobem com ele de novo, andam pra cá e pra lá.

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São 17:45. Começa a melhor hora pra soltar pipas por causa da brisa do final da tarde.

Dezinho se despede chateado porque seu chinelo novinho arrebentou e ele acha que a mãe

dele cai ficar zangada. Leva com ele o Bu. Agora só ficou Zu e os 2 rapazes. Zu fica

ajudando Fungo a enrolar a linha e a fazer uma nova rabiola. As pipas dos rapazes estão

bem altas. Dá pra contar umas 6 na direção das pipas deles. Zu carrega com ele as 2 pipas

que estavam no chão e vai na direção de sua casa. Perco os rapazes de vista. Decido voltar

pra casa.

19.01.06

São 15:00. Vou até a rua de baixo, mas não encontro ninguém. Estou com as folhas de

papel seda conforme havia prometido aos meninos. Mas só há muito sol, vacas na sombra

do muro da casa e uma brisa meio que soprando de vez em quando. Minha sensação é de

que tem mais vento do que nos outros dias. Não entendo por que os meninos não

apareceram. Fico na dúvida se aguardo ou se vou até a casa deles. Decido esperar um

pouco. São 16:15. Há 2 pipas sendo empinadas de duas lajes em pontos diferentes, mais

abaixo. Decido andar um pouco. Fui até a rua onde moram os meninos, mas as casas

estavam fechadas. Busquei contato com um grupo de pessoas que estavam sentadas na

outra calçada, na sombra de um muro. Uma das mulheres era minha conhecida e me

cumprimentou pelo nome. Trabalhava num atelier de costura vizinha a casa onde eu havia

morado na rua Santo Antônio. Chama-se Vicentina e, por coincidência, era tia de Binho. O

grupo me informou que era bem capaz de os meninos terem ido nadar, pois estava muito

quente. Pedi-lhes que avisassem os meninos que eu havia estado à procura deles.

20.01.2006

Encontrei um grupo soltando pipas bem na rua da minha casa: Dezinho, Moreus, Lalá e

Tião. Eles me cercaram e disseram ter recebido o meu recado. Escolheram a cor das folhas

de papel seda que queriam e fomos todos descendo a rua, pois eu tinha o compromisso de

dar o restante das folhas aos outros meninos que não estavam ali. Dezinho propõe levar-me

até sua casa para falar com a mãe dele. Da outra vez que estivemos lá perto, a mãe havia

saído e eu só consegui falar com a mãe de Zu e Bu. Neste dia, visitei várias mães em suas

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casas, levada pelos meninos. Foi também o dia em que eles descobriram exatamente onde

eu morava e passaram a ter minha casa como referência. Para checar se era mesmo verdade

que eu morava na casa branca que eles podiam avistar lá da rua de baixo, um grupo veio

tocar a campainha e pedir água. Nossas trocas estavam ficando cada vez mais simétricas.

21.01.2006

Encontrei um grupo um pouco acima da minha casa: Binho, Zu, e mais 3 meninos. Estavam

relaxados, uns sentados, outros deitados no meio da rua, em conferência. Conversamos a

conversar. Aproveitei para fazer a Binho a proposta de entrevistá-lo numa hora em que as

coisas estivessem calmas. Ele concordou. Havia perdido a sua pipa, o movimento estava

fraco e ele era um dos que estavam deitados “com preguiça até de ir para casa”. Depois de

um tempo jogando conversa fora, descemos todos o morro em direção à rua de trás onde

havia mais 5: Fungo, Bri e mais 3. Reclamavam do pouco movimento e da direção do vento

que soprava em direção ao GM. Binho comenta que só está pondo pipa no alto, depois da

Malhação. O vento é melhor e não tem tanto sol. Diz que ontem estava soltando pipa lá

pelas 10 da noite. Os meninos percebem que o vento está mudando. Uma das pipas voa.

Binho resolve ir embora e chama Bri.

Hoje a rua está cheia de rapazes. Dos 10, 6 são dos maiores. Passam cerol, põem suas pipas

no alto, sentam na sombra para conversar, enrolam suas linhas. O vento pára. O vento

sopra. Um deles comenta que, nesse horário, o vento ainda é doido. Bri, que tinha sido

chamado por Binho para ir embora, passa com um outro menino e se despede. Um dos

rapazes que permaneceram ali passa cerol na linha de sua pipa que está presa no poste. Dos

10, só consigo ver agora 4 rapazes que agora estão com suas pipas no alto. Zu foi em casa

dizendo que ia buscar os termos de consentimento com a sua mãe. No vale, há 3 pipas

voando mais próximas. Chega mais um rapaz com a sua pipa e mais atrás vem o Zu com

uma pipa, mas não traz os papéis. Fungo, que estava distante, agora se junta ao grupo.

Estão todos juntos na sombra do muro com suas linhas tensas. Um deles atravessa a rua

para fazer xixi. Fico anotando e paro de observar um pouco para deixá-los mais a vontade.

Talvez a intenção fosse me chocar como acontece na maior parte das vezes em que observo

rapazes. Penso que talvez seja interessante que minha presença não os intimide e que façam

o que costumam fazer normalmente quando não estão sendo observados. Há 4 pipas no ar e

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o quinto rapaz começa a soltar a sua. O Zu é o único que está com a sua pipa em terra.

Estou a uns 20 metros do grupo e só posso ouvi-los quando falam mais alto. Um deles

comenta sobre um rapazinho que fica soltando pipa na rua dele e nem janta. Anoitece e até

10 da noite ele fica soltando pipas. “Mas daqui a pouco vêm as aulinhas”, brinca.

Vêm 2 rapazes cantando desde o início da rua. Os meninos param de conversar e se voltam

em sua direção. A conversa vira para as 5 pipas que estão mais abaixo no vale,

provavelmente empinadas do alto das lajes.

Anita, uma menina que estudou na escola da minha filha, desponta no horizonte com sua

touquinha de crochê preto. Conversamos brevemente e ela me conta que vai encontrar com

os pais, na sauna do Minas. O Fungo passa por nós e vai se posicionar atrás de mim. Um

dos meninos comenta da flechinha que está no vale num movimento incerto. Fungo, sem

intenção, corta um dos rapazes “cheio de linha”, pois não consegue ver direito as pipas

contra o sol.

Lalá aparece na esquina, pois a sua pipa foi cortada e ela corre para recolher a linha que

ficou. Mas não se aproxima de mim. Tenho a impressão de que os termos de consentimento

podem ter provocado essa tendência ao afastamento.

Agora as pipas estão longe e altas. São pontinhos escuros no céu. Estão chegando 2

meninos pequenos. Parecem Bu e Tutem. Lalá vem reclamar com Fungo que foi ele quem

cortou a pipa dela e ele se defende dizendo que foi a linha de outra pipa. Um dos rapazes

passa por mim correndo e grita “Anota aí! Anota aí!”. Está esticando a linha do carretel

para passar cerol.

Uma flechinha azul voa. Três meninos menores correm para apanhá-la. Os rapazes não se

abalam. A rabiola da pipa do Zu se enrola com a rabiola de um dos rapazes. Bu trás a

notícia de que foi a Lalá quem pegou a pipa avoada e que lá tinha muita gente. Passa um

rapaz a quem eles chamam de baiano e a quem os rapazes perguntam sobre a sua mistura de

cerol. O rapaz diz que não tem mais. Tutem está com uma marimba. Fungo entra num

cruzo com a pipa que cortou Zu e a corta. Os outros rapazes brincam dizendo que ele só

corta giriquinho.

Zu tenta colocar no ar uma outra pipa com a rabiola cheia de sacos como contrapeso. Os

rapazes brincam e zombam do pião dele. Ele faz cruzinho com uma outra pipa de um dos

rapazes e corta a pipa. Quem apara é Bu, mas devolve a pipa ao rapaz já que hoje estão

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apadrinhados por este grupo. Risada geral. Os rapazes põem seus piões à prova na linha da

pipa de Zu. Ele corta vários, 2, 3 vezes. Tutem apara uma pipa que depois volta ao ar e

pega a rabiola da pipa de Zu. Um dos rapazes chuta uma garrafa pet vazia, por várias vezes.

Tutem está com uma marimba.

Um dos rapazes pega a sua pipa e vai embora. Fungo pergunta as horas e fala de alguma

coisa que vai acontecer às 18:30. Passam duas moças. Uma delas diz: “Você viu, Fungo?

Eu voei! Com mais de metade da linha! Fungo não responde nada. A menina passa, mas

não vai longe e volta pelo mesmo caminho.

18: 25. Restam 3 rapazes, Tutem, Zu e Lalá atrás. Os meninos fazem menção de ir embora.

Fungo sobe para a rua de cima. Aqui embaixo, a brincadeira está entre um dos rapazes e a

tal pipa cortadeira de Zu. Um dos meninos comenta que Fungo foi cruzar com as pipas lá

do GM.

Os 2 rapazes que tinham passado cantando, voltam, bebendo uma lata de coca-cola e dando

uns arrotos retumbantes, provavelmente para chamar a atenção sobre si.

Um dos rapazes põe sua pipa no ar e fica em posição de um cruzo com Fungo que está na

rua acima de nós, mas acabam se afastando. Adiante, tem mais 3 pipas. Uma delas foi

cortada pelo rapaz que comenta sobre o seu cerol, dizendo que outra pipa estava entrando

por cima.

Vem chegando outro rapazinho que vai na direção de Fungo. Eles se conhecem.

Agora os 2 meninos estão ao lado dos dois rapazes. Um dos rapazes vai embora, levando

apenas a linha enrolada na lata. Sua pipa tinha voado.

Tutem e Zu passam, param um pouquinho para conversar comigo. Pergunto do termo de

consentimento. Zu fala que a mãe disse para não trazer hoje. Zu sai correndo para ver uma

pipa do GM. Achei que foi uma saída estratégica para não falar mais dos papéis. Os

meninos se dispersam. Um dos rapazes apara uma pipa. Zu pede que dê a ele.

O movimento vai minguando. Já não sei onde estão os meninos. Estou só e na rua só se

ouve o canto dos pássaros. Atrás de mim sobem 2 rapazes e uma moça. Um dos rapazes é

Luizinho, primo de Alice. Tião passa com Lalá saindo da rua que faz esquina com a que

estou. Lalá acena para mim. São 19:00. Vou pra casa.

22.01.06

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17:45. É por esta hora que os meninos começam a soltar as suas pipas, devido ao sol e ao

calor da tarde. Havia observado antes e não deu pra ver nenhum movimento, mas neste

horário em que o sol estava mais ameno e o vento soprava mais farto, as pipas apareceram.

Em frente à casa do médico, estavam Dezinho, Tutem e mais 4 meninos. Havia também

uma família que me reconheceu da outra temporada. Eram duas mães, um pai, um casal de

filhos e mais a menina da outra mãe. Um rapaz e mais 5 meninos ficaram na esquina da rua.

A família ficou sentada na calçada conversando comigo. O pai me contava de uma represa

que havia do outro lado do asfalto e eu lhe contava do provável loteamento das colinas do

GM ainda para este ano. Lamentávamos pela perda de ambos os espaços de natureza.

Lá pelos lados do GM, tinha umas 4 pipas. Entre os meninos que estavam conosco, mais 4

e no vale, mais umas 5. O menino menor, filho do casal, soltava um caixãozinho. Dezinho,

um rapaz e os 3 meninos começaram a descer o morro em direção à rua de baixo. Há um

menino sem pipa que só observa como eu. Pergunto se estou incomodando e ele diz que

não. Uma pipa se enrosca com a outra, mas a disputa não é para valer. Os meninos dão

conta das pipas que caem, das rabiolas que são picadas. Dezinho torna a passar com o rapaz

que mora na casa azul, o Donald, e diz: “Você cruza pro lado de cá e eu cruzo pro lado de

lá”.

As meninas se entusiasmam para soltar pipas sob a supervisão das mães. O menino menor

solicita ajuda do pai para colocar uma pipa no alto. O pai coloca no alto a pipa que estava

com uma das meninas. As 2 meninas com suas respectivas mães se afastam para passear

um pouco pelos arredores. O menino fica com a pipa que o pai colocou no alto com linha

de nylon também chamada de tripa de mico, comumente usada para pescar. Chegam mais 2

rapazes e uma moça. Sentei no meio fio próximo ao pai e começamos a conversar. Ele me

contou ser militar, falou sobre a sua ida a Angola numa força de paz da ONU, dizendo que

lá, os meninos também soltavam pipas, tal como fazem os nossos aqui.

As duas mães voltaram do passeio falando de plantas. Sentamos próximas e trocamos

algumas informações sobre jardinagem. Um dos meninos comenta que o cerol de uma pipa

é um “cerol de angu”. Pergunto-lhe o que quer dizer a expressão e ele me informa que é um

cerol ruim, uma “água de batata”. Dezinho re-aparece dizendo que viu cair uma pipa lá na

minha casa e que o meu marido devolveu para ele. Pergunto o nome do menino que falou

sobre o cerol de angu. Era o Chester, irmão do Dondon, ambos conhecidos de nome desde a

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ultima temporada. Lalá veio subindo a rua, me pedindo linha. Disse que a pipa ela tinha. A

família do militar com a amiga e o casal de filhos se despede e vai passear no campinho,

agora que o sol baixou e não está tão quente. Restamos eu, o Dezinho e o Donald (16) que

mora na casa em frente de onde estamos. Começamos a conversar, afinal éramos vizinhos e

nem nos conhecíamos. Donald estava interessado no trabalho que eu estava fazendo e faz

perguntas: quando terminaria, qual seria o desfecho, por quanto tempo ainda estaria

pesquisando. Fomos interrompidos com a chegada de um carro da polícia com 2 policiais

que pararam, nos observaram, mediram o que fariam a seguir, principalmente se iriam em

frente ou dariam marcha-ré, já que o calçamento da rua terminava justo ali. Cumprimentei-

os, dizendo “Boa tarde!”, como sempre faço. Eles retribuíram e, com a maior cara de má

vontade, perguntaram se eu morava ali. Disse-lhes que morava mais adiante e eles me

advertiram para tomar cuidado, pois estava havendo muito assalto por aquelas bandas.

Agradeci a advertência, mas tive a impressão de que eles só queriam me atemorizar. Depois

que os policiais foram embora, os meninos começaram a conversar sobre assaltos. O

Dezinho disse que ia baixar a pipa e me levar até em casa. Brinquei com ele, chamando-o

de “meu fiel escudeiro”, mas disse-lhe que não seria necessário, que eu era adulta e sabia

me cuidar, ao contrário dele que era menor e que devia ir direto para casa, pois era isso que

a mãe esperava que ele fizesse. Ele disse que não tinha nada para ser roubado, ao contrário

de nós, eu e Donald, que morávamos “naquelas casas”. Ele falou que sabia quem tinha

roubado as ferramentas durante a construção da casa de Donald e que essa pessoa já tinha

morrido assassinada “por causa de maconha”. Estava ficando escuro, me despedi dos 2

meninos e voltei pra casa.

23.01.06

Desde as 14:00, observo a área com binóculo e não vejo muito movimento de pipas. Só

Donald aparece na sombra do muro de sua casa. Às 17:00, resolvo ir até lá e sou informada

de que, mais cedo, havia pelo menos umas 8 pipas naquela região. Só que o vento estava

para baixo e não dava para vê-las. Santa ingenuidade a minha! Deveria ter verificado a

direção do vento e ter conferido a presença delas. Donald estava com sua pipa no alto,

sentado no meio-fio acompanhado de seus dois irmãos pequenos. Brinquei com eles e desci

um pouco a rua para ver se tinha movimento na rua de baixo. Enquanto observava, alguém

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que vinha subindo assobiou para mim. Era o Dezinho e o Zu caminhando com suas pipas

na mão. O Dezinho falou que tinha acabado de chegar do trabalho e tinha vindo logo soltar

seu pião. Era todo vermelho com recortes coloridos. Logo após chega o Gus com uma

camisa enrolada na cabeça. Perguntou se eu me lembrava dele. Já havíamos nos visto no

ano passado. No vale são umas 12 pipas. JP chega com o termo de consentimento

autorizado pela mãe. Bu confessa que a mãe tem medo que eu os coloque dentro de um

carro e os leve para longe. Falo que ela tem suas razões para sentir medo e que respeitarei a

decisão dela. Desço com os meninos até a rua de baixo e lá encontro o Finão que me

cumprimenta. Diz que ontem foi aniversário do Pepê da Alice. Ela queria me convidar, mas

não me encontrou. Distribui alguns termos de consentimento para os meninos que já

conhecia. Gus foi embora, deixando a linha e o carretel que foi disputado entre Zu e Finão.

A pipa de JP se enrosca em alguma coisa da rua de cima, mas ele diz que não pode sair

daquele ponto, pois combinou com a mãe de ficar por ali. Afinal ele me deixa com o seu

carretel e vai resgatar a pipa. Depois me pede para olhar a linha e a pipa enquanto vai beber

água.

Desde que os meninos souberam onde eu morava, eles cismaram que eu era rica. Não sei o

quanto essa informação pode interferir na pesquisa, mas achei importante não mais omiti-

la, pois eles saberiam cedo ou tarde. Considerei uma troca o fato de eles me mostrarem

onde moravam e eu, em reciprocidade, dar-lhes o mesmo tratamento. Afinal, sempre me

perguntavam e eu nunca havia sido precisa quanto à localização da minha casa no bairro.

Passa Moreus e um outro rapaz com uma peça de bicicleta. JP fica do meu lado

conversando enquanto Zu me pede para segurar a pipa que ele acaba de pegar para que

possa desembolar a rabiola. JP lhe adverte: “Não vai demorar muito que ela precisa

trabalhar”.

Tião está por perto observando, na espreita de que alguma pipa caia. Vai até a esquina da

rua onde mora. Aparece um grupo de adultos olhando os lotes daquela rua, possivelmente

para comprá-los. Fazem medidas e conversam sobre o aproveitamento do terreno. São 2

homens, uma moça e um menino. Eles conversam sem parar.

JP diz que o pai lhe deu dinheiro para comprar linha. Quando ele me pediu linha, era

porque o pai dele ainda não tinha recebido dinheiro.

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Finão sobe o caminho que liga a sua casa até a rua onde estamos pelo barranco, me

trazendo a autorização assinada. Aparece outro menino para fazer companhia a JP e ao Zu.

A pipa do Dezinho está mais acima onde eu havia encontrado o Donald. Um rapaz aparece

e eu lembro de já tê-lo visto por aqui. É o Teo, tem 17 anos e é vizinho e conhecido de

Tião. Está com uma pipa vermelha. Fico entre duas duplas: a formada pelo Tião e o Teo e

outra composta por JP e Zu. Os dois últimos desaparecem e eu vou atrás deles. Quando os

encontro, JP me conta da vez em que umas pombas se enroscaram na linha dele. Quando

elas conseguiram se soltar ele pensou que a linha tinha estancado. Ele me dá sua linha para

eu segurar e Zu também oferece. Estão sendo generosos com a pesquisadora,

provavelmente me dando a oportunidade de sentir a mesma sensação que eles sentem ao

puxar a linha tensa pelo vento. Começam a conversar sobre os apelidos que costumam por

nos meninos.

A pipa de JP começa a rodar. Ele avalia e diz que o cabresto arrebentou. Os meninos me

pedem ajuda para recolher a flechinha do JP. Levamos um bom tempo tentando desembolar

a linha dos arbustos. JP volta dizendo que o Dezinho queria ficar com a flechinha dele. Mas

ele argumentou que a pipa estava ainda presa à linha e assim ele não tinha o direito. Para

Dezinho ficar com ela, seria preciso que ela estivesse avoada, solta no vento.

Eram 19:30. Falei pros meninos que estava na hora de eles irem embora. Aparece uma

moça que morava na casa em frente. Trabalhava na prefeitura e conhecia aqueles meninos

desde pequenos. Começamos a conversar e assim travei contato com mais uma vizinha.

24.01.06

Eram 17:15. Encontrei Donald na esquina da rua da casa dele. Me fala que chegou havia

pouco tempo e que não tinha visto nenhuma pipa antes. Estava marcando outra pipa que

cortou logo a seguir. Era a do Zu e foi parar lá para baixo do morro. As manobras eram

precisas: vinha por cima, dava uma volta por baixo da linha da pipa adversária e subia outra

vez. Repetiu a mesma façanha com outra pipa que depois soubemos ser do Dezinho. Depois

do evento, este sobe o morro pedindo o cerol do Donald. Este responde que está faltando o

pozinho e que está fazendo cerol com clara de ovo. Logo a seguir, passam Finão e Zu

correndo atrás da primeira pipa cortada por Donald. Dezinho fala que cortou 3 pipas ontem.

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Conheci finalmente o Dondon, irmão de Chester. Ambos eram lourinhos e tinham pinta de

surfista. Se morassem a beira do mar, tranquilamente poderiam ser confundidos com

praticantes do surf. Os irmãos eram conhecidos pela sua habilidade em soltar pipas e eu já

ouvira falar deles.

Desci para a rua de baixo para encontrar com os outros meninos. Só estava lá o Tutem. Os

outros, Finão e Zu, estavam caçando pipas em algum lugar. Procurei Lalá para dar-lhe a

linha que lhe havia prometido, mas não a encontrei. Logo vão chegando os caçadores de

mãos vazias. Finão disse que foi lá em casa me procurar e não me achou. Aproveitou para

pedir água pro meu marido e depois veio me encontrar. Finão e W descem para casa. Só

ficam na rua Tutem e Gus. Atrás de mim, está um rapaz de short vermelho soltando uma

pipa vermelha. Era um dos que compunham o grupo quando um deles resolveu fazer xixi

na rua. Comento com ele o quanto fica bonito o contraste do vermelho da pipa com o azul

do céu.

Dezinho sumiu. Deve estar fazendo cerol na calçada de Donald. A pipa deste último

continua no alto. Várias pessoas passam carregando sacolas a caminho de casa. Passa o

carro da auto-escola que usa as ruas do bairro com pouco trânsito para fazer o aprendizado

dos novos condutores.

Vem chegando Dezinho com um pião na mão. Aliás, eram dois: um grande e um pequeno.

Zu chega logo a seguir dizendo que foi lá em casa. Parece que eles estão precisando checar

a informação de que eu realmente moro ali. Tocam a campainha, mesmo na minha

ausência, para ver como são recebidos. Estão fazendo o reconhecimento de terreno. Eles se

sentam ao meu redor e começam a conversar. Dezinho diz que Diero, o rapaz de vermelho,

vai cortar uma pipa “cheia de linha” para eles dividirem. Estão empenhados em cada

elemento. Hoje, só se falou em linha e cerol, enquanto no outro dia era a folha para cobrir a

pipa. Tutem bate na porta da casa em frente à qual estamos para pedir água. Nem sempre há

gente nesta casa. Os meninos contam uma história de que a casa foi assaltada e levaram

tudo o que havia lá dentro. Por isso, a pessoa que morava lá decidiu ir embora.

Diero e Donald entram num cruzo e o primeiro corta a pipa do segundo que cai lá pelo GM.

A pipa vermelha de Diero reina soberana. Há 3 pipas no chão esperando um fio cortante

para se arriscarem a subir.

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Donald põe outra pipa no ar e Diero volta a cortá-la. Dezinho também coloca uma pipa no

ar, a menor das duas que trazia com ele.

Os meninos voltam a me pedir linha e até me indicam onde comprar: Bar do Deci, Bar do

Lacerda, no SM Esquinão, Lojinha do Bosco, Armarinho S. José. Dizem que deve ser da

marca Corrente, pois as outras são fracas, estancam a toa e não pegam cerol. Dezinho diz

que os meninos estão escolhendo demais: “A ‘muié’ já vai trazer linha e vocês ainda estão

escolhendo?? (“Muié”, “dona”, “dona do caderno”, “ela” são algumas das formas como se

referem a mim). Todos começam a rir.

Aparece outra pipa que imagino ser também do Donald e que corta a pipa do Diero, desta

vez. Diero recupera a sua pipa vermelha e volta na companhia de Zu. Dezinho pergunta do

cerol que estavam fazendo juntos, lá com o Donald. Zu diz que Donald não deu cerol por

que tinham roubado o cerol dele. Dezinho reclama dizendo que Donald é muito “prego”.

Dezinho se senta ao meu lado e me pede que eu lhe dê aulas de etiqueta. Diz que quer saber

se portar para entrar num restaurante: “As pessoas ficam olhando pra gente porque nós

somos negros”. Mas não pára muito para receber qualquer resposta, pois parece estar

sempre em trânsito com a atenção flutuante. Pede a Diero as bombinhas que estão dentro da

lata que Diero usa para enrolar a linha. Diero quer vendê-las por R$5,00 o que ele diz valer

R$8,00. Dezinho pede desculpas por não estar me dando mais atenção. Estamos em pleno

“zapping”.

Há 6 pipas a nossa frente. Fico curiosa e pergunto para que servem as bombinhas. E Diero

me diz que é para estourar quando corta muita pipa.

Hoje, há mais um menino com a irmã que está sentada no meio fio com um rapaz. Há mais

4 pipas a esquerda de meninos que as soltam nas lajes de suas casas. Uma delas voa e os

meninos tentam apará-la com as linhas de suas pipas que estão no alto. Os meninos não

conseguem evitar que a pipa caia. Aparecem uns 6 meninos lá no alto da outra rua para

disputá-la. Muitos gritos: “Entrega aí!”, “ Ninguém vai devolver, não!”, “Caiu, já era!”

Lá em cima, o Donald, o Chester e o Dondon. Aqui em baixo, o Diero, o Tutem, o Zu e o

Dezinho.

O Dezinho quer pegar pipa avoada e me pede para segurar a linha dele. Digo que tenho

medo que outros entrem na pipa dele. Ele começa a me ensinar o que fazer nesses casos.

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Pega a minha mão com a linha e vai fazendo os movimentos para que eu verifique como a

pipa reage.

São 19:30, o sol já começou a se esconder atrás da serra, mas ainda há claridade. Dezinho

sai correndo e me deixa segurando a linha. Aviso Tutem para que não se aproxime, pois

não sei defender a pipa do Dezinho. Este volta de mãos vazias. Outras pessoas (2 moças, a

avó de Lalá, 1 homem e 1 menino) se juntam ao grupo, sentam-se no meio fio e começam a

conversar. Uma pipa voa. Dezinho deixa a pipa dele comigo e corre para tentar apanhá-la.

Volta correndo morro abaixo perseguido por Dondon que está furioso e jogando pedras no

primeiro. Três meninos lá em cima e mais Dezinho com os meninos cá embaixo ficam se

provocando verbalmente até que Dondon desce para correr atrás do Dezinho que voa pra

longe, deixando o seu pião que Zu se apressa a pegar para protegê-lo. Investe contra Zu que

se refugia atrás de mim. Pergunto ao Dondon se eles não podem resolver o problema de

outra forma. O homem que estava ao nosso lado interfere e diz a Dondon que vá pegar pipa

de alguém do tamanho dele. Fico aliviada por não ter que interferir diretamente. Os

meninos de cima começam a falar palavrão e a fazer todo tipo de gesto obsceno.

A paz volta a reinar e vai escurecendo. Ficam só 2 pipas. Os meninos de cima somem.

Chega o primo de Diero que tem 2 anos e fica brincando com a linha dele. A família que

estava sentada no meio-fio sai para fazer uma caminhada. Me cumprimentam ao passarem

por mim e aproveito para comentar com eles que foi um alívio estarem por perto na hora do

conflito e terem se valido da desigualdade de tamanhos como um argumento para apartar a

briga. Dezinho volta. Ouço vozes lá em cima. Os meninos não tinham ido embora. O resto

de tarde transcorre sem maiores alvoroços. Volto pra casa.

25.01.06

Encontrei com Donald e os irmãos Cherter e Dondon. Comentaram sobre o carretel que

estava comigo e eu lhes digo que tinha prometido dá-lo ao Dezinho. Queriam linha

também. Prometi trazer-lhes num outro dia como uma forma de fazer trocas com eles.

Os meninos se envolveram numa manobra, cortando e aparando, ao mesmo tempo, 2 pipas

dos meninos da rua de baixo. Contaram que no dia anterior teriam sido provocados pelo

Dezinho e que, por esta razão, tinham ido lá atrás dele.

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Desci para encontrar os outros e ver a repercussão do evento. Encontrei Dezinho a quem

dei o carretel prometido, Tutem, JP, Zu, Bu, Diero. Tutem estava com um pedaço bem

grande de cano que dava pra fazer 3 carretéis. Diero enrolava a linha Corrente do carretel

de W em uma lata de Nescau. Mais uma vez, a lata com tampa servia para enrolar a linha e

guardar bombinhas.

Acima da minha casa, estão duas pipas: uma de Dondon e outra, provavelmente do Samuel

a quem eu cumprimentei quando vinha subindo a rua de casa, ao chegar da rua.

Cai uma pipa. Os meninos correm atrás. A linha de JP estanca. Levanto para acompanhar

os meninos e meu pé enrosca na linha que estava espalhada nos matinhos que cobrem os

bloquetes da rua. Os meninos estão na função de aparar e recolher as pipas avoadas. Zu está

gritando na rua de cima. Diz ao Diero que o Dondon mandou que fosse lá. Diero pergunta

se ele vai entregar. “Sobe aí, viado!”, fala um dos meninos de cima. Diero diz que não vai

ficar correndo atrás da pipa. A negociação não acontece.

JP devolve a pipa de Tutem como era de se esperar. Os meninos enrolam e enrolam os

carretéis de linha. A linha de Tutem estanca de novo. Os outros examinam as linhas. Surge

a dúvida sobre a posse dos pedaços de linha com cerol que foram achados sobre o chão da

rua. Os meninos se xingam de FDP e viado. Um ameaça o outro: “Você vai me dar outra

linha. Quem mandou embolar?”. Zu se enrola com W. Zu pega a pipa de W e ela rasga

acidentalmente. Bu se oferece para desembolar a linha para acalmar o conflito. Ele é menor

que aqueles que brigam, mas faz as vezes de apaziguador. Os meninos que brigam

começam a chorar: um quer a linha desembolada e o outro quer a linha consertada. Diero

interfere como o maior do grupo: “Os dois podem parar de chorar!”, fala na maior moral.

Os meninos se acalmam e começam a conversar. Bu quer mandar os dois para a “Fábrica

de Respondão”. Os outros 4 meninos, Diero, Dezinho, JP e Tutem estão agrupados com

suas pipas no ar.

Tem umas 6 pipas no meu ângulo de visão. Chego perto do grupo que conversa sobre cerol.

Ana, a vizinha que conheci, passa de bicicleta. Está a caminho da casa do irmão que está

morrendo de câncer. Ana fala comigo e continua seu caminho.

Agora já são 12 pipas no ar. Mas cada vez que olhamos para o céu e fazemos a contagem,

surge mais uma. Há 3 rapazes lá em cima, atrás da minha casa. Parecem Chester, Dondon e

Donald. Já são 19:15, mas continua fazendo calor. Dezinho grita sem parar: “Goiaba!”, “

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Aí, ô!”. Só ele, Diero e Tutem estão com suas pipas no alto. Os outros 4 meninos estão

sentados ao redor, na relva que se criou próxima ao meio fio.

Os 3 meninos que vi lá em cima, Donald, Dondon e Chester nos observam lá de cima.

Sabe-se, pela conversa dos meninos, que uma pipa preta, empinada lá de baixo, é do Fungo.

As rabiolas de Tutem e Dezinho se enroscam, mas com jeito elas se soltam. W desce e os

outros ficam cobrando dele várias coisas: linha, pião... Ele diz que é só dar dinheiro a ele.

Passamos por um período de calmaria. As pipas estão quietas, cada uma no seu canto. Só se

ouve a voz de Dezinho: “Aí, ô!”, “Aí, ô!” De repente, ele se vira pra mim e fala: “Ô,

Fátima! Enturma aí, Ô!Que qui cê tá fazendo aí sozinha?” Acho graça, falo pros meninos

que estou observando e anotando, mas chego mais pra perto deles. Dezinho me pergunta se

ainda está de pé aquela aula de etiqueta. Digo que não sei exatamente o que ele quer saber.

“E se eu for num restaurante que tem aquelas coisas difíceis de falar e de comer? Escargot,

por exemplo”, fala Dezinho. Sou obrigada a confessar-lhe que eu nunca comi escargot,

assim como a maioria das pessoas. Mas Dezinho continua fazendo planos para o futuro.

De repente, os meninos se desentendem. JP pega uma pipa no chão e Dezinho fica furioso,

dizendo que o outro tem que virar homem e largar a pipa dos outros. Parecia uma fala já

ouvida de alguém. JP fica quieto. Dezinho abraça Zu e diz que ele é de quem ele mais

gosta. Depois é o Bu. Afinal, são primos. Daí a um pouquinho eles também já estavam

brigando por causa da linha que podia cortar o pescoço de Bu. Dezinho resolve ir embora.

Pedi-lhe que levasse os menores com ele, pois já estava escurecendo e era tudo passagem

até ele chegar em casa.

26.01.06

Encontrei um grupo formado por Donald, Dondon, Chester e Vitinho. Começamos a

conversar. Dondon achou que eu não viria com o carretel que havia lhe prometido. Falamos

sobre a pesquisa e eles me cobraram o papel das observações, pois queriam ver o que eu

anotava sobre eles. Prometi trazer assim que a impressora parasse de dar chilique. Desci

para a rua de baixo para ver os outros meninos. Encontrei JP, W, Bu , todos com suas pipas.

Passa o Baltazar, cachorro da irmã de Dezinho. Os meninos me perguntam se podem ficar

com as pipas que caírem lá em casa. Depois falam da linha de W que é marca Corrente e

que já está toda emaranhada.

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Vou cumprimentar os outros meninos que estão agrupados adiante. Os que deixo dizem que

eu vá, mas volte. Encontrei o Pino, o Tião, o Tanaca, o Zu, o Diero, o Dezinho e o Tutem.

Há um menino que não havia estado no grupo antes, mas hoje está ao lado de Dezinho. Os

meninos andam pra lá e pra cá, se arrumando de acordo com a conveniência. A linha da

pipa de Tanaca estancou. Há 3 meninos no fim da rua, 2 mais ou menos em frente à casa de

sempre e mais 3 próximos de mim. Os meninos gritam sem parar ao fundo.

Diero cortou mais uma pipa e aparou. Disse que hoje já são 7 cortadas e aparadas. Ele falou

que não fica com elas, que dá “pra essas crianças aqui. Não fico com esses camelos, pois

faço minhas próprias pipas.”

O tempo está abafado e, ao contrário dos outros dias, há nuvens cinzentas no céu, indicando

possibilidade de chuva. Tem até um arco-íris.

Pino pede uma pipa ao Diero e ele responde que só dá a criancinhas até 9 anos. Pino brinca

dizendo que tem 9, mas todos sabem que tem muito mais.

Há 18 pipas no nosso ângulo de visão e, cada vez que se olha, a contagem é diferente.

Diero reclama do calor e duvida se chove por causa da direção do vento e das nuvens. Só

que o vento começa a mudar e já dá pra ver a chuva caindo numa parte da serra.

Há pipas caindo, fazendo mergulhos, subindo, descendo. Dois rapazes na sacada da casa de

Ana gritam “Pega!” Pino consegue aparar uma pipa. Os meninos gritam muito com as pipas

que caem. Uma das pipas cai cheia de linha e torna-se disputada por todos os meninos.

Diero apara com a linha de sua pipa. Eles gritam freneticamente para que Diero lhes dê a

pipa. Diero grita que não vai dar, que parem de falar na cabeça dele. “Não dou cerol, não

vou dar nada!”, fala irritado com a insistência dos meninos. Diz que vai cortar outras pipas

e que, então, eles que aparem.

Diero virou o “herói do dia”. Deve ter uns 18 anos, pois comentou, certa vez, que tinha

feito o serviço militar, mas é o mais velho deste grupo heterogêneo que tem se encontrado

mais regularmente nestas tardes. Chama a atenção dos meninos, distribui as pipas cortadas,

ocasionalmente equilibra conflitos.

Tutem passa sem pipa na mão. Me fala que a pipa dele voou. Passa Ana, a vizinha com sua

bicicleta e me cumprimenta. Está caminhando e conversando com um rapaz de moto que

está em marcha lenta ao seu lado. Provavelmente, vai visitar o irmão doente.

São 19:00. A avó de Tião o chama para voltar para casa.

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Estão 6 meninos à beira do meio fio. Alguns deles continuam a assediar Diero para que ele

lhes dê linha. W vem caminhando do fundo da rua. JP e Zu estão na esquina da rua da casa

deles. JP corta uma pipa e os meninos começam a gritar: “Pega!Pega!”

Tem um cheiro de chuva no ar. O vento está diferente. Os meninos discutem sobre a

propriedade das linhas arrebentadas e espalhadas pelo meio da rua. Não imagino como

podem fazer a identificação do que é de quem. Por várias vezes, naquela tarde, eu havia

enroscado meus pés naquelas linhas. Diero sempre me advertia: “Olha a linha aí!”

Uns acham que vai chover, outros acham que a chuva não cai. O vento soprou pra tudo

quanto é lado, hoje. Os meninos perguntam as horas. São 19:00.

Tem 2 pipas brancas no ar: a de JP e a de Zu. Agora, sobem mais duas: do Diero e do

Dezinho. A do Tanaca está do outro lado.

Pino investe contra a pipa de W. Este fica zangado e sai batendo. As pipas sobem de novo.

Na rua acima daquela em que estamos, estão Zu, Bu, JP, Tutem, Pino e agora Dezinho.

Aqui, um pouco adiante de mim, está o W levando a pipa de Tanaca e Diero preparando

outra pipa para subir. Finão solta uma pipa preta lá de sua laje e ela engata na casa. Os

meninos torcem para que ela fique lá. Tião volta e se junta aos meninos que estão em cima.

Os meninos descem e pedem água na casa que eles dizem que está vazia, embora haja

sempre gente para dar água. Cumprimento a moça que vem dar água aos meninos, depois

que eles saciam a sede. Ela já vem armada com uma jarra d’água e copos. A turma está

dividida em dois grupos: os meninos que estão nesta rua e aqueles que estão na rua acima

de nós. Há 5 em cima e 4 embaixo. Os de cima correm para pegar uma avoada, mas uma

rajada de vento a joga para baixo. Começa uma ventania. A música que estava tocando em

algum lugar pára. Uma pipa estanca, poeira voa. Mais vento.

Pergunto a Diero se chove ou não chove. Ele continua apostando que não. Ele pede ajuda a

Finão para por no alto outra pipa (a que estava preparando). “É só pra ver se ela vai

estancar”, ele diz.

Ao todo, são 13 meninos compondo este grupo. Eles estão agitados por causa do vento.

Tem fogo na serra que se espalha ainda mais com a ventania. Por falta de chuvas, o mato

está seco. Nunca vi isto acontecer num mês de janeiro, pois o mato está sempre muito

molhado por causa das chuvas. É comum o mato pegar fogo nos meses de grande estiagem

um pouco antes das chuvas de primavera, ou mesmo na falta delas.

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Dezinho quer me ensinar uma dança. Finão diz que vai embora. Uma pipa voa, os meninos

saem correndo. JP e Zu descem para ir para casa.

27.01.06

Antes das 17:00, estive com os meninos na esquina da casa do Donald. Levei os carretéis

de linha para o Chester e para o JP, como havia prometido. Achei umas varetas de bambu

na Brinquedoteca, restos da oficina de pipas de 2004, e dei a eles. Eles fariam uso delas e

elas não se estragariam com o tempo. Voltei às 17:30. Estavam todos na rua de baixo:

Dezinho, Dondon, Donald, Tutem e Gus. O Diero estava lá também com uma menina que

depois soube ser sua prima. Aproveitei para perguntar a ele a sua idade. Ele me respondeu

que tinha 18 anos e que estava fazendo o serviço militar, mas tinha saído. A menina se

aproximou e comentou comigo, com a maior admiração, de como O Diero fazia pipas

rápido.

Chegam 2 meninos menores, O W e o Bu. Perguntam de quem são aquelas pipas que estão

num buraco coletor de águas. Donald diz que são dele, as aparadas. O vento sopra na

direção do vale. Donald e Dondon estão pegando as pipas que caem por aquelas bandas.

Hoje o tempo está ameno, depois da chuva que caiu. Lá de baixo, ouve-se um funk.

Dezinho e Donald estão na pescaria. Há duas moças sentadas no degrau da casa onde dizem

que não mora ninguém. Aparecem dois rapazes no fundo da rua. Um era o Fungo e o outro

era o Ciley. Pareciam estar chegando do trabalho. Aproveitam para ter um gostinho,

pegando as linhas das pipas que estão no alto. O grupo cresce. Agora são 11, incluindo a

menina.

Donald está numa manobra com outra pipa lá de baixo, mas o movimento não resulta num

cruzo.

Diero põe uma pipa toda verde, recém construída, no alto. Dezinho e Dondon, ontem

adversários, hoje estão lado a lado. Fungo e Ciley pedem a um dos menores para chamar o

Tanaca na casa dele. Acho que estão em busca de cerol. Começam a cair uns pingos de

chuva. Os meninos nem se mexem. Chega Tião. Ciley brinca de brigar com Dezinho que

reclama com um ai-ai-ai que é só dele. Começa a chuviscar e os pingos vão manchando o

que eu escrevo sobre o bloco. Os dois meninos continuam brincando de brigar. Ciley

ameaça de cortar a linha da pipa de Dezinho com o dente. Depois pega uma pedra para

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atirar nele. As pipas de Dezinho e Donald se engatam e vão baixando com as rabiolas

enroladas. Se esboça um conflito, talvez por conta de richas passadas. Dondon ameaça

bater em Dezinho, o que já era sua vontade desde o dia anterior. Ciley diz que ele não vai

bater não. Os grandes interferem para que a briga não vá adiante. È assim que é na

brincadeira de pipa que tenho observado. Em caso de conflito, se tiver alguém maior para

impedir, grande não bate em menor. Os meninos recuam. Donald e Dondon se afastam

mais para o fundo da rua. Ao meu redor ficam o Dezinho, o Tião e o Bu. Passa o Ajax

correndo.

Donald e Dondon sobem o barranco e se despedem. Vivemos um momento de ausência

total de pipas. Tião e Dezinho se sentam ao meu lado e começamos a conversar. Dezinho

diz que vai a um baile funk amanhã que é sábado. Conta suas aventuras com as meninas

neste tipo de baile. Tem um jeito engraçado de falar assoviando no meio das frases.

Diero reaparece com sua pipa verde. Bu e Tutem estão subindo numa árvore pequena. Falo

para o Dezinho e para o Diero que os convençam a descer de lá, já que são os maiores do

grupo, naquele momento. Comentamos sobre o papel de Diero no grupo, sobre a sua

autoridade como mais velho.

Apesar de estarmos cercados de nuvens escuras indicando mais chuva, as pipas do Diero e

do Dezinho continuam no ar. Dezinho gaba o seu cerol. A brincadeira esquenta de novo e o

vento esfria. Donald e Dondon voltam a colocar seus piões no ar. Eles vêm pra cima do

pião de Dezinho que pede ajuda a Diero. Este, por sua vez, acaba de cortar um pião no vale.

Tutem e Bu estão brincando de marimba. O Dezinho diz que está pensando em ser cantor

de funk. Será o MC-Dezinho.

Os 2 meninos de cima, O Donald e o Dondon, cortam o Dezinho e o Diero. Motivo para

uma futura revanche. Mas fica para depois, pois começa a chover e o grupo se dispersa.

Volto pra casa num passo apressado para não tomar muita chuva.

28.01.06

Tarde de sábado, tempo encoberto e muito mormaço. Só na minha frente, umas 12 pipas.

Na rua de baixo, o movimento fervilha. Deve haver uns 15 meninos, contando por alto.

Dois outros eu encontrei na minha caminhada até lá. Suas pipas tinham voado.

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Encontrei mais cedo o Donald e o Pino, na rua da minha casa. Tive que ir ao mercado e, na

volta, cruzei com o Fungo e mais dois rapazes. Estive caminhando pela rua onde pastam os

cavalos para acessar a rua e baixo pelo barranco. Lá no fundo, encontrei de novo o Donald,

desta vez acompanhado pelo Dondon, pelo Chester e pelo Tutem. Eles falaram que, naquele

dia, haviam mudado de pouso porque era mais fácil cortar ali daquele ponto. Quando

cheguei à rua de baixo, o Donald e o Pino já estavam trocando insultos. Branquelo pra lá,

magrelo pra cá. “Viado” e “vai tomar no_ _” são linguagem corrente. Pino ainda insulta

Donald dizendo que lugar de leite é na padaria e na teta da vaca, na teta da mãe dele. Será

que vai dar em guerra??

Na turma de baixo, estavam o Pino, o Fungo, o Diero, o Tião, o Zu, mais 3 rapazes, 2

meninos e Dandara (11), a prima do Diero com outro priminho menor. As pipas estavam

inflamadas, um corta-corta, um dança-dança. O vento estava mais estável, soprando só

numa direção.

Todos os meninos estão ligados com suas pipas, esperando a oportunidade de dar o bote. A

idéia é mais ou menos essa: dar o bote, podendo este ser rápido ou pode ser ensaiado

durante algum tempo. O pessoal de cima é cortado e aparado. Uma pipa do pessoal de cá é

cortada e fica rodando até cair e ser recuperada. É a pipa do Tião.

Fungo desce a pipa para recolher a aparada. Passa uma moça reclamando que deixaram lixo

fedorento na porta dela. Pára para conversar comigo, certamente curiosa com o que estou

fazendo ali. Fala da casa da irmã dela que fica próxima à minha, fala da casa dela, fala dos

meninos, dizendo que são bons. Mas que tem uns que não estão estudando. E que outros

são “barra-pesada”. Ela é professora e parece saber da vida escolar dos vizinhos. Diz que as

coisas no bairro têm melhorado, mas confessa que houve tempo em que pensou em vender

a casa e ir morar em outro lugar. Distrai minha atenção durante alguns minutos com a sua

narrativa.

Os meninos de cima e de baixo agora trocam hostilidades: “ Seu FDP, viado! Se me cortar,

vou aí!”

Tião identifica no ar a sua pipa que foi cortada mais cedo. O grupo se separa alguns

metros. Ficam Fungo e Diero de um lado, Tião no meio e mais adiante, 3 meninos maiores

e um menor.

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As pipas se insinuam: a do Fungo com as dos meninos de cima. Tentam se enroscar, mas

uma sempre escapa da outra. Finalmente a rabiola de Fungo corta a pipa adversária.

Os meninos querem que o Pino desça do barranco. Para atraí-lo, eles falam que roubaram a

linha dele. Ele desce procurando, mas os meninos “mocam” a linha em algum lugar no

mato. “Eu sei que tá com vocês. Cadê meu chinelo??” De repente, um desfile de palavrões

entre os meninos que ficam aguardando uma reação. Reação de quem? Dos outros? Minha?

Fico sem entender, mas já me acostumei aos palavrões como moeda corrente.

Lá em cima do barranco, atrás da minha casa, tem um grupo de meninos. Dois deles estão

descendo o barranco para se juntar ao grupo de baixo. Atrás vem uma cachorra. Os

meninos dizem que ela comeu coisa de macumba, certamente se referindo a um despacho

que está na encruzilhada de duas ruas lá de cima, pelo qual tenho passado há alguns dias.

Vêm descendo o barranco mais 4 meninos. Entre eles, estão o Finão, W, Tutem e Zu. Finão

se senta ao meu lado e sua cachorra Jana também. O grupo de garotos e rapazes reunidos

começa uma brincadeira de mostrar a bunda dos menores. Dois meninos pequenos se

engatam. Fico na dúvida se interfiro, mas Moreus vai lá apartar os dois. Dandara, a prima

de Diero está sentada ao meu lado. Os meninos se acalmam. A confusão cessa um pouco. É

como se fossem ondas de confusão. Os meninos menores falam que vão contar para as

mães.

Gus arruma briga com Finão, jogando pedras nele. Finão o empurra, ele cai e chora. Diz

que vai contar para a mãe dele e desce acompanhado de Finão que é seu primo. Os meninos

pressentem confusão e vão se retirando de fininho. Dizem que a mãe de Gus vai vir . Diero

é o último a sair com a prima. Diz que vai embora porque hoje só deu confusão e não tem

vento. Diz que, se até 19:30 o vento voltar, ele volta. São 18:45. As pipas sumiram.

Diero volta em breve e fica soltando pipa, acompanhado da prima. Logo aparece Zu e mais

acima do barranco, outra pipa, talvez do Donald.

Dandara ajuda Zu a elevar a sua pipa. O Diero vem e o corta depois que as linhas de suas

pipas se embolam. Surge Tutem com a pipa eu achava que era do Donald. As 3 pipas agora

voam baixo e próximas. Os meninos brincam de cruzinho. Dandara diz que vai sair da

frente, antes que cortem o pescoço dela. Zu conta que quando soltou pipa com seu irmão

em São Paulo, ele foi ferido no braço por uma linha cheia de cerol. Pergunto se eles

conhecem algum caso de acidente com cerol por aqui. Nenhum deles sabe de nada.

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Dandara hoje está no papel de ajudante dos 3 meninos, toda vez que as linhas deles

embolam.

O vento muda e uma pipa que é de Donald fica sobre nós. Diero corta Zu e a pipa engata

numa árvore. Zu xinga, fica chateado. Diero diz que dá para pegar, que ele deixe de ser

preguiçoso.

Diero resolve cruzar com a pipa de Donald, mas acaba indo ajudar Zu a resgatar a pipa

dele. Vai caminhando até ela e corta a pipa de Tutem.

Lá em cima aparece uma flechinha branca que Dandara diz que é de Dondon. Tutem pega a

pipa de Zu e este pega a pipa de Tutem. Diero passa e me pergunta as horas. Um dos

meninos corta Diero e Dandara vai lá desengatar a linha dos arbustos. Na verdade, foi a

linha que estancou. Diero enrola a linha e vai em seu auxílio. Já volta com sua pipa

empinada que corta a de Tuem que é aparada por Dandara que ensaia colocar a pipa no alto.

Parece uma repetição das ações anteriores. A brincadeira é cortar Diero e ser cortado por

ele. Didi, um menininho de 4 anos, chega com o pai e repete o que fez no outro dia. Vai

soltar a pipa de Diero. Um senhor vem vindo com um menino e Dandara me informa que é

o pai de Diero. É o mesmo senhor que apartou a briga no outro dia.

São 19:30. O sol já se escondeu, mas ainda há claridade. Os meninos estão muito próximos

uns dos outros e, por isso, as linhas se enroscam com facilidade. A rabiola de Tutem passa

sobre a minha cabeça. Quase escrevo nas fitinhas. Dandara fala que está na hora de ir tomar

banho. Chega o Dezinho que eu não tinha visto durante toda aquela tarde. Ele me corrige

dizendo que aquela pipa do Dondon não era uma flechinha, era uma pipa quadrada.

Dezinho começa a gritar “Aí, ô!” Também apita entre as palavras para falar as coisas. Tião

chega com uma pipa branca. A emoção começa com o cruzinho entre eles. “Ai-ai-ai! Ai-ai-

ai!” e começa a história. Aparecem umas 4 mocinhas dizendo que a mãe de Tutem o

procura “que nem doida”.

Está ficando escuro. Dezinho some. Os meninos vão procurá-lo e avisam-no para que não

caia no buraco onde caiu uma mulher.

Começa a ventar forte e frio. Fica termicamente desconfortável e resolvo ir embora. Ontem

já foi difícil voltar para casa escorregando nos barrancos molhados e tomando chuva. Meus

sapatos ficaram completamente enlameados. Quando cheguei à rua onde pastam os cavalos,

avistei e Dondon que parecia estar recolhendo a sua pipa. Acenou para mim. Devolvi o

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aceno e segui em frente até chegar à Rua Ernestina. Lá, na encruzilhada do despacho,

estava o Donald recolhendo a sua linha. A pipa preta e branca que eu tinha visto e depois

perdido de vista era mesmo dele. Sua linha havia estancado com o vento forte. Falei que

estava indo para casa e que os veria amanhã. Ele me falou que ia passar cerol na sua linha

para soltar pipa ainda hoje. Ao chegar a casa, ouvi que a previsão do tempo era de frente

fria para o Sudeste com pancadas de chuva ocasionais para o domingo.

30.01.06

Segunda-feira. Saí de casa mais cedo, pois com as chuvas da semana passada o tempo

refrescou e começou a chover no final da tarde. Assim, meu horário de ir ao campo, ao

invés de ser mais no final da tarde, passou a ser mais cedo. Passo pela casa azul onde estão

Donald e Dondon, deixando com eles um punhado de varetas e papel seda que havia trazido

lá da Brinquedoteca. Eles comentam comigo que iam sair daquele ponto, pois estava tendo

muita briguinha com o Fungo e o Diero.

Desci para distribuir o resto do material com os meninos da rua de baixo. Os meninos que

estavam lá eram o Diero, o Tutem, o Tião e depois apareceu o Finão. As folhas e varetas de

bambu foram distribuídas entre os 4 meninos. Hoje é o aniversário de Finão e ele me

chamou para ir lá à casa dele. Lamentei não poder ir até lá, mas falei que tinha uma

lembrança para lhe dar.

Quase todos os meninos resolveram fazer pipas cor-de-rosa, pois era essa a cor

predominante entre as folhas de papel de seda que eu havia encontrado lá na

Brinquedoteca. Tutem falou que ia fazer uma pipa rosa e ia deixá-la cair lá em casa. Finão

quis me dar a sua pipinha salmão de presente. Tião disse que ia fazer uma pipa pequena e o

Diero falou exatamente o contrário: que ia fazer um pião bem grande porque tinha pouco

vento. “Para pouco vento, pipa grande, para muito vento, pipa pequena”, ele me ensina.

Diero corta uma pipa do pessoal lá de cima, mas não consegue aparar. A pipa demora a

descer e pode cair no Bonfim, ou talvez no Mambengo. Tudo ia depender do vento. Diz o

Diero que quando o vento é pouco e está calor, a pipa custa a descer.

Finão me mostra uma galinha com seus pintinhos ciscando no barranco atrás de nós.

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Mudo de lugar por causa do sol. Sento atrás de Tutem que faz uma rabiola. Finão me dá a

linha de sua pipa para que eu segure e me ensina algumas manobras. Ele continua sendo o

meu pequeno professor.

Logo chegaram outros meninos: o Moreus, o Pino, o Coxinho (da outra temporada), o Zu e

o Ioiô.

Finão me leva até sua casa para que eu saiba exatamente onde fica e para conhecer a sua

mãe. Lá também estão sua avó, D. Zoé, e a tia que é a mãe do Gus. Aproveitei para ver

também a Alice, o Paolo, o Pepê e a Lana que moravam perto.

Voltamos para a rua de baixo que eles chamam de primeira estrada. A rua ficou animada e

colorida com as pipas voando e os meninos correndo.

Zu está com uma blusa grossa de mangas compridas. Ele está com frio enquanto todos os

outros estão morrendo de calor. Há grossas e cinzentas nuvens na direção que eu acho que é

nordeste. Diero diz que não vai chover, pois o vento está soprando para lá, o outro lado. Diz

ele que dificilmente o vento vai mudar porque está forte, levando a chuva lá pra serra.

Diero fala que já deve estar chovendo em Tiradentes.

Os meninos estão em plena atividade. Zu, Diero, Pino e Moreus estão com suas pipas no

alto. As mais baixas estão brincando de cruzinho, pois os meninos de cima sumiram com

suas pipas.

Os meninos andam pra lá e pra cá. Chega um menino e pergunta de quem são aquelas

varetas. Há uma linha amarrada entre o poste de luz e a lixeira da casa para que os meninos

passem cerol. Era de Tutem que agora a recolhe. Os meninos procuram mais cerol. Tem

pouco vidro. Eles pensam em fazer cerol com a terra dos barrancos.

Diero me avisa que o vento está mudando e aí, pode chover. Avisa que vai fazer umas pipas

com as varetas e folhas que eu lhes dei e volta em meia hora.

Os meninos que ficaram brincam de cruzinho. Ao meu lado, vão se amontoando as camisas

que os meninos deixam comigo enquanto brincam. Ao fundo da rua, em frente à casa de

Ana, estão Moreus, Pino e Ioiô.

Alice sobe e vou ter com ela. Conversamos sobre o termo de consentimento. Ela diz que

logo o trará. Alice avisa que a serra está branqueando, o que é um sinal de chuva próxima.

Começa a chover.

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Os meninos se refugiam em frente ao portão da garagem. Alguns começam a ir embora.

Pino pondera que a chuva vai passar. Paolo diz que é “chuva passadeira”.

Agora somos uma grande falange colorida de gente e papel de seda em frente ao portão da

garagem. Pino e Moreus batem na porta. Pergunto se as pessoas que moram ali não ficam

chateadas com aquela barulheira. Dois meninos falam que ninguém mora ali. Contam que a

pessoa que morava ali resolveu se mudar depois que roubaram a casa, levando tudo que

tinha dentro. Uma moça vinha todo dia cuidar da casa.

Os meninos ficam falando da quantidade de linha que cada um tem. As pipas estão

penduradas no portão e os carretéis estão no chão da rua.

O sol volta e os meninos retornam à brincadeira. Finão está ao meu lado junto com Zinho.

Ele diz que eu tenho que ir ao seu aniversário.

Os meninos falam sobre “passar de ano”. Uns passaram e outros têm que fazer provas

ainda.

Alice, que tinha saído na hora da chuva, voltou com Pepê e Lana. São uns 11 meninos na

rua. O vento virou na direção contrária.

Eu e Alice começamos a conversar. Estamos sentadas no mesmo lugar e Lana está entre

nós. A conversa gira em torno do vestibular e dos cursos de profissionalização,

preocupações de Alice em se capacitar para arranjar um emprego melhor.

São 17:00 e os operários começam a voltar pra casa. Os meninos brincam, mas não há mais

disputas.

Uma das minhas preocupações, nestes dias é o fato de ter tido muito pouco retorno dos

termos de consentimento para a observação da brincadeira de menores. Considero que este

tem sido um dos maiores entraves da pesquisa de campo. De boca, eu estou autorizada, mas

assinar um papel autorizando causa muita insegurança para eles. A resistência dos pais

(poderíamos falar de recalcitrância?) na assinatura deste termo pode ter várias explicações.

A leitura do termo pode estar sendo um item problemático. Será que todas as famílias têm

condições de ler e entender o que está escrito? Estou subestimando-os, ou superestimando-

os? Será que falhei na confecção do texto e ele não está suficientemente claro? Será que

independentemente do que está escrito, a existência de um documento assinado pode

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significar um compromisso maior do que uma autorização verbal, dada a informalidade da

última e o aspecto burocrático da primeira? Uma outra constatação me surpreendeu e ao

mesmo tempo me alertou para os aspectos éticos da pesquisa com menores. Segundo a fala

de um dos meninos que sempre foram muito transparentes nos seus comentários, por parte

de uma das mães, havia até a fantasia de que eu poderia colocar os meninos num carro e

levá-los embora. Será que não foi suficiente, por uma questão de reciprocidade, eu

explicitar o meu lugar de moradia e de trabalho, meu telefone, o tipo de pesquisa, o que ela

pedia de envolvimento dos participantes, a garantia de sigilo, a não identificação dos

menores, o oferecimento da referência de pessoas que são conhecidas comuns, minhas e

deles (uma funcionária da UFSJ e uma ex-vizinha) e todas as informações contidas no

termo? Penso, finalmente, que as pessoas ficam ameaçadas com o fato de terem que assinar

algum papel. Talvez tenham medo de assumir algum compromisso, mesmo que o texto do

termo não indique nenhum comprometimento. Ao invés de verem o documento como uma

proteção, eles o vêm como uma possível encrenca. De 14 termos de consentimento

entregues, apenas 2 voltaram assinados. Por parte das famílias destes últimos, tudo foi

tranqüilo: o contato foi muito carinhoso, recebi convites para festas de aniversário e tudo.

Os outros termos, apesar do consentimento verbal, não voltaram e acredito que constituíram

elemento de constrangimento para os pesquisados. A grande maioria daqueles que

acompanhei são menores e brincam nas ruas sem nenhuma supervisão de adultos. Uma vez

ou outra, aparece uma irmã ou a própria mãe desesperada com o sumiço deles, quase

sempre no final da tarde quando eles não cumprem o horário combinado para voltar para

casa. Se em alguns casos, como no grupo de meninos que acompanhei em julho do ano

passado, a minha presença podia funcionar como elemento tranqüilizador, em outros era

motivo para deflagrar fantasias: “Quem é essa que fica debaixo deste sol, atrás dos

meninos? Só pode ser uma louca ou uma santa! Em troca do que ela dá papel, linha e vareta

para os meninos?”, foi um comentário que uma delas explicitou na conversa comigo,

quando estive em sua casa, apresentando a pesquisa. Quase todos me levaram até suas

casas para conhecer as mães que me receberam muito bem. Para ser simétrica e mesmo por

ser inevitável, eles sabem onde moro. Mas para evitar fantasias e falatórios, eles nunca

entraram em minha casa. Digo-lhes que serão muito bem vindos se vierem com os pais ou

responsáveis. Apenas pedem água e alguma pipa que se enroscou no telhado.

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Lembro que escrevi certa vez que estava tentando fazer a minha pesquisa inspirada na

Despret que defende uma “politesse du faire connaissance”, contando como as etologistas

mulheres se permitiram abordar o campo de uma maneira mais intuitiva fazendo

intervenções “sob os auspícios da oferenda”. E tenho feito isso com os meus pipeiros: nós

trocamos presentes. Não me sinto constrangida por isso. Muito ao contrário. Tenho o maior

prazer em abastecer-lhes de papel, varetas e linha, quando me pedem. Às vezes a

brincadeira pára justamente pois faltam estes elementos.

03.02.06

Hoje é sexta-feira. Na quarta e quinta últimas, estive viajando para o Rio com a intenção de

comparecer à reunião do meu grupo de pesquisa, mas meu esforço foi em vão, pois uma das

rampas que ligam os blocos principais da UERJ tinha desabado e o campus inteiro estava

interditado.

Tenho a sorte de ser um dia quente e ensolarado. Logo que acordei, bem cedo pela manhã,

o intenso nevoeiro já dava indícios de que teríamos um dia de sol. Lá em casa, haviam me

informado de que alguns dos meninos foram me procurar, tinham pedido água e quiseram

saber onde eu estava.

Na rua de baixo, havia 3 pipas sendo empinadas. Uma do Tião, uma do Tutem e outra do

Gui, menino que eu ainda não havia identificado. Os meninos falam de cerol. Logo eles se

movem e eu me desloco atrás deles. Encontro, no caminho a avó de Tião que fala sem

parar: da vida dos netos, da sobrevivência difícil.

Tutem some. Três meninos (Tanaca, Tião e Pino) estão com suas pipas muito juntas e com

o maior cuidado para que as linhas não se embolem. Eles conversam sobre a vinda da

polícia que ficou fuçando na construção abandonada atrás da minha casa. Era o episódio do

dia e eu mesma havia presenciado a batida policial. Como a construção está abandonada, é

provável que ela seja esconderijo para drogas. A conversa gira em torno de quem eles

conhecem que já foi preso por envolvimento com drogas; um conhecido, um parente... Os

meninos me perguntam porque não fui ao aniversário de Finão. Expliquei da minha

enxaqueca e disse-lhes que fui visitá-lo no dia seguinte em que choveu e não houve pipas,

bem na véspera de eu viajar para o Rio. O Pino havia me visto subir a rua em direção a casa

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do Finão Quiseram saber o que eu tinha dado de presente para ele e eu respondi que foi um

boné. O Tanaca falou que fez aniversário em janeiro e não ganhou boné. Argumentei que

não soube do aniversário dele.

Os meninos se levantam e vão ver se há frutos na goiabeira que tem junto ao mato que

cresce lá no início da rua. Dizem que os trabalhadores sempre passam com umas goiabas na

mão quando vêm de lá daquelas bandas.

Lá embaixo, avisto mais pipas que os meninos soltam nas ruas de baixo, às vezes nas lajes

das casas. Agora são 5 pipas. O Binho e o Bri voltaram à ativa. Os meninos anunciam a

chegada dos dois, pois sabem que estou com intenções de entrevistar Binho. Os meninos se

juntam. Só Binho está mais distante.

Uma das pipas foi cortada. Eles acham que é a do Zu ou do Gui. Binho grita e a pipa

cortada sobe imponente num movimento de vitória. Uma nuvem faz sombra. Binho está no

topo de um monte de barro. Reclama que o pião dele não pega força, mas agora é o mais

alto de todos. A mochila que Binho carrega vai parar na mão de Pino. A questão é o cerol.

Parece que o Binho traz um arsenal dentro da mochila: cerol, cola, vidro, papel, vareta...

Ele diz que traz tudo isso, caso perca o pião. Aí fica mais fácil fazer outro. Diz que dá

preguiça de vir aqui, pois tem que subir ladeira e fica cansado. O pião dele é pequeno e está

alto. A linha está tensa com o vento. Ficamos um bom tempo procurando o pião, de tão

longe que ele estava. O confundimos com um monte de outros piões. Binho grita como se

estivesse num rodeio: “Pega, pião!Que que é isso, pião?!” Binho resolve subir para a rua de

trás da minha casa. Diz que lá é melhor de soltar porque pega mais vento. A mochila de

Binho está no meio da rua. Ele diz que o Pino vai trazer, que ele ainda vai precisar dela.

Subo o barranco atrás dos meninos. Chego ao meio fio que está exatamente em frente à

construção abandonada onde a polícia estava com a viatura parada pela manhã.

Ofereço água aos meninos e, já que vou buscá-la em casa, aproveito para pegar o gravador.

Quem sabe, nos intervalos das manobras, Binho me concede aquela entrevista que me

prometeu?

Só encontro Binho e Tanaca. Os outros meninos foram para outra direção para cruzar com

outras pipas. Parece que os dois estão brincando de cruzinho. Tanaca diz que o pião dele

não está emorgado e fica difícil de debicar. Tanaca diz que é a última vez que ele vai por a

pipa dele no alto para brincar de cruzinho. Binho diz que Tanaca põe a pipa dele no alto

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para ser cortada e aparada por ele. Diz que é só treinamento. A pipa de Tanaca foi cortada e

aparada pela rabiola.

-“Ah, não, Binho!”

-“Levanta aí, ô viado! Meu cerol tá ruim pra caramba. Você dá sorte que seu pião é

pequenininho. Se fosse grande, já tinha voado”.

Os gritos de Binho ecoam pelo quarteirão.

B-“ Você só cruza comigo se eu quiser. Quem manda na parada é o meu pião!”

S- “ Parei agora!”

B- “ Não! Não! Nada de choramingar comigo!”

Chamei a atenção de Binho para o eco que a voz dele fazia ao bater no muro das casas.

Há mais piões na paisagem, soltos na rua de baixo e lá no vale. Bri, Tião e Pino estão por

lá. A brincadeira entre Binho e Tanaca continuava. Está muito quente. O suor escore e

pinga no corpo. As 2 pipas caem. Os dois acham que a pipa do outro é a que voou. Tanaca

diz que vai por a pipa dele no alto, que agora quer se divertir. Binho diz que vai cortar.

Entra em Tanaca, mas tem a sua rabiola enrolada na linha do outro. Consegue desembolar e

as pipas se desenlaçam. Fico achando que é tudo uma demonstração para que eu veja. Ou

estariam se divertindo de qualquer jeito independentemente da minha presença? A

diferença de idade entre os dois é considerável (quase o dobro), mas correm ambos como

duas crianças. Tanaca chama Binho de “filha das unhas”, expressão aparentada de FDP.

Binho fala pro Tanaca levantar a linha dele. Não sei porque, ele atende ao Binho para ser

cortado. A brincadeira se repete muitas vezes. Tanaca reclama comigo, dizendo que Binho

é um safado, que só fica esperando ele por no alto para cortar.

Binho diz que não vai disputar com outras pipas porque está lisinho. Acha que Tanaca

também está. Tanaca procura um peso para equilibrar sua pipa. Binho continua com sua

pipa no ar. Vai até a calçada e se deita ao sol. Percebo que é uma boa hora para lhe propor a

entrevista. Ele topa. Ficamos conversando no sol, mas propus a ele irmos para a sombra de

um muro. Ele amarrou a linha de sua pipa num arbusto, interrompemos a gravação e

conseguimos conversar numa situação mais confortável. Finalizamos a entrevista por causa

do horário da Malhação. Só que eu li equivocadamente tanto a luminosidade do dia como o

mostrador do meu relógio. Ao invés de 16:45, já eram 17:45. Desculpei-me por tê-lo feito

perder a novela e me propus a descer com ele para encontrar os outros. Mas os meninos

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haviam sumido, tinham ido embora. Encontramos a Dandara que avisou Binho que já

tinham levado a sua mochila. Combinei de mandar a entrevista transcrita pela Vicentina,

sua tia, para que fizesse os ajustes que considerasse necessários. Como o movimento tinha

parado, voltei para casa. Eram 18:00 e ainda havia muito sol.

04.02.06

17:00 A primeira pipa já começa a aparecer. Pela silhueta, era o Tião que estava com ela.

Ele ficou sozinho um bom tempo. Desci alguns minutos depois. As 17:30, encontrei com os

meninos que me avistaram quando eu estava descendo ao seu encontro, na rua da lama e

dos cavalos. Estavam juntos o Tião, o Tutem e o Zu com suas pipas. Pino e o primo

estavam no barranco que cai da rua em frente à obra abandonada. Tutem me cobrou a linha

apesar de estar com a sua lata cheia de linha enrolada.

Pino corta uma pipa que agora vem caindo em nossa direção. Zu corre e larga sua pipa no

meio da rua. E eu quase a piso. Tião me pede para segurar a lata dele enquanto tenta pegar

a linha da pipa avoada que passa bem perto de nós. Pino tenta apará-la, mas a sua linha

arrebenta e vai embora junto com a outra. Pino fica inconformado. Os meninos discutem

sobre o ocorrido. Pino quer botar outro piãozinho para voar.

Lalá aparece depois de muito tempo sumida. Estava passando uns tempos na Colônia, na

casa de familiares. Falo com ela e ela repete: “O quê? O quê? O quê?”, como se não

estivesse ouvindo ou entendendo nada.

Outra pipa foi cortada. Gritaria geral. Pino cortou outra vez. Tião fala que hoje está é bom.

O vento sopra na nossa direção de modo que as pipas que caem vêm voando para cá.

Pino e Zu estão no meio do mato caçando rabiola e pipa engatada na árvore,

respectivamente. Cada um está em um dos barrancos que ladeiam a primeira estrada. Os

dois vêm vindo e dão notícias de que viram 2 cobras. Tião fala que é por isso que não gosta

de ir pro meio do mato.

Falamos de alguns termos correntes na brincadeira enquanto Pino e Zu passam cerol na

linha. Tião fala que Tutem é “prego”.

Os meninos falam que a pipa que cortaram antes era do Diero. Tião fala que não sabia, que

pipa no alto não tem dono, não tem como saber de quem é.

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Ouço alguém gritar meu nome. Era Alice que tinha chegado da piscina. Disse que logo

subiria para me entregar os termos de consentimento assinados. Eu e Tião vínhamos

andando pela rua e eu lhe alertei sobre um buraco que havia no caminho. Ele me falou que

um monte de gente já tinha caído nesse buraco: “Vêm andando e olhando pra cima e

acabam caindo”.

Há um casal de cachorros que latem e tentam cruzar ao nosso redor. Os meninos estão em

manobras, sobem e descem da primeira estrada para a rua da lama, ou, como eles falam, a

segunda estrada. Há uma linha presa no poste e esticada pela rua para que o cerol seque.

Zu, Tutem e Caetan estão passando cerol na linha ao longo da rua. Pino segura a pipa de Zu

enquanto isso. Tião, chama Zu dizendo que o Pino tinha cortado e aparado uma pipa com a

pipa dele. Os meninos vão todos nessa direção. Fico sozinha com a pipa estendida diante de

mim. Os cachorros voltam e desta vez são 3, tentando cruzar pela enésima vez e se

enroscam na linha. Eu os enxoto e o casal de vira-latas vai para um lado, enquanto o poodle

fedorento fica parado me olhando.

São 18:15. O movimento declina um pouco. Vou mais para perto dos meninos que vêm

voltando. A avó de Tião vem atrás dele e da Lalá e vira na rua onde moram. Tião e Tutem

estão na esquina da rua. Quando descobrem que já passa das 18:00, ficam surpresos pois o

sol está muito forte.

A pipa de Tutem voa. Ele puxa a linha que ficou com afinco para que não seja banhada por

outros. A pipa cai longe. Estamos de frente para o sol. Fica difícil encarar as pipas com

tanta claridade. Alguém segura a linha de Tutem lá na outra rua. Tião vai verificar o que

aconteceu. Descobrem que a linha está agarrada numa antena. Tutem larga a linha no meio

da rua e vai desagarrar o pedaço que ficou preso na antena.

Numa casa próxima, ouve-se um rock pesado. Dá pra ver umas 10 pipas cintilando ao sol

em frente à serra.

Os meninos voltam para o lugar onde estávamos. Pino avista Finão e o Gus soltando uma

flechinha do terraço da casa deles. Pino pergunta se eu vou mesmo trazer a linha para

Tutem. Digo-lhe que se eu prometi, eu vou trazer.

Duas pipas, uma preta e uma branca, aparecem e os meninos vêem a chance de uma das

duas cortar a outra. Ficam na espreita para aparar aquela que cair. Tião se desloca mais para

frente para aguardar a oportunidade que estava se ensaiando. Mas a pipa dele voa.

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Chega o Viny com a avó, D. Zezé e a tia. Contam que o Viny é louco por pipas, que dormia

com as pipas ao lado dele, ou debaixo da cama. Quando não tinha papel, ele não se apertava

e chegava a remendar as pipas rasgadas com papel higiênico. Percebe-se pelo estado da

pipa que carrega, toda colada e remendada com um monte de papel diferente. Ele cata toda

a linha que está pelo chão e dá para a avó guardar. Caetan (7) perde a lata com linha e vai

achá-la no meio do mato. Perde os chinelos também.

Pino e Tião combinam de fazer pipas para soltarem amanhã. Estão sem pipas.

Viny (5) pendura um adereço na sua pipa. A avó comenta das emendas da linha dele. Os

meninos a chamam de “varal”.

A pipa preta se recolheu e a branca continua no alto. Surge uma outra pipa de cor vermelha.

A vó Zezé dá um pedaço de linha com cerol para o Tião. Ela só guarda e põe no “varal” as

linhas que não têm cerol. Diz que tem medo que o Viny corte o dedo. Tião diz que é bom

passar fita isolante nos dedos para evitar que o cerol corte a pele. A vó de Viny comenta

que o pai dele, seu filho, gostava de soltar pipa, mas que hoje diz não saber por que Viny

gosta tanto.

Passam 3 pipas voadas. Correria. Os meninos ficam loucos. Aparecem de todos os lados.

Tião pega 3 pipas voadas de uma vez só, mas a linha de uma delas estanca e ele fica só com

a linha de duas. Finão pega outra. Desde então fica um congresso no meio da rua decidindo

de quem seriam as pipas. Tião comenta com orgulho que faturou 2 “cheios de linha”.

Fico conversando com a mãe de Viny que chegou para acompanhar o filho e a mãe. Ela fala

que o marido soltava pipas até bem grande e que parou quando o Viny nasceu. Hoje, diz

que odeia pipas, mas a mãe dele o desmascara dizendo que ele lhe deu muito trabalho com

as pipas aí, pelos morros.

Três pipas entram num cruzo. Os meninos correm na espreita de que alguma delas seja

cortada. Caetan fala que a linha que encontraram está vencida, que é a mesma coisa que

linha podre.

20:00. Já está escurecendo. Finão se senta ao meu lado e lembra que amanhã é o último dia

de pipas. Voam mais duas pipas e Caetan sai correndo. Lá em cima, estão Tanaca e Pino,

disputando as pipas avoadas. Os meninos aqui embaixo não se abalam porque sabem que

não têm chance.

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Finão chama Gus para descerem. Diz que já está indo embora. Eles acham que as pipas

foram para as bandas do campinho. Gus aparece no alto do barranco atendendo ao chamado

de Finão e diz que ele é que pegou a pipa voada. A pipa, prova do feito, não está com ele.

Os meninos falam que ele conta muita história. Finão pergunta se o Pino ou o Tanaca

conseguiram pegar alguma coisa. Gus diz que não e os meninos ficam querendo saber onde

e na mão de quem foi parar aquela avoada. “Só se foi fantasma, então, que pegou aquelas

avoadas”, fala Tião. Os meninos acham que as pipas podem ter caído no campinho.

Estamos nos despedindo. Agora já é noite. Finão quer saber se trarei mesmo a linha para

ele. Pede que eu não dê para os outros, caso eu consiga trazer. Os meninos se despedem.

Tião diz que vai dormir pulando hoje. Começou a tarde com um pião meio emendado e

termina o dia com 2 piões bonitos. “E isso só me acontece quase no último dia de férias!”.

Falo pra ele que vai poder contar essa história no primeiro dia de aulas. Volto pra casa pela

rua da lama. Estou com frio e morrendo de fome.

05.01.06

Domingo, último dia de férias e de pipas. Desço para encontrar com os meninos. Encontro

Tião e Zu. Lalá está adiante. Zu solta uma pipa e por pouco não me atinge com sua linha

que, graças a Deus, estava “lisinha”. Tião estava sentado com um ar desanimado. Havia

perdido um dos seus piões para a própria irmã. Lalá continua à distância de nós que

estamos nos abrigando do sol, na sombra do muro da casa da esquina.

Lamentavelmente, o vento não estava para pipas. O movimento estava fraco. Um dos pais

passou por aqui furioso com um cinto na mão, dizendo aos filhos do seu desagrado sobre

estarem soltando pipas na rua: “Vocês sabem que eu não gosto de pipa. Aqui no morro, só

tem droga. Quero vocês em casa. Se acabar o jogo (referia-se ao jogo de futebol) e vocês

não descerem, é couro!”

Estamos todos encostados no muro: Tião, Lalá, Bu, Zu e eu. Ao longe, ouve-se uma música

de escola de samba. Segundo os meninos, estão escolhendo a rainha da bateria da escola de

samba do São Caetano. Os meninos comentam dos bailes. Depois falam do tingimento de

cabelos porque o cabelo de Lalá foi clareado. Falamos de filmes do Jackie Chan que eles

gostam. Contei das histórias que li no livro “O caçador de pipas”. Falei que o livro ia virar

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filme. Eles me perguntaram por que eu não conseguia alguém para produzir o filme das

coisas que eu anotava. Quem sabe um livro. Até que não seria má a idéia.

Bu e Lalá pediram folhas do meu bloco. Os meninos conversam sobre a escola.

Proponho nos mudarmos de lugar, pois onde estamos sentados está duro e mormacento.

Sento-me onde tenho o costume de sentar, à beira do meio fio, onde há grama para deixar o

assento mais macio. Tião chama a nossa atenção para uma pipa que está tentando subir. E

logo outra. Comento com ele que a pipa é como um contágio. Umas vão chamando as

outras. Só que o vento está ruim. Ficamos conversando.

Vem vindo um menino que eu não havia visto antes, durante todas as férias. Tião, muito

crítico, acha que o pião dele está retão, que não está morgado. Chama a pipa do menino de

“cuecão”. O menino se aproxima. Tião o aborda: “Tem cerol aí, ô bacana?” O menino diz

que não. Tião examina a pipa e continua a sua crítica: “E ainda por cima, é de plástico e

não está morgada!”, fala, pondo defeitos. O menino se chama Lipe e está satisfeito com o

brinquedo. Pergunta se o Tutem tem linha.

O vento dá uma soprada, depois que os meninos cantam aquela musiquinha de chamar

vento. Canto pra eles a versão que eu aprendera, lá no morro, com outro grupo de meninos,

em julho do ano passado: “Vem vento, vem meu amor. Vem vento, vem por favor.”

Com o vento, Tião se entusiasma e vai pegar o pião aparado ontem, o “escamoso”, como o

batizou.

Os meninos fazem várias tentativas de por as pipas no alto, mas o vento não ajudou. Tião

tenteia com a sua pipa. Se conseguir colocá-la no alto, certamente virão outras pipas para

tentar um cruzo. Ele não quer perder seu troféu. Logo chega o Zu, também tenteando com a

sua pipa. A pipa do Tião caiu. Idem para a pipa da Lalá. Logo sobe a pipa de plástico azul

do outro menino que havia chegado.

Os meninos se distanciam de mim e vão se esparramando pela rua em que estamos. Ouço o

Tião alertar os outros sobre o perigo de cobras no mato que cobre os barrancos. Os meninos

começam a cantar de novo a musiquinha de chamar vento. E sopra uma lufadinha. As pipas

ainda tenteiam, mas estão conseguindo subir. Outra pipa, que deve ser do Samuel, aparece,

lá adiante, pra cima do barranco. Zu sobe seu pião para cruzar com ela. Tião me chama para

ir com eles. Vou atrás. A pipa perseguida é cortada e passa a ser disputada por Tião e Zu.

Ambos falam que a pipa estava no seu aparo. Afinal, Zu pega a pipa cheia de linha e de

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cerol. Tião desafia: “Põe no alto aí, Zu !Agora sou eu e você!” Zu fala que o pião dele está

rasgado.

Estamos todos numa parte mais plana e gramada que antecede o barranco que vai dar na rua

da construção abandonada. São 18:00 e o sol está pelando. Lalá me pede para tomar conta

da pipa dela, enquanto vai tentar achar umas goiabas. Os meninos sobem o barranco e eu

aguardo Lalá. Agora, eles estão lá em cima, na beira do meio fio. Momentos de calmaria.

Só consigo ver a pipa de Tião no alto. Mais baixas estão as pipas de Zu e de Lipe . Lalá está

demorando. Vou a sua procura. Tião grita para que eu veja a sua pipa lá no alto. Ele havia

me falado que, no último dia de férias, iria soltar toda a sua linha até o fim. Os meninos

chamam esse movimento de “batizar a linha”. Lalá volta da caça às goiabas e me chama

para subir com eles. Atrás de nós, na primeira estrada, chega um carro com 3 rapazes

tocando música bem alta. Mais adiante, estão vindo o Pino e o Moreus. A música de hip-

hop que toca no carro agrada os meninos que ficam cantando: “Quem gosta de fazer

fumaçaaaa. Cadê o isqueeeiro?”

Os meninos dizem que estão doidos para pegar Samuel porque ele pega as pipas que eles já

apararam.

Os rapazes do carro dão meia volta e retornam pelo mesmo caminho. A música continua

alta e agora eles piscam os faróis insistentemente. Não consigo captar a mensagem deles, se

é que há alguma. Talvez só queiram aparecer, marcar presença, posição, sei lá. Coisa de

adolescente.

Finão aparece e eu lhe dou a linha prometida. Fiquei com a impressão de que ele duvidou

até o último momento se eu de fato a traria. Outros carretéis que trazia comigo foram ainda

ofertados ao Pino e ao Moreus. Os meninos contam histórias dos maiores que ameaçam os

menores para tomar pipas. Dizem que é prática corrente não respeitarem os menores.

Lembro da minha conversa com a mãe de Viny, ontem, imaginando um certo cavalheirismo

com relação aos menores, na brincadeira de pipas. Parece que isto não ocorria em todos os

momentos.

Algumas pipas voam. Os meninos correm para pegar. Outra pipa é cortada e Tião me pede

para segurar o “escamoso” que eu chamo de “impávido colosso” enquanto ele participa da

caçada. Gus volta para pegar a linha de Finão que ele estava ajudando a enrolar. Descemos

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para a rua de baixo. Só restamos eu e o Tião no morro, observando o movimento e torcendo

para o vento virar de direção e jogar as avoadas na zona de aparo dele.

Finão re-aparece e senta-se ao meu lado. Me olha por uns instantes como se estivesse me

investigando e por fim fala quase que em tom de uma confissão: “Fátima, você é uma

pessoa legal. Gosto de você!” Disse-lhe que era recíproco e que gostava muito de todos

eles, meus parceiros de pesquisa. Finão desce, depois de catar uma avoada e vai para o

terraço de sua casa. Tião combina com ele: “ Cruza aí que eu aparo e te dou!”

Passa um casal ensinando a filha a andar na bicicleta sem rodinhas.

A D. Zezé vem subindo o barranco com uma pipa vermelha que deve ser do Viny. Mas

algo a faz desistir ou adiar a subida.

A pipa azul que cortou Finão também é cortada e quase cai em cima de Viny, o neto da

vovó Zezé. Tião fala que está ouvindo a voz do Finão, pedindo ao Viny a pipa azul de

volta, fazendo de conta que ela era dele. Hoje foi o dia de os meninos entregarem os podres

dos outros. Parece que estão me dizendo que nem tudo é o que parece. É guerra! E das mais

sujas. A regra que impera é a do vale tudo, da lei do mais forte.

Tião se distrai e logo há uma investida por parte de um dos piões que estão lá embaixo.

Lipe põe a pipa azul de plástico no alto e incentiva Tião a cruzar com a outra que se insinua

toda hora. Tião está cauteloso, pois está lisinho. O Lipe está inconformado, pois a sua pipa

plástica não tem linha suficiente para um confronto. Há duas pipas à direita que estão se

enroscando. Parecem aqueles dois cachorros cruzando, de tanto que tentam.

A pipa perseguida pelo Finão voou e caiu na mesma rua de onde havia saído da primeira

vez que subiu. Tião diz que é bem feito: “Bate, mas leva no mesmo dia!”

Aparece uma pipa verde que deve ser do Donald ou de um dos irmãos Dondon e Chester.

Ela vem pra cima da pipa do Tião que tem chamado muita atenção das outras porque “o

escamoso” está muito bem feito. Quando ele vai chegando perto, a linha estanca e acontece

uma verdadeira correria da Lalá e do Lipe. Voltam sem nada, pois o próprio dono recupera

a avoada. É mesmo do Donald que a põe no alto de novo.

Lalá atiça a pipa da rua de baixo: “Dá de cima! Dá de cima!” Ela está apostando no

confronto e tenta convencer Tião a entrar no cruzo de qualquer jeito.

A pipa da rua de baixo investe contra a pipa de Tião. São duas agora: a verde vinda de cima

e a outra vinda das ruas de baixo. Tião recua e deixa as duas entrarem num cruzo. A pipa

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verde estanca e Lalá vai na sua direção para apará-la. Tião tem medo que não respeitem a

Lalá caso ela conseguir pegar a pipa. A pipa, afinal, era do Pino. As 3 pipas entram num

cruzo e 2 delas caem. Os meninos sobem para negociar de quem será a linha e de quem será

a pipa.

São 19:00 e o sol já se pôs. É a hora da correria, das pipas avoadas do final da tarde.

O pai de Zu aparece outra vez. Parece procurá-lo. Está com cara de poucos amigos.

Pergunta a Tião se ele sabe onde está o filho e este responde que ele já desceu há muito

tempo.

Depois da emboleira, Tião retoma o “escamoso”. Ficamos mais algum tempo adiando o

fim de tarde que marcava também o final das férias. Chegou a hora de dizer que, chegando

o tempo das aulas, a pesquisa com as pipas pararia. Não gostaria de me sentir responsável

pelo desvio das atenções devidas às tarefas escolares com o incentivo à brincadeira.

Certamente, perderia a aliança feita com os pais.

Estou pensando na pergunta que a Irme me fez por e-mail mandado lá da França que me

provocou muito: se eu fiquei satisfeita com a minha pesquisa de campo. A rigor, a pesquisa

de campo não estaria terminada pois ainda está prevista a temporada de pipas do meio deste

ano. Mas fiquei pensando que a questão do campo é um pouco mais ampla do que o espaço

do território que eu percorri acompanhando os meninos na brincadeira de pipas. Como diz

o Spink, naquele texto nosso conhecido, o campo se tece a partir de um conjunto de coisas,

emerge de uma rede de circunstâncias que incluem a pesquisa bibliográfica, as observações,

as entrevistas, os acontecimentos marcantes que têm relação com o tema, enfim, essas

coisas todas que ele chama de campo-tema. Depois, tem o fato de não termos uma atitude

apriorista, com uma hipótese prévia para ser testada; nem a posteriorista, só dando conta do

que aconteceu, tendo a caixa preta já se fechado. O que estamos propondo é nos fabricar

como pesquisadores juntamente com a nossa pesquisa. Aí fica difícil responder se estamos

ou não satisfeitos. Vai depender da nossa voracidade ou do que fizer falta quando

estivermos costurando o texto da tese. Taí, acho que eu ainda não sei responder. Mas a

provocação está me ajudando a pensar mais. Mais uma reflexão para fazermos: Quando

parar? O que é suficiente? Quantas entrevistas? Quanto tempo de Diário de campo? È

etnografia? É o quê?

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09/07/06

Fiquei um mês mancando, sem poder apoiar a planta do pé direito no chão por conta de

uma verruga plantar que foi removida cirurgicamente no início deste mês. Assim, perdi

uma boa parte desta temporada de pipas que começou quase que conjuntamente com o

período da Exposição de Pipas. Neste mês de maio, foi promovida uma Exposição de Pipas

pela Brinquedoteca da UFSJ em parceria com o Museu Regional de SJDR como parte da

estratégia de atrair o jovem visitante para um ambiente pouco visitado pelas gerações mais

recentes e, especialmente, pelas camadas populares. Além disso, havia o desejo de

compartilhar os dados da pesquisa com a comunidade, o interesse da brinquedoteca de

divulgar seus trabalhos e o da CEMIG em patrocinar mais um evento em que pudesse

divulgar suas cartilhas sobre a necessidade de seguir as normas de segurança para evitar

acidentes com as pipas. Em exposição, havia pipas enormes, coloridas, com formatos pouco

usuais: em forma de caixa, de estrela, de carambola, de diamante, de grandes pássaros, de

aviões, reproduzindo a Igreja do Bichinho.... Um artista emprestou um enorme banner com

pipas estilizadas que penduramos nos balcões do prédio do Museu. Tinha uma pipa chinesa

em forma de dragão, pendurada bem na porta de entrada. Outra, com as cores da bandeira,

atravessando “os céus” da sala de exposição comemorando os tempos de Copa do mundo.

Além das pipas, os biombos serviam de suporte para a parte da pesquisa que dava conta de

informações da origem da pipa, da chegada da pipa ao Brasil, dos deslocamentos feitos

pelos continentes, seguindo vários tipos de rota, da utilização da pipa nos vários inventos

científicos; havia quadros de artistas locais e reproduções de imagens pesquisadas na

internet em sites nacionais e estrangeiros ilustrando festivais e outras obras de arte que

tinha a imagem da pipa. As pessoas mais velhas se demoravam mais lendo os fragmentos

literários que falavam das pipas, enquanto os mais jovens ficavam mais curiosos para saber

se as pipas grandes realmente podiam subir. Tinha também um foto clip com as fotos dos

festivais patrocinados pela CEMIG a que eu tinha comparecido, assim como as quase 40

obras do Portinati que tinham a pipa ou a brincadeira de pipas como motivo. Bateu o

recorde de visitações em relação às outras exposições. Os meninos perguntavam muito e,

sempre que eu podia, estava lá para conversar com eles e ouvir seus comentários. Os

adultos também tiveram um comparecimento expressivo: pais acompanhando seus filhos,

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avós acompanhando seus netos, pares de amigos relembrando seus tempos de menino,

grupos de meninos interessados. Numa das conversas de que participei, dois conhecidos

comentavam a expressão “dar carioca” que era algo equivalente do termo “tentear”. Só que,

no Rio, esse movimento de tentar por a pipa no alto se dava mais no sentido vertical, pela

falta de espaço. Outros termos foram acrescentados ao nosso “Pequeno Dicionário dos

Soltadores de Pipas” que também fazia parte das atividades interativas que estavam na

exposição. O mural de contribuições também ficou repleto de poemas, pequenas histórias,

desenhos, pequenas pipas e até um bordado em ponto de cruz de uma menininha soltando

pipa na praia.

Três dias após a cirurgia, mesmo com o pé inchado, sem poder caber no tênis, não pude

resistir à tentação de encontrar meus pipeiros. Estava um domingo belíssimo com muitas,

mas muitas pipas no ar, apesar de estar acontecendo o último jogo da Copa do Mundo.

Encontrei Binho na esquina numa conversa animada com o seu pião:

“-Você me sacaneou. Te dei força e você caiu!” (a pipa tinha caído e ficou enrolada nos

galhos das árvores) “Sai daí! Ô, Carlinhos, vai ali que meu braço não chega lá, não!”,

Binho pede socorro. Carlinhos desenlaça o pião de Binho, prestando ajuda não porque

Binho tem os braços encurtados pela talidomida, mas porque trata-se de um companheiro

de brincadeira e vizinho com quem sai para viver as aventuras de soltar pipas.

Chega Bri e diz que me viu na exposição, dando notícias da sua visita ao Museu, no dia da

abertura. Ele compunha uma turma levada pela professora de educação física, uma das

minhas entrevistadas, que utiliza a pipa como deflagradora de seus projetos pedagógicos.

Os meninos se queixam da dor e da ardência dos cortes feitos pelas linhas cheias de cerol.

Binho se desloca para a rua de trás e logo detecta a quantidade de pipas que estão por ali.

Diz que é assim que ele gosta. Na minha frente, ficaram o Bri, e os irmãos Carlinhos e

Léozinho. Os 4 meninos vieram juntos para soltar pipas no alto deste morro.

Logo, a água que haviam trazido terminou e eu me ofereci para encher a garrafa deles.

Quando voltava com a água, encontrei o Sheik, o Pino o Coxinho e o Ióió. Eles queriam

uma pipa roxa que estava engatada num dos arbustos de minha casa e também tinham sede.

Trouxe mais água pois havia ainda mais meninos com sede.

Os cruzos estavam animadíssimos. Tinha uns 9 meninos: 4 de um lado e 5 do outro lado da

quadra, cada grupo próximo a uma esquina. Tive a impressão de que não podendo ir até

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eles, eles estavam vindo até mim. No horizonte, só à nossa frente, tinha umas 12 pipas.

Pino começou a discutir com Coxinho que fez alguma coisa para que ele perdesse a linha.

Esse tipo de querela é muito comum de acontecer, pois, por distração ou falta de cuidado,

eles acabam se atingindo mutuamente. Aí, se instala a discussão que não dura muito tempo,

pois logo estarão com o foco da atenção em outra coisa.

A grande emoção são os cruzos e a caça das avoadas que estão passando.

Passa um motoqueiro de entrega de bebidas, perguntando sobre a localização de uma rua.

Afinal, é dia de jogo e as pessoas se reúnem também para beber diante da televisão.

Conheço finalmente o modelo de antena para evitar que o motoqueiro seja ferido pela linha

com cerol. São duas hastes de metal presas ao guidon da moto que se erguem até acima da

cabeça do condutor e fazem um gancho nas pontas superiores, servindo como anteparo que

chega antes de qualquer das partes do corpo do motoqueiro. Uma idéia simples e

engenhosa. Um dos meninos me informa que há outros modelos. Registro a antena com um

desenho no meu bloco.

Mais adiante, nesta rua em que estamos, pára um carro cheio de adolescentes. Tocava

Black Eyed Peas e Sérgio Mendes, indício das misturas arriscadas e bem sucedidas na

música pop. Um casal deste grupo sobe a rua transversal e vai fazer contato com um grupo

que está num fusca vermelho na esquina da casa da Raquel. Já soltaram pipas e agora

parecem recolher seu material para ir fazer outra coisa. Os 5 meninos que estavam comigo

no início e tinham sumido já estão outra vez ao meu lado, enquanto outros 2 estão no meio

de um lote, misturados ao material de uma obra enorme que começou a subir neste mês que

passou.

Os meninos se espalham e se juntam. Armações, rabiolas, latas com linha enrolada se

esparramam pelo chão. Julinho, um menino branquinho que conheci hoje reclama de sede e

levanta para procurar a garrafa d’água, enquanto os outros ficam conversando e fazendo

manobras. Sheik chega perto, olha meu bloco de anotações e exclama: “Tudo isso?” O

outro menino a quem apelidam de Shreck quer saber do que se trata. Comento com os meus

conhecidos que eles ainda não me apresentaram aos novos amigos e que por isso eles ainda

não sabem o que eu estou anotando. Outro menino, apelidado de Bigodão, também fica

interessado: “É com ela (referindo-se a mim) que vocês iam soltar pipa?” Sheik responde

que sim e eu acrescento que era quando íamos lá para o campinho e para o morro da Caixa

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D’água. Sheik constata que está fazendo um ano que isso aconteceu. Foi nas férias de julho

do ano passado. Os meninos começam a comentar que viram as fotos da pesquisa na

exposição do Museu. Alguns se impressionaram com a pipa chinesa, em forma de dragão.

É nesse momento que tenho finalmente um feed-back da presença deles na exposição de

pipas. Todos receberam convites nominais, extensivos às famílias, mas nem sempre eu

estava no Museu e assim, não sabia ao certo de quem compareceu. Os meninos sentam no

meio fio para conversar. Enrolam as linhas, avaliam as armações, desembolam as rabiolas.

Seu Zé Carlos, o vigia noturno passa com 4 meninas, duas delas suas netas, que vai levando

para casa.. Os meninos começam a brincar de cruzinho, proposta do Sheik. As pipas voam

baixas e os meninos ficam elétricos: gritam, pulam, correm e brigam. Pino diz que não quer

brincar, mas entra na brincadeira. Logo se aborrece com o Coxinho com quem eu acho que

tem uma rixa. Coxinho esbraveja: “Crianção! Estudar que é bom você não quer! Não sabe

brincar!” A brincadeira de cruzinho pára uns instantes para que a briga se resolva. Pino se

afasta em silêncio. Coxinho reclama que sua pipa está andando de lado, “graças ao

Vampineudo (referindo-se a Pino)”. Este reclama que sua pipa também está ruim. Pino

entra num cruzinho com Tanaca e corta um pedaço da rabiola dele. Coxinho apara a

rabiola. Surge um pião “maneiro” que um rapaz vem trazendo rua acima. Pino pergunta se

a linha dele tem cerol. O rapaz vem empinando a sua pipa enquanto sobe a ladeira e

perguntando de quem são as pipas que estão no alto. O quarteto Binho, Bri, Léozinho e

Carlinhos reaparece, completando agora 11 meninos na encruzilhada das duas ruas.

Coxinho sugere “fazer um nike”, ou seja, uma manobra mais ou menos parecida com o

símbolo da Nike, passando por baixo da pipa com quem se está num cruzo.

Alguém comenta com Julinho que eles acharam que eu era tia dele porque ele também era

muito branquinho. Coincidentemente, Julinho tem o mesmo apelido que eu tinha quando eu

era criança: “Gasparzinho”, o fantasminha.

Voa a pipa do Bigodão. Ele corre para tentar recuperá-la. Voa outra de alguém lá da rua de

baixo. Outra turma corre para apanhá-la. Assim, os meninos exercitam sua metis, esse tipo

de inteligência prática aprendida de caçadores e pescadores que mistura faro, sagacidade e

senso de oportunidade.

Julinho volta de uma das caçadas. Sente sede. Digo-lhe que pode pedir água lá em casa para

encher a garrafa. .São quase 17 horas. A lua cheia vai despontando de um lado e o sol vai

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ficando fraquinho do outro lado do morro. Ouço os gritos de Binho do outro lado do

quarteirão. Passa um casal com um menininho com Síndrome de Dawn. O garoto pára e se

encanta com o meu boné. Depois, pega minha caneta. Enquanto isso, Julinho volta com a

garrafa cheia de água. O sol começa a se por. O tempo vai ficando fresquinho. Dá pra

contar umas 20 pipas no ar, no nosso ângulo de visão. Está na hora das pipas avoadas, das

pipas com as rabiolas enroscadas.

Aparecem 3 crianças de bicicleta: eram 2 meninas e um menino, acompanhados pelo pai.

Reconheço-o: é um comerciante que faz ginástica na mesma academia que eu. Pergunta se

estou dando uma relaxada. Explico sobre a minha pesquisa e me surpreendo com o que

digo a ele: “O ensaio da vida está todo aqui”

As pipas continuam lá. Os meninos se separaram. Aqui do meu lado, há 3 e, mais adiante,

2. As pipas estão altas. Eles esperam algo, uma pipa avoada resultado de algum cruzo.

Sheik se despede dizendo que vai mais para baixo, onde há mais oportunidades.

Schreck sobe a ribanceira com um recado para o Bigodão: “Sua mãe está mandando você

descer agora!” E parecia mesmo uma ordem.

Na volta pra casa, as idéias continuavam a dançar na minha cabeça. “Ensaio da vida?” Por

que não a própria vida? Por que o brincar é visto como o ensaio de algo futuro se o aqui e

agora é a própria vida se tecendo? Todas as habilidades requeridas na ação de soltar pipas

já fazem parte de um repertório de ações em que cada um exerce e exercita em tempo real o

que se faz necessário na brincadeira. As estratégias, as brigas, os deslocamentos, vão

ocorrendo ao sabor das necessidades, nada previamente programado. Aliás, o que não há,

na brincadeiras de pipas, é um plano muito previamente elaborado. Se compararmos a

outras brincadeiras tudo, ou quase tudo na brincadeira de pipas é devir, acontecendo ao

sabor do próprio vento, ou pela chegada de outras pipas. Mas, nesta falta de um “plano”

anterior, os meninos tentam fazer o seu melhor, se superando a cada momento, construindo

seu domínio sobre este objeto impossível. As pipas são um desafio constante. Alguns, como

Binho, conversam com elas como se fossem gente. Outros mantêm conversação através dos

movimentos que imprimem na linha. Deliciam-se em provocar certos efeitos. Parece tão

mágico como quando o bebê percebe que, com seu movimento, pode produzir efeitos no

móbile acima de seu berço, puxando uma cordinha. Só que, na pipa, outros actantes entram

em cena para complicar essa relação de causa e efeito que não é nada linear: a altura em

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que a pipa está, a intensidade do vento, uma falha na construção do objeto, a qualidade da

linha são fatores que podem enviesar a suposta linearidade desta relação.

De qualquer forma, penso que não podemos olhar a brincadeira só como um ensaio para o

futuro. Esta seria uma forma completamente adultocêntrica de pensar (como bem me

chamou atenção o Fernando), como se a infância devesse sempre espelhar a vida dos

adultos, como se nada pudesse ser recriado. Este espelhamento até pode acontecer, mas não

como uma fatalidade e sempre como uma possibilidade de reinvenção. Traduções ocorrem

possibilitando o surgimento da novidade. Muitas práticas que observo na brincadeira de

pipas trazem marcas longínquas das práticas tradicionais, ensinadas de pai para filho numa

aprendizagem informal, calcadas na transmissão oral. Outras, entretanto, já apontam para

mudanças que vão ocorrendo no próprio fazer da brincadeira, no intercâmbio entre os

vários grupos, seja no linguajar, seja nas estratégias. Um exemplo são as expressões que

vão aparecendo e se difundindo em cada região. Basta um menino sair de São Paulo para

passar as férias em Minas Gerais (ou vice-versa) para que a utilização de um novo termo

passe de um grupo a outro, de uma região a outra. Note-se que a pipa é um folguedo que

ocorre predominantemente nas férias de julho, pois a incidência das chuvas, pelo menos

nesta região, é menor. Outro exemplo no vocabulário dos pipeiros que presenciei, nesta ida

a campo, foi a expressão “dar um nike”. A logomarca de um tênis famoso servindo como

inspiração para batizar uma manobra em que a pipa faz um movimento circular por baixo

para pegar a adversária. Demais!

Hoje, havia algumas meninas no morro, acompanhando seus namorados. Esta presença foi

detectada pelos meninos que eu acompanhava como algo para causar estranheza: “Lugar de

menina não é no morro. Eu é que não trazia minha namorada aqui para o morro” eram

expressões que denotavam que o morro não é um lugar facultado às meninas

desacompanhadas. Sua presença só faz sentido se estão sob a proteção de familiares adultos

ou num raio próximo a uma referência segura.

11.07.06

Eram umas 15:00 quando saí de casa. Logo encontrei um dos meninos que estavam com o

Binho no domingo passado. Disse-me que estava à procura de linha. Lembrei que havia

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recolhido um bom pedaço de linha com cerol, fui buscar e dei a ele. Me dirigi para a

esquina e subi a rua transversal. Ali, encontrei um grande grupo em que estavam Pino, Zu,

Bri, Fungo e mais dois meninos, um maior e outro menor, de chupeta na boca. O Diley

também estava por lá e eu o cumprimentei. Havia uma máquina fazendo um corte no

terreno de um lote da rua onde pastam os cavalos. As pipas estavam altas. As latas com

linha estavam recolhidas sobre a grama e também havia duas pipas deitadas com suas

rabiolas imensas. Pino me pede água. Digo-lhe que toque a campainha lá de casa que

alguém lhe dará. Mais um pouco e ele pergunta as horas e quer saber se os outros não

querem ir para o campinho.

Um menino maior, que está com Bri, diz que não tem nenhuma vontade de aprender a

soltar pipa. Declara que não acha nenhuma graça. Só está acompanhando os amigos. Chega

mais um menino com uma pipa que ganhou numa caçada e, mais adiante, vem Binho que

passa por mim como se eu fosse invisível. Ao todo, já são uns 10 meninos na encruzilhada.

Tem um caminhão que fica passando por nós levantando poeira. Está tirando terra de um

ponto e levando o aterro para outro lote da mesma quadra. Três dos meninos desaparecem

da minha vista. Os outros 7 ficam. Lá vem caminhão. Manobras de um lado, manobras do

outro. Os meninos já se acostumaram com a minha presença. Hoje, sinto-me

particularmente invisível, pois ninguém fala comigo, até que Zu pergunta se meu pé

melhorou. Eles sabiam do problema com o meu pé, pois em algumas ocasiões, pediam água

lá em casa e perguntavam por que eu não estava indo fazer pesquisa.

Tem pipas no campinho. Do lado de cá, como estão todos no mesmo grupo, não presenciei

nenhum cruzo. O céu está limpo de nuvens e dá pra ver as linhas brancas fazendo contrate

com o azul do céu. Os meninos estão pensando em sair deste lugar, vão subindo a rua e

temo não poder acompanhá-los. Binho e Léozinho ficam na esquina, mais próximos de

mim, mas logo se afastam. Lá vem caminhão repetindo a mesma manobra.

Resolvo ficar no mesmo lugar. Binho se chega para conversar. Senta no meio-fio, ao meu

lado e batemos um papo sobre as chances de emprego e as vantagens garantidas ao

deficiente físico. O menino que subiu com ele e que declarou não gostar de pipas se chega

também e diz que nunca tinha vindo ao morro. A mãe tinha permitido, mas o pai não podia

saber. Seu apelido era Ratão, mas ele diz não saber porquê. Aqui, no meu bloco, os

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meninos só podem ser identificados por apelidos que, depois, são um pouco mudados

também.

Logo, tem um monte de meninos sentados ao meu lado. Bri, Pino, “o da chupeta”, o

Léozinho, Pedro II, colegas do Téo estão ao redor. Um caminhão de entrega de material

passa fazendo uma manobra e o carona cumprimenta Binho. Diz que ele tinha que soltar

pipa na época dele para ser cortado. Pino fica atraído pelas pulseiras que o Pedro II tem no

braço e lhe propõe trocá-las pela armação de uma pipa.

Aparece uma pipa voada na hora em que Binho fala da namorada. A pipa vem caindo até o

Leozinho a retomar. Diz o Binho que a pipa era dele mesmo. Tinha sido cortada antes e

agora volta para o dono. Assim, o Léozinho, que estava sem pipa, podia voltar para a

brincadeira. Binho volta para me contar que havia se inscrito no quadro do Faustão “Se vira

nos 30” para desenhar o pica-pau. Pediu para desenhar no meu bloco. Autografou e colocou

uma dedicatória: “Para Fátima com muita dedicação e carinho. Beijos Binho”. Fez o

desenho em 10 segundos, dizendo que pretende ficar o resto do tempo deixando que as

pessoas olhem para “o artista”. Logo aparece um dos irmãos lourinhos que mais parecem

surfistas. Era o Dondon indo devolver um DVD. Ficamos conversando algum tempo. Ele

falou que ajudava o irmão que era técnico eletrônico e só soltava pipa depois do trabalho ou

nos fins de semana. Depois, seguiu seu rumo. Fiquei sozinha, pois os meninos tinham se

deslocado mais para a frente.

Passa uma pipa voada e os meninos se bandeiam para o meu lado. Não deu pra ninguém

desta turma pegar a avoada. Ficou para o pessoal lá de baixo. Outra pipa é cortada e

aparada. O Binho xingou de “Filho de uma égua!” e pede ao Ratão para segurar a sua pipa

enquanto ele “tira água do joelho”. Os meninos reclamam de sede e das mordidas de bicho

nas pernas. Como tinha mesmo que ir em casa, me ofereci para trazer água para eles.

Quando voltei, estavam Zu, Binho, Guto, Leozinho e um outro (sempre com uma mochila

nas costas) esperando que alguém “entrasse”, mas ninguém vinha. Os meninos estão de

novo num movimento de “juntar”. Binho se senta ao meu lado com o Léozinho. Os outros

ficam pra lá e pra cá. Pino diz que não vai à escola, que vai dizer à mãe que foi suspenso e

aí, ele pode vir para o morro soltar pipas. Os meninos riem incrédulos e balançam a cabeça

em sinal de reprovação. Depois, Pino chama “o da chupeta” e diz que vai descer: resolveu

ir para a escola, mas assume que vai matar aula. Guto e ratão estão perto. Binho se afasta. A

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pipa de Bri voa. Passa Samuel com uma pipa que ele vai balançando com o vento enquanto

anda. Vêm 4 meninos menores descendo a rua. Passa o “da mochila” dizendo que vai ali

“bater um cruzo”. Os meninos ficam olhando onde está a concentração de pipas. Binho diz

que mudou de idéia quanto a sair daqui, pois, se as pipas voarem, o vento, que está ao nosso

favor, vai trazê-las para cá. Diz que “tem que ser velhaco” e aproveitar as oportunidades.

Guto passa dizendo que conseguiu catar a pipa do Bri. Leozinho pergunta se ele vai

devolver, ao que ele responde: “Claro, a gente veio junto”.

Binho fala que, por medida de segurança, ele fica onde está e espera que as pipas voem

para o lado dele. Se cruzar, arisca ser cortado.

O sol está se pondo atrás do morro. É hora de circularem os trabalhadores que saem das

obras para voltar para suas casas, é hora das pipas avoadas, as pipas do final de tarde.

Vem vindo o Téo, os dois Pedros e outro menino que não lembro o nome. Este último vem

reclamando que pediu um cano ao moço da obra e ele lhe deu um caninho à toa. Ficam os 4

ao meu redor, relatando aventuras. Falam de uma atividade chamada “le parkour” em que

pulam de lugares altos. As aventuras são muitas. Estão todos com as camisetas do avesso

para que não apareça muita sujeira para as mães. Binho grita com entusiasmo porque sua

linha cortou uma pipa. Mais pipa voando e deixando a meninada doida.

A mãe do Téo aparece dizendo que a mãe do Sacu, o que eu não me lembrava do nome

ainda há pouco, ligou mandando ele descer.

Os meninos se reúnem ao meu redor. São uns 8. Parecia um congresso. Todos

conversavam, olhavam para o alto, se divertiam com a fala do Binho e com o seu cerol

invencível. Ele mostra a linha, deixa tocar para sentir o quanto está cortante.

Depois, novo movimento de diáspora. Ficam só os meninos menores contando suas

aventuras com o que chamavam de “le parkour”. Mostram como pulam de lugares altos:

muros, escadas, morrinhos, morrões. Parecem a vontade com a minha presença. Um deles

diz que eu devo conhecer a mãe dele. E, de fato, conheço mãe e pai. O pai é comerciante, a

mãe faz ginástica comigo e moram na Rua Santo Antônio, lugar onde morei e deixei

excelentes vizinhos.

Começa a escurecer e, apesar da chamada da mãe de Téo, eles continuam falando e não

fazem nenhum esboço para ir embora. O assunto agora é os tênis que calçam. Querem saber

onde comprei o meu que é igual ao do pai de um deles. Ficamos assim até que o grupo

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resolveu descer a ladeira. Téo foi para a casa dele e os três meninos foram descendo a rua

em direção às suas casas. Nesse trajeto que íamos fazendo juntos, encontramos mais

meninos em cruzos de pipas. Os três meninos pararam para ver. Ainda correram para tentar

pegar uma avoada. O menino da mochila cortou e aparou uma pipa que parecia querer cair

lá em casa. Mas foi puxada em direção à obra do vizinho. Avisei o menino que lá tinha 2

cachorros, mas ele não acreditou e tentou pular o muro assim mesmo. A cachorrada deu

sinal e ele desistiu.

Já estava escuro. Aconselhei os meninos a irem para casa. Eles resolveram descer a

ribanceira para pegar um atalho. Estavam com duas pipas novas e muito bonitas. Pensei que

não queriam passar pelo grupo de prováveis “piratas” que estava na esquina, já que eram

menores. Em compensação, teriam que ter cuidado para não quebrar suas pipas, pois a

descida era muito íngreme.

Mais um dia seguindo pipas. É impressionante como meu humor muda quando venho para

o campo. Como testemunho, posso dizer que meus males voam para longe quando venho

observar os meninos: as dores ficam menores, o espírito mais leve.

Por que a pipa sobrevive?, volto a me perguntar. Talvez porque, além de ser um esporte

ultra barato, ela envolve uma série de circunstâncias que fazem interagir com muitos

elementos, humanos e não humanos, numa rede bem articulada, urdida por fios visíveis e

invisíveis. As pessoas estão articuladas quando soltam pipas, coisas acontecem, aventuras

se tecem, o mundo fica mais interessante.

12.07.06

Quando saí de casa, percebi que havia um grupo de 4 meninos no aterro a que chamei de

pipódromo. O Téo estava saindo de casa com sua pipa verde e amarela. Ele me falou que

não podia ir pra lá e me deu como argumento a rede elétrica muito próxima daquele local.

Subimos a rampa na esperança de que os 4 meninos o fizessem depois. Na construção da

rua de trás, estavam o Ióió, o Pino, o Coxinho e o Dezinho. Este me avista de longe e

exclama: “Ô, Fátima, há quanto tempo, hein?!” Passa por mim correndo e diz que nos

falamos depois porque ele tem que ir caçar uma pipa voada. Aparece um menino sobre a

laje. Acho que é o Tanaca. Neste momento, tem umas 7 pipas no céu. Uma delas é do Téo,

2 são dos meninos que estão no aterro, 3 são do pessoal da laje e outra está distante e eu

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não consigo identificar onde está plantada. São 15:00, o sol está forte e sopra um vento frio

de vez em quando. Estou relativamente distante dos dois grupos, mas eles sabem que estou

ali, observando-os. As pipas dançam no fundo azul. Há 2 vermelhas, uma com as cores da

bandeira alemã, 1 preta, 1 branca, 1 verde e 1 azul e branca. Dezinho volta com a pipa

verde e amarela que acabou de catar. Vem se aproximando e pergunta se eu não conheço

mais os amigos. Explico que os cumprimentei quando cheguei, mas eles estavam muito

entretidos tanto com as pipas que estavam no alto como com aquelas que estavam caindo.

Quis saber se eu não estava mais fazendo pesquisa. Expliquei o problema que estava tendo

no pé. Ele me conta que havia pegado duas pipas que tinham caído lá em casa. Digo-lhe

que soube de notícias dele pelos outros com quem já tinha encontrado, que eles tinham me

contado as novidades do seu novo trabalho e da compra de um celular. Ele se surpreendeu

dizendo que eu estava “sabendo das coisas”.

Sem querer, Dezinho corta a rabiola de Pino que fica furioso. Eles ficam querelando por um

bom tempo. Estavam muito juntos, a linha acabou esbarrando e cortando.

Sacu, da turma do aterro, vem reclamar que a pipa que Dezinho estava soltando era dele.

Referiu-se ao objeto como sua ex-pipa.

Fungo vem subindo a ribanceira. Está com uma roupa bonita, toda amarela, inclusive o

boné. Comento, tentando fazer contato: “Todo de amarelinho, hoje, hein Fungo?!” Ele ri,

me cumprimenta e vai passando.

Ouvem-se gritos: “Ô, filha das unha! Filha da mãe!”, “Puxa, aí, Ô!”, “Ô preto, viado!”

Os meninos estão espalhados e gritam uns para os outros.

Passa um grupo de 5 pessoas que parecem turistas. Dezinho exclama, ao mesmo tempo

curioso e surpreso: “Ó, turista aqui?!” Chama a atenção dos outros meninos. Mais tarde

descubro que os turistas são um grupo de americanos do intercambio que a UFSJ está

fazendo com uma universidade do Novo México. Três deles estão hospedados em casas de

professores que moram aqui no Residencial São Caetano.

Dezinho senta para conversar. Tanaca aparece subindo a ribanceira e Dezinho comenta que

o pai dele sumiu no outro dia e todos tiveram que ir procurá-lo. Estava pescando num lugar

chamado “Bambuzinho”, onde tem um rio, atrás do Morro da Caixa D’água.

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Há uma certa calmaria: algumas pipas desceram, os meninos sentam, conversam, olham

para cima. Um dos rapazes que está montando um taipá na obra vizinha passa por nós e

desce a ribanceira.

Fungo está lá embaixo com mais 4 meninos. Os meninos que estavam na laje descem para

se juntar ao grupo. Dezinho me convida para descer. Reluto em andar grandes distâncias

pois meu pé ainda não está recuperado. Mas não resisto. Dane-se o pé. Vou mancando e

fazendo o caminho mais longo, mas chego lá. Na rua de baixo está um grupo grande: Guto,

Tião, Pino, Tanaca, Ájax, Binho, Bri, Dezinho, Ióió, Coxinho. Estamos todos sentados no

meio-fio. De vez em quando, um se levanta para enrolar a linha, outros estão com a pipa no

chão. Binho reclama do fedor da cola. Diz que desse jeito, vai matar até urubu. Chegam

mais 2 rapazes e também reclamam: “Nossa Senhora!” Alguém pede para tampar a garrafa

do líquido fedorento. Fungo também se chegou ao grupo.

Guto vai soltando a linha e vai passando pela mão cheia de cerol: “Fecha esse vidro,

viado!”

Dois meninos correm outra vez lá pra cima. É assim sempre: sobe, desce, junta, separa, vai,

volta. O movimento é constante com intervalos para reunião. Dezinho passa correndo. Tem

4 na ribanceira e oito aqui por perto. Tem uma lata envolvida com uma meia que eu acho

que é do Binho. Por baixo, linha branca, nova. Por cima, linha com cerol.

Os meninos agem como se eu não estivesse ali. Será que fiquei invisível? Os meninos

conversam, eu anoto. Como sempre, contam histórias.

Um dos meninos reclama que tem uns alpinistas na sua perna. Refere-se aos carrapatos e

aos micuins, bichinhos enjoados que mordem e deixam coçando.

Um menino fala que viu um rapazinho com uma pipa onde estava escrito Ióió,

provavelmente ex-pipa do Ióió. Outro pergunta: “Foi na aula hoje, viado?”

As férias de julho estão definitivamente encurtadas. Não passam de 15 dias. Mas nestes

últimos dias do primeiro semestre, parece que as aulas cumprem a função de preencher o

calendário letivo, quase não se dá matéria nova. Os meninos sabem disso.

Dois meninos descem a ribanceira com as pipas recolhidas e rabiolas enroladas.

Tião vem passando. Pergunto onde está a sua pipa. Ele diz que “agarrou ali, veio um

bacana e levou”. Binho reclama do seu short. Diz que toda hora agarra e que ele está

estressando. Três meninos ficam fazendo rabiola, prendendo fitinhas que já estão cortadas

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numa sacola. Ájax está com a pipa no ar e logo se afasta. Binho se prepara para colocar sua

pipa no ar com a ajuda de Coxinho. Tião fala para ele que corte logo outra pipa que está no

alto. Binho acha que o pião ficou pesado. Começa a ventar forte. A pipa de Binho sobe bem

alto. Chegam 2 rapazes, cada um vindo de uma direção e se cumprimentam. Binho começa

a evocar os santos: “Virgem Maria! N.S.Aparecida!” Tião e Coxinho estão sentados no

meio fio a uns 10 metros de mim. Observam Binho. Lá de baixo, ouvem-se gritos dos

meninos que soltam pipas nas lajes de suas casas. Tião fala que é o irmão de Tanaca.

Começa a pegar fogo no mato de um lote próximo. Uma parte da paisagem começa a

ferver. Tião incentiva Binho a cortar outra pipa. Eles aguardam o Ájax que deve trazer mais

cerol.

Binho fala que quase todo o seu cerol foi embora com o tantão de linha que descarregou.

Tem mais fogo no mato. Nesta época, o mato pega fogo com a menor faísca, pois está seco

devido à falta de chuvas.

Gritos dos meninos lá no vale: “Ê, pangaré!” A pipa de Binho desce com ajuda de Tião e

Ajax. Coxinho observa no meio-fio. Agora é Ájax que solta a pipa de Binho. Este reclama

que o cerol, está cortando seu braço. Os meninos gostam de exibir nos dedos os cortes

feitos pela linha do cerol.

Binho resolve subir para encontrar com os outros meninos. Passa por mim e pergunta se

vou subir. Aceito o “convite”, mas aviso-lhe que farei o caminho mais longo para não ter

que inclinar demais o pé na subida da ribanceira. Tento caminhar pelo caminho mais plano.

Duas mulheres passam por mim e ficam catando plantas.

Quando cheguei à encruzilhada, perdi os meninos de vista. Achei que tinham ido uma rua

mais à frente.Encontrei Téo e os 2 Pedros saindo da casa do primeiro. Eles me convidam

para ver uma exibição do “le parkour”. Sacu chega e se junta a nós. Pergunta se já

lancharam, quando vê Téo devorando um sanduíche. Um dos Pedros diz que sim e que ele

perdeu o lanche. Falam em ir para o Esconderijo dos Ninjas da Noite que fica no porão da

casa de Téo. Passa outra vizinha, a mãe de Samuel, com uma pipa na mão. Está com o filho

menor. Diz que o Samuel está jogando futebol e que o irmãozinho é que está se

entusiasmando com as pipas. Conversamos um pouco sobre a obra que está fazendo.

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O grupo de ninjas quer me mostrar como praticam o “le parkour”. Ficam pulando de um

enorme monte de terra, nos lotes íngremes. Eles levantam uma terra fina e solta que faz

parte do monte de aterro de onde pulam. Eles se deliciam ao provocar meu espanto.

Os meninos da pipa estão na esquina, procurando outras pipas para cortar. Não consigo

parar de espirrar, não sei se por uma reação à poeira ou se pela ação de algum resfriado

chegando. Resolvo voltar pra casa. Despeço-me dos meninos.

13.07.06

Saio e logo encontro 3 meninos em frente à obra do lado. Eram Bri, Pino e Moreus.

Cumprimento-os e pergunto se há mais meninos. Eles me informam que tem a maior galera

na esquina e que eles estão pensando em ir para o GM.

Na esquina, Pedro está entrando na casa de Téo e me cumprimenta. Diz que já vão

encontrar comigo. Na encruzilhada está a galera: Binho, Coxinho, Vito (que se parece

muito com o Téo, mas nem se conhecem), Leozinho e Pino que vem chegando atrás de

mim, provavelmente vindo de alguma caçada. Vito diz que cortou a pipa listrada que está

na mão de Binho. Tem também uma outra pipa que parece uma coruja: marrom com bolas

amarelas e um losango fazendo vezes de bico. Vito diz que é irmão de Guto. Pino diz que

se Guto encontrar o irmão aqui no morro, ele o mata. Os meninos conversam sobre pipas.

Estamos em grupo, sentados no meio fio, bem na encruzilhada. Informo-lhes de novo sobre

o Festival de Pipas que acontecerá no penúltimo domingo de julho, como parte das

atividades do Inverno Cultural promovido pela Universidade. Os meninos ficam

interessados, mas se preocupam em como vão chegar lá. Dizem que, para o transporte, não

vão precisar de uma “vaca”: para chegar lá, vão precisar de um touro com um grupo grande

desses. Alguém fala que os outros meninos vão para o GM. Pino diz que não vai, não, que

as pipas de lá já saíram que os bons cruzos estão por aqui mesmo. Binho corta mais uma e

sai gritando “Nossa Senhora!” Os meninos ficam agitados. Vito me deixa tomando conta do

seu tubo enquanto ele vai ver se pega a pipa voada. Os operários da construção próxima

ficam atentos à algazarra. Os meninos estão com seus carretéis. As linhas estão retesadas.

Fungo aparece para rolar um papo. Estou literalmente entre os meninos. Moreus e Bri estão

no GM. Os meninos fazem a identificação das pipas conhecidas à distância.

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Binho conta a façanha da cortada do pião. Diz que ele fez tudo, veio “cheio de doce” (o

cara vir com vontade, crente que vai cortar). Fungo ri dizendo que o piãozinho foi parar lá

embaixo.

Pino reclama que foi picado de abelha. Pergunta se picada de abelha mata. “Só se você for

alérgico”, Binho responde. Pino reclama que está com o pé cheio de espinhos.

Os meninos estão animados para ir para o GM, pois estão vendo “um monte de pião

maneiro”.

As pipas hoje estão contra o sol, difíceis de encarar. Binho me convida para ir para o GM,

mas desta vez recuso o convite pois não vai dar para andar até lá. Uns querem ir, outros não

querem ir. Pino, Leozinho e Coxinho ficam. Dizem que têm que ir para casa, pois hoje tem

escola. Os meninos continuam com as pipas enquanto Binho e Fungo vão subindo a rua,

rumando para o GM. Pino diz que não compensa ir lá para o campinho, pois eles vão para

muito longe. Lá, no morro do GM, a gente avista umas 6 camisas coloridas dos meninos

que estão soltando pipas. Pino fala um palavrão. Coxinho rebate: “Epa!” Eles disfarçam e

fico achando que a censura é por causa da minha presença. Os meninos se afastam um

pouco, mas deixam a garrafa d’água e a pipa de coruja ao meu lado, na beira da rua.

O morro está todo iluminado pelo sol. Tem um vento frio correndo pelo meu pescoço e

orelhas. Alguém gosta de por fogo no mato. O cheiro do mato queimado é forte. Sopra uma

rajada de vento e a pipa de coruja do Binho sai voando. Como eles a deixaram sob minha

guarda, vou atrás para resgatá-la. O jeito é prender a pipa em um galho de alecrim.

Tanaca vem chegando com a sua pipa no alto: “Onde que eles tá, esses guri? De quem que

é essa branquinha aí? Vou lá pro campinho também, meu filho”. Alguém voa cheio de

linha. “Não me avisou que tinha cerol, seu prego!” As duas pipas, de Tanaca e de Leozinho,

voam juntas. Só Coxinho está no ar. Tanaca sai com a linha enrolada na lata. Leo enrola a

sua linha. Alguém catou a pipa de Tanaca, lá para baixo.

Os meninos, sem pipas, fazem um jeito de que vão embora. Dizem que vão deixar os piões

que estão guardados comigo. Tem uma pipa preta que o Vito deixou e tem a pipa de coruja.

Pino vem voltando com um pião maneiro. Os meninos falam que o Pino é sortudo. Ele

pegou “ali”. Pino pergunta as horas porque deve ir para a escola. Coxinho também se anima

para ir a escola. De longe, lá do campinho do GM, dá para ouvir os gritos de Binho. Pino

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põe o pião no alto e gosta dele. Acha que vai guardá-lo para amanhã. Os meninos estão

num movimento de saideira. Dizem que vão, mas vão ficando.

Os operários começam a sair da obra. Pino e Coxinho se desafiam. Coxinho quer a rabiola

do pião de Pino. Um brinca e o outro quer cortar. “Vou te cortar, meu filho”, Pino provoca.

Tem vários meninos correndo e gritando pelo morro. Na minha rua, vem vindo mais 2

correndo ladeira abaixo. Mais adiante, estão 3 meninos no alto de um monte de terra,

jogando terra uns no outros. Fico achando que são os meninos praticantes do “le parkour”.

Eles não me vêem. Entro em casa porque está muito frio e me sinto febril.

(Fico 3 dias de molho por causa de uma gripe muito forte. Depois, tenho que ir ao Rio para

acompanhar a minha mãe numa cirurgia)

24.07.06

Está uma calmaria. O ar está seco e não há qualquer indício de brisa. Chequei com binóculo

para ver se não haveria alguma pipa no ar. Tudo parado. Nenhuma árvore se mexe e

nenhuma pipa foi vista nas redondezas.

25.07.06

São 15:00 e, ao contrário de ontem, está soprando um ventinho bom apesar do sol forte.

Hoje já dá para ver movimento no campinho, onde os meninos, além de soltar pipas,

também jogam bola. Ia seguir para lá, mas vi uma pipa preta no lugar onde sempre encontro

os meninos e fui ver quem era. Logo, encontrei Binho e Leozinho que estava sem pipa.

Ofereci-lhe uma pipa que havia caído no meu jardim e de imediato ele a colocou no ar,

voltando à brincadeia.

Binho reclama que o vento está em rodamoinho, sem direção certa. Diz que nesses casos,

dá trabalho porque a pipa fica sem força e o pipeiro tem que ficar tenteando com a pipa, até

ela chegar numa altura em que o vento esteja mais estável.

Leozinho aproveita o pião rasgado que lhe dei e vai tentar cortar outras pipas na rua de

baixo.

Binho explica que para perceber a direção do vento é só observar para que lado a roupa está

indo, como se a roupa fosse uma biruta. O pião dele finalmente pegou força e já está bem

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alto. À nossa direita, tem 5 pipas. Binho exclama: “Nossa Senhora! Que que é isso??! O

Leo cortou a azulzinha. A linha dele está bem afiada!”

Vejo 2 meninos correndo na rua de baixo. Não consigo identificá-los. O Leo volta vitorioso

com seu azulão e sua linha cortante. Comenta que foi só encostar. Pergunto ao Leo se os

rasgos da pipa não atrapalhavam a sua subida. Ele diz que não. Fala que vai trocar o lado da

linha, pois tem que ficar o melhor cerol para a frente. No GM, dá para ver 3 pipas plantadas

no campinho.

Leo reclama de dor no braço de tanto puxar a pipa do Binho que engatou em algum lugar.

Binho vem voltando finalmente com a sua pipa na mão. Leo pergunta se ele se machucou.

Noto que os meninos tem o maior cuidado, ou carinho, com o Binho. Ele fala que seu pé

esquerdo está destroncado e que está doendo demais. Machucou o pé quando jogava

futebol. Leo coloca sua pipa no ar outra vez. Binho enrola a linha. Sua pipa descansa ao

meu lado com a rabiola esticada.

Os operários conversam na obra. Mais um lote ocupado, menos espaço para soltar pipas na

quadra pois logo haverá rede elétrica. Fico imaginando este bairro daqui a uns dez anos.

Terá uma configuração completamente diferente da que tem hoje. Talvez não exista mais

um campinho que funcione como pipódromo, ou mesmo para jogar futebol, para andar de

bicicleta e fazer piquenique. Se estas anotações forem lidas por algum dos meninos, eles

certamente vão lembrar dos doces anos de uma infância que não volta mais.

Comecei a ficar indisposta e tive que deixar os meninos. Tinha a sensação de que o almoço

não queria parar no estômago. Me despedi e expliquei a minha saída.

(Peguei uma virose, dessas que ficam andando pela cidade. Vômito, diarréia, dor de cabeça,

risco de desidratação. Mais três dias de molho. Estou sem sorte nesta temporada.)

28.07.06

Saio de casa pensando nos ninhos de passarinho feitos com linha e fitinhas de rabiola, em

como os passarinhos entravam nessa interação com as pipas, para além de compartilharem

com o seu espaço aéreo.

Encontro com Leozinho e Zu. Este me pergunta se eu tenho linha ou pipa para dar a ele e

confesso o quanto estou desprevenida. Leozinho me fala que já perdeu as pipas que eu

havia dado a ele no dia em que passei mal.

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Começo a refletir sobre o que seria um estudo verdadeiramente etnográfico: ser um deles,

sentir como um deles. Seria isto possível?

Leozinho corre para aparar uma avoada e me deixa segurando a sua lata com linha

enrolada. Paro para sentir a pipa. A linha parece pulsar como se estivesse presa a um

coração movido pelo vento: tum-tum, tum-tum!

Depois que Leozinho voltou, ele me mostrou como fazia a pipa mergulhar com puxões e

como fazia ela levantar dando linha. Fico um tempo com ele e pergunto-lhe por que não

vamos nos juntar ao grupo na rua de baixo que hoje está bem grande. Ele argumenta que

sua pipa está do outro lado do cabo de energia elétrica e que teria que baixá-la para se

deslocar até lá.

No caminho para a rua de baixo, encontro Moreus que me parecia estar perdendo a carinha

de menino, do ano passado para cá. Depois, vi Pino se aproximando. Ele estava catando

pipas no GM. Disse não ter encontrado nada..

Vim caminhando pela rua dos cavalos que estava cheia de terra fina, solta por causa dos

cortes que os tratores andavam fazendo. No repórter da TV, andaram falando que o índice

de umidade da cidade estava quase tão baixo quanto o de um deserto. Havia um cheiro de

chá, ou melhor de mato seco, no ar.

Encontrei Tião deitado na calçada, olhando para o céu, à sombra de um arbusto.

Conversamos como velhos amigos. Depois, fui cumprimentar um povinho miúdo que

estava em frente à garagem, junto com Pino e com um menino que soube ser de BH. Este

fala que logo vai voltar para a capital. Pergunto-lhe se ele vai estar presente ao Festival do

Papagaio promovido pela CEMIG todo primeiro domingo de agosto. Mais adiante, estavam

Binho, Fungo e mais 2 rapazes. Entre os miúdos, estavam Bu, W. Caetã e mais dois que eu

não sei o nome. Ao todo, entre os grandes e pequenos, havia uns treze meninos. Um dos

meninos menores ainda estava de chupeta na boca. As pipas do grupo de cá estavam em

cruzo com as pipas logo abaixo da ribanceira. Houve uma emboleira, linhas se cruzaram.

Tem muito mais meninos do que pipas. Ouvem-se gritos de “Pega! Pega!” Os meninos

gritam, correm e levantam mais poeira. Festa para os carrapatos! Binho reclama que eles

não param de subir na sua perna.

Moreus desce a ribanceira com uma rabiola hasteada num galho de árvore. Os meninos

colocam no ar suas novas conquistas. Mais meninos estão subindo pela ribanceira, para

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chegar à rua em que estamos. Reconheço a vovó Zezé e imagino que um dos meninos que

está com ela é o neto Viny. Eles vão para um ponto além do lugar onde estamos. Agora,

estão todos os meninos mais ou menos reunidos na mesma porção de rua. Um dos meninos

reclama que foi arranhado no pescoço. Tião também está próximo. Moreus comenta que, se

tivesse cerol, cruzaria com uma determinada pipa. Uns meninos estão sentados na calçada,

outros estão em pé. Tião está armado com um galho de árvore, provavelmente a espera de

uma avoada.

As linhas estão sobre a minha cabeça. Há 6 pipas no ar. Fungo comenta sobre o

comportamento de alguns dos meninos menores, do que serão quando crescerem. Tião fala

que “se o garoto é muito ‘peitudo’, não vai pra frente, não.” Os maiores fiam comentando

sobre o quão pestes são alguns dos menores.

Fungo avista o Tático Móvel se aproximando: “Lá vem os homens!” Todos os meninos

fazem menção de recolher suas linhas que estão cheias de cerol, pois ficam ameaçados de

perdê-las para a polícia. O carro vem fazendo poeira, os policiais vêem os meninos, mas

dobram na esquina anterior a nós para alívio de todos.

Cai uma pipa cheia de linha e os meninos acham que foi na casa de Tanaca. Alguém

comenta que eles não moram mais ali, desde que o pai foi preso e a mãe não teve mais

dinheiro para pagar o aluguel.

Os meninos continuam nas manobras. Lala está entre nós, depois que avisou a passagem do

Tático Móvel. Momentos de silencio. Bri ajuda Binho a fazer os nós do tem-tem de uma

pipa e a desembolar a rabiola. Pino e 2 miúdos retornam com um pião roxo, contando a

aventura da caçada. Pino está ofegante e se senta no meio fio, ao meu lado. Finão faz o

mesmo. Também está cansado. Os meninos comentam sobre o cerol das pipas deles e das

dos outros. Algumas pipas são identificadas no alto.

Uma pipa foi cortada. Aliás, 2. Sai um monte de meninos correndo na direção das avoadas.

Graúdos e miúdos, todos saem para a caçada. Uma das pipas é aparada por Moreus e a

outra se torna objeto de disputa entre os meninos que saíram correndo. Os que ficaram

olhando querem saber quem catou. A pipa de Moreus que vem puxando a avoada também

cai e ele tem que sair correndo e gritando que ambas estão no seu “aparo” para evitar que

outros apanhem.

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De repente, o barranco ficou colorido com as camisetas dos meninos que sobem para caçar

as pipas que voam. Binho pergunta se “acabou o vento” e Moreus responde que “tá fraco”.

Uma pipa listrada vinha vindo na nossa direção. Um dos rapazes movimenta sua pipa para

apará-la, mas alguém pega antes. Os rapazes comentam a performance de Lala, correndo

atrás das pipas. Os menores resistem em dar as pipas por eles aparadas aos maiores, mas

depois acabam cedendo em troca de proteção. Lala se senta ao lado de Fungo, que parece

protegê-la.

Os meninos conversam sobre o vento: se vai bater, se não vem mais. W está esperando uma

oportunidade para levantar sua pipa listrada. Passa um casal andando devagar. A senhora

me cumprimenta. Eles sentam um pouco adiante para olhar o movimento. Creio que devem

ser conhecidos dos meninos, pois estes não os estranham. Binho consegue por sua

listradinha no ar, depois de um tempão desembolando a rabiola.

Tem uns galos cantando fora de hora. Pino volta com 3 piões, um deles rasgado. Moreus

reconhece um deles como tendo sido seu. Por aqui, as coisas funcionam assim: a posse é

fugaz.

Moreus experimenta um pião aparado e não gosta da sua performance. Dá para um dos

meninos. Depois, desiste da doação e só passa a rabiola, ultra colorida.

Os meninos estão conversando na calçada. A rua está toda colorida com os pedaços de

papel rasgado, com as fitinhas das rabiolas e com as próprias pipas que estão no chão

esperando melhores ventos. Dois rapazes se retiram, depois mais 2. Saem combinando de ir

fazer cerol. Os maiores pedem pros menores, de forma marota e oportunista, para trazerem

cola madeira e vidro.

Ficaram Bri, Binho e os menores que eram uns 5. Tião e Lala sumiram. A vovó Zezé

aparece de volta com os 2 meninos. Tinham feita a opção de não ficar junto com o grupo.

Um dos menores embola a sua rabiola na linha de Binho.

As pipas agora estão baixas. Binho reclama que Bri o cortou. Os meninos saem correndo.

Binho pergunta: “Pra que correr? Pode tirar a mão!” Binho está zangado. Bri diz que não

foi ele, foi o Zu e este confirma. As linhas estão emboladas. Tem 5 meninos menores

(chamo de menores os que têm uma estatura mirrada, apesar de alguns terem 9 anos), mais

Binho e Bri. Um dos meninos diz que precisa ir embora. O casal que estava sentado ali por

perto sumiu e eu nem percebi quando eles saíram.

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Lá vem um menino de camisa vermelha descendo o barranco com uma pipa. O tempo está

esfriando. O menino é o Leozinho que está voltando para se encontrar com os irmãos Binho

e Bri. Os meninos começam a descer o barranco de volta para suas casas. Bri vai baixando

sua pipa sob os olhares de Zu, Bu e Lala. Nos despedimos.

No caminho de volta, pude olhar o campinho do GM cheio de meninos. A maioria estava

jogando futebol e uns poucos estavam soltando pipas. O movimento parecia animado. Creio

que aproveitavam os últimos raios de sol do dia e ou últimos dias de férias que sempre são

poucos no mês de julho.

29.07.06

Penúltimo dia de férias. Sábado. O tempo virou. O céu está cinzento, mas cheio de pipas

porque tem vento soprando. Parece que está chegando uma frente fria. Do meu quintal,

ouço gritos animados informando que a brincadeira está boa. Vou para a rua de baixo de

onde acho que os gritos estão vindo. Encontrei W no caminho, deslocado do grupo, indo na

direção em que o vento poderia levar uma avoada. Os meninos estão espalhados. As lajes

das construções novas, normalmente obstáculos por causa dos trabalhos durante a semana,

funcionam hoje como plataformas de lançamento. Aproveito para dar uma olhada. Em cima

de uma das lajes, está um homem mais velho com 5 meninos, 2 mais velhos (15 a) e 3

menores (7/9 a). Faço contato e descubro que só um deles é filho, os outros são colegas.

Deixaram 3 pipas novas sobre um monte de areia. Há uma sendo preparada e 4 no ar. Os

menores se oferecem para segurar, enrolar, pegar quando cai, como ajudantes.

Sigo adiante. O vento está frio. Passo por 2 meninos brincando sobre um monte de areia.

Na rua de baixo, encontro uma galerinha: Binho, Bri, Tanaca, Moreus e Daniel, filho do Sr.

Paulo. Cumprimento a todos e pergunto se o vento está bom. Parece que sim, mas as

respostas são pouco entusiasmadas. Um dos meninos fala que sua pipa agora que está

pegando força.

O celular de Binho toca. Moreus quer saber se “é menina?” Com o decorrer da conversa,

percebe que não é e exclama um “aaah!” O celular volta para o bolso do casaco de Daniel,

onde estava guardado. Moreus consegue cortar uma pipa que ele identifica como sendo “lá

de baixo!” Gritos de comemoração. Moreus pergunta algo sobre o show de hoje (Zeca

Pagodinho no Parque de Exposições). Binho comenta o feito de Moreus.

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Tem 6 pipas à nossa frente, mas só 3 estão plantadas aqui entre os meninos.

Binho me pede uma folha de papel do meu bloco. Quer escrever alguma coisa. Ofereço-lhe

o bloco enquanto ele me deixa enrolando linha na sua lata. Ele queria deixar mais um

desenho no meu bloco. Desta vez, foi um Frajola. Subitamente, Moreus percebe o perigo,

pois uma pipa investe contra a pipa de Binho que está no ar. A ação é imediata e bem

sucedida. A pipa invasora foi cortada para o deleite do grupo.

Moreus comemora 4 pipas cortadas e prevê 4 meninas com quem vai ficar no show. Para

ele, hoje, as pipas cortadas funcionam como elemento para adivinhação. Binho fala que, se

fosse assim, tinha que ter ficado com umas 5 meninas no show de ontem (do Nei

Matogrosso). O assunto agora são as meninas e os contatos que fazem com elas pelo

celular.

Bri faz xixi contra o muro de uma casa, sem se importar muito com a minha presença. Ao

contrário de um episódio parecido que vivi ali mesmo, não achei que Bri estivesse

querendo me intimidar. Como eu estava de costas para ele, achou que não estava sendo

visto e sentiu-se a vontade.

“Olha o ventão! Nossa Senhora da Perereca!Vai, tira sua pipa! Ai, ai, ai! Cuidado, meu

filho!” são os gritos de Binho. As pipas sobem, pegam força e ficam altas sobre um fundo

cinzento. Moreus comenta que o vento melhorou e assim, só sai daqui umas 7 horas. Bri diz

que precisa rezar para tudo dar certo. Também tem que ir tomar banho. Imagino que se

refere ao contato com as meninas no show de hoje para o qual há muitas expectativas.

Moreus comemora mais uma pipa cortada: “5 pipas! 5 muié!” Mais gritaria. Bri quis ter

certeza de que eu estava anotando a brincadeira das pipas e das “muié” e veio conferir no

que eu havia escrito.

Tião chega com um pião listrado. Meigo como sempre, me cumprimenta. Pingos de chuva

são pressentidos por Binho. Moreus acha que vai cortar a sexta pipa, mas foi alarme falso.

Se a coisa funciona como previsão para as meninas que vai ter logo mais, à noite, esse

alarme falso quer dizer que uma delas vai deixá-lo na mão. Tião baixa a sua pipa para que

ela não se molhe. Os meninos estão em atividade, apesar do chuvisco. Tião aposta que não

chove, porque a serra não está branca. A chuva será passageira.

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Está uma confusão, um corta-corta. Binho voa, Bri estanca. Binho volta dizendo que está

sem sorte. Tião fala que é só ele botar a pipa no alto que começa a chuviscar. Binho reforça

a idéia de que a chuva é passageira: “Quando vai chover mesmo, a serra fica branquinha!”

Binho solta a pipa de Daniel. Eles se tratam de “viado” pra lá, “viado” pra cá. A intenção é

capturar outras pipas para poderem continuar brincando. Conseguem outra pipa.

Atrás de mim, no barranco que desce, tem 3 meninos correndo, provavelmente caçando

pipas. O mato está baixo depois da queimada. Dois galos ciscam na área. Sinto-me

investigada por um deles.

Outra nuvem de chuva. Moreus comenta que, se chover na hora do show, vai virar a maior

lama. O movimento das pipas diminui um pouco. Os meninos se refugiam enfileirados e

abrigados pelo portão da garagem da casa onde parece não haver ninguém. São 7 meninos

encostados, mas por pouco tempo, pois logo se espalham. Só 2 pipas estão no alto. Corro

para perto dos meninos para me refugiar da chuva. Tião comenta um gol de carrinho visto

na TV, enquanto as outras pipas são recolhidas. A conversa muda para quantas pipas cada

um cortou. As pipas já estão com as rabiolas enroladas, o que é sinal de recolhimento. Se

despedem dizendo que vão ver o filme do Jack Chan. Ficam ainda 3 meninos que também

fazem menção de ir embora. “Se vocês vão, eu também vou!”, falo pra eles. “A gente se vê

amanhã!”

30.07.06

Domingo. Último dia de férias. Saí por voltas das 15:00. Já havia pipas no céu e algazarra

dos meninos. O Sheik já tinha tocado a campainha lá de casa, pedindo água. Pediu

desculpas por incomodar. Disse a ele que acabaria de arrumar a cozinha e iria encontrá-los.

O cachorro, a quem eu chamava de Chicão e de quem eu havia cuidado depois de um

atropelamento, aproveitou a minha saída para escapar pela enésima vez, quando passei pelo

portão. Sumia uns dias e aparecia pedindo abrigo com cara de coitado. Mas sua paixão pela

rua e sua vocação de andarilho lhe faziam sair a qualquer portão aberto. Deixei que

seguisse seu rumo, mas, ao contrário, ficou me seguindo e aos meninos. Alguns deles o

reconheceram como sendo o Gambá, o cachorro dos “Irmãos Melequentos” que moram lá

embaixo.

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Na rua de trás, tinha uns 12 meninos, alguns meus conhecidos. Lá na rua de baixo, mais uns

6. O vento estava ótimo depois que a chuva baixou a poeira. Da turma lá de baixo, alguém

gritava “Dá de cima!” “Dá de cima!” Chega o Angu e fala: “Olha lá a pipa que era minha!”.

Não fosse pelo cinza das nuvens, o céu estaria colorido. Os meninos fazem menção de ir

para o campinho. Fico na dúvida se desço para a rua de baixo, ou se vou atrás dos meninos

no campinho. Eles ficam na esquina, desembolando a rabiola e as linhas, andando devagar,

até que aparece uma avoada e eles vão correndo para tudo que é lado tentando ficar na área

de captura. Resolvo ir para a rua de baixo, já que estive lá ontem. Assim, poderia encontrar

os mesmos meninos que estava acompanhando durantes estes dias.

Havia um grupo de carro, soltando pipas, com um funk tocando alto. 6 rapazes e um

menininho com um gorro protegendo as orelhas do frio. Mais outro grupo de 5 rapazes e

alguns meninos. Ao todo, tinha uns 20, divididos em bolinhos. Encontrei Tutem, Dezinho e

Tanaca. Havia uns homens falando bobagens, querendo me intimidar. Um deles passou por

mim e disse de forma provocativa: “Oi, dona! Ta boa?”, ao que respondi “Boa tarde! Como

vai?”

Subi a ribanceira de volta para a rua de trás para encontrar com Dezinho, Tanaca, Bu e mais

dois meninos. O vento estava dando com as pipas para o outro lado. Um dos meninos me

olha com estranheza pois ainda não me conhece. Os meninos comentam sobre o show de

ontem. Dizem que ficaram com a roupa completamente enlameada. A chuva transformou o

barro do Parque de Exposições em lama. Há dois rapazes atrás de nós, certamente daquele

grupo que estava tocando música alta no carro. É a primeira vez que os vejo por aqui.

Uma pipa voa, mas os meninos não conseguem apará-la. Os meninos resolvem se deslocar

para um local onde haja mais pipas. Vou atrás deles. Dezinho me dá o braço como se

fôssemos dançar quadrilha e diz: “Vamos, mãe!” Moreus se junta a nós procurando por sua

pipa. Daqui dá para olhar o campinho. Há meninos jogando bola e soltando pipas. No nosso

trajeto, cruzamos com três figuras estranhas ao bairro, ou melhor estranhas de tudo. Depois,

encontramos Coxinho, Sheik e finalmente Fungo. Este pergunta pelos outros. Um dos

meninos diz que alguns estão no campinho. Logo aparece Leozinho, Bri e Binho. Estava

um grupo enorme, muitas pipas no céu, pelo menos umas 12. Dezinho pede para eu ficar

com a pipa dele para que ele corra atrás de uma avoada: “Mãe, me ajuda aqui!” Sempre que

fico segurando uma pipa, acontece alguma coisa. Desta vez, o pião de Dezinho dá uma

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emborcada e cai atrás de uma casa. Confusão geral. Os meninos se deslocam, gritam,

xingam, correm. Dá pra avistar grupos de meninos em diferentes partes deste bairro e

também do bairro vizinho, o GM, todos soltando pipas. As avoadas do GM estão vindo

para cá por causa da direção em que o vento está soprando hoje. Coxinho aproveita o

momento em que ficamos sós para pedir alguma pipa que, por acaso, caísse lá em casa.

Dezinho consegue catar uma pipa que vem lá do GM. Grande parte dos meninos some.

Devem ter ido caçar pipas lá, morro abaixo. De vez em quando, tem pipa avoada e aparece

menino de tudo quanto é lado. Aparecem Tião, Binho, Gui, voltando não se sabe de onde.

Em 7 meninos descendo a ladeira e mais 4 ao meu redor. Tião fala que “hoje o vento está

bom, mas faltou o sol para esquentar”.

No GM, vê-se um aterro onde há 6 meninos soltando pipas. Os meninos daqui se deslocam

outra vez para a rua de trás e me chamam. O convite vem do menino que conheci hoje:

“Vombora, moça!” Sinto-me na obrigação de levar as pipas de Dezinho que ficaram na rua,

provavelmente contando com a minha guarda. O grupo está outra vez reunido no meio fio

à beira do barrancão entre a rua de trás e a rua de baixo. São uns 15 (meninos e rapazes),

mas apenas 6 pipas. Binho me chama para mostrar como o seu pião está longe. Dá pra ver

só um pontinho preto no céu. Comentei que tinha a maior barriga na sua linha. Fungo disse

que essa era uma barriga de trigêmeos, de tão grande que estava. Binho disse que dava até

para tocar um violãozino. O clima parecia mesmo de confraternização. O cachorro se

deitou aos meus pés, fazendo o maior doce. “Ele realmente pensa que é meu!”, comento

com os meninos. Passa uma moto na maior velocidade e o cachorro corre atrás dela,

investindo contra a perna do motoqueiro que perde o equilíbrio e fala uma porção de

palavrões. Sem muita esperança, tento chamar o cachorro de volta e ele atende. O

motoqueiro desaparece na poeira da rua. Deixo os rapazes e me dirijo para a esquina.

Instantes depois, o rapaz da moto volta e investe para cima do cachorro que começa a

rosnar para ele. Tira uma arma do bolso da jaqueta, remove a trava com um barulho que me

fez gelar e ameaça descarregar no cachorro. Não houve muito tempo para pensar, mas tive

que intervir pedindo ao rapaz que não fizesse aquilo: pelos 15 meninos que estavam

brincando na maior alegria, pelo coitado do cachorro, por mim mesma. A única coisa de

que tinha certeza era que não queria uma execução no meio da brincadeira. Os meninos

menores desceram o barranco com medo. Os maiores ficaram ao redor, atentos a um

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desfecho. Digo ao rapaz que é só um vira-lata, traumatizado por um atropelamento de moto

e prometo-lhe que o cachorro não vai mais incomodá-lo. O rapaz, ainda muito exaltado, diz

que, se isso acontecer, mata ao cachorro e a mim também. Monta na moto e vai embora.

Levo o cachorro embora e o tranco em casa.

Me encontro outra vez com os meninos. O motoqueiro passa outra vez por nós com vontade

de matar alguém e pergunta: “Prendeu o cachorro, tia?”, ao que eu acenei afirmativamente.

Descemos o barranco onde o resto do grupo estava. Lá embaixo, ouvimos as buzinas da

procissão de São Cristóvão. O sol se põe atrás do morro e ilumina o barranco. Agora são 11

meninos sob a luz do crepúsculo. As pipas estão baixas. Outras ameaçam subir. Talvez

amanhã só haja as pipas dos “fominhas” porque as aulas iam recomeçar nesta segunda-

feira. Sheik e Coxinho vêm voltando. A rua está cheia de meninos. Faz meia hora que a

procissão está passando na Rua São João e o barulho das buzinas dos carros continua

ensurdecedor. Hoje os meninos não querem ir para casa. “Último dia!”, eles falam.

Binho voa. Tanaca protege sua pipa e Binho o chama de “guarda-louça”. Diz que o tempo

das pipas acabou. Mas logo saem atrás de outro cruzo. Os meninos a quem encontrei mais

cedo estão voltando do campinho e se juntam ao grupo. Uma pipa é cortada. Gritos. Os

meninos aproveitam os últimos raios de sol. Dezinho engata o pião em algum lugar e os

meninos se mobilizam para resgatá-lo. Muita gritaria junto com a estratégia de resgate da

pipa de Dezinho. Ainda há uma pipa no céu. Começa o movimento de saideira. Arranjam

uma pipa, compõem com uma rabiola nova e vão literalmente caçar aquela que ainda

resiste. O cruzo promete grandes emoções. Mas as duas acabam voando. Sem pipas no céu

e a noite chegando, a temporada se encerra. Me despeço dos meninos. Na semana em que

as aulas recomeçam, só os “fominhas” vão por as pipas no alto.