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Rev. TST, Brasília, vol. 77, n o 1, jan/mar 2011 95 TERCEIRIZAÇÃO NOS SERVIÇOS PÚBLICOS Patrícia Pinheiro Silva * 1 – INTRODUÇÃO A s cíclicas mudanças no modelo de produção não poderiam passar despercebidas pelos Estados do mundo inteiro. De fato, o novo modelo de acumulação de capital veio como resposta à Revolução Tecnológica e à velocidade das comunicações ensejada pela Globa- lização. Calcado na ideia de flexibilidade, o Toyotismo não tardaria a requerer modificações no papel exercido pelo Estado na economia. Assim, embalado pelos ideais neoliberais, o Estado e a Administração Pública passaram por um forte processo de desestatização, que tem como um de seus expoentes a terceirização, instituto que será objeto deste trabalho. Desta forma, o presente estudo terá por objetivo dirimir a problemática consubstanciada nos seguintes questionamentos: o que se entende por terceiri- zação nos serviços públicos? Quais os seus limites e consequências? Para tanto, realizaremos uma análise sistemática do ordenamento jurídico administrativo, constitucional e laboral, bem como buscaremos fontes doutrinárias e jurispru- denciais que tratam da matéria. Cumpre observar que este artigo terá como foco a terceirização levada a cabo, especificamente, pelas pessoas jurídicas de Direito Público, tendo em vista que as empresas estatais exploradoras de atividade econômica encontram- se regidas pelo Direito Privado, na forma do art. 173, CF, inclusive no que se refere à contratação de serviços. * Advogada; especialista em Direito Material e Processual do Trabalho pelo Juspodivm; especialista em Direito do Estado pelo Juspodivm.

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Materia - Patrícia Pinheiro SilvaCumpre observar que este artigo terá como foco a terceirização levada a cabo, especificamente, pelas pessoas jurídicas de Direito Público, tendo em vista que as empresas estatais exploradoras de atividade econômica encontram-se regidas pelo Direito Privado, na forma do art. 173, CF, inclusive no que se refere à contratação de serviços.

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  • Rev. TST, Braslia, vol. 77, no 1, jan/mar 2011 95

    TERCEIRIZAO NOS SERVIOS PBLICOS

    Patrcia Pinheiro Silva*

    1 INTRODUO

    As cclicas mudanas no modelo de produo no poderiam passar despercebidas pelos Estados do mundo inteiro.De fato, o novo modelo de acumulao de capital veio como resposta

    Revoluo Tecnolgica e velocidade das comunicaes ensejada pela Globa-lizao. Calcado na ideia de flexibilidade, o Toyotismo no tardaria a requerer modificaes no papel exercido pelo Estado na economia.

    Assim, embalado pelos ideais neoliberais, o Estado e a Administrao Pblica passaram por um forte processo de desestatizao, que tem como um de seus expoentes a terceirizao, instituto que ser objeto deste trabalho.

    Desta forma, o presente estudo ter por objetivo dirimir a problemtica consubstanciada nos seguintes questionamentos: o que se entende por terceiri-zao nos servios pblicos? Quais os seus limites e consequncias? Para tanto, realizaremos uma anlise sistemtica do ordenamento jurdico administrativo, constitucional e laboral, bem como buscaremos fontes doutrinrias e jurispru-denciais que tratam da matria.

    Cumpre observar que este artigo ter como foco a terceirizao levada a cabo, especificamente, pelas pessoas jurdicas de Direito Pblico, tendo em vista que as empresas estatais exploradoras de atividade econmica encontram-se regidas pelo Direito Privado, na forma do art. 173, CF, inclusive no que se refere contratao de servios.

    * Advogada; especialista em Direito Material e Processual do Trabalho pelo Juspodivm; especialista em Direito do Estado pelo Juspodivm.

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    2 CONSIDERAES SOBRE OS SERVIOS PBLICOS

    Inicialmente, mister se faz tecer algumas consideraes acerca dos servios pblicos para, a partir da, delimitar a possibilidade de utilizao do instituto de terceirizao na prestao desses servios.

    2.1 Delimitaes conceituais

    O conceito de servio pblico foi elaborado e disseminado, inicialmente, na Frana, onde utilizado para indicar amplamente todas as atividades estatais (JUSTEN FILHO, 2005, p. 478).

    No Brasil, contudo, tal acepo utilizada como linguagem leiga. Nesse sentido, frequente a utilizao do termo servio ou mesmo servio pbli-co para designar tudo aquilo que o Estado faz, ou, pelo menos, toda atividade administrativa por ele desempenhada. Esta concepo ampla abrangeria, assim, servios que, juridicamente, convencionou-se denominar como obras pbli-cas, atividades tpicas de polcia administrativa e, at mesmo, a explorao estatal de atividade econmica regida eminentemente pelo Direito Privado (neste ltimo caso, adota-se o rtulo servio pblico industrial, comercial ou econmico) (MELLO, 2010, p. 682).

    Sobre o tema, esclarecedoras so as lies de Odete Medauar (2008, p. 313):

    A expresso servio pblico s vezes vem empregada em senti-do muito amplo, para abranger toda e qualquer atividade realizada pela Administrao pblica, desde uma carimbada num requerimento, at o transporte coletivo. (...) No sentido amplo da expresso servio pblico so englobadas tambm as atividades do Poder Judicirio e do Poder Legislativo (...). Evidente que a a expresso no se reveste de sentido tcnico, nem tais atividades sujeitam-se aos preceitos norteadores da ativi-dade tecnicamente caracterizada como servio pblico (grifos da autora).

    Entretanto, a amplitude conceitual est indissocialmente ligada inutili-dade do conceito, que perde, portanto, interesse jurdico. Isto porque um con-ceito amplo no consegue captar adequadamente as caractersticas e o regime jurdico aplicveis ao instituto sob anlise. Assim, inconvenincias geradas pela utilizao de um conceito excessivamente amplo de servio pblico tm conduzido a doutrina a propor outros conceitos, agora mais restritos.

    Na verdade, como bem ensina Eros Roberto Grau (2007, p. 111), servio pblico no um conceito, mas uma noo, plena de historicidade. Citando Sartre, o autor elucida que, enquanto o conceito seria algo atemporal (2007,

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    p. 134), a noo representa um esforo sinttico para produzir uma ideia que se desenvolve a si mesma por contradies e superaes sucessivas e que , pois, homognea ao desenvolvimento das coisas (2007, p. 135). Assim, a noo de servio pblico deve ser resgatada na realidade social, em funo das vicissitudes das relaes entre as foras sociais, entre os interesses do capital e do trabalho (2007, p. 110).

    Corroborando esta assertiva, tambm Hely Lopes Meirelles (2004, p. 320-321) entende que apenas possvel uma definio genrica de servio pblico, no sendo possvel a indicao das atividades que o constituem, porque estas variam segundo as exigncias de cada povo e de cada poca. Por isso, o que prevalece a vontade soberana do Estado, qualificando o servio como pblico ou de utilidade pblica, para sua prestao direta ou indireta.

    Trata-se, portanto, de noo ligada ao papel que, num determinado tempo, certa sociedade decidiu atribuir ao Estado na economia. Nessa linha, conclui Eros Roberto Grau (p. 136): Servio Pblico, assim, na noo que dele podemos enunciar, a atividade explcita ou supostamente definida pela Constituio como indispensvel, em determinado momento histrico, realizao e ao de-senvolvimento da coeso e da interdependncia social (Duguit) ou, em outros termos, atividade explcita ou supostamente definida pela Constituio como servio existencial relativamente sociedade em um determinado momento histrico (Cirne Lima).

    Como se pode notar, Eros Grau restringe a noo de servio pblico, ao excluir de seu mbito de incidncia as atividades econmicas em sentido estrito, cujo exerccio apenas caber ao Estado em carter excepcional, nos termos do art. 173 da Constituio.

    Contudo, a noo de servio pblico ainda mais limitada por Celso Antnio Bandeira de Mello (2010, p. 671): Servio pblico toda atividade de oferecimento de utilidade ou de comodidade material destinada satisfao da coletividade em geral, mas fruvel singularmente pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faa as vezes, sob regime de Direito Pblico portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restries especiais , institudo em favor dos interesses definidos como pblicos no sistema normativo.

    No mesmo sentido, Odete Medauar (2008, p. 313) ensina que: Servio Pblico, como um captulo do direito administrativo, diz respeito atividade realizada no mbito das atribuies da Administrao, inserida no Executivo. E refere-se a atividade prestacional, em que o poder pblico propicia algo ne-

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    cessrio via coletiva, como, por exemplo, gua, energia eltrica, transporte urbano. As atividades-meio (por exemplo: arrecadao de tributos, servios de arquivo, limpeza de reparties, vigilncia de reparties) no se incluem na acepo tcnica de servio pblico.

    Apesar de a noo restrita de servios pblicos ser predominante na doutrina brasileira, no presente trabalho valeremo-nos do seu sentido amplo, a fim de tratar da terceirizao na Administrao Pblica como um todo. Isso porque, como bem salientado por Helder Santos Amorim (2009, p. 90-91), a interpretao constitucional sobre os limites da terceirizao no interior de um ente ou rgo pblico independe da natureza de sua atividade principal, tendo em vista que este sempre responsvel na mesma medida pelo exerccio de suas atribuies. Mais importante para a determinao dos limites da terceirizao a definio do regime jurdico a que se encontra submetido o ente pblico tomador de servios terceirizados.

    2.2 Nveis de gesto do servio pblico

    Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2005, p. 240-241), a partir das lies de Guglielmi, destaca os modos de gesto ou administrao do servio pblico, que compreende questes de organizao, funcionamento e direo dos mesmos.

    Destarte, distingue trs funes:

    a) Gesto estratgica: funo mais elevada, que concerne direo e estratgia do servio pblico. Pertence, obrigatoriamente, a uma pessoa pblica titular do servio, a quem cabe a ltima palavra quanto escolha dos objetivos; no se transfere nem mesmo pela concesso de servio pblico. Neste ponto, Dora Ramos (2001, p. 119) destaca que a gesto estratgica abrange a compe-tncia para criar e suprimir o servio pblico; para escolher seu gestor opera-cional; para fixar os princpios de organizao e de funcionamento expressos no caderno de encargos imposto ao gestionrio; para controlar a observncia desses princpios e sancionar as violaes operadas.

    b) Gesto operacional: refere-se ao modo de funcionamento e a uma parte da organizao, vale dizer, concerne s tarefas correntes de regulao (assegura a continuidade, a logstica, a resoluo dos conflitos, as faltas e as urgncias) e de otimizao (envolve operaes pelo melhor custo, bem como adaptaes previstas no quadro jurdico existente) dos servios. Abrange competncias para: regulamentar os laos com os usurios do servio pblico, que so seus clientes; regulamentar os laos com os agentes do servio pblico, que so seus empregados; dirigir o trabalho de instalao do servio pblico, ou, pelo menos,

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    a disposio dessas instalaes. Ela profundamente heterognea, uma vez que, em certos casos, as regulaes so feitas pela pessoa jurdica encarregada da explorao, e as otimizaes so decididas pela pessoa pblica que possui a direo dos objetivos.

    c) Gesto material: refere-se ao efetivo desempenho, execuo material das operaes de prestao de servio. No caracterizada por competncias, porque a pessoa executante no est normalmente em situao de produzir atos jurdicos para as necessidades do servio pblico. Esta funo caracteriza-se pela realizao material de atividades que no constituem um servio pblico em sua inteireza, uma vez que so apenas tarefas anexas a esse servio. Outros-sim, no h vnculo contratual entre o prestador do servio (mero executante material sem competncia para gerir o servio pblico) e o pblico usurio. A atividade executada em nome do gestor operacional.

    3 TERCEIRIZAO NA ADMINISTRAO PBLICA DISTINES CONCEITUAIS

    Como reflexo dos processos desestatizantes dos ltimos anos, cada vez mais prestaes de servios pblicos vm sendo repassadas para a iniciativa privada, atravs dos institutos da concesso e da permisso formas de descen-tralizao de servios por colaborao. Da mesma forma, a Administrao vem enxugando seus quadros e dinamizando a execuo de suas atividades atravs da contratao de terceiros, vale dizer, por meio da terceirizao.

    Neste ponto, mister se faz conceituar o que se entende por terceirizao na Administrao Pblica, distinguindo-a das chamadas concesses e permis-ses de servios pblicos.

    A terceirizao ou locao de servios, na Administrao Pblica, atual- mente disciplinada pela Lei n 8.666/93 (Lei de Licitaes e Contratos da Administrao Pblica). Constitui-se numa das formas pela qual o Estado busca parceria com o setor privado para a realizao de suas atividades. Por meio dela, atividades de apoio ou meramente instrumentais prestao do servio pblico so repassadas para empresas privadas especializadas, a fim de que o ente pblico possa melhor desempenhar suas competncias institucionais.

    A prpria Lei n 8.666/93 define servios como a atividade destina-da a obter determina utilidade de interesse para a Administrao (art. 6, II). Assim, o servio objeto de terceirizao uma tarefa prestada pelo particular imediatamente Administrao para satisfao dos interesses desta em apoio ao exerccio de suas atribuies. Apenas de forma mediata o servio presta-

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    do comunidade, atravs do ente pblico contratante, beneficirio direto da prestao (AMORIM, 2009, p. 97).

    Na verdade, trata-se de nova terminologia adotada para designar fr-mulas h muito utilizadas pela Administrao Pblica, que, contudo, retornou impregnada da nova ideologia neoliberal. A terceirizao vocbulo empres-tado vida empresarial para designar os antigos contratos de obras, servios e fornecimentos, desde longa data utilizados pela Administrao Pblica (PIETRO, 2005, p. 19).

    De logo, portanto, percebe-se uma distino entre a terceirizao e as concesses ou permisses de servios pblicos, referente ao seu objeto. que servios pblicos jamais podem ser integralmente terceirizados, pois a locao de servios refere-se apenas execuo material de atividades especficas.

    Essa interpretao decorre do quanto disposto no art. 175 da CF/88, in verbis: Incumbe ao Poder Pblico, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concesso ou permisso, sempre atravs de licitao, a prestao de servios pblicos.

    A respeito do tema, Maria Sylvia Di Pietro (2005, p. 239) entende que:

    A concesso tem por objeto um servio pblico; no uma de-terminada atividade ligada ao servio pblico, mas todo o complexo de atividades indispensveis realizao de um especfico servio pblico, envolvendo a gesto e a execuo material. (...) A Administrao trans-fere o servio em seu todo, estabelecendo as condies em que quer que ele seja desempenhado; a concessionria que vai ter a alternativa de terceirizar ou no determinadas atividades materiais ligadas ao objeto da concesso. A locao de servios tem por objeto determinada atividade que no atribuda ao Estado como servio pblico e que ele exerce apenas em carter acessrio ou complementar da atividade-fim, que o servio pblico.

    Dessa maneira, na terceirizao a Administrao Pblica apenas transfere a execuo material de determinadas atividades, ao passo que as concessionrias e permissionrias de servios pblicos tambm recebem a gesto operacional.

    Outrossim, segue a autora (2005, p. 241), distinguem-se quanto forma de remunerao, tendo em vista que a remunerao das concessionrias feita pelos usurios dos servios e pelas formas alternativas, complementares, aces-srias ou decorrentes de projetos associados, previstas nos arts. 11 e 18, VI, da referida Lei n 8.987/04. J na terceirizao, a remunerao inteiramente paga pelo Poder Pblico ou pelo gestor operacional.

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    Cumpre observar que essa distino restou mitigada, em face do advento da Lei n 11.079/04, que passou a prever a figura da parceria pblico-privada, espcie de concesso de servio pblico que permite a remunerao da empresa parceira pelo Poder Pblico.

    Maria Sylvia Di Pietro (2005, p. 242), ainda, traz a distino quanto s prerrogativas pblicas, que apenas so transferidas para a concessionria, no para a empresa terceirizada. Isso porque a concessionria assume a posio do poder concedente na prestao do servio pblico concedido, ao passo que a terceirizada mera executora material de uma atividade que prestada para a Administrao e no para os usurios do servio pblico (perante o usurio, a Administrao que aparece como prestadora do servio).

    Por fim, os institutos diferenciam-se quanto ao poder de interveno na concesso de que goza o poder concedente, em caso de descumprimento do contrato por parte da concessionria (arts. 32 a 34, Lei n 8.987). Na terceiri-zao, o Poder Pblico poder rescindir o contrato, o que apenas acarretar as seguintes consequncias: assuno imediata do objeto do contrato; ocupao e utilizao do local, instalaes, equipamentos, material e pessoal empregados na execuo do contrato, necessrios sua continuidade; execuo da garantia contratual; reteno dos crditos decorrentes do contrato at o limite dos pre-juzos causados Administrao (art. 80, Lei n 8.666).

    Ratificando as distines elencadas, Celso Antnio Bandeira de Mello (2010, p. 703) leciona:

    (...) Nos simples contratos de prestao de servio, o prestador do servio simples executor material para o Poder Pblico contratante. Da que no lhe so transferidos poderes pblicos. Persiste sempre o Poder Pblico como o sujeito diretamente relacionado com os usurios e, de conseguinte, como responsvel direto pelos servios. O usurio no entretm relao jur-dica alguma com o contratado-executor material, mas com a entidade pblica qual o servio est afeto. Por isto, quem cobra pelo servio prestado e o faz para si prprio o Poder Pblico. O contratado no remunerado por tarifas, mas pelo valor avenado com o contratante governamental. Em suma: o servio continua a ser prestado diretamente pela entidade pblica a que est afeto, a qual apenas se serve de um agente material. J na concesso, tal como se passa igualmente na permisso e em contraste com o que ocorre nos me-ros contratos administrativos de prestao de servios, ainda que pblicos , o concedente se retira do encargo de prestar diretamente o servio e transfere para o concessionrio a qualidade, o ttulo jurdico, de prestador do servio ao usurio, isto , o de pessoa interposta entre o Poder Pblico e a coletividade.

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    Observe-se, por fim, que, em qualquer hiptese, a gesto estratgica do servio pblico sempre remanescer com o Poder Pblico. Alis, como ensina Moreira Neto (1993, p. 32), essa a tendncia do Estado atual, que vai perden-do o monoplio da execuo administrativa e a administrao dos interesses pblicos, para se concentrar na sua direo, bem desempenhando o monoplio da deciso administrativa.

    4 ESCORO HISTRICO DA NORMATIZAO DA TERCEIRIZAO NA ADMINISTRAO PBLICA

    Em meio proposta de Reforma Administrativa na rea Federal, o Decreto-Lei n 200 de 1967 foi o primeiro diploma normativo a tratar da ter-ceirizao, tratando da matria no seu art. 10, 1, alnea c, c/c 7.

    Neste momento, foi permitida a contratao de empresas para a realizao material de tarefas executivas, de interesse direto da administrao pblica (v.g., o servio de limpeza de prdio pblico), figura designada pela norma, em outras passagens, como contratao indireta ou contrao de servios, objeto especfico desta obra (AMORIM, 2009, p. 104).

    Observe-se que foi permitida a contratao de servios e no o mero fornecimento de mo de obra, de sorte que a Administrao Pblica poderia contratar terceiros para a realizao de tarefas executivas. Trata-se claramente de terceirizao, cesso de tarefas ou servios a serem realizados autonoma-mente por empresas capacitadas tecnicamente (especializadas) (CARELLI, 2003, p. 117).

    Vale ressaltar que, neste momento, vigorava um paradigma de admi-nistrao pblica centralizadora e burocrtica, o que, nas palavras de Helder Amorim (2009, p. 104-105):

    (...) confere norma em apreo um aspecto despreocupada-mente exortativo da contratao de tarefas internas do setor pblico ao setor privado, com finalidade estritamente organizacional, num cenrio poltico que no representava qualquer risco de abuso privatista. (...) No paradigma administrativo da poca, a preocupao maior do go-verno militar residia na desburocratizao dos processos de deciso na administrao pblica direta e no controle operacional e financeiro das empresas estatais. O grande desafio da poca era flexibilizar a adminis-trao dessas empresas para atribuir maior operacionalidade e reduzir custos nas atividades econmicas do Estado.

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    No h que se falar, ainda, na utilizao das terceirizaes como instru-mento a servio da desestatizao, o que somente ocorreria mais tarde, sob as influncias da ideologia neoliberal.

    Posteriormente, a Lei n 5.645/70 veio a exemplificar algumas das ati-vidades meramente executivas passveis de terceirizao, ao dispor que as atividades relacionadas com transporte, conservao, custdia, operao de elevadores, limpeza e outras assemelhadas sero, de preferncia, objeto de execuo indireta, mediante contrato (art. 3, pargrafo nico1).

    Como se v, trata-se de rol exemplificativo, mas cuja extenso encontra limites no ponto comum que se pode extrair da lei, qual seja, a necessidade de que tais atividades digam a atividades de apoio, instrumentais, atividades-meio (DELGADO, 2009, p. 411).

    Atente-se que, em 30.09.86, foi editado o Enunciado n 256/TST, que restringia a licitude da terceirizao na iniciativa privada s duas hipteses legalmente previstas (trabalho temporrio e vigilncia bancria). Por outro lado, a legislao federal incitava a mesma prestao de servios em atividades instrumentais e de apoio administrativo no mbito do Poder Pblico. Esta di-versidade de tratamentos entre o Poder Pblico e o particular repercutiu numa diferena de tratamento interno prpria Administrao Pblica, entre os entes com personalidade jurdica de Direito Pblico (regidos pela Lei n 5.645/70) e as empresas estatais exploradoras de atividade econmica (regidas pelo Direito do Trabalho na forma do art. 173, CF) (AMORIM, 2009, p. 120).

    Em 21.11.86, foi publicado o DL n 2.300, disciplinando as licitaes e contratos no mbito da Administrao Fed|eral. O referido Decreto-Lei trazia previso expressa da possibilidade de regime de execuo indireta de obras e servios (art. 9, II).

    A CF/88, em seu inciso XXI do art. 37, trouxe o fundamento para a contratao de servios, ao inclu-los, expressamente, entre os contratos depen-dentes de licitao. evidente que o intuito do legislador no foi o de inovar pois tais contratos sempre foram celebrados , mas o de tornar expresso que a licitao obrigatria, inclusive para as entidades da Administrao indireta (PIETRO, 2005, p. 236).

    A fim de dar cumprimento ao inciso XXI do art. 37 da CF, o legislador editou, em 21.07.93, a Lei n 8.666, instituindo normas sobre licitaes e con-

    1 Este pargrafo encontra-se revogado pela Lei n 9.527, de 1997.

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    tratos da Administrao Pblica. Numa redao semelhante trazida pelo DL n 2.300/86, permitiu o regime de execuo indireta de obras e servios (art. 10, II).

    Maral Justen Filho (2009, p. 125-126) distingue os regimes de execuo:

    A execuo direta verifica-se quando a obra ou servio execu-tado pela prpria Administrao. A Lei acrescentou a expresso pelos prprios meios ao conceito existente no DL 2.300/1986. Desse modo, deixou claro que a execuo direta envolve tambm o instrumental da Administrao. No caso de execuo direta, a Administrao direta no necessitaria, em princpio, do concurso de terceiros. Logo, no caberia cogitar de contratao administrativa (portanto, nem de licitao). (...) As obras e servios podem desenvolver-se sob regime de execuo indireta. A responsabilidade pelo cumprimento das prestaes assumida por um terceiro, que juridicamente o realizador da obra ou prestador do servi-o. A execuo indireta se faz sob a modalidade bsica da empreitada.

    No seu art. 6, II, a Lei define servios como toda atividade destinada a obter determinada utilidade de interesse para a Administrao, e, a seguir, exemplifica as atividades de demolio, conserto, instalao, montagem, ope-rao, conservao, reparao, adaptao, manuteno, transporte, locao de bens, publicidade, seguro ou trabalhos tcnico-profissionais.

    A devida interpretao da norma enseja a delimitao dos servios pas-sveis de terceirizao.

    que, conforme defende Helder Amorim (2009, p. 129), a Lei refere-se utilidade de interesse da administrao, ou seja, a um resultado a ser obtido por meio da atividade contratada. Da decorre duas consequncias: a) no se trata de descentralizao de servios por colaborao, j que nesta as empresas privadas assumem a prestao de servios pblicos como um todo, diretamente ao usurio; b) tendo em vista que a contratao visa a um resultado, afasta-se a contratao de servios de mero fornecimento de mo de obra.

    Outrossim, conclui o autor (2009, p. 129), uma interpretao dedutiva a partir da exemplificao que consta na Lei permite qualificar as atividades terceirizveis como aquelas meramente instrumentais e no burocrticas.

    Nesse diapaso, influenciado pelo avano da legislao federal e, at mesmo, da presso exercida pelo capital e pela prpria doutrina trabalhista, o TST, em dezembro de 93, editou o Enunciado n 331, calcado na distino entre mero fornecimento de mo de obra e a verdadeira terceirizao. A partir da, passou-se a admitir a terceirizao nas atividades-meio, e, consequentemente,

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    o Tribunal estendeu para as empresas estatais o tratamento at ento apenas concedido s Pessoas Jurdicas de Direito Pblico.

    A dcada de 90, no Brasil, iniciou um perodo de assuno pelos gover-nantes das polticas neoliberais, entre as quais se encontra o enxugamento do quadro de pessoal, atravs, inclusive, de processos de terceirizao. Tem incio, portanto, um perodo de relevante disseminao do instituto do setor pblico em muitos casos, diga-se, violando-se os preceitos legais que apenas admitiam a terceirizao em atividades de apoio ou instrumentais.

    Em face das distores na aplicao da legislao federal ensejada pela utilizao em massa do instituto da terceirizao de servios para camuflar verdadeira intermediao de mo de obra, foi posto na ordem jurdica nacional o Decreto n 2.271/97, que traz bices ao desvirtuamento da contratao de servios pela Administrao Pblica (CARELLI, 2003, p. 117).

    Com efeito, o art. 4 do referido Decreto vedou a incluso de disposies nos instrumentos contratuais que permitissem: a caracterizao exclusiva do objeto como fornecimento de mo de obra (inciso II); a subordinao dos em-pregados da contratada administrao da contratante (inciso IV).

    Na mesma linha, o Decreto expressamente dispe que:

    Art. 1 No mbito da Administrao Pblica Federal direta, autr-quica e fundacional podero ser objeto de execuo indireta as atividades materiais acessrias, instrumentais ou complementares aos assuntos que constituem rea de competncia legal do rgo ou entidade.

    1 As atividades de conservao, limpeza, segurana, vigilncia, transportes, informtica, copeiragem, recepo, reprografia, telecomuni-caes e manuteno de prdios, equipamentos e instalaes sero, de preferncia, objeto de execuo indireta.

    2 No podero ser objeto de execuo indireta as atividades inerentes s categorias funcionais abrangidas pelo plano de cargos do rgo ou entidade, salvo expressa disposio legal em contrrio ou quando se tratar de cargo extinto, total ou parcialmente, no mbito do quadro geral de pessoal.

    Saliente-se que o 1 desse artigo traz uma lista no exaustiva de servios que so considerados materiais, acessrios, instrumentais ou complementares dos rgos ou entidades da Administrao Pblica Federal, de modo que, quanto a estes, a execuo indireta no s possvel como desejvel (LIMA, 2007, p. 65).

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    5 LIMITES TERCEIRIZAO NOS SERVIOS PBLICOS

    Dado o avano indiscriminado do uso das prticas terceirizantes no servio pblico, inclusive contrariando, muitas vezes, a legislao que trata da matria, passaremos a verificar os limites traados pelo ordenamento jurdico para alm dos quais se configura a terceirizao ilcita.

    5.1 Princpios da supremacia e da indisponibilidade do interesse pblico

    O regime jurdico de direito pblico, que rege o direito administrativo, caracteriza-se pela supremacia e indisponibilidade do interesse pblico.

    A supremacia do interesse pblico implica a sua superioridade sobre os demais interesses existentes em sociedade, de tal forma que os interesses privados no podem prevalecer sobre o interesse pblico. Por sua vez, a indisponibilidade do interesse pblico indica a impossibilidade de sacrifcio ou transigncia pelo agente pblico quanto ao cumprimento do interesse pblico, vale dizer, o agente um servo do interesse pblico (JUSTEN FILHO, 2005, p. 35).

    Observe-se que o interesse pblico no pode ser confundido com inte-resse do aparato estatal, mas deve estar sempre relacionado com os interesses da coletividade, com o atendimento do bem-comum.

    Especificamente quanto ao tema do presente trabalho, os contratos ad-ministrativos entre entidade pblica e terceiros entre os quais se enquadram os contratos de prestao de servios ou terceirizao , destacam-se pela cir-cunstncia de sua disciplina jurdica sofrer o influxo de um interesse pblico qualificado a ser, por via delas, satisfeito (MELLO, 2010, p. 621).

    Dito isto, cumpre Administrao Pblica, nas contrataes de pres-tadoras que efetuar, verificar se h, de fato, interesse pblico que justifique a terceirizao de atividades que, a princpio, foram includas no seu rol de competncia (LUDWIG, 2007, p. 35).

    Assim, o Estado dever perquirir se a terceirizao ir permitir: a) que os entes e rgos da administrao pblica possam concentrar-se (DL n 200/67, art. 10, 2) nas atividades nodais de suas competncias para delas melhor desincumbir-se (DL n 200/67, art. 10, 7); (b) impedir o crescimento desmesurado da mquina administrativa (DL n 200/67, art. 10, 7); e (c) promover a economicidade e melhor aproveitamento dos recursos humanos, materiais ou financeiros disponveis (Decreto n 2.271/97, art. 2, III) (AMORIM, 2009, p. 94).

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    Apenas se vivel o cumprimento dos objetivos legais e, portanto, do prprio interesse pblico, dever o Estado optar pela terceirizao.

    Cumpre observar, ainda, que a eficincia da atividade no mensurada exclusivamente pela reduo de custos. Justamente por cuidar-se de admi-nistrao do interesse pblico, que por definio conjuga os anseios de uma coletividade, inexiste o intuito de lucro, de forma que se admite at a operao deficitria de determinadas atividades. O fato que existem custos sociais inerentes atuao do Estado, que no podem deixar de ser atendidos, e por isso a anlise da melhor forma de atender o interesse social deve ser feita com muita cautela (RAMOS, 2001, p. 161).

    Por outro lado, como bem salienta Helder Amorim (2009, p. 76), a cres-cente presena no interior da mquina estatal, por meio de empresas terceiriza-das, no pode constituir fator de predomnio do capital privado sobre interesses sociais. Salientando os riscos da terceirizao, o autor informa:

    Por meio da terceirizao, o capital se organiza estrategicamente em todos os vieses da mquina estatal na defesa dos interesses de merca-do, em privilgio de camadas empresariais muito restritas da sociedade, acentuando o ambiente propcio promiscuidade entre o pblico e o privado, e aprofundando o carter patrimonialista das relaes entre os governos e as elites econmicas. O corporativismo das elites burocr-ticas, de servidores pblicos privilegiados, firmemente combatido pela Reforma do Aparelho de Estado, acaba substitudo pelo corporativismo das empresas empreiteiras, prestadoras de servios, no menos agressivo na colonizao privada do espao estatal.

    Dessa forma, a prtica da terceirizao no servio pblico deve ser con-dicionada pela realizao de finalidades de interesse pblico, subordinando-se a contratao e consequente insero de particulares no seio da Administrao ao atendimento, tambm por parte dos entes privados, do bem-comum.

    5.2 Princpio da legalidade

    O princpio da legalidade vem expresso no art. 37, caput, da Consti-tuio de 1988, a ele devendo respeito toda a Administrao Pblica direta e indireta, de qualquer dos Poderes da Unio, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municpios.

    No mbito das relaes entre particulares, o princpio aplicvel o da auto-nomia da vontade, que lhes permite fazer tudo o que a lei no probe. Por sua vez,

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    a Administrao Pblica regida pelo princpio da legalidade, o que implica dizer que ela s pode fazer aquilo que a lei permite (PIETRO, 2008, p. 63).

    No que concerne ao instituto da terceirizao realizada pelas pessoas jurdicas de Direito Pblico, Helder Amorim (2009, p. 93-94) a vislumbra como uma tcnica de organizao administrativa de que se valem os rgos e entes pblicos para obterem auxlio da iniciativa privada no exerccio de suas competncias, quando estas estiverem relacionadas a tarefas de apoio adminis-trativo legalmente autorizadas. A contratao se manifestar por meio de um contrato de Direito Administrativo, ato este com contedo fortemente vinculado lei e Constituio, a servio das finalidades estatais da o seu fundamento estatutrio e institucional, como produto do Direito que lhe concebe e antecede.

    Assim, a terceirizao no servio pblico apenas admitida nos estritos moldes legais, em consonncia com o princpio da legalidade.

    5.3 Atividades passveis de terceirizao

    Conforme explicitamos no item 4, a Lei n 8.666 trouxe a definio da-quilo que entende por servios passveis de terceirizao. Fixou, ento, em seu art. 6, que se trataria de toda atividade destinada a obter determinada utilidade de interesse para a Administrao, e, a seguir, exemplifica as atividades de demolio, conserto, instalao, montagem, operao, conservao, reparao, adaptao, manuteno, transporte, locao de bens, publicidade, seguro ou trabalhos tcnico-profissionais.

    A partir da interpretao da norma, pudemos perceber que a lei define servios como um resultado a ser obtido por meio da atividade contratada atividade destinada a obter determinada utilidade de interesse para a Admi-nistrao, nos termos da lei.

    Neste ponto, traamos as nossas primeiras delimitaes dos servios passveis de terceirizao, no sentido de que: a) no se trata de descentraliza-o de servios por colaborao, j que nesta as empresas privadas assumem a prestao de servios pblicos como um todo, diretamente ao usurio; b) tendo em vista que a contratao visa a um resultado, afasta-se a contratao de servios de mero fornecimento de mo de obra.

    Por outro lado, uma interpretao dedutiva a partir do rol de atividades elencados na Lei permite qualificar as atividades terceirizveis como aquelas meramente instrumentais e no burocrticas. Este entendimento foi ratificado pelo Decreto n 2.271, que disps in verbis:

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    Art. 1 No mbito da Administrao Pblica Federal direta, autr-quica e fundacional podero ser objeto de execuo indireta as atividades materiais acessrias, instrumentais ou complementares aos assuntos que constituem rea de competncia legal do rgo ou entidade.

    1 As atividades de conservao, limpeza, segurana, vigilncia, transportes, informtica, copeiragem, recepo, reprografia, telecomuni-caes e manuteno de prdios, equipamentos e instalaes sero, de preferncia, objeto de execuo indireta.

    de se notar, portanto, que a legislao federal adotou a distino dou-trinria entre atividade-fim e atividade-meio, apenas admitindo a terceirizao destas ltimas.

    Com base nessa distino, a doutrina (ALEXANDRINO; PAULO, 2010, p. 636-637) prope uma classificao interessante dos servios prestados pelo Estado:

    a) Servios pblicos administrativos: trata-se de atividades internas da administrao pblica, as suas atividades-meio. Abrange todas as atividades que beneficiam indiretamente a coletividade ao proporcionar um adequado funcionamento dos rgos pblicos e entidades administrativas, ainda que no representem uma prestao diretamente fruvel pela populao. So atividades preparatrias que visam a assegurar uma eficiente prestao dos servios dire-tamente fruveis pela populao.

    Assim, Diogo de Figueiredo Moreira Neto (1993, p. 36) entende que atividades administrativas instrumentais so as que se referem satisfao concreta, direta e imediata dos interesses pblicos atinentes ao prprio Estado. Esses so os interesses pblicos secundrios, ou derivados, para o atendimento dos quais o Estado se organiza.

    Odete Medauar (2008, p. 313) exemplifica tais atividades-meio como: arrecadao de tributos, servios de arquivo, limpeza de reparties, vigilncia de reparties etc.

    Por outro lado, atividades administrativas finalsticas so as que se referem satisfao concreta, direta e imediata dos interesses pblicos atinentes sociedade. Esses so os interesses pblicos primrios, para o atendimento dos quais se justifica a prpria existncia do Estado (MOREIRA NETO, 1993, p. 36).

    Seguindo em nossa classificao, entendemos que as atividades-fim do Estado, ou seja, atividades prestacionais diretamente voltadas aos administra-dos, dividem-se em servios pblicos sociais e servios pblicos econmicos. Vejamos.

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    b) Servios pblicos sociais: so todos os servios que correspondam a atividades elencadas no art. 6, e ao Ttulo VIII da Constituio (v.g., educao, sade, assistncia social etc.). Sua prestao obrigatria pelo Estado, que o far como servio pblico, sob regime de direito pblico. Observe-se que tais atividades no so de titularidade exclusiva do Estado, de tal forma que os particulares podero prest-los complementarmente, como servios privados e independentemente de delegao.

    c) Servios Pblicos econmicos, comerciais ou industriais: so espcies de atividades econmicas em sentido amplo, o que enseja a possibilidade de serem explorados com intuito lucrativo (v.g. servios de telefonia, de fornecimento de energia eltrica, de fornecimento domiciliar de gs canalizado etc.). Ocorre que o legislador entendeu por inseri-las entre as atividades de titularidade exclusiva do Estado, que poder exerc-las diretamente ou mediante delegao a particulares ou seja, sob regime de concesso ou permisso (art. 175 da CF/88).

    Pelo exposto, verifica-se que apenas o objetivo da terceirizao restringe-se ao repasse a empresas privadas especializadas de determinadas atividades-meio ou atividades executivas e burocrticas de apoio (servios administrativos), realizadas no mbito interno da Administrao Pblica, a fim de que o ente ou rgo pblico possa se empenhar nas suas competncias finalsticas dispostas em lei.

    A terceirizao realizada em atividades centrais da competncia dos entes pblicos enseja uma dimenso poltico-desestatizante ilegtima, fruto de abuso de poder do administrador, que, ao promover a invaso da iniciativa privada no setor pblico, viola a prpria competncia. O desvio de objeto contratual e da finalidade do instituto da terceirizao viola o regime institucional da contratao de servios na Administrao Pblica (AMORIM, 2009, p. 101).

    5.4 Vedao intermediao de mo de obra

    A lei de licitaes e contratos administrativos, ao dispor sobre os ser-vios passveis de terceirizao, os define como atividades destinadas a obter determinada utilidade de interesse para a Administrao (art. 6, II).

    Destarte, verifica-se que a lei elege como objeto da terceirizao a busca por um resultado, a ser obtido por meio da atividade contratada. Disso decorre a invia-bilidade de contratao de servios de mero fornecimento de mo de obra. Em face das distores na aplicao da legislao federal ensejada pela utilizao em massa do instituto da terceirizao de servios como verdadeira intermediao de mo de obra, foi posto na ordem jurdica nacional o Decreto n 2.271/97, disciplinando a contratao de servios pela Administrao Pblica Federal direta, autrquica e

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    fundacional. Neste Decreto, h claras disposies para evitar o desvirtuamento da contratao de servios pela Administrao Pblica (CARELLI, 2003, p. 117).

    Com efeito, o art. 4 do referido Decreto vedou a incluso de disposies nos instrumentos contratuais que permitissem: a caracterizao exclusiva do objeto como fornecimento de mo de obra (inciso II) ou a subordinao dos empregados da contratada administrao da contratante (inciso IV).

    A proibio locao de mo de obra encontra fundamento em diversos dispositivos constitucionais, que sero analisados a seguir.

    5.4.1 O concurso pblico e os princpios constitucionais da impessoalidade e da moralidade

    Desde a CF/88, a aprovao em concurso pblico foi adotada como condio para a investidura em cargos ou empregos pblicos, na forma do art. 37, II, em obedincia aos princpios da impessoalidade e da moralidade. A impessoalidade, enquanto princpio constitucional expresso que rege a Adminis-trao Pblica brasileira (art. 37, caput, da CF), significa a necessria ausncia de subjetividade do administrador pblico no desempenho de suas tarefas. Vale dizer, trata-se de uma imposio lgica dos princpios da supremacia e da indisponibilidade do interesse pblico, que vedam ao administrador a busca de interesses pessoais, prprios ou de terceiros no exerccio de suas competncias.

    Em um de seus aspectos, o princpio da impessoalidade impede que a Administrao proceda a discriminaes entre os administrados, a fim de lhes beneficiar ou prejudicar. Consubstancia-se em uma faceta do princpio da igualdade, no sentido de que o Estado deve sempre observar a isonomia no tratamento dos administrados que se encontrem em idntica situao jurdica.

    Por outro lado, por meio do princpio da moralidade, busca-se a adequa-o da conduta do agente pblico aos padres ticos de probidade, decoro e boa-f (Lei n 8.112, art. 2, pargrafo nico, IV).

    Nas lies de Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo (2010, p. 195-196):

    O princpio da moralidade torna jurdica a exigncia de uma atu-ao tica dos agentes da Administrao Pblica. A denominada moral administrativa difere da moral comum, justamente por ser jurdica e pela possibilidade de invalidao dos atos administrativos que sejam prati-cados com inobservncia deste princpio. (...) A doutrina enfatiza que a moralidade administrativa independe da concepo subjetiva (pessoal) de conduta moral, tica, que o agente pblico tenha; importa, sim, a noo

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    objetiva, embora indeterminada, passvel de ser extrada do conjunto de normas concernentes conduta de agentes pblicos, existentes no ordenamento jurdico.

    Assim, o princpio da moralidade ser transgredido quando houver violao a uma norma de moral social que traga consigo menosprezo a um bem juridicamente valorado, de tal forma que dever o agente pblico cumprir a legalidade atendendo a uma expectativa tica da sociedade (MELLO, 2010, p. 120).

    Ora, ao celebrar contratos com mero intuito de conseguir mo de obra, em flagrante violao regra constitucional que determina a realizao de concursos pblicos, a Administrao viola, simultaneamente, os princpios da impessoalidade e da moralidade. A fraude inviabiliza o livre acesso democr-tico aos quadros da Administrao Pblica pelos indivduos que preencham os requisitos necessrios sua ocupao, favorecendo o nepotismo e o apadrinha-mento (LUDWIG, 2007, p. 22).

    Observe-se que, mesmo que seja realizado procedimento licitatrio para a contratao da empresa terceirizada, os princpios constitucionais em anlise continuaro a serem vilipendiados. que, apesar de a licitao ser regida pelos princpios da publicidade e da escolha da proposta mais vantajosa, uma vez eleito o vencedor do certame, o administrador poder a seu talante, por exemplo, em nome de uma relao harmoniosa para a execuo contratual, pleitear a contratao pela terceirizada de pessoas por ele indicadas (RAMOS, 2001, p. 160).

    O procedimento licitatrio, portanto, no impede as ingerncias dos admi-nistradores na escolha dos trabalhadores terceirizados (AMORIM, 2009, p. 77).

    Ademais, a exigncia de concurso pblico tem a finalidade de evitar que o poltico, valendo-se de sua qualidade de administrador, cause danos ao inte-resse pblico, com as constantes trocas de servidores a cada gesto. Na mesma linha, a intermediao traz consigo um interesse eleitoral, tendo em vista que o poltico passa a ter famlias inteiras a depender dos contratos firmados com as empresas terceirizadas; assim, h uma garantia de inmeros votos pelo medo de perda do posto de trabalho em caso de o candidato da oposio sair vencedor (MAIOR, 2005, p. 104-105).

    Atente-se que a ilicitude agravada pela impossibilidade de reconheci-mento do vnculo de emprego com a Administrao, em funo da necessidade de concurso pblico para tanto, o que implica conferir-se tratamento vantajoso ilicitude (LORA, 2008, p. 101).

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    5.4.2 Limite de gastos com pessoal

    O art. 169 da CF estabelece restries para a o gasto do administrador com despesas relativas a recursos humanos, que no poder exceder os limites fixados em lei complementar.

    A fim de regulamentar o dispositivo, foi editada a LC n 101/00 (Lei de Responsabilidade Fiscal), que fixou limites percentuais para a despesa com pessoal (art. 19).

    Para evitar que os maus administradores, em verdadeiro ato de desvio de poder, utilizassem-se de falsas terceirizaes para burlar as restries legais, o legislador determinou que os valores dos contratos de terceirizao de mo de obra que se referissem substituio de servidores e empregados pblicos seriam contabilizados como outras despesas de pessoal.

    Neste ponto, Maria Sylvia Di Pietro (2005, p. 237) critica os termos em que o dispositivo foi redigido, uma vez que, aparentemente, ele admitiria a possibilidade de contratos de terceirizao de mo de obra. Contudo, segue a autora (2005), uma interpretao sistemtica do ordenamento jurdico permite inferir que, sendo inadmissvel o contrato de fornecimento de mo de obra, se celebrado, a despesa correspondente ser levada em considerao para fins de clculo das despesas com pessoal. Assim, entende-se que o legislador no tratou da licitude da terceirizao, mas apenas das consequncias de sua prtica para fins de responsabilidade fiscal.

    Por outro lado, havendo terceirizao lcita, as despesas do contrato no estaro abrangidas pelas limitaes da lei, tendo em vista que o objeto do pacto foi um resultado ou atividade.

    Esse entendimento foi acatado pelo legislador que, numa verdadeira in-terpretao autntica, conferiu a seguinte redao ao art. 64 da Lei n 9.995/00 (Lei de Diretrizes Oramentrias da Unio):

    Art. 64. O disposto no 1 do art. 18 da Lei Complementar n 101, de 2000, aplica-se exclusivamente para fins de clculo do limite da despesa total com pessoal, independentemente da legalidade ou validade dos contratos.

    Pargrafo nico. No se considera como substituio de servidores e empregados pblicos, para efeito do caput, os contratos de terceirizao relativos a execuo indireta de atividades que, simultaneamente:

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    I sejam acessrias, instrumentais ou complementares aos as-suntos que constituem rea de competncia legal do rgo ou entidade;

    II no sejam inerentes a categorias funcionais abrangidas por plano de cargos do quadro de pessoal do rgo ou entidade, salvo expressa disposio legal em contrrio, ou quando se tratar de cargo ou categoria extintos, total ou parcialmente.

    Assim, entendeu o legislador que a substituio de gastos com pessoal prprio pela contratao de terceiros corresponde a um arranjo oramentrio, que no atende finalidade da norma legal de conduzir o administrador a reduzir os gastos da mquina com pessoal e direcionar os dispndios para o setor de investimentos. A regulao da matria na Lei de Responsabilidade Fiscal uma tentativa de evitar subterfgios que comprometam o objetivo de equilbrio das contas pblicas. A soluo encontrada foi incluir no limite de gastos com pessoal as intermediaes de mo de obra (RAMOS, 2001, p. 153).

    5.5 Princpio da organizao funcional da administrao pblica

    A Administrao Pblica possui natureza institucional, vale dizer, cor-responde a um conjunto de pessoas que atua de modo organizado, permanente e contnuo, conforme regras especficas e comprometida com a promoo de valores fundamentais (JUSTEN FILHO, 2005, p. 565).

    Segundo Helder Amorim (2009, p. 105), esta concepo retrata a admi-nistrao pblica como uma organizao funcional.

    Nesse diapaso, o princpio da organizao funcional da administrao pblica encontra respaldo constitucional. que o Brasil constitui-se em um Estado Democrtico (art. 1, caput, CF/88), o que demanda que as funes pblicas sejam exercidas por pessoas fsicas integradas de modo permanente nas instituies estatais, sujeitas a um regime jurdico que lhes imponha e asse-gure atuao orientada realizao do direito. A profissionalizao garante a neutralizao dos agentes pblicos contra influncias indevidas dos poderosos ou da prpria massa popular (JUSTEN FILHO, 2005, p. 566).

    Essa concepo institucional da Administrao Pblica, calcada num conjunto uniforme de sujeitos, permite que dela se extraia uma identidade que se prolonga no tempo, independentemente dos ocupantes dos cargos ou em-pregos pblicos. Disso decorre a formao de regras e costumes, de padres de conduta que se impem a seus integrantes, gerando uma linha de continuidade na Administrao e proporcionando aos administrados maior segurana jurdica (JUSTEN FILHO, 2005, p. 566).

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    Ocorre que a utilizao da terceirizao, ao invadir competncias centrais dos rgos e entes pblicos, dinamiza o movimento de desregulamentao institucional e de desprofissionalizao do servio pblico, concorrendo para liquidar funes e esgotar planos de carreiras indispensveis ao exerccio das responsabilidades estatais. Assim, resta vulnerabilizado o princpio constitucional da organizao funcional da administrao pblica, que demanda um quadro prprio de servido-res, organizado e profissionalizado, para o exerccio permanente das atividades concretizadoras do interesse pblico (AMORIM, 2009, p. 20).

    Observe-se, contudo, que nem mesmo todas as atividades materiais aces-srias podem ser indistintamente terceirizadas, notadamente se na estrutura administrativa do Poder Pblico existirem cargos legalmente criados que se destinem a atender quelas necessidades especficas (RAMOS, 2001, p. 130).

    que, se a lei criou cargos ou funes para ser preenchidos por servi-dores pblicos, foi por entender que aquelas atividades, pela sua relevncia, de-mandam a existncia de servidores regidos por um regime jurdico especfico, apto a impor-lhes deveres e garantias necessrios salvaguarda da coletividade. Assim, no poder o administrador, sem prvia autorizao legal, deixar de prover aqueles cargos mediante a realizao de concurso pblico, contratan-do com terceiros o desenvolvimento das atividades, sob pena de violao do princpio da legalidade (RAMOS, 2001, p. 134-135).

    Nessa linha, ensina Jos dos Santos Carvalho Filho (2007, p. 11):

    Representando compartimentos internos da pessoa pblica, os rgos pblicos no so livremente criados e extintos pela s vontade da Administrao. Tanto a criao como a extino dos rgos dependem de lei, e nesse sentido dispe a vigente Constituio quando inclui a exigncia na relao das denominadas reservas legais, matrias cuja disciplina reservada lei (...).

    Com efeito, o art. 48, X, da CF remete ao Congresso Nacional a competncia para criar, transformar e extinguir cargos e empregos pblicos. Esta competncia apenas excepcionada pelo art. 84, VI, alnea b, da CF, que atribui ao Presidente competncia privativa para extinguir funes ou cargos pblicos, quando vagos.

    Acatando os fundamentos doutrinrios e legislativos supra, o Decreto n 2.271/97 expressamente disps, no seu art. 1, 2: No podero ser objeto de execuo indireta as atividades inerentes s categorias funcionais abrangidas pelo plano de cargos do rgo ou entidade, salvo expressa disposio legal em contrrio ou quando se tratar de cargo extinto, total ou parcialmente, no mbito do quadro geral de pessoal.

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    Observe-se que, na forma do decreto, existe a possibilidade de que cargos apenas parcialmente extintos tenham suas funes exercidas parte por servi-dores de carreira e parte por terceirizados. Isso permite a transio do sistema de cargos para o sistema de funes terceirizadas (AMORIM, 2009, p. 125).

    6 CONSEQUNCIAS DA TERCEIRIZAO ILCITA

    Quando a terceirizao for tida como ilcita, o contrato ser nulo em fun-o do princpio trabalhista da primazia da realidade e da incidncia do art. 9 da CLT2. Desta forma, o vnculo jurdico empregatcio ser formado diretamente com o tomador dos servios, que responder diretamente pelo adimplemento das verbas trabalhistas, na forma da Smula n 331 do TST.

    Contudo, o mesmo raciocnio no pode ser aplicado Administrao Pblica. que a Constituio de 88 adotou a aprovao em concurso pblico como condio para a investidura em cargos ou empregos pblicos, sob pena de nulidade da contratao (art. 37, II e 2).

    Essa posio foi expressamente acatada pelo TST, no item II da Smula n 331, in verbis: A contratao irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, no gera vnculo de emprego com os rgos da administrao pblica direta, indireta ou fundacional (art. 37, II, da CF/1988).

    Apesar de no se reconhecer o vnculo de emprego, vem prevalecendo na doutrina e na jurisprudncia o entendimento segundo o qual o ilcito no pode ensejar o enriquecimento ilcito do Estado, que j foi beneficiado pela prestao do labor.

    Diante da impossibilidade de retorno ao status quo ante, Godinho Delgado (2009, p. 425) entende que:

    O afastamento desses efeitos antijurdicos da terceirizao ilcita suporia assegurar-se ao trabalhador terceirizado todas as verbas traba-lhistas legais e normativas aplicveis ao empregado estatal direto que cumprisse a mesma funo no ente estatal tomador dos servios. Ou todas as verbas trabalhistas legais e normativas prprias funo especfica exercida pelo trabalhador terceirizado junto ao ente estatal beneficiado pelo trabalho. Verbas trabalhistas apenas sem retificao, contudo, de CTPS quanto entidade empregadora formal, j que este tpico objeto de expressa vedao constitucional. Nesse instante, no h que se claudi-

    2 Art. 9 Sero nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicao dos preceitos contidos na presente Consolidao.

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    car quanto comunicao e isonomia remuneratrias: trata-se, afinal, do nico mecanismo hbil a propiciar que o ilcito trabalhista no perpetre maiores benefcios a seu praticante (art. 156, CCB/1916; arts. 186 e 927, caput, CCB/2002). O empregador formal (entidade terceirizante) responderia, em primeiro plano, pelas verbas derivadas da isonomia e comunicao remuneratrias. Iria responder, subsidiariamente, por tais verbas, a entidade estatal tomadora dos servios, na linha j autorizada pela Smula n 331, IV, do TST (...).

    Desta forma, os direitos trabalhistas deveriam ser integralmente adimpli-dos pela empresa prestadora de servios. Em caso de inadimplemento, contudo, ser atribuda a responsabilidade subsidiria ao ente pblico.

    Atente-se, por fim, que o administrador que celebrar contratos de ter-ceirizao ilcita ser responsabilizado civil, administrativa e criminalmente, bem como se sujeitar s penas da Lei de Improbidade Administrativa (Lei n 8.429/92).

    7 CONSEQUNCIAS DA TERCEIRIZAO LCITA: A QUESTO DA RESPONSABILIDADE DO ESTADO PELAS VERBAS TRABALHISTAS

    Nas terceirizaes realizadas entre entes privados, a doutrina e a juris-prudncia trabalhista pacificaram o entendimento de que h responsabilidade subsidiria do tomador de servios em caso de inadimplemento das verbas trabalhistas pela empresa prestadora de servios.

    Atualmente, a discusso que ainda se trava refere-se responsabilidade do tomador de servios quando este for uma pessoa jurdica de direito pblico.

    que o art. 71, 1, da Lei n 8.666/93 expressamente impede a trans-ferncia Administrao Pblica dos encargos trabalhistas inadimplidos pela empresa prestadora, nos seguintes termos:

    Art. 71. O contratado responsvel pelos encargos trabalhistas, previdencirios, fiscais e comerciais resultantes da execuo do contrato.

    1 A inadimplncia do contratado, com referncia aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais no transfere Administrao Pblica a responsabilidade por seu pagamento, nem poder onerar o objeto do contrato ou restringir a regularizao e o uso das obras e edificaes, inclusive perante o Registro de Imveis.

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    2 A Administrao Pblica responde solidariamente com o contratado pelos encargos previdencirios resultantes da execuo do contrato, nos termos do art. 31 da Lei n 8.212, de 24 de julho de 1991.Com base nessa norma, a doutrina administrativista vem rejeitando

    qualquer possibilidade de repasse de responsabilidade ao ente pblico, em caso de terceirizao lcita. Este o entendimento de Maral Justen Filho (2009, p. 783), que expressamente ressalva a inexistncia de responsabilidade da Ad-ministrao Pblica por encargos e dvidas pessoais do contratado. Conforme aduz o autor, a Administrao Pblica no se transforma em devedora solidria ou subsidiria frente aos credores do contratado, mesmo quando as dvidas se originarem de operao necessria execuo do contrato. Assim, o contratado permanecer como nico devedor perante terceiros.

    Ocorre que, numa verdadeira jurisprudncia contra legem, o TST, no item IV da Smula n 331, fixou entendimento no sentido de que:

    O inadimplemento das obrigaes trabalhistas, por parte do em-pregador, implica a responsabilidade subsidiria do tomador dos servios, quanto quelas obrigaes, inclusive quanto aos rgos da administrao direta, das autarquias, das fundaes pblicas, das empresas pblicas e das sociedades de economia mista, desde que hajam participado da relao processual e constem tambm do ttulo executivo judicial (art. 71 da Lei n 8.666/93).A fim de solucionar o impasse, a questo foi levada ao STF, por meio da

    ADI n 16, de autoria do Governador do Distrito Federal. Esta ao foi julgada em 24.11.10, quando o Plenrio declarou a constitucionalidade do art. 71, 1, da Lei n 8.666/93. No mrito, o Supremo entendeu que a mera inadimplncia do contratado no poderia transferir Administrao Pblica a responsabili-dade pelo pagamento dos encargos, mas reconheceu-se que isso no significaria que eventual omisso da Administrao Pblica, na obrigao de fiscalizar as obrigaes do contratado, no viesse a gerar essa responsabilidade.

    Assim, a Suprema Corte vedou a aplicao da responsabilidade objeti-va ao Estado em funo do inadimplemento das verbas trabalhistas por parte das empresas prestadoras de servios, passando a apenas admitir eventual responsabilidade subjetiva, desde que comprovada a culpa do Estado. Em que pese a deciso do STF ser dotada de eficcia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais rgos do Poder Judicirio e administrao pblica direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal (art. 103, 2, CF), apenas por amor ao debate, exporemos as razes pelas quais pugnamos pela ampla responsabilidade da Administrao em caso de inadimplemento das verbas trabalhistas pelas prestadoras de servio.

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    7.1 A violao ao princpio da isonomia

    Se todos so iguais perante a lei, na forma do art. 5 da CF, no h senti-do, luz do princpio da isonomia, que a Administrao se exima de qualquer responsabilidade quanto ao adimplemento das verbas trabalhistas. que, como visto no captulo 03, se o tomador de servio for ente privado, haver respon-sabilidade subsidiria (em caso de terceirizao lcita) ou solidria (em caso de terceirizao ilcita).

    O ente pblico, segundo defende o TST, dever sempre gozar de res-ponsabilidade subsidiria, ou seja, j possui tratamento diferenciado em face da necessidade de realizao de concurso pblico.

    Ora, como bem observa Godinho Delgado (2009, p. 433), seria grosseiro privilgio antissocial se os benefcios da Administrao fossem estendidos para a total irresponsabilidade, pois tal exceo no se encontra autorizada pela Constituio.

    No mesmo sentido, Alice Monteiro de Barros (2009, p. 540) entende que mais razo h de se exigir do Estado tal responsabilidade, uma vez que lhe compete realizar o bem-comum, o qual no pode ser alcanado mediante leso ao direito dos trabalhadores.

    Outrossim, a inconstitucionalidade dessa distino ressaltada no que tange s empresas estatais, uma vez que o art. 173, 1, II, da CF expressamente determina a sujeio ao regime jurdico prprio das empresas privadas, inclusi-ve quanto aos direitos e obrigaes civis, comerciais, trabalhistas e tributrios.

    Por fim, como destaca Pamplona Filho (2001, p. 132), tambm h vio-lao ao princpio da isonomia no convvio estabelecido pela lei entre a total irresponsabilidade do 1 e a solidariedade absoluta constante no 2, sem que haja uma justificativa legal razovel para esse tratamento desigual, mormente quando a CF elencou o trabalho e a previdncia como direitos sociais.

    Na esteira dos ensinamentos de Celso Antnio Bandeira de Mello (2008, p. 17), sendo inexistente um vnculo de correlao lgica entre a peculiaridade diferencial acolhida por residente no objeto e a desigualdade de tratamento em funo dela conferida, e, mais alm, ainda que existente tal correlao, mas sendo ela incompatvel com os interesses prestigiados na Constituio, as dis-criminaes no sero recebidas como compatveis com a clusula igualitria.

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    7.2 A responsabilidade objetiva

    O estgio atual de evoluo da teoria da responsabilidade extracontratual do Estado no permite que este se exima do seu dever de reparar o dano lesivo a terceiro e que lhe seja imputvel em virtude de comportamento seu, seja este unilateral, lcito ou ilcito, comissivo ou omissivo, material ou jurdico (CUNHA Jr., 2008, p. 323).

    Sobre a evoluo da teoria da responsabilidade do Estado, esclarecedoras so as palavras de Saulo Jos Casali Bahia (1995, p. 11):

    Viveu-se, no campo da responsabilidade civil do Estado, uma noo de evoluo. Partiu-se da irresponsabilidade do Poder Pblico (Teoria da Irresponsabilidade), para em seguida admitir-se a responsabi-lidade do Estado baseada na culpa, nos moldes do Direito Civil (Teoria da Culpa Civilstica), carreando-se, progressivamente, a esta responsa-bilizao, aspectos de Direito Pblico (Teoria da Culpa Administrativa). Ainda neste avano, iniciou-se a prescindir da aferio apriorstica da culpa, admitindo-se sua presuno, com a inverso do nus probatrio, culminando-se com o refinamento oferecido pelas teorias da culpa annima e da falta administrativa. Num passo seguinte, buscou-se a responsabilizao do Estado por atividades lcitas que desenvolvesse (de acordo com a Teoria do Risco Administrativo), pretendendo-se que chegasse aos rigores da Teoria do Risco Integral. No momento, a respon-sabilidade civil do Estado avana para consolidar-se atravs da Teoria do Risco Social (Responsabilidade sem Risco).

    Nesse diapaso, a prpria CF/88 expressamente abraou a responsabilida-de civil objetiva do Estado ao dispor que as pessoas jurdicas de direito pblico e as de direito privado prestadoras de servios pblicos respondero pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsvel nos casos de dolo ou culpa (art. 37, 6).

    Assim, modernamente, o problema da responsabilidade do Poder P-blico por atos ou omisses prejudiciais de seus agentes equacionado em termos eminentemente objetivos, sendo o administrado dispensado do nus probante quanto culpabilidade direta ou indireta da Administrao, desde que presentes todos os elementos da responsabilidade (dano, vtima, sujeito ativo, agente pblico no exerccio de suas funes, causas com referibilidade ao Estado) (ARAJO, 2005, p. 715).

    Pelo exposto, verifica-se que a Lei n 8.666, na contramo de todo o esforo constitucional de avanar na responsabilizao do Estado, simples-

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    mente promove a liberao deste de toda e qualquer responsabilidade em face do inadimplemento das verbas trabalhistas.

    Com efeito, o Estado responde pelos atos de seus agentes praticados nessa qualidade, na forma do art. 37, 6. A expresso agente pblico abrange tambm os particulares em colaborao com a Administrao Pblica, categoria na qual se encontra o terceiro contratado para prestar servios ao Poder Pblico (RAMOS, 2001, p. 150). Desta forma, os prejuzos causados aos trabalhadores pela empresa prestadora de servios no poderiam deixar de ser reparados pelo ente pblico ao qual compete em princpio a prestao da atividade terceirizada.

    Ainda que o ato no pudesse ser imputado diretamente ao Estado, mas a terceiro que com ele contratou, o ente pblico no pode se eximir de toda e qualquer responsabilidade. O fundamento para tal afirmao se encontra no fato de que o Estado responde, objetivamente, tambm nas situaes em que o dano no gerado por sua atuao direta e imediata, mas sua atividade cria a situao propiciatria do dano, vale dizer, seu comportamento ativo entra, de modo mediato, porm decisivo, na linha de causao (MELLO, 2010, p. 1010).

    Como observa Celso Antnio Bandeira de Mello (2010, p. 1019):Em ltima instncia, estas hipteses de danos ora cogitadas no

    se distanciam muito dos casos em que o prejuzo causado diretamente pelo Estado. que a leso deriva de uma situao criada pelo prprio Estado. o prprio Poder Pblico que, embora sem ser o autor do dano, compe, por ato seu, situao propcia eventualidade de um dano.De fato, ao terceirizar servios que, a princpio, lhe caberia prestar, o

    Estado cria a situao jurdica que ensejou, ainda que de forma mediata, a prestao laboral sem a devida contraprestao. Assume o risco, portanto, de ter que honrar o pagamento de tais verbas.

    Da mesma forma, a licitude da contratao (comportamento ativo que corresponde a uma causa mediata do dano) no impede a responsabilidade do ente estatal. que a responsabilidade independe da licitude do ato, estando calcada na ideia de repartio equnime dos nus sociais, evitando que al-guns administrados (no caso, trabalhadores terceirizados), suportem prejuzos ocorridos por ocasio ou por causa de atividades desempenhadas no interesse de todos. De conseguinte, seu fundamento o princpio da igualdade, noo bsica do Estado de Direito (MELLO, 2010, p. 1.006).

    No mesmo sentido, dispe Arnoldo Wald (1993, p. 22):

    Finalmente, a responsabilidade do Estado tem amparo no prin-cpio da igualdade de encargos de todos os cidados (...). Este pensa-

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    mento firmou-se na doutrina universal, ensejando igualdade de todos os indivduos diante dos encargos pblicos. Na realidade, a verdadeira soluo jurdica impe sempre a reparao dos danos nas relaes entre o indivduo e a coletividade, fazendo recair sobre a comunidade os ris-cos decorrentes da vida social. (...) Se a aplicao de tal princpio acaba parecendo onerosa porque, como salienta Pedro Lessa, o aparelho admi-nistrativo no est devidamente organizado e o nico remdio contra tal desorganizao acrescenta o eminente mestre do nosso Direito seria, precisamente, forar o Estado, por aplicao severa da regra da respon-sabilidade, a escolher empregados mais esclarecidos e mais devotados ao interesse pblico.

    Outro fundamento para a responsabilidade objetiva do Estado est na noo de risco-proveito, segundo a qual dever responder pelos danos, inde-pendentemente de culpa, aquele que se beneficiar de determinada atividade que crie ou intensifique os riscos j existentes.

    No caso, o ente ou rgo pblico beneficia-se da fora de trabalho do terceirizado, razo pela qual no pode se esquivar da responsabilidade objetiva, ainda que subsidiria, pelas parcelas devidas pelo empregador do trabalhador.

    A ideia de risco traduz uma objetivao da responsabilidade, a fim de assegurar uma proteo jurdica pessoa humana do trabalhador, contra a inse-gurana material. Todo dano deve ter um responsvel, pois ubi emolumentum, ibi ius (ou ibi onus), vale dizer, a pessoa que se aproveita dos riscos ocasiona-dos dever arcar com as consequncias. Na terceirizao, a inadimplncia da prestadora de servios decorreu do exerccio de uma atividade que reverteu em proveito do tomador (BARROS, 2009, p. 455-456).

    Neste ponto, interessantes so as lies de Alice Monteiro de Barros (2009, p. 456):

    O responsvel subsidiariamente dever arcar, em regra, com o pagamento de todas as parcelas que sejam, inicialmente, de responsa-bilidade do devedor principal. Ainda que ausente a culpa, sua posio assemelha-se do fiador ou do avalista; no tendo havido o adimplemento da obrigao pelo devedor principal, incide, automaticamente, e sem quaisquer restries, a plena responsabilidade daquele que, em ltima anlise, figura na relao jurdica nica e exclusivamente para garantir a integral satisfao de credor.

    Pelo exposto, verifica-se que o princpio da proteo ao trabalhador e a teoria do risco explicam a preocupao de no deixar ao desabrigo o obreiro, fixando-se uma responsabilidade indireta daquele que, embora no seja o em-

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    pregador direto, tenha se beneficiado da atividade dos trabalhadores contratados pelo subempreiteiro (ABDALA, 1996, p. 589).

    Por fim, Ilse Marcelina Bernardi Lora (2008, p. 105) defende a responsa-bilizao objetiva do tomador, ainda que ente pblico, calcada na ideia de abuso de direito (art. 187, CC/02). Embora a terceirizao seja um direito assegurado s empresas, por fora dos princpios gerais da atividade econmica, em especial da livre iniciativa e da livre concorrncia, no lhes dado abusar desse direito, contratando prestadoras de servios economicamente inidneas e incapazes de assegurar os direitos dos trabalhadores contratados para execuo do contrato interempresarial e, ainda assim, pretender se eximir de qualquer responsabili-dade, quando notoriamente beneficiaram-se diretamente da fora de trabalho.

    7.3 A responsabilidade subjetivaAinda que se entenda no ser possvel a responsabilizao objetiva do

    Estado pelo inadimplemento das verbas trabalhistas concluso com a qual no concordamos, vale ressaltar , no h como fugir da responsabilidade calcada na culpa (subjetiva).

    Trata-se, no caso, de responsabilidade indireta, por fato de terceiro, fundada na ideia de culpa presumida in eligendo (em razo da m escolha da empresa prestadora) ou in vigilando (decorrente da m fiscalizao no cumpri-mento das obrigaes contratuais) (SANTOS, 2007, p. 64).

    Com efeito, a empresa tomadora h que selecionar, criteriosamente, aquela que ir prestar os chamados servios secundrios. Um conhecimento da estrutura da prestadora, de seu porte e de sua fidedignidade so indispensveis, pena de responder pela incorreta e descurada eleio (FURTADO, 1993, p. 1321).

    Alis, como observa Henrique Hinz (2005, p. 140-141):(...) No se trata apenas de pesquisar perante as juntas comerciais

    os dados relativos fornecedora, ou mesmo os servios de proteo ao crdito ou banco de dados dos tribunais trabalhistas sobre o nmero de demandas em que aquela figura como r, mas, tambm, de considera-es de ordem matemtico-financeira, quer dizer, analisar se os preos cobrados pela empresa fornecedora de servios so suficientes para o pagamento dos salrios dos trabalhadores que sero postos a seu servio, acrescido dos encargos sociais e lucro dessa. Dito de outra forma, pode o tomador apurar, face aos salrios mdios praticados no mercado aos trabalhadores que exercem os servios disponibilizados pela empresa fornecedora, se essa ter como arcar com os salrios, encargos fiscais e previdencirios sobre os mesmos incidentes, os encargos tributrios

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    decorrentes do exerccio da atividade da fornecedora, bem como sua eventual margem de lucro. Com essas consideraes simples, de ordem mesmo matemtica, saber o tomador se a empresa fornecedora de servios terceirizados cumpridora de suas obrigaes frente aos seus empregados e ao Fisco, ou no.

    Da mesma forma, os cuidados devem ir alm da escolha de empresa idnea, impondo-se uma constante vigilncia no sentido de tomar cincia se vem a prestadora cumprindo suas obrigaes trabalhistas. Pode-se, inclusive, apor no contrato clusula que condicione a liberao de sua prestao prvia comprovao de quitao por parte da contratada (FURTADO, 1993, p. 1321).

    De fato, a Administrao tem o dever de fiscalizar a execuo, em sentido amplo, dos contratos, inclusive quanto ao cumprimento de leis trabalhistas, na forma da Lei n 8.666, arts. 58, III, c/c 67.

    Assim, a responsabilidade subsidiria do ente pblico encontra respaldo tambm na culpa in eligendo ou in vigilando.

    7.4 O princpio da moralidadeComo visto linhas acima, o princpio da moralidade busca adequar a

    conduta do agente pblico aos padres ticos de probidade, decoro e boa-f (Lei n 8.112, art. 2, pargrafo nico, inciso IV). Assim, este princpio restar transgredido quando houver violao a uma norma de moral social que traga consigo menosprezo a um bem juridicamente valorado, de tal forma que dever o agente pblico cumprir a legalidade atendendo a uma expectativa tica da sociedade (MELLO, 2010, p. 120).

    Se, com sua opo em terceirizar determinados servios, a Administrao causa, ainda que de forma mediata, prejuzos ao operrio, deve responsabilizar-se integralmente e de forma subsidiria pelo adimplemento das verbas trabalhistas.

    Nessa linha, h uma expectativa tica da sociedade de que a Administra-o honre suas dvidas, inclusive no que concerne energia de trabalho posta sua disposio, como o caso do trabalhador terceirizado. A responsabilidade do ente pblico visa, justamente, a evitar o enriquecimento sem causa do Poder Pblico em detrimento do trabalhador.

    7.5 O princpio da funo social do contratoDe acordo com o Cdigo Civil, a liberdade de contratar deve ser exercida

    em razo e nos limites da funo social do contrato (art. 421).

    Por princpio da funo social do contrato, deve-se entender um princpio de contedo jurdico indeterminado, que possui o precpuo efeito de impor

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    limites liberdade de contratar, em prol do bem comum (GAGLIANO; PAM-PLONA FILHO, 2010, p. 84). Assim, o contrato deve respeitar regras formais de validade jurdica, mas, sobretudo, normas superiores de cunho moral e social, que, por serem valoradas pelo ordenamento como inestimveis, so de inegvel exigibilidade jurdica (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2010, p. 80).

    A respeito do aspecto extrnseco do princpio da funo social dos contratos, Gagliano e Pamplona Filho ensinam (2010, p. 83):

    (...) o contrato considerado no s como um instrumento de cir-culao de riquezas, mas, tambm, de desenvolvimento social. (...) Ocorre que todo desenvolvimento deve ser sustentado, racionalizado e equilibrado. Por isso, ao concebermos a figura do contrato quer seja o firmado entre particulares, quer seja o pactuado com a prpria Administrao Pblica no poderamos desloc-lo da conjuntura social que lhe d ambincia.

    Vale dizer, se dentro do seu aspecto organizacional, pode a Administrao Pblica decidir, ou no, pela contratao de empresas de prestao de servios para o desempenho de atividades que, de outra forma, seriam de sua prpria responsa-bilidade, dever ele ter em mente no s o aspecto econmico a envolvido, mas tambm os aspectos sociais relacionados a essa operao (HINZ, 2005, p. 140).

    Assim, a funo social do contrato determina a adequada e efetiva remunerao da fora laboral, ainda que para tanto seja necessria a respon-sabilizao subsidiria da Administrao Pblica em face do inadimplemento do empregador (LORA, 2008, p. 107).

    7.6 O valor social do trabalho e a dignidade da pessoa humanaA terceirizao implica uma parceria para a otimizao do negcio e

    aumento dos lucros, mas tambm para a repartio dos nus. Calcada que est no princpio da livre iniciativa, a terceirizao, tal qual

    a ordem econmica, deve estar pautada na valorizao do trabalho humano, na dignidade da pessoa humana e nos ditames da justia social (art. 170, CF).

    Ora, como bem defende Alice Monteiro de Barros (2009, p. 539), a iseno da responsabilidade da Administrao implica conceder a esta, que se beneficiou da atividade dos empregados, um privilgio injustificvel, em detrimento da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho preconizados pela prpria Constituio, como fundamentos do Estado Demo-crtico de Direito (art. 1, III e IV).

    No mesmo sentido, Ilse Marcelina Lora (2008, p. 107-108):

    Com efeito, a CF, em diversos dispositivos, de que so exemplos o art. 1, III (princpio da dignidade da pessoa humana), e inciso IV (valores

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    sociais do trabalho e da livre iniciativa como fundamentos do Estado de Direito); art. 3, I (construo de sociedade livre, justa e solidria como objetivo fundamental da Repblica Federativa do Brasil); art. 4, inciso II (prevalncia dos direitos humanos); art. 6 (consagrao dos direitos sociais); e art. 170, III (funo social da propriedade), conferiu manifesta prevalncia proteo do trabalho humano e dos crditos trabalhistas. A concretizao de tais princpios que deve orientar a interpretao de todas as normas que integram o ordenamento jurdico, com a consequente assegurao, a quem trabalha, da contraprestao de seu labor, postura indispensvel para assegurar o chamado mnimo existencial, elemento fundamental da dignidade humana.

    Por tudo isso, entendemos ser inconstitucional a norma prevista no 1 do art. 71 da Lei n 8.666/93, que exime o Poder Pblico de qualquer responsabilidade quanto aos dbitos trabalhistas da empresa prestadora de servios por ele contratada.

    8 CONSIDERAES FINAISAo final da pesquisa, foi possvel extrair as seguintes concluses siste-

    matizadas atinentes ao tema, conforme a seguir expendido:1. No Brasil, frequente a utilizao do termo servio pblico, em

    sentido amplo, para designar tudo aquilo que o Estado faz, ou, pelo menos, toda atividade administrativa por ele desempenhada. Esta concepo ampla abrangeria, assim, servios que, juridicamente, convencionou-se denominar como obras pblicas, atividades de polcia administrativa, a explorao estatal de atividade econmica (neste ltimo caso, adota-se o rtulo servio pblico industrial, comercial ou econmico) etc.

    2. Apesar de a noo restrita de servios pblicos ser predominante na dou-trina brasileira, no presente trabalho utilizamos o seu sentido amplo. Isso porque a interpretao constitucional sobre os limites da terceirizao no interior de um ente ou rgo pblico independe da natureza de sua atividade principal, tendo em vista que este sempre responsvel na mesma medida pelo exerccio de suas atribuies.

    3. As terceirizaes na Administrao Pblica constituem-se numa das formas pela qual o Estado busca parceria com o setor privado para a realizao de suas atividades. Por meio delas, atividades de apoio ou meramente instru-mentais prestao do servio pblico so repassadas para empresas privadas especializadas, a fim de que o ente pblico possa melhor desempenhar suas competncias institucionais.

    4. Servios pblicos jamais podem ser integralmente terceirizados atravs do repasse da sua gesto operacional ou estratgica, pois a locao de servios

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    refere-se apenas execuo material de atividades especficas. O servio objeto de terceirizao uma tarefa prestada pelo particular imediatamente Admi-nistrao para satisfao dos interesses desta em apoio ao exerccio de suas atribuies. Apenas de forma mediata este servio prestado comunidade, atravs do ente pblico contratante, beneficirio direto da prestao.

    5. Dado o avano indiscriminado do uso das prticas terceirizantes no servio pblico, inclusive em violao legislao que trata da matria, veri-ficamos os limites traados pelo ordenamento jurdico para alm dos quais se configuraria a terceirizao ilcita.

    6. Os contratos administrativos entre entidade pblica e terceiros entre os quais se enquadram os contratos de prestao de servios ou terceirizao , destacam-se pela circunstncia de sua disciplina jurdica sofrer o influxo de um interesse pblico qualificado a ser, por via delas, satisfeito. Dito isto, cumpre Administrao Pblica, nas contrataes de prestadoras que efetuar, verificar se h, de fato, interesse pblico que justifique a terceirizao de atividades que, a princpio, foram includas no seu rol de competncia.

    7. O instituto da terceirizao corresponde a uma tcnica de organizao administrativa de que se valem os rgos e entes pblicos para obter auxlio da iniciativa privada no exerccio de suas competncias, quando estas estiverem relacionadas a tarefas de apoio. A contratao se manifestar por meio de um contrato de Direito Administrativo, ato este com contedo fortemente vinculado lei e Constituio, a servio das finalidades estatais da o seu fundamento estatutrio e institucional, como produto do Direito que lhe concebe e antecede. Assim, a terceirizao no servio pblico apenas admitida nos estritos moldes legais, em consonncia com o princpio da legalidade.

    8. A Lei n 8.666 trouxe a definio daquilo que entende por servios passveis de terceirizao como toda atividade destinada a obter determinada utilidade de interesse para a Administrao (art. 6). A partir da interpretao da norma, traamos as nossas delimitaes dos servios passveis de terceirizao, no sentido de que: a) no se trata de descentralizao de servios por colabora-o, j que nesta as empresas privadas assumem a prestao de servios pblicos como um todo, diretamente ao usurio; b) tendo em vista que a contratao visa a um resultado, afasta-se a contratao de servios de mero fornecimento de mo de obra. Por outro lado, uma interpretao dedutiva a partir do rol de atividades elencadas na Lei permite qualificar as atividades terceirizveis como aquelas meramente instrumentais e no burocrticas, entendimento este que foi ratificado pelo Decreto n 2.271, em seu art. 1.

    9. A Lei n 8.666 elege como objeto da terceirizao a busca por um resultado, a ser obtido por meio da atividade contratada. Disso decorre a invia-

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    bilidade de contratao de servios de mero fornecimento de mo de obra. Em face das distores na aplicao da legislao federal pela utilizao em massa do instituto da terceirizao de servios como verdadeira intermediao de mo de obra, o Decreto n 2.271/97, em seu art. 4, trouxe disposies expressas para combater tais prticas. A proibio locao de mo de obra encontra fundamento em diversos dispositivos constitucionais, a exemplo da regra do concurso pblico e dos princpios constitucionais da impessoalidade e da moralidade.

    10. Segundo o princpio da organizao funcional, a Administrao Pblica possui natureza institucional, vale dizer, corresponde a um conjunto de pessoas que atua de modo organizado, permanente e contnuo, conforme regras especficas e comprometida com a promoo de valores fundamentais. Com efeito, a democracia demanda que as funes pblicas sejam exercidas por pessoas fsicas integradas de modo permanente nas instituies estatais, sujeitas a um regime jurdico que lhes imponha e assegure atuao orientada realizao do direito, o que permite a formao de uma identidade da Administrao que se prolonga no tempo, indepen-dentemente dos ocupantes dos cargos ou empregos pblicos. A profissionalizao garante a neutralizao dos agentes pblicos contra influncias indevidas dos poderosos ou da prpria massa popular.

    11. A terceirizao de competncias centrais dos rgos e entes pblicos dinamiza o movimento de desregulamentao institucional e de desprofissiona-lizao do servio pblico, concorrendo para liquidar funes e esgotar planos de carreiras indispensveis ao exerccio das responsabilidades estatais. Assim, viola o princpio da organizao funcional da Administrao.

    12. Observe-se que nem todas as atividades acessrias podem ser indis-tintamente terceirizadas, notadamente se na estrutura administrativa do Poder Pblico existirem cargos legalmente criados que se destinem a atender quelas necessidades especficas, sob pena de violao ao princpio da legalidade. que, se a lei criou cargos ou funes para ser preenchidos por servidores pblicos, foi por entender que aquelas atividades, pela sua relevncia, demandam a exis-tncia de servidores regidos por um regime jurdico especfico, apto a impor-lhes deveres e garantias necessrios salvaguarda da coletividade. Assim, no poder o administrador, sem prvia autorizao legal, deixar de prover aqueles cargos mediante a realizao de concurso pblico, contratando com terceiros o desenvolvimento das atividades, sob pena de violao do princpio da legalidade.

    13. Quando a terceirizao for tida como ilcita, ainda que o contrato seja nulo, no poder ser formado vnculo de emprego diretamente com a Administrao, em face da exigncia de aprovao em concurso pblico para ingresso nos quadros pblicos (art. 37, II e 2). Ainda assim, o ilcito no pode ensejar o enriquecimento

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    ilcito do Estado, de tal forma que o trabalhador terceirizado ter direito a todas as verbas trabalhistas; o empregador formal (entidade terceirizante) responder, em primeiro plano, pelas verbas derivadas da isonomia e comunicao remunerat-rias, ao passo que responder, subsidiariamente, por tais verbas, a entidade estatal tomadora dos servios, na linha j autorizada pela Smula n 331, IV, do TST.

    14. Atualmente, a discusso que ainda se trava refere-se responsabili-dade do tomador de servios nas terceirizaes lcitas. que o art. 71, 1, da Lei n 8.666/93 expressamente impede a transferncia Administrao Pblica dos encargos trabalhistas inadimplidos pela empresa prestadora. Ocorre que, numa verdadeira jurisprudncia contra legem, o TST pacificou entendimento no sentido de que a Administrao responde subsidiariamente pelas verbas trabalhistas, em caso de inadimplemento pela empresa prestadora de servios.

    15. De fato, a irresponsabilidade da Administrao viola o princpio da isonomia em face das pessoas jurdicas de Direito Privado, sem qualquer justificativa para tal privilgio antissocial; da mesma forma, h violao ao princpio da isonomia no convvio estabelecido pela lei entre a total irrespon-sabilidade do 1 e a solidariedade absoluta constante no 2 (relativa aos en-cargos previdencirios), sem que haja um motivo razovel para esse tratamento desigual, mormente quando a Constituio elencou o trabalho e a previdncia como direitos sociais. Outrossim, defendemos a responsabilidade objetiva do Estado, calcada no art. 37, 6, da CF, bem como na ideia de risco-proveito; subsidiariamente, entendemos a aplicao da presuno de culpa, seja pela culpa in eligendo, seja pela existncia de culpa in vigilando da Administrao. Por fim, pode-se afirmar que a responsabilidade subsidiria sustenta-se no princpio da moralidade, no princpio da funo social do contrato, no valor social do trabalho e no princpio da dignidade humana.

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