teologia sistematica i - pr isaltino g. coelho

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  • IGREJA BATISTA DO CAMBU

    ESCOLA BBLICA DOMINICAL

    TEOLOGIA SISTEMTICA I

    Material preparado pelo

    Pr. Isaltino Gomes Coelho Filho

    Para uso exclusivo na Escola Bblica Dominical da Igreja Batista do Cambu, Campinas, S. Paulo. proibida a reproduo e utilizao fora da Igreja, sem a

    autorizao por escrito do autor.

  • Parte Introdutria

    1

    O estudo de Teologia Sistemtica deve ser baseado na Bblia. Por isso que, antes de

    comearmos um estudo srio da Teologia, necessrio deixar bem definida uma coisa:

    vamos estudar a Bblia e vamos us-la mais que qualquer outro livro. O fato de no

    seguirmos um determinado livro da Bblia para estudar, como fazemos na Escola Bblica

    Dominical, no significa ausncia de Bblia. Vamos estud-la. Esta apostila, inclusive, um

    roteiro do estudo bblico, para facilitar uma viso sistemtica da Bblia, e no pretende ser

    um substituto dela. Por isso, logo de incio, necessrio responder a uma pergunta: "como

    podemos ter certeza de que temos um documento confivel em mo, quando estudamos a

    Bblia?". Sim, como possvel acreditar que, ao longo dos tempos no houve modificaes

    feitas pela Igreja ou por pessoas interessadas em apresentar certos pontos de vista?

    Algumas pessoas costumam dizer que papel aceita tudo, para negarem o valor da Bblia.

    Ento, como podemos crer que temos em nossa Bblia exatamente o que foi dito em tempos

    remotos? Para responder a estas questes, transcrevo, a seguir, uma pastoral de boletim

    que produzi para responder este problema embora formulada em outras palavras:

    " POSSVEL LEVAR A BBLIA A SRIO?

    Um crtico ignorante do assunto alegou no poder levar a Bblia a srio por no se

    poder provar a autenticidade dos seus manuscritos que deram origem aos livros bblicos que

    temos. Ao longo dos tempos, segundo ele, os cristos os modificaram, para impor suas

    doutrinas. A Bblia teria sido mudada, segundo eles.

    Tucdides, historiador aceito pelos estudiosos, viveu entre 460-400 a.C. Sua obra nos

    chegou com oito manuscritos de 900 a. D. (1.300 anos depois de sua vida). Os manuscritos de

    outro historiador, Herdoto, so mais raros, mas tambm aceitos, como os de Tucdides.

    Chegaram-nos em poucas cpias, bem depois da sua vida. As obras de Aristteles, filsofo

    grego, foram produzidas em cerca de 330 a.C. O manuscrito mais antigo de 1.110 d.C.

    (1.400 anos aps sua vida). Nenhum filsofo impugnou Aristteles por isso. As guerras

    gaulesas foram narradas por Csar entre 58 e 50 a. C., mas o manuscrito mais recente data

    de 1.000 anos depois de sua morte. No entanto, todos eles so aceitos pelos historiadores

    como dignos de confiana.

  • Teologia Sistemtica I

    2

    Ningum negar o valor de A Ilada, de Homero, que tem 643 manuscritos. Pois bem,

    do Novo Testamento temos cerca de 2.000 manuscritos, cpias de escritos dos anos 46 a 90

    de nossa era, bem perto dos eventos, narrados por testemunhas oculares. Quanto ao Antigo

    Testamento, em 1947, nas cavernas de Qumram, descobriram-se centenas de seus

    manuscritos, alguns datando de 150 a.C. At onde se pde traduzir (e h lingistas cristos

    bem preparados) o texto bate, palavra a palavra, com o que temos traduzido. No

    manuseamos uma inveno humana, mas uma revelao verbalizada e cristalizada em escrita

    h sculos.

    Do ponto de vista bibliogrfico, a Bblia possui mais base manuscrtica que qualquer

    outra pea literria da antigidade. S a m f dir que o texto foi modificado. No aceit-la

    alegando modificao do texto ignorncia ou m f.

    A questo que a Bblia incomoda as pessoas com suas exigncias morais e

    espirituais, pedindo-lhes definio. Ela , ao mesmo tempo, uma carta de amor e um ultimato

    da parte de Deus. Uma declarao de que ele nos ama, mas que nos chama a mudar a vida.

    Promessas as pessoas querem. Compromisso, no. Seu ceticismo e sua incredulidade no

    so intelectuais, mas morais. Como disse Mark Twain: "O que me incomoda na Bblia no so

    as passagens que eu no entendo, mas sim as que eu entendo".

    No cremos em algo feito por espertalhes, mas numa verdade que Deus revelou e

    preservou atravs dos sculos. "Para sempre, Senhor, a tua palavra est firmada nos cus"

    (Salmos 119.89). "

    (escrito, originalmente, como pastoral do boletim da PIB de Manaus)

    Os manuscritos dos quais dispomos no so da poca dos eventos. Mas de uma

    gerao posterior. Esta outra questo a levantar. Como podemos ter certeza de que

    relatam o que aconteceu? Duas respostas podemos dar para essas perguntas:

    1) Embora seja histrica, a Bblia no um livro de histria. Guardemos isso,

    tambm. Ela a interpretao da histria, considerando-se os atos que Deus efetuou na

    histria dos homens. Como se l em xodo 3.18, Deus entrou na histria do seu povo, para

    libert-lo. E toda ela mostra a histria de Israel e a histria da salvao que Deus oferece

    humanidade. Por isso que a questo de no terem sido os manuscritos produzidos na

    mesma poca dos eventos no to relevante. Mas mesmo assim, at mesmo o incrdulo

  • Parte Introdutria

    3

    tem que reconhecer uma verdade: o relato bblico no uma inveno da Igreja, pois houve

    anotaes escritas paralelas a muitos dos eventos, como se pode ler em xodo 24.4:

    "Moiss escreveu todas as palavras do Senhor". Houve, tambm, a consulta a documentos

    escritos que serviram de base na pesquisa feita pelo autor bblico. No Novo Testamento, por

    exemplo, Lucas declara que investigou tudo "cuidadosamente" (Lc 1.3). Ficando na rea do

    Antigo Testamento, bom saber que cada vez que temos em Gnesis a expresso "eis as

    origens" ou "livro das geraes" ou ainda "estas so as geraes" (a palavra no hebraico

    toledth) temos o incio de uma obra, provavelmente histrica na poca, empregada pelo

    autor do livro. Ela aparece em 2.4, 5.1, 6.9, 10.1, 11.10, 11.27, 25.12, 25.19, 36.1 e 9 e 37.2.

    O autor de Gnesis pode ter se valido de relatos de genealogias, que so muito valorizadas

    e preservadas entre os orientais, para produzir o texto. Isto significa dizer que o texto tem

    historicidade e que no trata de histrias do arco da velha....

    2) Existe, ainda nos dias de hoje, uma preocupao muito grande por parte dos

    orientais com a tradio oral. E isso era muito mais forte nos tempos antigos, quando a

    escrita era custosa. Eles preservavam a sua histria e suas experincias, contando-a de

    gerao para gerao. As histrias e narrativas eram repassadas de pai para filho. Assim

    mantinham os fatos vivos na mente do povo. Preservada em sua essncia, a tradio oral,

    at sua reduo escrita, manteve muitos dos eventos e muitas das histricas vidas na

    mente do povo. Em conversas beira da fogueira, noite, ou beira do poo, os povos

    nmades passam suas tradies culturais para as geraes mais jovens. Em tempos de

    escrita rara, isto era feito muito mais forte, de maneira que o passado no se perdesse.

    Assim podemos dizer que muito do sucedido com Israel foi contado e recontado para as

    geraes seguintes. Vemos isso de maneira bem clara na instituio da pscoa, em xodo

    12.25-27 (leiamos o texto), quando a experincia do passado, dramatizada em uma

    cerimnia, deveria ser passada para os filhos. Desta maneira, podemos dizer, com

    segurana, que aquilo que temos na Bblia no foi inventado nem criado em um momento,

    mas contado, recontado e vivido por geraes, at que chegasse ao que temos em mo.

    Alm disso, como cristos, cremos na inspirao das Escrituras, conforme se pode ler em

    2Pedro 1.21.

  • Introduo

    Unidade I

    5

    Introduo - Por que vamos estudar teologia? Por que complicar a Escola Bblica

    Dominical? Por que no podemos estudar a Bblia somente?. Estas perguntas podem ser

    feitas por algumas vezes, com sinceridade, mas revelam alguns equvocos bem profundos.

    O primeiro deles que no existe uma coisa como Bblia somente. Esta expresso j traz,

    em si, alguns pressupostos (idias estabelecidas de antemo, antes de comear a

    conversa) teolgicos. Por exemplo: ela presume que a Bblia um livro que deve ser

    estudado (e isso, obviamente, por ser um livro inspirado). Ela pressupe que a Bblia no

    deve ter nada nivelado a ela (ela um livro singular). Nossa forma de nos aproximarmos da

    Bblia, a maneira como a estudamos, o valor que damos a ela, tudo isso produto de uma

    atitude teolgica.

    Estas perguntas tambm so um pouco preconceituosas. Elas mostram que a

    pessoa que as faz pensa que teologia uma coisa complicada, rebuscada, sem valor algum

    para a vida, e que at mesmo nega a Bblia. No entanto, a teologia a essncia da nossa

    f. Em que cremos? A resposta a esta pergunta ser sempre teolgica. Ou seja, o que

    respondermos ser teologia. Preguei numa reunio de jovens e a seguir, de forma pouco

    educada, o lder da reunio disse: No quero saber de doutrina. Quero saber de Jesus !.

    Voltei ao microfone e perguntei: Quem Jesus , para voc? Qualquer resposta que voc

    d, ser uma resposta doutrinria!.

    Disse um telogo chamado Gasgue: a teologia coisa importante demais para ser

    deixada nas mos de profissionais. Tem verdade. A teologia crist uma propriedade de

    toda a igreja de Jesus . E veremos isso nos estudos a seguir.

    1. Definio - O que teologia? Ditas estas coisas, vamos definir o que teologia.

    "Teologia" o termo advindo da juno de duas palavras gregas, theos, "Deus", e logos,

    "razo, pensamento, palavra". "Teologia" , falando em termos de definio gramatical,

    um estudo sobre Deus. E a Teologia Sistemtica pode ser definida como "a disciplina que

    busca fazer uma exposio coerente das doutrinas crists, fundamentando-se nas

    Escrituras, em dilogo com a cultura e a poca de sua formulao e em conexo com a

    vida do telogo". Se a definio parece longa, vamos tentar explic-la.

    2. Explicao - O fundamento da Teologia Sistemtica deve ser a Bblia. Isto a distingue da

    Teologia Contempornea que busca responder s questes atuais muitas vezes valendo-

  • Teologia Sistemtica I

    6

    se de explicaes filosficas. Distingue-a, tambm, da Teologia Patrstica, que explica a

    f crist conforme formulada pelos chamados "pais da Igreja" (nome que se d aos

    primeiros pensadores cristos que procuraram formular nossas doutrinas). Mas ela no

    apenas um estudo das doutrinas crists luz da Bblia. Ela deve ter algo a ver com a vida

    do telogo. A verdadeira teologia no pode ser feita num "tubo de ensaio mental". Isto

    porque as doutrinas crists no so abstraes intelectuais, mas so a formulao, em

    pensamentos humanos, dos pensamentos de Deus conforme expostos na Bblia. E Deus

    no pode ser compreendido como se fosse matria intelectual. Numa frase de Helmuth

    Thielicke, "o pensamento teolgico s pode respirar em uma atmosfera de dilogo com

    Deus" 1. Na frase deste ilustre telogo alemo se observa a idia de que a verdadeira

    teologia pressupe espiritualidade. Mais frente em sua obra, diz-nos ele:

    Tenha em mente que a primeira vez que algum falou de Deus na terceira pessoa (falou sobre Deus, e no mais com Deus), foi no exato momento em que soou a famosa pergunta: assim que Deus disse?... (Gn 3.11). Este fato deveria fazer-nos pensar. 2

    Com isto quero dizer que no se pode ter um real proveito no estudo teolgico

    quando este feito de maneira acadmica, profissional, sem sentimento. Poder haver

    crescimento intelectual, mas devemos lembrar o que diz a Escritura: "Ora, o homem natural

    no aceita as coisas do Esprito de Deus, porque para ele so loucura; e no pode entend-

    las, porque elas se discernem espiritualmente" (1Co 2.14). Uma atitude reverente e um

    esprito humilde diante de Deus e de sua Palavra so ingredientes necessrios para um

    estudo teolgico correto e proveitoso. Sem isto, poderemos ter muitas informaes sobre

    Deus, mas no conheceremos a Deus. Por vezes, at mesmo numa classe de Escola

    Bblica Dominical, a preocupao de alguns com pegadinhas para mostrar inteligncia ou

    embaraar o professor. H alunos da EBD que gostam de se mostrar espertos... Isso

    tambm no produz nada positivo. Uma das finalidades do estudo da Teologia o

    crescimento espiritual. E isso se faz com seriedade, respeito e amor, nunca com esperteza.

    A verdadeira Teologia no produz enfermidade, mas sade. Esta separao que se tenta

    fazer entre conhecimento teolgico e espiritualidade falsa. Por isso, com corao aberto e

    esprito reverente poderemos crescer teologicamente.

    1 THIELICKE, Helmuth. Recomendaes aos Jovens Tologos e Pastores . Recife: SETE e S. Paulo: SEPAL,

    1990, p. 58. 2 Ib. ibidem, p. 59.

  • Introduo

    Unidade I

    7

    3. As possibilidades de termos uma Teologia Sistemtica - Isto no colocaria a Teologia

    Sistemtica numa rea subjetiva, em que cada um far sua interpretao pessoal? Se a

    atitude de humildade e de reverncia do estudante de teologia indispensvel, no est

    a nfase sendo colocada no homem?

    Respondemos que no. So condies essenciais, mas aludem postura do

    estudante e no aos fundamentos da Teologia. Pelo menos trs motivos nos mostram a

    possibilidade de uma Teologia Sistemtica, de um estudo elaborado e profundo sobre Deus.

    So eles:

    (1) A existncia de Deus e seu relacionamento com o mundo. A Bblia no procura

    nos provar a existncia de Deus. D-a como aceita e mostra-o como uma

    Pessoa, que se relaciona com as demais, que se comunica, que mostra sua

    vontade. No uma fora ou uma energia csmica impessoal, mas um Ser que

    busca relacionamentos. O Deus da Bblia no o Deus distante, mas o Deus

    relacional. Ou seja, o Deus que busca se relacionar com o ser humano. Se ele

    se relaciona e se comunica, podemos ter uma teologia, ou seja, podemos estudar

    algumas verdades sobre ele.

    (2) A singularidade do homem, como "imagem e semelhana de Deus", com

    capacidade de se relacionar com ele. O homem singular. Ele , de toda a

    criao, o nico que pode olhar para fora de si, de sua existncia, com

    pensamentos abstratos. Diz Eclesiastes 3.11 que Deus "ps na mente do homem

    a idia da eternidade". Ele o nico que pode fazer metafsica (pensar alm das

    coisas fsicas), que pode "teologar". Sendo inteligente, racional e tendo

    capacidade de entender, o homem pode fazer teologia.

    (3) A revelao. Cremos que Deus existe e que se revelou. Isto dito de maneira

    bem clara em Hebreus 1.1-2. Ele se revelou na natureza (Sl 19.1 e Rm 1.19-20),

    na histria (nos atos redentores a favor de Israel), pelos profetas e, por fim, em

    Jesus Cristo. A estas expresses de sua revelao, todas objetivas, h uma

    ainda, de carter subjetivo: ele se revelou na conscincia humana. "O esprito do

    homem a lmpada do Senhor" (Pv 20.27). Esta revelao na conscincia pode

    ser entendida por esta expresso de Billy Graham: "Em sua Crtica da Razo

    Pura, Emanuel Kant dizia que apenas duas coisa lhe causavam assombro - os

  • Teologia Sistemtica I

    8

    cus estrelados e a conscincia do homem". 3. Podemos chamar ao conjunto de

    revelao na natureza e revelao na conscincia de "revelao geral", isto ,

    elas pertencem a todos os homens. No dependem de algo sobrenatural.

    Qualquer pessoa, mesmo que nunca tenha ouvido falar de Deus nem sequer

    visto uma Bblia, tem em volta de si um mundo criado. Este mundo deve ser uma

    chamada conscincia: quem fez isto? De onde surgiu isto?. Se Deus no

    tivesse se revelado, nada poderamos saber dele Mas como se revelou, podemos

    saber (Joo 3.27 esclarece este ponto). possvel, portanto, estudar sobre Deus.

    Em nosso estudo vamos nos centrar, acima de tudo, na revelao que Deus fez na

    histria, nos profetas e em Jesus Cristo. Isto porque esta revelao est contida nas

    Escrituras Sagradas, que consideramos como Palavra de Deus. Numa expresso que

    Francis Schaeffer gosta de empregar, ela a "revelao proposicional de Deus", ou seja,

    uma revelao que foi formulada em proposies verbalizadas. Simplificando: foi feita em

    expresses, em frases, de maneira que puderam ser ouvidas e podem ser lidas. Partimos

    deste ponto: a autoridade das Escrituras, reconhecendo-a como Palavra de Deus. A Bblia

    a Palavra de Deus e nela est tudo o que o homem precisa saber sobre Deus. Ditas estas

    coisas, centremo-nos mais um pouco na questo da revelao de Deus.

    4. A revelao de Deus - Os tempos em que vivemos so tempos de negao de um Deus

    pessoal. O movimento nova era nos traz de volta o paganismo do passado e nos mostra

    Deus como sendo uma energia ou como uma fora csmica. at intrigante que uma

    gerao to avanada tecnologicamente seja to atrasada em matria de conceitos

    espirituais. Em termos espirituais, voltamos ao passado pago. O paganismo do

    movimento nova era se caracteriza pelo seu pantesmo. Este o nome que se d

    doutrina de que Deus est em todas as coisas e todas as coisas so Deus. E uma das

    caractersticas do pantesmo nova era levar as pessoas a acreditarem que existem

    duendes, que as pirmides e os cristais tm energias, etc. Vemos isso at mesmo nos

    desenhos animados. E em todo tipo de entretenimento, desde o filme "Guerra nas

    Estrelas", com a expresso "Que a Fora esteja com voc". A mensagem passada por

    3 GRAHAM, Billy. Mundo em Chamas. Rio de Janeiro: Editora Record, 1965, p. 124

  • Introduo

    Unidade I

    9

    este filme de fcil entendimento: a divindade uma energia csmica, uma fora, no

    um Ser Pessoal. A continuidade da idia mostrada em "Guerra nas Estrelas" se deu com

    He-Man: "Eu tenho a Fora". A idia da despessoalizao da Divindade continua (ou

    seja, Deus no uma pessoa, mas uma coisa, uma energia, uma fora ou um

    pensamento, ou, ainda, o prprio universo). As pessoas acreditam em si mesmas e em

    energia de cristais e pirmides, mas no numa divindade pessoal. Do ponto de vista

    filosfico, esta postura altamente incoerente. Foi abordada com muita consistncia por

    Schaeffer em uma de suas obras, He is There and He is Not Silent 4 (Ele Est Aqui e No

    Est Calado). A questo que ele levanta a seguinte: o ser humano se comunica. Pode

    um ente que se comunica, o homem, ter sido criado por um Ser que no se comunica?

    Se o criador do que se comunica no se comunica, o criador inferior criatura, o que,

    teolgica e filosoficamente , no mnimo, uma situao incomum. Um homem que se

    comunica (sinal de superioridade) no pode ter sido criado por algum que no se

    comunica (sinal de inferioridade). Como cristos que somos, cremos que Deus se

    comunica, que falou suas verdades ao homem atravs de outros homens, e que estas

    verdades nos foram legadas no que chamamos de "Bblia". Ento voltamos a este ponto,

    que nunca ser repetido em demasia: a Bblia a Palavra de Deus. Nela est a

    comunicao que Deus fez, de si mesmo, aos homens. Ela o ponto de partida de toda e

    qualquer discusso teolgica que venhamos a fazer. Fora da Bblia no se pode fazer

    Teologia Sistemtica, ou seja, no se pode sistematizar os pensamentos sobre Deus. E

    ela que deve ser o padro para avaliar toda e qualquer idia sobre Deus.

    Mas isto nos traz um problema: o que queremos dizer com a declarao de que Deus

    se revelou? Para esta resposta, fiquemos com uma declarao de um telogo chamado

    Thiessen:

    Pascal falou de Deus como um Deus Absconditus (um Deus escondido); mas afirmou que este Deus escondido se revelou e portanto pode ser conhecido. Isto verdade. Certamente, nunca poderamos conhecer a Deus se Ele no se tivesse revelado a ns. Mas o que queremos dizer com 'revelao'? Para ns, o ato de Deus pelo qual ele se mostra ou comunica verdade mente; pelo qual ele torna manifesto s suas criaturas aquilo que no pode ser conhecido de nenhuma outra maneira.5

    4 SCHAEFFER, Francis. He is There and He is Not Silent. Miami: Logoi, 1974 5 THIESSEN, Henry. Palestras em Teologia Sistemtica. S. Paulo: Imprensa Batista Regular, 4 ed., 1997, p.

    10.

  • Teologia Sistemtica I

    10

    Guardemos bem isto: temos uma revelao porque Deus se revelou, no porque o

    homem a descobriu ou arrancou dele. Nas palavras, j citadas, de Joo Batista: "O homem

    no pode receber coisa alguma, se no lhe for dada do cu" (Jo 3.27). Ns no descobrimos

    Deus, como se ele fugisse de ns. Ele se mostrou humanidade e tem procurado por ela,

    desde o den, como vemos na frase: Onde ests?. Ele nunca esteve escondido. A

    humanidade que se esconde dele e s vezes se esconde dele nas dvidas.

    Como j foi dito, o homem tem a revelao geral, isto , o conhecimento da natureza

    e a sua prpria conscincia, sendo que ambas que o levam a reconhecer a existncia de um

    Criador. O texto de Romanos 1 e 2 trata desta revelao geral. Romanos 1.18-31 (que deve

    ser lido) trata da revelao natural e Romanos 2.14-16 (leiamos, tambm) discorre

    especificamente da revelao geral na personalidade humana. Sobre a revelao na

    conscincia, oportuno recordar as palavras do reformador Joo Calvino para quem os

    homens tm sentimento da Divindade por instinto natural, posto em seus coraes. "Para

    que os homens no permanecessem ignorantes dessas verdades, Deus escreveu, bem

    dizendo, imprimiu, a lei no corao de todos".6 Isto significa dizer que cada pessoa tem,

    dentro de si, uma disposio para Deus. Quando no crem na Divindade que se revelou na

    Bblia, crem em deuses que fazem para si, porque no podem ficar sem crer em alguma

    coisa.

    Ao falar da revelao na natureza, Paulo bem enftico em mostrar que ela

    suficiente para dar ao homem um conhecimento sobre Deus a ponto de servir para sua

    condenao, caso ele no reconhea o poder de Deus (Rm 1.18-21). Alguns objetam que o

    testemunho da natureza no pode ser visto como um testemunho forte sobre Deus e se

    tornar um elemento indesculpvel para o homem. Mas pensemos nas palavras de um outro

    telogo, chamado Erickson:

    A linguagem dessa passagem clara e forte. difcil interpretar expresses como 'o que de Deus se pode conhecer' e ' manifesto' (v. 19) como uma referncia a outra coisa, a no ser uma verdade objetiva, cognoscvel acerca de Deus. De modo semelhante, 'porquanto, tendo conhecimento de Deus' (v. 21) e 'a verdade de Deus' (v. 25), indicam posse de conhecimento genuno e exato 7

    6 CALVINO, Joo. Institucin de La Religin Cristiana. Buenos Aires: La Aurora, 1936, p. 29 7 ERICKSON, Millard. Introduo Teologia Sistemtica. S. Paulo: Edies Vida Nova, 1997, p. 48

  • Introduo

    Unidade I

    11

    Paradoxalmente, este conhecimento que a revelao natural d ao homem suficiente para conden-lo, como se observa bem no texto do apstolo Paulo, mas no suficiente para lhe mostrar o plano da salvao. Assim nos diz Paulo Anglada, professor no Seminrio Equatorial, em Belm:

    A revelao natural , portanto, suficiente para condenar, mas no para salvar. Devido ao estado decado do homem, a revelao natural no clara nem suficiente para que as verdades necessrias sua salvao sejam compreendidas8.

    A pessoa pode olhar para um belssimo por de sol e mesmo assim no se sentir

    espiritualmente tocada. Acha que natural, sem qualquer significado espiritual. No se

    sensibiliza. Quando o astronauta russo Gagrin foi ao espao (foi o primeiro homem a faz-lo)

    sua palavra, ao retornar, foi esta: Estive no cu e no vi Deus em lugar algum. Um poeta

    batista, de So Paulo, Giia Jnior, respondeu dizendo: Uma pessoa que no v Deus na sua

    prpria vida no o ver em lugar algum. A prpria vida humana um milagre que exige um

    Criador inteligente. Quem no reconhece isso, pouca coisa reconhecer. Mas de qualquer

    forma, olhando para o testemunho que a natureza d, exigindo um criador, a pessoa deveria

    procurar por ele. Se a natureza no d um testemunho claro do plano de salvao (nem

    poderia, porque o plano da salvao est na pessoa de Jesus ) ela mostra que existe algum

    maior que o ser humano e a quem este deveria reverenciar.

    Corroborando a declarao de Anglada devemos lembrar a afirmao de Paulo: "Logo

    a f pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Cristo" (Rm 10.17).

    O homem tem um conhecimento de Deus na conscincia e na natureza, mas tambm o

    tem na histria. Deus falou atravs dos profetas de Israel. Os profetas viram os eventos

    histricos e os interpretaram como sendo a ao de Deus. Eles anunciaram eventos histricos

    que aconteceram, e mostraram-nos como sendo ao de Deus. Deus age e fala na histria,

    portanto. O texto anteriormente citado de Hebreus 1.1-2 nos mostra que ele falou de "diversas

    maneiras". Lendo este texto bblico podemos compreender bem o esquema de Calvino

    mostrando o processo divino de comunicao ontem, a Israel, e a ns, Igreja, no presente:

    ONTEM HOJE 1. Falou pelos profetas 1. Falou pelo Filho 2. Falou aos patriarcas 2. Falou-nos a ns 3. Falou em diversas ocasies 3. Falou no tempo do fim

    8 ANGLADA, Paulo. Sola Scriptura - a Doutrina Reformada das Escrituras. S. Paulo: Os Puritanos, 1998, p.

    28

  • Teologia Sistemtica I

    12

    O que este esquema nos mostra o que chamamos de "revelao progressiva". Isto

    , Deus foi se comunicando de maneiras diferentes, gradativamente, at que, por fim, na

    plenitude dos tempos (Gl 4.4) deu sua palavra final em Jesus Cristo. Sobre este grande

    final na revelao, vejamos as palavras do erudito telogo alemo Joachim Jeremias:

    Na sua carta Igreja de Magnsia, Incio fala de Cristo como o Logos de Deus: 'Jesus Cristo, que o Logos de Deus, saiu do silncio' (Magnsios 8.2). Incio pressupe que Deus estivera em silncio antes de enviar Jesus Cristo. O silncio de Deus uma noo que provm do judasmo, onde estivera ligada com exegese de Gn 1.3: 'E Deus disse: faa-se a luz'. O que havia antes de Deus falar? - perguntam os rabinos. E davam a resposta: o silncio de Deus. O silncio que precedeu a revelao de Deus na criao precedeu igualmente a revelao da clera contra o fara e se reproduzir antes da nova criao. No mundo helenstico, o 'Silncio' tornou-se o smbolo da mais elevada divindade. Existe at mesmo uma orao ao Silncio. No grande papiro mgico de Paris, chamado de 'Liturgia de Mitra', o mstico, que na rota do cu ameaado por deuses hostis e por potncias estelares, recebe o conselho de pr o dedo na boca e pela orao pedir ajuda ao Silncio: Silncio, Silncio, Silncio

    - Smbolo do Deus eterno e imortal - Toma-me sob tuas asas, Silncio!

    Prece comovente! Deus silncio. Est absolutamente longe e no fala. Diante deste silncio imperturbvel, o homem s pode levantar os braos e gritar: 'Toma-me sob tuas asas, Silncio!'. num mundo que considerava o silncio como um sinal de sua indizvel majestade que ressoa a mensagem da Igreja crist: Deus no mais silencioso - ele fala! De fato, ele j agiu; ele revelou o seu poder eterno atravs da criao, fez conhecer sua santa vontade, enviou seus mensageiros, os profetas. Mas, apesar de tudo isto, ele continuava cheio de mistrios, incompreensvel, imperscrutvel, invisvel, escondido atrs dos principados e potestades, detrs das tribulaes e angstias, atrs de uma mscara que era tudo o que se podia ver. Todavia, Deus no ficou sempre escondido. Houve um momento em que Deus retirou a mscara; de repente ele falou distinta e claramente. Isto se deu em Jesus de Nazar; isto se deu sobretudo na cruz. 9

    Chegamos a este ponto: a revelao final, definitiva, de Deus se deu na pessoa de

    Jesus Cristo. Antes, tudo era um pouco nublado e apenas uma sombra do que viria. Em

    Cristo tudo se torna claro. Agora, prestemos ateno em algo que deve ficar bem claro.

    Revelao progressiva no significa sair do errado para o certo, como se alguma parte da

    9 JEREMIAS, Joachim. A Mensagem Central do Novo Testamento. S. Paulo: Edies Paulinas, 3 ed., 1986,

    p. 114-115

  • Introduo

    Unidade I

    13

    Bblia fosse errada e depois se caminhasse para o certo. Significa, sim, ir do obscuro para o

    claro. Significa ir do bem simples para o mais profundo. E h uma implicao, aqui, que no

    pode ser deixada de lado: Jesus a chave para se entender a Bblia. No Moiss nem o

    Esprito Santo, mas a pessoa de Jesus. Tudo deve ser analisado e entendido luz da

    pessoa de Jesus. Muita gente, hoje, tem trazido o Antigo Testamento para dentro de nossas

    igrejas e desejado que cumpramos suas recomendaes e guardemos suas festas. Ora,

    no somos judeus. Somos cristos. E no podemos analisar o Novo Testamento pelo

    Antigo, mas sim analisar o Antigo Testamento pelo Novo e este pela pessoa de Jesus.

    Mas voltemos a Hebreus 1.2: "nestes ltimos dias a ns nos falou pelo Filho". A

    expresso "ltimos dias" no deve ser entendida em termos escatolgicos, como se

    referisse ao fim do mundo, mas em termos messinicos. So "os dias" na acepo

    teolgica do termo "o dia de Iahweh" nos profetas: um dia em que Iahweh interveio na

    histria. Jesus Cristo a interveno final e decisiva de Deus na histria em termos de

    revelao. Jesus Cristo a revelao plena e cabal de Deus, sua expresso mxima. Em

    Colossenses 1.15, Paulo diz "o qual (Jesus) a imagem do Deus invisvel". Imagem o

    grego eikon, de onde nos vem "cone", que alm de "imagem" significa "gravura". Nesta

    palavra se pode dizer que Cristo a figura exata de Deus. Quem quiser ver Deus deve olhar

    para Jesus porque nele, mais do que em qualquer outro nvel, Deus se revelou. Por isso

    Jesus pde dizer a Filipe: "Quem me viu a mim, viu o Pai" (Jo 14.9). Jesus o melhor

    retrato de Deus que podemos ter. Uretta assim se expressou sobre este ponto:

    Em Jesus Cristo revela-se, tambm, o que Deus , no em termos de declaraes e conceitos, mas em termos de uma pessoa concreta e to real que como em ns, em tudo foi tentado, mas sem pecado (Hb 4.15) 10.

    O que h de mais profundo na revelao de Deus em Jesus Cristo que Deus se

    revelou a si mesmo no de forma abstrata, em conceitos ou palavras, mas revelou-se

    concretamente, em forma humana, embora sem pecado. Foi o mximo em matria de

    revelao porque uma revelao altamente contextualizada, ou seja, no nvel da

    existncia do destinatrio da revelao. A encarnao a mais profunda contextualizao

    da mensagem divina. Deus contextualizou a mensagem, o mensageiro e o meio de

    comunicar. Ele se comunicou tornando-se um como as pessoas que deveriam receber a

    mensagem. S pode haver uma comunicao perfeita quando entramos no mundo da

    10 URETTA, Floreal. Elementos da Teologia Crist. Rio de Janeiro: Juerp, 1995, p. 21

  • Teologia Sistemtica I

    14

    pessoa com nos comunicamos. Deus entrou no nosso mundo, na nossa experincia, como

    homem, para ter uma comunicao perfeita conosco.

    5. Deus ainda se revela? - Esta questo merece ser discutida e com bastante cautela. Se

    dissermos que ele ainda se revela, estaremos dando oportunidade para revelaes

    adicionais s Escrituras, alm de dizer que elas so incompletas. E no podemos aceitar

    nem uma nem outra posio. Se dissermos que no se revela, corremos o risco de dizer

    que ele no mais se comunica. O que tambm no podemos aceitar. Um dos postulados

    da Reforma Protestante foi Sola Scriptura (S a Escritura) , no sentido que ela era guia

    suficiente para a humanidade em seu relacionamento com Deus. Cremos que "toda a

    Escritura inspirada por Deus" (2Tm 3.16). O termo grego usado para o adjetivo

    "inspirada" theopneutos, composto de duas palavras gregas: Thes, "Deus" e pno,

    "soprar". A idia que Deus soprou suas verdades para dentro do escritor bblico.

    Cremos tambm que "homens santos falaram da parte de Deus, movidos pelo Esprito

    Santo" (2Pe 1.21). Mas a questo a ser considerada agora a seguinte: cremos que toda

    a Escritura revelao, mas toda a revelao Escritura? Toda a revelao de Deus foi

    "escriturizada" (reduzida a Escritura) ? "Embora as Escrituras sejam, na sua totalidade, a

    Palavra de Deus, nem toda a Palavra de Deus est nela", afirmam alguns. Esta

    afirmao est correta? Mais uma vez, uma declarao do Prof. Anglada nos ajuda no

    rumo desta discusso:

    Isto no significa que as Escrituras sejam exaustivas. As Escrituras no contm toda a vontade de Deus. O conhecimento a respeito de Deus e da obra so ilimitados. Muitas coisas a respeito do ser de Deus, dos seus atributos, da criao, do homem e dos propsitos eternos de Deus no foram reveladas. As prprias Escrituras afirmam que 'As coisas encobertas pertencem ao Senhor, nosso Deus; porm as reveladas nos pertencem a ns e a nossos filhos para sempre, para que cumpramos todas as palavras desta lei' (Dt 29.29) [...] Nas Escrituras tambm no nos so fornecidas todas as informaes concernentes vida e ao ministrio de Jesus na terra. Na verdade, elas no registram quase nada sobre os primeiros trinta anos da sua vida. O apstolo Joo encerra o seu Evangelho testificando quanto veracidade do seu contedo, mas reconhecendo: 'H, porm, ainda muitas outras coisas que Jesus fez. Se todas elas fossem relatadas uma por uma, creio que nem no mundo inteiro caberiam os livros que seriam escritos' (Jo 21.25) 11

    11 ANGLADA, op. cit., p. 74

  • Introduo

    Unidade I

    15

    Como entender, ento, este problema? Elas so exaustivas ou no? Exaustivas quer

    dizer exclusivas? Elas no so exaustivas no sentido de terem guardado dentro delas toda

    a revelao de Deus, mas ela autoritativa (portadora de autoridade) em matria de

    religio. E exclusivamente autoritativa, ou seja, nenhuma outra revelao pode competir

    ou se ombrear a ela. Nenhum livro, palavra alguma de pregador algum, por mais culto e

    santo que seja, pode se nivelar Bblia. Deus pode falar ao homem de muitas maneiras,

    ainda hoje, mas em termos de revelao, a palavra dele final est na Bblia. neste sentido

    que dizemos que ela a nossa nica regra de f. E neste sentido, ela exclusiva de

    qualquer outra obra. Os mrmons tm O Livro do Mrmon e a Prola de Grande Preo

    como regras de f, particularmente o primeiro. Da mesma forma os adventistas tm suas

    fontes auxiliares de revelao. O ex-adventista Ubaldo Torres Pinheiro, convertido graa,

    em uma igreja batista, escreveu o seguinte em uma obra sua:

    Na ltima assemblia da Igreja Adventista do Stimo Dia, realizada em Dallas, Estados Unidos, no ms de abril do ano passado, foi aprovada uma resoluo onde se diz que Ellen White inspirada no mesmo sentido em que o so os profetas da Bblia e que como mensageira do Senhor, seus escritos so uma continuao e fonte autorizada de verdade 12

    No podemos colocar escrito algum de pessoa alguma ou documento algum de

    denominao alguma como regra de f ou como digna de aceitao sem contestao. Por

    exemplo, como batistas, no aceitamos que a Declarao Doutrinria da Conveno Batista

    Brasileira seja um documento digno de f. um documento muito bem feito, e, podemos

    dizer, sem qualquer erro doutrinrio. Mas apenas um documento que expressa o que os

    batistas crem, e que no pode ser equiparado Bblia. Ele pode ser um documento

    indicativo do que cremos, mas nunca pode ser normativo do que cremos. Ou seja, ele

    mostra o que cremos, mas no uma regra de f para ns. Indica a nossa f, mas no

    nossa norma de f. Por isso que esses documentos devem sempre ser tidos como relativos

    e temporais, ou seja, no so palavra ltima e esto restritos a uma poca, a um tempo

    histrico determinado.

    Deus ainda fala humanidade, mas em termos de se revelar, a revelao cessou.

    No confundamos falar com revelar. Se dissssemos que Deus no fala aos homens, por

    que pregaramos? Por que oraramos pedindo a Deus que nos orientasse em decises a

    12 ARAJO, Ubaldo. O Adventismo . Edio do autor, sem mais dados, 1981, p. 96.

  • Teologia Sistemtica I

    16

    tomar? Cremos que Deus fala, mas no cremos que Deus se revela mais. Isso parece

    confuso? Vamos explicar. Para se entender bem o que queremos dizer com esta declarao

    preciso entender uma coisa: Deus no revelou verdades ou fatos, na sua Palavra. No

    falou sobre alguns assuntos. Falou sobre si. Ele revelou-se a si mesmo. neste sentido que

    dizemos que Jesus Cristo a palavra final de Deus. a revelao climxica (o clmax) de

    Deus aos homens. Tudo o que Deus tinha para mostrar de si aos homens foi mostrado em

    Jesus. O neo e o baixo pentecostalismo tm dado muita nfase " Palavra", mas parecem

    agir como os neo-ortodoxos (um grupo teolgico liberal): usam o termo sem a conotao

    conservadora. Nas mensagens de Valnice Milhomens, observei que vrias vezes ela se

    referia " Palavra", mas no havia nenhuma citao bblica. Descobri que quando Valnice

    fala de "Palavra" est falando da palavra dela, da mensagem dela. Muitos pregadores

    confundem a Palavra com uma palavra . E muitas vezes colocam sua palavra pessoal como

    sendo a Palavra de Deus. fcil de explicar: tanto o neo como o baixo pentecostalismo tm

    dado muita nfase revelao, mas usando o termo no sentido de uma revelao pessoal

    para a vida do indivduo, geralmente vinda pela instrumentalidade do pregador. Ento o

    pregador se sente muito inchado, se julgando um porta-voz de Deus acima da maneira

    como se deveria ver. A Bblia, em alguns crculos, tem deixado de ser normativa para ser

    apenas um livro de milagres que no autoritativo em matria de doutrina. um registro de

    milagres, mas no autoritativo, porque a autoridade fica com o pregador que tm revelaes

    especiais de Deus13. Neste sentido, temos uma aberrao teolgica: ela lhes d autoridade,

    mas no , em si mesma, autoridade. A autoridade a palavra deles. Isto muito perigoso,

    alm de ser uma heresia. A Bblia passa a servir para justificar a posio que essas pessoas

    do a si mesmas.

    Um outro problema neste conceito de revelao no neo e baixo pentecostalismo a

    nfase que colocada na experincia, na subjetividade. Por isto que neste trabalho no

    abordo a questo que muitos telogos, como Strong e Thiessen, entre outros mais, seguem,

    a do testemunho do Esprito Santo junto a ns para confirmar a validade das Escrituras. No

    nego a obra do Esprito em nos confirmar as verdades divinas, at mesmo porque esta

    uma de suas misses (Jo 16.13). O problema, para mim, que esta atitude torna a

    discusso relativa por colocar no subjetivo, na experincia, o elemento que valida a

    13 Veja, a propsito deste processo hermenutico, o livro Igreja Universal do Reino de Deus - Sua Teologia ,

    Sua Prtica, da Comisso Permanente de Doutrina da Igreja Presbiteriana do Brasil

  • Introduo

    Unidade I

    17

    autoridade. Porque qualquer pessoa pode emitir sua opinio alegando o testemunho do

    Esprito Santo. Um mrmon, por exemplo, argido por um pastor batista sobre a duplicidade

    de fonte de autoridade em sua confisso religio, tendo que conviver com a Bblia e com o

    Livro do Mrmon, argumentou que "sentia que o Esprito lhe mostrava que a obra de Joseph

    Smith era inspirada". Por isso, precisamos estabelecer desde j uma verdade teolgica que

    deve ser imutvel: toda e qualquer discusso a respeito de postulados teolgicos dever ter

    a Bblia como regra infalvel de f e elemento autoritativo sobre qualquer outra fonte. Nunca

    deve ser o que pessoa sente, mas o que a Bblia diz. As pessoas podem sentir emoes

    erradas. Neste sentido, a base de toda a nossa argumentao teolgica neste estudo ser a

    crena na autoridade das Escrituras. Esta crena na sua autoridade nos vem da crena em

    sua inspirao (ela soprada por Deus) e sua inerrncia (ela no contm erros), termo que

    iremos caracterizar mais frente. por esta razo que a Declarao Doutrinria da

    Conveno Batista Brasileira tem como seu primeiro tpico "As Escrituras Sagradas". O

    pressuposto que no possvel elaborar uma Declarao Doutrinria sem uma base

    proveniente das Escrituras. Primeiro se deve caracterizar o que se cr sobre as Escrituras

    Sagradas para depois se discutir o restante. Ela a fonte e a base para qualquer discusso

    teolgica. Guardemos isto tambm: tudo estudo teolgico deve comear pelas Escrituras,

    seguir pelas Escrituras, e terminar com as Escrituras. A Bblia o incio, o meio e o fim de

    nosso estudo. No o que a pessoa sente ou que a pessoa acha, mas o que a Bblia diz.

    Ela que a Palavra de Deus e no o que achamos ou o que sentimos.

    Por todas estas coisas que vamos entrar, agora, na unidade II, que trata da Bblia.

  • A Bblia

    Unidade I I

    19

    1. A questo - Nesta altura do nosso estudo teolgico se presume que o estudante da

    Escola Bblica Dominical j tenha informaes suficientes sobre a Bblia como Palavra de

    Deus e o porqu de sua validade para ns. Se um aluno antigo, j sabe o que significa

    a palavra Bblia, de onde vem, etc. So aspectos bem simples que j ficaram para trs.

    Isto deve ter sido visto em muitos outros estudos de EBD. Desta maneira vamos discutir

    agora trs aspectos: (1) os conceitos de inspirao, revelao e iluminao; (2) o

    conceito de inerrncia; (3) o critrio hermenutico para interpretao da Bblia. E vamos

    explicar o que critrio hermenutico. Que ningum desanime pensando que as coisas

    vo se tornar difceis. Nosso trabalho tornar as coisas que parecem ser um pouco

    difceis o mais claro possvel. E, propositadamente, como j dissemos, deixaremos de

    lado questes como o que significa a palavra Bblia. Isso matria j estudada pelo

    aluno da EBD quando foi junior. Estamos estudando Teologia.

    2. Inspirao, revelao e iluminao - Estes trs conceitos caminham bem juntos,

    mantendo uma estreita ligao entre si, e so muito necessrios para se compreender

    bem o ensino da Escritura. Algumas vezes, pela estreiteza de sua proximidade,

    confundem-se um com os outros, na maneira de nossos crentes se expressarem. "O

    Pastor estava inspirado hoje", diz algum ao ouvir o sermo do pastor e gostar do que foi

    dito. Entende-se o que o irmo quis dizer, mas do ponto de vista teolgico seria mais

    correta a declarao: "O Pastor estava iluminado hoje". Isto no discusso ociosa nem

    perda de tempo. Vamos esclarecer o sentido de cada palavra. Desde o incio, uma

    declarao de W. C. Taylor, um dos maiores missionrios batistas pioneiros no Brasil,

    nos ajudar a entender a relao destes conceitos entre si e o sentido de cada um:

    Trs doutrinas vo sempre juntas, na inteligente apreciao do valor da Escritura: revelao, inspirao e iluminao. Para o autor (do texto bblico) veio a REVELAO; para a Escritura que ele transmite veio a INSPIRAO; para o leitor que busca saber por meio dela a verdade e a vontade de Deus, vir, nas condies de espiritualidade, a ILUMINAO. O profeta e o apstolo foram MOVIDOS. Suas Escrituras foram INSPIRADAS. Ns somos ILUMINADOS 14.

    Feita esta observao, bem necessria, analisemos agora cada um dos conceitos

    mencionados.

    14 KASCHEL, Werner. "Revelao e Inspirao no Velho Testamento" , in Revista Teolgica, ano VI, no. 11,

    janeiro de 1955, p. 81. O trecho entre parntesis meu, para esclarecer a c citao de Kaschel.

  • Teologia Sistemtica I

    20

    (1) Inspirao - O termo nos vem do latim inspiro, que significa "soprar para dentro".

    "Inspirao" significa que Deus soprou para dentro do autor bblico a sua verdade (reveja a

    definio de "inspirada" de acordo com o termo grego). Obviamente que isto no literal,

    como se o escritor bblico fosse um balo de encher com sopro, mas sim que Deus colocou

    sua verdade na mente do autor. Com isso queremos dizer que as Escrituras so inspiradas

    no sentido de que Deus soprou para dentro delas o que tinha de dizer ao homem. O

    contedo das Escrituras no uma especulao ou uma descoberta humana aps uma

    longa e cansativa pesquisa filosfica. Deus at poderia usar este mtodo. Afinal, muito dos

    livros histricos podem ter sido produzidos aps pesquisa (a citao de O Livro dos Justos e

    O Livro das Guerras do Senhor mostram isso) e os livros de Provrbios e de Eclesiastes

    podem ter sido produto de uma longa reflexo. E, sem dvida, Moiss usou material de

    outras fontes ao escrever suas obras, se ele o autor de Gnesis. Mas seja qual foi o

    mtodo que o autor usou ou que Deus usou com o autor, isto inspirao. Foi Deus quem

    colocou na mente e no corao do escritor bblico a capacidade de apreender e de registrar

    sua Palavra. Assim dizemos que a Bblia nasceu no corao e na mente de Deus. E ele

    soprou suas idias para o homem. Isto inspirao.

    Mas creio que ainda necessrio mais uma observao nesta rea. Ela nos vem de

    Estevan Kirschener:

    A autoridade delegada, porm, reside especificamente na Palavra, pois a Palavra de Deus. Neste sentido, tambm h uma certa confuso quanto ao conceito de inspirao. Na realidade, o que inspirado no o escritor humano, mas sim o texto bblico; Toda Escritura inspirada. O termo inspirada (theopneustos) , de 2 Timteo 3.16, expressa, mais do que qualquer outra coisa, que o produto final de todo o processo, a Escritura, o que possui a qualidade de ser Palavra de Deus e, portanto, autoridade divina. Os escritores humanos foram conduzidos (pheromenoi) pelo Esprito Santo para que registrassem o texto 'soprado por Deus', o qual possui a autoridade de Palavra de Deus e cuja prerrogativa ser obedecido (2Pe 1.21, cf. 1.19) ". 15

    (2) Revelao - O termo significa "tirar o vu" e mostrar algo que estava encoberto.

    Neste sentido, "revelao" o contedo registrado pela inspirao. A relao entre os dois

    termos pode ser definido assim: a inspirao o automvel e a revelao o passageiro.

    Quando dizemos que "Deus se revelou" estamos dizendo que ele tirou o vu que o encobria

    15 KIRSCHENER, Estevan em artigo "O papel normativo das Escrituras", in Vox Scripturae, vol. Ii, nmero 1,

    maro de 1992, p. 7.

  • A Bblia

    Unidade I I

    21

    diante dos homens (lembre-se da citao de Joachim Jeremias sobre Deus ter dado sua

    ltima palavra em Jesus) e se deu a conhecer humanidade. O propsito da Bblia trazer

    a auto-revelao de Deus aos homens. Ele no revelou fatos ou o futuro ao homem. Estes

    so acidentais. Tambm no revelou questes pessoais, sobre o que comer ou o que no

    comer. H regras alimentares no Antigo Testamento, mas elas fazem parte de um contexto

    que passou. O propsito da Bblia falar de Deus. Ele revelou-se a si mesmo.

    Esclareamos a questo com a prpria Bblia. J sabemos que Jesus o clmax da

    revelao de Deus. Ento podemos entender bem este ponto com o texto de Joo 1.18:

    "Ningum jamais viu a Deus. O Deus unignito, que est no seio do Pai, esse o deu a

    conhecer". Jesus a maior revelao de Deus e a finalidade da revelao tornar Deus

    conhecido dos homens. Nele, o Pai se d a conhecer aos homens.

    Devemos, antes de considerar iluminao, deixar bem clara a conexo existente

    entre revelao e inspirao. Pensemos, ento, nestas palavras de um telogo chamado

    Chafer:

    Revelao e inspirao esto estreitamente ligadas., mas distinguem aspectos da verdade bblica. Nas Escrituras, ambas, inspirao e revelao, se combinam para nos assegurar que a Bblia a Palavra de Deus e revela fatos sobre Deus com completa acurcia. A revelao foi o ato da divina comunicao aos escritores da Escritura. Inspirao foi a obra de Deus em guiar e dirigir os escritores da Bblia para que o que eles escrevessem fosse absoluta verdade mesmo quando estivesse alm do seu entendimento. A inspirao foi limitada Bblia em si, e mais adequado dizer que as Escrituras foram inspiradas do que dizer que os escritores foram inspirados 16

    (3) Iluminao Esta palavra significa "fazer a luz brilhar". Ns no somos inspirados

    simplesmente porque no recebemos a revelao, mas somos iluminados para conhec-la.

    Entendemos mais isto luz de uma palavra de Paulo: "sendo iluminados os olhos do vosso

    corao, para que saibais qual seja a esperana da vossa vocao, e quais as riquezas da

    glria da sua herana nos santos" (Ef 1.18). A iluminao para que os crentes descubram

    as grandes verdades reveladas por Deus na sua Palavra e sua aplicao para as suas

    vidas.

    A conexo entre estes trs conceitos nos possibilita compreender um pouco mais

    como Deus se revelou e como podemos receber, hoje, essa revelao.

    16 CHAFER, Lewis. Systematic Theology. Wheaton: Vicotr Books, 1988, vol. I, p. 63.

  • Teologia Sistemtica I

    22

    3. O conceito de inerrncia - O conceito de inerrncia pode ser bem descrito nas palavras

    da Declarao Doutrinria da Conveno Batista Brasileira sobre a Bblia: "seu contedo

    a verdade, sem qualquer mescla de erro, e por isso um perfeito tesouro de instruo

    divina" 17. A Bblia no tem erros, portanto. Mas uma questo deve ser levantada: em

    que sentido seu contedo a verdade? A Bblia toda a verdade? Isto diferente de

    perguntar se toda ela verdade. Cremos que tudo o que ela diz verdade. Mas s existe

    verdade nela? Ela toda a verdade? Ela est sempre certa, mesmo quando faz

    declaraes que no podem ser sustentadas e so at refutadas? O episdio do sol e da

    lua detidos por palavra de Josu (Js 10.12-15) refletem uma viso geocntrica (a Terra

    seria o centro) do universo, antes de Coprnico e que no pode ser sustentada por

    ningum, nem pelo crente mais fiel. Sabemos hoje que o universo heliocntrico (o Sol

    o centro). Como entender isto? Outro aspecto: a viso do mundo conforme o

    pensamento dos hebreus do Antigo Testamento a de um edifcio com trs pisos, um

    subterrneo, o xeol, o nosso nvel que seria o trreo, e o espiritual, que o pavimento

    superior. possvel harmonizar estas idias com o nosso conhecimento hoje? Para

    alguns vultos cristos do passado, a inspirao das Escrituras produziu uma inerrncia

    absoluta e de acordo com eles e seus seguidores, hoje, a resposta seria "sim". Veja-se

    esta declarao de Boice:

    O estudioso mais erudito da igreja primitiva foi Orgenes. Para ele, a inspirao se estendia at aos iotas das Escrituras e s letras. As Escrituras no continham falha alguma, sendo inspiradas pelo Esprito Santo. Acrescentou ele que esta doutrina da infalibilidade era ensinada em todas as igrejas. 18

    No podemos, no entanto, insistir nesta postura de Orgenes. Crer que Deus

    inspirou as palavras e as letras da Bblia pode nos trazer mais dificuldades do que

    pensamos, primeira vista. Como fazer, por exemplo, com as diferenas textuais que

    temos, que evidenciam um erro no manuscrito? Um exemplo: em Isaas 9.3, o Texto

    Massortico (o texto escrito em hebraico), em vez de "a alegria lhe aumentaste" traz " a

    alegria no aumentaste". Em vez de lw (para ele), o TM traz l (no). O copista cometeu

    uma homofonia, isto , trocou palavras homfonas, palavras que tm sons parecidos. O

    sentido do texto ficou sendo completamente diferente. O texto hebraico no faz sentido por

    17 Declarao Doutrinria da CBB, artigo I. 18 BOICE, James. O Alicerce da Autoridade Bblica. S. Paulo: edies Vida Nova, 1982, p., 30. A declarao

    de Orgenes est na sua Homlia sobre Nmeros 27.1.

  • A Bblia

    Unidade I I

    23

    causa do erro do copista. A Verso Revisada traduziu diferente do texto hebraico e traz "lhe

    aumentaste". A Verso Matos Soares traduziu o texto hebraico e traz : "no aumentaste". 19

    O versculo ficou sem sentido. E teramos um problema: qual das duas verses estaria

    correta?

    A contra-argumentao que Deus inspirou o autgrafo (ou manuscrito) original, aquele

    produzido pelo escritor bblico, e no as cpias que dele se fizeram. Mas desde que no

    temos acesso a esses autgrafos ou originais, que diferena isso far? Por isso que

    devemos definir esta questo: a inerrncia textual ou conceitual? Ou seja, literal ou

    plena? inerrncia dos conceitos ou das palavras? Voltando ao ponto anterior: quando a

    linguagem cientfica enfocada pela Bblia mostra estar equivocada, como proceder?

    Vejamos esta declarao de Lindsell:

    A inspirao est inextrincavelmente ligada autoridade e inerrncia. Charles Hodge percebeu isso quando foi inquirido se a Bblia continha equvocos histricos e cientficos. Ele asseverou que h uma diferena fundamental entre os que os escritores bblicos pensaram e escreveram em nvel pessoal e o que eles escreveram nas Escrituras. Eles podiam crer que o Sol gira ao redor da Terra, mas eles no ensinaram isso na Escritura. A linguagem da Bblia a linguagem do cotidiano e baseada no aparente. Foi usada uma linguagem fenomenolgica, como ainda hoje usamos 20.

    Sobre os erros dos copistas, aqui entra o trabalho do tradutor, que se no

    inspirado, deve ser iluminado. Entra, tambm, o trabalho do exegeta (o pregador ou escritor

    que extrai as verdades da Bblia para comunicar aos homens), que se no inspirado, deve

    ser iluminado. E a reverncia e submisso do crente para com a Escritura para entender

    bem qual o seu propsito. A compreenso da verdade divina no inclui apenas a

    revelao e a inspirao, mas tambm a iluminao. Isto necessrio de se repetir para

    que fique bem ntido em nossa mente.

    Mas voltemos linha de argumentao anterior. O que dizer da inerrncia, ento, se

    h erros de copistas? A primeira coisa a dizer que isso no tira a autoridade da Bblia. Se

    pedssemos a uma pessoa para digitar um texto bblico no computador e a pessoa errasse

    19 Para mais exemplos de erros de copistas, veja o captulo "A Baixa Crtica do Antigo Testamento" em

    ARCHER, Gleason. Merece Confiana o Antigo Testamento?. S. Paulo: Edies Vida Nova, 2 ed., 1979. 20 TENNEY, Merril (ed.). The Zondervan Pictorial Encyclopedia of the Bible. . Grand Raids: Zondervan

    Publishing House, 2 ed., 1977, 3 volume, p. 289. Sobre a linguagem fenomenolgica usada ainda hoje: falamos que o Sol se pe, quando no assim. O movimento no dele, mas da Terra. Do ponto de vista cientfico, a linguagem tambm est errada. O Sol no nasce nem se pe, mas a Terra que se move.

  • Teologia Sistemtica I

    24

    alguma tecla, o texto sairia com incorrees. No deveramos desprezar o trabalho, mas

    corrigir os erros de digitao (no do texto bblico). Os copistas no invalidaram a obra

    inspirada de Deus. O que temos que fazer entender onde cometeram equvocos e,

    iluminados pelo Esprito Santo, tentar entender o que Deus disse.

    H trs opes no conceito de inerrncia. Vejamos cada um deles e busquemos

    situar-nos aqui.

    O primeiro a inerrncia absoluta, que sustenta que a Bblia absolutamente correta

    mesmo quando emite opinies cientficas e histricas que so contraditadas hoje. Nesta

    postura, os escritores bblicos tinham a inteno e a possibilidade de oferecer conhecimento

    cientfico e histrico exatos. Novamente um exemplo para nosso raciocnio. 2Crnicas 4.2,

    falando do mar de fundio, diz que seu dimetro era de 10 cbitos, enquanto que a

    circunferncia era de 30. Mas a circunferncia de um crculo pi (3,14159) vezes o

    dimetro. Se o mar de fundio era realmente circular, temos aqui um equvoco bblico que

    exige explicao.21 Mas os defensores da inerrncia absoluta mantm sua posio e

    apresentam suas explicaes, nem sempre convincentes.

    O segundo a inerrncia plena. Basicamente ele segue a mesma linha de absoluta,

    mas diz que o propsito da Bblia no prestar informaes cientficas e histricas, mas

    quando o faz, est correta. As discrepncias devem ser entendidas como "referncias

    fenomenais", ou seja, como se apresentam aos olhos humanos. No so exatas

    rigorosamente falando, mas como se apresentam aos olhos humanos., como os homens

    captaram o fenmeno.

    O terceiro a inerrncia limitada. Ela tambm aceita a Bblia como infalvel e

    inerrante mas em suas doutrinas, no seu discurso sobre Deus. No a considera como

    antiintelectual ou obscurantista, mas reconhece que h assuntos empricos (provados e no

    de f), naturais, e assuntos no-empricos, os revelados. A Bblia deve ser entendida como

    um livro de assuntos no-empricos, isto , assuntos espirituais, e no um manual de cincia

    ou de histria. Eis o que nos diz Erickson:

    A revelao e a inspirao no colocam os escritores acima do conhecimento habitual. Deus no lhes revelou a cincia ou a histria. Por conseguinte, nessas reas, a Bblia bem pode conter o que chamaramos de erros. Isso, porm, no

    21 Este exemplo foi tomado de Erickson, op. cit., p. 80, na sua discusso sobre os conceitos de inerrncia aqui

    alistados.

  • A Bblia

    Unidade I I

    25

    tm grandes conseqncias. A Bblia no se prope a ensinar cincia nem histria. Mas dentro dos objetivos para os quais foi dada, a Bblia plenamente verdadeira e inerrante. 22

    Esta discusso tem boa dose de valor, mas creio que ela relativa e no absoluta.

    Discutir a inspirao de letras e palavras bem como tentar ver declaraes cientficas ou

    histricas na Bblia pode desvirtuar seu real sentido para ns. Afinal, esta no a sua

    finalidade. Voltamos a este ponto: ela no um manual de cincia. necessrio

    reafirmarmos nossa crena na Bblia como Palavra inspirada de Deus aos homens. Isso

    inegocivel, como verdade teolgica. No abrimos mo disso. Mas devemos deixar bem

    claro que seu propsito fundamental mostrar Deus humanidade e no cuidar de

    aspectos perifricos ou secundrios. Porque seno corremos o risco de olhar as rvores e

    no ver a floresta, ou cuidar do varejo e deixar o atacado. A finalidade da Bblia, como bem

    nos diz a Declarao Doutrinria da Conveno Batista Brasileira, "revelar os propsitos

    de Deus, levar os pecadores salvao, edificar os crentes, e promover a glria de Deus" 23. Devemos ter isto sempre em mente. Tentar harmoniz-la com a cincia pode nos trazer

    um problema maior ainda: a cincia evolutiva, mutvel e recebe novas descobertas. Deus

    no quer ensinar cincia na Bblia, mas o caminho da salvao. Afirmaes que hoje so

    sustentadas pelos cientistas, amanh sero desmentidas, como as de hoje fazem com as

    de ontem. Teremos que reinterpretar a Bblia luz de cada nova descoberta. Estaremos

    sempre refazendo a doutrina crist. Por isso, reconhecendo seu campo e seu propsito,

    sabendo do que ela trata, consideramos uma verdade inicial: em tudo que ela ensina sobre

    Deus sua autoridade ltima. Livro algum a supera nem homem algum pode presumir que

    se colocar acima dela. Mas no devemos fazer cincia com a Bblia.

    4. Uma formulao teolgica da doutrina da revelao especial - O esquema seguinte de

    Hammett24 e o crdito deve lhe ser dado. Ele nos ajuda a entender mais a questo de

    como nossa doutrina da revelao especial de Deus pode ser entendida:

    1 Passo - Os pensamentos na mente de Deus

    2 Passo - Os pensamentos na mente do autor >>>>> REVELAO

    22 ERICKSON, op. cit., ps. 80-81 23 Declarao Doutrinria da CBB, artigo I. 24 HAMMETT, John. Apostila Para os Alunos de Teologia Sistemtica. North Carolina, apostila no

    comercial, 1995, p. 22

  • Teologia Sistemtica I

    26

    3 Passo - Estes pensamentos na forma escrita >>>> INSPIRAO

    4 Passo - Coleo completa destes escritos num livro >>>>> CANONIZAO

    5 Passo - Cpias e tradues deste livro >>>>>RESERVAO

    6 Passo - Os pensamentos de Deus em ns hoje >>>>> ILUMINAO

    No tratamos nesta apostila dos conceitos de canonizao (como o Esprito

    selecionou quais livros deveriam fazer parte da Bblia) e preservao (como Deus manteve

    os documentos que deram origem aos livros da Bblia), porque so temas que fogem ao

    nosso propsito. Mas preste-se ateno nos conceitos e no que cada um significa.

    Podemos confiar em que temos uma Escritura digna de confiana? A resposta uma

    s, sem dvida: sim! Cremos que Deus se revelou a si mesmo, inspirando os homens que

    escreveram a Bblia. Cremos que por ao sua, em obra do Esprito Santo, o cnon bblico

    foi formado, e que por preservao, tais manuscritos nos chegaram s mos. No temos os

    autgrafos originais, mas a cincia bblica que trata da cannica (o estudo do cnon) pode

    nos assegurar que temos hoje tradues de originais antigos e confiveis. Cremos tambm

    que um intrprete, bem capacitado e sob iluminao do Esprito Santo, pode trazer os

    pensamentos da mente de Deus ao homem contemporneo. Cremos que uma congregao

    sria, reverente, buscando conhecer a Palavra de Deus e no apenas buscando um culto

    agitado, pode ouvir a voz de Deus na Bblia. Esta razo pela qual buscamos um estudo

    srio da Bblia e procuramos primar por uma apresentao coerente de seu contedo.

    Encerrando a discusso sobre a Bblia, mesmo que um pouco fora de contexto em

    termos de argumentao, que fiquem conosco as palavras de Immanuel Kant: "A existncia

    da Bblia a maior bno que a humanidade jamais experimentou" 25. E verdade. Sem a

    Bblia, quanto de ensino proveitoso este mundo teria perdido!

    4. O CRITRIO HERMENUTICO Hermenutica o nome que d cincia da

    interpretao. Critrio hermenutico o padro que vamos usar para interpretar a Bblia.

    Vamos estabelecer alguns princpios, desde j, com base no que estudamos.

    25 SAYO, Lus. Cabeas Feitas - Filosofia Prtica Para Cristos. S. Paulo: Grupo Interdisciplinas Cristo, 2

    ed., 1998, p. 57

  • A Bblia

    Unidade I I

    27

    (1) Sendo toda Palavra de Deus, a Bblia no pode se contradizer. Deus no se contradiz. Quando encontrarmos um versculo que, aparentemente, se choca com outro versculo, no temos o direito de jogar um contra o outro. Eles devero ser interpretados luz do contexto histrico, cultural, da gramtica e do propsito do livro. Esta matria no de Teologia Sistemtica, mas esta informao deve ser dada. H pessoas, tolas e que gostam de se colocar sob holofotes, que tm prazer em procurar passagens bblicas que, aparentemente, contradizem outra. Infantilidade.

    (2) Se Jesus Cristo revelao final de Deus (relembre Hebreus 1 e 2), ele a chave hermenutica para se entender a Bblia. Lembre-se do que est na pgina 12: o Novo Testamento que interpreta o Antigo Testamento. Sem Jesus, a Bblia no tem sentido. Sem Jesus , a leitura do Antigo Testamento incompleta. Leia 2Corntios 3.14-16. Em outras palavras, o que est sendo dito ali isto: quando um judeu se converte a Jesus, o vu da antiga aliana (o Antigo Testamento) removido em Cristo. em Cristo que se pode entender a Bblia. Ele a reinterpretou. Veja, em Mateus 5.21-22, 5.27-28, 5.31-32, 5.33-34, 5.38-39, como ele afirma sua autoridade sobre a de Moiss. Em 5.43-44 (a lei no mandava odiar os inimigos, mas sim os fariseus e os essnios) como ele afirma sua autoridade sobre a dos lderes religiosos. Toda a Bblia deve ser entendida luz da pessoa de Jesus. O Antigo Testamento era uma preparao para ele. O Novo Testamento a confirmao da vida e ministrio dele. Por isso que o Antigo deve ser entendido luz do Novo.

    5. A DECLARAO DOUTRINRIA DA CBB - ESCRITURAS SAGRADAS -

    Transcrevemos, a seguir, o trecho da Declarao Doutrinria da Conveno Batista

    Brasileira sobre "Escrituras Sagradas". o tpico I, o que mostra o entendimento da CBB: o

    ponto de partida para confeco de seus postulados doutrinrios a Escritura, a Palavra de

    Deus. O ideal que o estudante da Bblia veja cada tpico da Declarao e examine as

    passagens bblicas.

    A Bblia a Palavra de Deus em linguagem humana (1). o registro da

    revelao que Deus fez de si mesmo aos homens (2). Sendo Deus seu

    verdadeiro autor, foi escrita por homens inspirados e dirigidos pelo Esprito

    Santo (3). Tem por finalidade revelar os propsitos de Deus , levar os pecadores

    salvao, edificar os crentes, e promover a glria de Deus (4). Seu contedo

    a verdade, sem mescla de erro, e por isso um perfeito tesouro de instruo

    divina (5). Revela o destino final do mundo e os critrios pelos quais Deus

    julgar todos os homens (6). A Bblia a autoridade nica em matria de

    religio, fiel padro pelo qual devem ser aferidas a doutrina e a conduta dos

  • Teologia Sistemtica I

    28

    homens (7). Ela deve ser interpretada sempre luz da pessoa e dos ensinos de

    Jesus Cristo (8).

    (1) Salmos 119.89, Hebreus 1.1, Isaas 40.8, Mateus 24.35, Lucas 24.44-45, Joo

    10.35, Romanos 3.2, 1Pedro 1.25, 2Pedro 1.21

    (2) Isaas 40.8, Mateus 22.29, Hebreus 1.1-2, Mateus 24.35, Lucas 24.44-45 e

    16.29, Romanos 16.25-26, 1Pedro 1.25.

    (3) xodo 24.4, 2Samuel 23.2, Atos 3.21, 2Pedro 1.21

    (4) Lucas 16.29, Romanos 1.16, 2Timteo 3.16-17, 1Pedro 2.2, Hebreus 4.12,

    Efsios 6.17, Romanos 15.4

    (5) Salmo 19.7-9, Salmos 119.105, Provrbios 30.5, Joo 10.35, e 17.17, Romanos

    3.4 e 15.4, 2Timteo 3.15-17

    (6) Joo 12.47-48, Romanos 2.12-13

    (7) 2Crnicas 24.19, Salmo 19.7-9, Isaas 34.16, Mateus 5.17-18, Isaas 8.20, Atos

    17.11, Glatas 6.16, Filipenses 3.16, 2Timteo 1.13

    (8) Lucas 24.44-45, Mateus 5.22, 28, 32, 34, 39, Mateus 17.5 e 11.29-20, Joo 5.39-

    40, Hebreus 1.1-2, Joo 1.1-2 e 1.14.

  • A Doutrina de Deus

    Unidade I I I

    29

    Comecemos o estudo sobre a doutrina de Deus com uma declarao de Agostinho:

    "nenhum homem diz 'Deus no existe', a no ser aquele que tem interesse em que ele no

    exista" 26. A frase do ilustre telogo do sculo V tem um sentido bem claro: para ele a

    dvida ou negao sobre a existncia de Deus tem muito mais base tica do que intelectual.

    O homem no cr no porque isto seja um absurdo intelectual, uma ofensa sua

    inteligncia, mas simplesmente porque no quer crer. Declarar a existncia de Deus traria

    implicaes ticas. Na maior parte das vezes, segundo Agostinho, a negao da existncia

    de Deus mais moral do que intelectual. melhor no crer do que crer, para a pessoa que

    no quer levar uma vida correta. Dizer que a Bblia a Palavra de Deus e viver

    contrariando-a nas suas atitudes um contra-senso. Ento, melhor neg-la ou no ligar

    para ela.

    H uma boa dose de verdade nestas palavras. Mas muitas pessoas gostariam,

    sinceramente, de crer em Deus e enfrentam dificuldades para fazer assim. O ensino de

    Freud, por exemplo, amplamente divulgado em sua obra O futuro de uma iluso (que uma

    crtica bem dura ao sentimento religioso) , de que Deus a ampliao da figura paterna.

    No foi Deus quem criou o homem, mas este que criou Deus. No ser Deus uma mera

    personificao dos anseios humanos? O que a Bblia tem a dizer para provar a existncia de

    Deus? De incio, digamos que esta no a preocupao da Bblia. Como j foi dito, ela

    parte do pressuposto de que Deus existe e que seus leitores aceitam tranqilamente este

    fato. Para ela, negar sua existncia um ato prprio do nabhal, que a palavra hebraica

    para designar o homem insensato de Salmos 14.1. verdade que o atesmo do texto

    mais de ordem pragmtica (conduta) que filosfica (pensamento), mas permanece o

    princpio. Afinal, possvel ter-se noo da existncia de Deus, conforme lemos em

    Romanos 1.20. A Bblia no tem a preocupao de provar que Deus exista, mas no

    impede que se tente faz-lo. Ao longo da histria, a Igreja tentou. No tendo a preocupao

    de gastar espao com este assunto, pois estamos discutindo a pessoa de Deus e no

    tentando provar sua existncia, fiquemos com uma citao de Hammett:

    ... A Bblia d algum apoio s provas cosmolgica e teleolgica (Atos 17.24-29, Romanos 1.20) e moral (Romanos 2.14-15). Tambm, h evidncia cientfica e filosfica para a existncia de Deus. Esta evidncia pode ser usada para fortalecer a f dos crentes e responder s perguntas intelectuais dos no-crentes, mas no necessrio nem possvel provar a existncia de Deus. No

    26 Ib. ibidem, p. 56

  • Teologia Sistemtica I

    30

    necessrio porque cada pessoa j sabe que Deus existe (Rm 1.20); no possvel provar completamente a existncia de Deus porque questo de f (Hb 11.6). Crer na idia de tesmo ou atesmo questo de f. Toda pessoa tem f em alguma coisa. A existncia de Deus no a questo mental, mas moral: vamos aceitar que Deus existe e que somos responsveis diante dele? 27

    Nas palavras de Hammett est a mesma formulao de Agostinho: crer na existncia

    de Deus implicaria na responsabilidade de viver corretamente diante dele. E isto nem

    sempre as pessoas esto dispostas a pagar. Como disse Kierkegaard, saber se Deus existe

    no relevante, mas o relevante saber se Deus relevante para mim. A discusso sobre

    a existncia ou no de Deus, que foi muito forte nos anos sessentas, perdeu muito de sua

    fora, atualmente. Eis uma observao nesta linha, feita por Blank:

    H aproximadamente cinqenta anos, no meio cientfico, era moda negar a existncia de Deus. Hoje em dia, aps as ltimas descobertas das cincias da natureza sobre a estrutura fascinante do universo, o incio do cosmo e os mecanismos complexos da evoluo, so os grandes cientistas que, pelo contrrio, admitem que Deus deve existir. Encontramos tais declaraes com Einstein e Max Planck e, mais recentemente, com J. E. Charon e outros 28.

    A seguir, na sua obra, Blank alista algumas declaraes de alguns cientistas

    contemporneos, declaraes bem cuidadas, em que a necessidade de um Ser supremo

    mostrada como resposta necessria para o mundo material. Mas mesmo as declaraes

    destes cientistas no podem ser tomadas como absolutas. Deus no matria de cincia.

    Nem da Filosofia. E o mximo que a cincia pode nos dar um ser criador, e assim mesmo

    nada nos revelar sobre seu amor e sua revelao, bem como seu propsito para o mundo. E

    a Filosofia, no mximo pode nos dar uma Razo, um Motor, uma Causa no Causada, mas

    no um Deus de amor. Pode-se ter, na especulao cientfica e filosfica, um Deus

    impessoal, uma causa no causada, mas nunca um Deus de amor e moral, com propsitos

    definidos para o homem. Isso s a Bblia pode nos dar. Por isso que as tentativas de provar

    a existncia de Deus nem sempre sero satisfatrias.

    Mas, quem ou o que Deus? Como ele ? Qual a sua natureza? Todas estas

    perguntas podem ter muito sentido para o pretendido telogo, mas a questo que se eleva

    sobre todas essas a seguinte: quais as implicaes da existncia de Deus para nossa

    vida? A vida de um crente ser determinada pelo seu conceito sobre Deus. E muitos dos

    27 HAMMETT, op. cit., p. 28 28 BLANK, Renold. Quem, Afinal, Deus?. S. Paulo: Edies Paulinas, 2 ed., 1988, p. 11.

  • A Doutrina de Deus

    Unidade I I I

    31

    problemas da igreja contempornea decorrem daqui: um conceito muito baixo de Deus, que

    visto como um quebrador de galhos ou algum nossa disposio para resolver

    qualquer problema nosso. Uma compreenso correta da Divindade, portanto, ser

    fundamental para nossa vida. Por isso, comecemos com esta pergunta: quem Deus?

    1. Quem Deus? - Responderemos com uma citao de Mullins:

    Deus o supremo esprito pessoal; perfeito em todos os seus atributos; que a fonte, o sustentador, e o fim do universo; quem o guia conforme seu propsito sbio, reto, e amoroso, revelado em Jesus Cristo; quem mora em todas as coisas mediante seu Santo Esprito, procurando sempre transform-las conforme a sua prpria vontade e traz-las a seu reino 29.

    Parece uma definio um pouco longa, e h outras menores do que esta. Bem, se h

    definies menores, por que, ento, optar por esta? Porque ela aborda alguns aspectos

    relevantes nossa discusso:

    1) O que Deus em si mesmo,

    2) Os atributos de Deus,

    3) A relao de Deus com sua criao,

    4) O propsito de Deus em Cristo,

    5) Deus e a natureza progressiva do Reino,

    6) Deus e a obra do Esprito Santo no Reino,

    7) O propsito de Deus na consumao do reino.

    Esta definio humana, visando abrir espao para uma exposio doutrinria a

    seguir. Mas, o que diz, exatamente, a Bblia sobre Deus? Como ela o define?

    Nas palavras de Jesus, "Deus esprito" (Jo 4.24). Mais tarde, temos outras palavras

    de Jesus: "Apalpai-me e vede; porque um esprito no tem carne nem ossos como vedes

    que eu tenho" (Lc 24.29). Podemos deduzir que Deus no tem corpo, no matria, no

    est limitado ao tempo e ao espao, que so categorias da matria. Esta declarao bblica,

    29 MULLINS, Edgar. La Religin Cristiana en su Expresin Doctrinal. El Paso: Casa Bautista de Publicaciones,

    s/d, p. 218.

  • Teologia Sistemtica I

    32

    apesar de simples e lacnica, profunda, porque mostra que Deus tem uma dimenso que

    o homem no tem. O homem tambm esprito, mas Deus esprito. Deus, um dia, foi

    carne. O homem carne. H grande diferena aqui. Tambm uma coisa. outra

    coisa. Foi uma coisa. outra coisa.

    Uma outra definio bblica sobre Deus diz respeito ao seu carter: "Deus amor"

    (1Jo 4.8). No relato posterior de Joo se v que foi seu amor que o impeliu para a ao de

    enviar Jesus (1Jo 4.9). Neste sentido, seus atos so motivados pelo seu amor. Mesmo

    quando se trata de seu juzo, o que o leva a julgar o seu amor retido e santidade.

    Com isto se quer dizer que em Deus no h motivao injusta ou maldosa, mas que seu

    amor que o leva a agir. Foi por isso que, mais do que apresentar uma definio, Langston

    declarou sobre Deus: "Esta a idia crist de Deus. Deus Esprito Pessoal, perfeitamente

    bom, que em santo amor cria, sustenta e governa tudo" 30.

    So poucas as boas definies de Deus. Elas podem nos satisfazer em algum

    aspecto, mas permanece um ponto: como definir o indefinvel? Como um ente limitado (o

    ser humano) pode definir aquele que ilimitado (Deus) ? Por isso que no gastaremos

    muito tempo com este aspecto. Basta-nos o que aqui est.

    2. A transcendncia de Deus - Um postulado teolgico inevitvel quando se fala de Deus

    sua transcendncia. O que significa esta palavra esquisita, transcendncia? Isso

    significa que Deus est fora dos limites fsicos e sensoriais (isto , dos sentidos). Que

    no se restringe ao mundo fsico, que no pode ser compreendido pelos sentidos, que

    no est preso ao mundo material. Deus no pode ser visto, tocado, cheirado.

    Transcendente aquilo (aquele) que transcende ou ultrapassa a esfera da experincia

    racional do homem. Esta transcendncia divina fica patente nas muitas declaraes do

    Antigo Testamento exaltando a santidade de Deus em contraste com a pecaminosidade

    humana. Todo o sistema sacerdotal, por exemplo, uma amostra de como Deus est

    distante dos homens e diferente deles. E, na realidade, o sistema sacerdotal, embora

    institudo por Deus, praticamente pedido pelo povo, como lemos em xodo 20.19: "E

    disseram a Moiss: Fala-nos tu mesmo, e ouviremos; mas no fale Deus conosco, para

    que no morramos ". O povo sabia que havia uma distncia enorme entre ele e Deus, em

    30 LANGSTON, A . B. Esboo de Teologia Sistemtica. Rio de Janeiro: JUERP, 5 ed., 1977, p. 45.

  • A Doutrina de Deus

    Unidade I I I

    33

    termos de carter. Mas em Eclesiastes 5.2 que encontramos isto bem definido: "...

    porque Deus est no cu e tu ests sobre a terra; portanto sejam poucas as tuas

    palavras". H um abismo entre Deus e o homem e isto no apenas em distncia. O

    que est em foco a diferena qualitativa entre os dois: Deus celestial e o homem

    terreno. Deus santo e somos pecadores. por isso que ele exige santidade do seu

    povo (Lv 11.44-45 e 1Pe 1.16).

    Em termos clssicos pode-se dizer que esta transcendncia de Deus se verifica na

    natureza (ele parte dela, no sendo um com ela, sendo ele imaterial) e no espao (ele

    no limitado, estando numa dimenso imaterial e no-espacial). E isto, a noo de

    transcendncia, que torna a f bblica to distinta das demais. Porque, diferentemente do

    ambiente cultural em que os hebreus viviam, h uma diferena entre o Criador e a criao.

    Ele no se confunde com ela, em momento algum. No Egito, o Nilo era uma divindade.

    Entre os hindus, "tudo Deus e Deus tudo", um pantesmo absoluto. Para os hebreus, a

    Divindade no est no mundo material e sensvel. Est acima da natureza. Ele no faz

    parte dela. E ela no emanao, uma onda, dele. A matria tambm no divina, foi

    criada, mas nunca exaltada como sendo igual ao Criador. Criador e criatura, Criador e

    criao so distintos. A transcendncia de Deus fica bem patente em todo o relato bblico.

    Deus diferente do mundo criado. Deus e uma rvore, Deus e uma vaca, so bem

    diferentes.

    Ajuda-nos a compreender mais esta questo o conceito de "numinoso", de Rudolph

    Otto. Para definir o elemento sagrado, bem como a sensao do homem diante do sagrado,

    ele criou este termo, derivado de numen e explicou:

    Eu uso a palavra numinoso. Se lumen pode servir para formar luminoso, numen pode formar o numinoso. Falo de uma categoria numinosa como uma categoria especial de interpretao e de avaliao, um estado de alma que se manifesta quando essa categoria aplicada, isto , cada vez que um objeto concebido como numinoso 31.

    Mas, o que numinoso? O que numen? Numen o termo latino para divindade, e

    numinoso tudo aquilo que no pode ser explicado ou entendido racionalmente. Numen

    tem um sentido que ultrapassa o conceito de "divindade". Segundo Brown, " algo que

    bem diferente da perfeio moral. algo que ''Totalmente Outro' em relao ao mundo

    31 OTTO, Rudolph. O Sagrado. S. Bernardo do Campo: Imprensa Metodista, 1985, p. 12.

  • Teologia Sistemtica I

    34

    natural" 32. Ou seja, Deus o Totalmente Outro, completamente distinto do mundo natural,

    quer seja a natureza seja a humanidade.

    3. A imanncia de Deus - Mas a transcendncia de Deus no significa que ele no seja,

    tambm, imanente. Esta palavra significa, mais ou menos, estar presente. "Um

    importante par de nfases que devemos preservar com toda certeza a doutrina da

    imanncia de Deus em sua criao e de sua transcendncia em relao a ela. Ambas as

    verdades so ensinadas na Escritura" 33.

    Mas como pode Deus ser transcendente e imanente ao mesmo tempo? No

    estaremos ficando muito confusos? Parece que as coisas esto se complicando! A definio

    de imanncia nos mostrar que no h choque de declaraes. Imanncia a presena de

    Deus na criao e na histria da humanidade. Ele no um com a criao, mas ele a

    sustenta. Ele a controla. Nos captulos 38 e 39 de J, ao responder a este, Deus mostra

    sua atuao na natureza, criando-a e sustentando at mesmo os animais. A imanncia no

    significa pantesmo (idia segundo a qual Deus e a natureza so uma coisa s), mas

    significa a presena de Deus no mundo (idia segundo a qual Deus est com a sua criao,

    embora no esteja na criao).

    E embora seja o Totalmente Outro de Rudolph Otto, ele o "Deus que est aqui",

    nas palavras de Francis Schaeffer. Embora parea contraditrio, podemos dizer que ele

    est longe, mas, ao mesmo tempo, est perto. "Porque assim diz o Alto e o Excelso, que

    habita na eternidade, e cujo nome santo: Num alto e santo lugar habito, e tambm com o

    contrito e humilde de esprito, para vivificar o esprito dos humildes, e para vivificar o

    corao dos contritos" (Is 57.15). Ele o Deus que pode ser achado. Que est longe, pelo

    seu carter de santidade absoluta, mas que est perto, pelo seu carter de amor absoluto.

    E a maior proximidade de Deus se verificou em Jesus de Nazar. A encarnao da

    Divindade a prova maior de sua imanncia: ele esteve no mundo como matria.

    A imanncia de Deus significa que ele no est banido da sua prpria criao,

    impedido de agir nela, mas que est presente e ativo nela. Ele no abandonou o mundo que

    criou. Ele atua pela natureza e na histria dos homens. Um Deus absolutamente

    32 BROWN, Colin. Filosofia e F Crist. S. Paulo: Edies Vida Nova, reimpresso de 1989, p. 149. 33 ERICKSON, op. cit., p. 100

  • A Doutrina de Deus

    Unidade I I I

    35

    transcendente no nos seria de grande valia, porque seria apenas uma fora csmica

    criadora, seria apenas uma energia impessoal. Poderia nos encher de um sentimento

    numinoso, isto , cheio de respeito e at de medo, mas nunca nos encheria de esperana

    ou de significado. O prprio universo seria desprovido de sentido. Isto de pouco nos serviria.

    Um Deus absolutamente imanente poderia estar sujeito s mesmas fraquezas, inclusive

    morais, da criao. Seria igual a ns. E isto tambm de pouco nos serviria. Logo,

    transcendncia e imanncia so, como bem o disse Erickson, um par de nfases que

    devemos preservar. Uma boa compreenso da natureza de Deus exige que as entendamos

    e as ajuntemos. Separ-las ou no compreender a relao entre as duas nos dar um viso

    equvoca de Deus. As duas no so conflitantes, mas harmoniosas, necessrias.

    4. Os atributos de Deus - Costuma-se dividir os atributos (ou caractersticas) de Deus em

    dois grupos: os atributos naturais e os morais. Por atributos naturais queremos dizer

    aqueles que s Deus possui e ningum mais. So particularidade prpria e exclusiva da

    Divindade. Por atributos morais queremos nos referir queles que Deus possui, mas que

    podem ser encontrados no homem, que sua imagem e semelhana, e exatamente por

    isso o homem os possui, embora em escala bem inferior. A forma de abordar os atributos

    de Deus tem variado de telogo para telogo. Erickson, por exemplo, prefere usar os

    termos atributos de grandeza em vez de atributos naturais e prefere empregar atributos

    de bondade em vez de atributos morais. Mas a questo apenas semntica, e no de

    substncia.

    Mas, pode-se falar dos atributos de Deus? Podemos falar de suas caractersticas?

    Para alguns isto seria uma grande pretenso. "Pode o finito descrever o Infinito?" a

    pergunta deles. Talvez no possa descrever, mas a tarefa da teologia tornar a idia de

    Deus mais clara mente humana. perfeitamente possvel falar sobre os atributos de

    Deus. "Porque Deus , podemos fazer afirmaes fatuais a respeito dele. O mtodo de

    obter tais afirmaes decisivo para sua verdade. Atributos verdadeiros de Deus so,

    ento, formas do evangelho" 34. Descrever , ou pelo menos tentar descrever os atributos de

    Deus, encontrar o sentido da prpria Bblia em geral e dos evangelhos, mais detidamente.

    34 BRAATEN, Carl e JENSON, Robert. Dogmtica Crist, S. Leopoldo: Editora Sinodal, vol. I, 1990, p. 192.

  • Teologia Sistemtica I

    36

    No entanto, isto no uma tarefa que pode ser feita ou entendida como um ato de

    dissecar Deus ou coloc-lo num tubo de ensaio. Valham-nos, para que isto fique bem claro,

    estas palavras de Lutero:

    O verdadeiro telogo no aquele que chega a ver as coisas invisveis de Deus, pensando a respeito das coisas criadas; o verdadeiro telogo aquele que pensa a respeito das partes visveis e posteriores de Deus, tendo-as visto nos sofrimentos e na cruz 35.

    O que isto significa? Que buscar os atributos de Deus no um ato de especular

    sobre o invisvel, mas ver sua relao com o mundo criado. Os atributos de Deus nos

    ajudam a entender o prprio mundo e ver que h nele um sentido moral. H um sentido no

    mundo que no faz parte dele, porque um Ser que tem atributos de grandeza (nas palavras

    de Erickson) o criou. O Criador deu significado ao mundo. E isto porque repartiu alguns

    deles com a criao (repartiu os atributos de bondade, ainda segundo Erickson).

    5. Os atributos naturais de Deus - Alistaremos aqui seis deles, entre outros que so

    mencionados, variando conforme cada telogo, e comentaremos cada um, brevemente:

    onipresena, oniscincia, onipotncia, unidade/unicidade, infinidade e imutabilidade.

    6. A onipresena de Deus - Dois equvocos se devem evitar ao falarmos da onipresena de

    Deus. Um deles dizer que "Deus est em todos os lugares" e o outro, dizer que "Deus

    enche o espao". A, corrigidos estes equvocos, poderemos definir bem o que

    onipresena. Deus est em todos os lugares? Est Deus dentro de uma lata de lixo? Est

    dentro do forno de um fogo? Dentro de um congelador? No inferno? Ora, uma das

    coisas que distinguem o inferno a expresso que Jesus pe na boca do Pai, a ser dita

    no dia do juzo: "Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o

    Diabo e seus anjos" (Mt 25.41). Ou seja, uma das caractersticas do inferno a

    ausncia de Deus. O inferno , entre tantas outras coisas, um lugar aonde Deus no

    est.

    35 LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. S. Leopoldo: Editora Sinodal, P. Alegre: Editora Concrdia, vol. I,

    1987, p. 39.

  • A Doutrina de Deus

    Unidade I I I

    37

    A onipresena de Deus no quer dizer que ele esteja em todos os lugares. No

    confundamos Deus com os tomos ou com o ar. Quer dizer, sim, que no h lugar onde

    Deus no possa estar e que no h lugar em que sua graa seja impedida de chegar aos

    homens. Jonas orou do ventre de um peixe e "falou, pois, o Senhor ao peixe, o peixe

    vomitou a Jonas na terra" (Jn 2.10). Sua orao foi atendida. A