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1 TEORIAS E MUDANÇAS NO COMPORTAMENTO DE PROFESSORAS DE RIO BRANCO - AC ELISABETE CARVALHO DE MELO DISSERTAÇÃO DE MESTRADO FACULDADE DE EDUCAÇÃO

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TEORIAS E MUDANÇAS NO COMPORTAMENTO DE

PROFESSORAS DE RIO BRANCO - AC

ELISABETE CARVALHO DE MELO DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

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CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

ELISABETE CARVALHO DE MELO

TEORIAS E MUDANÇAS NO COMPORTAMENTO DE PROFESSORAS DE RIO BRANCO - AC

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da

Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de

Janeiro, como exigência parcial para obtenção do título de

Mestre em Educação.

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Julho, 2003

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

A Dissertação Teorias e Mudanças no Comportamento de Professoras de Rio Branco-AC.

elaborada por Elisabete Carvalho de Melo

orientada pela Profª Drª Cristina Jasbinschek Haguenauer

e aprovada por todos os membros da Banca Examinadora foi aceita pela Faculdade de Educação da

Universidade Federal do Rio de Janeiro e homologada pelo Conselho de Ensino para Graduados e

Pesquisa, como requisito parcial à obtenção do título de

MESTRE EM EDUCAÇÃO

Rio de Janeiro, 11de julho de 2003.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________

Profª Drª Cristina Jasbinschek Haguenauer

___________________________________________________ Prof. Dr. Vicente Cruz Cerqueira

____________________________________________________

4

Prof. Dr. Francisco Cordeiro filho ____________________________________________________

Profª Drª Vera Maria A.Correa

5

A todos os professores, na esperança de que compreendam a língua escrita como algo “importante na escola porque é importante fora da escola, e não o inverso”.

A todas as crianças não alfabetizadas, na esperança

de que a escola possa ajudá-las a descobrir, com prazer, a língua escrita.

AGRADECIMENTOS

Li no caderno de uma amiga, uma frase, a qual me reporto nesse momento, para iniciar

os agradecimentos aos que contribuíram, de uma forma ou de outra, com esse trabalho:

“As palavras do mestre ficam gravadas em nossa memória. Anos depois ainda

recordamos o que aprendemos”.

Creio, não só as palavras ficam, mas também, a fisionomia, gestos, olhares, que no

silêncio também falam, dizem, ensinam muito mais. E assim entendendo, agradeço aos

mestres - alguns doutores – que recordarei, pelo que compartilhamos e aprendi com eles.

Ao Mestre Jesus, o mestre dos mestres, pela companhia constante no processo solitário

de escrita desse texto dissertativo e, pelo muito que tem me ensinado, com a certeza de que

ainda tenho muito que aprender.

Aos meus Pais, Gerardo e Maria, mestres na vida, com quem aprendi coisas sérias, de

um jeito tão simples.

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A minha irmã Olívia, mestra no discernimento e serenidade, nos momentos difíceis,

pelo incentivo e apoio incondicional em tudo que realizo.

A professora Drª. Cristina Haguenauer, minha orientadora, mestra na paciência (por

esperar tanto tempo o meu texto concluído), pela receptividade, carinho e atenção em todas as

vezes que conversamos por telefone.

Ao Professor Dr. Vicente Cerqueira, meu co-orientador, mestre na alegria de viver,

pela leitura atenta do trabalho e sugestões para melhorá-lo, além da revisão gramatical e

laboração do abstract.

As professoras pesquisadas, mestras no “fazer para crer”, pela colaboração das

informações e, permissão para que eu “invadisse” as suas salas de aula, sem as quais não teria

sido possível esse estudo.

Ao professor Gilberto Dalmolin, mestre na discrição, pela amizade e ajuda nos

momentos finais desse trabalho, em que, para meu desespero, a impressora e o computador

apresentaram problemas e, para meu alívio, ele permitiu que eu usasse os seus equipamentos

de informática. Sem falar, da ajuda na formatação do texto.

Ao Professor Mark Clark, mestre nas palavras, pela leitura e contribuições no resumo

desse trabalho e, pelo apoio nas duas últimas semanas de sua conclusão.

7

A Grace Gotelip, que se revelou uma mestra nas gargalhadas, pela leitura e

contribuições no capítulo referente à metodologia, além de ter me proporcionado bons

momentos de descontração, que me aliviaram a tensão dos últimos dias.

A Elisângela, Márcio e Marcos, mestres na informática, pelas dicas preciosas que me

tiraram de alguns apuros.

A todos esses mestres, minha profunda gratidão por me ajudarem a compreender, em

diferentes momentos de minha vida, “a beleza de ser um eterno aprendiz”.

RESUMO

Considerando as repercussões das idéias contidas na teoria da psicogênese da língua escrita,

este trabalho constitui-se numa investigação, cujo objetivo foi identificar e analisar as

mudanças ocorridas na ação docente de um grupo de professoras de educação infantil, a partir

do conhecimento sobre a referida teoria. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, realizada no

ano de 2002, com sete professoras de quatro escolas infantis, do sistema municipal de ensino

de Rio Branco-AC. Para a realização do estudo a metodologia utilizada constou de entrevista

semi-estruturada, individual, com as professoras participantes e de observação de suas salas de

aula. Os principais aspectos encontrados e analisados dizem respeito às contribuições dos

pressupostos teóricos da psicogênese da língua escrita, para a ação docente das professoras e,

às atividades realizadas a partir do conhecimento advindo da teoria em questão. Os resultados

obtidos indicam que o processo de mudanças não foi fácil, devido o receio das professoras de

iniciar algo novo e, ter que deixar as práticas antigas que eram familiares a elas e a

comunidade. Embora difícil esse processo foi possível, na medida em que as professoras

(re)pensaram suas práticas de ensino da língua escrita, a partir do conhecimento sobre as

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hipóteses de escrita, e passaram a reconsiderar algumas das atividades que propunham às

crianças, incorporando outras ao seu fazer pedagógico. Os mesmos resultados indicam, ainda,

a importância do trabalho coletivo e dos grupos de estudo, nas escolas, como elementos de

sustentação ao trabalho que ora realizam. Muito mais do que uma “pesquisa-denúncia” do

quanto às professoras ainda precisam aprender e mudar na sua ação docente, a investigação é

reveladora do quanto esse grupo de professoras já aprendeu e modificou o seu trabalho junto

às crianças, no que diz respeito ao ensino da língua escrita.

ABSTRACT

The formulations advanced by the psychogenesis of the written language theory have had a

significant impact on the debate on the teaching of reading and writing as well as on programs

of teacher formation. This work focuses on the pedagogical practice of a group of female

teachers who work in public schools, aiming at identifying, describing and analyzing the

changes that may have taken place in the classroom procedures as a consequence of their

becoming familiar with the theory tenets. It is a qualitative study, carried out in the year 2002,

involving seven teachers from four child schools in the capital city of Rio Branco, Acre. The

methodology comprised individual semi-structured interviews with the subject teachers and

direct observation of their work in the classroom. The main aspects identified and analyzed

refer to the contributions of the theoretical assumptions on the psychogenesis of the written

language for the teachers’ action in the classroom, and for the classroom activities modeled

after that theoretical knowledge. The results show that the changing of the subjects’ attitude

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was not an easy process due to the fear of starting something different and abandoning the old

manners much familiar to them and to their community; however, those teachers - under the

influence of the theory – started to reflect on their teaching practice and re-evaluate the

activities and exercises assigned to the children during the writing class, and to include new

theoretically-oriented writing tasks. They also show the importance of teamwork and groups

of study as supportive elements for teaching. Thus, the results do not make up some

investigation to denounce how much those teachers still have to learn; rather they turn out to

be an important step to reveal how much they have already learned and modified their practice

in teaching children the written form of the language.

SUMÁRIO

PRA INÍCIO DE CONVERSA.................................................... 01 Apresentação I. O PONTO DE PARTIDA......................................................... 04

Introdução O Problema O Interesse Pelo Estudo O Referencial Teórico O Objetivo e Questões de estudo

II.O CAMINHO............................................................................ 14

Metodologia O processo de seleção das professoras

10

A coleta de dados Sistematização e análise dos dados

III. LADO A LADO...................................................................... 26

A Teoria Contextualizando As hipóteses de escrita e de leitura A teoria e a sala de sula das professoras participantes

IV.OLHANDO PARA TRÁS, SEGUINDO EM FRENTE......... 46

As contribuições da teoria e o processo de mudanças na ação docente das professoras

As hipóteses de escrita As atividades O processo de mudanças

V. DEVAGAR SE VAI AO LONGE………………………….. 81 A teoria em ação É PRECISO PROSSEGUIR….................................................... 106

Considerações Finais BIBLIOGRAFIA .................................................................................…… 111

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Para ler, é claro, prefiro o atraente, me cansa menos, me arrasta mais, me delimita e me contorna. Para escrever, porém, tenho que prescindir. A experiência vale a pena, mesmo que seja apenas para quem escreveu”

Clarice Lispector

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PRA INÍCIO DE CONVERSA

“Começar” a dizer nunca é tarefa simples. E “começar” a escrever torna-se trabalho árduo e duplamente complexo. Com efeito, se ao falar, estamos aprisionados pela ilusão da completude, ao escrever ficamos presos em uma contradição, que tem a ver com a ilusão da linearidade do pensamento (e da transparência da linguagem) e a necessidade de imaginar um interlocutor ausente, muitas vezes fantasmático e idealizado, para o qual precisamos “planejar” e “organizar” o nosso discurso.

Leda Verdiani Tfouni

Apresentação

Inicio a apresentação deste trabalho fazendo referência ao que Tfouni diz quanto ao ato

de escrever, pois me vejo em sua afirmativa.

Sem dúvida, planejar e organizar o discurso foram minhas maiores preocupações, pela

necessidade de escrever um texto acadêmico, científico, sem que este se tornasse “pesado”,

distante dos professores, em conseqüência, esquecido na prateleira de uma biblioteca. Sem

falar da responsabilidade de iniciar o diálogo com “interlocutores ausentes”, quando se sabe

que o ato de escrever pressupõe se expor.

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Mas é com alegria e a sensação do dever cumprido que me exponho, me desnudo por

inteira, dividindo o fruto de momentos de dúvidas e certezas, de alegria ao produzir muito em

um dia, de tristeza de pouco ou nada produzir em outro, momentos de renúncia e dedicação,

de desânimo, de motivação, em que passo a passo esse trabalho foi sendo construído. E se hoje

recordo momentos difíceis em que o tempo para escrevê-lo e problemas de saúde, insistiram

em não colaborar, tenho também o prazer de tê-lo concluído, mesmo acreditando que muito

mais e melhor poderia ter sido realizado.

É sobre as mudanças na ação docente de professoras de educação infantil do município

de Rio Branco - AC, a partir do conhecimento acerca da teoria da psicogênese da língua

escrita, que trata esse trabalho. Nas páginas seguintes serão apresentados o problema e o

contexto da pesquisa, os pressupostos teóricos que a fundamenta, as implicações pedagógicas

destes pressupostos na prática das professoras participantes e o resultado do estudo.

Nesta perspectiva o trabalho ora apresentado está organizado em cinco capítulos, a

saber.

O capítulo I explicita o problema, descreve o interesse pela temática, assim como,

justifica a teoria da psicogênese da língua escrita enquanto base teórica para o estudo e,

apresenta o objetivo e as questões de estudo desencadeadoras da investigação.

O capítulo II sobre a metodologia, contextualiza a pesquisa a partir de uma

justificativa para a abordagem qualitativa dada ao estudo, seguida da apresentação das etapas

de desenvolvimento da investigação. Destaca-se o processo de seleção das professoras

participantes, os instrumentos utilizados para a coleta de dados e o procedimento para a

sistematização e análise dos dados.

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No capítulo III a teoria da psicogênese da língua escrita é apresentada pela descrição

das hipóteses de escrita e de leitura. Mostra também, no contexto da sala de aula das

professoras, as hipóteses de escrita, tendo por referência a atividade com fins diagnóstico

realizada, por elas, com seus alunos.

O capítulo IV trata dos dados coletados nas entrevistas, analisados à luz do referencial

teórico abordado, de modo a responder as questões de estudo propostas.

No capítulo V, a partir de dados coletados nas observações das salas de aula, o “fazer”

das professoras é apresentado tendo como pano de fundo as implicações pedagógicas das

contribuições teóricas de Ferreiro e Teberosky.

E por fim, as considerações finais retomam as discussões ao longo dos referidos

capítulos, sem a intenção de apresentar conclusões quanto ao que foi tratado. Traduz-se, no

entanto, numa reflexão acerca dos resultados obtidos, a partir da investigação realizada.

Da intenção ao desenvolvimento da pesquisa, dos dados à sistematização e escrita

final, através dos referidos capítulos compartilho o fruto deste trabalho, aqui traduzido neste

texto dissertativo.

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CAPÍTULO I

O PONTO DE PARTIDA

Não há dúvida de que a memória é o estômago da mente. Da mesma forma como o alimento é trazido à boca pela ruminação, assim as coisas são trazidas da memória pela lembrança.

Agostinho de Hipona

Introdução

A alfabetização, no Brasil, tem sido um dos temas centrais de discussões ao longo dos

tempos, na área de educação, no entanto, apesar de todos os esforços dos governos federal,

estaduais e municipais, além da iniciativa de vários setores da sociedade, no combate ao

analfabetismo, ainda é alarmante o número de crianças, jovens e adultos que não sabem ler e

escrever.

Para se ter uma idéia desse número, o censo de 2000 aponta que o Brasil tem 17,6

milhões de analfabetos acima de 10 anos de idade, dado que coloca o nosso País em segundo

lugar em número de analfabetos, da América do Sul, perdendo apenas para nosso país vizinho,

a Bolívia.

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Se considerarmos ainda que, segundo os dados do IBGE/INEP, durante a década

compreendida entre os anos de 1988 a 1998, a maior taxa de aprovação na 1ª série foi de

68,7% em 1998, ou seja, 31,85 das crianças não se alfabetizaram, neste ano, chegamos fácil a

conclusão de que do total de analfabetos, muitos freqüentaram a escola, e apesar disso, não

aprenderam a ler e escrever.

Por toda a primeira metade do século XX, a explicação para esse “fenômeno”, estava

centrada nos métodos utilizados para alfabetizar, sendo estes os responsáveis diretos pelo

“sucesso” ou “fracasso” dos alunos.

Já nos anos 60 as “teorias do déficit” surgem para justificar o “fracasso” das crianças,

na escola, cabendo-lhes a responsabilidade de seu próprio insucesso.

O que parecia inquestionável, no final da década de 70 foi aos poucos sendo

desmitificado, especificamente com os resultados das pesquisas de Emília Ferreiro e Ana

Teberosky, divulgados no Brasil com o nome psicogênese da língua escrita.

As idéias dessas pesquisadoras - longe de ser uma prescrição de um novo método de

alfabetização, permearam grande parte das reflexões teóricas acerca da alfabetização nos

últimos vinte anos, e têm sido alvo de discussões nesta área, tanto por parte de pesquisadores

como de professores, por inaugurar um novo olhar para a interpretação de como a criança

aprende a ler e escrever.

Em função disso, a teoria da psicogênese da língua escrita é considerada como uma

revolução conceitual no que se refere a teorias na área, mudando o foco das discussões “do

como se ensina para o como se aprende”, permitindo reflexões sobre a diferença entre

métodos de ensino e processos de aprendizagem.

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Em outras palavras, marca a diferença entre uma teoria acerca da aprendizagem da

escrita considerando a “natureza do objeto de conhecimento envolvendo esta aprendizagem”

(Ferreiro, l995, p. 9) e uma história escolar de práticas alfabetizadoras que se estende ao longo

dos tempos, destinadas a ensinar a ler e escrever.

Dessa maneira, tem possibilitado reflexões sobre as práticas tradicionais de

alfabetização, concitando os professores a pôr em dúvida suas certezas, na tentativa de ruptura

com o já estabelecido.

O Problema

Na cidade de Rio Branco – AC, o impacto das idéias que trouxe a psicogênese da

língua escrita fez com que muitos professores sentissem a necessidade de conhecê-las melhor

e tentassem mudar sua ação docente. Mas, o que efetivamente mudou na prática desses

professores a partir do conhecimento de como o sujeito se apropria do sistema de escrita

alfabético?

Esta tem sido uma das minhas maiores indagações nos últimos anos, frente o contato

com professores de educação infantil e das séries iniciais do ensino fundamental, assim como,

com alunos destes segmentos educacionais e alunos dos cursos de formação de professores,

tanto do ensino médio, quanto do ensino superior.

Constato, nesta convivência, o insistente “quadro negro” do fracasso escolar, no que

diz respeito à leitura e a escrita, principalmente nas escolas públicas. Esse fracasso a que me

refiro está especialmente explícito nas séries iniciais do ensino fundamental, exatamente no

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período em que a escola tem a função precípua de possibilitar situações efetivas para o

aprendizado da leitura e da escrita.

Diante do exposto e entendendo a alfabetização como um processo de aquisição de um

sistema escrito, que precede o ingresso da criança na escola, mas que em sua maioria, é

efetivado por meio do processo de instrução formal e, entendendo ainda, que devemos

enfatizar não a escrita e a leitura como atividades mecânicas, destituídas de significado, mas

os aspectos construtivos da escrita das crianças durante esse processo, é que tenho como

problema investigar em que medida o conhecimento sobre a teoria da psicogênese da língua

escrita modificou a ação docente de professores de educação infantil da Rede Municipal de

Ensino de Rio Branco-AC.

O Interesse Pelo Estudo

O interesse por estudar a problemática apresentada recebeu influência das lembranças

de minha trajetória como aluna, ainda criança, ao descobrir o mundo da leitura e da escrita.

Sentir-me capaz de ler placas, outdoors, revistas e livros, me impulsionava a ler muito mais e

a escrever bilhetes, cartas e estórias. Era divertido ver a surpresa estampada no rosto das

pessoas ao constatarem que eu já sabia ler e escrever, talvez pela minha pouca idade, aliada ao

meu pouco tamanho.

Essas lembranças contrastam com a realidade de que, apesar da ampliação do número

de vagas nas escolas públicas, ainda é grande o número de crianças que não se alfabetizam.

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E o que lembrarão essas crianças que, embora na escola, muitas há anos, ainda não

descobriram o que a escrita representa, para quem as placas, outdoors, revistas e livros

continuam sendo um enigma a ser desvelado? E o que pensar do espanto das pessoas, em

especial, os professores, quando constatam que estas crianças ainda não sabem ler e escrever,

apesar da idade avançada e/ou de seus tamanhos?

Teve influência também a minha experiência como professora alfabetizadora, quando

então acadêmica do curso de Pedagogia, conheci os postulados da teoria da psicogênese da

língua escrita.

Era um conhecimento novo que vinha de encontro ao que eu fazia, me desafiando a

verificar em minha sala de aula, se o que dizia essa teoria também acontecia com os meus

alunos. Pude entender, entre outras coisas, porque as crianças não escreviam ortograficamente

correto, mesmo quando já conheciam as sílabas estudadas.

A partir de então, embora não soubesse muito bem o que fazer com esse conhecimento

e nem pudesse largar a cartilha adotada pela escola, que tinha uma proposta de alfabetização

centrada no método fonético, passei a observar mais, a olhar diferente para as produções de

meus alunos levando em conta as hipóteses construídas por eles em seu processo de

alfabetização. Mas, como a maioria dos professores, por falta mesmo de conhecimento, a

minha ênfase estava na escrita em detrimento da leitura.

A desconfiança de que a forma como eu alfabetizava não era a melhor forma para que

as crianças aprendessem a ler e escrever me instigou a fazer cursos sobre a alfabetização,

tanto de crianças quanto de jovens e adultos.

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Acrescenta-se a este fato, a minha experiência como técnica da equipe pedagógica da

SEMEC - Secretaria Municipal de Educação, de Rio Branco-AC.

Em 1994, essa Secretaria em parceria com a Universidade Federal do Acre ofereceram

um curso de especialização em metodologia do ensino pré-escolar e das quatro primeiras

séries do 1º grau, hoje respectivamente, educação infantil e séries iniciais do ensino

fundamental.

Paralelo ao referido curso de especialização, a SEMEC ofereceu a todos os seus

professores um curso de capacitação, sendo considerado pelos professores, como o mais

complexo, o módulo que tratava da construção da escrita.

A partir de então, era comum chegarem à Secretaria, principalmente vindos das

escolas infantis, pedidos de palestras, oficinas e encontros pedagógicos sobre as hipóteses de

escrita. Na época, mesmo nós, integrantes da equipe pedagógica da SEMEC, conhecíamos

muito pouco sobre as hipóteses de leitura.

Em 1995 aprofundei meus estudos sobre alfabetização no curso de especialização em

alfabetização, oferecido pela Universidade Federal do Acre. Esse curso me possibilitou

conhecer muito mais sobre o ensino e a aprendizagem da leitura e da escrita, e apesar de

transcorridos alguns anos, as discussões tanto teóricas quanto práticas, estudadas na época,

continuam atuais.

Mais recentemente como professora concursada para a área de alfabetização,

atualmente trabalhando no curso de Pedagogia com as disciplinas Didática Para o Ensino de

Língua Portuguesa e Prática de Ensino, e no Curso de Letras, com Prática de Ensino, tenho

21

observado que o maior envolvimento dos alunos e as maiores discussões dizem respeito aos

conteúdos referentes ao aprendizado da leitura e da escrita.

Ao estudarmos em Didática Para o Ensino de Língua Portuguesa as dimensões teóricas

e práticas que envolvem essa área de conhecimento, os alunos enfatizam, na avaliação que

fazem ao final da disciplina, que o conteúdo referente à aprendizagem da leitura e da escrita é

um dos conteúdos mais significativos e importantes para o trabalho em sala de aula. Esse

dado da avaliação final sobre o trabalho realizado vem se repetindo todos os anos desde 1998,

quando iniciei o trabalho com a referida disciplina.

Na prática de Ensino tanto no Curso de Pedagogia quanto no Curso de Letras, o

contato com as escolas públicas traz para a sala de aula dados que se revertem em riquíssimas

discussões e, nestas, sempre emergem questões sobre a leitura e a escrita: as crianças ainda

não sabem ler e escrever quando já deveriam saber fazê-los; as que não sabem ler e escrever

não recebem a devida atenção dos professores, são marginalizadas; as crianças têm medo de

ler e escrever; cometem muitos erros ortográficos; sentem dificuldade para produzir bons

textos, etc.

Os alunos costumam avaliar que essas situações são decorrentes de uma “má

alfabetização” e que a escola, por sua vez, não vem cumprido seu papel no tocante ao ensino

da leitura e da escrita.

Essas experiências fazem da alfabetização uma constante em minha vida. Então, como

não indagar, procurar respostas e inquietar-me com questões concernentes a alfabetização,

quando o fracasso escolar que tanto preocupa a todos nós educadores, em especial nas classes

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populares e nas séries iniciais do ensino fundamental, está intrinsecamente associado ao não

aprendizado do nosso sistema de escrita?

Nesta perspectiva, o motivo pelo qual optei por investigar a ação docente de

professores de escolas infantis municipais de Rio Branco, no que diz respeito ao ensino da

leitura e da escrita, além da freqüente preocupação com o insucesso das crianças no processo

de aquisição da escrita, justifica-se ainda pela necessidade de pesquisas na área, no âmbito da

Universidade Federal do Acre, instituição onde trabalho, e pela quase inexistência de registros

sobre a alfabetização em Rio Branco-AC, uma vez que a história da educação do município, é

quase que exclusivamente guardada na memória dos que a vivenciaram e/ou a vivenciam.

O Referencial Teórico

Quanto à adoção da teoria da psicogênese da língua escrita como base teórica para o

estudo, julgo necessário tecer algumas considerações, frente à preocupação com a formação de

um leitor crítico, um leitor que é fruto de um contexto social, mas também histórico e político.

Não se trata neste trabalho de negar as demais referências teóricas sobre a

alfabetização.

Trata-se sim de reconhecer a contribuição de Emília Ferreiro e Ana Teberosky na área

de alfabetização, na medida em que os resultados de suas pesquisas, trouxeram conhecimentos

que auxiliam o professor compreender os processos pelos quais se aprende a ler e escrever,

independentemente do modelo de alfabetização a ser adotado. Conhecimentos que desvelam a

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pré-história da linguagem escrita e que vão ao encontro do que já alertava Vygotsky (1991)

quanto a esta questão:

A primeira tarefa de uma investigação científica é revelar essa pré-história da linguagem escrita; mostrar o que é que leva as crianças a escrever; mostrar os pontos importantes pelos quais passa esse desenvolvimento pré-histórico e qual sua relação com o aprendizado escolar. (p.121). Se de um lado temos os métodos tradicionais de alfabetização, tão questionados, que

inibem, alheiam e aprisionam os indivíduos, mas que ainda resistem, de outro temos uma

proposta de alfabetização, fundamentada nas idéias de Vygotsky e Luria, a qual concebe o

ensino da língua escrita a partir de uma concepção sócio-histórica e cultural da linguagem,

vislumbrando um leitor crítico que, através da língua escrita, reflita sobre a sua realidade e

seja capaz de modificá-la: uma alfabetização que liberte.

Entre as práticas tradicionais bastante difundidas e aceitas durante anos, pelos

professores, mas que já não satisfazem e a proposta de alfabetização discutida principalmente

no seio da Academia, ainda não muito difundida entre os professores da educação infantil e

séries iniciais do ensino fundamental, está a proposta interacionista de alfabetização. Apoiada

na psicogênese da língua escrita, esta última é bastante divulgada entre os professores desses

segmentos educacionais e vem nos últimos vinte anos se constituindo no mais forte referencial

para a superação dos modelos tradicionais do ensino da leitura e da escrita.

Neste sentido, o interesse pela teoria da psicogênese da língua escrita como abordagem

teórica desencadeadora do problema de pesquisa colocado, justifica-se por ser essa teoria na

área de alfabetização, a mais divulgada entre os professores de educação infantil do município

de Rio Branco, sendo o fundamento da proposta de ensino de leitura e escrita adotada pela

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SEMEC desse município, com vistas, se não à superação, pelo menos à minimização das

práticas tradicionais de ensino da leitura e da escrita.

O Objetivo e as Questões de Estudo

A investigação foi desenvolvida com o objetivo de identificar, descrever e analisar as

mudanças na ação docente de professores de educação infantil do Sistema Municipal de

Ensino de Rio Branco, a partir do conhecimento que têm acerca da teoria da psicogênese da

língua escrita.

Para alcançar esse objetivo, os principais aspectos de interesse da investigação foram

traduzidos nas seguintes questões de estudo, que nortearam a coleta de dados e subsidiaram a

sistematização e análise dos resultados.

Que aspectos da teoria da psicogênese da língua escrita mais contribuíram na ação

docente das professoras pesquisadas?

Que atividades realizadas pelas professoras são decorrentes das implicações

pedagógicas da teoria da psicogênese da língua escrita?

Respondendo a essas questões de estudo, os resultados da investigação aqui

apresentada não se constituem numa pesquisa-denúncia, frente às evidências do que foi

constatado. Mais do que constatar qualquer hipótese, esse trabalho compartilha a experiência

das professoras participantes, as dificuldades enfrentadas, a superação de dificuldades e suas

conquistas.

25

CAPÍTULO II

O CAMINHO

... é caminho, não é chegada. Mas não se chega sem caminho.

Pedro Demo

Metodologia

Para investigar as mudanças na ação docente de professoras de educação infantil do

município de Rio Branco-AC, trilhei o caminho do enfoque qualitativo de pesquisa, por

acreditar que este seria o mais adequado para me auxiliar a conhecer e compreender melhor a

problemática apresentada, já que “envolve a obtenção de dados descritivos, obtidos no contato

direto do pesquisador com a situação estudada, enfatiza mais o processo do que o produto e se

preocupa em retratar a perspectiva dos participantes” (Bogdan e Biklen apud Lüdke, 1996,

p.13).

O ambiente natural como fonte direta de dados e os dados coletados

predominantemente descritivos me auxiliaram na abordagem descritiva-analítica, a qual me

propus realizar.

Com esse propósito, busquei em primeiro lugar um contato com uma profissional da

equipe pedagógica da SEMEC, com o intuito de obter informações quanto ao número de

escolas infantis atendidas por essa Secretaria, para que eu definisse a amostra, pois algumas

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mudanças ocorreram com relação aos segmentos atendidos pelas escolas municipais de Rio

Branco.

Na oportunidade, fiquei sabendo que quatro escolas de ensino fundamental no ano de

2002 foram “transformadas” em escolas infantis, passando de quatro para oito, o número de

escolas infantis atendidas por essa Secretaria, a partir do referido ano.

Em decorrência do tempo para realizar a pesquisa e, conseqüentemente do tempo para

escrever a dissertação, comprometidos pela demora na definição de orientador, decidi

trabalhar com 50% dessas escolas, ou seja, quatro, utilizando como critério de escolha, as que

já existiam antes de 2002. Essas serão aqui chamadas de escolas A, B, C e D e foram

escolhidas por terem em seus quadros professoras que em sua maioria participaram do

programa de capacitação oferecido pela SEMEC, anteriormente mencionado, o qual tinha um

módulo sobre a construção da escrita, à luz dos pressupostos teóricos da teoria da psicogênese

da língua escrita.

O passo seguinte foi conversar com as diretoras das escolas, visando autorização para

que eu realizasse a pesquisa. Na oportunidade expliquei sobre o que tratava a investigação, o

critério de escolha das escolas da amostra e como pretendia realizá-la.

Todas as diretoras foram muito receptivas e dispuseram as escolas para a realização do

estudo.

Vencida essa primeira etapa, dei início ao trabalho de campo propriamente dito,

descrito nas etapas que seguem, tendo por referência o princípio de que o trabalho de campo

“é o fruto de um momento relacional e prático: as inquietações que nos levam ao

desenvolvimento de uma pesquisa nascem no universo do cotidiano”. (Neto, 1999, p. 64).

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O Processo de Seleção das Professoras

Vinte e seis professoras trabalhavam nas vinte e oito turmas das quatro escolas infantis,

selecionadas para o estudo, o que significa dizer que duas professoras assumiam turmas em

dois turnos nas escolas em que trabalhavam.

Em um primeiro momento foi realizada uma entrevista inicial com essas professoras,

exceto uma professora da escola B que não foi entrevistada, por não ter comparecido no dia

em que realizei essa entrevista.

Assim sendo, inicialmente, vinte e cinco professoras foram entrevistadas.

A entrevista inicial aconteceu por escola, nos turnos de trabalho das professoras, tendo

como objetivo definir o grupo de professoras participantes e, neste sentido, procurei saber se

conheciam a teoria da psicogênese da língua escrita e, em caso afirmativo, o que conheciam.

Das vinte e cinco professoras, cinco (20%) disseram não conhecer a teoria da

psicogênese da língua escrita, treze (52%) disseram a conhecer, mas compreendem

equivocadamente e sete (28%) conhecem e compreendem corretamente a teoria, o que foi

possível detectar, a partir do que disseram as professoras.

De posse dessas informações, defini a amostra das professoras, que foi constituída

pelas sete professoras que na entrevista inicial demonstraram conhecer e compreender a teoria

da psicogênese da língua escrita, para saber em que medida essa “teoria” modificou a sua ação

docente.

28

As sete professoras receberam neste estudo os nomes de Eridam, Juraci, Conceição,

Iolanda, Francisca, Adízia e Marília, em homenagem a professoras que muito estimo e admiro.

A primeira por ter me ensinado a ler e escrever. O tempo passou, mas não esqueço a

paciência com que nos ensinava as sílabas e o encanto com que nos contava estórias.

A segunda foi minha professora no Curso de Pedagogia na Universidade Federal do

Ceará, na disciplina “Alfabetização”, a responsável por me apresentar os estudos de Ferreiro e

Teberosky. O seu compromisso, seriedade, domínio de conteúdo e simplicidade encantavam a

todos. Muito mais que professora e aluna, estreitamos relações. Jura, como eu carinhosamente

a chamava, passou a ser um modelo, uma referência, até hoje, em minha vida profissional.

Os anos correram, e entre o ano em que me alfabetizei, os anos na universidade e hoje,

um longo tempo transcorreu. Nunca mais as vi, sequer tenho notícias, mas as suas presenças

ficaram cravadas, cristalizadas, presentes em minha história de vida, marcada por momentos

de suas histórias de professoras.

As demais, não menos importantes, citadas pela ordem em que as conheci e passaram a

fazer parte do meu círculo de trabalho e amizade, são homenageadas pelo trabalho enquanto

alfabetizadoras, hoje referências em educação na cidade de Rio Branco, afora a dedicação e

estudo na área do ensino da leitura e da escrita. Pessoas que eu tive a alegria de conhecer e

com quem muito tenho aprendido.

A Coleta de Dados

Apresentada a amostra das professoras participantes, considero importante fazer

algumas referências quanto à adoção da entrevista, no caso, semi-estruturada e da observação

enquanto instrumentos utilizados para a coleta de dados.

29

Essas foram instrumentos privilegiadas no estudo por ser a primeira, um instrumento

que permite como dizem Alves-Mazzotti e Gewandsznajder (1998), “tratar de temas

complexos que dificilmente poderiam ser investigados adequadamente através de

questionários, explorando-os em profundidade” (p.168), e a segunda, por permitir “o registro

do comportamento em seu contexto temporal-espacial” [...] e “identificar comportamentos não

intencionais ou conscientes” (p.164).

Quanto a entrevista, justifica-se ainda a opção pela entrevista semi-estruturada por ser

como diz Triviños (1987) :

aquela que parte de certos questionamentos básicos, apoiados em teorias e hipóteses, que interessam à pesquisa, e que, em seguida, oferecem amplo campo de interrogativas, fruto de novas hipóteses que vão surgindo à medida que se recebem as respostas do informante (p. 146).

As entrevistas

As entrevistas com as professoras foram realizadas na própria escola em que

trabalham, no horário do recreio, após o término da aula ou no horário de outras atividades

desenvolvidas por profissionais que não a professora de sala, como foi o caso de Francisca.

Quanto ao local, a única exceção foi a entrevista com Conceição e Iolanda que foram

entrevistadas em outras instituições educacionais onde também trabalham.

A diretora da escola A foi a primeira com quem conversei e deixou à disposição das

professoras, um profissional da escola para desenvolver as atividades com as crianças, se fosse

necessário realizar as entrevistas no horário das aulas. Apesar disso, pela distância da escola

30

em relação às outras e por problemas de horário para a realização das entrevistas, as

professoras da escola A foram as últimas a serem entrevistadas.

Antes da entrevista individual com as professoras, expliquei o objetivo do estudo,

sendo necessárias maiores explicações quanto ao período de observação: o tempo que eu

permanência em sala e o registro escrito que eu faria das atividades desenvolvidas por elas.

As entrevistas se constituíram numa conversa sem formalidades, num bate papo, tendo

por referência as perguntas do roteiro de entrevista abaixo, embora não necessariamente com

essas palavras e nesta ordem em que estão apresentadas:

1 Você utiliza em seu trabalho com as crianças, o conhecimento acerca da teoria da

psicogênese da língua escrita?

2 Que aspectos dessa teoria mais contribuíram para o seu trabalho em sala de aula?

3 Que atividades você antes realizava com seus alunos e que a partir do

conhecimento sobre o processo de aquisição da escrita, construído pelas crianças,

você não mais as realiza? Por quê?

4 Que atividades você incorporou ao planejamento de suas aulas, a partir dos

pressupostos teóricos da psicogênese da língua escrita? Comente.

5 Quais as dificuldades enfrentadas por você para incorporar ao seu trabalho uma

nova didática de alfabetização baseada na teoria da psicogênese da língua escrita?

Justifique.

6 E o que foi mais fácil? Por quê?

7 Como você avalia o seu trabalho e a aprendizagem das crianças a partir do

conhecimento acerca da teoria da psicogênese da língua escrita?

31

Todas as entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra, para que nenhuma

informação fosse perdida.

A Observação das Aulas

Para observação das aulas das professoras levei em conta as informações obtidas nas

entrevistas e as implicações pedagógicas do pressuposto teórico que foi referência para o

problema em estudo.

Desse modo foram observados os seguintes aspectos:

As atividades de leitura e escrita propostas às crianças;

As intervenções realizadas pelas professoras;

A freqüência com que as professoras liam em sala;

A forma como realizavam a leitura;

Os textos utilizados pelas professoras;

A freqüência com que as crianças liam e escreviam;

Pela quantidade de professoras e pelo tempo de duas horas estipulado por mim para

permanecer em sala, em cada visita (o suficiente para coletar dados referentes ao trabalho com

leitura e escrita), não foi possível observar diariamente todas as professoras. Eu observava

quatro professoras por dia, duas em cada turno, o que deu uma média de duas visitas semanais

para cada uma.

O contato com a sala de aula permitiu que eu observasse situações didáticas não citadas

pelo grupo de professoras nas entrevistas, mas que traziam dados relevantes para o estudo.

32

No início a minha presença nas salas deixou as crianças inquietas, mas com o passar

dos dias se acostumaram com essa presença.

Procurando o melhor lugar para obter os dados, a depender da atividade realizada, eu

me sentava em locais diferentes nas salas e, quando necessário, ficava próxima as mesas, bem

perto das crianças, para observar melhor como interagiam, como as professoras intervinham,

porém sempre com o cuidado de não interferir na situação observada.

Eu registrava as atividades desenvolvidas pelas professoras, em um bloco de anotações,

descrevendo a forma como aconteciam: a proposta da atividade, a atuação das professoras, o

envolvimento e resposta das crianças, o contexto da sala.

Para não perder detalhes da fala das professoras e das crianças, eu escrevia com letra de

borrão e com abreviaturas, o que me obrigou a digitar todas as noites os dados coletados

durante o dia, pois como escrevia muito rápido às vezes eu sentia dificuldade para decifrar o

que eu mesma escrevera.

Além das notas de campo, algumas situações de sala de aula foram registradas através

de gravação em áudio, e outras em vídeo. A idéia de registrar em vídeo surgiu da riqueza das

atividades desenvolvidas, que ganharam uma dimensão muito maior do que as relatadas pelas

professoras nas entrevistas.

Vi neste registro a oportunidade de discutir, com os alunos na universidade e com

grupos de formação de professores, o processo de alfabetização a partir de um material

coletado no próprio estado do Acre, em contraste com outros vídeos produzidos fora do

Estado.

33

Embora eu já tivesse explicado às professoras o objetivo da observação e estas terem

autorizado fazer as gravações em vídeo, percebi que tinham uma preocupação com o jeito

como as crianças se comportavam, e se as atividades que desenvolviam estavam certas ou

erradas.

Achei natural essa reação das professoras, pois ainda convivemos com a “cultura do

silêncio” e dos “bons modos” na escola, associados a “disciplina” e a aprendizagem, como se

o falar, o mover, o compartilhar, tão comuns na educação infantil - também necessários nos

outros segmentos educacionais - não fizessem parte do ato de aprender. Além disso, é comum

o julgamento de práticas de professores, seja pela Academia ou pela vasta literatura em

educação, seja por profissionais das secretarias de educação ou mesmo das escolas.

Frente a esta constatação explicitada algumas vezes pelas professoras, através de

justificativas quanto as questões aqui apontadas como alvo de suas preocupações, é necessário

ressaltar que apesar de o foco deste trabalho ser a ação docente, considerando os pressupostos

teóricos da psicogênese da língua escrita, não foi minha intenção investigar se as professoras

faziam certo ou errado a partir da teoria, se os seus discursos eram coerentes com as práticas

que realizavam e vice-versa, se haviam equívocos em suas práticas, se a teoria ajudava ou

atrapalhava o trabalho das professoras, se o comportamento das crianças diante das atividades

era o esperado ou não, se as professoras tinham domínio de sala ou se as crianças eram

disciplinadas, mas sim, o que mudou na ação docente destas professoras a partir do

conhecimento de como se aprende a ler e escrever, considerando o que diz a teoria da

psicogênese da língua escrita.

34

Sistematização e Análise dos Dados

Muito embora a sistematização e análise dos dados tenham sido realizadas durante todo

o processo da pesquisa, essa etapa do estudo foi a mais complexa, pela grande quantidade de

dados que precisaram ser organizados.

Com base em Minayo (1999), inicialmente fiz uma ordenação de todos os dados

coletados durante a pesquisa de campo e os classifiquei definindo as categorias, para proceder

a sistematização e análise deles.

Para definição das categorias, levei em conta o que diz Gomes (1999) a esse respeito:

A palavra categoria, em geral, se refere a um conceito que abrange elementos ou aspectos com características comuns ou que se relacionam entre si. Essa palavra está ligada à idéia de classe ou série. As categorias são empregadas para se estabelecer classificações. Nesse sentido, trabalhar com elas significa agrupar elementos, idéias ou expressões em torno de um conceito capaz de abranger tudo isso. (p. 70).

E sendo assim, os dados foram organizados, pelas relações entre si, em três categorias.

São elas:

Hipóteses de Escrita;

Atividades;

O processo de mudanças.

Essas categorias, por sua vez, foram subdivididas em sete subcategorias, a saber:

A primeira categoria, hipóteses de escrita, abrange as subcategorias: atividade

diagnóstico, erro e agrupamentos.

A categoria seguinte, atividades, tem atividades não mais realizadas e atividades

incorporadas como subcategorias.

35

Por fim, a terceira categoria: o processo de mudanças traz como subcategorias:

dificuldades e facilidades e as mudanças.

Com a definição dessas categorias e de suas respectivas subcategorias, os dados foram

sistematizados e analisados à luz do referencial teórico adotado para o estudo, “respondendo

as questões da pesquisa com base em seu objetivo geral” (Minayo, 1999, p.73).

Ressalto que os dados das observações e suas respectivas análises compõem um outro

capítulo, que não o capítulo que trata dos dados das entrevistas.

Para a apresentação desses dados foram utilizados trechos da fala das professoras,

preservada a fidedignidade das respostas dadas, assim como relatos de situações didáticas de

sala de aula, que envolvem a interação das professoras com as crianças e a interação entre as

crianças, sem a participação das professoras.

A propósito, a utilização de trechos da fala das professoras e da descrição de situações

didáticas de sala de aula é um procedimento que aparece ao longo de todo o trabalho, a partir

do capítulo a seguir.

36

CAPÍTULO III

LADO A LADO

A ciência nasceu da desconfiança dos sentidos. Ela acredita que a realidade é como uma mulher pudica, acredita que aquilo que a gente vê não é a verdade. Ela fica envergonhada quando é vista por meio dos sentidos. Esconde-se deles. Dissimula. Engana. A realidade, para ser vista em sua maravilhosa nudez, só pode ser vista - pasmem! – com o auxílio de palavras. As palavras são os olhos da ciência. "Teorias” e “hipóteses”: esses são os nomes que esses olhos comumente recebem.

Rubem Alves

A Teoria Contextualizando

As práticas tradicionais de alfabetização são bem conhecidas de todos nós,

independentemente de atuarmos ou não na área de educação. Basta lembrarmos de como

fomos alfabetizados.

Essas práticas têm o ensino da leitura e da escrita com base nos métodos, e, sejam eles

sintéticos ou analíticos, acreditam ser a aprendizagem um processo cumulativo.

Embora os métodos tenham algumas diferenças entre si, possuem pontos comuns:

seguem uma ordem predeterminada na apresentação das unidades (letras, sílabas, palavras ou

orações), requer exercícios de prontidão, memorização e repetição.

37

As atividades de escrita ficam restritas a cópias e/ou ditados de letras, sílabas, palavras,

orações ou textos com as sílabas estudadas e também a cópia de enunciados de exercícios

retirados do quadro.

Quanto à leitura, é de livros didáticos ou paradidáticos, com ênfase na sonorização da

escrita.

Os resultados das pesquisas que originaram a teoria da psicogênese da língua escrita,

ao contrário, indicam que a aprendizagem da leitura e da escrita é uma aprendizagem de

natureza conceitual, e não de natureza perceptual. Significa dizer que para aprender a ler e

escrever não é preciso treinar a mão e a visão, mas pensar sobre a língua.

A referida teoria tem se constituído num ponto de partida, numa referência para

mudanças gradativas da prática dos professores, em especial, dos professores da educação

infantil e das séries iniciais do ensino fundamental e, tem fundamentado a proposta de

alfabetização interacionista, em que leitura e escrita são consideradas práticas sociais e

acontecem num contexto de letramento.

Também considerando a leitura e a escrita como uma aprendizagem que não é de

natureza perceptual, a proposta de alfabetização sociopsicolingüística acrescenta à proposta

interacionista que, o alfabetizando é sujeito criador e recriador de cultura e que sendo assim,

através da linguagem escrita deve pensar sobre a sua realidade, atuando para transformá-la,

também se transformando.

Nesse sentido, a alfabetização se dá pelas interações sociais e a escrita e a leitura

devem ser vistas numa perspectiva pessoal e também sócio-histórico-cultural.

38

Mas o que diz a teoria da psicogênese da língua escrita? Que novos conhecimentos são

estes que vieram à baila a partir das pesquisas de Ferreiro e Teberosky?

As Hipóteses de Escrita e de Leitura

A questão principal que nos trouxe a teoria psicogênese é o fato de que

independentemente de idade, classe social, raça ou métodos de alfabetização, não só as

crianças, mas qualquer indivíduo ainda não alfabetizado, constrói hipóteses sobre o sistema de

escrita alfabético.

No que diz respeito à escrita, Ferreiro e Teberosky concluiram que há uma linha de

evolução, a qual descrevem através das hipóteses pré-silábica, silábica, silábico-alfabética e

alfabética, por elas encontradas em suas pesquisas.

A hipótese pré-silábica é caracterizada por escritas que não fazem relação (termo a

termo) entre o falado e o escrito, ou seja, não há nenhuma correspondência com os sons da

fala.

Nesta hipótese encontram-se dois momentos distintos: primeiro, a diferenciação entre

desenho e escrita, ou como chama Ferreiro, entre as marcas gráficas figurativas e não

figurativas e a compreensão da escrita como objeto substituto, e segundo, a diferenciação que

as crianças fazem entre as escritas.

Acreditar que desenhar é escrever é uma hipótese muito primitiva com relação à

escrita, e a diferenciação entre esses modos de representação – desenhar e escrever - é de suma

importância na construção desse objeto de conhecimento.

39

Quando a criança já faz essa diferenciação, “escrever é reproduzir os traços típicos da

escrita que a criança identifica como forma básica da mesma” (Ferreiro e Teberosky, 1999, p.

193), quer dizer, o modelo de letra a ser imitado - imprensa ou cursiva. E neste sentido passa a

se dedicar à construção das formas de diferenciação intrafigural e interfigural, considerando

tanto o eixo quantitativo quanto o eixo qualitativo, o que corresponde ao segundo momento da

hipótese pré-silábica.

A diferenciação intrafigural consiste “no estabelecimento das propriedades que um

texto escrito deve possuir para poder ser interpretável (ou seja, para que seja possível atribuir-

lhe uma significação” (Ferreiro, 1995, p.20)).

Neste caso, o eixo quantitativo diz respeito à quantidade mínima de grafias de uma

escrita, chamada de hipótese da quantidade mínima, geralmente expressa por três grafias, ou

seja, uma escrita com menos de três grafias não pode ser interpretada. Quanto ao eixo

qualitativo, corresponde a variação interna das grafias de um escrito, o que significa dizer que

uma série de grafias iguais numa escrita também não pode ser interpretada.

Já a diferenciação interfigural consiste na “diferenciação entre uma escrita e a seguinte,

precisamente para garantir a diferença de interpretação que será atribuída” (Ferreiro, 1995,

p.24).

No eixo quantitativo isso ocorre com a variação da quantidade de letras de uma escrita

para outra, e no eixo qualitativo, com a variação do repertório de letras de uma escrita para a

outra ou com a variação da posição das mesmas letras, sem que a quantidade dessas letras seja

alterada.

40

Nesse segundo momento da hipótese pré-silábica, a criança já compreendeu que

palavras diferentes são escritas de formas diferentes.

A escrita pré-silábica pode ser representada por desenhos, rabiscos, série de elementos

como bolinhas ou barras, pseudoletras, números e/ou letras. O desenho também pode aparecer

como um complemento do escrito.

Pode-se, ainda, na hipótese pré-silábica encontrar escritas sem controle da quantidade

de grafias (às vezes a criança escreve até o fim da folha de papel), escrita do tipo unigráfica,

ou seja, uma só grafia para representar o que quer escrever, ou ainda, escrita relacionada ao

tamanho do objeto, e no caso do nome de pessoas, além do tamanho a criança pode também

relacionar a idade, para diferenciar a escrita.

Nessa hipótese, a criança realiza a leitura de modo global e o significado de sua escrita

é determinado pela sua intenção.

A hipótese seguinte construída pelas crianças é a hipótese silábica, caracterizada pela

correspondência termo a termo entre partes do falado e partes do escrito: para cada sílaba

falada corresponde a utilização de um sinal gráfico, o que representa uma construção no eixo

quantitativo.

Refiro-me a sinal gráfico ou grafia porque embora encontremos na literatura que

aborda os processos de construção da escrita pela criança, que nesta hipótese cada sílaba oral é

representada por uma letra, sabe-se que não necessariamente a correspondência entre partes do

falado e partes do escrito é representada por letras. Não é tão comum, mas há casos em que as

crianças representam essa correspondência com números, números e letras, pseudoletras e até

mesmo, com formas circulares, as bolinhas ou com linhas verticais, as barras. Portanto, não é a

41

utilização de letras que garante a evolução da escrita, mas a elaboração da idéia de que a

escrita representa partes sonoras da fala.

Na hipótese silábica, a correspondência com o eixo qualitativo se dá quando a criança

estabelece a relação fonográfica utilizando as letras com valor sonoro, que pode ser atribuído

às vogais ou às consoantes ou ainda à combinação de vogais e consoantes numa mesma

escrita.

Ressalto que o fato de a criança saber o recorte silábico no oral - marcar as sílabas de

uma palavra as dizendo uma a uma, às vezes acompanhadas de palmas - não garante que o

faça no escrito.

Ressalto ainda que, na hipótese silábica ao escrever orações a correspondência pode

deixar de ser da sílaba oral para uma grafia, e passar a ser da palavra para uma grafia.

Mais fortemente do que na hipótese pré-silábica, no que diz respeito à variedade de

grafias, a criança que possui uma hipótese silábica de escrita não aceita a repetição de grafias

numa mesma série, pois não pode ser interpretada.

Como já mencionado, a hipótese silábica pode ser representada por grafias que não

letras e por letras.

Ao ler seus escritos, a criança o faz estabelecendo uma correspondência termo a termo

entre o oral e o escrito, portanto a leitura não é mais global, salvo em alguns momentos na

escrita de palavras monossílabas.

Essa hipótese é considerada um grande salto em relação à hipótese anterior, pois é a

descoberta da fonetização da escrita.

A mudança qualitativa consiste em que: a) se supera a etapa de uma correspondência global entre a forma escrita e a expressão oral atribuída, para

42

passar a uma correspondência entre partes do texto (cada letra) e partes da expressão oral (recorte silábico do nome); mas, além disso, b) pela primeira vez a criança trabalha claramente com a hipótese de que a escrita representa partes sonoras da fala (Ferreiro e Teberosky, 2000, p. 209). No entanto, apesar de a criança já ter compreendido que a escrita representa sons da

fala, ainda tem muitos problemas a resolver, em especial quando tenta escrever palavras

dissílabas e monossílabas que atendendo ao princípio da hipótese silábica deveriam ser

escritas com dois e um sinal gráfico respectivamente, mas isso entra em confronto com a

hipótese da quantidade mínima de caracteres para que algo possa ser lido, que é geralmente de

três.

Na tentativa de resolver esse problema as crianças acrescentam outra grafia, que surge

como um “coringa”, para justificar o que estava faltando, e assim satisfazer a hipótese da

quantidade mínima.

Apesar de não ser verdadeira a idéia de que no sistema de escrita alfabético cada grafia

representa uma sílaba e que a sílaba é a menor unidade da língua, a teoria da psicogênese da

língua escrita trouxe a conhecer que, a hipótese silábica é uma hipótese lógica, coerente com a

descoberta das crianças de que há uma relação entre fala e escrita, uma vez que o fonema

enquanto menor unidade da língua, não pode ser emitido isoladamente.

Essa descoberta de que a escrita representa sons da fala, para se mais precisa, a escrita

representa a língua, faz com que a hipótese silábica, embora falsa, seja considerada por

Ferreiro e Teberosky como extremamente necessária, pois para alguém aprender a ler e

escrever é preciso compreender o que a escrita representa.

43

Após a fonetização da escrita, as crianças passam a acrescentar mais letras ao escrito,

pela necessidade de considerar unidades menores que a sílaba. É o que essas pesquisadoras

chamam de hipótese silábico-alfabética.

Nessa hipótese as letras ora representam sílabas, ora representam fonemas, quer dizer,

as crianças ainda não abandonaram por completo a hipótese anterior, contudo já

compreenderam que geralmente as sílabas são representadas por mais de uma letra, o que as

obriga a colocar mais letras ao escrever.

E, a partir daí, descobre novos problemas: pelo lado quantitativo, que se por um lado não basta uma letra por sílaba, também não se pode estabelecer nenhuma regularidade duplicando a quantidade de letras por sílaba (já que há sílabas que se escrevem com uma, duas, três ou mais letras); pelo lado qualitativo, enfrentará os problemas ortográficos (a identidade de som não garante identidade de letras, nem a identidade de letras a de sons)” (Ferreiro, 1995, p. 27).

As escritas silábica e silábico-alfabética são bastante comuns e durante muito tempo se

acreditou que as escritas desta natureza representavam algum tipo de dificuldade ou

deficiência por parte das crianças, por não conseguirem escrever com todas as letras as sílabas

ensinadas.

A última hipótese levantada por Ferreiro e Teberosky em suas pesquisas é a hipótese

alfabética, caracterizada pela compreensão do sistema alfabético de escrita.

As crianças que possuem esta hipótese já não mais apresentam problemas com o eixo

quantitativo, já que escrevem utilizando quantas letras forem necessárias para representar as

sílabas, mas continuam enfrentando os problemas de natureza qualitativa, pois escrevem do

jeito que falam, explicando melhor, transcrevem foneticamente a fala.

Se já compreenderam o nosso sistema de escrita, que está relacionado aos sons da fala,

por sua vez as crianças precisam ainda compreender o outro sistema que rege a língua

44

portuguesa, o sistema ortográfico, relacionado ao significado e ao sentido. Em outras palavras,

resta-lhes agora enfrentar e superar as dificuldades ortográficas.

Quanto às hipóteses de leitura, as pesquisadoras solicitavam às crianças que

interpretassem escritos produzidos por outros: escritas com imagem e escritas sem imagem.

As conclusões às quais chegaram a respeito das idéias infantis sobre a leitura serão

aqui apresentadas em dois blocos de acordo com as situações propostas às crianças: primeiro,

as interpretações que as crianças fazem de uma escrita (palavra ou oração) relacionada a uma

imagem, e segundo, as interpretações que fazem de uma oração como totalidade e as partes

que a compõem.

Em uma fase bem inicial da construção da escrita, ao solicitar que a criança leia uma

escrita que esteja relacionada a uma imagem, ela não compreende que as letras são objetos

substitutos. Lêem as letras aleatoriamente, não fazem relação com o objeto correspondente.

Quando já compreende que as letras têm a função de representar o nome dos objetos,

que elas são objetos substitutos, a criança interpreta qualquer escrita que esteja próxima de

uma imagem como sendo o nome da imagem. É o que Ferreiro denominou de “hipótese do

nome”.

Nesta hipótese, o que está escrito depende do contexto e, neste sentido, as crianças

ainda não compreendem que a escrita tem uma estabilidade: uma mesma escrita pode ser

interpretada de várias maneiras a depender da imagem que esteja mais próxima.

Posteriormente as crianças superam essa idéia e começam a considerar propriedades

quantitativas. Como bem explica Ferreiro, “utilizam um esquema lógico de natureza geral: a

correspondência biunívoca” (1996, p.86). Portanto, ao interpretar uma oração, pensam que há

45

tantos nomes quanto forem os objetos representados na imagem ou “buscam uma

correspondência um a um entre palavras (ou fragmentos silábicos das palavras) e segmentos

escritos (1996, p. 86).

Mas não só as propriedades quantitativas são consideradas. Por fim, ao tentar

interpretar uma escrita associada a uma imagem, as crianças também consideram as

propriedades qualitativas, utilizando o conhecimento que têm do valor sonoro das letras para

interpretar o que está escrito.

Vamos à segunda situação que diz respeito a interpretação que as crianças fazem de

uma oração lida em voz alta para elas.

Inicialmente, mesmo tendo ouvido a leitura da oração, as crianças não compreendem

que se escreve tudo o que se fala e ao tentar interpretar o que está escrito, pensam que só os

substantivos podem ser lidos.

Numa etapa posterior, além dos substantivos os verbos também são considerados, e

para resolver o problema de interpretação de segmentos gráficos menores como as preposições

e os artigos, as crianças costumam ignorá-los ou agregá-los às palavras que para elas podem

ser interpretadas. Embora percebam que estes segmentos menores estão escritos, as crianças

não podem interpretá-los porque, de acordo com a hipótese da quantidade mínima, escritas

com menos de três letras não significam nada e, portanto, não podem ser lidas, não são

interpretáveis.

Por fim, compreendendo que se escreve tudo o que se fala seguindo a ordem em que se

fala, as crianças também interpretam as preposições e os artigos.

46

Como se vê, as hipóteses que as crianças constroem sobre o nosso sistema de escrita

são diferentes quando produzem um texto escrito e quando interpretam um texto escrito por

outros. É nesse processo, segundo as pesquisadoras, pensando e tentando interpretar suas

escritas e as escritas de outros, que as crianças vão avançando em suas hipóteses até

aprenderem a ler e escrever convencionalmente.

Esse conhecimento acerca das hipóteses de escrita e de leitura é um conhecimento

fundamental para os profissionais de educação, em especial, para os professores de educação

infantil e das séries inicias do ensino fundamental, por possibilitar compreender o processo de

construção da escrita, pelo qual passam as crianças. Ressalto, no entanto, que o mais

importante no fato de conhecer essas hipóteses como bem declara Ferreiro (1997), não é

discutir sobre as etiquetas nem discutir se as etapas são três, quatro ou seis; o mais importante

creio, é entender esse desenvolvimento como um processo e não como uma série de etapas

que se seguiram umas às outras quase automaticamente” (p.86-87).

Ressalto também que não existe um modelo pronto de alfabetização a partir da teoria

da psicogênese da língua escrita. Esta não traz uma solução pronta, um método, um teste:

possibilita, contudo, reflexão sobre a prática docente, e a partir daí o professor pode refletir

sobre a própria prática e descobrir novos caminhos na sua ação docente.

47

A teoria e a sala de aula das professoras participantes

No meu contato com a sala de aula das professoras participantes do estudo, tive acesso

a coletânea de atividades escritas realizadas pelas crianças, além do registro da evolução de

suas escritas a partir da atividade diagnóstico realizada pelas professoras durante o ano.

Seguindo os princípios da atividade com fins diagnósticos, a qual consiste em solicitar

às crianças que escrevam uma lista de palavras de um mesmo campo semântico, cuja escrita

não conhecem de memória, as professoras realizaram essa atividade com o objetivo de saber o

que as crianças pensavam sobre a escrita no momento em que foram solicitadas a escrever.

A propósito dessa atividade, para que se saiba o que as crianças pensam sobre a escrita,

as palavras da lista não devem conter as mesmas vogais, em sílabas seguidas, e a primeira

palavra deve ser uma polissílaba, seguida de uma trissílaba, depois de uma dissílaba,

concluindo com uma monossílaba. Após a escrita de cada palavra, a criança deve fazer a

leitura, apontando com o dedo.

Observando a atividade diagnóstico da sala de Juraci, me deparei com uma escrita de

Francimar, que se diferenciava das demais por ser a única escrita representada por desenho.

Conforme me explicou a professora, numa atividade sobre as festas juninas ela

perguntou às crianças o que mais gostavam nos arraiais, e dentre as coisas ditas pelas crianças,

ela selecionou as palavras brincadeiras, fogueira, milho e pão, para realizar a atividade

diagnóstica. Palavras que Francimar assim escreveu:

48

No momento em que fez essa escrita, Francimar acreditava que desenhar é escrever,

Segundo Juraci, Francimar pensou muito antes de escrever a primeira palavra, e dizendo não

saber desenhar brincadeirtas, decidiu escrever a primeira letra de seu nome, mas não ficou

convencido. A partir da segunda palavra ditada, ele não mais hesitou e passou a representá-las

por desenhos.

Como pude observar nas demais atividades com fins diagnóstico, realizadas pela

professora, posteriormente Francimar superou a crença de que desenho é escrita.

A tentativa de superação da escrita enquanto desenho pode ser ilustrada no relato da

professora Conceição sobre a escrita de uma de suas alunas.

Hoje uma criança, a Ana, fez uma frase e disse: professora lê o que está escrito para

mim. Eu disse: prefiro que você leia e ela começou: professora eu te amo muito, não quero

que você saia daqui. Um beijo e muitos abraços. Agora tinha escrito assim: A, L, O, tinha

também um I e um Z e mais umas letras que eu não me lembro, e ela ainda fez desenho. No te

amo fez também um coração e para beijos ela passou batom e beijou.

49

Na escrita de Ana o desenho apareceu como um complemento do escrito, o que

significa dizer que ela já começa a estabelecer a diferenciação entre desenho e escrita, entre as

marcas gráficas figurativas e as não figurativas.

A distinção entre “desenhar” e “escrever” é de fundamental importância (quaisquer que

sejam os vocábulos com que designam especificamente essas ações). Ao desenhar se está no

domínio do icônico; as formas dos grafismos importam porque reproduzem a forma dos

objetos. Ao escrever se está fora do icônico: as formas dos grafismos não reproduzem a forma

dos objetos, nem sua ordenação espacial reproduz o contorno dos mesmos (Ferreiro, 1995, p.

19).

Esse é um conhecimento que Tadeu, aluno da sala de Marília, já tinha no início do ano,

ao escrever na atividade diagnóstico as palavras tapioca, biscoito, doce e pão, na ordem em

que foram ditadas pela professora:

N T U R D E S C

A L D U V S

L H T D E R U

U E T G S T

Assim como Tadeu, Luísa da sala de Eridan já faz a diferenciação entre desenho e

escrita, e a partir desse momento passa a se dedicar na construção das formas de diferenciação

intrafigural e interfigural, considerando tanto o eixo quantitativo quanto o eixo qualitativo.

Numa atividade em que Eridan pediu para as crianças escreverem o nome dos

brinquedos de que mais gostavam, Luísa realizou sua escrita, representando respectivamente,

boneca, bicicleta, bola e jogo, conforme abaixo:

50

L E C R I

R E C L I R E

J S I C T A

S A M S

A escrita de Luísa deixa transparecer a sua preocupação em garantir a diferenciação

intrafigural. No eixo quantitativo, sua hipótese da quantidade mínima é de quatro, expressa na

escrita da palavra jogo.

Quanto ao eixo qualitativo, Luísa, para garantir a diferenciação intrafigural, procura

não repetir letras numa mesma escrita e quando isso acontece, não aparece uma após a outra,

como acontece com a letra E na escrita de bicicleta e da letra S na escrita de jogo.

Mas não é só com a diferenciação intrafigural que Luísa se preocupa, sua escrita

também demonstra uma preocupação com o a diferenciação interfigural, também descrita na

teoria da psicogênese da língua escrita.

No eixo quantitativo variar a quantidade de letras das palavras. Escreve boneca com

cinco letras, jogo com quatro, bola com seis e bicicleta com sete.

No eixo qualitativo, ela varia o repertório de letras de uma escrita para a outra. Na

escrita de boneca e bicicleta, embora usando as mesmas letras, varia a posição em que estas

ocupam.

Essa diferenciação que Luísa faz ao escrever demonstra a sua compreensão que

palavras diferentes são escritas de formas diferentes, e esse também é um conhecimento

fundamental na construção da escrita.

51

Já na sala de Adízia, numa atividade proposta por ela em que as crianças deveriam

escrever o nome das sementes que tinham plantado no dia anterior, encontrei escritas mais

avançadas do que as escritas de Francimar, Ana, Tadeu e Luísa.

Eram escritas que apresentavam a hipótese que Ferreiro e Teberosky chamam de

hipótese silábica.

Dentre as escritas com a hipótese silábica na sala de Adízia, destaco a escrita de Larissa

para melancia, a de Pedro para pimenta, e a de Raul para quiabo, por apresentarem também

uma correspondência com o eixo qualitativo, explícito ao representarem as palavras

estabelecendo a relação fonográfica utilizando as letras com valor sonoro convencional.

E A I A

me lan ci a

P M T

pi men ta

Q A U

qui a bo

Larissa atribuiu o valor sonoro às vogais, Pedro às consoantes e Raul, atribuiu o valor

sonoro combinando vogais e consoantes numa mesma escrita.

Estas crianças encontraram uma maneira muito satisfatória de resolver o problema da relação entre as partes e o todo: para saber como escrever um nome começa-se por contar as sílabas e logo se põem tantas letras diferentes quantas sílabas houver; cada letra representa uma sílaba, as letras ordenadas representam as sílabas ordenadas das palavras ( Ferreiro, 1996, p.20).

52

Ainda com relação à hipótese silábica, na carta ao Papai Noel escrita por Márcio, aluno

de Marília, encontrei uma representação muito comum dessa hipótese, quando a criança

escreve orações.

Para dizer Querido Papai Noel eu quero ganhar um carro de controle remoto, Márcio

escreveu:

Q H D P N Q H 1 C B R

Na palavra querido Márcio utilizou uma grafia para cada sílaba: Q para que, H para ri e

D para do, mas a partir de Papai o critério de escrita passou a ser de uma grafia para cada

palavra. P para Papai, N para Noel, Q para quero, H para ganhar, 1 para um, C para carro, B

para controle e R para remoto.

Na escrita da oração, Márcio, deixa de fazer a correspondência de uma letra para uma

sílaba oral e passa a fazer de uma letra para uma palavra, como é comum acontecer com

crianças que possuem hipótese silábica de escrita.

Não aceitando a repetição de letras numa mesma seqüência, Márcio escreveu B para

controle, já que, para ele, seria impossível interpretar C C R, tendo a letra C que representar ao

mesmo tempo, carro e controle.

Com relação à hipótese da quantidade mínima, a escrita de Paulo representa bem o que

as crianças pensam a esse respeito. Na escrita de feijão na atividade já mencionada, de escrita

dos nomes de sementes, ele assim escreveu:

F U R

A letra F corresponde a fei e a letra U a jão, mas, como descrito na teoria da

psicogênese da língua escrita, ele não aceita que duas letras sirvam para dizer algo e acrescenta

53

a lera R, mesmo esta não tendo nenhuma relação fonética com as sílabas da palavra escrita.

Surge para salvar-lhe do impasse.

Na sala de Adízia, observei uma situação em que a escrita de algumas crianças

demonstra mais uma hipótese nessa busca de compreender como a escrita é representada.

Ela solicitou que em dupla as crianças escrevessem o nome das frutas que deveriam

trazer para a feira de cultura, a fim de para que depois fosse feita uma lista única com o nome

de todas as frutas.

Uma dupla escreveu C A R B L A para carambola e G I A BA para goiaba.

Essa dupla tinha, no momento dessa atividade, uma hipótese silábico-alfabética de

escrita, ora utilizavam as letras para representar sílabas, ora para representar fonemas.

Quanto ao fato de escritas como essa, serem consideradas como incapacidade, falta de

atenção, ou serem relacionadas a alguma patologia, recorda Francisca: “a gente ensinava as

sílabas, mas as crianças não aprendiam, erravam sempre”, e lembrando de sua experiência,

completa: “eu achava que quando elas erravam era erro mesmo, porque esqueciam as letras.

Hoje sei que elas estão acrescentando letras e cada vez mais eu percebo que elas vão

acrescentando um pouquinho”.

Ainda com relação à atividade de escrita de nomes de frutas, na sala de Adízia,

transcrevo a seguir um trecho do meu registro que mostra duas duplas de crianças com

hipótese alfabética, tentando resolver um impasse de natureza ortográfica:

A questão mais polêmica que observei nas duplas de trabalho, aconteceu na escrita da

palavra açaí. Uma dupla não chegava a um acordo quanto à escrita dessa palavra. Inicialmente

54

achava que era com C, depois de descartada essa idéia, o impasse se deu porque uma das

crianças afirmava ser com S e a outra com SS.

- Não é com S não, é com dois.

E o seu parceiro na dupla, pronunciando bem devagar a palavra, insistia:

- É sim, com S, porque é SA de sapato e SA é só com um S.

A discussão entre os dois foi ficando acirrada e como não chegaram a um acordo,

pediram ajuda a dupla vizinha. Esta por sua vez tinha escrito a palavra com SS, justificando:

- Se for só um S fica que nem na palavra casa e não pode ser.

E finalmente, concordando com a explicação, escreveram ASSAI, sem desconfiarem

que a escrita correta é AÇAI.

O fato de Adízia propor a atividade em dupla possibilitou que os alunos trocassem

informações e refletissem sobre o sistema alfabético de escrita. E como afirma Weisz (2000):

Quando o professor proporciona situações de intercâmbio e colaboração na sala de aula, eles podem trocar informações entre si, discutir de maneira produtiva e solidária e aprender uns com os outros. Para poder explicar para o colega que seu jeito de pensar está incorreto, o aluno precisa formular com precisão e argumentar com clareza – e esta é uma situação muito rica para sistematizar seus próprios conhecimentos. Quando se contradiz e percebe isso, pode reorganizar as idéias, e dessa forma seu conhecimento avança (p. 72).

Nesse sentido, “a interação entre os alunos não é necessária só porque o intercâmbio é

condição para o convívio social na escola: ela é necessária porque informa a todos os

envolvidos e potencializa quase infinitamente a aprendizagem” (Weisz, 2000, p. 73).

Na atividade descrita anteriormente, a interação entre as crianças da dupla que discutia

se a escrita de açaí é com S ou com SS e depois com a dupla que escrevera a referida palavra

55

com SS, permitiu a troca de informações, e ao compartilhar suas respostas, as crianças

argumentaram e defenderam seus pontos de vista.

Assim como todas as crianças que possuem a hipótese alfabética, a última descrita por

Ferreiro e Teberosky, caracterizada pela compreensão do sistema alfabético de escrita, as

crianças que escreveram açaí com SS, já não mais possuíam problemas com o eixo

quantitativo, já que escreviam utilizando quantas letras eram necessárias para representar as

sílabas, mas continuavam enfrentando os problemas de natureza qualitativa: não conseguiam

identificar as letras adequadas para a sílaba ça, porque já sabiam que o mesmo som pode ser

representado de maneira diferente.

Discutir se a palavra açaí se escreve com C, S ou SS foi um problema que as crianças

tiveram que resolver colocando em jogo os seus conhecimentos, e, embora não tivessem

chegado, naquele momento, à escrita ortograficamente correta da palavra, já compreendiam o

que Ferreiro e Teberosky apontam como sendo as duas questões fundamentais para que

alguém aprenda a ler e escrever: o que a escrita representa e como representa.

No mês de dezembro, muitas crianças das turmas que observei já tinham compreendido

essas questões, e, especificamente nas turmas de pré III, cerca de 50% das crianças estavam

com a hipótese alfabética de escrita.

Além de escritas alfabéticas, encontrei nas turmas de Pré III algumas escritas com

hipótese silábico-alfabética, aproximadamente 30%, e, em menor proporção, escritas com

hipótese silábica: cerca de 20%, todas com valor sonoro convencional.

Nas turmas de Pré II, no mesmo mês, aproximadamente 45% das crianças estavam com

a hipótese silábica, sendo 20% deste total, com valor sonoro convencional, cerca de 35%

56

apresentavam escritas com hipótese silábico-alfabética, 15% com hipótese pré-silábica e 5%

com hipótese alfabética.

Já nas turmas de Pré I predominavam as escritas com hipótese silábica. Do total de

alunos de todas as turmas, cerca de 60% estavam com essa hipótese, sendo 15% com valor

sonoro e 40% aproximadamente com hipótese pré-silábica.

A descoberta das hipóteses de escrita descritas nesse trabalho, a partir do resultado das

pesquisas de Ferreiro e Teberosky, fez com que muitos professores passassem a utilizar a

atividade com fins diagnóstico para compreender a hipótese de escrita que a criança possui no

momento de sua realização, e, a partir daí, planejar atividades para que avancem em suas

hipóteses sobre o sistema de escrita alfabético.

É exatamente com esse fim que a professora Iolanda faz a atividade diagnóstico com

seus alunos. Como ela mesma diz, “a partir da identificação das hipóteses eu posso propor

atividades mais desafiadoras. Eu creio que eu não propunha essas atividades por não saber

exatamente como as crianças estavam, como elas pensavam”.

Nas palavras dessa professora, “saber identificar com precisão as hipóteses de escrita

que as crianças estão passando é o conhecimento mais importante da psicogênese da língua

escrita porque muito ajuda no trabalho em sala de aula”.

Não só Iolanda, mas todas as professoras participantes demonstraram entender que o

mais importante no fato de conhecer essas hipóteses, como bem declara Ferreiro (1992),

não é discutir sobre as etiquetas nem discutir se as etapas são três, quatro ou seis; o mais importante [...] é entender esse desenvolvimento como um processo e não como uma série de etapas que se seguiram umas às outras quase automaticamente (p.86).

57

CAPÍTULO IV

OLHANDO PARA TRÁS, SEGUINDO EM FRENTE...

“É importante apreciar que a busca do conhecimento é na verdade um caminho dialético que nos conduz ao nosso céu interior, sem dúvida, mas isto, como aponta Nietzsche, passa sempre pela voluptuosidade do nosso próprio inferno, pois são muitos os“riscos”, os “terrores”, as “meias-noites da alma”, os “golpes frustrados”, mas que sobretudo re-afirmam uma afeição ontológica pelo outro, pelo ser, pela vida. Conhecer é um direito autêntico do sujeito e implica em uma renúncia à completude – o conhecimento é, por isso, trágico e belo”.

Keil

As Contribuições da Teoria e o Processo de Mudanças na Ação Docente das Professoras

Nesse capítulo tratarei de aspectos que emergiram da fala das professoras, no momento

das entrevistas, mas também corroborados nas observações das salas de aula.

Ao analisar as respostas das professoras, observei questões que se repetiam em suas

falas, e quando não em todas, em sua maioria. Essa freqüência com que determinadas questões

apareceram permitiu que eu organizasse os dados obtidos nas entrevistas, agrupando-os pelas

relações entre si, nas três categorias e nas sete subcategorias anteriormente apresentadas no

capítulo referente a metodologia.

1- As hipóteses de escrita

58

Todas as professoras afirmaram que, a partir do conhecimento sobre a teoria da

psicogênese da língua escrita, passaram a conhecer as hipóteses de escrita e de leitura. Essa

afirmativa é representada aqui pelos seguintes depoimentos:

No magistério eu tinha lido rapidamente, na correria do dia, o livro da Emília Ferreiro: Reflexões Sobre Alfabetização, mas li tão por cima que eu nem dei muita atenção ao que tinha lido. Então, depois que eu fiz um curso de capacitação na SEMEC eu peguei novamente o livrinho e dei nova lida nele. Aí eu aprendi as hipóteses de escrita, só depois de muito tempo eu conheci as de leitura. (Adízia)

Eu aprendi que as crianças possuem hipóteses tanto de leitura, quanto de escrita, e saber disso me ajudou a entender porque não aprendiam as sílabas que eu ensinava. Quer dizer, aprendiam as sílabas, mas na hora de escrever as palavras, era como se tivessem esquecido. (Juraci)

Eu não conhecia as hipóteses de escrita e de leitura. Foi tudo novo pra mim, mas foi isso que me fez pensar diferente sobre o que eu fazia com meus alunos. (Francisca)

Para o grupo de professoras participantes, conhecer as hipóteses que as crianças

possuem no processo de construção da leitura e da escrita, parece ter sido o elemento que as

mobilizou para (re)pensar a sua prática, no entanto, para elas, apesar de citarem as hipóteses

de leitura e escrita, a teoria da psicogênese da língua escrita se resume ao conhecimento das

hipóteses de escrita

Nenhuma das professoras fez alusão às questões tratadas nas hipóteses de leitura,

apenas a citaram, diferentemente das questões tratadas nas hipóteses de escrita, que foram

postas em diferentes momentos durante as entrevistas, o que se justifica por ser exatamente as

hipóteses de escrita, o aspecto mais divulgado, das obras de Ferreiro e Teberosky.

Em virtude dessa maior divulgação e, conseqüentemente, do estudo sobre as hipóteses

de escrita, as hipóteses de leitura são consideradas pelas professoras como mais difíceis de

59

serem compreendidas, e justificam esse fato utilizando o mesmo argumento de Juraci a esse

respeito: as hipóteses de escrita são mais fáceis de identificar. As de leitura são mais difíceis,

porque não têm nome pra gente ficar relacionando.

Na verdade, como a escola tem uma excessiva preocupação e dedicação com a escrita,

e esta sempre esteve em evidência, ficando a leitura em segundo plano, há de se entender

porque o conhecimento sobre as hipóteses de escrita ganhou força, em detrimento do

conhecimento sobre as hipóteses de leitura, sendo, este último, pouco estudado, e quando

estudado, pouco compreendido.

As hipóteses de escrita surgem, então, como a espinha dorsal, o centro aglutinador das

demais questões levantadas pelas professoras, constituindo-se, na principal categoria através

da qual as outras se organizam.

1.1- Atividade diagnóstico

Ao comentarem o conhecimento sobre as hipóteses de escrita, a atividade diagnóstico

foi citada várias vezes, pelas professoras, e em diferentes momentos. Por esse motivo destaca-

se como uma subcategoria da categoria hipóteses de escrita.

Faz-se necessário explicar que essa atividade não é uma atividade de sala de aula para

que as crianças aprendam a língua escrita, como as atividades que serão citadas mais adiante.

Trata-se de uma atividade para saber o que as crianças pensam sobre a escrita, muito embora

as crianças possam avançar em suas hipóteses, durante a referida atividade:

A atividade diagnóstico foi uma das melhores coisas que eu aprendi com a teoria da Emília Ferreiro. Eu levo a sério o que eu aprendi e estou colocando na

60

minha prática, porque diante desse diagnóstico eu posso ajudar o meu aluno a avançar. Quando eu não fazia diagnóstico, na maioria das vezes, chegava outubro e a minha criança estava do mesmo jeito que começou o ano, como eu achava que ela estava:“travada”, e aí eu não sabia onde era o problema. Mas por quê? Ora, se eu não fazia diferenciação nenhuma, se eu achava que todos tinham que aprender na mesma hora, do mesmo jeito, eu não sabia quem precisava avançar naquele ponto ou no outro. Pra falar a verdade, quando eu sabia quem precisava, eu não sabia em que precisava avançar e como era que eu ia fazer. (Marília)

Nessa fala de Marília chamo a atenção para a palavra “travada”. Ao relatar que assim

se referia às crianças, no início do ano, essa professora tinha, mesmo que inconscientemente, a

idéia de que as crianças chegavam a escola, sem conhecer nada ou muito pouco, sobre a

escrita, e, sendo assim, se chegavam em outubro sem aprender, o problema estava nelas,

embora Marília não soubesse onde exatamente.

Essa idéia é reforçada quando ela diz que não sabia como deveria proceder para que as

crianças avançassem, pois, em outras palavras, já tinha feito tudo o que deveria ser feito, ou

seja, já tinha seguido o método, e nem assim algumas crianças aprendiam.

Pensar desta forma, que as crianças ingressam na escola sem conhecimentos sobre a

língua escrita e atribuir a sua aprendizagem exclusivamente ao processo de instrução formal,

cabendo as crianças a responsabilidade de seu sucesso ou insucesso, foi algo desmistificado,

com a divulgação da teoria da psicogênese da língua escrita, na medida em que essa teoria

mostra que as crianças constroem hipóteses sobre o sistema de escrita alfabético. Mostra

também, que cabe ao professor, planejar situações didáticas para que as crianças avancem,

considerando o que já sabem sobre a língua escrita.

61

Ainda sobre a atividade diagnóstico, destaco respectivamente, os relatos de Francisca,

Eridan e Adízia, quanto ao fato de descobrirem a partir da atividade diagnóstico, o que as

crianças pensam sobre a língua escrita:

Com a atividade diagnóstico eu fico sabendo o que meus alunos já sabem, e antes de conhecer as hipóteses, a atividade diagnóstico, eu só me preocupava com o que eles ainda não tinham aprendido e com o que eu tinha que ensinar.

A atividade diagnóstico me ajudou muito a entender melhor meus alunos, porque eu fico sabendo o que eles sabem. Antes eu passava por cima disso aí. Eu só queria saber do que eles tinham que aprender, para dar minhas aulas.

Eu achava que as crianças não sabiam nada e eu sabia tudo. E se elas não sabiam ler e escrever, eu que sabia estava lá prontinha para ensinar, mas com a atividade diagnóstico eu vejo que elas sabem muita coisa antes de saber e ler e escrever, e a partir daí eu posso ajudá-las a saber mais.

Para essas professoras, o ensino era pautado na transmissão de conhecimentos, de

alguém que sabe para quem não sabe e, a teoria da psicogênese da língua escrita revelou para

elas, que as crianças possuem conhecimentos sobre o sistema de escrita alfabético, mesmo

antes de estarem alfabetizadas.

A atividade diagnóstico, em particular, as ajudou a entender o que as crianças sabem

sobre a língua escrita, e isso fez diferença, porque antes, para as professoras, o conhecimento

que as crianças tinham era desconsiderado, desvalorizado, o que importava era o que elas

ainda não sabiam.

Essa questão levantada por Francisca, Eridan e Adízia é um aspecto importante no

trabalho que vêm realizando: a partir da atividade diagnóstico, compreendem as hipóteses de

escrita que as crianças possuem no momento da realização dessa atividade, e concentram a

atenção no que as crianças já sabem sobre a escrita, e não, nos aspectos que ainda não sabem.

62

Sem dúvida, esse é um conhecimento importante, pois saber o que as crianças sabem

sobre a escrita permite também saber o que elas ainda não sabem e, em conseqüência, auxilia

o professor a organizar situações didáticas, a partir do que as crianças já conhecem sobre esse

objeto de conhecimento.

Ao contrário, saber o que as crianças não sabem, não significa saber tudo o que elas

sabem. E partir do que elas ainda não compreendem sobre o sistema de escrita alfabético para

propor atividades é desconsiderar o conhecimento que têm. Em conseqüência, isso não as

ajuda a avançar, pois quando se trata da aprendizagem da leitura e da escrita, os

conhecimentos prévios que as crianças possuem são fundamentais para a apropriação de novos

conhecimentos.

1.2- O erro

Além da importância da atividade diagnóstico para saber o que as crianças sabem sobre

a escrita, no início do ano, as professoras falaram da utilização dessa atividade, no processo de

avaliação da aprendizagem das crianças, durante o ano letivo:

Ao se referirem a essa questão, o erro aparece na fala das professoras, e por também

estar presente em outros momentos, se apresenta como outra subcategoria.

Eu tenho utilizado demais os conhecimentos que eu aprendi com o trabalho da Emília Ferreiro, principalmente a atividade para fazer o diagnóstico do que os alunos já sabem, para verificar as hipóteses de cada um, para verificar o que eles já aprenderam durante todo o ano.Antes eu avaliava com tarefa e, não verificava o que eles sabiam, não considerava as hipóteses, eu queria saber o que tava certo e o que tava errado. (Juraci)

63

No início do ano todos os meus alunos estavam com escrita pré-silábica. Todas sem nenhuma exceção. A diferença era entre os conhecimentos que tinham nessa hipótese. Mais ou menos três meses depois fiz novo diagnóstico. Já tinha alunos que estavam silábicos, outros silábico-alfabéticos e os que ainda estavam com hipótese pré-silábica tinham avançado muito na questão da variedade de caracteres. Então quer dizer avançou, avançou. Antes se eu chegasse no final do ano e eu tivesse crianças com escrita pré-silábica eu ia achar que elas não tinham avançado em nada, que suas escritas estavam erradas.(Adízia)

Com a realização da atividade diagnóstico, a avaliação, para essas professoras, passou

a ter um caráter de processo, não sendo mais realizadas atividades com questões que deveriam

ser respondidas para “medir” o que as crianças sabiam sobre a língua escrita. Atividades essas,

avaliadas a partir dos acertos e dos “erros” das crianças.

Quanto a essa questão, Ferreiro (1995) alerta aos professores que, “interpretar em

termos de certo e errado (em relação ao modelo adulto) os esforços iniciais para compreender,

é negar-se a ver os processos e intenções que possibilitam a avaliação dos resultados” (p.62).

A propósito, avaliar considerando como erro a produção escrita das crianças foi um

aspecto também lembrado por Marília:

Agora eu já sei avaliar um aluno, já sei a hipótese em que ele se encontra e com isso eu entendo porque eles escrevem faltando letras ou com muitas letras. Eu só entendi isso depois que estudei essa teoria. Antes eu pensava que escreviam tudo errado.

Assim como Marília, outras professoras disseram que, anteriormente a esse

conhecimento, consideravam como erro as escritas das crianças, quando não eram coerentes

com o sistema de escrita alfabético.

Eu sabia que as crianças construíam conhecimentos, mas eu não conhecia o como. Era como se tivesse faltando alguma peça de um quebra-cabeça, faltava saber como isso acontecia. Com a pesquisa da Emília Ferreiro eu aprendi o que faltava, aprendi que as crianças têm hipóteses de escrita e leitura, e aprendi a identificar com mais clareza essas hipóteses, que antes eu via como erro. (Iolanda)

64

Conhecer as hipóteses que as crianças têm de leitura e de escrita foi muito importante, para mim, porque eu nem desconfiava que isso existia, mas além de conhecer sobre as hipóteses, comecei a entender que os erros não eram erros, que faziam parte dessas hipóteses. (Conceição).

Essa questão das hipóteses de escrita foi uma coisa que contribuiu muito para a minha prática, porque antes, se eu fazia um ditado com um menino e lá ele escrevia a palavrinha do jeito dele, eu nem considerava. Eu simplesmente dizia que estava errado, estava errado e pronto. Eu não pedia sequer para ele ler o que tinha escrito. Eu não sabia se ele sabia ler o que ele tinha escrito; eu não sabia o que ele pensava sobre o que ele escreveu. (Adízia)

A fala das professoras é reveladora da preocupação que tinham com o erro, como se o

erro fosse algo proibido, não fosse inerente ao processo de construção do conhecimento,

portanto da aprendizagem.

Foi possível perceber que, se de um lado há um certo encantamento por parte das

professoras, diante do conhecimento trazido pela teoria da psicogênese da língua escrita, o

qual lhes ajudaram a não mais considerar como erro, as escritas das crianças, quando não estão

dentro do sistema de escrita alfabético, por outro, carregam um sentimento de culpa por terem

por algum tempo pensado dessa maneira, como confessa Francisca: Eu agora estou

superanimada apesar de ter horas que eu digo: Meu Deus! Quanta coisa errada que eu fiz. Eu

achava que eles estavam errados e quem estava errada era eu.

Essa tomada de consciência, caracterizada pela fala dessa professora, representa o que

também pensam as demais a respeito de considerarem como erro as escritas infantis, antes, e

agora considerarem como erro a postura que tinham por assim procederem.

Não há porque se sentirem culpadas. Se é verdade que para as crianças, o erro é

importante no processo de aprendizagem, por que não também para elas?

65

1.3- Agrupamentos

O conhecimento sobre as hipóteses de escrita também traz à baila uma outra questão de

relevância, para as professoras: a organização das crianças em agrupamentos para a realização

das atividades. Portanto, agrupamentos é mais uma subcategoria a ser apresentada.

O trabalho da Emília Ferreiro me ajudou muito, porque antes eu separava os meninos assim: esses não sabem de nada, separa pra cá; os quem sabem mais, pra lá. Como eles iam avançar se justamente ficavam juntos.Tinha os sabidos, os médios e os fracos. Depois fiquei sabendo das hipóteses. Meu Deus quando eu li isso, eu ficava só pensando no que eu fazia. Na época eu achava que não dava certo agrupar porque eu tive a experiência de uns chamarem os outros de burro. Eu dizia: isso lá vai dá certo nada, mas eu fui tentando, não desisti. E eu vi que dá certo mesmo. (Eridan)

Trabalho com agrupamentos, considerando as hipóteses de escrita, sabendo hoje que um pode ajudar o outro. Antes não, eu separava para um não ajudar o outro. (Adízia)

Depois que eu conheci a hipótese de escrita eu formo os grupos a partir do que eles sabem e do que precisam saber. Antes eles ficavam isolados, aqueles que sabiam mais ficavam com o seu saber só para eles. Agora não, eles mesmos já se interessam em ajudar os colegas. Nesse espírito, a gente está orientando e eles mesmos vão lá e ajudam. (Conceição)

É possível perceber nesses relatos, a tradição escolar de acreditar que se aprende só

com o professor, sendo dado a ele o exclusivo direito de ensinar; ao aluno, cabe-lhe o dever de

guardar para si as suas aprendizagens, não devendo compartilhá-las com mais ninguém. Hoje

se sabe que se aprende na interação com o outro, com parceiros mais experientes. Parceiros

mais experientes aqui entendido não só o professor, mas também os colegas que, embora com

conflitos semelhantes, já avançaram em suas hipóteses.

É o que nos ensina Vygotsky (1998) quando conceitua zona de desenvolvimento

proximal:

66

Ela é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes. (p.112)

Partindo desse princípio, o da resolução de problemas com a ajuda de parceiros mais

experientes, a organização das crianças em agrupamentos, como diz Teberosky (1991), “ se

converte em uma atividade produtiva de aprendizado”. (p.82)

Daí a importância dos agrupamentos, colocada pelas professoras, confirmada também,

nos depoimentos abaixo:

As crianças precisam conversar e trocar idéias na hora das atividades, por isso eu venho fazendo agrupamentos, que é pra elas aprenderem uns com os outros, na troca de idéias. Eu noto que elas aprendem mesmo.(Francisca)

Conversando com ele eu digo que é necessário que algumas atividades sejam trabalhadas em grupos para que uns ajudem os outros, e sempre que eu faço assim, atividades em que eles ajudam os outros, nas duplas de trabalho, eu noto o quanto eles avançam. (Marília)

Quando eu faço agrupamentos eu vejo que eles avançam mesmo no conhecimento que têm. Eles ajudam mesmo os outros, mas não é dando a resposta, é mostrando o que pensam, e assim eles aprendem. (Eridan)

A atividade diagnóstico serve para a gente saber o que os alunos já sabem sobre a escrita, e com isso, organizar os agrupamentos, mas não é só isso. Com essa atividade, além de saber como eles estão, eu posso saber também os avanços que já tiveram, e então, propor atividades para que eles possam avançar muito mais.

Nessa fala de Iolanda, ela retoma o que algumas professoras disseram sobre a atividade

diagnóstico e destaca a importância da organização das crianças em agrupamentos para o

planejamento de atividades:

Nos depoimentos das professoras foi notória a importância que dão à atividade

diagnóstico, assim como, à organização das crianças em agrupamentos, os quais são

67

procedimentos advindos do conhecimento sobre as hipóteses de escrita, a partir da teoria da

psicogênese da língua escrita.

Ressalto considerando as implicações pedagógicas dessa teoria que, e a realização da

atividade com fins diagnóstico a partir do conhecimento sobre as hipóteses de escrita e a

organização das crianças em agrupamentos, não garantem, sozinhas, que aprendam a ler e

escrever. São as atividades planejadas, a partir desse conhecimento, que permitem a criança

em situações de interação com a língua escrita - mediadas por parceiros mais experientes, pôr

em jogo o que sabem sobre esse objeto de conhecimento, e assim, avançar no processo de

construção da escrita.

2- As atividades

Uma outra contribuição da teoria da psicogênese da língua escrita citada pelas

professoras, quanto ao estudo das hipóteses de escrita, é o conhecimento da hipótese da

quantidade mínima. Entender que uma letra ou uma seqüência de duas ou três letras não fazem

sentido para as crianças, quando estas ainda não sabem ler e escrever convencionalmente, foi o

que impulsionou as professoras a efetuaram mudanças em sua ação docente.

Saber, por exemplo, que as crianças constroem a hipótese da quantidade mínima é

reconhecer, para estas professoras, nas palavras de Marília, que:

Não tem serventia trabalhar um pedaço isoladamente. Eu trabalhava muito em cima de letras, de sílabas, sílabas soltas. Trabalhava isso e agora eu já vejo por um lado diferente. Eu vejo que quando a gente trabalha um texto junto com eles, sem precisar separar letras ou sílaba tal, sílaba não sei que lá, as crianças aprendem mais.

68

Nesse fragmento de sua fala, Marília se refere que trabalhava com letras e sílabas

soltas e, complementa essa informação, deixando transparecer que atualmente trabalha com

textos.

Assim como ela, as outras professoras citam, quase que automaticamente, ao lado das

atividades que não mais realizam, a forma como atualmente vêm trabalhando, mesmo antes

que eu as perguntasse sobre as atividades incorporadas ao trabalho, a partir da teoria da

psicogênese da língua escrita. Considerando que essas questões presentes no roteiro da

entrevista, apareceram com freqüência, atividades não mais realizadas e atividades

incorporadas surgem, então, como subcategorias.

2.1- Atividade não mais realizadas

O trabalho com as unidades menores, como as letras e as sílabas, como relata Marília,

aparece em outros depoimentos, principalmente quando se remetem às atividades que antes

realizavam, e não mais realizam:

Eu fazia muita atividade de silabar; trabalhava com sílabas sem que antes as crianças tivessem compreendido esse aspecto. E o que não fazia sentido era começar disso, começar da sílaba. Então o que eu pude fazer com as crianças a partir do conhecimento que eu fui tendo, foi entender de fato o que é um trabalho com textos, e isso me ajudou muito e tem ajudado bastante as crianças compreenderem muito mais rápido o sistema alfabético. (Iolanda)

Antes eu trabalhava com sílabas, com letras, mas fazia assim: pegava um texto, do texto tirava uma frase, da frase, uma palavra e depois as sílabas e as letras. (Juraci)

Eu ensinava as letras primeiro, para depois ensinar o resto. É claro, começas pelas vogais.(Marília)

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Eu achava que assim como os meus professores me alfabetizaram eu teria que alfabetizar meus alunos também. Pra mim eles não sabiam nada e eu tinha que ensinar tudo, e daquela forma, começando do A e parando no Z, naquela ordem também. Eu acho que a maior contribuição de conhecer essa teoria, foi saber que não significa nada para uma criança, a leitura e a escrita de letras soltas, fora de um texto, como eu trabalhava antes. Sem falar, que eu exigia a letra de imprensa. Imagine uma criança que está no seu início de alfabetização, que ele não sabe onde começa uma letra e termina um a letra e começa outra. Então fica mais fácil pra ele entender a bastão ou a script, onde é bem definido o começo e o fim. (Adízia)

Antes eu começava do alfabeto, depois eu ia pras sílabas, trabalhava as vogais, depois ia conhecer as consoantes e agora não. (Francisca)

Eu trabalhava com letras soltas, sílabas soltas e era assim mesmo que eu fazia: BA, BE BI, BO, BU. (Eridan).

A fala dessas professoras nos remete a forma como fomos alfabetizados e explicita, em

outras palavras, que o ensino da leitura e da escrita a partir de letras e sílabas, da forma como

trabalhavam, é fruto da referência de seus professores, do como eles ensinavam, do como elas

aprenderam e por isso mesmo assim reproduziam.

Depois da divulgação da teoria da psicogênese da língua escrita, é comum ouvirmos

e/ou fazermos julgamentos dessas práticas alfabetizadoras fundamentadas no ensino da leitura

e da escrita, a partir de letras ou sílabas. Todavia, ao meu ver, o mais importante não é o

julgamento dessas práticas, nem a crucificação das professoras que assim trabalham, mas

compreender o que há por trás delas, particularmente as concepções de ensino e

aprendizagem, através das quais as práticas se materializam.

Outras atividades também foram enumeradas pelas professoras, como não sendo mais

realizadas por elas.

Eu também não faço mais a cópia do jeito que eu fazia antes, só para copiar por copiar. Eu também pensava que isso ajudava a ter uma letra bonita. (Eridan)

70

Outra coisa que eu fazia, era tarefa de cobrir pontinhos. Eu nem sei porque pedia, hoje eu me pergunto. Precisa disso? (Francisca)

Eu fazia atividade de copiar embaixo. Cópia de letras, cópia de sílabas, de palavras, de tudo. Eu pedia pra eles (os alunos) fazerem o nome deles tantas e tantas vezes até embaixo da folha. Hoje eu sei que não tem lá resultados. A cópia pela cópia, ele não vai aprender nada. Fazia também atividade de ligar pontinho, de ligar o desenho à letra. A letra que eu usava antes tinha que ser cursiva e não abria não.(Conceição)

Percebe-se que, o trabalho com letras e sílabas isoladas preponderou em relação às

outras atividades não mais realizadas, sendo citadas, em menor proporção, a cópia, cobrir

pontinhos, ligar desenhos à letra inicial correspondente do nome e usar letra cursiva.

Não só as professoras participantes assim procediam. A maioria de nós já acreditou que

a cópia e a repetição eram os melhores procedimentos para ensinar a língua escrita, e que para

tal era necessário exercitar a coordenação motora, como se aprender a ler e escrever fossem

atividades motoras, e não uma atividade intelectual como o são. Aliás, nossas crenças estavam

fundamentadas numa concepção de ensino da língua escrita, enquanto transmissão de um

código, a ser ensinado do mais fácil para o mais difícil: das letras, sílabas e palavras para

chegar no texto, e numa concepção de aprendizagem com ênfase na repetição e na

memorização, e não na reflexão, como propõe os estudos da teoria da psicogênese da língua

escrita.

2.2- Atividades incorporadas

Quanto às atividades incorporadas pelas professoras a partir do conhecimento da teoria

da psicogênese da língua escrita, em consonância com o que disseram saber sobre as hipóteses

de escrita, elas mencionaram algumas atividades em que o foco é a reflexão sobre a língua.

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Com esse propósito, as atividades com o nome próprio foram bastante citadas nas falas

das professoras, representadas aqui, quanto a essa questão, pelas falas de Marília e Juraci.

Uma atividade que eu já fazia, mas só que deixava muita, muita coisa pra trás, era trabalhar o nome próprio. Eu fazia isso, mas na época era só no início do ano, para que as crianças identificassem o seu nome. Agora eu trabalho o ano inteirinho com o nome próprio, sem ser com a preocupação delas somente aprenderem a escrever o nome. Eu vejo muito aproveitamento nisso, em começar a ensinar a ler e escrever pelo nome próprio. Parece que eles desenvolvem mais o interesse pela leitura e pela escrita através do nome.

Antes eu já me preocupava em trabalhar com o nome deles. Sempre considerei o nome muito significativo, mas eu não fazia como eu faço agora. Antes, talvez, se eu trabalhasse desse jeito eu ia pensar que estava perdendo tempo e agora eu sei que eu ganho tempo quando proporciono que eles comparem o nome dele e dos colegas, que aprendam o nome das letras, porque eles precisam conhecer as letras. Antes eu tinha essa preocupação, mas eu não fazia desse jeito. Eu dou a ficha trocada para eles encontrarem o dono, mas sempre questionando; como você descobriu que é de fulano. Antes não, eu colocava as fichas no chão ou em cima da mesa para cada um pegar a sua. Eu não estava proporcionando aquela reflexão que eles ficam fazendo: ah, o meu nome começa com a mesma letra que o nome de fulano.

Para Teberosky (1991) o nome próprio “parece ser uma peça-chave para o início de

compreensão da forma de funcionamento do sistema de escrita” e propõe “uma possível

iniciação” do ensino da escrita e da leitura, a partir do nome próprio, pelas razões que

apresenta:

1. Tanto do ponto de vista lingüístico como gráfico, o nome próprio de cada criança é um modelo estável.

2. O nome próprio é um nome que se refere a um único objeto, com o que se elimina, para a criança, a ambigüidade na interpretação.

3. O nome próprio tem valor de verdade porque se refere a uma existência, a um saber compartilhado pelo emissor e pelo receptor.

4. Do ponto de vista da função, fica claro que marcar, identificar objetos ou indivíduos faz parte dos intercâmbios sociais da nossa cultura.

72

5. Do ponto de vista da estrutura daquilo que está escrito, a pauta lingüística e o referente coincidem e esta coincidência facilita a passagem de um símbolo qualquer para um objeto qualquer em direção à atribuição de um símbolo determinado para indivíduos que não são membros indeterminados de uma classe, mas seres singulares e concretos. (p. 35 – 36).

Nesse sentido as atividades em que as crianças têm que identificar ou escrever seu

próprio nome, identificar ou escrever o nome de colegas, compará-los, como presenciei nas

salas das professoras, são atividades importantes, pois permitem as crianças o contato com

esse “modelo estável”, e assim, aprendem as letras, a posição e ordem das letras para que

signifiquem um determinado nome, enfim, aprendem que a escrita exige convenções.

Ao lado das atividades com o nome próprio, as atividades de leitura pelas crianças, de

textos que elas sabem de memória, são as atividades mais citadas pelas professoras:

Eu também faço atividade de ler textos que eles sabem de cor. Antes eu não fazia, nem me passava pela cabeça que servia para alguma coisa. (Francisca)

Eu também peço que os alunos leiam textos que eles sabem de memória. É uma atividade também que desperta o interesse e o gosto pela leitura, porque eles sentem assim o prazer de estar lendo. A primeira vez que eu fiz essa atividade fiquei surpresa, eu acho que eu chorei, não me lembro direito, mas eu acredito que eu chorei de emoção, porque eles iam lendo, eu nunca pensei que eles fossem capazes de ir acompanhando as palavras e mostrando que aí está a palavra que a professora pediu. A atividade de ordenação de um texto eu já fiz, mas me angustiou um pouco, mas acho que falta fazer mais. (Conceição)

Eu faço atividades de leitura de textos que eles sabem de cor. Antes eu não sabia que isso era importante. (Eridan)

Hoje eu trabalho com ordenação de textos, por exemplo, uma parlenda: nós trabalhamos a parlenda, quando eles não conhecem a parlenda eu ensino, eles lêem fazendo o ajuste, depois eles vão tendo que montar, ordenar aquela parlenda. Que eu dou em tirinhas. (Adízia)

Atividades permanentes de leitura em sala de aula, tanto feita por mim como pelos alunos. Os alunos são colocados para ler, mesmo que não saibam ler, para isso eu uso textos que eles sabem de cor. (Juraci)

73

Ler textos que se sabe de memória, mesmo quando não se saber ler

convencionalmente, é uma boa atividade para ensinar a ler e escrever, pois possibilita o ajuste

entre as partes do falado e partes do escrito. Dessa maneira as crianças estabelecem uma

relação direta entre o oral e o escrito, e assim vão aprendendo que se escreve o que se fala na

ordem em que se fala.

As professoras também relatam que passaram a ler mais para os seus alunos.

Uma das atividades que eu faço hoje é leitura de histórias. Antes a gente fazia a contacão de histórias, e quando lia para as crianças era pra preencher um espaço. Quando as crianças estavam cansadas, eu dizia: vamos ler uma historinha, e ficava por isso mesmo. Agora não, eu leio sem substituir, sem modificar as palavras que eu acho que são difíceis pra elas, e as crianças prestam atenção, vão enriquecendo o vocabulário. Elas também refletem sobre o que estão ouvindo, sobre os diferentes tipos de textos, e quando vão ler, eu percebo que elas fazem igual a mim, usam até as mesmas palavras da história. Sento que essa atividade também é importante porque as crianças aprendem com isso, a linguagem que se escreve. (Conceição)

Antes, quando eu comecei na 1ª série, em outra escola eu não lembro de ter lido nenhuma historinha pra eles, eu não lembro de ter lido nenhuma poesia. Eu lembro de ter lido os textos dos livros didáticos. Hoje, eu leio praticamente todos os dias, historinhas para os meus alunos. Três ou duas vezes por semana trabalho com poesia. A gente não vê só a poesia, vê também a biografia do autor. Isso antes não era presente na minha prática. O fato delas escreverem e eu pedir pra que leiam pra mim foi uma experiência muito bacana, porque quando eu comecei a ler para os meus alunos, eu só lia. Eles nunca liam pra mim. Depois eu fui vendo que não era só eu que tinha que ler. Agora eu leio pra eles, com eles e eles lêem pra mim. (Adízia)

Postas essas questões referentes à leitura realizada, pelas crianças, de textos que elas

conhecem de memória e, à leitura realizada pela professora, cabe destacar que a leitura é uma

atividade diária na sala de aula das professoras e, que, as crianças se interessam bastante por

essa atividade. Ao realizarem a leitura de textos que foram lidos pelas professoras, se

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comportam como leitores e, mesmo sem saber ler, utilizam a linguagem que se escreve, como

disse Conceição.

Apesar de o conhecimento sobre as hipóteses de escrita ser de maior domínio das

professoras, em relação ao conhecimento sobre as hipóteses de leitura, é interessante salientar

a importância que dão as atividades de leitura, principalmente a leitura feita pelas crianças, de

textos que eles sabem de memória. E se é verdade que a escol,a sempre privilegiou a escrita,

em detrimento da leitura, é verdade também, que na sala de aula das professoras a situação

agora é diferente: a leitura ganhou o espaço de destaque, antes ocupado pela escrita.

Além das atividades já citadas, outras atividades aparecem nos depoimentos das

professoras:

A construção de texto coletivo também é uma atividade que eu faço hoje e que antes eu não fazia, assim como, a leitura. Eu não via muita importância em tá lendo para as crianças.(Conceição)

Antes eu fazia e achava que devia fazer tudo em um dia só. Produzir, revisar tinha que ter aquilo pronto e mais estar exposto lá na sala pra eles. Hoje eu já compreendo que posso ir fazendo esse trabalho mais devagar, com mais calma. A revisão pode ficar para outro dia.Foi uma experiência nova também para eles a revisão de textos. Eles foram percebendo aquilo que eles mesmos colocaram e não ficou muito legal, o que não está muito bom. Eles mesmos percebem o e aí, e aí, e aí. Fica muito aí. Eu vou intervindo e eles vão substituindo por outras palavras. Quando eles não conseguem eu sugiro e pergunto o que eles acham e, assim, eles vão aprendendo que um texto não pode ser escrito de qualquer jeito. (Iolanda)

A atividade de produção coletiva de textos escritos, citada por Conceição e Adízia, em

que o professor assume o papel de escriba, possibilita a criança a observar que, o que se fala é

registrado na ordem em que se fala, e no caso da revisão do texto escrito, possibilita ainda,

pensar que um texto escrito tem uma elaboração diferente de um texto oral. Sem falar que,

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“... o texto como base de todo estudo lingüístico (...), torna possível tratar de toda Gramática Portuguesa: fonética, morfologia, sintaxe e semântica de acordo com as oportunidades, necessidades e o nível de conhecimento e de compreensão dos alunos (Poel e Poel, 1996,p.41).

É importante ressaltar que uma proposta de ensino da língua escrita, fundamentada na

teoria da psicogênese da língua escrita, tem por princípio, o ensino da leitura e da escrita, a

partir de textos.

Significa entender o texto como uma unidade de produção lingüística, em que se

considera não a extensão, mas o seu significado num determinado contexto. E nesse sentido,

uma palavra ou um grupo de palavras pode ser um texto, a depender de sua função social, no

contexto em que estão escritos. São textos, por exemplo, o nome próprio, uma lista e títulos de

histórias infantis.

No conjunto das entrevistas, surgiu mais um elemento incorporado ao trabalho das

professoras: a correção com a participação das crianças, como destacam Conceição e Adízia:

Depois a gente faz a correção no quadro. Mas não sou eu que escrevo, quem escreve são eles. Do jeito que um escreve, o outro vai ver se o dele está... A gente discute pra ver se está certo. A correção eu fazia no caderno assim, está certo ou está errado e pronto.

A gente até faz a cópia do quadro. Mas como é feita a cópia do quadro? Vamos fazer uma lista de frutas e que eu quero que seja uma atividade de escrita, onde todos participem. Então, eles citam alguma fruta e eu pergunto pra eles como se escreve o nome daquela fruta. Eles vão dizendo e eu vou escrevendo no quadro conforme as indicações que eles vão me dando. Se alguém diz assim, duas coisas, de dois modos diferente aí nós vamos ver e discutir. A gente escreve dos dois jeitos e vamos chegar a uma conclusão, a partir do que as crianças dizem, analisando e comparando as escritas.

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Esse dado é importante de ser mencionado, porque com a divulgação da teoria da

psicogênese da língua escrita acreditou-se que não sendo erros, as escritas infantis, o professor

não poderia corrigi-las. As crianças deveriam escrever de seu jeito e o tempo se encarregaria

de que as superasse.

Na verdade, não é que não possam ser corrigidas. A questão colocada a partir dos

pressupostos teóricos da psicogênese da língua escrita, é como deve ser essa correção. E nesse

sentido, como propõe Weisz (2000):

A correção deve informar o aluno e ser feita dentro da situação de aprendizagem. O professor a realiza durante a própria situação de produção, levantando questões que ajudem o aluno a perceber certas incorreções ou simplesmente apontando diretamente uma incorreção que, segundo sua avaliação, o aluno possa reconhecer, aproveitando a informação que lhe está sendo oferecida (p.84-85).

Nos relatos a seguir, destacam-se uma outra atividade incorporada pelas professoras

em seu trabalho com as crianças:

A cruzadinha eu não usava nunca porque eu achava que eles não tinham a capacidade de fazer. Hoje eu faço e vejo o quanto eles têm capacidade e o quanto aprendem quando estão fazendo. (Adízia)

A cruzadinha tem um grau de dificuldade dependendo do que as crianças sabem. Tem delas que tem banco de palavras e outras não têm. No início eu tinha muitas crianças com hipótese pré-silábica e eu dava pra eles a cruzadinha com banco de palavras, para os que estão silábico-alfabéticos ou alfabéticos, eu já dou a cruzadinha sem banco de palavras pra eles (Iolanda)

O fato de propor a atividade de cruzadinha com banco de palavras para alguns e, para

outros não, denota a preocupação de Iolanda em dosar o nível do desafio proposto às crianças,

para que possam realizar a atividade.

Juraci também cita sua preocupação em propor desafios para crianças:

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Além do conhecimento sobre as hipóteses, agora eu tenho a preocupação de ‘tá” oportunizando desafios para as crianças, para que eles aprendam pensando, aliás, elas só aprendem porque pensam.

E sendo assim, para que a criança pense, a atividade não pode estar nem aquém, nem

além de sua capacidade de resolução, caso contrário não se caracteriza num desafio, não

promove aprendizagem.

Percebe-se pelo elenco das atividades não mais realizadas pelas professoras, referidas

até o momento, que elas propunham atividades em que a ênfase estava na repetição e na

memorização e, portanto, não tinham nenhum desafio. Sem falar que trabalhavam partindo de

unidades menores como as letras e as sílabas e o modelo de atividades estava baseado nas

atividades de cartilhas.

Quanto a questão do desafio, afirma Kato (1990), com relação as cartilhas: “os

materiais de alfabetização, vias de regra, introduzem gradativamente novas unidades deixando

muito pouco desafio para o aluno” (p.6). O trabalho com textos, ao contrário, abre

possibilidades para que as professoras planejem situações didáticas em que as crianças

precisem pensar sobre a língua escrita.

Nesse sentido, experimentando ensinar a ler e escrever a partir de textos, as professoras

começam então a considerar o desafio, como algo que faz com que a criança pense sobre a

língua escrita, o que é fundamental para que avancem em suas hipóteses.

Quanto a essa questão, também nos diz Iolanda.

Com o estudo das hipóteses a gente vai aprofundando outras questões, conhecendo mais e também tentando fazer na prática.Por exemplo, eu sabia que não deveria propor “atividades soltas”, no meu entender, para as crianças, mas faltava alguma coisa. Eu nunca cheguei a trabalhar com atividades de ligar pontinhos, atividades de prontidão, mas faltava entender melhor e propor atividades mais desafiadoras para as crianças, em que elas pudessem pensar,

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pudessem expressar a capacidade que têm de entender o mundo da escrita, porque só pensando vão aprendendo. E eu só aprendi isso depois que eu estudei as hipóteses.

Um outro aspecto decorrente dos pressupostos teóricos da psicogênese da língua

escrita, considerado pelas professoras, foi a necessidade de fazer intervenções pedagógicas,

junto às crianças, no momento da atividade:

Com as crianças que ainda não avançaram como outros colegas, eu faço mais intervenções com eles. Eu sento mais na mesa com eles e vou conversando, problematizando a respeito do que estão fazendo e conforme vão respondendo, vão dando as indicações de como devo fazer para que avancem. (Conceição)

Eu vi que as crianças avançam quando a gente tá intervindo. Se a gente colocar pra eles pensarem, elas avançam.(Eridan)

Aprendi o quanto é importante fazer intervenções, e como fazer, porque antes na época em que eu comecei essa se resumia muito em questionar. E só questionava com que letra eu começo e com letra eu termino hoje eu já posso fazer outro tipo de intervenções. E essas intervenções algumas podem ser antecipadas e outras surgem no momento. (Iolanda)

Essas questões colocadas pelas professoras, quanto às intervenções, são relevantes no

ensino da leitura e da escrita, pois as intervenções ajudam a crianças a pensar sobre a língua

escrita. E isso pode ser feito, com outras formas de intervenções que não só questionar, como

se refere Iolanda, mas também oferecer informações, assim como orientar as crianças na

atividade que deve ser realizada, enfim, problematizar como diz Conceição.

Para as professoras as atividades incorporadas ao seu trabalho, apresentadas nesse

trabalho, bem como, a necessidade de propor desafios às crianças e fazer intervenções, só

foram possíveis pelo conhecimento da teoria da psicogênese da língua escrita, que para elas,

nas palavras de Eridan, sem conhecer como as crianças pensam, não teriam acontecido

mudanças.

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Até aqui foram apresentadas algumas dessas mudanças, no tocante às atividades, mas

que outras mudanças se efetivaram na ação docente dessas professoras? Como se deram essas

mudanças?

É o que veremos a partir de agora, na terceira categoria.

3- O processo de mudanças

O processo de mudanças na ação docente das professoras não se deu de uma hora para

outra, num simples passe de mágica, e nem tudo foi flores.

Da forma como trabalhavam, ao conhecimento da teoria da psicogênese da língua

escrita, já descritos nesse trabalho, passando pelos primeiros ensaios até chegar às mudanças

propriamente ditas, muita coisa aconteceu.

Os depoimentos das professoras foram ricos em informações quanto a essa questão,

mas inviável de serem todos transcritos, todavia, para que as informações não se perdessem,

foram agrupadas e depois substanciadas em alguns depoimentos, os quais traduzem os demais,

sendo apresentados em duas subcategorias: São elas: dificuldades e facilidades e, as

mudanças.

3.1- Dificuldades e facilidades

Os relatos das professoras nos contam as dificuldades e facilidades enfrentadas por elas

para mudar o cotidiano de suas aulas, no tocante o trabalho com a língua escrita.

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Por serem esses, bastante semelhantes, os relatos referentes às dificuldades, serão aqui

representados pelas falas de Conceição, Juraci, Marília e Eridan, respectivamente:

No primeiro ano encontrei muita dificuldade porque eu achava que para ensinar a ler e escrever tinha que começar do alfabeto. No começo eu não acreditava que fosse dar certo, fazer diferente. Meu Deus, e agora, o que é que eu vou fazer? Eu até chorava às vezes.

O mais difícil foi ter que deixar de trabalhar com as letras e as sílabas soltas, porque eu achava que não funcionava de outro jeito. Outra dificuldade que eu tive, foi planejar atividades desafiadoras.Eu sempre fico preocupada com essa questão do que está sendo realmente desafiador para as crianças, porque às vezes a gente coloca as coisas às claras achando que fez uma atividade que é uma boa atividade, e ela não é, não está gerando aprendizagem nenhuma. Eu sempre faço esses questionamentos será que isso aqui é desafiador, eles vão pensar.

Eu tinha dificuldade de quase tudo porque eu não tinha tanto conhecimento assim, de como fazer diferente, aí ficava naquele impasse ah, eu não vou fazer e outras colegas diziam: eu também não vou fazer. Eu sentia muita dificuldade, principalmente para trabalhar sem ser só com as sílabas, outra coisa muito difícil foi trabalhar com agrupamentos. Isso aí foi um trabalho que ainda hoje eu estou meio insegura, porque antes eu agrupava de qualquer jeito. Eu dizia assim: olha, eu quero dois aqui, dois ali, dois aqui, assim...

A maior dificuldade que eu enfrentei foi achar que a criança não podia aprender do texto. Eu achava que tinha que aprender do A E I O U, do A B C todinho, para depois passar pras sílabas.É tanto que chegava no final do ano e as crianças não conseguiam chegar lá na tal de sílabas complexas. A minha maior dificuldade foi mudar porque eu acreditava que era muito difícil deles entenderem essas sílabas complexas, sem antes passar pelo A E I O U e só depois as outras letras, as sílabas e por aí vai. E o difícil é porque a gente faz os cursos e as pessoas dizem não pode fazer assim, mas não diz porque não pode e nem como tem que fazer.

Todas as professoras deixaram transparecer em seus depoimentos, em diferentes

momentos - alguns, outrora já citadas, que não vêem mais sentido em trabalhar com letras e

sílabas isoladas, por entenderem que isso não faz sentido para as crianças. Contudo, mesmo

diante desse conhecimento, se desvencilhar do trabalho que realizavam com essas unidades

81

menores, se constituiu na maior dificuldade para elas, pois se por um lado, isso as ajudou a

entender o que vivenciavam ao lidar com as “escritas estranhas” das crianças, por outro,

ficaram em conflito. Passaram a questionar suas práticas, e muito embora não mais as

aceitasse como válidas, não sabiam como fazer diferente.

Esse dado é revelador de que, a apropriação de um novo conhecimento não garante por

si só, a mudança repentina de comportamento docente. E no caso das professoras

participantes, entrar em contato com o que diz a teoria da psicogênese da língua escrita, foi

também, entrar em contato com suas práticas de ensino da língua escrita, foi ver com outros

olhos a única referência, até então.

Para descobrir “o como fazer”, seis das sete professoras contaram com a ajuda de uma

técnica da equipe pedagógica da Secretaria Municipal de Educação ou da equipe técnica das

escolas.

Nós começamos a estudar com a Conceição, técnica da equipe pedagógica da SEMEC e um dia nós caímos na real e decidimos fazer diferente. Aí o que acontecia, a gente fazia pra se sentir segura, corria para cima dela: eu fiz assim, será que está certo? E ela nos ajudava a pensar se a atividade era boa ou não. A gente fazia, ia avaliando, anotava o que fazia, para discutir com ela nos encontros semanais que tínhamos. E tudo isso deu muito certo. A gente foi experimentando e deu certo, mas se agente não tivesse experimentado nunca ia saber que funcionava. É por isso que ainda hoje quando eu vejo alguém dizendo na universidade: ah, mas como é que eu vou fazer se eu não tenho segurança? Eu sempre digo que tem que ir experimentando porque se não experimentar não vai ter segurança é nunca. O problema é que quando o medo toma conta da gente, fica difícil. (Marília)

Não era bem assim uma coisa eu acreditava que desse certo. Eu estava perdida, eu não sabia para onde ir. Então quando alguém me apontou um caminho, pra mim foi mais fácil seguir. Porque eu não tinha, eu não sabia para onde ir, na verdade. Quando eu fui me achar mesmo foi quando eu vim trabalhar aqui, que a diretora me deu uma força muito grande. Além de começar a participar do curso ela estava do meu lado, me ajudando, me explicando. Isso você não pode dar essa atividade assim por isso, por isso, explicando os porquês, isso não vai

82

acrescentar em nada pra criança. E eu como estava cheia de dúvidas, cheia de incertezas eu acolhi de bom grado os conselhos que recebia. (Adízia)

As falas dessas professoras nos dizem o quão importante, foi para elas, ter alguém que

pudesse orientá-las, no momento inicial em que se colocaram as dúvidas, a insegurança, nos

mostrando que da mesma forma que o trabalho em parceria é importante para que as crianças

avancem, também o é para elas.

Quando não há como compartilhar, discutir, buscar saídas no coletivo, se sentem

inseguras e solitárias, como desabafam Marília, ao comparar o planejamento na escola em que

atualmente está, com o planejamento realizado na escola anterior onde trabalhava.

Quando eu cheguei nessa escola, o primeiro impacto foi com o planejamento, totalmente individual. Ninguém sentava para debater, para saber como a gente fazia na outra escola, saber onde o trabalho está certo ou errado, o que se está fazendo de bom ou ruim e como fazer para melhorar. A gente não fazia isso. Era assim: o plano está aqui, senta aqui, vamos, é pra ser assim. Eu me senti muito só mesmo. Eu sinto falta do planejamento coletivo com a orientação de alguém que possa nos ajudar a fazer melhor. Aqui, muitas vezes planejamos sozinhas, às vejo eu planejo só e sinto que com isso eu estou perdendo, perdendo muito do que eu aprendi na outra escola, porque eu não tenho com quem dividir, com quem falar do que eu fiz. Na universidade eu tenho aprendido muito, mas o ideal seria que a gente sentasse para discutir, que fosse feito um trabalho que a gente pudesse crescer e não parar diante de nossas dúvidas.

Já, para Iolanda, o processo de mudança foi mais difícil, porque no início de sua

caminhada não contou com ajuda da equipe pedagógica da escola em que trabalhava.

A minha dificuldade maior foi ter que estar buscando o conhecimento necessário, de forma solitária, devido a falta de conhecimento da coordenadora que trabalhava na escola.

Atualmente ela conta com o apoio da equipe pedagógica da escola, mas continua

sentindo-se só, como mesma relata:

83

Eu lamento muito ainda ter que buscar ajuda nos livros e com outros colegas que não trabalham na mesma escola que eu, mas isso é o que tem me ajudado na prática, nas situações que eu fazia e faço, na sala, que não dou conta de resolver sozinha. No início eu não tinha apoio na própria escola, hoje a escola dá apoio no sentido de incentivar pra fazer um trabalho diferente com as crianças, mas o conjunto dos profissionais não tem ainda a compreensão de como se dá esse trabalho, de como fazer isso.

Conceição traz uma experiência diferente de Marília e Iolanda. Na escola em que

trabalha, uma vez por semana, todas as professoras participam de um grupo de estudo e, nele,

tiram dúvidas e discutem o trabalho que realizam, com a coordenadora pedagógica:

O trabalho é melhor desenvolvido dependendo da equipe que trabalha na escola. Eu lamento muito que a nossa coordenadora tenha que sair agora no final do ano porque ela é ótima, ajuda demais, colabora bastante com as professoras. Incentiva o grupo de estudo. Temos um grupo de estudo que se reúne toda segunda-feira, no final da aula. Nele a gente discute as dificuldades, uma tira dúvida da outra, ninguém trabalha isoladamente, cada uma vai ajudando a outra e isso é muito bom Quando nós temos dificuldades, que agora não são muitas, graças ao nosso curso de Pedagogia, a coordenadora ta lá para nos ajudar.

O fato de estudarem juntas, de compartilharem o que fazem, dá mais segurança às

professoras que trabalham na escola de Conceição; algumas iniciando o processo de

mudanças. No grupo refletem sobre o que fazem em sala, identificam problemas e, juntas

buscam solucioná-los, quando não minimizá-los.

Esse processo de construção coletiva não se dá em todas as escolas, somente na escola

em que Conceição trabalha, o que faz com que as demais professoras carreguem sobre seus

ombros, o peso da responsabilidade do trabalho que realizam.

No entanto, com apoio ou sem apoio, com ou sem grupo de estudo, as professoras

contaram que à medida que foram experimentando fazer de outra forma, o que faziam, o

difícil foi ficando mais fácil.

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Os depoimentos de Adízia, Conceição, Juraci, Francisca e Iolanda falam um pouco

sobre isso:

Não vou dizer que foi muito difícil, porque como eu estava perdida de qualquer jeito, o caminho que estavam me apontando, eu achava certa lógica nele. Mas o primeiro ano foi bem penoso mesmo, depois tudo foi ficando mais fácil.

Sempre no primeiro momento a gente encontra barreiras mesmo, as dificuldades, mas eu fui estudando e experimentando. Então devagar eu ia me acostumando, fui me adaptando também, porque não só as crianças, mas o professor precisa se adaptar (risos) De vez em quando tava trabalhando no tradicional mesmo, mas não é por aí, e com os cursos que nós fomos fazendo já foi clareando mais. Para mim, o mais fácil foi entender que as crianças são capazes, que a forma como escreviam não era porque tinham problema de concentração ou falta de prontidão.

A atividade de ordenação de um texto eu já fiz, mas me angustiou um pouco, mas acho que falta fazer mais. Para eu achar mais fácil.

Você já pensou, passar dez, quinze, vinte anos da tua vida fazendo uma coisa que tu achas que é certo e aí de repente tu começas a ler, estudar e vê que não é bem assim. No começo ficou aquela coisa meio solta que ninguém sabia como fazer na realidade. Ninguém sabia. Depois foram vindo os cursos, que a gente foi aprendendo direitinho como agir. Eu trabalhava com sílabas, mas ainda hoje esse negócio está assim em mim. Quer dizer, são vinte anos, é muito forte. Todo dia a gente aprende porque não é uma coisa que é pronta e acabada. É muito difícil. Mas devagar, a gente vai mudando devagarzinho.

Nessa tentativa de fazer diferente cometi alguns equívocos e até hoje eles estão presentes eu não tenho dúvida disso, mas é nessa busca mesmo, é errando que a gente consegue acertar.

Nesses depoimentos as professoras se expõem, ao se desnudarem, por inteiro,

assumindo medos e dúvidas, como parte de seu processo de conhecimento. Mais que isso:

revelam que não é fácil romper de uma hora para outra com práticas, com as quais se está

acostumado e, reconhecem como diz Lüdke (1996) que, “o conhecimento não é algo acabado,

mas uma construção que se refaz constantemente” (p.18).

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E nesse sentido, como não é possível, num passe de mágica, renunciar uma história de

práticas escolares, o processo de mudanças das professoras foi gradativo, marcado pela

experiência do que já faziam. Paulatinamente o trabalho com a língua escrita, antes baseado

em letras e sílabas, foi sendo substituído pelo trabalho com textos.

Se contrapondo ao que foi difícil, o trabalho com leitura foi considerado, pelas

professoras como o mais fácil de ser incorporado ao seu planejamento de atividades.

O fácil é quando você ver o resultado, e o mais fácil mesmo foi passar a ler, porque antes eu só contava histórias e quando inventava de ler, substituía as palavras que eu achava que as crianças não iam entender, e só lia mostrando as gravuras. (Eridan)

O mais fácil pra mim foi ler diariamente para as crianças, até porque eu gosto muito de ler.(Juraci)

O que está sendo mais fácil é justamente ler para eles,ler de um jeito bem bacana, sem ta parando o tempo todo para mostrar gravuras e, isso dá uma satisfação tão grande! (Francisca)

Esses relatos resumem o que disseram as professoras quanto às atividades de leitura, na

perspectivas do fácil, e talvez por ser assim considerada, a leitura tem espaço privilegiado em

suas salas de aula.

Como posto, pelas professoras, o fácil e o difícil fazem parte de seu processo de

mudanças, marcados por lembranças, em que as dificuldades foram bem maiores, em relação

às facilidades.

Ao falarem das dificuldades, as professoras o faziam com veemência e quando se

referiam ao que foi fácil, com serenidade. As palavras, os gestos, pareciam tomar vida, a

forma do que isso representa para elas: o desconforto diante de impasses, a comodidade, o

bem-estar diante de superações.

86

3.2- As Mudanças

A partir do momento em que as professoras confrontavam o que aprendiam com o

trabalho que realizavam, algumas mudanças foram se concretizando.

Para efeito de sistematização dos dados que resumem essas mudanças, eles serão

apresentados a partir de trechos dos depoimentos de cada professora, a esse respeito, de forma

a contemplar as mudanças efetivadas:

Mudou desde o planejamento que antes eu não conseguia fazer: colocar de fato aquilo que eu fazia, até a auto-avaliação. Hoje eu sou mais ocupada do que quando eu comecei a trabalhar, antes eu não fazia a reflexão sobre o meu trabalho.O relacionamento com os alunos melhorou bastante, não é mais aquela relação que eu sou a que sabe tudo.Quando eu olho pra trás, eu vejo como vários alunos poderiam ter avançado mais, se eu não pensasse que eles não sabiam de nada no in´cio do ano, e que as escritas deles eram erros. (Eridan)

Eu mudei muito, principalmente o tratamento com as crianças, a relação professor aluno. Mudou nesse sentido assim: eu “engargantava” mesmo com a criança. Se ela não queria fazer aquilo ali, tinha que fazer de qualquer maneira, tinha que fazer. Eu achava que quando eles não conseguiam ler e escrever certo, era porque eram atrasados. Esse menino é muito atrasado, muito fraco, ele é muito fraco, ele lá vai aprender. Muitas vezes eu já me peguei falando isso. Muitas vezes não falava, mas no meu eu, eu pensava assim. E agora eu vejo diferente, que todos são capazes.Se fosse antes, eu corria em cima e já ia até mostrando qual era a letra, nem esperava, que eles pensassem.(Marília)

Eu também não valorizava a produção das crianças. Não tinha paciência para esperar eles escreverem, principalmente se era errado. Hoje não, muitas vezes você diz assim: vamos escrever isso aqui. Ah, não sei. Mas pensa um pouquinho pra ver se você não sabe, vê se não encontra um jeitinho de escrever isso aqui pra mim. Num já estudou muitas coisas? Já. Ah, então vamos ver se você consegue colocar no papel o que você já sabe. Todos os dias eu leio em sala. Hoje eu também leio textos informativos, textos poéticos, gibis, além das historinhas. Vou variando para as crianças conhecerem diferentes tipos de textos. Antes eu percebia que os meus alunos tinham medo de ler. Agora, não. Quando eu pergunto quem quer ler? Todo mundo quer ler, mesmo sem saber ler convencionalmente. (Adízia)

87

Eu achava que a pré-escola era só para brincar, só para cantar, só essas coisas de lazer, mas é totalmente diferente. Eu achava que a criança da pré-escola não sabia muita coisa, não tinha condições, era incapaz. Ela só está aqui para brincar, mas que nada. Eu levo livros pra sala e coloco tudo lá. Eles pegam, vêem uma história, olham as figuras, acham interessante e aí vêem pedir para eu ler. Antes nem isso tinha na sala. Quando as crianças queriam olhar alguma coisa e iam mexer, eu dizia: não menino, não mexe nisso agora não. Hoje está diferente. Mudou muito.(Conceição)

Deus do céu, como eu mudei. Antes eu era demais, as crianças não podiam nem falar, agora falam. Na hora que eu estava explicando, eu ficava psiu, psiu, psiu. Hoje não, eu sei que isso faz parte, que eles precisam falar, trocar idéias. Na sala de aula a gente conversa com o colega pra perguntar alguma coisa, e eu queria que o menino ficasse ali durinho. Numa mesa com quatro eu ainda queria que eles ficassem em silêncio, como é que pode? (Francisca)

Antes a gente não sabia que as crianças podem ajudar as outras no trabalho de parceria. Eu trabalhava muito só em cima da escrita, e daquele jeito, você sabe, né? Agora eu trabalho muito com leitura e tenho notado que as crianças aprendem muito com as atividades de leitura que eu faço.(Juraci)

Eu vejo um crescimento meu, como profissional, em termos de conhecimento, e das próprias crianças em termos de aprendizagem, o que elas conseguiram para aprender. Eles folheavam livros e revistas, faziam de conta que estava lendo e, muitas vezes eu não via muito sentido naquilo.(Iolanda)

Pode-se deduzir a partir desses depoimentos, além dos depoimentos concernentes às

atividades não mais realizadas e às atividades incorporadas, que, apesar das dificuldades

mencionadas, mudanças significativas aconteceram na ação docente das professoras

pesquisadas, em particular, no que diz respeito a forma como concebiam e se relacionavam

com as crianças.

Acreditar que as crianças são capazes e valorizar os seus saberes, parece ter sido a

maior mudança percebida pelas professoras, em seu trabalho, através da qual as outras

mudanças ocorreram.

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Sem dúvida, as nossas crenças sobre o que pensamos sobre as crianças, mesmo quando

não expressas por palavras, são transmitidas a elas e,nesse sentido, só há dois caminhos:

transmite-se confiança e investe-se na aprendizagem, ou transmite-se julgamentos pautados na

incapacidade e aposta-se no insucesso.

As professoras participantes vêm trilhando o primeiro caminho, até porque já trilharam

o outro e o conhecem muito bem.

Quando comparam a aprendizagem de seus alunos atuais com os de turmas anteriores,

em que ainda não conheciam a psicogênese da língua escrita, as professoas consideram que a

aprendizagem é maior. Essa assertiva é sustentada pelos relatos que seguem:

Eles aprendem muito mais. Antes eu trabalhava só com a decodificação e as crianças, praticamennte, só liam e escreviam o que decoravam. Hoje, eles lêem tudo, entendem o que estão lendo e escrevem o que desejam. (Eridan)

Antes, as crianças saíam lendo e escrevendo, só que não era tão prazeroso. Eles não sabiam produzir textos, quer dizer era muito limitado, esse era a palavra certa. Eles até saiam lendo, mas as palavras que eles conheciam, e a partir do momento que você começa a elaborar textos na frente deles, eles vão lendo tudo que vão encontrando pela frente. Na realidade eu achava que eles estavam alfabetizados, mas eles não estavam, eles só liam o que eles tinham decorado. (Marília)

Se eu trabalhasse no pré III agora, como eu trabalhava antes, com certeza nenhuma criança sairia lendo no final do ano, como eles saem agora, lendo e escrevendo de verdade. (Conceição)

Antes se aprovavam em média três ou quatro numa turma de vinte e cinco alunos. A partir do que eu fui experimentando esse número aumentou. Hoje eu tenho exatamente vinte e cinco alunos e uns 10 já lêem e escrevem, estão alfabetizados. Estamos em novembro e não tem nenhuma criança em hipótese pré-silábica, os outros estão em uma hipótese silábica com valor sonoro ou com a hipótese silábico-alfabética. Até o final do ano os alunos que não saírem lendo e escrevendo convencionalmente, estarão perto disso.(Iolanda)

Dos vinte e quatro alunos que eu tenho, a maioria está lendo. Só tenho oito com hipótese silábica, os outros têm hipótese silábico–alfabética. (Adízia)

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Pode-se dizer que essa postura de valorização do que as crianças sabem sobre a língua

escrita e a crença de que são capazes de aprender, aliadas às situações didáticas propostas,

pelas professoras, é o que mais tem contribuído com a aprendizagem das crianças, no que diz

respeito à leitura e à escrita.

Ainda sobre o processo de mudanças, as professoras citam o curso de capacitação

oferecido pela Secretaria Municipal de Educação, em 1994, ocasião em que conheceram a

teoria da psicogênese da língua, no entanto, enfatizam a importância do Curso de Pedagogia

para o trabalho que atualmente realizam. Vejamos alguns depoimentos a esse respeito.

Os cursos ajudavam bastante, ajudavam a refletir e buscar mais, conhecer mais sobre o assunto. Inicialmente, os cursos oferecidos pela Secretaria Municipal de Educação - SEMEC e, mais recentemente, no profa. Pode clarear muito mais em relação ao que eu já sabia anteriormente. (Iolanda)

Com as aulas no curso de Pedagogia eu aprendi mais do que no curso da SEMEC, aprendi desde a maneira de avaliar até formular tarefas interessantes, desafiadoras para os meus alunos. Eu tenho uma amiga que não acreditava no que eu fazia na minha sala de aula. Eu trabalho com ela numa outra escola, só que é com adultos, e ela está gostando muito do curso da Universidade. Tudo o que ela está vendo ela está achando que não é invenção minha. E agora ela já chega, já debate. (Marília)

Houve muita diferença da primeira turma para a última que estou trabalhando, porque você vai adquirindo mais conhecimento, se aperfeiçoando e você vai vendo, pôxa aquilo tá errado eu tenho que mudar, então você vai sempre tentando consertar os seus erros. (Francisca)

Antes nós até nos sentíamos assim inferiores. Depois que a gente tá fazendo o curso de Pedagogia, nós estamos sendo até elogiadas e as outras meninas que já são formadas estão também interessadas em aprender com a gente, aquilo que nós estamos aprendendo. (Conceição)

O Curso de Pedagogia aparece como um aspecto relevante na formação das

professoras. Das sete, três possuem curso superior, são formadas em Pedagogia e, quatro estão

atualmente cursando. Para essas últimas, o Curso de Pedagogia lhes confere status, também é

90

considerado como uma forma de “ganhar melhor”, porém, ressaltam que a maior importância

de estarem fazendo um curso superior, diz respeito às contribuições que o Curso vem

proporcionando ao seu trabalho docente, na medida em que passaram a refletir mais sobre suas

práticas escolares.

Em síntese, o processo de mudanças vivenciado pelas professoras participantes, pode

ser representado por esse depoimento de Adízia.

Quando a gente começou a estudar as hipóteses de escrita, eu vi que não era bem assim como eu estava pensando: eu não ia ter que ensinar tudo para os meus alunos, como eu pensava; os meus alunos já sabiam muita coisa e o que eu ia ensinar pra eles também não precisava ser naquela ordem de A a Z. Eu podia trabalhar com textos, leitura, escrita, e uns iam poder ajudar os outros porque nem todos eles tem o mesmo grau de conhecimento sobre leitura e escrita. Eu vi que o que eles escreviam não estava errado como eu dizia. Nada disso eu sabia antes. Agora dizer que foi fácil, não foi. No início foi difícil mesmo, mas com perseverança eu consegui mudar em muitas coisas. Falta ainda mudar em outras, mas é uma questão de tempo.

Como nesse depoimento, os demais tratados nesse capítulo, retrata a importância dos

pressupostos teóricos da psicogênese da língua escrita, para o processo de mudanças, na ação

docente do grupo de professoras participantes, movido pela reflexão acerca das práticas que

tinha, de ensino da língua escrita. Por sua vez as reflexões conduziram a novas práticas de

ensino da leitura e da escrita, que geravam novas reflexões, se constituindo no viés que

sustenta as mudanças apresentadas.

91

CAPÍTULO V

DEVAGAR SE VAI AO LONGE

O autor que volta ao seu texto, lendo o que produziu, pode sempre fazer novas reflexões. Assim procedendo, alterna os papéis de escritor e de leitor, submetendo seu próprio texto a provas rigorosas de coerência no estilo e na gramática. Desta maneira o ato de escrever torna-se uma poderosa ferramenta para o uso e o desenvolvimento da inteligência humana.

Monique Deheinzelin

A Teoria em Ação

No capítulo anterior descrevi os dados obtidos nas entrevistas, nesse capítulo, em

especial, descreverei algumas situações didáticas por mim observadas nas salas das

professoras participantes, realizadas a partir do conhecimento sobre a teoria da psicogênese da

língua escrita e de suas implicações pedagógicas.

A elaboração de texto coletivo, citada pelas professoras, nas entrevistas, foi uma das

atividades por mim observadas, ora representada pela reescrita de um texto, na sala de

Conceição, e descrito nesse trecho do meu registro de campo.

Após a leitura do livro “O Nascimento de Jesus”, a professora propôs a reescrita da

história, o que foi acatado pelas crianças.

- Como vai começar a nossa história?

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- Com o título.

- Qual é o título?

- O nascimento de Jesus.

- E agora, como vai começar?

- Um dia José e Maria se casaram.

- E agora?

- José foi embora.

- Um anjo apareceu para Maria.

- O que vem primeiro, José foi embora ou um anjo apareceu para Maria?

- Um anjo apareceu para Maria?

- Só apareceu, não disse nada?

- Disse assim: você vai ter um menino que se chamará Jesus.

Se referindo ao final da pauta direita do quadro, a professora perguntou:

- Como não dá para eu escrever a palavra menino até aqui, o que devo fazer?

- Vai escrever na outra linha.

- Isso mesmo. E como vamos continuar a história?

- Maria contou tudo para José, mas ele não acreditou.

Ao escrever a frase, a professora de propósito escreveu: Maria contou tudo pera, e

interrompeu.

- Aqui eu tenho que escrever para, mas eu acho que errei. Vocês podem me ajudar. A

palavra para se escreve assim?

- Não!

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- E como é?

- Troca o E pelo A.

- Ah... (e continuou a escrever) Como vamos continuar?

- O anjo apareceu no sonho dele.

- No sonho de quem?

- De José.

- E ele falou que Maria estava dizendo a verdade.

- E eu escrevo assim direto? Não tem um jeito melhor de escrever isso que vocês

estão dizendo?

- Tem.

- E como é.

- Não sei.

- Quem sabe?

Silêncio. E a professora continuou:

- Vou escrever de um jeito e vocês vão dizer se ficou bom, tá? Enquanto José dormia,

o anjo apareceu no sonho dele e falou que era verdade o que Maria falou.

Antes de a professora terminar a linha em que estava escrevendo, um aluno disse:

- Agora passa para a outra linha.

- Isso mesmo, porque aqui não vai dá para escrever Maria.

Após concluir a escrita, prosseguiu:

- Nós vamos ler esta parte que está pronta.

94

A professora lia e as crianças acompanhavam. Como já conheciam a história e o texto

tinha sido ditado por elas mesmas, foram capazes de antecipar o que estava escrito.

- Eu acho que tem uma coisa esquisita nesta última frase: o anjo apareceu no sonho

dele e falou que era verdade o que Maria falou. Como a gente pode melhorar, para

deixar mais bonito?

- Troca o falou, tem duas vezes falou.

- Qual deles e troca por quem?

- Assim: o anjo apareceu no sonho dele e falou que era verdade o que Maria contou.

- Vocês gostaram da sugestão? Posso escrever?

- Pode.

Após fazer a alteração, uma menina completou:

- José acordou e pediu perdão para Maria.

- E agora o que vamos escrever?

- José e Maria foram para Belém.

- E lá o bebê nasceu numa gruta, porque não tinha outro lugar para nascer.

- Depois que Jesus nasceu o que aconteceu?

- O pastor foi avisar para todo mundo que nasceu Jesus.

- Vocês falaram assim: o pastor foi avisar para todo mundo que nasceu Jesus. Era

só um pastor?

- Não!

- E como a gente diz quando mais de um pastor foi avisar?

- Os pastores foram.

95

Quando a professora começou a escrever uma criança interrompeu:

- Fica melhor assim: ao saber, os pastores foram avisar para todo mundo que

nasceu Jesus.

A sugestão foi acatada e a professora escreveu a oração, como sugerida pela criança.

- Acabou a história?

- Não!

- E o que falta?

- Foram felizes para sempre.

Conceição tentou, usou alguns argumentos, mas não teve negociação para alterar o

final da história, proposto pelas crianças. Acatando a sugestão das crianças, a professora olhou

para mim, sorriu e escreveu o tradicional final dos contos de fada, no que era apenas o início

de uma história fortemente marcada pelo sofrimento.

No final, com as alterações propostas pelo grupo, o texto ficou assim escrito:

O NASCIMENTO DE JESUS

UM DIA JOSÉ E MARIA SE CASARAM E UM ANJO APARECEU PARA MARIA E DISSE: VOCÊ VAI TER UM ME - NINO QUE SE CHAMARÁ JESUS. MARIA CONTOU TUDO PARA JOSÉ, MAS ELE NÃO ACREDITOU. ENQUANTO JOSÉ DORMIA, O ANJO APARECEU NO SONHO DELE E FALOU QUE ERA VERDADE O QUE MA- RIA CONTOU. JOSÉ ACORDOU E PEDIU PERDÃO PARA MARIA E OS DOIS FORAM PARA BELÉM. LÁ O BEBÊ NASCEU NUMA GRUTA, PORQUE NÃO TINHA OUTRO LUGAR PARA NASCER.

AO SABER, OS PASTORES FORAM AVISAR PARA TODO MUNDO QUE NASCEU JESUS E TODOS FORAM FELIZES PARA

SEMPRE.

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Essa atividade na forma como foi conduzida pela professora permitiu que as crianças

pensassem sobre a língua escrita, e a reflexão é a questão central para a aprendizagem da

leitura e da escrita, como aponta a teoria da psicogênese da língua escrita, e não atividades

mecânicas, com ênfase em exercícios motores e de memorização.

Esse ponto de vista é também defendido por Vygotsky (1991):

Até agora, a escrita ocupou um lugar muito estreito na prática, em relação ao papel fundamental que ela desempenha no desenvolvimento cultural da criança. Ensina-se as crianças a desenhar letras e construir palavras com elas, mas não se ensina a linguagem escrita. Enfatiza-se de tal forma a mecânica de ler o que está escrito que acaba-se obscurecendo a linguagem escrita como tal (p.119).

E ensinar a língua escrita como tal foi o que Conceição fez. Enquanto escriba ajudou as

crianças observarem em diferentes situações que um texto escrito exige uma elaboração

diferente do texto oral. Mas não só isso, também ajudou as crianças a entenderem a relação

entre fala e escrita.

As situações abaixo da atividade descrita ilustram como a professora oportunizou as

crianças situações de reflexão sobre a língua que se escreve:

Ao registrar o que as crianças falavam, foi ensinando que se escreve o que se fala, na

ordem em que se fala.

Ao perguntar o que vem primeiro, se José foi embora ou um anjo apareceu a Maria,

ajudou as crianças a compreenderem que os fatos deveriam ser escritos na ordem dos

acontecimentos, conforme a história que estavam reescrevendo.

O fato de a professora ler para as crianças e em especial nesse caso, de ter lido a

história que estavam reescrevendo, ajudou Natália a empregar o verbo chamar na

97

terceira pessoa do futuro do presente, ao dizer você vai ter um menino que se

chamará Jesus.

Motivada pelo que ouvi de Natália na reescrita do texto, passei a observá-la mais de

perto em alguns momentos do recreio, na saída e mesmo em outras atividades em sala de aula

e anotei algumas de suas falas em que observei como empregava os verbos no discurso oral

nesses momentos: “corre Lia se não ela vai correr no teu lugar”, e não, “corre Lia se não ela

correrá no teu lugar”; “o Luís vai contar para a mãe dele”, em vez de “o Luís contará para a

mãe dele; “eu quero o azul, porque vai ficar mais bonito”, diferente de “eu quero o azul,

porque ficará mais bonito”.

Esse fato corrobora o que diz Teberosky (1995) quanto a condição de reescrita:

“recordar para escrever, funciona para as crianças pequenas como incitação não só à

reprodução dos elementos da trama, mas também à citação das “mesmas palavras” (p.99).

A forma como Natália empregou o verbo chamar na atividade de reescrita coletiva do

texto foi completamente diferente da forma como empregava os demais verbos em seu

discurso oral. Em nenhum outro momento a vi empregar os verbos como o fez na reescrita do

texto, o que demonstra a sua preocupação com a qualidade do discurso escrito.

Quando Conceição perguntou o que fazer, se referindo a escrita da palavra menino,

a qual não podia escrever por completo na margem direita do quadro, fez uma boa

intervenção, e a resposta das crianças demonstra que elas já tinham o conhecimento

de que, quando uma palavra não dá para ser escrita como nesse caso, se deve

continuar a escrita da palavra na margem esquerda na linha seguinte. Um

conhecimento adquirido em situações reais de uso da língua escrita.

98

Pedir ajuda das crianças para escrever a palavra para quando tinha escrito pera,

também foi uma boa intervenção da professora, pois as crianças refletiram sobre o

que ela estava escrevendo e como estava escrevendo. Participaram da escrita do

texto não como meros expectadores da escrita da professora.

Ao perguntar se não tinha um jeito melhor de escrever o que as crianças estavam

falando e ao dizer que tinha alguma coisa esquisita numa das frases, questionando

como deixá-la “mais bonita”, Conceição estava ensinando que não se deve escrever

de qualquer jeito, que é preciso buscar a melhor forma para expressar as idéias para

que um texto seja bem escrito.

A leitura do texto que estava sendo produzido pela professora, mesmo antes de sua

conclusão, ajudou as crianças na análise do texto e contribuiu para a organização

das idéias e para a seqüência dada.

Quando Conceição perguntou como se deveria dizer quando há mais de um pastor,

chamou atenção para uma regra de concordância verbal, uma das dificuldades de

muitos adultos alfabetizados, e que essas crianças, embora ainda não sabendo ler e

escrever convencionalmente, já estavam aprendendo.

Os conhecimentos prévios que as crianças já possuíam foram bases para novas

aprendizagens na atividade, mas Conceição sabia que isso por si só não garantia a

aprendizagem da língua escrita, e, por isso mesmo, fez essas intervenções, para que as crianças

pensassem sobre esse objeto de conhecimento, que é a escrita, dando-lhes a oportunidade de

aprender a língua que se escreve.

99

É importante ressaltar que fazer intervenções não significa apenas o professor

perguntar, mas propor atividades desafiadoras, incentivando as crianças a ler e escrever,

mesmo quando não sabem fazê-los convencionalmente. É encorajá-las a se “arriscarem”

nessas atividades, e para tal, é preciso propor boas situações de aprendizagem, em que,

segundo Weisz (2000):

os alunos precisam pôr em jogo tudo o que sabem e pensam sobre o conteúdo que se quer ensinar;

os alunos têm problemas a resolver e decisões a tomar em função do que se propõem produzir;

a organização da tarefa pelo professor garante a máxima circulação de informação possível;

o conteúdo trabalhado mantém suas características de objeto sociocultural real, sem se transformar em objeto escolar vazio de significado social.

É certo que nem sempre é possível organizar as atividades escolares considerando simultaneamente esses quatro pressupostos pedagógicos. Isso é algo que depende muito do tipo de conteúdo a ser trabalhado e dos objetivos didáticos que orientam a atividade proposta. Mas os princípios acima apontam uma direção, e é esta direção que convém não perder de vista ( p.66).

A propósito, considerando o que diz Weisz, observei a presença dos princípios que

determinam uma boa situação de aprendizagem nas atividades propostas pelas professoras

participantes. Um bom exemplo disso descrevo a seguir, nessa atividade observada por mim na

sala de Iolanda.

A partir do conhecimento que tinha sobre o que os alunos já sabiam sobre a escrita, ela

organizou a turma em duplas e propôs para algumas duplas uma atividade de escrita e para

outras, uma atividade de leitura, pois como explicou, “eles conhecem coisas diferentes e não

dá para fazer a mesma atividade, igualzinha para todos. Uns terminam logo, acham fácil

demais, e outros, ficam frustrados porque acham difícil e não conseguem fazer”.

100

Com o objetivo de que as crianças pudessem realizar a atividade em parceria, algumas

duplas receberam uma caixa com o alfabeto móvel, uma folha de papel em branco e um lápis;

outras receberam tiras de papel em que estavam escritos títulos de histórias infantis.

Para as duplas que receberam o alfabeto móvel, a atividade consistia em escrever com o

alfabeto o título das histórias que a professora ditava, e em seguida, deveriam escrever na folha

de papel que tinham; para o grupo das tiras, a atividade consistia em identificar os mesmos

títulos a partir da leitura.

O primeiro título ditado foi Cinderela.

Iolanda se dirigiu a uma mesa na qual as crianças faziam a atividade de leitura. Resolvi

acompanhá-la para observar de perto como as crianças realizavam a atividade.

A dupla tentava identificar a tira com esse título, mas ficava na dúvida. Iolanda então

perguntou:

- Como vocês vão descobrir onde está escrito Cinderela?

- É uma palavra que termina com A.

- Mas aqui tem cinco títulos terminados com A. Qual deles é Cinderela? Pensem. Eu

vou em outra mesa e depois eu volto para ver se vocês encontraram.

Fiquei observando as crianças. Para resolver a questão que lhes foi colocada, foram

eliminando os títulos que terminavam com outra letra que não a letra A, e depois passaram a

discutir com que letra iniciava cada título, fazendo relação com a pronúncia de Cinderela, até

identificar a tira que continha esse título. Pouco tempo depois a professora retornou à mesa.

- Por que vocês ficaram com esse título?

- Porque começa com CIN e o I é antes. Nos outros não tinha I no começo.

101

- Muito bem, o que está escrito aqui é mesmo Cinderela.

Iolanda passou por outras mesas e depois ditou “A Bela Adormecida”. Dessa vez

acompanhou uma dupla que estava fazendo a atividade de escrita e observou que as crianças

estavam com dúvida quanto à ortografia: não chegavam a um acordo se escreviam a palavra

adormecida com C ou com SS. A dupla do lado estava com o mesmo problema, contudo a

dúvida era se escrevia com S ou SS.

Percebendo o impasse, a professora convida esta dupla para juntamente com a primeira

encontrarem a solução para aquela questão.

- Como é que resolve, se vocês estão escrevendo a mesma coisa de forma diferente?

- Eu acho que é com CI porque tem a voz do C.

- Ou é o C ou é o S, porque não é com SS.

- Vou dá uma pista: um de vocês escreveu certo.

A maioria decidiu que seria com C e a criança que ainda não estava convencida

perguntou à professora porque não podia ser com S. Prontamente ela deu a informação que a

letra S no meio de duas vogais tem som de Z.

Essa atitude de Iolanda é considerada por Ferreiro como uma das formas de introduzir a

língua escrita, pois é importante numa situação como essa que a criança possa perguntar e

obter resposta.

Ainda sobre o mesmo título, numa dupla que fazia atividade de leitura, as crianças

selecionaram todos os títulos que começavam e terminavam com a letra A e colocaram um

abaixo do outro.

A ABELHINHA

102

A BELA E A FERA

A TARTARUGA

A BELA ADORMECIDA

A GALINHA RUIVA

As crianças ficaram pronunciando tentando identificar o som das letras e depois de

algumas tentativas, eliminaram A Abelhinha, A Tartaruga e A Galinha Ruiva. Nesta hora

Iolanda chegou junto a essa dupla e perguntou se já tinham descoberto em que tira estava

escrito “A Bela Adormecida”.

- Ainda não, mas está perto.

- Só tem esses dois. É um deles.

- A Bela, A Bela Adormecida. Achei. (apontando para o título).

- Como você descobriu.

- Porque depois do A tem o B de bela.

- Mas os dois têm B depois do A.

- Mas essa palavra não começa com o A de adormecida. (apontando para fera).

- E começa com que letra?

- Com F.

- Então, que título é esse?

- É A Bela e a Fera, porque tem F e depois do F tem E. Fica FE.

- É sim, A Bela e a Fera. Esse outro é o da Bela Adormecida.

- Muito bem, vocês conseguiram.

103

Para ler A Bela Adormecida as crianças utilizaram estratégias de leitura para construir

significado, e assim, identificaram o referido título dentre os demais: selecionaram todos os

títulos que começavam e terminavam com A; pelas pistas das letras que seguiam, inferiram que

dos cinco títulos selecionados, só dois poderiam conter A Bela Adormecida; ficando apenas

com dois títulos, anteciparam as palavras que vinham em seguida com base na letra inicial,

tanto de Fera quanto de Adormecida e, inferiram a partir da letra seguinte onde estava o título

ditado pela professora. Por fim verificaram se a resposta estava correta, justificando a escrita

de Fera por começar com FE, e comparando os dois títulos, o outro, era A Bela e a Fera.

Na verdade, as crianças utilizaram estratégias de leitura e, segundo Frank Smith (1999)

“uma estratégia de leitura é um amplo esquema para obter, avaliar e utilizar informação” (p.

78), por isso mesmo, importantes nos atos de leitura.

Chamo a atenção para o fato de que, apesar da escola privilegiar a decodificação,

também utilizamos as estratégias de seleção, antecipação, inferência e verificação mais ou

menos ao mesmo tempo - de forma inconsciente - para construímos significados para o que

lemos.

Sendo assim, se ler é atribuir significados, a decodificação enfatizada pelos métodos

tradicionais de ensino da leitura e da escrita, não garantem a sua aprendizagem.

Na sala de Conceição, observei uma atividade em que as crianças também realizaram

uma atividade de leitura, mas diferente da situação anterior, deveriam ler a letra de uma

música:

104

A professora cantou com as crianças a música “Bate o Sino”, e em seguida pediu que

individualmente lessem acompanhando com o dedo, a letra da música que foi entregue a cada

criança.

BATE O SINO PEQUENINO

SINO DE BELÉM

JÁ NASCEU O DEUS MENINO

PARA O NOSSO BEM

PAZ NA TERRA

PEDE O SINO

FELIZ A CANTAR

ABENÇOA DEUS MENINO

ESSE NOSSO LAR.

Muitas crianças conseguiram ler acompanhando com o dedo e iniciavam e terminavam

exatamente onde começava e terminava a letra da música.

Outras crianças sentiram um pouco mais de dificuldade no ajuste, mas de todas, Larissa

chamou-me a atenção.

Eu estava observando a mesa ao lado da mesa dela e ouvia repetidamente aquela voz:

“não consigo, falta”. Resolvi me aproximar para observar melhor: Larissa tentava ler e

sobravam palavras, até que chamou a professora.

A professora incentivava dizendo que ela era capaz, que cantasse mais devagar e ficou

observando, mas a menina não conseguia. Pediu então para que continuasse tentando,

enquanto passaria em outras mesas para acompanhar a leitura de outras crianças.

105

De repente a menina chegou na mesa em que estava Conceição e disse: professora eu

consegui, olha. E leu acompanhando cada oração da música, com o dedo e ao terminar

completou: eu sabia que eu ia conseguir!

Larissa foi para sua mesa e de longe fiquei observando que cantava sem parar. Resolvi

chegar mais perto e me aproximei da mesa em que estava. Quando percebeu a minha presença,

olhou-me e sorrindo falou: eu “to” tão feliz! Perguntei o porquê e a resposta não podia ser

outra: porque eu consegui! Ao perguntar a ela como conseguiu, explicou-me:

- Eu fui fazendo um bocado de vezes, quando eu pensava que dava, não dava, aí eu

tentei, tentei até conseguir.

Virou-se para um colega de sua mesa e disse: eu consegui cantar, olha aqui. E

recomeçou...

Larissa conseguiu realizar a leitura fazendo o ajuste da música que já conhecia de

memória com os segmentos de escrita correspondente, mas para isso teve que reorganizar o

que pensava sobre o que estava escrito no texto, o que poderia ser lido e como deveria ser lido

por ela. Só assim conseguiu estabelecer a relação entre partes do falado e partes do escrito.

Nessa mesma atividade observei ainda que, mesmo quando as crianças faziam a leitura

utilizando o ajuste, iniciando e terminando a leitura exatamente quando iniciava e terminava o

texto, quando a professora solicitava que identificassem uma determinada palavra, como sino,

Belém, e Deus, o ajuste por si só não dava conta de localizarem a palavra.

Isso nos chama a atenção para o fato de que embora a correspondência entre letras e

sons seja imprescindível para se aprender a ler e escrever convencionalmente, localizar as

106

palavras só foi possível para as crianças, por terem utilizado um outro recurso: as estratégias

de leitura.

Pude perceber que a leitura é uma atividade freqüente na sala de aula das professoras

participantes, tanto a leitura realizada por elas, como a realizada pelas crianças.

Quando as professoras liam as crianças prestavam bastante atenção, mesmo quando não

se tratava da leitura de histórias, e, quando solicitadas a ler, as crianças não tinham medo de

experimentar, de errar.

Essas constatações serão aqui exemplificadas com um trecho de meu registro de

campo, de uma situação de leitura observada na sala de Marília:

Próximo da hora da saída, uma funcionária da escola pediu licença, entrou na sala e

entregou à Marília, algumas folhas de papel. A professora deu uma lida rápida e disse às

crianças que se tratava de um comunicado que deveria ser entregue aos pais.

- Vou ler para vocês:

Senhores familiares,

Amanhã, sexta-feira, 06 de dezembro, estaremos realizando a nossa III Feira Cultural

e sua criança não poderá faltar.

Contamos com a participação de vocês!

Horário: manhã: de 08:00 às 10:00 h

tarde: de 14:30 às 16:30 h

Venham e convidem amigos e familiares para prestigiarem a nossa Feira Cultural.

107

Obs. Amanhã serão entregues aos responsáveis, as atividades referentes ao segundo

semestre, juntamente com um informe sobre a data da reunião com a Secretária Municipal de

Educação, a qual tratará da questão referente ao funcionamento da escola para 2003.

Atenciosamente,

A direção.

Após a leitura, a professora perguntou às crianças, que informações continha o

comunicado. Antes que terminasse de falar, um menino respondeu.

- Amanhã é nossa feira cultural e não é para nós faltar.

- Onde será que está escrito isso? Quem quer ler o pedaço do comunicado que tem

essa informação?

Uma outra criança pediu para ler e assim realizou a leitura:

- Senhores Familiares. Amanhã tem feira cultural e sua criança não poderá faltar.

Mesmo não sabendo ler convencionalmente, a criança que fez a leitura demonstrou

saber que o texto escrito é elaborado de forma diferente do texto oral. Possivelmente essa

mesma menina que leu “não poderá faltar”, por ter como referência a leitura da professora,

daria uma resposta oral em que o verbo não fosse tão bem empregado, como fez seu colega ao

responder o que estava escrito: não é para nós faltar.

Assim como Natália, a menina empregou o verbo poder na terceira pessoa do futuro do

presente, demonstrando a preocupação com a qualidade do discurso escrito, a partir da leitura

realizada pela professora, o que revela saber que um texto escrito exige uma elaboração

diferente de um texto oral; um conhecimento fundamental para a qualidade de um texto

escrito.

108

Outrossim, o fato de Marília ter lido o comunicado para as crianças, possibilitou-lhes a

interação com um tipo de texto, que embora muito presente na escola, não costuma ser lido

para as crianças, principalmente quando ainda não sabem ler e escrever. Aliás, de um modo

geral, na pré-escola, a leitura se restringe à leitura de histórias infantis.

A esse respeito, embora saibamos o quão importante é a leitura dessas histórias,

sabemos também que por si só não é suficiente para que as crianças compreendam a nossa

língua, e nesse sentido, a atitude de Marília ao ler, nesse caso, outro tipo de texto, vem ao

encontro do que diz Rosa (2002):

As crianças aprendem a ler ao interagirem com os diferentes tipos de textos e, para que isto ocorra, não é preciso que primeiro dominem a base alfabética. O professor, ou outro leitor pode colocá-las em contato com os diferentes tipos de textos quando lê para elas. Para Wells, “estar alfabetizado significa ter um repertório de procedimentos e a habilidade de selecionar o procedimento adequado quando nos confrontamos com distintos tipos de textos”. Estes procedimentos podem estar sendo desenvolvidos antes de as crianças aprenderem a ler convencionalmente, quando elas estão em contato com os textos por intermédio de um outro leitor. (p. 87).

E desta forma, o leitor ajuda-as a entender as funções da escrita e a adquirir

conhecimento sobre esse objeto.

Quanto à leitura de histórias, anteriormente mencionada, é importante que seja

realizada pelos professores, não só com o objetivo de divertir, de entreter, mas também para

ensinar a ler e como ler.

Na sala da professora Eridan observei uma atividade em que as crianças tiveram a

oportunidade de praticar o que foi vivenciado em situações interativas de leitura, com a

professora:

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As crianças sentadas no chão ouviam atentamente a leitura da história, “O Pastor

Brincalhão”, da Coleção Fábulas Encantadas. Ao concluir a professora perguntou quem

gostaria de fazer a leitura da mesma história, e, algumas crianças levantaram a mão, enquanto

outras diziam: eu, professora, eu quero, manifestando interesse para realizar a leitura.

André foi o escolhido:

Certo dia um menino foi passear no campo com suas ovelhas. De repente ele estava

gritando e três pessoas ouviram e foram ver o que estava acontecendo.

Quando chegaram lá, o menino deu umas gargalhadas. Ele tinha enganado os homens.

De repente começou a gritar de verdade....

André interrompeu a leitura e não mais quis continuar. Nesse momento uma Menina

levanta e pede para dá continuidade. Repetiu a última frase lida por André e prosseguiu com a

leitura:

Enquanto o pastor brincalhão estava gritando, gritando, as ovelhas ficavam “quetas”.

Dessa vez era de verdade!

Como não apareceu ninguém, o pastor aprendeu a lição: nunca mais brincou com a

cara dos outros.

André iniciou a leitura utilizando a expressão certo dia. Geralmente,

independentemente do gênero, as crianças pequenas costumam iniciar as histórias com era

uma vez. Nesse caso, ele utilizou a referida expressão tendo como referência o início da

história que a professora lera.

110

O uso das palavras quando, de repente e enquanto, como organizadores textuais, no

contexto em que apareceram, demonstra que as crianças utilizaram essas palavras porque já as

ouviram, em contextos semelhantes, em atos de leitura.

Também merece comentário, a forma pela qual as crianças leram a história: Integraram

informações, utilizando expressões lingüísticas, o que não é muito comum no discurso oral.

Vejamos:

Quando chegaram lá, o menino deu umas gargalhadas. Ele tinha enganado os

homens, e não, quando chegaram lá, o menino deu umas gargalhadas, porque ele

tinha enganado os homens.

Dessa vez era de verdade! Como não apareceu ninguém, o pastor aprendeu a

lição: nunca mais brincou com a cara dos outros, diferente de, dessa vez era de

verdade, mas não apareceu ninguém. E o pastor aprendeu a lição de nunca mais

brincar com a cara dos outros

A produção textual das crianças, nessa situação de leitura, demonstra que conheciam

algumas especificidades da língua utilizada para escrever, as quais foram internalizadas, como

pude perceber, a partir de suas experiências com a leitura de histórias.

Quanto a essa questão, se refere Kato (1997):

Ao ouvir e produzir histórias, como diz Britton (1982), a criança vai construindo o seu conhecimento da linguagem escrita, que não se limita ao conhecimento das marcas gráficas a produzir ou a interpretar, mas envolve gênero, estrutura textual, funções, formas e recursos lingüísticos. Ouvindo histórias, a criança aprende pela experiência a satisfação que uma história provoca, aprende a estrutura da história, passando a ter consideração pela unidade e seqüência do texto, aprende associações convencionais que dirigem as novas expectativas ao ouvir histórias... aprende as convenções lingüísticas de histórias, como os delimitadores iniciais e finais... e estruturas lingüísticas mais elaboradas, típicas da linguagem literária. Aprende, pela experiência, o som de um texto escrito lido

111

em voz alta: De que outra forma poderia ela (a criança) vir a ouvir uma voz interior ditando-lhe a história que ela quer produzir?” (p.167) (p. 41-42)

Uma outra atividade realizada, com bastante freqüência, nas salas das professoras, diz

respeito ao nome próprio. Geralmente as atividades com o nome próprio eram realizadas na

roda de conversa, com a leitura dos crachás, como a que presenciei na sala de Juraci:

A professora pediu para um grupo de crianças que separasse de um lado, os crachás

com o nome dos colegas que estavam na sala, e de outro, os crachás com o nome dos colegas

que faltaram. Ao terminar, perguntou:

- Como vocês conseguiram?

- Pelas letras.

- Então, vamos conferir. De quem é esse nome?

- Da Maiara.

- Não, é da Maria Josiane.

- Prestem atenção nas letras, que vocês descobrem. Da Maira ou da Maria Josiane?

- Os dois começam com M e A. Eu acho que é da Maria Josiane.

- Não! É da Maiara, porque o da Maria Josiane tem dois nomes e o último termina

com E.

- Isso mesmo. Agora eu vou mostrar só a primeira letra do nome e vocês vão tentar

descobrir. Depois eu vou mostrando o resto. Que letra é essa?

- G.

- Então, de quem é esse nome?

- Do Gabriel.

- Pode ser também o meu ou da Gigliane.

112

- Por quê?

- Ora, porque tudo começa com G.

- Vou mostrar a última letra. E agora?

- Não, professora, não é o meu não, porque o meu termina com L.

- Se não é do Gabriel, de quem é? Prestem atenção: começa com G e termina com

O.

- É do Gustavo.

- Vou mostrar o resto das letras para a gente vê se é mesmo o do Gustavo.

As crianças compararam com o nome da Gigliane, considerando a segunda letra, e

concluíra que era mesmo o nome do Gustavo.

- Isso mesmo. E de quem é esse crachá que tem o nome terminado com a letra E?

Nesse momento vários nomes surgiram, pois cinco crianças que estavam na sala tinham

seus nomes terminados com essa letra: Ane, Valciane, Joiciane, Gigliane e Eliane. A

professora prosseguiu mostrando a penúltima letra, a letra N, mas o impasse continuou, ela

então mostra a letra anterior.

- Já sei, não é da Ane, porque o A da Ane é maiúsculo.

- Continua difícil professora.

- Vou mostrar mais uma letra (se referindo a letra I). E agora?

- Fica tudo igual.

- Vou mostrar a primeira letra. Termina com IANE e começa com a letra V.

- É o da Valciane.

- Se fosse o da Eliane começava com E, não é professora?

113

- Isso mesmo. Vem alguém aqui procurar o crachá do Jardel.

- Eu sei que é o do Jardel porque termina com L.

- O do Gabriel também termina com L.

- Mas não começa com JA, começa com GA.

- E qual é o crachá do Gabriel?

- Esse.

A professora prosseguiu com a atividade até a identificação de todos os crachás, e ao

contrário do que se possa imaginar, a atividade não foi cansativa; as crianças prestavam

atenção e participavam bastante.

Observei que a atitude da professora em apresentar apenas a letra inicial ou a letra final

dos nomes, acrescentando aos poucos as demais, para que as crianças dissessem a quem

pertencia os crachás, possibilitou às crianças avançarem no uso de antecipações enquanto

faziam a leitura, e desta forma, pensarem que não é aleatória a ordem em que as letras

aparecem.

Para Teberosky (1991), realizar atividades com o nome próprio, como essa descrita,

“parece ser uma peça-chave para o início da compreensão da forma de funcionamento do

sistema de escrita” (p.35), e nesse sentido, apresenta cinco razões, pelas quais isso se justifica:

1. Tanto do ponto de vista lingüístico como gráfico, o nome próprio de cada criança é um modelo estável.

2. O nome próprio é um nome que se refere a um único objeto, com o que se elimina, para a criança, a ambigüidade na interpretação.

3. O nome próprio tem valor de verdade porque se refere a uma existência, a um saber compartilhado pelo emissor e pelo receptor.

4. Do ponto de vista da função, fica claro que marcar, identificar objetos ou indivíduos faz parte dos intercâmbios sociais de nossa cultura.

5. Do ponto de vista da estrutura daquilo que está escrito, a pauta lingüística e o referente coincidem, e esta coincidência facilita a passagem de um

114

símbolo qualquer para um objeto qualquer em direção à atribuição de um símbolo determinado para indivíduos que não são membros indeterminados de uma classe, mas seres singulares e concretos. (p. 35-36)

As razões colocadas por Teberosky nos dão a dimensão da importância do trabalho

com o nome próprio, no processo inicial de alfabetização: muito mais do que ser utilizado para

fazer a chamada das crianças e/ou preencher o quadro “Quantos Somos Hoje”, é preciso

utilizá-los para ensinar as crianças a antecipar, fazer análise a partir do que dizem os colegas,

comparar, pensar. Enfim, ensinar a ler e escrever.

Exatamente o ato de pensar, parece ser o foco das atividades apresentadas, realizadas

pelas professoras participantes. Diferente da ênfase na memorização, essas situações didáticas

possibilitaram a reflexão das crianças sobre o nosso sistema de escrita, o que foi possível a

partir da atuação das professoras, sempre intervindo no sentido de que as crianças pensassem

sobre o que estava escrito e/ou deveriam escrever.

Sem dúvida, atividades de leitura e escrita em que as crianças precisem reorganizar,

estabelecer relações, comparar, analisar, refletir, são importantes para que as crianças

aprendam a língua escrita, com toda sua riqueza e complexidade, pois sendo a leitura e a

escrita conteúdos de natureza conceitual, a aprendizagem desses conteúdos pressupõe análise e

reflexão.

Nessa perspectiva, ao ensinar a língua escrita, a função do professor “é observar a ação

das crianças, acolher ou problematizar suas produções, intervindo sempre que achar que pode

fazer a reflexão dos alunos sobre a escrita avançar (Weisz, 2000, p.62)”.

No caso das professoras pesquisadas, isso se dava nas propostas de atividades em que

as crianças precisavam ler e escrever antes mesmo de fazê-los convencionalmente. Ressalto

115

ainda, a importância dos momentos em que as professoras liam em voz alta para as crianças e

atuavam como escribas, como “modelo” de leitor e de produtor de texto.

Essas são situações privilegiadas no ensino e na aprendizagem da língua escrita, uma

vez que é lendo e escrevendo que se aprende a ler e escrever, e que não basta ensinar a ler e

escrever, mas também, ensinar como ler e como escrever.

116

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Pesquisa

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WEISZ, Telma. O diálogo entre o ensino e a aprendizagem. São Paulo: Ática, 2000.