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REDE NACIONAL DE TANATOLOGIA CURSO DE FORMAÇÃO EM TANATOLOGIA APOSTILA DE TEXTOS TANATOLOGIA GERAL APOSTILA DE TEXTOS TANATOLOGIA GERAL

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REDE NACIONAL DE TANATOLOGIA

CURSO DE FORMAÇÃO EM TANATOLOGIA

APOSTILA DE TEXTOS

TANATOLOGIA GERAL

APOSTILA DE TEXTOS

TANATOLOGIA GERAL

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SUMÁRIO

1. DESENVOLVIMENTO DA TANATOLOGIA ............................ 03 KOVACS, M. J. Educação para a Morte- Temas e reflexões. São Paulo, Casa do Psicólogo,

2003.

2. A MORTE ENQUANTO PENSAMENTO ..................................... 14 KASTENBAUM, R. AISENBERG, R. PSICOLOGIA DA MORTE. São Paulo, Pioneira, 1983.

3. O TERROR DA MORTE ................................................................ 20 BECKER, E. A negação da morte. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1976.

4. O INDIVÍDUO, A ESPÉCIE E A MORTE ..................................... 31 MORIN, E. O. O homem e a morte. Rio de Janeiro: Imago, 1970.

5. MORTE – VARIÁVEL RELEVANTE EM PSICOLOGIA .......... 36 FEIFEL H. in MAY, R. Psicologia Existencial, Rio de Janeiro, 1988.

6. REFLEXÕES SOBRE PSICANÁLISE E MORTE.......................45 CASSORLA, R. S. M. in KOVÁCS, M. J. (Org.) Morte e desenvolvimento humano. São Paulo,

Casa do Psicólogo, 1992.

7. MORTE - ADORDAGEM FENEMENOLÓGICA

EXISTENCIAL............................................................................. 62

ROTHSCHILD, D. CALAZANS, R, A. in KOVÁCS, M. J. (Org.) Morte e desenvolvimento

humano. São Paulo, Casa do Psicólogo, 1992.

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DESENVOLVIMENTO DA TANATOLOGIA

Área de Estudos Sobre a Morte

Kovács, M. J. Educação para a Morte- temas e reflexões

São Paulo, Casa do Psicólogo, 2003.

Parábola do grão de mostarda

Segundo esta história, a mulher está a lamentar-se incontrolavelmente pela

morte do seu amado filho, cujo cadáver leva em seus braços. Não parece

consciente de que a morte é um acontecimento terminal- pelo menos para esta

existência.

Na esperança de encontrar um antídoto para a “doença” do filho, que lhe

devolva os sentidos, ela se aproxima de Buda, afamado pelos miraculosos

poderes de cura. Buda lhe fornece um antídoto, porém não do tipo que ela

procurava.

Ele a instruiu para que vá de casa em casa por toda a cidade em busca de

alguns grãos de mostarda. As sementes de mostarda diz ele, fornecerão o

antídoto apropriado para a doença da criança (isto é a morte).

Porém ela só deve aceitar a semente de mostarda da casa onde nunca haja

morrido ninguém- nem pai, nem mãe, nem irmão ou irmã, nem um criado ou um

animal. Após procurar de casa em casa, ela descobre que nem uma só casa

pode ser achada que jamais haja experimentado a morte de um de seus

membros.

Em tempo enxergou a verdade, que é a panacéia para a morte e a tristeza: que

a morte é o destino inevitável de todas as criaturas e que dada a sua

inevitabilidade, ela não tinha motivo para lamentações. Aliviada das angústias

da falsa esperança e das dores desnecessárias, dirigiu-se imediatamente ao

local onde faz para cremar o cadáver do filho. (In Kübler- Ross, 1975)

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Muitos autores nomeiam a área de estudos sobre a morte como tanatologia;

embora não goste muito do termo, vou aqui utilizá-lo para falar dos primórdios e do

estado atual deste campo de estudos.

Neste capítulo traçarei um histórico dessa área apresentando o seu

desenvolvimento, tanto como corpo de conhecimento quanto na sua faceta mais prática,

que envolve o cuidado de pacientes no fim da vida, os processos de luto antes e depois

da morte, e temas como suicídio, comportamentos autodestrutivos, eutanásia e suicídio

assistido.

UM POUCO DE HISTÓRIA

Um dos grandes pioneiros na área da tanatologia foi William Osler (1849-1919), médico muito conhecido no seu tempo. Golden (1997-1998) retoma pontos

fundamentais do seu trabalho como, por exemplo, o estudo pioneiro em tanatologia ―A

study of Death‖, publicado em 1904, no qual apresenta uma discussão sobre os aspectos

físicos e psicológicos da morte. Osler era um humanista e o objetivo principal de seu

trabalho foi amenizar o sofrimento de pessoas no fim da vida, envolvendo questões

como suicídio, luto, eutanásia - temas muito avançados para a época. Osler nasceu no

Canadá e se formou em medicina, trabalhando no Hospital Jonh Hopkins, instituição de

referência em educação médica.

A morte era uma área importante de trabalho para ele que, além de estudar

patologia, tinha uma grande preocupação no cuidado com as pessoas. São apresentados

casos em que acompanhava crianças até a morte, deixando rosas nos seus leitos,

enfatizando a importância da empatia e compreensão do processo do fim da vida. A

perda de um filho, certamente, teve grande influência na sua maneira de lidar com a

questão. Tinha uma coleção de livros, com diversos temas ligados à morte, que está no

acervo da biblioteca Osler, na Universidade Mc Gill em Quebec.

Osler propunha que nenhuma morte deveria ser dolorosa, e que poderia ocorrer

na inocência, como os nascimentos. Defendia a utilização de drogas para facilitar o

processo, não só para o alívio da dor, e já fazia o uso da morfina, que denominava de

medicação divina. Advogava que as pessoas deveriam morrer dignamente, sem

sofrimento, sem intervenções desnecessárias, podendo se perceber aí as raízes do

movimento dos cuidados paliativos.

Sobre a questão do suicídio, embora manifestasse ambivalência, parece ter tido

certa simpatia pela causa, pois buscava compreender os motivos antes de condenar e,

em alguns casos, até demonstrava aprovação.

Entre as primeiras obras que abordam o tema da morte, segundo Kastenbaum &

Costa. (1977), encontra-se a de Fechner com o livro BOOK LITTLE OF LIFE AFTER DEATH

de 1836, o de William James sobre a imortalidade, e uma pesquisa conduzida por

Stanley Hall ( 1915) sobre o medo da morte, conhecida como tanatofobia.

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Maeterlink foi o primeiro a utilizar o termo ―tanatologia‖ para definir essa área

de estudos, e buscava compreender a questão dos "horrores" da morte, as torturas e as

memórias insuportáveis da dor. (Golden, 1997/1998).

Na sequência, e para apresentar o histórico sistematizado e as primeiras

avaliações sobre a questão da tanatologia, tomarei como base um estudo realizado por

colaboradores do periódico OMEGA JOURNAL OF DEATH AND DYING, especializado na

área da tanatologia, estudo esse concluído em 1987, a partir dos debates ocorridos no

Encontro da ―ASSOCIATION FOR DEATH EDUCATION‖ realizado na Suécia em 1982.

Embora este material tenha sido elaborado há 14 anos, ainda mantém grande

atualidade. Procurarei complementar com questões que possam ter surgido como

relevantes nos últimos tempos, incluindo a experiência brasileira que, ainda no seu

início, tem apresentado pesquisas importantes.

Entre os grandes clássicos da tanatologia, encontra-se, também, a obra de Freud

(1917), LUTO E MELANCOLIA, em que trata diferenciação entre tristeza pela perda de

pessoa significativa e a melancolia, onde a perda é de si próprio. Outra obra clássica o

autor, e que ainda hoje é fruto de estudo e discussão é ALÉM DO PRINCÍPIO DO PRAZER

(1920), em que apresenta a hipótese de existência de uma pulsão de morte. Além dessas,

Cassorla (1992, p.107) e Zaidhaft (1990, p.72-74) citam mais algumas obras de Freud

que também abordam o tema.

Outro clássico, este na área do suicídio, é de Durkheim, que no fim do século

XIX, sobre isso escreve um tratado sob a ótica sociológica, obra que ainda é

fundamentação para vários autores que se debruçam sobre o tema.

Mas o grande desenvolvimento da tanatologia se deu após as guerras mundiais,

mais particularmente com as obras de Feifel que, em 1959, escreveu o clássico ―THE

MEANING OF DEATH‖, indicador de um movimento de conscientização da presença da

morte no meio da mentalidade de interdição sobre o tema. O livro inclui textos sobre

filosifia, artes, religiosidade, sociologia, com artigos de Jung- ―THE SOUL AND DEATH‖;

Marcuse- “THE IDEOLOGY OF DEATH” e Tillich- “ THE ETERNAL NOW‖. Inclui, também,

capítulos de autores que foram pioneiros na área da tanatologia como Glaser& Strauss,

cuja obra principal é ―AWARENESS OF DYING‖, 1965, em que discutem sobre

consciência da morte em pacientes terminais. Schneidman& Farberow, que escreveram

sobre suicídio na coletânea do livro Feifel, produziram também uma das obras iniciais

sobre a sua prevenção: CLUES TO SUICIDE, 1957.

Kastenbaum com Aisenberg, escreveu o livro PSYCHOLOGY OF DEATH no ano de

1976, sendo esta uma das primeiras obras traduzidas e introduzidas em nosso meio; com

o título ―OMEGA- JOURNALOF DEATH AND DYING‖, também referência para os estudiosos

da área.

Bluebond-lagner ( 1987-1988) importante pesquisadora do tema da morte para

crianças, mais particularmente do luto infantil, foi convidada a apresentar as principais

questões sobre o assunto. A autora refere que há 30 anos são realizadas pesquisas sobre

o tema da morte, mas, questiona sobre que contribuição ofereceu para o

desenvolvimento da área.

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Afirma que muitas delas tratavam de variáveis específicas, com preocupação

muito grande em defini-las operacionalmente, sem contribuir para uma reflexão que

pudesse ser impulsionadora. Segundo ela, na década de 1960 houve grandes mudanças,

como atestam os trabalhos de Kübler-Ross e Saunders, que revolucionaram o trabalho

com pacientes em estágio terminal da doença, trazendo o tema da morte a público,

desafiando uma mentalidade que propunha a morte como tema interdito como apontou

nos capítulos 1 e 2.

Nas décadas de 1970 e 1980 ocorreu a consolidação da área, mas também certa

estagnação. A exigência de rigor metodológico foi levada a extremos provocando um

estreitamento da criatividade. Observa-se certo conservadorismo, uma necessidade de

comprovação de tudo o que se dizia e muitos estudos foram replicados com forte

tendência à quantificação.

Esta repetição como pode observar, se apresenta nos inúmeros artigos

envolvendo criação e padronização de escalas para medir ansiedade frente à morte. Esta

tendência acabou por restringir uma área tão ampla e complexa como a tanatologia,

podendo, segundo as palavras de Kastenbaum& Thuell ( 1995) nos afastar do tema, de

suas dimensões mais profundas. Uma hipótese é de que talvez possa estar se operando

um mecanismo de defesa, que não nos deixa entrar em contato com temas que lidem

com a subjetividade do ser humano diante da morte, diante da sua extinção. Questionam

por que os clínicos não leem o que os pesquisadores escrevem, e sugerem que, talvez,

não o façam porque não respondem às suas questões principais. Clínicos e acadêmicos

deveriam trabalhar juntos, afirmam os autores.

Na mesma obra, esses investigadores apresentam um estudo sobre o livro A

MORTE DE IVAN ILLITCH, de Tolstoi, envolvendo o tema da medicalização da morte e a

história de um casal de camponeses russos, os Tominshky, no qual se vê o cuidado ao

doente no lar. Ambas são histórias que ocorrem na Rússia. O fim da vida de Illitch foi

de frustração, distanciamento, dor, isolamento social e dúvidas sobre sua qualidade de

vida. Na história dos tominshky havia aproximação, amor, comunicação e encontro.

Falando destas duas realidades, os autores discutem os caminhos da tanatologia, e

apresentam as abordagens teóricas sobre a morte.

Uma das primeiras e mais importantes obras sobre o cuidado a pacientes

terminais é SOBRE A MORTE E O MORRER de Kübler Ross, em 1969, à qual nos referimos

com mais detalhes no capítulo 2. A autora é muito mais conhecida pelos estágios que

apresenta do que pela proposta de comunicação, o que, sem dúvida, é um grande

equívoco.

Kastenbaum & Thuell (1995) referem-se, também, a uma segunda teoria

importante nos cuidados a pacientes terminais, que são os contextos de consciência

relatados por Glaser & Strauss ( 1965), na obra ― AWARENSS OF DYING‖, já citada

anteriormente . Estes autores, clássicos da tanatologia ocidental, abordam a questão do

quanto o paciente sabe e percebe sobre sua doença. Realizaram seus estudos em

hospitais de São Francisco com pacientes internados, observando sua relação com a

equipe de saúde. Na chamada consciência fechada, o paciente não quer saber e o

profissional também não quer falar.

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Outro contexto é o do fingimento mútuo, no qual é importante não deixar que o

outro saiba aquilo que se sabe (paciente e equipe). Falaram, também, de trajetórias no

processo da morte: aquelas que são rápidas e inesperadas, e as que são prolongadas e/ou

esperadas.

Fulton & Owen (1987/1988) também fizeram um estudo que traça as trajetórias

sobre a compreensão da morte no século XX. Comparam as concepções de morte

daqueles que nasceram antes da segunda guerra às dos que nasceram depois, mostrando

quão drásticas foram as mudanças provocadas pelo lançamento da bomba atômica. Os

primeiros têm hoje mais de 70 anos; quando nasceram à expectativa de vida não

chegava aos 50 e muitos morriam de doenças infecciosas. Mais de 60% eram originários

da zona rural; as mortes ocorriam em casa e a ‖morte domada‖, como postulada por

Ariès, imperava.

Já os que nasceram depois da segunda guerra tinham uma perspectiva diferente:

a expectativa de vida era de aproximadamente 70 anos, muitos só viram a morte à

distância e já nasceram em maternidades; as doenças podem ser combatidas pelo avanço

da técnica médica e suas mortes se tornaram distantes, abstratas e invisíveis.

Há temas que emergem no fim do século XX, e que demandam aprofundamento,

entre os quais podemos citar: AIDS, desastres tecnológicos, guerras e terrorismo.

Pijawka, Cuthbertson & Olson (1987/1988) observam que há um aumento nos

desastres, não só os da natureza como, também, os tecnológicos. Citam, como exemplo,

o desastre nuclear de THREE MILLE ISLAND, cujos efeitos a curto e longo prazo deveriam

ser considerados, já que envolvem mortes concretas e perdas em várias esferas da vida.

Trazem também pontos importantes a serem considerados, como a percepção de riscos,

e como a mídia divulga os desastres. Os riscos tecnológicos são mais assustadores

porque não se entende o que está acontecendo, como se prevenir. A mídia pode trazer

distorções, transformando os personagens destas situações em vítimas e vilões, o que

atrapalha a fidedignidade das informações.

Outra área que tem demandado um olhar com mais profundidade relaciona-se

aos cuidados a pacientes no fim da vida, às suas necessidades, à estrutura de

atendimento envolvendo hospitais e outros recursos como ―hospices‖, unidades de

cuidados paliativos, Cuidado domiciliar. Essa área envolve temas polêmicos tais como

morrer com dignidade, eutanásia, suicídio assistido, os quais serão abordados com

maior profundidade em outra parte deste trabalho.

Schultz & Schlarb (1987/1988) apontam para a magnitude do problema, já que é

crescente o número de idosos doentes e pacientes em estágio avançado da doença. As

pesquisas na área de cuidados paliativos envolvem temas como: agravamento da

doença; sintomas múltiplos e incapacitantes; transmissão de más notícias;

enfrentamento da proximidade da morte; processo do luto antecipatório; luto dos

familiares, entre outros.

Os autores relatam que há poucas pesquisas na área, pela dificuldade de sua

condução. Um estudo importante foi realizado por Kastenbaum & Weisman (1968)

usando a ―autópsia psicológica‖ para a reconstrução das fases finais da vida, estudando

o contexto psicossocial da morte. Verificaram uma ampla gama de modos de lidar com

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a situação, relacionados à forma com a qual as pessoas enfrentaram outras crises em

suas vidas.

Outro estudo clássico na pesquisa com pacientes em estágio terminal da doença

é o de Hinton (1963), que verificou altos níveis de desespero e depressão em 55% dos

pacientes. Foram observados temas como: desligamento das preocupações sociais,

atendimento às próprias necessidades e os modos de enfrentamento desta situação.

As pesquisas com crianças gravemente enfermas demandam aprofundamento.

No começo acreditava-se que elas nada sabiam sobre a doença e possibilidade da morte.

Observou-se, então, que as crianças observavam o seu entorno, Buscando respostas às

suas dúvidas. Nesta área os primeiros trabalhos sobre o conhecimento da criança sobre a

morte são os de Nagy (1959). No Brasil são pioneiros os trabalhos de Torres, (1978,

1979, 1999).

Tanto nos estudos com crianças como com adultos, a abordagem qualitativa de

pesquisa traz dados importantes sobre os momentos vividos desde o diagnóstico,

durante o transcorrer da doença o tratamento, envolvendo os sentimentos relacionados

com a cura, recidiva, proximidade da morte, processo de hospitalização, modos de

enfrentamento, entre outros.

Em 1981 a Organização Nacional dos Hospices traçou as diretrizes para o

desenvolvimento de pesquisas na área de cuidados paliativos, envolvendo, em primeiro

lugar, a comparação destes com o atendimento oferecido em hospitais convencionais.

Posteriormente, as pesquisas passaram a envolver temas como morte com

dignidade, e as necessidades dos pacientes gravemente enfermos. As dificuldades de

pesquisa com a clientela foram arroladas, centradas no fato que os estudos quantitativos

podem trazer dados que não traduzem a realidade que pretende estudar. Já as pesquisas

qualitativas (com depoimentos, histórias de vida) podem oferecer melhor retrato da

realidade das pessoas vivendo a proximidade do fim, do que os escores das escalas de

qualidade de vida, que não traduzem a dimensão deste momento da existência. Pode ser

mais fidedigno perguntar ao próprio paciente se suas necessidades foram atendidas, ou

qual o significado que atribui à sua própria dor.

Outras questões importantes implicam em saber o que seria um bom programa

de cuidados paliativos. Como avaliar? Como ampliar os programas de cuidados

paliativos para atender a uma gama maior de pacientes, por exemplo idosos, com uma

série de sintomas incapacitantes, sendo os mais graves aqueles relacionados com

demenciação e esclerose?

Em duas pesquisas realizadas com pacientes com câncer avançado, na ―Unidade

de Tratamento da Dor e Cuidados Paliativos‖ do Hospital Amaral Carvalho, em Jaú

(Kovács, 1998, 2000), foram discutidas formas de avaliação de sua qualidade de vida e

a busca de melhor compreensão de suas necessidades. Estes estudos serão comentados,

com maior detalhamento, no relato de minha experiência.

Outra área importante de trabalho e de pesquisa é formação e preparação de

profissionais de saúde sobre como lidar com pacientes gravemente enfermos e seus

familiares. Benoliel (1987/ 1988), enfermeira e pesquisadora, trazem questões

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importantes para reflexão sobre o tema, a partir de várias pesquisas que estudaram como

profissionais lidam com a morte, sobre os índices de ansiedade, medo, e de que modo

enfrentam a situação. Entre as principais dificuldades enfrentadas estão: como falar com

o paciente sobre o agravamento da doença e a possibilidade de sua morte; como realizar

os procedimentos usuais em pacientes sem prognóstico de cura; sensação de

incompetência e os sentimentos envolvidos.

Um tema importante nos estudos sobre a morte e o morrer é do luto. Parkes

(1987/1988) grande autoridade neste tema, aponta as preocupações atuais nas pesquisas

envolvendo a área. Observa que, muitas vezes, a abordagem é supersimplificada e

repetitiva. Baseia seus comentários em trabalho realizado por Raphael que, em 1983,

analisou 400 artigos sobre o tema do luto.

No estudo dos conceitos básicos, verificou como o processo de luto afeta o

significado que se dá á vida, Já que nela provoca profundas transições. Outra área

importante de trabalho é o estudo dos efeitos das perdas no organismo, principalmente

no sistema imunológico. Dados epidemiológicos apontam que ocorrem muitas mortes

após a viuvez.

Inicialmente as manifestações do luto eram vistas como sintomas de doença

física, entre os quais: Insônia, anorexia, aumento no uso de álcool e drogas. Muitos

pacientes buscavam também ajuda psiquiátrica por causa de depressão reativa. Os

sintomas do luto podem ser, na maior parte das vezes, tratados com psicoterapia breve,

sendo os casos mais complicados encaminhados para processos mais longos.

O autor refere-se também ao desenvolvimento de pesquisas, incluindo diferenças

nas respostas do luto, envolvendo questões de gênero como, por exemplo, estudos que

verificam que mulheres que perdem seus filhos é o grupo mais vulnerável para o luto

complicado.

Foram realizados também estudos sobre diferenças culturais, manifestações

emocionais e a realização dos rituais. Parkes, por exemplo, publicou um livro muito

interessante, ―DEATH AND BEREAVEMENT ACROSS THE CULTURES‖ (1997), no qual

abordam os principais temas e rituais das culturas hindu, budista tibetana, judaica, cristã

e islamita.

São igualmente importantes os estudos envolvendo fases do desenvolvimento, e

os fatores de risco para o enluta mento complicado. Assim tem se tornado prioridade o

estudo do enlutamento, com pessoas idosas, e mais particularmente pela perda de filhos

adultos. Por razões múltiplas, o número de idosos tem aumentado de maneira

significativa, e alguns deles vivem situações de risco: muitos têm problemas

financeiros, estão solitários, tem doenças graves e que podem complicar com os

contínuos processos de luto- Constituindo o que Kastenbaum ( 1969) denominou de

―sobrecarga de luto‖.

O luto patológico ou, como se denomina atualmente, o luto complicado é uma

nova área de estudos, na qual ainda se observam controvérsias. Segundo Parkes (1998),

é muita onipotência se acreditar que há um padrão único de enfretamento das perdas,

sendo necessária uma cuidadosa avaliação em cada caso.

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A questão do luto complicado é um aspecto fundamental para se considerar

atualmente, embora os profissionais não estejam preparados para lidar com este

fenômeno. Rando (1992/1993) traz relevantes pontos para discussão deste assunto,

mostrando as consequências sérias quando não se cuida do luto complicado. Segundo a

autora é importante:

Identificar fatores de risco.

Delinear as tendências socioculturais e tecnológicas que possam exacerbar estas

tendências.

Observar o que é necessário ser trabalhado para se evitar um luto complicado.

Há dificuldades em identificar o que se considera como luto complicado, e uma

necessidade de revisão de alguns conceitos como luto patológico, desajustado, anormal,

disfuncional, desviante, entre outros. A nova tendência é falar em fatores complicadores

do luto. Esta abordagem é mais fidedigna porque não responsabiliza a pessoa por seu

sofrimento e complicações. Pode-se dizer que há circunstâncias da morte e do pós-

morten que podem complicar o processo de luto.

A forma de morte pode afetar a elaboração do luto, sendo o suicídio e acidentes

as mais graves, bem como as mortes de longa duração, com muito sofrimento, que são

bastante desgastantes. Outros fatores podem complicar este processo como, por

exemplo, a relação anterior com o falecido: a ambivalência e a dependência. Devem ser

considerados outros aspectos como problemas mentais anteriores e a percepção da falta

de apoio social.

De qualquer maneira, é importante salientar que as situações de luto complicado

podem se expressar em sintomas físicos e mentais. Segundo Rando (op. Cit.) ocorrem

distorções que afetam a expressão do luto, tais como o seu adiamento, inibição ou

cronificação do processo. Penso que estes itens são importantes de ser considerados

pelos profissionais que vão cuidar de pessoas enlutadas, não como um padrão a ser

jogado sobre elas, mas como sinais para serem observados, constituindo-se em base

importante para a sua formação e como questões relevantes de pesquisa.

Há fatores sociais que são responsáveis pelas dificuldades de elaboração do luto

nos dias atuais. O rápido índice de industrialização, urbanização e o avanço da

tecnologia levaram a uma desvalorização dos ritos funerários. A consequência disto é

que as pessoas, ao viverem a perda de pessoas significativas, se sentem sozinhas e sem

saber o que fazer, principalmente quando se encontram separadas de seus familiares, o

que é muito comum na atualidade. Por outro lado, nos centros urbanos, houve um

aumento significativo da violência, de acidentes, de abuso de drogas, e como resultado o

aumento das mortes violentas e traumáticas, que é um dos fatores de risco para luto

complicado.

Ponto a ser considerado é que a dilatação do tempo de vida, inclusive de doentes

crônicos, faz com que se viva muito tempo processos de morte podendo causar desgaste

físico e psíquico nos familiares que os acompanham, vendo a degeneração corporal, a

perda da pessoa que se conhecia e, principalmente, o sentido de uma grande solidão

(Hennezel, 2001), o que pode complicar o processo do luto posterior. Não é rara a

ocorrência de sentimentos ambivalentes; tristeza pela perda e raiva pelo abandono.

Todos estes fatores demandam aprofundamento em pesquisas.

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Outro aspecto importante e atual é o tema do luto não autorizado (Corr,

1998/1999), como o que ocorre quando de mortes por AIDS em que companheiros não

podem chorar a mútua perda, porque seus amigos e familiares não sabem sobre sua

relação. A sociedade também não reconhece como perda o aborto, já que a morte ocorre

antes que a vida seja reconhecida socialmente, o que sem dúvida é um grave engano,

pois há todo um investimento de amor numa gravidez com expectativa do nascimento

do filho - portanto, um processo de luto precisa ocorrer para elaboração da perda. Outro

luto não autorizado é o dos amantes. Esta é uma área que demanda pesquisas e estudos

por se tratar de tema muito relevante neste início de século.

Um dos grandes problemas apontados por Rando (1992/1993) é a falta de

preparo dos profissionais para lidar não só com o problema das pessoas enlutadas, mas

principalmente quando existem fatores complicadores, como os que mencionamos

acima. Há uma tendência para ―adequar‖ as pessoas, buscando-se uma normatização, o

que não permite que possam viver os seus próprios processos.

Em relação ao futuro, Parkes (1987/1988), aponta para o desenvolvimento de

instituições semelhantes ao Cruse, que trabalha com enlutados, envolvendo voluntários,

especialmente treinados para isso. Refere-se também a uma ampliação do programa dos

‖hospices”, garantindo-se a regionalização dos trabalhos atendendo às necessidades de

cada população. Cita o exemplo de Israel, onde foi criado um serviço de ajuda para as

viúvas e viúvos da guerra; e, na África, os serviços para o atendimento aos órfãos, estes

últimos desenvolvidos pelo autor. No Brasil devemos citar o trabalho do Lelu-

Laboratório de Estudos sobre o Luto, da Pontifícia Universidade Católica, a que farei

referência, com mais detalhes, ao falar da experiência brasileira.

Voltando aos aspectos históricos, um dos pontos fundamentais para o

desenvolvimento da tanatologia nos Estados Unidos foi a fundação da ADEC-

Association for Death Education and Counselling, em 1976. Stillion (1989), especialista

na área de suicídio, apresenta uma retrospectiva da fundação desta associação. Retoma

vários temas abordados pela tanatologia como: os estudos sobre a morte interdita, a

negação, os estudos sobre o luto, sobre o tratamento de pacientes terminais. A TV passa

a ser o principal educador das crianças com cenas de violência ou da morte reversível.

Foi assim que, na década de 1970, especialistas se reuniram e fundaram a ADEC com

os seguintes objetivos:

1. Oferecer oportunidades de interação entre os seus membros, estabelecer redes com

outros profissionais que lidam com o tema.

2. Promover encontros, workshops e material escrito para divulgar o assunto.

3. Incrementar a educação para a morte e aperfeiçoar formas de intervenção.

Realizaram-se vários encontros, conferências, mesas-redondas, workshop, vídeos, e

foram escritas recomendações para profissionais e estudantes, e esta associação passou a ser

responsável pelos certificados de especialização em tanatologia, oferecendo um catálogo com as

principais obras referentes ao tema, sempre atualizado. Em paralelo, criou-se uma força tarefa

para elaborar currículos sobre tanatologia. Além disso, foi efetuado, também, um levantamento

sobre a educação para a morte em pré-escolas, no ensino fundamental e médio, além das

universidades. A autora fala da preocupação em formar educadores habilitados para criar e

oferecer estes cursos com os mais variados temas - discorrerei mais sobre estes cursos na

sequência deste capítulo.

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O periódico Death Studies é o porta voz desta associação e, em conjunto com o Omega,

Journal of Death and Dying, procura traçar as linhas-mestras sobre reflexões, pesquisas e

práticas profissionais, envolvendo o tema da morte e a preparação de profissionais competentes.

Kenneth Doka (1990), um dos tanatologistas mais conhecidos nos Estados Unidos e editor da

revista Omega, fez uma relação de obras clássicas na área com seus comentários. Estes livros

oferecem possibilidades de ajudar as pessoas a lidarem com seus sentimentos diante das

perdas da vida, configurando o que denominou de biblioterapia.

O primeiro trabalho selecionado é o de Kübler- Ross, que já comentei no capítulo

dedicado à sua biografia. O autor indica também os livros que abordam o assunto do

enlutamento. Como a sociedade não permite que as pessoas expressem a sua dor, pode haver

uma intensificação do sofrimento e muitas não sabem se o que estão sentindo ― é normal‖,

imaginando que estão loucas, e que nunca mais conseguirão sair desta fase. Neste caso, os livros

podem ajudá-las porque, a partir dos relatos apresentados, podem encontrar semelhanças e se

identificarem com os processos vividos. Os textos apresentam os sentimentos vividos, as

dificuldades encontradas, e sugerem estratégias de enfrentamento. A biblioterapia pode ser um

importante auxiliar no processo de cuidados com pessoas vivendo situações de perda e morte,

mas a recomendação de livros para este fim deve ser feita com muito cuidado, pois alguns deles

podem ter fortes repercussões para uma dada pessoa, exacerbando os sentimentos, e serem

irrelevantes e não significativos para outra.

Entretanto, os livros não substituem o contato com outras pessoas e ajuda terapêutica,

quando necessário. Lépargneur (1987) indica, também, obras da literatura que trazem ensaios

importantes sobre o tema da morte. O autor traça um histórico de como as pessoas lidaram com

sua doença, inicialmente desprovida de sentido, e como esta pôde, gradativamente, ser

apropriada pelo próprio sujeito.

A obra de Lima Barreto Cemitério dos Vivos, traz, na voz do doente, o relato sobre sua

doença. Outro exemplo de livro com relatos vividos é o clássico de Tolstói, A Morte de Ivan

Illitch, já citado neste trabalho. A doença e a aproximação da morte podem trazer um novo

sentido para a vida, e entre as obras que ilustram esta possibilidade estão a Náusea de Sartre,

que descreve um mal interior. A doença também pode trazer certa satisfação, não na linha do

masoquismo e sim do prazer de se sentir cuidado; Simone de Beauvoir explora esta

possibilidade em Uma Morte Muito Suave.

Há obras que trazem a busca dos direitos de se ficar doente, e de uma qualidade de vida

na doença, encontrando-se uma nova identidade: a de ser doente. Entre as citadas pelo autor

encontra-se a de Soljenítsin, Pavilhão de Cancerosos, na qual é exposto um testemunho de

revolta contra o sistema de saúde vigente; como também o faz o personagem Hans Castorp em

Montanha Mágica, de Thomas Mann e o narrador do Em Procura do Tempo Perdido, de Marcel

Proust. Estes personagens não querem ser expropriados de sua doença, querem vivê-la, aprender

com ela, se expressarem. Muito se pode aprender com essas obras literárias pois, além de bem

escritas, trazem relatos muito verdadeiros sobre o universo psicológico das pessoas doentes e a

aproximação da morte.

DESENVOLVIMENTO DA TANATOLOGIA

NO BRASIL

A experiência pioneira em nosso meio foi de Wilma da Costa Torres (1997), que

apresenta as primeiras obras sobre a tanatologia no Brasil citando a de Othon Bastos

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Filho (1974), denominada Comportamento suicida em uma unidade psiquiátrica de um

hospital universitário (Faculdade de Medicina de Recife); a de Fábio Hermann, sobre o

Gesto Autodestrutivo (1976); a de Luíza Aparecida Costa na área de enfermagem:

Situações de Vida e Morte (1977) e, em 1978, a sua própria Investigação do conceito de

morte em crianças de diferentes níveis cognitivos. A autora cita, então, várias outras

dissertações e teses que se realizam após essa data, envolvendo aspectos mais teóricos,

com os temas: luto, suicídio, pacientes em estágio avançado da doença e a formação de

profissionais de saúde.

Wilma torres foi a primeira psicóloga brasileira que se dedicou à sistematização

da área da tanatologia no Brasil. Criou no ISOP, um acervo de dados bibliográficos

sobre o tema, dividido em várias subáreas, constituindo-se em referência importante

àqueles que necessitam informações sobre a uma área ainda embrionária em nosso

meio.

Em 1980 foi realizado o primeiro ―Seminário sobre Psicologia e a Morte‖,

coordenado por uma equipe de psicólogos de ISOP, na Fundação Getúlio Vargas, cujos

resultados foram reunidos no livro Psicologia e a morte, editado em 1983. Em 1984 foi

realizado em Minas Gerais o ―I Congresso Internacional de Tanatologia e Prevenção de

Suicídio‖, resultando em publicação, organizada por Evaldo D‘assumpção, ― Morte,

suicídio: uma abordagem multidisciplinar‖. Em 1987 ocorreu o ―Segundo Congresso de

Tanatologia e Prevenção de Suicídio‖, no Rio de Janeiro. Começam, então, a surgir

publicações sobre o tema - alguns dos clássicos, já mencionados, são traduzidos, e

surgem as publicações de autores brasileiros, entre os quais ela cita: Torres et all(1983),

Rodrigues( 1983), Cassorla ( 1984, 1991), D‘assumpção( 1984), Maranhão ( 1985),

Boemer ( 1986), Kovács ( 1992), Bromberg (1995), Gimenes (1997), Valle(1997) e

muitos outros.

A autora cita também a fundação da ABRATAN, Associação Brasileira de

Tanatologia na década de 1980. Entretanto, não há notícias se a associação continua a

existir, nem quais são as suas propostas atuais. Em 2003 foi criada a Rede Nacional de

Tanatologia coordenada por Aroldo Escudeiro em Fortaleza.

Em 1980, Wilma Torres cria o programa pioneiro de ―Estudos e Pesquisa em

Tanatologia‖ no ISOP/ Fundação Getúlio Vargas, com o intuito de realizar pesquisas na

área e publicar os relatórios das mesmas. É criado, também, um setor de documentação

e consultoria que chegou a reunir 2.000 fichas em 44 entradas. Em 1981 foi criado o

primeiro curso de pós-graduação lato sensu, de atualização em tanatologia, de caráter

multidisciplinar, oferecido primeiro no ISOP e, posteriormente, com o fechamento

deste, pela U.F.R.J.

Apresento, a seguir os objetivos desse curso: 1. Informativos: fornecer dados

sobre contribuições teóricas e empíricas em diversos setores da tanatologia. 2.

Formativos: Possibilitar a indagação e reflexão sobre os problemas da área e as

necessidades dos profissionais. Promover a troca de experiências e o confronto pessoal

com a morte.

É interessante notar como a proposta do curso inclui uma abordagem teórica e

possibilidade de reflexão e debates sobre vários temas. Outro ponto que é muito

importante neste curso é o seu caráter multidisciplinar. A seguir, os temas abordados:

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Significado humano, histórico, antropológico e social da morte.

Morte e educação.

Morte institucionalizada.

A psicologia do doente terminal.

Atualmente esta estudiosa se dedica à implementação de um ―Núcleo de Estudos

e Pesquisas em Tanatologia‖, nessa universidade, cujos objetivos principais são:

desenvolvimento de pesquisas de iniciação científica, aperfeiçoamento e pós-

graduação, implementação de ensino de tanatologia na graduação e na pós–graduação.

Em 1999, Wilma Torres lança o livro A Morte e a Criança. Desafios. Fruto de

sua tese de doutorado, orientada pelo Dr. Roosevelt Cassorla. Trata-se de uma obra de

referencia na temática envolvendo a criança e a sua compreensão da morte, tanto na

situação de luto quanto no adoecimento e aproximação da morte.

Outro trabalho pioneiro em nosso meio foi a criação do ―Laboratório dos

Estudos sobre o Luto‖ em 1996, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob

a coordenação de Maria Helena Pereira franco, especialista na área de luto, com várias

obras publicadas, como já apontado. O laboratório tem como objetivos principais:

Desenvolver pesquisas e treinamento profissional em questões relacionadas a perdas e

Luto e oferecer serviços de profilaxia, prevenção e tratamento a pessoas enlutadas.

Os seguintes serviços são oferecidos: profilaxia da adoção, psicoterapia

individual para crianças, adolescentes e adultos enlutados, psicoterapia para famílias

enlutadas, ação preventiva e terapêutica de queixas psicossomáticas relacionadas ao

luto. Foram promovidas várias jornadas sobre luto, uma delas contando com a presença

de Colin Murray Parkes, autor que fundamentou várias das propostas desenvolvidas

pelo laboratório. Mais recentemente, abriu um programa de aprimoramento para

profissionais na área do luto.

A minha experiência no Instituto de Psicologia da USP, as disciplinas oferecidas

em nível de graduação e pós- graduação, a criação do laboratório de Estudos sobre a

Morte serão desenvolvidos na segunda parte desta obra. Antes de fazer esta

apresentação gostaria ainda nesta primeira parte deste livro desenvolver o tema

―Bioética nas questões de vida e morte‖, no capítulo a seguir.

A MORTE ENQUANTO PENSAMENTO

KASTENBAUM, R. AISENBERG, R. PSICOLOGIA DA

MORTE. São Paulo, Pioneira, 1983.

M-O-R-T-E.

A sequência destas cinco letras é fixa e familiar. Supõe-se facilmente que o

significado deste vocábulo é também fixo (invariável) e familiar (bem conhecido

nosso). Além disso, é-se tentando a pressupor que a morte se refere a ―algo

efetivamente‖ (ou a ―nada mesmo‖) lá fora. Estas suposições não serão valorizadas no

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presente capítulo. Por enquanto, estamos pondo de lado muito do que sabemos ou

pensamos que sabemos sobre a ―morte real‖. Em seu lugar, procuraremos nos tornar

conscientes daquelas operações mentais por meio das quais desenvolvemos e utilizamos

conceitos de morte.

A lógica elementar a que recorremos aqui pode ser assim enunciada:

1. Com termos como ―morrer‖, ―morto‖ e ―morte‖ geralmente pretendemos nos

referir a fenômenos situados fora ou além de nossas mentes. Por exemplo, penso em

Sócrates como morto - mas o ponto importante é que Sócrates realmente está morto.

2. Nunca sabemos ―realmente‖ o que está lá fora. Nem mesmo sabemos

(ultrapassando a possibilidade de um contra-argumento plausível) se existe um lá fora.

Vivemos dentro de e por nossos processos psicológicos. A correspondência entre nossos

sentimentos e pensamentos pessoais e qualquer outra coisa no universo é uma questão

de conjectura, à semelhança do que tem sido durante séculos.

3. Sabemos que conceitos de morte têm uma forma particular de existência

acessível à análise e à compreensão. Sujeitam-se à investigação empírica controlada.

Conceitos de morte são conceitos. Podemos estudar o desenvolvimento e a estrutura dos

conceitos de morte no indivíduo. Podemos aprender como os conceitos de morte se

harmonizam com todo o conjunto de conceitos do indivíduo. Podemos tentar descobrir

relações entre os conceitos de morte e estados encobertos como ansiedade e resignação.

Podemos tentar descobrir relações com comportamentos abertos, como ações

arriscadas ou a compra de um seguro de ―vida‖. Podemos examinar culturas e

subculturas sob o ponto de vista do seu conceito de morte e de suas implicações para a

estrutura e a função sociais.

4. Este nível de análise é altamente relevante porque se situa claramente no

âmbito da psicologia. Em resumo, estamos tratando a morte em primeiro lugar como um

conceito.

ALGUMAS PROPOSIÇÕES GERAIS

Talvez devêssemos antecipar algumas de nossas conclusões. Assim, o leitor

poderá estar mais bem preparado para discutir ou concordar com o material a ser

apresentado.

1. O conceito de morte é sempre relativo. Enfatizamos sua relatividade em nível

de desenvolvimento, embora se pudesse enquadrá-la em outros planos de relatividade.

Nível de desenvolvimento não significa necessariamente idade cronológica do

indivíduo. É óbvio que a idade cronológica fornece pistas importantes para se conhecer

a maneira de pensar de uma pessoa. Estamos, porém, interessados no nível de

desenvolvimento em sentido estrutural, já familiar aos que conhecem os livros de Heinz

Werner (1), Jean Piaget (2), e alguns outros.

2. O conceito de morte é excessivamente complexo. Em alguns casos, é preciso

mais que uma ou duas proposições para expressar o conceito de morte.

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3. Conceitos de morte mudam. Esta proposição está implícita nas formuladas

anteriormente. Ao caracterizar o conceito de morte de uma pessoa em determinado

instante de tempo, não deveríamos supor que esta descrição do conceito continuará a ser

verdadeira indefinidamente.

4. O ―objetivo‖ do desenvolvimento, nos conceitos de morte, é obscuro,

ambíguo, ou ainda em evolução. Costuma-se traçar curvas de crescimento do ponto de

partida ao ápice. Para mencionar um dos exemplos mais claros, esperamos que a altura

de uma criança aumente até atingir seu ― objetivo‖, a altura adulta. Após um período de

relativa estabilidade durante a primeira e média maturidade, pode-se continuar traçando

a curva evolutiva em seu declínio.

Concepções de morte não podem ser expressas graficamente com o mesmo grau

de confiabilidade. Razões técnicas para esta limitação incluem dificuldades em avaliar

concepções de morte, e em estabelecer unidades quantitativas apropriadas pelas quais se

demonstre progresso ou ausência de progresso. Mas o problema crucial refere-se ao

conteúdo, não ao método; não sabemos exatamente o que constitui a concepção mais

amadurecida ou ideal de morte. Há opiniões, é claro (muitas vezes arrogando-se o status

de fatos indiscutíveis). Estas opiniões representam mais opiniões de valor que

conclusões inexoráveis derivadas de teoria sistemática ou de pesquisa.

5. Conceitos de morte são influenciados pelo contexto situacional. A maneira

desconceituar a morte em dado momento pode ser influenciada por muitos fatores da

situação. Há uma pessoa morrendo no quarto onde estamos? Um cadáver? A situação

contém uma ameaça possível à nossa vida? Estamos sós ou com amigos? É meio-dia em

pleno sol ou meia-noite em trevas? A situação pode seletivamente desentranhar um tipo

de cognição da morte entre os muitos que possuímos. Ou a situação pode até nos

estimular a desenvolver novas ou modificadas concepções de morte.

6. Conceitos de morte relacionam-se com o comportamento. Quase de imediato,

talvez, pensamos em um indivíduo que se empenha numa ação direta ou positivamente

com sua cognição de morte. Ele chega à conclusão, por exemplo, de que a morte é a

porta para a beatitude eterna. Segue-se o suicídio como comportamento relevante. Mas a

relação raramente, ou nunca, é simples assim.

Cognições de morte semelhantes podem levar a diferentes comportamentos, bem

como comportamentos semelhantes podem ser precedidos por diferentes sequências de

pensamentos. Outro indivíduo que pense na morte em termos de ―beatitude eterna‖

permanece vivo de modo a oferecer sua mensagem de esperança e conforto ao próximo.

Um terceiro indivíduo comete suicídio sem dar grande importância ao prospecto

de uma vida pós-morte; ele se concentra totalmente em sua necessidade de escapar de

uma tensão existencial insuportável. A concepção de morte pode influir no

comportamento de muitos modos complexos e remotos. Padrões de comportamento que

não parecem ter nada de especial a ver com a morte podem, todavia, ser influenciados

por essas cognições. Insônia, por exemplo, ou pânico em virtude da separação

temporária de um ser querido às vezes pode ter origem em preocupações com a morte.

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CONHECENDO E RELACIONANDO

É difícil, na prática, manter clara a distinção entre conceitos e atitudes. Neste

capítulo, concentramo-nos em modos de explicar e de interpretar a morte para nós

mesmos. Em um capítulo posterior, concentramo-nos nas atitudes e nas orientações para

a morte.

Exemplo: Perguntamos a uma criança com que se parece um bicho papão de

dentes pontudos, se é que existe um animal assim. Ela nos dá uma vívida descrição

verbal ou desenhada. Transmite, com efeito, sua compreensão do animal. A seguir

perguntamos o que ela faria se visse um animal desses vir em sua direção na rua. Aqui,

ela tem oportunidade de expressar sua atitude ou orientação (―eu fugiria depressa!‖ ou ―

eu diria ‗vem cá, vem tomar um pouco de leite gostoso. Pode me levar a passeio,

montada em suas costas?‖)

Nossa relação total com qualquer objeto envolve nossos componentes de

conceitos e atitudes. O mero fato de sabermos, ou de pensar que sabemos algo sobre o

objeto, é suficiente para garantir alguma espécie de relação. Relacionamo-nos com o

objeto por meio de nossa atividade cognitiva. Da mesma forma, a existência de uma

orientação (por exemplo, abordagem ou aversão) presume algum componente cognitivo.

Pelo menos, efetuamos a operação mental de classificar o objeto como algo-a-ser-

evitado.

“VOCÊ ESTÁ MORTO”

De início, pelo menos duas formas de concepção da morte deveriam ser

distinguidas. A primeira delas é a morte-do-outro. Há razão para crer que a cognição

―você está morto‖ desenvolve-se mais rapidamente que a introvertida ―Eu morrerei‖.

Mais tarde, consideraremos os dois tipos de concepção da morte com maiores detalhes

do ponto de vista do desenvolvimento. Agora, estamos apenas interessados em esboçar

algumas de suas implicações.

―Você está morto‖ é uma proposição que pode ser assim considerada:

1. Você está ausente. Mas o que significa estar ausente? Devemos

apreciar o quadro de referência do observador. Para uma criança pequena, o

quadro de referência é sobretudo perceptivo. Ausência significa não aqui e

não agora. A criança ainda não está equipada para distinguir entre distância

espacial e temporal. Suponha que você está longe, em outra cidade. Para o

adulto, você tem existência espacial no momento presente. Mas sua ausência

é sentida pela criança (3). Você não se acha no espaço perceptivo dela neste

momento, por isso, você não existe. (Haverá uma emenda importante nesta

afirmação mais distante.)

2. Estou abandonado. Esta afirmação é quase a recíproca da

anterior. Seu desaparecimento do quadro de referência perceptivo tem efeito

sobre meu senso de segurança. Como pai ou como outra figura crucial, você

constitui um aspecto significativo do universo que a criança conhece. Como

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criança, eu estou apenas consciente de sua ausência, mas da presença de

sentimentos de desconforto dentro de mim.

3. Sua ausência, mais o meu senso de abandono, contribuem para o

senso geral de separação. Fui alienado de uma de minhas mais importantes

fontes de contato e apoio. Se esta separação é suficientemente crítica para

mim, então posso experimentar um senso penetrante de perder contato com o

ambiente, não apenas com você. Além disso, também posso ter a impressão

de ter sido violentamente arrebatado para longe de você. Este trauma poderia

intensificar o quadro já desolador de ausência e abandono.

4. A separação não tem limites. A criancinha não alcança o conceito

de futuro,

ou de tempo em geral, conforme a maioria dos adultos veio a

desenvolver estes conceitos. Ela não pode dizer a si mesma: ―mamãe foi-se

embora... mas voltará em cinco dias‖. Ela não pode distinguir entre

separações em curto prazo, em longo prazo, e final (irreversível). Uma vez

induzida à experiência de separação, ela não tem maneiras seguras de

planejar, avaliar ou antecipar sua conclusão. O que um estranho pode encarar

como uma separação breve (com base no relógio consensual ou no tempo do

calendário) talvez não se distinga, na mente da criança, de um prospecto de

separação prolongada.

5. O envolvimento infantil nos ritmos psicobiológicos recorrentes

complica seu relacionamento com a separação e a morte. A criança não é

uma participante completamente cônscia do mundo do tempo ―objetivo‖ que

se move, unidade após unidade padronizada, do passado, através do

presente, rumo ao futuro. Seu tempo começa cada manhã quando ela

desperta. Seu adormecer no meio do dia é um ―tempo suspenso ou ausente‖.

Ritmos externos de noite e dia e ritmos internos de fome-saciedade, sono-

ativação, etc., exercem forte influência sobre sua apreciação do tempo.

Como esta relação com o tempo afeta a concepção de morte-do-outro? Os quatro

pontos anteriores enfatizam, de vários modos, a vulnerabilidade da criança à separação.

Ela não pode, por exemplo, distinguir bem entre o prospecto de extensão moderada e de

longo prazo ou separação final. Devemos acrescentar agora um fator que talvez pareça

contraditório.

Considere estes dois pontos: a) a experiência infantil do tempo condiciona-se a

ritmos cíclicos, e b) a criança tende a experienciar sensação de ausência, abandono e

separação em situações nas quais os adultos argumentariam que ela não foi ―realmente‖

abandonada.

Vemos que o senso de separação ilimitada ou de uma experiência sem fim entra

em choque com a natureza periódica da experiência da criança. Torna-se um tanto

difícil expressar esta relação. Como criança que se sente abandonada, não tem meios de

estabelecer um limite futuro a partir de minha experiência presente. Com efeito, uma

das razões de minha grande aflição é que esta desagradável experiência não mostra

sinais de ser autolimitadora. Contudo, meu estado psicobiológico é sempre de transição.

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Estou ficando com fome ou com sono. E o ambiente onde estou inserido também

está em transição. O sol está ascendendo ou descendo no horizonte. Várias rotinas

periódicas nos lares estão sendo iniciadas ou completadas. Concretamente, como

criatura cíclica em ambiente cíclico, não é de se esperar que eu mantenha um constante

quadro de referência durante um prolongado período de tempo (medido pelo relógio ou

pelo calendário). Há términos e interrupções até em mais contínuos padrões de

pensamento e comportamento. Em outras palavras, a despeito de minha inabilidade para

colocar limites à experiência de separação, não tenho realmente uma experiência

contínua. Alterações periódicas em seu estado interior e em meu ambiente exterior me

distraem e me repousam. Mais adiante voltaremos a abordar a relação que propusemos

aqui.

Agora o que nos parece relevante é o elo entre periodicidade e vulnerabilidade

da criança às experiências de separação. Mais uma vez, como criança, posso ―interpretar

mal‖ a partida temporária de alguém, supondo-a uma separação consequente. Por este

mesmo indício, contudo, posso subestimar uma separação consequente - até mesmo a

morte de alguém. Meus padrões cíclicos de funcionamento me levam a antecipar que

todo fim tem um novo começo, assim como todo começo tem um fim. Você se ausentou

por um longo tempo (o tempo marcado pelo relógio ou, então, o tempo subjetivo) mas

não ―sei‖ quanto durou esse tempo.

Profundamente enraizada em mim encontra-se a expectativa de que se

completará o padrão familiar de separação-reunião. Este será outro ponto que

desejaremos ter em mente quando traçarmos a sequência completa do desenvolvimento

das concepções de morte. Por ora, afirmamos que a criança é vulnerável às implicações

de morte nas separações triviais, e mais protegida das implicações de morte nas

separações substanciais, do que poderia parecer do ponto de vista de um observador

adulto.

“EU MORREREI”

Esta afirmação pressupõe que o indivíduo desenvolveu uma razoável

constelação de conceitos abstratos. O conjunto que oferecemos a seguir não pretende

esgotá-la. A sentença ―eu morrerei‖ implica:

Eu sou um indivíduo com vida própria, uma existência pessoal.

Pertenço à classe de indivíduos dos quais um dos atributos é a

mortalidade.

Usando o processo intelectual da dedução lógica, chego à

conclusão de que minha morte é uma certeza.

Há muitas causas possíveis de minha morte e elas operam sob

muitas condições diferentes. Embora eu possa me esquivar ou

fugir de uma causa particular, não posso escapar de todas as

causas.

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Minha morte ocorrerá no futuro. Por futuro, entendo um tempo-

de-vida que ainda não transcorreu.

Mas não sei quando no futuro minha morte acontecerá. O evento

é certo; a hora, incerta.

A morte é um evento final. Minha vida termina. Isto significa que

nunca mais sentirei, pensarei ou agirei, pelo menos como um ser

humano nesta terra. Assim sendo, a morte é a derradeira

separação entre mim e o mundo.

―Eu morrerei‖ implica, assim, em autoconsciência, operações de pensamento

lógico, concepções de probabilidade, necessidade e causação, de tempo físico e pessoal,

de finalidade e separação. Também parece exigir o preenchimento de uma tremenda

lacuna: desde o que eu experimentei da vida até à formulação do conceito de morte. É

muito mais fácil desenvolver o conceito de um bicho-papão de dentes aguçados; tive

contato com muitos animais diferentes, de maneira que só preciso selecionar e combinar

atributos.

A morte, porém, é essencialmente uma não experiência. Nunca estive morto (o

estado); nunca experimentei a morte (o processo final da vida ao atingir sua última

parada). As próprias operações mentais que uso em meus esforços para sondar a morte

falsificam-na à medida que prosseguem. O próprio modus operandi da mente equipa-a

para interpretar a vida ou os processos vitais melhor do que o estranho vazio. Talvez eu

me permita em algumas ocasiões acreditar que realmente percebi ou formei um conceito

de morte. Mais próxima da verdade, entretanto, é a realização de que simplesmente

observei minha mente à medida que caminhava às pressas pelas trevas.

Ter visto uma pessoa, um animal ou uma planta mortos pode contribuir para

minha concepção de morte. Todavia, estas percepções não preenchem verdadeiramente

a lacuna. Percebe-se a morte somente de fora. Com que se parece o não sentir escapa-

me. Além disso, sob certas circunstâncias, posso interpretar mal minhas percepções,

encarando os vivos como mortos, ou vice-versa (capítulo 3). Experiências com os

mortos, contudo, é mais um daqueles tópicos que conservaremos em mente à medida

que procuraremos compreender o desenvolvimento das concepções de morte.

O TERROR DA MORTE

BECKER, E. A negação da morte. Rio de

Janeiro: Nova Fronteira, 1976.

“Será que não cabe a nós confessar que em nossa atitude

civilizada em relação à morte estamos, uma vez mais, vivendo

psicologicamente além de nossos recursos, e devemos nos

reformar e dar à verdade o valor que ela merece?

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Não seria melhor dar à morte o lugar na realidade em nossos

pensamentos que lhe pertence, e dar um pouco mais de destaque

àquela inconsciente atitude para com a morte que até aqui lemos

suprimido com tanto cuidado?

Isso nem parece, realmente, uma realização de maior vulto, mais

sim um passo atrás... mas tem o mérito de levar um tanto mais em

consideração a verdadeira situação(...)”. SIGMUND FREUD

A primeira coisa que temos de fazer com o heroísmo é pôr à mostra o seu

avesso, mostrar o que dá à atividade heroica humana a sua natureza e seu ímpeto

específicos. Apresentamos aqui, de imediato, uma das grandes redescobertas do

pensamento moderno: a de que, de todas as coisas que movem o homem, uma das

principais é o seu terror da morte.

Depois de Darwin, o problema da morte como problema evolucionário ficou em

destaque e muitos pensadores viram de imediato que se tratava de um grande problema

psicológico para o homem. Viram, também com muita rapidez, o que era o verdadeiro

heroísmo, como escreveu Shaler bem na virada do século:3 o heroísmo é, antes de

qualquer coisa, um reflexo do terror da morte. O que mais admiramos é a coragem de

enfrentar a morte; damos a esse valor a nossa mais alta e mais constante adoração; ele

nos toca fundo em nossos corações, porque temos dúvida sobre até que ponto nós

mesmos seríamos valentes.

Quando vemos um homem enfrentando bravamente a sua própria extinção,

ensaiamos a maior vitória que podemos imaginar. E assim, o herói tem sido o centro da

honra e da aclamação humanas desde, provavelmente, o início da evolução

especificamente humana. Mas, mesmo antes disso, nossos ancestrais primatas acatavam

aqueles que eram extra poderosos e corajosos e ignoravam os que fossem covardes. O

homem elevou a coragem animal ao nível de um culto.

A pesquisa antropológica e histórica também começou, no século XIX, a montar

um retrato do heroico desde as eras primitivas e antigas. O herói era o homem que podia

entrar no mundo espiritual, no mundo dos mortos, e voltar vivo. Tinha seus

descendentes nos cultos misteriosos do Mediterrâneo Oriental, que eram cultos de morte

e ressurreição. O herói divino de cada um desses cultos era alguém que tinha voltado

dos mortos. E como sabemos, hoje, com base na pesquisa de mitos e rituais antigos, o

próprio cristianismo era um concorrente dos cultos misteriosos e saiu vencedor — entre

outras razões — porque também tinha em destaque um homem que curava e tinha

poderes sobrenaturais, e que havia ressuscitado. O grande triunfo da Páscoa é o grito de

alegria "Cristo ressuscitou!", um eco da mesma alegria que os devotos de cultos

misteriosos representavam em suas cerimônias da vitória sobre a morte.

Esses cultos, como diz G. Stanley Hall com tanta propriedade, eram uma

tentativa de alcançar "um banho de imunidade" em relação ao maior dos males: a morte

e o terror dela. Todas as religiões históricas se dedicavam a este mesmo problema de

como suportar o fim da vida. Religiões como o hinduísmo e o budismo realizavam o

truque engenhoso de fingir não querer renascer, que é uma espécie de mágica negativa:

alegar que não quer aquilo que mais se quer5. Quando a filosofia assumiu o lugar da

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religião, também assumiu o problema central da religião, e a morte se tornou a

verdadeira ―musa da filosofia‖, desde seus primórdios na Grécia, até Heidegger e o

existencialismo moderno.

Já temos grande quantidade de trabalhos e pensamentos sobre o assunto, da

religião e da filosofia e — de Darwin para cá — da própria ciência. O problema é como

extrair disso alguma coisa que faça sentido; o acúmulo de pesquisas e opiniões sobre o

medo da morte já é demasiado para ser abordado e resumido com simplicidade. Só a

renovação do interesse pela morte, nas últimas décadas, já criou uma pilha enorme de

trabalhos, e esta literatura não aponta para uma direção única.

O Argumento da "Mente Sadia"

Há pessoas ―de mente sadia‖ que afirmam que o medo da morte não é uma coisa

natural para o homem, que não nascemos com ele. Um número crescente de estudos

cuidadosos sobre como o medo da morte; se desenvolve na criança7 está razoavelmente

de acordo em que na criança não tem conhecimento algum da morte até por volta dos

três a cinco anos de idade. E como poderia telo?

É uma ideia demasiado abstrata, demasiado afastada de sua experiência. A

criança vive em um mundo que está cheio de coisas vivas, que se mexem, respondendo

a ela, distraindo-a, alimentando-a. Ela não sabe o que significa a vida desaparecer para

sempre, nem teoriza para onde deveria ir. Só aos poucos reconhece que há uma coisa

chamada morte, que leva algumas pessoas embora para sempre; com muita relutância,

passa a admitir que mais cedo ou mais tarde ela levasse todo mundo embora, mas essa

percepção gradativa de inevitabilidade da morte pode vir a ocorrer só pelo nono ou

décimo ano de vida.

Embora a criança não tenha conhecimento de uma ideia abstrata como a negação

absoluta, tem suas ansiedades próprias. É absolutamente dependente da mãe, sente

solidão quando ela está ausente, frustração quando se vê privada de agrados, irritação

com a fome e a falta de conforto, e assim por diante. Se a criança fosse abandonada à

própria sorte, seu mundo iria despencar, e seu organismo deve perceber isso em

determinado nível; chamamos isso de ansiedade pela perda do objeto. Não será essa

ansiedade, então, um medo natural, orgânico, de aniquilamento? Ora, há muitos que

consideram isso como uma questão muito relativa.

Acreditam eles que, se a mãe tiver cumprido sua tarefa de maneira carinhosa,

que inspire confiança, as ansiedades e culpas naturais da criança irão desenvolver-se de

forma moderada, e a criança conseguirá colocá-las firmemente sob o controle de sua

personalidade em desenvolvimento. A criança que tiver boas experiências no contato

com a mãe irá adquirir um sentimento básico de segurança e não estará sujeita a temores

mórbidos de perder o apoio, de ser aniquilada, ou coisa semelhante9. À medida que ela

crescer e passar a compreender a morte de forma racional, por volta da idade de nove ou

dez anos, irá aceitá-la como parte da sua visão do mundo, mas essa ideia não irá

envenenar sua atitude autoconfiante para com a vida.

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O psiquiatra Rheingold diz categoricamente que a angústia de aniquilação não

faz parte da experiência natural da criança, mas é formada nela por experiências

adversas com uma mãe que lhe causou privações10. Essa teoria coloca todo o ônus da

ansiedade na educação da criança, e não na natureza da criança. Outro psiquiatra, numa

linha menos radical, vê o medo da morte muito aumentado pelas experiências da criança

com os pais, pela negação, por parte destes, de seus impulsos vitais e, de modo mais

geral, pelo antagonismo da sociedade à liberdade e à espontaneidade do homem.

Como iremos ver mais adiante, esse ponto de vista é muito popular, hoje, no

difundido movimento em favor da vida sem repressão, a ânsia de uma nova liberdade

para os impulsos biológicos naturais, uma nova atitude de valorização e prazer em

relação ao corpo, o abandono da vergonha, da culpa e do ódio a si mesmo. Segundo esse

ponto de vista, o medo da morte é algo que a sociedade cria e, ao mesmo tempo, usa

contra a pessoa para mantê-la submissa; o psiquiatra Moloney falava nele como um

"mecanismo da cultura", e Marcuse como uma "ideologia". Norman O. Brown, em um

livro muitíssimo influente que iremos comentar com algum detalhe, chegou mesmo a

dizer que poderia haver um nascimento e desenvolvimento da criança numa "segunda

inocência" que estaria livre do medo da morte porque não iria negar a vitalidade natural

e deixaria a criança inteiramente aberta à vida física.

É fácil perceber que, com base nesse ponto de vista, aqueles que tiverem

experiências adversas no início da vida serão os mais morbidamente fixados na

ansiedade da morte; e se, por acaso, quando crescerem, forem filósofos, é provável que

façam da ideia da morte uma máxima central de seu pensamento — como fez

Schopenhauer, que odiava a mãe e declarou ser a morte "a musa da filosofia". Se você

tem uma estrutura de caráter "amarga" ou teve experiências especialmente trágicas,

deverá vir a ser um pessimista.

Um psicólogo comentou comigo que toda a ideia do temor da morte era uma

importação dos existencialistas e dos teólogos protestantes que tinham ficado marcados

pelas suas experiências europeias e que levavam com eles o peso extra de herança

calvinista e luterana de negação da vida. Até o destacado psicólogo Gardner Murphy

parece pender para essa escola e insiste conosco para que estudemos a pessoa que

manifesta o temor da morte, que coloca a ansiedade no centro de seu pensamento; e

Murphy pergunta por que viver a vida no amor e na alegria também não pode ser

considerado real e básico.

O Argumento da "Mentalidade Mórbida"

O argumento da "mente sadia" que acabamos de examinar é um lado do quadro

das pesquisas e das opiniões acumuladas sobre o problema do temor da morte, mas há

outro lado. Um grande número de pessoas concordaria com essas observações sobre as

experiências vividas no início da vida e admitiria que as experiências pudessem

aumentar as ansiedades naturais e os temores que vêm mais tarde, mas essas pessoas

também iriam argumentar, com muita ênfase, que, apesar de tudo, o temor da morte é

natural e está presente em todos os indivíduos, que ele é o temor básico que influencia

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todos os outros, um temor ao qual ninguém está imune, por mais disfarçado que possa

estar.

William James falou muito cedo em defesa dessa escola e, com o seu pitoresco

realismo de sempre, chamou a morte de "o verme que estava no âmago" das pretensões

do homem à felicidade15. Um estudioso da natureza humana como Max Scheler, nada

mais nada menos, achava que todos os homens deveriam ter algum tipo de certa

intuição desse ―verme no âmago‖, quer admitissem, quer não.

Inúmeras outras autoridades — algumas das quais iremos citar nas páginas

seguintes — pertencem a essa escola: estudiosos da estatura de Freud, muitos de seu

círculo íntimo, e pesquisadores sérios que não são psicanalistas. Como podemos

entender uma discussão na qual existem dois campos distintos, ambos repletos de

eminentes autoridades? Jacques Choron chega mesmo a dizer que é discutível se alguma

vez será possível concluir se o medo da morte é ou não é a ansiedade básica17. Em

assuntos como este, então, o máximo que se pode fazer é apoiar um dos lados, dar uma

opinião baseada nos autores que lhe pareçam mais convincentes e apresentar alguns dos

argumentos convincentes.

Com toda franqueza, eu me coloco ao lado dessa segunda escola - na verdade,

todo este livro é uma rede de argumentos baseados na Universalidade do temor da

morte, o ―terror‖, como prefiro chamá-lo, a fim de transmitir o quanto ele é exaustivo

quando ficamos cara a cara com ele. O primeiro documento que desejo apresentar e

sobre o qual quero me alongar é um trabalho escrito pelo célebre psicanalista Gregory

Zilboorg; é um ensaio especialmente penetrante que — devido ao seu poder de síntese e

ao seu alcance – não recebeu acréscimos que o melhorassem, muito embora tenha

aparecido há várias décadas. Zilboorg diz que a maioria das pessoas pensa que o temor

da morte está ausente porque esse temor raramente mostra a sua verdadeira face; mas

sustenta que, por baixo de todas as aparências, o medo da morte está universalmente

presente:

Porque por trás da sensação de insegurança diante do perigo, por trás

do sentimento de desânimo e depressão, sempre se esconde o medo

básico da morte, um medo que sofre elaborações muitíssimo complexas e

se manifesta de muitas maneiras indiretas. (...) Ninguém está livre do

medo da morte. (...)As neuroses de angústia, os diferentes estados

fóbicos, até mesmo um número considerável de estados depressivos

suicidas e muitas esquizofrenias demonstram amplamente o sempre

presente medo da morte, que se entrelaça com os principais conflitos das

condições psicopatológicas dadas. (...) Podemos considerar como ponto

pacífico que o medo da morte sempre está presente em nosso

funcionamento mental.

Será que James não disse a mesma coisa antes, à sua maneira?

Que as otimistas mentalidades saudáveis aproveitem ao máximo o seu

estranho poder de viver o momento e ignorar e esquecer, mas ainda

assim o pano de fundo maligno está ali para ser lembrado, e a caveira

irá aparecer com um riso escarninho durante o banquete.

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A diferença entre essas duas opiniões está não tanto no uso das imagens e no

estilo quanto no fato de que a de Zilboorg é feita quase meio século depois e é baseada

em todo um trabalho clínico muito mais real não apenas na especulação filosófica ou na

intuição pessoal.

Mas ela continua a linha reta de desenvolvimento a partir de James e dos pós-

darwinianos que viam o medo da morte como um problema biológico e evolucionário.

Aqui, acho que ele pisam solo muito firme, e em especial gosto da maneira como ele

expõe o argumento. Zilboorg salienta que esse temor é, na verdade, uma expressão do

instinto de autopreservação, que funciona como um constante impulso de manter a vida

e dominar os perigos que ameaçam a vida:

Esse gasto constante de energia psicológica na tarefa de preservar a

vida seria impossível se o temor da morte não fosse tão constante. O

próprio termo “autopreservação” dá a entender um esforço contra

alguma força de desintegração; o aspecto afetivo disso é o temor, o

temor da morte.

Em outras palavras, o temor da morte deve estar presente por trás de todo o

nosso funcionamento normal, a fim de que o organismo possa estar armado em prol da

autopreservação. Mas o temor da morte não pode estar presente de forma constante no

funcionamento mental do indivíduo, caso contrário o organismo não poderia funcionar.

Zilboorg continua:

Se esse temor estivesse constantemente no plano consciente não teríamos

condições de funcionar normalmente. Ele deve ser reprimido de forma

adequada, para nos manter vivendo com um pouco de conforto que seja.

Sabemos muito bem que reprimir significa mais do que guardar e

esquecer o que foi guardado e o lugar onde o guardamos. Significa

também um esforço psicológico constante no sentido de manter a tampa

fechada e, no íntimo, nunca relaxar nossa vigilância.

E assim podemos compreender o que parece um paradoxo impossível: o sempre

presente da morte no funcionamento psicológico normal do nosso instinto de

autopreservação, bem como o nosso total esquecimento desse temor em nossa vida

consciente:

Portanto, em épocas normais andamos de um lado para outro sem

acreditar em nenhum momento na nossa morte, como se acreditássemos

plenamente em nossa imortalidade corpórea. Estamos preocupados em

dominar a morte. (...) Alguém dirá, é claro, que sabe que vai morrer um

dia, mas que não se importa. Está aproveitando bem a vida, e não pensa

na morte e não faz questão de se importar com ela — mas isso é uma

admissão puramente intelectual, verbal. O afeto do temor está reprimido.

O argumento da biologia e da evolução é básico e tem de ser levado a sério; não

vejo como pode ser deixado de fora em qualquer debate. Os animais, para

sobreviverem, têm tido de se proteger mediante reações de medo, em relação não

apenas a outros animais, mas à própria natureza. Tiveram que perceber a proporção

verdadeira das suas limitadas forças diante do mundo perigoso em que estavam imersos.

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A realidade e o medo andam juntos, naturalmente. Como o bebê humano se

encontra numa situação ainda mais exposta e desamparada, é tolice presumir que a

reação animal ao medo teria desaparecido numa espécie assim tão fraca e sensível. É

mais razoável pensar que essa reação de medo realmente foi ampliada, como pensavam

alguns dos primeiros darwinianos: os homens primitivos que mais tinham medo eram

aqueles que eram os mais realistas em relação à sua situação na natureza, e transmitiram

a seus descendentes um realismo que tinha um alto valor para a sobrevivência. O

resultado foi o surgimento do homem tal como o conhecemos: um animal hiperansioso

que inventa constantemente razões para a ansiedade, até mesmo quando não há ao

alguma.

O argumento da psicanálise é menos especulativo e deve ser levado ainda mais a

sério. Ela nos mostrou algo a respeito do mundo interior da criança em que nunca

havíamos pensado: ou seja, que ele é mais cheio de terror quanto mais à criança é

diferente dos outros animais. Poderíamos dizer que o medo é programado, nos animais

inferiores, por instintos que já vêm prontos; mas um animal que não tenha instintos não

tem medos programados. Os temores do homem são formados com base nas maneiras

pelas quais ele percebe o mundo.

Ora, o que é que há de peculiar com relação à percepção que a criança tem do

mundo? Em primeiro lugar, a extrema confusão das relações de causa e efeito; em

segundo, a extrema irrealidade quanto aos limites de seus próprios poderes. A criança

vive numa situação de extrema dependência; e quando suas necessidades são atendidas,

deve parecer-lhe que tem poderes mágicos, verdadeira onipotência. Se ela sente dor,

fome, ou desconforto, tudo o que tem a fazer é gritar, e será aliviada e acalentada por

sons suaves, carinhosos. Ela é um mágico e um telepata que só precisa balbuciar e

imaginar, e o mundo funciona segundo os seus desejos.

Agora, porém, a penalidade por essas percepções. Em um mundo mágico no

qual coisas fazem com que outras coisas aconteçam por um simples pensamento ou por

um olhar de insatisfação, tudo pode acontecer a qualquer pessoa. Quando a criança

sente frustrações inevitáveis e reais por parte dos pais, dirige a eles ódio e sentimentos

destrutivos; e não tem meios de saber que os sentimentos malévolos não podem ser

atendidos pela mesma mágica que atendeu a seus outros desejos. Os psicanalistas

acreditam que essa confusão é uma causa principal de culpa e desamparo na criança. No

seu muito bom ensaio, Wahl resumiu esse paradoxo:

...os processos de socialização, para todas as crianças, são dolorosos e

frustrantes e, por isso, nenhuma criança escapa de sentir desejos hostis e

morte em relação aos seus socializadores. Portanto, nenhuma delas,

escapa ao medo da morte pessoal, quer na forma direta, quer na forma

simbólica. A repressão é, em geral, (...) imediata e efetiva.

A criança é demasiado fraca para assumir a responsabilidade por todo esse

sentimento destrutivo, e não pode controlar a mágica execução de seus desejos. É isso

que entendemos por um ego imaturo, a criança não tem a capacidade segura de

organizar suas percepções e o seu relacionamento com o mundo; não sabe controlar a

própria atividade; não tem um comando seguro sobre os atos dos outros. Não tem,

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assim, controle verdadeiro algum sobre os mágicos causa e efeito que percebe, dentro

de si mesma ou do lado de fora, na natureza e em outras pessoas: seus desejos

destrutivos poderiam explodir, o mesmo acontecendo com os desejos de seus pais. As

forças da natureza são confusas externa e internamente; e para um ego fraco, este fato

exige quantidade de poder potencial exagerado e um terror maior. O resultado é que a

criança — pelo menos uma parte do tempo — vive com uma sensação íntima de caos à

qual os outros animais estão imunes.

Ironicamente, mesmo quando a criança percebe relações reais de causa e efeito,

estas tornam-se um fardo para ela porque ela exagera em sua generalização. Uma dessas

generalizações é o que os psicanalistas chamam de "princípio de talião". A criança

esmaga insetos, vê o gato comer um rato e fazê-lo desaparecer, se junta à família para

fazer um coelho de estimação desaparecer dentro deles, e assim por diante. Passa a

conhecer alguma coisa a respeito das relações de poder do mundo mas não sabe dar a

elas um valor relativo: os pais poderiam comê-la e fazê-la desaparecer, e da mesma

forma ela poderia comê-los, quando o pai tem um brilho ameaçador nos olhos enquanto

mata um rato a pauladas, a criança que observa também poderá esperar ser mortal a

pauladas — especialmente se estiver tendo maus pensamentos mágicos.

Não tenho a pretensão de fazer um retrato exato de processos que ainda não

estão claros para nós, ou dar a entender que todas as crianças vivem no mesmo mundo e

têm os mesmos problemas; e, também, eu não iria querer fazer com que o mundo da

criança parecesse mais apavorante do que na realidade é a maior parte do tempo; mas

acho importante mostrar as dolorosas contradições que devem estar presentes nele, ao

menos uma parte do tempo, e mostrar como esse mundo é realmente fantástico nos

primeiros anos de vida da criança.

Talvez então possamos compreender melhor o motivo pelo qual Zilboorg disse

que o temor da morte "sofre elaborações muitíssimo complexas e se manifesta de muitas

maneiras indiretas". Ou, como Wahl explicou com tanta perfeição, que a morte é um

símbolo complexo, e não uma coisa específica, perfeitamente definida, para a criança:

...o conceito de morte que a criança tem não é uma coisa única, mas sim

uma composição de paradoxos mutuamente contraditórios (...) a própria

morte não é apenas um estado, mas um símbolo complexo, cujo

significado irá variar de uma pessoa para outra e de uma cultura para

outra.

Poderíamos compreender, também, o motivo pelo qual as crianças têm seus

pesadelos recorrentes, suas fobias universais de insetos e de cachorros bravos. No seu

torturado mundo interior se entrelaçam símbolos complexos de muitas realidades

inadmissíveis — terror do mundo, o horror dos próprios desejos, o medo de vingança

por parte dos pais, o desaparecimento de coisas, a falta de controle do indivíduo sobre

qualquer coisa, na verdade.

É demasiado para qualquer animal suportar, mas a criança tem que suportar, e

por isso acorda gritando com uma regularidade quase pontual durante o período em que

seu ego fraco está no processo de consolidar as coisas.

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O "Desaparecimento" do Medo da Morte

No entanto, o espaço entre os pesadelos se torna cada vez maior, e algumas

crianças os têm mais do que outras: voltamos outra vez ao início de nossa

argumentação, àqueles que não acreditam que o medo da morte seja normal, que acham

que ele é um exagero neurótico que se alimenta de experiências desagradáveis do

passado. Caso contrário, dizem eles, como explicar que tantas pessoas — a imensa

maioria — parecem sobreviver à perturbação dos pesadelos da infância e levam uma

vida saudável, mais ou menos otimista, sem ser perturbadas pela morte?

Como disse Montaigne, o camponês tem uma profunda indiferença e paciência

em relação à morte e ao lado sinistro da vida; e se dizemos que isso se deve à sua

estupidez, então ―vamos aprender com a estupidez‖28. Hoje, quando sabemos mais do

que Montaigne, diríamos ―vamos todos aprender com a repressão‖...mas o moral teria o

mesmo peso: a repressão toma conta do símbolo complexo da morte, na maioria das

pessoas.

Mas o seu desaparecimento não significa que o medo nunca esteve presente. O

argumento daqueles que acreditam na universalidade do terror inato da morte baseia-se,

em sua maioria, naquilo que sabemos sobre o quanto a repressão é eficiente. É provável

que a discussão nunca possa ser decidida com clareza: se você alega que um conceito

não está presente porque está reprimido, você não pode perder; não é um jogo justo,

intelectualmente falando, porque você tem sempre o trunfo. Esse tipo de argumento faz

com que a psicanálise pareça não científica para muitas pessoas, pelo fato de seus

proponentes poderem alegar que alguém nega um de seus conceitos porque esse alguém

reprime a consciência da verdade daquele conceito.

Mas a repressão não é uma palavra mágica para se ganhar discussões: trata-se de

um fenômeno verdadeiro, e temos conseguido estudar muitos de seus funcionamentos.

Este estudo dá a ela legitimidade como conceito científico e faz dela um aliado mais ou

menos confiável de nossa argumentação. Em primeiro lugar, há um crescente número de

pesquisadores tentando chegar à consciência da morte negada pela repressão, que usa

testes psicológicos como a medição das reações galvânicas da pele; esse grupo declara,

com insistência, que por baixo do mais sereno exterior esconde-se a ansiedade

universal, o "verme no âmago".

Em segundo lugar, não há nada como os choques do mundo real para afrouxar as

repressões. Há pouco tempo, psiquiatras anunciaram um aumento das neuroses de

angústia em crianças em consequência dos tremores de terra ao sul da Califórnia. Para

aquelas crianças, a descoberta de que a vida inclui, na verdade, o perigo cataclísmico foi

demais para os seus sistemas de negação ainda imperfeitos — daí os manifestos surtos

de ansiedade. Com os adultos, vemos essa manifestação de ansiedade diante de

catástrofe iminente, onde ela toma a forma de pânico. Recentemente, várias pessoas

sofreram fraturas de membros e outros ferimentos por terem aberto à força a porta de

emergência do avião em que se encontravam, durante a decolagem, e pularam da asa

para o chão; o incidente foi provocado pela possível explosão de gases na descarga de

um motor do avião. E óbvio que, subjacentemente àqueles barulhos inofensivos, outras

coisas estavam ribombando no interior daquelas criaturas.

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Mas ainda mais importante é a forma de funcionar da repressão: não é

simplesmente uma força negativa se opondo às energias da vida; ela vive à custa das

energias da vida e as usa de forma criativa. Quero dizer que os temores são

naturalmente absorvidos pelo esforço organísmico expansivo. A natureza parece ter

embutido nos seres vivos uma mentalidade saudável inata; ela se expressa no auto

prazer, no prazer de estender qualidades do indivíduo ao mundo, na incorporação de

coisas existentes nesse mundo, e de se alimentar com as ilimitadas experiências desse

mundo. Isso corresponde a uma grande quantidade de experiência muito positiva, e

quando um organismo poderoso se move com essa experiência, ela causa satisfação.

Como disse certa vez Santayana: um leão deve sentir-se mais certo do que uma

gazela de que Deus está do seu lado. Ao nível mais elementar, o organismo funciona

ativamente contra a sua própria fragilidade, ao procurar expandir-se e perpetuar-se na

experiência viva; ao invés de encolher-se, ele se desloca em direção a mais vida. E

também faz uma coisa de cada vez, evitando distrações inúteis de uma atividade que

exija dedicação plena; dessa maneira, parece que o medo da morte pode ser

cuidadosamente ignorado ou realmente absorvido pelos processos de expansão da vida.

De vez em quando, parece que vemos um ser assim cheio de vitalidade ao nível

humano: estou pensando no retrato de Zorba, o Grego feito por Nikos Kazantzakis.

Zorba era o ideal de vitória incontestável da paixão de cada dia, que tudo absorve, a

vitória sobre a timidez e a morte, e que assim purificava outros na sua chama de

afirmação da vida. Mas o próprio Kazantzakis não era um Zorba — o que, em parte,

explica o motivo pelo qual a personagem de Zorba parecia um tanto falsa — tampouco

o é a maioria dos outros homens. Ainda assim, todo mundo goza de uma dose prática de

narcisismo básico, muito embora não seja o do leão.

A criança que é bem alimentada e amada desenvolve, como dissemos, um

sentido de onipotência mágica, um sentido de sua própria indestrutibilidade, um

sentimento de poder comprovado e de apoio seguro. Ela pode imaginar-se, lá no fundo,

eterna. Poderíamos dizer que a sua repressão da ideia da morte lhe é facilitada porque

ela, a criança, na sua vitalidade muito narcisista, está fortalecida contra tal ideia. Esse

tipo de caráter provavelmente ajudou Freud a dizer que o inconsciente não conhece a

morte.

Seja como for, sabemos que o narcisismo básico é aumentado quando as

experiências da infância do indivíduo tiverem sido seguramente apoiadoras da vida e

reforçarem afetuosamente o sentimento do eu, o sentimento de ser realmente especial,

verdadeiramente o Número Um na criação. O resultado é que algumas pessoas têm mais

daquilo que o psicanalista Leon J. Saul chamou com propriedade de "Sustentação

Interna". É um sentimento de confiança corporal em face da experiência que faz com

que a pessoa atravesse mais facilmente sérias crises da vida e até mesmo bruscas

mudanças de personalidade; ela quase parece substituir os instintos diretivos dos

animais inferiores. Não se pode deixar de tornar a pensar em Freud, que tinha mais

sustentação interna do que a maioria dos homens, graças à sua mãe e ao ambiente inicial

favorável; ele conheceu a confiança e a coragem que essa sustentação dava a um

homem, e enfrentou com coragem a vida e um câncer fatal, demonstrando um heroísmo

estoico. Uma vez mais, temos evidências de que o complexo símbolo do temor da morte

seria muito variável em sua intensidade; ele seria, como concluiu Wahl, "profundamente

dependente da natureza e das vicissitudes do processo evolutivo".

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Mas quero ter o cuidado de não dar um valor demasiado à vitalidade natural e à

sustentação interna. Como iremos ver no Capítulo Seis, até mesmo Freud, que era um

privilegiado nesse aspecto, sofreu a vida toda de fobias e da angústia da morte; e chegou

a perceber plenamente o mundo sob o aspecto do terror natural. Não creio que o

complexo símbolo da morte esteja ausente por algum momento, não importa o grau de

vitalidade e de sustentação interna que uma pessoa tenha. Ainda mais, se dizemos que

esses poderes tornam a repressão fácil e natural, estamos apenas contando a história pela

metade. Na verdade, eles obtêm o seu próprio poder da repressão.

Os psiquiatras afirmam que o temor da morte varia de intensidade dependendo

do processo evolutivo de cada pessoa; e acho que uma importante razão para essa

variabilidade é que, no processo de evolução, o temor sofre transformações. Se a criança

teve uma criação muito favorável, tanto mais essa criação favorece a ocultação do temor

da morte. Afinal, a repressão torna-se possível pela identificação natural da criança com

os poderes de seus pais. Se ela tiver sido bem cuidada, a identificação virá fácil e

solidamente, e o poderoso triunfo que os seus pais conquistam sobre a morte se torna

automaticamente dela também.

O que é mais natural, para banir os temores do indivíduo, do que viver à custa

de poderes delegados? E o que significa todo o período de crescimento, senão a

renúncia ao projeto de vida do indivíduo? Estarei falando sobre essas coisas durante

todo o livro, e não quero desenvolvê-las nesta abordagem introdutória. O que veremos é

que o homem molda para si mesmo um mundo governável: ele se lança à ação sem usar

de crítica, sem pensar.

Aceita a programação ditada pela sua cultura, que lhe diz para onde ele deva

olhar; não se apossa do mundo com uma única mordida, como faria um gigante, mas em

pequenos pedaços mastigáveis, como faz um castor. Usa todos os tipos de técnicas, que

chamamos de "defesa do caráter": aprende a não se expor, a não se destacar; aprende a

inserir-se no jogo dos poderes externos, tanto de pessoas concretas como de coisas e

ordens de sua cultura; o resultado é que ele passa a existir na imaginada infalibilidade

do mundo que o cerca. Ele não precisa ter medo quando seus pés estão fincados com

solidez e sua vida está mapeada em um labirinto pronto para ser usado. Tudo o que tem

a fazer é lançar-se à frente, em um estilo compulsivo de impetuosidade, aos "hábitos do

mundo" que a criança aprende e no qual vive mais tarde como uma espécie de penosa

equanimidade — a "estranha capacidade de viver o momento e ignorar e esquecer" —,

como disse James. Esta é a razão mais profunda pela qual o camponês de Montaigne só

vai ficar perturbado bem no final, quando o Anjo da Morte, que sempre esteve pousado

em seu ombro, estender as asas.

Ou então quando sofrer um choque prematuro que o deixe com uma percepção

muda, como os "Maridos" no belo filme de John Cassavetes com o mesmo título. Em

épocas assim, quando desponta aquela percepção que sempre foi eclipsada por alguma

atividade frenética disponível no momento, vemos a transmutação da repressão

redestilada, por assim dizer, e o medo da morte surge em pura essência. É por isso que

as pessoas têm surtos psicóticos quando a repressão já não funciona mais, quando a

descarga de tensões através da atividade já não é mais possível.

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Além disso, a mentalidade do camponês é muito menos romântica do que

Montaigne quer nos fazer crer. A serenidade do camponês está, em geral, imersa num

estilo de vida que tem elementos de verdadeira loucura, e por isso ela o protege: uma

subcorrente de ódio e amargura constantes expressos em rixas, provocações, brigas e

discussões em família, a mentalidade mesquinha, a auto reprovação, a superstição, o

obsessivo controle da vida diária por um autoritarismo rígido, e assim por diante. Como

diz o título de um recente ensaio de Joseph Lopreato: "O que é que você acha de ser um

camponês?‖

Vamos abordar, também, outra grande dimensão na qual o complexo símbolo da

morte é transmutado e superado pelo homem — a crença na imortalidade, a continuação

do nosso ser na eternidade. Por agora, podemos concluir que existem muitas maneiras

pelas quais a repressão atua para acalmar o angustiado animal humano, a fim de que ele

não precise ter o mínimo de angústia.

Acho que conciliamos nossas duas posições divergentes em relação ao temor da

morte. As posições "ambiental" e "inata" são, ambas, partes do mesmo quadro; elas se

fundem naturalmente uma na outra; tudo depende de que ângulo você aborda o quadro:

do lado dos disfarces e transmutações do temor da morte, ou do lado da aparente

ausência desse temor.

Admito, com uma sensação de constrangimento científico, que, qualquer que

seja o ângulo que você usar, não chegará ao autêntico temor da morte; e por isso

concordo, relutantemente, com Choron, dizendo que é provável que a discussão nunca

possa ser "vencida" de maneira clara. Apesar de tudo, surge algo muito importante:

existem diferentes imagens do homem que ele pode traçar e dentre as quais pode

escolher.

De um lado, vemos um animal humano que está parcialmente morto para o

mundo, que é mais "nobre" quando mostra certa desatenção para com seu destino,

quando se deixa levar vida afora; que é mais "livre" quando vive numa segura

dependência em relação aos poderes que o cercam, quando menor é o controle que tem

sobre si mesmo.

Do outro lado, temos uma imagem de um animal humano que é evidentemente

sensível em relação ao mundo, que não consegue descartá-lo, que é atirado de volta aos

seus próprios parcos poderes, e que parece muito pouco livre para se deslocar e agir,

com mínimo controle de si mesmo, e muitíssimo desprovido de dignidade. A imagem

que escolhermos para com ela nos identificarmos depende em grande parte de nós

mesmos. Vamos, então, explorar e ampliar mais essas imagens, para ver o que elas nos

revelam.

O INDIVÍDUO, A ESPÉCIE E A MORTE

MORIN, E. O. O homem e a morte.

Rio de Janeiro: Imago, 1970.

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A consciência humana da morte não supõe apenas a consciência daquilo que era

inconsciente no animal, e sim uma ruptura na relação individuo-espécie, uma promoção

da individualidade em relação à espécie, uma decadência da espécie em relação à

individualidade. E vamos mostrar que a vida animal implica muito menos a ignorância

da morte, como pretende um mau truísmo filosófico, que a adaptação à morte, isto é, a

adaptação à espécie.

Pois, para nós, esta claro que o animal, ao mesmo tempo em que ignora a morte,

"conhece" entretanto uma morte que seria a morte-agressão, a morte-perigo, a morte-

inimiga. Toda uma animalidade blindada, ajaezada, cheia de espinhos, ou provida de

palas galopantes, de asas loucamente rápidas, exprime sua obsessão de proteção no seio

da mata viva. A tal ponto que ela reage ao menor ruído exatamente como ao perigo de

morte, seja com a fuga, seja com a imobilização reflexa. A imobilização reflexa, que

afasta o perigo da morte imitando-a, numa espécie de refinamento e de astúcia de

autodefesa, traduz uma reação "inteligente" à morte.

Astúcia pela qual, às vezes, se deixa levar o animal predador que fareja o falso

cadáver e já não sente necessidade de atacar, reagindo assim também à morte. Ademais,

existe um ponto muito importante e obscuro, relativo ao comportamento de muitos

animais, e sobre o qual não conhecemos nenhum estudo. Será que eles se escondem

para morrer? Por quê? Qual é a significação dos cemitérios de elefantes, animais, por

outro lado, muito evoluídos? Se, de fato, certos animais têm um comportamento

característico, quando estão para morrer, este comportamento implica então um

"conhecimento" da morte. Mas que "conhecimento" é este?

Tais reações, tais comportamentos, tal "inteligência" da morte implicam, por

certo, o indivíduo, pois são manifestadas por indivíduos em relação a outros indivíduos,

mas constituem reações específicas. A astúcia da imobilização reflexa é uniforme para

todos os indivíduos de uma mesma espécie; o indivíduo age como "espécimen", e

manifesta em suas reações supracitadas, não uma inteligência individual, e sim uma

inteligência específica, ou seja, um instinto. O instinto, que é um sistema de

desenvolvimento e de vida, é também um formidável sistema de proteção contra o

perigo de morte. Noutras palavras, é a espécie que conhece a morte, não o indivíduo; só

ela a conhece a fundo.

Ainda mais a fundo porque a espécie só existe através da morte de seus

indivíduos; esta morte ""natural" é maquinada no próprio cerne dos organismos

individuais: seja com for, os indivíduos morrerão de velhice. E esta morte não é

fatalidade da vida em geral; como iremos mostrar na quarta parte deste livro, as células

vivas são potencialmente imortais, e os unicelulares só morrem por acidente. E a

maquinaria complexa das espécies evoluídas e sexuadas que traz consigo a morte.

De fato, a espécie se auto protege, ao fazer morrerem naturalmente seus

indivíduos; ela salvaguarda seu próprio rejuvenescimento e também se protege da

morte-agressão, da morte-perigo, graças a todo um sistema de instintos de proteção. Os

instintos de conservação individual são específicos, já que idênticos em todos os

membros de uma mesma espécie; possuem uma significação ainda mais totalmente

específica, por que se integram num vasto sistema de proteção da espécie inteira. No

interior da espécie reina um tabu absoluto de proteção: "Os lobos não se devoram entre

si." Quando os indivíduos de uma mesma espécie se atacam mutuamente, é somente em

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caso de luta sexual, quer dizer, de seleção em benefício da espécie, ou, em última

instância, da luta por um alimento insuficiente, o que ainda constitui seleção, ou então

ainda quando certos elementos já se tornaram inúteis para a procriação (zangões)...

E é porque a espécie, defendendo-se contra a morte, é "clarividente", que o

indivíduo animal é cego para a morte. Se o animal é cego para a ideia de sua morte,

evidentemente isto acontece porque ele não tem consciência, portanto não tem ideias.

Mas a simples ausência de consciência é a adaptação do indivíduo à espécie. A

consciência é apenas individual, e supõe uma ruptura entre a inteligência específica, isto

é, o instinto, e o indivíduo. Pois a individualidade animal existe. Quanto mais subimos

na escala animal, mais se afirmam entre os indivíduos de uma mesma espécie as

singularidades psicológicas e psíquicas. Muito mais: é impossível imaginar que os

saberes possuídos hoje pelo instinto não tenham sido primeiro saberes individuais, isto

sem querer suscitar as modalidades do problema da hereditariedade.

Mas, na vida das espécies animais, a individualidade continua integrada; ela

adere à vida bruta sem se separar dela; ou seja, ao mesmo tempo ao comando do instinto

e à sua participação específica no seio da natureza. Como dizia são Tomás, "limitado a

possuir o concreto sensível, o animal só pode tender a possuir o concreto sensível, isto

é, a conservar seu ser hic et mine".

Por outro lado, por mais desenvolvido que seja no animal o setor de invenção

individual, a inteligência específica permanece como a determinante essencial: somente

com a consciência de si é que aparece a afirmação de si, que contradiz então a

hierarquia da espécie e sua "unicidade".

Donde, realmente, na medida em que esta morte significa perda da

individualidade, uma cegueira animal à morte, que é uma cegueira à individualidade. A

cegueira à sua própria morte é a cegueira à sua própria individualidade, que, no entanto,

existe; a cegueira à morte alheia é a cegueira à individualidade alheia, que também

existe. Zuckermann, por exemplo, cita as constatações de Yerkes sobre uma fêmea de

babuíno que carrega durante três semanas seu filhinho morto, como se estivesse vivo,

enquanto o corpo se decompõe, se desmantela, até que, membro após membro, não

resista mais que um trapo que, enfim, a mãe abandona.

Por outro lado, alguns macacos se comportaram com cadáveres de gatos, ratos,

pássaros, como se estivessem vivos. Enfim, foram vistos machos que se introduziam em

suas fêmeas mortas ou montavam guarda sexual junto delas. E por isso que, em relação

aos próprios parentes mais próximos da humanidade, Zuckermann (p. 235) termina

concluindo que "os símios e os antropoides não reconhecem a morte, pois reagem diante

de seus companheiros mortos como se estivessem vivos, mas passivos". Basta-nos, para

corrigir esta definição, especificar que é a morte-perda-de individualidade que os

antropoides não reconhecem.

Entretanto, a cegueira animal à morte-perda-de-individualidade não é absoluta;

pode acontecer que animais superiores e particularmente animais domésticos sintam a

morte alheia com emoções dolorosas e violentas. O caso extremo é o do cão devotado

que morre com a morte do dono, sobre seu túmulo.

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Trata-se, na verdade, de casos complexos, que provocam explicações

heterogéneas. O pássaro afetado pelo desaparecimento de sua ninhada ou de seus ovos

não reage individualmente à perda da individualidade de sua progenitura, e sim

especificamente à perda da herança da espécie. Mas, por outro lado, a perturbação em

que a morte de um gato deixa seu "amigo cachorro" e talvez, como a morte de dois

irmãos siameses que são separados, a ruptura de uma simbiose afetiva unindo dois

seres, embora de espécies diferentes, talvez, a rigor, uma relação "de amor", isto é, de

apego a uma individualidade. Pode-se optar por esta dupla tese no caso do cão incapaz

de sobreviver ao dono.

Daí se poderia talvez inferir que a morte-perda-de-individualidade afeta o animal

quando a ordem de sua espécie foi perturbada, pela domesticação, por exemplo: a

domesticação liberta o animal da tirania vital, afasta-o de suas amigas atividades

específicas, "individualizai-o em certo sentido, e deixa-o disponível, em face do ser

supremamente individualizado: o homem.

Portanto, não há, se não ainda consciência, pelo menos sentimento e

traumatismo provocados pela morte perda- de-individualidade, a não ser quando a lei da

espécie é perturbada pela afirmação de uma individualidade. Estes casos excepcionais

nos trazem a prova contraria de que a morte só aparece quando há promoção da

individualidade em relação à espécie.

E de qualquer modo, caso esta promoção perturbadora se manifeste no animal,

ele não pode, por falta de "consciência de si", chegar à consciência da morte, e crescera

à crença na imortalidade. Nenhum uá... uá... fúnebre jamais significou "tu viverás no

outro mundo".

Portanto, não há somente ignorância animal da morte: há um duplo setor, um de

"clarividência", outro de cegueira, que o esquema que se limita a opor a consciência

humana à inconsciência animal, ou o que opõe abusivamente a individualidade humana

à ausência de individualidade de animal, não podem perceber, se esquecerem da relação

indivíduo-espécie. De fato, é a afirmação da espécie em relação ao indivíduo que

caracteriza o animal. Eis porque, na vida animal, a inteligência específica é "lúcida" em

face do perigo de morte, ao passo que o indivíduo fica cego diante de sua morte ou da

morte de outro.

Schopenhauer, nas páginas admiráveis onde mostra em que "derrisão" a espécie

mantém o indivíduo, sublinhou, romantizando-o, o sentido profundo da cegueira animal

à morte: "O animal, a bem dizer, vive sem conhecer a morte; deste modo, o indivíduo

do gênero animal goza imediatamente de toda a imutabilidade da espécie, só tendo

consciência de si como um ser sem fim. Acrescentemos que, se o indivíduo fica cego no

seio da espécie, já a espécie vê, sabe, e exatamente por isso, dura‖.

Portanto, por mais feroz e ciosa que possa parecer, a individualidade animal não

se opõe à espécie, e sim a confirma. A espécie está nela. Em termos hegelianos, dir-se-

ia que esta individualidade ilustra a universalidade desta espécie, vivendo plenamente

como espécimen, justamente, depois se retirando do jogo, negando-se como

particularidade.

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Ela é seu triunfo do presente quando se atira cheia de vida na natureza, e seu

triunfo do futuro quando se retira desgastada, para dar lugar às novas gerações. A

individualidade animal não tem sentido em si mesma. E a lei da espécie que se defende

da morte não é perturbada pela morte dos indivíduos, ao contrário, vive dela, e

exatamente para se defender da morte.

Logo, o setor animal de clarividência diante da morte, assim como seu setor de

cegueira, têm a mesma significação de adaptação da individualidade à espécie. O anjo e

o animal. Em compensação, como já vimos, é a individualidade humana, que se mostra

lúcida diante de sua morte, que fica traumaticamente afetada por ela, que tenta negá-la,

elaborando o mito da imortalidade. E esta lucidez não é a tomada de consciência do

saber específico, mas um saber propriamente individual: uma apropriação da

consciência. A consciência da morte não é algo inato, e sim produto de uma consciência

que capta o real. E só "por experiência", como diz Voltaire, que o homem sabe que há

de morrer. A morte humana é um conhecimento do indivíduo.

Portanto, é porque seu saber da morte é exterior, aprendido, não inato, que o

homem é sempre surpreendido pela morte- Freud mostrou este fato: "Sempre insistimos

no caráter ocasional da morte: acidentes, doenças, infecções, grande velhice, revelando

assim claramente nossa tendência a despojar a morte de qualquer caráter de

necessidade, a fazer dela um fato puramente acidental." Mas o importante não é tanto a

tendência a despojar a morte de seu caráter de necessidade: é antes o assombro sempre

novo provocado pela consciência da inelutabilidade da morte. Todos já puderam

constatar, como Goethe, que a morte de um ser próximo é sempre "incrível e

paradoxal", "uma impossibilidade que de repente se transforma em realidade"

(Eckermann); e esta aparece como um acidente, um castigo, um erro, uma irrealidade. E

esta reação ao "incrível" da morte que se traduz através dos signos arcaicos onde esta é

explicada como um malefício ou uma feitiçaria.

Portanto, naturalmente cego paia a morte, o homem é obrigado a reaprendê-la o

tempo todo. O traumatismo da morte é exatamente a irrupção da morte real, da

consciência da morte em meio a esta cegueira. E não se deve confundir esta cegueira

com a afirmação da imortalidade, que implica sempre a consciência da morte. Neste

domínio, a terminologia de Freud se presta a confusão: A escola psicanalítica teve

oportunidade de declarar", disse ele, "que no fundo ninguém acredita em sua própria

morte, ou, o que dá no mesmo, em seu inconsciente, cada um está persuadido de sua

própria imortalidade."

De modo algum dá no mesmo não ser capaz de conceber sua morte e se crer

imortal. A "imortalidade" à qual Freud faz alusão não é a mesma imortalidade das

crenças na vida futura, que, cabe repetir, implicam o reconhecimento da morte. E uma

"amortalidade" anterior a este reconhecimento, anterior ao indivíduo acrescentaríamos.

O inconsciente é um conteúdo: neste conteúdo se misturam a cegueira animal à morte e

o desejo humano da imortalidade. E verdade que este conteúdo animal ou biológico de

amortalidade serve de suporte à afirmação de imortalidade sobrevivência. Mas aí ele se

encontra transformado pelo individuo, confiscado à espécie, verdadeiro furto do soma

que se aposse dos atributos do filo; ou melhor, trata-se de uma vontade revolucionária

de apropriação da imortalidade da espécie pelo individuo. Assim, quando o homem

banca anjo imortal, não banca o animal; ele banca anjo para não bancar animal. No

máximo, em sua recusa enganadora da morte, ele bancará imbecil.

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Nem por isto a cegueira animal à morte está eliminada no indivíduo. As

observações de Freud atravessam verticalmente todos os comportamentos cegos à

morte. Na verdade, embora conhecendo a morte, embora "traumatizados" pela morte,

embora privados de nossos mortos amados, embora certos de nossa morte, vivemos

também cegos à morte, como se nossos parentes, nossos amigos e nós próprios não

fôssemos jamais morrer. O fato de se aderir à atividade vital elimina qualquer

pensamento de morte, e a vida humana comporta uma parte enorme de despreocupação

com a morte; muitas vezes a morte está ausente do campo da consciência, que, aderindo

ao presente, reprime o que não é o presente, e neste plano o homem é evidentemente um

animal, isto é, dotado de vida. Nesta perspectiva, a participação na vida simplesmente

vivida implica em si mesma uma cegueira à morte. É por esta razão que a vida

quotidiana é pouco marcada pela morte: é uma vida de hábitos, de trabalho, de

atividades. A morte só volta quando o ego a olha ou se olha a si próprio. (E é por isto

que a morte é muitas vezes o mal da ociosidade, o veneno do amor de si mesmo).

Do mesmo modo, a consciência humana da morte se superpõe a uma

inconsciência da morte sem destruí-la. Ou seja, a fronteira entre a inconsciência

"animal" e a consciência humana da morte não passa apenas entre o homem e o animal,

e sim no interior do homem. Esta fronteira separa o Ego do Id. O Ego é, com a

afirmação da individualidade, a consciência humana da morte em sua tripla realidade. O

Id é, segundo a terminologia de Freud, o ("isso"), e segundo nossa terminologia, o dado

imediato específico. O Id está subjacente ao Ego. Seu domínio não é exatamente o do

inconsciente, pois, a nosso ver, o Ego estende sua marca e sua presença na vida

inconsciente, e sim o domínio da vida bruta suscitada e determinada pela espécie.

Existe, bem entendido, comunicação dialética entre o Id e o Ego, entre o indivíduo e a

vicia. Em sua teoria do divertimento, Pascal tem e não tem razão ao mesmo tempo.

Muito bem, é verdade que o homem das civilizações modernas tenta fugir, em suas

atividades, da ideia da morte, isto é, tenta se esquecer. Mas este esquecimento só é

possível por existir nele um animal inconsciente ignorando sempre que há de morrer.

Esta animalidade é a própria vida, e, neste sentido, a obsessão da morte é um

"divertimento" da vida. O Id pode encobrir e anular a ideia da morte, mas, por sua vez,

pode ser corroído por ela: a consciência obsedante da morte em seu ponto extremo, faz

murchar e apodrecer a vida, e leva à loucura ou ao suicídio. No outro extremo, um Ego

atrofiado pode se ignorar a tal ponto que jamais pensará na morte. Entre estes casos

limites, a presença e a ausência da morte se imbricam e se encobrem diversamente. E a

vida, com e sem a preocupação da morte, a dupla vida. Mas esta dupla vida é "una". E

se a vida específica é a derradeira inimiga da individualidade, pois afinal de contas, ela

a mata, ela lhe permite nascer e se afirmar. Porque sem vida, não há homem, é o nada.

Sem a própria participação biológica, isto é, sem adesão à vida, só haveria horror

permanente, inadaptação absoluta, morte permanente, sempre nada. E exatamente

porque esta participação o faz viver e o afasta da morte que ela põe em relevo a

violência e a significação do conflito que opõe a afirmação do indivíduo à morte. Esta

dupla vida é a própria intimidade do conflito, da inadaptação espécie-indivíduo.

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MORTE - VARIÁVEL RELEVANTE

EM PSICOLOGIA

Herman Feifel in MAY, R. Psicologia Existencial, Rio de Janeiro, 1988.

Mesmo depois de examinar detidamente a imponente literatura, importante ou

não, de que a psicologia está rodeada, é impressionante verificar como é escasso e

negligenciado o conhecimento sistematizado sobre as atitudes para com a morte. Isto é

surpreendente visto de diversos ângulos:

(1) Através da história do homem, a ideia da morte propõe o mistério eterno que

é o centro de alguns de nossos mais importantes sistemas de pensamentos filosóficos e

religiosos; por exemplo, a Cristandade, onde o significado da vida é consumado em seu

termo; o existencialismo e sua preocupação impressionante com o temor e a morte. Este

modo de ver tem enormes consequências práticas em todas as esferas da vida,

econômica e política, bem como moral e religiosa.

(2) Uma das mais distintas características do homem, em contraste com as outras

espécies, é sua capacidade de compreender o conceito de uma futura- e inevitável

morte. Em química e física, um ―fato‖ é quase sempre determinado pelos eventos que o

precederam; nos seres humanos, o comportamento presente depende não somente do

passado, mas, muito mais ainda talvez, da orientação para com acontecimentos futuros.

De fato, o que uma pessoa procura vir a ser bem pode, certas vezes, decidir ao que ela

dá atenção em seu passado. O passado é uma imagem que muda com a imagem que

temos de nós mesmos.

(3) A morte é algo que acontece a cada um de nós. Mesmo antes de sua chegada,

ela é uma presença ausente. Alguns afirmam que o temor da morte é uma reação

universal e que ninguém está livre do mesmo. Quando paramos para considerar o

assunto, a noção da singularidade e da individualidade de cada um de nós adquire

significado somente ao conceber que devemos morrer. E é neste mesmo encontro com a

morte que cada um de nós descobre sua ânsia pela imortalidade.

(4) Mais próximo da família psicológica, Freud postulou à presença de um

inconsciente desejo da morte nas pessoas, que ele ligou com certas tendências para a

autodestruição.

Melanie Klein acredita que o medo da morte está na raiz de todas as ideias

persecutórias e, por isso indiretamente, de toda a ansiedade. Paul Tillich, o teólogo, cuja

influência se faz sentir na psiquiatria americana, baseia sua teoria da ansiedade no

postulado ontológico de que o homem é finito, sujeito ao não ser. A insegurança bem

pode ser um símbolo da morte.

Qualquer perda pode representar uma perda total. Jung vê a segunda metade da

vida como estando dominada pelas atitudes do indivíduo para com a morte. Em suma,

há um crescente reconhecimento da relação entre a doença mental de alguém e sua

filosofia de vida e de morte. Temas e fantasias sobre a morte são proeminentes em

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psicopatologia. As ideias sobre a morte são periódicas em alguns pacientes neuróticos e

nas alucinações de muitos indivíduos psicóticos. Há o estupor do paciente catatônico,

algumas vezes comparado a um estado de morte, e as alucinações de imortalidade em

certos esquizofrênicos. Tem me ocorrido que a negação da esquizofrênica da realidade

pode funcionar, em certos casos, como um obstáculo mágico, se não como anulação, da

possibilidade da morte. Se viver leva inevitavelmente à morte, então a morte pode ser

desviada pelo não viver.

Também, certo número de psicanalistas é de opinião de que uma das principais

razões pela qual as medidas de choque produzem efeitos positivos nos pacientes é que

estes tratamentos fornecem-lhes um tipo de experiência fantasista de morte-e-

renascimento. É relevante notar, contudo, que mesmo quando a ansiedade sobre a morte

é discutida na literatura psiquiátrica, é ela com frequência interpretada essencialmente

como um fenômeno derivado ou secundário, frequentemente como um aspecto mais

facilmente suportável do ―temor à castração‖, ou como a ansiedade de separação ou

perda do objeto amado.

5. Outras investigações de atitudes para com a morte podem enriquecer e

aprofundar nossa compreensão das reações de boa ou má adaptação ao stress e da teoria

da personalidade em geral. A adaptação das pessoas mais velhas a ideia da morte, por

exemplo, pode bem ser um aspecto crucial do processo de envelhecimento; e o estudo

das atitudes para com a morte na pessoa seriamente doente e moribunda, uma

experiência in natura, pode prover-nos novos insights das maneiras com que diferentes

indivíduos enfrentam severa ameaça.

Numa perspectiva mais ampla, não apenas a psicologia, mas a cultura ocidental

em geral, na presença da morte, tendem a correr, esconder-se, e buscar refúgio em uma

linguagem eufemística, no desenvolvimento de uma indústria que tem, como interesse

maior, a criação de maiores qualidades ―naturais‖ na morte, e em estatísticas atuais. O

militar torna a morte impessoal, e o Passa-Tempo dominante trata a morte não tanto

como tragédia, mas como uma ilusão dramática. A preocupação com a morte tem sido

relegada ao território proibido até aqui ocupado por moléstias como tuberculose e

câncer, e ao tópico do sexo. Com o enfraquecimento das crenças paulinas relativas á

pecaminosidade do corpo e a certeza de uma vida após a morte, parece haver um

concomitante decréscimo na capacidade das pessoas de contemplar e discutir a morte

natural.

Não obstante, as investidas de duas guerras mundiais, junto com a herança de

um holocausto nuclear potencial, têm ajudado, em anos recentes, a empurrar a

temporalidade da vida cada vez mais para o primeiro plano. O movimento

existencialista tem sido particularmente conspícuo em redescobrir a morte como um

tema filosófico e um problema no século XX. Num certo sentido, a história da filosofia

existencial, em suas maiores fases, é uma exegese da experiência humana da morte. A

imagem do homem que surge é de uma criança limitada pelo tempo.

O existencialismo de nosso século, expresso nas filosofias de Simmel, Sheler,

Jaspers e Heidegger colocou a experiência da morte perto do centro de suas análises da

condição humana. Tem acentuado a morte como uma parte constitutiva, antes que o

mero fim da vida, e salientou a ideia que somente pela integração do conceito de morte

dentro do eu torna-se possível uma autêntica e genuína existência. O preço de negar a

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morte é a ansiedade indefinida, a auto alienação. Para compreender-se completamente, o

homem tem de enfrentar a morte, tornar-se cônscio da morte pessoal.

O existencialismo não é, certamente, uma técnica psicoterapêutica e não tem

pretensões nesta direção. Sinto, contudo, que sua orientação implica em consequências

de um tipo psicoterapêutico, referente ao que May comentará em maiores detalhes no

cap. IV.

No limitado espaço disponível para mim, desejo indicar algumas descobertas

gerais sobre atitudes para com a morte, resultantes de uma contínua série de

investigações que estou atualmente realizando. Elas terão de ser consideradas tão-

somente como uma rápida reportagem, passível de, e sujeita a, modificações. Espero,

contudo, que elas sugiram possibilidades terapêuticas. Os resultados baseiam-se em

quatro grupos maiores: 85 pacientes mentalmente doentes, na idade média de 36 anos;

40 pessoas mais velhas na idade média de 67 anos; 85 ―normais‖, consistindo de 50

jovens na idade média de 26 anos, e 35 profissionais liberais, na idade média de 40

anos; e 20 pacientes, extremamente doentes, na idade média de 42 anos.

Na resposta à pergunta ― o que a morte significa para você?‖ dois pontos de vista

dominaram. Um vê a morte numa veia filosófica, como o fim natural do processo vital.

O outro é de natureza religiosa, percebendo a morte como a dissolução da vida corporal

e, na realidade, o começo de uma nova vida. Esta descoberta, num certo sentido,

amplamente espelha a interpretação da morte na história do pensamento ocidental.

Destes dois polos opostos, podem se derivar duas éticas contrastantes. ―de uma

lado, a atitude para com a morte é a aceitação estoica ou céptica do inevitável, ou

mesmo a repressão do pensamento de morte pela vida; do outro, a glorificação idealista

da morte é a que proporciona significado à vida, ou é a pré-condição para a verdadeira

vida do homem.‖ 7 Esta descoberta põe em destaque a profunda contradição que existe

em nosso pensamento sobre o problema da morte. Nossa tradição pressupõe que o

homem termina com a morte e que, ao mesmo tempo, é capaz de continuar, de algum

outro sentido, além da morte. A morte é vista, de um lado, como uma ―parede‖, o

desastre pessoal extremo, e o suicídio como o ato de uma mente doentia; de outro lado,

a morte é considerada como uma ― porta de entrada‖, um ponto no tempo no caminho

da eternidade.

O grau de perturbação mental per se nos pacientes, aparentemente, possui

pequeno efeito sobre suas atitudes globais para com a morte. Nem a neurose, nem a

psicose produzem atitudes para com a morte que não possam ser encontradas em

sujeitos normais. O distúrbio emocional aparentemente serve para trazer atitudes

específicas mais claramente para o primeiro plano. Estes resultados reforçam as

descobertas de Bromberg e Schilder.

Incidentalmente, poucas pessoas normais visualizam sua própria morte em

decorrência de um acidente. Isso se opõe às descobertas de que uma boa proporção dos

pacientes mentalmente enfermos visualiza sua morte por efeito da ― pane num avião‖, ―

do atropelamento por um trator‖, ―de fuzilamento‖, etc.

Quando solicitada a expressar sua preferência quanto à ― maneira, lugar e

tempo‖ da morte, uma maioria esmagadora em todos os grupos queria morrer

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rapidamente e com pouco sofrimento - ― pacificamente, dormindo‖, como a maior parte

expressou, ou ― tendo um ataque cardíaco‖. Os demais queriam ter tempo suficiente

para que pudessem fazer as despedidas da família e amigos. ―Em casa‖ e na ― cama‖ são

especificamente mencionados pela maioria como locais favoritos para morrer. Há,

naturalmente, idiossincrasias pessoais - ―num jardim‖, ―contemplando o oceano‖,

―numa rede em dia de primavera‖. Entre 15 e 20% em cada grupo dizem que não lhes

faz muita diferença onde morrer. Gostaríamos de conjecturar se estas respostas não

refletem, por acaso, em certo nível, uma reação à nossa moderna maneira de morrer. Já

não nos é muito comum receber a morte na intimidade de nossas casas, com a família

acompanhada em volta, e com um mínimo de medicamentos para prolongar a vida.

Morremos num ―grande‖ hospital, com seus recursos superiores para proporcionar

cuidados e aliviar a dor, mas também com seus impessoais tubos intravenosos e tendas

de oxigênio. É como se a realidade da morte estivesse obscurecida, tornando-se um

acontecimento público, algo que acontece para todo mundo, ainda que a ninguém em

particular.

Com referência ao tempo da morte, a maior parte das pessoas diz que quer

morrer à noite, porque ―significa menos problemas para todos os interessados‖, ―pouco

rebuliço‖. A escolha da noite, afora o pacífico final da vida considerado, que ela sugere,

tem muita riqueza de sugestão simbólica. Homero, na Ilíada, alude ao sono (hypnos) e à

morte (thanatos) como irmãos gêmeos, e muitas de nossas preces religiosas entrelaçam

as ideias de sono e morte. Os judeus ortodoxos, por exemplo, ao despertar pela manhã

agradecem a Deus por tê-los restaurado para vida novamente.

Enquanto os dados estavam sendo coletados e avaliados, a implicação sugeriu

por si mesma que certas pessoas que temem fortemente a morte, podem recorrer a um

ponto de vista religioso a fim de enfrentar seus temores com relação à morte. Pensei que

seria proveitoso tomar dados comparativos entre pessoas religiosas e não religiosas,

considerando particularmente o aspecto do ―julgamento‖ depois da morte como uma

possível variável importante. A idade média do grupo religioso (N=40) era 31 anos e

meio; a do grupo não religioso (N=42) era de 34 anos. As principais crenças que

caracterizaram o grupo religioso, comparado com o grupo não religioso, foram crenças

num propósito divino nas operações do universo, numa vida-depois-da-morte, e a

aceitação da Bíblia como reveladora das verdades divinas. Deve-se tomar cautela ao se

considerar a pessoa religiosa como invariante; o mesmo vale para a pessoa não

religiosa.

Os indivíduos podem inferir valores (sociabilidade, suporte emocional, sensação

de pertencer etc.) e satisfações de necessidades da participação e da qualidade de

membro religioso, que não se relacionam necessariamente com a crença e o

compromisso religioso. Também, os indivíduos podem frequentemente expressar uma

identificação religiosa (tradição) sem participação ou compromisso formal. E,

frequentemente, pode haver uma diferença entre os compromissos de valores do

indivíduo e os exigidos pela estrutura teológica ―oficial‖ de sua fé em particular.9 Em

outras palavras, algumas pessoas podem professar princípios religiosos, mas não

praticá-los.

Outros podem adotar a religião como um tipo de defesa contra ―azares‖ da sorte.

Então, há os que incorporam suas crenças religiosas nas atividades do seu dia-a-dia. É

preciso uma categorização mais nítida e definitiva nesta área. Por exemplo, as atitudes

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para com a morte podem bem variar entre diferentes grupos de sectários. Nosso

propósito, contudo, neste estágio era obter algumas medidas gerais do ponto de vista

fundamentalista ou não fundamentalista.

A pessoa religiosa, quando comparada com o indivíduo não religioso em nossa

prova, é pessoalmente mais temerosa da morte. O indivíduo não religioso teme a morte

porque ―minha família pode não estar prevenida para‖, ―quero completar certas coisas

ainda‖, ―gosto da vida e quero continuar‖. A ênfase está no temor de descontinuidade da

vida na terra - o que está sendo deixado para trás – em vez de naquilo que poderá vir a

acontecer depois da morte.

A ênfase para a pessoa religiosa é dupla. Preocupa-se com assuntos post-mortem

– ―posso ir para o inferno‖, ―tenho pecados para expiar ainda‖ – bem como a cessação

das presentes experiências terrestres. Os dados indicam que mesmo a crença de ir ao

paraíso não é um antídoto suficiente para pôr fim ao medo pessoal da morte de algumas

pessoas religiosas. Esta verificação, juntamente com o forte temor da morte expresso em

anos passados por um número substancial de indivíduos à religiosidade, pode refletir

um uso defensivo da religião por parte de alguns de nossos objetos de estudo. De modo

correspondente, a pessoa religiosa objeto de nosso estudo sustenta uma orientação mais

significativamente negativa para com os anos mais avançados da vida do que o faz a

correspondente pessoa não religiosa.

No mesmo contexto, creio que a ênfase frenética sobre, e a contínua busca da,

―fonte da juventude‖ em muitos segmentos da sociedade reflete, até certo ponto, as

ansiedades referentes à morte. Uma das razões por que tendemos a rejeitar os velhos é

que eles nos fazem lembrar a morte. Os profissionais, especialmente os médicos, que

entram em contato com pacientes crônicos e extremamente enfermos têm notado em si

próprios tendências paralelas de fuga. Atitudes contra a fobia da morte, por exemplo,

podem ser observadas entre médicos internos. Aqui esta reação por parte do médico é

compreensível: a necessidade de remover à roupagem da libido, o alívio da tragédia

implacável, a realidade de que outros podem se beneficiar mais com seu tempo, etc.

Mas eu advertiria que alguns médicos com frequência rejeitam o paciente moribundo

porque este reativa ou desperta seus próprios temores da morte e que em alguns os

sentimentos de culpa, aliados aos desejos de morte para pessoas significativas em suas

próprias vidas, desempenham certo papel.

Isso para não falar no narcisismo ferido e na ausência de recompensa do médico,

cuja função sendo a de salvar a vida, se vê frente a um paciente moribundo, que

representa uma negação de suas capacidades essenciais. Penso que seria interessante

seguir o aspecto das relações entre a escolha de ocupação, onde a salvação da vida é

imperativa, e as atitudes pessoais dos médicos para com a morte. Um dos obstáculos

insuspeitados contra que tenho esbarrado ao realizar a pesquisa na área não tem sido o

paciente, mas o médico. Uma hipótese que eu sustento, que tem sido constantemente

reforçada, é a de que uma das maiores razões por que certos médicos escolhem a

medicina é para conhecer a fundo suas próprias ansiedades acima do normal a respeito

da morte.

Temos sido obrigados, em medida nada saudável, a internalizar nossos

pensamentos, temores e mesmo esperanças relativas à morte. Um dos sérios erros que

cometemos, penso, ao tratar pacientes extremamente enfermos, é a construção de uma

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barreira psicológica entre o viver e o morrer. Alguns pensam e dizem que é cruel e

traumático falar sobre a morte a pacientes que estão morrendo. Realmente, minhas

descobertas indicam que os pacientes querem muito falar a respeito de seus

pensamentos e sentimentos em torno da morte, mas sentem que nós, os vivos, fechamos

os caminhos para que eles realizem isso. Um bom número deles prefere honesta e

claramente ouvir dos médicos sobre a seriedade de sua doença.

Eles têm a sensação de serem compreendidos e ajudados, em vez de se tornarem

amedrontados ou tomados de pânico quando podem falar sobre seus sentimentos para

com a morte. É verdadeira a ideia de que o desconhecido pode ser mais temido do que a

mais conhecida e temível realidade.

Quando a presente investigação foi inicialmente mencionada, foi levantada a

questão, e legitimamente, quanto ao possível efeito negativo e aspectos oprimentes dos

procedimentos de entrevista e de testes sobre os pacientes. Como fato resultante, a

grande maioria deles não demonstrou reações rebeldes. Alguns deles, na realidade,

agradeceram ao pessoal do projeto por lhes permitirem a oportunidade de discutir seus

sentimentos relativos à morte. Não há nada mais esmagador para uma pessoa à morte,

do que sentir que foi abandonada ou rejeitada.

Essa constatação não somente remove o apoio e impede que o paciente obtenha

alívio dos vários tipos de sentimentos de culpa que ele possa ter, como não lhe permite

mesmo fazer uso de mecanismos de negação que tenha sido capaz de usar até então.

Falando-se de culpa, é alarmante o fato de que muitas pessoas

irremediavelmente enfermas se sentem culpadas. Isto resulta de certo número de razões:

(1) Frequentemente elas manifestam a suspeita de que sua doença e seu

destino são auto impostos e por sua própria culpa.

(2) Assumem, mais ou menos, o papel de criança extremamente

dependente. Alguns conscientemente desculpam-se pelo trabalho e

―confusão‖ que estão causando. Nossa cultura alimenta um sentimento de

culpa na maioria de nós, quando nos colocamos num papel dependente.

(3) Isto é levado mais além na pessoa à morte, pelos sentimentos de que

está forçando os vivos à sua volta a fazer face à necessidade e finalidade

da morte, pelo que eles o odiarão.

(4) Intimamente aliado a isso há o indistinto conhecimento da pessoa

enferma acerca de sua inveja pelos que continuam vivos e do desejo, que

raramente chega ao consciente, de que esposo, pai, filho ou amigo morra

em seu lugar.

Existe a ideia de que pode ser este desejo, em parte, que força a ação, naqueles

casos de pessoas seriamente enfermas, que não só se matam, como matam a família e

mesmo os amigos. Os que continuam vivos respondem com a sua própria culpa - por

estarem vivos e verem alguém mais morrer e, talvez, por desejarem mesmo que a pessoa

moribunda se apresse em seu caminho. Na verdade, a maior parte das pessoas saudáveis

se sente ansiosa e culpada ao ver alguém mais morrer. O confronto direto com o fato

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existencial da morte parece arremessar uma influência maléfica sobre o funcionamento

do ego.

Ainda, estamos cientes de que a maturidade humana traz consigo um

reconhecimento de limite, que é um notável avanço no autoconhecimento. De certa

maneira, a disposição para morrer aparece como uma necessária condição de vida. Não

estamos totalmente livres em qualquer ação enquanto formos comandados por uma

inescapável vontade de viver. Neste contexto, os riscos diários da vida, por exemplo

dirigir na cidade, fazer uma viagem aérea, perder a vigilância ao dormir, tornam-se

formas de quase extravagante insensatez. A vida não nos pertence genuinamente até que

possamos renunciar a ela. Montaigne penetrantemente observou que ―somente o homem

que não mais teme a morte deixou de ser um escravo‖.

A observação clínica sugere a reflexão de que para muitos indivíduos a

percepção da morte desde uma distância temporal e quando ela está pessoalmente

próxima pode constituir dois assuntos diferentes. Também, o conhecimento do grau

―externo‖ de ameaça sozinho parece ser uma base insuficiente com a qual predizer, com

qualquer certeza, como uma pessoa reagirá a ele. A informação de que está para morrer

no futuro próximo não constitui necessariamente uma situação de extrema tensão para

determinados indivíduos. A estrutura do caráter da pessoa - o tipo de pessoa que ela é -

pode muitas vezes ser mais importante do que o próprio estímulo ameaçador-da-morte

para determinar reações. Na continuação do trabalho, esperamos escrutinar mais de

perto as relações existentes aqui, isto é, relacionar as atitudes em relação à morte com o

tipo de pessoa que as possui.

Minha própria tese experimental é que os tipos de reação para com a morte

iminente são uma função de fatores interligados. Firmemente sustento aqui o ponto de

vista de Beigler. Alguns dos mais significativos, a título de hipótese, parecem ser:

(1) a maturidade psicológica do indivíduo;

(2) maneira de fazer frente às técnicas disponíveis para ele;

(3) a influência de sistemas referenciais variáveis, tais como orientação

religiosa, idade, sexo;

(4) severidade do processo orgânico;

(5) as atitudes do médico e de outras pessoas de significação no mundo

do paciente.

A pesquisa em progresso reforça o pensamento de que a morte pode significar

coisas diferentes para diferentes pessoas. Mesmo num grupo cultural estreitamente

definido, torna-se evidente a qualidade psicológica desigual do medo da morte.14 A

morte é um símbolo de múltiplas facetas, cujo significado específico depende da

natureza e dos fatos no desenvolvimento individual e contexto cultural. ―A morte é

terrível para Cícero, desejável para Carlão e indiferente para Sócrates.‖

Um leitmotw, contudo, que persiste em pôr-se em evidência quando se trabalha

neste campo é que a crise, muitas vezes, não é o fato de superar a morte de per si, a

intransponível finitude do homem, mas antes o desperdício de anos limitados, as tarefas

não tentadas, as oportunidades bloqueadas, os talentos definhados no desuso, os males

evitáveis que foram praticados. A tragédia que está sendo sublinhada é que o homem

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morre prematuramente e sem dignidade, e que a morte não se tornou realmente ―de sua

propriedade‖.

Para concluir: o nascimento de um homem é um evento incontrolável na sua

vida, mas a maneira de sua partida da vida guarda uma definida relação com sua

filosofia de vida e morte. Estamos enganados em considerar a morte como um

acontecimento puramente biológico. A vida não é verdadeiramente compreendida nem

completamente vivida a não ser que a ideia de morte seja encarada com honestidade.

Há uma premente necessidade de informação mais fidedigna e sistemática, de

estudo controlado na área. Esta é uma área em que as formulações teóricas não têm

deixado atrás de si um corpo acumulativo de dados descritivos e empíricos. A pesquisa

sobre o significado da morte e o ato de morrer podem realçar nossa compreensão do

comportamento do indivíduo e fornecer uma porta de entrada complementar para uma

análise das culturas.

Permitam-me ser explícito. Não sustento que a condição humana possa ser

completamente descrita por cuidado e ansiedade, temor e morte. Alegria, amor e

felicidade provêm indícios igualmente válidos para a realidade e o ser. Como Gardner

Murphy perspicazmente salientou, está longe de estar estabelecido que todo

enfrentamento da morte represente necessariamente proveito para a saúde mental. Em

certos estudos com pilotos durante a segunda guerra mundial18 descobriu-se que aqueles

que não sucumbiam psicologicamente conservaram, nos momentos de mais extremo

perigo, a ilusão de invulnerabilidade. Aparentemente, há a necessidade de fazer face à

morte e também a de voltar-lhe as costas.

Minha opinião é que há um passo muito necessário a avançar para que a

psicologia reconheça que o conceito de morte representa um fato psicológico e social de

importância substancial e que as palavras atribuídas a Goethe ao morrer - ―Mais luz‖ –

são particularmente apropriadas ao campo em discussão.

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REFLEXÕES SOBRE A PSICANÁLISE E A MORTE

CASSORLA, R. S. M. in KOVÁCS, M. J. (Org.) Morte e desenvolvimento humano.

São Paulo, Casa do Psicólogo, 1992.

"Não existe meio de verificar qual a boa decisão, pois não

existe termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e

sem preparação. Como se um ator entrasse em cena sem nunca

ter ensaiado. Mas o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio

da vida já é a própria vida? É isso que faz com que a vida

sempre pareça um esboço. No entanto, mesmo "esboço" não é

uma palavra certa porque um esboço é sempre o projeto de

alguma coisa, a preparação de um quadro, ao passo que o

esboço que é nossa vida não é nossa vida não é esboço de nada,

é um esboço sem quadro. Tomás repete, para si mesmo o

provérbio alemão: einmal ist keimnal, uma vez não conta, uma

vez é nunca. Não poder viver senão uma vida é como não viver

nunca" (Milan Kundera, em A insustentável leveza do ser).

Proponho-me, neste trabalho, efetuar algumas reflexões sobre a psicanálise e suas

abordagens e teorizações sobre a morte, de uma forma que possa ser compreensível,

mesmo pelos leitores não familiarizados com aquela área do conhecimento. No final do

capítulo, indicarei leituras complementares para aqueles, que queiram aprofundar-se no

tema.

Antes peço ao leitor que me acompanhe num passeio.. Observemos os seres

humanos, as sociedades, e tentemos classificar o que vemos em sua passagem pelo

mundo. Proponho que nesta classificação, coloquemos como extremos de uma faixa,

como um espectro de cores, a VIDA e a MORTE. Entre esses dois extremos há várias

―cores‖ diluindo-se e transformando-se em outras, quase que imperceptivelmente.

Próximo ao extremo da VIDA, teremos: o amor, a solidariedade, o vigor, a dignidade, a

construção de si mesmo e do mundo, a criatividade, a preocupação com o bem de si e os

outros, o aproveitar e tornar a vida o mais rica possível para todos. No extremo oposto

teremos também fenômenos humanos: o ódio, a destrutividade, a inveja, a competição

ambiciosa, o desrespeito, a indignidade, a corrupção, a desumanidade, a guerra. Todas

são formas de atacar a vida estão do lado da morte.

No ser humano encontramos, dentro desse espectro imaginário, todos esses

elementos, paradoxalmente, comumente coexistindo Amor e ódio, solidariedade e

inveja, doação e espoliação, humildade, orgulho e arrogância, criatividade e

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destrutividade, são exemplos, por vezes, de aparentes antíteses, que convivem em todos

nós, de maneiras peculiares.

Num mundo idealizado, o amor; a vida deveriam derrotar o mal e tudo aquilo mais

próximo da destrutividade e da morte. Esse mundo não existe. No mundo real, temos de

conviver com todos esses aspectos: são humanos. Isto nos leva já a um primeiro

problema: o ―moralismo‖. Aparentemente estamos dividindo o ser humano em um lado

bom e outro mau. Esta é uma boa crítica que se faz a certas leituras da psicanálise. Mas,

o psicanalista não deve ver as coisas desse modo – trata-se de fenômenos humanos: os

juízos de valor dependerão da cultura, do momento, do indivíduo. Espera-se que o

psicanalista os abandone em sua lide diária, e isso deve ser trabalhado em sua análise

pessoal, para que, possa aceitar o ser humano como ele é.

Agora nos defrontamos com um segundo problema: isso não nos dá a impressão

de certo cinismo comodista? Do tipo: ―Eu não julgo, sou neutro, não tenho nada com

isso; eu faço o meu trabalho e dane-se o mundo...‖ Penso que existe certa verdade nisso,

mas uma verdade incompleta já é uma mentira. O psicanalista pode e deve lutar pela

vida, como ser humano e como profissional. Mas a própria psicanálise descobriu que a

melhor forma de lutar contra a morte, fortalecendo o lado da vida. É evitar juízos de

valores, aconselhar, condicionar, educar, ou qualquer outra atitude que não seja fazer o

indivíduo (e a sociedade, que em colaboração com outras disciplinas), tomar

consciência daquilo que lhe é inconsciente – e que, recalcado, pode sabotar, impedir ou

dificultar sua vida, sua criatividade, sua felicidade, seja lá o que for felicidade para cada

um.1

O TERROR DIANTE DO “NÃO SABER”

A psicanálise descobriu que existe uma sobre determinação em nossas vidas,

derivada de instâncias inconscientes. Isso provocou uma ferida narcísica na

humanidade, que, de repente, viu-se não mais senhora, de seus atos e comportamento,

ferida essa ainda não cicatrizada que leva muita pessoas anão aceitarem essa área do

conhecimento.

Por outro lado, a tomada de consciência da morte, da finitude do se humano,

constitui-se em outra ferida, esta ainda. mais aterrorizante. Se com a psicanálise,

consegue-se compreender algo acerca da dinâmica do inconsciente, em relação à morte

nada sabemos. E, o não saber é uma das coisas mais apavorantes para o ser humano.

1 Aqui já se assoma outro problema: há quem se sinta feliz ao ver a destruição dos outros e, às vezes, até

de si mesmo. A psicanálise desvela, quando lhe é possível, as motivações inconscientes disso e, se tem

sorte, pode ajudar o indivíduo a sentir-se mais feliz, de outra forma. No entanto, isso nem sempre é

possível, pois a própria relação analítica poderá ser destruída se isso ameaçar ocorrer. Adiante, o leitor

encontrará hipóteses que tentam explicar esse fato. .

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Perde-se a capacidade de controle, fica-se submisso a algo desconhecido, e isso é

desesperante. Daí vem a necessidade de criar verdades, para que esse terror se esvai.

Essas verdades podem fazer parte do domínio da fé. Aqui pouco podemos acrescentar, a

não ser aceitar que é outro fenômeno humano e, como tal, deve ser respeitado e

compreendido. Mas, novamente, o raciocínio não é tão simples, porque desde que a fé

não exige comprovação, poderemos nos ver diante de situações estranhas: por exemplo,

a minha fé está correta e devemos destruir todos aqueles que não comungam com ela.

Esses outros podem ser os hereges, os judeus, os comunistas, os imperialistas, os

protestantes, os ciganos, os homossexuais, as mulheres, os nordestinos, os negros ou os

brancos.

Pior ainda é tornar a fé "ciência". Dessa forma, ela deixa de ser fé e torna seus

dogmas "respeitáveis". Desde a "ciência" inquisitorial para identificar os inimigos do

catolicismo, até a "ciência" que prevê o futuro da luta de classes; passando pela

"ciência" que prova a superioridade racial de alguns, devendo-se eliminar os outros, até

a chamada "ciência cristã" dos fundamentalistas americanos e a "ciência" de alguns

grupos espíritas. Em nível menor, todos nós criamos teorias sobre fatos que fogem ao

nosso controle – às vezes podem estar até corretas, pois a intuição existe (esta é outra

teoria que, para alguns, poderá ser considerada delirante... – veja o leitor onde fui me

meter!), mas comumente são objetos internos que projetamos em outros.

Atualmente passamos por uma fase ainda mais incrível: a própria ciência

tornando-se uma espécie de religião, o cientista (e o leigo) acreditando que aquilo que

se comprovou cientificamente estará sempre correto. E sabemos que a ciência não é

neutra: que por mais rígidas que sejam as técnicas utilizadas pelos cientistas, ocorrerão

transformações na leitura e interpretação dos resultados. Tanto é que teorias que

duraram dezenas de anos, são substituídas por outras, se o cientista se permitir duvidar

de si e da ciência. Mas, muitas decisões são tomadas por pessoas e por governantes,

baseadas em teorias ditas científicas – curiosamente, as teorias que infirmam aquelas

adotadas são ignoradas. Na verdade, isso é fácil de explicar. A ciência, Deus ex

machina, está sendo utilizada, mesmo que o cientista não tenha consciência disso, de

forma delirante ou mal-intencionada.

Aqui podemos deixar de incluir a própria psicanálise, que comumente se

transforma em produto de fé e não de reflexão. Temos desde uma IPA (International

Psychoanalytical Association), fundada por Freud, que tenta preservara "pureza"

científica da psicanálise (o que não que dizer que isso não seja necessário, mas perceba

o leitor o perigo que se corre: queimar os hereges...), até as seitas que se

autodenominam donas; da verdade, queimando seus próprios hereges e maldizendo as

outras correntes psicanalíticas.

Até aqui, percebo, tentar alertar o leitor para aspectos ligados à morte. Mas não

posso deixar de mostrar o lado de vida: os epistemólogos tentam indicar as limitações

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das ciências, os psicanalistas mostram o que existe de invariante nas várias abordagens

escolásticas, os religiosos pregaram a tolerância com as outras religiões e o

ecumenismo, etc. Como sempre, o conflito vida x morte se faz presente.

A psicanálise pode ajudar-nos a compreender muitos mecanismos que usamos

para lidar com esse terror e desespero do desconhecido. Voltando ao nosso tema, o não

saber sobre a morte, tentamos preencher esse, não saber com teorias, intelectualizando.

Tem de existir algo após a morte, senão a vida não teria razão de ser. Como nada existe

que comprove isso, poderíamos dizer que se trata de defesas maníacas. As ideias de

outra vida, de paraíso, de reencarnação, não são sustentadas pelos nossos conhecimentos

atuais. Voltamos aqui para o terreno da fé, com suas vantagens e perigos, como já

assinalei.

AS FANTASIAS DO INCONSCIENTE SOBRE A MORTE

No trabalho psicanalítico verificamos que as fantasias inconscientes sobre o que

seria a morte não são muito abrangentes: 1) o reencontro com pessoas queridas mortas

(e não é por outro motivo que crianças tentam matar-se para encontrar o papai ou o

vovô que morreu, no céu); ou que, agora apelando para mecanismos mais profundos, a

chance de alguém morrer após a morte de pessoas queridas é maior que na população

em geral – evidentemente, aqui poderemos usar teorizações sobre luto patológico, que

veremos adiante; 2) o encontro com outras figuras idealizadas, como Deus ou algo

similar, que seria um complemento da fantasia anterior; 3) a ida para mundo

paradisíaco, regulado pelo princípio do prazer e onde não existe sofrimento. Esta

fantasia se articula com a seguinte; 4) a volta ao útero materno, numa espécie de parto

ao contrário, onde não existem desejos e necessidades. Provavelmente desta fantasia;

entre outras, provém a ideia da "mãe-terra", onde o morto será sepultado.

Mas, ao lado dessas fantasias prazerosas, existem as terroríficas, entre as quais as

relacionadas ao Inferno ou lócus similares têm predominância. São fantasias

persecutórias, que têm a ver com sentimentos de culpa e remorso. As identificações

projetivas em figuras diabólicas, na morte como um ser aterrorizante, com face de

caveira e seu cajado, se interligam a pavores de aniquilamento, desintegração,

dissolução. Essas fantasias se confundem com a loucura, a psicose, e, por vezes não

poder suportá-las pode levar ao suicídio.

Evidentemente, esta ocasião corresponde a mecanismos da posição esquizo-

paranóide, seguindo-se o referencial Kleiniano. Como podem verificar-se, estas

fantasias inconscientes e algumas conscientes, correspondem a revivescências de outras

mais primitivas. E, quase sempre, fazem parte do que se considera "normal" no ser

humano.

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No entanto, uma das questões controvertidas em psicanálise é se, em nosso

inconsciente, poderia existir algum tipo de representação da morte. Para Freud, isso não

existiria, por ser uma experiência que nunca teria sido vivida. Mas ele considerava

como equivalentes os terrores da castração, da perda do amor, do objeto. Para os

kleinianos, já existiria o medo da morte: seria equivalente ao pavor do aniquilamento,

uma ansiedade extremamente primitiva, que teria a ver com o predomínio da pulsão de

morte.

PULSÃO DE VIDA X PULSÃO DE MORTE

E aqui entramos em outro assunto controvertido: existe ou não uma pulsão de

morte, que se contrapõe e ao mesmo tempo se funde com Eros, a pulsão de vida. Em

Além do princípio do prazer, Freud introduz este conceito, como uma especulação,

utilizando inclusive modelos biológicos. Com esse conceito, reformula todo o edifício

da psicanálise, construído até então, Melanie Klein e seus continuadores levam essa

especulação às últimas consequências, passando a utilizá-la de forma produtiva na

clínica e em suas formulações teóricas. No entanto, outros autores e escolas acham

desnecessária a utilização desse referencial, acreditando que a teorização baseada em

pulsões agressivas ligadas às sexuais é suficiente.

Em seu trabalho clínico tenho me valido do conceito de pulsão de morte e creio

que ele tem me enriquecido na melhor percepção dos fenômenos humanos. Basicamente

o que é postulado por Freud e grande parte de seus seguidores é que vivemos,

constantemente num estado de conflito entre Eras e Tanatos, pulsões de vida e pulsões

de morte. As primeiras levam ao crescimento, desenvolvimento, integração, reprodução,

manutenção da vida; as segundas fazem o movimento inverso, de desintegração,

tentando levar o indivíduo para um estado inorgânico, a morte. Esses dois grupos de

pulsões estão "fundidos", funcionando sempre juntos, complementando-se e opondo-se,

num processo dialético. Da pulsão de morte fertilizada pela de vida, deriva a

agressividade normal, que protege o indivíduo dos agravos e faz com que ele possa lutar

para conquistar mais espaço vital. A falta dessa agressividade normal, que prefiro

chamar de vigor, impede inclusive a capacidade de reprodução da espécie.

Quando ocorre a "desfusão" das pulsões, e a de morte se encontra livre

predominante, nos defrontamos com situações de sofrimento, que podem manifestar-se

nas áreas somática, mental e social, em todas elas. Essa predominância em seu auge

pode levar à morte emocional (na loucura) e à morte do corpo, através de somatizações

graves ou atos suicidas, ou mesmo mortes "naturais" precoces.

Mas, por maior que seja a libido (que seria o resultado das pulsões de vida),

Tanatos sempre acaba triunfando, com o tempo: todos acabamos morrendo. Mas isso no

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nível individual – em termos de espécie nossos genes continuam em nossos

descendentes: aqui Eros vence.

Evidentemente esta teorização atrai muitas resistências. Neste momento de minha

vida penso que elas se devem ao terror que inspiram, caso estejam corretas. Esse terror

evidentemente se liga à tomada de consciência da fragilidade e pouca importância que

nós, como seres humanos, temos, dentro da complexidade do Universo. Passamos por

ele, no estado em que nos encontramos, vivos (nesta vida: não sei se existem outras),

em frações infinitesimais de tempo, se levarmos em conta o tempo universal. E a

natureza não nos dá a menor importância – é como se fôssemos simples instrumentos de

perpetuação da espécie.

Pior ainda, essa espécie, a espécie humana, ninguém pode garantir que se

perpetuará. Muito pelo contrário, milhares de espécies viveram milhões de anos e

desapareceram. Por que conosco seria diferente? A diferença crucial é que os seres

humanos provavelmente se constituíram na única (ou quem sabe a primeira) espécie que

tem consciência de sua finitude 'individual. Digo provavelmente, porque o raciocínio

antropocêntrico pode, em algum momento, ser desfeito, até nesta área...

Mais ainda: talvez seja a única (ou a primeira) espécie que pode se exterminar por

si mesma, conscientemente. Já temos um arsenal atômico suficiente para exterminarmos

humanidade dezenas de vezes...

Se o leitor ainda não está aterrorizado, gostaria de lembrá-lo que tudo indica que o

planeta Terra, o Sistema Solar e o próprio Universo podem terminar. Estrelas, planetas,

sistemas planetários também nascem, vivem e morrem... Isso dura bilhões de anos, mas

o tempo deste Universo seria finito.

Penso que agora não há mais necessidade de justificar porque esta teoria é tão

malvista. Alguns autores; mais otimistas, procuram explicar esse pessimismo freudiano

e psicanalítico pelo fato de o pai da psicanálise ter vivido O horror da Primeira Guerra

Mundial e ter acompanhado todo o conturbado período entre as duas guerras, prevendo,

de certa forma, o horror que foi a Segunda Guerra Mundial. Talvez ele tenha morrido

logo que ela começou porque já era demais...

Paradoxalmente, Com todo esse pessimismo, penso que tudo isso pode e deve

ajudar-nos a compreender cada vez melhor o funcionamento das pulsões de morte e de

vida, e dessa forma poderemos lutar ao lado destas, contra aquelas. Obviamente

sabendo de nossas limitações. Aliás, o problema reside justamente aqui: tomaremos

consciência de nossas potencialidades e de nossas limitações para que possamos viver

melhor a vida, aqui e agora. É sobre este tema que gostaria de me deter.

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IMPOTÊNCIA X ONIPOTÊNCIA

Ante a percepção de nossa impotência, por vezes "percepção" inconsciente, nos

defendemos através da onipotência. A certeza de uma vida pós-morte pode ser resultado

desse segundo mecanismo: Embora possamos saber se ela existe ou não, o que se

observa é que essa certeza decorre da necessidade de enfrentar a impotência, incluindo a

impotência do não saber.

De minha experiência clínica, e confirmando, outras investigações, verifica-se,

com frequência, que profissionais de saúde escolheram sua área para lutar contra a

morte. E aqui encontraremos um espectro interessante e variado: desde aqueles que

conseguem fazer isso criativamente, conhecendo seus limites, até os que sofrem

horrorosamente ao se sentirem "derrotados" pela morte, quando perdem um paciente. A

vida desses profissionais se torna um inferno – culpam-se, tornam-se iatrogênicos –,

intervindo, por vezes, desesperadamente e sem necessidade, abandonam seus pacientes

quando se perde a esperança de "vencer", a morte, etc. Estamos no terreno da

onipotência. O leitor já deve ter percebido como isso não só faz o profissional de saúde

sofrer, como impede que ele ajude seu paciente a viver melhor o tempo que antecede

sua morte, e mais ainda, que tenha uma boa morte. Em outros capítulos deste livro

salienta-se a importância disso para o ser humano.

O problema da onipotência x impotência ocorre constantemente em nossas vidas,

em todas as áreas. E está ligado ao que escrevi acima: a sabedoria de viver consiste em

sabermos usar nosso vigor, nossa potência, conscientes de nossas potencialidades e

limitações. Nesse momento poderemos gozar a vida, não um gozar hedonista, mas o

famoso carpe diem: aproveitar cada minuto da vida; podendo "curtir" ao máximo o que

ela nos oferece, não maniacamente, mas com a calma que a felicidade verdadeira pode

trazer.

Diz-se comum ente que existem os sofrimentos necessários, aqueles que fazem

parte da vida, e os desnecessários, aqueles que nós criamos constantemente. E observe o

leitor a criatividade com que os criamos!

AS SABOTAGENS INTERNAS

Penso que esta criatividade que todos nós temos para sabotar nossa felicidade

(podendo ampliar-se o raciocínio para grupos, sociedades e a espécie humana) pode ser

razoavelmente compreendida, usando as teorizações sobre a pulsão de morte, descritas

acima. Para o leitor que quiser aprofundar-se neste tema, os conceitos psicanalíticos de

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masoquismo e de narcisismo são importantes. Principalmente os conceitos pós-

kleinianos de narcisismo destrutivo.

Voltando à prática, procure o leitor lembrar-se das complicações desnecessárias

em que, consciente ou inconscientemente, andou se metendo nos últimos dias. As coisas

que deixou de fazer, as que fez de maneira errada, as brigas inúteis, os estragos

desgastantes, sem qualquer objetivo, as fantasias persecutórias, os lapsos

autocondenatórios, os sentimentos de culpa absurdos, os ataques invejosos e destrutivos

contra si mesmo e contra os outros. Repare também que comumente essas "crises"

ocorrem quando tudo tende a correr bem: os mitos e a própria cultura nos ensinam que

devemos tomar cuidado com o "olho gordo" – a inveja (in-vidia) dos deuses, que são

projeções de aspectos invejosos internos em seres sobrenaturais ou em rivais reais ou

imaginários.

A teoria da inveja, tão criativamente elaborada por Melanie Klein, e cuja antítese

seria a gratidão, é de grande utilidade na compreensão destas características humanas.

A ampliação destes conceitos para grupos maiores, pode ajudar-nos a

compreender um pouco mais acerca das guerras; dos morticínios, dós esquadrões da

morte, das torturas, da indignidade, dos sacrifícios que seres humanos impõem a seus

semelhantes (e a si mesmos), passando pela fome; miséria, desumanização; etc.

No Brasil, em particular, vivemos isto de uma forma extremamente intensa. O

filicídio, um conceito psicanalítico extremamente rico, nos ajuda a compreender vários

desses aspectos, incluindo o massacre de crianças e de "infantes" (a infantaria), que são

a primeira linha de ataque (e de bucha de canhão) em guerras e revoluções. Sãos sempre

as crianças e os jovens as principais vítimas, devido a sua fragilidade diante das atitudes

mortíferas dos adultos – desde os agravos na gestação e nascimento, a desnutrição, a

falta de condições dignas de vida, de escolaridade, de saúde, a exploração no campo de

trabalho, o envolvimento com a criminalidade, as drogas, a violência, etc., de onde

sempre existem adultos responsáveis se omitem ou estimulam estas práticas.

E ainda, em nosso meio, consideremos os velhos; que com a ―aposentadoria‖ que

recebem (ou não recebem) são condenados a mortes precoces ou mortes em vida. Não

seria esta uma maneira de eliminar populações inteiras, que não são mais ―produtivas‖?

Será isto um mecanismo apenas inconsciente? Tenho minhas dúvidas.

MORTE FÍSICA X OUTRAS MORTES

Espero estar conseguindo passar ao leitor a ideia "de que a morte está sempre

presente em nossas vidas, e das mais variadas maneiras". A morte física será a última,

mas teremos mortes parciais ou totais nas áreas somática, mental e social, lembrando

que essa divisão é apenas didática, pois todas se interpenetram.

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Além das situações descritas acima, muitas fazendo parte do que se poderia

chamar de ―micro mortes da vida cotidiana‖, parafraseando o famoso artigo de Freud,

nós nos defrontaremos com situações que trazem tanto sofrimento, que não podemos

deixar de chamá-las de patológica, se usarmos aquele conceito para definir o que será

patologia. Sobre as "patologias" sociais, felizmente, já temos consciência de sua

importância e inclusive têm sido estudadas interdisciplinarmente. O mesmo tem

ocorrido com as grupais e individuais, mas é aqui que a psicanálise se mostra mais

vigorosa, pois pode servir não só como instrumento de compreensão, mas também

como terapêutica.

Na área mental teremos infinitas maneiras de os conflitos se manifestarem,

podendo culminar na psicose que para os psicanalistas kleinianos decorre de ataques

destrutivos (derivados da pulsão de morte) à própria mente, à capacidade de pensar, de

simbolizar, desagregando e desintegrando o indivíduo. O suicídio poderá ser uma forma

de levar isso para a área física.

Quando os conflitos são mais primitivos, podem manifestar-se na área física, pela

impossibilidade de simbolização. Assim teremos doenças dos mais variados tipos, que,

em grau mais amplo (e aqui alguns autor falam em somatização psicótica), poderão

também levar à morte.

Tudo isso se reflete evidentemente, na área social. Mas, às vezes, a predominância

das manifestações conflitivas ocorre nesta área, como já vimos Atualmente o que mais

preocupa é a violência contra si mesmo, contra o outro, contra a sociedade e contra a

própria natureza, podendo levar-nos à destruição de ecossistemas e até da própria

humanidade.

TENTANDO COMBATER A MORTE

Embora a morte física seja inevitável, ela pode ser adiada cada vez mais, e as

demais podem ser combatidas. A humanidade tem demonstrado que possui recursos

para isso. Penso que a própria descoberta da psicanálise comprova esse fato.

Nunca saberemos como terminará a luta constante entre vida e morte. A despeito

do pessimismo a longuíssimo prazo (bilhões de anos), e com grau de conhecimento que

temos agora, existe a possibilidade de que estejamos errados. Afinal, quem imaginaria,

no início do século passado; que a escravidão e o preconceito racial se constituíram em

crime em quase todos os países? Que guerras devem obedecer à Convenção de Genebra,

os primeiros não podendo mais ser escravizados ou mortos e podendo até serem

trocados? (É verdade que isso nem sempre ocorre, que existem outros tipos de

escravidão "assalariada", etc., mas, isto vem sendo denunciado e não se pode negar que,

a despeito de tudo o que ainda há por se fazer, a luta pela dignidade tem dado alguns

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resultados). Que tortura é crime? Que já se considera o direito à vida, à saúde, à

educação e felicidade como algo inalienável a todo ser humano, independentemente de

sexo, raça, religião ou ideias políticas? Que a igreja católica já aceita, há tempos, que os

índios têm alma? E que vem lutando, contrariando seu passado, pelas vidas deles? Que

cada vez mais grupos da população se organizam, reivindicando seus direitos – que

grupos internacionais influem e debilitam ditaduras, como o faz a. Anistia Internacional,

por exemplo; que lutam pelo equilíbrio ecológico e denunciam a desumanidade e a

corrupção?

É claro que ninguém garante que tudo isso não possa cair por terra. Atualmente

volta o racismo na Europa, ao mesmo tempo em que inimigos figadais se unem numa

Europa unida. Guerras genocidas ocorrem contra minorias étnicas e nacionalismo

reacendem irmãos matando irmãos. Mas, na África do Sul o apanheid vai declinando.

No Brasil quase ninguém mais aguenta o "levar vantagem em tudo", antes orgulho

nacional! Infelizmente o tempo é muito curto para efetuarmos especulações sobre a

evolução de tudo isso, mas tendo a ser otimista. Penso que os recursos mentais da

humanidade estão cada vez mais disponíveis, e, a despeito de vitórias eventuais do

aspecto mortes, a força de vida ressurge, teimosa.

Se tivermos ainda a sorte de conhecermos os mecanismos inconscientes

envolvidos, ela ressurgirá com mais vigor: Mas, não podemos ficar passivos vos diante

de Tanatos: devemos estar sempre alertas, denunciando seus mecanismos, comumente

sutis, de insinuarem-se, tanto ao nível individual como social. E para isso não

precisamos ser psicanalistas: temos de ser cidadãos, exercendo nossos direitos,

conquistados a tanto custo, em lutas memoráveis que se estenderam por gerações.

O PROCESSO DE LUTO

Uma das grandes contribuições da psicanálise tem sido uma melhor compreensão

do processo de luto. Em Luto e melancolia, Freud lançou as primeiras hipóteses, que se

constituem na origem e base de alguns desenvolvimentos posteriores. Sempre seguindo

a linha de tentar transpor conceitos nem sempre fáceis para leitor, observa-se, no

trabalho clínico, que o objeto morto (e objeto é um conceito amplo, que implica

também, mas não só, em pessoas inteiras) instala-se no ego do enlutado; funcionando

como objeto ao mesmo tempo protetor e perseguidor; E isto se deve à ambivalência dos

seres humanos, à dualidade de suas fantasias inconscientes, derivadas de aspectos

relativos à Vida e morte.

Durante o trabalho de luto, o ser humano deve recolher sua libido, suas fantasias

destrutivas (e aqui propositalmente estou misturando conceitos freudianos e kleinianos,

que, na verdade, se constituem num contíguo), que estavam dirigidas ao objeto, agora

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perdido. Na concepção freudiana essa "energia" se volta para o próprio ego, para a

figura morta agora introjetada. Na kleiniana, as fantasias inconscientes decorrentes

dessa perda reativam fantasias anteriores, e o objeto introjetado passa a funcionar num

padrão decorrente daquelas fantasias somadas à situação particular com esse ou outros

objetos perdidos no passado. Não é muito diferente da concepção freudiana: apenas se

valorizam mais as fantasias primitivas em vez das pulsões.

O que nos interessa, do ponto de vista clínico, é a possibilidade de uni luto:mal-

elaborado,em que predominam os objetos introjetados persecutórios. Isto 1eva a lutos

patológicos ou quadros melancólicos, e que a depressão é persecutória, carregada de

culpa. Não raro! esses indivíduos, agora identificados com esse objeto morto,

inconscientemente, passam a viver como "mortos" – a melancolia seria o exemplo

típico. As fantasias suicidas, ou o suicídio exitoso, são formas de eliminar esse objeto

aterrorizante: mas, para eliminá-lo, o ser humano tem de eliminar-se como um todo.

Outras vezes, como já vimos, coexistem fantasias de reencontro com objetos perdidos,

sentidos como bons, mas que na realidade, ambivalentemente, levam à autodestruição,

utilizando mecanismos maníacos e liberando aspectos tanáticos. Uma comprovação da

importância disso, em termos epidemiológicos, é que a chance de morte "natural", após

a morte do parceiro(a),é maior rio primeiro ano após essa perda, entre viúvos(as}. Outro

dado que nos revela a frequência desses lutos mal-elaborados, é a verdadeira endemia

de quadros melancólicos (o depressivo, segundo a classificação psiquiátrica) que

assolamos serviços de saúde. Comumente esses sintomas não se manifestam na área

mental, mas principalmente na somática, constituindo-se o que os clínicos e psiquiatras

chamam de "equivalentes depressivos". Na verdade, nada mais são que manifestações

de somatizações psicóticas, devido à dificuldade de simbolização, como já vimos. Se

bem que os progressos da neuroendocrinologia e neurofisiologia vêm estudando, com

algum sucesso, as misteriosas conexões entre mente e corpo – o que vem

complementando o que a psicanálise já descobrira.

Como elaborar melhor os lutos? Isto.vai depender dos mais variados fatores que

têm a ver com as "série complementares", descritas por Freud. Mas, não tenho dúvida

de que alguns fatores sócio culturais têm dificultado essa elaboração. A negação da

morte, o terror que ela inspira, a falta de rituais que auxiliem na sua elaboração, e que

têm a ver com momentos históricos, como o leitor encontrará em outros capítulos deste

livro, são motivos importantes. A falta de auxílio individual, que poderia ser efetuado

por profissionais de saúde treinados psicanaliticamente, é importantíssima. Comumente,

e eu próprio tenho alguma experiência nisso, é de grande valia ouvir o paciente, desde

que este não tenha conflitos muito sérios. Médicos, assistentes sociais e outros

profissionais, não necessariamente psicanalistas, mas com uma visão da importância das

fantasias inconscientes, podem ser de grande ajuda.

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Já no caso de conflitos mais sérios, é indispensável que terapias psicanalíticas ou a

própria o processo psicanálise sejam utilizada. Não raro, o processo de luto reativa

situações extremamente primitivas, que devem ser trabalhadas em profundidade.

Enfim, nos encontramos diante de um processo individual com repercussões

sociais intensas, pois o melancólico, mesmo que aparentemente ―equilibrado‖, passará

seu estado para os filhos e estes para diante, o objeto persecutório pairando por

gerações, culpógeno e impedindo o viver. Postulo, portanto, que o luto mal elaborado é

―contagioso‖, principalmente para as crianças, que terão de identificar-se com objetos

(pais, por exemplo) cujas fantasias mortíferas e moribundas se transmitem verbal e/ou

extra verbalmente..

REAÇÕES DE ANIVERSÁRIO

Uma forma peculiar de manifestação do processo de luto mal elaborado, se

constitui nas chamadas ―reações de aniversário‖. Trata-se de fenômeno nos que,

eliciados por uma data, fazem o indivíduo passar por processos variados de

manifestação de conflitos: ansiedade, tristeza, surtos psicóticos, ideias ou tentativas de

suicídio, somatizações (enfartes do miocárdio, gastrites, crises ulcerosas digestivas,

sintomas vagos, sintomas de vários órgãos com ou sem alteração anatômica), atuações

na área social, ou ainda na relação analítica, sonhos, etc...

Descrevem-se várias situações de "reações de aniversário": 1) o indivíduo passa

pelos processos descritos acima no aniversário de morte ou de algum fato que se associa

à morte ou perda de um objeto ambivalentemente amado e odiado; 2) Pode ocorrer

quando atinge a idade da pessoa morta, às vezes, o processo descrito leva à morte física,

por identificação; 3) Foram descritas situações em que a "reação de aniversário" ocorre

quando os filhos do paciente atingem a idade que ele "tinha quando seu pai ou mãe

morreram, ou foram perdidos; 4) na data de abortos ou na data em que deveria nascer

uma criança abortada. Existem situações ainda mais complexas, mas, na investigação

psicanalítica percebe-se que ocorreu uma identificação com o objeto perdido. Em outros

trabalhos postulei que essa identificação fica, de certa forma, encistada, até que,

eliciada pelo tempo, ela ressurge, inconsciente, propiciando uma revivescência desse

luto mal elaborado, e os conflitos se manifestam nas áreas descritas. Não raro, uma vez

passada a data, se não ocorrerem complicações, tudo volta ao ―normal‖ podendo haver

recaídas em outros anos. Mas, em situações graves, teremos desde quadros psicóticos

até doenças mortais.

Penso que este fenômeno, curioso, é extremamente comum, e adiante indico

bibliografia onde o leitor poderá encontrar situações clínicas e de eventos similares,

descritos na biografia de personagens históricos. Constituem uma prova de que as

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teorias psicanalísticas descritas acima têm uma utilidade prática imensa, pois a tomada

de consciência desses mecanismos permitem sua elaboração e a não repetição. O

mesmo ocorre com o luto.

CONCLUSÃO

Se a morte faz parte da vida; deve ser incluída nela, o que não tem ocorrido. O

trabalho psicanalítico, ao desvendar as fantasias inconscientes em relação à morte nos

auxilia a compreender o fenômeno. O que, evidentemente, deve ser complementado

pela investigação em outras áreas do conhecimento principalmente a história, a

antropologia e a sociologia.

A partir do trabalho psicanalítico, surgiram teorias vigorosas que podem auxiliar

os seres humanos a lidarem com a morte, a morte física e as mortes parciais do dia-a-

dia, de uma forma produtiva, fazendo com que a vida possa ser vivida criativamente e a

morte possa ser aceita como um fato da vida.

É o que observamos em moribundos que tiveram a sorte de se realizarem em suas

vidas – a morte é vivida como algo natural, sem os terrores daqueles para quem a vida

foi um fardo. Realizar-se como ser humano, em vida, será portanto, um dos escopos de

todo tipo de ação, de profissionais de saúde, e da sociedade como um todo, numa luta

pela dignidade e oportunidade de cada pessoa de alcançar a felicidade em vida. O

psicanalista terá sua função, evidentemente, mas não poderá onipotentemente lidar com

tudo o que implica na luta EROS X TANATOS, sem a contribuição de todos os seres

humanos, cada um em sua área, e todos juntos como cidadãos.

Efetuar psicanálise com pessoas em idade avançada, com pacientes de doenças

graves, que levarão à morte em pouco tempo, tem sido uma experiência riquíssima para

clientes e profissionais. Observo que, comumente, os pacientes, quando pode aproveitar

a análise, integram melhor seus objetos internos, podem conhecê-los, lidar com eles,

entrando com mais frequência no que os kleinianos chamam de posição depressiva; O

rever a própria vida, reconhecendo e aceitando seus limites, seus ―fracassos‖ e sua

criatividade, fazem com que os indivíduos vivam realmente, intensamente, o restante de

suas vidas, e morram em paz. Lembro-me em particular de um rapaz que passou toda

sua vida numa promiscuidade maníaca e que se tornou dependente de drogas. Dessa

forma adquiriu o vírus da aids. O seu tempo restante de vida, em análise, foi o melhor –

e passou a agradecer a Deus o fato de ter adquirido aids: só por isso, se dispôs a efetuar

a análise pessoal e descobriu que "vivera" como morto até então. Ao lidar com essas

pessoas o analista se vê também extremamente mobilizado, e aprende muito acerca da

sabedoria de viver.

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Se iniciei este capítulo com Milan Kundera, que nos mostra que vivemos apenas

uma vez cada minuto, e por isso ele deve ser aproveitado, aceitando-se que não

podemos vivê-lo de novo, quero encerrar o texto com a letra de uma Música de Chico

Buarque de Holanda: ―O Velho‖:

―O velho sem conselhos, de joelhos, de partida

carrega com certeza todo o peso desta vida.

Então eu lhe pergunto pelo amor:

A vida inteira diz que se guardou, do carnaval,

Da brincadeira que ele não brincou.

Me diga agora o que é que eu digo ao povo,

o que tem de novo para deixar?

Nada, só a caminhada, longa, pra nenhum lugar.

O velho de partida deixa a vida sem saudade

Sem dívida, sem saldo, sem rival ou amizade

Então eu lhe pergunto pelo amor:

Ele me diz que sempre se escondeu, nunca se

comprometeu e nunca se entregou

Me diga agora o que é que eu digo ao povo

O que é que tem de novo pra deixar?

Nada e eu vejo a triste estrada, onde um dia vou parar.

O velho vai-se agora, vai embora sem bagagem

Não sabe prá que veio, foi passeio, foi passagem

Então eu lhe pergunto pelo amor

Ele me é franco, mostra um verso manco, num caderno

o branco que já se fechou.

Me diga agora o que é que eu digo ao povo

O que é que tem de novo prá deixar?

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Não, foi tudo escrito em vão, eu lhe peço perdão,

mas vou lastimar

Não, não vou lastimar.

Deixo a cargo do leitor as associações que possa efetuar. Eu apenas queria

concluir que, como profissional e ser humano lastimaria muito e que provavelmente este

"velho" (que não necessita ter idade avançada) se encontraria aterrorizado diante dá

morte, pois não pôde viver a vida. Mas, como liberdade poética, que lança uma

mensagem, identifico-me com Chico: não lastimaria e aproveitaria ao máximo o poema

exemplar..

SUGESTÕES PARA LEITURA

Evidentemente o leitor deve iniciar por Freud. Se não tem noções de psicanálise

lhe aconselharia a ler primeiro as ―Conferências introdutória à psicanálise‖ (1916), no

volume da Ed. Standart das Obras Completas de Freud (Ed. Imago). Existem traduções

acessíveis para o espanhol e francês. Obviamente o original é alemão e a Ed. Standard

foi efetuada na Inglaterra.

O conceito de narcisismo aparece pela primeira vez em ―Sobre o narcisismo: uma

introdução‖, no vol 14. Mas, o narcisismo destrutivo é desenvolvido pelos kleinianos:

aqui recomendo o trabalho de Hebert Rosenfeld: ―Uma abordagem clínica para a teoria

psicanalítica das pulsões de vida e de morte: uma investigação dos aspectos agressivos

do narcisismo‖, que pode ser encontrado traduzido no livro Melanle Klein Hoje, vol 1,

editado ;:: por Elizabeth B. Spillius, da coleção Nova Biblioteca de Psicanálise,

coordenada por Elias Mallet da Rocha Barros, Editora Imago, 1990.

Voltando a Freud não pode deixar de ser lido ―Luto e Melancolia‖ (1917), no vol.

14 das Obras Completas. Mas o conceito de pulsão de vida e de morte só aparecerá em

1920, no trabalho ―Além do princípio do prazer‖, vol.18. Em 1923, em ―O ego e o id‖

estabelece-se com clareza a função do superego (vol. 19). Em ―O problema econômico

do masoquismo‖ esse aspecto é dissecado (1924, vol. 19).

Poderia indicar mais de uma dezena de trabalho de Freud. Se quisermos, é

facílimo verificar que toda a psicanálise, mesmo antes do conceito de pulsão de morte

estar desenvolvido, leva em conta, mesmo sem saber, essa noção. Artigos mais

diretamente ligados ao nosso tema, no entanto, são: "Totem e tabu" (1912, vol.12),

principalmente o item relativo ao contato (tabu) com os mortos, "Pensamentos para os

tempos de guerra e morte" (1915, vol.14), onde mostra como devemos aceitar e lidar

com a agressividade como fenômeno humano; "O mal-estar da civilização" (1930, vol.

21), em que relaciona a civilização com as barreiras contra pulsões, agora após a

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publicação de sua teoria de pulsão de morte; ―Inibições, Sintomas e angústia" (1926,

vol. 20), onde surge com mais clareza sua teoria da angústia; ―Porque a guerra?‖ (1933,

vol. 22), onde consta a clássica troca de correspondência entre Einstein e Freud, que já

previam a próxima guerra mundial.

Karl Menninger utiliza com maestria os conceitos freudianos em Eros x Tanatos:

O Homem Contra si Próprio, também clássico, cuja primeira edição é de 1938, revista

em 1965 e editado no Brasil em 1970 pela Ibrasa. Infelizmente, não me consta ter sido

reeditado. O título original é Man Against Himself. Outro clássico é Sadismo x

Masoquismo en la Conducta Humana, do psicanalista pioneiro radicado na Argentina,

Angeli Garma, cuja terceira edição aumentada é de 1952, Ed. Nova, mas que continua

sendo reeditado.

A escola kleiniana leva o conceito de pulsão de morte à origem da ansiedade e das

fantasias inconscientes destrutivas e defensivas contra ela. Não é fácil introduzir-se em

seus conceitos, a não ser vivenciando-os concomitantemente através da análise pessoal

(o que, aliás, também vale para os conceitos freudianos, mas, estes são mais

compreensíveis, na medida em que, de certa forma – correta ou deformada - foram

incorporados à nossa cultura ocidental). Pode-se tomar um primeiro contato com ele

através do conhecido livro de Hanna Seial: Introdução à Obra de Melanie Klein, da

Imago, em várias edições, tradução da segunda edição inglesa, de 1973, da Hogarth

Press. Nesse livro, à medida que a autora introduz o leitos nos: conceitos, indica a

bibliografia original, que assim se tornar mais compreensível.

Para os leitores que já conhecem Melanie Klein, recomendo a releitura do trabalho

de 1940: "O luto e sua relação com os estados maníacos depressivos", que consta de

Contribuições à psicanálise da Ed. Mestre Jou. Este trabalho logo deverá sair pela

Imago, nas Obras Completas, editadas. por R.. Money-Kyrle, na Inglaterra. Quando

acabei de escrever este texto só havia sido editado o vol. 3 onde constam: "Notas sobre

alguns mecanismos esquizóides" (1946), ―Sobre a teoria da ansiedade e da culpa‖

(1948), ―Algumas conclusões teórica sobre a vida emocional do bebê" (1952), ―Inveja e

gratidão‖ (1957) e "Sobre o sentimento de solidão" (1963), Nos últimos trabalhos, a

autora faz uma revisão dos conceitos anteriores. Este terceiro volume das Obras

Completas é intitulado Inveja e gratidão e outros trabalhos -1946-1963, Imágo, 1991.

Os desenvolvimentos posteriores da escola kleiniana podem ser encontrados em

Melanie Klein Hoje. vol.1 e vol. 2, da Imago, 1991 e 1990, respectivamente. Ali se

encontrão os indispensáveis "Diferenciação entre a personalidade psicótiva e não-

psicótica‖, e ―Ataques ao elo de ligação‖, de Wilfred R; Bion, onde se descrevem as

vicissitudes do funcionamento da parte psicótica da personalidade, o artigo de

Rosenfeld sobre o narcisismo citado acima, a chamada organização patológica descrita

por B. Joseph como ―O vício pela quase-morte‖ (vol. 1) e ―Morte e crise da meia-

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idade‖, de Elliot Jacques (vol.2) , além de muitos outros trabalhos que mostram o vigor

da escola.

Impasse e interpretação, de Herbert Rosenfeld é indispensável para quem quiser

aprofundar os conceitos técnicos fertilizados principalmente pelas idéias de narcisismo

destrutivo (Imago, 1988). Numa abordagem peculiar, André Green, influenciado pelos

ingleses e também pelos franceses, nos brinda com um trabalho criativo em Narcisismo

de vida, narcisismo de morte, Ed. Escuta, 1988.

Quem quiser conhecer melhor Bion, poderá iniciar com o livro de Leon Grinberg

e cols.: Introdução às idéias de Bion, também da Ed.lmago.

O conceito de filicídio foi criado por Arnaldo Rascovsky e é desenvolvido em O

assassinato dos filhos (filicídio).

Ed. Documentário, 1983, onde existem trabalhos de outros autores sobre o mesmo

tema. Podemos encontrar Rascovsky e vários autores criativos, escrevendo sobre

psicanálise e guerra, no livro organizado por Gley P. Costa, de Porto Alegre, Guerra e

morte; Imago, 1988. Com esta indicação passamos para os autores nacionais. Em O

que é suicídio, Editora Brasiliense, 1984, tento (Rossevelt M.S.Cassorla), num trabalho

para leigos, mas que tem servido de introdução para profissionais, abordar esse

conceito, utilizando os referenciais citados; mas não só eles. Em Da morte: estudos

brasileiros e Do suicídio: estudos brasileiros, de que sou o organizador (Ed. Papirus,

1991), encontramos 25 trabalhos de autores brasileiros, que efetuaram pesquisas sobre

os temas, sob várias abordagens, não só psicanalíticas. No segundo, encontra-se o

trabalho “O tempo, a morte e as reações de aniversário‖, onde o leitor encontrará

bibliografia acessória sobre esse tema. E nas referências dos demais trabalhos,

praticamente toda a bibliografia brasileira estará à sua disposição.

Evidentemente, a psicanálise não se reduz a Freud e à escola kleiniana, com seus

desenvolvimentos posteriores. Mas, são os que eu conheço. Penso que a vida é muito

curta para conhecer tudo o que gostaríamos; por isso optei em aprofundar-me naquilo

que me faz mais sentido hoje. Não sei se isso persistirá, porque o futuro é imprevisível.

O leitor já percebeu que estou justificando-me por não ter a capacidade de indicar

textos, certamente valiosíssimos, de outras abordagens psicanalíticas, como as da

psicologia do ego, junguiana, a psicanálise com abordagem predominantemente

existencialista, as várias orientações lacanianas, etc. Possivelmente, em outros capítulos

deste livro, autores mais competentes o farão.

O mais importante, no entanto, é que aqueles que me leem percebam que a queda

no dogmatismo, de que eu ou a teoria que eu adoto, é a correta, e a única correta, é um

reducionismo estéril, do lado da pulsão de morte, segundo o referencial que adotei no

texto. Por outro lado, propor-se a conhecer tudo, também é cair na onipotência.

Precisamos suportar o não-saber, fertilizando-nos com eles, quando possível, mas,

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tampouco masoquisticamente, deixar que nos ―queimem‖ em fogueiras inquisitoriais os

que se autodenominam ―donos da verdade‖ e que, em sua insegurança, não toleram o

diferente. Viver não é fácil e, por isso, é fascinante‖.

MORTE: ABORDAGEM FENOMENOLÓGICO

EXISTENCIAL

ROTHSCHILD, D. CALAZANS, R, A. in KOVÁCS, M. J. (Org.) Morte e desenvolvimento humano.

São Paulo, Casa do Psicólogo, 1992.

A referência que nos possibilita falar de morte na abordagem fenomenológico-

existencial é desenvolvida por Martin Heidegger em sua obra fundamental Sein und Zeit

{Ser e Tempo). Heidegger (1889-1976), filósofo alemão discípulo de Husserl,

desenvolve em Ser e Tempo uma busca do sentido de ser, através do método

fenomenológico. A fenomenologia é um método de investigação da história do

conhecimento, que propõe a volta às coisas mesmas, a partir da descrição e da

interrogação do fenômeno, isto é, do que é dado imediatamente.

O existencialismo é uma corrente da Filosofia, que toma como principal centro de

interesse e consideração a experiência mais imediata do homem, ou seja, sua própria

existência. Insurgiu-se contra a filosofia e a teologia racional em favor do sujeito, e este

com a responsabilidade total de sua existência. Toda a história da filosofia nasce a partir

do esquecimento da questão do ser. A filosofia instaura a dicotomia sujeito-objeto, a

partir da ascensão do sujeito como senhor do ente, que acaba enclausurado em si

mesmo.

Heidegger retoma os pré-socráticos, onde a questão do ser e do não-ser já está

presente. Desloca a questão da subjetividade que até então impera na Filosofia. Partindo

do constructo ―ser-aí‖ (Dasein), que substitui as noções tradicionais de sujeito, homem,

indivíduo, como ser-no-mundo, quebra a dualidade sújeito-objeto, reestabelecendo a

importância fundamental da práxis em relação à teoria. Propõe em seu tratado o

desenvolvimento não de uma filosofia, mas sim de uma ontologia, ou seja, um estudo

do sentido do ser.

Quando falamos desde uma ontologia, os termos são descritos como condições de

possibilidade para que alguma coisa se dê. Durante o desenvolvimento da abordagem

proposta, faremos algumas descrições, que devem ser entendidas como ontológicas e

não como psicológicas. Estaremos tratando de elementos estruturais para a compreensão

do ser. Disso pode decorrer uma psicologia, como a que foi desenvolvida por Medard

Boss, L. Biswanger, Rollo May e outros.

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No desenvolvimento de sua analítica existencial em Ser e Tempo, Heidegger

privilegia a morte, como qualquer outro termo pinçado desta obra. No termo ser-no-

mundo já está implícita a circularidade que permeia todo o tratado; ou seja, cada

elemento, na sua descrição, remete a outro já descrito ou ainda por descrever. O ser-aí é

no mundo. Nessa relação fica explicitada uma sujeição do ser-aí a esse mundo que já lhe

é dado como interpretado. Nessa perspectiva, habitamos um mundo familiar, onde tudo

é conhecido, previsível, onde todos somos ninguém: ―a gente‖ chora como todo mundo

chora; ―a gente‖ sofre como todo mundo sofre, ―a gente‖ se alegra como todo mundo se

alegra, pelos mesmos motivos que todo mundo chora, sofre; e se alegra. Em uma

primeira aproximação, esse contexto nos aparece como algo aterrador e aprisionante,

porque nos tira a possibilidade da autenticidade. No entanto, essa é uma estrutura

ambígua, Porque na realidade ela é uma possibilidade de fuga dessa mesma

autenticidade. A nossa vivência mais cotidiana dessa estrutura é a da hospitalidade, do

amparo e do enredamento. É como se soubéssemos e escapássemos da possibilidade de

uma vivência mais singular, que nos coloca fora dessa proteção. Do que escapamos é da

angústia: ―A angústia faz patente no ser-aí, o ser relativamente ao mais peculiar poder

ser, quer dizer, o ser livre para a liberdade de eleger-se e empunhar-se a si mesmo‖ (Ser

e Tempo, p.: 208)

A angústia é a forma autêntica do temor, que é a nossa vivencia cotidiana. Temer é

sempre temer algo, algo frente a mim por um porquê. O nos mais peculiar poder ser, do

qual nos esquivamos, é a morte. A morte é um fenômeno do cotidiano. Vivemos sempre

a morte como morte do outro. Os outros morrem e eu ainda não. A minha morte, eu

penso amanhã. Nós nos esquivamos da possibilidade da singularização da morte.

A morte é a possibilidade mais peculiar, irrefutável e irrepresentável, ser-aí.

Dentro de todas as minhas possibilidades, já está presente a absoluta impossibilidade de

não estar mais aí. A angústia é um fenômeno raro em nossa existência e quando passa,

parece que foi um nada. A angústia põe de manifesto a possibilidade da autenticidade e

da inautenticidade, ou seja, a possibilidade do ser-aí, ser o autor sua história, a partir da

construção, ou não, de um sentido.

―Que faria agora? Iria levantar-me e continuar a viver?

Catarina estava morta, Antônio, Beatriz, Carlier, todos os que

eu amara estavam mortos, e eu continuava a viver; estava

presente, o mesmo há séculos; meu coração podia bater durante

um momento, de piedade, de revolta, de desespero; mas eu

esquecia. Enfiei os dedos na terra e disse com desespero: "Não

quero". Um homem mortal teria podido recusar-se a continuar

seu caminho, poderia ter eternizado a revolta, poderia matar-se.

Mas eu era escravo da vida que me puxava para a frente, para a

indiferença e para o esquecimento. Era vão resistir. Levantei-

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me e tomei lentamente o. caminho de casa‖. (S. de Beauvoir,

Todos os homens são mortais, p. 326)

Em Todos os homens são mortais, Simone de Beauvoir se utiliza de um

personagem mortal (Fosca), que tem a experiência da imortalidade. Essa construção nos

leva a conhecer os sentimentos ambivalentes do personagem que, se em um primeiro

momento se fascina, acaba por viver sua imortalidade como' danação, uma vez que, ao

usar o elixir que lhe dá a vida eterna já não pode mais morrer. Não é o nosso caso. A

morte para nós não é uma escolha, todos vamos morrer. O ser-aí é ser para a morte. O

ser-aí já está sempre lançado em suas possibilidades, e a. a morte é a possibilidade mais

peculiar, irrefutável e irrepresentável.

A angústia nos abre este ser relativamente à morte que é ameaçador, estranho e

inóspito; nos esquivamos e habitamos um mundo protegido, presumível, onde a morte

aparece como um acidente no final da vida, que não é hoje. No texto de Simone de

Beauvoir fica patente a ameaça, a inospitalidade, o estranhamento da imortalidade.

Características tão humanas quanto avançar, 1embrar, se desesperar, se matar, ficam

assim impossibilitada, Só lhe resta continuar. Um continuar e sem projetos, sem sentido,

sem ligação temporal.

Na abertura privilegiada da angústia, nos angustiamos pelo ser no mundo

enquanto tal. Nos deparamos com a falta de sentido no mundo, que não nos pode mais

sustentar. Assim, nos apropriamos do que só nós podemos nos dar a sustentação, ou

seja, ser o autor do sentido de minha existência. No cotidiano vivemos afastando essa

possibilidade de nós mesmos. Acreditamos que amanhã sempre haverá tempo. Só, por

isso nos envolvemos em projetos, acreditando que eles poderão se concretizar e que

sempre teremos tempo para isso.

Na vida de Fosca não existe a possibilidade da morte. Esta é vivida como perda

das pessoas com as quais se envolve. Em nosso existir essas perdas são vividas como

morte factual, separações, término ou interrupção de um projeto. Fosca se desespera

ante a possibilidade do esquecimento das perdas, ressentindo-se de não poder eternizá-

las nesse momento. ―A gente‖ cuida das perdas tentando minimizá-las, pensando que

haverá sempre outra oportunidade, pensando que sempre aprendemos alguma coisa com

isso, fazendo substituições. Assim nos esquivamos da consciência do fim. Não existe

recomeço, não existe substituição, não é possível esquecer.

Nossas perdas, assim como ganhos, nossos erros e acertos, nos constroem, ou seja,

sou eu quem perde, quem ganha, quem erra, quem acerta... A todo momento temos de

escolher. A cada escolha que fazemos decretamos a morte da outra possibilidade não

escolhida. Isso frequentemente nos traz ansiedade frente ao conflito de não podermos

viver tudo ao mesmo tempo, de não podermos estar em mais que em um lugar ao

mesmo tempo. O ser-aí morre cotidianamente todos os dias.

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"Mas eu era escravo da vida que me puxava para á frente, para

o esquecimento. Era vão resistir. Levantei-me e tomei

lentamente o caminho de casa." (Simone de Beauvoir, op. cit.,

p. 326).

Em nosso mais cotidiano modo de ser, nos vemos como escravos do tempo. O

tempo passa, nos carrega para a frente, sem parada, sem sentido, levando-nos ao

esquecimento e à indiferença. Esse é o caminho de casa. Assim nos sentimos abrigados,

fugindo da responsabilidade temporal do projeto de nossa existência.

O ser-aí é lançado, lançado em suas possibilidades no seu tempo, a fim de si

mesmo. Meu projeto aponta para um futuro que ainda não é, mas que , poderá vir a ser,

e que também poderá não ser, uma vez que está implícito nas minhas possibilidades a

de já não estar mais aí Dentro desta perspectiva, cabe-nos a adoção de um sentido que

transforma a leitura desse tempo. Assim me vejo como ser finito e responsável pela

minha existência. Meu futuro já foi projetado por mim; impulsionado pelo meu passado

do qual me utilizo no presente.

Na perspectiva do sentido, o passado tem significado como o já vivido, que passa

a ser acolhido, possibilitando que nos lancemos em projetos. Ao nos lançarmos nesses

projetos o passado é ressignificado a serviço deste futuro. Para Fosca, como não é dada

a possibilidade do morrer, a circularidade não existe. Fosca não consegue ver um

sentido no seu viver. O sentido decorrente da possibilidade de um futuro finito. A Fosca

só resta o esquecimento e a indiferença. O passado não pode ser acolhido,

ressignificado, porque é uma repetição infinita. Às vezes, se engana, se envolve com

pessoas e consequentemente com projetos. Percebe seu engano quando assiste o morrer

das pessoas. Desperta-se. Só lhe resta continuar...

"Olhei meus sapatos de fivela, minhas mangas de rendas;

parecia- me que há vinte anos eu me prestava a esse brinquedo

e que um dia, ao soar a meia-noite, e, eu retornaria ao país das

sombras. Ergui os olhos para a pêndula. Acima do mostrador

dourado, uma pastora de porcelana sorria para um pastor;

dentro em pouco, o ponteiro assinalaria meia-noite, assinalaria

meia-noite. amanhã, depois de amanha, e eu ainda estaria

presente; não havia outro país senão aquela terra onde não

havia lugar para mim. Estivera na minha terra em Carmona e na

corte de Carlos V, e nunca mais. Doravante, o tempo que se

desenrolava à minha frente seria, a perder de vista; um tempo

de exílio; todas as minhas vestimentas seriam fantasias e minha

vida, uma comédia" (Simone de Beauvoir, p. 216)

Presente, passado e futuro; é assim que entendemos o tempo. Dentro dessa leitura

podemos falar separadamente de cada tempo, conforme estejamos mais próximos de um

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ou de outro, e isso é sempre compreendida por todos. No passado fiz tal coisa, amanhã

farei alguma coisa e agora estou fazendo isso. No horizonte da temporalidade circular

de Ser e tempo essa separação não é possível. Na perspectiva do sentido não vivemos

um tempo, somos tempo.

Fosca, na medida em que se vê como imortal, sente-se invadido por um presente

interminável, pesado como um exílio. Para ele o tempo passa, nada acontece de verdade

e nada poderá acontecer, uma vez que o futuro é só uma extensão desse presente, assim

como o passado. O sentido foi exilado de sua existência pela vivência da imortalidade,

nada pode significar nada. Fosca lamenta o tempo todo quanto é inóspita a imortalidade.

―A gente‖ sempre pensa que seria muito bom ser imortal. Fosca nos mostra quanto é

impossível a realização dessa fantasia. Morrer é um dado estruturante de nossa

existência. Todo ser-aí é ser para a morte.

Toda a concepção que temos do que é homem, ser humano, sujeito ou indivíduo

fica perpassada pela ideia de mortalidade. Só podemos entender algum sentimento,

algum afeto, alguma manifestação intelectual ou social, a partir desse dado. Pois assim

temos a noção de ser como todo mundo é, e só assim podemos nos relacionar com os

outros. Só assim frases como: "morrer por", "morrer de", até "morrer"... fazem sentido.―

- Tudo era falso - repetia ela

- Não sofremos dentro do mesmo tempo e tu me amas do fundo de outro mundo, Estás

perdido para mim.

- Não. Agora é que nos encontramos porque agora vamos viver dentro da verdade.

- Nada pode ser verdadeiro de ti para mim.

- Meu amor é verdadeiro.

- Que é teu amor? Quando dois seres mortais se amam, são moldados, corpo e alma,

pelo seu amor, que é a própria substância desse corpo e dessa alma. Para ti...é, um

acidente." (Simone de Beauvoir, p.320.)

Fosca se exilou desse mundo, ou seja o único que ele e nós conhecemos. Está

impossibilitado do compartilhar. Não é mais desse mundo, portanto, esse mundo não lhe

dá mais sentido nem sustentação. Tudo o que existe é o vazio da angústia. Fosca se

angustia porque é um personagem mortal, escrito por uma autora mortal, para leitores

mortais. Tudo o que pode ser compartilhado tem o recorte da mortalidade.

" - Não há mais o que contar - disse Fosca -.Todos os dias o sol

levantou-se e deitou-se. Entrei no hospício, saído hospício.

Houve guerras: depois da guerra, a paz; depois da paz, outra

guerra. Todos os dias homens nascem e homens morrem." (S.

Beauvoir, op., cit., p. 391.)