terceirização e precarização social do trabalho: uma análise das possibilidades de...

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Monografia apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília – UnBOrientadora: Professora Doutora Gabriela Neves Delgado

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  • Universidade de Braslia

    Faculdade de Direito

    Curso de graduao em Direito

    Terceirizao e precarizao social do trabalho: uma

    anlise das possibilidades de configurao do dano

    existencial ao trabalhador terceirizado

    Luza Soares Sabioni Martins

    Braslia

    2015

  • 2

    Luza Soares Sabioni Martins

    Terceirizao e precarizao social do trabalho: uma

    anlise das possibilidades de configurao do dano

    existencial ao trabalhador terceirizado

    Monografia apresentada como requisito

    parcial obteno do grau de Bacharel em

    Direito pela Faculdade de Direito da

    Universidade de Braslia UnB Orientadora: Professora Doutora Gabriela

    Neves Delgado

    Braslia

    2015

  • 3

    Luza Soares Sabioni Martins

    Terceirizao e precarizao social do trabalho: uma anlise das

    possibilidades de configurao do dano existencial ao trabalhador

    terceirizado

    Monografia apresentada como requisito parcial obteno do ttulo de bacharel em Direito

    pela Faculdade de Direito da Universidade de Braslia (UnB) e aprovada pela banca

    examinadora composta pelos seguintes professores:

    _______________________________________

    Gabriela Neves Delgado

    Professora Doutora e Orientadora

    ______________________________________

    Renata Queiroz Dutra

    Doutoranda e Examinadora

    ______________________________________

    Othon de Azevedo Lopes

    Professor Doutor e Examinador

    ______________________________________

    Rodrigo Leonardo de Melo Santos

    Mestrando e Examinador

    Braslia

    2015

  • 4

    AGRADECIMENTOS

    Agradeo em primeiro lugar a Deus e a Nossa Senhora, por sempre guiarem meus

    caminhos e me confortarem nos momentos de dificuldade.

    Aos meus pais, pelo apoio incondicional que dedicaram minha formao, pela

    confiana que sempre depositaram em mim e pelo amor demonstrado todos os dias.

    A minha irm, Marina, obrigada pela companhia nesse momento crucial das nossas

    vidas. Fico muito feliz de terminar essa etapa ao seu lado. Com voc, o futuro no parece to

    assustador.

    Ao meu namorado, Wescley, por me escutar nos momentos de desespero e me

    incentivar a lutar pelos meus sonhos.

    Aos meus familiares de Belo Horizonte, que mesmo longe sempre se fizeram to

    presentes na minha vida.

    Aos meus amigos, obrigada por estarem comigo tanto nos momentos bons, como nos

    momentos difceis. Com vocs a jornada for mais leve, alegre e divertida.

    Professora Gabriela Neves Delgado, fonte de inspirao e exemplo de inteligncia e

    doura. Obrigada pelo apoio e pelas contribuies valiosas ao longo do trabalho.

    Aos professores Othon de Azevedo Lopes, Renata Queiroz Dutra e Rodrigo Leonardo

    de Melo Santos, pela participao na banca examinadora e pela ateno que dispensaram

    minha pesquisa.

  • 5

    RESUMO

    As transformaes trazidas pelo toyotismo geraram um modo de vida e de trabalho pautados

    na flexibilizao dos processos produtivos, instituindo um novo tipo de precarizao que

    encontra na terceirizao uma modalidade perfeita. A experincia brasileira sobre a

    terceirizao demonstra tratar-se de um mecanismo que traz dificuldades para a efetiva

    garantia de direitos trabalhistas, devendo ser utilizado apenas de forma excepcional. O

    objetivo da presente pesquisa analisar quais so as hipteses de configurao do dano

    existencial ao trabalhador terceirizado, na medida em que as pesquisas mais recentes

    demonstram que a intermediao da mo de obra faz com que o trabalhador se submeta a

    condies de precariedade no meio ambiente de trabalho, afetando seu reconhecimento como

    sujeito de direitos e dificultando a concretizao do direito fundamental ao trabalho digno.

    PALAVRAS-CHAVE: Flexibilizao. Precarizao. Terceirizao. Direitos Trabalhistas.

    Dano Existencial. Reconhecimento. Direito fundamental ao trabalho digno.

  • 6

    ABSTRACT

    The changes brought by the toyotism generated a way of living and working guided by the

    flexibility of the production processes, introducing a new kind of precariousness that finds in

    outsourcing a perfect match. The Brazilian experience on outsourcing demonstrates it is a

    mechanism that brings difficulties for the effective guarantee of labor rights, what implies it

    should be used on an exceptional way only. The objective of this study is to analyze what are

    the hypothesis that configure existential damage to outsourced workers, since the latest

    researches shows that the intermediation of labor makes the worker go throw precarious

    conditions in the work environment, what affects his recognition as subject of rights and

    makes difficult the achievement of the fundamental right to decent work.

    KEY-WORDS: Flexibility. Precariousness. Outsource. Labor Rights. Existential Damage.

    Recognition. Fundamental right to decent work.

  • 7

    SUMRIO

    INTRODUO.........................................................................................................................9

    CAPTULO I TERCEIRIZAO, FLEXIBILIZAO E PRECARIZAO..........11

    1.1 A precarizao social do trabalho e a terceirizao na era da acumulao flexvel...........11

    1.2 O just-in-time e o trabalhador como mercadoria.................................................................15

    1.3 O modo de vida reduzido e o deslocamento em relao ao tempo e ao espao..................16

    1.4 Os estabelecidos e os outsiders: discriminao e dificuldade de construo de uma

    identidade social e coletiva dos tercerizados......................................................................20

    CAPTULO II - A REGULAMENTAO DA TERCEIRIZAO NO BRASIL........24

    2.1 Conceito de terceirizao....................................................................................................24

    2.1.1 A terceirizao lcita e a terceirizao ilcita.......................................................26

    2.2 Evoluo legislativa e jurisprudencial da terceirizao......................................................27

    2.2.1 A necessidade de reformulao da legislao acerca da tercerizao..................32

    CAPTULO III - O DANO EXISTENCIAL E A TERCEIRIZAO.............................35

    3.1 (Re) pensando a lgica da terceirizao..............................................................................35

    3.2 O ser-no-mundo e o dano vida de relaes......................................................................37

    3.3 O dano existencial...............................................................................................................38

    3.3.1 Conceito...............................................................................................................38

    3.3.2 A distino entre dano existencial e dano moral e a possibilidade de cumulao

    dos dois institutos .........................................................................................................41

    3.3.3 O dano existencial nas relaes de trabalho terceirizadas....................................43

  • 8

    CAPTULO IV - A NECESSIDADE DE RESGATE DA PROTEO AO

    TRABALHADOR.............................................................................................................50

    4.1 O princpio da dignidade da pessoa humana como premissa para a efetividade dos direitos

    fundamentais do trabalhador.....................................................................................................50

    4.2 O direito fundamental ao trabalho digno............................................................................54

    4.3 Solidariedade social e reconhecimento...............................................................................56

    CONCLUSO.........................................................................................................................61

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS..................................................................................63

  • 9

    INTRODUO

    A terceirizao, prtica que vem sendo amplamente disseminada nos setores de

    prestao de servios, pode ser compreendida como uma forma de organizao estrutural que

    possibilita a transferncia das atividades perifricas ou complementares da empresa tomadora

    para a empresa prestadora de servios, a fim de possibilitar uma maior disponibilidade de

    recursos para sua atividade essencial ou nuclear, reduzindo a estrutura operacional e

    diminuindo os custos.

    Todavia, a experincia brasileira demonstra que a terceirizao se encontra

    intimamente relacionada precarizao das condies do trabalho, na medida em que

    atualmente as empresas terceirizam suas atividades no a fim de aumentar a produtividade ou

    a qualidade tcnica dos servios ou produtos prestados, mas sim visando obteno de uma

    maior margem de lucro, por meio de baixssimos salrios, altas jornadas de trabalho e falta de

    investimento nas melhorias do meio ambiente de trabalho e na qualificao da mo-de-obra

    dos trabalhadores.

    Mesmo que a Constituio Federal, pautada pelo princpio da dignidade, reconhea a

    proteo ao trabalho digno como direito fundamental, a realidade encontrada hoje no mercado

    de trabalho demonstra que as empresas no medem esforos a fim de reduzir os custos da

    produo e aumentar seu faturamento. Na intermediao da mo de obra, verifica-se que o

    objeto de negociao entre as empresas tomadora e prestadora de servios a fora de

    trabalho de alguns indivduos, transformando o trabalhador em mercadoria na cadeia

    produtiva da sociedade do trabalho.

    Um dos pontos mais crticos na terceirizao o dficit na sua regulamentao, o que

    ocasiona dificuldades na efetividade da proteo ao trabalhador. O Tribunal Superior do

    Trabalho, preocupando-se com o nvel de precariedade causado pela prtica terceirizante,

    editou o Enunciado 256, substitudo atualmente pela Smula 331, que funciona como um

    mecanismo de limite terceirizao, ao prever que a intermediao da mo de obra dever ser

    realizada apenas de maneira excepcional.

    Entretanto, ainda h uma grande presso do empresariado para eliminar os obstculos

    terceirizao: o Plenrio da Cmara dos Deputados aprovou, no dia 08 de abril de 2015, o

    texto-base do PL 4.330/04, que traz no bojo de seu texto a possibilidade de terceirizao de

  • 10

    qualquer atividade. O projeto se encontra atualmente em tramitao no Senado Federal e, se

    for aprovado definitivamente, aumentar ainda mais os nveis de precariedade nas relaes de

    trabalho trianguladas.

    Tendo em vista as tentativas de se instituir a terceirizao ilimitada de atividades, bem

    como a flexibilizao significativa dos direitos e garantias dos trabalhadores terceirizados, a

    presente pesquisa tem como objetivo analisar em que medida as condies precrias de

    trabalho e a violao recorrente de direitos trabalhistas podem possibilitar a configurao do

    dano existencial ao trabalhador tercerizado.

    No primeiro captulo, ser realizado um estudo do fenmeno da terceirizao a partir

    das ltimas mudanas ocorridas no mundo do trabalho e a ascenso do modelo toyotista de

    produo, ressaltando-se quais as consequncias da adoo dessa tcnica para a precarizao

    das condies de trabalho dos terceirizados.

    No segundo captulo, ser estabelecido um panorama da terceirizao, definindo seu

    conceito, sujeitos contratantes, tipos, bem como a evoluo legislativa e jurisprudencial

    acerca do tema e a necessidade da reformulao da regulamentao a fim de aumentar a

    proteo jurdica do trabalhador terceirizado.

    J no terceiro captulo, ser introduzida a figura do dano existencial, definindo seu

    conceito e quais so as hipteses de configurao desse novo tipo de dano ao trabalhador

    terceirizado, na medida em que ele muitas vezes no consegue tirar frias, encontra

    dificuldades em efetivar ambies pessoais diante da instabilidade e presso cotidianas, no

    h interesse por parte da prestadora ou da tomadora de servios na qualificao da sua mo de

    obra por meio de cursos profisionalizantes, h um deslocamento em relao ao espao e o

    tempo de trabalho, fazendo com que lhe seja retirado o protagonismo de seu projeto de vida e

    o convvio social com amigos e familiares.

    Por fim, o quarto captulo aponta a necessidade constitucional de se efetivar a

    realizao do trabalho em condies dignas, a fim de possibilitar o reconhecimento do

    trabalhador como sujeitos de direitos pelo meio que o circunda.

  • 11

    CAPTULO I

    Amou daquela vez como se fosse mquina Beijou sua mulher como se fosse lgico

    Ergueu no patamar quatro paredes flcidas

    Sentou pra descansar como se fosse um pssaro

    E flutuou no ar como se fosse um prncipe

    E se acabou no cho feito um pacote bbado

    Morreu na contramo atrapalhando o sbado

    Chico Buarque de Hollanda

    TERCEIRIZAO, FLEXIBILIZAO E PRECARIZAO

    1.1 A precarizao social do trabalho e a terceirizao na era da acumulao flexvel

    A terceirizao consiste, em primeira medida, num processo de reorganizao das

    formas de produo resultantes das transformaes econmicas trazidas pelo capitalismo.1 As

    transformaes ocorridas no final do sculo XX ocasionaram a reconfigurao das relaes

    capital-trabalho, que passaram a ser vislumbradas a partir de um contexto neoliberalista de

    redefinio mundial do capital e dos processos produtivos, numa busca insacivel pelo lucro.

    As transformaes trazidas pela ruptura com o padro fordista e a implementao do

    sistema de gesto toyotista geraram um modo de vida e de trabalho pautados na flexibilizao

    dos modos de organizao e gesto do trabalho, buscando encurtar radicalmente os tempos da

    produo, bem como otimizar o uso da fora de trabalho.

    No Brasil, foi a partir dos anos 1990 que o modelo de gesto toyotista se expandiu

    intensamente pelos setores da economia, consolidando uma fase de epidemia da qualidade e

    da produtividade no pas, que foi caracterizada, principalmente, pela implantao dos

    programas de qualidade total e terceirizao nas empresas, em reforo aos novos mecanismos

    de gesto j adotados desde a dcada de 1970.2

    Diferentemente da acumulao de massa trazida pelo modelo fordista, a nova

    organizao dos processos de produo baseia-se numa produo enxuta e no pronto

    1 LIMA, Jacob Carlos. A terceirizao e os trabalhadores: revisitando algumas questes. Cadernos de

    Psicologia Social do Trabalho, 2010, vol. 13, n. 1, p.18. 2 DELGADO, Gabriela Neves. AMORIM, Helder Santos. Os limites constitucionais da terceirizao. 1 ed. So

    Paulo: LTr, 2014, p. 11.

  • 12

    atendimento, em que as mercadorias so produzidas com um alto grau de especializao e em

    conformidade com a demanda individualizada no mercado consumidor.

    Para caracterizar a lgica introduzida pela nova configurao do mundo do trabalho,

    David Harvey utiliza a expresso acumulao flexvel, que se caracteriza pelo surgimento

    de setores de produo, fornecimento de servios e mercados inteiramente novos, apoiados na

    flexibilizao dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padres de

    consumo.3

    Nessa nova dinmica do desenvolvimento do capitalismo, percebe-se que a

    flexibilidade utilizada como estratgia de precarizao do trabalho, encontrando na

    terceirizao uma modalidade perfeita para viabilizar um grau de acumulao sem limites.

    Segundo Graa Druck, a epidemia da terceirizao, enquanto uma modalidade de

    gesto e de organizao do trabalho, em que a lgica da acumulao financeira exige total

    flexibilidade em todos os nveis do processo produtivo, institui um novo tipo de precarizao

    que passa a dirigir a relao capital e trabalho em todas as suas dimenses.4

    Assim, as empresas dos setores industrial e de servio, em busca da produo de

    rendimentos, transferem aos trabalhadores a presso pela maximizao do tempo, pelas altas

    taxas de produtividade, pela reduo dos custos com o trabalho e pela volatilidade nas

    formas de insero e de contratos, correspondendo a terceirizao a todas essas exigncias.5

    Por meio da terceirizao, o processo produtivo flexibilizado, j que ocorre uma

    reorganizao das atividades empresariais: as empresas passam a focar em sua atividade-fim,

    externalizando para outras empresas as atividades consideradas perifricas. H uma

    concentrao no produto principal; qualquer outros setores ou servios considerados

    complementares so transferidos para outras empresas, as denominadas prestadoras.

    Nesse sentido, a terceirizao no trata de simples mudana na estrutura da relao

    empregado-empregador, devendo ser compreendida no contexto de mudana na gesto dos

    processos produtivos e da consequente formao de uma nova viso do mundo do trabalho.

    3 HARVEY, David. Condio ps-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudana cultural. 16. ed. So

    Paulo: Loyola, 2006. p. 140. 4 DRUCK, M. G. Trabalho, precarizao e resistncias. Caderno CRH (UFBA), Salvador, EDUFBA, v. 24,

    2011, p. 47 5 Idem.

  • 13

    Os efeitos negativos provocados pela terceirizao podem ser vislumbrados a partir de

    diversos aspectos, detacando-se o econmico, o empresarial e o sindical.

    No mbito econmico, a tercerizao ocasiona o decrscimo no nmero de empregos

    formais com as empresas tomadoras, fomentando o surgimento de pequenas e mdias

    empresas que, de maneira geral, utilizam a subcontratao de servios; amplia o desemprego,

    na medida em que a maioria dos empregados que tem seu trabalho extinto nas empresas

    tomadoras tem dificuldades de se inserir novamente no mercado formal; aumenta a

    rotatividade da mo-de-obra, o que causa insegurana no emprego e insufla os sentimentos de

    individualizao nas relaes de trabalho.6

    J no plano empresarial, evidencia-se que as instalaes das empresas terceirizadas

    no possuem as mesmas condioes de segurana e higiene das empresas tomadoras,

    proporcionando uma maior degradao do meio ambiente de trabalho e sendo um facilitador

    para a ocorrncia de acidentes de trabalho.7

    Na seara sindical, ressalta-se a desintegrao da identidade coletiva dos trabalhadores,

    o que estimula o enfraquecimento das entidades sindicais e a ampliao da competividade

    entre os prprios trabalhadores.8

    As empresas terceirizam no devido especializao tcnica, ao crescimento da

    produtividade, ao desenvolvimento de produtos com maior valor agregado ou maior

    tecnologia, mas sim visando obteno de uma maior margem de lucro, em especial, por

    meio de baixssimos salrios, altas jornadas de trabalho e precariedade no investimento de

    melhorias do meio ambiente de trabalho, bem como na qualificao da mo-de-obra dos

    trabalhadores.9

    Um dos maiores argumentos do segmento industrial a favor da terceirizao que sua

    utilizao gera mais empregos, argumento que no deve subsistir. Esses empregos j teriam

    que existir para a produo e realizao dos servios necessrios grande empresa. O que

    importante pontuar que a empresa terceira oferece empregos, mas de trabalho precrio, com

    jornadas maiores e ritmo de trabalho exaustivo.

    6 DRUCK, M. G. Trabalho, precarizao e resistncias. Caderno CRH (UFBA), Salvador, EDUFBA, v. 24,

    2011, p. 188. 7 Idem.

    8 Idem.

    9 ALVES, Giovanni. Terceirizao e neodesenvolvimentismo, Blog boitempo. Disponvel em:

    http://www.boitempoeditorial.com.br/v3/. Acesso em: 01.05.2015.

  • 14

    De acordo com a pesquisa realizada pelo DIEESE em parceria com a CUT, os dados

    so alarmantes: se a jornada dos trabalhadores em setores tipicamente terceirizados fosse

    igual jornada daqueles contratados diretamente, seriam criadas 882.959 postos de trabalho a

    mais; a diferena entre a remunerao mdia dos trabalhadores diretos e terceirizados cerca

    de 24,7%; os trabalhadores terceirizados cumprem jornada de trabalho de 3 horas a mais

    semanais em comparao ao trabalhadores diretos.10

    Alm disso, o tempo mdio de permanncia no emprego para os trabalhadores diretos

    de 5,8 anos, enquanto dos trabalhadores terceirizados de 2,7 anos; no setor eltrico, dos 79

    trabalhadores que morreram em acidente de trabalho, 61 eram terceirizados; na construo

    civil, de 135 trabalhadores mortos em acidente de trabalho, 75 bitos foram de terceirizados;

    nos servios especializados, 30 em 34 bitos envolveram terceirizados11

    ; nas dez maiores

    operaes de trabalhadores em situao anloga de escravido, quase 3 mil dos 3.553 casos

    envolveram trabalhadores terceirizados.12

    Isso demonstra que a terceirizao est diretamente relacionada precarizao do

    trabalho, pois ela viabiliza um grau de liberdade quase ilimitado para gerir e dominar a fora

    de trabalho, na medida em que se descompromete o vnculo formal de emprego ao deslocar,

    para um terceiro, o risco da atividade econmica.13

    Dessa forma, h uma evidente desproporcionalidade em favor do capital e em

    detrimento do trabalho, o que faz com que a prtica da terceirizao de maneira ilimitada seja

    uma afronta aos prncipios constitucionais do valor social do trabalho e da realizao de um

    trabalho digno.

    10

    CUT. DIEESE (2014) Terceirizao e desenvolvimento: uma conta que no fecha: / dossi acerca do impacto

    da terceirizao sobre os trabalhadores e propostas para garantir a igualdade de direitos / Secretaria. Nacional de

    Relaes de Trabalho e Departamento Intersindical de Estatstica e Estudos Socioeconmicos. - So Paulo:

    Central nica dos Trabalhadores, 2014. 11

    Idem. 12

    CAVALCANTI, Hylda. Para Dieese, relao entre terceirizao, mortes no servio e trabalho escravo 'gritante'.

    Publicado em 13/04/2015 19:52. Disponvel em: http://www.redebrasilatual.com.br/politica/2015/04/para-

    dieese-relacao-entre -terceirizacao-mortes-no-servico-e-trabalho-escravo-e-gritante-3622.html. Acesso em:

    04.05.2015. 13

    DRUCK, Graa. SILVA, Jair Batista da. Precarizao, Terceirizao e Ao sindical. In: SENA, Adriana

    Goulart de; DELGADO, Gabriela Neves; NUNES, Raquel Portugal (coord.). Dignidade humana e incluso

    social: para a efetividade do direito do trabalho no Brasil. So Paulo: LTR, 2010.2014, p. 34.

  • 15

    1.2 O just-in-time e o trabalhador como mercadoria

    O just-in-time um dos princpios trazidos pelo toyotismo e tem como premissa a

    reduo de estoques ao mnimo possvel, fazendo com que a produo seja diretamente regida

    pela demanda do mercado. 14

    Para Taiichi Ohno, idelogo do toyotismo, o just-in-time significa que, num processo

    de fluxo da produo industrial, as partes corretas necessrias montagem alcanaro a linha

    de montagem na quantidade certa e apenas no momento em que so necessrias. Essa a

    logica do just-in-time: a produo no tempo certo.15

    Nesse sentido, no mais o mercado que se adapta ao ritmo da produo, como

    ocorria no fordismo, mas o contrrio. As empresas se horizontalizam, e as atividades

    consideradas no essenciais so delegadas a empresas que oferecem uma atividade

    especializada a custos mais baixos.

    O problema que o just-in-time, quando aplicado fora de trabalho, conserva a

    mesma lgica de eliminar estoques, valendo-se -a cada instante da quantidade exata

    de mercadoria de que precisa. Como essa mercadoria, no caso, o prprio

    trabalhador, as consequncias so dramticas.16

    Na terceirizao de servios, o que negociado no simplesmente um produto ou um

    trabalho intelectual especializado, mas a fora de trabalho de alguns indivduos. Sendo assim,

    o que se percebe a prpria incluso do trabalhador como mercadoria na cadeia produtiva da

    sociedade do trabalho.

    A empresa lucrar com a fora de trabalho alugada a um tomador, o que implica concluir: o homem perde a perspectiva da centralidade do trabalho. Ao invs de

    figurar como protagonista da relao de trabalho ocupando um dos seus plos , o homem passa a ser objeto de uma negociao de natureza comercial.

    17

    Tendo em vista que o lucro das empresas prestadoras auferido a partir da fora de

    trabalho humana, as consequncias para o trabalhador terceirizado so nefastas. Num mercado

    altamente competitivo, o que prevalesce o menor preo. Ou seja, alm de pertencer a uma

    14

    ALVES, Giovanni. Terceirizao e neodesenvolvimentismo, Blog boitempo. Disponvel em: http://www.boitempoeditorial.com.br/v3/. Acesso em: 01.05.2015. p. 18. 15

    Idem. 16

    VIANA, Mrcio Tlio. DELGADO, Gabriela Neves. AMORIM, Helder Santos. Terceirizao Aspectos

    gerais. A ltima deciso do STF e a Smula 331 do TST. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, ano 77 -no 1

    - jan. a mar. 2011, p. 58. 17

    PAIXO, Cristiano. Tercerizao: o trabalho como mercadoria. In Tribuna do Brasil - UnB Sindjus. DF CONSTITUIO & DEMOCRACIA. 2006.

  • 16

    empresa que utiliza de sua fora de trabalho como objeto de negociao, o trabalhador

    terceirizado ter o valor do seu salrio barganhado, j que o que realmente interessa a

    obteno de um contrato para prestao de servios.

    Vale destacar que a Administrao Pblica, umas das maiores contratantes de servio

    terceirizado, funciona atravs da lgica do menor preo, por intemdio de licitao ou prego,

    gerando uma competitividade entre as empresas para descobrir quem paga o melhor preo,

    que nesse caso o menor.18

    Sendo a fora de trabalho humano a nica fonte de lucro da prestadora, qualquer tipo

    de treinamento de pessoas importar em um alto custo para a empresa. Com isso, percebe-se

    uma das maiores desvantagens do trabalhador terceirizado: no h investimento em formao,

    qualificao e aperfeioamento profissional, o que gera como resultado um trabalhador

    desqualificado, sem formao, sem perspectiva, sem futuro.19

    Nessa relao triangular, o que se percebe que o prestador de servios no tem como

    objetivo a produo de bens e atividades. A mo-de-obra no utilizada como valor de uso,

    mas como meio de troca, transformando o trabalhador em mercadoria e impedindo a

    realizao de um trabalho digno.

    1.3 O modo de vida reduzido e o deslocamento em relao ao tempo e ao espao

    A lgica do just-in-time, quando aplicada no prprio modo de vida do sujeito, implica

    uma maior carga de presso no plano psiquco do homem-que trabalha, tendo em vista que ele

    opera o fenmeno da vida reduzida. E o que seria viver uma vida reduzida?

    Para Giovanni Alves, a vida reduzida significa a vida veloz, sinalizada, enxuta,

    capturada e invertida.20

    A vida reduzida veloz, na medida em que a produo em rede, tpica da gesto

    toyotista, traz como consequncia no apenas a valorizao do capital, mas reverbera tambm

    no aumento da velocidade dos circuitos vitais do organismo social.21

    18

    PAIXO, Cristiano. Tercerizao: o trabalho como mercadoria. In Tribuna do Brasil - UnB Sindjus. DF CONSTITUIO & DEMOCRACIA. 2006. 19

    Idem. 20

    ALVES, Giovanni. Terceirizao e neodesenvolvimentismo, Blog boitempo. Disponvel em:

    http://www.boitempoeditorial.com.br/v3/. Acesso em: 01.05.2015, p. 19. 21

    Idem.

  • 17

    sinalizada, j que a comunicao numa sociedade miditica formada por redes

    realizada atravs de sinais capazes de manipular a subjetividade do trabalho no s no plano

    da produo, como tambm no plano da vida cotidiana. 22

    capturada, j que intensamente manipulada nas mais diversas esferas da vida

    social, afetando a prpria subjetividade.23

    enxuta, j que o tempo de vida reduzido s atividades necessrias carreira

    profissional, ocasionando um pragmatismo existencial em que os requerimentos valorativos

    do trabalho entranhado invadem o tempo livre e reduzem a relao com amigos e familiares.24

    invertida, na medida em que o tempo futuro reduz-se ao tempo presente, no sentido

    em que, nas condies de precariedade salarial, h uma dificuldade de passagem para a vida

    adulta, que representa um emprego com carreira profissional, famlia como realizao pessoal

    e consumo como fruio vital.25

    O capital avassala a possibilidade de desenvolvimento humano pessoal dos indivduos

    sociais, ocupando o tempo de vida das pessoas com a lgica do trabalho entranhado e a lgica

    da mercadoria e do consumismo desenfreado.26

    Sendo a terceirizao a principal manifestao

    do sistema toyotista de produo, percebe-se que o trabalhador terceirizado vive essa vida

    reduzida, que antpoda a uma vida plena de sentido pautada pela realizao de projetos de

    vida e planos para o futuro.

    E a fruio de uma vida reduzida ainda mais perceptvel ao trabalhador terceirizado,

    que alm de viver sob a tica da acumulao flexvel e sofrer os efeitos perversos de um

    capitalismo tardio, desprovido da noo de tempo e espao, elementos constitutivos da

    experincia humana no mundo exterior.27

    O deslocamento em relao ao tempo ocorre pela vinculao da prestao de servios

    a um contrato de durao determinada. A renovao desse contrato no garantida, j que

    outra empresa pode oferecer um pacote mais favorvel aos interesses da tomadora de

    servios. Ao ter a sua permanncia na prestadora condicionada existncia de uma

    22

    ALVES, Giovanni. Terceirizao e neodesenvolvimentismo, Blog boitempo. Disponvel em:

    http://www.boitempoeditorial.com.br/v3/. Acesso em: 01.05.2015. p. 20. 23

    Idem. 24

    Idem. 25

    Ibidem, p. 19 e 20. 26

    Idem. 27

    PAIXO, Cristiano. Tercerizao: o trabalho como mercadoria. In Tribuna do Brasil - UnB Sindjus. DF CONSTITUIO & DEMOCRACIA. 2006.

  • 18

    tomadora, o trabalhador terceirizado v o seu futuro equivalente ao vazio, ausncia e ao

    incerto.28

    A precarizao do trabalho manifesta-se como tendncia que atinge todos os

    trabalhadores, estando por toda a parte: servios pblicos, servios privados, nos meios de

    comunicao, etc. E seus efeitos so similares, embora com gradaes distintas: h uma

    desestruturao da existncia e das estruturas temporais, tornando o futuro incerto e

    transformando a insegurana como modo generalizado de vida.29

    Todavia, para o trabalhador terceirizado, a insegurana e o temor so maiores: ele no

    tem perspectiva de ascenso funcional; a competitividade entre as empresas tem como

    consequncia a busca de um trabalhador barato, sem experincia, sem treinamentos, sem

    expectativas; a perspectiva de planejamento do futuro subtrada do trabalhador terceirizado,

    j que a possibilidade de ascenso profissional e qualificao so nfimas.30

    A perda da referncia de espao, por sua vez, ocorre pelo fato de que o trabalhador no

    fica vinculado apenas a um tomador, podendo trabalhar em diversas empresas ao longo da

    durao da prestao de servios. A contratao de mo-de-obra no envolve um indivduo

    determinado, o que negociado a prpria fora de trabalho, no importando empresa

    tomadora quem de fato vai realizar a atividade proposta.31

    A terceirizao de servios promove a presena instvel do trabalhador em diferentes

    ambientes artificiais de vrios tomadores. As prestadoras no exercem nenhum domnio em

    relao ao meio ambiente de trabalho do terceirizado, o que dificulta a proteo da higidez

    local, dos mtodos, das interaes, influncias e organizaes da atividade laborativa, o que se

    revela pelos altos ndices de acidentes do trabalho e doenas ocupacionais nas empresas de

    terceirizao. Nesse sentido, percebe-se que a integrao do trabalhador vida da empresa

    indispensvel proteo da relao de emprego em sua dimenso preservadora da sade e

    segurana do trabalhador.32

    28

    PAIXO, Cristiano. Tercerizao: o trabalho como mercadoria. In Tribuna do Brasil - UnB Sindjus. DF CONSTITUIO & DEMOCRACIA. 2006. 29

    LIMA, Jacob Carlos. A terceirizao e os trabalhadores: revisitando algumas questes. Cadernos de

    Psicologia Social do Trabalho, 2010, vol. 13, n. 1, p. 19. 30

    PAIXO, Cristiano. Op, cit. 31

    Idem. 32

    DELGADO, Gabriela Neves. AMORIM, Helder Santos. Os limites constitucionais da terceirizao. 1 ed. So

    Paulo: LTr, 2014, p. 104.

  • 19

    Quando no h esse deslocamento em relao ao espao, ocorre um fenmeno

    invertido, mas igualmente prejudicial ao trabalhador terceirizado: mantem-se os postos de

    trabalho na empresa tomadora, modificando com uma alta rotatividade as empresas

    prestadoras. Essas empresas prestadoras desaparecem e o trabalhador terceirizado, alm de

    encontrar dificuldade em indicar quem seu novo empregador, emenda uma contratao em

    outra sem usufruir do seu direito a frias previsto constitucionalmente. Como bem apontam

    Gabriela Neves Delgado e Helder Santos Amorim:

    [...] Esses trabalhadores que tm seus contratatos sucessivamente extintos antes de

    completar um ano de trabalho, no chegam a adquirir o direito s frias anuais

    remuneradas. Mesmo aqueles que tm seus contratos extintos ao final de cada ano

    de trabalho, apesar de adquirirem o direito frias, na forma do art. 130 da CLT, por

    no permanecerem no emprego nos doze meses consecutivos, que compreendem o

    perodo concessivo de frias, terminam por no usufru-las, esvaziando

    sobremaneira a eficcia do direito previsto no art. 7, XVII, da Constituio, direto

    este voltado regenerao fsica e mental e promoo do convvio social e familiar

    do trabalhador.33

    O trabalhador terceirizado frequentemente se pergunta se continuar a ter seu emprego

    quando o contrato de prestao for finalizado; quem ser seu prximo empregador; qual vai

    ser a sua prxima atividade; se seu empregador vai desaparecer; se ele vai ficar inadimplente

    com suas contas, o que torna a sua vida permeada por uma imprevisibilidade aterrorizante.34

    A fragmentao das dimenses de tempo e espao impede a construo da narrativa

    das trajetrias profissionais dos trabalhadores terceirizados, num momento histrico em que o

    trabalho deveria ser a concretude da autonomia e dignidade da pessoa humana.35

    A relao de trabalho triangular no apenas rompe com a relao trabalhista clssica

    entre empregado e empregador, mas interfere diretamente na prpria subjetividade do

    trabalhador terceirizado, que se encontra num mar de incertezas no s em relao ao seu

    papel desenvolvido no meio ambiente de trabalho - que vive em constante mudanas-, mas

    tambm em relao ao seu futuro e perspectiva de vida.

    33

    DELGADO, Gabriela Neves. AMORIM, Helder Santos. Os limites constitucionais da terceirizao. 1 ed. So

    Paulo: LTr, 2014, p. 106. 34

    PAIXO, Cristiano. Tercerizao: o trabalho como mercadoria. In Tribuna do Brasil - UnB Sindjus. DF CONSTITUIO & DEMOCRACIA. 2006. 35

    Idem.

  • 20

    1.4 Os estabelecidos e os outsiders: discriminao e dificuldade de construo de uma

    identidade social e coletiva dos tercerizados

    A partir da observao de um pequeno povoado na Inglaterra, Winston Parva, Norbert

    Elias percebeu que a comunidade local era dividida em dois grupos, que o autor denomina de

    os estabelecidos e os outsiders. Os estabelecidos (em ingls established) a expresso

    utilizada para designar um grupo de indivduos que ocupam posio de poder e prestgio. So

    considerados uma boa sociedade, que tem a identidade social baseada na tradio, na

    autoridade e na influncia. Em contraposio, os outsiders consistem num conjunto

    heterogneo e difuso de pessoas unidas por laos sociais menos intensos que unem os

    established.36

    A configurao estabelecidos-outsiders pode ser percebida no apenas nessa

    comunidade especfica, mas como uma constante universal nas relaes humanas. Embora a

    natureza das fontes humanas que se fundamentam a superioridade social do grupo

    estabelecido em relao aos outsiders possa variar, possvel encontrar caractersticas

    comuns em contextos sociais diferentes.

    No processo de terceirizao de servios, a clivagem entre os trabalhadores se mostra

    mais evidente, j que as empresas terceirizadas atuam dentro do espao da empresa primeira,

    expondo a situao contratual distinta dos trabalhadores.

    Ao se deslocar a relao estabelecidos-outsiders para o meio ambiente de trabalho

    encontrado nas empresas tomadoras de servio, percebe-se a seco dos trabalhadores em dois

    grupos: um grupo central (os estabelecidos), composto por trabalhadores qualificados e

    detentores de empregos formais e estveis; e um grupo marginalizado (os outsiders),

    composto por terceirizados, temporrios, autnomos e subcontratados em geral, que

    prestariam servios em condies precrias e sem segurana no posto de trabalho.

    Essa diviso entre os trabalhadores resulta num processo de estigmatizao

    organizacional a partir da distino criada nos locais de trabalho entre trabalhadores diretos e

    terceiros, seja porque o tipo de trabalho desenvolvido pelo terceiro considerado menos

    36

    ELIAS, Norbert. SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relaes de poder a

    partir de uma comunidade. Traduo Vera ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2000, p.7.

  • 21

    importante, seja pelas desigualdades de salro, qualificao, jonadas e condies de

    trabalho.37

    Os trabalhadores terceirizados no possuem uma vinculao espao-temporal com o

    empregador ou o tomador final dos servios, nem com os prprios colegas de trabalho. A

    conjectura de coexistirem trabalhadores de diferentes categorias gera hierarquizao entre

    os obreiros, implicando desmerecimento e discriminao dos precrios pelos prprios

    trabalhadores formais. Os uniformes, os crachs de identificao e at os refeitrios utilizados

    pelos terceirizados so distintos dos trabalhadores centrais, fazendo com que os precrios se

    afirmem, dentro dos prprios estabelecimentos para os quais trabalham, como subcategoria.38

    A falta de coeso dos indivdos outsiders tambm pode ser percebida: h uma ausncia

    de integrao em relao ao corpo produtivo e os laos formados a partir do trabalho so

    frouxos demais para a vinculao subjetiva do trabalhador terceirizado, no sentido de

    vivenciar no meio ambiente de trabalho situaes para sua prpria narrativa de vida.

    H uma dificuldade evidente de afirmao da identidade social do trabalhador

    terceirizado, pois sua vivncia numa periferia precria e s margens de um sistema de

    proteo legal faz com que seu papel de inferioridade e seu desprestgio social seja

    naturalizado e perpetuado, impedindo suas perspectivas de reconhecimento no trabalho.

    Portanto, na situao dos precrios, a afirmao identitria bastada seja pela baixa

    retribuio que o trabalho lhe empresta, seja pelo parco reconhecimento que as

    atividades desempenhas de modo precrio proporcionam, seja, ainda, pela

    dificuldade de estabelecimento de vinculos sociais slidos a partir desse tipo de

    trabalho.39

    A dificuldade de afirmao identitria do trabalhador terceirizado tambm agravada

    pela ausncia de uma identidade coletiva entre esses trabalhadores, j que a sindicalizao, em

    face do sistema adotado pela Constituio Federal de 1998, no se d com os colegas da

    empresa, mas com categorias diversas que abrangem grupos heterogneos de trabalhadores

    precrios. A alta rotatividade no mercado faz com que esses trabalhadores se enquadrem,

    37

    CUT. DIEESE (2014) Terceirizao e desenvolvimento: uma conta que no fecha: / dossi acerca do impacto

    da terceirizao sobre os trabalhadores e propostas para garantir a igualdade de direitos / Secretaria. Nacional de

    Relaes de Trabalho e Departamento Intersindical de Estatstica e Estudos Socioeconmicos. - So Paulo:

    Central nica dos Trabalhadores, 2014. 38

    DUTRA, Renata Queiroz. Direitos fundamentais proteo da subjetividade no trabalho e emancipao

    coletiva. In Trabalho Constituio e Cidadania: a dimenso coletiva dos direitos sociais trabalhistas/

    Organizadores: Gabriela Neves Delgado, Ricardo Jos Macdo de Britto Pereira. So Paulo: LTr, 2014, p. 221. 39

    Idem.

  • 22

    sucessivamente, em diversas categorias, sem a possibilidade de desenvolver laos com

    qualquer uma delas.40

    A excluso do trabalhador da categoria econmica vinculada atividade econmica

    do beneficirio final de sua mo de obra, o tomador de servios, constitui veculo de

    fragilizao social do trabalhador terceirizado, pois inviabiliza sua reunio em torno

    do sindicato legitimado para a defesa dos seus reais interesses, frustrando-lhe as relaes de cooperao e de solidariedade e a prpria identidade de classe, com sria

    perda de conquista de direitos voltados melhoria de sua condio social (Constituio, art. 7 , caput).41

    No h tambm a percepo de uma identidade coletiva pelos trabalhadores perifricos

    e pelos trabalhadores centrais, j que os dois grupos se vem como inimigos, como se fossem

    responsveis pela reduo ou negao de postos de trabalho e vantagens profissionais dos

    outros.42

    Sendo assim, formam-se subgrupos com interesses totalmente opostos, o que

    dificulta uma organizao do trabalho slida.

    No novo modelo toyotista de produo, principalmente nas relaes de trabalho

    terceirizadas, a afirmao de uma identidade coletiva entre os obreiros se encontra

    impossibilitada, j que o estabelecimento de vnculos de solidariedade substitudo pelo

    individualismo e pela competio, fazendo com que os trabalhadores que trabalham lado a

    lado se transformem em adversrios, seja porque so divididos em grupos (centrais

    /estabelecidos e precrios/outsiders), cujo empregos so reciprocamente ameaados uns pela

    existncia dos outros, seja porque precisam se esforar individualmente para alcanarem

    resultados.43

    A diviso entre estabelecidos e outsiders afeta tambm os indivduos que se encontram

    na posio de hierarquia, pois sempre h o medo dos trabalhadores centrais de se tornarem

    precrios, seguindo o caminho sem volta da precarizao e do desemprego. Esse medo faz

    com que o trabalhador direto aumente seus sentimentos de desapreo pelo trabalhador

    terceirizado, intensificando ainda mais as formas de estigmatizao dos indivduos outsiders.

    40

    DUTRA, Renata Queiroz. Direitos fundamentais proteo da subjetividade no trabalho e emancipao

    coletiva. In Trabalho Constituio e Cidadania: a dimenso coletiva dos direitos sociais trabalhistas/

    Organizadores: Gabriela Neves Delgado, Ricardo Jos Macdo de Britto Pereira. So Paulo: LTr, 2014, p. 222.. 41

    DELGADO, Gabriela Neves. AMORIM, Helder Santos. Os limites constitucionais da terceirizao. 1 ed. So

    Paulo: LTr, 2014, p. 109. 42

    Ibidem, p. 222. 43

    Ibidem, p. 217.

  • 23

    Sendo assim, alm de todas as mazelas trazidas pela terceirizao e pela consequente

    precarizao do trabalho (salrios baixos, alta rotatividade, aumento do ndice de acidentes de

    trabalho, deslocamento em relao ao espao-tempo, etc), os trabalhadores terceirizados

    sofrem recorrentemente discriminao no meio ambiente de trabalho, sendo considerados

    subcategoria de trabalhadores.

  • 24

    CAPTULO II

    "O trabalho no pode ser uma lei sem ser um direito"

    Victor Hugo

    A REGULAMENTAO DA TERCEIRIZAO NO BRASIL

    2.1 O conceito de terceirizao

    Para Maurcio Godinho Delgado, a terceirizao pode ser caracterizada pela

    dissociao entre a relao econmica de trabalho da relao juristrabalhista que lhe seria

    correspondente, j que o trabalhador, mesmo que inserido no processo de produo da

    empresa tomadora de servios, no possui vnculos trabalhistas com a mesma, que sero

    fixados com a entidade intermediadora.44

    No modelo clssico da relao de emprego, o trabalhador presta servios de natureza

    econmica material diretamente ao empregador, com o qual possui vnculo empregatcio. J

    na relao trilateral terceirizante, os servios so prestados a um tomador, mas a relao de

    emprego estabelecida com outro sujeito, a empresa prestadora.45

    Dessa forma, pode-se compreender a terceirizao como a relao trilateral que

    possibilita empresa tomadora dos servios descentralizar e intermediar suas atividades

    acessrias para empresas terceirizantes, pela utilizao de mo de obra terceirizada, o que, a

    partir da viso administrativa, consiste em instrumento que facilita o processo produtivo em

    escala global.46

    Na terceirizao, h uma desnaturao da relao clssica empregado-empregador,

    uma vez que quem usufrui diretamente dos servios realizados pelo trabalhador no mais

    seu empregador, mas o tomador de servios.47

    Como explica Cristiano Paixo, em sua forma

    original a terceirizao no ocasionava a desvinculao do trabalhador de seu real

    empregador:

    44

    DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 11 ed. So Paulo: LTr, 2012, p. 435. 45

    DELGADO, Gabriela Neves. Terceirizao. Paradoxo do direito do trabalho contemporneo. So Paulo: LTR, 2003, p. 139. 46

    Idem. 47

    PAIXO, Cristiano. Tercerizao: o trabalho como mercadoria. In Tribuna do Brasil - UnB Sindjus. DF CONSTITUIO & DEMOCRACIA. 2006.

  • 25

    Originalmente, terceirizao era considerada uma prtica que no envolvia o desprendimento do trabalhador da relao com o tomador de servios: terceirizao

    era simplesmente a contratao, por uma empresa, de uma outra pessoa jurdica para

    a consecuo de um fim determinado. Por exemplo: uma montadora de automveis

    poderia como ocorre at hoje contratar uma empresa do ramo de autopeas para o fornecimento de uma certa mercadoria a ser utilizada na fabricao de um carro.

    Esse tipo de contratao no abala o modelo binrio descrito acima: ambas as

    empresas citadas em nosso exemplo pertencem ao ramo da indstria metalrgica;

    assim, os trabalhadores das duas empresas seriam regidos pela mesma norma

    coletiva, estariam abrangidos pelo mesmo sindicato (j que vigora, no Brasil, a

    unicidade sindical) e poderiam reportar-se, em suas demandas, diretamente quela

    empresa tomadora de seus servios. O mesmo raciocnio vale para empresas

    pertencentes a ramos de atividades diferentes (...). O que h em comum nos dois

    exemplos um fato: a contratao, nesses casos de terceirizao clssica, tem por objeto um determinado servio que normalmente assume a forma de um produto -, mas nunca o trabalhador. A fora de trabalho no entra na equao.

    48

    A terceirizao pode ser entendida a partir de duas modalidades: a terceirizao de

    atividades, correspondente ao processo que ocorre para fora da empresa e a terceirizao de

    servios, que aquela que ocorre para dentro da empresa.49

    Na terceirizao de atividades, a empresa tomadora terceiriza certas atividades

    (inclusive o vnculo empregatcio) para outras empresas, que se forem autnomas, se

    responsabilizaro por toda a dinmica produtiva. Todavia, havendo interdependncia entre a

    empresa tomadora de servios e a prestadora, h a configurao de grupo econmico para fins

    justrabalhistas, implicando na responsabilidade solidria das empresas pelos crditos dos

    empregados.50

    Na terceirizao de servios, modalidade na qual ser dado enfoque nessa pesquisa, a

    empresa tomadora incorpora ao seu quadro o trabalho dos empregados contratados pela

    empresa terceirizante, sendo responsvel pela produo de bens e atividades realizados por

    trabalhadores terceirizados.51

    Ou seja, mesmo que o trabalhador trabalhe no mesmo local e se

    submeta aos mesmos chefes e gerentes que o empregado direto da tomadora, ele empregado

    da prestadora de servio, que tem a sua existncia justificada apenas para a realizao da

    intermediao de mo de obra.

    48

    PAIXO, Cristiano. Tercerizao: o trabalho como mercadoria. In Tribuna do Brasil - UnB Sindjus. DF CONSTITUIO & DEMOCRACIA. 2006. 49

    DELGADO, Gabriela Neves. Direito fundamental ao trabalho digno. So Paulo. LTr, 2006, p. 185. 50

    Ibidem, p. 186. 51

    Ibidem, p. 185.

  • 26

    2.1.1 A terceirizao lcita e a terceirizao ilcita

    O Tribunal Superior do Trabalho, a fim de evitar a utilizao da intermediao de

    mo-de-obra com fins fraudulentos, emitiu a Smula 331 (antigo enunciado 256), que versa

    sobre a terceirizao de servios, distinguindo sua forma lcita e ilcita.

    A terceirizao lcita ocorre em quatro grupos de situaes sociojurdicas: em primeiro

    lugar, nas situaes empresariais que autorizam a contratao de trabalho temporrio,

    especificadas na Lei 6.019/74, decorrentes ou das necessidades transitrias de substituio de

    pessoal regular e permanente da empresa tomadora, ou das necessidades resultantes de

    acrscimo extraordinrio de servios dessa empresa; em segundo lugar, nas atividades de

    vigilncia, regidas pela Lei n. 7102/83; em terceiro lugar, nas atividades de conservao e

    limpeza; e, por fim, nos servios especializados ligados atividade-meio do tomador, que

    so aqueles no se ajustam ao ncleo das atividades empresariais do tomador de servios.52

    Importante ressaltar que nas trs ltimas situaes-tipos enunciadas, a terceirizao s

    ser lcita desde que inexistente a pessoalidade e a subordinao entre trabalhador e tomador

    de servios (Smula 331, III, in fine). Isso significa dizer que a empresa terceirizante que

    responde pela direo dos servios efetuados no estabelecimento da empresa tomadora.53

    Apenas no tocante ao trabalho temporrio permitida a pessoalidade e subordinao

    diretas do trabalhador perante o tomador de servios, exatamente por ser uma prestao de

    curta durao que visa supresso imediata das necessidades urgentes da empresa tomadora

    de servios.

    A pessoalidade e a subordinao entre o trabalhador e o tomador de servios, com

    ressalva das situaes de trabalho temporrio, traz como consequncia a configurao da

    terceirizao ilcita.

    A partir da inteligncia da Smula 331, possvel dizer tambm que ilcita a

    terceirizao de atividade-fim, que aquela essencial ao objeto social da empresa. Isso porque

    a contratao triangulada de trabalho somente dever ser realizada de forma excepcional,

    tendo em vista sua repercusso redutiva da proteo social ao trabalhador.

    De acordo com Gabriela Neves Delgado, a permisso constitucional terceirizao

    na atividade-meio das empresas, assim como ocorre na Administrao Pblica, tem por

    52

    DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 11 ed. So Paulo: LTr, 2012, p. 450. 53

    Ibidem, 451.

  • 27

    pressuposto viabilizar que o empreendedor dedique seus recursos sua atividade finalstica,

    seu core business, a fim de racionalizar o aproveitamento do tempo e das energias

    institucionais com mxima eficincia admnistrativa.54

    Ora, se o motivo que legitima a prtica da terceirizao a necessidade da empresa em

    intermediar seus servios perifricos a fim de concentrar todos os esforos no

    desenvolvimento de sua finalidade, no faria sentido algum a terceirizao de atividade-fim,

    j que a radicalizao desse mecanismo pode viabilizar a extrema figura da empresa sem

    empregados, que terceiriza todas suas atividades, eximindo-se, por absoluta liberalidade, de

    inmeras responsabilidades sociais, trabalhistas, previdencirias e tributrias.55

    A terceirizao ilcita tem como efeito a desvinculao do vnculo laboral com o

    empregador aparente (a prestadora), formando-se o vnculo justrabalhista do obreiro

    diretamente com o empregador dissimulado (tomador de servios).56

    O reconhecimento do vnculo justrabalhista com o tomador de servios faz com que

    incidam no contrato de trabalho todas as normas pertinentes efetiva categoria obreira, a fim

    de corrigir eventual defasagem de parcelas ocorrida em face do artifcio terceirizante.57

    Esclarece-se que at mesmo na terceirizao ilcita, mas sem a possibilidade de

    realizar a correo pelo meio de reconhecimento do vnculo com o tomador de servios, como

    o caso da Administrao Pblica - j que o concurso pblico insupervel (art. 37, caput, e

    2, CF)-, o meio para a correo da fraude na intermediao de obra ocorre por meio da

    isonomia entre os trabalhadores terceirizados e os diretamente contratados.58

    2.2 Evoluo legislativa e jurisprudencial da terceirizao

    A terceirizao apenas adquiriu amplitude estrutural e relevncia trabalhista a partir da

    dcada de 1970, no tendo a efetiva significao social na poca dos primeiros impulsos

    industializantes presenciados pelo pas a partir dos anos 1930.59

    54

    DELGADO, Gabriela Neves. AMORIM, Helder Santos. Os limites constitucionais da terceirizao. 1 ed. So

    Paulo: LTr, 2014, p. 134. 55

    Ibidem, p. 136. 56

    Ibidem, 452 e 453. 57

    Idem. 58

    Idem. 59

    Ibidem, p. 436.

  • 28

    Dessa maneira, no texto originrio da Consolidao das Leis do Trabalho (CLT), foi

    prevista apenas uma hiptese de subcontratao de mo de obra, a subempreitada, prevista em

    seu art. 455:

    Art. 455 - Nos contratos de subempreitada responder o subempreiteiro pelas

    obrigaes derivadas do contrato de trabalho que celebrar, cabendo, todavia, aos

    empregados, o direito de reclamao contra o empreiteiro principal pelo

    inadimplemento daquelas obrigaes por parte do primeiro.

    Pargrafo nico - Ao empreiteiro principal fica ressalvada, nos termos da lei civil,

    ao regressiva contra o subempreiteiro e a reteno de importncias a este devidas,

    para a garantia das obrigaes previstas neste artigo.

    Os primeiros diplomas legais de maior relevncia que surgem acerca da terceirizao

    foram a Lei 6.019/74, sobre o trabalho temporrio, na medida em que havia a necessidade de

    suprir momentaneamente eventuais demandas extraordinrias de servio decorrentes no

    aumento do ritmo produtivo da empresa tomadora60

    ; e a Lei 7.102/83 (Lei dos Vigilantes),

    que permitira o servio de vigilncia bancria fosse terceirizado de forma permanente.

    Por mais que houvesse restries na Lei 6.019/74 a fim de evitar fraudes no processo

    de intermediao de mo-de-obra, era recorrente a terceirizao de atividades permanentes

    pelas empresas poca, o que ocasionou no antigo Enunciado 256 do Tribunal Superior do

    Trabalho, que dispunha: Salvo nos casos de trabalho temporrio e de servio de vigilncia,

    previsto nas Leis 6.019, de 3.1.74, e 7102, de 20.6.83, ilegal a contratao de trabalhadores

    por empresa interposta, formando-se o vnculo diretamente com o tomador de servios.

    Na deciso do RR 3.442/84, em que foi suscitado o incidente de uniformizao de

    jurisprudncia que deu origem ao Enunciado 256, ressaltou-se que responsabilidade do

    empregador a contratao, o pagamento de salrios e a direo da prestao social dos

    servios, enfatizando-se que o fim da ordem econmica social realizar o desenvolvimento

    nacional e a justia social, atravs dos princpios da valorizao do trabalho como condio de

    dignidade humana e a expanso das oportunidades de emprego.61

    O mesmo acrdo destacou que assegurada aos trabalhadores a liberdadede de

    escolha do empregador, que devero integrar-se na vida e no desenvolvimento da empresa,

    60

    BARROS, Alice Monteiro de. Um tema em foco: a terceirizao e a jurisprudncia. In: Direito do trabalho e

    seguridade social: fundamentos constitucionais e teoria geral do direito do trabalho. Organizadores: DELGADO,

    Maurcio Godinho. DELGADO, Gabriela Neves. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012 (Coleo doutrinas essenciais; v.1), p. 1150. 61

    Ibidem, p. 1153.

  • 29

    com participao nos lucros e na gesto da mesma, fazendo com que a possibilidade de o

    tomador de servios no assumir os encargos trabalhistas, atravs de contratao por

    intermediao de mo-de-obra, seja permitida apenas de forma excepcional, no caso de

    servio transitrio e no vinculado atividade normal da tomadora.62

    Nesse contexto, a terceirizao era percebida como uma prtica excepcional, utilizada

    apenas nos casos em que houvesse uma necessidade imediata de mo-de-obra, ou uma fora

    de trabalho especializada.

    Com o aumento da prtica da terceirizao de servios, bem como presso da classe

    empresria, inclusive de alguns setores de trabalhadores terceirizados, a jurisprudncia do

    Tribunal Superior do Trabalho foi se flexibilizando em relao rigidez trazida no bojo do

    Enunciado 256, que permitia a terceirizaao apenas no caso do trabalho temporrio e nos

    servios de vigilncia.

    Em 1993, o entendimento do Enunciado 256 foi superado, com a edio da Smula

    331, esta revisitada em 2000, com a incluso pelo TST do item IV que versa sobre a

    responsabilidade subsidiria do ente pblico que terceiriza, e em 2011, aps o STF julgar

    procedente a ao declaratria de constitucionalidade do art. 71, 1, da Lei de Licitaes,

    ADC 16, alterando a redao do item IV e acrescentando os itens V e VI que versam que a

    responsabilidade subsisdiria da administrao pblica s ser vislumbrada se comprovada a

    culpa in vigilando e in eligendo. A redao da Smula 331 mais recente :

    CONTRATO DE PRESTAO DE SERVIOS. LEGALIDADE (nova

    redao do item IV e inseridos os itens V e VI redao) - Res. 174/2011, DEJT

    divulgado em 27, 30 e 31.05.2011 I - A contratao de trabalhadores por empresa interposta ilegal, formando-se o

    vnculo diretamente com o tomador dos servios, salvo no caso de trabalho

    temporrio (Lei n 6.019, de 03.01.1974).

    II - A contratao irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, no gera

    vnculo de emprego com os rgos da Administrao Pblica direta, indireta ou

    fundacional (art. 37, II, da CF/1988).

    III - No forma vnculo de emprego com o tomador a contratao de servios de

    vigilncia (Lei n 7.102, de 20.06.1983) e de conservao e limpeza, bem como a de

    servios especializados ligados atividade-meio do tomador, desde que inexistente a

    pessoalidade e a subordinao direta.

    IV - O inadimplemento das obrigaes trabalhistas, por parte do empregador,

    implica a responsabilidade subsidiria do tomador dos servios quanto quelas

    62

    BARROS, Alice Monteiro de. Um tema em foco: a terceirizao e a jurisprudncia. In: Direito do trabalho e

    seguridade social: fundamentos constitucionais e teoria geral do direito do trabalho. Organizadores: DELGADO,

    Maurcio Godinho. DELGADO, Gabriela Neves. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012 (Coleo doutrinas essenciais; v.1), p. 1153.

  • 30

    obrigaes, desde que haja participado da relao processual e conste tambm do

    ttulo executivo judicial.

    V - Os entes integrantes da Administrao Pblica direta e indireta respondem

    subsidiariamente, nas mesmas condies do item IV, caso evidenciada a sua conduta

    culposa no cumprimento das obrigaes da Lei n. 8.666, de 21.06.1993,

    especialmente na fiscalizao do cumprimento das obrigaes contratuais e legais da

    prestadora de servio como empregadora. A aludida responsabilidade no decorre de

    mero inadimplemento das obrigaes trabalhistas assumidas pela empresa

    regularmente contratada.

    VI A responsabilidade subsidiria do tomador de servios abrange todas as verbas decorrentes da condenao referentes ao perodo da prestao laboral.

    Ainda que a Smula 331 tenha significado, poca, retrocesso aos freios normativos a

    essa forma de contratar expressos no texto do Enunciado n 256, de 1986, atualmente ela

    representa limite prtica da terceirizao desmedida. Todavia, mesmo depois de aprovada a

    nova redao da Smula n 331, h ainda uma forte presso de diversos setores da economia e

    da sociedade para eliminar os obstculos terceirizao, na defesa da liberao da

    intermediao de mo-de-obra para qualquer tipo de atividade.63

    Pela via judicial, importante citar o reconhecimento de repercusso geral, pelo STF,

    do Recurso Extraordinrio ARE 713.211, sobre matria de terceirizao trabalhista de

    atividade-fim. O relator ministro Luiz Fux entendeu que a posio j consolidada da Justia

    do Trabalho de admitir a terceirizao apenas nas atividades-meio e quando no exista a

    pessoalidade e subordinao direta deve ser discutida luz da liberdade contratual e do

    princpio da legalidade. A depender do resultado da repercusso geral na questo de fundo,

    poder haver alterao substantiva na forma de compreender o fenmeno, em que se teme

    pela ampliao das possibilidades de o empregador contratar via terceirizao.

    importante relembrar que a terceirizao se caracteriza pelo esvaziamento dos

    elementos protetivos da integrao do trabalhador no meio ambiente de trabalho e aos

    objetivos da empresa, bem como da continuidade da relao de emprego, na medida em que

    sua prtica enseja o aumento da rotatividade contratual, reduo do nvel remuneratrio, a

    dificuldade do gozo de frias, reduo das medidas de segurana, entre outros que reduzem a

    efetividade do direito fundamental ao trabalho digno.64

    63

    SANTOS, Anselmo Luis dos. BIAVASCHI, Magda Barros. A terceirizao no contexto da reconfigurao do

    capitalismo contemporneo: a dinmica da construo da smula 331 no TST. Revista do Tribunal Superior do

    Trabalho Ano 80 n. 3 jul. A set. 2014, p. 28. 64

    DELGADO, Gabriela Neves. AMORIM, Helder Santos. Os limites constitucionais da terceirizao. 1 ed. So

    Paulo: LTr, 2014, p. 118.

  • 31

    Dessa forma, o problema na terceirizao no pode limitar-se a um problema de

    liberdade contratual, como prope a repercusso geral no STF, mas apenas comea na

    liberdade contratual, que deve ser vislumbrada a partir do rgido condicionamento

    constitucional de proteo social aos direitos fundamentais dos trabalhadores.65

    Os princpios da legalidade e da liberdade contratual, no campo das relaes do

    trabalho, devem ser vislumbrados a partir da necessidade de concretizao do direito

    fundamental ao trabalho digno. Nesse sentido, Gabriela Neves Delgado e Helder Santos

    Amorim ensinam que:

    Partindo dessa premissa, a autonomia da vontade e da contratao que a

    Constituio assegura livre-iniciativa no tem, potanto, a amplitude que ostenta no

    campo das relaes patrimoniais priadas pactuadas entre seres econmicos e

    jurdicos com autonomia equivalente. A Constituio muito clara: no campo das

    relaes do trabalho, a liberdade de contratao empresarial tem de ser exercitada de

    maneira a assegurar a valorizao do trabalho, a dignidade da pessoa humana, a

    justia social, a segurana da pessoa humana que vive do trabalho o que se faz, na perspectiva da Constituio, mediante o respeito ao emprego e ao Direito do

    Trabalho. [...] Por essa razo que, na lgica constitucional, o mecanismo de

    exarcebao de poder de desigualdade e de precarizao trabalhista, como a

    terceirizao, somente pode ser acolhida em situaes excepcionais, jamais de

    maneira genrica, ampla e irrefreada.66

    J no mbito poltico, o Plenrio da Cmara dos Deputados aprovou no dia 08 de abril

    de 2015 o texto-base do PL 4.330/04, que traz no bojo de seu texto a possibilidade de

    terceirizao de qualquer atividade. O projeto se encontra atualmente em tramitao no

    Senado. Se for aprovado, legitimar a terceirizao de forma ilimitada, aumentando ainda

    mais os nveis de precariedade dos trabalhadores terceirizados.

    A terceirizao de atividade-fim afronta o sistema constitucional de proteo pessoa

    humana que vive do trabalho protegido, ferindo a prpria estruturao de um Estado

    Democrtico de Direito fundado na pessoa humana, em sua dignidade, na valorizao do

    trabalho, na justia social e na subordinao da propriedade sua funo socioambiental. 67

    Na anlise do fenmeno da terceirizao em si, percebe-se que esse mecanismo tem

    sido responsvel pela precarizao do trabalho, o que faz com que a aprovao de um projeto

    de lei que visa a satisfazer apenas s exigncias do mercado seja um retrocesso ao sistema

    jurdico de proteo dos direitos individuais e coletivos dos trabalhadores.

    65

    DELGADO, Gabriela Neves. AMORIM, Helder Santos. Os limites constitucionais da terceirizao. 1 ed. So

    Paulo: LTr, 2014, p. 118. 66

    Ibidem, p. 122. 67

    Ibidem, p. 124.

  • 32

    Vive-se dias de extrema tenso para o mundo do trabalho. A terceirizao sinnimo

    de precariedade, devendo ser utilizada apenas de forma excepcional, nos casos de trabalho

    temporrio, da vigilncia especializada e nas atividades-meio do tomador de servio, inclusive

    os servios de conservao e limpeza, luz da Smula 331, que ainda tem sido complexa e

    delicada na regulao da terceirizao.

    A utilizao da intermediao de mo de obra de forma ilimitada atenta contra a

    prpria ordem constitucional, ao desprezar o valor social do trabalho e da determinao de

    melhoria das condies de trabalho dos trabalhadores urbanos e rurais.

    2.2.1 A necessidade de reformulao da legislao acerca da tercerizao

    No contexto das significativas modificaes que tm alterado as configuraes do

    mundo do trabalho, o estudo do fenmeno terceirizante essencial. A terceirizao, ao criar

    uma relao de trabalho triangular em que o objeto negociado entre duas empresas a fora

    de trabalho de alguns indivduos, acaba por retirar do trabalhador no apenas a proteo

    jurdica adequada, mas tambm a possibilidade de melhoria de sua condio social.

    Os trabalhadores recebem um tratamento socioeconmico e jurdico diferenciado, na

    medida em que s usufruem dos benefcios prprios das empresas especializadas em

    fornecimento de mo de obra, e no aqueles que so usufrudos pelos trabalhadores

    diretamente contratados pela tomadora. Dessa forma, pode-se dizer que a terceirizao, ao ser

    ditada pela lgica do mercado, acaba por diminuir as garantias do trabalhador terceirizado e

    no conseguir conferir relao triangulada de trabalho o mesmo patamar protetivo

    decorrente da integrao do empregado vida institucional da empresa principal.68

    Sob esse prisma, necessrio firmar-se uma legislao que confira a mxima proteo

    social possvel ao trabalhador tercerizado, a fim de tentar minimizar os efeitos da precarizao

    das condies e do meio ambiente de trabalho e evitar as constantes violaes aos direitos

    fundamentais garantidos constitucionalmente, violaes essas que podem at mesmo

    ocasionar dano prpria existncia do indivduo.

    A respeito do assunto, ponderam Gabriela Neves Delgado e Helder Santos Amorim

    que:

    68

    DELGADO, Gabriela Neves. AMORIM, Helder Santos. Os limites constitucionais da terceirizao. 1 ed. So

    Paulo: LTr, 2014, p. 111.

  • 33

    O dever de proteo constitucional relao de emprego terceirizada, decorrente da

    ordem objetiva de valores constitucionais, impe ao legislador a edio de norma

    especial protetiva do trabalhador terceirizado, a fim de garantir-lhe uma tutela

    compensatria, conferindo-lhe, pelo menos: a representao sindical profissional

    vinculada categoria econmica da empresa tomadora, com gozo dos direitos

    convencionais conquistados por esse sindicato; a mxima isonomia remuneratria

    com empregados da empresa tomadora que exeram idntica funo na atividade-

    meio, no mesmo molde garantido ao trabalhador temporrio, pelo art. 12, a, da Lei

    n. 6.019/1974; a contagem de tempos de servio de contratos de trabalho sucessivos,

    em regime de terceirizao, para efeito de gozo de frias; a responsabilidade

    solidria da empresa tomadora pela adoo de todas as medidas de proteo sade

    e segurana dos trabalhadores terceirizados, alm da responsabilidade subsidiria

    pelos dbitos trabalhistas decorrentes do contrato de trabalho.69

    A representao sindical profissional vinculada empresa tomadora medida

    necessria para o estabelecimento de identidades coletivas slidas e agregadoras no meio

    ambiente de trabalho, facilitando a organizao dos trabalhadores tercerizados na luta por

    melhorias nas condies de trabalho.

    Por sua vez, a isonomia remuneratria entre os trabalhadores terceirizados e diretos

    que exercem o mesmo tipo de funo essencial, tanto na terceirizao ilcita, como na lcita,

    uma vez que o princpio da igualdade consagrado pela Constituio, art. 5, caput, e a sua

    no observncia gera discriminao ao trabalhador terceirizado.

    Nesse sentido o enunciado II da 1 Jornada de

    Direito Material e Processual da Justia do Trabalho, realizada no final de novembro de 2007,

    representando um avano no entendimento acerca do assunto:

    II Terceirizao. Salrio equitativo. Princpio da no-discriminao. Os empregados da empresa prestadora de servios, em caso de terceirizao lcita ou

    ilcita, tero direito ao mesmo salrio dos empregados vinculados empresa

    tomadora que exercerem funo similar.

    No mesmo sentido, Maurcio Godinho Delgado nos ensina que:

    A frmula terceirizante, se no acompanhada do remdio jurdico da comunicao

    remuneratria, transforma-se em mero veculo de discriminao e aviltamento do

    valor da fora de trabalho, rebaixando drasticamente o j modesto padro

    civilizatrio alcanado no mercado de trabalho do pas. Reduzir a terceirizao a

    simples mecanismo de tangenciamento da aplicao da legislao trabalhista

    suprimir o que pode haver de tecnologicamente vlido em tal frmula de gesto

    trabalhista, colocando-a contra a essncia do Direito do Trabalho, enquanto ramo

    jurdico finalisticamente dirigido ao aperfeioamento das relaes de trabalho na

    sociedade contempornea.70

    69

    DELGADO, Gabriela Neves. AMORIM, Helder Santos. Os limites constitucionais da terceirizao. 1 ed. So

    Paulo: LTr, 2014, p. 133. 70

    DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 11 ed. So Paulo: LTr, 2012, p. 412.

  • 34

    A contagem de tempos de servio de contratos de trabalho sucessivos, em regime de

    terceirizao, para efeito de gozo de frias seria uma alternativa eficiente, j que em meio a

    contrataes sucessivas, o trabalhador no usufrui do seu direito frias, deixando de realizar

    atividades de lazer e conviver socialmente, o que corrobora para a configurao do dano

    existencial.

    Por fim, a responsabilidade solidria pelas obrigaes trabalhistas e sociais medida

    primordial na amplicao da garantia do pagamento do crdito trabalhista, quanto para evitar

    a transferncia do risco econmico ao trabalhador.71

    Estes so pontos fundamentais para se alcanar uma regulamentao da terceirizao

    baseada nos princpios da igualdade de direitos e na proteo dos trabalhadores. Todavia,

    enquanto no realizada uma reformulao na legislao sobre a terceirizao, acredita-se

    que a Smula 331 do TST desempenha um importante papel na limitao da intermediao da

    mo de obra, ao restringir sua abrangncia e evitar uma precarizao ainda maior do

    trabalhador.

    71

    DELGADO, Gabriela Neves. AMORIM, Helder Santos. Os limites constitucionais da terceirizao. 1 ed. So Paulo: LTr, 2014, p. 133.

  • 35

    CAPTULO III

    A gente no quer s comida, A gente quer comida, diverso e arte

    A gente no quer s comida,

    A gente quer sada para qualquer parte

    Tits72

    O DANO EXISTENCIAL E A TERCEIRIZAO

    3.1 (Re) pensando a lgica da terceirizao

    Ao se refletir sobre a terceirizao, o ponto de partida de todo raciocnio de que se

    trata de um fenmeno que veio pra ficar. Muitas vezes costuma-se dizer que no h como

    reverter o processo. Sendo assim, o pensamento limitado busca de idias para que se

    aprenda a conviver com a terceirizao, ao invs de aprofundar as avaliaes sobre o prprio

    fenmeno em si.73

    Hoje em dia, no h mais como desvincular o processo de terceirizao da prpria

    precarizao do trabalho. As empresas prestadoras de servios, em busca da diminuio dos

    custos da produo, precarizam as condies de trabalho, a fim de oferecer seus servios num

    preo mais acessvel. O trabalho humano considerado mercadoria, j que o trabalhador

    submetido condio de objeto de um contrato de prestao entre duas empresas, subtraindo-

    se sua subjetividade ao retirar-lhe a proteo de direitos conferida constitucionalmente.

    A verdade disseminada pelos defensores da terceirizao de que se trata de uma

    tcnica moderna de gesto, dando pouca evidncia de como ela afeta os direitos trabalhistas.

    Essa ideologia utilizada pelas grandes organizaes, difceis de serem identificadas por no

    possuirem mais estruturas definidas, mas redes que se conectam e se desconectam num piscar

    de olhos. Essas organizaces, a lograrem a ampliao da terceirizao, no tero

    72

    Trecho da msica Comida, dos Tits. Composio: Arnaldo Antunes / Marcelo Fromer / Srgio Britto. 73

    MAIOR, Jorge Luiz Souto. A terceirizao e a lgica do mal. In Dignidade humana e incluso social:

    caminhos para a efetividade do direito do trabalho no Brasil. Organizadoras: Adriana Goulart de Sena, Gabriela

    Neves Delgado, Raquel Portugal Nunes. So Paulo: LTr, 2010,, p. 46.

  • 36

    trabalhadores, completando o ciclo de esvaziamento e de descaracterizao como centros de

    imputao de responsabilidades sociais por seus empreendimentos.74

    A anlise cientfica do fenmeno da terceirizao demonstra que esse mecanismo de

    gesto tem sido responsvel por arquitetar empresas vazias de sentido social e de direitos

    fundamentais. Tais empresas, portanto, no passam de embalagem oca.75

    A terceirizao ilimitada ideologia que acoberta enormes passivos sociais, passando-

    se a acreditar que a prtica realmente produz inmeras vantagens. Todavia, a realidade

    totalmente distinta. Sob a tica do direito do trabalho constitucionalizado, a relao de

    trabalho na terceirizao rarefeita, no possibilitando o acesso a direitos e garantias ao

    trabalhador.

    As pesquisas mais recentes76

    demonstraram que a terceirizao faz com que o

    trabalhador se submeta a condies de trabalho significativamente inferiores que os

    trabalhadores diretamente contratados, afetando a concretizao de um trabalho digno e

    reduzindo o gozo de direitos constitucionalmente previstos.

    Em meio a essas contrataes sucessivas e fragmentadas, h a possibilidade potencial

    de configurao de dano existencial ao trabalhador terceirizado, na medida em que ele muitas

    vezes no consegue tirar frias, encontra dificuldades em efetivar ambies pessoais diante da

    74

    PEREIRA, Ricardo Jos Macdo de Britto. A Terceirizao, a CLT e a Constituio. Blog Trabalho,

    Constituio e Cidadania. Disponvel em: < http://trabalho-constituicao-cidadania.blogspot.com.br/ >. Acesso

    em: 05.05.2015. 75

    Grupo de Pesquisa Trabalho, Constituio e Cidadania (UnB/CNPq). As terceirizadoras so vazias de sentido

    social. Blog Trabalho, Constituio e Cidadania. Disponvel em: http://trabalho-constituicao-

    cidadania.blogspot.com.br/. Acesso em: 15.05.2015 76

    Em Terceirizao e Desenvolvimento Uma conta que no fecha, estudo publicado em 2014, elaborado

    pelo Departamento Intersindical de Estatsticas e Estudos Socioeconmicos (DIEESE) em parceria com a

    Central nica dos Trabalhadores (CUT), foi feita uma anlise do mercado de trabalho a partir do agrupamento

    de setores tipicamente terceirizados e de setores tipicamente contratantes a fim de apresentar dados estatsticos

    sobre a diferena na remunerao, jornada de trabalho, acidentes no trabalho, inadimplncia trabalhista,

    condies degradantes e trabalho anlogo ao de escravo e permanncia no emprego; o Sindicato dos

    Metalrgicos, em Os trabalhadores e a terceirizao, realizou pesquisa em 12 empresas da regio do ABC e

    constatou que em todas elas (100%) tinha ocorrido algum tipo de terceirizao, sendo que os principais motivos

    declarados pelas empresas foram reduo de custos (75%), maior eficincia (50%) e especializao (33%),

    evidenciando-se que em 92% dos casos a terceirizao tinha resultado em reduo dos salrios, em 58% das

    empresas houve perda de benefcios e em 42% ocorreu deteriorao das condies de segurana e sade no

    trabalho; as conseqncias da terceirizao sobre o mercado de trabalho no Complexo Petroqumico de

    Camaari foram estudadas, em 1994/95, em um projeto de pesquisa desenvolvido pela Delegacia Regional do

    Trabalho na Bahia, em parceria com o PNUD e com o Centro de Recursos Humanos da Universidade Federal da

    Bahia (CRH/UFBA) e apontaram uma drstica reduo do nmero de postos de trabalho, dos salrios e dos

    benefcios nas empresas qumicas/petroqumicas. Entre os motivos declarados para adotar a terceirizao, 97%

    das empresas destacaram a reduo de custos, reduo de pessoal, maior produtividade e melhor qualidade.

  • 37

    instabilidade e presso cotidianas, no h interesse por parte da prestadora ou da tomadora de

    servios na qualificao da sua mo de obra por meio de cursos profisionalizantes, h um

    deslocamento em relao ao espao e o tempo de trabalho, fazendo com que lhe seja retirado

    o protagonismo de seu projeto de vida.

    3.2 O ser-no-mundo e a vida de relaes

    Martin Heidegger, em sua obra Ser e Tempo, muito alm de tentar definir ou

    compreender o que seria o ser, busca desvendar seu sentido ao tornar transparente o ente

    aquele que questiona - em seu prprio ser. Sendo assim, o ente que corporifica

    exemplarmente o ser ele denominou como presena (chamada tambm de dasein ou ser-

    a).77

    A presena a pessoa humana divisada a partir de sua relao com o prprio ser, com

    o ser das coisas e com o ser dos outros. a prpria existncia, que significa que o homem no

    apenas e est no mundo, mas percebe isso. O indivduo vislumbrado a partir das relaes

    estabelecidas consigo mesmo e com o outro, sob o fundamento de possibilidade de

    coexistncia entre as individualidades.

    A pre-sena sempre se compreende a si mesma a partir de sua existncia, de uma

    possibilidade prpria de ser ou no ser ela mesma. Essas possibilidades so ou

    escolhidas pela prpria pre-sena ou em um meio que ela caiu ou j sempre nasceu e

    cresceu. No modo de assumir-se ou perder-se, a existncia s se decide a partir de

    cada pre-sena em si mesma. A questo da existncia s poder ser esclarecida

    pelo prprio existir. [...] Assim, a compreenso do ser, prpria da pre-sena, inclui,

    de maneira igualmente originria, a compreenso de mundo e a compreenso do ser dos entes que se tornam acessveis dentro do mundo.

    78

    Nesse sentido, a existncia humana tem como pressuposto as relaes do ser consigo

    mesmo e com os outros, seja em casa junto aos familiares e aos amigos ntimos, seja nos

    espaos sociais.

    O ser humano tem a necessidade de se relacionar em sociedade, praticando atividades

    recreativas que proporcionam o bem estar fsico e psquico da pessoa e favorecem no s sua

    77

    HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Editora Vozes, 2002, p. 33-35. 78

    Ibidem, p. 39 e 40.

  • 38

    capacidade de continuar a exercer sua profisso, como aumentando suas chances de ascender

    a melhores postos de trabalho e aumentar consequentemente seus rendimentos.79

    No incio da dcada de 1960, na Itlia, surge a necessidade de ampliao da proteo

    da pessoa frente ao dano injusto, diante da insuficiente classificao binominal do dano em

    patrimonial e moral. Havia uma evidente lacuna na lei no que dizia respeito tutela dos danos

    que limitavam ou impediam definitivamente a pessoa na prticas das atividades de seu

    cotidiano. Sendo assim, a doutrina italiana classificou uma nova espcie de dano injusto

    causado pessoa, chamado de dano vida de relao.80

    O dano vida de relao consiste na ofensa fsica ou psquica a uma pessoa que a

    impede, total ou parcialmente, de gozar dos prazeres provenientes das atividades recreativas e

    extra-laborativas, como a realizao de esportes, turismo, pesca, cinema, teatro, clubes e etc,

    interferindo decisivamente no seu estado de nimo e consequentemente no seu

    relacionamento social e pessoal, diminuindo as chances de ascenso do trabalho e trazendo

    um reflexo patrimonial negativo.81

    Todavia, para que fosse acolhida a pretenso indenizatria, alm da evidncia de

    sofrimento em decorrncia do dano fsico ou psquico, a vtima tambm deveria provar a

    diminuio da sua capacidade de obter rendimentos. Dessa maneira, percebe-se que o dano

    vida de relao nunca chegou a ser considerado um dano extrapatrimonial, mas um dano

    patrimonial.82

    O reconhecimento do dano vida de relao propiciou um grande avano nas

    discusses sobre responsabilidade civil na Itlia, possibilitando a construo do conceito do

    que hoje se conhece por dano existencial.

    3.3 O dano existencial

    3.3.1 Conceito

    De acordo com Flaviana Rampazzo Soares, o dano existencial, em seu aspecto

    objetivo, consiste na leso ao complexo de relaes que auxiliam no desenvolvimento normal

    79

    ALMEIDA NETO, Amaro Alves de. Dano existencial: a tutela da dignidade da pessoa humana. Revista dos

    Tribunais, So Paulo, v. 6, n. 24, out./dez. 2005, p. 35. 80

    Idem. 81

    Idem. 82

    Idem.

  • 39

    da personalidade do sujeito, abrangendo tanto a ordem pessoal, como a ordem social. uma

    afetao negativa de atividade ou conjunto de atividades que a vtima realizava em seu

    cotidiano e que, em razo do efeito lesivo, precisou modificar ou mesmo suprimir de sua

    rotina.83

    Para Amaro Alves de Almeida Neto, indica a ofensa fsica ou psquica a uma pessoa

    que determina uma dificuldade ou mesmo a impossibilidade do seu relacionamento com

    terceiros.84

    Entretanto, possvel dizer que o dano existencial tambm possui um aspecto de

    potencialidade, abrangendo no apenas as atividades que foram efetivamente

    comprometidas, mas tambm aquelas que a pessoa poderia desenvolver.85

    Alm da vida de relaes, a existncia tambm condicionada ao futuro, o que

    significa a transcedncia do homem em relao ao mundo a fim de projetar suas aes e

    comportamentos.

    Nesse sentido, no apenas o dano existencial diz respeito afetao da vida de relao,

    como tambm na violao de qualquer direito fundamental que afete as atividades executadas

    pelo indviduo com vistas ao projeto de vida pessoal. Importante frisar que a configurao de

    dano existencial prescinde da constatao de qualquer repercusso econmica ou financeira

    decorrente da leso, como ocorria no dano vida de relao.

    Para Jlio Csar Bebber, o projeto de vida consiste em tudo aquilo que determinada

    pessoa decidiu fazer com a sua vida. A natureza humana faz com que o indivduo busque

    extrair o mximo de suas potencialidades, a partir do momento em que faz projees para o

    futuro e realiza escolhas visando concretizao de seu projeto de vida. Nesse sentido,

    qualquer fato injusto que cause a frustrao do futuro, fazendo com que a pessoa se resigne

    com seu destino, deve ser considerado um dano existencial.86

    Hidemberg Alves da Frota pondera que o direito ao projeto de vida apenas exercido

    de forma efetiva quando o indivduo se preocupa com sua autorrealizao integral, ao

    83

    SOARES, Flaviana Rampazzo. Responsabilidade civil por dano existencial. Porto Alegre: Livraria do

    Advogado, 2009. p. 44. 84

    ALMEIDA NETO, Amaro Alves de. Dano existencial: a tutela da dignidade da pessoa humana. Revista dos

    Tribunais, So Paulo, v. 6, n. 24, out./dez. 2005, p. 36. 85

    Ibidem, 45. 86

    BEBBER, Jlio Csar. Danos extrapatrimoniais (esttico, biolgico e existencial): breves consideraes.

    Revista LTr, So Paulo, v. 73, n. 1, jan. 2009, p. 28

  • 40

    direcionar sua liberdade de escolha para proporcionar concretude s metas, aos objetivos e s

    ideias que do sentido sua existncia.87

    Em sntese, pode-se dizer que o dano existencial afeta todas as atividades cotidianas

    do homem, impedindo seu convvio familiar e social. Alm disso, causa uma frustrao do

    projeto de vida escolhido pelo indivduo, ofendendo a dignidade da pessoa humana ao ferir

    diretamente um direito fundamental e retirar uma aspirao legtima.

    Quanto previso legal da reparabilidade do dano existencial no direito brasileiro, os

    dispositivos constitucionais que acolhem o princpio da reparabilidade extrapatrimoniais

    (CF/88, arts. 1., III, e 5., V e X), admitem tambm a ressarcibilidade do dano existencial.88

    Alm da previso Constitucional, no novo Cdigo Civil autoriza a reparabilidade do

    dano existencial nos mesmos permissivos que autorizam a reparabilidade do dano moral,

    quais sejam: o art. 12, caput: Pode-se exigir que cesse a ameaa, ou a leso, a direito da

    personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuzo de outras sanes p