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MARIA JOSÉ REBECCA BUSNARDO TECENDO A VIDA NOS FIOS DA POESIA UMA PROPOSTA DE INTERVENÇÃO PEDAGÓGICA PARA A IDENTIDADE INFANTO JUVENIL UNISAL Americana 2014

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MARIA JOSÉ REBECCA BUSNARDO

TECENDO A VIDA NOS FIOS DA POESIA

UMA PROPOSTA DE INTERVENÇÃO PEDAGÓGICA PARA A IDENTIDADE

INFANTO JUVENIL

UNISAL Americana

2014

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MARIA JOSÉ REBECCA BUSNARDO

TECENDO A VIDA NOS FIOS DA POESIA

UMA PROPOSTA DE INTERVENÇÃO PEDAGÓGICA PARA A IDENTIDADE

INFANTO JUVENIL

Dissertação apresentada como exigência parcial para obtenção do grau de Mestre em Educação à Comissão Julgadora do Centro Universitário Salesiano, sob a orientação do Prof. Dr. Severino Antônio Moreira Barbosa.

UNISAL Americana

2014

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Catalogação: Bibliotecária Carla Cristina do Valle Faganelli CRB-8/9319

UNISAL: Unidade de Ensino de Americana

Busnardo, Maria José Rebecca.

B982t Tecendo a vida nos fios da poesia: uma proposta de intervenção pedagógica para a identidade infanto juvenil / Maria José Rebecca Busnardo. – Americana: Centro Universitário Salesiano de São Paulo, 2014.186f.

Dissertação (Mestrado em Educação) – Centro

Universitário Salesiano - UNISAL / SP. Orientador (a): Prof. Dr. Severino Antonio Moreira Barbosa. Inclui Bibliografia.

1. Educação sociocomunitária. 2. Poesia. 3. Infância. I. Título. II. Autor

CDD 372.416

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FOLHA DE APROVAÇÃO:

Autora: Maria José Rebecca Busnardo Título: Tecendo a vida nos fios da poesia: uma proposta de intervenção pedagógica para a identidade infanto juvenil

Dissertação apresentada como exigência parcial para obtenção do grau de mestre ao Programa de Mestrado em Educação do Centro Universitário Salesiano de São Paulo, sob orientação do Prof. Dr. Severino Antônio Moreira Barbosa.

Dissertação de Mestrado defendida e aprovada em 15/03/2014, pela Comissão Julgadora: Membro Externo: Prof. Dr. José Geraldo Marques _________________________ Membro Interno: Prof. Dr. Francisco Evangelista __________________________ Orientador: Prof. Dr. Severino Antônio Moreira Barbosa ________________________

UNISAL Americana

2014

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Ao meu esposo, Amarildo

Aos meus filhos, Bruno e Camila

Ao amigo eterno, Emílio

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AGRADECIMENTOS

Ao Mestre Severino Antônio, cuja luz gostaria de poder sempre

evocar. Exemplo máximo do que, para mim, é ser pessoa humana,

educador e referência espiritual. Alma de perfume, de música e de

cor, que transforma nossa travessia.

Ao amado esposo e amados filhos, pelas presenças, sempre e

sempre.

Ao querido irmão, Dionísio, pelo exemplo e inspiração que sempre

foi em minha vida.

Ao “filho” Tiago, pela coragem e luta pela vida.

Ao amigo inesquecível Emílio Coelho Augusto, que possibilitou a

realização deste trabalho, mas que, infelizmente, não pôde vê-lo

terminado. Gratidão eterna.

Aos meus alunos e alunas, que me possibilitam um interminável

estar sendo.

Muito obrigada!

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Sabemos agora que somos todos poeira de estrelas e que as estrelas são nossos ancestrais; e que somos irmãos dos animais

selvagens e primos das papoulas dos campos. Compartilhamos a mesma história cósmica. Seguramos o infinito do universo nas

palmas das mãos.

Trin Xuan Thuan

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Resumo

A presente pesquisa busca compreender a possível contribuição da literatura – em especial a poesia – no resgate de memórias e na (re) construção da subjetividade da criança, por meio da escrita poética significativa, de tal forma que lhe possibilite outras leituras do ser e estar no mundo. A pesquisa qualitativa envolve alunos de sextos anos de uma escola pública municipal, de período integral, em Americana/SP, desenvolvendo atividades de leitura de poetas nacionais, e utilizando-se materiais audiovisuais, como forma de motivação para a produção textual. Como referencial teórico, fundamentamo-nos em Alfredo Bosi, Octávio Paz, Severino Antônio e Paulo Freire, dentre inúmeros outros. O objetivo primordial desta pesquisa é reconhecer a voz e autonomia de sujeitos invisíveis em nossa sociedade, bem como propor uma intervenção pedagógica transformadora, por meio da expressão escrita poética. O presente trabalho está dividido em três capítulos. No primeiro capítulo, são feitas algumas considerações sobre língua, linguagem, poesia e arte, bem como sua importância na vida do homem, tanto pela necessidade de comunicação, quanto – e especialmente – pela possibilidade, por meio da linguagem poética, de transformação e ressignificação da subjetividade da criança que vive em situação de ausências extremas: de família, de valores, de solidariedade, de afeto, etc., na sociedade contemporânea. No segundo capítulo, discorremos acerca da Educação e do Conhecimento, bem como de seu papel no restabelecimento do todo, na reestruturação e reunificação da fragmentação do saber e do homem. Reiteramos a necessidade de um novo pensar a Educação, voltada para a solidariedade, a ética e o respeito entre os homens, e destes com o planeta. No terceiro capítulo, descrevemos a pesquisa realizada com crianças de 11 e 12 anos, durante quatro meses, tempo em que foram desenvolvidas atividades de leitura e expressão escrita, tendo como referência a arte literária poética. As produções poéticas das crianças envolvidas foram consequência de atividades que trabalharam a imaginação, a criatividade e a sensibilidade, o que as fez aproximarem-se, sobremaneira, do contexto artístico literário. Além disso, todo o trabalho esteve voltado para a reflexão do ser, do estar no mundo e das possibilidades de transformações que a percepção de si mesmo e do outro pode trazer para a vida.

Palavras-chave: Educação Sociocomunitária; Poesia; Infância; Expressão Escrita.

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Abstract

This research intents the comprehension the possible contribution of literature – especially poetry- in redemption of memories and (re)construction of children subjectivity, through writing significant poetry, in a way that it allows further readings of to be in the world. The research involves students of the 6th grade in a full-time public school, in Americana/SP, developing reading activities of national writers, and using audiovisual materials, as a stimulus for the production of texts. As theoretical reference we mostly based in Alfredo Bosi, Octávio Paz, Severino Antônio e Paulo Freire. The primary objective of this research is to seek autonomy and give voice to invisible subjects in our society, and to develop a transformative pedagogical intervention, by means of written poetic expression. This paper is divided into three chapters. In the first chapter, some considerations about the mother tongue, language, poetry and art and also its importance in human life, both the need for communication, as - and especially - the possibility, by means of poetic language, transformation and reinterpretation the subjectivity of the children who lives in a situation of extreme absences: family, value, solidarity, affection, etc., in contemporary society. In the second chapter, we discuss about education, knowledge, and its role in the restoration of the whole, the restructuring and unification of fragmentation of knowledge and the man himself. We reiterate the necessity for a new thinking about Education, focused on solidarity, ethics and respect among men, and those with the planet. In the third chapter, we described a survey of children aged 11 to 12 years, during four months, when activities were developed for reading and writing expression, with reference on the literary art of poetry. The poetic productions of the children involved were a result of activities involving imagination, creativity and sensitivity, what caused them to approach, intensely to the artistic literary context. Furthermore, all the work was focused on the reflection of being, of being in the world and the possibilities of change that perception of himself and the other can bring to life.

Keywords: Socio-Communitarian Education; Poetry; Infancy; Written Expression.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................09

CAPÍTULO I: NA MELODIA DA LINGUAGEM, NASCE A POESIA..............13

1.1- Linguagem: em busca do desvelamento de mundos................................13

1.2- As faces da Arte........................................................................................15

1.3- A poesia ressignificando a vida.................................................................21

CAPÍTULO II – EDUCAÇÃO: VOZES QUE ECOAM E CONSTROEM

DIÁLOGOS.......................................................................................................28

2.1- Educação: a medida de todas as coisas...................................................28

2.2- Algumas concepções modernas e contemporâneas de Educação..........32

2.3- Educação formal.......................................................................................44

2.4- Educação informal....................................................................................47

2.5- Educação não formal................................................................................49

2.6- Em busca de uma Pedagogia da autonomia............................................52

2.7- Ser criança e jovem: tragédia e comédia, o lirismo sempre presente na

tessitura da vida...............................................................................................56

2.8- A autoria de si mesmo: culturas infanto juvenis em tempos atuais..........59

CAPÍTULO III – TECENDO OS FIOS DA POEVIDA......................................63

3.1- O CIEP: um pouco da história..................................................................63

3.2- O CIEP “Anísio Spínola Teixeira” e o Projeto “Tecendo a vida nos fios

da poesia”........................................................................................................66

3.3- O “semanário de bordo”...........................................................................69

CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................116

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................119

ANEXOS........................................................................................................124

APÊNDICE.................................................................................................. 126

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Introdução

Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos. (...) Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta (...). Trouxeste a chave? (Drummond)

Este trabalho resulta de antiga indagação e tomou forma de pesquisa,

buscando compreender a possível contribuição da literatura – especialmente o

gênero poético – como elemento propulsor no resgate de memórias da criança

e sua (re) construção de subjetividade por meio da expressão escrita poética,

tornando-a significativa, de maneira a promover outras leituras do ser e estar

no mundo, e poder se constituir como uma ação educacional transformadora

para a criança.

Propõe-se a discussão de concepções de mundo – por meio de

conceitos como violência, amor, escola, família, o “eu” – e, através da reflexão

com a poesia (gênero literário que impulsiona a razão, a imaginação e a

expressão), deixar margem à interpretação/autoria dos sujeitos envolvidos.

Dessa forma, pretende-se, também, encaminhar a construção do

conhecimento linguístico, não apenas de maneira pragmática no processo de

comunicação, mas de forma que a criança veja e atribua sentido às coisas que

a cercam, ao mundo em que está inserida e a si própria, pela linguagem

poética.

A pesquisa envolve alunos de duas classes de sextos anos de uma

escola de período integral da rede municipal de ensino de Americana, com

abordagem predominantemente qualitativa.

Para tanto, estão sendo desenvolvidas atividades de leitura e escrita de

textos literários de variados poetas brasileiros.

Materiais audiovisuais, como vídeos de animação, músicas variadas,

trechos de filmes, clipes de músicas também são utilizados como motivação e

provocações para o desenvolvimento das atividades.

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Compõem o quadro referencial teórico autores como Alfredo Bosi, Ezra

Pound, Severino Antônio, Rainer Maria Rilke, Edgar Morin, Octávio Paz, Ernst

Fischer, Ivonne Bordelois, Paulo Freire e Walter Benjamin. Como fonte de

produções poéticas, oferecemos às crianças participantes das atividades,

obras dos poetas: Bartolomeu Campos de Queirós, Vinícius de Moraes, Mário

Quintana, Cecília Meireles, Cora Coralina e Carlos Drummond de Andrade, em

meio a outros tantos. A escolha desses mestres da poesia foi extremamente

difícil, dadas as constelações que povoam o universo poético nacional.

Com o advento da Lei de Diretrizes e Bases nº 9394/96, é repensado o

conceito de produção textual, antes categorizado em tipologia – narração,

descrição e dissertação- e destinado a correções ortográficas e gramaticais na

maioria das vezes. A produção textual assume seu caráter social de forma de

expressão de sentidos, destinada a estabelecer vínculos, criar laços e amarras

entre um sujeito que escreve e outro que lê/ouve e sente.

Assim, por meio da expressão escrita, sobretudo a poética, busca-se dar

voz a crianças emudecidas ou meras reprodutoras de discursos dominantes,

dos quais estarão sempre à deriva.

A língua, por um lado, é formadora de cultura, representação simbólica

de marcas que trazemos no corpo e memória, forma de participarmos do

mundo, de transformá-lo, de reinventá-lo. Por outro, a língua é um dos

primeiros instrumentos de opressão social, cultural, econômica e política de um

povo, mas, através da linguagem poética, pode ser o antídoto mais eficaz

contra esse status quo, já que pode promover a construção do respeito - a si e

ao outro-, da alteridade, da valorização de sua cultura e resgate de suas

memórias.

A escrita, há muito, está presente na história da humanidade, sobretudo

nas obras de arte, eternas formas de expressão de ver, sentir e (re) criar o

mundo:

(...) a maioria dos acontecimentos é indizível, realiza-se em um espaço que nunca uma palavra penetrou, e mais indizíveis do que todos os acontecimentos são as obras de arte, existências misteriosas, cuja vida perdura ao lado da nossa, que passa. (RILKE, 2007, p.23).

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Rilke, em uma de suas correspondências com o jovem Kappus,

aconselha-o sobre a importância do voltar-se para dentro de si, de seu mundo,

suas lembranças e vivências pessoais a fim de compor o trabalho com a

linguagem, a poesia: obra de arte literária:

(...) utilize, para se expressar, as coisas de seu ambiente, as imagens de seus sonhos e os objetos de sua lembrança. (...) para o criador não há nenhuma pobreza e nenhum ambiente pobre, insignificante. (...) Uma obra de arte é boa quando surge de uma necessidade. (...) voltar-se para si mesmo e sondar as profundezas de onde vem a sua vida. (RILKE, 2007, p.26-27)

A literatura, particularmente a poesia, potencializa a função catártica da

obra de arte, podendo trazer à tona elementos estruturais para a formação de

um novo sujeito, ou um sujeito em formação, capaz de dar voz às suas ideias,

seus pontos de vista, seus valores, enfim, seu mundo.

O presente trabalho está dividido em três capítulos, a saber:

No primeiro capítulo, são feitas algumas considerações sobre língua,

linguagem, poesia e arte, bem como sua importância na vida do homem, tanto

pela necessidade de comunicação, quanto – e especialmente – pela

possibilidade, por meio da linguagem poética, de transformação e

ressignificação da subjetividade da criança que vive em situação de ausências

extremas: de família, de valores, de solidariedade, de afeto, etc., na sociedade

contemporânea.

No segundo capítulo, discorremos acerca da Educação e do

Conhecimento, bem como de seu papel no restabelecimento do todo, na

reestruturação e reunificação da fragmentação do saber e do homem.

Reiteramos a necessidade de um novo pensar a Educação, voltada para a

solidariedade, a ética e o respeito entre os homens, e destes com o planeta.

No terceiro capítulo, descrevemos a pesquisa realizada com crianças de

11 e 12 anos, durante 4 meses, tempo em que foram desenvolvidas atividades

de leitura e expressão escrita, tendo como referência a arte literária poética. As

produções poéticas das crianças envolvidas foram consequência de atividades

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que trabalharam a imaginação, a criatividade e a sensibilidade, o que as fez

aproximarem-se, sobremaneira, do contexto artístico literário. Além disso, todo

o trabalho esteve voltado para a reflexão do ser, do estar no mundo e das

possibilidades de transformações que a percepção de si mesmo pode trazer

para a vida.

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CAPÍTULO I

NA MELODIA DA LINGUAGEM, NASCE A POESIA

Para bem criar passarinho é necessário ter o corpo capaz de escutar o silêncio das pedras, o som do vento nas folhas, o ruído de soluços preso em garganta. Isso se alcança afinando bem os sentidos, para perceber sopros de flauta, cordas de harpa e murmúrios das perguntas e lembranças.

Bartolomeu Campos de Queirós

Pra bem criar passarinho Você tem que ser solto

Porque preso Parece que você

É um esboço! Luís Fernando – 6º A

1.1 – Linguagem: em busca do desvelamento de mundos

Desde a Antiguidade, estudiosos debruçam-se sobre pesquisas para

tentar entender como se dá a aquisição da linguagem pelo homem,

relacionando a linguagem à mente, ao cérebro, à alma e ao coração. Dentre a

vasta relação, a título de exemplificação da diversidade, figuram Aristóteles,

William Harvey - o médico britânico do século XVI que detalhou corretamente o

sistema circulatório -, René Descartes, Francis Bacon e John Locke.

No século XX, com o aprofundamento das pesquisas e o surgimento da

Línguística, surgiram estudiosos como Ferdinand Saussure, Noam Chomsky,

Roman Jakobson, em meio a tantos outros modernos e contemporâneos.

Não bastantes as divergências postuladas por esses pesquisadores, a

confluência está na consideração de que a linguagem é o principal meio de

comunicação humana.

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O pensador setecentista, Jean-Jacques Rousseau, que transitava por

várias dimensões do conhecimento humano, também discorreu acerca da

língua e da linguagem:

A palavra distingue os homens entre os animais; a linguagem, as nações entre si – não se sabe de onde é um homem antes de ter ele falado. (...) A língua de convenção só pertence ao homem e esta é a razão por que o homem progride, seja para o bem ou para o mal, e por que os animais não o conseguem. Essa distinção, por si só, pode levar-nos longe. Dizem que se explica pela diferença de órgãos. Gostaria de conhecer tal explicação. (ROUSSEAU, 1973, p.165 e 169)

Também acerca da linguagem, Pound (2006, p.37-38) afirma que “O

estadista não pode governar, o cientista não pode comunicar suas

descobertas, os homens não podem se entender sobre a ação mais

conveniente, sem a linguagem.”

Numa abordagem um tanto pragmática sobre linguagem e literatura,

Pound ressalta a importância que ambas ocupam na vida das pessoas e em

sua sobrevivência como nação:

(...) os escritores têm uma função social definida. (...) os bons escritores são aqueles que mantêm a linguagem eficiente. (...) A linguagem é o principal meio de comunicação humana. (...) Se a literatura de uma nação entra em declínio, a nação se atrofia e decai. (...) A Grécia e Roma civilizaram via linguagem. (...) Roma se elevou com o idioma de César, Ovídio e Tácito e decaiu num banho de retórica, a linguagem dos diplomatas, “feita para ocultar o pensamento”. (POUND, 2006, p. 36-37)

É através dela que o homem se relaciona com os seus semelhantes,

transformando-os, sendo transformado e transformando o mundo. Contendo-a

e sendo contido por ela.

Na fala de Morin (2002, p.37):

A linguagem, portanto, é a encruzilhada essencial do biológico, do humano, do cultural, do social. A linguagem é uma parte da totalidade humana, mas a totalidade humana está contida na linguagem. (...) A língua vive como uma grande árvore cujas raízes atingem o mais fundo da vida social e cerebral, cuja copa resplandece no céu das ideias ou dos mitos, cujas folhas farfalham em miríades de conversas. A vida da linguagem é muito intensa nas gírias e poesias, nas quais as palavras acasalam-se, gozam, enchem-se de conotações que invocam e evocam, com a explosão de metáforas, o desabrochar de analogias, frases sacudindo as cadeias gramaticais, alcançando a liberdade. (...) O homem se faz na linguagem que o faz.

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Ivonne Bordelois, em sua obra “A Palavra Ameaçada”, faz um alerta a

todos os usuários da palavra – leitores, falantes, escritores, ouvintes – sobre o

aniquilamento da consciência linguística, no mundo contemporâneo, o

emudecimento poético frente à ditadura tecnológica que estamos vivendo. Ao

mesmo tempo, ela propõe que celebremos a palavra, a chave para o

conhecimento, para o prazer e para a consciência artística.

Para ela, a linguagem é tão necessária à vida do homem como o próprio

alimento. Todavia, o que se constata, nas grandes cidades, é uma ausência

total de escuta poética, perdida na poluição sonora dos grandes centros

urbanos.

Uma forma de se respeitar a linguagem é estudar a etimologia das

palavras.

É preciso ter gosto pela linguagem e poesia, como saída para que a

palavra deixe de ser ameaçada, segundo Bordelois (2005, p.111):

Assim como a chuva surge d´água e para a água volta, assim como o mar ascende aos céus para regressar para si,assim também a poesia emerge da linguagem e à linguagem retorna, purificando-a em sua viagem desde os abismos às alturas mais remotas.

Em relação à linguagem, Walter Benjamin dizia que as ideias possuem

um recinto próprio, que é a linguagem. A redenção dos seres humanos

dependia da recuperação das vivências da humanidade em sua origem, e a

mais marcante de todas essas vivências foi a gênese da linguagem, pois,

através dela (o “Verbo”) Deus criou o mundo. Na linguagem adâmica, os

nomes das coisas correspondiam a elas; depois da expulsão do paraíso, a

linguagem passou a ser um instrumento meramente comunicativo. Nos anos

trinta do século vinte, a linguagem – sua degradação – passa a ser analisada

como consequência da ascensão da burguesia ao poder e ao modo de

produção capitalista.

1.2 – As faces da Arte

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O homem é um ser inacabado que anseia incorporar o mundo em que

vive. Deixar suas marcas e fazer-se marcar por outras. Busca uma constante

integração com o “todo”, num desejo de identificação.

Sabedor de suas limitações e na busca pela sua completude, ele encontra

na Arte seu reflexo, suas respostas e seu complemento. Fischer (1976, p.13)

reforça esse sentido da arte: “A arte é o meio indispensável para essa união do

indivíduo com o todo; reflete a infinita capacidade humana para a associação,

para a circulação de experiências e de ideias.”

Bertolt Brecht (2005), numa visão não-aristotélica, de caráter marxista,

especialmente do drama, defende que a arte – o teatro- deve promover um

apelo à ação, a mecanismos de movimentação social. A obra de arte deve

“apoderar-se” da platéia para que possa ser considerada obra artística

efetivamente, de tal forma que não haja possibilidade de passividade, mas de

ação.

Toda obra de arte é produto da criação humana. Nela, o homem revela

como vê o mundo e como se vê nele – e tudo que os envolve nessa mesma

constelação.

Muito se tem falado a respeito de arte, seus reflexos e poderes sobre o

homem.

Bruno Pucci (2006), em seu texto “O riso e o trágico na indústria cultural:

a catarse administrada”, em brilhante análise, faz referência a Theodoro

Adorno e seu ensaio “Teoria da Semiformação”, no qual se verificava que a

burguesia, quando da conquistar do poder nos países europeus, demonstrava

maior desenvolvimento cultural do que os senhores feudais. A formação

burguesa era distinta e elevada, o que ratificava sua posição como classe

hegemônica, desempenhando tarefas econômicas e administrativas. No

entanto, o proletariado, composto por camponeses, pequenos artesãos,

comerciantes e os trabalhadores fabris, cumpriam extensas jornadas de

trabalho, sem que houvesse tempo para se dedicarem às “coisas do espírito”,

sem formação cultural: “A desumanização implantada pelo processo capitalista

de produção negou aos trabalhadores todos os pressupostos para a formação

e, acima de tudo, o ócio.” (ADORNO, 2003, p.6).

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Ainda de acordo com Pucci (2006), depois de insistentes batalhas,

trabalhadores regridem aos poucos a sua “jornada”, mas a classe burguesa

continua o processo de exclusão para a formação dos trabalhadores. A

burguesia nega as condições de formação, entretanto, possibilita uma imitação,

uma cópia, um “arremedo de formação”.

Aparentemente livre para as “coisas do espírito”, o empregado, na

verdade, tem seu tempo “ocioso” transformado em prolongamento do trabalho,

pois essa “liberdade” passa a ser preenchida pela indústria cultural.

De acordo com Horkheimer e Adorno (1986, p.123)., ela se encarrega de

“(...) ocupar os sentidos dos homens da saída da fábrica, à noitinha, até a

chegada ao relógio-de-ponto, na manhã seguinte.”

O riso e o trágico são expressões humanas manipuladas pela indústria

cultural, cujos objetivos são: manter as pessoas, ao mesmo tempo, ocupadas e

distraídas, mas conectadas às milhares de informações que invadem seu

universo. As pessoas extravasam as suas emoções, seus sentimentos e

aliviam suas tensões, apaziguam seus corações e consciências através do riso

e do trágico. No entanto, não há acréscimo espiritual.

A palavra kathasis, cuja origem se deu na medicina antiga, era traduzida

por liberação do que era estranho ao organismo, do que causava perturbações,

ou seja, aquilo que causava purgação, desembaraço, alívio.

Catarse é, portanto, uma forma de purificação e de absolvição dos atos

injustos mediante sacrifícios. O processo catártico é uma forma de o homem

alcançar a paz interior, a paz perante os outros homens, de livrar-se da culpa,

preservar-se do mal.

Para Platão, catarse confirma a ideia de purificação, de conservação do

bem estar espiritual, da libertação da alma em relação à materialidade, aos

prazeres, aos desejos. É uma forma de reencontrar a sabedoria.

Por sua vez, Aristóteles utiliza o termo catarse com duas conotações:

como purgação, purificação, no sentido médico, fisiológico, físico, biológico;

numa abordagem estética, tem sentido de “libertação ou serenidade que a

poesia e a música provocam no homem” (ARISTÓTELES, apud PUCCI, 2006,

p.99). Ouvir cantos sacros impressiona a alma, provoca uma sensação de cura,

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de purificação. Aristóteles foi o pioneiro na concepção de catarse como

expressão estética.

Em sua obra “Poética”, discorrendo acerca da definição de tragédia e

suas partes ou elementos essenciais, afirma:

É, pois, a tragédia imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes [do drama], [imitação que se efetua] não por narrativa, mas mediante atores, e que, suscitando o “terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções.” (ARISTÓTELES, 1973, p.447)

Goethe enfatiza o equilíbrio das emoções na interpretação aristotélica da

catarse: é um fenômeno que conserva a dimensão médica, uma vez que cura o

corpo e também o espírito; a catarse não anula as emoções, mas diminui as

tensões presentes nas emoções, de tal forma que a razão consiga administrá-

la.

Nietzsche (1996, p.49 e 84), por sua vez, ao discorrer acerca da arte

dionisíaca, afirmava que o homem era levado ao máximo de suas

potencialidades, que ele experimentava e exprimia sentimentos desconhecidos,

ao mesmo tempo em que participava do sofrimento da existência, da sabedoria

e, “no fundo da alma do mundo, anunciava a verdade.”

Para ele, a arte é, simultaneamente, apolínea e dionisíaca: um não

poderia viver sem o outro, uma vez que se completam, se harmonizam. Apolo é

o deus da expressão, da beleza. Por outro lado, encontramos também em

Apolo uma linha de ponderação, o equilíbrio nas emoções mais violentas. “É o

deus da lógica, da coerência interna, do equilíbrio perfeito.”

Dionísio representa o mundo da embriaguês, do “estado narcótico”, em que os

homens se libertam de suas teias culturais. Ele desperta a vontade de viver no

indivíduo.

A experiência dionisíaca oferece ao homem a possibilidade de ser

poderosamente negativo, crítico, pessimista. O homem chega a se sentir

impotente, inútil. O conhecimento do verdadeiro mata a ação; para agir, é

imprescindível que “sobre o mundo paire o véu da ilusão”.

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Por outro lado, a arte apolínea é fundamental para trazer o homem

dionisíaco de volta ao mundo cotidiano, com suas tristezas e dificuldades. No

entanto, um homem fortalecido e renovado.

Na Alemanha da segunda metade do século XIX, segundo Nietzsche, a

cultura, a arte transformam-se em bens que ficam à mercê das leis do

mercado. Tanto a cultura quanto a arte transformam-se em arremedos, perdem

sua potencialidade crítica.

Adorno e Horkheimer, mais de meio século depois, novamente discutem

as críticas de Nietzsche em relação à cultura e à arte “democratizadas” e

mostram como a indústria cultural precisa administrar o trágico, para que

continue a se reproduzir: homo homini lupus est.1, segundo Hobbes.

Nas tragédias gregas, a arte suavizava as feridas, era purgativa,

emancipatória.

Hoje, nos filmes comerciais, nos programas de entretenimento, na mídia

impressa, o trágico apresenta-se como “o resultado punitivo dos que infringem

os valores vigentes, não seguem as prescrições das instituições estabelecidas”

(2006, p.105)

Adorno faz uma proposta: “desbarbarizar” a sociedade como a ação

mais urgente e necessária da educação:

É preciso que a escola tome ou retome em suas mãos o processo de formação cultural; que favoreça o esclarecimento, a reflexão crítica e as formas de resistência ao império cada vez mais dominante das máquinas sobre as pessoas, pois o progresso da ciência e da tecnologia caminha em sentido oposto ao progresso da humanidade das pessoas, e fortalece um modo de ser acrítico, pré-reflexivo, não racional e não espiritual. (ADORNO, 1995, p.155)

No mundo contemporâneo, segundo o mesmo autor, devido ao processo

de semiformação cultural, percebe-se que aquilo que perturba, que é estranho

ao organismo, ao espírito, não é mais purificado pela arte, mas que sofre um

processo de “camuflagem”, reveste-se de brilhos e cores, enganando as

pessoas com uma pseudo sensação de alívio, uma vez que resulta de uma

pseudo arte.

Se um dos resultados benfazejos da catarse estética era gerar, em

seus participantes, a purgação espiritual para que pudessem aguçar

1 Tradução: “O homem é o lobo do homem”.

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os elementos de resistência e de confronto à realidade adversa, na

arte sem sonho destinada ao consumo, o que se processa é uma

catarse às avessas: sua pseudopoética leva os participantes à

identificação integral com o todo, à fusão impessoal com o real.

(HORKHEIMER, M.; ADORNO,T.W.,1986, p.124)

Walter Benjamin, em seu livro “A Obra de Arte na Época de sua

Reprodutibilidade Técnica” (apud KONDER, 1999, p.56), defende a ideia de

que a obra de arte está envolta numa aura, que a torna singular, única. Porém,

com o advento daquilo que Adorno chamou de indústria cultural, referindo-se

especialmente ao cinema, essa aura tende a diluir-se nas inúmeras

reproduções que são feitas da produção artística. Assim, o caráter de objeto

único, singular, sagrado, do qual a obra artística se reveste, acaba por se

descaracterizar.

Não obstante as abordagens acima, há que se sentir a arte com outro

olhar: a Arte transforma o homem, especialmente para melhor. Se pode

transformá-lo, também o fará em relação ao mundo.

A arte tem o poder de religar o individual ao coletivo, o homem à

natureza, o homem ao outro homem, o homem a ele mesmo. Ela carrega em si

a potencialidade de “restaurar a unidade humana perdida” (FISCHER,1976, p.

52)

Um artista se expressa a partir do que vê e sente do mundo, deixando

seus registros como depoimento de seu tempo, dos valores, das coisas

importantes e das insignificantes, se assim o desejar. Conhece-se uma

determinada época e o homem que nela existe, através dos olhos do artista e

sua obra, não apenas por documentos e registros históricos oficiais. Na maioria

das vezes, o espírito humano de determinado período só nos é desvelado por

meio de uma obra artística.

Da mesma forma que uma obra de arte pode elevar o homem aos mais

fragmentados estados, pode fazê-lo atingir o estado mais completo, mais

íntegro e total de sua humanidade.

Ela é necessária para que o homem possa conhecer o mundo e

transformá-lo, pela magia que carrega em si.

Em sua concepção de arte, Fischer (1976, p. 19) sabiamente diz:

(...) a arte jamais é uma mera descrição clínica do real. Sua função concerne sempre ao homem total, capacita o “Eu” a identificar-se com

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a vida de outros, capacita-o a incorporar a si aquilo que ele não é, mas tem possibilidade de ser.

Mais adiante, assim se refere à obra artística:

A arte capacita o homem para compreender a realidade e o ajuda não só a suportá-la como a transformá-la, aumentando-lhe a determinação de torná-la mais humana e mais hospitaleira para a humanidade. A arte, ela própria é uma realidade social. (FISCHER, 1976, p.57)

Se a arte tanto ajuda a pessoa a suportar sua realidade quanto a

modificá-la, o Projeto “Tecendo a vida...” se fortalece ainda mais, porque

propõe momentos de encantamento, de sublimação e de reflexão sobre uma

possível (re) construção, pela arte poética.

1.3 – A poesia ressignificando a vida

As palavras aí estão, uma a uma: porém minha alma sabe mais.

Cecília Meireles

Minha alma é do século passado eu é que sou recente

Entre canecas de café o meu cão me olha,

(séculos sentidos de amor) e o silêncio no chão,

furando o tapete.

Dionísio Rebecca

A arte literária, cuja matéria prima é a palavra, e que existe há milênios,

trabalha com dois conceitos: a (re) criação e a representação.

O autor inventa uma situação, explorando sua imaginação, criatividade e

sensibilidade, e cria uma realidade imaginária. No entanto, esse universo

imaginário é uma forma de representação do mundo real.

Dessa forma, a literatura – como obra de arte - é uma maneira que o

escritor tem de representar a realidade, utilizando uma linguagem carregada de

significados, de sentidos, de símbolos.

Octávio Paz, em “O Arco e a Lira”, nos ensina:

A palavra é um símbolo que emite símbolos. O homem é homem graças à linguagem, graças à metáfora original que o fez ser outro e o separou do mundo natural. O homem é um ser que se criou ao criar uma linguagem. Pela palavra, o homem é uma metáfora de si mesmo. (1982, p.42).

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Na concepção de Ezra Pound (2006, p.41), as palavras são

carregadas de significado por três maneiras: pela fanopéia, melopéia ou

logopéia, ou seja, pela produção de imagem visual na imaginação do leitor;

pela exploração de sons produzidos pelas palavras, e pela combinação dos

conteúdos e formas das palavras para a obtenção de um resultado estético

desejado.

Estendendo seu raciocínio, numa imagem clara sobre a literatura, afirma

que “Literatura é linguagem carregada de significado (...). Literatura é novidade

que permanece novidade” (POUND, 2006, p.32-33).

No entanto, os efeitos que as palavras podem causar no leitor não

podem se limitar a essas três características. O próprio Pound (2006, p.49)

orienta que “o termo `significado´ não pode se restringir a significações

estritamente intelectuais ou `puramente intelectuais´”, o que estendemos a

técnicas.

Para Bosi (2010, p.19): “A imagem é um modo da presença que tende a

suprir o contato direto e a manter, juntas, a realidade do objeto em si e a sua

existência em nós.”

Quando se fala em poesia, não há como deixar de mencionar a divisão

clássica aristotélica dos gêneros literários, quais sejam: lírico, épico e

dramático.

Para Aristóteles, a poesia, bem como a tragédia e a epopéia, eram

imitações:

A epopéia, a tragédia, assim como a poesia (...) todas são, em geral, imitações. (...) Pois tal como há os que imitam muitas coisas, exprimindo-se com cores e figuras (por arte ou por costume), assim acontece nas sobreditas artes: na verdade, todas elas imitam com o ritmo, a linguagem e a harmonia, usando estes elementos separada ou conjuntamente. Por exemplo, só de harmonia e ritmo usam a aulética e a citarística e quaisquer outras artes congêneres, como a siríngica; com o ritmo e sem harmonia, imita a arte dos dançarinos, porque também estes, por ritmos gesticulados, imitam caracteres, afetos e ações. (ARISTÓTELES,1973, p.443)

Mais adiante, refletindo sobre a origem da poesia, revela:

Ao que parece, duas causas, e ambas naturais, geraram a poesia. O imitar é congênito no homem (e nisso difere dos outros viventes, pois,

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de todos, é ele o mais imitador, e, por imitação, aprende as primeiras noções), e os homens se comprazem no imitado. (...) A poesia tomou diferentes formas, segundo a diversa índole particular [dos poetas]. Os de mais baixas inclinações voltaram-se para as ações ignóbeis, compondo, estes, vitupérios, e aqueles, hinos e encômios. (Idem, ibidem p.445)

A literatura brasileira teve suas origens na colonização européia

portuguesa, que trouxe consigo a influência da tradição greco-romana, pautada

em Aristóteles.

Desde o Romantismo, mais ainda do Modernismo e atualmente, a

rigidez na divisão dos gêneros literários deu lugar a uma flexibilização, a uma

“contaminação” entre eles: efeitos da maior liberdade proposta pela concepção

artística modernista.

O foco de nossa atenção está na poesia - obra literária – como

referência para o desenvolvimento deste trabalho, por inúmeros motivos,

dentre os quais recorremos a Morin para explicá-lo:

A poesia, que faz parte da literatura e, ao mesmo tempo, é mais que a literatura, leva-nos à dimensão poética da existência humana. Revela que habitamos a Terra não só prosaicamente – sujeitos à utilidade e à funcionalidade -, mas também poeticamente, destinados ao deslumbramento, ao amor, ao êxtase. Pelo poder da linguagem, a poesia nos põe em comunicação com o mistério, que está além do dizível. (MORIN, apud ANTÔNIO, 2010,p.26)

Já no final do século XIX, Max Weber expressava seu

“desencantamento do mundo”, em decorrência do ideal capitalista moderno e

suas ações na vida do homem, e propunha, como antídoto, um resgate de

tradições, de mitos, de antigas crenças.

Hoje, mais que antes, a poesia é bem vinda porque “o mundo onde ela

precisa subsistir tornou-se atravancado de objetos, atulhado de imagens,

aturdido de informações, submerso em palavras, sinais e ruídos de toda sorte.”

(BOSI, 2010, p.260).

Apesar de tudo, ela resiste. Talvez a forma mais genuína de resistência

às barbáries humanas:

A poesia resiste à falsa ordem, que é, a rigor, barbárie e caos, “esta coleção de objetos de não amor” (Drummond). Resiste ao contínuo “harmonioso” pelo descontínuo gritante; resiste ao descontínuo gritante pelo contínuo harmonioso. Resiste aferrando-se à memória viva do passado; e resiste imaginando uma nova ordem que se

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recorta no horizonte da utopia. Quer refazendo zonas sagradas que o sistema profana (o mito, o rito, o sonho, a infância, Eros); quer desfazendo o sentido do presente em nome de uma liberação futura, o ser da poesia contradiz o ser dos discursos correntes. (Ainda que nem sempre possa impedir de todo que um ou outro pseudovalor formal vigente – e, daí, obliquamente ideológico – venha a cruzar o seu jogo verbal.) (BOSI, 2010, p.169)

O mundo moderno exilou a poesia, tornou-se antipoético ao mais

elevado grau. É preciso poetizar a educação, a convivência, a existência, caso

contrário, estaremos fadados ao embrutecimento, à perda do pertencimento à

humanidade. Nesse sentido, Severino Antônio (2009, p.120):

A poesia não separa, mas religa o pensar e o sentir, o perceber e o imaginar, a criatividade e a comunhão. Assim, desperta e desenvolve a capacidade de interpretar. Revela-se imprescindível para o educar a capacidade de interpretação: mais do que as linhas, as entrelinhas. Ensina-nos a reconhecer a multiplicidade de sentidos, nos textos e no mundo, assim como nas nossas existências.

Dessa forma, a criação poética é a recriação da própria vida, nas

memórias que resgatamos e que, inúmeras vezes, gostaríamos de deixar no

esquecimento.

Entretanto, a expressão poética pode ser a oportunidade de se ter voz,

de transformação, de criação de sentido para a vida, exatamente trabalhando

essas mesmas memórias-vivências resgatadas.

Neste mundo em que habitamos, cada dia mais voltado para os

interesses econômicos em detrimento dos sociais, as relações pessoais sofrem

os reflexos da corrida desenfreada para a aquisição de bens materiais. Isso

provoca modificações no universo pessoal, afetivo e emocional das pessoas, já

que aqueles que não têm condições econômicas, em geral são cada vez mais

excluídos de um contexto social que os valorize como pessoas, reforçando,

cada vez mais, as desigualdades sociais, tão flagrantes em nossa sociedade.

Em busca dessa valorização, as pessoas – especialmente as crianças –

se expõem nos meios de comunicação tecnológicos, sobretudo nas redes

sociais. Essa exposição, além de tornar evidente a valoração do espaço virtual

em detrimento do real, ressalta o sentimento de solidão, de não pertencimento,

não compartilhamento de valores que têm provocado dificuldades no

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estabelecimento de contatos pessoais e comunicacionais mais profundos entre

as pessoas.

Por outro lado, as novas tecnologias trazem novos acessos às

informações, novas maneiras de organização e mobilização das e entre as

pessoas. É também uma maneira bastante eficaz de divulgação de

conhecimentos, podendo transformar a vida daqueles que, por exemplo, têm

como única opção o estudo a distância, através dessas tecnologias. Da mesma

forma, pode-se ter acesso ao universo cultural – filmes, museus, concertos,

dentre outros – pela utilização das novas tecnologias.

Nesse contexto – ou também decorrente dele – há que se mencionar o

papel da escola pública nessa mesma sociedade. Não cabe aqui dissertar

sobre este assunto, mas é fundamental uma colocação: em geral, a escola não

vem cumprindo sua função. Ao contrário, ela contribui para o fortalecimento do

caráter excludente de camadas sociais menos favorecidas, reforçando o

discurso daqueles que detêm o poder/controle. Fortalecendo essa ideia,

recorremos novamente ao pensamento de Severino Antônio (2002, p.106-107):

Temos dificuldades extremas com a nossa escola, especialmente a pública, que vive momentos desesperadores. A crise é tão grande que pode parecer estranha esta proposta de poetizar a educação. (...) A convivência com os símbolos, tão intensa na prática da poesia, torna-se educação para a vida, para compreender e transformar a vida, tanto no sentido individual como no coletivo. Contra a miséria da educação, é necessária uma pedagogia viva, capaz de despertar e desenvolver capacidades latentes e energias adormecidas, capaz de educar a sensibilidade e de educar a inteligência. A poesia, sendo poesia, participa da construção dessa pedagogia crítica e criadora.

Assim, é possível reverter o quadro, é possível através da poesia. A

poesia é uma das muitas formas de criação de que o ser humano dispõe. E

temos necessidade de criação para representar e transformar a vida, o mundo,

a realidade, e nos fazer ouvir.

A linguagem poética cria mundos, tece vínculos, toca, emociona,

sensibiliza o ser humano, estabelecendo laços com o outro. Isso provoca um

resgate ou até mesmo uma descoberta da subjetividade, das experiências

vividas, que podem ser compartilhadas e revisitadas pelas pessoas. Nesse

revisitar, a perspectiva do transformar.

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No entanto, não é possível haver transformação sem que, antes, haja

sensibilização. É preciso, pois, educar a sensibilidade para perceber-se e

perceber o mundo. Encontramos um exemplo de como essa educação para a

sensibilidade pode ser realizada com Rainer Maria Rilke, em sua obra “Cartas

a um jovem poeta”, que nos presenteia com uma verdadeira aula poética de

sensibilidade, quando aconselha o jovem Kappus:

Então se aproxime da natureza. Depois procure, como se fosse o primeiro homem, dizer o que vê e vivencia e ama e perde. (...) resguarde-se dos temas gerais para acolher aqueles que seu próprio cotidiano lhe oferece; descreva suas tristezas e desejos, os pensamentos passageiros e a crença em alguma beleza – descreva tudo isso com sinceridade íntima, serena, paciente, e utilize, para se expressar, as coisas de seu ambiente, as imagens de seus sonhos e os objetos de sua lembrança. (...) para o criador não há nenhuma pobreza e nenhum ambiente pobre, insignificante. Mesmo que estivesse em uma prisão, cujos muros não permitissem que nenhum dos ruídos do mundo chegasse a seus ouvidos, o senhor não teria sempre a sua infância, essa riqueza preciosa, régia, esse tesouro das recordações? Volte para ela a atenção. Procure trazer à tona as sensações submersas desse passado tão vasto; sua personalidade ganhará firmeza, sua solidão se ampliará e se tornará uma habitação a meia-luz, da qual passa longe o burburinho dos outros. Por isso, prezado senhor, eu não saberia dar nenhum conselho senão este: voltar-se para si mesmo e sondar as profundezas de onde vem a sua vida. (RILKE, 2007, p. 25-27)

O texto poético nos ajuda a (re) escrever as linhas de nossa existência:

Sem poesia, muitos continentes de vida e de linguagem permanecem apenas latentes, não se tornam vir a ser. Sem a dimensão poética, muito do que realmente somos e podemos ser não se transforma em história vivida, em atos de criação do texto da própria existência. Não se trata de cultivar ilusões, os tempos são de crise devastadora. Exatamente por isso, temos necessidade de renascimentos. (ANTÔNIO, 2008, p.20. Grifo nosso)

Piaget relaciona inteligência e pensamento ao caráter simbólico da

linguagem:

A inteligência é a solução de um problema novo para o indivíduo, é a coordenação dos meios para atingir um certo fim, que não é acessível de maneira imediata; enquanto o pensamento é a inteligência interiorizada e se apoiando não mais sobre a ação direta, mas sobre um simbolismo, sobre a evocação simbólica pela linguagem, pelas imagens mentais etc. (PIAGET, 1983, p.216)

Em consonância a esse pensamento, podemos citar Piaget, para nos

lembrar de que a poesia, excelentemente, representa a educação:

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O principal objetivo da educação é criar homens que sejam capazes de realizar coisas novas. Não simplesmente de repetir o que outras gerações fizeram; homens que sejam criativos, inventivos e descobridores. (PIAGET, apud ANTÔNIO, 2013, p.24).

Vale lembrar que não apenas a concepção piagetiana de educação –

embora Piaget não fosse educador - pode ser alcançada pela poesia, como

também outras concepções, inclusive a de Vygotsky, que analisou os

fenômenos da linguagem e do pensamento, tentando compreendê-los no

processo de interação do sujeito e o meio, de sujeitos e sujeitos, de trocas de

vivências, conhecimentos, afetividade que interferem e transformam pessoas.

Segundo o conceito de mediação desenvolvido por Vygotsky, “a relação

do indivíduo com o mundo não é direta, mas mediada pelos sistemas

simbólicos” (VYGOTSKY, 2000, p.89). A poesia é a morada dos símbolos.

Nesse sentido, Bosi (2010, p.227), poeticamente nos incita: “A poesia

traz, sob as espécies da figura e do som, aquela realidade pela qual, ou contra

a qual, vale a pena lutar.”

Nada se iguala ao simbologismo da poesia, aos sinais e signos

abundantemente encontrados nela. Assim, entre sinais e símbolos, estabelece-

se o diálogo entre o mundo físico do ser e o mundo humano do sentido.

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CAPÍTULO II

EDUCAÇÃO: VOZES QUE ECOAM E CONSTRÓEM DIÁLOGOS

O homem não aprende somente com sua inteligência, mas com seu corpo e suas vísceras,

sua sensibilidade e imaginação. Antonio Muniz de Rezende

(...) nada se esquece

quando se ama pra valer, já que tudo na vida

tem razão, motivo e porque. Giovana – 6º B

2.1 – Educação: a medida de todas as coisas

Etimologicamente, sobre Educação, educar, temos dois apontamentos: 1-

Educere, e-ducere, em que “duc” significa conduzir: conduzir a, ao mundo, à

sociedade. 2- Exducere, em que o termo “ex” nos indica conduzir de dentro

para fora. Em outras palavras, fazer nascer o que está dentro da pessoa.

Embora amplamente discutido nas escolas e demais espaços

preocupados com o complexo processo da educação, continua-se a perceber

no cotidiano a distância em relação ao que se considera ideal: uma sociedade

composta por pessoas participativas, autônomas e sujeitos de sua história.

Isso é facilmente constatado nas mídias que pululam o espaço social,

revelando as dificuldades pelas quais a sociedade passa em termos de

violência, ausências múltiplas: de solidariedade, de afetividade, de identidade,

de atuação consciente nas comunidades, do conhecimento, entre outras

tantas.

Durante o século XX, as ciências humanas começaram a se distanciar do

pensamento positivista/racionalista de concepção da construção do

conhecimento, da educação, e começaram a elaborar um novo caminho para a

construção do saber, mais próximo de abordagens fenomenológicas ou mesmo

do paradigma da complexidade.

Os métodos de pesquisa foram alterados e, a cada dia, vem sofrendo

novas transformações, de forma a transformar o mundo e, via de

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consequência, o próprio homem. Ao encontro dessa assertiva, Groppo e

Martins (2009, p.66):

Entre as principais epistemologias utilizadas em pesquisas sobre o fenômeno educacional, quatro parecem se destacar mais ao longo do tempo e no presente: o positivismo, a fenomenologia, o marxismo e o assim chamado “paradigma da complexidade”. (...) diferentes concepções sobre a relação entre o objeto de estudo e sujeito pesquisador na construção de conhecimentos científicos.

Nas palavras de Boaventura Santos, encontra-se uma referência que

traduz, de certa forma, o novo olhar sobre educação, quando ele discorre sobre

o conhecimento científico, afirmando que ele só é válido a partir do momento

em que provoca transformações, tanto a do senso comum quanto a de si

mesmo. Ambas têm de servir para a transformação do mundo. Em outras

palavras, de nada adianta a produção do saber científico (aqui remeto-me à

Educação) – tão valorizado no mundo contemporâneo -, se não servir para que

o homem se conheça mais, conheça mais o seu próximo, a natureza, de tal

forma que, a partir de outros saberes (mítico, poético, religioso, por exemplo),

ele não apenas sobreviva, mas que saiba viver.

(...) uma vez feita a ruptura epistemológica, o ato epistemologicamente mais importante é a ruptura com a ruptura epistemológica. Isto significa que, do meu ponto de vista de vista, deixou de ter sentido criar um conhecimento novo e autônomo em confronto com o senso comum (primeira ruptura) se esse conhecimento não se destinar a transformar o senso comum e a transformar-se nele (segunda ruptura). Depois de três séculos de prodigioso desenvolvimento científico, torna-se intoleravelmente alienante concluir com Wittgenstein, (...) que a acumulação de tanto conhecimento sobre o mundo se tenha traduzido em tão pouca sabedoria do mundo, do homem consigo próprio, com os outros, com a natureza. Tal fato,vê-se agora, deveu-se à hegemonia incondicional do saber científico e à consequente marginalização de outros saberes vigentes na sociedade, tais como o saber religioso, artístico, literário, mítico, poético e político, que em épocas anteriores tinham em conjunto sido responsáveis pela sabedoria prática (a phronesis), ainda que restrita a camadas privilegiadas da sociedade. A vocação técnica e instrumental do conhecimento científico tornou possível a sobrevivência do homem a um nível nunca antes atingido (apesar de a promessa inicial ter ficado muito aquém da promessa técnica), mas, porque aprendemos a sobreviver no mesmo processo e medida em que deixamos de saber viver. Um conhecimento anônimo reduziu a práxis à técnica. (SANTOS, 2003, p.147-148)

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A Educação tem de nascer de todos os sentidos, expostos e simultâneos;

não pode ser aprisionada em muros ou a conceitos temporais e falíveis. Deve

ser carregada de poesia, não apenas de definições acadêmicas. Tem de

proporcionar ao homem a possibilidade de ser, por meio de motivações

múltiplas que valorizem a vida, o respeito, a ética.

A Educação se dá para que o homem viva e conviva, crie sentidos e os

descubra em sua existência e nas dos outros.

Pisamos em solos repletos de escombros: de existências, de

conhecimentos, de respeito, de ética, de empatia, de valores. Tempos em que

o conhecimento, quanto mais se especializa, tanto mais se distancia do todo,

posto que se fragmenta, perdendo o sentido de fazer parte de.

Por outro lado, surge uma nova forma de “ler o mundo”, entendendo-se

aqui desde o micro até o macrocosmos, e o homem inserido neles. O contexto,

a concretude, as múltiplas faces do mundo interligadas e interdependentes

compõem o quadro a que denominamos conhecimento. Neste contexto, a

educação, responsável pela criação e recriação de sentidos, é que fará o

papel, conforme Severino Antônio (2009, p.15), de:

(...) religação dos conhecimentos científicos, das ciências entre si e com a sociedade, a história, a vida; religação da objetividade e da subjetividade, assim como a religação do cognitivo e do afetivo. Isso significa a primazia da interpretação e do questionamento, do aprender crítico e criativo, com ideias e palavras próprias e diálogos significativos, e não mais predomínio da memorização sem sentido, de doutrinações, de adestramentos.

No entanto, há grandes desafios a serem vencidos. Um dos maiores

problemas por que passamos desde as últimas décadas do século XX,

encontra-se na esfera da educação: as dificuldades de aprendizagem dos

alunos. São questões causadas por motivos cognitivos, afetivos, culturais,

sociais, econômicos, dentre outros, e, muitas dessas dificuldades, estão

relacionadas à ausência de leitura, no mais hermenêutico sentido da palavra

leitura, por parte dos alunos (e muitos professores). Em outras palavras, à falta

de leituras interpretativas, à dificuldade de compreender enunciados e mundos,

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cristalizadas por métodos ultrapassados que não valorizam nem procuram

despertar a imaginação, a criatividade e a sensibilidade dos jovens alunos.

Uma proposta para superar essa crise está no trabalho do educador em

sala de aula, possibilitando diálogos entre as disciplinas, contextualizando e

recontextualizando as pulverizações que descaracterizam o conhecimento;

religando sujeito e objeto; inteligência e sensibilidade, razão e emoção.

É certo que o trabalho da docência em sala de aula, e além dela, fica a

cada dia mais difícil de ser realizado em função do bombardeio pelo qual as

crianças e jovens passam todos os dias com o mundo midiático, impondo

valores de mercado, ideologicamente fortalecidos por princípios desse mesmo

mercado. Também é fato que a extraordinária quantidade de informações que

eles recebem não implica, necessariamente, conhecimento. Em outras

palavras, é provável que não haja transformação da informação em

conhecimento, pois não há reflexão, que necessita de tempo para o pensar, o

ponderar e o incorporar as ideias.

Em relação à caracterização da sociedade contemporânea com seus

(des) valores midiáticos que impinge sua ditadura à educação, e que necessita

de ser modificada, Olgária Matos (2002, p.3), em seu artigo “A Educação na

transformação da sociedade” afirma que:

De natureza diversa é a sociedade do espetáculo contemporânea, a da mídia, cujos "valores" de facilidade e consumo rápido de informações passam a impregnar a educação, substituindo práticas formadoras pelas performáticas. Educação para a transformação requer resistir às mídias desinibidoras da violência, inibidoras do pensamento e dissipadoras do gosto - uma vez que neutralizam o bom gosto, o abjeto e o grotesco. Sua antítese são as artes.

No mesmo artigo, ela sustenta que uma educação que promova a

transformação social, primeiro tem de transformar as pessoas, de tal forma que

ressentimentos sejam desfeitos, que haja tolerância, luta pela inclusão dos que

se encontram à deriva do acesso aos bens materiais e culturais, e, acima de

tudo, que a educação seja a grande promotora das potencialidades morais e

espirituais. Defende que, para combater as injustiças e a tirania, notoriamente

deflagradas, erga-se o baluarte da amizade.

Dir-se-ia que, além da amizade, há que se resgatar valores outros, como

a empatia, a aceitação das diferenças, o respeito, e tantos mais. Isso se

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consegue pela sensibilização das pessoas. Com educação de qualidade. Com

a arte, especialmente para nós, a arte poética.

A fim de se entender o atual panorama da educação, faz-se necessária

a retomada de alguns pensadores de diferentes áreas do conhecimento, como

pedagogia, história, filosofia, sociologia, psicologia – dentre inúmeras outras –

e de algumas concepções ou correntes epistemológicas que, de forma ou mais

ou menos radical, e cada qual a seu modo, fizeram e fazem parte da

construção do universo educacional atual.

Acima de tudo, o resgate desses gigantes é imprescindível, já que na

constelação de seus legados, na tessitura de suas vozes – que ecoam no

universo - é que nos espelhamos para nossa prática educativa.

2.2 - Algumas concepções modernas e contemporâneas de Educação

Justifica-se iniciar o presente tópico por Jean-Jacques Rousseau, em

virtude de ter sido ele, no século XVIII, a revolucionar o conceito de educação,

quando colocou a criança no centro do processo educativo, e não o professor,

como era a prática pedagógica de então.

Daí dizer-se que Rousseau provocou uma “revolução copernicana” na

pedagogia: da mesma forma como Copérnico defendeu a tese do

heliocentrismo, retirando a Terra do centro do universo e colocando o Sol,

Rousseau retirou o professor do centro da prática educativa. O lugar era do

aluno.

Além disso, defende que a criança deva ser tratada como tal, em

consonância com sua especificidade, e não como “um adulto em miniatura”.

Em “Emílio”, relata a educação do jovem que dá título à obra. Ele tem o

acompanhamento de um preceptor considerado ideal e distante da sociedade,

que corrompe. Todavia, o pensador suíço sofreu muitas críticas em relação ao

seu pensamento pedagógico. Aranha (2006, p.209) afirma:

Rousseau sofreu diversas críticas à sua pedagogia: uns a consideravam elitista, já que Emílio é acompanhado por um preceptor; outros a rejeitavam por defender uma educação individualista, já que separava o aluno da sociedade.

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O fato é que Rousseau tinha posição contrária à educação de seu

tempo, cujas características eram pautadas no autoritarismo, na adaptação e

adestramento da criança, na concepção da maldade da natureza humana. Seu

ponto de vista já antecipava o romantismo, por voltar-se mais aos sentimentos

e à natureza, o que permite dizer que ele é considerado um marco na

pedagogia contemporânea.

Neste sentido:

Para ele, a pessoa não se reduz à dimensão intelectual, como se a natureza pudesse ser apenas razão e reflexão, porque antes da “idade da razão” (15 anos) já existe uma “razão sensitiva”. “Portanto, os sentidos, as emoções, os instintos e os sentimentos são anteriores ao pensar elaborado, e essas disposições primitivas são mais dignas de confiança do que os hábitos de pensamento inculcados pela sociedade. (ARANHA, 2006, p.209)

Num dos primeiros textos em que Rousseau discorre sobre educação,

nota-se sua posição de crítica, especialmente às questões morais:

Já desde os primeiros anos, uma educação insensata orna nosso espírito e corrompe nosso julgamento. Vejo em todos os lugares estabelecimentos imensos onde a alto preço se educa a juventude para aprender todas as coisas, exceto seus deveres. Vossos filhos ignoram a própria língua, mas falarão outras que em lugar algum de usam; saberão compor versos que dificilmente compreenderão; sem saber distinguir o erro da verdade, possuirão a arte de torná-los ambos irreconhecíveis aos outros, graças a argumentos especiosos; mas não saberão o que são as palavras magnanimidade, equidade, temperança, humanidade e coragem; nunca lhes atingirá o ouvido a doce palavra pátria e, se ouvem falar de Deus, será menos para reverenciá-lo do que para temê-lo. Preferiria, dizia um sábio, que meu aluno tivesse passado o tempo jogando péla, pois pelo menos o corpo estaria mais bem disposto. Sei que é preciso ocupar as crianças e que a ociosidade constitui para elas o maior dos perigos a evitar. Que deverão, pois, apreender? Eis uma questão interessante. Que aprendam o que devem fazer sendo homens e não o que devem esquecer. ( ROUSSEAU, 1973, p.355-356)

Pode-se dizer que Rousseau é um “precursor não só das pedagogias do

final do século XIX que valorizam a atividade da criança, como a Escola Nova,

mas, sobretudo, de movimentos mais radicais das pedagogias não diretivas.”

(ARANHA, 2006, p.210)

Serão feitas, de passagem, algumas breves evocações-invocações de

pessoas que, direta ou indiretamente, contribuíram para algum tipo de

transformação no panorama da educação, no Brasil e no mundo.

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Primeira evocação-invocação para este diálogo, Rousseau, por trazer

luz à educação, reconhecendo a criança como um universo único e, a partir de

então, permitir outros olhares sobre os jovens também, merecedores de nosso

respeito e sujeitos de nosso interesse pedagógico.

Necessária a referência a Pestalozzi, considerado por muitos o grande

mestre da “pedagogia romântica”. Ele viveu, em primeira pessoa, as

vicissitudes, os dramas da educação que defendeu, quer pelos projetos pelos

quais lutou, pelas dificuldades enfrentadas, pelas derrotas advindas.

Como ponto central de seu pensamento pedagógico, acham-se três

teorias (CAMBI, 1999, p.418-420):

1. A da educação como processo que deve seguir a natureza, retomada de Rousseau, segundo a qual o homem é bom e deve ser apenas assistido no seu desenvolvimento, de modo a liberar todas as suas capacidades morais e intelectuais. Isso significa que a educação deve desenvolver – harmonicamente- todo o homem, pondo ênfase sobre a “unidade das faculdades” (...) a criança já tem em si todas as “faculdades da natureza humana”: “ela é como um botão que ainda não se abriu, mas quando se abre cada pétala se expande e nenhuma permanece no seu interior, e assim deve ser o processo da educação”; 2. A da formação espiritual do homem como unidade de “coração”, “mente” e “mão” (ou “arte”), que deve ser desenvolvida por meio da educação moral, intelectual e profissional, estreitamente ligadas entre si (...); 3. A da instrução, à qual Pestalozzi dedicou a mais ampla atenção (...), segundo a qual, no ensino, é necessário sempre partir da intuição, do contato direto com as diversas experiências que cada aluno deve concretamente realizar no próprio meio.

Assim, pode-se dizer que Pestalozzi concebe a educação como

formação espiritual, humana e sociopolítica, com toda a problemática que isso

pode acarretar. Por isso, continua a ser grande referência para a pedagogia

contemporânea.

Segunda evocação-invocação para este diálogo, Pestalozzi, por deixar

seu trabalho com crianças destituídas: de educação, de afetividade, de

reconhecimento social, recursos materiais etc. um exemplo a ser seguido, o

que ora se pretende.

Na mesma linha de pensamento, encontram-se Schiller (1990), Goethe,

Froebel, dentre tantos outros mestres.

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Schiller (1990) desenvolve pesquisas sobre o belo e a arte, daí defende

como ideal de homem aquele que traga em seu interior a harmonia do homem

grego, opondo-se à apologia ao “útil” da época. Afirma que, a fim de que os

problemas políticos sejam resolvidos, o caminho é a estética, porque só é

possível alcançar a liberdade pela beleza.

Na concepção de Schiller, o novo homem tem como principal

característica a harmonia entre sensibilidade e razão, o que se consegue

educando o sentimento. Essa educação só é possível pela/na arte,

reconhecendo, assim, a função educativa da arte. Ele também defende a

multilateralidade das faculdades humanas.

Goethe, por sua vez, retoma algumas concepções de Schiller, que são

desenvolvidas em contexto, paradoxalmente, mais prático e mais utópico,

senão vejamos:

Imagina, de fato, um lugar exclusivamente dedicado à formação dos jovens, onde, sob a direção de “sábios” mestres, se dá às novas gerações tanto um rico, embora livre, conhecimento da cultura quanto uma profunda concepção do mundo. No plano do conhecimento valoriza-se, sobretudo, uma recomposição das atividades intelectuais com as manuais, favorecendo todo contato com a vida dos campos e impondo a cada jovem a escolha de um trabalho, como também se dá amplo espaço à educação estética, desde o canto (considerado expressão naturalmente voltada para a alegria e a comunhão com os outros) até a escultura, desde a pintura até a poesia épica. (CAMBI, 1999, p.422)

A terceira evocação-invocação para o presente diálogo faz-se no plural,

Schiller e Goethe, em redundante registro, pela reverência à Arte como

elemento imprescindível para a Educação. A educação aqui perseguida tem

como âmago o trabalho com a arte poética, de tal forma a resultar, exatamente,

na harmonia entre a sensibilidade e a razão (aqui traduzida por consciência),

resgatando memórias e buscando uma ação transformadora do estar/sentir-se

no mundo. Aí se estabelece o diálogo.

Há quem considere como o ápice da “pedagogia romântica” o

pensamento de Froebel. Para ele, o mundo inteiro é a representação, a

imagem sensível do espírito humano, há uma unidade em tudo.

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Do pensamento pedagógico de Froebel, destacam-se três aspectos: a

ideia de infância e sua concepção; a implantação dos jardins-de-infância; a

didática voltada para a primeira infância, considerada o “coração” do

pensamento froebeliano, tão difundido no século XIX.

Froebel já defendia que é preciso reforçar a capacidade criativa da

criança, o seu mergulho no “mundo-natureza”, conhecendo-o, dominando-o,

com sentimento, e pela arte – com cores, figuras, ritmos, sons etc.

Dessa forma, a atividade desenvolvida pelas crianças deve ser o jogo,

considerado uma atividade “séria” na infância.

Acerca dos jardins-de-infância, Cambi (1999, p.426-427) nos ensina:

(...) são locais não só de recolhimento de crianças (abrigos), mas também espaços aparelhados para o jogo e o trabalho infantil, para as atividades de grupo (canto), organizados por uma professora especializada que orienta as atividades, sem que estas jamais assumam uma forma orgânica e programática, como ocorre nas escolas. No jardim, é a “intuição das coisas” que é colocada no centro da atividade, é o jogo que predomina. No jardim existem canteiros e áreas verdes, de modo a estimular as mais variadas atividades na criança, sob a orientação do educador.

Com relação à pedagogia froebeliana:

(...) a pedagogia froebeliana fixou uma imagem da infância como idade criativa e fantástica, que deve ser “educada” segundo suas próprias modalidades e que é, talvez, o momento crucial da educação, aquele que lança as sementes da personalidade futura do homem e que, portanto, deve ser enfrentado com forte consciência teórica e viva sensibilidade formativa. Com Froebel estamos diante de um pedagogo que, pela primeira vez depois de Rousseau, redefiniu organicamente a imagem da infância e teorizou a da sua “escola”.(Idem)

Quarta evocação-invocação para este diálogo: do pensamento de

Froebel, evidenciamos a importância do sentimento e das artes no cotidiano

pedagógico do aluno, pela ressonância com as práticas pedagógicas, nas

quais se fundamenta nossa propositura. Da mesma forma, invocamos a

influência de Schelling acerca de sua concepção da unidade das coisas.

A quinta evocação-invocação, Weber, pode causar estranhamento por ser uma

concepção sociológica, fugindo um pouco das abordagens anteriores, embora

tenha causado profundas repercussões na educação. A referência que se faz

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aqui de Weber justifica-se pela sua visão de mundo – com significativos

reflexos na educação – tendo em vista o seu “desencantamento do mundo”,

conceito aparentemente paradoxal para a época, considerando-se que o

contexto em que estava inserido era o do mundo tecnicista, marcado pelos

valores do mercado capitalista. Mundo impregnado pelo poder do capital, em

que concepções metafísicas, voltadas para a espiritualidade, para valores

humanísticos eram rechaçados diante da cientificidade da época.

Exatamente por esse motivo, aparentemente contraditório, chama-nos a

atenção seu pensamento. A necessidade do homem de busca por valores

metafísicos, transcendentais, de suas tradições e culturas espirituais começa a

despontar, no auge de um período voltado para a negação desses valores e

supervalorização de aspectos materialistas e cientificistas. Em suma, a ideia de

que o homem é um todo, composto por múltiplas partes que se completam e se

necessitam, para que ele seja uma unidade, para que se reencante com o

mundo ao qual pertence, é o motivo de nosso interesse.

Weber afirma:

A ciência nos faz ver na realidade externa unicamente forças cegas, que podemos dispor a nosso serviço, mas não pode fazer sobreviver nada dos mitos e da divindade com que o pensamento dos primitivos populava o universo. Nesse “mundo desprovido de encantos”, as sociedades humanas evoluem para uma organização mais racional e sempre mais burocrática. (WEBER, 2004, p.63)

Assim, clara fica a necessidade de o homem resgatar seus valores

culturais, suas tradições religiosas e humanísticas, “contaminando” uma

sociedade vazia de sentimentos.

Sob a ótica weberiana, a sociedade e a educação caracterizam-se pela

proposta de equilíbrio entre o que ele chamou de carisma e burocracia. A

analogia ao conceito apolíneo e dionisíaco de Nietzsche dar-nos-á a dimensão

do sentido que Weber propôs. Apolo, o deus da beleza, da racionalidade, da

contenção, assim como da individuação, permite que Dioniso se manifeste. Por

sua vez, Dionísio, o deus da embriaguez, da emoção, dos excessos possibilita

que Apolo se exprima. Em outras palavras, o primeiro representa a ponderação

e domínio de si, enquanto o segundo, o exagero, o arrebatamento. Eis a ideia

de burocracia e carisma, respectivamente, na acepção weberiana.

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No sentido do equilíbrio, Weber aponta:

Para a possibilidade de rompermos com o estado de coisas, originado no capitalismo moderno. Portanto, é preciso pensar numa terapia (...) que desconfie da razão que se coloca como um princípio ordenador da relação homem-mundo, expressa no caráter burocrático da existência. (...) Retomar o espírito carismático-dionisíaco pode ser o caminho. (...) A educação pode nos ajudar nesse processo. Em vez de uma vida fundada na rigidez, na frieza e no cálculo, experimentar a sensação fornecida pelo movimento que resulta da dança. Assim, podemos pensar numa educação que leve em conta a dança alegre dionisíaca e o espírito extático do carisma. (WEBER , 2004, p.72-73)

O mundo não pode ser caracterizado apenas pela visão maniqueísta:

apolíneo-burocrático e dionisíaco-carismático. Acreditamos que a procura deva

ser pelo equilíbrio desses opostos. Cabe à educação exercer esse papel de

equilíbrio, de harmonia entre os opostos, considerando-se que as relações

interpessoais – não apenas pedagógicas – são muito mais complexas que essa

divisão reducionista.

Completando estas breves reflexões acerca de alguns aspectos entre

Weber e a educação, chamamos as vozes de Bourdieu e Passeron, ditas

muitas décadas mais tarde, mas atemporais, de que a escola não é uma ilha

separada do contexto social. Ao contrário, a escola é definida como “um

espaço da reprodução social e um eficiente domínio de legitimação das

desigualdades sociais” (BOURDIEU; PASSERON, 1992, p.63). Portanto, as

marcas entre sociedade e educação são indeléveis e profundas.

Ainda nesta digressão, há que se fazer referência e reverência a alguns

outros gigantes da área do conhecimento pedagógico - ou não -

imprescindíveis para este diálogo.

Reportamo-nos aqui ao que se denomina “pedagogia progressista”,

cujas bases teóricas, de forma geral, estão na literatura marxista, quer seja

pela dialética, quer pela crítica ao liberalismo que potencializa uma sociedade

dividida em classes sociais discrepantes, o que dificulta uma real

democratização da escola.

O francês Célestin Freinet (2004) teve seu trabalho identificado como

“pedagogia popular e democrática”, cuja influência alcançou as correntes

“antiautoritárias de base socialista” e as construtivistas (com Vygotsky), dentre

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inúmeras outras. Freinet – sexta evocação-invocação – por sua concepção de

educação que se confunde com a vida; com sua proposta de estudo do entorno

(estudo do meio) que propunha não apenas a observação de suas

características físicas, geográficas, históricas, etc., mas o estudo transformador

do meio, iniciado pelo olhar crítico e consciente da realidade.

Por outro lado, Freinet não perdia a veia poética, unindo, dessa forma,

uma proposta pedagógica que buscava a autonomia das crianças, aliada a um

fazer pedagógico poético:

Quando éramos pequenos, sonhávamos à noite com uma grande escada mágica, cujos se iam colocando uns diante dos outros e subindo assim até o céu. E eis que os homens, imitando os pássaros, abandonaram os degraus metódicos para tomarem impulso para o azul. Também nós tomamos impulso para a vida; se a criança de interessa e se apaixona pela sua própria cultura, se “quer” criar, instruir-se, enriquecer-se, ela o conseguirá, talvez por ilógicos caminhos de contrabando, mas num tempo recorde, com uma segurança e uma plenitude que nos edificarão. O principal é encontrar esse ardor, essa vida, esse furor de querer, que é bem próprio da natureza do nosso ser. Se o conseguirmos nas nossas classes, todos os problemas acessórios estarão resolvidos. Poderemos, então, tirar nossa escada metódica e iniciar o voo. (FREINET, 2004, p.90)

Aqui situamos Paulo Freire, sétima evocação-invocação, com sua

“pedagogia da libertação” e “pedagogia do oprimido” e seu método de

alfabetização de adultos, durante os anos 1960, num Brasil borbulhante de

movimentos populares.

A principal característica da proposta de Paulo Freire concentra-se numa

educação voltada para a conscientização da opressão, que possibilitaria a

transformação do indivíduo oprimido. Freire chegou à conclusão de que a

educação, a cultura e a liberdade eram negadas à classe oprimida, portanto,

por meio de uma educação libertadora, posto que conscientizadora, haveria

possibilidade de os oprimidos recuperarem sua “humanidade roubada”:

(...) A libertação autêntica, que é a humanização em processo, não é uma coisa que se deposita nos homens. Não é uma palavra a mais, oca, mitificante. É práxis, que implica a ação e a reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo. (...) A educação que se impõe aos que verdadeiramente se comprometem com a libertação não pode fundar-se numa compreensão dos homens como seres “vazios” a quem o mundo “encha” de conteúdos; não pode basear-se numa consciência espacializada, mecanicistamente compartimentada, mas nos homens como “corpos conscientes” e na consciência como

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consciência intencionada ao mundo. Não pode ser a do depósito de conteúdos, mas a da problematização dos homens em suas relações com o mundo. (FREIRE, 2004, p.67)

Neste sentido, Freire distingue dois tipos de educação: a pedagogia dos

dominantes e a dos oprimidos:

Comparando as duas pedagogias, freire acusa a primeira de se basear em uma concepção “bancária” da educação, segundo a qual o professor “deposita” o saber e o “saca” por ocasião do exame, definindo uma relação de verticalidade, em que o saber é doado de cima para baixo, e de autoritarismo, pois só o professor “sabe”. Já a pedagogia do oprimido é problematizadora, e parte da concepção de que o ato de conhecer não é uma “doação” do educador, mas um processo que se estabelece no contato do educando com o mundo vivido, lembrando que este se encontra em contínua transformação. Ainda mais, a relação entre educador e educandos e destes entre si é dialógica: e o diálogo, como sabemos, supõe troca, não imposição. Essa postura permite que o conhecimento adquirido seja crítico, porque autenticamente reflexivo, implicando o constante desvelamento da realidade para nela se posicionar. (ARANHA, 2006, p.274)

No entanto, o papel do educador, para que se dê a educação

libertadora, é fundamental:

Desta maneira, o educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa. Ambos, assim, se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os “argumentos de autoridade” já não valem. Em que, para ser-se, funcionalmente, autoridade, se necessita de estar sendo com as liberdades e não contra elas. (FREIRE, 2004,p.68)

É essa condição de oprimido - sem ter consciência de o ser; de ter a sua

humanidade roubada; da voz silenciada por uma sociedade excludente; esses

ecos caminham em direção ao trabalho com textos poéticos como forma de

expressão de uma subjetividade resgatada e passível de ação transformadora,

quer para o jovem, individualmente, quer pela comunidade à qual ele pertence.

A derradeira – oitava - evocação-invocação: Edgar Morin.

Na voz de Morin, o nó borromeano, o canto maior.

Edgar Morin dá nome à obra e à parte de seu pensamento com o título

do livro “Ciência com Consciência” (s/d), no qual afirma que, do mesmo modo

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que a ciência é enriquecedora, é também aniquiladora, tirânica. Ele critica a

especialização das Ciências, a técnica e a industrialização do século XIX como

forma mutiladora, simplificadora, reducionista e fragmentadora do ser e do

saber.

Faz algumas propostas: uma reflexão bioantropológica do

conhecimento, e também nos aspectos sociais e históricos; um questionamento

das estruturas ideológicas do ser humano pela sua falibilidade; uma reflexão

sobre nós mesmos e nossa participação no universo sociocultural. E mais:

sustenta que o antídoto é o diálogo reflexivo e crítico das interrelações entre

Ciência, Sociedade, Técnica e Política. Em outras palavras, “o todo é uma

unidade complexa”.

Segundo Morin (2000), o mundo atravessa uma “policrise”, em que está

em risco a própria sobrevivência do planeta, portanto da raça humana e de

todos os seres vivos que nele habitam. Afirma que vivemos uma “agonia

planetária” e que, para superarmos esse estado de coisas, é necessário que

coloquemos em prática a solidariedade. Não apenas com os outros de nossa

espécie, mas com tudo o que há no planeta.

No entanto, o homem só conseguirá viver essa solidariedade quando

tiver consciência e compreender o seu real destino no planeta.

Neste contexto, entra a Educação como meio pelo qual é possível

reverter esse quadro sombrio. Todavia, segundo Morin, a escola perdeu sua

identidade, necessitando redefinir seu papel nos âmbitos social, político,

histórico etc., juntamente com todos os membros que a compõem: desde

alunos, funcionários, professores, gestores e toda a comunidade envolvida no

processo de ensino aprendizagem.

Izabel Petraglia (2011), em sua obra “Edgar Morin: a educação e a

complexidade do ser e do saber”, tece algumas considerações sobre as

concepções de Morin acerca de escola e educação:

E assim, se impõe a necessidade de se pensar a educação numa perspectiva “complexa”, capaz de se compreender e viver a solidariedade em diversas dimensões e sob os mais variados e múltiplos aspectos também dentro da escola, partindo-se da ideia do processo auto-eco-organizador que todo sujeito desenvolve, segundo Morin. (PETRAGLIA, 2011, p.78)

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Morin critica o saber fragmentado, mutilado presente no currículo

escolar, herança do século XIX, cujo foco era o desenvolvimento científico e

técnico como forma de se chegar ao progresso, tão perseguido então.

Efetuaram-se progressos gigantescos nos conhecimentos no âmbito das especializações disciplinares, durante o século XX. Porém, estes progressos estão dispersos, desunidos, devido justamente à especialização que muitas vezes fragmenta os contextos, as globalidades e as complexidades. Por isso, enormes obstáculos somam-se para impedir o exercício do conhecimento pertinente no próprio seio de nossos sistemas de ensino. Estes sistemas provocam a disjunção entre as humanidades e as ciências, assim como a separação das ciências em disciplinas hiperespecializadas, fechadas em si mesmas. Desse modo, as realidades globais e complexas fragmentam-se; o humano desloca-se; sua dimensão biológica, inclusive o cérebro, é encerrada nos departamentos de biologia; suas dimensões psíquica, social, religiosa e econômica são ao mesmo tempo relegadas e separadas umas das outras nos departamentos de ciências humanas; seus caracteres subjetivos, existenciais, poéticos encontram-se confinados nos departamentos de literatura e poesia. A filosofia, que é por natureza a reflexão sobre qualquer problema humano, tornou-se, por sua vez, um campo fechado sobre si mesmo. Os problemas fundamentais e os problemas globais estão ausentes das ciências disciplinares. São salvaguardados apenas na filosofia, mas deixam de ser nutridos pelos aportes das ciências. Nestas condições, as mentes formadas pelas disciplinas perdem suas aptidões naturais para contextualizar os saberes, do mesmo modo que para integrá-los em seus conjuntos naturais. O enfraquecimento da percepção do global conduz ao enfraquecimento da responsabilidade (cada qual tende a ser responsável apenas por sua tarefa especializada), assim como ao enfraquecimento da solidariedade (cada qual não mais sente os vínculos com seus concidadãos). (MORIN, 2000, p.40-41)

Ainda hoje, vivem-se os reflexos dessa prática reducionista de

educação, que não permite a visão do todo, da unidade do conhecimento,

tampouco promove o diálogo entre disciplinas e saberes:

As crianças aprendem a história, a geografia, a química e a física dentro de categorias isoladas, sem saber, ao mesmo tempo, que a história sempre se situa dentro de espaços geográficos e que cada paisagem geográfica é fruto de uma história terrestre: sem saber que a química e a microfísica têm o mesmo objeto, porém em escalas diferentes. As crianças aprendem a conhecer os objetos isolando-os, quando seria preciso, também, recolocá-los em seu meio ambiente para melhor conhecê-los, sabendo que todo ser vivo só pode ser conhecido na sua relação com o meio que o cerca, onde vai buscar energia e organização. (MORIN, apud PETRAGLIA, 2011, p.78-79)

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Para que haja mudança na educação, tem de haver, primeiro uma

mudança no pensamento do educador, em sua mentalidade e sua postura: ele

necessita entender que “tudo se liga a tudo”.

O global é mais que o contexto, é o conjunto das diversas partes ligadas a ele de modo inter-retroativo ou organizacional. Dessa maneira, uma sociedade é mais que um contexto: é o todo organizador de que fazemos parte. O planeta Terra é mais do que um contexto: é o todo ao mesmo tempo organizador e desorganizador de que fazemos parte. O todo tem qualidades ou propriedades que não são encontradas nas partes, se estas estiverem isoladas umas das outras, e certas qualidades ou propriedades das partes podem ser inibidas pelas restrições provenientes do todo. (...) “É preciso efetivamente recompor o todo para conhecer as partes. Daí se tem a virtude cognitiva do princípio de Pascal, no qual a educação do futuro deverá se inspirar: “sendo todas as coisas causadas e causadoras, ajudadas ou ajudantes, mediatas e imediatas, e sustentando-se todas por um elo natural e insensível que une as mais distantes e as mais diferentes, considero ser impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, tampouco conhecer o todo sem conhecer particularmente as partes”. Além disso, tanto no ser humano, quanto nos outros seres vivos, existe a presença do todo no interior das partes: cada célula contém a totalidade do patrimônio genético de um organismo policelular; a sociedade, como um todo, está presente em cada indivíduo, na sua linguagem, em seu saber, em suas obrigações e em suas normas. Dessa forma, assim como cada ponto singular de um holograma contém a totalidade da informação do que representa, cada célula singular, cada indivíduo singular contém de maneira “hologrâmica” o todo do qual faz parte e que ao mesmo tempo faz parte dele. (MORIN, 2000, p.37-38)

Assim, a educação vai muito além da interdisciplinaridade das

disciplinas. Deve alcançar a transdisciplinaridade das disciplinas, das práticas

cotidianas, da vida. Em outras palavras, conforme Petraglia (2011, p.83): “na

prática transdisciplinar não há espaço para conceitos fechados e pensamentos

estanques, enclausurados em gavetas disciplinares; há a busca de todas as

relações que possam existir entre todo o conhecimento.”

Dessa forma, estabelecem-se os diálogos, ao mesmo tempo múltiplos e

unívocos. Apenas com a audição dessas vozes que, como as estrelas, povoam

céu e terra tentando se fazer presentes, é que poderemos pensar em algum

tipo de mudança na mentalidade das pessoas, na educação.

É preciso tirar os tampões de nossos tímpanos e deixar entrar a melodia

do universo.

A educação pode ser traduzida como um processo de entendimento de

símbolos, presentes nas múltiplas linguagens desenvolvidas pelo homem,

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através das quais ele se expressa e se insere em seu mundo, sua comunidade,

podendo transformá-los ou não, dependendo de seu grau de interesse e de

conscientização.

Assim, educar implica cumplicidade, extrapolar os limites do educando e

do educador, confundi-los, gerar novos conhecimentos. A partir da junção das

informações das partes envolvidas, objetiva-se construir autonomia: “ninguém é

sujeito da autonomia de ninguém”.(FREIRE, 2009)

A educação não compreende um espaço único para que ocorra. Não

depende de condições únicas. Não existem garantias de que ocorra

plenamente e não se fecha diante de uma informação. O processo é contínuo,

não tem hora para começar, tampouco para terminar; não tem uma estrutura

fixa, nem existem receitas e modelos corretos para seu pleno desenvolvimento.

A educação é um processo em constante construção. Educar é uma via de

mão dupla, vitalícia, parte da cultura humana.

Muitos estudiosos e profissionais da educação discutem suas

possíveis classificações e, em sua maioria, aceitam defini-la em três campos

que compreendem a educação formal, a educação informal e a educação não

formal.

A abordagem será feita porque as atividades desenvolvidas com as

crianças do projeto “Tecendo a vida nos fios da poesia” muitas vezes transitam

por todas essas áreas, embora tenham na educação formal sua base de

atuação.

2.3 - Educação formal

Entende-se por educação formal aquela desenvolvida em escolas

regulares ou instituições do mesmo porte. São espaços regulamentados por

leis, com conteúdos planejados e elaborados com antecedência, discutidos e

debatidos em reuniões de planejamento, com professores diplomados, com

regras, padrões e normas estabelecidos. Tais elementos estão revestidos da

necessidade e obrigatoriedade de desenvolver habilidades e competências

variadas, organizada em currículos, com tempo e pessoal específicos.

Necessitam de uma sistematização sequencial, dividindo-se de acordo com a

faixa etária, além do reconhecimento da aprendizagem por órgãos superiores,

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da certificação e a titulação dos indivíduos que participaram do processo

(GOHN, 2006). É um processo institucional que ocorre nos bancos escolares.

Observam-se nos planos escolares algumas preocupações que

extravasam essas expectativas e trabalham no sentido de promover a efetiva

aprendizagem. São educadores buscando formas alternativas de atrair a

atenção, despertar o interesse e o encantamento nos alunos, considerando-se

que pouco se satisfazem, quase não mais são tocados com as estratégias de

giz e lousa e com as informações, salvo raras exceções, quando são

meramente repetidas num processo de transmissão de conhecimento.

Hoje, há processos avaliativos pelos quais a educação formal é

submetida. No entanto, os resultados, que poderiam servir de parâmetro para

um repensar sobre as práticas, os métodos e as estratégias utilizadas nas

escolas, não alcançam esse fim. Um dos inúmeros motivos: as instituições que

realizam esses processos de avaliação nem sempre conhecem as realidades

escolares que são submetidas a essas “provas de aproveitamento” do

educando.

A educação formal é aquela pela qual todos nós devemos passar ao

completar seis anos de idade. Algumas crianças iniciam antes seu processo

educativo formal, porém, em condições favoráveis de vida, o início é nessa

idade.

Qualquer pessoa, independente da idade que se tenha, deverá se

lembrar da primeira professora ou daquela que deixou sua marca gravada,

durante o período escolar. É nesse espaço que se constrói a ideia de que o

conhecimento deve ser sistematizado, ou seja, o contato com o universo dos

signos e símbolos, o registro das novas informações, a percepção de um

mundo cheio de representações, o descobrir-se “no mundo”, por exemplo, é

feito no ambiente escolar.

Entretanto, o processo não é o mesmo para todos os alunos. Os

conflitos que podem aparecer nesse contexto educativo muitas vezes não são

solucionados devido à rigidez com que seus conteúdos são abordados, em

função de algumas metodologias e, especialmente, pelo distanciamento

observado da realidade dos educandos.

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A educação formal, por mais que tenha um projeto inovador, em geral

acaba sendo refreada pelos seus próprios limites: seus muros. Dificilmente

rompem-se as barreiras entre escola e bairro e, muitas vezes, sua rigidez

impede o pleno aprendizado. A criança e o jovem não vislumbram a percepção

do estar no mundo, transformando-o, transformando-se ou vice versa.

Por outro lado, muitas escolas ousaram implantar diferentes

metodologias de ensino, conseguindo superar alguns problemas e revelam

como as parcerias podem exercer papel fundamental na busca por uma

educação plena.

Algumas escolas superaram o mero formalismo de seus currículos,

inovaram buscando parceiros, tecendo redes e procurando maneiras

alternativas de desenvolver o processo educativo a partir da autonomia

daquele que está inserido em seus bancos – agora móveis -, em busca de

novos espaços.

De acordo com uma pesquisa de Laranjeira e Teixeira (2008), a escola,

responsável pela educação formal, possui limites para a inserção social e

profissional daqueles que a frequentam. Os jovens entrevistados em sua

pesquisa e matriculados na escola pública apresentavam referenciais que

identificavam os limites do modelo formal/oficial como distantes dos seus

interesses e de sua realidade. Na Bahia, local onde ocorreu a pesquisa, ficou

claro que a escola formal não entendia o que se passava com seus alunos,

como também não os habilitava profissionalmente, objetivo daquela instituição

escolar. A falta de comunicação entre os profissionais envolvidos na educação

com os alunos foram marcas distintivas do problema identificado pelas

pesquisadoras.

Neste caso, a mera transmissão de informações tornava-se vazia, uma

vez que nada representava de concreto na vida daqueles alunos, que

esperavam que a escola pudesse proporcionar uma melhora substancial em

suas vidas, permitindo-lhes conseguir empregos e salários.

Em outros lugares a situação não é diferente: professores

despreparados, desmotivados, mal remunerados, absoluta ausência de diálogo

entre os sujeitos envolvidos no processo, entre outros motivos. Isso tudo acaba

colocando em rota de colisão os mestres, os poderes públicos e os educandos.

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Esse tipo de educação, entendida como formal, possui um planejamento

específico, com definições de objetivos e currículos enviesados por estruturas

burocráticas, formalmente hierarquizadas, além de serem definidas pelo

governo e seus órgãos do sistema de ensino. Trata-se da educação

institucionalizada.

O projeto “Tecendo a vida nos fios da poesia” – embora tenha se dado

em ambiente de educação formal -, pode estabelecer a comunicação entre a

educação formal e a não formal, uma vez que ele é passível de acontecer

“entre os muros da escola” – caracterizando a educação formal-, ou em outros

locais, tais como espaços públicos, praças, igrejas, salões comunitários etc,

desde que haja a intencionalidade, uma das marcas da educação não formal.

É, inclusive, interessante que também possa se desenvolver em

ambientes não escolares, já que permite um olhar para dentro desses

possíveis espaços, dos quais fazem parte as crianças e os jovens, e nos quais

exercem suas identidades.

2.4 - Educação informal

Embora existam muitas discussões sobre a educação informal e suas

formas de desenvolvimento, Gohn (2006) esboça as definições mais aceitas

atualmente sobre o tema. De acordo com ela, a educação informal se

processaria nos lugares ditos informais, ou seja, na família, no grupo de

amigos, nas ruas do bairro, nos clubes e outros espaços de convivência em

que é possível adquirir valores e culturas referentes ao meio em que se vive.

Nesses espaços constroem-se os laços de solidariedade e pertencimento, além

de se desenvolverem sentimentos.

Não é difícil identificarmos esses lugares no nosso cotidiano e menos

difícil ainda se dermos uma volta pelo quarteirão onde moramos. Nas cidades

pequenas é fácil observar crianças e jovens pelas ruas brincando de soltar

pipa, jogar futebol, conversando.

Nas cidades grandes, isso não é diferente. O que ocorre é a

necessidade de um olhar mais cuidadoso para perceber, nos detalhes, a

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presença de culturas em transformação. Embora a cidade grande esconda tais

transformações, um olhar minucioso consegue identificá-las por todos os

lugares.

Na educação informal, os pais, os amigos, os vizinhos, os meios de

comunicação em geral são os agentes educadores e a informação aparece

espontaneamente, através das relações sociais, das preferências que cada um

desenvolve. Ela possibilita gerar hábitos, condutas, maneiras de se expressar,

comportamentos e atitudes, bem como expressa a socialização das pessoas

envolvidas. Não há uma preocupação em sistematizar o conhecimento ou a

informação, ela é espontânea, adquirida de acordo com as relações sociais de

cada indivíduo, atuando no campo das relações emocionais e dos sentimentos

(GOHN, 2006). Por não existir uma organização e por ser baseada no senso

comum das pessoas envolvidas, essa educação pode gerar ou reproduzir

preconceitos.

Portanto, a educação informal faz parte da vida das pessoas, assim que

nascem e começam a ter suas primeiras impressões de mundo. Aprendem,

com isso, a comer, andar, vestirem-se, como também, as primeiras regras do

convívio em sociedade, no seio da família ou no lugar em que estão inseridas.

Em função disso, os valores são variáveis, as formas de pensar, também. Há

uma imensa diversidade de pensamentos, e eles variam de acordo com local e

cultura.

Esse tipo de educação é também importante para a construção do

indivíduo. Ela será responsável por seu repertório cultural, que se transformará

ao longo de sua vida, adicionando, transformando e recriando suas crenças,

seu modo de ser e estar no mundo.

É o primeiro contato que podemos considerar uma rede: família, vizinhos,

amigos da rua. Constróem-se formas de socialização, de compartilhamentos

nesses espaços. Vínculos afetivos são criados e transmitidos, permitindo uma

percepção de mundo. Com novos valores adquiridos ou transformados a partir

desses processos chamados informais, novas formas de interação social vão

desabrochando. Isso permite que as pessoas construam suas identidades –

que estarão em constante reconstrução.

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Os espaços de aprendizagem, portanto, são múltiplos e constantes.

2.5 - Educação não formal

A educação deve “confundir” educador e educando. Não existem

limites para a ação de cada um no momento da construção da aprendizagem.

Educador é aquele que constrói junto com o educando a informação,

que processa, gera dúvida e que, “de repente, aprende.” Educando é aquele

que investiga, procura, incentiva-se cada vez mais ao descobrir ainda mais

informações, traz novos conhecimentos, reconstrói e também ensina. Essa

dialética da educação confunde os papéis. Não existe idade para ensinar e não

existem limites para aprender. Todos constroem o conhecimento juntos. Existe

uma intencionalidade na aprendizagem para a formação plena da pessoa.

Nesse sentido, o projeto “Tecendo a vida nos fios da poesia” também

volta seu olhar para prática da cidadania, já que considera as crianças e os

jovens como cidadãos em potencial. Na concepção do Projeto, cidadão é

aquele que participa ativamente de seu meio, porque conhece seus direitos,

reconhece-se em suas necessidades individuais e exige, através da educação

e participação, a sua visibilidade.

Educação não formal é uma categoria utilizada para mapear e distinguir

atividades e experiências que ocorrem fora do ambiente escolar, mas que têm

uma intencionalidade em sua execução, ou seja, interessa-se por construir um

aprendizado. Trata-se de uma educação que acontece à margem da escola, no

“mundo da vida”, compartilhando experiências através de ações coletivas,

valorizando atividades não somente ligadas à formação profissional, mas

relativas à cultura. (PARK ; FERNANDES, 2005)

O educador na educação não formal é o outro com o qual haverá a

interação (GOHN, 2006). É aquele que se predispõe ao singular trabalho com

crianças e jovens de rua, que realiza oficinas de arte e música a partir de seus

conhecimentos, que faz da comunicação uma possibilidade para que as

pessoas aprendam a se expressar e sejam ouvidas. Permite, ainda, que as

pessoas entendam a importância das memórias culturais urbanas, como as

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músicas hip hop e rap, por exemplo. Esse educador possibilita intervenções

urbanas de todos os tipos como grafite, painéis, entre outros. Ele também é um

facilitador da recriação da cultura, a partir da capoeira, do esporte, da arte e

outras formas de aprendizagem, fazendo a conexão da riqueza dos espaços de

educação e arte não formais, sendo estendidas às camadas populares (PARK;

FERNANDES, 2005). Procura-se com isso, também, criar possibilidades de

profissionalização, encaixando o jovem no mercado de trabalho, possibilitando

a aprendizagem de um ofício.

Sobre a educação não formal, Gohn (2006, p. 29-30):

(...) A educação não formal capacita os indivíduos a se tornarem cidadãos do mundo, no mundo. Sua finalidade é abrir janelas de conhecimento sobre o mundo que circunda os indivíduos e suas relações sociais. Seus objetivos não são dados a priori, eles se constroem no processo interativo, gerando um processo educativo.Um modo de educar surge como resultado do processo voltado para os interesses e as necessidades que dele participa.

Com isso, ainda conforme a autora, é possível desenvolver os laços

sociais de igualdade e justiça, fomentando o exercício da cidadania e da

autonomia. É nessa relação que também ocorre a formação sociocultural das

pessoas, permitindo que informações sejam partilhadas na expectativa de

combater o individualismo e a invisibilidade das pessoas.

Por não estar presa em séries, idades e conteúdos, a educação não

formal permite que o indivíduo se aproprie dos espaços em que circula, através

de um conhecimento organizado, estabelecendo laços subjetivos e de

interesses comuns com o grupo, gerando, também, sentimento de

pertencimento, colaborando com sua auto estima, construindo critérios de

solidariedade, criando seu papel social (GOHN, 2006). Com isso, essas

pessoas serão capazes de participar de forma ativa e criativa em seu entorno,

capazes de transformá-lo para o bem de suas vidas. O espaço em que moram

não mais será tido como possibilidade de abandono, mas de transformação.

As expectativas da educação não formal é o desenvolvimento para

atingir resultados dentro de processos que visam:

(...) – a construção e reconstrução de concepção (ões) de mundo e sobre o mundo;

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- contribuição para um sentimento de identidade com uma dada comunidade; - quando presente em programas com crianças ou jovens adolescentes, a educação não formal resgata o sentimento de valorização de si próprio (o que a mídia e os manuais de auto ajuda denominam, simplificadamente, como a auto estima; ou seja, dá condições aos indivíduos para desenvolverem sentimentos de auto valorização, de rejeição dos preconceitos que lhes são dirigidos, o desejo de lutarem para ser reconhecidos como iguais (enquanto seres humanos), dentro de suas diferenças (raciais, étnicas, religiosas, culturais, etc.); - os indivíduos adquirem conhecimento de sua própria prática, os indivíduos aprendem a ler e interpretar o mundo que os cerca. (GOHN, 2006, p.30-31)

Contudo, esses elementos acima demandam desafio e preparação, o

que nem sempre acontece.

Mais tarde, em sua obra “Educação Não Formal e o Educador Social:

atuação no desenvolvimento de projetos sociais” (2010), Gohn faz um breve

histórico sobre as várias denominações e concepções de educação não formal

que vão sendo construídas, especialmente a partir da década de 1980, suas

pesquisas para melhor delinear essa categoria de educação, e o repensar

sobre as próprias teorias, até então:

(...) desde os anos 1980 eu trabalhava com o pressuposto de que os movimentos sociais e outras práticas associativas coletivas tinham um caráter educativo, para seus participantes, para aqueles que eram alvo dos protestos e demandas e para a sociedade em geral. Mas eu não havia ainda conseguido exemplificar bem este caráter por meio de uma categoria analítica. A construção da categoria educação não formal para exemplificar o processo de aprendizagens e a construção de saberes foi a luz na escuridão. (...) a categoria educação não formal foi sendo construída em textos na minha produção sob forte influência de vivências práticas. Eu não havia pesquisado ainda sobre esta categoria na produção acadêmica, o que veio a ocorrer logo a seguir. Inicialmente busquei nomear o processo educativo que tratava da aprendizagem no interior dos movimentos sociais, tentando diferenciá-lo não apenas da educação formal – escolar -, mas também da educação popular relacionada com os processos de alfabetização de adultos, sob modalidades alternativas. (GOHN, 2010, p.9-10)

Na mesma obra, Gohn nos revela que, ainda hoje, uma das maiores

dificuldades é encontrar uma forma adequada de defini-la. Para isso, a

concepção de educação não formal é alcançada contrapondo-a à educação

formal:

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Um dos grandes desafios da educação não formal tem sido defini-la, caracterizando-a pelo que ela é. Usualmente ela é definida pela negatividade – pelo que ela não é. (...) A posição mais usual quando os textos se referem à educação não formal é a que expus anteriormente – contrapor a educação não formal à educação

formal/escolar. (GOHN, 2010, p.22)

A autora também cita vários autores que utilizam outras denominações

como sinônimos de educação não formal, tais como: “não escolar”, “educação

extraescolar”, “educação alternativa”, “Educação de Adultos”, “educação

sociocomunitária”, dentre outras. Com relação à educação sociocomunitária,

afirma:

Educação sociocomunitária é uma proposta que faz uma articulação entre as duas últimas abordagens que tratamos. Groppo (2006) a define como uma forma de olhar os fenômenos educacionais. Ele a aborda como um foco ‘sociocomunitário sobre a educação que, num sentido genérico, destacaria as influências recíprocas entre a educação e a comunidade-sociedade’ (2006, p.135). A contribuição de Groppo é dada ao introduzir e destacar a questão das diferentes lógicas sociais que articulam as práticas educativas no campo do que denomino como educação não-formal.(GOHN, 2010, p.27)

Seguindo o raciocínio da autora, enquanto na educação formal as

metodologias para o desenvolvimento de seus objetivos são elaboradas a partir

de um conteúdo previsto por lei no âmbito dos espaços tradicionais de

educação, e a educação informal garante como método a vivência e a

reprodução do conhecimento, a educação não formal, por outro lado, depende

do processo, não se antecipa, precisa esperar os resultados das ações

humanas para construir sua teia de envolvimento e seus métodos de aplicação.

2.6 - Em busca de uma pedagogia da autonomia

A aprendizagem também é realizada a partir da subjetividade. O

conceito é compreendido pelas pessoas somente quando lhes fazem sentido e

a partir de sua realidade, do mundo em que vivem, das coisas nas quais

acreditam. Sendo assim, as referências que trazemos em nossas vidas, que

são as nossas memórias, nossa bagagem cultural, são fundamentais no

momento da construção dos conceitos, pois são elas que darão o sentido para

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que se possam entender os signos e símbolos que povoam nossas formas de

expressão – especialmente a literária.

São elas que nos fornecem os meios comparativos, os exemplos de que

precisamos para que novos conhecimentos façam sentido em nossa

aprendizagem.

Essa aprendizagem não acontece de modo individual, ao contrário, ela é

fruto da interação social, das experiências trocadas, dos sentidos

compartilhados e de um constante caminho a ser trilhado. Acontece em

qualquer momento de nossas vidas, parte de nosso processo de

amadurecimento.

Parte desse pensamento podemos encontrar nos estudos de Freinet,

que sustenta que as aprendizagens escolares não podem estar separadas da

realidade. Para ele, o método não era um modo de fazer, mas um processo

completo que envolvia o conjunto de ações e o fim que se esperava alcançar.

Ainda mais, “que as estratégias de educação deviam acontecer a partir

do aproveitamento da experiência da realidade, da vivência das pessoas”.

(FREINET, 2004)

Para Freinet, (2004, p.75-76) “a atividade, o desejo de conhecer e a

expressão caminham lado a lado”. Trabalhar com o potencial de cada pessoa

estimula e gera possibilidades de desenvolvimento intelectual. A liberdade de

produção desse conhecimento é o que garante a felicidade que, por sua vez, é

o que permite o contato com outras pessoas e um constante processo de

ensinar e aprender. Portanto, a cooperação é passo fundamental na

aprendizagem.

Chegamos, então, a mais uma dessas encruzilhadas do trabalho do

“Tecendo a vida...”. Aproveitado quanto a seu método – ainda que Freinet não

gostasse muito da palavra -, este autor expõe em seus estudos lições básicas

para o entendimento do processo de construção do conhecimento humano, e

este é reinventado no Projeto “Tecendo a vida...”, em sua prática pedagógica.

A cooperação, a troca de experiências, o amparo são elementos

fundamentais na construção das atividades propostas pelo Projeto, assim como

acredita Freinet. As pessoas podem até aprender sozinhas, mas é na interação

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com seus pares que a cultura passa a ser transformada, assumida e

representada. Nisso, há que se fazer referência, também, a Vygotsky.

Assim, as bases para a construção da cidadania e novas possibilidades

de vir a ser são lançadas, pois o estímulo à cooperação, à troca, à empatia e

solidariedade acaba engendrando sentimentos de reciprocidade,

companheirismo e partilha. Logo, não é apenas uma aprendizagem científica,

acadêmica, em que o conhecimento é fechado e pronto para ser construído.

Trata-se, também, de uma aprendizagem moral, ou melhor, da articulação de

posturas sadias para a vida consigo e com o outro, em sociedade.

Considerar a experiência, a vivência das pessoas em torno daquilo que

se pretende ensinar pode fazer a verdadeira diferença, ou seja, quando se

passa pela experiência, quando se vivencia as sensações e ações é possível

conectá-las e permitir-lhes sentido imediato. A vida é a grande experiência da

qual as pessoas devem estar munidas para construir suas ações. O

conhecimento não é fruto apenas de pesquisas acadêmicas.

Acerca de produção de conhecimento, autonomia e sociedade, Paulo

Freire nos dá a base para mostrar, mais uma vez, como a dinâmica social e a

educação são ricas, suplantando autor e obra, construindo novas

oportunidades do estar no mundo.

As contribuições de Paulo Freire são muitas. Suas ideias foram

aproveitadas intensamente no Projeto e, a partir delas, novas práticas

educativas foram formuladas buscando ultrapassar a “educação bancária”. O

respeito por aquele que aprende é o ponto fundamental:

(...) O respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros. É neste sentido também que a dialogicidade verdadeira, em que os sujeitos dialógicos aprendem e crescem na diferença, sobretudo, no respeito a ela, é a forma de estar sendo coerentemente exigida por seres que, inacabados, assumindo-se como tais, se tornam radicalmente éticos. É preciso deixar claro que a transgressão da eticidade jamais pode ser vista ou entendida como virtude, mas como ruptura com a decência. O que quero dizer é o seguinte: que alguém se torne machista, racista, classista, sei lá o quê, mas se assuma como transgressor da natureza humana. Não me venha com justificativas genéticas, sociológicas ou históricas ou filosóficas para explicar a superioridade da branquitude sobre negritude, dos homens sobre as mulheres, dos patrões sobre os empregados. Qualquer discriminação é imoral e lutar contra ela é um dever por mais que se reconheça a força dos condicionamentos a enfrentar. A boniteza de

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ser gente se acha, entre outras coisas, nessa possibilidade e nesse dever de brigar. Saber que devo respeito à autonomia e à identidade do educando exige de mim uma prática em tudo coerente com este saber. (FREIRE, 2009, p.59-61)

O respeito às experiências vividas, à autonomia, o constante diálogo são

os pressupostos básicos do seu trabalho que deram as diretrizes para o

desenvolvimento das atividades do Projeto “Tecendo a vida nos fios da poesia”.

As experiências desenvolvidas por Paulo Freire são referenciais para

todos os profissionais da área da educação. Defendendo que a educação deve

ser feita a partir do povo e direcionada a ele, buscando condições de sua

realidade, de sua própria vida para que seja efetivamente construída, Paulo

Freire desenvolve sua pedagogia nos anos de 1950-1960.

Como foco de seu projeto, Paulo Freire defende que é na alfabetização

– voltada para adultos - que as pessoas se conscientizam e é a partir desse

processo que será possível a construção de uma sociedade democrática, que

se pretende mais justa.

Tal conscientização deve ser promovida pelo método de ensino, ou seja,

com relação à alfabetização. Em vez de manuais de letras soltas, o caminho

seria o de temas geradores contextualizados à realidade na qual as pessoas

vivem. Sendo assim, o processo de leitura e escrita começaria com a tomada

de consciência da condição de vida por parte do educando, entendendo o que

se passa a sua volta e tornando-se sujeito dentro do processo.

Nessa perspectiva, o sujeito que sofre o ato de aprender não é passivo,

não está “sofrendo” o ato, na verdade. Ele é autor, participa, é ator, constrói,

deixa de ser espectador. Torna-se “visível”.

De acordo com Paulo Freire, com isso a educação passa a ter uma

dimensão política, que possibilita à pessoa transformar sua realidade através

da conscientização e ação.

Todos os seres “visíveis” são capazes de construir o conhecimento

conjuntamente. Os seres “invisíveis” são convidados a participarem do

processo e isso é o que concerne a essas crianças e jovens a autonomia.

A crítica de Paulo Freire ao sistema bancário é entendida como

possibilidades e estratégias que construam com as pessoas a consciência

crítica de sua realidade e maneiras de mudá-la.

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O respeito à diversidade é um dos fatores para a construção dessa

consciência, da autonomia, da cidadania, para a superação das desigualdades

e para o reconhecimento das habilidades necessárias ao desenvolvimento

individual e local. A superação dos estigmas sociais é um dos pontos centrais

nesse Projeto, que busca a sensibilização, a socialização, o pensamento

crítico, as possibilidades de diálogos, entre outros.

Ultrapassar os muros escolares e fazer com que a educação seja um

processo humano, mais que social, superando os espaços clássicos

destinados a sua aplicação, permitindo que todo lugar seja concebido

intencionalmente para a prática educativa, eis um dos pontos fundamentais

pretendidos com as atividades do Projeto “Tecendo a vida nos fios da poesia”.

2.7 - Ser criança e jovem: tragédia e comédia, o lirismo sempre presente na

tessitura da vida

As discussões acerca da diversidade cultural e, por consequência, de

cultura serão importantes para a compreensão dos conceitos a serem

debatidos adiante.

A cultura é um processo em construção, formada a partir de seu

cotidiano e forjada de acordo com os interesses dos inúmeros grupos sociais,

especialmente por aqueles que estão no poder e tentam tornar o seu modelo

de vida um padrão universal, a ser seguido por todos. Portanto, parte dessa

sociedade é constituída culturalmente.

O objeto de debate, nesse momento, é a criança e o jovem, sua

produção cultural e expressão artística, e o trabalho do Projeto como elemento

disparador dessa produção, acreditando no despertar da consciência individual,

subjetiva, além da coletiva, de tal forma que haja a construção da autonomia e

da cidadania.

Falar em crianças e jovens pressupõe compreender inúmeras esferas do

humano, inclusive conceitos elaborados, sobretudo, por diversas áreas do

conhecimento. Assim, puberdade pode ser definida como um termo que se

refere às mudanças no corpo da pessoa, identificando a passagem da criança

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para a vida adulta. O termo adolescência, praticado por psicólogos educadores,

faz referência às mudanças comportamentais desse período. Os sociólogos,

por sua vez, referem-se a essa fase como juventude, especificando as

atribuições da etapa anterior e desse novo período do desenvolvimento

humano. Com algumas divergências, essas fases compreendem o período que

vai dos 10 ou 12 anos aos 19 ou 20 anos, aproximadamente, segundo Groppo

(2009).

Várias são as interpretações e inúmeros os conceitos que são

trabalhados por diversos profissionais e nas mais variadas vertentes das

ciências: antropologia, psicologia, sociologia, literatura, entre outras. As idades

que determinam os períodos também variam de acordo com os pensadores

sobre o assunto. Para nós, a categoria infanto juvenil é a que embasou nossos

estudos, especialmente o início dela, compreendido entre 10 a 12 anos.

Por juventude, a partir de interpretação sociológica, entende-se o período no

qual ocorre um processo social e cultural que prepara as pessoas, até então

crianças ou adolescentes, a assumirem as funções de adultos nas variadas

esferas da vida: profissão, família, círculo de amigos etc. Sob o prisma

da interpretação cultural, pode-se compreender que a juventude é um período

que possui diferenças e diversidades se observado em várias culturas e ao

longo da história. Em outras palavras, a juventude adquire conotações e

características diferenciadas de acordo com as sociedades e épocas. Até

mesmo dentro de uma mesma sociedade ela é diferenciada em função dos

grupos sociais culturalmente diversos. Por isso, ela é entendida também como

uma construção social e cultural.

De acordo com Giovanni Levi e Jean-Claude Schmidt (1996, p.8):

(...) a juventude caracteriza-se por seu marcado caráter de limite. Com efeito, ela se situa no interior das margens móveis entre a dependência infantil e a autonomia da idade adulta, naquele período de pura mudança e inquietude em que se realizam as promessas da adolescência, entre a imaturidade sexual e a maturidade, entre a formação e o pleno florescimento das faculdades mentais, entre a falta e a aquisição de autoridade e poder. Nesse sentido, nenhum limite fisiológico basta para identificar analiticamente uma fase da vida que se pode explicar melhor pela determinação cultural das sociedades humanas (...).

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Com isso, considera-se que a juventude é mais um dado cultural

construído pelas sociedades para atender às suas necessidades. Tais

necessidades são diferentes de acordo com as sociedades em que estão

inseridas. Em uma sociedade capitalista, podemos vislumbrar artigos e roupas

que fazem um apelo ao modo do jovem- e da criança - se vestir, comportar-se

e, por isso, incentivam o consumo. Nessa mesma sociedade, podemos

observar também jovens e crianças que, ao precisarem ajudar no sustento da

casa, desenvolvem outros tipos de características e estilo culturais. Isso,

considerando-se apenas um aspecto, que é o consumo e o modo como eles

compõem sua identidade através da escolha da roupa, por exemplo. As

características variam a partir do gosto musical, das atividades realizadas e

partilhadas pelo grupo social, dos locais frequentados, entre outros. Contudo,

se levarmos em conta as condições sociais, as características sofrem

alterações, mudando desde o consumo até as atividades de lazer

desenvolvidas por eles.

Isso é de extrema importância, pois, na medida em que as condições

sociais são melhores do ponto de vista financeiro, tanto as crianças quanto os

jovens têm possibilidades de escolher entre as inúmeras atividades que a

sociedade oferece, desde esportes até cursos de idiomas e viagens, por

exemplo.

Para segmentos menos privilegiados da sociedade, é preciso esperar

por programas de assistência social, cursos oferecidos pelas prefeituras que,

na maioria das vezes, incentivam a preparação para o mercado de trabalho e

não puramente o lazer. Obviamente, não se pode e nem se está generalizando,

mas se mostrando um amplo aspecto das sociedades de hoje.

Direcionando a reflexão para outros aspectos, podemos observar

sociedades completamente distintas umas das outras no que se refere às suas

crianças e jovens. As sociedades indígenas são um exemplo de como a

juventude é entendida e incorporada pelos índios de maneira completamente

diversa daquelas mencionadas anteriormente.

De acordo com os antropólogos, as cerimônias de iniciação nas tribos

indígenas, ou os ritos de passagem, marcam a passagem da juventude para a

vida adulta. Em documentário baseado na obra de Darcy Ribeiro, intitulado “O

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povo brasileiro”2, tais cerimônias contam com pintura do corpo, o uso de

enfeites ou adereços usados para a ocasião, a prova de coragem e bravura (no

caso dos meninos) ou sendo a pessoa retirada brevemente do grupo, em

função da primeira menstruação (no caso das meninas). A juventude não é

uma fase específica dessas sociedades, nem é valorizada. Trata-se da

passagem de uma fase para outra, essa sim, de grande importância, a fase

adulta.

A incorporação de sua cultura e a transmissão da cultura indígena

seguem valores diferentes. O uso da oralidade, bem como a valorização das

pessoas de mais idade na tribo são elementos essenciais na composição

cultural das tribos indígenas. Isso sem contar no processo de mudança que as

tribos no Brasil sofreram, após a chegada dos portugueses e ao longo de todos

esses anos.

Com as tribos africanas não é diferente, conforme o mesmo

documentário. Vários grupos étnicos possuem sua história e uma organização

social típica de seu grupo, que era diferente da estrutura imposta pelos

europeus, durante o século XVI, e mesmo nos dias de hoje.

Assim, a interpretação que cada grupo oferece para o seu grupo de

pessoas é diferenciada entre os demais grupos sociais e chega a ser diferente

dentro dela mesma. Isso é o que chamamos de diversidade cultural, de

construção das identidades individuais, culturais e sociais, dos modos de ser e

estar no mundo. Podemos dizer que estamos diante da diversidade na unidade

e vice versa, da complexidade e unidade planetárias.

2.8 – A autoria de si mesmo: culturas infanto juvenis em tempos atuais

Eu, Etiqueta Em minha calça está grudado um nome Que não é meu de batismo ou de cartório Um nome... estranho (...)

2 O Povo Brasileiro. Direção: Regina M. Ferreira: TV Cultura, 1995. 1 DVD (260 min).

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Desde a cabeça ao bico dos sapatos, São mensagens, Letras falantes, Gritos visuais, Ordens de uso, abuso, reincidências. Costume, hábito, premência, Indispensabilidade, E fazem de mim homem-anúncio itinerante, Escravo da matéria anunciada. Estou, estou na moda. É duro andar na moda, ainda que a moda Seja negar minha identidade,

Drummond

Os processos culturais, econômicos, sociais e políticos contemporâneos

alertam que o fenômeno da infância e juventude não deve ser compreendido

em faixas etárias muito bem demarcadas. As experiências de vida das

pessoas, as necessidades mais urgentes, as questões familiares – quando há

famílias -, além de outras exigências, como a aceitação de si mesmas, o

mercado de trabalho, acabaram prolongando ou encurtando as fases

entendidas como infância e juventude.

A construção das identidades culturais está, a cada dia, mais

relacionada à expansão dos meios de comunicação – especialmente as mídias

digitais – responsáveis pela difusão dos discursos, por sua elaboração e

negociação em que se insere o universo infanto juvenil.

Os meios de comunicação digital tornaram-se o local não só por onde a

realidade chega, mas o local onde ela se faz, e quem não tem acesso a ela,

está excluído do sistema, impreterivelmente. A escolha por aquilo que se

tornará notícia acaba privilegiando o conhecimento de alguns temas em

detrimento de outros.

A mídia dita regras às quais as pessoas, sobretudo as crianças e os

jovens, acabam se submetendo, e quase nada escapa a essa perspectiva de

dominação.

De um lado, o apelo imagético midiático tentando nos convencer a viver

segundo padrões estabelecidos; de outro, as relações humanas e sociais

tornando-se cada vez mais pluralizadas e diversas. Com isso, a criação de

identidades que assumem os modelos de determinado momento são uma das

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vertentes existentes no cotidiano. Há, também, as pessoas que rejeitam as

identidades forjadas e impostas pela mídia e que passam a construir a sua

própria maneira de ser e estar no mundo. Certamente, estas últimas são uma

minoria.

Entender a formação das identidades a partir da perspectiva da própria

autoria, rejeitando modelos prontos, significa levar em conta os contextos

humano, afetivo, social, cultural, histórico, etc. com que essas identidades são

constituídas, e as dinâmicas que estão por trás disso.

O questionamento de modelos estereotipados, padronizados e impostos

em relação à própria existência, à participação social da criança e do jovem é

algo que está sendo sempre suscitado nas mediações e intervenções

pedagógicas do Projeto. Isso ultrapassa qualquer conceito de educação formal,

informal e não formal. Transforma-se na educação para a vida.

No início do Projeto, ouvi de uma aluna de 11 anos a seguinte frase “Eu

só gosto de usar roupa de marca.” Considerando-se o contexto de inúmeras

ausências dessa criança, é de causar assombro essa afirmação. Vivendo num

universo com pouquíssimos recursos: material, afetivo, cultural fica evidente a

sua necessidade de ser aceita num grupo que ela considera “ideal”, do qual a

professora é a representante imediata (em sua concepção), e ela se sente

excluída. A frase, dita num momento de conversa informal, soa como um

pedido de desculpas e de aceitação. É como se ela se desculpasse por não

poder corresponder àquilo que supõe ser de valor para determinado grupo e,

ao mesmo tempo, pede que a aceitem – já que ela compartilha dos mesmos

desejos desse grupo. Como se o não ter (uma calça jeans cara, os tênis e

acessórios da moda, uma casa sobre a qual falar, uma família...) a fizessem

“não ser”.

Inúmeras desconstruções passaram a ser perseguidas através das

leituras, discussões e escritas – propositalmente poéticas – durante o Projeto.

Por outro lado, muitas construções aconteceram da mesma forma,

durante as atividades, que buscaram a percepção do si, do fazer-se autor de

sua voz e de sua travessia, despojando-se de vestes emprestadas e

inadequadas.

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Nesse universo em que vivemos, carregado de linguagens apelativas, a

criança e o jovem – extremamente influenciados pelas mídias e regras do

mercado – são alvo perfeito para o entorpecimento dos sentidos, da

imaginação criadora, da sensibilidade fraterna. O antídoto: o trabalho com a

linguagem poética: sensível, criativa, construtora de sentidos, libertadora. A

linguagem poética é uma travessia, através da qual há a possibilidade de se

reverter a fragmentação, a invisibilidade e o esfacelamento de nossa

humanidade.

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CAPÍTULO III

TECENDO OS FIOS DA POEVIDA

O caminho para o intelecto precisa ser aberto pelo coração.

Schiller

A poesia é criação do ser pelas palavras. Gaston Bachelard

Música planetária para ouvidos mortais,

a poesia transforma tudo o que toca. Sua secreta alquimia transmuta em ouro potável

as águas letais que da morte escorrem pela vida. Percy Shelley

Para criar passarinho

É preciso amor e carinho Porque ele é frágil com um ninho.

Vinícius – 6º A

3.1- O CIEP: um pouco da história

Uma breve retrospectiva se faz necessária, antes de apresentar o

Projeto “Tecendo a vida nos fios da poesia”, porque é importante saber as

origens das coisas.

No início da década de 1980, no Brasil, estavam acontecendo inúmeras

transformações e mudanças que iriam afetar o destino de muitas pessoas,

inclusive o meu. Dentre elas, enumero algumas: economicamente, houve um

considerável aumento da recessão e do desemprego, o que provocou um fluxo

migratório bastante intenso de pessoas buscando centros urbanos e industriais

à procura de emprego, bem como um índice muito elevado de marginalizados,

vivendo em condições subumanas, sem muita perspectiva; tivemos o fim da

ditadura militar e a consequente necessidade de retomada da democracia no

país; os profissionais da educação lutaram pela qualidade do ensino público;

surgiram inúmeros partidos políticos, e aconteceram as eleições diretas para

presidente e governadores; Leonel de Moura Brizola é eleito governador do

Estado do Rio de Janeiro, tendo como vice o antropólogo e educador Darcy

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Ribeiro, grande idealizador de um tipo diferenciado de escola, os CIEPs,

influenciado pelo ideário escolanovista, especialmente por Anísio Teixeira.

Surgem, assim, os CIEPs – Centros Integrados de Educação Pública –

com proposta pedagógica que enfatizava a transdisciplinaridade, a gestão

democrática, o trabalho com as diversas possibilidades de linguagem como

maneira de expressão, articulando educação e cultura, no ensino de período

integral de 8 horas.

Talvez a mais importante característica dos CIEPs fosse a preocupação

com uma pedagogia voltada para o público carente que os frequentaria.

Muita polêmica e discussão foram geradas. Uns defendiam as novas

escolas, outros as acusavam de serem puramente frutos de interesses

políticos. Milhões foram gastos nas implantações dos CIEPs, não apenas no

Rio de Janeiro, mas em São Paulo, especificamente na cidade de Americana.

No início da década de 1990, o então prefeito Waldemar Tebaldi, do

mesmo partido político de Leonel Brizola, inaugura os dois primeiros CIEPs no

município de Americana: CIEP Anísio Spínola Teixeira, no Bairro São

Jerônimo; CIEP Oniva de Moura Brizola, no Bairro Antonio Zanaga.

Essas escolas de período integral – 8 horas diárias – passam a atender

crianças oriundas, em sua maioria, de famílias de migrantes, que tinham sido

atraídas para o município pela ideia de prosperidade em função das indústrias

têxteis locais. Entretanto, essas pessoas não encontravam colocação no

mercado de trabalho e acabavam vivendo em condições precárias, em locais

sem infraestrutura. A população marginalizada aumentou e, com ela, as

favelas.

Era comum encontrar crianças subnutridas, no centro da cidade,

maltrapilhas e sujas, fora das escolas, cujas famílias não tinham onde morar, a

não ser em barracos construídos nos bairros periféricos de Americana.

Foi neste panorama de polêmica e discussões entre políticos, membros

de órgãos educacionais, da sociedade civil e da mídia impressa local que se

inauguraram os CIEPs do Zanaga e do São Jerônimo, sendo que o último

ocupa lugar especial em minha história pessoal e profissional.

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Em 1991, após ser aprovada em concurso público, ingressei como

professora de língua portuguesa, num dos Centros Integrados de Educação

Pública – CIEP – escolas municipais de Americana, que acabavam de ser

inauguradas.

Construídas à semelhança ideológica dos CIEPs de Leonel Brizola, do

Rio de Janeiro, a proposta pedagógica era desafiadora e sedutora para

educadores que, assim como eu, acreditavam na Educação como uma das

formas de libertação e de emancipação do ser humano, e viam na proposta das

novas escolas a possibilidade de realização de ideais profissionais.

Foram dez anos de muito trabalho, de incertezas, de angústias e

surpresas.

O início foi marcado pela desconstrução de muitos “valores” que eu

tinha. Tive de repensar minha concepção de educação: o que eu acreditava ser

o ideal era, de fato, o ideal para aquelas crianças? O que era prioridade,

naquele momento? Como poderia trabalhar conteúdos se lhes faltava o

conceito de escola? Se o estômago estava sempre a pedir alimento, como

alimentar o intelecto? Como falar de valores éticos e morais se viviam em

situações de abusos na própria família?

Enfim, foi um tempo de (re) construção, de buscas e de muitas

incertezas. Com erros e acertos, fui/fomos construindo a minha/nossa

travessia.

Foi no CIEP São Jerônimo que aprendi que só se consegue uma

aprendizagem significativa quando se “toca” o aluno; quando se consegue

transpor algumas barreiras, erigidas para o que acreditam ser uma defesa.

Durante dez anos, nesse ambiente, aprendi a inventar situações que

possibilitassem àquelas crianças e jovens poderem expor as imagens de si

próprios, do mundo e do outro, tendo a possibilidade de repensarem e, quiçá,

reconstruírem essas imagens.

Basicamente, meu trabalho centrava-se em música, literatura

(especialmente a poesia), filmes e dramatização. Esses eram os “motes” para o

estudo da língua portuguesa, das possíveis discussões e interpretações dos

textos e do mundo, das produções escritas por eles.

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Certamente, as desconstruções e (re) construções aconteciam para

ambos os lados: o deles e o meu. Por isso, desnecessário dizer o quão difícil,

porém imprescindível foi, para ambos os lados.

3.2- O CIEP “Anísio Spínola Teixeira” e o projeto “Tecendo a vida nos fios da

Poesia”

Figura 1- Fachada do CIEP São Jerônimo. Foto tirada dia 16 de

agosto de 2013. Desconsiderar a data no canto inferior direito da foto.

Acervo pessoal da autora.

Hoje, o Ciep “Anísio Spínola Teixeira” conta com 738 alunos, da faixa

etária de 06 aos 15 anos (em média) e 13 alunos da EJA (Educação de Jovens

e Adultos).

A escola está localizada no Bairro São Jerônimo, periferia de

Americana e atende alunos deste bairro e também dos bairros Parque

Gramado, Jardim da Paz e Parque da Liberdade.

A escola também atende os alunos do 1º ao 5º ano residentes no

Conjunto Habitacional “Governador Mário Covas”, entregue às famílias em

meados de 2004, que possui escola somente do 6º ano em diante. Os alunos

deste bairro são transportados pelo poder público municipal.

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Esses bairros caracterizam-se como de alta densidade demográfica,

com a população de baixa e média renda.

As construções são de pequeno e médio porte, em geral de alvenaria.

Mesmo assim, muitas caracterizam o nível socioeconômico dos moradores

como baixo.

Uma grande porcentagem de alunos provém de famílias

desestruturadas, apresentando, dessa forma, carências socioafetivas. Os pais

vivem de subempregos e lhes falta formação profissional.

O nível cultural é heterogêneo devido à procedência de vários estados e

regiões brasileiras.

São oferecidos 4 períodos e cursos, assim distribuídos: período integral

(7h30 às 15h50); período parcial (12h10 às 17h30); período vespertino (16h30

às 21h) e EJA (19h às 22h).

O quadro docente é composto por, aproximadamente, 50 professores,

entre PEB I e PEB II e 05 estagiários.

A escola possui biblioteca, sala de informática, brinquedoteca e

laboratório de Ciências, além de quadra poliesportiva e refeitório. Possui

também um gabinete dentário, onde os alunos recebem tratamento.

Segundo o PPP – Planejamento Político Pedagógico – do Ciep “Anísio

Spínola Teixeira” (2013, p.38), também conhecido por Ciep São Jerônimo:

A Educação Básica de Americana fundamenta sua proposta pedagógica apoiada nas concepções de homem, sociedade e cultura dentro da perspectiva histórico-cultural, tendo-as como ponto de partida para a estruturação do quadro curricular. A contribuição de alguns teóricos é importantíssima para a fundamentação dessa proposta para que haja entendimento e compreensão das relações entre desenvolvimento e aprendizagem, da importância da relação interpessoal e da afetividade no processo educativo, da relação cultura e educação, ajustada às situações de aprendizagem e das características da atividade mental construtiva do aluno em cada momento de sua escolaridade. As visões de mundo e os projetos educacionais desses teóricos, implícita ou explicitamente estão voltados à emancipação humana, à democracia, à igualdade social, à ruptura com modelos sociais excludentes e segregacionistas. Dentre eles, destacam-se Anísio Teixeira, implantador da 1ª escola pública de tempo integral, inspirando, assim, Darcy Ribeiro, idealizador dos CIEPs; Jean Piaget e Emília Ferreiro que indicam o processo de aquisição da escrita; Lev Vygotsky, que centra suas discussões na importância do processo em termos de aprendizagem. Para ele, a aprendizagem acontece nas interações com o meio social

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e, dessa forma, ela alavanca o desenvolvimento do indivíduo; Henri Wallon, com sua teoria sobre a psicogênese da pessoa completa, a afetividade é como um refinamento das emoções, que acontece nas relações da pessoa com o meio, e Paulo Freire que aborda a questão da consciência emancipadora do sujeito, desenvolvida através da reflexão e a importância do papel do professor estar em constante reflexão sobre sua prática, revendo seus saberes e fazeres. Também é dele a contribuição às concepções da rede quanto à alfabetização de jovens e adultos. Essa fundamentação pedagógica procura respeitar a diversidade de cada segmento educacional com suas características e vivências próprias e apóia-se em princípios e diretrizes que regem e dão unidade à política pedagógica do município.

Doze anos após ter me desligado do CIEP São Jerônimo, depois de ter

trilhado alamedas e labirintos, e já cursando o Mestrado em Educação,

algumas vozes começaram a ecoar e tomar forma, até vir a certeza de que

minha pesquisa do Mestrado há muito tinha lugar definido para se realizar.

Foi com muita emoção e também ansiedade que retornei ao local em

que aprendi a ser educadora, tanto tempo depois.

Muitos amigos ainda estavam trabalhando lá, e isso facilitou

sobremaneira meu acesso às crianças e o desenvolvimento de minha

pesquisa.

Assim, comecei meu trabalho no dia 16 de agosto de 2013, uma sexta-

feira, e o dei por encerrado no dia 06 de dezembro do mesmo ano, também

numa sexta-feira.

Durante os, praticamente, quatro meses em que o Projeto se

desenvolveu, era uma prática sempre começar nossa atividade fazendo um

breve relaxamento com música, seguido de exercício de escrita automática.

Foram feitas projeções de vídeos de animação, de leituras de textos

poéticos literários de poetas como Bartolomeu Campos de Queirós, Carlos

Drummond de Andrade, José Paulo Paes, Cora Coralina, Vinícius de Moraes,

Cecília Meireles, Mário Quintana, Manuel Bandeira, Florbela Espanca,

Fernando Pessoa, dentre tantos.

O contato com os textos sempre foi feito de forma cuidadosa: com leitura

expressiva, dramatização, declamação, audição dos próprios poetas revelando

seus poemas, projeções de slides com músicas e poesias, vídeos.

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Intercalando o contato com os textos literários poéticos, numa situação

de diálogo com as crianças, deve haver a exploração do universo sensitivo das

palavras, vistas através dos cinco sentidos: sua sonoridade, as imagens que

elas evocam, o ritmo que elas produzem, o gosto que elas sugerem, suas

cores, seus cheiros, pesos e formas. Para tanto, há inúmeras possibilidades de

atividades, todas, porém, buscando aflorar a capacidade de criação, de

sensibilidade e de ressignificação de sentimentos trazidos pelas memórias.

3.3- O “semanário” de bordo

Dia 16 de agosto de 2013. Eram 7h30 de uma manhã de sexta-feira,

quando entrei no 6º ano B, já “orientado” pela professora de língua portuguesa,

durante a semana, de que a “professora de poesia”, como fiquei conhecida,

viria na sexta.

Eram muitos pares de olhos curiosos tentando desvendar a professora

que iria trabalhar poesia com eles.

Vencidos os momentos iniciais, comecei um monólogo, falando sobre

mim – como professora, mas também minha história de vida-, o porquê de

estar ali, e a importância que eles tinham para o meu trabalho.

Começamos com um breve exercício de relaxamento – que passou a ser

feito como o início de todos os nossos encontros.

Foi muito difícil no começo, já que eles tinham de fechar os olhos e se

deixar “levar” pela música de fundo – que, intencionalmente, era clássica,

instrumental, ou estilo “new age”. O estranhamento e agitação iniciais, com o

passar do tempo, acabaram dando lugar à ideia de que não poderíamos

começar as nossas atividades sem “relaxar”.

Também como procedimento de rotina, fazíamos a escrita automática,

que consiste no registro escrito do fluxo de pensamento, na medida em que ele

se dá na mente. Esse tipo de exercício é uma espécie de “aquecimento” e

“catarse”. Da mesma forma, é uma excelente maneira de motivar sensações e

emoções, por meio de lembranças auditivas, para a produção final do texto que

será escrito. Fazíamos a escrita automática ao som de trechos de músicas

variadas, de estilos diversos, passando pelo clássico, sertanejo, rock, funk,

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pagode, MPB. Ao final da escrita automática, que não tem nenhum

compromisso com as normas gramaticais, coerência e coesão de ideias, a

maioria das crianças preferia rasgar e jogar no lixo o que havia registrado. É

um movimento de “limpeza”, em que o jovem é deixado em total liberdade de

expressão escrita, cujo registro não será lido por ninguém, nem por ele mesmo,

se assim o desejar.

Como primeira atividade, propus que escrevessem “Algumas

lembranças que me marcaram”, uma maneira de conhecê-los e de nortear o

trabalho que estava começando.

Fiz alguns desenhos na lousa:

Um olho, em cuja frente escrevi: “Alguma coisa/cena/acontecimento que

eu vi”; uma boca: “Uma palavra/frase que falei e feriu ou fez uma outra pessoa

feliz”; uma orelha: “Uma palavra/frase que ouvi de alguém e que me feriu ou

me fez feliz”; um pé: “Um lugar onde fui”; um coração: “Trago no meu

coração...”

Eles quiseram desenhar e colorir as imagens, antes de escreverem.

Perguntei quem gostaria de ler o que escrevera. Quase todos se manifestaram.

Conforme iam lendo, pedíamos para que dessem mais detalhes; como era hoje

falar sobre aquilo, por exemplo. Enfim, conversávamos sobre as lembranças e

os sentimentos que elas provocavam; sobre como alguns fatos lembrados

mudaram a vida de alguns, por exemplo.

Assim que terminaram, li para eles o poema “Minha Cidade”, de Cora

Coralina (2004, p.112):

Goiás, minha cidade... Eu sou aquela amorosa de tuas ruas estreitas,

curtas, indecisas, entrando,

saindo uma das outras.

Eu sou aquela menina feia da ponte da Lapa. Eu sou Aninha.

Eu sou aquela mulher

que ficou velha, esquecida,

nos teus larguinhos e nos teus becos tristes,

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contando estórias, fazendo adivinhação.

Cantando teu passado. Cantando teu futuro.

Eu vivo nas tuas igrejas

e sobrados

e telhados

e paredes.

Eu sou aquele teu velho muro

verde de avencas

onde se debruça

um antigo jasmineiro,

cheiroso

na ruinha pobre e suja.

Eu sou estas casas

encostadas

cochichando umas com as outras.

Eu sou a ramada

dessas árvores,

sem nome e sem valia,

sem flores e sem frutos,

de que gostam

a gente cansada e os pássaros vadios.

Eu sou o caule

dessas trepadeiras sem classe,

nascidas na frincha das pedras.

Bravias.

Renitentes.

Indomáveis.

Cortadas.

Maltratadas.

Pisadas.

E renascendo.

Eu sou a dureza desses morros,

revestidos,

enflorados,

lascados a machado,

lanhados, lacerados.

Queimados pelo fogo.

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Pastados.

Calcinados

E renascidos.

Minha vida, meus sentidos,

minha estética,

todas as vibrações

de minha sensibilidade de mulher,

têm, aqui, suas raízes.

Eu sou a menina feia da ponte da Lapa.

Eu sou Aninha.

Fizemos uma discussão sobre os possíveis entendimentos do poema, os

vocábulos que eles desconheciam; as sonoridades das palavras; os jogos de

palavras; falei-lhes um pouco sobre a autora do poema.

Dentre as inúmeras colocações que fizeram, uma delas causou-me

grande surpresa. A Jennifer (6º B), depois de momentos em silêncio, disse:

“Professora, parece que ela e a cidade são a mesma coisa...”

Li mais três poemas de outros alunos, de outra escola, que já haviam

feito a mesma atividade, como forma de motivação e valorização do que é

produzido por eles.

Pedi, então, depois de tudo o que havíamos conversado, lido e ouvido,

que cada um escrevesse o seu poema, cujo título gostaria que fosse “Eu Sou”.

Eles escreveram da forma como quiseram, e foi assim que terminamos nosso

primeiro encontro, cujos poemas tivemos de deixar para ler na semana

seguinte, porque a aula se acabara.

A Joyce (6º A) entregou-me um bilhete. Só consegui ler em casa: “Olá

aqui é a Joyce eu queria te agradecer a você por vim conhecer a nossa sala

obrigada por essas duas aulas maravilhosa que você deu para gente e

pretendo que você volte varias outras vezes! Gostei muito de você.” Havia um

coração no meio da página com meu nome escrito dentro. O bilhete estava

assinado:

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Figura 2. Bilhete escrito pela aluna Joyce, do 6º A,

no primeiro dia de aula. Acervo pessoal da autora.

Como resultado da proposta “Algumas lembranças que me marcaram”,

selecionei alguns trechos reveladores da imagem que aqueles jovens têm do

mundo e de si mesmos. Os registros das perdas que sofreram, das cenas de

violência, dos aspectos negativos da vida são muito mais frequentes que

aqueles que remetem a momentos felizes.

“Vi, mas não queria ter visto o meu avô morto no velório” (Vinícius – 6ºA)

“A morte do meu avô que, com certeza, deve estar com Deus, no

momento” (Carolline – 6º A)

“Quando o meu avô foi morto” (Gustavo – 6º A)

“Quando eu fui ver meu avô no caixão” (Ana Clara – 6º A)

“O meu cachorrinho morrendo, ele estava com virose, não estava

conseguindo respirar, daí passou um tempo e eu saí com a minha mãe. Na

hora que eu cheguei ele já estava morto. Daí o meu primo foi lá e enterrou ele.

O nome do meu cachorrinho era Spyke” (Sabrina- 6º B)

“No dia do meu aniversário, fui para uma chácara e quando cheguei lá,

minha família inteira estava lá, e eu me emocionei, aquilo ficou na minha

cabeça e no coração” (Pedro Henrique – 6º B)

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“Meu cachorro sendo atropelado”; “No enterro da minha tia” (Diego –

6ºB)

“Eu vi meu pai e minha mãe brigando”; “Eu falei que o meu irmão era

macaco”; “Que me ponharam apelido grilo em mim” (Igor – 6ºB)

“Quando eu vi pela primeira vez minha avó, com 10 anos” (Ana Carolina

– 6ºB)

“Enterro do meu tio” (Izabella – 6ºB)

“Uma coisa muito ruim, vi um cara bater muito no meu pai, é uma

péssima lembrança” (Jennifer – 6ºB)

“Quando meu avô morreu” (Guilherme – 6ºB)

“Os médicos falaram que a minha irmã tinha 7 horas de vida” (Izabella –

6ºB)

“Quando fui em São Carlos e minha família estava toda junta” (Ana

Carolina – 6ºB)

“Hoje de manhã vi uma menina apanhando de seu pai no meio da rua,

espancando a menina, deixando a cara dela roxa com o cinto na mão” (André –

6ºA)

“Hoje sexta-feira dia 16/08/13 eu vindo para escola, uma menina estava

apanhando de seu pai, o rosto dela estava tudo marcado e marcou muito ne

mim” (Joyce – 6ºA)

“Vi minha família triste, meu irmão estava preso” (Guilherme Henrique –

6ºA)

“Minha tia ofender minha mãe (tudo pela causa da inveja)” (Daniely –

6ºA)

Como resultados da produção do poema “Eu Sou”, percebe-se nos

trechos abaixo, embora escritos com vocabulário simples, o mergulho intenso

no universo emotivo, não muito comum e freqüente em jovens de 11 e 12 anos.

Os temas habituais versam sobre “grandes amores” e melhores amigos (as).

“Eu sou tudo Sou o que sou Sou o vento De vez em quando só o mar Eu sou como a água que refresca.” (Elano - 6ºA)

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“Eu queria viajar

Pra qualquer lugar.

Ubatuba é um bom lugar.

Eu trago no meu coração e no meu olhar

Uma felicidade que não dá pra contar.” (Luís Fernando – 6ºA)

“Eu sou eu

Não sou quem você pensa que sou

Eu não sou do jeito que eu me visto

Eu sou eu por dentro

E não por fora.” (Pedro Henrique – 6ºB)

“Tenho vergonha de tudo

Até de falar com as pessoas

Como você pode ver

Não sou muito boa em poemas

E na aula que vem

Eu vou morrer de vergonha

De olhar para você

Pois vai ter lido este poema.” (Stéfany – 6ºB)

“Eu sou assim

Quando meu irmão sofreu acidente

Senti assim como uma onda tivesse me levado para longe

E o mar era feito pelas minhas lágrimas.” (Daniele – 6ºA)

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Figura 3. Primeiro dia de "aula de poesia". 6º B com a professora Cibele. Foto tirada no dia 16 de

agosto de 2013. Desconsiderar a data no canto inferior direito da foto. Observa-se a data correta no

canto superior esquerdo da lousa. Acervo pessoal da autora.

Figura 4. Primeiro dia de "aula de poesia". 6º A com a professora Cibele. Foto tirada no

dia 16 de agosto de 2013. Desconsiderar a data no canto inferior direito da foto. Observa-se

a data correta no canto superior esquerdo da lousa. Acervo pessoal da autora.

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Dia 23 de agosto de 2013, sexta-feira, 7h30.

Iniciamos a aula lendo os poemas feitos na semana anterior. Cada um

leu o seu, para a classe, e respondeu perguntas da turma. Fizemos um “varal

de poesias” na sala.

Nesse dia, começamos a atividade com um “brainstorm”, ou, “escrita

automática”. Eles preferiram a primeira denominação. Sempre ouvíamos

trechos de músicas como “objeto disparador” de memórias e emoções,

preparando-os para a escrita do texto final do dia.

Distribuí cópias de alguns poemas: “Ismália”, de Alphonsus de

Guimaraens; “Infância” e “Parêmia de cavalo”, ambos de Drummond;

“Reinvenção” e “Vai chover”, de Cecília Meireles; “O vento” e “Bilhete”, de

Mário Quintana; “Mundo pequeno- VII” e “As coisas tinham para nós...”, de

Manoel de Barros. Cada um leu aquele que recebera, tecendo algum

comentário, trocando as impressões.

Propus que fizessem “Comparações Originais” que consistiam em fazer

comparações inovadoras, a partir de sensações relativas aos cinco sentidos.

Na verdade é um exercício com a figura de linguagem chamada de

Comparação. Havia uma ressalva: eles não poderiam reproduzir associações

já comuns e desgastadas pela repetição (metáforas mortas), do tipo: azul como

céu; doce como mel; leve como pena etc.

Sugeri as seguintes imagens, que eles deveriam completar,

relacionando o adjetivo a uma percepção de sentido:

Azul como...

Silencioso como...

Leve como...

Delicado como...

Brilhante como...

Quente como...

Rápido como...

Escuro como...

Macio como...

Barulhento como...

Áspero como...

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Agudo como...

Suave como...

Vazio como...

Pesado como...

Claro como...

Verde como...

Cheiroso como...

Triste como...

Lindo como...

Todos queriam ler as suas comparações. Pedi para que escolhessem

as cinco de que mais tinham gostado e, com elas, criassem um poema. Nós os

leríamos na próxima aula, pois não havia mais tempo.

Resultados surpreendentes das comparações, das quais apresento alguns

trechos:

“Leve como a minha alma

Forte como Sansão

Mas em certa ocasião

Em família não boto a mão” (Rafael – 6A)

“Pesado como a consciência

Cheiroso como o perfume da mãe

Triste como a morte do meu bisavô” (Pedro Henrique – 6ºB)

“Suave como ninho de pássaro

Cheiroso como menina” (Paulo Henrique – 6ºB)

“Vazio como uma pessoa sem amigos e

Pesado como a culpa de fazer o mal” (Ana Carolina – 6ºB)

“Escuro como uma prisão

Macio como as nuvens se movendo

Suave como o vento indo para um lugar onde não fui” (Cristhian – 6ºB)

“Azul como a amizade

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Silencioso como casa abandonada

Áspero como o ódio” (Geovana- 6ºA)

“Azul como amigas juntas

Silencioso como árvore sem passarinhos

Triste como é ser pobre” (Ana Clara – 6ºA)

“Azul como o amor de um pai

Leve como toque de mãe

Brilhante como um diploma” (Samuel – 6ºA)

Dia 30 de agosto de 2013, sexta-feira, 7h30.

Começamos nossa aula lendo um trecho do livro Indez (2004), de

Bartolomeu Campos de Queirós. Percebia-se o interesse e mergulho na prosa

poética do escritor mineiro pelo silêncio das bocas e brilho nos olhos.

Sempre que fazíamos a leitura de poemas ou de prosa poética,

discutíamos sobre o que tínhamos ouvido e compartilhávamos as emoções

sentidas. Sempre havia a relação de algum fato com a vida de alguém. Nesses

momentos, eu aproveitava para questioná-los se o desfecho poderia ser

diferente, qual atitude poderia ser tomada, diferente da que foi, que

consequências para a vida da(s) personagem (s) aquela atitude acarretaria, por

exemplo. Procurava relacionar a ficção à vida deles, partir do ponto de vista

deles e fazê-los refletir sobre as “verdades” que a vida nos ensina; sobre

nossas escolhas, que são nossa responsabilidade, e que vão nos tornar mais

ou menos realizados e felizes; sobre as injustiças que sofremos e possíveis

formas de modificar essa realidade.

Esses momentos de leitura da obra de Bartolomeu, carregada de

sensibilidade e delicadeza, eram sempre aguardados com ansiedade, porque

eles queriam saber o que iria acontecer com o personagem, cujo relato de vida

não lhes era totalmente distante.

Fizemos a leitura dos poemas que eles haviam produzido na aula

anterior, utilizando algumas Comparações Originais:

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O pássaro

Leve como lágrima de felicidade

Delicado como mão de princesa

Onde passa sempre deixa saudade

E afasta toda a tristeza.

Barulhento como as crianças

Do amanhecer ao pôr do sol

Nunca nos deixa perder a esperança

Pois nos fisga como um anzol.

(Stéfany – 6ºB)

Imaginação

É muito simples usar a imaginação

Não precisa de nenhum lugar silencioso

Como um porão.

Talvez tudo seja tão rápido

Como nosso pensamento

E se o sol não voltar

A gente pede para o vento.

(Giovana- 6ºB)

Poesia sobre coisas do mundo

Leve como as folhas secas

A cair sem machucar

Não é como a gente

Sem pensar ao desmatar.

A gota é igual à neve que cai

Tão levinha e macia

Para onde vai caindo

Até esparramar.

(Daniele- 6ºB)

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Nossas histórias

Um avião voando entre as nuvens geladas

Está no meio do nada

Num lugar escuro e pesado

Como uma mágoa.

(Júlia- 6ºA)

Desabafo

Quando você chega em uma pessoa

E vai falar o que sente

Fica o silêncio de uma canoa

E acaba que você mente.

(Vinícius- 6ºA)

Figura 5 - Alunas do 6º A fazendo a leitura das "Comparações Originais",

aula anterior. Foto tirada dia 30 de agosto. Acervo pessoal da autora.

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Figura 6 - Alunos do 6º B fazendo a leitura das "Comparações Originais", da aula anterior.

Foto tirada dia 30 de agosto. Acervo pessoal da autora.

Dia 06 de setembro de 2013, sexta-feira: não tivemos aula, porque foi

dia de avaliação.

Dia 13 de setembro de 2013, sexta-feira: não tivemos aula, porque foi

reunião de pais.

Dia 20 de setembro de 2013, sexta-feira. Aula, finalmente! Várias

meninas (quase todas da classe) vieram me receber com um beijo e abraço.

Alguns meninos ensaiaram um beijo, mas a maioria ficou no abraço. A

vergonha era maior. No entanto, os laços estavam estabelecidos.

Contaram-me as “novidades” da turma e continuamos a nossa leitura e,

depois, conversamos sobre o livro do Bartolomeu. Presenteei-os com cópias de

poemas de Cecília Meireles e Drummond. Fizeram a primeira leitura sozinhos,

depois, quem quis, leu para a classe. Como de costume, conversamos sobre

os poemas lidos, seus autores e as descobertas que eles – alunos – faziam

nas obras que liam.

Nesse dia, assistimos ao vídeo de animação, traduzido como

“Convivência”3, produzido pela PIXAR Animation Studios (2001), com duração

de quatro minutos, aproximadamente. Tive de passar duas vezes, porque eles

3 Título original “For the birds”

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me pediram. Todos queriam fazer algum comentário sobre a história. Tivemos

de nos organizar. Deixei-os à vontade para expor suas impressões. Falaram da

violência velada e explícita que, assim como no vídeo, acontece na vida. A

questão do preconceito, da intolerância e da discriminação em relação aos

“diferentes”, relacionando o personagem do vídeo e a si próprios a essa

situação de marginalização, em virtude de suas condições socioeconômicas.

Refletimos sobre as possibilidades de como lidar com situações de injustiças,

violência e intolerância. Levantaram casos de “outras” crianças e jovens que

sofrem violência e abusos na própria casa; de “outras” crianças e jovens, cujos

pais estão presos (muitas vezes pai e mãe) e têm de ficar em casas de

pessoas desconhecidas, que as maltratam; de “outras” crianças e jovens que

não têm o que comer, vestir etc.; daquelas que são usadas no tráfico de drogas

pelos próprios pais e assim por diante.

Figura 7 - Alunos do 6º A assistindo ao vídeo de animação "Convivência". Foto tirada

dia 20/09/2013. Acervo pessoal da autora.

Abaixo, alguns trechos selecionados das produções feitas pelos alunos.

Aparece, inúmeras vezes, a expressão “moral da história”, ou apenas “moral”,

sem que tivéssemos sugerido.

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“Não se deve julgar pela aparência, mas pelo caráter” (Izabela -6ºA)

“Quando o cara se sentiu muito abalado foi buscar ajuda, mas só que ninguém

queria ajudar, aí ele foi em frente, com a cabeça erguida; quem xingava, ele

não dava nem treta. Chegou um dia, eles pararam e pediram desculpas”.

(Henrique- 6ºA)

“Na verdade, os passarinhos estavam tendo bullying com o pássaro grande e

não querendo deixar ele brincar” (Rhaissa – 6ºA)

“Isso significa que quem ri por último, ri melhor. Isso é bullying (...) tem que

aprender a conviver com todos, se ponha no lugar pra você vê se é bom. Quem

planta coisa boa, colhe coisa boa. E quem planta coisa ruim vai colher coisa

pior.” (Luís Fernando – 6ºA)

“Moral: Não faça com os outros o que não gostaria que fizessem com você.”

(Douglas – 6ºB)

“Moral da história: Não se deve julgar as pessoas pela aparência, mas

conversar com ela e saber o que ela tem de melhor, mesmo que ela não seja

bonita. Todos temos o nosso melhor para oferecer a outra pessoa ou para nós

mesmos.” (Izabella – 6ºB)

“Moral da história: Nunca rejeite uma pessoa, porque todos somos iguais.”

(Lorena – 6º B)

O texto abaixo foi escrito pela Jennifer, do 6º B, e transcrito após:

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Figura 8- Texto produzido pela aluna Jennifer - 6º B. Acervo pessoal da autora.

Transcrição:

INDIFERENÇA!

Há coisas que eu não intendo, porque que a diferença é tão prejudicial a algumas pessoas? Se não houvesse a diferença o mundo seria sem cor, sem inspiração, pois todos teriam a mesma cara, os mesmos gostos, e não seria

legal. Por isso eu afirmo a diferença é precisa! Uma prova que a (há) descriminação pela diferença é um vídeo que eu assisti:

CONVIVÊNCIA Com dez pássaros pequenos de uma espécie voando, podemos considerar

uma ninhada de pássaros, até aí tudo bem, mas o problema começa quando um pousa em um lugar, e os outros começam a esbarrar um no outro, e

principalmente quando encontram um pássaro DIFERENTE deles, por ser maior, e de outra espécie.

Desde aí esses pássaros menores faz um grupinho para pensar no que fazer com o pássaro “diferente”.

O resultado não foi muito bom, no caso deles o resultado foi “frio” kkk, brincadeira, mas eu quis dizer eles ficaram sem pelos, mas com muitas

pessoas o resultado é uma dor mental.

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Ao usar a palavra “indiferença”, a aluna revela sua sensibilidade e

percepção da falta de altruísmo, presença de egoísmo que movem os seres

humanos, representados no vídeo pelos pássaros.

Dia 27 de setembro de 2013, sexta-feira, 7h30.

Lemos mais um trecho do livro Indez (2004, p.65-66) do Bartolomeu.

Acredito que a maneira simples e, ao mesmo tempo, as palavras carregadas

de poesia têm o poder de encantamento nos jovens ouvintes, especialmente

pelo silêncio que fazem, o que não é o “normal” entre eles: Enquanto o frio

deixava névoa sobre as águas e sobre os campos, as asas tomavam sol nos

beirais das janelas. Vestidos de cetim branco, de anjos, eram repassados com

ferro de brasa enquanto as irmãs esperavam cada noite com os cabelos em

papelotes, enrolados com papel de macarrão.

Amêndoa é comida de anjo. Com a panela no fogo, a mãe dava banho

de açúcar em grãos de amendoim torrado. Aos poucos eles se vestiam de

roupa branca, e doce, combinando com o mês, a festa e a Santa.

No fim da tarde, armados em balaio, os cartuchos de papel-crepom

seriam a ceia dos anjos depois da coroação da Virgem.

Sobre o altar, com longas escadas laterais, Maria esperava sua coroa e

sua palma entre chuva de pétalas de rosas.

O pai trouxe pares de pilhas, pedaços de fios e lâmpadas pequeninas.

Enrolou o fio na coroa das meninas com as lâmpadas soldadas na ponta. As

pilhas ficavam em saquinhos de pano, que a mãe cosera, debaixo dos braços

das irmãs, anjos.

Na hora da coroação, entre cantos e solos, as luzes da igreja apagavam.

As irmãs com coroas iluminadas eram quase de verdade. E os fiéis oravam

juntos (...).

Depois os anjos recebiam cartuchos, e pela noite adentro caminhavam

de volta para casa comendo pérolas de açúcar. Era um pedaço do céu que

passava sob os olhos de Antônio.

Outra vez conversamos sobre o livro, as nossas vidas, o mundo, a

escola, os amigos e a família.

Pedi, então, para que fizessem um poema com o título “Coisas de que

eu gosto”. Observa-se, nos trechos abaixo, a importância de pequenas coisas

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do cotidiano, a possível felicidade encontrada em situações de extrema

simplicidade. Ao mesmo tempo, as ausências e perdas.

“A felicidade de uma chegada

O amor que nunca acaba” (Ketlyn – 6ºB)

“Sentar na calçada e ver as estrelas

Ver meu bisavô me chamar

Entrar na casa e pensar

Depois deitar na cama

E sonhar” (Igor – 6º B)

“Adoro ser criança, mas sei que vou crescer

Mas criança por dentro

Sempre vou ser” (Não se identificou – 6º B)

“Acordar cedo

Olhar o amanhecer

Ir para o campo

Treinar na grama verdinha

(...)

Ir para a casa da minha vó

E todos os domingos comer macarronada,

arroz temperado ou lasanha.

Escutar o barulho do carro do meu pai chegando do trabalho”

(Víctor Hugo- 6ºB)

“No dia: acordo

Tenho vontade de ver meu primo

Ele me vê lá de cima

Tenho vontade

De ter um celular

Mas falta o dinheiro.

Como é bom ter amor

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(...)

Não o vazio...

Ter uma vida dura

Mas ter o amor

É o importante.

A minha vida é boa

Porque tem o amor.” (Katleen – 6ºB)

“Acordar no sábado bem cedinho

Parar e pensar

Em minha vó

Que eu gostaria

de ter conhecido” (Bárbara- 6ºB)

“Lembrar dos bons amigos

Que não vejo mais,

Pois desta vida já partiram

Mas lá de cima me observam.

À noite, deixar o que passou para trás

Para no dia seguinte

Sempre lembrar que sou capaz.” (Bruna- 6ºB)

“Acordar cedo todos os domingos

(..)

Esperar meu pai chegar e

Matar a saudade grande.

Sempre que ele está comigo

Tudo é lindo.” (Eduarda – 6ºB)

Giovana (6ºB) fez o poema abaixo, cuja transcrição segue em seguida:

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Coisas de que eu gosto

Do amanhecer...

bem quente do verão

de que tudo é feliz

quando se usa a imaginação.

De que nada se esquece

quando ama pra valer, já

que tudo tem razão, motivo e porquê.

Eu gosto de como um conto

se desencadeia no decorrer da folha,

no decorrer da linha.

Gosto de ver a esperança no

Olhar de cada criança, o

Colapso do pensamento.

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Escrever o que me toca

no poço sem fim da gratidão

de como tudo que eu gosto

é com muito amor e compaixão.

Gosto de observar cada lugar

com a maior atenção que alguém

pode ter... afinal, isso é o que gosto

o que gosto de fazer.

Dia 04 de outubro de 2013, sexta-feira, 7h30.

Continuamos com nossa leitura do Bartolomeu. Lemos os poemas feitos

na aula anterior. Fizemos um breve exercício de escrita automática, ouvindo

trechos de músicas: rock, funk, clássica, sertaneja e pagode. Depois, ao som

de uma música instrumental ao fundo, pedi para que escrevessem “Coisas de

que não gosto”. Selecionei alguns trechos. No primeiro deles, nota-se o uso do

verbo odiar e não da expressão “não gostar”. A força verbal revela o

sentimento carregado pelo jovem, como se, nessas palavras, estivesse contida

toda a revolta que ele sente, abrangendo muito mais que família e amizades. É

todo um universo social, econômico e emocional o objeto da revolta,

evidenciado, especialmente, nos dois últimos versos.

“Odeio ficar sem a minha família

Odeio ficar sem amizades

Não me rebaixo para ninguém

Sempre vou ser quem eu sou.” (Guilherme- 6º A)

“(De) Menina feia

(de ficar) Sem meus amigos

Sem meus pais

Sem roupa de marca

Sem passear.

Faltar na escola

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Não gosto de ver gente triste.” (Elano – 6º A)

“Das horas e minutos que passam depressa nos momentos bons.”

(Danielle – 6º A)

“De morar no Jardim da Paz

Da escola

Escrever

Ficar sozinho

Estudar

(...)

Não gosto de nada da escola, só dos passeios.” (João Vitor – 6º A)

“Ver alguém sofrer,

A falta de noção que existe no mundo

Pessoas brigando,

A morte.

Também não gosto da falta de respeito

Apenas queria

Que o mundo

Fosse um lugar melhor.” (Nadhyen – 6º A)

“Não gosto de ir pra escola

Não gosto de morar aqui nesse Jardim da Paz.

Não gosto de ler

Não gosto que levantem a voz comigo,

Que apontem o dedo,

De tapa.

Não gosto da professora ...

Não gosto da inspetora

Não gosto do diretor,

ele fala que eu sou o errado.” (Joel – 6º A)

“Não gosto de ofensas

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Puxões, tapas, beliscões

Ou de uma brincadeira de mau gosto.

Queria que todo o mundo fosse tudo de bom

E o mundo sem violência.

Só amizade, paz, amor e união

Nesse mundo tão grandão.” (Stéfany – 6º B)

“Ouvir mais uma vez pela boca de meu pai: sua avó está doente.

Acordar e não ter o que fazer, pra onde ir.

Ouvir que alguém na família está doente com algo grave.

Chegar na casa de minha tia e ela está passando mal.

Ouvir o meu priminho chorar.

Acordar cedo com saudade do meu tio, minha tia e minhas primas

Longe eles estão e não posso vê-los.

Ouvir meu pai falar de meu avô e não poder conhecê-lo,

pois ele morreu quando eu tinha apenas quatro meses.”

(Não se identificou – 11 anos – 6º B)

Dia 11 de outubro de 2013, sexta-feira, 7h30. Hoje não houve aula,

porque os alunos ganharam ingressos para o Hopi Hari.

Dia 18 de outubro de 2013, sexta-feira, 7h30. Perguntei sobre o passeio

da semana anterior. Era como se estivesse no meio de um bando de pequenos

pássaros barulhentos. Eu sabia que eles estavam esperando por esse

momento. Não poderia decepcioná-los.

Para aquele dia, escolhi outra obra de Bartolomeu Campos de Queirós:

“Para criar passarinho” (2009). Por dois motivos: primeiro porque eles se

encantaram com a primeira, cuja leitura já havíamos terminado; segundo,

porque eu mesma me encantara pelo novo “livrinho”.

Mostrei-lhes a obra, e a exploramos visualmente. As cores vivas:

vermelho, amarelo, verde, tons de azul, rosa e lilás: por que será? “Porque é

alegre!”, “Para ficar mais bonito!”. As ilustrações: o que será que significavam?

“Elas estão representando as pessoas diferentes no meio das outras”;

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“Representam que nem todos são iguais, tem sempre um diferente”; “Tem

sempre uma pessoa, um animalzinho, alguma coisa diferente, mas tudo junto

fica bonito, que nem os desenhos do livro”.

Relacionaram as ilustrações da obra com o vídeo “Convivência”, a que já

haviam assistido. Daí para fatos de seus cotidianos foi uma questão de

minutos.

Contei um pouco da história do autor daquele “livrinho”.

Entreguei um trecho digitado para cada aluno e solicitei 16 voluntários

para compor os 16 trechos da obra. Numerei-os de 1 a 16, aleatoriamente, sem

seguir a sequência numérica do livro, e fui pedindo que cada um lesse o seu

trecho para a classe.

A cada leitura, eu relia a passagem, da forma mais expressiva possível,

e discutíamos as inúmeras possibilidades de compreensão, as palavras, cujos

significados eles desconheciam; os sons; os possíveis porquês, as

probabilidades de relação com as vidas das pessoas e deles mesmos.

Cada aluno, então, escreveu o seu texto “Para criar passarinho” e

ilustrou. Combinamos de ler os poemas na aula seguinte.

Figura 9 - Alunos do 6º A escrevendo "Para criar passarinho". Foto tirada em

18/10/2013. Desconsiderar a data no canto inferior direito da foto.

Acervo pessoal da autora.

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Figura 10 - Alunos do 6º B escrevendo "Para criar passarinho". Foto tirada

dia 18/10/2013. Acervo pessoal da autora.

Esse dia foi de extremo envolvimento. Pode ser pelo tema ou a forma

poética e simples com que Bartolomeu fala de sentimentos profundos como a

busca pela liberdade, a realização dos sonhos, a importância da sensibilidade

no convívio com os outros, a compaixão por tudo o que nos rodeia.

Contagiados pela envolvente prosa poética de Bartolomeu, os alunos

escreveram, com o título “Para criar passarinho”:

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Figura 11- Poema produzido pelo aluno do 6º A, Luís Fernando,

dia 18-10-2013. Acervo pessoal da autora.

“Para criar passarinho

É preciso amor e carinho

Porque ele é frágil como um ninho.

Voar sem pensar

de um lado para outro

Voar, voar, voar sem parar.

Para criar passarinho

É preciso de espaço

Ser livre como o vento

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Amar a cada passo.” (Vinícius – 12 anos – 6º A)

“Para bem criar passarinho

Tem que abrir as asas para o infinito

Não ter medo de viver

e ser livre para chegar ao seu destino.

Tem que abrir as asas do coração

e ter amor e compaixão.

Tem que voar sem medo

de perder o equilíbrio.

Tem que confiar em si mesmo

E só, só assim chegará a seu destino.” (Ketlyn – 11 anos – 6º B)

Figura 12 - Ilustração da Ketlyn para o poema acima. Acervo pessoal da autora.

Para bem criar passarinho

É preciso ter muito carinho

Sendo você diferente e tal

Todo mundo é especial.

Para bem criar passarinho...

Você é muito especial

Mesmo sendo negro e tal.

Eu me sinto sozinho

Mas Deus está comigo.”

(Pedro Henrique – 11 anos)

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Figura 13 - Poema e ilustração de Pedro Henrique - 11 anos - 6º B.

Acervo pessoal da autora.

Nos versos: “Você é muito especial/ Mesmo sendo negro e tal./Eu me

sinto sozinho/ Mas Deus está comigo.”, eis uma “confissão” do mais íntimo

grau, já que o jovem está falando de si mesmo, da segregação e discriminação

que sofre. Certamente, não foi um ato insignificante expor-se assim. Isso só foi

possível pelo trabalho de motivação e sensibilização por meio dos textos

poéticos, e por deixá-los ter voz, todos os dias de nossos encontros.

Criar laços de amizade e respeito foi fator imprescindível para que eles

conseguissem quebrar barreiras de baixa autoestima, de invisibilidade, de auto

imagem negativa. Trabalhando com a linguagem poética e valorizando o que

tinham a dizer, aos poucos aqueles jovens foram alterando alguns

comportamentos, como a dificuldade de expressar seus sentimentos ao outro.

Exemplo disso foi que, junto do poema, Pedro entregou-me o desenho abaixo:

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Figura 14 - Desenho de Pedro - 11 anos - 6º B.

No canto superior esquerdo está escrito:

De: Pedro; Para: Rebeca; 18/10. Acervo pessoal da autora.

Figura 15 - Poema escrito pela Daniely - 11 anos - 6º A - data: 18/10/13.

Acervo pessoal da autora.

O Guilherme tem 11 anos (6º A), mas parece que tem mais. Observa-se

que, ao citar Bartolomeu, ele relaciona o texto poético à própria vida, e o faz de

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uma maneira muito profunda e madura para a idade que tem. Ele entende que

poesia e vida andam juntas:

Para criar passarinho A vida é sofrida, mas Deus cuidará dela. Como dizia Bartolomeu, “para bem criar passarinho é essencial possuir um arco-íris, ilusão de água e sol, rabiscando no céu para passarinho pousar depois da chuva. E isso se faz possível escolhendo nas nuvens as sete cores, ao entardecer.” Muitas vezes você está se perdendo, mas aprendi que nós só saímos da gaiola, quando a vida permitir. Na vida você ganha, perde, a gente aprende com o tempo, basta ter fé.

Para bem criar passarinho,

É preciso lhe dar amor e carinho

Não deixá-lo preso e nem sozinho.

Deixá-lo solto, vagando por aí, dia e noite, céu afora

Fugindo de seus grandes inimigos

De quem ele só quer ser amigo.

(Bruna – 11 anos – 6º B)

Para bem criar passarinho

É preciso soltá-lo livremente

E deixá-lo voar.

Criar passarinho não é prender, é ensinar.

Criar passarinho é cair e levantar,

É ter certeza de que você pode superar.

E também é preciso aprender a perdoar.

(Víctor Hugo – 11 anos – 6º B)

Para bem criar passarinho

É preciso criar asas (...) pensar nas diferenças daqueles que são iguais

(Cristhian – 11 anos – 6º B)

Para bem criar passarinho

É preciso ser um deles

Para ver como a vida deles é dura

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Ver o ódio, a raiva, o caráter e o amor,

que é o mais importante para nossa vida,

Não tem. (...)

É duro ter uma vida ruim.

(Katleen – 12 anos – 6º B)

Para criar passarinho

É preciso superar desafios

E aguentar as dores

Que o caminho,

para um lugar melhor,

causam em ti.”

(Kevin – 11 anos – 6º B)

Em todos os trechos acima, é flagrante a analogia que conseguiram

fazer da poesia com a vida: os passarinhos são eles mesmos, e deixam isso

explícito ao afirmarem, por exemplo: “É preciso criar asas (...) pensar nas

diferenças daqueles que são iguais”; “Para ver como a vida deles é dura/ Ver o

ódio, a raiva, o caráter e o amor/ que é o mais importante para nossa vida/ Não

tem./ (...) É duro ter uma vida ruim.”

Ao terminar a aula, saindo da classe, veio ao meu encontro a aluna

Katleen Cristina, com um envelope nas mãos. Disse-me: “Professora, é para a

senhora ler em casa, tá?” Sorriu e saiu correndo para o intervalo.

Figura 16 - Envelope com duas remetentes: Katleen, a aluna do 6º B, e

Katherine, sua irmãzinha de 01 ano de idade. Acervo pessoal da autora.

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Dentro, o bilhete carregado de carinho:

Figura 17 - Bilhete da aluna Katleen Cristina - 6º B - Acervo pessoal da autora.

Assim diz:

Rebecca eu gosto muito de você. Você é minha professora preferida. Te amo, eu adoro você e a aula de Poesia.

Rentil (ela quis dizer Gentil) inTeligente mEiga Educada Bonita LEgal Aula de Poesia Carinhosa Maravilhosa

RebeCca rOmântica Amorosa

Te Amo (dentro do coração) Feliz dia dos professores, eu não esqueci, mas ficou atrasado. Rebecca sempre esperança Eu adoro sua aula.

Chamou-me a atenção a palavra “esperança”, na penúltima linha do

bilhete. Ela deve estar associada à ideia de que a professora, por meio das

aulas de poesia, possibilita-lhe acreditar que é possível algo de bom acontecer,

de tal forma que algum aspecto de sua vida melhore. O foco, portanto, são as

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aulas de poesia e o que ela pode provocar na vida da criança, e não a

professora.

Dia 25 de outubro de 2013, sexta-feira, 7h30.

Fomos à quadra de esportes para cantar o Hino Nacional. A diretora da

escola era quem inspecionava os alunos para ver se eles sabiam cantar direito.

Disse-me que precisávamos resgatar o respeito aos símbolos da pátria; que se,

não fizessem isso, daqui a algum tempo eles nem saberiam o nosso Hino.

Entre sonolentos e desmotivados, eles cantaram não só o Hino

Nacional, mas o hino da cidade de Americana. O primeiro eu também cantei ao

lado deles, mas o segundo deixou-me envergonhada, pois eu não sabia a letra.

Em classe, relembramos o que havíamos feito na semana anterior e

deixei livre para quem quisesse ler o seu poema para a turma.

Como se tornara hábito, felizmente, todos queriam ser os primeiros a ler.

Organizamos as leituras e, ao final de cada uma, eles começavam a aplaudir

o(a) amigo(a).

Vivenciaram momentos de orgulho de si mesmos, por perceberem que

eram capazes de produzir algo que provocava a admiração e o respeito nos

outros.

Perceberam que, pela linguagem poética, eles poderiam se expressar,

ter suas vozes ouvidas e ganhar o respeito das pessoas.

Os textos produzidos por eles, também serão referência para estudarem

a língua portuguesa, conforme me pediu a professora Cibele. Confessou-me

que os conhecera muito mais, depois de ler as produções feitas por eles, e que

aquilo a ajudaria a entendê-los e orientá-los melhor.

A autoconfiança, o refletir sobre si mesmo, o mundo e o outro; a

possibilidade de transformar a realidade, de se fazer ouvir são alguns

resultados que, acredito, pelo menos algumas daquelas crianças alcançaram.

Tive essa certeza pelas produções que fizeram, pelo próprio comportamento

observado nesse tempo em que estivemos juntos e, nesse dia, materializou-se

na atitude de uma das alunas, talvez a mais tímida da classe, com muitas

dificuldades de escrita e de aprendizagem.

Abaixo, o bilhete e, após, a transcrição:

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Figura 18 - Bilhete escrito pela aluna Katleen – 12 anos - 6º B. Acervo pessoal da autora.

O bilhete diz:

Rebecca No começo eu não tinha vontade de escrever o poema porque não tinha

tema, mas agora não tenho mais isso porque tem temas. No começo quando você foi se apresentar eu tava com medo de você falar que não tava legal, mas agora não tenho. (Dados pessoais da aluna, inclusive a data de nascimento: 16/05/2001)

A palavra “tema” nos remete às atividades de motivação desenvolvidas:

ler e ouvir poemas, prosa poética de autores diversos, ouvir músicas, discutir

sobre determinado assunto antes de iniciar a produção escrita, dentre outras.

Em geral, os alunos associam a produção dos textos à escrita formal, às

vezes impessoal, mais voltada para aspectos gramaticais, para posterior

correção da professora. Uma produção destinada a questões técnicas,

desprovida de valores e marcas pessoais. Portanto, não significativa.

Naquela sexta-feira, antes de terminar a aula, pedi para anotarem no

caderno, a fim de não esquecerem: na próxima semana não haveria aula, em

virtude do feriado de Finados, mas, na outra semana, que eles levassem à aula

um objeto ou uma foto (poderiam ser os dois), que fosse muito significativo e

trouxesse(m) lembranças de momento(s) muito(s) importante(s) em suas vidas.

Dia 01 de novembro, sexta-feira. Não houve aula. Feriado de Finados.

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Dia 08 de novembro de 2013, sexta-feira, 9h. Fui à escola para

desculpar-me, pois não poderia ficar naquele dia. Compromissos profissionais

impediam-me. Principalmente, em respeito às “memórias” que eles tinham

levado. A professora alertou-me para o que encontraria no 6º B: estavam aos

prantos, porque duas amigas da classe estavam indo embora para outra

escola.

Pedi licença ao professor que estava na sala, desculpei-me com eles e

começamos a conversar sobre perdas; idas e vindas; lembranças que ficam

guardadas no coração; pessoas queridas que sempre são representadas por

algum símbolo - algo que as fazem presentes, mesmo estando ausentes

fisicamente; sobre a importância da amizade.

Foi, então, que a aluna Giovana, uma das que iam para outra escola,

pediu-me para fazer uma homenagem à classe. Queria ler o seu poema “Para

criar passarinho” para os amigos. Nesse momento, entendi a importância do

que havíamos feito nesses encontros às sextas-feiras. Fora tão significativo

para todos eles a realização das produções escritas que a Giovana, num

momento de extrema carga emotiva para eles, queria presenteá-los com algo

do qual todos haviam participado, como se fossem cúmplices, e aquilo lhes

falasse na alma. Estavam todos falando a mesma língua, em sintonia.

Figura 19 - Giovana lendo seu poema "para criar passarinho",

em homenagem aos amigos: o 6º B. Acervo pessoal da autora.

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Alguns versos do poema da Giovana – 12 anos – 6º B:

“Para bem criar passarinho,

que (o menino) voe distante novamente

que voe para dentro e para fora de si

que seja a realidade de quem canta

para alguém dormir.

(...)

Voe alto na imaginação

junto do que ama seu coração.

Voe triste, voe feliz, voe na solidão

Do pequeno passarinho

Que será um gavião.”

Figura 20 - Os semblantes de tristeza pela partida das amigas, 6º B –

Acervo pessoal da autora.

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Figura 21 - O registro da despedida: a professora Rebecca ladeada pela

Giovana (E) e pela Bruna (D). Ao redor, todos os amigos e amigas do 6º B.

Dia 22 de novembro de 2013, sexta-feira, 7h30. A classe estava em

polvorosa: uns porque exibiam satisfeitos seus objetos preciosos trazidos sob

recomendações de cuidados de alguém de casa; outros porque não se

conformavam que haviam esquecido.

Como de costume, distribuí alguns poemas inteiros e trechos de outros,

de Vinícius de Moraes, Fernando Pessoa, Henriqueta Lisboa. Leram em

silêncio, primeiro; depois pedi, para quem quisesse, que lesse o que havia

recebido. Conversamos, um pouco, sobre as leituras feitas e suas percepções.

Estavam muito ansiosos. Começamos, então, com cada um mostrando a

sua foto ou seu objeto e contando sua história. As fotos eram afixadas na

lousa, e os objetos colocados sobre a mesa da professora.

Abaixo, exemplos de dois momentos:

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Figura 22 - Fotos do 6º A afixadas na lousa. Acervo pessoal da autora.

Figura 23 - Objetos do 6º B. Acervo pessoal da autora.

Selecionamos pequenos trechos das produções feitas pelos alunos dos

6º A e 6º B:

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“Lembranças do passado

Eu trouxe duas fotos e um vestido rosa com flores. Ele passou por três

gerações: eu, minha prima e minha irmã, e vai ir para minha filha. A foto tirei

com 2 anos no parque Zológico de Americana.

Minha tia tinha ganhado o meu primo Bruno, só que depois de 2 semanas, ele morreu bem bebê, que dó.”

(Katleen Cristina – 6º B – 12 anos)

A aluna Jennifer, do 6º B, levou uma foto de quando era bebê, mas não

quis falar sobre sua história. Pediu-me se poderia apenas escrever. Concordei.

Eis seu relato:

“Na minha

Família a

Tristesa é

Sem fim.

Mortes,

Brigas,

Confusões

É normal

Em toda família,

Mas na minha é natural.

Professora,

Na minha família é normal confusões, brigas, discussões, esse foi um

dos motivos para meus pais se separarem, porque minha avó se mudou com

os meus primos e meu tio pra onde nós morávamos. Não gosto de contar

histórias pessoais, mas isso ninguém me contou essa história, eu que

presenciei e tirei a conclusão.”

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Figura 24 - Texto da Jennifer, 12 anos - 6º B- sobre o objeto levado: uma foto.

Acervo pessoal da autora.

“A blusinha da Bisa

Certa vez minha Bisavó pediu para que eu fosse ao quartinho dela para

me dar um presente, pois era meu aniversário. Então ela me deu uma blusinha,

dali pouco tempo ela veio a falecer. Por isso essa blusinha é tão importante na

minha memória.”

(Mayara – 11 anos – 6º B)

“A história do meu primeiro vestido rosa

A minha vó comprou um vestido pra minha mãe, quando ela era nenen,

com o passar do tempo a minha mãe gostou tanto do vestido que guardou pelo

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resto da sua infância. Passou alguns anos e minha mãe me teve e quando eu

completei 11 meses, por aí, ela me deu, e tirou uma foto e até hoje nos meus

12 anos eu o guardo de recordação.”

(Larissa – 12 anos – 6º A)

“Bem, aquela foto é de quando eu era pequena, tinha 2 anos e o Kevin

também, a gente estava na casa do Kevin brincando de casinha. Eu escolhi

essa foto por ele ser um amigo muito especial e a nossa amizade ser de anos,

vai fazer 10 anos que nós somos amigos, e é isso. Eu gosto muito dele e

espero que a gente sejamos amigos para sempre. Apesar dele ser chato e

bobo às vezes mas eu gosto muito dele.”

(Maria Eduarda – 6º A)

“Computadorzinho

Quando eu era pequena meu pai tinha um mini computador tipo um

netebook aí minha mãe mandou eu limpar ele e eu lavei com água e quebrei.

Depois que meu pai descobriu bateu em mim e no meu irmão no banho.”

(Izabela – 11 anos – 6º A)

“La muerte

Estava roco e com um pouco de falta de respiração. Minha mãe me

levou ao médico e no meio do caminho eu perdi totalmente a voz e parei de

respirar, e quando eu cheguei lá respirei por uma mascara de oxigênio, mas eu

ainda não tava falando e o medico disse se eu tivesse demorado um

pouco mais eu teria morrido, aí quando fui comer no hospital tinha 3 tipos de

gelatina aí eu apontei pra uma e minha mãe brincava comigo falando a outra e

foi o melhor dia que eu fui ao hospital.”

(Vinícius – 6º A)

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Figura 25 - Texto escrito pelo aluno João Pedro - 11 anos - 6º B.

Acervo pessoal da autora.

Naquele final de manhã, já de saída, ouço me chamarem. A Daniele vem

correndo com um papel na mão. Entrega-me e sai correndo de novo, sem dizer

palavra.

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Figura 26 - Bilhete escrito pela aluna Daniele - 6ºB - Acervo pessoal da autora.

Criar laços afetivos, estabelecer relação de respeito mútuo e motivar as

crianças a refletirem e expressarem seus universos pessoais são fundamentais

na (re) construção de sua auto imagem e perspectiva de vida. Isso estava

acontecendo, por meio do mundo poético.

Dia 29 de novembro de 2013, sexta-feira. Não fui à escola, porque

minha netinha nasceu no finalzinho da tarde do dia anterior. Estávamos todos

embriagados, em casa, sem espaço para outro pensar. Avisei a professora que

não iria e me desculpei.

Dia 06 de dezembro de 2013, sexta-feira, 7h30. Fui à escola, mas não

teve aula. Era dia de reunião de pais e os alunos não foram.

Dia 13 de dezembro de 2013, sexta-feira, 7h30. Recebera recado da

professora de que seria Conselho de Classe naquele dia, portanto, não haveria

aula. Fui mesmo assim. Eu não veria mais os alunos naquele ano, mas pedi

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autorização para voltar no ano seguinte, no início das aulas, para agradecer,

despedir-me deles e entregar-lhes uma lembrança.

Aquele também foi o dia em que vi o amigo Emílio Coelho Augusto pela

última vez. Foi ele, na condição de coordenador pedagógico da escola, quem

possibilitou meu trabalho com aquelas crianças. Sua vida lhe seria roubada, um

mês depois, exatamente por um jovem que, anos antes, fora aluno da escola.

Pode ser – quem o saberá – que a poesia tivesse mudado o curso da

vida daquele ex-aluno que, possivelmente, ratificou a imagem que tinha de si

mesmo e do mundo em que vive, encontrando, num ato de barbárie, a

visibilidade que não tivera até então.

O texto poético desperta a sensibilidade, a capacidade de percepção

das pessoas quando leem, ouvem e conversam sobre ele. É possível levar a

criança a ler nas entrelinhas os sentidos implícitos e latentes nas obras

literárias. Como exemplo, podemos citar o comentário da aluna Jennifer (6ºB)

em relação ao poema de Cora Coralina, “Minha Cidade”: “ Professora, parece

que ela e a cidade são a mesma coisa...”

A literatura contribui para o resgate de memórias da criança e do jovem

e sua (re) construção de subjetividade: “Eu sou eu/ Não sou quem você pensa

que sou/ Eu não sou do jeito que eu me visto/ Eu sou eu por dentro/ E não por

fora.” (Pedro Henrique – 6ºB).

Pelas memórias-lembranças resgatadas com os textos poéticos, eles

revelam as imagens que têm de si, da família, do lugar onde moram e do

mundo. Suas perdas e revoltas ficaram muito mais evidentes que os aspectos

positivos de suas vidas: “Quando eu fui ver meu avô no caixão.” (Ana Clara -

6ºA); “Uma coisa muito ruim, vi um cara bater muito no meu pai, é uma

péssima lembrança.” (Jennifer – 6ºB); “Vi minha família triste, meu irmão

estava preso.” (Guilherme Henrique – 6º A); “(Não gosto) de morar no Jardim

da Paz...” (João Vitor – 6ºA); “Não gosto de ir pra escola/ Não gosto de morar

aqui nesse Jardim da Paz/ (...) Não gosto da professora/ Não gosto da

inspetora/ Não gosto do diretor, ele fala que eu sou o errado.” (Joel – 6º A).

Nota-se, no último trecho, a sensação de não pertencimento ao grupo, de

negação de aspectos relevantes que compõem a própria identidade, que são

intensificados pelo recorrente uso do advérbio de negação “não”. Em “ele fala

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que eu sou o errado”, a criança já introjetou a negatividade em sua auto

imagem; ela revela a sua voz emudecida, a sua invisibilidade, naquele

momento. No entanto, a poesia “transforma tudo o que toca” e, uma vez tendo

tocado o coração da criança, é bem provável que transmutará “em ouro potável

as águas letais que da morte escorrem pela vida”.

Por meio da linguagem poética, há um mergulho intenso no plano das

emoções. A poesia produz encantamento, sensibiliza o ser humano e

estabelece laços entre as pessoas, fazendo-as (re) pensar sua própria

existência e sua relação com tudo o que as cerca: “Vazio como uma pessoa

sem amigos/ e pesado como culpa de fazer o mal.” (Ana Carolina – 6º B);

“Leve como as folhas secas/ a cair sem machucar/ Não é como a gente/ Sem

pensar ao desmatar.” (Daniele – 6º B); “O pássaro: leve como lágrima de

felicidade/Delicado como mão de princesa/ Onde passa sempre deixa saudade/

E afasta toda a tristeza (...).” (Stéfany – 6º B).

Os símbolos que povoam os textos poéticos despertam a imaginação, a

criatividade e nos permitem estabelecer relações entre a ficção e a realidade

vivida: “(...) tem que aprender a conviver com todos, se ponha no lugar pra

você vê se é bom. Quem planta coisa boa, colhe coisa boa. E quem planta

coisa ruim vai colher coisa pior.” (Luís Fernando – 6º A); “(...) Todos temos o

nosso melhor para oferecer a outra pessoa ou para nós mesmos.” (Izabella –

6º B); “Para bem criar passarinho/ Você tem que ser solto/ Porque preso

parece que você/ É um esboço!” (Luís Fernando – 6º A).

O mundo simbólico da poesia pode transformar vivências que causam

sofrimento em projeções e perspectivas de melhores momentos, de uma

existência mais feliz: “Para criar passarinho: Sempre voei carregando pesos/

para conseguir ser quem eu muito quero ser/ Não vou, nem quero fazer coisas

que me falam para fazer/ Para viver sigo para frente/ Com a linha do infinito/

Vou completamente sem paz/ Mas crendo em mim/ posso aguardar a riqueza

que um dia vou encontrar (...)” (Daniely – 6º A); “Criar passarinho é cair e

levantar/ É ter certeza de que você pode superar/ E também é preciso aprender

a perdoar.” (Vítor Hugo – 6ºB).

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A convicção no caráter transformador da linguagem poética foi ratificada

por recente estudo realizado por especialistas da Universidade de Liverpool,

publicado em 15 de janeiro de 2013, afirmando que a poesia provoca o lado

direito cerebral, responsável pelo armazenamento das memórias e lembranças

das pessoas, ajudando-as nas reflexões autobiográficas, de forma a entendê-

las sob outra perspectiva.

Segundo Jobim e Souza (2005, p.159):

O mundo em que a criança vive suas relações com o outro é um “claro-escuro de verdade e engano”. Nesse mundo, assegura Kosik (1976), a verdade não é dada, não está acabada, impressa de forma imutável na consciência humana; a verdade é algo que se faz constantemente nas relações sociais e por meio delas. Quando a criança se apropria da linguagem, revelando seu potencial expressivo e criativo, ela rompe com as formas fossilizadas e cristalizadas de seu uso cotidiano, iniciando um diálogo mais profundo entre os limites do conhecimento e da verdade na compreensão do real.

A linguagem poética é, pois, um elemento propulsor no resgate de

memórias, na possível (re) construção da subjetividade e na promoção de

outras leituras do ser e estar no mundo, podendo constituir-se numa ação

transformadora para a vida da criança, como revelaram as produções escritas,

citadas neste trabalho.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A educação pode ajudar a nos tornarmos melhores, talvez mais felizes,

e a assumirmos a dimensão poética de nossa vida. A poesia leva-nos à dimensão poética da existência humana. Revela que habitamos a Terra

não só prosaicamente – sujeitos à utilidade e à funcionalidade -, mas também poeticamente, destinados ao deslumbramento, ao amor,

ao êxtase.Pelo poder da linguagem, a poesia nos põe em comunicação com o mistério, que está além do dizível.

Edgar Morin

Escrever é desvendar o mundo. Simone de Beauvoir

Eu trago no meu coração e no meu olhar

Uma felicidade que não dá pra contar. Luís Fernando – 6º A

O Projeto buscou, em todas as suas atividades, possibilitar a leitura e

criação de textos, o mais poéticos possível, por meio de textos literários,

igualmente poéticos, de tal forma que, pelo ato da própria expressão, as

crianças e jovens envolvidos tivessem consciência de si e do outro, do mundo

e da vida.

O Projeto “Tecendo a vida nos fios da poesia” foi desenvolvido no âmbito

da educação formal, mas talvez pudesse ter sido desenvolvido num ambiente

de educação não formal. É provável que os objetivos tivessem sido

alcançados, da mesma forma, como o foram no Projeto.

A busca por uma educação para a cidadania, para a justiça social, pelos

direitos humanos, pela visibilidade, igualdade, liberdade, extinção ou

minimização de preconceitos, democracia e diversidade cultural, fez parte do

ideário do “Tecendo a vida nos fios da poesia” e foi perseguida durante a

realização das atividades, para que alcançássemos os objetivos a que nos

propusemos.

Além dos propósitos acima mencionados, outro grande fator motivador

que permeou toda a realização do Projeto foi o de acreditar que as crianças e

os jovens que dele participaram poderiam ser despertados, de alguma forma,

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para um sentimento de pertença, de ser e estar no mundo, de tal forma que

cressem que suas vozes são imprescindíveis no universo de que fazem parte.

Também consideramos atingido esse fim.

A constatação do alcance desses objetivos fundamenta-se nas

produções poéticas escritas por eles – exemplificadas, abundantemente, no

Capítulo III -, nas quais se desnudam, revelando-nos a imagem que fazem de

si, da família, da escola etc., e da projeção que esboçam do que podem vir a

ser.

Recorremos a inúmeros autores para fundamentar a importância da

função do educador nesse processo político, que é a educação, mas que deve

ser, acima de tudo, poético. O verdadeiro mestre é aquele que desaparece

dentro do processo de aprendizagem, aquele que cria condições para que seus

alunos sejam autônomos na construção do conhecimento.

A pessoa deve ser o foco de todo o trabalho do educador, premissa que

permeou o nosso.

Ao longo de anos, e para esta pesquisa, propusemos uma prática com

as palavras, que tecem os textos, reinventando mundos. Todas as atividades

desenvolvidas seguiram esse critério, na medida em que trabalhamos a

simbologia e imagens suscitadas pelas palavras; sua sonoridade; as

possibilidades de sentidos e de combinações. Como exemplo, citamos as

produções realizadas em torno do livro “Para criar passarinho”.

Antes de qualquer coisa, é preciso motivar, provocar a criança e o

jovem, por meio de leituras, discussões e interpretações dos mais variados

textos literários poéticos. Além disso, levá-los a experimentar sentimentos,

utilizando também imagens, músicas, vídeos, clipes e outras linguagens

poéticas. Essas são algumas formas de tocá-los, prepará-los e encorajá-los

para a travessia da escrita poética.

As atividades em que esteve pautado o presente trabalho tiveram por

objetivo despertar no aluno a motivação, a curiosidade, a sensibilidade e o

prazer por novas leituras e descobertas do universo interior e exterior.

A dinâmica das atividades desenvolvidas no Projeto permitiu que os

laços de confiança fossem construídos na interação com as pessoas

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envolvidas no processo e, a cada encontro, com as atividades de imaginação,

criatividade e sensibilização com textos poéticos, mais se revelaram, na exata

proporção em que se aceitavam e se ajudavam, pela confiança que

aprenderam a depositar em si mesmos e nos outros.

É imprescindível que, após o término de cada vivência, as crianças e os

jovens possam ter suas vozes ouvidas na leitura de seus textos, e terem suas

produções expostas de alguma forma. Esse procedimento foi realizado por nós.

Assim, pela linguagem poética, é possível relacionar, resgatar o mundo

vivido e suas memórias, transformando as vivências queridas ou sofridas em

possibilidades de poder ser, de vir a ser, ou de já estar sendo um ser humano

mais feliz, mais autônomo, sujeito de sua história, valorizado e representado

pela voz que sai do seu poema.

Ao término deste trabalho, resta-nos pouco a acrescentar ao que, de

maneira simples, mas profundamente poética e verdadeira, as crianças e os

jovens que dele participaram o expressaram.

O desejo é que esta modesta pesquisa possa servir de fagulha para a

realização de muitas outras; que ela sirva de inspiração de novas aventuras e

travessias de linguagem e de vida; de inspiração para o trabalho de colegas

que, assim como esta pesquisadora, acreditam na Educação como forma

libertadora e transformadora da vida das crianças, dos jovens e de nós

mesmos.

Por derradeiro, que esta pesquisa seja um exemplo vivo de que o

universo poético pode ser o grande responsável pelo resgate da humanidade

fragmentada e perdida nos escombros da modernidade.

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ANEXO 01

CARTA AOS PAIS

Americana, 18 de fevereiro de 2014.

Prezado pai e prezada mãe,

Eu sou a professora Rebecca, trabalhei no Ciep São Jerônimo, logo que ele foi inaugurado (1991), permanecendo nele como professora de Português, durante 10 anos.

Atualmente, sou professora de uma faculdade daqui da nossa região, e acabei revendo muitos alunos e alunas para quem dei aula no CIEP. Quanta alegria! Também dou aula, na faculdade, para várias pessoas que moram no bairro.

Em 2013, realizei um trabalho com seu(sua) filho(a), com produção de texto poético, para o curso de Mestrado que faço no UNISAL, em Americana.

As crianças escreveram inúmeros poemas, lemos bastante poesia, conversamos muito sobre família, as lembranças que temos das pessoas a quem amamos, os amigos... Tiramos algumas fotos: lendo e escrevendo textos, reunidos com os(as) colegas de classe, por exemplo. Quanta coisa bela!

Gostaria muito de poder colocar essas imagens no meu trabalho de Mestrado, mas só poderei fazê-lo se você(s) me permitir(rem). Por isso, junto a esta cartinha, envio um “Termo de autorização de imagem”, na esperança de poder contar com sua ajuda, assinando-o.

Caso deseje conversar comigo, tirar alguma possível dúvida, ver as fotos, etc, estarei à disposição de você(s) no CIEP, na sexta-feira, 21/02/14, a partir das 19h, até as 21h.

Se achar que não há necessidade de conversarmos, peço que, gentilmente, assine o “Termo” e entregue a seu(sua) filho(a) para trazer no Ciep na segunda-feira, dia 24/02. Eu mesma buscarei.

Desde já, agradeço a gentileza e colaboração, e coloco-me à sua inteira disposição.

Muito obrigada! Um abraço, Profa. Rebecca

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ANEXO 02

TERMO DE AUTORIZAÇÃO DE IMAGEM

Eu, ______________________________________________________(nome),

__________________(nacionalidade), _______________________(profissão),

portador(a) da Cédula de Identidade (RG) nº________________________,

inscrito(a) no CPF sob nº___________________________________, residente

à Rua/Av._____________________________________________, nº_______,

na cidade de _____________________________/SP, AUTORIZO o uso da

imagem do(a) menor______________________________________________,

para ser utilizada na Dissertação de Mestrado de Maria José Rebecca

Busnardo, sob o título “Tecendo a vida nos fios da poesia”, realizada no Centro

Universitário UNISAL , Campus Maria Auxiliadora, Americana, SP.

Americana,____ de_____________________de_______

_______________________________________

Assinatura do(a) responsável

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APÊNDICE

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Memorial

Por onde começar? Quais sentimentos e lembranças selecionar?

Talvez a seleção se dê naturalmente, obedecendo a critérios próprios de

importância.

Busco primeiro os sentimentos e, assim fazendo, as lembranças junto

deles.

Nasci menina simples, quase pobre, a terceira de dois filhos homens, na

pequena cidade de Brotas.

Mãe costurava para fora, cuidava da casa, enrolava cabelo e tirava

sobrancelhas das vizinhas e primas, em casa.

Eu andava descalça, brincava de casinha com a cachorrinha Zazá,

colhia flores no terreno baldio, próximo de casa e, principalmente, brincava de

professora.

Certa vez, devia ter oito ou nove anos ( ah! A memória...), destruí a

plantação de milho de minha mãe, “corrigindo” meus indisciplinados “alunos”,

cujos “cabelinhos loiros” apenas despontavam nas espigas do quintal.

Eu era uma aluna exemplar, para os padrões da época, início da década

de 70. Era muito estudiosa (referência de meu irmão do meio, que norteou

quase toda a minha vida). Adorava ler! Lembro-me de que a biblioteca da

cidade ficava na praça em frente à escola onde eu estudava.

Fiz minha carteirinha, mas não pude desfrutar por muito tempo daquele

mundo mágico. Mudamo-nos para Americana, em busca de “estudo para os

filhos”: meus pais.

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Meu irmão do meio, cinco anos mais velho que eu, que viera antes de

nós, vivendo na casa de uma irmã de minha mãe, matriculou-me na escola

mais bem conceituada e, por conseguinte, mais concorrida da cidade. Deixou-

me, no primeiro dia de aula, às portas da imensa escola e foi trabalhar. Não me

lembro de como me acomodei numa das cadeiras daquele infinito anfiteatro,

para os meus olhos de menina assustada e só. Eu e mais centenas de

crianças, alinhadamente, silenciosamente esperando os comandos da diretora.

A única coisa de que me recordo é que não fui chamada. Meu nome não

constava em nenhuma 5ª série, embora houvesse várias.

Tinha onze anos e estava só. Desesperadamente perdida. Mandaram-

me voltar para casa e que viesse alguém da família para ver o que poderia ser

feito. Fui embora a pé, naquele que me pareceu o mais longo caminho em

busca de proteção, na companhia de um guarda-chuva que me escondia do sol

e dos olhares curiosos das pessoas que ouviam meus soluços. O pano negro

sob o qual me aninhei.

(...)

Gostava das aulas de Português, especialmente de ler textos poéticos.

Nunca tive muita intimidade com números e cálculos.

“A pata nada. Pata, pa. Nada, na.”

Não sei bem por que, mas trago em minha memória um poema que li

pela primeira vez na 5ª série. Aquilo era de uma pungência que partia meu

coração de menina. De uma tristeza familiar, de identidade mesmo. De Manuel

Bandeira.

Meninos carvoeiros

Os meninos carvoeiros

Passam a caminho da cidade.

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— Eh, carvoero!

E vão tocando os animais com um relho enorme.

Os burros são magrinhos e velhos.

Cada um leva seis sacos de carvão de lenha.

A aniagem é toda remendada.

Os carvões caem.

(Pela boca da noite vem uma velhinha que os recolhe, dobrando-se com um

gemido.)

— Eh, carvoero!

Só mesmo estas crianças raquíticas

Vão bem com estes burrinhos descadeirados.

A madrugada ingênua parece feita para eles . . .

Pequenina, ingênua miséria!

Adoráveis carvoeirinhos que trabalhais como se brincásseis!

—Eh, carvoero!

Quando voltam, vêm mordendo num pão encarvoado,

Encarapitados nas alimárias,

Apostando corrida,

Dançando, bamboleando nas cangalhas como espantalhos desamparados.

(...)

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Participei, certa feita, de um festival de músicas francesas na escola.

São vagas memórias, mas até hoje tenho verdadeiro fascínio pela cultura

francesa. Sua musicalidade idiomática me transporta para outras eras,

remotas, como vestígios nostálgicos de lugares, cheiros e sentimentos que

perdi, sem ter, ao menos, vivido.

Butterfly

Tu me dis loin des yeux, loin du cœur

Tu me dis qu'on oublie le meilleur

Malgré les horizons,je sais qu'elle m'aime encore

Cette fille que j'avais surnommée:

(Refrain)

Butterfly, my Butterfly

Dans un mois je reviendrais

Butterfly, my Butterfly

Près de toi je resterais

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L'océan c'est petit, tout petit

Pour deux cœurs où l'amour a grandi

Malgré ce que tu dist, tu vois qu'elle m'aime encore

Cette fille que j'avais enlacée

(Au Refrain)

Notre amour est si grand, oui si grand

Que le ciel y tiendrait tout dedans

Malgré ce que tu dis,

Je sais qu'elle m'aime encore

Cette fille que j'avais embrassée

Meu irmão mais velho.

Meu irmão do meio.

Quando tinha catorze anos, resolvi fazer teatro. Seguia os passos de

meu irmão do meio, minha grande referência. Fiz cursos, representei, viajei

com o grupo, fiz e perdi amigos, talvez tenha me perdido...

(...)

Lia e escrevia muito. Acabava me destacando na escola.

Durante uma aula de redação (ou literatura, não me recordo, já que era

o mesmo querido professor), ele, cuja voz nitidamente ouço em meu coração,

perguntou-me se eu gostaria de trabalhar, pois havia uma vaga na biblioteca

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municipal e ele, como diretor do Departamento de Cultura, não conseguia

pensar em outra pessoa para pôr lá, que não fosse eu. Como foi bom ouvir

aquilo!

Estava terminando o ensino médio e era FELIZ!

(...)

O primeiro amor: fui passar as férias na casa da avó, em Brotas,

apaixonei-me e não queria mais voltar. Meu irmão do meio teve de ir me

buscar. Guardei durante 01 ano o chiclete que o Amor me deu no cinema.

Comecei a trabalhar na biblioteca municipal e passei no vestibular. Não

havia muitas opções: Unicamp, PUCC ou Unimep (que nem cogitei). O curso?

Claro que era Letras. No entanto, na Unicamp só havia Linguística e eu nem

sabia direito o que significava, mas resolvi fazer assim mesmo. Passei, mas

fiquei na PUCC por alguns motivos: primeiro, o curso desejado; segundo, eu

tinha que trabalhar e estava no melhor emprego do mundo! Detalhe mais

importante: não fui fazer a segunda fase da Unicamp porque fiquei com medo

de não passar. Covardia.

Quede Pai? Mãe?

Lembro-me de minha mãe sempre trabalhando. O pai, idem (de onde

vem mesmo essa minha prioridade de trabalho vinculado aos estudos?).

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Ela era merendeira de escola; ele, motorista de caminhão da prefeitura.

Adorava passarinhos. Gosto trazido da infância em Brotas. Menino solto na

vastidão das pastagens, comendo frutas que se ofereciam nos pés; pisando no

estrume do gado, caçando pardais (“são praga”!) para comer ali mesmo no

mato, tão grotesco, mas estupidamente delicioso. Outros, sabiás, canarinhos,

pássaros pretos, ele os recolhia em gaiolas e os levava para casa. Minha casa

era cheia de pequenas prisões habitadas pelos pequeninos seres mais bem

tratados do planeta. Ele tinha licença do IBAMA.

Era um exímio nadador quando jovem, com fôlego de gigante (no fim da

vida, precisava correr com ele para o hospital, com aparelho de oxigênio e

tudo, devido à falta de ar. Cigarros, dos quais ele não conseguia se libertar).

Contava sempre uma história que me enchia de orgulho, ao mesmo

tempo que me dava uma sensação de que ele estava falando de outra pessoa.

Uma história muito antiga...

Foram chamá-lo em sua casa, após uma forte tempestade que arrancou

árvores, derrubou cercas, fez o rio transbordar. Um menino fora arrastado pela

correnteza do rio. Lá se foi ele, mergulhou, procurou, procurou até encontrar o

corpo do menino, preso entre galhos, no fundo das águas barrentas, de olhos

abertos.

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Dizia que nunca mais se esquecera da imagem do corpo do menino

afogado que ele, sem ter coragem de se recusar, tivera de resgatar.

Outra história que nos contava, com a cumplicidade de minha mãe, é

claro, e com zanga de quem duvidasse, era a seguinte: numa noite de lua

cheia, quando voltava do sítio da namorada (minha mãe), no meio de um

pasto, seu cavalo empacou. Ele, que vinha cochilando sobre o cavalo (o animal

sabia de cor o caminho do amor!), assustou-se. Foi quando avistou a figura de

um imenso animal parecido com um cachorro (mas não era!), com um bezerro

(mas não era!), que passou a centímetros do cavalo. Era um lobisomem! Um

frio percorreu-lhe o corpo, mas, tanto o bicho (não o cavalo) quanto ele

seguiram seus caminhos. Em direções opostas, claro.

A mãe.

Estou buscando, há minutos, as minhas memórias sobre ela. Difícil.

Meu irmão do meio era gêmeo com uma menina. Ela nasceu morta; ele,

por nada que não morreu. Minha mãe foi “desenganada” pelos médicos. Meu

pai não arredou pé do hospital enquanto ela corria risco de morte.

Durante um ano, o bebê só chorava e quase não comia. Davam leite do

peito, papinha de arroz, benziam, davam banho de picão e nada! O menino não

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arribava. Diz ele, hoje, que ainda deve ter seu vômito grudado por entre os

tijolos do chão da casa.

Mãe custou a se recuperar.

Eu vim depois disso tudo. Diz ela que meu pai, em dez minutos, foi

buscar um carro para levá-la ao hospital, quando dei sinal de nascimento. Ele

não saiu de seu lado, enquanto não nasci. Depois, saiu contando para todo o

mundo que era uma menina! Como estava feliz, ele. Hoje me pergunto: como

terá sido essa gravidez, depois de tudo o que ela passou? Quanto medo terá

sentido?

Ela gostava, e gosta, da lua. Diz que se lembra de quando namorava o

meu pai, lá no sítio.

Não havia energia elétrica, portanto, era a lua que reinava soberana e,

em colóquio com as estrelas, iluminava o rio, a estrada de terra batida, a mata

e, especialmente, o coração apaixonado de minha mãe. Meu pai foi o único

amor da vida dela. Quanto aos filhos, o primeiro lugar era de meu pai.

O melhor lugar era sempre dele; o maior bife era dele. Dele também era

a escolha do programa. Não sei qual era o nosso lugar.

(...)

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Conheci meu marido no “Beleléu”, um café que havia no bairro Carioba,

em Americana, no início da década de 80.

Chamou-me a atenção a maneira como ele me olhava. Parafraseando

Machado de Assis, com “olhos de ressaca”, pois pareciam querer me arrebatar

para dentro dele. Era a “noite do chapéu” e, literalmente, eu tomei conta da

cabeça dele.

Demorei meses, até que me rendi aos apelos da delicadeza do

tratamento, ao jeito carinhoso com que me tratava, à atenção que dava aos

meus mais insignificantes desejos. Cedi à sensualidade da pele queimada de

sol, revelando músculos, pelos e cheiros.

Fascinação

(Com a Elis Regina)

Os sonhos mais lindos sonhei. De quimeras mil um castelo ergui E no teu olhar, tonto de emoção,

Com sofreguidão mil venturas previ.

O teu corpo é luz, sedução, Poema divino cheio de esplendor.

Teu sorriso prende, inebria e entontece. És fascinação, amor.

Os sonhos mais lindos sonhei. De quimeras mil um castelo ergui E no teu olhar, tonto de emoção,

Com sofreguidão mil venturas previ.

O teu corpo é luz, sedução, Poema divino cheio de esplendor.

Teu sorriso prende, inebria e entontece. És fascinação, amor.

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A importância que me devotava conquistou-me definitivamente.

Namoramos durante quatro anos e meio, tempo em que eu mudei de emprego

(fui trabalhar como secretária de uma indústria têxtil), terminei a faculdade de

Letras e passei no concurso de professora de Português do Estado.

Janeiro de 1986: nosso casamento.

Eu não queria tirar o vestido de noiva. Era tão pouco tempo com ele, e

ele era tão lindo... Queria prolongar a sensação de ser princesa pela primeira

vez...

Em 1987 meu filho nasceu. A mãe em mim se apossou de todas as

outras minhas faces e me fez sentir o quão incompleta eu era.

Meu filho deu o sentido, o norte/sul e a certeza de minha vinda ao

mundo. Sentia-me plena, absurdamente feliz. Amor transbordava de meus

olhos, boca e alma.

Lembro-me, também, de que o amor de avô e neto perfumava a casa e

ecoava alegria, e isso foi até o fim do avô.

Avôhai

Zé Ramalho

Um velho cruza a soleira De botas longas, de barbas longas

De ouro o brilho do seu colar Na laje fria onde quarava

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Sua camisa e seu alforje De caçador...

Oh! Meu velho e Invisível Avôhai!

Oh! Meu velho e Indivisível Avôhai!

Neblina turva e brilhante Em meu cérebro coágulos de sol

Amanita matutina E que transparente cortina

Ao meu redor...

Se eu disser Que é meio sabido

Você diz que é meio pior Mas e pior do que planeta Quando perde o girassol...

É o terço de brilhante Nos dedos de minha avó

E nunca mais eu tive medo Da porteira

Nem também da companheira Que nunca dormia só...

Avôhai! Avôhai! Avôhai!

O brejo cruza a poeira De fato existe

Um tom mais leve Na palidez desse pessoal

Pares de olhos tão profundos Que amargam as pessoas

Que fitar...

Mas que bebem sua vida Sua alma na altura que mandar

São os olhos, são as asas Cabelos de Avôhai...

Na pedra de turmalina E no terreiro da usina

Eu me criei Voava de madrugada

E na cratera condenada

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Eu me calei E se eu calei foi de tristeza

Você cala por calar Mas e calado vai ficando

Só fala quando eu mandar...

Rebuscando a consciência Com medo de viajar

Até o meio da cabeça do cometa Girando na carrapeta No jogo de improvisar

Entrecortando Eu sigo dentro a linha reta Eu tenho a palavra certa

Prá doutor não reclamar...

Avôhai! Avôhai! Avôhai! Avôhai!

Preciso de um capítulo à parte.

Três anos depois, minha filha veio ao mundo. Era uma menina... e

agora? Eu sabia lidar perfeitamente com o sexo oposto, mas com ela, como

seria? Como EU seria? Como daria a ela aquilo que achava não ter em mim?

Tive uma profunda depressão que quase me levou... Não comia, não

dormia, só chorava. “Tive uma febre terçã”. A vida não tinha mais sentido.

Paradoxalmente, pensava: Será que vai secar o meu leite e não terei como

alimentá-la? Meu Deus, que sentimento de culpa!

Uma Canção Desnaturada

Chico Buarque

Por que creceste, curuminha Assim depressa, e estabanada

Saíste maquiada Dentro do meu vestido

Se fosse permitido

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Eu revertia o tempo Para viver a tempo

De poder

Te ver as pernas bambas, curuminha Batendo com a moleira

Te emporcalhando inteira E eu te negar meu colo

Recuperar as noites, curuminha Que atravessei em claro

Ignorar teu choro E só cuidar de mim

Deixar-te arder em febre, curuminha Cinquenta graus, tossir, bater o queixo

Vestir-te com desleixo Tratar uma ama-seca

Quebrar tua boneca, curuminha Raspar os teus cabelos

E ir te exibindo pelos Botequins

Tornar azeite o leite Do peito que mirraste

No chão que engatinhaste, salpicar Mil cacos de vidro

Pelo cordão perdido Te recolher pra sempre

À escuridão do ventre, curuminha De onde não deverias

Nunca ter saído

Fiz tratamento, tomei remédio, me benzeram, fizeram simpatia, padre

benzeu minha casa. Aos poucos, fui me fortalecendo (“aquilo que não nos

mata, nos fortalece!”). O que ficou de meses foi um quase total esquecimento.

Hoje, ela é minha companheira, minha menina, meu anjo... Tento dar a

ela tudo o que tive de aprender a construir em mim.

O Leãozinho

Caetano Veloso

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Gosto muito de te ver, leãozinho Caminhando sob o sol

Gosto muito de você, leãozinho

Para desentristecer, leãozinho O meu coração tão só

Basta eu encontrar você no caminho

Um filhote de leão raio da manhã; Arrastando o meu olhar como um ímã... O meu coração é o sol, pai de toda cor; Quando ele lhe doura a pele ao léu...

Gosto de te ver ao sol, leãozinho De te ver entrar no mar

Tua pele, tua luz, tua juba

Gosto de ficar ao sol, leãozinho De molhar minha juba

De estar perto de você e entrar numa.

Outro capítulo à parte.

Procuro estar presente sempre na vida dos dois e morro por eles: Bruno

e Camila.

Meu marido e companheiro ainda está ao meu lado, após vinte e sete

anos de casados, e me apóia em tudo o que julga ser importante para mim. Só

reclama que trabalho muito. Obrigada, querido.

Céu de Santo Amaro

Caetano Veloso

Olho para o céu Tantas estrelas dizendo da imensidão

Do universo em nós A força desse amor

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Nos invadiu... Com ela veio a paz, toda beleza de sentir

Que para sempre uma estrela vai dizer Simplesmente amo você...

Meu amor... Vou lhe dizer Quero você

Com a alegria de um pássaro Em busca de outro verão

Na noite do sertão Meu coração só quer bater por ti

Eu me coloco em tuas mãos Para sentir todo o carinho que sonhei

Nós somos rainha e rei

Na noite do sertão Meu coração só quer bater por ti

Eu me coloco em tuas mãos Para sentir todo o carinho que sonhei

Nós somos rainha e rei

Olho para o céu Tantas estrelas dizendo da imensidão

Do universo em nós A força desse amor nos invadiu...

Então... Veio a certeza de amar você...

Meu pai já se foi. Saudade, pai...

Minha mãe sobreviveu à morte de meu pai. Hoje cuida do neto mais

velho, que quase morreu recentemente.

Meu irmão mais velho enfrenta seus demônios familiares. Sinto muito.

Meu irmão do meio encontrou sua cara metade e está feliz. Escreveu um

livro lindo... É a pessoa mais altruísta e apegada à família que conheço.

Obrigada!

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Quanto a mim, passei no concurso do Estado para professora de Língua

Portuguesa, tão logo terminei o curso de Letras, na PUCCAMP. Trabalhei dez

anos em algumas escolas da cidade. Também prestei concurso na prefeitura

de Americana e, em 1991, iniciei minha carreira na rede municipal como

professora de Língua Portuguesa, mais precisamente no CIEP São Jerônimo –

Prof. Anísio Spínola Teixeira -, onde permaneci por dez anos. Foi lá que

aprendi a ser educadora. Também foi para lá que voltei para fazer minha

pesquisa de Mestrado.

Na época em que trabalhava no CIEP, organizei e participei de inúmeros

projetos com alunos. Era gratificante perceber que, às vezes, o mínimo para

nós era demasiado importante para eles. Por exemplo, levá-los a uma chácara

(emprestada de algum amigo) e, numa minúscula piscina infantil, vê-los

dividirem espaço com a classe toda. Uma água barrenta que chegava apenas

aos joelhos, e eles tinham de ficar em pé. Mas era uma piscina de verdade!

A dificuldade era geral, com algumas exceções. Não se alimentavam

direito, a escola fornecia alimentação, material escolar. Muitos iam estudar

descalços, quando muito de chinelos de dedo (não era moda naqueles idos!).

Um dos maiores problemas que tínhamos de enfrentar era a falta de noção do

que fosse um ambiente escolar. Também havia a grave questão familiar: a total

desestrutura, os abusos que aconteciam, os abandonos, o tráfico (que levou

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muitos de meus alunos), a ausência de afeto. As ausências. Eram muitos

desafios.

Nesta época, comecei a fazer o Curso de Pedagogia, influenciada por

uma antiga amiga do Ensino Médio. O que aprendi me ajudou a olhar com

outros olhos aquela situação e vislumbrar possibilidades, até então

desconhecidas.

Terminada a Pedagogia, iniciei o curso de Direito, na UNIMEP. Logo

depois, participei de processo seletivo e comecei a trabalhar no Colégio

Salesiano Dom Bosco de Americana, como professora de Literatura, no Ensino

Médio. Acabei ampliando a carga horária e a função: professora de Língua

Portuguesa e Produção de Textos do Ensino Fundamental II. Foram onze anos

de vivência salesiana, que trouxeram luzes a momentos obscuros, pessoal e

profissional.

Já tendo sido aprovada no Exame da Ordem (dos Advogados) e

exercendo a profissão, recebi um convite para dar aula de Direito no Ensino

Superior, em 2005. Seria sonho? Era o que parecia...

Assim, originou-se uma trajetória que, espero, esteja longe de um termo.

Continuo no Ensino Superior, como professora e coordenadora do curso

de Pedagogia.

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Após ter feito três graduações (Letras, Pedagogia e Direito, nessa

ordem) e três pós-graduações (Didática; Direito e Processo do Trabalho;

Educação Especial e Inclusiva), finalmente comecei a realizar o meu grande

sonho acadêmico: fazer o mestrado!

Houve algumas investiduras anteriores, na Unicamp, mas não dei cabo

de nenhuma delas. Acho que aquela história do curso de Linguística,

parafraseando Clarice Lispector, “é uma história de amor sem ponto final,

retrato sem cor”. Cheguei a colocar meu Projeto de Pesquisa no envelope, mas

não o levei ao correio.

Por outro lado, acabei encontrando no UNISAL o que buscava (talvez

ainda mais) nos amigos que conheci, nos que reencontrei, nos livros que me

foram indicados (e outros por escolha pessoal), mas, sobretudo, nos mestres

que me possibilitaram mais esta travessia. Em especial ao mestre Severino

Antônio, que já tinha passagem pela família, embora nem suspeitasse (meu

irmão do meio, novamente!). Grande referência em minha vida acadêmica, que

verbalizou muitas de minhas práticas, antes realizadas por muita intuição e

alguma sensibilidade.

Severino Antônio foi quem me fez ver a “boniteza” contida no trabalho de

anos, antes de se transformar nesta pesquisa; foi quem me apresentou a

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outros grandes mestres, que me revelaram que eu estava na margem certa: a

terceira margem do rio...

Hoje, levo a certeza de ter feito a opção correta: nasci para a educação

e pretendo continuar neste caminho. Quem sabe, para o Doutorado, retome

trilhas meio esquecidas, repletas de floradas perfumadas e borboletas

amarelas, aguardando para serem resgatadas.