tese calbino cap. 4
TRANSCRIPT
-
7/24/2019 Tese Calbino Cap. 4
1/18
136
4 ECONOMIA SOLIDRIA: UMA TENTATIVA DECONTRAPONTO LGICA DE DOMINAO BUROCRTICA
Ao realizar uma reviso conceitual sobre as concepes que permeiam o tema EconomiaSolidria, observa-se que no somente existe uma diversidade de concepes entre autores,
como ainda no h um consenso sobre o que seja a Economia Solidria. Do ponto de vista
cientfico, observa-se a coabitao de diferentes representaes, correntes e concepes, as
quais se apoiam em ideologias distintas.
Cruz (2006, p.6) ressalta que um dos motivos da no consensualidade o fato de ser uma
expresso conceitual em disputa, cujo significado objeto de viva polmica, no qual [...]
aqueles que defendem a utilizao da expresso no coincidem no seu sentido, e aqueles que a
criticam, obviamente, no coincidem tambm em suas crticas.
Neste sentido, propomos no captulo apresentar a diversidade conceitual que permeia o tema,
recorrendo s concepes de alguns dos principais autores latino-americanos e europeus que
estudam a temtica Economia Solidria. Dentre eles: Paul Singer, Jean Laville, Jos Corragio,
Luiz Razeto, Frana Filho, Luis Gaiger; Marcos Arruda, Tauile, Lia Tiriba, Euclides Mance,
Renato Dagnino, Quijano, Gabriel Kraychete, Eme; Lisboa, Rosinha Carrion e Carolina
Andion.
Alm de situarmos as diversas concepes que permeiam o campo, ao mesmo tempo iremos
nos posicionar sobre o que entendemos por Economia Solidria e estabelecer um paralelo com
outras alternativas em contraponto aos modos de dominao burocrtica. Conforme visto no
captulo dois da Tese, se a burocracia um sistema de dominao social que reproduz seu
prprio modo de gesto, a heterogesto, neste captulo temos por objetivo sustentar a
Economia Solidria como uma possibilidade de contraponto ao sistema de dominao
burocrtico.
4.1 Origem do termo Economia Solidria
consensual, ao revisar a literatura, que o termo Economia Solidria recente. Todavia,
surgem interpretaes diferentes quando se busca compreender por quem e quando o termo
foi cunhado. Frana Filho (2002a, 2002b) relata que o termo foi utilizado pela primeira vez
-
7/24/2019 Tese Calbino Cap. 4
2/18
137
em 1992 na Frana por Jean Louis Laville e Bernard Eme, relatando que atravs deste termo,
estes autores visavam dar conta da emergncia e desenvolvimento recente de um fenmeno de
proliferao de prticas socioeconmicas, chamadas de iniciativas locais na Europa. No
cenrio acadmico, observa-se em 1993, na Revista Travail, um dossi designado Economia
Solidria escrito por Eme, Laville, Caille e Alain, dentre outros pesquisadores franceses e
1994, um livro organizado por Laville com o ttulo Lconomiesolidaire une perspective
internationale.
Todavia, Soares e Gomes de S (2004) parecem discordar que o tema teve exclusividade na
Frana, abordando que o prprio Laville relatou que o conceito de Econmica Solidria havia
sido trabalhado a partir da dcada de 1980, quase que simultaneamente entre pesquisadoreseuropeus e latino-americanos.
Lechat (2002) parece compartilhar esta viso, enfatizando, no entanto, que a primeira vez que
o termo Economia Solidria foi cunhado, ocorreu pelo chileno Luiz Razeto, na dcada de
1980. O autor Coraggio (2002, p.40) tambm afirma que no correto atribuir a origem do
tema Frana, pois Razeto havia usado este termo antes. E ainda cita que Est se falando
que na Frana se faz um esforo intelectual para diferenciar a Economia Social, incorporadapelo Estado, dessa outra a que chamam social e solidria, mas o termo Economia Solidria j
era utilizado aqui antes (Amrica Latina).
Buscando compreender as interpretaes de Luiz Razeto sobre a expresso, o autor
recentemente afirmou que nem mesmo ele foi o primeiro a utilizar o termo. Disse que em
1980, ao participar de um frum de trabalhadores que buscavam alternativas econmicas por
meio do trabalho, uma das militantes abordou a necessidade de constituir uma outraeconomia, uma Economia Solidria. Para ele, este foi o momento em que o termo foi criado
(RAZETO, 2010).
No Brasil, ainda h a crena entre militantes e consta em alguns textos acadmicos, que a
expresso foi criada por Paul Singer em 1996. Porm, Lechat (2002) desfaz essa afirmativa ao
relatar que o termo aparece a primeira vez em portugus, em um livro de Razeto, em 1993.
Contudo, a partir de 1995 que o termo toma corpo, sendo utilizado em uma mesa redonda no
7 Congresso Nacional da Sociedade Brasileira de Sociologia e, em 1996 em uma matria
-
7/24/2019 Tese Calbino Cap. 4
3/18
138
escrita por Paul Singer para o Jornal Folha de So Paulo, intitulada de Economia Solidria
contra o desemprego. No mesmo ano, constava tambm do programa de governo do Partido
dos Trabalhadores uma proposta de Economia Solidria. A autora ainda deixa claro, que estes
no foram os nicos contextos que fizeram meno a uma Economia Solidria, dizendo que o
autor Mance (1999) relatou que propostas similares ocorreram em 1988, em campanhas
polticas na cidade de Piraquara e, em 1992 na cidade de Curitiba.
Deste modo, acreditamos que atribuir exclusividade aos intelectuais franceses parece um
equvoco, visto que os prprios franceses criadores afirmaram que o termo surgiu em
perodos similares (dcada de 1980) na Frana e na Amrica Latina. O mesmo equvoco
ocorre ao considerar Paul Singer como o criador do termo Economia Solidria no Brasil.Ademais, o que parece pouco enfatizado nesta disputa conceitual, que o termo j estava
sendo utilizado anteriormente nos meios no acadmicos.
4.2 Razes e influncias da Economia Solidria
Conforme visto no tpico anterior, a Economia Solidria emerge na literatura e nos meios
sociais a partir da dcada de 1980. Dentre os fatores que motivaram a sua apario, Pochmann
(2004), Singer (2002) e Frana Filho e Laville (2004) situam juno de pelo menos dois
pontos especficos. O primeiro diz respeito ao aparecimento de um enorme excedente de mo
de obra em escala global, ocasionado pelas crises econmicas e pelo fim das polticas de bem-
estar social. E o segundo foi a busca por novos modelos alternativos economia mercantil,
principalmente em um contexto marcado pelo fracasso das propostas polticas de cunho
social. Assim, militantes e tericos de diversos movimentos sociais crticos, encontraram na
proposta de uma Economia Solidria uma alternativa econmica de gerar trabalho e renda,
principalmente para os setores excludos da sociedade, e uma tentativa poltica de resistncia
economia mercantil.
Apesar de a maioria dos autores concordarem que esses fatores foram centrais para a sua
apario, as principais divergncias a respeito do assunto, ocorrem sobre as razes histricas e
inspiraes que influenciaram a Economia Solidria. Para Singer (2002) a Economia Solidria
apesar de ter emergido na dcada de 1980, tem sua inspirao na retomada de princpios do
cooperativismo do incio do sculo XIX, que foram inseridos por socialistas utpicos elibertrios, como Robert Owen, Saint-Simon, Louis Blanc, Fourier e Proudhon. O
-
7/24/2019 Tese Calbino Cap. 4
4/18
139
cooperativismo daquele contexto surgiu como uma resposta ao espantoso empobrecimento
dos artesos, provocado pela difuso das mquinas e da organizao fabril da produo. O
pensamento destes autores visava um novo modelo de vida e a busca pela emancipao com a
proposta de modelos alternativos de produo (SINGER, 2002). Constata-se aqui uma
similaridade nos fatores (aumento da pobreza e busca por uma nova organizao de
sociedade) que motivaram estes dois movimentos: o cooperativismo e a Economia Solidria.
Motchane (2003) tambm concorda que suas razes esto na Europa, todavia diverge do
perodo histrico, abordando que a Economia Solidria tem razes na Idade Mdia, com as
guildas e confrarias (que se constituam associaes de solidariedade entre trabalhadores) por
volta do sculo XIII.
J as concepes de Frana Filho e Laville (2004) e Razeto (2010) buscam relativizar as
razes e os fatores que influenciaram o seu nascimento, abordando que sua origem est no s
na Europa, mas tambm na Amrica Latina. Os autores abordam que na Europa, a Economia
Solidria teve suas bases nos movimentos associativistas, todavia consideram tambm
influncias de fatores anteriores, vinculados a traos de caridade e solidariedade. Na Amrica
Latina remontam s influncias das prprias relaes de metrpole-colnia na permanncia devrios traos da tradio colonial, alm de estratgias de sobrevivncia dos indgenas, dos
negros e de parcelas dos imigrantes marginalizados.
Deste modo, apesar das contribuies de Singer ao enfatizar a relevncia do cooperativismo e
dos socialistas libertrios para apresentar traos das influncias no pensamento da Economia
Solidria, acreditamos, contudo, que esta viso limitada por desconsiderar os indcios de
organizaes solidrias anteriores a este perodo. No mesmo sentido, a viso eurocntricaadotada pelo autor, no leva em considerao as demais manifestaes em diversas partes do
mundo, como a prpria influncia da Amrica Latina nas razes da Economia Solidria.
A metfora utilizada por Lechat (2002a) parece coerente para explicar e analisar as
influncias histricas que permeiam o pensamento da Economia Solidria, pois: a Economia
Solidria como um rio que suas nascentes designam de diversos afluentes.
-
7/24/2019 Tese Calbino Cap. 4
5/18
140
4.3 As vises da Economia Solidria: definies, propostas e metodologias
Um dos pontos na literatura que mais gera divergncias tericas envolve as definies e
consequentemente os potenciais e limites da Economia Solidria. Neste sentido, para fins
didticos, mapeamos as diversas concepes sobre o tema entre pelo menos trs grupos
distintos, que so: autores que defendem a Economia Solidria enquanto possibilidade de
transformao social, econmica e poltica; autores que defendem a Economia Solidria
apenas enquanto meios de gerao de renda e incluso social; e autores que negam qualquer
tipo de transformao social, econmica e poltica.
1)
Possibilidade de transformao social, econmica e polticaAo buscar compreender as definies da Economia Solidria, uma das posies mais citadas e
mais criticadas na rea a do autor Paul Singer (2002). Na sua concepo, a Economia
Solidria se trata de um programa que se fundamenta na Tese de que as contradies do
capitalismo criam oportunidades de desenvolvimento de organizaes econmicas solidrias,
cuja lgica oposta ao modo de produo dominante. Assim defende que se as organizaes
solidrias se estruturarem mais do que como mera resposta s demandas de trabalho, elas
podem se tornar uma alternativa superior ao capitalismo. A proposta de transio ocorreriapela necessidade de conciliar uma lgica de competio com cooperao, mediante a
concorrncia direta com o capitalismo, na qual as organizaes coletivas deveriam criar
produtos mais eficientes do que os das empresas mercantis para sua superao.
Arruda (2000) tambm conceitua a Economia Solidria como uma proposta ideolgica de
contraponto economia capitalista. Todavia, no como um programa, mas uma filosofia de
vida, que consiste em uma nova forma de pensar o ser humano, a economia e a sociedade
como um todo. Define como base desta filosofia, os valores da partilha, reciprocidade e
solidariedade. Como proposta metodolgica, tambm defendida por Mance (1999), prope a
constituio de redes solidrias em trs nveis: micro, meso e macro. No nvel micro estariam
s organizaes locais, no nvel meso, as redes de trocas solidrias e no nvel macro, uma rede
de aliana por um mundo responsvel e solidrio, capaz de pensar novas formas de economia.
Deste modo, a proposta conviveria com o capitalismo at que o mesmo sucumbisse83.
83No mesmo sentido, Lisboa (1999) sugere a construo de uma estratgia que articule politicamente as redesconstitutivas da Economia Solidria, que estabelea elos com os demais setores da economia, constituindo assim,um projeto de integrao ativa no mercado mundial.
-
7/24/2019 Tese Calbino Cap. 4
6/18
141
Na viso do argentino Coraggio (2002), a Economia Solidria pode ser vista como um projeto
poltico transformador, se partir do pressuposto de que possvel desenvolver outra
economia. Para ele seria um caminho para ir alm da simples reproduo da vida biolgica,
constitudo como um devir, uma reproduo ampliada da vida de todos os envolvidos.
Todavia, afirma que isto s possvel ao se modificar a qualidade das relaes dentro e entre
as unidades domsticas e o grau de interdependncia, complexidade e autonomia. Em termos
metodolgicos aborda que o caminho passa pela inverso de valores, no entanto, esta deve ser
construda de maneira democrtica e no impositiva.
O chileno Razeto (2010) parece possuir um posicionamento semelhante. O autor define a
Economia Solidria como uma realidade, teoria e projeto. Considera realidade porque jocorre no cotidiano da sociedade, independente de formulaes e propostas tericas.
tambm uma teoria por ter estudiosos envolvidos, analisando seus fenmenos, racionalidades
e propondo ideais. E, projeto por buscar propostas de transformao da sociedade.
Existem ainda autores como Tiriba (2008), Albuquerque (2003), Tauile (2002) e Santana
Junior (2007) que visualizam a Economia Solidria como um movimento social de
contraponto ao capitalismo por ser compreendida como um movimento que luta contra asconsequncias da desregulamentao econmica e do movimento global de reestruturao
produtiva (ALBUQUERQUE, 2003). Abordam que se trata de um movimento social no qual
convivem grupos sociais com diferentes concepes e projetos societrios, cujas demandas
so, em parte, atendidas pelo Estado e mediadas por instituies que do apoio e assessoria
para buscar assegurar a existncia e a viabilidade dos empreendimentos econmicos solidrios
(TIRIBA, 2008). Santana Junior (2007) define ainda como um movimento social de tipo
novo, por efetivar a convergncia entre o velho movimento (movimento operrio quereivindica rendas) e o novo movimento social (movimentos temticos que reivindicam
direitos). Em termos metodolgicos sustentam o apoio do Estado, financiando e criando
polticas pblicas para a Economia Solidria.
J na perspectiva de alguns intelectuais franceses como Laville (2003), Eme (2004) e do
brasileiro Frana Filho (2002a), a Economia Solidria no busca romper totalmente com o
capitalismo nem tampouco negar o papel do Estado. Pautada pela concepo de uma
Economia Plural, abordam que se constitui em formas econmicas hbridas, com
-
7/24/2019 Tese Calbino Cap. 4
7/18
142
caractersticas das atividades mercantil, no mercantil e no monetria, a fim de que a lgica
mercantil se submeta a outros imperativos de ao coletiva. Assim, a Economia Solidria
vista com o potencial de resgatar as questes polticas reivindicatrias, fortalecendo a esfera
pblica, porm convivendo em tenses com o prprio sistema capitalista.
2) Possibilidades de gerao de renda e incluso social
Nesta perspectiva, Gaiger (2003) aborda que a Economia Solidria tem um notvel poder de
revitalizao dos ideais emancipatrios, de formao e de convergncia de expresses
concretas. Afirma que desenvolve elementos de uma nova sociabilidade que reina uma lgica
solidria. No entanto, discorda da aposta de Singer (2002) da replicao progressiva e
contnua dos empreendimentos a ponto de algum dia predominarem sobre o capitalismo. Damesma forma, no v perspectivas na ideia de converso geral das prticas econmicas para o
princpio solidrio. Para o autor, o que se pode vislumbrar para a Economia Solidria que
possa se tornar um novo sistema de regulao com a coexistncia conflitual, em condies
mnimas de equilbrio com a economia de mercado. Posies semelhantes so defendidas por
Carrion (2002), que acredita que a Economia Solidria pode contribuir para a gerao e renda,
mas dificilmente ir transformar radicalmente a sociedade.
3) Impossibilidade de qualquer tipo de transformao social, econmica e poltica
Neste grupo de autores, encontram-se os crticos Economia Solidria. Autores como o
peruano Quijano (2002), Holzmann (2000), Faria (2009) e Bonfim (2001) negam qualquer
possibilidade de um potencial emancipador. Utilizando como base as referncias de Rosa
Luxemburgo (1986), relatam que a transio para o capitalismo por meio de cooperativas se
torna problemtica, porque as cooperativas categorizadas como organizaes hbridas, de um
lado, apresentam uma produo socializada e, de outro, esto ligadas pela necessidade detroca com o mercado capitalista para o qual vendem seus produtos. Para sobreviver em um
mercado competitivo, a cooperativa-empresa acaba por subordinar-se a um aumento constante
da explorao da fora de trabalho, estendendo a jornada, intensificando o trabalho,
diminuindo os gastos ou dispensando os trabalhadores.
Neste sentido, acreditam que os trabalhadores cooperativados acabam por impor a si mesmos
o sistema de produo ao qual pretendem contrapor-se, do contrrio o seu empreendimento
no sobrevive competio. Alm disso, os empreendimentos que conseguem sobreviver por
-
7/24/2019 Tese Calbino Cap. 4
8/18
143
meio de redes, se tornam como ilhas isoladas e pulverizadas, na quais detm a produo
apenas de produtos bsicos, significando um retrocesso economia mercantil da Idade Mdia.
J Vainer (2000) define a Economia Solidria como uma utopia experimental. Para o autor
diversos rgos como o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento e
outras agncias multilaterais ou nacionais, como a Comunidade Solidria, estariam vendendo
a ideia do desenvolvimento local como alternativa para as periferias. Para ele isto seria uma
estratgia ideolgica e poltica, que, na melhor das hipteses, pretende compensar a misria
engendrada pelo desenvolvimento do capitalismo e, quase sempre, acabar por produzir apenas
alguns mecanismos de controle poltico das populaes miserveis.
Sob essa perspectiva, o autor afirma que a Economia Solidria no se apresenta como
alternativa global ao projeto capitalista liberal. Entretanto, em certas circunstncias, as
associaes solidrias podem oferecer a vivncia, mesmo que limitada no tempo e na
qualidade. Afirma ainda que a importncia da Economia Solidria reside no fato de ela se
colocar como um elemento fundamental de combate desesperana. Por isso aborda uma
utopia experimental: porque utopia uma coisa que no existe; de outro, porque
experimental algo que se vive (VAINER, 2000, p.14).
Por fim, observam-se vises que no s negam a possibilidade de transformao social, como
apontam para a Economia Solidria como fruto do prprio capitalismo. Para Menezes (2007)
e Wellen (2008), a Economia Solidria trata-se de um projeto ideolgico capitalista que visa
precarizar as condies de trabalho. Os autores afirmam que isto ocorre propositadamente, ao
constiturem organizaes de trabalhadores que no possuem direitos trabalhistas, recebem
rendas inferiores ao mercado formal, trabalham longas jornadas e servem de mo-de-obrabarata para o mercado, aumentando ainda mais a acumulao capitalista. Alm disso,
abordam que a Economia Solidria desarticula os movimentos dos trabalhadores (que passam
o tempo todo se dedicando a sobreviver no trabalho coletivo) e nega os conflitos de classes,
por englobar em um mesmo rtulo uma diversidade de instituies e organizaes de
naturezas diferentes.
Feitas as consideraes sobre as diversas perspectivas da Economia Solidria na literatura,
acreditamos que as vises de cunho crtico, apresentam algumas limitaes sob o ponto de
-
7/24/2019 Tese Calbino Cap. 4
9/18
144
vista da anlise. As concepes que tratam da Economia Solidria como fruto do prprio
capitalismo e at se sustentam uma teoria da conspirao (como a ideia de que se trata de uma
criao estratgica do governo do Fernando Henrique Cardoso84), pecam no recorte emprico
ao caracterizarem, por exemplo, as organizaes do terceiro setor como entidades da
Economia Solidria, englobando em um mesmo conjunto conceitual, organizaes que
apresentam objetivos e estruturas diferentes.
J os argumentos que se baseiam nas crticas de Rosa Luxemburgo ao cooperativismo para
fazer uma analogia com a Economia Solidria tambm so limitados, visto que,
historicamente, a grande maioria dos movimentos reivindicatrios, e no apenas as
cooperativas, sofreram os mesmos ataques e cooptaes. Alm disso, mais do que centrar naslimitaes das formas organizacionais que esto em jogo, o que parece problemtico so as
prprias contradies internas (subjetivas) dos sujeitos envolvidos nas tentativas de
transformao, ponto ainda pouco debatido na literatura.
Interessante observar tambm a crtica de Parra (2002) sobre esse debate. O autor sustenta que
a ideia de colocar as cooperativas (que apenas uma das formas de manifestao da
Economia Solidria), como determinadas ao fracasso, uma posio que sustenta umdeterminismo econmico, no levando em considerao os aspectos positivos sob o ponto de
vista poltico, formativo e subjetivo que essas organizaes podem gerar85.
Do outro lado da moeda, as leituras marxistas daEconomia Solidria, como um contraponto
ao capitalismo, baseadas em Singer (2002), apresentam limitaes por acreditar que eficincia
econmica e competio, poderiam cooperar harmonicamente com uma lgica de cooperao.
84Autores que adotam uma perspectiva marxista como Menezes (2007) e Wellen (2008) alegam que a EconomiaSolidria aparece no perodo de 1994 a 2003, no governo de Fernando Henrique Cardoso, fruto de uma ideologianeoliberal para precarizar o trabalho. Todavia, parece difcil compreender que a Economia Solidria foi criadaapenas em 1994, visto que existiam trabalhos anteriores a esse perodo j utilizando o termo.85
A limitao ocorre em no valorizar as novas relaes sociais que se estabelecem nesse contexto, como: asalternativas de organizao; o processo auto-organizativo dos trabalhadores; os mecanismos de comunicao edeliberao criados para facilitar o fluxo de informao; a mudana da situao de empregado para empregador;as relaes com outras entidades. Assim, supervalorizar apenas as questes econmicas, a lgica monetria, semlevar em considerao as demais relaes presentes, indica um determinismo econmico nas anlises crticas,que se limitam a analisar o fracasso apenas como a no superao econmica, ou ainda a degenerao comocritrios pr-determinados. Ademais, dizer que algo degenerou envolve em tratar como uma essncia que foi
perdida, que desviou do caminho original como se o destino final da trajetria j fosse previamente definido ecerto. Tal viso leva a um determinismo de um futuro desconhecido, sem levar em conta que em outraconfigurao econmica, o dinamismo dentro das empresas, poderia ser de outra maneira, capaz de tambmgerar excedentes econmicos e de possuir elevado nvel tecnolgico (PARRA, 2002).
-
7/24/2019 Tese Calbino Cap. 4
10/18
145
No seria, pois, a lgica da competio um dos motivos que sustenta o individualismo no
capitalismo? Assim, combater o capitalismo utilizando de uma mesma lgica, parece pouco
provvel para gerar outro modo de sociedade mais igualitrio. No mesmo sentido, essas
vises de competio, acabam por replicar os modos de gesto e tecnologia presentes nas
organizaes capitalistas, no considerando as variveis histricas e polticas que permeiam
esses instrumentos86.
Para ns uma das vises que mais contempla o atual momento da Economia Solidria a
concepo de Razeto (2010), que a trata como uma realidade e um projeto. Compartilhamos a
ideia de que a Economia Solidria uma realidade, por existir independente das leituras e
teorias constitudas no cenrio acadmico. Ou seja, emergem diversas entidades coletivas quese organizam como alternativa de gerao de renda e que estabelecem outras relaes sociais.
Todavia, esta realidade hoje est inserida em um sistema burocrtico mais amplo (a
sociedade), no qual convive com outras formas de economia, vivenciando tenses e
contradies com o sistema.
E quanto s possibilidades de transformao social, somente a histria (construda por ns)
dir qual o futuro da Economia Solidria. Porm, acreditamos que possa ser um ideal e
projeto de contraponto, pois suas caractersticas e formas de manifestao apresentampotenciais que negam princpios que sustentam a dominao burocracia.
4.4 Caractersticas, atores e formas de manifestao da economiasolidria
As manifestaes da Economia Solidria, por terem suas razes nos movimentos e formas
associativistas, geralmente so entendidas na literatura por cooperativas, associaes,
empresas recuperadas e tambm novos formatos organizacionais87que apresentamcaractersticas distintas das organizaes convencionais.
86Dagnino e Novaes (2007) destinam um trabalho para analisar como a viso de Singer falha ao sustentar acrena em uma neutralidade tecnolgica, e assim, que a simples conciliao da superao tecnolgica com aeficincia econmica seria uma alternativa para a transio com o capitalismo.87Dentre esses novos formatos organizacionais observamos: o surgimento das incubadoras de empreendimentossolidrios que uma iniciativa pioneira dentro das universidades brasileiras; as agncias de apoio e fomento aosempreendimentos solidrios (ANTEAG, UNISOL, ADS/CUT); as redes de pesquisadores em mbito
internacional; as redes de Economia Solidria que controlam cadeias produtivas; as iniciativas de finanassolidrias que criaram bancos e moedas sociais; os clubes de troca que retomam princpios do escambo dassociedades primitivas; e movimentos de consumo solidrio, como manifestaes que tem se intensificado nosltimos anos.
-
7/24/2019 Tese Calbino Cap. 4
11/18
146
Neste sentido, nas concepes de Singer e Souza (2000), as caractersticas da Economia
Solidria so definidas como: posse coletiva dos meios de produo; gesto democrtica da
empresa por participao direta ou por representao; repartio da receita lquida e
destinao do excedente anual por critrios aprovados aps discusses.
Gaiger (2003) parece caminhar no mesmo sentido, definindo as caractersticas da Economia
Solidria como: autogesto88, democracia, participao, igualitarismo, cooperao no
trabalho, autossustentao, desenvolvimento humano e responsabilidade social. Com base
nestas caractersticas, para Singer e Souza (2000) e Gaiger (2003), os agentes e organizaes
envolvidos passam a ser: associaes, cooperativas, empresas ocupadas, clubes de trocas,
iniciativas de consumo solidrio, finanas solidrias, incubadoras, redes solidrias, frunsregionais e nacionais, grupos de pesquisadores e polticas governamentais que se constituem
como eixo central em defesa de uma organizao coletivista.
Na viso de Singer (2002), mais do que o formato jurdico adotado, o importante o modo
como se organizam. Assim o autor aceita as cooperativas de servio (ou cooperativas de
trabalho), que muitas vezes cumprem o papel de terceirizada de uma empresa tradicional,
desde que se estabeleam dentro de uma prpria cooperativa e possuam o controle de seumodo de prestao de servio.
J Lisboa (2005, p. 109) argumenta que a autogesto no a condio suficiente para definir
o carter solidrio de uma atividade econmica. Para ele, o que caracteriza os
empreendimentos pertencentes Economia Solidria o objetivo pelo qual so gerenciados,
ou seja, o fato deles abrirem mo da possibilidade de maximizar o lucro em funo de uma
perspectiva social e ecolgica, tendo uma postura solidria dentro das trocas mercantis(LISBOA, 2005, p. 109). Com base nesta caracterizao, os agentes e entidades envolvidos
passam a ser tambm: formas de agricultura familiar, assentamentos do MST e economias
indgenas.
Outra caracterizao mais abrangente a de Frana Filho e Laville (2004) que parecem no
centrar o ncleo da Economia Solidria apenas nas atividades econmicas. Segundo os
autores, como critrios da Economia Solidria tem-se: 1. pluralidade de princpios
88Neste mesmo captulo iremos discutir as fronteiras etimolgicas entre a Economia Solidria e autogesto.
-
7/24/2019 Tese Calbino Cap. 4
12/18
147
econmicos (utilizao de diferentes fontes de recursosmercado, poderes pblicos e prticas
reciprocitrias); 2. autonomia institucional (independncia e autonomia na gesto); 3.
democratizao dos processos decisrios; 4. sociabilidade comunitria-pblica (valorizao
de relaes comunitrias e afirmao do princpio de alteridade); 5. finalidade
multidimensional (alm da dimenso econmica, a organizao internaliza uma dimenso
social, cultural, ecolgica e poltica, no sentido de projetar-se um espao pblico).
Com base nesta perspectiva, os autores consideram tambm como parte da Economia
Solidria os espaos pblicos de articulao comunitria, cooperativas sociais (formadas por
associaes de ajuda em domiclio), centros de hospedaria e de readaptao ao trabalho,
creches parentais e associaes de bairro.
Por fim, Coraggio (2002) e Razeto (1993) ampliam ainda mais esta definio, incorporando
tambm como formas de manifestao da Economia Solidria as atividades de unidades
domsticas de trabalho, geralmente informais e de carter individual. Neste sentido,
vendedores e produtores individuais fazem parte da Economia Solidria, desde que sejam
desenvolvidas por grupos e indivduos que possuam autonomia em relao s suas decises,
tarefas e atividades e se relacionem de forma solidria.
Observa-se assim que existem pressupostos em comum sobre algumas caractersticas da
Economia Solidria e suas formas de manifestao. Por exemplo, tangencia a viso de
relaes sociais e organizacionais que se pautam pela solidariedade, pela autonomia e pela
democracia das atividades e que se manifestam sobre as formas organizacionais de
empreendimentos econmicos solidrios (associaes, cooperativas), clubes de trocas,
incubadoras, finanas solidrias, grupos de pesquisa, movimentos de consumo solidrio,polticas pblicas, fruns e redes solidrias.
Todavia, observa-se tambm divergncias sobre as caractersticas e consequentemente suas
formas de manifestaes. Por exemplo, h uma disputa conceitual sobre a aceitao ou no de
formas assalariadas nas iniciativas de Economia Solidria. Nas iniciativas europias, e em
alguns casos da literatura canadense, observa-se maior aceitao de trabalhadores
assalariados, e assim, uma viso da Economia Solidria mais voltada para as propostas de
gerao e renda e atrelada a uma poltica de bem-estar social. J na literatura e inclusive entre
-
7/24/2019 Tese Calbino Cap. 4
13/18
148
os militantes da Amrica Latina h menor aceitao de formas organizacionais que permitam
assalariados, e se caminha mais para um discurso de cunho poltico e de transformao da
sociedade (DELGADO; RICHER, 2001).
No mesmo sentido, em grande parte dos autores e militantes brasileiros, sustenta-se que por
Economia Solidria entendem-se apenas as formas coletivas de trabalho, posio contrria a
outros autores latino-americanos como Razeto (1993) e Coraggio (2002) que englobam
tambm iniciativas de cunho individual, desde que movidas por lgicas solidrias. Por fim,
outro ponto de divergncia a definio do ncleo de atividades, ou seja, a aceitao de
iniciativas econmicas e outras formas de organizao social, com associaes de bairro,
mutires, atividades voluntrias.
A disputa conceitual e fronteiria, apesar de importante para a constituio de uma identidade
relacionada ao tema, parece pouco provvel que caminhe para um consenso, visto que cada
autor traz sua viso de mundo sobre o tema. Observamos ao participar de alguns fruns
regionais de Economia Solidria um discurso presente entre os militantes do movimento (que,
por coincidncia ou no, assumem os cargos de diretores dos fruns), no qual os mesmos
criam suas cartilhas sobre o que ou no Economia Solidria. Nas reunies com os membrosde pequenas associaes e cooperativas (que constituem os fruns), observamos que alguns
desses lderes determinavam a forma como os membros das organizaes deveriam se
organizar e proibia a participao de microempreendedores, sobre a alegao de legitimar o
capitalismo.
Mais do que as questes formais, o que nos chamou a ateno foi a prpria incorporao das
estruturas e valores burocrticos nos fruns regionais de Economia Solidria. Ainda que esteno seja o foco central da Tese, a disputa conceitual parece se centrar mais nas caractersticas
e formatos jurdicos, no levando em considerao os atributos pessoais presente nos sujeitos,
que acabam por replicar um sistema de dominao to selvagem quanto o que condenam.
No mesmo sentido, Meira (2013) ressalta um risco presente na Economia Solidria que a
sua prpria institucionalizao. Ao analisar o caso brasileiro, o autor aborda que a Secretaria
Nacional de Economia Solidria (SENAES) tem delimitado o que Economia Solidria sob o
ponto de vista de um ideal, o que acaba por negar a tenso presente em praticamente todas as
-
7/24/2019 Tese Calbino Cap. 4
14/18
149
organizaes econmicas, criando um padro que nem sequer faz parte da conscincia dos
trabalhadores envolvidos nas iniciativas solidrias.
Compartilhamos as ideias de que para que a Economia Solidria se torne um projeto de
contraponto ao sistema de dominao burocrtico, tem-se que evitar as formas estruturais que
possam alimentar seus modos de dominao. Neste sentido, o trabalho assalariado, por
exemplo, problemtico por reproduzir uma lgica naturalizada de que cada um recebe de
acordo com seus mritos e responsabilidades. Da mesma forma, as organizaes coletivas de
trabalho propiciam maior exerccio democrtico e inclusive maior sustentabilidade econmica
do que iniciativas individuais.
Porm, compreende-se que qualquer forma organizacional hoje, est imbricada dentro de um
sistema burocrtico, sofrendo tenses, conflitos, contradies, o que impossibilita a
constituio de um sistema puro de organizao coletivista (SILVA JUNIOR, 2005). Deste
modo, a prpria proposta da Tese em pensar em modos de gesto para as organizaes de
Economia Solidria, respeita e no descarta formas organizacionais econmicas e sociais e at
individuais, que tm contudo, a inteno de se mover por lgicas solidrias.
4.5Economia Solidria e autogesto
H uma tendncia recorrente ao se definir Economia Solidria, que atribuir o conceito de
autogesto como um de seus atributos. Apesar de no ser consenso entre todos os autores da
rea, acreditamos que um tanto limitado reduzir a autogesto a uma simples caracterstica de
gesto coletiva (da mesma forma que uma limitao definir a burocracia como um modo de
gesto), visto que a autogesto trata tambm de uma proposta social de contraponto s
organizaes burocrticas (GUILLERM; BOURDET, 1976, VARGAS DE FARIA, 2006;
VIANA, 2008; MOTTA, 1981), o que, em tese, pode ter o mesmo ideal da Economia
Solidria.
Ferraz e Dias (2008) ressaltam que o conceito da autogesto utilizado atualmente com os
pressupostos clssicos da sociologia, passou por uma ressignificao, ocorrendo a perda de
seu contedo original. A nova verso da autogesto, a qual foi influenciada por abordagens
das cincias administrativas, refletiu na prtica do conceito de autogesto, de tal modo que se
pode identificar, objetivos que buscam a priorios fins econmicos.
-
7/24/2019 Tese Calbino Cap. 4
15/18
150
Todavia, a ressignificao do termo autogesto no recente. Guillerm e Bourdet (1976) na
dcada de 1970 ressaltavam que o termo j havia sido empregado tanto para denominar vrias
formas de organizaes e sistemas sociais, como para explicar formas de Estado, de
organizao do trabalho, de associaes sindicais, de gesto de programas pblicos, de gesto
de planos de sade, entre outros.
Retomando o assunto da origem do termo, Guillerm e Bourdet (1976, p.11) asseguram que o
mesmo surgiu inicialmente para denominar uma experincia poltica, econmica e social na
Iugoslvia por volta de 1960. "a traduo literal da palavra servo-croata samoupravlje
('samo' sendo o equivalente eslavo do prefixo grego 'auto', e 'upravlje' significandoaproximadamente 'gesto')". Deste modo, a terminologia autogesto diz respeito gesto por
si mesmo, ao contrrio da heterogesto, que significa gesto pelo outro.
Motta (1981, p.133) ressalta, no entanto, que apesar de ser um termo recente, o contedo
conceitual da autogesto remete s experincias socialistas do sculo XIX, tendo em
Proudhon a principal referncia. A sociedade autogestionria, em Proudhon, a sociedade
organicamente autnoma, constituda de um feixe de autonomias de grupos se auto-administrando, cuja vida exige coordenao, mas no hierarquizao. Com base neste
conceito de Proudhon observa-se a autogesto como a negao da burocracia e de sua
heterogesto, que separa artificialmente uma categoria de dirigentes de uma categoria de
dirigidos. A autogesto libera a sociedade real das fices a que se acha submetida.
J Guillerm e Bourdet (1976), apesar de compreenderem a autogesto como um modo de
contrapor os sistemas de dominao, discordam das ideias de que Proudhon foi o pai daautogesto. Os autores sustentam que o mesmo no era revolucionrio, mas reformista social,
ressaltando que gozava apenas do prestgio de ser proletrio, visto que suas ideias eram
dispersas e no abolia o trabalho assalariado. Alm disso, abordam que sua viso conciliatria
era problemtica, por achar que passivamente e sem sindicatos e partidos a mudana radical
da sociedade poderia ocorrer89. Em contrapartida, defendem que Pannekoek foi o primeiro
89
Dentre os pontos mais criticados nas ideias de Proudhon estava a crena de uma mudana progressiva, em quena fase inicial haveria uma parceria com os capitalistas, at uma transio para as empresas cooperativas. Almdisso, o autor sofreu crticas por defender no campo agrrio a propriedade individual, sob a alegao de que arentabilidade econmica seria maior.
-
7/24/2019 Tese Calbino Cap. 4
16/18
151
autor que buscou explicitamente definir a autogesto revolucionria. O mesmo dedicou um
livro a fazer crticas ao leninismo e defendia que uma educao do proletrio deveria ser
concebida como contribuio a uma auto-educao. Ainda, os conselhos operrios seriam o
princpio da autogesto operria das empresas e da produo, sendo instrumentos que
permitiriam que os trabalhadores assumissem na medida em que uma revoluo progredisse, a
funo de organizar a produo.
As principais divergncias entre os conceitos de autogesto de Motta (1981) e Guillerm e
Bourdet (1976) parecem se centrar em pontos de vista metodolgicos e em caracterizar ou no
a potencialidade das cooperativas e associaes enquanto meio de autogesto. Neste sentido,
para Guillerm e Bourdet (1976) h uma diferena entre a autogesto e outros fenmenosprximos, inclusive que hoje consideramos Economia Solidria. Os autores elaboram um
continuum autogestionrio que vai desde a participao, co-gesto, controle operrio e
cooperativas, at chegar a autogesto:
a. participao: significa participar de algo j existente, ou seja, de uma atividade que
possui estrutura e finalidade prprias, na qual o participante se mistura
individualmente a um grupo que lhe pr-existente; o participante se agrega
individualmente e colabora com os outros na execuo de uma tarefa com plenoconsentimento e parcial controle, porm sem benefcio comum; no significa
autogesto, pois no elimina a distino entre executante e dirigente;
b. co-gesto: uma tentativa de integrar a criatividade e a iniciativa operria no
processo produtivo capitalista, o que permite a participao dos trabalhadores apenas
no processo de produo - nos meios e no nos fins; limitada, pois a definio por
outros sobre os fins, leva a uma pr-determinao no que se refere aos meios;
c.
controle operrio: significa um passo adiante em relao co-gesto, mas no autogesto, pois o controle operrio surge como produto de uma interveno
conflituosa que arranca concesses para os trabalhadores, embora se limite a exercer
controle sobre pontos especficos que no questionam o capital; alm disso, no
significa que a classe operria ir gerir a produo e sim que ir supervisionar,
inspecionar ou verificar as decises tomadas por instncias exteriores ao
processo produtivo, tal como o Estado;
d. cooperativa: tem vegetado sempre sob formas locais, a tal ponto que esta limitao
se tornou seu sinal distintivo, pois, no interior da sociedade capitalista, as
-
7/24/2019 Tese Calbino Cap. 4
17/18
152
cooperativas no determinam seus fins, visto que o mercado e o estado interferem
nas finalidades da cooperativa e tambm nos meios (GUILLERM; BOURDET,
1976).
Deste modo, autogesto no simplesmente realizar uma organizao coletivista entre as
quatro paredes de uma empresa, ou seja, no se trata de um simples modo de gesto
administrativa. Para os autores a nica possibilidade de se concretizar a autogesto pens-la
em meio a toda a sociedade, visto que cooperativas por si, isoladas reproduzindo a prpria
lgica de competio, j seria uma contradio. Assim, a autogesto seria a transformao
radical da sociedade, no s econmica, mas tambm poltica, ressignificando a viso comum
da poltica, como pertencente a uma elite de polticos, para criar uma nova poltica, semintermedirios em todos os nveis, por todos os homens.
Neste sentido, a autogesto pode ser vista como um conceito antecipador, que expressa uma
realidade ainda no existente. A autogesto seria o conceito fundamental de uma sociedade
futura, incompatvel com relaes sociais e com conceitos da atual sociedade. E por ser uma
construo coletiva, no pode ser prescrita, nem imposta por ningum, mas construda e
reconstruda livremente, de modo que a autonomia e a liberdade sejam os seus princpios(CASTORIADIS, 1995; MENDEZ, 2006; VIANA, 2008; FARIA, 2009)90.
Com base nestes conceitos, arriscamos a dizer que a proposta da Economia Solidria, a qual
defendeu (enquanto prtica e ideal de contraponto burocracia) se assemelha aos ideais de
uma autogesto, de modo que a autogesto no seria um meio, mas, um fim da Economia
Solidria.
4.6
Consideraes finais
Conforme visto no captulo, as divergncias conceituais sobre a Economia Solidria se situam
desde o ponto de vista da origem e razes do termo, at as propostas de transformao, seus
agentes envolvidos e fronteiras com outros termos. Apesar da diversidade e disputa conceitual
em que o tema est inserido, a Economia Solidria uma expresso recente, que trata da
continuidade de um processo histrico, apresentando novas formas de manifestao social.
90Compreende-se contudo, que dentre os autores que defendem a autogesto, existem correntes de pensamentodistintas, apontando para diversas vises que permeiam o campo.
-
7/24/2019 Tese Calbino Cap. 4
18/18
153
Suas razes e semelhanas j se situavam em experincias de associao de trabalhadores,
como nas propostas dos socialistas libertrios, nos movimentos cooperativistas da Europa e
nas formas associativistas presentes em diversos momentos da histria.
Sustentamos tambm que o tema pode ser visto enquanto uma prtica e um ideal de
transformao social. Trata-se de um ideal, por possuir uma proposta que visa contrapor a
lgica da dominao burocrtica, ao se estruturar em moldes solidrios, cuja base
estabelecida, em tese, facilita a socializao do capital, decises e distribuies de poder
equitativas e reduo da lgica de hierarquia, obedincia e mando.
No plano prtico (real), a Economia Solidria, hoje, se encontra concretamente emcooperativas, associaes, redes solidrias, bancos comunitrios, rgos de apoio
(incubadoras, fruns, grupos de pesquisa). que tm surgido. Porm, vivencia uma tenso de
valores e estruturas, por estar inserida em um contexto de dominao burocrtica.
Deste modo, ressaltamos que a proposta de repensar a gesto da Economia Solidria no
para um contexto utpico, no existente, que s seria aplicado mediante um devir, mas se
considera um modo de gesto condizente com uma realidade organizacional espalhada pelomundo hoje, e que tem de lidar com a tenso presente no sistema capitalista burocrtico.
Por isso, ressaltamos a importncia de se analisar e buscar referncias em experincias
prticas que j vivenciam ou vivenciaram um modo de gesto alternativo lgica de
eficincia econmica. No mesmo sentido, torna-se necessrio compreender as distines de
lgica e eficincia inerentes s organizaes solidrias e tradicionais para a ressignificao da
gesto, ponto este que abordaremos no captulo a seguir.