terceirização e acumulação flexível do capital

12
409 Estud. sociol., Araraquara, v.16, n.31, p.409-420, 2011 TERCEIRIZAÇÃO E ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL DO CAPITAL: NOTAS TEÓRICO-CRÍTICAS SOBRE AS MUTAÇÕES ORGÂNICAS DA PRODUÇÃO CAPITALISTA Giovanni ALVES * RESUMO: O objetivo deste ensaio é apresentar elementos teórico-críticos para apreender o processo de terceirização como sendo um traço compositivo da nova conguração do capitalismo exível no contexto da mundialização do capital. A terceirização visa racionalizar, sob as novas condições da concorrência e acumulação capitalista, a exploração da força de trabalho assalariado no interior de um novo modo de cooperação capitalista: a cooperação complexa, etapa superior da grande indústria sob as condições da revolução informacional. PALAVRAS-CHAVE: Terceirização. Reestruturação produtiva. Precarização do trabalho. Sindicalismo. Acumulação exível. O objetivo deste ensaio é colocar elementos teórico-categoriais para apreendermos, numa perspectiva histórico-ontológica, a natureza essencial do processo de terceirização que atinge a materialidade da produção do capital, no sentido amplo de totalidade social (o que implica considerar não apenas indústria propriamente dita, mas os serviços e inclusive a administração pública). O termo “terceirização” é utilizado neste ensaio como sendo um modo especíco de (des) organização de coletivos do trabalho que se caracteriza pela “transferência para uma outra empresa de parte da produção da empresa-mãe, a qual busca concentrar sua produção em uma única e especíca atividade, considerada o foco de atuação da empresa”. Por isso, alguns autores denominam a “terceirização” de “focalização” * UNESP – Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Filosoa e Ciências – Departamento de Sociologia e Antropologia. Marília – SP – Brasil. 17.525-900 – [email protected]

Upload: filipevd

Post on 27-Sep-2015

34 views

Category:

Documents


19 download

DESCRIPTION

Terceirização e acumulação flexível do capital.pdf

TRANSCRIPT

  • 409Estud. sociol., Araraquara, v.16, n.31, p.409-420, 2011

    TERCEIRIZAO E ACUMULAO FLEXVEL DO CAPITAL: NOTAS TERICO-CRTICAS SOBRE AS

    MUTAES ORGNICAS DA PRODUO CAPITALISTA

    Giovanni ALVES*

    RESUMO: O objetivo deste ensaio apresentar elementos terico-crticos para apreender o processo de terceirizao como sendo um trao compositivo da nova confi gurao do capitalismo fl exvel no contexto da mundializao do capital. A terceirizao visa racionalizar, sob as novas condies da concorrncia e acumulao capitalista, a explorao da fora de trabalho assalariado no interior de um novo modo de cooperao capitalista: a cooperao complexa, etapa superior da grande indstria sob as condies da revoluo informacional.

    PALAVRAS-CHAVE: Terceirizao. Reestruturao produtiva. Precarizao do trabalho. Sindicalismo. Acumulao fl exvel.

    O objetivo deste ensaio colocar elementos terico-categoriais para apreendermos, numa perspectiva histrico-ontolgica, a natureza essencial do processo de terceirizao que atinge a materialidade da produo do capital, no sentido amplo de totalidade social (o que implica considerar no apenas indstria propriamente dita, mas os servios e inclusive a administrao pblica). O termo terceirizao utilizado neste ensaio como sendo um modo especfi co de (des)organizao de coletivos do trabalho que se caracteriza pela transferncia para uma outra empresa de parte da produo da empresa-me, a qual busca concentrar sua produo em uma nica e especfi ca atividade, considerada o foco de atuao da empresa. Por isso, alguns autores denominam a terceirizao de focalizao

    * UNESP Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Filosofi a e Cincias Departamento de Sociologia e Antropologia. Marlia SP Brasil. 17.525-900 [email protected]

  • 410

    Giovanni Alves

    Estud. sociol., Araraquara, v.16, n.31, p.409-420, 2011

    (BARROS, 2000, p.327). A terceirizao visa racionalizar, sob as novas condies da concorrncia e acumulao capitalista, a explorao da fora de trabalho assalariado.

    importante salientar que a terceirizao, no sentido categrico expresso acima, surgiu numa temporalidade histrica especifica: o tempo histrico do capitalismo global, caracterizado pela vigncia do regime de acumulao fl exvel e pela crise estrutural do capital. A terceirizao adotada pelas organizaes capitalistas ocorre no bojo do complexo de reestruturao produtiva do capital sob o esprito do toyotismo (ALVES, 2000, 2011). Deste modo, a categoria de terceirizao, em comparao, por exemplo, com o putting-out da indstria capitalista do sculo XVIII, possui outra signifi cao histrico-ontolgica bastante precisa: ela diz respeito a um processo de ofensiva do capital na produo que reorganiza o espao-tempo da explorao da fora de trabalho assalariado nas condies da crise estrutural do capital.

    A terceirizao que ocorre no bojo da nova reestruturao produtiva do capital, na medida em que atinge os coletivos organizados do trabalho, tende a promover uma reordenao socioterritorial dos espaos de produo do capital, implicando no apenas a precarizao do trabalho no sentido da corroso de direitos trabalhistas (inclusive no tocante a negociao coletiva) ou degradao das condies salariais dos homens e mulheres que trabalham, mas tambm a precarizao do trabalho no sentido de debilitamento da conscincia de classe dos coletivos de trabalho, tendo em vista que desmonta os locis de memria pblica e experincias pretritas de luta de classes.

    O complexo de acumulao fl exvel

    A terceirizao surge no bojo de um novo padro de acumulao capitalista que iremos denominar de acumulao fl exvel sob o esprito do toyotismo. O impacto sobre o mundo do trabalho diruptivo. Temos destacado, neste ensaio, um efeito diruptivo essencial: a fragmentao do coletivo do trabalho. O que signifi ca que, indo alm da abordagem meramente economicista que tm lastreado os estudos sociolgicos sobre a terceirizao no Brasil, torna-se importante considerar o impacto desta reordenao socioespacial do trabalho sobre a sociabilidade da classe e do homem que trabalha. Isto , a terceirizao uma estratgia de gesto/manipulao do trabalhador coletivo do capital voltada para a dessubjetivao de classe, possuindo, deste modo, uma funo ideolgica.

    A terceirizao uma das inovaes organizacionais mais importantes do capital nas ltimas dcadas, signifi cando, em si, a fragmentao de coletivos de trabalho visando a racionalizao organizacional tendo em vista as novas

  • 411

    Terceirizao e acumulao fl exvel do capital

    Estud. sociol., Araraquara, v.16, n.31, p.409-420, 2011

    condies da concorrncia capitalista num cenrio de instabilidade da economia de mercado. Possui, deste modo, um signifi cado lgico-funcional s novas condies da acumulao de valor e padro da concorrncia capitalista. Nesse sentido, a terceirizao movida, de imediato, pela reduo de custos salariais das organizaes capitalistas no sentido da adoo de estratgias meramente defensivas tendo em vista a recomposio das margens de lucro; ou, no caso de reparties pblicas que terceirizam servios, pela racionalizao da mquina estatal no contexto da reduo de custos oramentrios em virtude da crise fi scal do Estado. Entretanto, a reorganizao da mquina estatal abre espaos para prticas de predao do fundo pblico que veem na terceirizao oportunidades de corrupo da coisa pblica (cooperativas fraudulentas, superfaturamento, etc).

    Para alm da dimenso meramente contingente, a terceirizao aparece, no plano imanente da formao do valor, como manifestao necessria de um novo modo de acumulao capitalista: a dita acumulao fl exvel que, em sua dimenso poltica, uma ofensiva do capital na produo. A fragmentao do coletivo de classe altera, em sua morfologia social, a dinmica (e forma de ser) da luta de classes em sua dimenso contingente e necessria.

    Assim, para alm da estratgia de reduo de custos ou tcnica de organizao da produo, a terceirizao , como temos salientado, uma arma poltica de luta de classes que visa reestruturar coletivos do trabalho, criando as bases para processos de captura da subjetividade do homem que trabalha (ALVES, 2000). Ao fragilizar a representao sindical e poltica dos trabalhadores assalariados, a terceirizao um dos elementos impulsionadores, em sua materialidade especfi ca, da crise do sindicalismo cuja estrutura corporativa historicamente verticalizada no consegue (ou tem difi culdade) em lidar com a nova materialidade do capital.

    Capitalismo fl exvel

    A terceirizao, em si e para si, possui vnculos orgnicos com a nova forma de ser do capitalismo fl exvel. A dita acumulao fl exvel, expresso utilizada por David Harvey, surge como estratgia corporativa que buscava enfrentar as condies criticas do desenvolvimento capitalista na etapa da crise estrutural do capital caracterizada pela crise de sobreacumulao, mundializao fi nanceira e novo imperialismo. Ela constitui um novo mpeto de expanso da produo de mercadorias e de vantagem comparativa na concorrncia internacional que se acirra a partir de meados da dcada de 1970, compondo uma nova base tecnolgica, organizacional e sociometablica para a explorao da fora de trabalho assalariado. Segundo David Harvey, a acumulao fl exvel caracteriza-se a partir do confronto direto com a

  • 412

    Giovanni Alves

    Estud. sociol., Araraquara, v.16, n.31, p.409-420, 2011

    rigidez do fordismo. Aquela se apoiaria na [...] fl exibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padres de consumo e [...] caracteriza-se pelo surgimento de setores de produo inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de servios fi nanceiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensifi cadas de inovao comercial, tecnolgica e organizacional. (HARVEY, 1992, p.121).

    Para Harvey, o conceito de acumulao fl exvel envolveria tambm rpidas mudanas nos padres de desenvolvimento desigual, tanto entre setores (por exemplo, o crescimento do emprego no chamado setor de servios) como entre regies geogrfi cas (o surgimento de conjuntos industriais completamente novos na Terceira Itlia, no Flandres, e nos vrios vales e gargantas do silcio, na Califrnia, e a vasta profuso de atividades em paises recm-industrializados). Finalmente, a acumulao fl exvel se caracterizaria pelo novo movimento de compresso do espao-tempo no mundo capitalista. Diz ele: Os horizontes temporais da tomada de decises privadas e pblicas se estreitaram, enquanto a comunicao via satlite e a queda dos custos de transporte possibilitaram cada vez mais a difuso imediata dessas decises num espao cada vez mais amplo e variegado. (HARVEY, 1992, p.134). Enfi m, o conceito de acumulao fl exvel, de acordo com David Harvey, explicaria, segundo ele, o amplo movimento de transformaes ocorridas na economia poltica e cultura do capitalismo mundial que surge a partir da grande crise de meados da dcada de 1970.

    claro que existe perigo em exagerar a significao da categoria de acumulao fl exvel. Primeiro, uma das caractersticas histrico-ontolgicas da produo capitalista estar sempre procurando fl exibilizar as condies de produo, principalmente da fora de trabalho. Um dos traos ontolgicos do capital tem sido a sua notvel capacidade em desmanchar tudo que slido, revolucionar, de modo constante, as condies de produo; pr e repor novos patamares de mobilidade do processo de valorizao nos seus vrios aspectos (MARX; ENGELS, 1998, p.56; MARX, 1996, p.39). Portanto, a produo capitalista , em si, acumulao fl exvel de valor, que surge ainda em seus primrdios, quando o capital instaura o trabalho assalariado, promovendo a despossesso do trabalhador assalariado das condies de vida, a separao do trabalhador de seus meios de produo, a separao entre caracol e sua concha (MARX, 1996, p.78). O desenvolvimento do trabalho assalariado , ento, a prpria fenomenologia de sua peculiaridade ontolgica: ser fl exvel s necessidades imperativas do capital em processo.

    por isso que o novo complexo de reestruturao produtiva que surge sob a acumulao flexvel apenas expe, de certo modo, nas condies da crise estrutural do capital, o em si fl exvel do estatuto ontolgico-social do

  • 413

    Terceirizao e acumulao fl exvel do capital

    Estud. sociol., Araraquara, v.16, n.31, p.409-420, 2011

    trabalho assalariado: por um lado, a sua precarizao (e desqualifi cao) contnua (e incessante) e, por outro lado, as novas especializaes (e qualifi caes) de segmentos da classe dos trabalhadores assalariados. Ao tratar da grande indstria, por exemplo, Marx conseguiu apreender, ainda em seus rudimentos, um dos desenvolvimentos da categoria da fl exibilidade sob a grande indstria. Em O Capital, Marx afi rma que [a indstria moderna] exige, por sua natureza, variao do trabalho, isto , fl uidez das funes, mobilidade do trabalhador em todos os sentidos (MARX, 1996, p.245). E ressalta ainda, em outra passagem, [...] a elasticidade que a mquina e a fora humana revelam, quando so simultaneamente distendidas ao mximo pela diminuio compulsria da jornada de trabalho (MARX, 1996, p.251).

    Terceirizao e o modo de cooperao complexa do capital

    A terceirizao como principio organizativo da dita produo fl exvel um dos elementos compositivos do modo de cooperao complexa do capital que emerge com a nova reestruturao produtiva que ocorre nos ltimos trinta anos. Ela expressa uma nova reordenao do espao-tempo da produo do capital caracterizada pela constituio da nova organizao capitalista fl exvel, fl uida e difusa (BIHR, 1998).

    No sculo XX, a reestruturao produtiva do capital foi marcada pelas inovaes fordista-tayloristas que alteraram a morfologia da produo de mercadorias em vrios setores da indstria e dos servios. No campo organizacional da grande indstria, fordismo e taylorismo tornaram-se mitos mobilizadores do processo de racionalizao do trabalho capitalista. A introduo dos novos modelos produtivos foi lenta, desigual e combinada, percorrendo a maior parte do sculo XX. A produo em massa (ou o fordismo) alterou, de modo significativo, a vida social, transfi gurando as condies de produo (e de reproduo) social da civilizao humana, atingindo de forma diferenciada pases e regies, setores e empresas da indstria ou de servios.

    O que surge, hoje, com o novo complexo de reestruturao produtiva, cujo momento predominante o toyotismo, mais um elemento compositivo do longo processo de racionalizao do trabalho vivo que teve origem com o fordismo-taylorismo. O toyotismo a nova ideologia organizacional do capital nas condies do capitalismo global. Ele implica uma reorganizao do trabalhador coletivo que iremos denominar de cooperao complexa, considerada como nova etapa de desenvolvimento da grande indstria afetada de negaes (FAUSTO, 1989).

  • 414

    Giovanni Alves

    Estud. sociol., Araraquara, v.16, n.31, p.409-420, 2011

    Utilizamos o conceito de cooperao complexa no o contrapondo grande indstria, como quarta forma social, como faz Francisco Soares Teixeira, nem o considerando, em seu contedo categorial, como ps-grande indstria, como faz Ruy Fausto (TEIXEIRA, 1999; FAUSTO, 1989). Pelo contrrio, o que se pe com o que denominamos de cooperao complexa a etapa histrica tardia da grande indstria afetada de negao no interior da qual se desenvolvem elementos pressupostos negados de uma nova etapa do processo civilizatrio humano-genrico.

    Ao utilizarmos o conceito de cooperao complexa indicamos importantes alteraes na morfologia do novo complexo de reestruturao produtiva do capital e na dinmica sociometablica da produo do capital decorrentes, por um lado, da revoluo informacional, ou melhor, revoluo das redes informacionais, que possibilitam a rearticulao, na perspectiva da formao do valor, do coletivo fragmentado do capital; e, por outro lado, da nova confi gurao da luta de classes e da hegemonia ps-fordista de raiz neoliberal sob o estigma da captura da subjetividade do homem que trabalha.

    A constituio das redes informacionais como nova base tcnica da produo de mercadorias tem promovido importantes alteraes no processo de trabalho e na produo do capital. Por exemplo, a denominada empresa em rede e a constituio do novo trabalhador coletivo fl exibilizado alteraram o modus operandi do controle do trabalho capitalista.

    Com a revoluo informacional e as novas possibilidades de constituio de redes e de integrao dos sistemas de produo e de servios como observa Lojkine (1995, p.87),

    [...] o controle do trabalho [...] no pode ser limitado s relaes entre a fbrica e o cronmetro, entre operrios e chefes ou, ainda, entre a fabricao e a concepo, quando a informtica discute, atualmente, as antigas divises entre todas as funes da empresa (do departamento de estudos aos servios ps-venda), para no mencionar as relaes entre empresa que empreita e sub-empreiteiras, empresa industrial e empresas de servios (laboratrios de pesquisa, bancos de dados integrados, etc.).

    O que Lojkine constata a expansividade da relao-capital cujo controle sociometablico no se limita mais ao local de trabalho ou s instncias da produo propriamente dita, expondo os claros limites gnosiolgicos dos estudos da sociologia industrial e do trabalho que se restringem, ao tratarem da reestruturao produtiva, meramente fbrica ou mesmo cadeia produtiva propriamente dita (Lojkine nos alerta que a revoluo informacional ou a revoluo das redes informacionais

  • 415

    Terceirizao e acumulao fl exvel do capital

    Estud. sociol., Araraquara, v.16, n.31, p.409-420, 2011

    coloca em xeque a fi xao dos pesquisadores da sociologia industrial sobre o campo emprico das interfaces diretas homem-mquina, nos estudos consagrados ao trabalho). Na verdade, as novas mquinas informacionais deslocam a problemtica da relao interface homem-mquina para relao interface homem-homem (o que expe, de certo modo, a dimenso crucial dos processos de subjetivao sob a cooperao complexa).

    Terceirizao e metabolismo social do capital

    A reestruturao produtiva do capital, alm de conceber a produo como totalidade social, integra hoje, com mais intensidade e amplitude e, portanto, numa dimenso qualitativamente nova, inovaes tecnolgicas, inovaes organizacionais e inovaes sociometablicas como momentos constitutivos do todo orgnico da produo do capital (a terceirizao um elemento compositivo das inovaes organizacionais). Por isso, a necessidade candente da investigao crtica articular, como momentos compositivos ineliminveis da reestruturao produtiva do capital, as dimenses da inovao tecnolgica, inovao organizacional e inovao sociometablica, numa perspectiva de conceber a produo do capital cada vez mais como produo social ou ainda, produo de subjetividade s avessas por meio de novas mediaes tecnolgico-organizacionais.

    Entretanto, a elevao da unidade orgnica da produo do capital como totalidade social a um nvel qualitativamente novo, nas condies da cooperao complexa, ocorre devido no apenas revoluo das redes informacionais, mas nova confi gurao da luta de classe e dominao do capital no sistema mundial. Nas condies do capitalismo neoliberal, o capital torna-se uma fora social mais dominante que nunca, tanto no sentido da implicao poltico-estatal, quanto da dominao poltico-ideolgica, expondo, com mais intensidade e amplitude, o todo orgnico da produo do capital.

    As derrotas histricas das foras sociais e polticas do trabalho, a crise do Welfare State e a ofensiva neoliberal nas instncias poltico-ideolgicas deram ao capital a maior liberdade possvel, sem a qual no poderia afi rmar-se como sujeito fora e dentro do processo de trabalho. O movimento exacerbado do capital tende a dar um sentido integrista nova racionalizao do mundo, que se confunde com modernizao e perpassa a totalidade da vida social como instncia da produo de valor (pelo menos no plano do discurso ideolgico dos valores-fetiches, que obnubilam a intensa irracionalidade social). Nas ltimas dcadas, o aparato hegemnico neoliberal tem constitudo um novo terreno ideolgico, que impulsiona uma reforma das conscincias e dos mtodos de conhecimento.

  • 416

    Giovanni Alves

    Estud. sociol., Araraquara, v.16, n.31, p.409-420, 2011

    O toyotismo e a captura da subjetividade do homem que trabalha tambm um fato fi losfi co. nesse sentido que Gramsci (1984, p.345) nos diz: [...] quando se consegue introduzir uma nova moral adequada a uma nova concepo do mundo, termina-se por introduzir tambm esta concepo, isto , determina-se uma reforma fi losfi ca total.

    Portanto, com a cooperao complexa da produo do capital instaura-se uma etapa histrica de intensa socializao da produo social e de agudizao das contradies do sistema mundial do capital, em que a linha de demarcao entre as instncias das inovaes tecnolgicas, organizacionais e scio-metablicas tende a tornar-se ainda mais tnue. Nesse caso, a ideia de produo do capital incorpora a totalidade social com os limites entre produo, circulao, distribuio e consumo tornando-se deveras sutis (nesse caso, as ideias de flexibilidade e integrao explicitam, no plano lingustico, alteraes materiais ocorridas na forma social da produo do capital). O capital, como categoria social abstrata, torna-se mais efetivo na sua forma de ser. Com a cooperao complexa ocorre o movimento de absolutizao do capital. Nesse sentido, constitui-se a produo como totalidade social, em que a ideia de rede informacional, que est na empresa, mas tambm na escola e no lar, aparece como seu lastro tecnolgico. As mutaes sociomateriais do capitalismo global alteram as determinaes categoriais do ser social (ALVES, 2011).

    Terceirizao e novo trabalhador coletivo do capital

    A terceirizao nas condies da revoluo das redes informacionais instaura, com maior concreo, o trabalhador coletivo do capital, que articula em si, com mais intensidade e amplitude, por meio das redes informacionais, trabalho material e trabalho imaterial. Do ponto de vista da formao do valor, o coletivo do trabalho fl exibilizado pela terceirizao est mais integrado do que nunca, constituindo um novo trabalhador coletivo do capital.

    A categoria de trabalhador coletivo aparece, pela primeira vez, no captulo intitulado Cooperao na seo V de O Capital, de Karl Marx. O trabalhador coletivo o trabalhador combinado [...] que possui olhos e mos a frente e atrs e, at certo ponto, o dom da uniquidade e que faz avanar o produto global mais rapidamente [...], como Marx apresenta o ente social que nasce da cooperao (concours de forces, como disse Destutt de Tracy) (MARX, 1996, p.489). A nova potncia de foras que decorre da fuso de muitas foras numa fora global um atributo do trabalhador coletivo. Marx (1996) salientava que a cooperao permite estender (e estreitar) o tempo-espao, constituindo pelo trabalhador

  • 417

    Terceirizao e acumulao fl exvel do capital

    Estud. sociol., Araraquara, v.16, n.31, p.409-420, 2011

    coletivo, uma nova fora produtiva social do trabalho ou fora produtiva do trabalho social.

    Marx (1996, p.490) observa que [...] os trabalhadores no podem cooperar diretamente sem estar juntos, sendo sua aglomerao em determinado local condio de sua cooperao. Com as redes informacionais tornou-se possvel estar junto distncia. O trabalhador social ou trabalhador combinado, por meio das novas tecnologias de informao e comunicao, no apenas estende (ou estreita) o espao-tempo, mas pode virtualmente suprimi-lo, com a constituio de um novo local de cooperao complexa, o ciberespao (MARX, 1996).

    A escala da cooperao uma varivel da grandeza do capital. A concentrao de grandes quantidades de meios de produo observou Marx em mos de capitalistas individuais , portanto, a condio material para a cooperao de trabalhadores assalariados, e a extenso da cooperao, ou a escala da produo, depende do grau dessa concentrao. (MARX, 1996, p.90) O desenvolvimento de uma cooperao complexa decorre do surgimento da grande empresa transnacional de capital concentrado, capaz de articular, numa escala global, pela nova base tcnica constituda pela revoluo das redes informacionais, formas inditas de cooperao ou processo social de trabalho combinado (redes de subcontratao constitudas a partir de processos de terceirizaes).

    A constituio do trabalhador coletivo ou trabalhador combinado signifi ca, em si, o desenvolvimento da fora produtiva social do trabalho ou da fora produtiva do trabalho social. O capitalista compra a fora de trabalho individual isolada, mas ao faz-lo cooperar, obtm um renda relacional que provm da fora combinada no-paga do trabalhador combinado. A fora produtiva social do trabalho, segundo Marx, uma fora gratuita que no custa nada ao capital e, por outro lado, no desenvolvida pelo trabalhador antes que seu prprio trabalho pertena ao capital. Na verdade, como observa ele, [...] como pessoas independentes, os trabalhadores so indivduos que entram em contato com o mesmo capital, mas no entre si. (MARX, 1996, p.520) Na medida em que s comeam a cooperar no processo de trabalho como processo de valorizao, eles j deixaram de pertencer a si mesmos. E destaca: Como cooperadores, como membros de um organismo que trabalha, eles no so mais do que um modo especfi co de existncia do capital (MARX, 1996, p.520). Por isso, o trabalhador coletivo aparece como trabalhador coletivo do capital: A fora produtiva que o trabalhador desenvolve como trabalhador social , portanto, fora produtiva do capital. (MARX, 1996, p.521).

    O modo de produo capitalista coloca a necessidade histrica da transformao do processo de trabalho em um processo social. A fora produtiva

  • 418

    Giovanni Alves

    Estud. sociol., Araraquara, v.16, n.31, p.409-420, 2011

    do trabalho social, como observou Marx, uma fora gratuita, apesar de seu desenvolvimento por meio das redes informacionais ter significado vultosos investimentos em cincia, tecnologia e infraestrutura social. Na verdade, [...] essa forma social do processo de trabalho apresenta-se como um mtodo, empregado pelo capital, para mediante o aumento da sua fora produtiva, explor-lo mais lucrativamente. (MARX, 1996, p.521).

    No aspecto ontometodolgico, a categoria de cooperao como modo de organizao da produo social possui centralidade na exposio da produo do capital. A cooperao a forma bsica do modo de produo capitalista que se repe em cada etapa de desenvolvimento das formas de organizao do trabalho. por isso que, no livro O Capital Critica da Economia Poltica, Marx inaugura a Seo V, em que expe a produo da mais-valia relativa, com o captulo XXI, intitulado Cooperao (depois ele trataria da diviso do trabalho e manufatura e maquinaria e grande Indstria). Ao iniciar sua exposio com a categoria de cooperao, Marx sugere que a alma do complexo de reestruturao produtiva nas empresas dada pelas inovaes organizacionais. Na verdade, a cooperao trata de inovaes meramente organizacionais na produo de mercadorias, em que o capital, pela nova ordenao espao-temporal da gesto do trabalho vivo como fora de trabalho, constituiria o seu trabalhador coletivo.

    Portanto, a centralidade ontometodolgica da categoria de cooperao na exposio da estrutura de produo do capital decorre no apenas de ela ser forma bsica do modo de produo capitalista, mas ser matriz da categoria de trabalhador coletivo do capital, lan vital da produo de mercadorias, elemento fundamental e fundante do processo de acumulao capitalista. Por isso, na medida em que as inovaes organizacionais enquanto forma de reposio da cooperao aparecem como um mtodo, empregado pelo capital, para mediante o aumento da sua fora produtiva explor-lo mais lucrativamente, reconstituindo o trabalhador coletivo do capital, elas se tornam inovaes axiais em torno do qual se articulam as inovaes tecnolgicas e inovaes sociometablicas.

    Ao reconstituir pelas redes informacionais, o trabalhador coletivo fl exibilizado pelos processos de terceirizao, o capital integra, com maior intensidade e amplitude, o todo orgnico da produo de valor, constituindo uma sinergia capaz de dar um salto espetacular (e indito) na produtividade do trabalho social, explorao da fora de trabalho e extrao de mais-valia ( o que tem demonstrado a produo industrial nas ltimas dcadas).

  • 419

    Terceirizao e acumulao fl exvel do capital

    Estud. sociol., Araraquara, v.16, n.31, p.409-420, 2011

    OUTSOURCING AND FLEXIBLE ACCUMULATION OF CAPITAL NOTES ON THE CRITICAL-THEORETICAL ORGANIC CHANGES OF CAPITALIST PRODUCTION

    ABSTRACT: This essay seeks to provide theoretical and critical elements to see the outsourcing process as a compositional feature of the new confi guration of flexible capitalism in the context of globalization of capital. Outsourcing is designed to rationalize, under the new conditions of competition and accumulation, the exploitation of the workforce employed within the new capitalist mode of cooperation: cooperation complex, higher stage of the great industry under the terms of the information revolution.

    KEYWORDS: Outsourcing. Restructuring of production. Precariousness of work. Unionism. Flexible accumulation.

    Referncias

    ALVES, G. Trabalho e subjetividade: o esprito do toyotismo na era do capitalismo manipulatrio. So Paulo: Editora Boitempo, 2011.

    ______. O novo (e precrio) mundo do trabalho: reestruturao produtiva e crise do sindicalismo. So Paulo: Boitempo, 2000.

    BARROS, L. A. Terceirizao. In: DUARTE, A. et al. Dicionrio da educao profi ssional. Belo Horizonte: Fidalgo & Machado, 2000. p.327.

    BIHR, A. Da grande noite alternativa (o movimento operrio em crise). So Paulo: Boitempo, 1998.

    FAUSTO, R. A Ps-Grande Indstria nos Grundrisse (e para alm deles). Lua Nova, So Paulo, v.89, n.19, p.47-67, nov. 1989.

    GRAMSCI, A. Maquiavel, a poltica e o Estado moderno. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1984.

    HARVEY, D. Condio ps-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudana cultural. So Paulo. Edies Loyola, 1992.

    LOJKINE, J. A revoluo informacional. So Paulo: Cortez, 1995.

  • 420

    Giovanni Alves

    Estud. sociol., Araraquara, v.16, n.31, p.409-420, 2011

    MARX, K. O capital: crtica da economia poltica. Rio de Janeiro: Nova Cultural, 1996. Livro 1.

    MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto comunista. So Paulo: Boitempo, 1998.

    TEIXEIRA, F. J. S. O capital e suas formas de produo de mercadorias: rumo ao fi m da economia poltica. Fortaleza, 1999. No publicado.

    Recebido em: 04/11/2010 Aprovado em: 09/02/2011

    /ColorImageDict > /JPEG2000ColorACSImageDict > /JPEG2000ColorImageDict > /AntiAliasGrayImages false /CropGrayImages true /GrayImageMinResolution 300 /GrayImageMinResolutionPolicy /OK /DownsampleGrayImages true /GrayImageDownsampleType /Bicubic /GrayImageResolution 300 /GrayImageDepth -1 /GrayImageMinDownsampleDepth 2 /GrayImageDownsampleThreshold 1.50000 /EncodeGrayImages true /GrayImageFilter /DCTEncode /AutoFilterGrayImages true /GrayImageAutoFilterStrategy /JPEG /GrayACSImageDict > /GrayImageDict > /JPEG2000GrayACSImageDict > /JPEG2000GrayImageDict > /AntiAliasMonoImages false /CropMonoImages true /MonoImageMinResolution 1200 /MonoImageMinResolutionPolicy /OK /DownsampleMonoImages true /MonoImageDownsampleType /Bicubic /MonoImageResolution 1200 /MonoImageDepth -1 /MonoImageDownsampleThreshold 1.50000 /EncodeMonoImages true /MonoImageFilter /CCITTFaxEncode /MonoImageDict > /AllowPSXObjects false /CheckCompliance [ /None ] /PDFX1aCheck false /PDFX3Check false /PDFXCompliantPDFOnly false /PDFXNoTrimBoxError true /PDFXTrimBoxToMediaBoxOffset [ 0.00000 0.00000 0.00000 0.00000 ] /PDFXSetBleedBoxToMediaBox true /PDFXBleedBoxToTrimBoxOffset [ 0.00000 0.00000 0.00000 0.00000 ] /PDFXOutputIntentProfile () /PDFXOutputConditionIdentifier () /PDFXOutputCondition () /PDFXRegistryName () /PDFXTrapped /False /CreateJDFFile false /Description > /Namespace [ (Adobe) (Common) (1.0) ] /OtherNamespaces [ > /FormElements false /GenerateStructure false /IncludeBookmarks false /IncludeHyperlinks false /IncludeInteractive false /IncludeLayers false /IncludeProfiles false /MultimediaHandling /UseObjectSettings /Namespace [ (Adobe) (CreativeSuite) (2.0) ] /PDFXOutputIntentProfileSelector /DocumentCMYK /PreserveEditing true /UntaggedCMYKHandling /LeaveUntagged /UntaggedRGBHandling /UseDocumentProfile /UseDocumentBleed false >> ]>> setdistillerparams> setpagedevice