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Trabalho de conclusão do curso de Geografia no Departamento de Geografia da Universidade Federal de Minas Gerais, sob orientação da professora Dra. Virgínia de Lima Palhares, para obtenção do título de Bacharel em Geografia. Resumo: Ao viajar, nos relacionamos com o espaço. Sentimos e percebemos, pois essa é uma necessidade básica para se existir no mundo: ser no tempo e no espaço. Podemos, portanto, compreender quais sentimentos pelo espaço definem a experiência da viagem através dos significados essenciais anunciados pelo viajante ao relatar sua experiência; e a partir disso, identificar quais categorias geográficas (e como) compreendem e expressam os significados essenciais estabelecidos entre o viajante e o espaço, durante a viagem.

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  • Universidade Federal de Minas Gerais

    Instituto de Geocincias

    Departamento de Geografia

    TECENDO GEOGRAFIAS EM VIAGENS

    Aline Lcia Nogueira Medeiros

    Orientadora: Virgnia de Lima Palhares

    Belo Horizonte, 2014

  • Universidade Federal de Minas Gerias

    Instituto de Geocincias

    Departamento de Geografia

    TECENDO GEOGRAFIAS EM VIAGENS

    Trabalho de Concluso do Curso

    Aline Lcia Nogueira Medeiros

    Trabalho de concluso do curso de

    Geografia no Departamento de

    Geografia da Universidade Federal

    de Minas Gerais, sob orientao da

    professora Dra. Virgnia de Lima

    Palhares, para obteno do ttulo de

    Bacharel em Geografia.

    Belo Horizonte, 2014

  • FOLHA DE APROVAO

    Tecendo geografias em viagens

    por

    Aline Lcia Nogueira Medeiros

    Trabalho de concluso do curso de Geografia no Departamento de Geografia da Universidade

    Federal de Minas Gerais, sob orientao da professora Dra. Virgnia de Lima Palhares, para

    obteno do ttulo de Bacharel em Geografia.

    BANCA EXAMINADORA

    ________________________________________________________

    Profa. Dra. Virgnia de Lima Palhares / Orientadora IGC/UFMG

    _________________________________________________________

    Profa. Dra. Maria Luiza Grossi Arajo IGC/UFMG

    __________________________________________________________

    Profa. Dra. Mariana de Oliveira Lacerda IGC/UFMG

  • AGRADECIMENTOS

    Sou sinceramente grata s pessoas que estiveram comigo at aqui. to fcil se perder

    na imensido e na incerteza do mundo. Vocs so minhas ncoras nessa realidade que

    compartilhamos. Sem vocs, eu no sei onde eu estaria.

    Agradeo a minha famlia pelo lar, doce lar. Nunca entendi o que era isso, com todos os

    seus pesares, at estar longe. Entendo agora o conforto simples e delicioso de se estar

    em casa.

    Agradeo s minhas queridas amigas que estiveram sempre comigo, seja aqui ou na

    Frana (Carol, voc nosso orgulho, menina!), e com as quais eu cresci; em tantas

    formas. Esse trabalho tambm s foi possvel por eu ter me conhecido com vocs.

    Vocs so minhas paixes constantes.

    Agradeo a minha orientadora, maravilhosa, Virgnia: sua dedicao a nossa geografia

    humanista sempre admirvel. Sua ateno e pacincia me fizeram chegar at aqui e

    por isso eu sou realmente grata.

    Agradeo aos meus colegas da geografia, pelos momentos inesquecveis e

    conhecimentos e informaes menos memorveis. Em especial: Fernanda, por sempre

    me dar corda e impulsionar para frente; Andr, por todos aqueles seriados e filmes;

    Alusio, por me doar suas energias sempre que eu precisava; Faf, pela disposio em

    me aguentar; e talo, pela companhia sempre agradvel. Ao meu grupo especial: Laila,

    mesmo com todo o estresse de final de semestre, ter voc no nosso grupo era a garantia

    de uma fora certa e sempre necessria. Juliana, sua linda, sempre vou te admirar. Sua

    trajetria me orgulha e ilumina. E, finalmente, por cada uma e todas as incontveis

    risadas compartilhadas nas fronteiras da nossa realidade imaginria, marujo, Marcelo,

    eu sou muitssimo agradecida. Agora s tente entender isso.

  • RESUMO

    Ao viajar, nos relacionamos com o espao. Sentimos e percebemos, pois essa uma

    necessidade bsica para se existir no mundo: ser no tempo e no espao. Podemos,

    portanto, compreender quais sentimentos pelo espao definem a experincia da viagem

    atravs dos significados essenciais anunciados pelo viajante ao relatar sua experincia; e

    a partir disso, identificar quais categorias geogrficas (e como) compreendem e

    expressam os significados essenciais estabelecidos entre o viajante e o espao, durante a

    viagem. Objetivos que me proponho a perseguir aqui. Para tanto, busco primeiramente

    apoio na filosofia, atravs de Husserl e Merleau-Ponty, para compreender o sujeito no

    mundo em termos dos significados essenciais, como ele o percebe e capaz de apreend-

    lo. Entender o ser no mundo permite contemplar os viajantes no que eles so e no que

    eles esto significando a viagem. Dessa maneira, me volto para o prprio ato de viajar,

    e para as peculiaridades de estar em contato com um espao que no aquele do cotidiano.

    Apresento cinco relatos de viagens, que variaram de seis meses a um ano, incluindo o

    meu, que tambm foram compostos por inmeras viagens menores, de alguns dias.

    possvel interpretar as relaes dos viajantes com o espao em ambas as situaes. Cada

    relato de viagem evidenciou aspectos singulares da experincia, e inclusive pode ser

    definido a partir de uma categoria essencial, mas possvel notar aspectos essenciais,

    associados viagem enquanto vida especializada e a uma reflexo forada, que

    compreende: um olhar forado para o diferente; pequenas aventuras; a conscincia da

    nossa vulnerabilidade e da importncia de momentos de proteo. A valorizao da

    experincia pela cincia est na ordem do dia. Esse trabalho, de cunho geogrfico, que se

    constitui atravs do entrelaamento dos saberes da fenomenologia, da geografia

    humanista e da experincia do viajante, se insere nesse contexto. Na primeira parte,

    Agulha e linha, estabeleo as bases que sustentam e possibilitam esse trabalho. No

    discuto, porm, a viagem, visto que busco me voltar coisa mesma, vivida; que est

    presente na segunda parte, Viajar, na qual apresento o que vivi, ouvi e li sobre as viagens,

    os relatos pessoais com os quais estou em contato; e na terceira parte, Tecendo geografias

    em viagens, escrevo e reflito sobre a relao entre os sentimentos e impresses os

    significados do espao com seus recortes categoriais geogrficos, numa tentativa de

    expressar e compreender essas relaes entre os viajantes e os recortes espaciais que

    definem melhor suas vivncias na viagem.

    Palavras-chave: viagem, fenomenologia, categorias geogrficas, experincia.

  • ABSTRACT

    When traveling, we relate to the space, feel and perceive, as this is a basic need to exist

    in the world: being in time and space. We can therefore understand what feelings through

    space define the experience of the journey through the essential meanings announced by

    the traveler when recounting his experience; and from this, identify which geographic

    (and how) categories comprise and express the essential meaning established between the

    traveler and space while traveling. Goals that I propose to pursue here. To do so, first I

    seek support in philosophy, through Husserl and Merleau-Ponty, to understand the subject

    in the world in terms of essential significance, as he perceives it and is able to grasp it.

    Understand being in the world can grasp travelers as they are (consciousness of the

    world), and they are meaning - the journey. Thus, I turn to the act of traveling itself, and

    the peculiarities of this act to be in contact with a space that is not that every day. Five

    travel narratives, ranging from six months to one year, including mine, presented.

    However, they also were composed of numerous smaller trips, days to weeks. It is

    possible to interpret the relations of space travelers in both situations. Each travelogue

    highlighted unique aspects of the experience, even can be defined as an essential category,

    but it is also possible to see key aspects associated with the trip as a specialized life; a

    forced reflection, comprising a forced look different; little adventures; awareness of our

    vulnerability and the importance of moments of protection. The appreciation of the

    experience of science is on the agenda. This work, geographic nature, which is through

    the interweaving of knowledge of phenomenology, humanistic geography and traveler

    experience, falls within that context. In the first part, Needle and thread, I establish the

    foundations that support and enable this work. I do not dispute, however, the journey, as

    I try to get me back to the same thing, lived; that is present in the second part, Traveling,

    in which I present what I experienced, heard and read about travel, personal accounts with

    whom I am in contact to; and in the third part, Weaving geographies in travel, write and

    reflect on the relationship between feelings and impressions - the meanings - the space

    with your clippings geographic categories, an attempt to express and understand these

    relationships between travelers and spatial slices that define better their experiences on

    the trip.

    Key words: travel, phenomenology, geographic categories, experience.

  • SUMRIO

    SUMRIO ....................................................................................................................... 7

    PRIMEIRA PARTE Agulha e linha ........................................................................ 11

    Do contexto .................................................................................................................... 12

    Do trabalho ..................................................................................................................... 13

    Da cincia ou como fazer cincia atravs da compreenso de experincias individuais 19

    Singular, universal: significados essenciais ........................................................... 21

    Sujeitos, viajantes ................................................................................................... 22

    Ser no tempo e no espao: recortes geogrficos ............................................................. 23

    Pontes para a viagem ...................................................................................................... 25

    SEGUNDA PARTE Viajar ....................................................................................... 28

    Eu, viajante ..................................................................................................................... 29

    Fabrcio, viajante ............................................................................................................ 44

    Fernanda, viajante ........................................................................................................... 52

    Andr, viajante................................................................................................................ 79

    Juliana, viajante ............................................................................................................ 101

    TERCEIRA PARTE Tecendo geografia em viagens ........................................... 115

    Das categorias geogrficas ........................................................................................... 116

    Dos relatos de viajantes ................................................................................................ 133

    Tecidos: geografias e viagens ....................................................................................... 138

    Do incio ou algumas concluses de no-finais ........................................................... 139

    REFERNCIAS ......................................................................................................... 141

  • INDICE DE FIGURAS

    Figura 1- Manh ensolarada de inverno em Guyancourt, saindo da casa das amigas

    brasileiras, Frana ........................................................................................................... 40

    Figura 2 - Jardim de um castelo, em Rambouillet, prximo cidade onde eu morava,

    Frana ............................................................................................................................. 41

    Figura 3 - Caminhando por Londres, em uma tarde chuvosa, Inglaterra ....................... 41

    Figura 4 - Brumas em Veneza, Itlia .............................................................................. 42

    Figura 5 - Bancos voltados para gua, em Veneza, Itlia. nsia por esse lugar de espera.

    ........................................................................................................................................ 42

    Figura 6 - Escada em processo de eroso nas runas de Roma, Itlia ............................ 43

    Figura 7 - Chuva e sol; poas d'gua e reflexos no cho de pedras, em Roma, Itlia .... 43

    Figura 8 - Caminho utilizado para viagem at a Blgica, para assistir a um festival de

    msica eletrnica ............................................................................................................ 49

    Figura 9 - Cratera de um vulco preenchida por gua, na Islndia ................................ 50

    Figura 10 - Trofus em estdio do Liverpool, em Liverpool, Inglaterra. ....................... 50

    Figura 11 - Abbey Road, rua que aparece na capa do disco de mesmo nome dos Beatles,

    lanado em 1969. ............................................................................................................ 51

    Figura 12 - Eu vestido com a mscara de cabea de cavalo em Springbreak, na Crocia

    ........................................................................................................................................ 51

    Figura 13 - Tronco mgico no lago Maria Laach, prximo a Trier, Alemanha ............. 74

    Figura 14 - Monumento em homenagem s vtimas do holocausto, congelado, em

    Berlim, Alemanha ........................................................................................................... 75

    Figura 15 - Paisagem tpica da Alemanha: encostas verdejantes, vila e centrais nucleares

    ao fundo .......................................................................................................................... 76

    Figura 16 - Piscina pblica que invadimos, a noite, em Trier, Alemanha...................... 76

    Figura 17 - Monte Tartre, Eslovquia ............................................................................ 77

    Figura 18 - Pessoa subindo o Monte Tartre com gales de gua e comida nas costas,

    Eslovquia ...................................................................................................................... 77

    Figura 19 - Eu, Andr e Aline em virada do ano 2012 para 2013, em Paris, Frana. .... 78

    Figura 20 - Dois bonecos de neve na praia, em Brighton, Inglaterra ............................. 78

    Figura 21 - Domingo tarde em Lisboa, Portugal ......................................................... 97

    Figura 22 - Um pouco do que eu vi em Marrakech, Marrocos: um povo simples e

    sereno, simptico e acolhedor ......................................................................................... 98

    Figura 23 - O contraste entre duas culturas em um contexto de desenvolvimento, em

    Marrakech, Marrocos...................................................................................................... 98

    Figura 24 - Pub em runas em Budapeste, Hungria ........................................................ 99

    Figura 25 - Tarde quente em Londres, ao som da voz de uma cantora portuguesa,

    Inglaterra ......................................................................................................................... 99

    Figura 26 - Placa indicativa da Rua da Atalaia, em Lisboa, Portugal .......................... 100

    Figura 27 - Placas e outras lembranas de viagem no meu quarto, Brasil ................... 100

    Figura 28 - Vista da minha casa com famlia portuguesa para o Rio Douro, na parte

    superior, e o jardim japons do Palcio de Cristal, na parte inferior, em Porto, Portugal

    ...................................................................................................................................... 111

  • Figura 29 - Eu vestida com mscara de unicrnio na casa de um amigo brasileiro em

    Porto, Portugal .............................................................................................................. 111

    Figura 30 - Caminhando pelo Muro de Berlim, Alemanha .......................................... 112

    Figura 31 - Exposio sobre imigrantes italianos na Itlia ........................................... 112

    Figura 32 - Aline e eu em jardim do Castelo de Versalhes, Frana ............................. 113

    Figura 33 - Pr do sol na foz do Rio Douro no primeiro dia de sol depois um ms

    horrvel de chuva constante, em Porto, Portugal .......................................................... 113

  • Leitor, se tiveres ocasio, erra o caminho

    Rui Pires Cabral

  • PRIMEIRA PARTE Agulha e linha

  • Do contexto

    Para completar o caminho de minha formao como gegrafa cumpre realizar um

    trabalho final. Esse caminho percorrido nos ltimos anos (comeou em 2009 e no possui

    data de trmino, apenas de concluso de uma fase 2014), foi marcado por diversas

    buscas. Buscas de conhecimento, afinidades e at mesmo de maneiras de expressar

    (minhas) identidades. Comecei pensando em conflitos ambientais, passei para a

    climatologia, recursos hdricos, geoprocessamento, depois geografia urbana, bem rpido.

    E por todo esse percurso no me realizei completamente, seja no quesito afinidades ou no

    quesito identidade. Sempre faltava algo, e o que eu aprendia nunca falava de verdade

    sobre o que eu acreditava, sobre quem eu era no passava por mim todo esse

    conhecimento; parecia passar fora de mim.

    Os sinais do que eu buscava foram aparecendo. Eu sabia que tinha que levar em conta a

    experincia, mas tinha que ser sobre o indivduo. No sobre classes, ou grupos sociais.

    Indivduos, em suas individualidades. Mas como no incorrer em um relativismo

    empirista? Como fazer cincia assim? Conheci a fenomenologia, que me veio como

    soluo a esse impasse.

    Durante o intercmbio, no qual passei um semestre estudando na Universit de Versailles

    Saint-Quentin en Yvelines, na Frana, percebi outro sinal. Esse veio na forma de

    incmodo, no de soluo. Que relao essa que tenho com o espao? Perguntava-me.

    Visitei cidades, monumentos que s tinha visto no cinema e em livros. Senti, pensei e

    conheci tantas coisas. Ainda me incomodava: que relao essa que comporta um

    sentimento to forte, mas que em nada se parece com o que sinto quando estou em casa?

    Nada tem do conforto e da segurana de conhecer tudo que envolve um espao ao ponto

    de poder chamar de meu, meu lar. Ainda assim possvel estar l, porque existe um

    sentimento de segurana e de conforto que vem de outra coisa, que no da certeza do meu

    lar. Que espao esse? Como posso denomin-lo? Ser possvel ser um lugar? Ou no?

    Ao retornar para casa, todas as relaes e sentimentos que desfrutei na viagem se

    tornaram ainda menos entendidas. Pensei no que senti e vivi, e procurei as respostas na

    geografia. Cheguei, por fim, geografia que eu buscava, desde o incio a geografia

    humanista. Conheci o gegrafo Yi-Fu Tuan e sua produo sobre a relao do indivduo

    com o espao, atravs da topofilia e da topofobia. Dizia muito sobre as minhas dvidas

    ao colocar em palavras os sentimentos para com o lar, o lugar. Mas, ainda assim, no

    comportava ou respondia minhas dvidas sobre os espaos da viagem.

  • Do trabalho

    Da surgiu esse trabalho, que sinaliza a concluso de uma fase. Nada melhor do que fazer

    um trabalho justamente em meio ao movimento geogrfico que te define, que fala a voc,

    diretamente.

    O que busco compreender nesse trabalho so aquelas questes que me ocuparam durante

    a viagem que fiz Europa e, especialmente, Frana mas que hoje no se limitam a

    esses locais ou a mim. Quais os significados essenciais que se estabelecem entre o viajante

    e o espao, durante a viagem? Como definir esses significados e quais categorias

    geogrficas os compreendem e explicitam?

    Questes essas que se traduzem nos meus objetivos:

    Compreender os significados essenciais que se estabelecem entre o viajante e o

    espao, durante a viagem.

    Identificar quais categorias geogrficas e como elas compreendem e expressam os

    significados essenciais estabelecidos entre o viajante e o espao, durante a viagem.

    Para alcanar os objetivos propostos, busco primeiramente apoio na filosofia, atravs de

    Husserl e Merleau-Ponty, para compreender o sujeito no mundo em termos dos

    significados essenciais, como ele o percebe e capaz de apreend-lo. Entender o ser no

    mundo permite contemplar os viajantes no que eles so (conscincias de mundo), e no

    que eles esto significando a viagem. Dessa maneira, me volto para o prprio ato de

    viajar, e para as peculiaridades desse ato de estar em contato com um espao que no

    aquele do cotidiano.

    Edmund Husserl (1859-1938) nasceu na Morvia, atual Repblica Tcheca, em uma

    famlia judia liberal caracterizada por sua indiferena religiosa. Estudou astronomia,

    matemtica e, por fim, filosofia, buscando sempre um entendimento mais profundo e

    fundamental do conhecimento.1 Elaborou os princpios da fenomenologia, perspectiva da

    filosofia contempornea que se ocupa da descrio dos fenmenos maneira como eles

    aparecem a ns na experincia do vivido. Para Husserl, sem esclarecer a maneira como

    os fenmenos se do a ns, conscincias vividas, as cincias permanecem cegas s origens

    de seus conhecimentos tcnicos.2

    1

    2

  • teorias fsicas e fisiolgicas das cores no proporcionam nenhuma claridade intuitiva do

    3. Ou seja, nenhuma das explicaes cientficas sobre

    o que a cor consegue descrev-la de maneira a permitir o entendimento do que ela da

    A fenomenologia deveria

    proporcionar um mtodo filosfico que fosse livre por completo de todas as

    pressuposies que pudesse ter aquele que refletisse; descreveria os fenmenos

    4. Para tanto, convm voltar-nos as coisas maneira

    como elas se do a ns, conscincias, em busca de as compreender.

    Em ordem de operar esse retorno, Husserl adverte para a necessidade de se colocar o

    fenmeno entre parnteses, isto , em suspenso suspende-se qualquer afirmao de

    -

    se examinar todos os contedos de conscincia, no para determinar se tais contedos so

    reais ou irreais, imaginrios, etc., mas sim para examin- 5.

    representao da fantasia esto no mesmo p de igualdade; a partir de ambas se pode

    6. A fenomenologia, enquanto

    estudo da forma como os fenmenos se do a ns, conscincias, no diferencia os

    fenmenos percebidos, fantasiados ou lembrados, no sentido de que igualmente possvel

    encontrar os seus sentidos essenciais.

    Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) nasceu na Frana e, a partir da leitura da

    fenomenologia de Husserl, desenvolveu o que seria conhecido como uma ontologia da

    carne (ou do corpo). Sua obra colocou o ser, conscincia, no espao e no tempo, se

    baseando na percepo e no comportamento para entender como os fenmenos se do a

    ns e como interagimos com eles. Para o filsofo, as coisas do mundo no existiam

    separadas do sujeito, como simples objetos neutros. O sujeito s existia numa relao

    7 e que suas qualidades,

    3

    4

    5

    6

    7

  • como aucarado ou viscoso, so apenas duas maneiras de dizer a mesma coisa, que a

    relao do mel com o mundo ou com o sujeito carnal que por ele confrontado. Essas

    de ser ou de se comport 8. Para ele, o sujeito est investido no mundo e o mundo

    no sujeito.

    A perspectiva da experincia conforme entendida por Husserl e Ponty est presente e

    fundamenta toda a reflexo acerca da experincia de viajar, assim como do chamado para

    retornar coisa mesma, que aqui a viagem.

    David Seamon9 afirma que para realizar esse exerccio so necessrios dois momentos.

    O primeiro consiste em deixar de lado as teorias convencionais acerca do assunto, o que

    aqui se refere aos conhecidos trabalhos de tericos da viagem (ou travelwriters)10. O

    11. Para fazer isso, existem algumas possibilidades.

    Seamon escreve que possvel refletir cuidadosamente sobre o tema e como a experiencio

    na minha prpria vida. Ou reunir relatos descritos por outros, por meio de entrevistas,

    conversas ou at da literatura.

    Atravs da experincia da viagem que poderei interpretar e expressar, luz dos prprios

    conhecimentos tericos da geografia, isto , das categoriais geogrficas de lugar, de

    paisagem, da regio, do territrio, do espao e do mundo, os significados que se

    estabelecem entre o viajante e o espao, durante a viagem. Dessa forma, embora se

    fundamente na fenomenologia, esse trabalho no se limita a ela. Ele consiste em uma

    interpretao geogrfica da viagem a partir de um arcabouo terico-metodolgico ligado

    fenomenologia. Essa interpretao geogrfica aparece atravs da busca por

    compreender quais categorias geogrficas melhor expressam a relao do viajante com o

    espao. O trabalho, portanto, apresenta trs eixos: o fenomenolgico, que o

    embasamento terico filosfico; o geogrfico, atravs das categorias e significados da

    experincia relacionados viagem, que o tema convergente dessa pesquisa.

    8

    9

    10

    11

  • Busco apreender como se d a relao do viajante com o espao atravs da experincia

    da viagem. Para tanto, analiso a minha experincia de viagem, com durao de um

    semestre (setembro de 2012 a fevereiro de 2013), Europa e, especialmente, Frana.

    Recorro ainda a conversas livres com outros quatro viajantes, quantidade e escolha

    limitada queles que j conhecia e que encontrei durante a minha viagem. Essas conversas

    so orientadas apenas pela inteno de ouvir uma descrio da experincia de viagem dos

    sujeitos. De forma que os quatros sujeitos so deixados a levantar as questes que

    envolveram suas viagens de forma livre, embora eu interfira em certos momentos para

    tentar entender melhor como se deu alguma experincia relatada. Todos os relatos

    comeam com o perodo de viagem e pas para onde ela ocorreu, em primeiro lugar. Elas

    tm em comum a longa durao e finalidade: intercmbio universitrio. Mas so

    recheadas de questes e outras viagens que se diferem amplamente, e que foram

    anunciadas pelos sujeitos viajantes. Posteriormente, procuro significar o que os sujeitos

    sentiram durante o processo de experienciar a viagem, sempre focando as relaes com

    espao.

    A pergunta que procuro responder nessa etapa : o que a experincia da viagem? Ela

    envolve no apenas as conversas, como tambm a anlise das fotografias dessas viagens.

    As fotografias foram selecionadas, em primeiro lugar, pelos sujeitos viajantes, inclusive

    eu. Elas podem ou no ser mencionadas nos relatos de viagem, sendo que a prioridade

    para integrar esse trabalho foi, alm do fato de ser mencionada, o peso emocional ao ser

    mencionada. A quantidade e o contedo das fotografias foram deixados abertos, para

    escolha dos sujeitos, de modo que alguns escolheram cinco e outros quinze. Geralmente,

    lembrar no reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje,

    imagem construda pelos materiais que esto, agora, nossa disposio (12. Nesse

    sentido, a anlise das fotografias dos viajantes permite duas consideraes: a primeira,

    acerca dos contedos e significados contidos na imagem. O que ela enquadra? O que ela

    evoca? Quais sentimentos permeiam a imagem? A segunda considerao refere-se

    escolha das fotografias para completar os relatos. Por que foram escolhidas?

    A fotografia, assim como o vdeo documental, uma representao

    interpretativa da realidade, no sentido de ser algo recortado pela

    percepo do olhar. A imagem quando divulgada publicamente uma

    12

  • janela aberta atravs da qual podemos ver lugares e pessoas que no

    conheceramos de outra forma. Ela nos contextualiza, faz-nos imaginar

    como seria estar em certo ambiente vivenciando experincias.13

    A anlise dos relatos dos viajantes, inclusive o meu, ocorrem em dois momentos. O

    primeiro consiste na elaborao das descries de viagem, permeada com as fotografias;

    o segundo momento consiste na reflexo sobre os sentimentos e impresses, os

    significados essenciais, descritos pelos viajantes, seja pelas conversas ou pelas imagens.

    Realizo, ainda, uma interpretao geogrfica das viagens ao relacionar esses significados

    com as categorias geogrficas. Para tanto, h uma conceituao e reflexo acerca de cada

    categoria, baseada em obras de outros gegrafos e na experincia do viajante.

    As descries ou relatos de viagens foram concebidas a partir de conversas norteadas

    apenas pela inteno de ouvir uma descrio da experincia de viagem; e posteriormente

    da textualizao e transcriao dos relatos colhidos. O meu relato, excludo desse

    processo, foi diretamente escrito. Cada relato foi colhido em um local diferente e em datas

    diferentes. Os sujeitos viajantes foram convidados a relatar sua experincia de viagem,

    bem como a selecionar fotografias de seu prprio acervo que considerassem mais

    significativas, seja por registrar um momento importante ou um local. As fotografias

    foram incorporadas aos relatos posteriormente, cerca de cinco ou seis para cada relato.

    Os casos em que a seleo dos viajantes envolveu mais fotografias, eu selecionei quelas

    que foram mencionadas durante as conversas por entender que elas, contextualizadas e

    anunciadas, carregavam um peso maior conferido e relatado pelo prprio viajante.

    Os significados essenciais se relacionam diretamente com a experincia de cada viajante,

    e sua vivncia do fenmeno. Ao descrevermos a viagem da forma como a vivenciamos,

    ns, viajantes, permitimos a anlise dos seus significados e a compreenso do fenmeno

    as unidades bsicas de entendimento comum de qualquer fenmeno, aquilo sem o que o

    14 A apreenso das essncias primeiramente

    intuitiva, pois nos permite agrupar fenmenos essencialmente semelhantes, como as

    viagens. Entender quais so essas caractersticas que determinam o fenmeno possvel

    atravs da reduo fenomenolgica. Ela compreende o retorno coisa mesma e a

    13

    14

  • suspenso de toda afirmao de existncia que no advenha do sujeito que vivencia e

    nenhum momento de sua obra procurou esclarecer definitivamente o que se deveria

    ente 15, defino

    aqui o percurso trilhado, baseado na fenomenologia de Husserl, em trs etapas: descrio

    mtodo da descrio so os dois traos que caracterizam, desde o incio, o mtodo

    16.

    A descrio densa consiste em dizer tudo aquilo que envolve a experincia singular a que

    nos referimos, mesmo tendo que provar da pobreza da descrio. Consiste em no

    completar, isto , no preencher de propsito as lacunas da descrio, e em ser o mais

    completo possvel, sem negligenciar qualquer faceta da coisa descrita17. Merleau-Ponty

    -se de descrever, no de explicar nem

    18. A reduo consiste em variar a coisa descrita at se atingir a conscincia

    da impossibilidade, ou seja, da caracterstica da coisa reduzida sem a qual impossvel

    pensar. Tal o gesto da reduo: um retrocesso ao originrio sensvel, que implica

    movimento de imerso no mundo concreto. Tais reunies do lugar a uma quase-

    19

    de fazer o mundo aparecer tal como ele antes de qualquer retorno sobre ns mesmos,

    20. A

    passo seria obrigatoriamente o ltimo, pois a interpretao encerra qua 21.

    A valorizao da experincia pela cincia est na ordem do dia. Esse trabalho, de cunho

    geogrfico, se constitui atravs do entrelaamento dos saberes da fenomenologia, da

    geografia humanista e da experincia do viajante. Se insere nesse contexto, e se torna no

    apenas uma expresso da possibilidade da cincia baseada no indivduo (superando a

    querela empirismo versus logicismo) mas tambm uma abertura (para mim, para outros)

    15

    16

    17

    18

    19

    20

    21

  • para a elaborao de novos trabalhos e de novas perspectivas para velhos trabalhos.

    Essa pesquisa, ainda, contempla a elucidao de um fenmeno em voga, que a viagem.

    Facilitada pelos avanos dos transportes areos, pela poltica internacional que protege o

    viajante internacional e muitas vezes facilita a viagem atravs de acordos de trabalho e

    estudos (como os intercmbios universitrios), e pela multiplicao de agncias e pacotes

    promocionais de viagem atravs de compras coletivas, a viagem hoje uma realidade que

    perpassa o conhecimento de novos espaos (cidades, monumentos, pessoas, costumes e

    patrimnios culturais), e, portanto, tem bastante a dizer geografia do indivduo.

    Esse trabalho foi dividido em trs partes. Cada parte constitui o todo desse trabalho, mas

    como as viagens e a experincia, so infinitas em si mesmas e no esto, de maneira

    alguma, acabadas. Embora estejam materializadas aqui dessa forma, e no de outra, ainda

    so a evidncia de um assunto que inesgotvel. No pretendo aqui passar algumas

    informaes ou contar histrias. Pretendo realizar uma atividade reflexiva, mas que no

    seja apenas minha. Nos espaos brancos entre uma letra e outra dessa escrita deixo a

    abertura para a reflexo.

    Nessa primeira parte, Agulha e linha, estabeleo as bases que sustentam e possibilitam

    esse trabalho. No discuto, porm, a viagem, visto que busco me voltar coisa mesma,

    vivida; que est presente na segunda parte, Viajar, na qual apresento o que vivi, ouvi e li

    sobre as viagens, os relatos pessoais com os quais estou em contato; na terceira parte,

    Tecendo geografias em viagens, escrevo e reflito sobre a relao entre os sentimentos e

    impresses os significados do espao com seus recortes categoriais geogrficos, numa

    tentativa de expressar e compreender essas relaes entre os viajantes e os recortes

    espaciais que definem melhor suas vivncias na viagem.

    Da cincia ou como fazer cincia atravs da compreenso de experincias

    individuais

    O conhecimento cientfico se valida atravs dos procedimentos que permitem chegar a

    ele o tambm chamado mtodo cientfico. Baseado inicialmente em experimentos

    inmeros que buscavam confirmar ou eliminar hipteses, o mtodo cientfico se

    modificou. Tornou-se obsoleto. No contemplava o conjunto diverso de prticas dos

    cientistas para se compreender a realidade. Ainda hoje, diversas escolas de pensamento

    conversam umas com as outras buscando fundar um mtodo de conhecimento mais

    pertinente. O que se verifica, no entanto, que os mtodos so aplicados em consonncia

  • com os objetivos pretendidos. A cincia existe enquanto saber fragmentado em diversas

    abordagens e matrizes terico-metodolgicas22, que apresentam inclusive diferentes

    concepes de cincia.

    sistema de conhecimento conectado por razes de tal forma que cada passo era construdo

    23. Entretanto, ele admitia que a

    forma como a cincia era feita, marcada pelo abismo entre o positivismo e o

    psicologismo, a impedia de tornar a vida

    uma filosofia que a pusesse em contato com as preocupaes mais profundas do ser

    24. Husserl afirmava a existncia de uma crise das cincias. Essa crise no se

    definiria pela ausncia de uma cientificidade genuna (no abalava seus resultados

    tericos

    dizer sobre ns, homens, enquanto sujeitos desta liberdade? A mera cincia dos corpos

    25. Ou seja, o estudo das

    subjetividades essencial para a constituio de uma cincia significativa, que tenha algo

    a dizer sobre a existncia humana. Husserl

    exclusivamente a verificao daquilo que o mundo, de fato, , tanto o mundo fsico

    26. O mtodo fenomenolgico desenvolvido por ele, em termos gerais,

    busca retomar as investigaes acerca do que o mundo, de fato, , levando em

    considerao tantos os aspectos fsicos quanto espirituais, de uma maneira rigorosa;

    levando em considerao especificamente o que o mundo para a conscincia que o

    anuncia. Merleau-Ponty afirma que o universo inteiro da cincia construdo sobre o

    mundo vivido, e se queremos pensar a prpria cincia com rigor, apreciar exatamente seu

    sentido e seu alcance, precisamos primeiramente despertar essa experincia do mundo da

    27.

    22

    23

    24

    25

    26

    27

  • Sendo assim, acredito que insensato tentar neutralizar qualquer trabalho, retirando das

    palavras o sujeito que as escreve, conforme fica evidenciado aqui e que isso no se

    confunde de maneira alguma com o ato de colocar o fenmeno investigado entre

    parnteses para apreender o que ele sem a influncia do que j foi dito sobre o que ele

    . E vou alm: entendo que a prpria negao dessa cincia da ordem e da lei permite a

    abertura para outras abordagens, inclusive quelas que se baseiam na experincia do

    indivduo como forma de compreender o sentido da existncia e do mundo, o que no

    significa incorrer em um relativismo, conforme veremos. Marandola28 afirma que no

    estudo das experincias imbricam-se os sentidos, as sensaes, as percepes, as

    cognies e as relaes entre diversos polos que podem ser tanto complementares quanto

    concorrentes: tempo-espao, subjetividade-objetividade, histria-memria, indivduo-

    se compreender o mundo, recorro a fenomenologia.

    Husserl afirma que no existe conscincia que no seja de algo. A existncia intencional.

    S existimos nesses momentos de visar algo, nessa relao nossa com o mundo. A

    conscincia uma atividade de estar consciente, constituda por atos. Podemos pensar,

    sentir, fantasiar, lembrar, julgar, comparar, explicar, ou seja, realizar diversos atos de

    conscincia. Mas em cada um desses atos de conscincia est tambm o fenmeno

    pen

    algo. Todos esses movimentos se traduzem no conceito de vivncias. Segundo Depraz29,

    capaz de se apropriar dos objetos do mundo, recebendo-os a princpio em sua qualidade

    designar esses movimentos de vivncia do mundo.

    A experincia abrange as diferentes maneiras por intermdio das quais uma pessoa

    conhece e constri a realidade. Essas maneiras variam desde os sentidos mais diretos e

    passivos como o olfato, paladar e tato, at a percepo visual ativa e a maneira indireta

    30. Parte da experincia a percepo dos fenmenos sensveis, atravs

    28

    29

    30

  • dos sentidos. Mas os fenmenos no so percebidos em sua totalidade. Sempre falta uma

    parte, seja porque nosso olhar no contempla o todo do objeto ou porque a luminosidade

    do ambiente no nos permite. Estamos sempre completando os objetos visados, o que nos

    permite pensar em uma primeira anlise que eles j se do em sua totalidade a ns. Os

    fenmenos so infinitos. Essa mesma abertura, possvel porque no vemos a totalidade

    dos fenmenos ou dos objetos, permite que haja a sua universalizao.

    Alm de simplesmente perceber os fenmenos, ns percebemos intuitivamente a essncia

    dos fenmenos. Porque ao visar uma casa (ou diversas casas diferentes), sabemos que

    uma casa. Sabemos que casa corresponde a diversos tipos de casas e no a uma s porque

    j apreendemos a essncia de casa mas tambm corresponde a cada uma. Existem

    algumas definies j incorporadas a ns que permitem visualizar, em cada uma, seu trao

    singular, e tambm seu trao universal.

    As essncias so as maneiras caractersticas do aparecer dos fenmenos.

    No so resultados de uma abstrao ou comparao de vrios fatos.

    Para poder comparar vrios fatos singulares, j preciso ter captado

    uma essncia, ou seja, um aspecto pelo qual eles so semelhantes. O

    conhecimento das essncias intuio diferente daquela que nos

    permite captar fatos singulares. As essncias so conceitos, isto ,

    objetos ideais que nos permitem distinguir e classificar os fatos.31

    A experincia no particular; no diz respeito a s uma situao. Ela singular, e

    universal32. Apreender o universal das experincias permite uma compreenso do geral,

    superando o relativismo que implica basear o saber apenas em particularidades infinitas.

    A viagem tem seus traos singulares, que dizem respeito experincia contingente do

    indivduo, mas tambm tem seus traos universais. Sendo assim, esse trabalho no se

    baseia em um relativismo empirista, mas sim na fenomenologia, no estudo dos fenmenos

    (essncias de fenmenos, significados e percepes) conforme proposto, especialmente,

    por Husserl e Merleau-Ponty.

    Husserl afirma que no existe conscincia que no seja de a ideia central

    de Husserl foi sempre de que a conscincia era a condio de toda a experincia, e at

    mesmo constitua o mundo, mas de uma forma tal que o prprio papel da conscincia era

    31

    32

  • 33. Sem algo ao que a conscincia

    visa, o mundo, no existe conscincia. O que significa dizer que ns existimos no mundo,

    e sempre no mundo, porque o fenmeno que nos permite estar aqui e dizer ou pensar

    qualquer coisa (inclusive esse trabalho), o que nos permite perceber que ns estamos aqui,

    a conscincia intencional. Husserl34 nos di

    objetos da experincia possvel e do conhecimento possvel da experincia, dos objetos

    passveis de serem conhecidos com base em experincias atuais do pensamento terico

    ndivduos no devem ser considerados por

    si mesmos, mas sempre em interao com o mundo. Suas experincias se do numa

    relao entre o ser que experiencia, o experienciar e o que experienciado. De modo que

    o mundo no deve ser considerado como exterior a

    ser; ele possui um sentido para mim, ele me dado em seu sentido antes que em seu ser.

    35. Se o que h uma conscincia de algo, esse

    algo s existe para mim na medida em que percebido. Logo, seu ser antes o seu sentido.

    O sujeito se confunde com o objeto, se completam, concorrem, coexistem. De forma que

    falar da experincia da viagem no significa descrever a relao entre um ser e sua

    exterioridade, os espaos da viagem; mais do que isso. Essa relao inclui uma

    intencionalidade, uma necessidade de presentificao entre as partes. O sujeito que visa

    e o objeto que visado so copresentes e se confundem na textura mesma do ser no

    mundo. Expressar essa relao atravs da geografia como tecer. infundir na textura

    do mundo grafias dos momentos de um contato entre ser e mundo que transpassa e perfura

    a prpria espessura dessa existncia.

    Ser no tempo e no espao: recortes geogrficos

    O ser humano , portanto, conscincia de fenmenos do mundo. Estabeleci j a

    necessidade do mundo para a existncia da conscincia. A conscincia, por sua vez, s se

    realiza na corporeidade do ser humano.

    Enquanto tenho um corpo e atravs dele ajo no mundo, para mim o

    espao e o tempo no so uma soma de pontos justapostos, nem

    tampouco uma infinidade de relaes das quais minha conscincia

    33

    34

    35

  • operaria a sntese e em que ela implicaria meu corpo; no estou no

    espao e no tempo, no penso o espao e o tempo; eu sou no espao e

    no tempo, meu corpo aplica-se a eles e os abarca. A amplitude dessa

    apreenso mede a amplitude de minha existncia; mas, de qualquer

    maneira, ela nunca pode ser total: o espao e o tempo que habito de

    todos os lados tm horizontes indeterminados que encerram outros

    pontos de vista36.

    O ser no mundo, que a prpria sntese da existncia humana, s se d corporificado. O

    campo de relaes o corpo representa a transio do 'eu' para o mundo, ele est do lado

    do sujeito e, ao mesmo tempo, envolvido no mundo. O corpo constitui o ponto de vista

    do ser-no-mundo. 37.

    A forma como a conscincia-corpo se d no mundo imediatamente atravs da

    percepo. O tecido do mundo um continuum do tempo e do espao. A experincia

    perceptiva se d na medida em que o ser humano existe. De forma que, se eu quisesse

    traduzir exatamente a experincia perceptiva, deveria dizer que se percebe em mim e no

    que eu percebo38. Ela no uma vontade ativa, antes uma manifestao do mundo que

    se d em mim; uma espcie de intencionalidade passiva e essencial existncia, que existe

    na coexistncia, de forma que apenas a minha solicitao no o presentifica, da mesma

    maneira que no existe na medida em que no se d a mim. Essa manifestao do mundo

    que se d em mim atravs da experincia perceptiva uma sensao. Toda sensao

    pertence a certo campo. A viso, por exemplo, refere-se presena de um campo visual,

    ao qual o ser humano tem acesso. Da mesma forma, a audio. Esses campos definem a

    noo de sentido. Sentidos so sensaes que pertencem a certo campo39. Cada qualidade

    40. Entretanto, a unidade de um objeto permanece

    desconhecida se considerarmos cada uma das suas qualidades como dados que pertencem

    cada uma de suas qualidades: ela reafirmada por cada uma delas, cada uma delas a

    41.

    Na compreenso das experincias de viagens, busco entender como o tecido continuum

    36

    37

    38

    39

    40

    41

  • espao-temporal manifesta-se nos viajantes e quais sentimentos produz nessa dialtica,

    expressando-a maneira da geografia. Portanto, valorizo os sentidos e as sensaes

    enquanto interaes do corpo no espao (ou do espao no corpo). A relao carnal entre

    espao no so as de um sujeito desencarnado com um objeto longnquo, mas as de um

    42.

    A existncia baseada numa relao em que se interpenetram ser e mundo permite a

    definio de recortes geogrficos expressivos de manifestaes do mundo no corpo ou do

    corpo no mundo. Essa noo melhor explorada na terceira parte, Tecendo geografias

    em viagens.

    Pontes para a viagem

    O que podemos dizer, ento, sobre a viagem? Vimos que a relao do sujeito no mundo

    conforme proposta na fenomenologia de Husserl permite o entendimento da experincia

    da viagem no como descrio da relao entre um ser e sua exterioridade, os espaos da

    viagem; mas atravs de uma relao que inclui uma intencionalidade, coexistncia que se

    confunde na textura do ser no mundo.

    Na compreenso das experincias de viagens, devo entender como o tecido continuum

    espao-temporal manifesta-se nos viajantes e quais sentimentos produz nessa dialtica,

    expressando-a maneira da geografia. Entendo a necessidade do corpo ser no mundo e

    valorizo as formas de interao corpo-mundo, notadamente atravs das percepes,

    sensaes, sentidos e impresses.

    A relao entre singular-universal na concepo fenomenolgica permite concluir que a

    viagem tem seus traos singulares, que dizem respeito experincia contingente do

    indivduo, mas tambm tem seus traos universais. Para compreender ambos os aspectos

    devo voltar coisa mesma. Voltando experincia da viagem, compreendo sua essncia.

    No pr-julgo ou imagino quais sero os sentimentos e impresses que constituem a

    viagem, mas antes busco voltar prpria experincia seja ela a minha ou de outros.

    As concepes aqui expostas delimitam os fundamentos, a agulha e a linha que vo

    permitir tecer na textura do mundo grafias dos momentos de contato entre ser e mundo,

    que transpassa e perfura a prpria espessura dessa existncia.

    42

  • Colocar as viagens entre parntese na busca dos seus significados essenciais perpassa um

    primeiro movimento: o descritivo. A descrio envolve trazer mente a experincia e a

    vivncia da viagem, e a articulao das impresses e sentimentos em palavras que

    possibilitem sua criao. Esse processo no ocorre sem dificuldades. A incluso das

    fotografias nos relatos de viagem procura presentificar seus contedos, compor a

    memria e evidenciar o olhar e as impresses que os espaos da viagem proporcionaram

    nos viajantes ou os viajantes nos espaos. Esses relatos permitem mesmo a criao de

    uma experincia de viagem e respondem a uma autoria compartilhada: eles so tanto meus

    quanto daqueles que os anunciaram.

    O tecido que aqui ser composto marcado pelos relatos de cinco viajantes, incluindo o

    meu, nossos encontros e outras linhas formando ns, expresso do cruzamento de fios.

  • Sob a chuva abro um mapa-mndi.

    Joan Brossa

  • SEGUNDA PARTE Viajar

  • Eu, viajante

    Esse relato foi concebido em um quarto bagunado e cheio de livros, aos sons de uma

    cidade ao crepsculo. Grande parte dele foi percorrido pelo sol que sempre de vero

    nessa cidade. Outra parte foi regada a msica, e outra ainda a caf preto e forte. De

    modo que as palavras so todas manifestaes singulares de um momento verdadeiro:

    de sol, msica e caf. Percorrido por lembranas, recordaes e sensaes de uma

    viagem inteira.

    Fui para a Frana em setembro de 2012 e voltei em fevereiro de 2013. Fiz um semestre

    do curso de Geografia na Universidade de Versailles, campus Saint-Quentin-en-Yvelines,

    que fica no departamento de Yvelines. Morei numa cidade prxima a Saint-Quentin, que

    se chama lancourt. Fica a menos de uma hora de viagem de trem de Paris.

    O processo de seleo dos intercambistas pela UFMG composto de vrias fases. Aps

    ser aprovado em cada uma, existe a necessidade de apresentar centenas de documentos e

    preencher outros tantos na busca por visto, moradia, ajuda financeira, comprovao de

    proficincia lingustica, seguro de sade estrangeiro, etc. Conseguir o visto em si inclui

    uma jornada, com direito a viagens para o Rio de Janeiro. Tantos documentos e

    burocracias suscitam um sentimento preguia. O incio da viagem, toda a preparao

    para o momento em que eu sairia do avio em solo estrangeiro, em um continente no qual

    eu conhecia uma, talvez duas pessoas apenas, uma mistura de nervosismo e muita

    preguia. O momento em si em que eu pousaria era ainda uma incgnita. De certa forma,

    continua sendo. Fiz uma pequena escala em Portugal. No duraria uma hora. A primeira

    coisa que fiz ao andar em solo europeu foi, terrivelmente, procurar um banheiro e bem,

    vomitar todo o jantar servido no avio. O aeroporto era uma quimera, meio shopping meio

    aeroporto. Andei rpido pelos corredores at a fila que me levaria para o prximo voo. O

    voo seguinte, para Paris, foi mais marcante, apesar de bem mais curto. A primeira

    vivncia do idioma francs, sendo falado em toda a sua exuberncia, foi ainda antes da

    decolagem. Houve um problema com algum passageiro, ele no pde (quis?) entrar no

    avio. Ficou do lado de fora discutindo com os membros da companhia de avio. No

    entendi o que foi e isso segue sendo um mistrio. Mas suscitou reaes extremas dos

    outros passageiros, que compartilhavam suas opinies (se em defesa do passageiro que

    no entrou ou contra o atraso de mais de uma hora na decolagem, eu sinceramente no

    sei) em altas vozes, num francs incompreensvel. Minha primeira impresso dos

    aeroportos que conheci foi que tinham muitas pessoas diferentes. Vestindo trajes tpicos

  • de diferentes culturas, religies. Com fisionomias diferentes e tantos idiomas e jeitos de

    falar incompreensveis. Ver essas pessoas foi fantstico e impressionante.

    Ao chegar Frana, a ansiedade por no saber como iria do aeroporto at a minha moradia

    atingiu nveis intensos e s se dissipou quando vi um homem segurando um pedao de

    papelo com meu sobrenome. Era um servio da universidade que transportava os

    intercambistas at a moradia ao chegar, mas que em momento algum foi confirmado. O

    homem tentou conversar durante toda a viagem at a minha nova cidade, lancourt, mas

    eu no queria desviar minha ateno do trajeto que passava pela janela. Disse para ele

    que no falava francs e no nos falamos mais. O trajeto, para minha decepo, no

    passava por nenhuma cidade. A estrada era contornada por floresta dos dois lados. Ainda

    que a floresta fosse de um tipo novo para mim. Eu queria ver tudo.

    A moradia era um prdio no final de uma rua sem passagem para carros, vizinha de um

    parque, de um teatro e de um outro conjunto de apartamentos idnticos para idosos. Meu

    apartamento era no segundo andar. A primeira impresso dessa nova vida foi uma

    sensao aguda de que eu estava sozinha. Foi suscitada pela necessidade de subir quatro

    lances de uma escada estreita carregando uma mala gigante e pesada totalmente sozinha.

    Seguida do conhecimento de que meu novo apartamento era menor do que o quarto que

    eu tinha deixado para trs. Por fim, reforada pelo fato de que meu telefone celular no

    funcionava, eu no sabia como usar o telefone pblico e no tinha acesso internet. Tive

    que pedir socorro a uma amiga, Carol, que mora com o noivo em Paris. Ns conhecemos

    desde o ensino fundamental, quando estudamos juntas. Ento encontrar ela nesses

    primeiros dias incomunicveis foi como encontrar um pedao de casa. Ela me apresentou

    Paris pela primeira vez. Com ela, visitei a Torre Eiffel, a avenida Champs-Elyse e a

    Igreja de Notre Dame.

    Os primeiros momentos daquela viagem ficaram marcantes, assim como os ltimos. No

    sei muito bem como foi o desenvolvimento dessa viagem. Tenho, na verdade, lembranas

    de momentos que ficaram, por algum motivo, bem acessveis a memria. Assim como

    dos sentimentos relativos aos espaos em que vivi naqueles seis meses. A descrio a

    seguir no vai obedecer a uma cronologia real, at porque no sei qual foi (se que ela

    de fato existiu).

    A moradia estudantil em que morei se chama Lamarck e fica na cidade de lancourt. A

    universidade em que eu estudava fica em uma cidade prxima, Guyancourt. Nos meus

    primeiros dias na Frana me dediquei a andar pelos arredores da moradia, e uma das

  • configurao da estrutura urbana aqui. As cidades so muito prximas das outras, e so

    de trem, trajeto de 15 minutos andando, eu passava por lancourt, Maurepas e La

    Verrire.

    A cidade em si me trazia sentimentos contraditrios. Embora fosse organizada, limpa e

    cheia de rvores e canteiros de flores que a deixavam esteticamente agradvel, sempre

    me pareceu organizada demais, limpa demais e bonita demais. Arranjos de flores em

    postes de luz em cada rotatria (existia uma a cada 500 metros) e bandeiras da Frana em

    cada esquina tornava a cidade um pouco surreal para mim. Sentia falta da interveno

    popular! Os diversos parques que existiam nos arredores da moradia estavam sempre

    petanque ha em portugus, crianas correndo e

    pessoas passeando com seus ces, mas talvez por estar sozinha, talvez por no ter vivido

    essas situaes, sempre me pareceram que essas pessoas usavam os espaos sem se

    apropriar deles. As rvores e a grama e os bancos poderiam muito bem no ter sido usados

    no fim do dia. Quando achava intervenes nos muros ou nos transportes pblicos, ficava

    sinceramente feliz. Fotografei alguns.

    O apartamento 121, onde morei, foi ocupado por sentimentos mais intensos. Seu tamanho

    e estrutura (afunilada, como um corredor) me davam sempre a impresso de estar

    apertada, sufocando. Essa impresso era to forte que me fazia sair correndo s vezes.

    em uma cabana sozinho no meio da floresta por tanto tempo. Sempre achei fascinante o

    Thoreau ter feito isso, admirvel at. Mas fala srio. Como ele 43. Essa

    sensao se somava com a solido e o silncio da casa que parecia ter um isolamento

    mais eficiente que o normal daqui, porque quando estava muito frio e fechava a janela,

    eu no ouvia nada do lado de fora e se tornava mil vezes mais intensa. Por outro lado,

    no ficava muitos dias sem ir pra casa. Chegar, depois de uma viagem ou depois de alguns

    dias em casas de amigos, era sempre um alvio. Ir para o apartamento 121 depois da aula,

    das compras, do cinema ou das constantes idas Paris, era sempre agradvel.

    Especialmente no inverno, quando o seu constante aquecimento me dava a impresso de

    43

  • que o apartamento 121 era um pequeno e aconchegante lugar aquecido no frio impassvel

    daquele continente. Existe mais a se dizer sobre a moradia. Alis, isso pode servir para

    todos os seis meses que passei na Europa. Se por um lado eu estava l, por outro eu

    poderia estar em qualquer outro local. Refiro-me a todo o tempo e espao que usei para

    sair do espao e o do tempo em que estava. A literatura e o cinema sempre foram meus

    companheiros constantes. No apartamento 121, nosso relacionamento se intensificou.

    Grande parte das minhas lembranas e impresses dele foi produzida por personagens e

    espaos que conheci apenas no meu esprito. E o que dizer sobre isso?

    A Universit de Versailles Saint-Quentin-en-Yvelines foi mais um espao que eu visitei,

    e de maneira constante nesses seis meses, e foi em grande parte um ambiente hostil. Em

    primeiro lugar, por no estudar o que eu queria geografia. Os estudos obrigatrios de

    francs demandavam mais tempo do que os outros. As disciplinas de geografia eram

    incompatveis em horrio com eles. Sem falar que j tinha cursado a maioria, j que viajei

    no final do meu curso aqui. No me envolvi com os estudos que fiz, sobre relaes

    internacionais, a Unio Europeia e histria da arte. Os estudos sobre a Unio Europeia e

    as relaes internacionais me provocam estranhamento. Era curioso ver a opinio dos

    jovens sobre o resto do mundo e os posicionamentos sobre como a Frana deveria se

    relacionar com o mundo, especialmente quando falavam sobre o Brasil. O Brasil de

    repente tinha se tornado meu lar. Ver estudantes falando sobre ele, pesquisando sobre ele,

    era simplesmente curioso. Por outro lado, as aulas no me envolviam muito. Os

    professores entravam, abriam os computadores e liam seus materiais de aulas de maneira

    compatvel com a apresentao que exibiam numa tela maior para o auditrio. Os alunos

    entravam, assistiam a aula e no havia maiores interaes entre nenhuma das partes. Fazer

    trabalhos em grupos foi uma das partes mais sofridas de se estudar l. As minhas relaes

    com os nativos no foram em nenhum momento agradveis, pois mesmo tendo que

    desenvolver trabalhos em grupos eles nunca estavam interessados em interagir. Era

    sempre um processo sofrido, agravado pela dificuldade em comunicar com o idioma

    francs em um nvel universitrio coisa para qual eles no demonstravam nenhuma

    pacincia. Diferentes eram as aulas de francs, com os outros intercambistas, que exigiam

    muito participao e envolvimento, inclusive com as professoras, tornando a aula muito

    mais agradvel. Dessa forma, com exceo das aulas e algumas atividades

    extracurriculares, como palestras com convidados e tempo aproveitado na biblioteca, no

    tive uma vivncia muito grande da universidade.

  • Os momentos que compunham minha rotina nesses meses envolviam idas a faculdade,

    praticamente todos os dias de manh ou/e a tarde, ao supermercado a noite e s vezes ao

    cinema. Quando ficava em casa, dedicava meu tempo a leitura ou assistia a filmes e

    seriados. Os finais de semana eram marcados por visitas aos amigos, principalmente

    brasileiros, e Paris. Na moradia estudantil havia uma sala para encontros, onde os

    intercambistas se reuniam e, de vez em quando, contavam com a presena de um ou dois

    franceses. Tinha decidido j visitar Londres, Amsterd e Veneza e tentei fazer isso nas

    pequenas frias que tnhamos a cada dois meses.

    Foram duas casas de amigas que eu visitei constantemente. A primeira, em Paris, da

    Carol, onde ela vive com seu noivo, e para onde eu corria sempre que precisava. A

    segunda, em Guyancourt, de duas amigas brasileiras que conheci na universidade e cuja

    companhia foi fundamental para meus seis meses naquele pas. As duas casas sempre me

    pareceram agradavelmente habitadas, um lar e uma possibilidade de uma vida boa

    naquele pas. Com minhas amigas universitrias brasileiras, vivi momentos deliciosos,

    seja durante as festas que fomos juntas, os filmes na casa delas ou enquanto fazamos

    salgados, brigadeiro ou crepes (para matar a saudade) ou semanalmente, quando

    tomvamos vinho, tanto vinho, para nos aquecer nas noites frias.

    As idas Paris semanalmente foram marcantes. Nelas, eu podia visitar museus, como o

    Louvre e o Pompidou, ou ir a exibies de filmes comentados por diretores. Muitas vezes,

    apenas percorria as ruas a p por horas e horas, visitando sebos, feiras, cafs e restaurantes

    ou, durante a noite, ia com outros amigos a festas e bares. Percorri caminhos e cenrios

    Conseguia o tempo todo apreciar a estranheza (que no era estranha, mas antes diferente)

    daquela cidade. Os prdios, os monumentos, as ruas, os costumes e as vestimentas. Tudo

    que parecia diferente inspirava um deliciamento. Apenas ver aquilo me trazia um

    contentamento quase sensual que me preenche at hoje, quando penso nisso.

    Eu perdi o flego de verdade quando vi a Torre Eiffel da janela do trem, ao longe e quase

    perdida na escurido, no fim de tarde em que fui pela primeira vez Paris. Acho que foi

    quando eu finalmente me dei conta de onde eu estava. Tudo o que eu senti depois disso

    ainda teve uma pitada de descrena, mas era quase como uma coceira um pequeno

    por Paris, subir na Torre Eiffel e percorrer a Champs-lyse ou ver a Monalisa no Museu

    do Louvre, nada me provocou uma reao to forte novamente. Sobre isso, escrevi (em

  • setembro de 2012):

    As impresses que tive at ento que as pessoas so sempre pessoas,

    se parecem sempre com pessoas, sejam elas de onde for. Via um

    vislumbre de brasilidade em tantas que at esquecia de falar francs.

    estranho ver elas usando outro idioma, que impede uma comunicao

    de verdade, quando somos todos to parecidos. A Carol me corrigiu

    depois. Disse que no todo mundo que parece brasileiro, so os

    brasileiros que parecem com todo mundo. E isso faz todo sentido! Paris

    se mostrou como qualquer cidade. Achei uma definio perfeita em um

    como aqui, s que d 44. No tem nada mgico, nenhum

    conhecimento secreto e novo.

    Se por um lado a vida cotidiana inspirava sentimentos comuns, daqueles que eu sentia

    por aqui preguia de acordar cedo e ir pra aula, ter que arrumar a casa ou entusiasmo ao

    ver os amigos a noite para a diverso por outro nunca estava muito longe o

    contentamento por respirar num espao to diferente (Figura 2). O clima, as rvores e a

    prpria maneira de ser da cidade ou dos habitantes, as relaes com outros estrangeiros,

    tudo isso era empolgante. Assim como desafiador. A insegurana por no dominar um

    idioma era paralisante, s vezes. A saudade de casa tambm.

    Aqui no Brasil, sou antes uma universitria que domina o idioma portugus, tanto a escrita

    quanto a fala. Na Frana, eu no dominava nada. A insegurana de falar ou escrever; de

    conversar normalmente com as pessoas na rua paralisante. Em diversas situaes, no

    fui capaz de responder a conversas espontneas no nibus ou a perguntas por localizao

    simplesmente porque no me sentia segura o suficiente para falar. Esse foi, de longe, o

    pior sentimento. Pior que a solido ou a tristeza ou a saudade.

    Em Paris, tambm participei das grandes manifestaes por igualdade entre as relaes

    hetero e homossexuais perante a justia. Foram as primeiras manifestaes que participei

    que envolviam centenas de milhares de pessoas. Alm disso, pude encontrar franceses

    dispostos a conversar ou simplesmente a sorrir, em ruas que j tinha percorrido

    anteriormente mas que nesse novo contexto me fez sentir novas coisas. Era como ver uma

    prova de que tantas outras manifestaes e revolues j tinham ocorrido naquelas

    mesmas ruas. Contemplar monumentos, como memoriais de guerra ou cemitrios, no

    deram uma ideia to forte de que a histria que eu estudei da Europa de fato aconteceu,

    como ver aquelas centenas de milhares de pessoas nas ruas. Nesse sentido, podia ver

    vestgios da histria. Alguns cemitrios tinham inscries em lpides de pessoas que

    44

  • morreram em campos de concentrao durante a expanso do nazismo, que foi o mais

    perto que j tinha chegado de uma certeza de que aquilo de fato aconteceu.

    A primeira viagem que fiz, dentro da viagem, foi Londres (Figura 3), para passar o Dia

    das Bruxas, 31 de outubro. A escolha do dia no foi aleatria. Londres era uma cidade

    das mais importantes para mim por causa da minha histria com a srie de livros da

    escritora de fantasia J. K. Rowling. Em 2001, eu tinha 10 anos quando assisti pela

    primeira vez um filme do Harry Potter. Desde ento, acompanhei as estreias de filmes e

    livros, lendo e vendo tudo o que podia e quantas vezes fossem at saber tudo que acontecia

    em cada histria. Londres est eclipsada pelas minhas leituras de Londres. De maneira

    que toda a visita foi uma busca por pisar nos lugares significativos para a histria. J tinha

    percorrido Paris a procura dos espaos da Amlie Poulain45, mas visitar Londres foi como

    acessar espaos que s existiam e me eram completamente familiares na minha prpria

    mente. Foi como ver uma cidade literria posta em suspenso pelo mundo, sem qualquer

    preocupao com a sua realidade. E, nesse sentido, foi esfuziante. Nos primeiros dias,

    tirei fotografias de todos os nibus com letreiros para King's Cross. Visitei a estao de

    trem apenas para sentir como seria pisar num lugar to importante. Ver a placa indicando

    Harry Potter. No sei direito como explicar a familiaridade e a estranheza, o

    deslumbramento que era andar por aqueles lugares. Foi perfeito em um nvel que eu s

    posso compreender quando leio novamente os livros e sei que j fui ali.

    Para ver melhor a cidade, eu preferia andar a p a de metr ou nibus. Quando ia muito

    longe, preferia ir de nibus porque ainda podia ver a cidade. Visitei museus e

    monumentos. Nesses, uma das coisas que mais me incomodou foi ver alas dedicadas a

    povos dominados pelos ingleses, como os indgenas da Amrica do norte e central, ou

    povos africanos. Roupas, utenslios de caa e outros artefatos desses povos estavam

    expostos, assim como mapas informando onde eles viviam. Pareciam se vangloriar do

    assassinato de povos inteiros e, nesse sentido, eu s conseguia me pensar como fruto de

    um pas colonizado. A conscincia da explorao e da injustia do assassinato de milhes

    de nativos (que ainda hoje continua) nunca foi mais cortante do que nessas viagens aos

    pases colonizadores. Nesse sentido, esse aspecto da histria da Europa foi mais

    incmodo do que qualquer um relativo s guerras mundiais ou ao nazismo.

    45

  • Minhas lembranas de Londres esto convenientemente relacionadas aos livros e filmes

    que j tinham constitudo uma Londres em mim, e por isso talvez no tenha ficado muito

    surpresa com o que vi por l. Visitar o Big Ben ouvindo a Abertura 1812 de Tchaikovsky

    foi glorioso46, assim como conhecer os mgicos que faziam performances (roubadas) na

    ponte que leva ao Parlamento ou conhecer um bairro com predominncia de moradores

    indianos. Os aspectos no esperados da cidade no comprometeram a minha Londres,

    apenas somaram. Como se todos os aspectos que eu finalmente conhecia, e me

    maravilhava por isso, fizessem a Londres velha conhecida e esses aspectos novos e

    inusitados fossem apenas caractersticas que eu s agora percebia, mas que faziam todo

    o sentido.

    Os transportes pblicos eram meus espaos favoritos na Frana. Eu era aficionada por

    contemplar cada aspecto e cada detalhe dos cenrios que passavam por mim ou pelas

    quais eu passava. Por vezes, eu andava de nibus apenas para variar e aumentar o tempo

    do trajeto. Podia ir para a universidade em 15 minutos de trem, mas de nibus levava 40

    minutos. Passava por diversas cidades at l. Eu adorava. Os momentos mais marcantes

    e mais ordinrios que contemplei foram em transportes pblicos. Esses momentos

    pareciam sussurrar pistas sobre que espao era aquele, como era morar ali a vida toda. Eu

    ouvia esses sussurros e os guardava.

    Era meio da tarde de domingo e o trem para Paris estava vazio. Um senhor entra e faz um

    pedido de ajuda. Qualquer coisa, dinheiro, comida ou trabalho. Ele aceitava. Ele tinha

    perdido tudo assim como tantos outros que encontrei na mesma situao e tinha uma

    famlia. Dois filhos, uma esposa. No me lembro se mais algum se manifestou, mas

    observei enquanto um jovem retirava um po caseiro enrolado em um pano xadrez branco

    e vermelho de dentro da mochila. Ele partiu o po ao meio e entregou metade ao homem,

    que aceitou. Em dezembro de 2012.

    Dessa vez, era noite. Eu estava em um metr em Paris, lotado. Outro homem pedindo

    ajuda. Dessa vez, a reao das pessoas foi da indiferena ao descontentamento explcito.

    J vinha observando essa mulher, antes do homem entrar. No sei bem o motivo. Ela

    parecia estar alm, acima, de uma forma meio elitista de ser. Observo ela tirar um cigarro

    46

  • da bolsa e o segurar. Imaginei que ela fosse fumar assim que sasse do metr. Ela estica

    o brao direito que segurava o cigarro ao longo do encosto do banco vizinho ao seu.

    Discretamente, ela entrega o cigarro ao homem. Em seguida, me v observando a cena.

    Sua expresso quase surpresa. Foi uma cena absolutamente deliciosa de se presenciar.

    Quando aconteceu comigo, no foi to delicioso. Estava espremida no final do vago de

    um metr lotado em Paris, a noite. Alguns segundos em que um metr vindo da direo

    contrria diminuiu para parar na estao, enquanto o que eu estava comeava a sair da

    estao. Espremida, carregando um monte de sacolas e sem poder mexer muito bem,

    observei um jovem no outro metr me olhando. Dois segundos e eu sorri. Ele sorriu de

    volta e o metr j tinha ido.

    Alguns outros momentos facilmente recordveis ocorreram fora dos transportes pblicos.

    Um final de semana particularmente entediante, quando sai para dar uma das minhas

    inmeras caminhadas pela redondeza, passei por duas garotas uma vestida segundo a

    cultura ocidental e outra com vu e toda coberta que conversavam com uma

    cumplicidade que s duas amigas poderiam ter. Outras pessoas, de diferentes culturas e

    em diferentes situaes, foram igualmente marcantes. Algumas eu acompanhei de longe,

    pois sempre as via nos mesmos lugares cotidianamente. Era reconfortante encontrar essas

    pessoas no nibus, na estao de trem, na universidade ou no banco, como se reconhecer

    estranhos fosse algum parmetro de familiaridade ou de que eu tinha um lar.

    A segunda viagem que fiz, essa que durou apenas um final de semana, foi Amsterd.

    Eu j tinha planejado aproveitar a liberao e aceitao do consumo de drogas para

    experimentar um bolinho de maconha, chamado space cake. De forma que cheguei j a

    noite e depois de uma parada no albergue, um coffee shop foi minha parada seguinte.

    Vivenciar essa experincia de ir a um estabelecimento, um caf, comprar e consumir um

    bolinho de chocolate com maconha dentro enquanto bebia um achocolatado foi inusitado.

    A no estranheza da atividade fez com que tudo parecesse bizarro. Os momentos depois

    em que eu e os amigos que me acompanhavam, inclusive um dos sujeitos viajantes que

    posteriormente ser apresentado, o Fabrcio, foram gentilmente nublados da minha

    memria. No dia seguinte visitei museus e andei pela cidade, apreciando o quo bela era.

    Foi uma passagem rpida, mas que ficou marcada pela beleza extraordinria da cidade;

    pela familiaridade de uma experincia absolutamente no familiar; e pela ausncia de

    qualquer sentimento mais ntimo ou profundo por aquele espao.

    Um dos acontecimentos mais inesperados nesses dias foi causado pelos sentimentos que

  • tomaram conta de mim quando visitei um shopping em Paris. Sair da estao de metr

    pela qual passava todos os dias, percorrer alguns metros dessa rea com arquitetura nova

    e moderna de Paris, chamada La Dfense, e adentrar num shopping foi como percorrer

    um caminho conhecido e de repente sem explicao ou sentido se ver num local

    totalmente diferente. O shopping era idntico aos que encontramos aqui, em Belo

    Horizonte. Foi como voltar, de repente. Quase me virei para o lado esperando encontrar

    algum parente. Nos meses em que eu estive por l, quando as saudades de casa apertavam,

    retornar ao shopping (por mais indigesto que isso seja) era a certeza de encontrar um lugar

    familiar.

    Em janeiro, tive as semanas finais de provas e trabalhos. Enquanto minha ansiedade por

    voltar ao Brasil e meus sentimentos contraditrios pela Frana tomavam conta dos dias,

    resolvi fazer a ltima das minhas viagens para visitar uma cidade que sempre quis

    conhecer: Veneza. Como ainda faltava um ms para o meu retorno e j tinha vencido meu

    perodo de permanncia na moradia estudantil, resolvi ir tambm a Roma e aproveitar um

    pouco mais de dias em cada uma. Deixar a ltima das minhas viagens em viagem para o

    ms final s me fez ter um gostinho mais de tudo aquilo que eu no conheceria.

    Veneza foi a minha cidade de sonhos, antes mesmo de a conhecer. De todas as outras

    cidades que conheci, e busquei por motivos diversos, Veneza era a nica que eu sentia

    uma vontade quase mstica de visitar. Eu precisava ir a Veneza. Para satisfazer um desejo

    interno e inexplicvel. O desejo interno e inexplicvel permaneceu por todo o tempo que

    passei me perdendo nas ruelas e me encontrando nas paradas e bancos, contemplativa,

    me sentindo mais terrena, mais carnal, do que nunca antes. Veneza me deixou sentimentos

    de existncia, mais do que qualquer outro espao dessas viagens. Eu no vi uma Veneza

    ensolarada. Todos os dias em que permaneci na cidade choveram e estiveram brumosos

    (Figura 4). Alguns dias, no dava para ver um palmo frente enquanto andava nos barcos

    do transporte pblico. Um dos espaos que mais senti, e que at hoje me provoca uma

    nsia particular, eu retratei (Figura 5). Em Veneza, no visitei museu ou monumento

    algum. Gastei meus dias me dedicando a andar e ver o que eu encontrava, a comer nos

    deliciosos restaurantes e cafs italianos e a sentir tudo isso. Gostava de me deixar envolver

    pelas discusses e encontros entre os nativos ou pelos aspectos cotidianos de se viver ali:

    o lixo que no tinha sido recolhido, os pedreiros de barco trabalhando em uma fachada, a

    ambulncia-barco que passava rapidamente por todos, a vendedora com olhar cansado de

    uma loja de sapatos a noite, as fantasias nas lojas de mscaras e os turistas comprando,

  • um senhor vendendo uma gravata amarela, um grupo de jovens reunidos numa pizzaria,

    as intervenes nos becos, uma menina jogando uma bota velha no lixo. Eu me sentia

    quase como uma outra manifestao da cidade, a verso morena baixa de olhos escuros

    de uma cidade velha, mofada e cheia de gua. De modo que depois da profundidade de

    sentimentos de Veneza, Roma foi quase frescor.

    A viagem de trem para Roma foi tranquila e cheia de paisagens bonitas. Castelos no alto

    das montanhas e vales verdes seguidos por rios compunham uma paisagem romntica

    quase surreal. As impresses de Roma foram completamente diferentes das de Veneza.

    Em Roma tentei sentir o ar histrico ou absorver a temporalidade das runas, mas tudo o

    que eu consegui foram boas fotos de resqucios do Imprio Romano (Figura 6 e 7). Essa

    histria no falava para mim. Uma das experincias mais interessantes foi visitar o

    Vaticano, especialmente o Museu do Vaticano e a Baslica de So Pedro. Eu no sou

    crist e nunca fui. Mas ser revistada para entrar em uma igreja com tanta ostentao e ver

    janelas fechadas e guardas num museu impressionante. As representaes religiosas no

    foram to interessantes quanto observar da janela os pequenos vislumbres de algo

    proibido. Eu sentia um frenesi por saber o que eu sei sobre a histria, a religio e a cultura

    por trs daqueles muros e, de certa forma, no compartilhar suas vises. Era como

    contemplar um monstro. Um monstro absolutamente poderoso e monumental sendo

    contemplado de um ponto minsculo do cho, em total anonimato e intrepidez. E ser feliz

    por no ser uma das clulas que compem esse monstro (apesar de saber que seus

    tentculos ululam sobre minha vida em tantas maneiras que eu nem me dou conta).

    De maneira geral, sei que no ms final de intercmbio no queria mais ficar nem um

    segundo na Europa, e especialmente em Paris. O ponto culminante foi no meu dia de

    volta, quando perdi o avio que me levaria a Lisboa, e por conseguinte perdi o avio de

    Lisboa a Belo Horizonte. Entre os trmites para saber o que fazer em seguida, me lembro

    o prximo voo para

    o Brasil, no final do dia seguinte, mas em Portugal, Lisboa. Para onde fui imediatamente

    e sem olhar para trs.

    a seguir. Saudade. Intensa e real, saudade que parece preencher meu corpo inteiro e me

    fazer imaginar, antes de me levantar da cama, que estou caminhando pelas ruas da Europa.

    Quando me lembro de Paris, est sempre ensolarado. Apesar de ter vivido a maior parte

  • do tempo no inverno, o sol fraco banhando as ruas largas e os prdios tpicos de Paris, o

    sol batendo no asfalto, est nas minhas mais saudosistas lembranas (Figura 1). estranho

    que essa a imagem que fica! Na tentativa de recuperar aqueles tempos de andana e

    reflexo prazerosas, hoje recorro aos livros. Assim minha memria vai se transformando

    em outra coisa, outra realidade.

    Eu guardei, alm de entradas de museus e outras lembranas fsicas, bilhetes de transporte

    pblico de todas as cidades que visitei. Guardei tambm no olhar o deslumbramento pelo

    espao que eu via, e vi diferente os espaos do meu lar.

  • Fabrcio, viajante

    Esse relato foi concebido no anoitecer de uma sala de aula vazia. Nos ecos das palavras,

    saudades e alegrias. Assim como um testemunho de todo um tempo aproveitado, ao

    mximo, em outros anoiteceres.

    O intercmbio foi a melhor e a pior coisa da minha vida. Porque foi o melhor ano da

    minha vida, to bom que transformou todos os outros anos por comparao. Eu sinto

    como se estivesse num limbo agora; coisas que eu achava divertidas no me parecem

    mais, coisas que eu nunca pensei que eu gostaria agora me parecem fantsticas: tudo por

    culpa do intercmbio.

    F 47 em

    setembro de 2012 e voltei em agosto de 2013. Fui fazer um ano de graduao em

    Geografia. Os semestres eram divididos em dois perodos. Minha rotina contemplava

    basicamente ir pra faculdade de manh ou a tarde e aproveitar a diverso da noite.

    O que mais me marcou nesse ano foi o fato de experimentar coisas novas. Passei todos

    os anos anteriores me divertindo de um jeito, pensando de um jeito, aprendendo de um

    jeito. Mas essa mudana repentina de ares, para algo completamente diferente, foi

    marcante. Um dia eu estava no Brasil e, algumas horas depois, estava inserido em um

    novo contexto cultural, poltico, econmico. Fiquei assustado quando cheguei Holanda,

    especialmente por causa do idioma. Apesar de ter estudado ingls por muito tempo, eu

    no tinha essa desenvoltura para a informalidade do cotidiano com o idioma. Na

    faculdade eu no tinha problemas, mas no dia a dia, nas ruas, era mais complicado. A

    primeira sensao que eu tive foi essa. Eu sa de um xtase, de um estupor total e comecei

    ver as pessoas conversando em ingls, holands e eu sozinho. Foi um choque.

    Como eu ficava na faculdade ou estudando durante o dia, me restava a noite para me

    divertir. Eu j tinha decidido que aproveitaria essa oportunidade para fazer tudo o que eu

    pudesse, em termos de diverso. Eu aproveitei ao mximo. No s na Holanda, mas em

    todos os pases por onde eu passei. A diverso consistia basicamente em sair para beber

    com os amigos, os que eu fiz l ou outros intercambistas, ir ao cinema (em ingls com

    legenda em holands ou sem legenda, ou se o filme era em holands com legenda em

    47

  • ingls), em festas, shows, pequenas viagens para cidades no entorno, como Amsterd ou

    Haarlem, boates, partidas de pquer, ou ento s uma caminhada, porque a cidade era

    muito bonita. Meu melhor amigo era um armnio e ele lidava com as coisas de uma

    maneira muito tranquila, sem se importar com nada. Exceto se a conversa fosse sobre

    turcos. Ele tinha uma rixa poltica com turcos. A nica vez em que ele ficou exaltado foi

    quando a gente encontrou um turco e ele queria brigar conosco porque ele pensava que

    eu era americano e porque meu colega era armnio. Mas deu tudo certo. Fizemos uma

    viagem de caminho muito divertida para assistir a um festival de msica eletrnica na

    Blgica (Figura 7). O pai de um dos meus colegas trabalhava em uma central de

    abastecimento e usava esse caminho. O meu colega disse que podia pegar emprestado o

    caminho. Como seria mais barato do que ir de trem, resolvemos ir e foi muito divertido.

    Fiz diversas viagens. Fui Espanha, Inglaterra, Chipre, Malta, Crocia, Rssia, Repblica

    Tcheca, Hungria, Islndia, Sucia, Itlia, Irlanda... Eu preferia viajar sozinho. Primeiro

    porque assim eu me obrigava a falar ingls; segundo que eu me obrigava a conhecer novas

    pessoas. Quando se viaja com a famlia ou um grupo de amigos voc fica fechado quele

    grupo. Mas quando se viaja sozinho voc se v obrigado a conversar com outras pessoas,

    que voc conhece durante a viagem. Claro que tem seus momentos ruins, quando no d

    pra fazer amizades, mas eu acho mais interessante. No Chipre, por exemplo, uma noite

    eu resolvi ir jantar sozinho. No final da noite, eu me vi jogando gamo com um sujeito

    que disse que vai concorrer a presidncia do Chipre na prxima eleio, com o dono do

    restaurante e dois sujeitos aleatrios. Uma situao que nunca aconteceria se eu estivesse

    em um grupo. Tambm no viajei para pases como Frana ou Portugal. Aproveitei a

    oportunidade para conhecer pases menos convencionais, que eu no poderia conhecer

    atravs de um pacote de viagem.

    Eu no consigo definir minha viagem preferida. Mas, por exemplo, minha viagem

    preferida em termos de beleza natural foi Islndia. As paisagens eram pitorescas, com

    neve e vulces (Figura 8). Uma coisa que eu sempre quis ver foi uma aurora boreal e eu

    vi l. Ento em termos de paisagens naturais foi Islndia. Em termos de diverso, festas,

    boates, baladas, Barcelona foi fantstica. Mas Ibiza foi tudo o que eu imaginava.

    Recomendo pra qualquer um.

    A viagem pra Rssia foi fantstica. Eu fiquei 15 dias em So Petersburgo com uma amiga

    russa que morava comigo na Holanda, cujo intercmbio foi s de seis meses. Eu tive que

    sair da Unio Europeia, porque meu visto vencia em julho (minhas passagens de volta

  • estavam marcadas para agosto) e eu ia ficar ilegal. Eu fui ao consulado e um funcionrio

    me disse que a soluo era sair do espao Shengen, ento, como eu tinha amigas na

    Rssia, eu resolvi ir pra l. Quando eu cheguei na imigrao, pela Estnia, de nibus, os

    funcionrios ficaram olhando meu passaporte e conversando entre eles. Eu no falo russo

    e eles no falavam muito bem o idioma ingls. Meu passaporte estava em um estado

    deplorvel, porque me jogaram em uma piscina com ele no bolso. Mas me passou pela

    cabea que eles devem ter achado estranho. Um latino, brasileiro, com o passaporte

    detonado, indo pra Rssia, entrando de nibus pela Estnia, para visitar uma amiga que

    se chamava Natasha. Mas eu nunca vou saber o que aconteceu. No fim das contas, um

    russo que estava no nibus e falava ingls ajudou na comunicao e eu entrei. L eu

    conheci muitos russos, pessoas sensacionais. A arquitetura bizantina da cidade foi

    surpreendente. Porque estamos acostumados com uma arquitetura crist romana, mas l

    era crist ortodoxa. As igrejas e as cpulas eram lindas. Fui a festas timas. Conheci uma

    bebida sensacional, que era uma mistura de xarope, com tabasco e vodca. A principal

    parte foi a diverso com a minha amiga. Como ela estudava sociologia, eu aprendi muito.

    Aprendi que russos e brasileiros tem mais em comum do que eu pensava. Eles tm uma

    descrena com a poltica muito parecida com a gente. Outro detalhe sensacional foi o ar

    histrico, um ar diferente que eu sentia l. Eu passei anos estudando revoluo russa e de

    repente eu estava l. Na antiga URSS. Foi semelhante ao que eu senti em Berlim. Um ar

    diferente, uma emoo diferente. Faz sentido porque eu conhecia a histria; se eu no

    conhecesse talvez eu no sentisse isso.

    Outro pas que eu gostei bastante foi Itlia. Na Itlia eu passei por Napoli, Roma,

    Veneza, Rimini, San Marino. Eu s tive oportunidade de conhecer Roma pela noite. Eu

    s consegui ver as fontes, mas foi interessante. Eu no tive o mesmo tipo de experincia

    que eu tive Berlim ou em So Petersburgo. Mas em Pompeia foi fantstico.

    O Reino Unido em geral foi muito legal. Inglaterra foi uma das melhores experincias

    que eu tive. Uma das cidades mais legais que eu conheci foi Liverpool. Tanto porque eu

    sou torcedor do Liverpool (Figura 9) quanto porque uma das minhas bandas preferidas

    de l, os Beatles. Eu coloco Liverpool na frente de Berlim, de qualquer outra viagem. Eu

    tive a oportunidade de passar em frente a casa do John, ou do lugar onde ele e o Paul se

    conheceram. Eu fui ao bar onde eles fizeram o primeiro show e subi e cantei no palco. Eu

    pisei no mesmo lugar que eles. Essa rua, Abbey Road, (Figura 10) a capa de um dos

    discos dos Beatles, no qual tem eles a atravessando.

  • Londres foi incrvel. uma cidade cosmopolita, onde voc escuta todos os idiomas. Em

    alguns momentos, eu tinha a impresso de que no estava na Inglaterra, mas de que eu

    e