tese calbino cap. 4

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    4 ECONOMIA SOLIDRIA: UMA TENTATIVA DECONTRAPONTO LGICA DE DOMINAO BUROCRTICA

    Ao realizar uma reviso conceitual sobre as concepes que permeiam o tema EconomiaSolidria, observa-se que no somente existe uma diversidade de concepes entre autores,

    como ainda no h um consenso sobre o que seja a Economia Solidria. Do ponto de vista

    cientfico, observa-se a coabitao de diferentes representaes, correntes e concepes, as

    quais se apoiam em ideologias distintas.

    Cruz (2006, p.6) ressalta que um dos motivos da no consensualidade o fato de ser uma

    expresso conceitual em disputa, cujo significado objeto de viva polmica, no qual [...]

    aqueles que defendem a utilizao da expresso no coincidem no seu sentido, e aqueles que a

    criticam, obviamente, no coincidem tambm em suas crticas.

    Neste sentido, propomos no captulo apresentar a diversidade conceitual que permeia o tema,

    recorrendo s concepes de alguns dos principais autores latino-americanos e europeus que

    estudam a temtica Economia Solidria. Dentre eles: Paul Singer, Jean Laville, Jos Corragio,

    Luiz Razeto, Frana Filho, Luis Gaiger; Marcos Arruda, Tauile, Lia Tiriba, Euclides Mance,

    Renato Dagnino, Quijano, Gabriel Kraychete, Eme; Lisboa, Rosinha Carrion e Carolina

    Andion.

    Alm de situarmos as diversas concepes que permeiam o campo, ao mesmo tempo iremos

    nos posicionar sobre o que entendemos por Economia Solidria e estabelecer um paralelo com

    outras alternativas em contraponto aos modos de dominao burocrtica. Conforme visto no

    captulo dois da Tese, se a burocracia um sistema de dominao social que reproduz seu

    prprio modo de gesto, a heterogesto, neste captulo temos por objetivo sustentar a

    Economia Solidria como uma possibilidade de contraponto ao sistema de dominao

    burocrtico.

    4.1 Origem do termo Economia Solidria

    consensual, ao revisar a literatura, que o termo Economia Solidria recente. Todavia,

    surgem interpretaes diferentes quando se busca compreender por quem e quando o termo

    foi cunhado. Frana Filho (2002a, 2002b) relata que o termo foi utilizado pela primeira vez

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    em 1992 na Frana por Jean Louis Laville e Bernard Eme, relatando que atravs deste termo,

    estes autores visavam dar conta da emergncia e desenvolvimento recente de um fenmeno de

    proliferao de prticas socioeconmicas, chamadas de iniciativas locais na Europa. No

    cenrio acadmico, observa-se em 1993, na Revista Travail, um dossi designado Economia

    Solidria escrito por Eme, Laville, Caille e Alain, dentre outros pesquisadores franceses e

    1994, um livro organizado por Laville com o ttulo Lconomiesolidaire une perspective

    internationale.

    Todavia, Soares e Gomes de S (2004) parecem discordar que o tema teve exclusividade na

    Frana, abordando que o prprio Laville relatou que o conceito de Econmica Solidria havia

    sido trabalhado a partir da dcada de 1980, quase que simultaneamente entre pesquisadoreseuropeus e latino-americanos.

    Lechat (2002) parece compartilhar esta viso, enfatizando, no entanto, que a primeira vez que

    o termo Economia Solidria foi cunhado, ocorreu pelo chileno Luiz Razeto, na dcada de

    1980. O autor Coraggio (2002, p.40) tambm afirma que no correto atribuir a origem do

    tema Frana, pois Razeto havia usado este termo antes. E ainda cita que Est se falando

    que na Frana se faz um esforo intelectual para diferenciar a Economia Social, incorporadapelo Estado, dessa outra a que chamam social e solidria, mas o termo Economia Solidria j

    era utilizado aqui antes (Amrica Latina).

    Buscando compreender as interpretaes de Luiz Razeto sobre a expresso, o autor

    recentemente afirmou que nem mesmo ele foi o primeiro a utilizar o termo. Disse que em

    1980, ao participar de um frum de trabalhadores que buscavam alternativas econmicas por

    meio do trabalho, uma das militantes abordou a necessidade de constituir uma outraeconomia, uma Economia Solidria. Para ele, este foi o momento em que o termo foi criado

    (RAZETO, 2010).

    No Brasil, ainda h a crena entre militantes e consta em alguns textos acadmicos, que a

    expresso foi criada por Paul Singer em 1996. Porm, Lechat (2002) desfaz essa afirmativa ao

    relatar que o termo aparece a primeira vez em portugus, em um livro de Razeto, em 1993.

    Contudo, a partir de 1995 que o termo toma corpo, sendo utilizado em uma mesa redonda no

    7 Congresso Nacional da Sociedade Brasileira de Sociologia e, em 1996 em uma matria

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    escrita por Paul Singer para o Jornal Folha de So Paulo, intitulada de Economia Solidria

    contra o desemprego. No mesmo ano, constava tambm do programa de governo do Partido

    dos Trabalhadores uma proposta de Economia Solidria. A autora ainda deixa claro, que estes

    no foram os nicos contextos que fizeram meno a uma Economia Solidria, dizendo que o

    autor Mance (1999) relatou que propostas similares ocorreram em 1988, em campanhas

    polticas na cidade de Piraquara e, em 1992 na cidade de Curitiba.

    Deste modo, acreditamos que atribuir exclusividade aos intelectuais franceses parece um

    equvoco, visto que os prprios franceses criadores afirmaram que o termo surgiu em

    perodos similares (dcada de 1980) na Frana e na Amrica Latina. O mesmo equvoco

    ocorre ao considerar Paul Singer como o criador do termo Economia Solidria no Brasil.Ademais, o que parece pouco enfatizado nesta disputa conceitual, que o termo j estava

    sendo utilizado anteriormente nos meios no acadmicos.

    4.2 Razes e influncias da Economia Solidria

    Conforme visto no tpico anterior, a Economia Solidria emerge na literatura e nos meios

    sociais a partir da dcada de 1980. Dentre os fatores que motivaram a sua apario, Pochmann

    (2004), Singer (2002) e Frana Filho e Laville (2004) situam juno de pelo menos dois

    pontos especficos. O primeiro diz respeito ao aparecimento de um enorme excedente de mo

    de obra em escala global, ocasionado pelas crises econmicas e pelo fim das polticas de bem-

    estar social. E o segundo foi a busca por novos modelos alternativos economia mercantil,

    principalmente em um contexto marcado pelo fracasso das propostas polticas de cunho

    social. Assim, militantes e tericos de diversos movimentos sociais crticos, encontraram na

    proposta de uma Economia Solidria uma alternativa econmica de gerar trabalho e renda,

    principalmente para os setores excludos da sociedade, e uma tentativa poltica de resistncia

    economia mercantil.

    Apesar de a maioria dos autores concordarem que esses fatores foram centrais para a sua

    apario, as principais divergncias a respeito do assunto, ocorrem sobre as razes histricas e

    inspiraes que influenciaram a Economia Solidria. Para Singer (2002) a Economia Solidria

    apesar de ter emergido na dcada de 1980, tem sua inspirao na retomada de princpios do

    cooperativismo do incio do sculo XIX, que foram inseridos por socialistas utpicos elibertrios, como Robert Owen, Saint-Simon, Louis Blanc, Fourier e Proudhon. O

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    cooperativismo daquele contexto surgiu como uma resposta ao espantoso empobrecimento

    dos artesos, provocado pela difuso das mquinas e da organizao fabril da produo. O

    pensamento destes autores visava um novo modelo de vida e a busca pela emancipao com a

    proposta de modelos alternativos de produo (SINGER, 2002). Constata-se aqui uma

    similaridade nos fatores (aumento da pobreza e busca por uma nova organizao de

    sociedade) que motivaram estes dois movimentos: o cooperativismo e a Economia Solidria.

    Motchane (2003) tambm concorda que suas razes esto na Europa, todavia diverge do

    perodo histrico, abordando que a Economia Solidria tem razes na Idade Mdia, com as

    guildas e confrarias (que se constituam associaes de solidariedade entre trabalhadores) por

    volta do sculo XIII.

    J as concepes de Frana Filho e Laville (2004) e Razeto (2010) buscam relativizar as

    razes e os fatores que influenciaram o seu nascimento, abordando que sua origem est no s

    na Europa, mas tambm na Amrica Latina. Os autores abordam que na Europa, a Economia

    Solidria teve suas bases nos movimentos associativistas, todavia consideram tambm

    influncias de fatores anteriores, vinculados a traos de caridade e solidariedade. Na Amrica

    Latina remontam s influncias das prprias relaes de metrpole-colnia na permanncia devrios traos da tradio colonial, alm de estratgias de sobrevivncia dos indgenas, dos

    negros e de parcelas dos imigrantes marginalizados.

    Deste modo, apesar das contribuies de Singer ao enfatizar a relevncia do cooperativismo e

    dos socialistas libertrios para apresentar traos das influncias no pensamento da Economia

    Solidria, acreditamos, contudo, que esta viso limitada por desconsiderar os indcios de

    organizaes solidrias anteriores a este perodo. No mesmo sentido, a viso eurocntricaadotada pelo autor, no leva em considerao as demais manifestaes em diversas partes do

    mundo, como a prpria influncia da Amrica Latina nas razes da Economia Solidria.

    A metfora utilizada por Lechat (2002a) parece coerente para explicar e analisar as

    influncias histricas que permeiam o pensamento da Economia Solidria, pois: a Economia

    Solidria como um rio que suas nascentes designam de diversos afluentes.

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    4.3 As vises da Economia Solidria: definies, propostas e metodologias

    Um dos pontos na literatura que mais gera divergncias tericas envolve as definies e

    consequentemente os potenciais e limites da Economia Solidria. Neste sentido, para fins

    didticos, mapeamos as diversas concepes sobre o tema entre pelo menos trs grupos

    distintos, que so: autores que defendem a Economia Solidria enquanto possibilidade de

    transformao social, econmica e poltica; autores que defendem a Economia Solidria

    apenas enquanto meios de gerao de renda e incluso social; e autores que negam qualquer

    tipo de transformao social, econmica e poltica.

    1)

    Possibilidade de transformao social, econmica e polticaAo buscar compreender as definies da Economia Solidria, uma das posies mais citadas e

    mais criticadas na rea a do autor Paul Singer (2002). Na sua concepo, a Economia

    Solidria se trata de um programa que se fundamenta na Tese de que as contradies do

    capitalismo criam oportunidades de desenvolvimento de organizaes econmicas solidrias,

    cuja lgica oposta ao modo de produo dominante. Assim defende que se as organizaes

    solidrias se estruturarem mais do que como mera resposta s demandas de trabalho, elas

    podem se tornar uma alternativa superior ao capitalismo. A proposta de transio ocorreriapela necessidade de conciliar uma lgica de competio com cooperao, mediante a

    concorrncia direta com o capitalismo, na qual as organizaes coletivas deveriam criar

    produtos mais eficientes do que os das empresas mercantis para sua superao.

    Arruda (2000) tambm conceitua a Economia Solidria como uma proposta ideolgica de

    contraponto economia capitalista. Todavia, no como um programa, mas uma filosofia de

    vida, que consiste em uma nova forma de pensar o ser humano, a economia e a sociedade

    como um todo. Define como base desta filosofia, os valores da partilha, reciprocidade e

    solidariedade. Como proposta metodolgica, tambm defendida por Mance (1999), prope a

    constituio de redes solidrias em trs nveis: micro, meso e macro. No nvel micro estariam

    s organizaes locais, no nvel meso, as redes de trocas solidrias e no nvel macro, uma rede

    de aliana por um mundo responsvel e solidrio, capaz de pensar novas formas de economia.

    Deste modo, a proposta conviveria com o capitalismo at que o mesmo sucumbisse83.

    83No mesmo sentido, Lisboa (1999) sugere a construo de uma estratgia que articule politicamente as redesconstitutivas da Economia Solidria, que estabelea elos com os demais setores da economia, constituindo assim,um projeto de integrao ativa no mercado mundial.

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    Na viso do argentino Coraggio (2002), a Economia Solidria pode ser vista como um projeto

    poltico transformador, se partir do pressuposto de que possvel desenvolver outra

    economia. Para ele seria um caminho para ir alm da simples reproduo da vida biolgica,

    constitudo como um devir, uma reproduo ampliada da vida de todos os envolvidos.

    Todavia, afirma que isto s possvel ao se modificar a qualidade das relaes dentro e entre

    as unidades domsticas e o grau de interdependncia, complexidade e autonomia. Em termos

    metodolgicos aborda que o caminho passa pela inverso de valores, no entanto, esta deve ser

    construda de maneira democrtica e no impositiva.

    O chileno Razeto (2010) parece possuir um posicionamento semelhante. O autor define a

    Economia Solidria como uma realidade, teoria e projeto. Considera realidade porque jocorre no cotidiano da sociedade, independente de formulaes e propostas tericas.

    tambm uma teoria por ter estudiosos envolvidos, analisando seus fenmenos, racionalidades

    e propondo ideais. E, projeto por buscar propostas de transformao da sociedade.

    Existem ainda autores como Tiriba (2008), Albuquerque (2003), Tauile (2002) e Santana

    Junior (2007) que visualizam a Economia Solidria como um movimento social de

    contraponto ao capitalismo por ser compreendida como um movimento que luta contra asconsequncias da desregulamentao econmica e do movimento global de reestruturao

    produtiva (ALBUQUERQUE, 2003). Abordam que se trata de um movimento social no qual

    convivem grupos sociais com diferentes concepes e projetos societrios, cujas demandas

    so, em parte, atendidas pelo Estado e mediadas por instituies que do apoio e assessoria

    para buscar assegurar a existncia e a viabilidade dos empreendimentos econmicos solidrios

    (TIRIBA, 2008). Santana Junior (2007) define ainda como um movimento social de tipo

    novo, por efetivar a convergncia entre o velho movimento (movimento operrio quereivindica rendas) e o novo movimento social (movimentos temticos que reivindicam

    direitos). Em termos metodolgicos sustentam o apoio do Estado, financiando e criando

    polticas pblicas para a Economia Solidria.

    J na perspectiva de alguns intelectuais franceses como Laville (2003), Eme (2004) e do

    brasileiro Frana Filho (2002a), a Economia Solidria no busca romper totalmente com o

    capitalismo nem tampouco negar o papel do Estado. Pautada pela concepo de uma

    Economia Plural, abordam que se constitui em formas econmicas hbridas, com

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    caractersticas das atividades mercantil, no mercantil e no monetria, a fim de que a lgica

    mercantil se submeta a outros imperativos de ao coletiva. Assim, a Economia Solidria

    vista com o potencial de resgatar as questes polticas reivindicatrias, fortalecendo a esfera

    pblica, porm convivendo em tenses com o prprio sistema capitalista.

    2) Possibilidades de gerao de renda e incluso social

    Nesta perspectiva, Gaiger (2003) aborda que a Economia Solidria tem um notvel poder de

    revitalizao dos ideais emancipatrios, de formao e de convergncia de expresses

    concretas. Afirma que desenvolve elementos de uma nova sociabilidade que reina uma lgica

    solidria. No entanto, discorda da aposta de Singer (2002) da replicao progressiva e

    contnua dos empreendimentos a ponto de algum dia predominarem sobre o capitalismo. Damesma forma, no v perspectivas na ideia de converso geral das prticas econmicas para o

    princpio solidrio. Para o autor, o que se pode vislumbrar para a Economia Solidria que

    possa se tornar um novo sistema de regulao com a coexistncia conflitual, em condies

    mnimas de equilbrio com a economia de mercado. Posies semelhantes so defendidas por

    Carrion (2002), que acredita que a Economia Solidria pode contribuir para a gerao e renda,

    mas dificilmente ir transformar radicalmente a sociedade.

    3) Impossibilidade de qualquer tipo de transformao social, econmica e poltica

    Neste grupo de autores, encontram-se os crticos Economia Solidria. Autores como o

    peruano Quijano (2002), Holzmann (2000), Faria (2009) e Bonfim (2001) negam qualquer

    possibilidade de um potencial emancipador. Utilizando como base as referncias de Rosa

    Luxemburgo (1986), relatam que a transio para o capitalismo por meio de cooperativas se

    torna problemtica, porque as cooperativas categorizadas como organizaes hbridas, de um

    lado, apresentam uma produo socializada e, de outro, esto ligadas pela necessidade detroca com o mercado capitalista para o qual vendem seus produtos. Para sobreviver em um

    mercado competitivo, a cooperativa-empresa acaba por subordinar-se a um aumento constante

    da explorao da fora de trabalho, estendendo a jornada, intensificando o trabalho,

    diminuindo os gastos ou dispensando os trabalhadores.

    Neste sentido, acreditam que os trabalhadores cooperativados acabam por impor a si mesmos

    o sistema de produo ao qual pretendem contrapor-se, do contrrio o seu empreendimento

    no sobrevive competio. Alm disso, os empreendimentos que conseguem sobreviver por

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    meio de redes, se tornam como ilhas isoladas e pulverizadas, na quais detm a produo

    apenas de produtos bsicos, significando um retrocesso economia mercantil da Idade Mdia.

    J Vainer (2000) define a Economia Solidria como uma utopia experimental. Para o autor

    diversos rgos como o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento e

    outras agncias multilaterais ou nacionais, como a Comunidade Solidria, estariam vendendo

    a ideia do desenvolvimento local como alternativa para as periferias. Para ele isto seria uma

    estratgia ideolgica e poltica, que, na melhor das hipteses, pretende compensar a misria

    engendrada pelo desenvolvimento do capitalismo e, quase sempre, acabar por produzir apenas

    alguns mecanismos de controle poltico das populaes miserveis.

    Sob essa perspectiva, o autor afirma que a Economia Solidria no se apresenta como

    alternativa global ao projeto capitalista liberal. Entretanto, em certas circunstncias, as

    associaes solidrias podem oferecer a vivncia, mesmo que limitada no tempo e na

    qualidade. Afirma ainda que a importncia da Economia Solidria reside no fato de ela se

    colocar como um elemento fundamental de combate desesperana. Por isso aborda uma

    utopia experimental: porque utopia uma coisa que no existe; de outro, porque

    experimental algo que se vive (VAINER, 2000, p.14).

    Por fim, observam-se vises que no s negam a possibilidade de transformao social, como

    apontam para a Economia Solidria como fruto do prprio capitalismo. Para Menezes (2007)

    e Wellen (2008), a Economia Solidria trata-se de um projeto ideolgico capitalista que visa

    precarizar as condies de trabalho. Os autores afirmam que isto ocorre propositadamente, ao

    constiturem organizaes de trabalhadores que no possuem direitos trabalhistas, recebem

    rendas inferiores ao mercado formal, trabalham longas jornadas e servem de mo-de-obrabarata para o mercado, aumentando ainda mais a acumulao capitalista. Alm disso,

    abordam que a Economia Solidria desarticula os movimentos dos trabalhadores (que passam

    o tempo todo se dedicando a sobreviver no trabalho coletivo) e nega os conflitos de classes,

    por englobar em um mesmo rtulo uma diversidade de instituies e organizaes de

    naturezas diferentes.

    Feitas as consideraes sobre as diversas perspectivas da Economia Solidria na literatura,

    acreditamos que as vises de cunho crtico, apresentam algumas limitaes sob o ponto de

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    vista da anlise. As concepes que tratam da Economia Solidria como fruto do prprio

    capitalismo e at se sustentam uma teoria da conspirao (como a ideia de que se trata de uma

    criao estratgica do governo do Fernando Henrique Cardoso84), pecam no recorte emprico

    ao caracterizarem, por exemplo, as organizaes do terceiro setor como entidades da

    Economia Solidria, englobando em um mesmo conjunto conceitual, organizaes que

    apresentam objetivos e estruturas diferentes.

    J os argumentos que se baseiam nas crticas de Rosa Luxemburgo ao cooperativismo para

    fazer uma analogia com a Economia Solidria tambm so limitados, visto que,

    historicamente, a grande maioria dos movimentos reivindicatrios, e no apenas as

    cooperativas, sofreram os mesmos ataques e cooptaes. Alm disso, mais do que centrar naslimitaes das formas organizacionais que esto em jogo, o que parece problemtico so as

    prprias contradies internas (subjetivas) dos sujeitos envolvidos nas tentativas de

    transformao, ponto ainda pouco debatido na literatura.

    Interessante observar tambm a crtica de Parra (2002) sobre esse debate. O autor sustenta que

    a ideia de colocar as cooperativas (que apenas uma das formas de manifestao da

    Economia Solidria), como determinadas ao fracasso, uma posio que sustenta umdeterminismo econmico, no levando em considerao os aspectos positivos sob o ponto de

    vista poltico, formativo e subjetivo que essas organizaes podem gerar85.

    Do outro lado da moeda, as leituras marxistas daEconomia Solidria, como um contraponto

    ao capitalismo, baseadas em Singer (2002), apresentam limitaes por acreditar que eficincia

    econmica e competio, poderiam cooperar harmonicamente com uma lgica de cooperao.

    84Autores que adotam uma perspectiva marxista como Menezes (2007) e Wellen (2008) alegam que a EconomiaSolidria aparece no perodo de 1994 a 2003, no governo de Fernando Henrique Cardoso, fruto de uma ideologianeoliberal para precarizar o trabalho. Todavia, parece difcil compreender que a Economia Solidria foi criadaapenas em 1994, visto que existiam trabalhos anteriores a esse perodo j utilizando o termo.85

    A limitao ocorre em no valorizar as novas relaes sociais que se estabelecem nesse contexto, como: asalternativas de organizao; o processo auto-organizativo dos trabalhadores; os mecanismos de comunicao edeliberao criados para facilitar o fluxo de informao; a mudana da situao de empregado para empregador;as relaes com outras entidades. Assim, supervalorizar apenas as questes econmicas, a lgica monetria, semlevar em considerao as demais relaes presentes, indica um determinismo econmico nas anlises crticas,que se limitam a analisar o fracasso apenas como a no superao econmica, ou ainda a degenerao comocritrios pr-determinados. Ademais, dizer que algo degenerou envolve em tratar como uma essncia que foi

    perdida, que desviou do caminho original como se o destino final da trajetria j fosse previamente definido ecerto. Tal viso leva a um determinismo de um futuro desconhecido, sem levar em conta que em outraconfigurao econmica, o dinamismo dentro das empresas, poderia ser de outra maneira, capaz de tambmgerar excedentes econmicos e de possuir elevado nvel tecnolgico (PARRA, 2002).

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    No seria, pois, a lgica da competio um dos motivos que sustenta o individualismo no

    capitalismo? Assim, combater o capitalismo utilizando de uma mesma lgica, parece pouco

    provvel para gerar outro modo de sociedade mais igualitrio. No mesmo sentido, essas

    vises de competio, acabam por replicar os modos de gesto e tecnologia presentes nas

    organizaes capitalistas, no considerando as variveis histricas e polticas que permeiam

    esses instrumentos86.

    Para ns uma das vises que mais contempla o atual momento da Economia Solidria a

    concepo de Razeto (2010), que a trata como uma realidade e um projeto. Compartilhamos a

    ideia de que a Economia Solidria uma realidade, por existir independente das leituras e

    teorias constitudas no cenrio acadmico. Ou seja, emergem diversas entidades coletivas quese organizam como alternativa de gerao de renda e que estabelecem outras relaes sociais.

    Todavia, esta realidade hoje est inserida em um sistema burocrtico mais amplo (a

    sociedade), no qual convive com outras formas de economia, vivenciando tenses e

    contradies com o sistema.

    E quanto s possibilidades de transformao social, somente a histria (construda por ns)

    dir qual o futuro da Economia Solidria. Porm, acreditamos que possa ser um ideal e

    projeto de contraponto, pois suas caractersticas e formas de manifestao apresentampotenciais que negam princpios que sustentam a dominao burocracia.

    4.4 Caractersticas, atores e formas de manifestao da economiasolidria

    As manifestaes da Economia Solidria, por terem suas razes nos movimentos e formas

    associativistas, geralmente so entendidas na literatura por cooperativas, associaes,

    empresas recuperadas e tambm novos formatos organizacionais87que apresentamcaractersticas distintas das organizaes convencionais.

    86Dagnino e Novaes (2007) destinam um trabalho para analisar como a viso de Singer falha ao sustentar acrena em uma neutralidade tecnolgica, e assim, que a simples conciliao da superao tecnolgica com aeficincia econmica seria uma alternativa para a transio com o capitalismo.87Dentre esses novos formatos organizacionais observamos: o surgimento das incubadoras de empreendimentossolidrios que uma iniciativa pioneira dentro das universidades brasileiras; as agncias de apoio e fomento aosempreendimentos solidrios (ANTEAG, UNISOL, ADS/CUT); as redes de pesquisadores em mbito

    internacional; as redes de Economia Solidria que controlam cadeias produtivas; as iniciativas de finanassolidrias que criaram bancos e moedas sociais; os clubes de troca que retomam princpios do escambo dassociedades primitivas; e movimentos de consumo solidrio, como manifestaes que tem se intensificado nosltimos anos.

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    Neste sentido, nas concepes de Singer e Souza (2000), as caractersticas da Economia

    Solidria so definidas como: posse coletiva dos meios de produo; gesto democrtica da

    empresa por participao direta ou por representao; repartio da receita lquida e

    destinao do excedente anual por critrios aprovados aps discusses.

    Gaiger (2003) parece caminhar no mesmo sentido, definindo as caractersticas da Economia

    Solidria como: autogesto88, democracia, participao, igualitarismo, cooperao no

    trabalho, autossustentao, desenvolvimento humano e responsabilidade social. Com base

    nestas caractersticas, para Singer e Souza (2000) e Gaiger (2003), os agentes e organizaes

    envolvidos passam a ser: associaes, cooperativas, empresas ocupadas, clubes de trocas,

    iniciativas de consumo solidrio, finanas solidrias, incubadoras, redes solidrias, frunsregionais e nacionais, grupos de pesquisadores e polticas governamentais que se constituem

    como eixo central em defesa de uma organizao coletivista.

    Na viso de Singer (2002), mais do que o formato jurdico adotado, o importante o modo

    como se organizam. Assim o autor aceita as cooperativas de servio (ou cooperativas de

    trabalho), que muitas vezes cumprem o papel de terceirizada de uma empresa tradicional,

    desde que se estabeleam dentro de uma prpria cooperativa e possuam o controle de seumodo de prestao de servio.

    J Lisboa (2005, p. 109) argumenta que a autogesto no a condio suficiente para definir

    o carter solidrio de uma atividade econmica. Para ele, o que caracteriza os

    empreendimentos pertencentes Economia Solidria o objetivo pelo qual so gerenciados,

    ou seja, o fato deles abrirem mo da possibilidade de maximizar o lucro em funo de uma

    perspectiva social e ecolgica, tendo uma postura solidria dentro das trocas mercantis(LISBOA, 2005, p. 109). Com base nesta caracterizao, os agentes e entidades envolvidos

    passam a ser tambm: formas de agricultura familiar, assentamentos do MST e economias

    indgenas.

    Outra caracterizao mais abrangente a de Frana Filho e Laville (2004) que parecem no

    centrar o ncleo da Economia Solidria apenas nas atividades econmicas. Segundo os

    autores, como critrios da Economia Solidria tem-se: 1. pluralidade de princpios

    88Neste mesmo captulo iremos discutir as fronteiras etimolgicas entre a Economia Solidria e autogesto.

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    econmicos (utilizao de diferentes fontes de recursosmercado, poderes pblicos e prticas

    reciprocitrias); 2. autonomia institucional (independncia e autonomia na gesto); 3.

    democratizao dos processos decisrios; 4. sociabilidade comunitria-pblica (valorizao

    de relaes comunitrias e afirmao do princpio de alteridade); 5. finalidade

    multidimensional (alm da dimenso econmica, a organizao internaliza uma dimenso

    social, cultural, ecolgica e poltica, no sentido de projetar-se um espao pblico).

    Com base nesta perspectiva, os autores consideram tambm como parte da Economia

    Solidria os espaos pblicos de articulao comunitria, cooperativas sociais (formadas por

    associaes de ajuda em domiclio), centros de hospedaria e de readaptao ao trabalho,

    creches parentais e associaes de bairro.

    Por fim, Coraggio (2002) e Razeto (1993) ampliam ainda mais esta definio, incorporando

    tambm como formas de manifestao da Economia Solidria as atividades de unidades

    domsticas de trabalho, geralmente informais e de carter individual. Neste sentido,

    vendedores e produtores individuais fazem parte da Economia Solidria, desde que sejam

    desenvolvidas por grupos e indivduos que possuam autonomia em relao s suas decises,

    tarefas e atividades e se relacionem de forma solidria.

    Observa-se assim que existem pressupostos em comum sobre algumas caractersticas da

    Economia Solidria e suas formas de manifestao. Por exemplo, tangencia a viso de

    relaes sociais e organizacionais que se pautam pela solidariedade, pela autonomia e pela

    democracia das atividades e que se manifestam sobre as formas organizacionais de

    empreendimentos econmicos solidrios (associaes, cooperativas), clubes de trocas,

    incubadoras, finanas solidrias, grupos de pesquisa, movimentos de consumo solidrio,polticas pblicas, fruns e redes solidrias.

    Todavia, observa-se tambm divergncias sobre as caractersticas e consequentemente suas

    formas de manifestaes. Por exemplo, h uma disputa conceitual sobre a aceitao ou no de

    formas assalariadas nas iniciativas de Economia Solidria. Nas iniciativas europias, e em

    alguns casos da literatura canadense, observa-se maior aceitao de trabalhadores

    assalariados, e assim, uma viso da Economia Solidria mais voltada para as propostas de

    gerao e renda e atrelada a uma poltica de bem-estar social. J na literatura e inclusive entre

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    os militantes da Amrica Latina h menor aceitao de formas organizacionais que permitam

    assalariados, e se caminha mais para um discurso de cunho poltico e de transformao da

    sociedade (DELGADO; RICHER, 2001).

    No mesmo sentido, em grande parte dos autores e militantes brasileiros, sustenta-se que por

    Economia Solidria entendem-se apenas as formas coletivas de trabalho, posio contrria a

    outros autores latino-americanos como Razeto (1993) e Coraggio (2002) que englobam

    tambm iniciativas de cunho individual, desde que movidas por lgicas solidrias. Por fim,

    outro ponto de divergncia a definio do ncleo de atividades, ou seja, a aceitao de

    iniciativas econmicas e outras formas de organizao social, com associaes de bairro,

    mutires, atividades voluntrias.

    A disputa conceitual e fronteiria, apesar de importante para a constituio de uma identidade

    relacionada ao tema, parece pouco provvel que caminhe para um consenso, visto que cada

    autor traz sua viso de mundo sobre o tema. Observamos ao participar de alguns fruns

    regionais de Economia Solidria um discurso presente entre os militantes do movimento (que,

    por coincidncia ou no, assumem os cargos de diretores dos fruns), no qual os mesmos

    criam suas cartilhas sobre o que ou no Economia Solidria. Nas reunies com os membrosde pequenas associaes e cooperativas (que constituem os fruns), observamos que alguns

    desses lderes determinavam a forma como os membros das organizaes deveriam se

    organizar e proibia a participao de microempreendedores, sobre a alegao de legitimar o

    capitalismo.

    Mais do que as questes formais, o que nos chamou a ateno foi a prpria incorporao das

    estruturas e valores burocrticos nos fruns regionais de Economia Solidria. Ainda que esteno seja o foco central da Tese, a disputa conceitual parece se centrar mais nas caractersticas

    e formatos jurdicos, no levando em considerao os atributos pessoais presente nos sujeitos,

    que acabam por replicar um sistema de dominao to selvagem quanto o que condenam.

    No mesmo sentido, Meira (2013) ressalta um risco presente na Economia Solidria que a

    sua prpria institucionalizao. Ao analisar o caso brasileiro, o autor aborda que a Secretaria

    Nacional de Economia Solidria (SENAES) tem delimitado o que Economia Solidria sob o

    ponto de vista de um ideal, o que acaba por negar a tenso presente em praticamente todas as

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    organizaes econmicas, criando um padro que nem sequer faz parte da conscincia dos

    trabalhadores envolvidos nas iniciativas solidrias.

    Compartilhamos as ideias de que para que a Economia Solidria se torne um projeto de

    contraponto ao sistema de dominao burocrtico, tem-se que evitar as formas estruturais que

    possam alimentar seus modos de dominao. Neste sentido, o trabalho assalariado, por

    exemplo, problemtico por reproduzir uma lgica naturalizada de que cada um recebe de

    acordo com seus mritos e responsabilidades. Da mesma forma, as organizaes coletivas de

    trabalho propiciam maior exerccio democrtico e inclusive maior sustentabilidade econmica

    do que iniciativas individuais.

    Porm, compreende-se que qualquer forma organizacional hoje, est imbricada dentro de um

    sistema burocrtico, sofrendo tenses, conflitos, contradies, o que impossibilita a

    constituio de um sistema puro de organizao coletivista (SILVA JUNIOR, 2005). Deste

    modo, a prpria proposta da Tese em pensar em modos de gesto para as organizaes de

    Economia Solidria, respeita e no descarta formas organizacionais econmicas e sociais e at

    individuais, que tm contudo, a inteno de se mover por lgicas solidrias.

    4.5Economia Solidria e autogesto

    H uma tendncia recorrente ao se definir Economia Solidria, que atribuir o conceito de

    autogesto como um de seus atributos. Apesar de no ser consenso entre todos os autores da

    rea, acreditamos que um tanto limitado reduzir a autogesto a uma simples caracterstica de

    gesto coletiva (da mesma forma que uma limitao definir a burocracia como um modo de

    gesto), visto que a autogesto trata tambm de uma proposta social de contraponto s

    organizaes burocrticas (GUILLERM; BOURDET, 1976, VARGAS DE FARIA, 2006;

    VIANA, 2008; MOTTA, 1981), o que, em tese, pode ter o mesmo ideal da Economia

    Solidria.

    Ferraz e Dias (2008) ressaltam que o conceito da autogesto utilizado atualmente com os

    pressupostos clssicos da sociologia, passou por uma ressignificao, ocorrendo a perda de

    seu contedo original. A nova verso da autogesto, a qual foi influenciada por abordagens

    das cincias administrativas, refletiu na prtica do conceito de autogesto, de tal modo que se

    pode identificar, objetivos que buscam a priorios fins econmicos.

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    Todavia, a ressignificao do termo autogesto no recente. Guillerm e Bourdet (1976) na

    dcada de 1970 ressaltavam que o termo j havia sido empregado tanto para denominar vrias

    formas de organizaes e sistemas sociais, como para explicar formas de Estado, de

    organizao do trabalho, de associaes sindicais, de gesto de programas pblicos, de gesto

    de planos de sade, entre outros.

    Retomando o assunto da origem do termo, Guillerm e Bourdet (1976, p.11) asseguram que o

    mesmo surgiu inicialmente para denominar uma experincia poltica, econmica e social na

    Iugoslvia por volta de 1960. "a traduo literal da palavra servo-croata samoupravlje

    ('samo' sendo o equivalente eslavo do prefixo grego 'auto', e 'upravlje' significandoaproximadamente 'gesto')". Deste modo, a terminologia autogesto diz respeito gesto por

    si mesmo, ao contrrio da heterogesto, que significa gesto pelo outro.

    Motta (1981, p.133) ressalta, no entanto, que apesar de ser um termo recente, o contedo

    conceitual da autogesto remete s experincias socialistas do sculo XIX, tendo em

    Proudhon a principal referncia. A sociedade autogestionria, em Proudhon, a sociedade

    organicamente autnoma, constituda de um feixe de autonomias de grupos se auto-administrando, cuja vida exige coordenao, mas no hierarquizao. Com base neste

    conceito de Proudhon observa-se a autogesto como a negao da burocracia e de sua

    heterogesto, que separa artificialmente uma categoria de dirigentes de uma categoria de

    dirigidos. A autogesto libera a sociedade real das fices a que se acha submetida.

    J Guillerm e Bourdet (1976), apesar de compreenderem a autogesto como um modo de

    contrapor os sistemas de dominao, discordam das ideias de que Proudhon foi o pai daautogesto. Os autores sustentam que o mesmo no era revolucionrio, mas reformista social,

    ressaltando que gozava apenas do prestgio de ser proletrio, visto que suas ideias eram

    dispersas e no abolia o trabalho assalariado. Alm disso, abordam que sua viso conciliatria

    era problemtica, por achar que passivamente e sem sindicatos e partidos a mudana radical

    da sociedade poderia ocorrer89. Em contrapartida, defendem que Pannekoek foi o primeiro

    89

    Dentre os pontos mais criticados nas ideias de Proudhon estava a crena de uma mudana progressiva, em quena fase inicial haveria uma parceria com os capitalistas, at uma transio para as empresas cooperativas. Almdisso, o autor sofreu crticas por defender no campo agrrio a propriedade individual, sob a alegao de que arentabilidade econmica seria maior.

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    autor que buscou explicitamente definir a autogesto revolucionria. O mesmo dedicou um

    livro a fazer crticas ao leninismo e defendia que uma educao do proletrio deveria ser

    concebida como contribuio a uma auto-educao. Ainda, os conselhos operrios seriam o

    princpio da autogesto operria das empresas e da produo, sendo instrumentos que

    permitiriam que os trabalhadores assumissem na medida em que uma revoluo progredisse, a

    funo de organizar a produo.

    As principais divergncias entre os conceitos de autogesto de Motta (1981) e Guillerm e

    Bourdet (1976) parecem se centrar em pontos de vista metodolgicos e em caracterizar ou no

    a potencialidade das cooperativas e associaes enquanto meio de autogesto. Neste sentido,

    para Guillerm e Bourdet (1976) h uma diferena entre a autogesto e outros fenmenosprximos, inclusive que hoje consideramos Economia Solidria. Os autores elaboram um

    continuum autogestionrio que vai desde a participao, co-gesto, controle operrio e

    cooperativas, at chegar a autogesto:

    a. participao: significa participar de algo j existente, ou seja, de uma atividade que

    possui estrutura e finalidade prprias, na qual o participante se mistura

    individualmente a um grupo que lhe pr-existente; o participante se agrega

    individualmente e colabora com os outros na execuo de uma tarefa com plenoconsentimento e parcial controle, porm sem benefcio comum; no significa

    autogesto, pois no elimina a distino entre executante e dirigente;

    b. co-gesto: uma tentativa de integrar a criatividade e a iniciativa operria no

    processo produtivo capitalista, o que permite a participao dos trabalhadores apenas

    no processo de produo - nos meios e no nos fins; limitada, pois a definio por

    outros sobre os fins, leva a uma pr-determinao no que se refere aos meios;

    c.

    controle operrio: significa um passo adiante em relao co-gesto, mas no autogesto, pois o controle operrio surge como produto de uma interveno

    conflituosa que arranca concesses para os trabalhadores, embora se limite a exercer

    controle sobre pontos especficos que no questionam o capital; alm disso, no

    significa que a classe operria ir gerir a produo e sim que ir supervisionar,

    inspecionar ou verificar as decises tomadas por instncias exteriores ao

    processo produtivo, tal como o Estado;

    d. cooperativa: tem vegetado sempre sob formas locais, a tal ponto que esta limitao

    se tornou seu sinal distintivo, pois, no interior da sociedade capitalista, as

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    cooperativas no determinam seus fins, visto que o mercado e o estado interferem

    nas finalidades da cooperativa e tambm nos meios (GUILLERM; BOURDET,

    1976).

    Deste modo, autogesto no simplesmente realizar uma organizao coletivista entre as

    quatro paredes de uma empresa, ou seja, no se trata de um simples modo de gesto

    administrativa. Para os autores a nica possibilidade de se concretizar a autogesto pens-la

    em meio a toda a sociedade, visto que cooperativas por si, isoladas reproduzindo a prpria

    lgica de competio, j seria uma contradio. Assim, a autogesto seria a transformao

    radical da sociedade, no s econmica, mas tambm poltica, ressignificando a viso comum

    da poltica, como pertencente a uma elite de polticos, para criar uma nova poltica, semintermedirios em todos os nveis, por todos os homens.

    Neste sentido, a autogesto pode ser vista como um conceito antecipador, que expressa uma

    realidade ainda no existente. A autogesto seria o conceito fundamental de uma sociedade

    futura, incompatvel com relaes sociais e com conceitos da atual sociedade. E por ser uma

    construo coletiva, no pode ser prescrita, nem imposta por ningum, mas construda e

    reconstruda livremente, de modo que a autonomia e a liberdade sejam os seus princpios(CASTORIADIS, 1995; MENDEZ, 2006; VIANA, 2008; FARIA, 2009)90.

    Com base nestes conceitos, arriscamos a dizer que a proposta da Economia Solidria, a qual

    defendeu (enquanto prtica e ideal de contraponto burocracia) se assemelha aos ideais de

    uma autogesto, de modo que a autogesto no seria um meio, mas, um fim da Economia

    Solidria.

    4.6

    Consideraes finais

    Conforme visto no captulo, as divergncias conceituais sobre a Economia Solidria se situam

    desde o ponto de vista da origem e razes do termo, at as propostas de transformao, seus

    agentes envolvidos e fronteiras com outros termos. Apesar da diversidade e disputa conceitual

    em que o tema est inserido, a Economia Solidria uma expresso recente, que trata da

    continuidade de um processo histrico, apresentando novas formas de manifestao social.

    90Compreende-se contudo, que dentre os autores que defendem a autogesto, existem correntes de pensamentodistintas, apontando para diversas vises que permeiam o campo.

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    Suas razes e semelhanas j se situavam em experincias de associao de trabalhadores,

    como nas propostas dos socialistas libertrios, nos movimentos cooperativistas da Europa e

    nas formas associativistas presentes em diversos momentos da histria.

    Sustentamos tambm que o tema pode ser visto enquanto uma prtica e um ideal de

    transformao social. Trata-se de um ideal, por possuir uma proposta que visa contrapor a

    lgica da dominao burocrtica, ao se estruturar em moldes solidrios, cuja base

    estabelecida, em tese, facilita a socializao do capital, decises e distribuies de poder

    equitativas e reduo da lgica de hierarquia, obedincia e mando.

    No plano prtico (real), a Economia Solidria, hoje, se encontra concretamente emcooperativas, associaes, redes solidrias, bancos comunitrios, rgos de apoio

    (incubadoras, fruns, grupos de pesquisa). que tm surgido. Porm, vivencia uma tenso de

    valores e estruturas, por estar inserida em um contexto de dominao burocrtica.

    Deste modo, ressaltamos que a proposta de repensar a gesto da Economia Solidria no

    para um contexto utpico, no existente, que s seria aplicado mediante um devir, mas se

    considera um modo de gesto condizente com uma realidade organizacional espalhada pelomundo hoje, e que tem de lidar com a tenso presente no sistema capitalista burocrtico.

    Por isso, ressaltamos a importncia de se analisar e buscar referncias em experincias

    prticas que j vivenciam ou vivenciaram um modo de gesto alternativo lgica de

    eficincia econmica. No mesmo sentido, torna-se necessrio compreender as distines de

    lgica e eficincia inerentes s organizaes solidrias e tradicionais para a ressignificao da

    gesto, ponto este que abordaremos no captulo a seguir.