tanatologia vida e finitude

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Tanatologia Vida e finitude Informações gerais para os módulos Velhice e morte, Medicina e morte e Cuidados paliativos e Bioética Tanatologia.pmd 25/03/2008, 12:35 1

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Informações gerais para os módulosVelhice e morte,

Medicina e morte eCuidados paliativos e Bioética

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

ReitorRicardo Vieiralves de Castro

Vice-reitoraChristina Maioli

Sub-reitora de GraduaçãoLená Medeiros de Menezes

Sub-reitora de Pós-Graduação e PesquisaMônica da Costa Pereira Lavalle Heilbron

Sub-reitora de Extensão e CulturaRegina Lúcia Monteiro Henriques

UNIVERSIDADE ABERTA DA TERCEIRA IDADE

DireçãoRenato Peixoto Veras

Vice-direçãoCélia Pereira Caldas

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Professor Euler Esteves Ribeiro, M.D., Ph.D.

Rio de Janeiro2008

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Informações gerais para os módulosVelhice e morte,

Medicina e morte eCuidados paliativos e Bioética

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CATALOGAÇÃO NA FONTECRDE/UnATI/UERJ

R484 Ribeiro, Euler EstevesTanatologia: vida e finitude. Informações gerais para os módulos:

velhice e morte, Medicina e morte, cuidados paliativos e bioética - Rio deJaneiro: UERJ, UnATI, 2008.

145 p.

ISBN 978-85-87897-17-6

1.Tanatologia 2. Envelhecimento 3. Cuidados paliativos 4. Morte 5.Bioética I.Ribeiro, Euler Esteves II. Título.

CDU 612.67

Copyright © 2008, UnATITodos os direitos desta edição reservados à Universidade Aberta da Terceira Idade. É proibida aduplicação ou reprodução deste volume, ou de parte do mesmo, sob quaisquer meios, sem autori-zação expressa da UnATI.

Universidade Aberta da Terceira IdadeRua São Francisco Xavier, 524 – 10º andar – Bloco F – Maracanã - Rio de Janeiro – RJ – CEP20.559-900Tels.: (21) 2587.7236 / 7672 / 7121 Fax: (21) 2264.0120e-mail: [email protected]: www.unati.uerj.br

Coordenação Produção Rosania RolinsRevisão Alcides MelloProjeto Gráfico e Diagramação Gilvan FranciscoCapa Heloísa Fortes

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Apresentação

A morte constitui um dos maiores enigmas da existência humanae demandou esforços para seu equacionamento ao longo da história dopensamento ocidental (DASTUR, 2002). É considerada como grande divisordas águas na plena constituição dos homens e, de acordo com Martins(2001), é a mais universal das experiências, e sua representatividade variaentre as culturas.

Conhecemos a morte somente mediante o processo de morrer dosoutros, cujas vivências jamais nos serão acessíveis em sua real dimensão.Mesmo se constituindo em um fenômeno da vida, sempre despertou grandetemor no ser humano, e este sentimento se expressa na dificuldade de selidar com a finitude, estando presente nas crenças, valores e visão de mundoque cada um traz consigo. Trata-se de um acontecimento medonho, pavo-roso, um medo universal, mesmo sabendo que o homem é capaz de dominá-la em vários níveis (KUBLER-ROSS, 1985). Este sentimento é parte naturaldo comportamento humano, e nas culturas que a percebem como aconte-cimento natural, o medo de morrer não está presente.

Sócrates, citado por Dastur (2002), sugere que o medo da morteé algo antinatural, pois se baseia na noção de que se conhece algo que sedesconhece. A relação do ser humano com a morte vem se transformandoatravés dos séculos, e já foi considerada como um acontecimento natural,inevitável e perfeitamente aceito. Essa relação anterior de familiaridadecom a morte possui hoje outra conotação na cultura ocidental, visto queas pessoas se sentem desconfortáveis perante ela.

No mundo moderno, a morte está escondida como algo sujo evergonhoso, sinônimo de absurdo, horror e sofrimento; algo escandalosoe insuportável (IMEDIO, 1998). Segundo Thomas, citado por Martins

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(2001), as sociedades modernas tendem a escamotear a morte. Apesar determos consciência de nossa finitude, falar sobre ela é, normalmente,considerado um ato mórbido, uma tentativa de mau gosto.

A finitude da vida possui sempre duas representatividades: umafísica e outra social, a morte de um corpo (biológica) e a morte de umapessoa (MARTINS, 1983). A morte de uma pessoa adulta significa, nor-malmente, dor e solidão para os que ficam. Portanto, sob este prisma éapenas a destruição de um estado físico e biológico que ela traz, mas étambém o fim de um ser em correlação com um outro. Este vazio porela deixado não atinge somente as pessoas que conviviam com quemmorreu, mas também a toda rede social (RODRIGUES, 1983).

É interessante lembrar que, dentre todos os seres humanos queprecisam conviver com os sentimentos provocados pela morte, os traba-lhadores da área de Saúde se encontram mais suscetíveis, pois no cenáriodas instituições hospitalares ela está constantemente presente, motivo peloqual é tema relevante, porém de difícil abordagem reflexiva no cotidianoda prática de cuidado da enfermagem, porquanto temos cristalizado emnosso ser o jargão “enquanto há vida há esperança”. Neste sentido,vivenciamos um dilema existencial em função do valor negativo dado àfinitude, na qual a vida é valorizada e a morte significa a extinção totaldo ser. O jargão também indica uma obstinação terapêutica que procura,a todo custo, prolongar a vida (HENNEZEL & LELOUP, 1999), motivopelo qual as instituições de Saúde investem cada vez mais em recursostecnológicos para reestruturação e recuperação do paciente crítico, ouseja, para manutenção da vida. Nesses ambientes, a morte quase sempreé vista como fracasso, como derrota.

As situações de terminalidade na área da Saúde são freqüentespara os profissionais e muitas vezes inevitáveis, ficando o trabalhadorexposto a diversas sensações, porquanto os hospitais são caracterizadoscomo instituições de cura e recuperação, e as Unidades de Terapia Inten-siva (UTIs) como locais reservados para manutenção da vida a qualquercusto. Entretanto, o que se observa nas unidades críticas, em geral, é umaatenção destinada às técnicas, à tecnologia que dá suporte para a manu-tenção da vida, em detrimento da condição humana e das necessidadesemocionais do paciente. Contudo, não podemos esquecer que o ato de

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cuidar vai muito além do fazer técnico, implica no entrelaçamento dasações de cuidado instrumentais e expressivas, isto é, ligadas à subjetivi-dade do corpo cuidador (LABRONICI, 2002). Assim sendo, espera-seque a equipe de enfermagem, mediante o cuidado profissional, desenvolvasuas ações objetivando não somente assistir o ser humano no instantesublime que é seu nascimento, mas se comprometer com esse momentodesconhecido em sua essência, ou seja, o momento da morte.

Boemer, citado por Lunardi Filho et al., (2001), afirma que,desde a sua formação, o profissional enfermeiro se sente compromissadocom a vida, e é para preservação desta que deverá se sentir capacitado.Sua formação acadêmica está fundamentada na cura e nela está a suamaior gratificação. Assim, quando em seu cotidiano de trabalho necessitalidar com a morte, em geral, sente-se despreparado, e tende a se afastardela.

É PRECISO MUDAR ESTE QUADRO.

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Sumário

1. Velhice e morte .............................................................................. 111.1 Generalidades sobre o tema ................................................... 11

1.1.1 A difícil tarefa de compreender o nascere o morrer ................................................................... 11

1.1.2 Mitos, costumes, lendas e curiosidades sobrea morte ......................................................................... 15

1.2 O velho: ser biológico, ser biográfico ................................. 201.2.1 O envelhecimento biológico ........................................ 21

1.3 Relacionamento entre o profissional da Saúde e o idoso .... 271.3.1 Relação profissional paciente-idoso ............................. 321.3.2 Dever prima facie ......................................................... 351.3.3 Comunicação de más notícias .................................... 36

1.4 Os direitos do paciente idoso ............................................... 401.4.1 Direitos do paciente à luz da legislação brasileira ..... 42

1.5 O idoso como paciente terminal .......................................... 491.6 Envelhecimento e morte ......................................................... 49

1.6.1 Qual o segredo para chegar ao centenário?................ 491.6.2 Morte e envelhecimento .............................................. 55

2. Medicina e morte .......................................................................... 592.1 A história da morte ............................................................... 59

2.1.1 Sobre os mistérios da morte e o amparo àquelesque dela se aproximam................................................ 64

2.1.2 Por que falar da morte? ............................................... 652.2 A morte e a Medicina ........................................................... 722.3 A morte e a Psicanálise ......................................................... 732.4 A morte e o ensino médico ................................................... 75

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2.5 Terminalidade ......................................................................... 772.5.1 O que é o paciente terminal? ..................................... 79

2.6 Bioética e medicalização da morte ....................................... 812.6.1 O paciente terminal: vale a pena investir

no tratamento? .............................................................. 813 Cuidados paliativos e Bioética ....................................................... 85

3.1 Cuidados paliativos e aspectos psicológicos .......................... 853.1.1 O cuidado à família do paciente

gravemente enfermo ..................................................... 873.1.2 Autonomia e direito de morrer com dignidade ......... 913.1.3 Morrer com dignidade .............................................. 1073.1.4 O profissional de Saúde e a morte .......................... 1083.1.5 O que podemos fazer ................................................ 1093.1.6 Aprendendo a morte para ajudar melhor ................. 110

3.2 Bioética – conceitos básicos e definições ........................... 1143.2.1 Velhos temas, novas perplexidades ............................ 1153.2.2 Ética, Moral e Direito .............................................. 1413.2.3 A evolução da definição de Bioética na

visão de Van Rensselaer Potter – 1970 a 1998 ....... 1423.2.4 Bioética no Brasil – iniciativas institucionais ........... 145

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Velhicee morte

1.1 Generalidades sobre o tema

Esta seção objetiva fornecer subsídios teóricos e conceituais paraas discussões durante as aulas sobre o tema abordado nesta disciplina, ouseja, a velhice e a morte do ser humano.

1.1.1 A difícil tarefa de compreender o nascer e o morrer1

Adaptação do texto original de Mariana Parisi e Cláudia França (Redação do jornal Aprender)

A difícil aceitação da morte de um ente querido é natural e muitocomum, porém, o prolongamento desta dor pode trazer conseqüênciasdrásticas para qualquer indivíduo que vive o luto. Uma relação de com-portamentos elaborada a partir de pesquisas do estudioso José Paulo daFonseca (2001) mostra alguns comportamentos freqüentes diante daiminência da morte, ao que este autor chama de “luto antecipatório”:2

Choque – Acontece quando a pessoa fica sabendo da doença esofre um abalo de desespero, atordoamento, entorpecimento, confusão.As reações podem variar desde uma apatia completa até a superatividade.Muitas vezes a pessoa se sente como se estivesse no ar, como se tudo nãopassasse de um sonho, ou, mais precisamente, de um pesadelo que aqualquer momento vai terminar. Pensa: “vou acordar e saber que nada

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1 Disponível em: <http://eaprender.ig.com.br/jornal_materia_ver.asp?IdMateria=1240>.2 De acordo com a Psicologia, entende-se por luto antecipatório uma série de processos

pelos quais passam os familiares de uma pessoa que sofre de uma doença grave, sendomuito provável que venha a morrer em um tempo mais ou menos curto.

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disto é verdade, que foi um pesadelo que tive”. Outras vezes, asuperatividade no trabalho é um meio de tentar fugir da realidade dema-siadamente angustiante para ser aceita facilmente. O lema é “fazer muitascoisas, estar o dia todo completamente ocupado, sem um minuto livre, afim de não pensar”.

Negação – Acontece quando a pessoa demonstra não saber lidarcom a situação e se protege por meio de uma tentativa de continuar aviver como se nada tivesse mudado na sua vida. É própria da incapaci-dade de aceitar uma realidade iminente. A pessoa pode reagir com iso-lamento – quando fica ensimesmada – ficar calada, reflexiva, apática.Trata-se de um mecanismo de defesa usado para poder lidar com asresponsabilidades diárias da vida e para poder ganhar tempo, assimilandoaos poucos o que aconteceu. Neste caso, geralmente o silêncio é o meioque a pessoa encontra para lidar com a realidade.

Ambivalência – Acontece quando a pessoa flutua, em um movi-mento pendular, entre a aceitação de uma perda iminente e sentimentose reações de negação. Reflete sobre o estado, por exemplo, mas faz planosde longo prazo. Muitas vezes este mecanismo de defesa usado pelo paci-ente tem um efeito altamente positivo. O fato de fazer planos e ir à lutapara vê-los realizados é um poderoso motor para se manter vivo e lúcido.O fato de ter objetivos ainda para cumprir pode ser uma medida positivade se aferrar à vida. É comum que pessoas que tinham um importanteobjetivo – como, por exemplo, reconciliar-se com algum familiar, fazeruma transação comercial para deixar uma herança para seus filhos, publi-car um livro ao qual dedicou muitas horas de pesquisas e trabalho, etc.– possam usar esses logros para ajudar na luta pela vida e, especialmente,para não cair numa depressão profunda, fato que, sem dúvida, encurtaráa vida.

Revolta – Acontece muito comumente. A pessoa se sente casti-gada, com muita raiva, ressentida, e esses afetos provocam, muitas vezes,protestos contra si mesma ou contra o destino, Deus, etc.

É interessante ver com que freqüência se vincula a doença a umcastigo pela vida levada ou a um castigo que não tem uma lógica que opossa explicar. A relação de causa–efeito muitas vezes aparece no discursodo doente e de seus familiares. A pessoa doente se queixa: “que mal fiz

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na vida para merecer isto, este castigo?” Há toda uma cultura que vemse arrastando por muitos anos, por muitos séculos, que explica todadoença como um castigo divino frente a uma falta (muitas vezes estecastigo tem como causa uma infração que nem mesmo a pessoa cometeue, sim, seus antepassados, tal como consta no Velho Testamento).

Negociação – Aparece o sentimento religioso ou a procura poralguma força superior (que pode adquirir os matizes mais diversos) paraque possa ser feito um acordo de prolongar a vida, isto é, adiar a morteou curar. Nesse momento, intensificam-se as manifestações de crença ese realizam ritos com a finalidade de obter esse resultado. Com freqüên-cia, tanto o paciente quanto seus familiares tentam todo tipo de recursosde cura, fazendo uma verdadeira peregrinação por inúmeros cultos, reli-giões, crenças e ritos. Muitas vezes também são presa fácil de charlatõesque exercem sua impostura tirando proveito econômico do desesperofrente à procura de uma cura milagrosa.

Depressão – Uma tristeza profunda se apodera do doente ou deseus familiares, ou ambos. Simonton (1987), no seu trabalho, mencionaa grande dificuldade de um enfermo melhorar ou prolongar a vida se forvítima de depressão. O autor constatou que os pacientes que manifestamuma firme vontade de sarar, de viver, obtêm uma sobrevida muito signi-ficativa. Entretanto, os que sofrem de depressão resistem muito menos aocalvário do tratamento e morrem muito antes.3

Os comportamentos mencionados não são ex-clusivos do luto antecipatório, são também muito fre-qüentes no luto real. O ser humano nunca está prepa-rado para o desconhecido. Por esse motivo, o pavor ea recusa, diante do fato de conviver com a ausência dealguém ou mesmo com a idéia de desconhecer o lugare a situação para qual o destino o levou.

Apesar do sofrimento, é importante tentar compreender a dinâ-mica do ciclo da vida e perceber que a morte desempenha o seu papelna sociedade: o de renovar, dando lugar e espaço para novas vidas.

3 MONTOTO, Claudio César; PEREIRA, Rosana Aparecida. Frente e Verso: Compaixonar-se. São Paulo: Editora Phênix, 2002:24-26.

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Assim como o nascer, o morrer faz parte da natureza de todosos seres. Mesmo sem obedecer a regras ou a qualquer período de tempo,esta lei da natureza se encarrega de garantir uma constante recolocação ereestruturação social.

À medida em que se observa o mundo, é possível perceber quetudo está em mutação e nada é para sempre, inclusive a dádiva de viver.Todos os dias, novas vidas chegam às maternidades e os mais jovensacabam por ocupar o espaço daqueles que se ausentam do convívio.

Sobre isto, a teóloga, professora, escritora e antropóloga MariaÂngela Vilhena esclarece que a morte tem repercussão direta na própriaorganização da vida, da sociedade e do mundo: “A morte repercute emtodos os setores da vida: nas relações sociais, políticas e do mundo”.

“A morte implica num rearranjo da economia, por exemplo. Ouseja, se ocorre a morte de um operário, há uma função trabalhista quedeixa de ser cumprida; essa perda deixa um vácuo que deve ser preenchi-do. O mesmo acontece quando ocorre a morte de um professor, de umempresário e de qualquer outro trabalhador”, explica Vilhena.

Obviamente, cada ser é único e ímpar em todos os aspectos davida e, por mais que sejam substituídos em certas ações operacionais,jamais serão substituídos em suas realizações e empreendimentos. Ho-mens e mulheres, todos os dias, de formas distintas, relacionam-se unscom os outros e com tudo que há no mundo – fazem assim porque sãoseres dotados de inteligência, sentimentos e outras capacidades. E, nestesaspectos da vida, o ser humano deixa a simples posição de ser um alguémpara passar a ser o sujeito de ações e pensamentos singulares. Destaforma, todos constroem a história da humanidade e são lembrados pelaspessoas.

Diante de todos esses fatos e argumentos, é impossível não pen-sar que é um certo “egoísmo” humano querer ser imortal. A grandemaioria deseja a vida eterna para si e para os seus. Sem analisar o quãoprejudicial isso poderia ser para o funcionamento normal da sociedade,por exemplo.

“A morte é necessária também no âmbito familiar, pois quemhoje é filha em uma família, amanhã será mãe e posteriormente avó eassim por diante. Isso significa que os lugares na família também devem

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ser preenchidos, permitindo assim que todos tenham a mesma experiênciade vida”, afirma Vilhena.

Na vida humana, sempre haverá a consideração do fato de quemesmo quando um ser humano deixa de viver entre os demais, aindaassim ele continuará eterno nas lembranças, na lição transmitida, noexemplo de pessoa e nas obras construídas em vida.

A morte também educa para uma vida mais intensa, com sentimen-tos profundos. Enfim, ela ensina que o importante é construir uma históriamais cheia de ações que poderão ser lembradas, pois em algum momento dofuturo ela aguarda aqueles que ainda vivem. E, daqueles que se foram, elanunca levará os bons sentimentos e as boas lembranças que ficaram.

1.1.2 Mitos, costumes, lendas e curiosidades sobre a morte4

• LUTO

O luto é uma forma de expressar um sentimento de dor, tristeza,pelo falecimento de uma pessoa ou animal.

As expressões do luto são representadas por meio de variadosgestos.

Roupas – Em geral, o preto, o roxo e o vermelho são ascores que marcam o luto.

Faixa preta no braço esquerdo.

Chapéu.

4 Disponível em: <http://eaprender.ig.com.br/Viewer.asp?RegSel=98&Pagina=1#materia>.

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Véu.

Levantamento de bandeira a meio mastro.

Silêncio – Minutos de silêncio em cerimônias para homena-gear ou expressar respeito a alguém.

Sextas-feiras – Dia em que Jesus Cristo morreu. Neste diaé costume não tocar os sinos. Neste dia também são reali-zados os jejuns e as penitências.

Sol – Segundo uma crença popular, o sol usa um véu negroaté seu nascimento no dia seguinte.

• A SIMBOLOGIA DAS CORES EM RELAÇÃO À MORTE

As cores são também expressões de sentimentos e servem parasimbolizar um estado de espírito. Conheça a relação de algumas cores queexpressam o luto ou sentimentos relacionados com a morte.

Preto – No luto, a cor que mais representa o sentimento dedor é o preto. Sua definição, em geral, é o protesto, arebelião, o mistério, a neutralidade, a tristeza, a cor repre-sentante da morte, uma cor muito ligada à liturgia. Essa corfoi muito usada por gregos e romanos.Azul – Na China, essa cor é freqüentemente usada para oluto. Sua representação demonstra repouso, calma, tranqüi-lidade, afeto, espiritualidade, meditação e liberdade.

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Branco – Entre os gregos, os romanos e germanos, o brancojá foi visto como cor de luto. Essa cor representa paz inte-rior, pureza, inocência, passividade, superioridade. Comocor-luz, o branco é a mistura de todas as cores.Vermelho – O vermelho era usado como cor de luto naRenascença, época de vida de grandes pintores como Leo-nardo da Vinci, Rafaello Santi, Michelangelo, entre tantosoutros. Além disso, também é usado em cerimônias do Papa.Essa cor é a representação da energia intuitiva, do amor, dacompetição e da irracionalidade.Violeta – É mais uma das cores usadas como representaçãodo luto em vestimentas e freqüentemente é encontrada emparamentos litúrgicos. Por ser uma cor ambígua, passa tantoa tristeza quanto a alegria, e pode ser representada comouma cor que une a intuição com a razão.

• A VELAA chama acesa da vela é um símbolo da individuação, da vida,

e também dos anos representados em festas de aniversários. Também asvelas que ardem ao pé de um defunto simbolizam a luz da “alma” em suaforça ascensional, a pureza da chama espiritual que sobe para o céu, aperenidade da vida pessoal que chega ao seu ponto mais elevado naabóbada celeste.

• A SIMBOLOGIA DA FOICE OU ALFANJEÉ geralmente empunhada por uma personificação da morte.

Comum entre os druidas de cultura celta, era usada para colheita e rituaisdruídicos. Sua simbologia é atribuída ao tempo, à morte e à colheita. Nobaralho cigano, é a décima carta, seu nome é: “foice/transformação”. Suatradução é “algo que está passando por uma transformação, reavaliação,reformulação”, objetivando algo melhor.

Atributo de Saturno, de Crono. Na qualidade de senhor da vidae da morte, Shiva segura um lenço e uma foice nas mãos. Segundo aBíblia, a foice é a imagem do juízo final divino (Jo 14,13; Ap 14,15). Afoice cruzada com um martelo é o símbolo do comunismo.

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• A MORTE E A CRUZEm geral, o papel da cruz é visto como uma ponte por meio da

qual a alma pode chegar a Deus, ou seja, como ligação do mundo terres-tre com o celestial. Existem vários tipos de cruzes e cada uma tem umsignificado envolvido com a morte. Nos dias atuais, elas são usadas comosímbolo que representa a iluminação do ser.

Cruz CristãÉ a mais conhecida, devido à cultura cristã. Era utilizada emRoma para crucificar criminosos. Por isso, remete ao sacri-fício de Jesus para pagar os pecados da Humanidade. Repre-senta a Vida Eterna e a Ressurreição. Um símbolo que lem-bra de Cristo ou alguém próximo que faleceu.

SimplesAlguns estudiosos definem como cruz grega. Ela é o símboloperfeito da união dos opostos.

CalvárioÉ erguido sobre três degraus, e é relacionado com a subidade Cristo até ao Calvário para ser crucificado. Exalta a fé,a esperança e o amor.

Santo AndréRepresenta a humildade, o sofrimento. Segundo estudos,recebeu esse nome devido a Santo André, que implorou aosseus algozes para não ser crucificado como o seu Senhor,não se achava merecedor, então foi crucificado nessa forma.

• VAMPIRISMO E MORCEGOSNa Idade Média, os morcegos eram figuras associadas com bruxas

e demônios. Essa relação é feita principalmente porque é um animal poucovisto durante o dia. Segundo a crença, são seres anunciadores da morte.

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Existem registros de lenda sobre o vampirismo desde 125 d.C.As primeiras histórias aparecem na mitologia grega. A origem da palavravem de Upir, da qual se derivou a palavra vampiro – Upir Lichy, era otermo original que significa vampiro maldoso. Este vampiro maldososurgiu no leste da Europa e se expandiu por meio de caravanas até serincorporado às histórias famosas como as do Conde Drácula ou do Prín-cipe Vlad.

Existem várias versões para as lendas dos vampiros, sendo que amais conhecida é de uma pessoa amaldiçoada – supõe-se que ela viveráa eternidade junto à Humanidade, mas sem alma, ou seja, um morto-vivo.O sangue mortal seria sua alimentação, condição primordial para manterseu corpo em estado de perfeição. Em algumas histórias, o faminto porsangue se transforma em morcego e sai a sobrevoar durante a noite parasaciar sua sede, transformando suas vítimas em outros vampiros.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA CONSULTADA

LURKER, Manfred. Dicionário da Simbologia. Tradução de Mario Krausr e Vera

Barkow. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1997, p. 275, 454-459.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos,

costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Tradução de Vera da Costa e

Silva, R. de Sá Barbosa, A. Melim e L. Melim. Rio de Janeiro: Editora José

Olímpio, 2002, p. 933-934.

REVISTAS

CARDILHO, Anna Maria R. PCNE, o professor criativo na escola. Ano III, nº 8, abril/

maio/junho. Editora Didática Paulista, p. 16.

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1.2 O velho: ser biológico, ser biográfico

A consideração da velhice como fenômeno natural apoiado embases biológicas tem sustentação historicamente localizável entre os séculosXVIII e XIX, com a Teoria de Darwin.

A existência humana, representada como desenvolvimento vital,é o aval para a divisão do ciclo de vida, onde a velhice, tendo realizadoseu potencial evolutivo, liga-se a uma fase de decadência. No interior dodiscurso da Medicina, a velhice não diz respeito somente aos efeitosdeletérios da passagem do tempo sobre o corpo (às vezes circunscritos àinvolução cerebral), mas à promessa de seu adiamento na via da ilusão deuma “juventude eterna”.

Já no terreno social, procedeu-se, nos últimos anos, a uma reno-vação da idéia de velhice, que passou a se apoiar em ideais expressos emtermos de uma “velhice saudável, ativa, feliz, com qualidade de vida”.

No campo das práticas prevalece a profusão de enunciados pe-dagógicos que, visando uma melhor adaptação às chamadas perdas davelhice, acabam por ressaltá-las. Aprisionando o sujeito em ideais, tam-bém supõem um caminho generalizável, onde a singularidade de seu desejonão comparece. Aos velhos doentes, cansados, em sofrimento, muitasvezes resta a resposta “é da velhice [...]” que faz calar a diferença. Encon-tramos, neste breve recorte, ressonâncias do discurso do mestre que,operando pela sugestão, recalca a subjetividade e promove uma visãouniversalizante e normativa.5

Entender o paciente enquanto ser biológico é perceber suas ca-pacidades e limitações físicas. No entanto, ao se adotar uma abordagemholística sobre este mesmo paciente, o profissional da Saúde passa entãoa visualizar este paciente enquanto ser biográfico, ou seja, entende que opaciente tem uma história, uma vida, um background cultural, familiar,social e profissional que merece ser considerado durante seus momentosde finitude.

5 JORGE, M. A. C. Discurso e liame social: apontamentos sobre a teoria lacaniana dosquatro discursos. In: Saber, verdade e gozo: leituras de O Seminário, livro 17 de JacquesLacan. Rinaldi, D.; Jorge, M.A.C. (Org.). Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2002.

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Mas para isso é preciso que o médico – ou qualquer outroprofissional que atue diretamente com o paciente, seja ele enfermeiro,fisioterapeuta, etc. – compreenda a magnitude do processo de desenvol-vimento humano.

1.2.1 O envelhecimento biológicoDoutor Euler Ribeiro, M.D., Ph.D.6

O mundo todo convive hoje em dia com um estoque cada vezmaior de pessoas acima de 60 anos. A Organização Mundial da Saúde(OMS) estabeleceu que – para fins burocráticos – nos países do PrimeiroMundo são considerados idosos os indivíduos acima de 65 anos. Porém,nos países em desenvolvimento esta idade limite é de 60 anos.

Nos meados do século passado, a expectativa de vida do povobrasileiro ficava em torno de 39 anos. Em menos de 50 anos, esta expec-tativa dobrou e atualmente fica em torno de 70 anos. Esta situação é bemdiferente do que acontece nos países do Primeiro Mundo, os quais demo-raram 100 anos para dobrar esta mesma expectativa de vida. Vale aindaressaltar que a população de idosos passou de menos de 4% da populaçãoglobal para um índice próximo de 10%.

O que está previsto para os próximos 20 anos é que a populaçãode idosos no Brasil possa chegar a 14% do total. Hoje temos, em média,17 milhões de pessoas acima de 60 anos e, provavelmente em 2020,seremos mais de 25 milhões. Este fenômeno traz uma preocupação socialmuito intensa porque a cada dia entra um menor contingente de cidadãoscontribuintes no sistema previdenciário ao mesmo tempo em que aumen-ta em progressão geométrica aquele grupo dos que vão auferir benefíciosda Previdência Social. Se não existirem contribuintes suficientes parafazer face às despesas com aqueles que têm direito a benefícios, comcerteza teremos dificuldades sérias em futuro próximo com as questõesdas aposentadorias.

6 RIBEIRO, Euler Esteves. Viver 100 anos: dicas para envelhecer com sucesso. Manaus:Editora do Governo do Estado do Amazonas, 2005.

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Este envelhecimento populacional se deve a vários fatores bemdefinidos, tais como a queda da mortalidade prematura, o declínio damortalidade infantil, os avanços na Medicina moderna e melhorias sani-tárias, além das mudanças nas políticas públicas voltadas para a Saúde.

Com estas noções da epidemiologia do envelhecimento do povobrasileiro, gostaria de chamar a atenção para um “mito”: ser “velho” nãoé igual a ser “doente”!

O que acontece é que com o envelhecimento o homem vaiperdendo as funções, e a isto denominamos de “envelhecimento biológico”ou “senescência”.

CHAMAMOS A ATENÇÃO MAIS UMA VEZ PARA QUE ESTEFENÔMENO NÃO SEJA CONFUNDIDO COM DOENÇA!

Existe uma classificação para os idosos:• idosos jovens – de 65 a 74 anos;• idosos velhos – de 75 a 84 anos;• idosos muito velhos – de 85 anos e mais.

Portanto, o envelhecimento tem como definição: “fenômeno ca-racterizado pela perda progressiva da reserva funcional, que torna o indi-víduo mais propenso a ter doenças e aumenta as suas chances de morte”.

Existem várias teorias a respeito do envelhecimento, e as princi-pais são:

• Teorias dos Radicais Livres;• Teoria do Acúmulo de Mutações;• Teoria da Morte Celular Programada;• Teoria da Falta de Reparo nos Defeitos do DNA;• Teoria do Encurtamento dos Telômeros.

O que os cientistas têm mostrado por meio de pesquisas é queas células dos seres vivos vêm com uma programação de sobrevida. Quandose exaure a capacidade de se replicar, a célula reconhece a sua exaustãoe se suicida, o que leva o nome de “apoptose celular”.

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Os pesquisadores estão trabalhando exatamente em cima destespontos, tentando fazer intervenções no processo de morte celular progra-mada e verificando a possibilidade de retardar o encurtamento dostelômeros do DNA quando estes sofrem encurtamento no processo dereplicagem celular.

Já existem moscas das frutas (drosófilas) que vivem normalmente16 dias e com intervenções a este nível passam a viver 40 dias. Assim, osseres humanos também irão ter a mesma oportunidade em um futuro muitopróximo, uma vez sofrendo intervenções, de viver 150 e até 200 anos.

Vamos agora mostrar as modificações gerais que o envelhecimen-to causa nos seres vivos. Trataremos das modificações das gorduras, massatecidual magra, ossos, água intracelular, água extracelular e dos órgãos deuma maneira geral.

TABELA 1 Composição corporal conforme a idade25 anos 75 anos

15% gorduras 30%17% massa magra 12%6% ossos 5%

42% água int. cel. 33%20% água ext. cel. 20%

25 anos 75 anosFonte: Goldman, 1970

COM RELAÇÃO AO DESCONTROLE DA TEMPERATURA

Hipotermia• Diminuição da sensação de frio• Diminuição da resposta vaso constritora ao frio• Diminuição da resposta ao calafrio• Diminuição da termogênese

Hipertermia• Elevação do limiar central da temperatura

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• Diminuição da capacidade de perceber calor• Diminuição da sudorese• Diminuição da reserva cardiovascular

MODIFICAÇÕES SISTÊMICAS

Pele• Alterações do colágeno• Alterações das fibras elásticas• Alterações dos melanócitos

Pêlos e unhas• Calvície• Canice• Buço• Crescimento lento• Formas irregulares• Onicogrifose

Ossos, articulações e músculos• Redução do osso compacto e trabecular• Crânio soldado• Desgaste da mandíbula e maxilar• Anquilose costocondral• Diminuição dos discos vertebrais• Atrofia muscular

Sistema nervoso• Diminuição da massa encefálica• Deposição de proteína BETA AMILÓIDE• Deposição de proteína TAU• Diminuição da memória para fatos recentes• Evocação complicada• Neurotransmissores diminuídos• Redução total do sono não-REM

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Órgãos dos sentidos• Presbiacusia• Hiperpigmentação das pálpebras• Ptose palpebral• Presbiopia• Receptores olfatórios diminuídos• Receptores gustatórios atrofiados

Sistema cardiovascular• Artérias enrijecidas e tortuosas• Peso do coração aumentado• Hipertrofia ventricular• Pericárdio e endocárdio espessados• Válvulas aórticas e mitral degeneradas• Estenose e insuficiência valvar• Degeneração do sistema de condução• Redução da capacidade funcional• Aumento da pressão sistólica

Sistema respiratório• Enrijecimento das cartilagens da traquéia• Elasticidade pulmonar diminuída• Dilatação alveolar e formação de cistos• Complacência diminuída• Aumento do volume residual• CPT não modifica• CV diminui• Relação ventilação–perfusão alterada• PAO2 diminuído• PACO2 normal• Eficácia da tosse diminuída

Sistema digestivo• Perda gradual dos dentes• Dificuldades de mastigação

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• Nutrição prejudicada• Mucosa vulnerável aos agentes infecciosos• Glossodínia• Diminuição das células secretoras• Motilidade comprometida• Discenesia biliar• Fígado diminuído• Aparecimento de divertículo

Sistema urinário• Diminuição do tamanho do rim• Diminuição do número de glomérulos• Alterações das frações de ejeção• Alterações da filtração glomerular• Alteração da depuração da creatinina• Diminuição na síntese da aldosterona• Aumento do hormônio antidiurético

Sistema endócrino• Atrofia das glândulas: tiróide, hipófise• Paratireóides, supra-renais• Diminuição da testosterona e estrógenos• Aumento da produção dos hormônios FSH-LH• Aumento da resistência à insulina• Diminuição da tolerância à glicose

Sistema genital• Atrofia ovariana• Esterilidade após a menopausa• Flacidez mamária• Vagina diminui em comprimento e largura• Mucosas atrofiadas e ressecadas• Ptose uterina• Diminuição do pênis• Aumento da bolsa escrotal

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• Atrofia testicular• Diminuição da libido

Assim, com todas estas disfunções, os idosos ficam mais suscep-tíveis às doenças e o risco de morte se acentua.

1.3 Relacionamento entre o profissional da Saúde e o idoso

No site oficial da Universidade Federal do Rio Grande do Sul(UFRGS), na seção destinada ao Núcleo Interinstitucional de Bioética, épossível encontrar diversos e valiosos escritos dos renomados ProfessoresJosé Roberto Goldim e Carlos Fernando Francisconi, os quais, com ex-celência, apresentam um material de altíssimo nível sobre o tema. Estesestudiosos, ao descreverem os modelos existentes da relação médico–paciente, usam como referência os ensinamentos do Professor RobertoVeatch, do Instituto Kennedy de Ética da Universidade de Georgetown(Estados Unidos), o qual propôs, em 1972, que basicamente existemquatro modelos de relação médico-paciente, como segue:

Modelo SacerdotalÉ o mais tradicional, pois se baseia na tradição hipocrática.

Neste modelo, o médico assume uma postura paternalista com relação aopaciente. Em nome da Beneficência, a decisão tomada pelo médico nãoleva em conta os desejos, crenças ou opiniões do paciente. O médicoexerce não só a sua autoridade, mas também o poder na relação com opaciente. O processo de tomada de decisão é de baixo envolvimento,baseando-se em uma relação de dominação por parte do médico e desubmissão por parte do paciente.

Em função deste modelo e de uma compreensão equivocada daorigem da palavra “paciente”, este termo passou a ser utilizado comconotação de passividade. A palavra paciente tem origem grega, signifi-cando “aquele que sofre”.

Modelo EngenheiroAo contrário do Sacerdotal, coloca todo o poder de decisão no

paciente. O médico assume o papel de repassador de informações e

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executor da ações propostas pelo paciente. O médico preserva apenas asua autoridade, abrindo mão do poder, que é exercido pelo paciente. Éum modelo de tomada de decisão de baixo envolvimento que se caracte-riza mais pela atitude de acomodação do médico do que pela dominaçãoou imposição do paciente. O paciente é visto como um cliente quedemanda uma prestação de serviços médicos.

Modelo ColegialNão diferencia os papéis do médico e do paciente no contexto

da sua relação. O processo de tomada de decisão é de alto envolvimento.Não existe a caracterização da autoridade do médico como profissional,e o poder é compartilhado de forma igualitária. A maior restrição a estemodelo é a perda da finalidade da relação médico–paciente, equiparando-a a uma simples relação entre indivíduos iguais.

Modelo ContratualistaEstabelece que o médico preserva a sua autoridade enquanto

detentor de conhecimentos e habilidades específicas, assumindo a respon-sabilidade pela tomada de decisões técnicas. O paciente também participaativamente no processo de tomada de decisões, exercendo seu poder deacordo com o estilo de vida e valores morais e pessoais. O processo ocorreem um clima de efetiva troca de informações e a tomada de decisão podeser de médio ou alto envolvimento, tendo por base o compromisso esta-belecido entre as partes envolvidas.

Este último modelo, entendido por muitos como sendo o ideal darelação médico–paciente, estabelece a preservação da autoridade do mé-dico em relação ao paciente em virtude de suas qualidades técnicas e deconhecimento, mas condiciona o exercício de tal autoridade a uma íntimarelação de confiança entre paciente e médico e a uma troca de informa-ções recíproca e necessária ao estabelecimento da verdadeira relação deafeição, credibilidade e confiança a se formar entre as partes.

Além da descrição dos modelos sugeridos pelo Professor RobertoVeatch, a fim de caracterizar a relação médico–paciente é necessário quese faça ainda uma rápida análise dos princípios da Bioética, tambémchamados de deveres prima facie dos indivíduos, quais sejam:

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Princípio da AutonomiaTal princípio vem sendo estudado ao longo da história, tendo

recebido diferentes denominações e teorias acerca de sua caracterizaçãoe conceituação. Abaixo se apresentam algumas definições destes princípi-os encontradas na literatura.

• John Stuart Mill:7 propôs que “sobre si mesmo, sobre seucorpo e sua mente, o indivíduo é soberano”.

• Benjamim Cardozo8 (juiz dos Estados Unidos): sentenciou,em 1914, no Caso Schloendorff, que “todo ser humano deidade adulta e com plena consciência tem o direito de decidiro que pode ser feito no seu próprio corpo”.

• Kant: com o seu Imperativo Categórico, propôs que a auto-nomia não é incondicional, mas passa por um critério deuniversalidade, ou seja, ela é para si mesma uma lei – inde-pendentemente de como forem constituídos os objetos doquerer.

O Relatório Belmont,9 que estabeleceu as bases para a adequaçãoética da pesquisa nos Estados Unidos, denominava este princípio comoPrincípio do Respeito às Pessoas. Nesta perspectiva propunha que a

7 John Stuart Mill (1806–1873), filósofo liberal britânico. Sua obra mais conhecida, OnLiberty (1853), é a Bíblia do Eu (idéia coincidentemente ressuscitada nas décadas de1960 e 1970 quando da rebelião dos jovens e a entronização das drogas como opçãode vida). Além de defender a liberdade política contra as tiranias, Stuart Mill foi maislonge, defendendo a “liberdade social” contra a tirania das maiorias e das convenções.Não foi o criador do utilitarismo (criação de Jeremy Bentham, 1748–1832), mas o seuprincipal apóstolo, advogando a supremacia do prazer e o princípio de que as boas açõessão medidas pelo número de beneficiários.

8 A sentença considerada marco histórico neste processo foi dada no ano de 1914 peloJuiz Benjamin Cardozo no caso “Schloendorf versus Society of New York Hospital”.Nesse caso, “o médico retirou um fibroma depois que o paciente havia consentido a umexame abdominal sob anestesia, mas havia especificado ao médico que não autorizavacirurgia. Curiosamente, o tribunal não considerou o caso uma violação do direito aoconsentimento esclarecido, nem fez qualquer declaração sobre a informação necessária aopaciente para ele exercer seu direito à autodeterminação. Ainda assim, a sentença do JuizCardozo é largamente citada na literatura sobre consentimento esclarecido”. (FADEN &BEAUCHAMP, 1986:123).

9 Os chamados princípios da Bioética foram formulados pela primeira vez em 1978,quando a “Comissão norte-americana para a proteção da pessoa humana na pesquisa

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autonomia incorpora pelo menos duas convicções éticas: a primeira, queos indivíduos devem ser tratados como agentes autônomos, e a segunda,que as pessoas com autonomia diminuída devem ser protegidas. Destaforma, divide-se em duas exigências morais separadas: a exigência doreconhecimento da autonomia e a exigência de proteger aqueles comautonomia reduzida (incapazes, loucos, presos, etc.).

O Professor José Roberto Goldim10 afirma que virtualmente to-das as teorias concordam que duas condições são essenciais à autonomia:liberdade (independência do controle de influências) e capacidade de açãointencional. E conclui dizendo que:

O Princípio da Autonomia não pode mais ser entendido apenas

como sendo a autodeterminação de um indivíduo, pois esta é

apenas uma de suas várias possíveis leituras. A inclusão do outro na

questão da autonomia trouxe, desde o pensamento de Kant, uma

nova perspectiva que alia a ação individual com o componente

social. Desta perspectiva surge a responsabilidade pelo respeito à

pessoa, que talvez seja a melhor denominação para este princípio.

(GOLDIM, 2000)

Tal princípio, na relação médico–paciente, é extremamente rele-vante na medida em que o médico deve ter em mente que somente pode

biomédica e comportamental” apresentou no final dos seus trabalhos o chamado RelatórioBelmont; este texto respondia àquelas exigências, acima referidas, vindas da comunidadecientífica e da sociedade, no sentido de que se fixassem princípios éticos a seremobedecidos no desenvolvimento das pesquisas e que deveriam ser considerados quandoda aplicação de recursos públicos nessas atividades científicas. O Relatório Belmontestabeleceu os três princípios fundamentais da Bioética, em torno dos quais toda aevolução posterior dessa nova área do conhecimento filosófico iria se desenvolver: oprincípio da beneficência, o princípio da autonomia e o princípio da justiça, chamadopor alguns autores de princípio da eqüidade (LEPARGNEUR, 1996). As normasbiojurídicas promulgadas desde então em países pioneiros na legislação do Biodireito,como a Grã-Bretanha, Austrália e França, tiveram como referencial último esses princípiosestabelecidos pelo Relatório Belmont. O exame desses princípios permite que se tenha umaidéia, no entanto, de suas limitações como princípios fundadores de uma Ética e de umBiodireito na sociedade pluralista e democrática.

10 Disponível em: <http://www.ufrgs.br/bioetica/relido.htm>.

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manipular, drogar, receitar, conduzir, etc., seus pacientes se eles de fatoestiverem aptos e cientes de aceitar tais procedimentos e atitudes. Nestesentido, o Princípio da Autonomia faz com que tanto médico quantopaciente desenvolvam, de maneira eficaz e confiável, diálogos e entendi-mentos capazes de dar à relação profissional uma forma respeitosa eaceitável ponto de vista médico, social e ético.

Princípio da BeneficênciaO Princípio da Beneficência tem duas importantes funções e

regras: não causar o mal e maximizar os benefícios possíveis e minimizaros danos possíveis. Na relação médico–paciente, este princípio é deobservância contínua e irrestrita, haja vista que o paciente, ao procuraro profissional da área de Saúde, busca a cura para o seu mal, e oprofissional, por sua vez, tentará empreender todos os esforços para nãoagravar o mal do paciente e para curá-lo da doença que o aflige. Assim,entende-se que este princípio estabelece a obrigação moral de agir embenefício dos outros, porém é importante não confundir a Beneficênciacom a Benevolência, esta última entendida como a virtude de se dispora agir em benefício dos outros. A Beneficência no contexto médico é odever de agir no interesse do paciente, a fim de proporcionar-lhe o maiorconforto possível ou o menor sofrimento, ou ambos, ao seu mal, semprecom vistas aos demais princípios bioéticos.

Princípio da Não-MaleficênciaEste princípio é o mais controverso de todos, pois diversos au-

tores o entendem como parte do conceito do Princípio da Beneficência,justificando tal posição por acreditarem que, ao evitar o dano intencional,o indivíduo já está, na realidade, visando ao bem do outro.

Já por volta do ano 430 a.C., Hipócrates propôs aos médicos, noParágrafo 12 do primeiro livro da sua obra Epidemia: “Pratique duascoisas ao lidar com as doenças; auxilie ou não prejudique o paciente”.

O Princípio da Não-Maleficência propõe a obrigação de nãoinfligir dano intencional, derivando da máxima da Ética médica “Primumnon nocere”. Assim, percebe-se que o Juramento Hipocrático insereobrigações de Não-Maleficência e de Beneficência: “Usarei meu poder

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para ajudar os doentes com o melhor de minha habilidade e julga-mento; abster-me-ei de causar danos ou de enganar a qualquer ho-mem com ele”.

Portanto, o Princípio da Não-Maleficência, na relação médico–paciente, é aquele pelo qual o médico deve evitar produzir intencional-mente danos ou malefícios aos seus pacientes, tratando-os como gostariade ser tratado.

Princípio da PrivacidadeDe acordo com os ensinamentos do Professor Goldim (2000),

“privacidade é a limitação do acesso às informações de uma dada pessoa,ao acesso à própria pessoa, a sua intimidade, envolvendo as questões deanonimato, sigilo, afastamento ou solidão. É a liberdade que o pacientetem de não ser observado sem autorização”.

A própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seuArtigo XII, estabelece que: “Ninguém será sujeito a interferências na suavida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nema ataques a sua honra e reputação”.

Tal princípio, na relação médico-paciente, é visto com reserva,pois obviamente o médico deve se abster de repassar as informaçõesclínicas de seus pacientes para qualquer pessoa, bem como deve evitar aexposição pública de um caso particular levado ao seu conhecimento pelosimples fato que existe nesta relação uma confiança muito grande dospacientes no sigilo médico.

Desta forma, conclui-se que a base da relação entre médico epaciente, além dos princípios éticos anteriormente descritos, funda-se emum relacionamento de confiança, credibilidade e de intimidade que nãopermite a exposição da situação médica do paciente para pessoas nãoenvolvidas com o seu tratamento.

1.3.1 Relação profissional paciente–idoso

Uma mulher de 82 anos adentrou o consultório do Dr. Mayerovitz.

“Doutor”, disse ela sofregamente, “não estou me sentindo bem”.

“Sinto muito, Sra. Kupnik. Algumas coisas a medicina mais avançada

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pode curar. Eu não tenho como torná-la mais jovem, a senhora

compreende.”

Ela respondeu de imediato: “Doutor, quem foi que lhe pediu para

fazer-me mais jovem? Tudo o que quero é que possa me fazer mais

velha!”. (BONDER, 1995)11

A fidelidade é o dever de lealdade e compromisso do terapeutapara com o paciente e serve de base para o relacionamento entre ambos.A veracidade, isto é, a utilização verdadeira e honesta das informações,é um dever prima facie do terapeuta e base desta fidelidade.

Muitas vezes, até mesmo por pressão das famílias, surge o dilemade dizer ou não a verdade ao pacientes idoso, com o objetivo de preservá-lo do impacto e da ansiedade. Na realidade, o dilema não é revelar ounão a verdade, mas sim qual a forma mais adequada de comunicá-la.Como escolher a maneira viável que possa causar o menor dano e impac-to possíveis. Existem inúmeros estudos e propostas de como comunicar“más notícias” aos pacientes e suas famílias . Esta é uma habilidade quetambém pode e deve ser desenvolvida, e não negada, pelos profissionaisde Saúde. A não revelação da verdade pode impedir o paciente de tomardecisões importantes sobre o seu tratamento e sua vida pessoal. Da mesmaforma, impede o paciente e família de se prepararem para eventos pro-váveis, inclusive a morte.

O paciente também tem o direito de “não saber” isto é, o direitode não ser informado, caso manifeste expressamente esta sua vontade. Oprofissional de Saúde tem que reconhecer claramente quando esta situaçãoocorre e buscar esclarecer com o paciente as suas conseqüências. Opaciente deve ser consultado formalmente se esta é realmente a sua deci-são. Após isto, a sua vontade deve ser respeitada.

Nesta situação, deve ser solicitado que ele, ou ela, indique umapessoa de sua confiança para que seja o interlocutor do profissional coma família. O próprio paciente, quando possível, deve comunicar a suafamília sobre estas suas decisões.

11 BONDER, N. O segredo judaico de resolução de problemas. 9 ed. Rio de Janeiro:Imago, 1995.

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Outros importantes aspectos da relação profisional–paciente sãoa privacidade e a confidencialidade. A privacidade é a limitação do acessoàs informações de uma dada pessoa, ao acesso à própria pessoa, a suaintimidade, anonimato, sigilo, afastamento ou solidão. É a liberdade queesta pessoa tem de não ser observada sem a sua autorização. Aconfidencialidade, por sua vez, é a garantia do resguardo das informaçõesdadas em confiança e a proteção contra a sua revelação não autorizada .

As quebras de privacidade ou de confidencialidade podem ocor-rer na relação do profissional com terceiros, tais como com a família,cuidadores ou empresas seguradoras. Em todas estas relações deve ficarclaro que a fidelidade do profissional é para com o paciente. A este cabea decisão de quais dados devem ser revelados ou não. É extremamenteimportante que este compromisso seja preservado, mesmo quando opaciente esteja em estado de inconsciência e até mesmo após a sua morte.

O princípio que deve nortear a liberação de informações é o danecessidade de ter que tipo de informações para tomar decisões ou de-sempenhar adequadamente sua tarefa, nada além disto.

Muitas vezes, só por que o paciente é um velho, todos se achamno direito de ter acesso a todas as informações. Os cuidadores, nãovinculados à família, são informados pelos próprios familiares de detalhesque não se justificam, configurando situações de exposição indevida daprivacidade destas pessoas.

O ponto mais importante na relação profissional–paciente idosotalvez seja reconhecer que, mesmo em situações nas quais existam com-prometimentos, esta pessoa tem o direito de ser reconhecida como tal.Mesmo em situações de muito comprometimento físico ou mental, aspessoas não perdem a sua dignidade, esta é uma característica inerente aoser humano. O paciente não pode ser desqualificado, deixando de serinformado, deixando de ser ouvido.

Muitas vezes um familiar, ou outro cuidador, assume o papel deinterlocutor com o profissional, interpretando e relatando sentimentos esensações que só a própria pessoa é capaz de sentir, alijando o velho dodiálogo e desqualificando a expressão de suas necessidades e vontades.

O profissional que atende a um idoso deve sempre buscar apreservação do vínculo com o seu paciente. Este vínculo deve manter aperspectiva da integralidade da sua pessoa.

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1.3.2 Dever prima facieProfessor José Roberto Goldim12

Este conceito foi proposto por Sir David Ross em 1930. Elepropunha que não há, nem pode haver, regras sem exceção. O deverprima facie é uma obrigação que se deve cumprir, a menos que ela entreem conflito numa situação particular com um outro dever de igual oumaior porte.

Um dever prima facie é obrigatório, salvo quando for sobrepujadopor outras obrigações morais simultâneas. Esta proposta já havia sidoutilizada pelo Tribunal Constitucional Alemão.

Bellino (1997) denomina os deveres prima facie de deveres penúl-timos. Cattorini (1993) propôs que os deveres prima facie são válidos,geralmente, de maneira relativa. Quando ocorre um conflito entre deveresdeve ser tomada a decisão de qual deve ser tomado como prioritário nestacircunstância. Cada dever tem de ser cotejado com os demais e, dentroda complexidade inerente ao sistema, analisado em conjunto para evitarconflitos de ações e efeitos indesejados.

A melhor denominação talvez seja a de deveres priorizáveis, istoé, deveres que, quando comparados entre si, podem ser priorizados deacordo com a circunstâncias.

Segundo Ross (1930), os deverem prima facie podiam sercategorizados como:

1. Deveres para com os outros devido a atos prévios de vocêmesmo

• Fidelidade (manter as promessas...)• Reparação (compensar as pessoas por danos ou lesões causa-

das)• Gratidão (agradecer às pessoas pelos benefícios que conferi-

ram a você)2. Deveres para com os outros não baseados em ações prévias• Beneficência (ajudar aos outros em necessidade)

12 Disponível em: <http://www.ufrgs.br/bioetica/primafd.htm>.

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• Não-Maleficência (não causar danos a outros sem uma razãopoderosa)

• Justiça (tratar os outros de forma justa)3. Deveres para consigo mesmo• Aprimorar-se física, intelectual e moralmente para alcançar o

seu pleno potencial

1.3.3 Comunicação de más notíciasPsicóloga Adriana Pacheco Pires13

Serviço de Psicologia/HCPA e Núcleo Interinstitucional de Bioética

Um aspecto fundamental para o estabelecimento de uma boarelação médico–paciente é a troca de informações. Cada vez mais ospacientes querem se encarregar de decisões sobre seu tratamento e bus-cam nos médicos seus conselheiros, confiando para que forneçam asinformações necessárias para tomarem suas decisões. De acordo comDavis (citado por CÓLON, 1995), o melhor caminho para uma relaçãode confiança é o médico ser a linha de frente no que diz respeito aodiagnóstico e prognóstico, e isto define o futuro da relação.

No entanto, o diagnóstico de uma doença grave que envolve riscode morte, incapacidade e outras perdas, provoca sentimentos intensos edolorosos. E, apesar de ser uma tarefa praticamente inevitável para omédico, dar más notícias a um paciente ou familiar continua sendo umaparte difícil e especial do trabalho do profissional de Saúde.

Má notícia tem sido definida como qualquer informação queenvolva uma mudança drástica na perspectiva de futuro em um sentidonegativo (BUCKMAN, 1992; PTACKET, TARA & EBERHARDT, 1993,MIRANDA & BRODY, 1992).

Entre as dificuldades dos médicos em dar más notícias, encon-tramos o medo de ser considerado culpado, o medo da falha terapêuticaou da sensação de impotência e de fracasso. Em relação ao paciente,encontramos o medo de causar dor e de desencadear uma reação. Há

13 Disponível em: <http://www.ufrgs.br/bioetica/masnot.htm>.

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também a preocupação com os aspectos legais e com a hierarquia. Omédico teme por estar realizando uma tarefa para a qual não foi treinado,teme dizer “eu não sei” e expressar suas emoções. Como uma dificuldadeainda maior, aparece o medo pessoal da doença e da morte. As ansiedadese os medos dos médicos tornam difícil iniciar a conversação, e levam omédico a se sentir responsável pela doença (BUCKMAN, 1984, 1992).

A relação médico–paciente pode apresentar três tipos básicos:• ser rápida e insensível;• ser grave e solene;• ser compreensiva e genuína.

Sem dúvida alguma, a relação compreensiva e genuína é a maisadequada a estas situações nas quais o paciente terá o impacto de umanotícia ruim ou triste.

Por ser uma tarefa fundamental, com todas as dificuldades jádescritas, Buckman (1992) propõe um protocolo de seis etapas de comodar más notícias:

• começar adequadamente, o que envolve o contexto, o setting,quem deve estar presente, ou seja, o início propriamentedito, incluindo atitudes cordiais normais;

• descobrir o quanto o paciente sabe sobre sua doença;• descobrir o quanto o paciente quer saber;• dividir, compartilhar a informação;• responder aos sentimentos do paciente;• planejar e combinar o acompanhamento do paciente.

Diversos autores reforçam a importância de avaliar se o pacienteestá pronto para ouvir a notícia, o quanto deseja saber, e só então seguir,em doses pequenas de informação, respeitando e acompanhando o ritmodo paciente (BUCKMAN, 1992; CÓLON, 1995; MIRANDA & BRODY,1992; MAGUIRE & FAULKNER, 1988; QUILL & TOWSEND, 1991).

Em resumo, estes autores estabelecem os princípios da comuni-cação de más notícias:

• escolher um momento em que o paciente e o médico este-jam descansados e tenham um tempo adequado;

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• avaliar o estado emocional e psicológico do paciente nopresente;

• preparar o paciente dizendo que tem um assunto difícil paradiscutir com ele;

• usar uma linguagem clara e simples;• expressar tristeza pela dor do paciente;• ser humanitário;• dar informação de forma gradual e programar outro encon-

tro com o paciente mais tarde;• ser realista evitando a tentação de minimizar o problema,

mas não tirar todas as esperanças;• verificar como o paciente se sente depois de receber as

notícias;• reassegurar a continuidade do cuidado, não importando o

que houver;• assegurar que o paciente tenha suporte emocional de outras

pessoas.

Masmann (citado por CÓLON, 1995) acrescenta que talvez sejanecessário repetir a informação mais de uma vez. Os pacientes tendem areconstruir a informação com base em outras que já tinham anteriormen-te. Esta característica pode atenuar ou agravar as informações recebidas.

Quill e Towsend (1991) referem que os resultados desejados paraos encontros iniciais são:

• minimizar solidão e isolamento;• alcançar com o paciente uma percepção comum do proble-

ma;• enfocar necessidades básicas de informação, enfocar riscos

médicos imediatos, incluindo risco de suicídio;• responder imediatamente a desconfortos;• estabelecer um plano de acompanhamento;• antecipar o que não foi falado.

Os médicos podem oferecer uma esperança realista que podeinterferir na qualidade de vida do paciente, na dignidade e no confortodurante a evolução da doença.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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____________. How to break bad news: a guide for health care professionals. Baltimore:

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COLÓN KM. Bearing the bad news. Minesota Medicine 1995; 78:10-14.

FALLOWFIELD L. Giving sad and bad news. Lancet 1993; 341:476-8.

MAGUIRE P, FAULKNER A. Communicate with cancer patients: Handling bad news

and difficult questions. BMJ 1988; 297:907-909.

MIRANDA J. Brody RV. Communicating bad news. Western Journal of Medicine

1992;156(1):83-85.

PTACEK JT, EBERHARDT TL. Breaking bad news – a review of the literature. JAMA

1996; 276(16):496-502.

QUILL TE, TOWNSEND RN. Bad news: delivery, dialogue, and dilemmas. Arch Intern

Med 1991;151:463-8.

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1.4 Os direitos do paciente idoso

No Brasil, há três idades distintas para definição da pessoa idosa.A Constituição, para assegurar o direito à gratuidade nos transportescoletivos urbanos, estabelece que idoso é quem tem mais de 65 anos (CF,Artigo 230, § 7º). Já a Lei 8.742/93, que organiza a assistência social,define que idoso, para fins de receber um benefício de um salário mínimomensal, é quem tem 70 anos ou mais. Finalmente, a Lei 8.842/94, quetraça a Política Nacional do Idoso, indica sê-lo a pessoa maior de 60 anos.

Já existem estudos que dizem que o número de idosos no Brasilserá de 22 milhões no ano de 2025, o que representa o dobro do quehavia em 1991. Isso tornará o país o primeiro em população idosa naAmérica Latina e o sexto no mundo. Isso é preocupante porque o Brasilé um país com muita pobreza, com muita gente sem nenhuma assistência,principalmente no Nordeste, uma das regiões menos favorecidas peloGoverno Federal, tornando ainda mais penoso o envelhecimento e a as-sistência ao idoso até mesmo no seu próprio lar.

A Constituição de 1988 garante que ninguém pode ser abandonadoquando atingir a velhice. Para reforçar o que está na Constituição, foiaprovada a Lei 8.842, em 1994, que diz como deve ser tratado o idoso.

O Artigo Primeiro desta lei deixa bem claro que serão criadas ascondições para que as pessoas com mais de 65 anos vivam na sociedadesem depender de ninguém, e usando de todos os seus direitos. O órgãoresponsável para fazer cumprir o que determina essa lei é a Secretaria deAssistência Social do Ministério da Previdência e Assistência Social. OsMinistérios da Educação, da Justiça, do Trabalho, e outros, também co-laboram com esse trabalho. O Artigo Terceiro desta mesma lei estabeleceo que tem que ser feito para se respeitar os direitos dos idosos, comovamos ver.

a) A família, a sociedade e o Estado (Governo) têm o dever deassegurar ao idoso todos os direitos da cidadania, garantindosua participação na comunidade, defendendo sua dignidade,bem-estar e direito à vida;

b) todo mundo, sem distinção, tem o direito de ficar velho;c) o idoso não deve sofrer discriminação de qualquer natureza;

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d) os Governos (Federal, Estadual e Municipal) têm a obrigaçãode dar assistência ao idoso, prestando atenção nas condiçõesde vida, quem precisa mais, quem mora em lugar distanteou quem vive de um jeito diferente, respeitando as diferen-ças de quem mora no campo e dos que moram na cidade.Essas obrigações que a Lei 8.842 determina ao Governo eà toda sociedade são chamadas de Política Nacional do Idoso.

Vamos ver o que o Governo é obrigado a fazer para que o idosoviva com dignidade.

a) Criar condições para que o idoso não seja dependente dosoutros, com a ajuda da família, da sociedade e dos serviçospúblicos;

b) garantir ao idoso a assistência à saúde no Sistema Único deSaúde (SUS);

c) melhorar as condições de estudo para que os idosos possamaprender com mais facilidade, criando programas própriospara o idoso, e educar a população para melhor entendimen-to de como é ficar velho;

d) garantir as condições para que os idosos não sejam discri-minados quando procurarem emprego ou quando estiveremtrabalhando, e dar atenção especial quando precisarem seratendidos pelos benefícios da Previdência Social;

e) dar condições de que os idosos tenham um lugar para morarem casas parecidas com o seu lar, e criar as condições paraque os idosos tenham a sua própria casa, mesmo que sejasimples ou popular;

f ) oferecer condições de moradia para idosos de acordo comas suas condições físicas, construindo ou fazendo reforma nacasa para ficar do jeito que for mais fácil para morar, prin-cipalmente para quem tem problemas físicos.

A Constituição Federal garante direitos aos idosos.a) O Artigo 230 diz que a família e o Estado (Governo) têm o

dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua parti-

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cipação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo o direito de viver;

b) o Artigo 229 diz que os filhos maiores têm o dever de ajudare amparar os pais na velhice e na pobreza, quando estiveremprecisando ou quando estiverem doentes;

c) o Parágrafo Segundo do Artigo 230 garante que as pessoas commais de 65 anos não pagam para andar nos transportescoletivos nas cidades;

d) a Constituição Federal e o Artigo Primeiro da Lei 1.744 de1995 e o Artigo 20 da Lei 8.742 de 1993 garantem que osidosos, pessoas com 60 anos ou mais, que provarem que nãotêm condições de se sustentar por conta própria nem pelafamília, têm direito a um salário mínimo por mês.

Para ter direito ao salário mínimo mensal, o beneficiário idosodeverá provar que:

• tem 70 anos de idade ou mais;• não trabalha recebendo salário;• que tudo que a família ganha para se sustentar é menor do que

está previsto no Parágrafo Terceiro do Artigo 20 da Lei 8.742de 1993, conhecida como a Lei Orgânica da Assistência Social.

O ano de 1999 foi declarado pela Organização das Nações Uni-das (ONU) o Ano Internacional do Idoso. E a ONU estimula a aceitaçãopor todos os governos dos seguintes princípios, que devem orientar aspolíticas sobre os idosos: independência, participação, auto-realização edignidade.

O princípio da independência lembra que os idosos devem, elespróprios, ter acesso à alimentação, água, teto, comida e saúde por seuspróprios meios, e ao apoio familiar e da comunidade. E o ambiente emque vivem deve ser adaptado a sua realidade para que não precisemdepender diretamente dos outros sempre que precisarem de algo. O prin-cípio da participação estimula a integração do idoso na sociedade, espe-cialmente na hora de decidir sobre medidas que afetem seus interesses.A auto-realização lembra que os idosos também têm pleno direito de

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desenvolver seu potencial. O princípio da dignidade recorda que as pes-soas idosas devem ser tratadas com justiça e serem valorizadas, indepen-dentemente da contribuição econômica que possam dar.

E quando o idoso estiver na condição de paciente?

1.4.1 Direitos do paciente à luz da legislação brasileira

As leis brasileiras asseguram diversos benefícios aos pacientes,independente do mal que os acometa. Neste sentido, os idosos têm osmesmos direitos, não podendo sofrer discriminação de qualquer tipo.

As principais bases dos direitos dos pacientes estão na Constitui-ção da República Federativa do Brasil de 1988, no Código de ÉticaMédica, no Estatuto da Criança e do Adolescente, na Declaração Univer-sal dos Direitos Humanos, em leis federais e estaduais e em portarias doMinistério da Saúde.

Os principais direitos dos pacientes são:1) o paciente tem direito a atendimento humano, atencioso e

respeitoso, por parte de todos os profissionais de Saúde.Tem direito a um local digno e adequado para seu atendi-mento;

2) o paciente tem direito a ser identificado pelo nome e sobre-nome. Não deve ser chamado pelo nome da doença ou doagravo à saúde, ou ainda de forma genérica ou quaisqueroutras formas impróprias, desrespeitosas ou preconceituosas;

3) o paciente tem direito a receber do funcionário adequadopresente no local auxílio imediato e oportuno para a melhoriade seu conforto e bem-estar;

4) o paciente tem direito a identificar o profissional por crachápreenchido com o nome completo, função e cargo;

5) o paciente tem direito a consultas marcadas, antecipadamen-te, de forma que o tempo de espera não ultrapasse a 30(trinta) minutos;

6) o paciente tem direito a exigir que todo o material utilizadoseja rigorosamente esterilizado ou descartável, e manipulado

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segundo normas de higiene e prevenção;7) o paciente tem direito a receber explicações claras sobre o

exame a que vai ser submetido e com que finalidade irá sercoletado o material para exame de laboratório;

8) o paciente tem direito a informações claras, simples e com-preensivas, adaptadas a sua condição cultural, sobre as açõesdiagnósticas e terapêuticas, o que pode decorrer delas, aduração do tratamento, a localização, a patologia, se existenecessidade de anestesia, qual o instrumental a ser utilizadoe quais regiões do corpo serão afetadas pelos procedimen-tos;

9) o paciente tem direito a ser esclarecido se o tratamento ouo diagnóstico é experimental ou faz parte de pesquisa, e seos benefícios a serem obtidos são proporcionais aos riscos,e se existe probabilidade de alteração das condições de dor,sofrimento e desenvolvimento da sua patologia;

10) o paciente tem direito a consentir ou se recusar a ser sub-metido a experimentação ou pesquisas. No caso de impos-sibilidade de expressar sua vontade, o consentimento deveser dado por escrito por seus familiares ou responsáveis;

11) o paciente tem direito a consentir ou recusar procedimentos,diagnósticos ou terapêuticas a serem nele realizados. Deveconsentir de forma livre, voluntária, esclarecida com adequa-da informação. Quando ocorrerem alterações significantesno estado de saúde inicial ou da causa pela qual o consen-timento foi dado, este deverá ser renovado;

12) o paciente tem direito a revogar o consentimento anterior,a qualquer instante, por decisão livre, consciente e esclarecida,sem que lhe sejam imputadas sanções morais ou legais;

13) o paciente tem direito a ter seu prontuário médico elaboradode forma legível e de consultá-lo a qualquer momento. Esteprontuário deve conter o conjunto de documentos padroni-zados do histórico do paciente, princípio e evolução da doença,raciocínio clínico, exames, conduta terapêutica e demais re-latórios e anotações clínicas;

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14) o paciente tem direito a ter seu diagnóstico e tratamento porescrito, identificado com o nome do profissional de Saúdee seu registro no respectivo Conselho Profissional, de formaclara e legível;

15) o paciente tem direito a receber medicamentos básicos, etambém medicamentos e equipamentos de alto custo, quemantenham a vida e a saúde;

16) o paciente tem direito a receber os medicamentos acompa-nhados de bula impressa de forma compreensível e clara ecom data de fabricação e prazo de validade;

17) o paciente tem direito a receber as receitas com o nomegenérico do medicamento (Lei do Genérico) e não em có-digo, datilografadas ou em letras de forma, ou com caligrafiaperfeitamente legível, e com assinatura e carimbo contendoo número do registro do respectivo Conselho Profissional;

18) o paciente tem direito a conhecer a procedência e verificar,antes de receber sangue ou hemoderivados para a transfusão,se o mesmo contém carimbo nas bolsas de sangue atestandoas sorologias efetuadas e sua validade;

19) o paciente tem direito, no caso de estar inconsciente, a teranotado em seu prontuário, medicação, sangue ouhemoderivados, com dados sobre a origem, tipo e prazo devalidade;

20) o paciente tem direito a saber com segurança e antecipada-mente, por meio de testes ou exames, que não é diabético,portador de algum tipo de anemia, ou alérgico a determina-dos medicamentos (anestésicos, penicilina, sulfas, soroantitetânico, etc.) antes de lhe serem administrados;

21) o paciente tem direito a ter segurança e integridade físicanos estabelecimentos de Saúde, públicos ou privados;

22) o paciente tem direito a ter acesso às contas detalhadasreferentes às despesas de seu tratamento, exames, medica-ção, internação e outros procedimentos médicos;

23) o paciente tem direito a não sofrer discriminação nos servi-ços de Saúde por ser portador de qualquer tipo de patologia,

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principalmente no caso de ser portador de HIV/AIDS oudoenças infecto-contagiosas;

24) o paciente tem direito a ser resguardado de seus segredos,pela manutenção do sigilo profissional, desde que não acar-rete riscos a terceiros ou à Saúde Pública. Os segredos dopaciente correspondem a tudo aquilo que, mesmo desconhe-cido pelo próprio cliente, possa o profissional de Saúde teracesso e compreender por meio das informações obtidas nohistórico do paciente, exames laboratoriais e radiológicos;

25) o paciente tem direito a manter sua privacidade para satisfazersuas necessidades fisiológicas – inclusive alimentação adequa-da – e higiênicas, quer quando atendido no leito ou no am-biente onde está internado ou aguardando atendimento;

26) o paciente tem direito a acompanhante, se desejar, tanto nasconsultas como nas internações. As visitas de parentes eamigos devem ser disciplinadas em horários compatíveis,desde que não comprometam as atividades médicas/sanitári-as. Em caso de parto, a parturiente poderá solicitar a pre-sença do pai;

27) o paciente tem direito a exigir que a Maternidade, além dosprofissionais comumente necessários, mantenha a presençade um neonatologista, por ocasião do parto;

28) o paciente tem direito a exigir que a Maternidade realize o“teste do pezinho” para detectar a fenilcetonúria nos recém-nascidos;

29) o paciente tem direito a receber indenização pecuniária emcaso de qualquer complicação em suas condições de saúdemotivada por imprudência, negligência ou imperícia dos pro-fissionais de Saúde;

30) o paciente tem direito a assistência adequada, mesmo emperíodos festivos, feriados ou durante greves profissionais;

31) o paciente tem direito a receber ou recusar assistência moral,psicológica, social e religiosa;

32) o paciente tem direito a morte digna e serena, podendooptar ele próprio (desde que lúcido), a família ou responsá-

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vel, por local ou acompanhamento, e ainda se quer ou nãoo uso de tratamentos dolorosos e extraordinários para pro-longar a vida;

33) o paciente tem direito a dignidade e respeito, mesmo apósa morte. Os familiares ou responsáveis devem ser avisadosimediatamente após o óbito;

34) o paciente tem direito a não ter nenhum órgão retirado deseu corpo sem sua prévia aprovação;

35) o paciente tem direito a órgão jurídico de direito específicoda Saúde, sem ônus e de fácil acesso.

De acordo com o Ministério da Saúde, os direitos do pacienteà saúde assegurados pela Constituição Brasileira de 1988 são:

Artigo 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado,garantido mediante políticas sociais e econômicas que visemà redução de doença e de outros agravos e ao acesso univer-sal e igualitário às ações e serviços para sua promoção,proteção e recuperação.Artigo 197. São de relevância pública as ações e serviços deSaúde, cabendo ao poder público dispor, nos termos da lei,sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendosua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e,também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.Artigo 198. As ações e serviços públicos de Saúde integramuma rede regionalizada e hierarquizada e constituem umsistema, único, organizado de acordo com as seguintes dire-trizes:

i. descentralização, com direção única em cada esfe-ra do governo;

ii. atendimento integral, com prioridade para as ati-vidades preventivas, sem prejuízo dos serviçosassistenciais;

iii. participação da comunidade.Artigo 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.

§ 1º As instituições privadas poderão participar de forma

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complementar do Sistema Único de Saúde, segundo di-retrizes deste, mediante contrato de direito público ouconvênio, tendo preferência as entidades filantrópicas eas sem fins lucrativos.§ 2º É vedada a destinação de recursos públicos paraauxílios ou subvenções às instituições privadas com finslucrativos.§ 3º É vedada a participação direta ou indireta de em-presas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde noPaís, salvo nos casos previstos em lei.§ 4º A lei disporá sobre as condições e os requisitos quefacilitem a remoção de órgãos, tecidos e substânciashumanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento,bem como a coleta, processamento e transfusão de san-gue e seus derivados, sendo vedado todo tipo decomercialização.

Artigo 200. Ao Sistema Único de Saúde compete, além deoutras atribuições, nos termos da lei:

iv. controlar e fiscalizar procedimentos, produtos esubstâncias de interesse para a saúde e participarda produção de medicamentos, equipamentos,imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos;

v. executar as ações de vigilância sanitária eepidemiológica, bem como as de saúde do traba-lhador;

vi. ordenar a formação de recursos humanos na áreade Saúde;

vii. participar da formulação da política e da execuçãodas ações de saneamento básico;

viii. incrementar em sua área de atuação o desenvolvi-mento científico e tecnológico;

ix. fiscalizar e inspecionar alimentos, compreendido ocontrole de seu teor nutricional, bem como bebi-das e águas para consumo humano;

x. participar do controle e fiscalização da produção,

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transporte, guarda e utilização de substâncias eprodutos psicoativos, tóxicos e radioativos;

xi. colaborar na proteção do meio ambiente, nele com-preendido o trabalho.

1.5 O idoso como paciente terminal

A conceituação de paciente terminal não é algo simples de serestabelecido embora freqüentemente nos deparemos com avaliaçõesconsensuais de diferentes profissionais. Talvez, a dificuldade maior estejaem objetivar este momento, não em reconhecê-lo.

A terminalidade parece ser o eixo central do conceito em tornoda qual se situam as conseqüências. É quando se esgotam as possibilidadesde resgate das condições de saúde do paciente e a possibilidade de mortepróxima parece inevitável e previsível. O paciente se torna “irrecuperável”e caminha para a morte, sem que se consiga reverter este caminhar.

1.6 Envelhecimento e morte

1.6.1 Qual o segredo para chegar ao centenário?Doutor Euler Ribeiro, M.D., Ph.D.14

O homem sempre tentou sobreviver mais e mais. Na época dascavernas, quando não produzia o seu próprio alimento, tinha que caçare colher frutos silvestres para sobreviver. Vivia se escondendo nas cavernasa se proteger das intempéries e dos predadores. Não saía à noite e sóbuscava alimento durante o dia, se esse fosse um dia claro sem trovoadas.

Saindo da caverna, com a inteligência que o diferenciava dosdemais animais, começou a produzir o seu próprio alimento, com cuida-do para só plantar frutos que não fossem venenosos, e somente caçavaanimais de pequeno e médio porte, evitando assim os ataques que pode-riam ser fatais, buscando sempre sobreviver mais tempo.

14 RIBEIRO, Euler Esteves. Viver 100 anos: dicas para envelhecer com sucesso. Manaus:Editora do Governo do Estado do Amazonas, 2005.

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A população crescia, e começaram as disputas por mulheres eterritórios, e o homem, sempre precavido, protegia o tórax, o abdômene a cabeça durante as lutas, cuidando sempre para não sucumbir. Mas asobrevida não era nada mais do que 20 a 30 anos. Tanto assim que maisrecentemente, Jesus morrendo aos 33 anos, executado na cruz, morreuidoso para a época.

As epidemias grassavam as populações de tal maneira que asdizimavam. E eram tidas como castigo divino e outras coisas mais. Atéque o homem descobriu que certas doenças eram transmitidas pela sujeirae que se tivesse certos cuidados, como lavar as mãos, já poderia seproteger contra algumas mazelas e viver muito mais.

No entanto, a busca de longa vida culminou com ofertas extra-ordinárias de poções mágicas desde muito antes de Cristo, pois temosreferências sobre isto no Papiro de Edwim Smith (1600 a.C.). Depoisveio o Elixir da Longa Vida, na Idade Média. O Papa Inocêncio III(1432–1492) já preparava uma beberagem que tomava e mandava espalharque seria jovem a vida toda e, portanto, exerceria o papado para sempre.Depois, veio a famosa descoberta da Flórida, outra proposta mirabolantede vida eterna. Em 1889, Brown Sequard, um cientista inglês da Acade-mia de Ciências de Paris, disse haver descoberto por meio de suas pes-quisas que se um indivíduo inoculasse macerado de testículo de cachorro,o hormônio ali existente seria responsável pela manutenção da virilidadee da própria vida por muitos anos. No mês seguinte não existiam maiscães vadios nas ruas de Paris, pois todos foram sacrificados para quetivessem extraídos seus testículos. O que aconteceu de bom foi que araiva, que era endêmica em Paris, desapareceu com este controle deeliminação das fontes de infecção e de transmissão da doença.

Mais recentemente surgiram outros arautos da longevidade. SergeVoronoff (1866–1951) preconizou o uso de derivados do leite, como oyogurt, afirmando que estes eram responsáveis pela grande longevidadedaqueles homens que moravam no Cáucaso, região da Rússia. Mas sedescobriu mais tarde que a notícia não passava de propaganda enganosa,visto que aquelas pessoas estavam usando certidões de idade de seusparentes que possuíam o mesmo nome para dizerem que eram centená-rias. E no século passado surgiram Paul Neihans e Ana Aslan, que ganha-

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ram fortunas prometendo o rejuvenescimento com aplicações de procaína,hormônios estrógenos, hormônio do crescimento e EDTA, como a novafonte da juventude, baseados na Teoria do Envelhecimento Celular porOxidação, por reposição de hormônios quando do declínio funcional, epor eliminação de placas de ateromas das artérias, evitando assim a maiorcausa de mortes no século passado, que seriam as causas cardiovasculares,rejuvenescendo o homem e aumentando sua sobrevida. Ao contrário detal indicação de uso e resultado, pesquisadores demonstraram o engododaquelas propostas.

Na verdade, a pesquisa científica chegou à conclusão que asvacinas preventivas, os antibióticos, o avanço tecnológico na Medicina,com cirurgias especiais, transplantes, imunologia adequada, saneamento,dietas ricas em fibras e pobres em hidrato de carbono e gorduras saturadas,exercícios e hábitos de vida saudáveis represavam um número muitogrande de doenças que podem acometer os idosos pela própria senescência,evitando, desta forma, a morte prematura. Com isto, houve uma quedana mortalidade e aumento na longevidade.

A velhice e a morte fazem parte da vida, ou seja, nenhum servivo é eterno. No ser humano, a decadência biológica, chamada cienti-ficamente de senescência, é marcada pela perda e afinamento dos cabelose dos pêlos, aparecimento de rugas e manchas na pele, perda de massamuscular e diminuição da força, perda do tônus e flexibilidade de tecidoconjuntivo, diminuição da acuidade visual e auditiva e de memória, ca-tarata, varicosamento das veias, perda de cálcio nos ossos (osteoporose),endurecimento das artérias, queda de vários tipos de hormônios, princi-palmente os sexuais (levando à menopausa e perda da fertilidade na mulher),só para citar algumas conseqüências.

Bioquimicamente, muita coisa muda com a senescência, inclusi-ve a atividade de enzimas e o aumento da morte celular. O DNA dascélulas também sofre danos crescentes com a idade, principalmente emfunção de exposição a agentes externos e internos, como radicais livres,radiações, etc.

Há 35 anos, ainda no século passado, um cientista chamadoHayflick disse que mesmo que não tenhamos nenhuma doença fatal, aindaassim morreremos. Ele havia descoberto que não somos eternos porque

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nossas células têm um número máximo, pré-programado geneticamente,de ciclos de reprodução. Não é a passagem do tempo por si que deter-mina quando vamos morrer, mas sim a exaustão da capacidade reprodutivae a conseqüente morte progressiva de bilhões de células do nosso corpo,que não são repostas nunca. Em outras palavras, a morte é programadae começa no momento da concepção. Então haveria possibilidade deintervenção para possibilitar o aumento da vida? Parece que sim! Já con-seguiram isto em animais simples, vermes e moscas, pois em idades maisavançadas a mortalidade desacelera em espécies tais como MedFiles (CAREYet al., 1992) e Caenorhabdtitits elegans (BROOK et al, 1994).

Análises de dados de Drosophila, entretanto, demonstram que aestabilidade das taxas de morte pode ocorrer quando o fator deheterogeneidade é amenizado pela criação de coortes geneticamente ho-mogêneos sob condições muito similares (VAUPET et al., 1998).

Isto tudo se daria pelo fato de indivíduos mais fracos pereceremem favor dos mais fortes, que continuam a sobreviver. Por causa doabandono dos indivíduos mais fracos destas populações, há destruição decertos tipos genéticos e outros atributos relativos à sobrevivência namudança de coortes e de idades mais avançadas. Este é um processoseletivo denominado de Seleção Demográfica. O efeito desta seleção éexemplificado pelo abandono da Apo-liproteina na extrema idade.

Rebech e colaboradores notaram a freqüência do Alelo 4, quediminuiu notavelmente com o avanço da idade (REBECH et al., 1994).E uma das contrapartidas é que a Apo-liproteina Alelo 2 se torna maisfreqüente com a idade avançada. Houve alguns casos de abandono deAlelo 4 prematuramente em sua pesquisa, pelo fato da relação da presençadeste Alelo com morte prematura, com Doença de Alzheimer e doençasdo coração.

Investigações mais recentes demonstraram que a alta hereditari-edade do estado cognitivo funcional sustenta a possibilidade quepolimorfismos genéticos podem ter um papel significativo (relativo aoambiente) na determinação da sobrevivência em idades avançadas(McCLEARN et al., 1997). Os pesquisadores chegaram à conclusão –neste estudo em animais simples, vermes e moscas – que, manipulandoo genoma, encontraram genes da morte, os quais programam uma espécie

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de “suicídio celular”, chamado cientificamente de apoptose. Esta apoptoseé ainda em grande parte um mistério, mas se sabe que durante o processode desenvolvimento do embrião ela é extremamente importante para moldarcomo vai ficar o organismo no nascimento, como se fosse uma verdadeiraescultura. Os dedos serão no futuro o que sobrar dos excessos por mortecelular (apoptose) dos tecidos ao seu redor. As conexões cerebrais serãoformadas com 20% do peso do cérebro fetal após a morte maciça deneurônios a partir do quinto mês de gestação (SABATINI et al., 2003).

Segundo este mesmo autor, a apoptose em adulto também temmuita importância. Sem ela, o câncer seria extremamente comum, poiscada vez que a célula é danificada no seu DNA, ela comete suicídio,impedindo a proliferação de células anormais. Todas as vezes que esteprocesso falha, teremos sempre que enfrentar o “câncer”. Seria possívelentão aumentar artificialmente a longevidade? Os cientistas já consegui-ram isto com moscas das frutas, Drosophila (animais simples), inibindoos genes da morte celular (VALPEL et al., 1998). Teoricamente, um diapoderemos fazer o mesmo com os seres humanos, pois já foram desco-bertos genes homólogos aos dos vermes e moscas em nossas células.

Mas não é tão simples assim, pois a ação de cerca de 10% dosnossos genes deve ser afetada pela senescência, e bloquear a morte pro-gramada das células, simplesmente, pode ser extremamente perigoso, le-vando à morte prematura por câncer ao invés de aumentar a sobrevida.

Por outro lado, a morte celular ocorre também por um processoinduzido, que não foi programado geneticamente: é a necrose celular poragressão, por substâncias químicas, irradiação, bactérias, vírus, ruturamecânica, etc.

Sob um outro ponto de vista, de acordo com Ivana da Cruz(2000), no Tratado de Geriatria e Gerontologia, muitas modificaçõesepigeníticas têm sido apontadas como principais causas do processo deenvelhecimento, como é o caso da perda da região telomérica doscromossomos e a falha no sistema de reparo do DNA. Por este conceito,todas as células possuem o que denominamos de “relógio celular”, que éo limite replicativo da célula. Ou seja, depois de um número determinadode divisões celulares, a célula não se reproduz mais e morre. No serhumano, que possui em torno de 250 tipos diferentes de células, cada

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uma destas tem o seu número potencial de divisões, variando de umacélula para outra, pela sua linhagem, idade e genótipo. Quando há exaustãode replique de todas estas células, o ser humano morre, mesmo que nãotenha nenhuma doença. E o marcador desta parada de replique de cadacélula é o encurtamento do telômero dos cromossomos. Se no futuroexistir um mecanismo de intervenção neste encurtamento telomérico e dereparo adequado do DNA, que por sua vez está contido dentro do telômero,teremos descoberto o mecanismo de prolongar a vida nos seres humanos,sem o risco de produzirmos o câncer.

A grande conquista do século passado foi o aumento da expec-tativa de vida do seres humanos. No Japão, país que tem a melhorexpectativa de vida, esta é em torno de 80 anos ao nascer. E no Brasil,onde por volta de 1950 era de 40 anos, a expectativa de vida quasedobrou, pois agora corresponde a 70 anos, segundo dados do IBGE dejaneiro de 2004.

Está parecendo que existe um fenômeno dos Centenários, aquelesque ultrapassaram o umbral desta expectativa e completaram 100 anos.Contudo, longevos apareceram em todas as épocas. No Velho Testamentoexiste referência a um cidadão que teria vivido 960 anos, Matusalém,mesmo se sabendo que o calendário daquela época não é o mesmo ado-tado hoje. Madame Jeanne Calmet, que morreu em 1997, viveu 122 anos,em Paris. Outros exemplos de longevidade são Leonardo da Vinci, queviveu entre 1452 e 1519, Michelangelo, que viveu entre 1475 e 1564, eHipócrates, que morreu aos 83 anos de idade (460–377 a.C.).

A partir do século XX, vem se acumulando a população acima de80 anos e mais. Nos Estado Unidos existe 1 em cada 10.000 habitantescom mais de 100 anos de idade. Na França, por exemplo, existiam 200centenários em 1953, 3.000 em 1989, e demógrafos franceses calculamque já existem 6.000 até agora (FORELE, 1997).

No Brasil, conforme dados do Censo 2000, do Instituto deGeografia e Estatística (IBGE), há 14.150 mulheres centenárias e 10.420homens. Cientistas atribuem esta alta prevalência de idosos centenários aavanços médicos que tratam prévia e efetivamente doenças letais relacio-nadas à idade, ou pelo menos as retardam (MAHON e VAUPEL, 1995).Como resultado, mais e mais pessoas com características genéticas e

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ambientais que facilitam a sobrevivência até a idade avançada são capazesde atingir sua expectativa em potencial.

Sabendo que polimorfismos genéticos com especificidade têmpoderosa influência sob a expectativa da vida, não está longe o dia queos seres humanos manipularão com tal habilidade estes conhecimentos daGenética que – certamente neste século ainda – veremos esta possibilidadede se viver mais, sem doenças, e muito provavelmente chegaremos aos150 anos.

1.6.2 Morte e envelhecimentoProfessor José Roberto Goldim15

O envelhecimento traz consigo a perspectiva da morte. Mesmocom a aumento da sobrevida da população humana, a vida é sempre umperíodo finito. Esta finitude passa a ser mais contundente com a chegadada velhice. A perda de amigos, de familiares e de pessoas de referênciasocial reforça esta característica.

Quando existe uma doença grave ou outra condição de saúde –incluindo-se aspectos físicos, mentais e sociais – que gera sofrimento amorte, passa a ser não só uma probabilidade, mas também uma alterna-tiva. Esta possibilidade passa por um dilema básico: o ser humano éproprietário ou guardião da vida. Caso seja considerado proprietário,pode dispor da sua própria vida, caso seja guardião, deve zelar pelamesma. Esta última é a perspectiva da maioria das religiões, pois consi-deram que a vida é um dom divino, sendo o ser humano responsável pelasua preservação.

Um ponto fundamental a ser esclarecido é o que diz respeito aoestabelecimento de limites de tratamento. Um tratamento pode ser con-siderado como uma medida ordinária, extraordinária ou fútil. As medidasordinárias são mandatórias, devem ser propostas e trazem potencial bene-fício para a pessoa, mesmo com riscos associados. As medidas extraor-dinárias são procedimentos terapêuticos que não podem ser obtidos sem

15 Disponível em: <http://www.ufrgs.br/bioetica/germor.htm>.

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gastos excessivos, dor ou outro incômodo, ou, se utilizados, não oferecemuma possibilidade razoável de benefício. Entende-se por futilidade a au-sência de motivo ou de resultado útil em um procedimento diagnósticoou de intervenção terapêutica. A determinação envolve, freqüentemente,juízos de valor, particularmente quando o objetivo é a qualidade de vida.A futilidade pode ser caracterizada como sendo um tratamento sem valorterapêutico. Cabe relembrar que os profissionais de Saúde têm a obriga-ção de cuidar sempre, mas não de tratar sem que haja benefícios.

O limite de tratamento é muito mais facilmente aceito em pes-soas muito idosas do que em jovens e crianças. Nestas decisões, o critérioda idade serve como atenuante do impacto. Qual a justificativa paraassumir que uma pessoa com mais de 65 anos tenha um prognóstico piordo que um jovem em iguais condições? Vários autores têm utilizado ocritério de idade para justificar situações que poderiam ser caracterizadasnão como a aceitação de limites terapêuticos, mas sim de abandonoterapêutico.

Em muitas reflexões sobre a morte, o tema da eutanásia e dosuicídio assistido estão presentes. A eutanásia foi muito utilizada emvários países do mundo nas décadas de 1920 e 1930. Foi utilizada comouma medida eugênica, matando doentes mentais, deficientes e tambémmuitos velhos, com a justificativa de liberar a sociedade destas pessoasconsideradas como um encargo. A partir da década de 1960, a discussãoda eutanásia retornou com outro enfoque, devido aos avanços tecnológicospostos à disposição das equipes de Saúde, que mudaram inclusive aprópria definição e critérios para o estabelecimento da morte.

A eutanásia em velhos assume uma importância muito grande,principalmente no que se refere às questões de respeito à autonomia. Oimportante é caracterizar que esta decisão é plenamente consciente, queela não está sendo tomada devido a um estado depressivo. Na legislaçãoaustraliana sobre eutanásia, que foi revogada, havia a exigência de umaavaliação psiquiátrica para afastar esta possibilidade. O Professor Lolas,da Universidade do Chile e do Programa Latino-Americano de Bioéticada Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), tem alguns relatos depacientes que haviam solicitado aos seus médicos interrupção de seutratamento ou a tomada de medidas diretas com o objetivo de causar a

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sua morte, mas que, uma vez tratados de sua depressão, agradeceram aseus médicos por não terem atendido ao pedido.

Para finalizar, com relação à morte e ao envelhecimento, caberelembrar as reflexões feitas por Cícero,16 em seu texto De Senectude.

Mas como é lastimável o velho que, após ter vivido tanto tempo, não

aprendeu a olhar a morte de cima! [...] Aliás, quem pode estar seguro,

mesmo jovem de estar vivo até o anoitecer? Mais ainda: os jovens

correm mais risco de morrer que nós. Adoecem mais facilmente, e

mais gravemente; são mais difíceis de tratar. Assim, não são muitos

a chegar à velhice. [...] Mas retorno à morte que nos espreita. Por que

fazer disso motivo de queixa à velhice, se é um risco que a juventude

compartilha? [...] E o velho nada mais teria a esperar? Então sua

posição é melhor que a do adolescente. Aquilo com que este sonha,

ele já o obteve. O adolescente quer viver muito tempo, o velho já

viveu muito tempo! [...] Quando este fim chega, o passado desapa-

receu. Dele vos resta apenas o que vos puderam trazer a prática das

virtudes e as ações bem conduzidas. Quanto às horas, elas se evadem

assim como os dias, os meses e os anos. O tempo perdido jamais

retorna e ninguém conhece o futuro. Contentemo-nos com o tempo

que nos é dado a viver, seja ele qual for. [... ] Assim como a morte

de um adolescente me faz pensar numa chama viva apagada sob um

jato d’água, a de um velho se assemelha a um fogo que suavemente

se extingue. Os frutos verdes devem ser arrancados à força da árvore

que os carrega; quando estão maduros, ao contrário, eles caem natu-

ralmente. Da mesma forma, a vida é arrancada à força aos adolescen-

tes, enquanto deixa aos poucos os velhos quando chega sua hora [...].

Conclusão: os velhos não devem nem se apegar desesperadamen-te nem renunciar sem razão ao pouco de vida que lhes resta.

16 Cícero. Saber Envelhecer. Porto Alegre: LP&M, 1997.

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Medicinae morte

2.1 A história da morteFragmentos de Um estudo teórico sobre a morte17

Possuímos uma herança cultural sobre a morte que define nossavisão de morte nos dias atuais. Segundo Kastenbaum e Aisenberg (1983),as interpretações atuais sobre a morte constituem parte da herança que asgerações anteriores, as antigas culturas nos legaram.

Faremos, então, um pequeno passeio pela história para que pos-samos entender como foi construída a idéia da morte encontrada nos diasde hoje. Arqueólogos e antropólogos, por meio de seus estudos, descobri-ram que o homem de Neanderthal já se preocupava com seus mortos.

Não somente o homem de Neanderthal enterra seus mortos, mas às vezesos reúne (Gruta das Crianças, perto de Menton). (MORIN, 1997)

Ainda segundo Morin (1997), na pré-história, os mortos dospovos musterenses eram cobertos por pedras, principalmente sobre orosto e a cabeça, tanto para proteger o cadáver dos animais quanto paraevitar que retornassem ao mundo dos vivos. Mais tarde, eram depositadosalimentos e as armas do morto sobre a sepultura de pedras e o esqueletoera pintado com uma substância vermelha.

O não abandono dos mortos implica a sobrevivência deles.Não existe relato de praticamente nenhum grupo arcaico que abandone

seus mortos ou que os abandone sem ritos. (MORIN, 1997)

2

17 Disponível em: <http://www.brasilescola.com/psicologia/estudo-teorico-morte.htm>.

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Ainda hoje, nos planaltos de Madagascar, durante toda a vida, oskiboris constroem uma casa de alvenaria, lugar onde seu corpo permane-cerá após a morte.

Segundo Kastenbaum e Aisenberg (1983), os egípcios da Antigüi-dade, em sua sociedade bastante desenvolvida do ponto de vista intelectuale tecnológico, consideravam a morte como uma ocorrência dentro daesfera de ação. Eles possuíam um sistema que tinha como objetivo ensinarcada indivíduo a pensar, sentir e agir em relação à morte.

Os autores seguem dizendo que os malaios, por viverem em umsistema comunitário intenso, apreciavam a morte de um componentecomo uma perda do próprio grupo. Desta feita, um trabalho de lamentaçãocoletiva diante da morte era necessário aos sobreviventes. Ademais, amorte era tida não como um evento súbito, mas sim como um processoa ser vivido por toda a comunidade.

Segundo Áries (1977), na Vulgata, o Livro da Sabedoria (a versãolatina da Bíblia), após a morte, o justo irá para o Paraíso. As versões nórdicasdo Livro da Sabedoria rejeitaram a idéia de Paraíso descritas no livro original,pois, segundo os tradutores, os nórdicos não esperam as mesmas delícias queos orientais, após a morte. Isso porque os orientais descrevem que o Paraísotem “a frescura da sombra”, enquanto os nórdicos preferem “o calor do sol”.Estas curiosidades nos mostram como o ser humano deseja, ao menos apósa morte, obter o conforto que não conseguiu em vida.

Já o budismo, por meio da sua mitologia, busca afirmar ainevitabilidade da morte. A doutrina budista nos conta a “Parábola doGrão de Mostarda”: uma mulher, com o filho morto nos braços, procuraBuda e suplica que o faça reviver. Buda pede à mulher que consiga algunsgrãos de mostarda para fazê-lo reviver. No entanto, a mulher deveriaconseguir estes grãos em uma casa onde nunca houvesse ocorrido a mortede alguém. Obviamente esta casa não foi encontrada e a mulher compre-endeu que teria que contar sempre com a morte.

Na mitologia hindu, a morte é encarada como uma válvula deescape para o controle demográfico. Quando a “Mãe Terra” se tornasobrecarregada de pessoas vivas, ela apela ao deus Brahma, que enviaentão a “mulher de vermelho” (que representa a morte na mitologiaocidental) para levar pessoas, aliviando assim os recursos naturais e a

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sobrecarga populacional da “Mãe Terra”.Segundo Mircea Elíade (1987), os fino-úgricos (povos da região

da Península de Kola e da Sibéria Ocidental) têm sua religiosidade pro-fundamente vinculada ao xamanismo. Os mortos destes povos eram en-terrados em covas familiares, onde os que morreram há mais temporecebiam os “recém-mortos”. Assim, as famílias eram constituídas tantopelos vivos quanto pelos mortos.

Esses exemplos nos trazem uma idéia de continuidade em relaçãoà morte, não sendo considerada como um fim em si. Havia uma certatentativa de controle mágico sobre a morte, o que facilitava sua integraçãopsicológica, não havendo, portanto, uma cisão abrupta entre vida e morte.Isso, sem dúvida, aproximava o homem da morte com menos terror.

Apesar da familiaridade com a morte, os antigos de Constantinoplamantinham os cemitérios afastados das cidades e das vilas. Os cultos ehonrarias que prestavam aos mortos tinham como objetivo mantê-losafastados, de modo a que não “voltassem” para perturbar os vivos. Poroutro lado, na Idade Média, os cemitérios cristãos se localizavam nointerior e ao redor das igrejas, e a palavra cemitério significava também“lugar onde se deixa enterrar”. Daí, eram tão comuns as valas cheias deossadas sobrepostas e expostas ao redor das igrejas.

A Idade Média foi um momento de crise social intensa que acaboupor marcar uma mudança radical na maneira do homem lidar com a morte.Kastenbaum e Aisenberg (1983) nos relatam que a sociedade do século XIVfoi assolada pela peste, pela fome, pelas Cruzadas, pela Inquisição; umasérie de eventos provocadores da morte em massa. A total falta de controlesobre os eventos sociais teve seu reflexo também na morte, que não podiamais ser controlada magicamente como em tempos anteriores. Ao contrário,a morte passou a viver lado a lado com o homem, como uma constanteameaça a perseguir e pegar a todos de surpresa.

Esse descontrole traz, à consciência do homem desta época, otemor da morte. A partir daí, uma série de conteúdos negativos começaa ser associada à morte: conteúdos perversos, macabros, bem como tor-turas e flagelos, passam a se relacionar com a morte, provocando um totalestranhamento do homem diante deste evento tão perturbador. A mortese personifica como forma de o homem tentar entender com quem está

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lidando, e séries de imagens artísticas se consagram como verdadeirossímbolos da morte, atravessando o tempo até os dias de hoje.

Kübler-Ross (1997) descreve que são cada vez mais intensas evelozes as mudanças sociais expressas pelos avanços tecnológicos. Ohomem tem se tornado cada vez mais individualista, preocupando-se menoscom os problemas da comunidade. Essas mudanças têm seu impacto namaneira com a qual o homem lida com a morte nos dias atuais.

O homem da atualidade convive com a idéia de que uma bombapode cair do céu a qualquer momento. Não é de se surpreender, portanto,que o homem, diante de tanto descontrole sobre a vida, tente se defenderpsiquicamente, de forma cada vez mais intensa contra a morte. “Diminu-indo a cada dia sua capacidade de defesa física, atuam de várias maneirassuas defesas psicológicas” (KÜBLER-ROSS, 1997).

Ao mesmo tempo, essas atrocidades seriam, segundo ponto devista de Mannoni, (1995), verdadeiras pulsões de destruição; a dimensãovisível da pulsão de morte.

Mannoni (1995), citando Áries, conta que a morte revelou suacorrelação com a vida em diversos momentos históricos. As pessoas podiamescolher onde iriam morrer, longe ou perto de tais pessoas, em seu lugarde origem, deixando mensagens a seus descendentes.

A possibilidade de escolha deu lugar a uma crescente perda dadignidade ao morrer, como nos afirma Kübler-Ross (1997): “[...] já vãolonge os dias em que era permitido a um homem morrer em paz edignamente em seu próprio lar.”

Para Mannoni, nos dias atuais, 70% dos pacientes morrem noshospitais enquanto no século passado 90% morriam em casa, perto deseus familiares. Isto ocorre porque nas sociedades ocidentais o moribundoé, geralmente, afastado de seu círculo familiar.

O médico não aceita que seu paciente morra e, se entrar nocampo em que se confessa a impotência médica, a tentação dechamar a ambulância (para se livrar do “caso”) virá antes da idéiade acompanhar o paciente em sua casa, até o fim da vida.(MANNONI, 1995)

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A morte natural deu lugar à morte monitorada e às tentativas dereanimação. Muitas vezes, o paciente nem é consultado quanto ao quedeseja que se tente para aliviá-lo. A medicalização da morte e os cuidadospaliativos, não raro, servem apenas para prolongar o sofrimento do paci-ente e de sua família. É muito importante que as equipes médicas apren-dam a distinguir cuidados paliativos e conforto ao paciente que estámorrendo de um simples prolongamento da vida.

Outro aspecto comportamental do ser humano em relação à morteé que antigamente se preferia morrer lentamente, perto da família, ondeo moribundo tinha a oportunidade de se despedir. Atualmente, não é rarose ouvir dizer que é preferível uma morte instantânea do que o longosofrimento causado por uma doença. Entretanto, segundo Kovács (1997),contrariando o senso comum, o tempo da doença justamente ajuda aassimilar a idéia de morte e a conseguir tomar decisões concretas, comoa adoção dos filhos ou a resolução de desentendimentos.

Segundo Bromberg (1994), nossa cultura não incorpora a mortecomo parte da vida, mas sim como castigo ou punição.

2.1.1 Sobre os mistérios da morte e o amparo àqueles que dela seaproximamDanilo Santos de Miranda18

Vários especialistas afirmam que nas décadas mais recentes temocorrido na sociedade ocidental um inédito e surpreendente fenômeno: anegação de nossa finitude, expressão do grande tabu do século XX. Numpassado recente, morria-se em casa, junto à família. O processo do morrerera acompanhado com compaixão pelos entes queridos. O moribundo eraouvido em seus derradeiros pedidos e recomendações. A morte estavamais presente no cotidiano.

Atualmente, o hospital é o lugar onde nascemos e morremos. Amorte se tornou solitária nas Unidades de Terapia Intensiva, local onde,

18 Disponível em:<http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas/ti index.cfm?forget=13&revista=35&editorial=1>.

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muitas vezes, luta-se em vão pela continuidade de uma vida meramentevegetativa. A família se retira e retira de seu doente a possibilidade dedecisão sobre seu destino, delegando essa responsabilidade aos profissio-nais da Saúde. Esconde-se dos netos a morte do avô. Mente-se às criançasdizendo que a vovó fez uma “viagem” e que demorará a voltar.

Antes, mesmo com temor, a morte era enfrentada de algumaforma. Hoje, a fragilidade e a transitoriedade da vida são escamoteadas.Suportamos e até banalizamos a morte do outro enquanto que a nossaprópria morte é varrida de nossa consciência. Possivelmente, os valores dasociedade de consumo em que vivemos alimente idéias de uma certaonipotência e ausência de limites, valores incompatíveis com a naturezaefêmera da vida material e com a sábia postura de humildade frente aotranscendente.

Muitos médicos e profissionais da Saúde têm dificuldade emlidar com a morte. A perda de um paciente tende a desencadear sentimen-tos de fracasso profissional. Felizmente, como uma reação a esse estadode coisas e na defesa da dignificação da morte e do processo de morrer,especialistas, filósofos e religiosos desenvolvem a Bioética, como um novoe importante campo de conhecimento.

Dráuzio Varela, em seu livro Por um fio, compartilha com o leitora mais importante revelação que teve como resultado dos muitos anos decontato com pacientes terminais: a de que a missão do médico não é ade salvar vidas, mas a de minorar o sofrimento humano. Em suma,diríamos que essa missão pode e deve ser estendida a todos nós e a todasas circunstâncias que vivenciarmos. Imbuídos por essa atitude solidária,faremos nossa parte na construção de uma sociedade mais acolhedora,altruísta e humana, sociedade na qual se possa nascer, crescer e morrercom dignidade.

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2.1.2 Por que falar da morte?Eva Paulino Bueno19

A idéia para este artigo surgiu de conversas informais com amigos,quando comentávamos como é difícil perder um amigo ou um parente ecomo todos vivemos com o temor de um telefonema no meio da noite,ou de uma carta que vem de longe, dando a notícia que ninguém querreceber. Para todos nós que moramos longe das nossas famílias, e cujospais estão velhinhos, o medo é uma constante. E como conversa puxaconversa, acabamos comentando, bastante informalmente, como algumasculturas reagem de maneiras diferentes à morte, mas que, de maneirageral, a dor muito humana da perda de alguém é universal.

Deste bate-papo informal chegamos à conclusão que seria umaboa idéia colocar em termos de pequenos ensaios e artigos esta olhadamulticultural em como, embora a dor seja a mesma, as manifestaçõesexternas diferem tanto quando se trata da morte.

Daí foi um passo para começar a contatar amigos e conhecidos devários países e áreas de estudo. Alguns aceitaram e se puseram a pesquisare escrever. Mas outros simplesmente se recusaram a escrever sobre talassunto, uns porque ainda estão passando por um luto muito doloroso, eoutros porque acharam que não poderiam escrever coerentemente sobre amorte. Outros acharam que não teriam tempo de escrever. E, por fim, unsdisseram que escrever sobre tal assunto seria de mau agouro.

Como tal resposta veio de pessoas do meio acadêmico, gostariade pausar por um momento no assunto do mau agouro e ver como elepode ser impedimento a que alguém escreva sobre um determinado assun-to. O mau agouro, o azar, é algo que parece estar associado em muitasculturas com a possibilidade da morte e da danação, ou, para os cristãos,para o sofrimento eterno, o Inferno. O azar seria, então, ao mesmo tempopunição de algo e ímã atraindo ainda pior sorte, especialmente a do tipoque dura para sempre. A decisão de não insistir com os colegas foi fácil:ninguém colocaria amigos em tal situação, por mais importante que a

19 Disponível em: <http://www.espacoacademico.com.br/030/30ebueno01.htm>.

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contribuição pudesse ter sido. A atração de alguma coisa negativa, de umaenergia que só se extingue à custa de uma vida, ou de muita dor, é algoem que muitos acreditam (tanto no plano racional como no emocional),e acreditar é meio caminho andado para que qualquer coisa se realize.

Já entre os outros que não tinham tempo para escrever, percebiduas atitudes diferentes: uns acharam que não valia a pena escrever sobrea morte porque “todos já sabem do que se trata,” e outros porque que-riam entrevistar pessoas de alguns grupos e o tempo não era suficiente.Na verdade, apesar das diferentes razões que mesmo os que não seprontificaram a escrever deram, todos tinham, de alguma forma, umconhecimento específico do que a morte representa e, além dela, sabiamde alguma maneira de homenagear os mortos ou apaziguar os espíritosdos que já se foram. Isto parece que é algo que todos reconhecemos, nãoimportando cultura, classe social, nível de escolaridade. De acordo comantropólogos, os seres humanos já vêm fazendo estas homenagens, estesrituais funerários, há muito tempo.

Lembro-me de ter lido há muitos anos, e ficado devidamenteimpressionada, que cientistas haviam encontrado um esqueleto humanopetrificado, e junto ao esqueleto, também petrificados, encontraram-sevestígios de flores que eles deduziram terem sido trazidas e colocadas aolado do morto. Como concluíram que as flores haviam sido trazidas e nãotinham simplesmente crescido ali? Porque as flores não cresciam naquelelugar e para estarem ali deveriam ter sido cortadas e trazidas pelos queparticiparam de uma cerimônia funerária.

Esta explicação faz algum tipo de sentido, mesmo que uns pos-sam dizer que, quando os cientistas dão estas explicações, estão na rea-lidade contando uma história, um conto, que nos ajuda a compreender anossa humanidade. E a nossa humanidade tem muito a ver como nosrelacionamos com os mortos, como os respeitamos, como nos despedi-mos deles. Nós somos os animais que sabemos que vamos morrer, e amorte nos fascina. Esta fascinação é, de qualquer forma, uma das manei-ras em que nos diferenciamos dos demais animais.

A estranha fascinação com a morte também pode ser vista naexistência de múmias em quase todas as partes do mundo. Estes restosmortais, preservados para durar e levar a alma da pessoa até outra dimen-

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são, são encontrados tanto no Egito como nas Américas, como na Europae até mesmo na Ásia. Em algum ponto da maioria das culturas, ao quetudo indica, as pessoas concluíram que há uma outra vida além desta eque pelo menos alguns indivíduos merecem ser mantidos e preservadospara a passagem de um lado a outro.

Entre os egípcios, como sabemos, preservavam-se não somenteos corpos dos faraós e membros de suas famílias, mas os corpos de quemtivesse dinheiro suficiente para pagar pelo custoso processo.20 Há tambémo caso de múmias “espontâneas”, aquelas que a composição do solo ououtras características ambientais – neve, acidez da terra – produziram emvárias partes do mundo. Na América Latina, por exemplo, caso especialé o dos antigos habitantes do que hoje é o Peru, que sacrificavam criançasnas montanhas dos Andes, provavelmente para apaziguar os deuses. Aindase podem encontrar estes corpos, ricamente vestidos e enfeitados, quaseque completamente conservados, mumificados pela neve e o gelo. Tam-bém desta região do Peru, e em parte do Chile, vêm as múmias doschinchorros.

Assim como as múmias dos Egito, estas também requeriam gran-de trabalho, sendo que o processo de mumificação exigia grande conhe-cimento científico.21 Na Irlanda, na região pantanosa que se chama “bog”,já se encontraram vários corpos de pessoas que viveram ali há váriosséculos, mumificados pelos componentes químicos do lugar. O mais fa-

20 Como resultado, hoje sabemos, há múmias egípcias no mundo inteiro. O que não deixade ser triste e surreal ao mesmo tempo: estes pobres corpos eram roubados pelos locaisno Egito e vendidos especialmente a europeus e norte-americanos. No WestminsterCollege, na Pennsylvania, por exemplo, o Departamento de Ciência tem uma múmiaque foi comprada por um ex-aluno da escola e doada à instituição. Uma placa nos informaque é o corpo de uma mulher, e fornece outras informações sobre idade aproximada,ano da chegada aos Estados Unidos, etc. Mas não fornece o nome da mulher. Este nomese perdeu nas literais areias e nas do tempo. Mas o fato que estes são os restos mortaisde uma mulher que viveu há tantos séculos se transformou em um ponto emocional,especialmente para as alunas da universidade. Muitas delas fazem questão de passar peloesquife de vidro e dizer alô para a “garota” que faz parte da escola. Algumas a chamamde “bela adormecida.” Talvez esta seja uma maneira melhor que estar dentro de um esquifeem um museu?

21 Ver <http://www.mummytombs.com/mummylocator/group/chinchorro.htm> para maisdetalhes.

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moso destes antigos habitantes da Irlanda mereceu um poema de SeamusHeaney, poeta irlandês que ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em1995. Na Dinamarca, perto da vila de Grauballe, em 1952, foi encontra-do um corpo mumificado na lama e sua idade aproximada foi calculadaem mais de mil anos. Na Rússia, foram encontradas múmias dos reis dopovo chamado scythian, que viveu naquela região do século VIII ao VI a.C. Na Ásia Central, na região da bacia do Rio Tarim, também foramencontradas múmias, conservadas por quatro mil anos pelo clima seco epelo sal da terra. E por aí vai, pelo mundo afora.

No nosso Brasil tropical, pelo menos que eu saiba, não há múmias,embora esta palavra, múmia, seja uma das maneiras que podemos usarpara nos referir a alguém de forma pejorativa. Mas, mesmo não tendomúmias de verdade, temos histórias de tumbas que, por assim dizer,contam a história da pessoa enterrada nela. Cada cemitério tem umadestas. Quem não sabe de histórias de uma tumba “que chora” ou na qualflores estranhas crescem, ou na qual alguns dizem que ouvem sons emcertos dias? Uma das mais interessantes que eu conheço é a história deduas cunhadas que se odiavam em vida.

Quando a primeira morreu, ela foi colocada no jazigo da família.A segunda, já velhinha, disse a todos que não a colocassem no mesmojazigo, porque ela seguia odiando a finada. A família se esqueceu do pedidoe, quando a segunda velhinha morreu, colocaram seu corpo junto com oda parente. Não deu outra: o túmulo rachou. A família então resolveuremover o corpo e colocá-lo em outra parte do cemitério para evitar quea rusga das duas continuasse se manifestando de maneira tão escandalosa.Se é verdade esta história, eu não sei. Mas é uma história interessante.

Já em alguns lugares da África Ocidental, por exemplo, os locaistinham muito medo do que as pessoas chamadas griots podiam fazerdepois de mortos, e por isso, em algumas regiões do Senegal, “enterra-vam” seus corpos de uma maneira muito estranha. Os griots ainda hojeem dia funcionam como artistas, historiadores, contadores de histórias,artistas ambulantes, genealogistas e jornalistas. Eles vão de um lugar aooutro levando e trazendo notícias, contando histórias, cantando músicas.

No passado, quando um griot morria, a comunidade onde ocor-ria a morte abria o tronco de um baobá – como se sabe, uma árvore

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imensa – e ali dentro colocavam o corpo do griot.22 Talvez a comunidadequisesse assim preservar o fato de que o griot tinha tanta importância quedeveria continuar ”vivendo” dentro do organismo vivo que é a árvore.Mas, talvez, o que este costume revele é aquilo que cada um de nós sabe:a morte nos fascina, nos amedronta, e nos lembra, a cada momento, queela existe e que faz parte da vida.

Outra coisa que sabemos é que a morte é, em todo mundo, umaocasião triste, mesmo quando a pessoa que morre já é velha ou está doente.Depois dos primeiros momentos, em alguns casos, talvez a família respirealiviada por não estar mais testemunhando o sofrimento do doente, ou ademência da pessoa idosa, mas logo vem a consciência de que esta pessoajamais vai ser vista outra vez. Sua voz nunca mais vai ser ouvida.

A pessoa morta não vai mais vir para jantar. Não vai mais telefo-nar. Não vai mais poder convidar para um cafezinho, ou dar uma bronca,ou contar uma piada, ou simplesmente estar no mundo com a gente. Apessoa que morreu não vai mais mudar. Não vai mais envelhecer. A pessoaque morreu vai seguir por um caminho que nós não conhecemos.

E é aqui que começam as muitas homenagens aos mortos, asmuitas cerimônias tentando apaziguá-los, consolá-los, ou mesmo entrarem contato com eles. Neste momento, surgem as diferentes manifestaçõesculturais que se centram nestas tentativas de reencontrar a pessoa que sefoi. Desde as sessões espíritas, em que as pessoas mortas supostamentevoltam e falam pela boca do médium, às cerimônias especiais em algumasculturas indígenas em que membros vivos entram em transe e se conectamcom os espíritos dos ancestrais, e mesmo aos milagres que os cristãosatribuem aos santos (que são nada mais nada menos pessoas que viveramalguma experiência excepcional e que, em resultado, adquiriram statusespecial), todas são formas de contato com os que estão do outro lado.

Onde eu moro, perto do México, o Dia dos Mortos – “el díade los muertos” – é uma ocasião especial, porque muitas pessoas de SanAntonio são mexicanas ou de origem mexicana. Em cada casa de famí-lia, para o dia 2 de novembro, monta-se um altar, no qual são home-

22 Ver mais informação em Thomas Hale, Griots and Griottes, Indiana University Press,1998.

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nageados os mortos da família. Também em alguns lugares públicos taisaltares são montados, homenagens são feitas, em uma maneira de man-ter viva a tradição.

Além das fotos dos finados, estes altares contêm o “pan de muerto”– um tipo de rosca doce que pode ser feita em forma de caveira. No altartambém há flores, velas, perfumes, coisas que os finados gostavam, e atécartas para eles escritas por familiares e amigos. Para as crianças, distri-buem-se caveirinhas de açúcar e também há muitos bonequinhos comformas de esqueletos em posições divertidas. Este costume, que vem dostempos pré-colombianos, indica que neste dia as almas dos parentes vi-sitam a Terra, especialmente a casa da família, e assim têm a ocasião depassar um tempo com os parentes, matando as saudades, escutando asnovidades.23

Mas muitas pessoas não acreditam que há um outro lado. Amorte, para muitos, é um final definitivo e não uma passagem. Noentanto, mesmo para estes, é possível usar esta ocasião para dizer algo.Podemos citar como exemplo as cerimônias funerárias em que a famíliado morto se esmera nas suas demonstrações de riqueza e poder. Taiscerimônias têm como intento alcançar mais status para a própria famíliado morto, e esta ocasião e o espaço cultural da cerimônia podem serconsiderados a sua última contribuição à família.

No Brasil, como sabemos muito bem, muitos usam até o cemi-tério para fazer suas afirmações de riqueza e status: basta ir a qualquerum e ali estão os túmulos feitos de materiais caros, extremamente enfei-tados, e com o nome da família em destaque. É impossível não comparartal costume com o que existe nos Estados Unidos, onde, em geral, oscemitérios são bastante simples, e as famílias fazem doações para váriascausas em homenagem ao morto.

De fato, tanto pelos excessos de demonstração de poder quantopela simplicidade das tumbas, os cemitérios podem ser tomados como

23 Uma busca rápida na internet, com a frase “el día de los muertos” fornecerá acesso a muitaspáginas em inglês e espanhol nas quais se encontram mais detalhes desta festa, assimcomo as divertidas figuras da morte em várias atividades sociais e culturais. Estasfigurinhas, sempre engraçadas, são um dos símbolos do México.

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uma manifestação histórica, cultural, artística, religiosa e até política.Parece ser um fato mundial que, embora a morte possa significar acessação da presença física da pessoa morta, não significa que a suacontribuição para a sua família, grupo social, partido político ou país,cesse com a sua morte física.

Aí entramos em um aspecto muito interessante das cerimôniasfunerárias e das atividades especiais durante o período de luto, que dife-rem não só de uma cultura à outra como também de um tempo ao outro,e às vezes até de uma região para outra dentro de um mesmo país. Umfato interessante na Inglaterra, por exemplo, é que a Rainha Vitória,quando seu marido Alberto morreu, em 1861, estabeleceu uma série denormas a serem seguidas durante o luto, desde a roupa negra, papéis decarta com uma faixa negra, até os elaborados funerais. O período de lutovariava dependendo da relação que a pessoa tinha com o morto. Haviao seguinte quadro:

MORTE DE PERÍODO DE LUTOMarido Dois ou três anosEsposa Três meses

Pai ou filho Um anoIrmão ou irmã Seis meses

Avós Seis mesesTias e tios Três meses

Sobrinhos e sobrinhas Dois mesesTios-avós Seis semanasPrimos Quatro a seis semanas

Esta relação nos leva a concluir, por exemplo, que a perda deuma esposa era menos importante do que a perda dos avós. Isso nos levaa outra consideração, a do valor da relação entre a pessoa morta e quema perdeu. Há a relação dos parentes e amigos mais próximos, mas tam-bém temos outra categoria de pessoas cuja morte nos afeta embora talveznunca tenhamos visto esta pessoa em “carne e osso”. Estes são os nossosícones culturais e podem vir da arena artística, política, e religiosa. Nanossa América Latina, por exemplo, podemos citar Evita Perón, e Che

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Guevara. No Brasil, podemos citar Carmem Miranda, Getúlio Vargas,Ayrton Senna e mesmo Tancredo Neves, e muitos outros (cada um de nóstem seus favoritos). Dos vizinhos de cima, nos lembramos de John Kennedy,Martin Luther King Jr., Malcom X, Marilyn Monroe, Jimmy Hendrix,Janis Joplin, Elvis Presley, Kurt Cobain, entre outros. No caso destesnomes citados, muitos choraram sua morte como se eles fossem da pró-pria família. Em alguns casos, como Mao na China, ainda hoje multidõesvisitam seu mausoléu e choram sua perda.

Todos estes assuntos são fascinantes em si mesmos. Entendercomo vemos a morte nos ajuda a entender outros mecanismos da soci-edade humana, e, espera-se, nos ajuda a entender como fazer a vidamelhor, mais significativa, mais respeitada.

2.2 A morte e a Medicina

A missão tradicional do médico é aliviar o sofrimento humano;se puder curar, cura; se não puder curar, alivia; se não puder aliviar,consola.

Ao pensar na morte, seja a simples idéia da própria morte, oua expectativa mais do que certa de morrer um dia, seja a idéia estimuladapela morte de um ente querido ou mesmo de alguém desconhecido, o serhumano maduro normalmente é tomado por sentimentos e reflexões.

As pessoas que se regozijam em dizer que não pensam na morte,normalmente têm uma relação mais sofrível ainda com esse assunto, tãosofrível que nem se permitem pensar a respeito.

Esses pensamentos, ou melhor, os sentimentos determinados poresses pensamentos variam muito entre as diferentes pessoas, tambémvariam muito entre diferentes momentos de uma mesma pessoa. Podemser sentimentos confusos e dolorosos, serenos e plácidos, raivosos e ran-corosos, racionais e lógicos, e assim por diante. Enfim, são sentimentosdas mais variadas tonalidades.

Isso tudo pode significar que a morte, em si, pode representaralgo totalmente diferente entre as diferentes pessoas, e totalmente diferen-te em diferentes épocas da vida de uma mesma pessoa.

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2.3 A morte e a PsicanáliseFragmentos de Um estudo teórico sobre a morte24

Desde muito cedo, ainda bebês, quando passamos a distinguirnosso próprio corpo do corpo da mãe, somos obrigados a aprender a nosseparar de quem ou daquilo que amamos. A princípio, convivemos comseparações temporárias como, por exemplo, a mudança de escola. Maschega uma hora em que acontece a nossa primeira perda definitiva:alguém que nos é muito querido, um dia se vai para sempre. É justamenteesse “para sempre” o que mais nos incomoda. Porém, quanto mais cons-cientes estivermos de nossas mortes diárias, mais nos preparamos para omomento da grande perda de tudo que colecionamos e nutrimos durantea vida: desde toda a bagagem intelectual, todos os relacionamentos afetivos,até o corpo físico.

Com o distanciamento cada vez maior do homem em relação àmorte, cria-se um tabu, como se fosse desaconselhável ou até mesmoproibido falar sobre este tema. Segundo Bromberg (1994), “[...] comoaprendemos em nossa cultura, evitamos a dor, evitamos a perda e fugimosda morte, ou pensamos fugir dela [...]”.

Esse quadro atual nos revela a dimensão da cisão que o homemtem feito entre vida e morte tentando se afastar ao máximo da idéia damorte, considerando sempre que é o outro que vai morrer e não ele.Então nos lançamos à questão da angústia e do medo em relação à morte.

Uma das limitações básicas do homem é a limitação do tempo.Segundo Torres (1983), “[...] o tempo gera angústia, pois, do ponto devista temporal, o grande limitador chama-se morte [...]”.

A Psicanálise Existencial, apontada por Torres (1983), revela adimensão da angústia da morte: “A angústia mesma nos revela que amorte e o nada se opõem à tendência mais profunda e mais inevitável donosso ser”, que seria a afirmação do si mesmo.

Mannoni (1995) busca em Freud palavras que falem da angústiado homem diante da morte: “[...] Freud a situa ou na reação a uma

24 Disponível em: <http://www.brasilescola.com/psicologia/estudo-teorico-morte.htm>.

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ameaça exterior, ou como na melancolia, ao desenrolar de um processointerno. Trata-se sempre, porém, de um processo que se passa entre o eue a severidade do super-eu.”

Segundo Kastenbaum e Aisenberg (1983), o ser humano lida comduas concepções em relação à morte: a morte do outro, da qual todos nóstemos consciência, embora esteja relacionada ao medo do abandono; e aconcepção da própria morte, a consciência da finitude, na qual evitamospensar, pois para isto temos que encarar o desconhecido.

É a angústia gerada ao entrar em contato com a fatalidade damorte que faz com que o ser humano se mobilize a vencê-la, acionandopara este fim diversos mecanismos de defesa, expressos por intermédio defantasias inconscientes sobre a morte. Muito comum é a fantasia de existirvida após a morte; de existir um mundo paradisíaco, regado pelo princí-pio do prazer e onde não existe sofrimento; de existir a possibilidade devolta ao útero materno, uma espécie de parto ao contrário, onde nãoexistem desejos e necessidades. Ao contrário dessas fantasias prazerosas,existem aquelas que provocam temor. O indivíduo pode relacionar amorte com o Inferno. São fantasias persecutórias que têm a ver comsentimentos de culpa e remorso. Além disso, existem identificaçõesprojetivas com figuras diabólicas, relacionando a morte com um seraterrorizante, com face de caveira, interligado a pavores de aniquilamento,desintegração e dissolução.

O homem é o único animal que tem consciência de sua própriamorte. Segundo Kovács (1998), “[...] o medo é a resposta mais comumdiante da morte. O medo de morrer é universal e atinge todos os sereshumanos, independente da idade, sexo, nível sócio-econômico e credoreligioso.”

Para a Psicanálise Existencial, enunciada por Torres, (1983), “[...]o medo da morte é o medo básico e ao mesmo tempo fonte de todas asnossas realizações: tudo aquilo que fazemos é para transcender a morte.”E complementa esse pensamento afirmando que “todas as etapas do de-senvolvimento são na verdade formas de protesto universal contra o aci-dente da morte.”

Segundo Freud (1917), ninguém crê em sua própria morte. In-conscientemente, estamos convencidos de nossa própria imortalidade.

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Nosso hábito é dar ênfase à causação fortuita da morte – aciden-te, doença, idade avançada – desta forma, traímos um esforço para redu-zir a morte de uma necessidade para um fato fortuito.

2.4 A morte e o ensino médico

Na formação do médico, bem como na formação das especiali-dades, a morte costuma ser abolida do rol de preocupações clínicas.Dificilmente os médicos perguntam, na anamnese, se o paciente temmedo de morrer, pensa em morrer, pensa em suicídio, ou coisas assim.Aliás, nem sequer é perguntado se o paciente está triste, nem sequer comoele está. E isso se deve, provavelmente, à total falta de conhecimento sobreo que fazer com a resposta do paciente.

Quanto mais avança o conhecimento médico em todos os cam-pos (Farmacologia, terapêutica, anestesia, cirurgia, transplantes de órgãos,fertilização humana, Genética, Imunologia, Medicina nuclear, recursosdiagnósticos, etc...), quanto mais se desenvolvem tecnologias aplicadas àMedicina, mais o médico se distancia da morte.

Os protocolos de procedimentos médicos, as normas administra-tivas da Medicina e os rígidos manuais de conduta acabaram porinstitucionalizar a morte. É comum vermos em livros-texto uma perfeitadescrição de determinado quadro clínico, reconhecidamente irreversível ecom desfecho fatal, mas nada se fala dos cuidados finais, da atençãofamiliar e afetiva que o paciente deveria receber nesse momento. Não,fala-se muito em deixá-lo nos Centros de Terapia Intensiva.

É objetivo da Medicina Paliativa a preocupação com adesinstitucionalização da morte, dando ao paciente a possibilidade de esco-lher permanecer em casa durante sua agonia. A discussão que pretendemosalimentar é, sobretudo, um protesto contra as condições de vida impostaspela Medicina moderna aos doentes terminais, subtraindo deles as opçõesde um morrer menos sofrível. Pensamos que intervir no paciente terminalem Centros de Terapia Intensiva, quando não objetiva exclusivamenteminimizar sofrimentos, pode refletir sentimento de onipotência da Medici-na sobre a vida, sobre a vida física, como se ela fosse considerada o bemsupremo e absoluto, acima da liberdade e da dignidade.

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O amor pela vida, quando a toma como um fim em si mesma,transforma-se em um culto pela vida. A Medicina que se preocupa insen-sivelmente com as “condições vitais”, deixando de lado as “qualidadesvitais”, promove implicitamente esse culto idólatra à vida.

Nessas circunstâncias, a Medicina interfere na fase terminal comose travasse uma luta a todo custo contra a morte e não, como seriapreferível, uma luta em defesa do paciente. A maneira de morrer, portan-to, não pode ser excluída, absolutamente, do projeto de vida da pessoa.A maneira de morrer também é uma forma de humanizar a vida no seuocaso, devolvendo-lhe a dignidade perdida.

O grande desenvolvimento da Medicina nas últimas décadas doséculo XX, assim como as melhorias inegáveis nas condições de vida,elevaram a expectativa de vida de 34 anos, no começo do século XX, atéquase 80 anos no começo do século XXI.

Conseqüente ao aumento da perspectiva de vida e ao envelheci-mento progressivo das populações, nas últimas décadas está havendo umaumento gradual na prevalência de algumas doenças crônicas e invalidantes.

Os avanços conseguidos no tratamento específico do câncer têmpermitido um aumento significativo da sobrevivência e da qualidade devida desses pacientes. Mesmo assim, estima-se atualmente que 25% dasmortes sejam devidas ao câncer. Por outro lado, sem nenhuma relaçãocom o envelhecimento da população, a AIDS grassou tenazmente emnossa sociedade, demandando fortes medidas sanitárias. Aqui também,apesar dos avanços nessa área, continua grande o número anual de paci-entes terminais produzidos por essa doença.

O estado mórbido a que chamamos de doença terminal se carac-teriza por algumas situações clínicas precisamente definidas, as quais sepodem relacionar da seguinte forma.

• Presença de uma doença em fase avançada, progressiva eincurável.

• Falta de possibilidades razoáveis de resposta ao tratamentoespecífico.

• Presença de numerosos problemas ou sintomas intensos, múl-tiplos, multifatoriais e alternantes.

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• Grande impacto emocional (no paciente e familiares) relaci-onado à presença ou possibilidade incontestável da morte.

• Prognóstico de vida inferior a seis meses.

Os pacientes terminais apresentam peculiaridades próprias que oprofissional médico deve conhecer. O controle dos sintomas do estadoterminal deve ser abordado não só do ponto de vista farmacológico senãotambém do ponto de vista psicológico, social, familiar, espiritual, etc.Nesses pacientes, os sintomas costumam ser devidos a diversos fatores.Podem ser decorrentes da própria doença que levou ao estado terminal,podem ser devidos aos tratamentos médicos fortemente agressivos à saú-de, da debilidade física geral ou de causas totalmente alheias à doençagrave, entre elas, do estado emocional do paciente.

Seja qual for a origem dos sintomas e do quadro geral que opaciente apresenta é necessário explicar, da melhor forma possível, o queestá ocorrendo e as possíveis questões que possam estar preocupando.Também a família deve estar sempre bem informada, especialmente quan-do os cuidados estiverem a cargo dela (SÁNCHEZ, 2000).

2.5 TerminalidadeClaísa Maria Mirante

A morte ainda constitui um acontecimento pavoroso, muitas vezestido como universal. É considerada um tabu, causadora de medo, pânico,e recusa. A morte, além de deixar uma grande angústia, coloca para ohomem a questão da finitude. Becker (1973) expõe a idéia de que ohomem, a qualquer custo, faz um movimento para evitar a morte, sendoo medo uma condição universal humana. Para essa afirmação, ele utilizadiversas disciplinas das ciências humanas. Teoriza sobre o problema daatividade heróica e a coloca como problema central da vida humana, aqual é baseada no narcisismo e na necessidade que o homem tem deamor-próprio, desenvolvido na infância.

Segundo Becker (1973), “a própria sociedade é um sistema co-dificado de heróis, o que significa que a sociedade, em toda parte, é ummito vivo do significado da vida humana, uma criação que desafia signi-

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ficados”. O ato heróico perpassa a vida do ser humano como uma neces-sidade de afirmação de suas potencialidades, o homem de grandes reali-zações, de grandes construções e feitos extraordinários. Ao mesmo tempoem que alimenta a sua auto-estima – e, consequentemente, a vida –,coloca a morte num lugar distante. O narcisismo aparece aí, o que éperfeito, o belo é eterno. A idéia de narcisismo permite ao homem ostatus de semi-deus, para esse, quem morre é o outro, o colega, o vizinho.

Segundo Freud “o inconsciente não conhece a morte e o tempo,o homem se sente imortal”. De acordo com Becker, no homem, onarcisismo é inseparável da auto-estima. Em suas palavras, “quando secombina o narcisismo com a necessidade básica de amor-próprio, cria-seuma criatura que tem de sentir um objeto de valor fundamental, a primei-ra no universo, representando em si mesma a vida toda”.

Becker (1973) escreve que uma das grandes redescobertas dopensamento moderno é que, de todas as coisas que movem o homem,uma das principais é o seu terror da morte. Ele demonstra que no séculoXIX, o homem heróico era aquele que podia entrar no mundo espiritual,no mundo dos mortos, e voltar vivo. Cita o exemplo da ressurreição deCristo, na Páscoa. Todas as religiões históricas procuraram explicar comosuportar e aceitar o fim da vida.

Alguns estudiosos não acreditam que o medo da morte nasçacom o homem. Eles acham que esse medo se desenvolve na criança apartir dos três anos de idade. A criança até então só percebe as coisasvivas. Aos poucos e gradativamente, ela começa a introjetar a idéia demorte, que a princípio se assemelha à ausência, e caminha para a con-clusão de que essa ausência é para sempre; mas ela só percebe ainevitabilidade da morte lá pelos nove anos de idade. Conforme esseponto de vista em relação ao medo da morte, esse é algo que a sociedadecria e ao mesmo tempo usa contra a pessoa, para mantê-la submissa.Sendo assim, quanto mais experiências mórbidas uma pessoa tem aolongo de sua vida, maior será a ansiedade da morte.

Algumas pessoas acreditam nesta hipótese, mas argumentariamque, apesar de tudo, o temor da morte é natural e está presente em todosos indivíduos. O que fundamenta essa afirmação é que o medo da mortemuitas vezes aparece camuflado na vida do indivíduo, essa face escondida

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do temor da morte aparece nas sensações de insegurança, nos sentimentosde desânimo, depressão, vazio e tristeza vital.

2.5.1 O que é o paciente terminal?Pilar L. Gutierrez25

A conceituação de paciente terminal não é algo simples de serestabelecido, embora freqüentemente nos deparemos com avaliaçõesconsensuais de diferentes profissionais. Talvez, a dificuldade maior estejaem objetivar este momento, não em reconhecê-lo.

A terminalidade parece ser o eixo central do conceito em tornoda qual se situam as conseqüências. É quando se esgotam as possibilidadesde resgate das condições de saúde do paciente e a possibilidade de mortepróxima parece inevitável e previsível. O paciente se torna “irrecuperável”e caminha para a morte, sem que se consiga reverter este caminhar.

Estudos na literatura tentam estabelecer índices de prognóstico ede qualidade de vida procurando definir de forma mais precisa estemomento da evolução de uma doença, tendo como preocupação o esta-belecimento de novas diretrizes para o seguimento destes pacientes. En-tretanto, estes trabalhos descrevem melhor aspectos populacionais eepidemiológicos, perdendo a especificidade quando aplicados em nívelindividual. Abre-se a perspectiva de discussão deste conceito caso a caso:um paciente é terminal em um contexto particular de possibilidades reaise de posições pessoais, sejam de seu médico, sua família e próprias. Estacolocação implica em reconhecer esta definição, paciente terminal, situ-ada além da Biologia, inserida em um processo cultural e subjetivo, ouseja, humano.

Mesmo assim, é evidente que alguns critérios podem tornar estemomento menos impreciso, entre eles os clínicos (exames laboratoriais,de imagens, funcionais, anatomopatológicos), os dados da experiência quea equipe envolvida tem acerca das possibilidades de evolução de casos

25 GUTIERREZ, Pilar L. O que é o paciente terminal? Passo Fundo (RS). Rev Ass MedBrasil 2001; 47(2): 85-109.

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semelhantes, os critérios que levam em conta as condições pessoais dopaciente (sinais de contato ou não com o exterior, respostas ao meio, àdor), a intuição dos profissionais (suas vivências e experiências semelhan-tes). De qualquer forma, paciente, família e equipe se situam neste pontoda evolução da doença frente a impossibilidades e limites, de maneira quereconhecer o fim parece ser a dificuldade maior. Denegar este conheci-mento determina estragos nos que partem e nos que ficam. Morrer só,entre aparelhos, ou rodeado por pessoas com às quais não se pode falarde sua angústia, determina um sofrimento difícil de ser avaliado, mas,sem dúvida, suficientemente importante para ser levado em conta.

Os que ficam, por outro lado, têm de se haver com a culpabi-lidade, a solidão e a incômoda sensação de não ter feito tudo o quepoderia.

As dificuldades no estabelecimento de um conceito preciso nãocomprometem os benefícios que paciente, família e profissionais podemter no reconhecimento desta condição.

Admitir que se esgotaram os recursos para o resgate de uma curae que o paciente se encaminha para o fim da vida não significa que nãohá mais o que fazer. Ao contrário, abre-se uma ampla gama de condutasque podem ser oferecidas ao paciente e sua família. Condutas no planoconcreto, visando agora ao alívio da dor, à diminuição do desconforto,mas sobretudo a possibilidade de se situar frente ao momento do fim davida acompanhados por alguém que possa ouvi-los e sustente seus desejos.Reconhecer, sempre que possível, seu lugar ativo, sua autonomia, suasescolhas, permitir-lhe chegar ao momento de morrer, vivo, não antecipan-do o momento desta morte a partir do abandono e isolamento.

Estabelece-se uma nova perspectiva de trabalho, multidisciplinar,que costuma se chamar cuidados paliativos, embora a preocupação como alívio e conforto deva estar presente em todos os momentos do trata-mento. Para o profissional que se interessa por esta atuação (acompanharo paciente na morte) surgem questões a serem pensadas, como a própriamorte e sua posição frente a ela e à vida. Não é uma tarefa fácil (por isso,talvez, tantas vezes denegada). Entretanto, não há como não reconhecer ariqueza desses intercâmbios, quando possíveis.

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2.6 Bioética e medicalização da morte

2.6.1 O paciente terminal: vale a pena investir no tratamento?Marcos Knobel26

Ana Lucia Martins da Silva27

A doença é uma experiência de fragilidade que pode provocar nopaciente e nos familiares a consciência da mortalidade e da finitude daexistência. Há exacerbação desta percepção em casos em que o prognós-tico é reservado, como no paciente terminal. Por definição, pacienteterminal é aquele com condição irreversível, independentemente de sertratado ou não, e que apresenta uma alta probabilidade de morrer numperíodo relativamente curto de tempo.

A morte, em si, possui significados diferentes para diferentespessoas e varia ainda ao longo da vida de cada uma delas, dependendo dacultura e das experiências. Em nossa cultura, a morte é percebida comoperda, fracasso e, assim sendo, provoca sentimentos de tristeza, medo,insegurança. Frente à ameaça da perda, a pessoa pode experimentar emoçõese sentimentos que se alternam entre todas as nuances de esperança eangústia, podendo dificultar o entendimento da situação e prejudicando acapacidade de tomar decisões coerentes. O médico pode favorecer opaciente e a família a alcançarem o ponto de equilíbrio, construindo umarelação baseada na confiança e diálogo, pois a relação médico–pacienteultrapassa o limite simplesmente biológico da intervenção médica e seaprofunda em relação terapêutica.

Nem todo paciente que apresenta discussão sobre o investimentono tratamento é um paciente terminal. É importante diferenciar essepaciente daquele em estado vegetativo, cujas funções vitais estão mantidas,porém o contato com o meio ambiente está comprometido em grausvariados. Os dilemas éticos e legais mais freqüentemente vividos pelomédico e pelo paciente dizem respeito a até quando deve ser instituído

26 Médico Assistente da UTI do Hospital Israelita Albert Einstein – São Paulo (SP).27 Psicóloga da UTI do Hospital Israelita Albert Einstein – São Paulo (SP).

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o tratamento e em que nível este deve ser efetuado. Porém, sabemos queem alguns casos o tratamento pode levar a uma melhora clínica, mesmoque transitória, possibilitando ao paciente situações de convívio familiarque, por menor que possa parecer para a equipe médica, pode ser fun-damental para o paciente e sua família.

Quando o objetivo é qualidade de vida, está implícito um juízode valor ao determinar a futilidade de um determinado tratamento, postoque não há conceito único e universal de qualidade de vida, mas sim umconceito pessoal que varia de pessoa para pessoa. Para tomar decisõesbaseadas também no conceito de qualidade de vida é necessário conside-rar os aspectos existenciais do paciente e de sua família, que constituemum complexo biossocioespiritual.

É quase um consenso entre nós que pacientes portadores deneoplasia em estado avançado, refratários a todo e qualquer tipo de tra-tamento, merecem, como todos, um final livre de dor e com a presençade seus familiares. Nos casos de pacientes em quadro vegetativo, a dis-cussão entre a manutenção do tratamento pode ser mais acirrada. Coma progressão do processo clínico que levou ao estado vegetativo, a famíliavai aos poucos mudando o modo de encarar a saúde do paciente, valo-rizando pequenas melhoras ou atitudes do paciente, como até um piscarde olhos em casos de seqüela de traumatismo craniano, e para ela estesimples ato é um motivo de extrema alegria.

Por mais absurdo que possa parecer à equipe multidisciplinar efontes pagadoras ficar investindo com todo arsenal terapêutico num pacien-te sem possibilidades de melhora, devemos saber que a família é soberanana decisão e tem o total direito, inclusive legal, de que todo tipo detratamento seja feito, independente do prognóstico e do tempo de internaçãohospitalar. Neste contexto, ressaltamos que o tratamento não visa somenteà cura, mas também ao alívio da dor, conforto e estabilidade clínica, pormais reservado que seja o prognóstico. Cabe ao médico, nesse caso, dar àfamília noções sobre sofrimento do paciente, complicações e evolução clí-nica, para que num consenso seja instituída a melhor forma de tratamento.

Outro aspecto de importância para ser analisado nestas situaçõesé a questão religiosa, que para muitos é soberana perante qualquer outrofator clínico ou social. Existem algumas religiões que preconizam que a

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alma do paciente somente terá um descanso harmonioso após a paradacardíaca e que em nenhuma outra situação, a não ser esta, o tratamentopode ser interrompido ou abreviado, mesmo em casos de morte encefálica.Diante destes aspectos e do contato nos últimos anos com estes casos, ficamuito claro que o médico desempenha papel fundamental na conduçãoclínica e na orientação aos familiares, porém estes são soberanos paratoda e qualquer decisão que diz respeito à saúde do paciente.

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Cuidadospaliativose Bioética

3.1 Cuidados paliativos e aspectos psicológicos28

Paliativo é a qualidade de aliviar, e é o que mais interessa àpessoa que sofre. Portanto, quando se fala Medicina Paliativa não sepretende de forma alguma atribuir um sentido pejorativo, minimizado oufrugal ao termo. Devemos ter cuidado quando alguém diz... “esse medi-camento é apenas um paliativo”, com intenção clara de atribuir algumaconotação pejorativa.

No Brasil, a Medicina Paliativa ainda caminha a passos lentos,mas no Reino Unido, onde tudo começou, somando-se com a Austrália,Estados Unidos e Canadá, existem mais de 6.000 centros de MedicinaPaliativa, sendo considerada uma especialidade médica e de grande noto-riedade. Aqui no Brasil, a atuação da Medicina Paliativa, iniciada em1983 pela Doutora Míriam Martelete no Hospital das Clinicas de PortoAlegre, é ainda praticamente desconhecida pelos médicos brasileiros.

Os cuidados paliativos são tipos especiais de cuidados destina-dos a proporcionar bem-estar, conforto e suporte aos pacientes e seusfamiliares nas fases finais de uma enfermidade terminal. Assim, a Medi-cina Paliativa procura conseguir com que os pacientes desfrutem os diasque lhes restam de forma mais consciente possível, livres da dor e comseus sintomas sob controle. Isso tudo é pretendido para que esses paci-entes possam viver seus últimos dias com dignidade, em sua casa ou emalgum lugar o mais parecido possível, rodeados de pessoas que lhes quei-ram bem. Na realidade, esse tipo de cuidado pode ser realizado em

3

28 BALLONE, G. J. Lidando com a Morte. Disponível em: <http://sites.uol.com.br/gballone/voce/postrauma.html>.

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qualquer local onde o paciente se encontra, seja em sua casa, no hospital,em asilos ou instituições semelhantes, etc.

Paliativo é um tipo de cuidado médico e multiprofissional aospacientes nos quais a doença não responde aos tratamentos curativos. Paraa Medicina Paliativa é primordial o controle da dor, de outros sintomasigualmente sofríveis e até dos problemas sociais, psicológicos e espirituais.Os cuidados paliativos são interdisciplinares e se ocupam do paciente, da família e do entorno social do paciente.

Os cuidados paliativos não prolongam a vida nem tampoucoaceleram a morte. Eles somente tentam estar presentes e oferecer conhe-cimentos médicos e psicológicos suficientes para o suporte físico, emoci-onal e espiritual durante a fase terminal e de agonia do paciente, bemcomo melhorar a maneira de sua família e amigos lidarem com essaquestão. Essa área médica objetiva o alívio, a preparação e, conseqüen-temente, a melhoria das condições de vida dos pacientes com doençasprogressivas e irreversíveis como, por exemplo, crônico-degenerativas,incapacitantes e fatais. Atualmente diz respeito mais aos pacientes comcâncer, AIDS, pneumopatias, degenerações neuromotoras, doenças meta-bólicas, congênitas, Doença de Alzheimer, Doença de Parkinson, etc.,bem como os politraumatizados com lesões irreversíveis.

Uma das maiores dificuldades para a Medicina Paliativa ter de-senvoltura próxima a de outras especialidades pode ser o preconceitouniversal existente em relação às condutas terminais, mais precisamenteem relação à morte.

Daí, na visão paliativa, a família tem um papel fundamental. Demodo geral, exceto as infelizes exceções, o familiar representa mais do quea simples presença de alguém promovendo cuidados ao paciente. O familiarrepresenta alguém que, independente das possibilidades terapêuticas, podecompreender e realizar com carinho difíceis tarefas como, por exemplo,dar banho, às vezes no leito, dar a medicação nas doses e horários certos,preparar e dar uma alimentação adequada, fazer curativos, etc. É claroque os profissionais contratados para essas tarefas poderão fazê-las melhor,tecnicamente, mas importa muito a maneira e o carinho com que sãorealizadas. Havendo a qualidade afetiva dos cuidados, outros cuidadores,além da família, podem ser envolvidos no Tratamento Paliativo.

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Um dos propósitos da Medicina Paliativa é orientar a família paraque ela seja um bom suporte de auxílio ao paciente terminal, priorizandosempre as condições necessárias para manter o paciente em casa, onde,seguramente, terá mais qualidade de vida. Em casa, ele estará cercado decarinho e atenção, o que pode minimizar o seu medo de morrer.

Para a desejável participação familiar plena devem ser identifica-dos, dentro da dinâmica familiar, os eventuais pontos de conflitos, ante-riores e posteriores ao diagnóstico da doença.

3.1.1 O cuidado à família do paciente gravemente enfermo29

O período que vai da constatação do câncer até a morte de umapessoa querida é assimilado de maneira diferente por diferentes pessoase grupos. De certa forma, considerando-se a inevitabilidade do cursograve e às vezes letal do câncer, pode-se dizer que a experiência vivencialda doença, apesar de dolorosa e difícil, muitas vezes tem contribuído paraum importante desenvolvimento pessoal. Lidar com a expectativa de umamorte na família não é um processo fácil e não se pode abordar demaneira simplista.

A forma com a qual a pessoa enfrenta o sofrimento e a perdadependerá, entre outras variáveis, da personalidade afetiva de cada um eda relação que essa pessoa teve com quem morreu ou está para morrer.Também é muito relevante a experiência do câncer em si, a maneira comose desenvolveu a doença, as crenças religiosas e culturais, a história psi-quiátrica de quem vivencia a doença, o apoio disponível, assim como oestado socioeconômico e a maneira como a pessoa é afetada durante esseprocesso de sofrimento. É muito importante deixar claro o significado dosseguintes termos: pesar e pena. Estes sentimentos estarão presentes, deforma variada, nos familiares de pacientes com câncer e são termos quese usam, freqüentemente, com diferentes intenções (RANDO, 1984).

29 Disponível em: <http://gballone.sites.uol.com.br/psicossomatica/cancer3.html>.

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Pesar é o sentimento que surge como reação ao fato de tersofrido uma perda. O pesar identifica a situação específica das pessoasque tenham experimentado uma determinada perda (CORR, 1997), por-tanto, é uma reação emocional específica a este determinado “objeto”.Devido à perda, desenvolve-se uma grande quantidade de emoções, expe-riências e mudanças na vida psíquica da pessoa. A duração desse estadodepende da intensidade da relação com a pessoa que morreu (“objeto”perdido). É bom sublinhar que o pesar tem também um aspectoantecipatório, ou seja, supõe o aparecimento de emoções e sentimentosantecipadamente à perda (vai morrer).

A pena é o processo normal de reação emocional à percepção (forteindício) de uma perda. As reações de pena podem ser vistas nas respostas àperdas físicas ou tangíveis como, por exemplo, a morte, ou a perdas abstratase psicossociais como, por exemplo, o divórcio, o emprego, etc. Cada tipo deperda implica experimentar algum tipo de falta ou privação.

Durante o processo que atravessa uma família que vivencia ocâncer, experimentam-se várias perdas e cada uma gera sua própria rea-ção. As reações de pena podem ser psicológicas, físicas, sociais e deconflitos emocionais. As reações psicológicas podem incluir raiva, mágoa,culpa, ansiedade e tristeza. As reações físicas incluem dificuldade paradormir, mudanças no apetite, queixas ou doenças somáticas, enfim, sinaise sintomas relacionados ao Transtorno de Adaptação e Ajustamento. Asreações sociais incluem os sentimentos experimentados ao ter que cuidarde outros membros da família, o desejo de ver ou não a determinadosamigos ou familiares (isolamento), ou o desejo de regressar rapidamenteao trabalho. Este processo depende do tipo de relação que se teve coma pessoa que morreu. Lindenmam (1994) faz notar cinco características:

• aflição somática;• preocupação com a imagem da pessoa morta;• culpa;• reações hostis;• perda da conduta normal.

O conflito emocional, seja ele consciente ou inconsciente, podeser relacionado também à resposta cultural à perda. O processo de incor-

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porar a perda na vida afetiva contrapõe aquilo que queremos com aquiloque devemos e aquilo que conseguimos. O conflito é, por exemplo, acontraposição entre o fato de sabermos que a morte deve ser inevitável,até como decorrência normal de quem vive, mas mesmo assim não que-remos e nem conseguimos aplicar à realidade essa conotação racional.Muitos outros conflitos, ainda mais complexos, podem estar presentesdiante da perda de um ente querido.

No chamado processo da pena se incluem três tarefas necessáriaspara que a pessoa volte a se reintegrar a sua vida normal. Estas atividadesabrangem:

• liberar-se dos laços com a pessoa falecida;• reajustar-se ao ambiente onde a pessoa falecida já não está;• formar novas relações.

Liberar-se dos laços com a pessoa falecida implica em que sedeve modificar a “energia emocional” (o tônus afetivo) investida na pessoaperdida. Isto não quer dizer, de forma alguma, que tenhamos deixado deamar a pessoa desaparecida, mas sim que é possível agora dirigir ossentimentos e afetos a outros, em busca de uma satisfação emocional.

A morte desperta com freqüência evocações de perdas ou sepa-rações do passado. Bowlby (1961) descrevia três fases do processo de luto:

• a urgência de recuperar a pessoa perdida;• a desorganização e desespero;• a reorganização da vida.

Durante o processo de reajuste ambiental (reorganização da vida),tem-se que modificar as regras, os valores, a própria identidade e ashabilidades para se ajustar a um mundo onde o falecido já não está. Aomodificar a energia emocional, a energia que se concentrava na pessoafalecida agora converge para outras pessoas ou outras atividades. Esseesforço adaptativo costuma requerer muita energia física e emocional e,não raro, vemos pessoas atravessando essa fase experimentando uma fa-diga avassaladora. Nessa fase, em se tratando de um estado depressivo, oumesmo de um transtorno de ajustamento, pode estar indicado um trata-mento psiquiátrico medicamentoso ou psicoterápico, ou ambos.

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Esta experiência de perda e pesar não é somente pela pessoa quefaleceu, mas também por todos os planos, idéias e fantasias que não selevaram a cabo com a pessoa desaparecida.

De qualquer forma, os processos de pesar e de pena fazem partenormal do universo existencial humano, são normais na medida em quesugerem que os seres humanos necessitam se apegar a outros para melho-rar sua sobrevivência e reduzir o risco de dano.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOWLB, J. Processes of mourning. International Journal of Pschoanalsis 42: 317-340,

1961.

CORR, C.A.; NABE, C.M.; CORR, D.M. Death and Ding, Life and Living. 2nd ed.,

Pacific Grove: Brooks/Cole Publishing Company, 1997.

LINDEMANN, E. Sympthomatology and management of acute grief. Centenar Meeting

of the American Pschiatric Association (1994, Philadelphia, Pa). American Journal

of Pschiatr 151(6, Suppl): 155-160, 1994.

RANDO, TA. Grief, Ding and Death: Clinical Interventions for Caregivers. Champaign:

Research Press Company, 1984.

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3.1.2 Autonomia e direito de morrer com dignidadeMaria Júlia Kovács30

Professora Doutora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP)

e Consultora do Centro Oncológico de Recuperação e Apoio

Se a alma se despir de sale os braços perderem os movimentos das garças

Estás morta!Então, deita-te, enrola nos bocados

de areia da praia o corpo todo e vai-te embora...Deves morrer com dignidade.

Estás morta. É proibido corar.Maria Amaro

Os recursos tecnológicos da Medicina atual permitem o prolon-gamento da vida em muitas situações que até um passado relativamenterecente determinavam a morte do paciente. O que se procura discutir ése o prolongamento artificial da vida deve se sobrepor obrigatoriamentecomo única alternativa eticamente válida, mesmo quando envolve sofri-mento para o doente, para os que lhe são próximos e comprometimentoda dignidade da pessoa. Qual o sentido de se falar, nestes casos, davalidade ética de uma morte digna?

DOIS RETRATOS DO PROCESSO DE MORRER NO SÉCULO XXAriès (1977) falou da morte no século XX como interdita, inver-

tida, vergonhosa, fracasso, erro médico. É como se o homem pudesse oudevesse derrotar a morte. É uma tentativa de brincar de Deus, de ser umaprendiz infantil e ingênuo, sua pálida imitação. Podemos citar, comoexemplo, pacientes em estágio avançado de doença, sem perspectiva decura ou melhora, “vegetando” em UTIs, sem nenhuma função vital autô-noma, todas sendo realizadas por aparelhos: alimentação por tubos, elimi-nação por cânulas, batimentos cardíacos estimulados, mãos e braços to-mados por soros, ou amarrados para que algum movimento não os ar-

30 Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/revista/bio1v6/autodireito.htm>.

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rebente, e finalmente, na boca, um tubo para garantir o ritmo respiratório.Parece-nos uma imagem cruel de um “Frankenstein” do século XX.

Então nos perguntamos, será que o desenvolvimento da ciência,da Medicina, deve ser no sentido de prolongamento da vida a todo custo?Será que a morte poderá ser eliminada, não mais num ensaio ou romance,mas de fato? O que significaria para nós não termos limite, não termosfim, termos todo o tempo do mundo? E como seria a vida eterna? Fica-ríamos eternamente jovens ou eternamente velhos?

Apresentaremos a seguir um caso que tivemos a oportunidade deacompanhar e que ilustra esta tentativa de estender a vida a um custo quenos parece deva ser discutido.

Sr. X, 84 anos de idade, portador de um câncer controlado,problemas cardíacos, pressão alta, teve diversos episódios de angina ealguns enfartes, tendo sido constatada uma obstrução em pontos impor-tantes de suas artérias. O paciente, consciente, pede que não se tentenenhuma intervenção, sente que viveu o suficiente e gostaria de morrerem paz. O seu médico, que o acompanhava há muitos anos, concordoucom este pedido. Entretanto, outros membros da equipe médica do hos-pital decidem realizar um procedimento de cateterismo, convencendo opaciente de que este exame era simples e poderia dar melhor indicaçãodo seu quadro, possibilitando talvez uma desobstrução das artériasentupidas. Mesmo contra a sua vontade, o exame foi realizado, e por umaintercorrência, que parece não ser tão rara nestes casos, sofreu um der-rame que o deixou praticamente totalmente paralisado. Este procedimentoteve conseqüências graves, e este homem sobreviveu nestas condições pormais dois anos. Por ocasião de uma piora do seu quadro foi hospitalizadoe conduzido à UTI, onde foram realizadas diversas manobras de sobrevi-vência. A última imagem que tivemos, um pouco antes de sua morte, foiaquela que chamamos de “Frankenstein” do século XX. Havia tubos portodos os orifícios de seu corpo, todas as atividades vitais eram realizadaspor máquinas, as mãos estavam amarradas, da sua boca torta saía o tubodo respirador, com seu ruído constante. O único meio de comunicaçãoque lhe restava eram os olhos, que expressavam profunda tristeza, e dosquais rolavam lágrimas.

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Neste caso, o processo de morte não pertence mais à pessoa,tira-se a sua autonomia e sua consciência. O paciente se encontra muitasvezes só, porque os horários de visita são estabelecidos segundo a conve-niência do hospital. Perde a noção do dia ou noite porque a iluminaçãoé sempre igual. Os seus companheiros são tubos e ruídos de monitores,e não a voz e a imagem dos familiares.

A trajetória da morte se modificou e hoje passou a ter váriasdenominações: morte clínica, morte cerebral, morte encefálica. São cadavez mais sofisticados os aparelhos para medir o prolongar a vida. SegundoZiegler (1977), o médico não mais registra somente a hora da morte, masmuitas vezes a determina.

Não pretendemos criticar as UTIs de uma forma geral, poisgraças ao seu desenvolvimento tecnológico muitas vidas podem ser salvas.Pretendemos, sim, que o debate se instale quando se trata de pacientesgravemente enfermos, com quadros irreversíveis, e onde as assim chama-das “medidas extraordinárias” parecem infligir sofrimento intolerável sobo título de que é necessário se manter a vida a todo custo. Sabemos quemuitos médicos não realizariam estes procedimentos nos dias de hoje,entretanto o exemplo que apresentamos ocorreu em 1996 e ilustra pontosque demandam discussão.

Apresentamos um outro retrato, que já se faz presente no finaldo século XX, com a seguinte composição. Pacientes com doenças graves,em estágio terminal, participam de programas de cuidados paliativos. Sepudéssemos fazer uma montagem utilizando o exemplo do Sr. X, o retratoapareceria desta forma:

Sr. X numa unidade de internação ou em casa, rodeado de seusfamiliares, tendo uma equipe que cuidaria do alívio de seus sintomas,preocupada com sua qualidade de vida. Talvez o Sr. X vivesse menos dias,morresse mais cedo, entretanto isto ocorreria com mais qualidade de vida.

Em meados do século XX, começaram a se desenvolver na Eu-ropa e nos Estados Unidos os programas de cuidados paliativos, inspira-dos nas idéias de pioneiros como Kubler-Ross (1989) e Saunders (1991).A instituição modelo dos cuidados paliativos, denominada “hospice”, é oSt Christopher’s, fundada em Londres, em 1967, por Cicely Saunders. Oobjetivo destes programas é a diminuição do sofrimento causado por

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doenças malignas e degenerativas. Não se propõem a realizar diagnósticossofisticados ou tratamentos com alta tecnologia, mas sim buscam ofereceralívio de sintomas incapacitantes e mais qualidade de vida. A famíliaparticipa de todo o processo e, se o paciente está internado, pode perma-necer o tempo todo com ele, inclusive no momento de sua morte. Muitospacientes chegam a estes serviços após intenso sofrimento, tendo passadopor diversos tratamentos e sido dispensados de seus tratamentos prévioscom a clássica expressão “não há mais nada a fazer”. Freqüentemente,apresentam-se com dores, desespero, dificuldades físicas e emocionais.

Ao chegarem, busca-se pronto alívio de seus sintomasincapacitantes. Uma equipe especializada em cuidados paliativos acolheos pacientes e seus familiares. São favorecidas a autonomia e aparticipação do paciente em seus tratamentos, e logo que é possível, ecom a concordância deste e de seus familiares, a continuidade dotratamento pode ser realizada no domicílio. Visa-se estimular a busca deatividades importantes para o paciente, tornando seus últimos momentosde vida mais significativos, bem como proporcionando a dignificação doprocesso de morrer (KOVÁCS, 1994).

Segundo Gotay (1993), existem diferentes modalidades de progra-mas de cuidados paliativos.

Unidades de internação – Especialmente construídas para este fim,possuem instalações físicas apropriadas e que contemplam a possibilidadede os familiares ficarem junto do paciente pelo tempo que desejarem. Seusobjetivos principais dentro dos cuidados paliativos são proporcionar:

• controle de sintomas: muitas doenças no estágio terminalvêm acompanhadas de vários sintomas altamente incapaci-tantes, entre os quais dor, fraqueza, náusea/vômitos, escaras,feridas. Uma vez controlados, muitos pacientes podemretornar ao lar e ser cuidados por seus familiares;

• dar um tempo de descanso à família: é muito cansativocuidar de pacientes com doenças em estágio avançado, ocor-rendo episódios de estresse, esgotamento físico e emocionaldos cuidadores, principalmente aqueles mais em contato como paciente. Neste caso, o internamento e a garantia de cui-dados pode proporcionar um tempo de descanso à família.

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Ala de cuidados paliativos em hospitais gerais – Oferecem ser-viços de consultoria nesta área.

Atendimento domiciliar – O paciente segue com o seu tratamen-to no domicílio, havendo uma equipe designada para favorecer a conti-nuidade dos procedimentos com visitas regulares. Se necessária, é provi-denciada a internação para alívio mais intenso dos sintomas ou paradescanso da família. Alguns hospitais têm mobilizado parte das suas equi-pes para oferecer este tipo de atendimento.

Hospitais-dia ou Centros de Convivência – São centros acopladosa hospitais, ou “hospices”, onde o paciente pode receber os seus tratamen-tos sem necessidade de internação. Costumam ainda oferecer atividadesde socialização, importantes para aqueles pacientes que vivem sozinhos.

Em todas essas propostas, o fundamental são os princípios doscuidados paliativos, que se preocupam em aliviar e controlar sintomasincapacitantes nas esferas física, psíquica, social e espiritual, e buscar qua-lidade de vida. Devem também proporcionar cuidados à família do pacientenas suas mais variadas necessidades, inclusive após a morte deste.

Apresentamos dois retratos: as UTIs e os Programas de CuidadosPaliativos, com princípios muito diferentes, mas que retratam as váriasformas de se encarar a morte no final do século XX. No Brasil, o mo-vimento de cuidados paliativos ainda está em fase embrionária, estandomuito recente o seu desenvolvimento. Infelizmente, ainda não é muitoconhecido nem por profissionais da área de Saúde que, por incrível quepareça, não os consideram como prioritários. Conseqüentemente, tam-bém não é conhecido pelo público em geral que, assim, não pode reivin-dicar este tipo de tratamento para os seus problemas.

PACIENTES TERMINAIS: UM CONCEITO DO SÉCULO XXO conceito de paciente terminal é historicamente relacionado

com o século XX por causa da alteração das trajetórias das doenças queem outras épocas eram fulminantes. Hoje, observa-se uma cronificaçãodas doenças, graças ao desenvolvimento da Medicina, da cirurgia e daFarmacologia. Muitas doenças ainda não têm cura, como alguns tipos decâncer, AIDS e moléstias degenerativas, mas em muitos casos pacientesvivem muitos anos e necessitam de cuidados constantes. O doente passa

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por vários estágios desde o diagnóstico, os tratamentos, a estabilização, arecidiva e o estágio final da doença.

O rótulo “paciente terminal” é, muitas vezes, usado de umaforma estereotipada com pacientes que apresentam doenças com prognós-tico reservado, mesmo que estejam em fase de diagnóstico e de tratamen-to (KOVÁCS, 1992). Podemos exemplificar com o caso do câncer, emque se passa a denominar, em qualquer fase da doença, o pacienteoncológico como paciente terminal. O problema deste rótulo é aestigmatização do paciente, que se vê inserido naquela situação em quese diz: “não há mais nada a fazer”, e em que a morte é iminente. Estasituação pode provocar uma série de outros problemas, num efeito halo.

O conhecimento do fato de que se trata de uma doença terminaldesencadeia no paciente, em sua família e na equipe de Saúde, aspectosimportantes a serem considerados. Existe um mito responsável por um dosgrandes medos do século atual que é o sofrimento na hora da morte. Há umacrença de que o processo de morte é sempre acompanhado de dor e desofrimento insuportáveis. Esta situação faz com que muitas pessoas se afastemde pacientes gravemente enfermos temendo se “contagiar” com o sofrimentoque percebem e contra o qual sentem que nada podem fazer. Estas crençassão reforçadas por algumas experiências de se ver pessoas morrerem assim,como no caso que apresentamos como exemplo. Os nossos hospitais estãomais aparelhados para intervir em situações em que há uma possibilidade decura do que naquelas em que um cuidado mais voltado para as atividadescotidianas de higiene e alimentação se faz necessário.

Pacientes passam por vários estágios em suas doenças, assimespecificados por Weisman (1972):

• Estágio 1: do início dos sintomas ao diagnóstico, muitasvezes vivido como “sentença de morte”;

• Estágio 2: do diagnóstico aos tratamentos visando ao com-bate à doença com a possibilidade de cura;

• Estágio 3: estágio final, se não há possibilidade de cura.

Em cada um destes estágios, necessidades diferentes podem estarpresentes e devem ser cuidadas. Os pacientes em estágio terminal dadoença podem passar por vários sofrimentos, entre os quais podemos

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citar: afastamento da família, do trabalho, perdas financeiras, perda daautonomia do próprio corpo, dependência, dor, degeneração, incerteza emedo do sofrimento intenso. Podem também vivenciar dois processos deluto: perda dos familiares e perda de si próprios.

Cada paciente, como pessoa, de acordo com sua história de vida ecaracterísticas de personalidade, pode sofrer mais intensamente algum destesaspectos mencionados. Problemas de comunicação podem se tornar maisagudos nesta fase, com mensagens ambivalentes em que o conteúdo verbal deboas notícias nem sempre é consistente com a comunicação não-verbal, comosemblantes carregados e olhos vermelhos. O conteúdo verbal pode ser censurado,mas é virtualmente impossível controlar todos os movimentos, gestos e expressõescorporais. O paciente, angustiado com o que percebe em si, busca nas pessoasa sua volta a confirmação de suas impressões. Nessa circunstância pode seinstalar um profundo sentimento de isolamento já que, numa tentativa demanter a imagem de que tudo está bem, dificilmente uma comunicação realse estabelece. Temas superficiais são muito freqüentes nestes momentos. Opaciente se sente isolado e não compreendido, mesmo que muitas pessoasestejam a sua volta. São escondidos fatos como, por exemplo, o diagnóstico,o agravamento da doença ou a efetiva possibilidade da morte (KOVÁCS, 1992).

Muitos pacientes gostariam de falar mais abertamente sobre suamorte, temores e sofrimento nesta hora. Sabemos que há uma crençaarraigada de que a morte por câncer ou AIDS tem que ser muito sofrida.Infelizmente, algumas mortes ainda o são, pelas mais diversas razões, masé importante saber que não precisa ser obrigatoriamente assim, e que opaciente, a família e a equipe de Saúde podem trabalhar em conjunto parafavorecer uma morte com dignidade.

MORRER COM DIGNIDADECada época tem como parâmetro uma forma de morte que apa-

rece como a mais desejada. Na Idade Média, por causa das guerrase das doenças relativamente rápidas, a morte era esperada, familiar edomada (ARIÈS, 1997). Era então muito importante morrer rodeadodas pessoas familiares, realizando as despedidas e firmando o testamento,garantindo a continuidade de suas vontades após a sua morte eefetuando a distribuição dos bens. O que se temia nesta época era

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morrer de forma repentina, isolado, sem que as pessoas percebessem.Em contraposição, no século XX houve uma alteração na traje-

tória da morte, como já apontamos. Grande parte das doenças têm umdesenvolvimento lento, o tratamento pode ser demorado, bem como podeser associado com sofrimento e dor. É sabido que para muitos pacientesoncológicos o tratamento é mais sofrido do que a própria doença. Amorte mais desejada de nossos tempos é a morte rápida, preferencialmen-te em que se esteja dormindo, sem consciência, a morte que nem sepercebe. A morte temida é a morte demorada, com intensa dor e sofri-mento. As pessoas, muitas vezes, têm em seu registro de memória alguémque tenha morrido desse modo.

Além destas formas, que caracterizam um tecido cultural da épocaem que vivemos, cada sujeito idealiza de qual modo gostaria de morrer.Quando estamos saudáveis não queremos falar sobre este tema, deixandoeste assunto apenas para a hora em que isto se tornar realmente premente,como é o caso do paciente com uma doença com prognóstico reservadoou em estágio terminal. Neste caso, esta se torna uma questão vital.Como afirmamos, é importante que a pessoa retome seu processo demorrer e que participe, colocando o que é importante para que istoaconteça. Embora haja uma mentalidade vigente em cada época histórica,cada pessoa considera pontos essenciais para a sua qualidade de vida, eestes podem ser muito particulares. Exemplificando: há pacientes quegostam de muitas pessoas por perto, outros preferem ficar sozinhos, gostamde ouvir música, preferem ficar dormindo, querem ler, querem comercoisas gostosas e perigosas para o seu corpo, não querem comer nada,querem ir para casa ou ficar no hospital, pois se sentem mais seguros lá.

Existe, de fato, uma gama variada de vontades, e nos parecemuito importante que sejam escutadas. Mesmo que um paciente estejapróximo do processo de morrer, ainda está vivo, e é uma pessoa comdesejos. O resgate desse desejo favorece uma significação desta vida,mesmo nos seus momentos finais. Não estamos propondo que se adivi-nhem os desejos do paciente, às vezes usando como referência nossospróprios, mas sim escutá-los atentamente.

Muitos dos desejos destes pacientes podem ser executados semdificuldade. Alguns se referem a cuidados com o próprio corpo, presença

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de pessoas, ou alguma atividade ao alcance de quem está próximo. Outrospodem ser problemas mais complexos ou não realizáveis. Entretanto, éfundamental, para toda e qualquer pessoa, ser escutada nas suas necessi-dades mais profundas, o que é ainda mais importante para o pacientegravemente enfermo que se vê despojado de tantas coisas.

Uma das situações que mais agonia os profissionais de Saúde équando o paciente fala sobre o seu desejo de morrer, mais ainda, quandopede que o profissional faça alguma coisa para apressar sua morte porquenão mais suporta viver. É freqüente vermos os profissionais tentando classificareste pedido como um ato psicótico, ou depressivo, buscando providênciastais como dar medicação ou chamar um colega da área de Saúde mental.Uma outra medida é reafirmar, prontamente, que este pedido não pode seratendido. Temos reforçado a importância de que este desejo, tal como todosos outros, possa ser escutado e, se possível, ser mais explicitado. Isto é muitoimportante porque a necessidade de ser compreendido e acolhido é essencialpara qualquer pessoa, e principalmente para o paciente em estágio terminal,até porque se podem descobrir as razões mais profundas para tal pedidocomo, por exemplo, de um cuidado mais específico com os sintomasincapacitantes ou mesmo a necessidade de se ter certas pessoas por perto.Pode ser também a necessidade de pôr fim a um sofrimento insuportável oude deixar de ser uma sobrecarga para a família. A escuta mais atenta nãoimplica obrigatoriamente em execução do pedido que está sendo feito, comonos casos citados, mas poderá subsidiar o esclarecimento ao paciente daimpossibilidade específica de matá-lo ou apressar sua morte, contribuindoinclusive para a compreensão de sua demanda.

Após uma escuta mais atenta, podemos compartilhar a situaçãocom o paciente e perceber que se não pudermos fazer outras coisas paraaliviar o seu sofrimento, saberemos ao menos dividir o sentimento deimpotência por não poder fazer nada – o que é diferente de abandoná-lo à própria sorte porque não se pode fazer nada.

Esta questão nos traz um ponto importante para ser discutido queé a diferenciação dos termos eutanásia e morrer com dignidade. Pessinie Barchifontaine apontam para uma distinção importante entre os concei-tos deixar morrer em paz e eutanásia, citando o especialista em ÉticaJavier Gafo.

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O conceito de eutanásia envolve tirar a vida do ser humano porconsiderações humanitárias, para aliviar o sofrimento e a dor. Hoje, nãose concebe mais a divisão entre eutanásia ativa e passiva. Atualmente, emalguns países existe a proposição de se substituir o termo eutanásia pelodireito de morrer com dignidade ou em paz. Morrer em paz se refere

“àquelas situações em que se toma a decisão de não continuarmantendo a vida, suprimindo determinadas terapias ou nãoaplicando-as a um enfermo em que não existem possibilidades desobrevivência, seja porque ele próprio expressou sua vontadeexplicitamente ou porque se pode pressupor” (PESSINI &BARCHIFONTAINE, 1994).

Podemos ver que se trata de conceitos de fronteira, pontos po-lêmicos que exigem profundos debates, envolvendo discussões sobre direi-to individual e lei. Envolvem desejos, anseios, decisões e escolhas. Envol-vem conflito e, portanto, além de questões morais, relacionam-se comaspectos éticos. Os argumentos variam. Para aqueles que são favoráveis àvida a todo custo, o desligamento dos aparelhos, mesmo em pacientescom condições irreversíveis, é visto como eutanásia. Os que são favorá-veis a um processo de morte com dignidade vêem o prolongamento dostratamentos em situações irreversíveis como um atentado à vida. Sãovárias as considerações e respostas, dependendo do ângulo sob o qual aquestão é encarada, e envolvem diversos personagens: o paciente, seusfamiliares, a equipe de atendimento e a instituição de Saúde.

Um outro conceito importante e talvez não tão conhecido é o dadistanásia, que implica em um processo de morte doloroso e prolongado.Observa-se o que chamamos de distanásia em diversos hospitais moder-nos, onde as ações executadas têm a intenção de manter o máximo detempo possível a vida do paciente, mesmo quando o caso é irreversível.Em alguns casos, chega a beirar as raias do absurdo, configurando asituação que relatamos no começo deste artigo.

Quanto mais aparelhado o hospital, maior risco de se procederà distanásia, mesmo porque a família, no seu afã de salvar o paciente,pede que se faça tudo para mantê-lo vivo. Muitos profissionais também

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se colocam nesta situação, podendo se sentir ameaçados ao pensarem quenão fizeram tudo por seus pacientes. Este procedimento é certamentelouvável dentro do razoável e do sensato, mas pode descambar para pos-turas pirotécnicas e heróicas, com o argumento de que tudo deve ser feitopara prolongar a vida, submetendo o paciente a um sofrimento atroz eintolerável.

Eutanásia, suicídio assistido, distanásia, morrer em paz e comdignidade são conceitos que demandam explicitação e reflexão. Urge,neste final de século e milênio, a abertura de espaços públicos para adiscussão destes pontos.

BIOÉTICA – UMA QUESTÃO DE VIDA E DE MORTESegundo Segre e Cohen (1995), quando se pensa em Ética, três

aspectos estão envolvidos: percepção de que há conflito – portanto, coma implicação de que é uma situação que leva a um certo impasse, comvárias respostas possíveis –, autonomia, coerência.

A Bioética é um ramo da Ética que enfoca questões referentes àvida humana e, conseqüentemente, à morte. Propõe questões relativas avariadas situações, inclusive a que tratamos neste artigo, referente aoprocesso de morrer com dignidade. É uma especialização multidisciplinare deve envolver profissionais da área de Saúde, de Educação, de Filosofia,de Direito e de Teologia.

Cohen e Marcolino (1995), ao discutirem a relação médico–paciente, retomam o conceito de autonomia e de paternalismo e o prin-cípio da beneficência. Procuraremos, então, transportar algumas das idéi-as destes autores para o problema que estamos abordando, que é a dig-nidade no processo de morrer e a possibilidade de participação ativa dopaciente gravemente enfermo neste processo, com direito a escolhas.

Ao abordar o conceito de autonomia, estes autores se referemaos extremos, exemplificando: numa relação totalmente autonômica, osparticipantes estão numa posição simétrica, envolvendo uma condição deigualdade e liberdade. No outro extremo, encontramos a posiçãopaternalista, uma relação assimétrica, na qual fica evidente uma desigual-dade: de um lado, o poder; de outro, a submissão. Entre esses doisextremos ocorrem várias gradações e relações complementares.

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É preciso ressaltar que para que a autonomia seja exercida éimportante que ela seja reconhecida, que exista competência para tal, eque de fato existam opções e escolhas.

Consideremos a situação, de um lado o paciente em estágioterminal da doença; de outro, a equipe de Saúde. As perguntas quesurgem são as seguintes: terá o paciente condição de decidir como desejaviver seus últimos dias, o que deseja comer, quem gostaria de ter próximode si, quais as atividades de lazer que gostaria? Outras decisões envolvemprovidências mais elaboradas, como, por exemplo: poderá o paciente sertratado em casa ou isto tem que ser feito no hospital? Talvez a questão quemelhor ilustre estes pontos que estamos discutindo envolva a continuidadeou não de certos tratamentos, quem decide, sob que critérios? É umadecisão individual ou envolve várias instâncias?

Vamos considerar a questão dos tratamentos recomendados apacientes sem possibilidade de cura, cujo objetivo pode ser o alívio econtrole de sintomas ou o prolongamento da vida. Temos que lembrar queem algumas doenças, como no caso do câncer, os tratamentos têm efeitossecundários que podem afetar a qualidade de vida. Um exemplo típicodesta discussão é a quimioterapia para certos tipos de tumores. Comoapontamos anteriormente, para o exercício da autonomia deve haver apossibilidade de escolha, e essa, muitas vezes, está acompanhada de con-flito. Então, devemos considerar dois pontos:

• o tratamento prolonga a vida, mas pode interferir na suaqualidade;

• a interrupção do tratamento pode diminuir o tempo de vida,mas pode dar mais qualidade de vida.

Trata-se de situações conflitantes que envolvem diversos persona-gens – paciente, familiares e equipe de atendimento, bem como a insti-tuição hospitalar – e podem merecer diversos tipos de resposta. Numarelação simétrica, esta decisão envolve todos os agentes desta situação emuma ação conjunta que deve levantar os prós e os contras de cada umadas opções. Infelizmente, não é o que observamos na maior parte doscasos. É mais freqüente uma posição paternalista por parte da equipe deatendimento, baseada somente na questão da beneficência, ou seja, o que

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se imagina como bem-estar para o paciente, que poderia ser traduzido daseguinte forma:

“Eu sei o que é bom para você. E você não tem condição de saberporque eu sou o médico, eu estudei e sei”.

Uma parte da afirmação é verdadeira, mas a outra pode não ser:“Você não pode saber porque não é médico”.

O paciente, como pessoa, tem todas as condições para saber oque é melhor para si. O conceito de autonomia na relação médico–paciente implica em que ambas as partes são competentes e podem avaliaras opções possíveis e fazer uma escolha consciente.

Um outro ponto a ser discutido é que, em certos casos, a escolhasó poderá ser feita se o paciente for devidamente instruído. Por estemotivo, os procedimentos a serem realizados têm que ser explicados demaneira clara e compreensiva. Sabemos que o médico e a equipe sópodem realizar certos procedimentos mediante o consentimento do paci-ente. Mas, perguntamos, será que de fato isto é cumprido? Quando con-sideramos a questão da autonomia e da competência do paciente pareceque estas são mais facilmente aceitas quando a opinião do médico e dopaciente são coincidentes. As coisas parecem se complicar bastante quan-do essas opiniões são discordantes e quando o paciente não quer sesubmeter a certos tratamentos, e se esta decisão envolve o risco de morte.E, volta a questão, o que é mais importante para o sujeito: uma vida commais qualidade, embora mais curta, ou uma vida mais longa, com sofri-mento e limitações?

O que se observa, em muitos casos, principalmente nas classesdesfavorecidas, é que o paciente está ignorante de sua situação, não sabeo que está acontecendo. Geralmente, os procedimentos são apresentadosa ele, mas, devido à linguagem utilizada, pode não compreendê-los. Emoutros casos, é atribuída ao médico a competência total e por isto nãodeve ser jamais questionada a sua ação. Alguns pacientes têm a fantasia,e em alguns isto é até realidade, de que se contestarem o médico sofrerãoo risco de não mais ser atendidos, ou ser abandonados ou encaminhadosa outro profissional. É sabido que muitos pacientes se sentem muitoagradecidos por estar sendo atendidos e por isto acham que não têm odireito de exercer sua autonomia.

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Como dissemos, para que a autonomia seja exercida é necessárioque o paciente esteja instruído, que tenha as informações necessárias paratomar uma decisão. Para isso, é preciso que:

• sinta-se competente, capaz de tomar a vida como sua respon-sabilidade e queira fazê-lo;

• as pessoas a sua volta e, principalmente, a equipe de Saúdepossam lhe conferir essa competência.

Estes dois pontos envolvem também uma mudança da mentalida-de vigente na equipe de Saúde e nas instituições hospitalares – a de queo médico é o único depositário do saber – e da visão paternalista de quesomente ele conhece o que é bom para seus pacientes. Outro ponto quedeve ser considerado é o de que muitos pacientes, principalmente noshospitais públicos, são de nível cultural mais baixo e assim têm umafilosofia de conformidade e resignação de que nada devem reivindicarpara si. Vemos então que esta mudança de mentalidade envolve os doispólos da questão: o médico paternalista e o paciente submisso.

Quando falamos em pacientes gravemente enfermos, as questõesgiram em torno de temas delicados como a interligação entre vida emorte. Não está em jogo a cura e sim a possibilidade de estancamentoda doença e o prolongamento da vida. Esta seria a opção óbvia, se nãofosse à custa de tratamentos acompanhados de efeitos secundários, cau-sadores de grandes sofrimentos, mal-estar e limitações.

Alguns familiares pedem para que se realize tudo o que é possívelpara manter o paciente vivo mesmo que isso incorra em muito sofrimen-to, em alguns casos envolvendo imensos gastos financeiros. Este é tambémo pedido de alguns pacientes.

Por outro lado, a não continuidade dos tratamentos pode impli-car em menos tempo de vida, em muitos casos com mais qualidade, o quepode parecer uma solução mais plausível para muitos pacientes que gos-tariam de viver seus últimos momentos de vida com bem-estar e digni-dade. Pode haver um agravante nessa situação que envolve os conceitosfronteiriços de eutanásia e de suicídio assistido. Profissionais que nãofazem “tudo o que é possível” podem ser acusados pelos familiares ou pelasociedade de “assassinar” seus pacientes. Embora hoje esta questão esteja

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sendo relativizada pelo que se denomina como bom senso e pelo desen-volvimento da área de cuidados paliativos, ainda está longe o consenso emuitas dúvidas permeiam este campo. Não são decisões simples, elasdemandam uma discussão ampliada, incluindo os vários setores direta-mente envolvidos, bem como a sociedade como um todo.

Estivemos falando até agora da possibilidade de se capacitar opaciente para que possa exercer a sua autonomia. Entretanto, há situaçõesem que isto não é possível, pois este não se encontra em condições dedecidir, uma vez inconsciente ou demenciado. Nesse caso, o envolvimentose restringe à família e à equipe, e o princípio que deve predominar é oda beneficência, que é um conceito relativo, já que a noção de beneficên-cia é muito variável para cada ser humano.

Gostaríamos de incluir um outro ponto que consideramos rele-vante nessa situação: se o paciente se encontra inconsciente ou demenciado,ele já pode ter expresso a sua vontade em outras ocasiões. Lembramos ocaso do Sr. X, impossibilitado de se comunicar por ocasião do seu der-rame, porém já tendo se manifestado anteriormente quanto a sua vontadede que nenhuma intervenção fosse efetuada após os seus ataques cardía-cos. Não deveria a sua vontade anterior prevalecer neste caso? Não serencaminhado à UTI, não ser alimentado artificialmente, não ser mantidovivo por aparelhos, não ter as suas mãos amarradas!

O que agrava todas estas situações é a possibilidade da morte.Tem o paciente a possibilidade de optar por morrer, tem ele o direito depedir que não se faça nada de extraordinário? Tem ele o direito de queo médico o atenda desta forma? Deve o médico atender ao pedido do seupaciente? Tem o médico o direito de intervir mesmo contra a vontade dopaciente? Quem será acusado de quê?

Há uma legislação em vigor, que está sofrendo alterações, e umasociedade passando por grandes modificações. Na entrada do novo milê-nio, em conjunto com os grandes avanços da ciência e da tecnologia,torna-se urgente um profundo debate sobre a Ética que norteia decisõesdesse tipo. Mais do que a ciência e a lei, busca-se a compreensão doprofundo drama humano que envolve a vida e a morte, mas principalmen-te conceitos como liberdade e dignidade. Estes são conceitos universais,mas que têm para cada ser humano significados muito particulares, queem momentos-limite adquirem fundamental importância.

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3.1.3 Morrer com dignidade

A morte faz parte da vida. Todos vamos morrer, esse é um fatotão natural quanto o nascer e crescer, porém a idéia de finitude nos deixaem constante ansiedade, o que resulta muitas vezes na negação e nãoaceitação do que é certo. A imortalidade é o maior sonho do homem.Toda essa evolução da tecnologia aplicada na Medicina tem como objetivoa realização deste sonho. O momento que pode ser precedido de sofri-mento prolongado é muito polêmico por ter várias interpretações doponto de vista ontológico e filosófico. É sobre a libertação do sofrimentoda vida que nos leva a refletir sobre eutanásia, distanásia e ortotanásia. ABioética e as crenças religiosas são essenciais para a humanidade quantoà escolha e aplicação destas finalizações.

Eutanásia consiste na prática da morte visando atenuar os sofri-mentos do enfermo e de seus familiares, tendo em vista a sua inevitávelmorte, sua situação incurável do ponto de vista médico. Hoje muito dis-cutida, e já legalizada pela Holanda, a eutanásia é considerada ilegítima.

Distanásia se trata da atitude médica que visa salvar a vida dopaciente terminal submetendo-o a tratamento fútil, insistente, desnecessá-rio e prolongado, causando grandes sofrimentos. Na Europa, fala-se em“obstinação terapêutica”, nos Estados Unidos, “futilidade médica”. Ocorreprática da distanásia devido a fatores familiares (herança), fatores políticos(como chefes de Governo) ou outros, sem respeitar a dignidade humana.No Brasil, assim como em outros países, conhecemos seu emprego nasUnidades de Terapia Intensiva. A quem interessa este tipo de conduta?Certamente não é ao paciente que em sua maioria morre nos hospitais,na frieza dos cuidados intensivos não mais necessários à reversão dapatologia.

Ortotanásia significa “morte no tempo certo”, sem prolongamen-tos desproporcionados do processo de morrer. Consiste na aceitação deque a vida tem um fim e de que a morte é um fenômeno natural.

Quanto ao aspecto ético, fica claro que o médico não tem odireito de contribuir para a morte do paciente, conduta que é contráriaa sua formação moral e seu compromisso profissional. Concluímos ser aeutanásia um procedimento contrário à doutrina hipocrática. A capacida-

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de científica e ética do médico será essencial na questão da distanásia. Trata-se de um comportamento ilícito e antiético. A ortotanásia é a atitude maisaceita e compreendida pela sociedade e traduz a morte mais humana.

É essencial dar qualidade à vida terminal, por meio daressocialização da morte, dos cuidados paliativos e da terapia de acompa-nhamento. Na ressocialização, o paciente, quer nos hospitais ou no seular, morre envolvido no amor dos seus familiares. Os cuidados paliativosconstituem uma obrigação na assistência aos pacientes terminais. O acom-panhamento pelos profissionais de Saúde promove confiança e aceitaçãoserena da morte.

Sobre estas atitudes devemos refletir para não fugirmos dos ob-jetivos da Medicina e dos preceitos religiosos de cada pessoa. Nas escolasde Saúde nos ensinam sobre o nascimento, doenças e condutas terapêu-ticas, porém não nos educam sobre a morte, o que nos deixa despreparadospara uma fatalidade comum na vida do profissional de Saúde.

Morrer com dignidade é ser respeitado como ser humano plenode corpo, alma e espírito. Se tivermos dificuldades na compreensão dodireito de morrer de forma digna, é apenas necessário lembrar-nos de quepara nós a morte também faz parte da vida.

3.1.4 O profissional de Saúde e a morte

Antigamente, o paciente em fase terminal morria em sua própriacasa, lentamente, onde tinha tempo para se despedir e passar seus últimosmomentos com seus familiares. Nossa cultura científica e objetiva porexcelência, muitas vezes acaba por deixar pessoas morrerem sozinhas, naassepsia fria dos hospitais, e experimentando, como último sentimento,um dos medos mais primitivos do ser humano: a solidão.

Com o desenvolvimento científico, morrer se tornou solitário edesumano. Geralmente, o doente, cognominado Doente 620-C ou Doentedo Box 3-B, é confinado ao seu leito, onde aguarda a morte chegar, estandoas pessoas seriamente preocupadas com o funcionamento de seus pulmões,secreções, pressão venosa central, traçado eletrocardiográfico, etc.

Diante do paciente terminal, quando a Medicina já sabe que adoença venceu a guerra, não cabe mais ao médico a tentativa de cura,

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muitas vezes extremamente sofrível e estéril, mas assistir, servir, confortare cuidar. Se pretendermos ajudar alguém nessa fase, seja terapeuticamente,medicamente ou humanamente, deveremos nos informar e nos prepararpara lidar com a morte (BALLONE, 2002).31

3.1.5 O que podemos fazerG. J. Ballone32

A dificuldade do ser humano em geral, e particularmente doprofissional de Saúde, em lidar com a morte pode ser trabalhada e me-lhorada. Com isso, pode haver mais qualidade de vida para todos osenvolvidos na questão, o próprio paciente, os familiares, o médico e todaa equipe.

Inicialmente, é claro, o maior investimento deve ser dirigido aopaciente, deve pretender melhorar o conforto e mais qualidade de vidapara quem agoniza, mas, em seguida, como “a morte é para quem fica”,os familiares e os próprios profissionais envolvidos com o morrer cotidi-ano devem ser acudidos.

O ser humano normalmente recebe alguma preparação antesmesmo de vir ao mundo. O bebê, de uma forma ou de outra, uns maisoutros menos, tem sua chegada preparada. Aí, então, a criança é prepa-rada para ficar maiorzinha, para entrar na pré-escola, para entrar naescola. Preparam-se, uns mais outros menos, para a adolescência e, nafamília ou fora dela, para ser jovem, depois adulto. O adulto é preparado,pela própria vida, uns mais outros menos, para a velhice. Mas, raramentealguém é preparado para a morte.

Por isso, primeiramente, o profissional de Saúde deve se prepararpara lidar com a morte, ele próprio, quando esta pode ser uma ocorrênciacomum no ambiente de trabalho. Além disso, para poder ajudar os ou-tros, deverá conhecer e estudar a Tanatologia, conhecer a reação psicoló-gica da perda de algo (pessoa, situação etc.), saber identificar o luto

31 Disponível em: <http://gballone.sites.uol.com.br/voce/morte2.html>.32 Disponível em: <http://gballone.sites.uol.com.br/voce/morte2.html>.

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normal e o patológico, e entender como crianças, adolescentes, adultos evelhos reagem à morte e às perdas da vida.

Notamos a falta de preparo das equipes de Saúde quando existe noambiente hospitalar um temor pela morte, como se tratasse de um fortepotencial de “contágio”. Esse aspecto temerário e despreparado explica asolidão e a frieza das Unidades de Terapia Intensiva, onde muitas vezes osdoentes terminais morrem sem a chance de dizer uma última palavra aosque amam e sem estes lhes ofereçam qualquer conforto emocional.

Para a formação do médico uteísta, preocupa-se muito em treiná-lo para passar um “intracat”, a interpretar uma gasometria, umeletrocardiograma ou um exame de fundo-de-olho. Estes são, sem dúvida,requisitos indispensáveis para salvar vidas. Mas quando tudo isso não forsuficiente e o paciente insiste em não reagir, o médico versado nas urgên-cias e emergências não costuma saber mais o que fazer, não sabe segurara mão agonizante, falar palavras de apoio, conforto e carinho.

É claro que, sendo assim, morrer no hospital é muito maissofrível, dá muito medo. A quase ausência total de auxílio emocional(espiritual) para aqueles que vão morrer não pode ser justificado peloapego acadêmico à ciência, pois o cuidado afetivo e espiritual é umdireito essencial de todo ser humano. Não é de forma alguma incompa-tível que se ensinem técnicas da Medicina moderna aos jovens médicosque se formam, simultaneamente aos preceitos milenares do humanismocaridoso e fraterno.

3.1.6 Aprendendo a morte para ajudar melhorG. J. Ballone 33

Embora muitas pessoas que lidam com pacientes terminais insis-tam em fazer de conta que não sabem, a maioria dos pacientes em estadoterminal procura falar sobre a angústia da morte, a maioria deles quer serouvida, quer ser confortada, quer encontrar na humanidade algum apoioque muitas vezes nunca teve durante seus anos de saúde.

33 Disponível em: <http://gballone.sites.uol.com.br/voce/morte2.html>.

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Ler, saber e se preparar para tratar desse tema pode melhorar oatendimento às pessoas terminais, pode melhorar os sentimentos do pró-prio profissional que lida com isso.

Como o conceito puramente biológico, mecânico e materialistada morte nos dá angústia e a sensação incômoda de finitude, o serhumano tende a analisar a morte filosoficamente, criando aspectos quetranscendem aqueles puramente biológicos. E, filosoficamente, a morte évista de maneira diferente segundo diferentes grupos sociais e de acordocom diferentes aspectos religiosos, éticos e culturais.

Tanto a Filosofia quanto as boas religiões podem ser úteis nahora da morte. Evidentemente, as seitas que submetem o futuro mortoa uma espécie de vestibular para o céu não contribuem em nada, pelocontrário. No budismo, assim como na tradição cristã, o desapegomaterial é uma condição essencial para uma morte mais serena e semgrande angústia.

Portanto, para viver momentos terminais sem o terror, temor etormento da idéia do fim e da perda, é necessário cultivar um certodesapego em relação à vida, é necessário ter a consciência de que namorte não podemos levar nada conosco; nem os bens, nem os amigos,nem os diplomas, nem o sucesso. Deixar de ser para essas coisas sig-nifica, obrigatoriamente, que essas coisas também deixam de ser paraquem vai morrer.

A consciência da finitude humana, particularmente a consciênciade sua própria finitude por parte de quem vai morrer, melhora a vida eestimula um redimensionamento dos valores. A atitude psicoterápica (quenão é monopólio dos psicoterapeutas) pode ajudar nessa fase de re-valo-rização da vida, pode ajudar a despertar valores que tornam o viver, aindaque breve, mais pleno e sereno.

O simples fato de estar vivo habilita o sujeito às leis da existên-cia, as quais determinam o seu próprio término. Alivia, portanto, aceitara transitoriedade da vida e da condição de existência humana. E essa regrase aplica a todos, ao paciente, ao médico, ao Presidente da República ea todos os bilhões de pessoas desse nosso planeta. Convém ter sempre emmente que ninguém pode mudar o fato de que um dia vai acabar, maspodemos mudar o modo de nos relacionarmos com essa realidade.

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O exercício espiritual, conduzido, promovido e assistido pelomédico, pelo religioso, pelo familiar, pelo amigo ou por qualquer pessoadisposta a isso, facilita a aceitação gradual da morte como conseqüênciada própria vida.

O perfil e a sensibilidade afetiva de cada um, bem como oconjunto das experiências vividas, têm papel importante na lida com amorte. O fenótipo, que é a somatória dos genes da personalidade com ainfluência do destino sobre eles, pode tanto potencializar o medo da mortequanto ajudar a conviver melhor com a consciência da finitude.

Psicodinamicamente, o empenho do terapeuta está em desfazerna medida exata o culto ao ego que há dentro de cada um de nós. Esseculto ao ego é que faz com que a pessoa acredite e aceite a morte dosbilhões de seres humanos do mundo, menos a sua própria. Para ele nãoexiste o curso natural dos acontecimentos biológicos a que todos seresviventes estão sujeitos. É o culto ao ego que faz o indivíduo se colocarsempre acima do todo a que pertence.

Ao não conseguir se colocar na intimidade do todo, do comum,do normal, esse ego sofre exagerada e desnecessariamente para aceitar aparte que lhe cabe. Na vida, quanto mais a pessoa pretende se destacardos demais (independente do mérito ou demérito disso, que não vem aocaso agora), mais ela sofre com a ausência de solidariedade e com oisolamento que a morte impõe, obrigatoriamente. As pessoas não costu-mam ser solidárias o suficiente para morrer juntas com as outras.

A Filosofia pode favorecer maneiras de lidar melhor com a morte.Sócrates, antes de morrer, condenado que foi a tomar um veneno letal,deixou um bom estímulo à reflexão: “Porque morrer é uma ou outradestas duas coisas. Ou o morto não tem absolutamente nenhuma existên-cia, nenhuma consciência do que quer que seja. Ou, como se diz, a morteé precisamente uma mudança de existência e uma migração para a alma,deste lugar para outro”.

Isso quer dizer que as duas maneiras de considerar o problemapodem ser satisfatórias. Para quem não acredita na continuação da vida, amorte é o nada, é a ausência completa de angústias e desesperos, portanto,ao contrário do sofrimento, é o fim das aflições. E, para quem acredita nacontinuação da vida, a morte é a passagem desta existência para outramelhor. De qualquer forma, a dor estaria na vida e não na morte.

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Ao terapeuta terminal cabe escolher a melhor situação ideológicaque atende à pessoa terminal. Preferentemente, devido à sensibilidadenatural das pessoas e às influências culturais, o apelo religioso deve serconsiderado em primeiro lugar.

Independente da crença religiosa, a maioria das doutrinas ajuda asuperar a angústia em relação à idéia de finitude, ajuda a encontrar respos-tas sobre por que se vive, por que se morre e o que acontece após a morte.Excetuando as crenças de teor punitivo, que normalmente atendem mais àaspiração de vingança do ser humano rancoroso do que a uma sólida baseteológica, a maioria das doutrinas conforta e consola diante da morte.

A maioria das religiões supõe uma outra vida que se segue àmorte, existiria então uma continuidade da mente, da alma, do espírito,enfim, haveria a continuidade de alguma coisa que convalida a pessoa ea vida atuais. A visão espiritual da morte implica viver em função dessacontinuidade, a qual, além de nos tornar mais responsáveis pelas conse-qüências dos nossos atos, sugere a noção de desapego às coisas quedeixamos com a morte.

Não havendo possibilidade religiosa para confortar diante da morte,existe a visão materialista, em oposição à visão espiritualista. Para a visãomaterialista dos filósofos iluministas do século XVIII, a morte é o fimtotal e absoluto, é nada mais do que a interrupção de um processoneurofisiológico, um mero evento biológico. Esse enfoque vem desdeEpicuro, para quem a morte se caracterizaria pela ausência de sensações,pois o morto não sente. Seguindo esse raciocínio, não deve ser boa nemruim a morte, uma vez que só há bom e ruim na sensação, e a morte éausência de sensação.

De fato, as sensações representam a porta de entrada de nossaconsciência, a qual nos dará a noção de nosso sujeito (nosso corpo) e denosso objeto (do mundo ao qual contatamos pelas sensações). Como amorte é ausência das sensações, e estas representam a fonte de todo oprazer e de toda dor, não pode haver nada de bom nem de ruim, nemprazer nem dor, depois da morte.

O comportamento humano, maniqueísta, sugeria que podíamosviver, agir e aproveitar os prazeres da vida sem temer nenhuma puniçãodepois, sem temer a morte, porque a morte não é nada para quem está

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vivo, pois quando existimos a morte não existe, e quando a morte estápresente, deixamos de existir.

No entanto, apesar do discurso materialista sobre a morte apelarfortemente para a razão, esforçando-se em deixar a emoção de lado, noser humano normal o medo de morrer pode gerar um apego muito forteaos elementos do cotidiano, um desespero diante da possibilidade deperder tudo o que colecionou durante a vida com a morte. Outra contri-buição ao medo da morte, além dessa noção materialista de perder tudo,é a cultura ocidental, com sua obsessão pela idéia do ser jovem comometáfora de vida saudável.

3.2 Bioética – conceitos básicos e definições

A expressão “Bioética”, cunhada no início da década de 1970,tinha como objetivo alertar sobre o uso indevido dos avanços da BiologiaMolecular. Proposta originalmente por Van Rensselaer Potter, Doutor emBioquímica, Pesquisador e Professor na área de Oncologia no LaboratórioMcArdle, da Universidade de Wisconsin (Estados Unidos), a Bioética sepreocupava com a interação do problema ambiental às questões de Saúde.

Passadas mais de três décadas, o termo passou a designar a Éticanas ciências da vida, da Saúde e do meio ambiente. O exercício daBioética exige incorporação crítica de novos conhecimentos,interdisciplinaridade, pluralismo, humildade e responsabilidade,potencializando o senso de humanidade. Os aspectos religiosos ou espi-rituais devem estar também inclusos em uma reflexão bioética, semprepreservando o caráter plural da discussão e não assumindo uma posiçãosectária (COELHO, 2006).34

34 COELHO, Antonio Carlos. Disponível em: <http://www.cienciaefe.org.br/jornal/E71/mt06.htm>.

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3.2.1 Velhos temas, novas perplexidadesVicente de Paula Barreto35

A Bioética é um ramo da Ética filosófica, fruto de um tempo,de uma cultura e de uma civilização. Quando falamos em Bioética,estamos tratando de uma área de conhecimento nascida há somentecerca de meio século, ainda que alguns de seus temas centrais – a saúde,a vida e a morte – tenham a ver com as origens da reflexão filosóficae da Medicina na cultura do Ocidente. O Juramento Hipocrático naGrécia Antiga foi a primeira formulação de um sistema normativo noqual se reconhecia a relação necessária entre a prática da Medicina e aconseqüente busca da cura das doenças, com o respeito aos valores dapessoa humana. Desde o século V a.C., a prática médica teve umreferencial ético, que se constituiu na base dos modernos Códigos deÉtica Profissional, o corpus da deontologia médica. A Medicina, portan-to, mesmo quando – ainda no tempo de Hipócrates – lutava para verreconhecida o seu status científico ao rejeitar as explicações “sobrena-turais” para as doenças, tinha presente a dimensão moral do ser huma-no. O termo “deontologia” ou “ciência do dever”, entretanto, somenteveio a ser cunhado pelo filósofo inglês Jeremy Bentham, em 1834,quando tornou sinônimas a Ética, ou o conhecimento científico sobrea moralidade, e a ciência do que é necessário ser feito. Deontology orthe Science of Morality, como se intitula o livro do filósofo inglês, pre-tendia, precisamente, criar uma nova área da Filosofia que deveria tratarda ciência ou teoria (logos) do que é necessário ser feito (do grego deon).O termo deixou de ter suas características filosóficas, extensivamentedurante o século XIX, ao ser aplicado para significar os Códigos deÉtica Profissional que não são produtos de uma reflexão ético-filosófica.

O paradigma ético-profissional da Medicina, estabelecido na GréciaAntiga, daria sinais de esgotamento normativo durante a segunda metadedo século XX, no quadro do chamado “vazio ético” em que mergulhou acivilização tecnocientífica da modernidade. A diversidade dos problemas

35 Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/direitosglobais/paradigmas_textos/v_barreto.html>.

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morais, que atingiu o seu paroxismo na própria negação da existência dequalquer valor ético universal entre os homens, surgiu em todos os aspec-tos da civilização tecnocientífica, mas encontrou campo fértil nas indaga-ções suscitadas pela Bioética, na qual a empiria exigia de forma urgente,e mais do que em outras áreas do conhecimento, a reflexão ética.

Para que se possam entender os problemas e as perspectivas daBioética contemporânea, torna-se necessário, preliminarmente, estabele-cer-se as relações entre a crise cultural dessa forma civilizatória e aconscientização moral crescente da sociedade que encontra na Bioéticauma de suas principais manifestações. Nesse sentido é que se pode afir-mar ser a Bioética o mais novo ramo da Filosofia Moral, por ter surgidoda necessidade de se estabelecer princípios racionais que explicassem efundamentassem o comportamento do homem face a novos conhecimen-tos e tecnologias. E somente poderia ter ganho corpo científico no quadrode uma específica cultura e civilização, pois a Bioética extravasou daanálise médico–paciente e atingiu todo o contexto que envolve os proble-mas da vida, da saúde, da morte e das tecnologias a elas relativas.

O fenômeno cultural e de civilização denominado de Tecnociênciaocorreu de modo progressivo a partir do século XVII, quando se proces-sou uma radical mudança no paradigma do conhecimento humano,provocada pelo advento da ciência galileiana da natureza. O novo tipo deconhecimento consagrou os modelos operativos, tanto teóricos quantotécnicos, fazendo com que houvesse “uma perfeita homologia na ordemdo conhecer e do fazer, entre o ser humano e o mundo por ele transfor-mado” (LIMA VAZ, 1998). A tecnocivilização modificou, portanto, nãosomente a forma do conhecimento humano, mas também o próprio es-tatuto natural da situação do homem no mundo ou, como dizem osfilósofos, do nosso ser-no-mundo. O homem deixa de ser um agenteexclusivamente voltado para dominar e controlar o mundo que o cerca,passando a receber desse domínio uma influência reflexa que irá alteraro próprio estatuto da sua humanidade. Por essa razão, alguns filósofoscontemporâneos (JONAS, 1995, 1998; HOTTOIS, 1993) procuram de-monstrar que a Ética contemporânea exige uma fundamentação que nãose esvai na prática de tal ou qual virtude ou na observação de tal regra.No contexto dessa civilização tecnocientífica é que se afirma ser a Bioética

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o campo próprio para repensar a Ética, pois o material de reflexão donovo ramo da Filosofia Moral trata com o nascimento de uma novahumanidade e de uma nova natureza. A interferência do homem nomundo que o cerca modifica não somente o mundo, mas o própriohomem, que se vê diante de possibilidades até então desconhecidas, comosão as advindas dos novos conhecimentos proporcionados pelas ciênciasbiológicas. São conhecimentos que não se restringem à explicação domundo natural, mas que apontam para mudanças no próprio ser humano.

O desenvolvimento das ciências e das técnicas nos dois últimosséculos trouxe consigo desafios que têm a ver com o surgimento de novostipos de relações sociais no quadro cultural da tecnocivilização. Orenascimento do debate ético em todos os domínios da atividade humanatalvez encontre a sua explicação final na necessidade da consciência dohomem contemporâneo em se situar face ao fato de que o paradigmacientífico domina cada vez mais as forças da natureza e, ao mesmo tempo,interfere de forma crescente no mundo natural, suscitando problemas quenão encontram respostas no quadro da própria cultura tecnocientífica,onde surgiram e se desenvolveram. A principal dessas intervenções é a queocorre no corpo das ciências biológicas, onde o homem, ao ampliar o seudomínio sobre a natureza, intervém na sua própria condição natural depessoa e possibilita a implantação de tecnologias sem previsão quanto àssuas conseqüências. Por lidar com esse novo tipo de conhecimento, ohomem contemporâneo se interroga de forma crescente sobre as dimen-sões, as repercussões e as perspectivas das novas descobertas científicas ede suas aplicações tecnológicas.

A Bioética nasce, assim, como uma resposta a desafios encontra-dos no corpo de uma cultura, de um paradigma do conhecimento humanoe de uma civilização. Antes de tudo, é a expressão teórica da consciênciamoral de um novo tipo de homem no seio de uma nova cultura e civi-lização. Distingue-se, portanto, de uma Ética estritamente profissional,pois trata da análise teórica das condições de possibilidade dos valores,normas e princípios que procuram ordenar o avanço científico etecnológico. O progresso científico, por outro lado, em virtude de suasaplicações tecnológicas, não se processa de forma neutra, mas no campoda Engenharia Genética envolve uma rede imensa de interesses econômicos

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que acabam por questionar os próprios fundamentos da tradição éticaocidental. Médicos e pacientes, empresas de seguro de saúde, grandesindústrias farmacêuticas, disputas na comunidade científica por recursoscada vez mais vultosos para a pesquisa, investimentos públicos e privadosna aplicação dos produtos resultantes das pesquisas, tudo contribui paraque os princípios reguladores da Medicina tradicional se tornem insufi-cientes para regular as relações sociais, econômicas e políticas nascidas nacivilização tecnocientífica. A chamada crise ética se refere, precisamente,ao conflito entre aquela tradição e os valores da cultura da tecnocivilizaçãoque servem como alicerces para a construção de novas, imprevisíveis edescontroladas relações sociais e econômicas.

ORIGENS E EVOLUÇÃO TEMÁTICA DA BIOÉTICANo contexto da Tecnociência, o conflito assumiu peculiar inten-

sidade no âmbito da Biologia contemporânea, principalmente nas suasmais avançadas realizações, que se encontram no campo da EngenhariaGenética. O progresso científico e suas aplicações tecnológicas provocaramo surgimento de um complexo e intricado conjunto de relações sociais ejurídicas que envolve valores religiosos, culturais e políticos diferenciadose também a construção de poderosos interesses econômicos que se refle-tem na formulação de políticas públicas. As questões éticas suscitadas pelaciência biológica contemporânea tratam, assim, das interrogações feitaspela consciência do indivíduo diante dos novos conhecimentos e tambémcomo esses conhecimentos materializados em tecnologias estão repercutin-do na sociedade. Então, vemos como a complexidade das relaçõesestabelecidas em virtude da nova ciência e tecnologias no campo daEngenharia Genética fazem com que a Bioética e o Biodireito não possamficar prisioneiros da teorização abstrata ou do voluntarismo legislativo,pois ambos são chamados a responder à indagações práticas e imediatasque nascem de relações sociais, econômicas, políticas e culturais caracte-rísticas da civilização atual.

Esse conjunto de relações pode ser analisado, do ponto de vistaético, sob aspectos distintos. Em primeiro lugar, considerando que o maisnovo ramo da Filosofia Moral – a Bioética – constitui uma fonte eparâmetro de referência, tanto para o cientista como para o cidadão

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comum. Em segundo lugar, procurando-se estabelecer quais os princípiosracionais que fundamentam a Bioética e como podem servir de parâmetroséticos na formulação de políticas públicas que encontrarão nas normasjurídicas a sua formalização final. E, finalmente, como o Biodireito, con-junto de normas jurídicas destinadas a disciplinar essas relações, deveráencontrar justificativas racionais que o legitimem. Assim, encontramo-nosdiante do problema nuclear do pensamento social, qual seja, o da convi-vência de duas ordens normativas – a Moral e o Direito – diferenciadasentre si, mas que mantêm um caráter de complementaridade, que impeça,parafraseando Kant, o vazio da Bioética sem o Biodireito e a cegueira doBiodireito sem a Bioética.

O termo Bioética foi proposto pela primeira vez pelo cancerologistaPotter Van Rensselaer no início da década de 1970. O precursor do usodo termo empregou-o em sentido bastante diferenciado daquele queencontramos na atualidade. Potter considerava que o objetivo da disciplinadeveria ser o de ajudar a Humanidade a racionalizar o processo da evoluçãobiológico-cultural. Tinha, portanto, um objetivo moral-pedagógico. AndreHellegers, fisiologista holandês e fundador do The Joseph and Rose KennedyInstitute for the Study of Human Reproduction and Bioethics, passou aempregar a palavra em sentido mais amplo, relacionando-a com a Éticada Medicina e das ciências biológicas. Ambos os precursores no empregoda palavra procuraram soluções normativas para problemas que inquietavamos meios científicos desde o início da década de 1950. Tratava-se deavaliar as conseqüências dos rápidos avanços nas ciências biológicas econtrolar, ou humanizar, os seus efeitos. Tentavam os iniciadores da Bioéticafazer com que a própria comunidade científica definisse princípios éticosinibidores da síndrome de Frankenstein que rondava a ciência biológicadesde os experimentos dos médicos nazistas.

O nascimento da Bioética ocorreu, assim, em contexto históricoe social específico (PARIZEAU, 1996), correspondendo ao momento decrise da Ética médica tradicional, restrita à normatização do exercícioprofissional da Medicina que não conseguia responder aos desafios moraisencontrados no contexto da ciência biológica contemporânea. Entretanto,a primeira contestação aos padrões tradicionalmente utilizados pelacorporação médica nas suas relações com os pacientes, e que revelou a

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insuficiência dos cânones da deontologia médica clássica, surgiu no bojode um movimento social mais abrangente, no qual a autoridade médicafoi questionada, como as demais autoridades constituídas, como sendorepresentante do status quo do Estado liberal e da maquinária burocráticamontada para atender às políticas do bem-estar social dessa forma deorganização estatal.

Essas reivindicações que caracterizaram o movimento social nadécada de 1960 foram expressas por algumas bandeiras. Questionou-se alegitimidade das instituições, do Estado e da religião, o que provocoumutações profundas na vida privada dos indivíduos e na vida pública. Nocampo das ciências humanas e da vida ocorreram profundas mudanças emvirtude de novos conhecimentos, novas tecnologias genéticas e da consa-gração de novos valores: fecundação in vitro, transplantes de órgãos,aperfeiçoamento das técnicas de enxertos, descriminalização do suicídio,do aborto, do homossexualismo, a legalização do divórcio, a questão dotransexualismo, o emprego generalizado de métodos anticoncepcionais, adesinstitucionalização das instituições psiquiátricas, todos são temas quese incorporaram à cultura contemporânea por meio de acirrados debatescientíficos e morais envolvendo universidades, pesquisadores, igrejas,partidos políticos, imprensa, organizações sociais e profissionais.

Nesse quadro de profundas modificações culturais, as relaçõesmédico–paciente foram denunciadas como sendo mais uma forma depaternalismo, entre as muitas encobertas pela sociedade liberal, a ser subs-tituída por uma relação transparente e responsável. Os imensos progressosdas ciências biológicas provocaram, entretanto, uma atitude ambivalente emrelação ao modelo tecnocientífico vigente da Medicina, responsável, aliás,pelos progressos alcançados no combate às doenças e endemias. A Bioéticasurgiu como resposta ao conflito entre a Ética médica deontológica, restritaà corporação médica, e as reivindicações de transparência e responsabilida-de pública levantadas pelo movimento social que, entretanto, reconhecia asconquistas fundamentais realizadas pelas ciências biológicas. Vemos entãocomo nas suas origens, a Bioética e, logo em seguida, o Biodireito iriamter que conviver com essas duas dimensões: de um lado, a crítica às práticaséticas da Medicina tradicional, consideradas inaptas para lidar com o novomundo da Biologia e das tecnologias genéticas; de outro lado, a necessidade

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de apoio e incentivo às pesquisas que traziam avanços consideráveis na lutacontra as doenças e epidemias.

A Bioética trouxe do nascedouro algumas características, tornan-do-se evidente que as pesquisas da ciência biológica ampliavam os seushorizontes, deixando o campo restrito da busca da cura e se desdobrandoem temas como as novas formas de procriação, a eutanásia, a clonageme as políticas públicas relacionadas com esses assuntos. O campo deconhecimento da Bioética exigiu, assim, a incorporação à temática origi-nal de outras áreas científicas.

Por essa razão, a Bioética contemporânea se tornou, necessaria-mente, um conhecimento interdisciplinar, pois ela é parte, mas na reali-dade ultrapassa a ética médica restrita às relações médico–paciente. Istopor que trata de investigações que envolvem a vida humana na perspectivaterapêutica e também de pesquisas puras que podem ou não levar àaplicações práticas.

Esse conhecimento, portanto, não se esgota na reflexão sobre asnovas terapias, mas se desdobra acompanhando as múltiplas aplicaçõestecnológicas que irão envolver outras áreas de conhecimento sobre ohomem e a sociedade. Por essas razões, a Bioética tem uma dupla face,pois ela é um discurso e uma prática, materializando-se não na teoriaacadêmica, mas na prática dos hospitais, nos comitês de Bioética e naformulação de políticas públicas. Esse duplo aspecto da Bioética é que atorna um ramo da Filosofia Moral comprometida com um tipo de conhe-cimento voltado para a prática.

A análise filosófica da Bioética que irá possibilitar o estabeleci-mento dos parâmetros racionais, éticos e universais do Biodireito, podeser desenvolvida em duas dimensões:

a) trata-se, no primeiro nível, de desenvolver os argumentosracionais que possam fundamentar e explicar os valores e princípios envolvidos.A Bioética, sob esse aspecto, situa-se num nível metadeontológico e analítico.Pretende-se, portanto, menos tomar posição, e em conseqüência expressaruma verdade canônica, e mais descobrir os argumentos contraditórios outautológicos encontrados no discurso bioético;

b) no segundo nível, a Bioética procura explicitar recomendaçõesobjetivas que contribuam para solucionar problemas específicos e cir-

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cunscritos. Encontram-se nesse caso pareceres dos filósofos morais sobreproblemas de política pública ou decisões judiciais como, por exemplo,os pareceres do grupo de filósofos morais norte-americanos que, comoamicus curiae, ajudaram à Côrte Suprema dos Estados Unidos a decidirsobre a eutanásia.

A Bioética, portanto, não pretende se constituir no corpo de umamoralidade canônica estabelecida por uma autoridade religiosa ou políticaque impõe a sua concepção moral própria, pois a sociedade pluralista emque vivemos não comporta uma mesma resposta para os problemas morais,mas múltiplas interpretações de diferentes códigos morais, pertencentes adiversas comunidades. A Bioética é, assim, considerada como sendonecessariamente plural, e pode ser caracterizada “como uma lógica dopluralismo, como um instrumento para a negociação pacífica das institui-ções morais” (ENGELHARDT, 1991). Para a realização da negociaçãopacífica peculiar ao argumento ético, supõe-se que seja possível determi-nar um princípio de universalidade como raiz da vida moral e jurídica.

O mais novo ramo da FilosofiaMoral poderá definir, assim, nãoum código de normas substantivas que sirva de guia para as políticaspúblicas de Saúde e de pesquisa biológica, mas sim analisar as condiçõesracionais para a existência de argumentos fundadores de princípios queserão materializados por meio da ordem jurídica e visem resguardar apessoa humana e os seus descendentes. Os problemas bioéticos se referemem sua amplitude às condições de conservação e melhoria da própriacondição humana que se expressam no estado da saúde de cada pessoa,reflexo não somente de condições físicas ou psíquicas do indivíduo, mastambém de políticas públicas e da prática da Medicina (GADAMER,1996). Nesse sentido, a Bioética se insere na tradição da Ética prática,analisando do ponto de vista ético a prática da Medicina e também osfundamentos e objetivos das políticas públicas de Saúde.

Os propósitos da Bioética são necessariamente limitados, tendoem vista a situação social contemporânea, na qual ocorre umadescontinuidade entre a racionalidade e a moralidade. A principal razãopara essa ruptura intelectual advém do fato de que presenciamos umaanemia crescente no debate público sobre a natureza e a função damoralidade. Construímos e convivemos com diferentes justificativas morais

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que não mais fazem referência a um Deus unificador, gênese do que écerto e do que é errado, do bom e do mal, fonte durante séculos damoralidade. A necessidade da Bioética na contemporaneidade – como,aliás, da Filosofia Moral de um modo geral – prende-se ao fato de queo modelo de sociedade individualista e socialmente atomizada dos temposatuais se encontra questionada em seus fundamentos pelo próprio relativismomoral que dela tomou conta. A fome pela Ética no nosso tempo, princi-palmente se levando em consideração as interrogações morais provocadaspelas ciências biológicas e tecnologias médicas, expressa o entendimentoessencial do ser humano de que, para além das convicções individuais,encontra-se a necessidade de se estabelecer um balanceamento entre oscustos e os benefícios do mais ambicioso projeto da pós-modernidade:adiar a morte (ENGELHARDT, 1996).

“Lo que hace un hombre es como si lo hicieran todos los hombres. Poreso no es injusto que una desobediencia en un jardin contamine al género

humano [...]”Jorge Luis Borges, Ficciones.

Existe, portanto, uma tensão permanente entre os valores moraise os cânones éticos encontrados na sociedade pluralista da modernidade.A própria natureza humana é concebida de forma diversa pelas diferentestradições culturais e religiosas. Dentro da tradição judaico-cristã, porexemplo, encontramos posições divergentes diante de uma mesma situa-ção fatual, obrigando o médico a agir de uma ou de outra forma. Poroutro lado, os regimes democráticos contemporâneos romperam as mu-ralhas institucionais protetoras de segredos, tornando-se cada vez maisreduzido o número de fatos protegidos sob o manto dos arcana imperial,permitindo-se um controle mais efetivo pela sociedade civil dos rumos daspesquisas e experiências científicas. A mentalidade dos cientistas, é certo,encontra dificuldades em lidar com essa nova realidade político-institucionalcaracterizada por uma consciência crescente da comunidade na defesa devalores e direitos considerados essenciais para a pessoa humana. O Pro-fessor Robert Edwards, que, com Patrick Steptoe, iniciou a técnica da

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fertilização in vitro, em discurso pronunciado em 1987, advertia para essadeficiência na formação dos cientistas:

os cientistas são notoriamente desprovidos de Ética se comparados

à população em geral. Muitos deles não se interessam em participar

desses debates sequer em seu próprio campo de trabalho, a menos

que as circunstâncias sociais os empurrem literalmente para a dis-

cussão ética. A maioria dos cientistas nunca teve uma formação ética

e enfrenta consideráveis dificuldades, quando obrigada a expressar

seus próprios princípios éticos em relação à sua disciplina. (WILKIE,

1994)

OS PRINCÍPIOS DA BIOÉTICADesde os seus primórdios, imaginou-se a Bioética como uma

fonte de normas, de regras gerais e de princípios, com objetivo principalde disciplinar eticamente o trabalho de investigação científica e de apli-cação dos seus resultados, protegendo a Biologia da ameaça dedesumanização. A própria comunidade científica despertou para essanecessidade fazendo com que os princípios da Bioética constituíssem nassuas primeiras formulações uma espécie de Código de Ética Profissionalpara cientistas e pesquisadores. A partir do início da década de 1950, arapidez e sofisticação das novas descobertas biológicas suscitaram indaga-ções morais que procuraram resposta na formulação de princípios éticosque em sua origem pretendiam regular a pesquisa e a engenharia genéti-cas, consideradas em muitos aspectos como uma ameaça à inviolabilidadeda pessoa humana. Mas os princípios pretendiam também exercer o papelde fonte de obrigações e direitos morais – constituindo-se em principia(ENGELHARDT, 1996) – que expressavam raízes da vida moral, sendosuas determinações obrigatórias por si mesmas.

Os avanços do conhecimento científico no contexto de desconhe-cimento objetivo sobre os resultados da aplicação das tecnologias, e tam-bém de uma certa paranóia nascida mais do culto da ficção científica doque propriamente da ciência, provocaram uma proliferação de regrasbioéticas ou deontológicas de caráter geral, cuja fundamentação se encon-tram nos princípios da Bioética. Os antecedentes normativos do Biodireito,

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mais éticos do que jurídicos, representaram somente a primeira respostapara que pudesse ser preenchido o vazio normativo ocasionado pela in-capacidade da ordem jurídica vigente de lidar com as novas descobertase suas aplicações, consideradas como ameaças, quando não reais, imagi-nadas, para a sobrevivência da humanidade. O vazio normativo se tornoumais evidente com a insuficiência da deontologia médica clássica em lidarcom as novas descobertas e as exigências sociais de transparência e pu-blicidade na pesquisa e na prática médica, fazendo com que as questõesmorais suscitadas procurassem se socorrer de princípios que, teoricamente,deveriam pautar eticamente o desenvolvimento da investigação científica esuas aplicações práticas. Os princípios, em sua generalidade, no entanto,não corresponderam às expectativas de regulação e por essa razão se legislousobre a pesquisa e as tecnologias de forma impulsiva, procurando-se resolversituações pontuais e não estabelecer normas jurídicas gerais.

Os fantasmas que rondaram as descobertas da Biologia contempo-rânea tinham, entretanto, uma certa materialidade, pois o progresso biológicotrouxe consigo a lembrança dos experimentos nazistas, o que justificou aproclamação das normas do Código de Nuremberg, em 1947. Essa foi aprimeira tentativa de distinguir entre pesquisas clínicas e não clínicas, quandose recomendou a formação de comitês destinados a regular o processo deobtenção do consentimento e do tipo de informação dada aos doentes quefossem objeto das pesquisas. O movimento dos Comitês de Ética se expandiuprincipalmente em hospitais universitários, sendo formado originalmente pormédicos. Em pouco tempo, surgiram os Comitês Nacionais de Bioética quea partir da década de 1960 foram criados nos Estado Unidos, na Grã-Bretanha, na Suécia, na Austrália e em outros países, com a função deatuarem como instâncias nacionais para o controle do desenvolvimento dapesquisa e da tecnologia biológicas. Normas internacionais terminaram porconsagrar a temática da Bioética como tema planetário, procurando envolverem suas determinações inclusive aqueles países onde não se tinham aindaestabelecidos os Comitês Nacionais de Bioética.

Os chamados princípios da Bioética foram formulados pela pri-meira vez em 1978, quando a “Comissão norte-americana para a proteçãoda pessoa humana na pesquisa biomédica e comportamental” apresentouno final dos seus trabalhos o chamado Relatório Belmont. Este texto res-

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pondia àquelas exigências, acima referidas, vindas da comunidade cientí-fica e da sociedade no sentido de que se fixassem princípios éticos aserem obedecidos no desenvolvimento das pesquisas e que deveriam serconsiderados quando da aplicação de recursos públicos nessas atividadescientíficas. O Relatório Belmont estabeleceu os três princípios fundamen-tais da Bioética, em torno dos quais toda a evolução posterior dessa novaárea do conhecimento filosófico iria se desenvolver: o princípio da bene-ficência, o princípio da autonomia e o princípio da justiça, chamado poralguns autores de princípio da eqüidade (LEPARGNEUR, 1996).

As normas biojurídicas promulgadas desde então em países pio-neiros na legislação do Biodireito, como a Grã-Bretanha, Austrália e Fran-ça, tiveram como referencial último esses princípios estabelecidos peloRelatório Belmont. O exame desses princípios permite que se tenha umaidéia, no entanto, de suas limitações como princípios fundadores de umaÉtica e de um Biodireito na sociedade pluralista e democrática.

O princípio da beneficência deita suas raízes no reconhecimentodo valor moral do outro, considerando-se que maximizar o bem do outrosupõe diminuir o mal; o princípio da autonomia estabelece a ligação como valor mais abrangente da dignidade da pessoa humana, representandoa afirmação moral de que a liberdade de cada ser humano deve serresguardada; o princípio da justiça ou da equidade estabelece, por fim,que a norma reguladora deve procurar corrigir, tendo em vista o corpo-objeto do agente moral, a determinação estrita do texto legal.

Verificamos que os três princípios correspondem a momentos eperspectivas subseqüentes na evolução da Bioética e, em conseqüência, doBiodireito: o momento e a perspectiva do médico em relação ao paciente;o momento e a perspectiva do paciente que se autonomiza em relação àvontade do médico; e, finalmente, o momento e a perspectiva da saúdedo indivíduo na sua dimensão política e social.

Alguns problemas de ordem racional surgem, entretanto, na aná-lise da formulação e aplicação desses princípios. O estabelecimento deprincípios expressando raízes da vida moral, como quer Engelhardt (1996),significa que irão formular uma determinação que em última análise setorna canônica – pois quem irá definir em cada caso qual o “verdadeiro”significado de cada um deles – e com isto termina por negar o princípio

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racional básico de que as leis morais resultariam de uma ampla argumen-tação pública entre pessoas autônomas. A aplicação dos princípios, porsua vez, leva à situações conflitantes entre si a partir da constatação de quetomados, separadamente, cada um deles pode ser considerado como su-perior ao outro. Logo, logicamente, a sua aplicação não pode ser feita demaneira conjunta e não diferenciada, pois implicaria num processo deparalisação mútua do processo decisório.

A própria origem de cada um dos princípios da Bioética mostra,em sua formulação restrita, que não atendem às demandas da ordemnormativa, moral e jurídica de uma sociedade pluralista e democrática. Ascondições mínimas para a construção de qualquer sistema normativo –isto é, ordem e unidade – supõem a coexistência de princípios que sejamcomplementares e não, como é o caso dos princípios da Bioética, prin-cípios que partem de pressupostos, cujos objetivos são mutuamenteexcludentes.

O princípio da beneficência tem suas origens na mais antigatradição da Medicina ocidental, na qual o médico deve visar antes de tudoo bem do paciente – definido pelas luzes da ciência –, sendo que oprincipal desses bens é a vida. Logo, o compromisso maior do médico éo de envidar todos os esforços e empregar todos os meios técnicos tor-nados viáveis pela ciência e pela tecnologia para manter vivo o paciente,mesmo contra a vontade deste último. O princípio da autonomia, por suavez, surge dentro da tradição liberal do pensamento político e jurídico,que por sua vez deita suas raízes no pensamento kantiano; o indivíduo,dentro da concepção liberal, é um sujeito de direitos que garantem oexercício de sua autonomia, sendo que como paciente deve também teraqueles direitos que o situam como pessoa e membro de uma comunida-de, advindo dessa constatação o direito de o paciente decidir, comosujeito de direito, na relação médico–paciente. O princípio da justiçarecebe a sua primeira formulação no bojo da crise do Estado liberalclássico quando o processo de democratização dessa forma de organizaçãopolítica passa a considerar a sociedade e o Estado como tendo a obrigaçãode garantir a todos os cidadãos o direito à saúde. Essa obrigação tornao Estado e a sociedade agentes e responsáveis na promoção da saúde doindivíduo, achando-se estabelecida na Constituição brasileira de 1998 nos

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seguintes termos: “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantidomediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco dedoença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações eserviços para sua promoção, proteção e recuperação” (Artigo 196). Torna-se, assim, evidente que a aplicação literal dos três princípios da Bioéticade modo mecânico, sem que sejam discutidos os seus fundamentos éticos,podem se tornar conflitivos, contraditórios e auto-excludentes.

Em cada princípio, privilegia-se um elemento diferente, sendoque a prática deformada de cada um desses princípios provoca situaçõessociais injustas. Assim, o princípio da beneficência pode facilmente setransmutar em paternalismo médico, e foi contra esta característica daprática médica dos últimos cem anos que se manifestou o movimentosocial da década de 1960. O princípio da autonomia, por sua vez, podeinstaurar o reino da anarquia nas relações entre médico e paciente, istoacontecendo quando a liberdade individual passa a representar o escudoatrás do qual o paciente impede que o médico exerça a sua função. Oprincípio da justiça, por fim, corre o risco de se transformar na suaprópria caricatura nas mãos da burocracia estatal, sob a forma depaternalismo e clientelismo político. O que se encontra por detrás daaplicação mecânica desses princípios, como se fosse possível a sua apli-cação conjunta, é a tentativa de se justificar a hegemonia de uma das trêsdimensões da Saúde na sociedade contemporânea, o paciente, o médicoe a sociedade. Os três princípios somente adquirem sentido lógico seforem considerados como referentes a cada um dos agentes envolvidos: aautonomia, referida ao indivíduo, a beneficência ao médico, e a justiçaà sociedade e ao Estado. A aplicação isolada de cada um desses princí-pios, no entanto, terminará por consagrar as situações sociais injustas aque fizemos referência. Torna-se, então, necessário procurar um modeloque não permita a hegemonia de um princípio sobre os dois outros, masque assegure a justificação, a integração e a interpretação dos três prin-cípios. Em outras palavras, como fazer com que a autonomia seja preser-vada, a solidariedade garantida e a justiça promovida.

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A AGENDA TEMÁTICA DA BIOÉTICAA aplicação desses princípios tem sido realizada em contextos

específicos, o que possibilita a elaboração de uma agenda temática daBioética da qual poderemos remontar e procurar solucionar o problemada contradição, considerando-se que quando nos referimos a princípios,estamos fazendo referência a parâmetros que, mesmo sendo auto-excludentes, referem-se a determinados temas. Na Bioética, esses princí-pios têm por objeto material o processo de avaliação ética da pesquisa edas tecnologias da Biologia e da Medicina contemporânea. Os parâmetros,no entanto, exigem para a sua materialização uma contextualização temáticaque delimite o universo próprio onde deverão ser aplicados. Parizeau(1996) sistematizou a temática do discurso da Bioética nos seguintes itens:

a) a relação médico–paciente, em grande parte contempladanos Códigos de Ética Médica;

b) o problema da regulamentação das experiências e pesquisascom os seres humanos;

c) a análise do ponto de vista ético das técnicas concernentesà procriação e à morte tranqüila ou eutanásia;

d) a análise ética das intervenções sobre o corpo humano (trans-plantes de órgãos e tecidos, Medicina esportiva etransexualismo);

e) a análise ética das intervenções sobre o patrimônio genéticoda pessoa humana;

f ) a análise ética das repercussões do emprego das técnicas demanipulação da personalidade e intervenção sobre o cérebro(psicocirurgia e controle comportamental da Psiquiatria);

g) a avaliação ética das técnicas genéticas e suas repercussõesno mundo animal.

Vemos como a temática cobre uma ampla gama de questões quese iniciam no âmbito exclusivo do indivíduo e sua saúde e termina nosdebates sobre as repercussões sociais de decisões, também de caráterindividual (como aquelas que envolvem os transexuais).

Ressente-se, entretanto, essa agenda temática daqueles problemasa que faz referência Hans-Georg Gadamer, que são os problemas relativos

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à saúde como bem do indivíduo e bem da coletividade. Somente nosúltimos anos, a Bioética começou a considerar, além da análise das deci-sões que envolvem a escolha do tipo de pesquisas a serem financiadas comrecursos públicos, o problema relativo às políticas públicas de Saúde ePrevidência que testam o princípio de justiça e o princípio da autonomia.

A análise dos escolhas morais que se encontram subentendidas nadefinição de políticas públicas é um tema que por si mesmo exige umtratamento teórico à parte, pois se encontram também nesse terrenodados empíricos necessários para a avaliação das possibilidades dos prin-cípios da Bioética.

DUAS RESPOSTAS AOS TEMAS DA BIOÉTICAAs questões políticas referentes à Bioética foram respondidas de

formas diversas pelas duas grandes linhas do pensamento contemporâneo:liberais e conservadores. Para que se possa, de uma forma geral, verificaronde se encontram as diferenças entre os dois grandes grupos doutrináriosdo cenário político da modernidade, torna-se necessário situar as políticasadvogadas por ambas as correntes do pensamento social no quadro de trêsperguntas básicas, cujas respostas servem para diferenciar os pensadoresliberais dos pensadores conservadores (FAGOT-LARGEAULT, 1996). Essasperguntas representam o cerne da indagação bioética contemporânea e emfunção delas encontramos, grosso modo, respostas que têm a ver com aconcepção do homem e da sociedade, como foram formuladas pelo pen-samento social.

As perguntas que constituem o cerne da temática política daBioética são as seguintes:

a) o que é necessário evitar?b) o que é necessário promover e apoiar?c) qual o estatuto do corpo humano?As respostas às três questões traçaram o quadro teórico dentro

do qual se desenvolveu o debate sobre a Bioética nos tempos atuais,quadro este que deverá informar ou complementar o trabalho do legis-lador e do julgador. À primeira pergunta, os conservadores responderamcom a afirmação de que não se encontra em discussão a liberdade dosindivíduos, mas sim os problemas individuais e sociais provocados pelas

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novas tecnologias, ainda não devidamente controladas e conhecidas emsuas conseqüências pelo homem. Sustentam os conservadores que, nocaso de dúvida, deve-se paralisar as experiências e transferir para espe-cialistas bem intencionados a decisão e o controle final do processocientífico e tecnológico.

Os liberais, por sua vez, respondem colocando em situação pri-vilegiada o indivíduo, acima de considerações de caráter público ou so-cial. Considerado como agente moral, cuja liberdade constitui a sua di-mensão principal, o indivíduo é o senhor absoluto dos seus destinos, nãodevendo se sujeitar às imposições dos detentores do conhecimento ou dopoder público. Trata-se, portanto, para os liberais, de evitar qualquerrestrição ao exercício pleno da liberdade individual. Em torno da idéia depessoa e de liberdade, a boa doutrina liberal (ENGELHARDT, 1996)sustenta que por se tratar da pessoa humana, e em função dela, é que sedeverão aplicar os princípios da Bioética; e da pessoa humana que vivenuma sociedade democrática e pluralista, significando, assim, que osprincípios da Bioética supõem a existência de uma sociedade liberal. Essaobjetivação dos princípios da Bioética, para Engelhardt, somente podeocorrer na sociedade plural, estruturada por meio de uma ordem políticaliberal, sendo essa a razão pela qual, em seu pensamento, o princípio daautonomia se torna hegemônico em relação aos dois outros princípios daBioética. A solução política liberal deixa, então, para o indivíduo, porintermédio de seus representantes políticos, a tarefa de avaliar o progressoda ciência e da tecnologia, cujo ritmo e objetivos deverão estar sujeitosao controle da sociedade civil.

A segunda questão de caráter geral que se coloca para a Bioética– o que se deve fazer – também é respondida de forma diversa pelasduas correntes de pensamento. O pensamento liberal sustenta que sedeve promover a tolerância e assegurar a resolução pacífica dos confli-tos. Os conservadores consideram, por outro lado, que se torna neces-sário aprofundar os debates sobre as descobertas e tecnologias da Ge-nética, antes que a ciência humana se aventure por campos do conhe-cimento ainda pouco conhecidos. Esses debates devem obedecer a umaestratégia política de dissuasão, por meio do medo, a chamada “heurísticado medo” (HOTTOIS, 1993). Assim, na concepção conservadora, seria

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exorcizada a compulsão tecnicista da contemporaneidade que, ao ver deimportantes críticos da modernidade, transformou o homem de sujeitoem objeto da técnica.

Tanto liberais como conservadores entendem o estatuto do corpodo indivíduo de forma diferente, sendo que esse entendimento resulta deuma concepção, também diversa, da natureza ontológica do ser humano.Para os conservadores, o homem se estrutura em função de uma unidadeorgânica, na qual a liberdade constitui a espinha dorsal, essencial para oequilíbrio e o aperfeiçoamento da pessoa humana. Por essa razão, anatureza biológica do ser humano é facilmente atingida pelas temidasagressões tecnológicas, cujas conseqüências acabam atentando contra aprópria natureza humana. Sustentam os conservadores ser necessário sus-pender essas experiências que resultam em violações desse espaço primi-tivo de liberdade natural, para que se possa recuperar a unidade naturaldo indivíduo. Os liberais respondem à questão sobre o estatuto do serhumano relacionando-o com uma das formas naturais que garantem oexercício da liberdade. Na verdade, os liberais, pelas próprias caracterís-ticas do seu pensamento, não têm uma concepção unificada do ser huma-no, a não ser a remissão à liberdade.

As diferentes respostas dadas por liberais e conservadores permi-tem determinar qual o entendimento do homem e da sociedade que seencontra subjacente em cada uma das posições e quais as conseqüênciaspara o mundo da nova Biologia. A posição conservadora parte da supo-sição de que as aplicações dos novos conhecimentos, principalmente ge-néticos, devem ser encarados com cautela. Não se encontrando no con-texto das biotecnologias parâmetros seguros que possam servir de referên-cia para pesquisas ainda embrionárias, deve-se procurar preservar a todoo custo a esfera da pessoa, considerada como um todo orgânico. Propõemos conservadores, o estabelecimento de uma moratória nessas pesquisas,impedindo-se, assim, que a natureza humana seja desnaturada (JONAS,1980). Essa moratória serviria, portanto, para resguardar a pessoa humanade tecnologias que poderão ou não modificar a própria natureza humana,pois, sustentam os conservadores, ninguém conhece com precisão osresultados e as repercussões, principalmente da Engenharia Genética. Otemor de um progresso científico e tecnológico que se desenvolvia em

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ritmo acelerado a partir de 1950 fez mesmo com que o argumento con-trário ao prosseguimento das pesquisas fosse aceito pela comunidade ci-entífica, durante a reunião de Asilomar, em 1974, quando os cientistasconcordaram em estabelecer uma moratória nas pesquisas sobre arecombinação artificial com vistas à transferência de material genéticopara uma célula receptora. Em 1975, ainda em Asilomar, a moratória foisuspensa, retomando-se as pesquisas. Constatamos, assim, como para opensamento conservador o importante, tendo em vista a imprevisibilidadedo novo mundo que se vai abrindo para o conhecimento humano, é evitaro risco tecnológico, ainda que custe novos avanços na ciência.

A posição liberal sustenta não ser possível determinar uma defi-nição do bom e do mal de forma abstrata e com expressão universal. Emconseqüência, o importante nas questões da Bioética, como em todos osdemais problemas sociais, consistirá na preservação da liberdade de esco-lha e do debate público, permitindo-se que cada indivíduo e comunidadeestabeleçam seus próprios padrões de controle (CHARLESWORTH, 1993).Os liberais consideram mesmo que esta não é uma questão essencial, poiscada sociedade, em princípio, deve determinar os seus próprios parâmetrosnormativos, seja do ponto de vista moral seja sob o aspecto jurídico.

DA BIOÉTICA AOS DIREITOS HUMANOSA Bioética, portanto, não se identifica com a “Ética” médica

como esta foi entendida durante séculos, nem se constitui em um corpusde princípios interpretados de forma uniforme por diferentes correntes dopensamento social. Trata-se de uma área de conhecimento, cujas raízes seencontram nos dados fornecidos pelas ciências biológicas, que fornecemo material empírico necessário para a reflexão propriamente filosófica.Desde a definição de Potter, que pretendia construir um projeto paragarantir a humanização das ciências biológicas com vistas a mais qualida-de de vida, o conceito sofreu profundas modificações. A evolução daBioética se processou em função da necessidade de se pensar o avançocientífico, levando-se em conta como a intervenção do homem na natu-reza exige a construção de uma Ética filosófica que possa ter a pretensãode universalidade, mas que responda às ameaças reais ou imaginadas àhumanidade, conseqüência de novas descobertas e tecnologias. Essa evo-

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lução caminhou também no sentido da construção de um discurso ético,dentro do qual possam se encaminhar, e achar solução, os conflitos queocorrem em virtude das novas relações sociais e econômicas nascidasdessas descobertas, e até então desconhecidas pelo ser humano.

Na atualidade, o campo da Bioética extrapola o âmbito restritodas ciências da Saúde e apresenta uma dupla face. De um lado, incorporaas novas formas da responsabilidade, principalmente a responsabilidadecom as gerações futuras, como foram vistas por Hans Jonas, mas tambémaceita a idéia kantiana do respeito à pessoa e do respeito ao conhecimen-to. A Bioética surge, assim, como o mais novo e complexo ramo da Éticafilosófica, pois trata da responsabilidade em relação à Humanidade dofuturo e, ao mesmo tempo, considera a pessoa humana como detentorade direitos inalienáveis. Contribuem, assim, para estabelecer os seus fun-damentos duas linhas do pensamento contemporâneo: a primeira, peculiarà tradição liberal, na qual se proclamam e afirmam os direitos da pessoahumana como limites à ação do Estado e dos demais indivíduos; a segun-da, socorre-se de uma nova linha do pensamento filosófico, originária daprimeira, mas que passa a pensar a ação do indivíduo não somente noquadro de suas conseqüências imediatas, mas principalmente em funçãode suas repercussões futuras. Trata-se, portanto, de construir uma Éticaque irá se materializar em novas responsabilidades.

Dentre os diferentes objetos da regulação jurídica, o problemanodal do Direito – a questão da responsabilidade –, por exemplo, deverásofrer uma profunda reavaliação quando lida sob essa perspectiva ética,pois irá ultrapassar a concepção restrita e ineficiente da responsabilidadecivil e penal do Direito liberal. Nesse sentido, torna-se necessário aban-donar o conceito de uma responsabilidade jurídica comprometida emdeterminar uma compensação ex post facto, e procurar construir uma novaresponsabilidade, a ser formalizada juridicamente, fundada no conceitomais abrangente de responsabilidade moral. Nas palavras de Hans Jonas,a civilização tecnocientífica, que tem na Engenharia Genética uma de suasmais importantes realizações, encontra-se eticamente à deriva, sendo quea sobrevivência do ser humano depende da construção de uma nova Ética.Essa “ética do futuro”, escreve Jonas, “não designa a ética no futuro –uma ética futura concebida na atualidade para os nossos descendentes

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futuros –, mas sim uma ética da atualidade, que se preocupa com o futuroe pretende protegê-lo para os nossos descendentes das conseqüências denossa ação presente” (JONAS, 1998). Essa responsabilidade moral, núcleoda Ética do futuro, não é, portanto, a responsabilidade civil clássica,determinada pelo cálculo do que foi feito, mas pela “determinação daquiloque se irá fazer. Um conceito em virtude do qual eu me sinto responsável,portanto, não em primeiro lugar por meu comportamento e suas conse-qüências, mas da coisa que reivindica o meu agir” (JONAS, 1995). Essaé a idéia fundante das novas responsabilidades que se torna característicaquando referidas às coisas a que se destinam o agir humano, seja o corpohumano, os animais ou o equilíbrio ecológico.

Por ambas as razões, o tema da Bioética extrapolou a área restritados hospitais e a própria profissão médica e se tornou tema a ser anali-sado na espaço público democrático. Tratando de assunto essencial paraa sobrevivência da Humanidade, e que envolve liberdades, direitos edeveres da pessoa, da sociedade e do Estado, a Bioética se transformouna mais recente fonte de direitos humanos. Esse trânsito da Bioética parao Biodireito, no plano internacional, materializou-se por meio da Decla-ração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos, elaboradapelo Comitê de Especialistas Governamentais da Unesco, tornada públicaem 11 de novembro de 1997. O texto, assinado por 186 países-membrosda Unesco – portanto, fonte legitimadora do documento – estabelece oslimites éticos a serem obedecidos nas pesquisas genéticas, especificamenteas pesquisas relativas à intervenção sobre o patrimônio genético do serhumano. A natureza ética e jurídica do citado documento, como veremosadiante, remete-nos à constatação de que é necessário, para que ocorra apassagem da ordem ética para a ordem jurídica, a explicitação de umanorma, mas que tenha características de universalidade próprias do dis-curso ético. Não se trata, portanto, de uma simples formalização jurídicade princípios estabelecidos por um grupo de sábios ou mesmo proclama-dos por um legislador religioso ou moral. O Biodireito pressupõe a ela-boração de uma categoria intermediária que se materializa nos direitoshumanos, assegurando os seus fundamentos racionais e legitimadores.

A formulação de uma nova categoria de direitos humanos – a dosdireitos do ser humano no campo da Biologia e da Genética – responde

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à indagação central do pensamento social contemporâneo: a possibilidadeda universalização de direitos morais fundados numa concepção ética doDireito e do Estado, vale dizer, na construção de uma ordem normativaconstruída por meio do diálogo racional entre pessoas livres. Neste con-texto, a possibilidade da Bioética depende, como sustentam os pensadoresliberais, da existência de uma sociedade democrática, pois se assim nãofor os valores e princípios bioéticos irão expressar a vontade dos cientis-tas, ou do Estado, e não de indivíduos livres e autônomos. Essa sociedade,entretanto, necessita de mecanismos institucionais que assegurem a ma-nifestação de diferentes concepções religiosas, políticas e sociais, sem asquais se torna inviável o discurso ético.

Como verificamos, os princípios provocam na sua aplicaçãoantinomias que somente podem ser racionalmente resolvidas na medidaem que se puder integrar os três princípios e não se privilegiar um deles.A formulação canônica, pela própria comunidade científica, desses prin-cípios e a sua aplicação, sem que haja uma intermediação entre o patamarético e a prática social, terminam por consagrar uma interpretação sub-jetiva e, portanto, relativista do sentido e alcance dos principia. Essesprincípios, entretanto, serviram como inspiração na implementação deuma nova categoria de direitos humanos que procura precisamente supriressa lacuna ou vazio existente entre a esfera ética e as normas jurídicasconstitutivas do Biodireito. Em outras palavras, o Biodireito deixado àmercê do subjetivismo procura se amparar em princípios bioéticos que,como tal, necessitam de uma objetivação com características de univer-salidade. Estamos tratando de uma forma de Direito que se legitimaracionalmente e pela expressão livre de autonomias numa sociedade de-mocrática, o que pode ser identificado como um direito construído emfunção do exercício livre da razão, portanto, o que Kant chamou de“Direito cosmopolita”. Os princípios da Bioética deixam, então, de repre-sentar determinações canônicas e passam a constituir uma forma de Direitocosmopolita que será objetivado por meio dos direitos humanos. Aformulação encontrada na Declaração de 1997 permite comprovar a vi-abilidade desse trânsito entre a Ética e o Direito. O documento da Unescopermite que se superem as dificuldades para a implementação de princí-pios éticos e de direitos que têm uma natureza específica, pois pretendem

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estabelecer limites universais às legislações nacionais e políticas públicasde Estados soberanos. Mantendo a necessária vocação universalista, aDeclaração de 1997 estabelece também uma série de medidas visando àpromoção dos princípios expressos e às exigências a que os Estadossignatários se submetem para a sua implementação.

A Declaração da Unesco se divide em grandes eixos temáticos.O tema da dignidade humana constitui o fundamento ético de todas asnormas estabelecidas e do exercício dos direitos delas decorrentes (Artigos1º-4º). A Declaração situa os direitos das pessoas envolvidas comoreferencial obrigatório para as pesquisas e suas aplicações tecnológicas(Artigos 5º-8º). O ser humano, em função dessa dignidade natural com-partilhada por todos os seres humanos, independentemente de suas carac-terísticas genéticas, tem o direito de ser respeitado em sua singularidadee diversidade (Artigo 2º, “a”). Outra conseqüência da identificação ematerialização da dignidade humana, no respeito ao genoma, encontra-sena proibição de utilizá-lo para ganhos financeiros (Artigo 4º).

A regulação da pesquisa científica é tratada sob dois aspectoscorrelatos: o documento estabelece, como decorrência dos princípios edireitos anteriormente definidos, que a pesquisa e aplicações tecnológicasnão poderão desrespeitar os direitos humanos, as liberdades fundamen-tais, a dignidade humana dos indivíduos e de grupos de pessoas. Odocumento não se restringe a determinar os parâmetros legais que visamproteger diretamente a pessoa humana nas pesquisas relacionadas com ogenoma humano, mas avança procurando estabelecer as condições para oexercício da atividade científica ao prever responsabilidades, tanto doscientistas e pesquisadores envolvidos nessas pesquisas como dos Estados(Artigos 10º-16º).

Os deveres de solidariedade e cooperação internacional, no con-texto da internacionalização crescente do conhecimento científico, torna-se tema necessário na medida em que os princípios éticos e direitosafirmados pela Declaração tornar-se-ão vazios de conteúdo prático casonão exista um compromisso dos Estados em promover a solidariedadeentre indivíduos e grupos populacionais. A cooperação internacional éprevista na Declaração sob quatro formas: por meio da avaliação dosriscos e benefícios das pesquisas com o genoma humano, da promoção

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de pesquisas sobre Biologia e Genética humana – levando-se em conta osproblemas específicos dos diferentes países –, da utilização dessas pesqui-sas em favor do progresso econômico e social, assegurando-se o livreintercâmbio de conhecimentos e informações nas áreas de Biologia, Ge-nética e Medicina (Artigo 19º).

Os eixos temáticos são desenvolvidos na Declaração por meio,em primeiro lugar, da explicitação de princípios éticos, e em segundo,prevendo instrumentos capazes da assegurar a observância desses princí-pios e dos direitos deles decorrentes pela comunidade internacional, pelosEstados e pela comunidade científica. A originalidade do ponto de vistada Teoria do Direito encontrada na Declaração do Genoma Humanoreside, assim, na reunião, em um só texto, de princípios bioéticos enormas de regulação que obrigam o sistema jurídico internacional e na-cional.

O objetivo principal da Declaração consiste em estabelecer prin-cípios e prever mecanismos que resguardem o genoma humano, conside-rado como fundamento da “unidade fundamental de todos os membros dafamília humana” (Artigo 1º). O genoma é elevado, portanto, a uma cate-goria universal, definidora da própria Humanidade. Essa definição, entre-tanto, responde à necessidade de se estabelecer um padrão que possagarantir a natureza comum para homens de diferentes credos, etnias econvicções, tornando-os iguais e, portanto, sujeitos de um mesmo conjun-to de direitos. Encontra-se, assim, um referencial seguro para que se possaelaborar uma normatização com características universais e capaz, portan-to, de ser definida como um direito de toda a Humanidade.

Os direitos da pessoa são encarados pela Declaração como reper-cutindo no Biodireito a idéia mais geral dos direitos humanos. O textoda Unesco propõe uma série de medidas que têm por objetivo preservara autonomia e a saúde do indivíduo.

Encontram-se nesses casos o princípio da dignidade do indiví-duo, que se encontra no princípio bioético da autonomia, independentede suas características genéticas; e o princípio da irredutibilidade do serhumano ao determinismo genético, o que desmente as falácias dos dife-rentes argumentos racistas. O segundo princípio é exemplificado no do-cumento da Unesco como instrumento de garantia da necessidade de

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permissão prévia para pesquisas, tratamento ou diagnóstico, e também daproteção contra a discriminação fundada em características genéticas.

A preservação do caráter confidencial dos dados genéticos deuma pessoa representa uma outra face da aplicação do princípio bioéticoda autonomia, pois atribui à esfera dos direitos personalíssimos, informa-ções e dados que possam ser usados para a prática da discriminação sociale política. O ponto nevrálgico do documento da Unesco reside, assim, nadefesa do patrimônio genético dos indivíduos como constitutivo de umabase empírica na qual se pode construir uma Ética e um Direito cosmo-polita, como previra Kant.

A Declaração Universal da Unesco, de 1997, estabeleceu assimuma nova categoria de direitos humanos, o direito ao patrimônio genéticoe a todos os aspectos de sua manifestação. A concordância dos paísessignatários, por meio dos mecanismos próprios da sociedade democrática,legitima limites aos cidadãos, grupos sociais e ao próprio Estado, que seobriga em função de normas da comunidade internacional. Esse documen-to internacional representa também uma tentativa de criar uma ordemético-jurídica intermediária entre os princípios da Bioética e a ordemjurídica positiva, o que irá obrigar os países signatários, como no caso oBrasil, a incorporar as suas disposições no corpo do Direito nacional(CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA de 1988, Artigo 5 º, § 2º).

A questão, portanto, da necessária complementaridade entre osprincípios éticos e as normas jurídicas se torna explícita, no caso dalegislação sobre a Genética, em virtude da incorporação ao Direito naci-onal, por força da norma constitucional, de normas internacionais, querefletem valores éticos e que se destinam a todos os povos.

A caracterização dos direitos relativos ao genoma humano comodireitos humanos torna ainda mais evidente como o documento da Unescovem preencher um vácuo normativo no contexto do Direito nacional. Istosignifica que a legislação brasileira sobre Engenharia Genética – Lei nº8.501, de 30 de novembro de 1992; Lei nº 8.974, de 5 de janeiro de1995 e Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, complementadas pordecretos, regulamentos e resoluções do Conselho Nacional de Saúde e doConselho Federal de Medicina, inclusive o Código de Ética Médica –dependerá para o seu aperfeiçoamento de uma análise e um amplo debate

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sobre os princípios e os direitos estabelecidos na Declaração Universal doGenoma Humano e dos Direitos Humanos. Fará parte integrante desseprocesso de aperfeiçoamento legislativo, o entendimento, tanto pelo legis-lador como pelo magistrado, de que existe uma complementaridade entrea Ética e o Direito.

A prática social se acha progressivamente modificada pelas novastecnologias, ocupando lugar de destaque nesse processo o papel da Ética,que obriga a revisão de conceitos da doutrina jurídica clássica e a con-seqüente revolução paradigmática na Teoria do Direito.

As questões suscitadas pela ciência biológica tornaram evidentesas relações necessárias que acontecem no seio de uma sociedade demo-crática e pluralista, entre os valores morais e o Biodireito. O campo deconhecimento aberto abrange uma vasta gama de possibilidades. Os pro-blemas suscitados não se referem somente à questão da vida e suas con-dições, mas também aqueles relativos ao fim da vida, que encontra nasdiversas legislações relativas à morte assistida e à eutanásia motivo desérias e inquietantes indagações morais. Essas interrogações se tornammatéria a ser julgada pelos tribunais e debatida pela sociedade civil, sendonecessário a utilização de critérios éticos comuns, vale dizer racionais,para a busca de soluções.

Nesse quadro, a identificação dos direitos do genoma humanocomo sendo uma forma de direitos humanos constituiu um progresso,pois forneceu conteúdos jurídicos a princípios éticos, e, por outro lado,assegurou também uma fundamentação moral para a ordem jurídica doBiodireito.

Essa relação de complementaridade, entretanto, somente poderá seefetivar na medida em que se utilize uma idéia como a do Direito cosmo-polita, considerado, não como uma forma sofisticada de direito das gentes,mas sim como um modelo jurídico que apresenta um conteúdo ético ori-ginal, característica que se encontrava implícita na concepção do seu pri-meiro formulador. Os direitos humanos assim entendidos constituem aformalização desse Direito cosmopolita, primeira manifestação de uma lei-tura ética do Direito e do Estado. Verifica-se, então, como a aplicação daidéia do Direito cosmopolita permite que se recupere o sentido éticooriginal da ordem jurídica no pensamento kantiano. A idéia do Direito

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cosmopolita serve, portanto, de categoria racional para que se possa realizarum enxerto propriamente ético nos direitos humanos. O desafio da Éticano campo das ciências e tecnologias biológicas representou, em últimaanálise, um momento privilegiado, no qual a hipótese da complementaridadeentre a Ética e o Direito pôde ser testada e provada pela explicitação dosprincípios bioéticos sob a forma de direitos humanos.

3.2.2 Ética, Moral e DireitoJosé Roberto Goldim36

É extremamente importante saber diferenciar a Ética da Moral edo Direito. Estas três áreas de conhecimento se distinguem, porém têmgrandes vínculos e até mesmo sobreposições. Tanto a Moral como oDireito se baseiam em regras que visam a estabelecer uma certaprevisibilidade para as ações humanas. Ambas, porém, se diferenciam.

A Moral estabelece regras que são assumidas pela pessoa comouma forma de garantir o seu bem-viver. A Moral independe das fronteirasgeográficas e garante uma identidade entre pessoas que sequer se conhe-cem, mas utilizam este mesmo referencial moral comum.

O Direito busca estabelecer o regramento de uma sociedadedelimitada pelas fronteiras do Estado. As leis têm uma base territorial, elasvalem apenas para aquela área geográfica onde uma determinada popula-ção ou seus delegados vivem. O Direito Civil, que é referencial utilizadono Brasil, baseia-se na lei escrita. A Common Law, dos países anglo-saxões, baseia-se na jurisprudência. As sentenças dadas para cada caso emparticular podem servir de base para a argumentação de novos casos. ODireito Civil é mais estático e a Common Law mais dinâmica.

Alguns autores afirmam que o Direito é um sub-conjunto daMoral. Esta perspectiva pode gerar a conclusão de que toda a lei émoralmente aceitável. Inúmeras situações demonstram a existência deconflitos entre a Moral e o Direito. A desobediência civil ocorre quando

36 Disponível em: <http://www.ufrgs.br/bioetica/bioetev.htm>.

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argumentos morais impedem que uma pessoa acate uma determinada lei.Este é um exemplo de que a Moral e o Direito, apesar de se referirema uma mesma sociedade, podem ter perspectivas discordantes.

A Ética é o estudo geral do que é bom ou mau. Um dos objetivosda Ética é a busca de justificativas para as regras propostas pela Moral epelo Direito. Ela é diferente de ambos – Moral e Direito –, pois nãoestabelece regras. Esta reflexão sobre a ação humana é que a caracteriza.

3.2.3 A evolução da definição de Bioética na visão de Van RensselaerPotter – 1970 a 1998José Roberto Goldim37

A melhor maneira de entender o que é Bioética talvez seja acom-panhar a evolução de sua definição ao longo do tempo. O Professor VanRensselaer Potter propôs, em 1998, que a Bioética está atualmente no seuterceiro estágio de desenvolvimento. Caracterizou o primeiro estágio comosendo o da Bioética Ponte, o segundo como o da Bioética Global, e oterceiro e atual como o da Bioética Profunda.

A proposta original da palavra Bioética feita pelo Professor VanRensselaer Potter, em 1970, tinha uma grande preocupação com a interaçãodo problema ambiental às questões de Saúde. Suas idéias se baseavam naspropostas do Professor Aldo Leopold, especialmente na sua Ética da Terra.Atualmente, esta primeira proposta é classificada por ele próprio comoBioética Ponte, especialmente pela característica interdisciplinar que foiutilizada como base de suas idéias. Esta primeira reflexão incluía umgrande questionamento sobre a repercussão da visão de progresso existen-te na década de 1960. O termo Bioética, ainda durante a década de 1970,devido à crescente repercussão dos avanços na área da Saúde, foi sendoutilizado em um sentido mais estrito. Estas propostas foram feitas espe-cialmente pelo Professor Warren Reich e pelo Professor LeRoy Walters,ambos vinculados ao Instituto Kennedy de Ética, da Universidade

37 Disponível em: <http://www.ufrgs.br/bioetica/bioetev.htm>.

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Georgetown/Washington DC, e pelo Professor David Roy, do Canadá.Estes autores restringiram esta reflexão apenas às questões de assistênciae pesquisa em Saúde.

Outros autores, como o Professor Guy Durant, do Canadá, tam-bém assumiram esta posição ao longo da década de 1980, mantendo abase interdisciplinar da proposta original. Esta visão restritiva foi incor-porada pela base de dados Bioethicsline, que consolida a produção deconhecimento na área de Bioética. O Professor Warren Reich reiterou,em 1995, sua perspectiva para o termo, incorporando a sua proposta deBioética as perspectivas interdisciplinar, pluralista e sistemática.

Em 1988, o Professor Potter reiterou as suas idéias iniciais,criando a Bioética Global. O Professor Potter entendia o termo globalcomo sendo uma proposta abrangente, que englobasse todos os aspectosrelativos ao viver, isto é, envolvia a saúde e a questão ecológica. OProfessor Tristran Engelhardt defendeu a proposta de que a Bioética é umaproposta pluralista. Esta proposta também teve diferentes interpretações.Alguns autores, como os Professores Alastair V. Campbel e Solly Benatar,entenderam o termo global não no sentido de abrangente, desde o pontode vista interdisciplinar, mas como uma visão uniforme e homogênea emtermos mundiais, enquadrando-a no processo de globalização. Ou seja,que seria estabelecido um único paradigma filosófico para o enfoque dasquestões morais na área da Saúde, caracterizando uma nova forma de“imperialismo”.

Com o objetivo de resgatar a sua reflexão original, o ProfessorPotter propôs, em 1998, a nova definição de Bioética Profunda. Estadenominação foi utilizada pela primeira vez pelo Professor Peter J.Whitehouse, aplicando à Bioética o conceito de Ecologia Profunda, dofilósofo norueguês Arne Naess. Esta proposta abrangente e humanizadorada Bioética já vinha sendo defendida por outros autores, tal como oProfessor André Comte-Sponville. Em 2001, o Programa Regional deBioética, vinculado à Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) defi-niu Bioética igualmente de forma ampla, incluindo a vida, a saúde e oambiente como área de reflexão.

O fundamental é notar como é importante para Potter manter naBioética as características fundamentais – ampla abrangência, pluralismo,

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interdisciplinaridade, abertura e incorporação crítica de novos conheci-mentos – em todas as suas propostas de definições.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENATAR, S. Imperialism, research ethics and global health, J Med Ethics 1998;24(4):221-

222.

CAMPBEL, A. V. Bioética Global: sonho ou pesadelo? O Mundo da Saúde

1998;22(6):366-369.

POTTER, V. R. Palestra apresentada em vídeo no IV Congresso Mundial de Bioética.

Tóquio/Japão: 4 a 7 de novembro de 1998. Texto publicado em O Mundo da

Saúde 1998;22(6):370-374.

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3.2.4 BIOÉTICA NO BRASIL – INICIATIVAS INSTITUCIONAIS

Existe um despertar de grande sensibilidade em relação à Bioéticano país, gerando várias iniciativas individuais e institucionais, responsá-veis pela promoção de eventos, jornadas, seminários e congressos, capazesde envolver um número significativo de pessoas interessadas no tema – namaioria das vezes, da área de Saúde. Conheça, neste relação atualizada apartir do levantamento realizado pelo teólogo Léo Pessini, o trabalho deCentros já consolidados na realidade brasileira, cujo entusiasmo pela Bioéticatem incentivado outros a seguirem o mesmo exemplo.

• Sociedade Brasileira de Bioética (SBB)• Comissão de Bioética do Hospital das Clínicas – FMUSP• Conselho Federal de Medicina (CFM)• Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep)• Instituto Oscar Freire – Faculdade de Medicina da Univer-

sidade de São Paulo (FMUSP)• Núcleo Interinstitucional de Bioética – Universidade Federal

do Rio Grande do Sul• Núcleo de Estudos de Bioética da Pontifícia Universidade

Católica (PUC) – Porto Alegre (RS)• Cátedra Unesco de Bioética da Universidade de Brasília (UnB)

– Brasília (DF)• Centro Universitário São Camilo – São Paulo (SP)• Núcleo de Ética Aplicada e Bioética/ Escola Nacional de

Saúde Pública/ Fiocruz• Núcleo de Bioética da Universidade Estadual de Londrina

(UEL) – Paraná• Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero

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