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REDE NACIONAL DE TANATOLOGIA
CURSO DE FORMAÇÃO EM TANATOLOGIA
APOSTILA DE TEXTOS
TANATOLOGIA GERAL
APOSTILA DE TEXTOS
TANATOLOGIA GERAL
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SUMÁRIO
1. DESENVOLVIMENTO DA TANATOLOGIA ............................ 03 KOVACS, M. J. Educação para a Morte- Temas e reflexões. São Paulo, Casa do Psicólogo,
2003.
2. A MORTE ENQUANTO PENSAMENTO ..................................... 14 KASTENBAUM, R. AISENBERG, R. PSICOLOGIA DA MORTE. São Paulo, Pioneira, 1983.
3. O TERROR DA MORTE ................................................................ 20 BECKER, E. A negação da morte. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1976.
4. O INDIVÍDUO, A ESPÉCIE E A MORTE ..................................... 31 MORIN, E. O. O homem e a morte. Rio de Janeiro: Imago, 1970.
5. MORTE – VARIÁVEL RELEVANTE EM PSICOLOGIA .......... 36 FEIFEL H. in MAY, R. Psicologia Existencial, Rio de Janeiro, 1988.
6. REFLEXÕES SOBRE PSICANÁLISE E MORTE.......................45 CASSORLA, R. S. M. in KOVÁCS, M. J. (Org.) Morte e desenvolvimento humano. São Paulo,
Casa do Psicólogo, 1992.
7. MORTE - ADORDAGEM FENEMENOLÓGICA
EXISTENCIAL............................................................................. 62
ROTHSCHILD, D. CALAZANS, R, A. in KOVÁCS, M. J. (Org.) Morte e desenvolvimento
humano. São Paulo, Casa do Psicólogo, 1992.
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DESENVOLVIMENTO DA TANATOLOGIA
Área de Estudos Sobre a Morte
Kovács, M. J. Educação para a Morte- temas e reflexões
São Paulo, Casa do Psicólogo, 2003.
Parábola do grão de mostarda
Segundo esta história, a mulher está a lamentar-se incontrolavelmente pela
morte do seu amado filho, cujo cadáver leva em seus braços. Não parece
consciente de que a morte é um acontecimento terminal- pelo menos para esta
existência.
Na esperança de encontrar um antídoto para a “doença” do filho, que lhe
devolva os sentidos, ela se aproxima de Buda, afamado pelos miraculosos
poderes de cura. Buda lhe fornece um antídoto, porém não do tipo que ela
procurava.
Ele a instruiu para que vá de casa em casa por toda a cidade em busca de
alguns grãos de mostarda. As sementes de mostarda diz ele, fornecerão o
antídoto apropriado para a doença da criança (isto é a morte).
Porém ela só deve aceitar a semente de mostarda da casa onde nunca haja
morrido ninguém- nem pai, nem mãe, nem irmão ou irmã, nem um criado ou um
animal. Após procurar de casa em casa, ela descobre que nem uma só casa
pode ser achada que jamais haja experimentado a morte de um de seus
membros.
Em tempo enxergou a verdade, que é a panacéia para a morte e a tristeza: que
a morte é o destino inevitável de todas as criaturas e que dada a sua
inevitabilidade, ela não tinha motivo para lamentações. Aliviada das angústias
da falsa esperança e das dores desnecessárias, dirigiu-se imediatamente ao
local onde faz para cremar o cadáver do filho. (In Kübler- Ross, 1975)
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Muitos autores nomeiam a área de estudos sobre a morte como tanatologia;
embora não goste muito do termo, vou aqui utilizá-lo para falar dos primórdios e do
estado atual deste campo de estudos.
Neste capítulo traçarei um histórico dessa área apresentando o seu
desenvolvimento, tanto como corpo de conhecimento quanto na sua faceta mais prática,
que envolve o cuidado de pacientes no fim da vida, os processos de luto antes e depois
da morte, e temas como suicídio, comportamentos autodestrutivos, eutanásia e suicídio
assistido.
UM POUCO DE HISTÓRIA
Um dos grandes pioneiros na área da tanatologia foi William Osler (1849-1919), médico muito conhecido no seu tempo. Golden (1997-1998) retoma pontos
fundamentais do seu trabalho como, por exemplo, o estudo pioneiro em tanatologia ―A
study of Death‖, publicado em 1904, no qual apresenta uma discussão sobre os aspectos
físicos e psicológicos da morte. Osler era um humanista e o objetivo principal de seu
trabalho foi amenizar o sofrimento de pessoas no fim da vida, envolvendo questões
como suicídio, luto, eutanásia - temas muito avançados para a época. Osler nasceu no
Canadá e se formou em medicina, trabalhando no Hospital Jonh Hopkins, instituição de
referência em educação médica.
A morte era uma área importante de trabalho para ele que, além de estudar
patologia, tinha uma grande preocupação no cuidado com as pessoas. São apresentados
casos em que acompanhava crianças até a morte, deixando rosas nos seus leitos,
enfatizando a importância da empatia e compreensão do processo do fim da vida. A
perda de um filho, certamente, teve grande influência na sua maneira de lidar com a
questão. Tinha uma coleção de livros, com diversos temas ligados à morte, que está no
acervo da biblioteca Osler, na Universidade Mc Gill em Quebec.
Osler propunha que nenhuma morte deveria ser dolorosa, e que poderia ocorrer
na inocência, como os nascimentos. Defendia a utilização de drogas para facilitar o
processo, não só para o alívio da dor, e já fazia o uso da morfina, que denominava de
medicação divina. Advogava que as pessoas deveriam morrer dignamente, sem
sofrimento, sem intervenções desnecessárias, podendo se perceber aí as raízes do
movimento dos cuidados paliativos.
Sobre a questão do suicídio, embora manifestasse ambivalência, parece ter tido
certa simpatia pela causa, pois buscava compreender os motivos antes de condenar e,
em alguns casos, até demonstrava aprovação.
Entre as primeiras obras que abordam o tema da morte, segundo Kastenbaum &
Costa. (1977), encontra-se a de Fechner com o livro BOOK LITTLE OF LIFE AFTER DEATH
de 1836, o de William James sobre a imortalidade, e uma pesquisa conduzida por
Stanley Hall ( 1915) sobre o medo da morte, conhecida como tanatofobia.
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Maeterlink foi o primeiro a utilizar o termo ―tanatologia‖ para definir essa área
de estudos, e buscava compreender a questão dos "horrores" da morte, as torturas e as
memórias insuportáveis da dor. (Golden, 1997/1998).
Na sequência, e para apresentar o histórico sistematizado e as primeiras
avaliações sobre a questão da tanatologia, tomarei como base um estudo realizado por
colaboradores do periódico OMEGA JOURNAL OF DEATH AND DYING, especializado na
área da tanatologia, estudo esse concluído em 1987, a partir dos debates ocorridos no
Encontro da ―ASSOCIATION FOR DEATH EDUCATION‖ realizado na Suécia em 1982.
Embora este material tenha sido elaborado há 14 anos, ainda mantém grande
atualidade. Procurarei complementar com questões que possam ter surgido como
relevantes nos últimos tempos, incluindo a experiência brasileira que, ainda no seu
início, tem apresentado pesquisas importantes.
Entre os grandes clássicos da tanatologia, encontra-se, também, a obra de Freud
(1917), LUTO E MELANCOLIA, em que trata diferenciação entre tristeza pela perda de
pessoa significativa e a melancolia, onde a perda é de si próprio. Outra obra clássica o
autor, e que ainda hoje é fruto de estudo e discussão é ALÉM DO PRINCÍPIO DO PRAZER
(1920), em que apresenta a hipótese de existência de uma pulsão de morte. Além dessas,
Cassorla (1992, p.107) e Zaidhaft (1990, p.72-74) citam mais algumas obras de Freud
que também abordam o tema.
Outro clássico, este na área do suicídio, é de Durkheim, que no fim do século
XIX, sobre isso escreve um tratado sob a ótica sociológica, obra que ainda é
fundamentação para vários autores que se debruçam sobre o tema.
Mas o grande desenvolvimento da tanatologia se deu após as guerras mundiais,
mais particularmente com as obras de Feifel que, em 1959, escreveu o clássico ―THE
MEANING OF DEATH‖, indicador de um movimento de conscientização da presença da
morte no meio da mentalidade de interdição sobre o tema. O livro inclui textos sobre
filosifia, artes, religiosidade, sociologia, com artigos de Jung- ―THE SOUL AND DEATH‖;
Marcuse- “THE IDEOLOGY OF DEATH” e Tillich- “ THE ETERNAL NOW‖. Inclui, também,
capítulos de autores que foram pioneiros na área da tanatologia como Glaser& Strauss,
cuja obra principal é ―AWARENESS OF DYING‖, 1965, em que discutem sobre
consciência da morte em pacientes terminais. Schneidman& Farberow, que escreveram
sobre suicídio na coletânea do livro Feifel, produziram também uma das obras iniciais
sobre a sua prevenção: CLUES TO SUICIDE, 1957.
Kastenbaum com Aisenberg, escreveu o livro PSYCHOLOGY OF DEATH no ano de
1976, sendo esta uma das primeiras obras traduzidas e introduzidas em nosso meio; com
o título ―OMEGA- JOURNALOF DEATH AND DYING‖, também referência para os estudiosos
da área.
Bluebond-lagner ( 1987-1988) importante pesquisadora do tema da morte para
crianças, mais particularmente do luto infantil, foi convidada a apresentar as principais
questões sobre o assunto. A autora refere que há 30 anos são realizadas pesquisas sobre
o tema da morte, mas, questiona sobre que contribuição ofereceu para o
desenvolvimento da área.
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Afirma que muitas delas tratavam de variáveis específicas, com preocupação
muito grande em defini-las operacionalmente, sem contribuir para uma reflexão que
pudesse ser impulsionadora. Segundo ela, na década de 1960 houve grandes mudanças,
como atestam os trabalhos de Kübler-Ross e Saunders, que revolucionaram o trabalho
com pacientes em estágio terminal da doença, trazendo o tema da morte a público,
desafiando uma mentalidade que propunha a morte como tema interdito como apontou
nos capítulos 1 e 2.
Nas décadas de 1970 e 1980 ocorreu a consolidação da área, mas também certa
estagnação. A exigência de rigor metodológico foi levada a extremos provocando um
estreitamento da criatividade. Observa-se certo conservadorismo, uma necessidade de
comprovação de tudo o que se dizia e muitos estudos foram replicados com forte
tendência à quantificação.
Esta repetição como pode observar, se apresenta nos inúmeros artigos
envolvendo criação e padronização de escalas para medir ansiedade frente à morte. Esta
tendência acabou por restringir uma área tão ampla e complexa como a tanatologia,
podendo, segundo as palavras de Kastenbaum& Thuell ( 1995) nos afastar do tema, de
suas dimensões mais profundas. Uma hipótese é de que talvez possa estar se operando
um mecanismo de defesa, que não nos deixa entrar em contato com temas que lidem
com a subjetividade do ser humano diante da morte, diante da sua extinção. Questionam
por que os clínicos não leem o que os pesquisadores escrevem, e sugerem que, talvez,
não o façam porque não respondem às suas questões principais. Clínicos e acadêmicos
deveriam trabalhar juntos, afirmam os autores.
Na mesma obra, esses investigadores apresentam um estudo sobre o livro A
MORTE DE IVAN ILLITCH, de Tolstoi, envolvendo o tema da medicalização da morte e a
história de um casal de camponeses russos, os Tominshky, no qual se vê o cuidado ao
doente no lar. Ambas são histórias que ocorrem na Rússia. O fim da vida de Illitch foi
de frustração, distanciamento, dor, isolamento social e dúvidas sobre sua qualidade de
vida. Na história dos tominshky havia aproximação, amor, comunicação e encontro.
Falando destas duas realidades, os autores discutem os caminhos da tanatologia, e
apresentam as abordagens teóricas sobre a morte.
Uma das primeiras e mais importantes obras sobre o cuidado a pacientes
terminais é SOBRE A MORTE E O MORRER de Kübler Ross, em 1969, à qual nos referimos
com mais detalhes no capítulo 2. A autora é muito mais conhecida pelos estágios que
apresenta do que pela proposta de comunicação, o que, sem dúvida, é um grande
equívoco.
Kastenbaum & Thuell (1995) referem-se, também, a uma segunda teoria
importante nos cuidados a pacientes terminais, que são os contextos de consciência
relatados por Glaser & Strauss ( 1965), na obra ― AWARENSS OF DYING‖, já citada
anteriormente . Estes autores, clássicos da tanatologia ocidental, abordam a questão do
quanto o paciente sabe e percebe sobre sua doença. Realizaram seus estudos em
hospitais de São Francisco com pacientes internados, observando sua relação com a
equipe de saúde. Na chamada consciência fechada, o paciente não quer saber e o
profissional também não quer falar.
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Outro contexto é o do fingimento mútuo, no qual é importante não deixar que o
outro saiba aquilo que se sabe (paciente e equipe). Falaram, também, de trajetórias no
processo da morte: aquelas que são rápidas e inesperadas, e as que são prolongadas e/ou
esperadas.
Fulton & Owen (1987/1988) também fizeram um estudo que traça as trajetórias
sobre a compreensão da morte no século XX. Comparam as concepções de morte
daqueles que nasceram antes da segunda guerra às dos que nasceram depois, mostrando
quão drásticas foram as mudanças provocadas pelo lançamento da bomba atômica. Os
primeiros têm hoje mais de 70 anos; quando nasceram à expectativa de vida não
chegava aos 50 e muitos morriam de doenças infecciosas. Mais de 60% eram originários
da zona rural; as mortes ocorriam em casa e a ‖morte domada‖, como postulada por
Ariès, imperava.
Já os que nasceram depois da segunda guerra tinham uma perspectiva diferente:
a expectativa de vida era de aproximadamente 70 anos, muitos só viram a morte à
distância e já nasceram em maternidades; as doenças podem ser combatidas pelo avanço
da técnica médica e suas mortes se tornaram distantes, abstratas e invisíveis.
Há temas que emergem no fim do século XX, e que demandam aprofundamento,
entre os quais podemos citar: AIDS, desastres tecnológicos, guerras e terrorismo.
Pijawka, Cuthbertson & Olson (1987/1988) observam que há um aumento nos
desastres, não só os da natureza como, também, os tecnológicos. Citam, como exemplo,
o desastre nuclear de THREE MILLE ISLAND, cujos efeitos a curto e longo prazo deveriam
ser considerados, já que envolvem mortes concretas e perdas em várias esferas da vida.
Trazem também pontos importantes a serem considerados, como a percepção de riscos,
e como a mídia divulga os desastres. Os riscos tecnológicos são mais assustadores
porque não se entende o que está acontecendo, como se prevenir. A mídia pode trazer
distorções, transformando os personagens destas situações em vítimas e vilões, o que
atrapalha a fidedignidade das informações.
Outra área que tem demandado um olhar com mais profundidade relaciona-se
aos cuidados a pacientes no fim da vida, às suas necessidades, à estrutura de
atendimento envolvendo hospitais e outros recursos como ―hospices‖, unidades de
cuidados paliativos, Cuidado domiciliar. Essa área envolve temas polêmicos tais como
morrer com dignidade, eutanásia, suicídio assistido, os quais serão abordados com
maior profundidade em outra parte deste trabalho.
Schultz & Schlarb (1987/1988) apontam para a magnitude do problema, já que é
crescente o número de idosos doentes e pacientes em estágio avançado da doença. As
pesquisas na área de cuidados paliativos envolvem temas como: agravamento da
doença; sintomas múltiplos e incapacitantes; transmissão de más notícias;
enfrentamento da proximidade da morte; processo do luto antecipatório; luto dos
familiares, entre outros.
Os autores relatam que há poucas pesquisas na área, pela dificuldade de sua
condução. Um estudo importante foi realizado por Kastenbaum & Weisman (1968)
usando a ―autópsia psicológica‖ para a reconstrução das fases finais da vida, estudando
o contexto psicossocial da morte. Verificaram uma ampla gama de modos de lidar com
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a situação, relacionados à forma com a qual as pessoas enfrentaram outras crises em
suas vidas.
Outro estudo clássico na pesquisa com pacientes em estágio terminal da doença
é o de Hinton (1963), que verificou altos níveis de desespero e depressão em 55% dos
pacientes. Foram observados temas como: desligamento das preocupações sociais,
atendimento às próprias necessidades e os modos de enfrentamento desta situação.
As pesquisas com crianças gravemente enfermas demandam aprofundamento.
No começo acreditava-se que elas nada sabiam sobre a doença e possibilidade da morte.
Observou-se, então, que as crianças observavam o seu entorno, Buscando respostas às
suas dúvidas. Nesta área os primeiros trabalhos sobre o conhecimento da criança sobre a
morte são os de Nagy (1959). No Brasil são pioneiros os trabalhos de Torres, (1978,
1979, 1999).
Tanto nos estudos com crianças como com adultos, a abordagem qualitativa de
pesquisa traz dados importantes sobre os momentos vividos desde o diagnóstico,
durante o transcorrer da doença o tratamento, envolvendo os sentimentos relacionados
com a cura, recidiva, proximidade da morte, processo de hospitalização, modos de
enfrentamento, entre outros.
Em 1981 a Organização Nacional dos Hospices traçou as diretrizes para o
desenvolvimento de pesquisas na área de cuidados paliativos, envolvendo, em primeiro
lugar, a comparação destes com o atendimento oferecido em hospitais convencionais.
Posteriormente, as pesquisas passaram a envolver temas como morte com
dignidade, e as necessidades dos pacientes gravemente enfermos. As dificuldades de
pesquisa com a clientela foram arroladas, centradas no fato que os estudos quantitativos
podem trazer dados que não traduzem a realidade que pretende estudar. Já as pesquisas
qualitativas (com depoimentos, histórias de vida) podem oferecer melhor retrato da
realidade das pessoas vivendo a proximidade do fim, do que os escores das escalas de
qualidade de vida, que não traduzem a dimensão deste momento da existência. Pode ser
mais fidedigno perguntar ao próprio paciente se suas necessidades foram atendidas, ou
qual o significado que atribui à sua própria dor.
Outras questões importantes implicam em saber o que seria um bom programa
de cuidados paliativos. Como avaliar? Como ampliar os programas de cuidados
paliativos para atender a uma gama maior de pacientes, por exemplo idosos, com uma
série de sintomas incapacitantes, sendo os mais graves aqueles relacionados com
demenciação e esclerose?
Em duas pesquisas realizadas com pacientes com câncer avançado, na ―Unidade
de Tratamento da Dor e Cuidados Paliativos‖ do Hospital Amaral Carvalho, em Jaú
(Kovács, 1998, 2000), foram discutidas formas de avaliação de sua qualidade de vida e
a busca de melhor compreensão de suas necessidades. Estes estudos serão comentados,
com maior detalhamento, no relato de minha experiência.
Outra área importante de trabalho e de pesquisa é formação e preparação de
profissionais de saúde sobre como lidar com pacientes gravemente enfermos e seus
familiares. Benoliel (1987/ 1988), enfermeira e pesquisadora, trazem questões
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importantes para reflexão sobre o tema, a partir de várias pesquisas que estudaram como
profissionais lidam com a morte, sobre os índices de ansiedade, medo, e de que modo
enfrentam a situação. Entre as principais dificuldades enfrentadas estão: como falar com
o paciente sobre o agravamento da doença e a possibilidade de sua morte; como realizar
os procedimentos usuais em pacientes sem prognóstico de cura; sensação de
incompetência e os sentimentos envolvidos.
Um tema importante nos estudos sobre a morte e o morrer é do luto. Parkes
(1987/1988) grande autoridade neste tema, aponta as preocupações atuais nas pesquisas
envolvendo a área. Observa que, muitas vezes, a abordagem é supersimplificada e
repetitiva. Baseia seus comentários em trabalho realizado por Raphael que, em 1983,
analisou 400 artigos sobre o tema do luto.
No estudo dos conceitos básicos, verificou como o processo de luto afeta o
significado que se dá á vida, Já que nela provoca profundas transições. Outra área
importante de trabalho é o estudo dos efeitos das perdas no organismo, principalmente
no sistema imunológico. Dados epidemiológicos apontam que ocorrem muitas mortes
após a viuvez.
Inicialmente as manifestações do luto eram vistas como sintomas de doença
física, entre os quais: Insônia, anorexia, aumento no uso de álcool e drogas. Muitos
pacientes buscavam também ajuda psiquiátrica por causa de depressão reativa. Os
sintomas do luto podem ser, na maior parte das vezes, tratados com psicoterapia breve,
sendo os casos mais complicados encaminhados para processos mais longos.
O autor refere-se também ao desenvolvimento de pesquisas, incluindo diferenças
nas respostas do luto, envolvendo questões de gênero como, por exemplo, estudos que
verificam que mulheres que perdem seus filhos é o grupo mais vulnerável para o luto
complicado.
Foram realizados também estudos sobre diferenças culturais, manifestações
emocionais e a realização dos rituais. Parkes, por exemplo, publicou um livro muito
interessante, ―DEATH AND BEREAVEMENT ACROSS THE CULTURES‖ (1997), no qual
abordam os principais temas e rituais das culturas hindu, budista tibetana, judaica, cristã
e islamita.
São igualmente importantes os estudos envolvendo fases do desenvolvimento, e
os fatores de risco para o enluta mento complicado. Assim tem se tornado prioridade o
estudo do enlutamento, com pessoas idosas, e mais particularmente pela perda de filhos
adultos. Por razões múltiplas, o número de idosos tem aumentado de maneira
significativa, e alguns deles vivem situações de risco: muitos têm problemas
financeiros, estão solitários, tem doenças graves e que podem complicar com os
contínuos processos de luto- Constituindo o que Kastenbaum ( 1969) denominou de
―sobrecarga de luto‖.
O luto patológico ou, como se denomina atualmente, o luto complicado é uma
nova área de estudos, na qual ainda se observam controvérsias. Segundo Parkes (1998),
é muita onipotência se acreditar que há um padrão único de enfretamento das perdas,
sendo necessária uma cuidadosa avaliação em cada caso.
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A questão do luto complicado é um aspecto fundamental para se considerar
atualmente, embora os profissionais não estejam preparados para lidar com este
fenômeno. Rando (1992/1993) traz relevantes pontos para discussão deste assunto,
mostrando as consequências sérias quando não se cuida do luto complicado. Segundo a
autora é importante:
Identificar fatores de risco.
Delinear as tendências socioculturais e tecnológicas que possam exacerbar estas
tendências.
Observar o que é necessário ser trabalhado para se evitar um luto complicado.
Há dificuldades em identificar o que se considera como luto complicado, e uma
necessidade de revisão de alguns conceitos como luto patológico, desajustado, anormal,
disfuncional, desviante, entre outros. A nova tendência é falar em fatores complicadores
do luto. Esta abordagem é mais fidedigna porque não responsabiliza a pessoa por seu
sofrimento e complicações. Pode-se dizer que há circunstâncias da morte e do pós-
morten que podem complicar o processo de luto.
A forma de morte pode afetar a elaboração do luto, sendo o suicídio e acidentes
as mais graves, bem como as mortes de longa duração, com muito sofrimento, que são
bastante desgastantes. Outros fatores podem complicar este processo como, por
exemplo, a relação anterior com o falecido: a ambivalência e a dependência. Devem ser
considerados outros aspectos como problemas mentais anteriores e a percepção da falta
de apoio social.
De qualquer maneira, é importante salientar que as situações de luto complicado
podem se expressar em sintomas físicos e mentais. Segundo Rando (op. Cit.) ocorrem
distorções que afetam a expressão do luto, tais como o seu adiamento, inibição ou
cronificação do processo. Penso que estes itens são importantes de ser considerados
pelos profissionais que vão cuidar de pessoas enlutadas, não como um padrão a ser
jogado sobre elas, mas como sinais para serem observados, constituindo-se em base
importante para a sua formação e como questões relevantes de pesquisa.
Há fatores sociais que são responsáveis pelas dificuldades de elaboração do luto
nos dias atuais. O rápido índice de industrialização, urbanização e o avanço da
tecnologia levaram a uma desvalorização dos ritos funerários. A consequência disto é
que as pessoas, ao viverem a perda de pessoas significativas, se sentem sozinhas e sem
saber o que fazer, principalmente quando se encontram separadas de seus familiares, o
que é muito comum na atualidade. Por outro lado, nos centros urbanos, houve um
aumento significativo da violência, de acidentes, de abuso de drogas, e como resultado o
aumento das mortes violentas e traumáticas, que é um dos fatores de risco para luto
complicado.
Ponto a ser considerado é que a dilatação do tempo de vida, inclusive de doentes
crônicos, faz com que se viva muito tempo processos de morte podendo causar desgaste
físico e psíquico nos familiares que os acompanham, vendo a degeneração corporal, a
perda da pessoa que se conhecia e, principalmente, o sentido de uma grande solidão
(Hennezel, 2001), o que pode complicar o processo do luto posterior. Não é rara a
ocorrência de sentimentos ambivalentes; tristeza pela perda e raiva pelo abandono.
Todos estes fatores demandam aprofundamento em pesquisas.
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Outro aspecto importante e atual é o tema do luto não autorizado (Corr,
1998/1999), como o que ocorre quando de mortes por AIDS em que companheiros não
podem chorar a mútua perda, porque seus amigos e familiares não sabem sobre sua
relação. A sociedade também não reconhece como perda o aborto, já que a morte ocorre
antes que a vida seja reconhecida socialmente, o que sem dúvida é um grave engano,
pois há todo um investimento de amor numa gravidez com expectativa do nascimento
do filho - portanto, um processo de luto precisa ocorrer para elaboração da perda. Outro
luto não autorizado é o dos amantes. Esta é uma área que demanda pesquisas e estudos
por se tratar de tema muito relevante neste início de século.
Um dos grandes problemas apontados por Rando (1992/1993) é a falta de
preparo dos profissionais para lidar não só com o problema das pessoas enlutadas, mas
principalmente quando existem fatores complicadores, como os que mencionamos
acima. Há uma tendência para ―adequar‖ as pessoas, buscando-se uma normatização, o
que não permite que possam viver os seus próprios processos.
Em relação ao futuro, Parkes (1987/1988), aponta para o desenvolvimento de
instituições semelhantes ao Cruse, que trabalha com enlutados, envolvendo voluntários,
especialmente treinados para isso. Refere-se também a uma ampliação do programa dos
‖hospices”, garantindo-se a regionalização dos trabalhos atendendo às necessidades de
cada população. Cita o exemplo de Israel, onde foi criado um serviço de ajuda para as
viúvas e viúvos da guerra; e, na África, os serviços para o atendimento aos órfãos, estes
últimos desenvolvidos pelo autor. No Brasil devemos citar o trabalho do Lelu-
Laboratório de Estudos sobre o Luto, da Pontifícia Universidade Católica, a que farei
referência, com mais detalhes, ao falar da experiência brasileira.
Voltando aos aspectos históricos, um dos pontos fundamentais para o
desenvolvimento da tanatologia nos Estados Unidos foi a fundação da ADEC-
Association for Death Education and Counselling, em 1976. Stillion (1989), especialista
na área de suicídio, apresenta uma retrospectiva da fundação desta associação. Retoma
vários temas abordados pela tanatologia como: os estudos sobre a morte interdita, a
negação, os estudos sobre o luto, sobre o tratamento de pacientes terminais. A TV passa
a ser o principal educador das crianças com cenas de violência ou da morte reversível.
Foi assim que, na década de 1970, especialistas se reuniram e fundaram a ADEC com
os seguintes objetivos:
1. Oferecer oportunidades de interação entre os seus membros, estabelecer redes com
outros profissionais que lidam com o tema.
2. Promover encontros, workshops e material escrito para divulgar o assunto.
3. Incrementar a educação para a morte e aperfeiçoar formas de intervenção.
Realizaram-se vários encontros, conferências, mesas-redondas, workshop, vídeos, e
foram escritas recomendações para profissionais e estudantes, e esta associação passou a ser
responsável pelos certificados de especialização em tanatologia, oferecendo um catálogo com as
principais obras referentes ao tema, sempre atualizado. Em paralelo, criou-se uma força tarefa
para elaborar currículos sobre tanatologia. Além disso, foi efetuado, também, um levantamento
sobre a educação para a morte em pré-escolas, no ensino fundamental e médio, além das
universidades. A autora fala da preocupação em formar educadores habilitados para criar e
oferecer estes cursos com os mais variados temas - discorrerei mais sobre estes cursos na
sequência deste capítulo.
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O periódico Death Studies é o porta voz desta associação e, em conjunto com o Omega,
Journal of Death and Dying, procura traçar as linhas-mestras sobre reflexões, pesquisas e
práticas profissionais, envolvendo o tema da morte e a preparação de profissionais competentes.
Kenneth Doka (1990), um dos tanatologistas mais conhecidos nos Estados Unidos e editor da
revista Omega, fez uma relação de obras clássicas na área com seus comentários. Estes livros
oferecem possibilidades de ajudar as pessoas a lidarem com seus sentimentos diante das
perdas da vida, configurando o que denominou de biblioterapia.
O primeiro trabalho selecionado é o de Kübler- Ross, que já comentei no capítulo
dedicado à sua biografia. O autor indica também os livros que abordam o assunto do
enlutamento. Como a sociedade não permite que as pessoas expressem a sua dor, pode haver
uma intensificação do sofrimento e muitas não sabem se o que estão sentindo ― é normal‖,
imaginando que estão loucas, e que nunca mais conseguirão sair desta fase. Neste caso, os livros
podem ajudá-las porque, a partir dos relatos apresentados, podem encontrar semelhanças e se
identificarem com os processos vividos. Os textos apresentam os sentimentos vividos, as
dificuldades encontradas, e sugerem estratégias de enfrentamento. A biblioterapia pode ser um
importante auxiliar no processo de cuidados com pessoas vivendo situações de perda e morte,
mas a recomendação de livros para este fim deve ser feita com muito cuidado, pois alguns deles
podem ter fortes repercussões para uma dada pessoa, exacerbando os sentimentos, e serem
irrelevantes e não significativos para outra.
Entretanto, os livros não substituem o contato com outras pessoas e ajuda terapêutica,
quando necessário. Lépargneur (1987) indica, também, obras da literatura que trazem ensaios
importantes sobre o tema da morte. O autor traça um histórico de como as pessoas lidaram com
sua doença, inicialmente desprovida de sentido, e como esta pôde, gradativamente, ser
apropriada pelo próprio sujeito.
A obra de Lima Barreto Cemitério dos Vivos, traz, na voz do doente, o relato sobre sua
doença. Outro exemplo de livro com relatos vividos é o clássico de Tolstói, A Morte de Ivan
Illitch, já citado neste trabalho. A doença e a aproximação da morte podem trazer um novo
sentido para a vida, e entre as obras que ilustram esta possibilidade estão a Náusea de Sartre,
que descreve um mal interior. A doença também pode trazer certa satisfação, não na linha do
masoquismo e sim do prazer de se sentir cuidado; Simone de Beauvoir explora esta
possibilidade em Uma Morte Muito Suave.
Há obras que trazem a busca dos direitos de se ficar doente, e de uma qualidade de vida
na doença, encontrando-se uma nova identidade: a de ser doente. Entre as citadas pelo autor
encontra-se a de Soljenítsin, Pavilhão de Cancerosos, na qual é exposto um testemunho de
revolta contra o sistema de saúde vigente; como também o faz o personagem Hans Castorp em
Montanha Mágica, de Thomas Mann e o narrador do Em Procura do Tempo Perdido, de Marcel
Proust. Estes personagens não querem ser expropriados de sua doença, querem vivê-la, aprender
com ela, se expressarem. Muito se pode aprender com essas obras literárias pois, além de bem
escritas, trazem relatos muito verdadeiros sobre o universo psicológico das pessoas doentes e a
aproximação da morte.
DESENVOLVIMENTO DA TANATOLOGIA
NO BRASIL
A experiência pioneira em nosso meio foi de Wilma da Costa Torres (1997), que
apresenta as primeiras obras sobre a tanatologia no Brasil citando a de Othon Bastos
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Filho (1974), denominada Comportamento suicida em uma unidade psiquiátrica de um
hospital universitário (Faculdade de Medicina de Recife); a de Fábio Hermann, sobre o
Gesto Autodestrutivo (1976); a de Luíza Aparecida Costa na área de enfermagem:
Situações de Vida e Morte (1977) e, em 1978, a sua própria Investigação do conceito de
morte em crianças de diferentes níveis cognitivos. A autora cita, então, várias outras
dissertações e teses que se realizam após essa data, envolvendo aspectos mais teóricos,
com os temas: luto, suicídio, pacientes em estágio avançado da doença e a formação de
profissionais de saúde.
Wilma torres foi a primeira psicóloga brasileira que se dedicou à sistematização
da área da tanatologia no Brasil. Criou no ISOP, um acervo de dados bibliográficos
sobre o tema, dividido em várias subáreas, constituindo-se em referência importante
àqueles que necessitam informações sobre a uma área ainda embrionária em nosso
meio.
Em 1980 foi realizado o primeiro ―Seminário sobre Psicologia e a Morte‖,
coordenado por uma equipe de psicólogos de ISOP, na Fundação Getúlio Vargas, cujos
resultados foram reunidos no livro Psicologia e a morte, editado em 1983. Em 1984 foi
realizado em Minas Gerais o ―I Congresso Internacional de Tanatologia e Prevenção de
Suicídio‖, resultando em publicação, organizada por Evaldo D‘assumpção, ― Morte,
suicídio: uma abordagem multidisciplinar‖. Em 1987 ocorreu o ―Segundo Congresso de
Tanatologia e Prevenção de Suicídio‖, no Rio de Janeiro. Começam, então, a surgir
publicações sobre o tema - alguns dos clássicos, já mencionados, são traduzidos, e
surgem as publicações de autores brasileiros, entre os quais ela cita: Torres et all(1983),
Rodrigues( 1983), Cassorla ( 1984, 1991), D‘assumpção( 1984), Maranhão ( 1985),
Boemer ( 1986), Kovács ( 1992), Bromberg (1995), Gimenes (1997), Valle(1997) e
muitos outros.
A autora cita também a fundação da ABRATAN, Associação Brasileira de
Tanatologia na década de 1980. Entretanto, não há notícias se a associação continua a
existir, nem quais são as suas propostas atuais. Em 2003 foi criada a Rede Nacional de
Tanatologia coordenada por Aroldo Escudeiro em Fortaleza.
Em 1980, Wilma Torres cria o programa pioneiro de ―Estudos e Pesquisa em
Tanatologia‖ no ISOP/ Fundação Getúlio Vargas, com o intuito de realizar pesquisas na
área e publicar os relatórios das mesmas. É criado, também, um setor de documentação
e consultoria que chegou a reunir 2.000 fichas em 44 entradas. Em 1981 foi criado o
primeiro curso de pós-graduação lato sensu, de atualização em tanatologia, de caráter
multidisciplinar, oferecido primeiro no ISOP e, posteriormente, com o fechamento
deste, pela U.F.R.J.
Apresento, a seguir os objetivos desse curso: 1. Informativos: fornecer dados
sobre contribuições teóricas e empíricas em diversos setores da tanatologia. 2.
Formativos: Possibilitar a indagação e reflexão sobre os problemas da área e as
necessidades dos profissionais. Promover a troca de experiências e o confronto pessoal
com a morte.
É interessante notar como a proposta do curso inclui uma abordagem teórica e
possibilidade de reflexão e debates sobre vários temas. Outro ponto que é muito
importante neste curso é o seu caráter multidisciplinar. A seguir, os temas abordados:
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Significado humano, histórico, antropológico e social da morte.
Morte e educação.
Morte institucionalizada.
A psicologia do doente terminal.
Atualmente esta estudiosa se dedica à implementação de um ―Núcleo de Estudos
e Pesquisas em Tanatologia‖, nessa universidade, cujos objetivos principais são:
desenvolvimento de pesquisas de iniciação científica, aperfeiçoamento e pós-
graduação, implementação de ensino de tanatologia na graduação e na pós–graduação.
Em 1999, Wilma Torres lança o livro A Morte e a Criança. Desafios. Fruto de
sua tese de doutorado, orientada pelo Dr. Roosevelt Cassorla. Trata-se de uma obra de
referencia na temática envolvendo a criança e a sua compreensão da morte, tanto na
situação de luto quanto no adoecimento e aproximação da morte.
Outro trabalho pioneiro em nosso meio foi a criação do ―Laboratório dos
Estudos sobre o Luto‖ em 1996, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob
a coordenação de Maria Helena Pereira franco, especialista na área de luto, com várias
obras publicadas, como já apontado. O laboratório tem como objetivos principais:
Desenvolver pesquisas e treinamento profissional em questões relacionadas a perdas e
Luto e oferecer serviços de profilaxia, prevenção e tratamento a pessoas enlutadas.
Os seguintes serviços são oferecidos: profilaxia da adoção, psicoterapia
individual para crianças, adolescentes e adultos enlutados, psicoterapia para famílias
enlutadas, ação preventiva e terapêutica de queixas psicossomáticas relacionadas ao
luto. Foram promovidas várias jornadas sobre luto, uma delas contando com a presença
de Colin Murray Parkes, autor que fundamentou várias das propostas desenvolvidas
pelo laboratório. Mais recentemente, abriu um programa de aprimoramento para
profissionais na área do luto.
A minha experiência no Instituto de Psicologia da USP, as disciplinas oferecidas
em nível de graduação e pós- graduação, a criação do laboratório de Estudos sobre a
Morte serão desenvolvidos na segunda parte desta obra. Antes de fazer esta
apresentação gostaria ainda nesta primeira parte deste livro desenvolver o tema
―Bioética nas questões de vida e morte‖, no capítulo a seguir.
A MORTE ENQUANTO PENSAMENTO
KASTENBAUM, R. AISENBERG, R. PSICOLOGIA DA
MORTE. São Paulo, Pioneira, 1983.
M-O-R-T-E.
A sequência destas cinco letras é fixa e familiar. Supõe-se facilmente que o
significado deste vocábulo é também fixo (invariável) e familiar (bem conhecido
nosso). Além disso, é-se tentando a pressupor que a morte se refere a ―algo
efetivamente‖ (ou a ―nada mesmo‖) lá fora. Estas suposições não serão valorizadas no
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presente capítulo. Por enquanto, estamos pondo de lado muito do que sabemos ou
pensamos que sabemos sobre a ―morte real‖. Em seu lugar, procuraremos nos tornar
conscientes daquelas operações mentais por meio das quais desenvolvemos e utilizamos
conceitos de morte.
A lógica elementar a que recorremos aqui pode ser assim enunciada:
1. Com termos como ―morrer‖, ―morto‖ e ―morte‖ geralmente pretendemos nos
referir a fenômenos situados fora ou além de nossas mentes. Por exemplo, penso em
Sócrates como morto - mas o ponto importante é que Sócrates realmente está morto.
2. Nunca sabemos ―realmente‖ o que está lá fora. Nem mesmo sabemos
(ultrapassando a possibilidade de um contra-argumento plausível) se existe um lá fora.
Vivemos dentro de e por nossos processos psicológicos. A correspondência entre nossos
sentimentos e pensamentos pessoais e qualquer outra coisa no universo é uma questão
de conjectura, à semelhança do que tem sido durante séculos.
3. Sabemos que conceitos de morte têm uma forma particular de existência
acessível à análise e à compreensão. Sujeitam-se à investigação empírica controlada.
Conceitos de morte são conceitos. Podemos estudar o desenvolvimento e a estrutura dos
conceitos de morte no indivíduo. Podemos aprender como os conceitos de morte se
harmonizam com todo o conjunto de conceitos do indivíduo. Podemos tentar descobrir
relações entre os conceitos de morte e estados encobertos como ansiedade e resignação.
Podemos tentar descobrir relações com comportamentos abertos, como ações
arriscadas ou a compra de um seguro de ―vida‖. Podemos examinar culturas e
subculturas sob o ponto de vista do seu conceito de morte e de suas implicações para a
estrutura e a função sociais.
4. Este nível de análise é altamente relevante porque se situa claramente no
âmbito da psicologia. Em resumo, estamos tratando a morte em primeiro lugar como um
conceito.
ALGUMAS PROPOSIÇÕES GERAIS
Talvez devêssemos antecipar algumas de nossas conclusões. Assim, o leitor
poderá estar mais bem preparado para discutir ou concordar com o material a ser
apresentado.
1. O conceito de morte é sempre relativo. Enfatizamos sua relatividade em nível
de desenvolvimento, embora se pudesse enquadrá-la em outros planos de relatividade.
Nível de desenvolvimento não significa necessariamente idade cronológica do
indivíduo. É óbvio que a idade cronológica fornece pistas importantes para se conhecer
a maneira de pensar de uma pessoa. Estamos, porém, interessados no nível de
desenvolvimento em sentido estrutural, já familiar aos que conhecem os livros de Heinz
Werner (1), Jean Piaget (2), e alguns outros.
2. O conceito de morte é excessivamente complexo. Em alguns casos, é preciso
mais que uma ou duas proposições para expressar o conceito de morte.
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3. Conceitos de morte mudam. Esta proposição está implícita nas formuladas
anteriormente. Ao caracterizar o conceito de morte de uma pessoa em determinado
instante de tempo, não deveríamos supor que esta descrição do conceito continuará a ser
verdadeira indefinidamente.
4. O ―objetivo‖ do desenvolvimento, nos conceitos de morte, é obscuro,
ambíguo, ou ainda em evolução. Costuma-se traçar curvas de crescimento do ponto de
partida ao ápice. Para mencionar um dos exemplos mais claros, esperamos que a altura
de uma criança aumente até atingir seu ― objetivo‖, a altura adulta. Após um período de
relativa estabilidade durante a primeira e média maturidade, pode-se continuar traçando
a curva evolutiva em seu declínio.
Concepções de morte não podem ser expressas graficamente com o mesmo grau
de confiabilidade. Razões técnicas para esta limitação incluem dificuldades em avaliar
concepções de morte, e em estabelecer unidades quantitativas apropriadas pelas quais se
demonstre progresso ou ausência de progresso. Mas o problema crucial refere-se ao
conteúdo, não ao método; não sabemos exatamente o que constitui a concepção mais
amadurecida ou ideal de morte. Há opiniões, é claro (muitas vezes arrogando-se o status
de fatos indiscutíveis). Estas opiniões representam mais opiniões de valor que
conclusões inexoráveis derivadas de teoria sistemática ou de pesquisa.
5. Conceitos de morte são influenciados pelo contexto situacional. A maneira
desconceituar a morte em dado momento pode ser influenciada por muitos fatores da
situação. Há uma pessoa morrendo no quarto onde estamos? Um cadáver? A situação
contém uma ameaça possível à nossa vida? Estamos sós ou com amigos? É meio-dia em
pleno sol ou meia-noite em trevas? A situação pode seletivamente desentranhar um tipo
de cognição da morte entre os muitos que possuímos. Ou a situação pode até nos
estimular a desenvolver novas ou modificadas concepções de morte.
6. Conceitos de morte relacionam-se com o comportamento. Quase de imediato,
talvez, pensamos em um indivíduo que se empenha numa ação direta ou positivamente
com sua cognição de morte. Ele chega à conclusão, por exemplo, de que a morte é a
porta para a beatitude eterna. Segue-se o suicídio como comportamento relevante. Mas a
relação raramente, ou nunca, é simples assim.
Cognições de morte semelhantes podem levar a diferentes comportamentos, bem
como comportamentos semelhantes podem ser precedidos por diferentes sequências de
pensamentos. Outro indivíduo que pense na morte em termos de ―beatitude eterna‖
permanece vivo de modo a oferecer sua mensagem de esperança e conforto ao próximo.
Um terceiro indivíduo comete suicídio sem dar grande importância ao prospecto
de uma vida pós-morte; ele se concentra totalmente em sua necessidade de escapar de
uma tensão existencial insuportável. A concepção de morte pode influir no
comportamento de muitos modos complexos e remotos. Padrões de comportamento que
não parecem ter nada de especial a ver com a morte podem, todavia, ser influenciados
por essas cognições. Insônia, por exemplo, ou pânico em virtude da separação
temporária de um ser querido às vezes pode ter origem em preocupações com a morte.
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CONHECENDO E RELACIONANDO
É difícil, na prática, manter clara a distinção entre conceitos e atitudes. Neste
capítulo, concentramo-nos em modos de explicar e de interpretar a morte para nós
mesmos. Em um capítulo posterior, concentramo-nos nas atitudes e nas orientações para
a morte.
Exemplo: Perguntamos a uma criança com que se parece um bicho papão de
dentes pontudos, se é que existe um animal assim. Ela nos dá uma vívida descrição
verbal ou desenhada. Transmite, com efeito, sua compreensão do animal. A seguir
perguntamos o que ela faria se visse um animal desses vir em sua direção na rua. Aqui,
ela tem oportunidade de expressar sua atitude ou orientação (―eu fugiria depressa!‖ ou ―
eu diria ‗vem cá, vem tomar um pouco de leite gostoso. Pode me levar a passeio,
montada em suas costas?‖)
Nossa relação total com qualquer objeto envolve nossos componentes de
conceitos e atitudes. O mero fato de sabermos, ou de pensar que sabemos algo sobre o
objeto, é suficiente para garantir alguma espécie de relação. Relacionamo-nos com o
objeto por meio de nossa atividade cognitiva. Da mesma forma, a existência de uma
orientação (por exemplo, abordagem ou aversão) presume algum componente cognitivo.
Pelo menos, efetuamos a operação mental de classificar o objeto como algo-a-ser-
evitado.
“VOCÊ ESTÁ MORTO”
De início, pelo menos duas formas de concepção da morte deveriam ser
distinguidas. A primeira delas é a morte-do-outro. Há razão para crer que a cognição
―você está morto‖ desenvolve-se mais rapidamente que a introvertida ―Eu morrerei‖.
Mais tarde, consideraremos os dois tipos de concepção da morte com maiores detalhes
do ponto de vista do desenvolvimento. Agora, estamos apenas interessados em esboçar
algumas de suas implicações.
―Você está morto‖ é uma proposição que pode ser assim considerada:
1. Você está ausente. Mas o que significa estar ausente? Devemos
apreciar o quadro de referência do observador. Para uma criança pequena, o
quadro de referência é sobretudo perceptivo. Ausência significa não aqui e
não agora. A criança ainda não está equipada para distinguir entre distância
espacial e temporal. Suponha que você está longe, em outra cidade. Para o
adulto, você tem existência espacial no momento presente. Mas sua ausência
é sentida pela criança (3). Você não se acha no espaço perceptivo dela neste
momento, por isso, você não existe. (Haverá uma emenda importante nesta
afirmação mais distante.)
2. Estou abandonado. Esta afirmação é quase a recíproca da
anterior. Seu desaparecimento do quadro de referência perceptivo tem efeito
sobre meu senso de segurança. Como pai ou como outra figura crucial, você
constitui um aspecto significativo do universo que a criança conhece. Como
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criança, eu estou apenas consciente de sua ausência, mas da presença de
sentimentos de desconforto dentro de mim.
3. Sua ausência, mais o meu senso de abandono, contribuem para o
senso geral de separação. Fui alienado de uma de minhas mais importantes
fontes de contato e apoio. Se esta separação é suficientemente crítica para
mim, então posso experimentar um senso penetrante de perder contato com o
ambiente, não apenas com você. Além disso, também posso ter a impressão
de ter sido violentamente arrebatado para longe de você. Este trauma poderia
intensificar o quadro já desolador de ausência e abandono.
4. A separação não tem limites. A criancinha não alcança o conceito
de futuro,
ou de tempo em geral, conforme a maioria dos adultos veio a
desenvolver estes conceitos. Ela não pode dizer a si mesma: ―mamãe foi-se
embora... mas voltará em cinco dias‖. Ela não pode distinguir entre
separações em curto prazo, em longo prazo, e final (irreversível). Uma vez
induzida à experiência de separação, ela não tem maneiras seguras de
planejar, avaliar ou antecipar sua conclusão. O que um estranho pode encarar
como uma separação breve (com base no relógio consensual ou no tempo do
calendário) talvez não se distinga, na mente da criança, de um prospecto de
separação prolongada.
5. O envolvimento infantil nos ritmos psicobiológicos recorrentes
complica seu relacionamento com a separação e a morte. A criança não é
uma participante completamente cônscia do mundo do tempo ―objetivo‖ que
se move, unidade após unidade padronizada, do passado, através do
presente, rumo ao futuro. Seu tempo começa cada manhã quando ela
desperta. Seu adormecer no meio do dia é um ―tempo suspenso ou ausente‖.
Ritmos externos de noite e dia e ritmos internos de fome-saciedade, sono-
ativação, etc., exercem forte influência sobre sua apreciação do tempo.
Como esta relação com o tempo afeta a concepção de morte-do-outro? Os quatro
pontos anteriores enfatizam, de vários modos, a vulnerabilidade da criança à separação.
Ela não pode, por exemplo, distinguir bem entre o prospecto de extensão moderada e de
longo prazo ou separação final. Devemos acrescentar agora um fator que talvez pareça
contraditório.
Considere estes dois pontos: a) a experiência infantil do tempo condiciona-se a
ritmos cíclicos, e b) a criança tende a experienciar sensação de ausência, abandono e
separação em situações nas quais os adultos argumentariam que ela não foi ―realmente‖
abandonada.
Vemos que o senso de separação ilimitada ou de uma experiência sem fim entra
em choque com a natureza periódica da experiência da criança. Torna-se um tanto
difícil expressar esta relação. Como criança que se sente abandonada, não tem meios de
estabelecer um limite futuro a partir de minha experiência presente. Com efeito, uma
das razões de minha grande aflição é que esta desagradável experiência não mostra
sinais de ser autolimitadora. Contudo, meu estado psicobiológico é sempre de transição.
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Estou ficando com fome ou com sono. E o ambiente onde estou inserido também
está em transição. O sol está ascendendo ou descendo no horizonte. Várias rotinas
periódicas nos lares estão sendo iniciadas ou completadas. Concretamente, como
criatura cíclica em ambiente cíclico, não é de se esperar que eu mantenha um constante
quadro de referência durante um prolongado período de tempo (medido pelo relógio ou
pelo calendário). Há términos e interrupções até em mais contínuos padrões de
pensamento e comportamento. Em outras palavras, a despeito de minha inabilidade para
colocar limites à experiência de separação, não tenho realmente uma experiência
contínua. Alterações periódicas em seu estado interior e em meu ambiente exterior me
distraem e me repousam. Mais adiante voltaremos a abordar a relação que propusemos
aqui.
Agora o que nos parece relevante é o elo entre periodicidade e vulnerabilidade
da criança às experiências de separação. Mais uma vez, como criança, posso ―interpretar
mal‖ a partida temporária de alguém, supondo-a uma separação consequente. Por este
mesmo indício, contudo, posso subestimar uma separação consequente - até mesmo a
morte de alguém. Meus padrões cíclicos de funcionamento me levam a antecipar que
todo fim tem um novo começo, assim como todo começo tem um fim. Você se ausentou
por um longo tempo (o tempo marcado pelo relógio ou, então, o tempo subjetivo) mas
não ―sei‖ quanto durou esse tempo.
Profundamente enraizada em mim encontra-se a expectativa de que se
completará o padrão familiar de separação-reunião. Este será outro ponto que
desejaremos ter em mente quando traçarmos a sequência completa do desenvolvimento
das concepções de morte. Por ora, afirmamos que a criança é vulnerável às implicações
de morte nas separações triviais, e mais protegida das implicações de morte nas
separações substanciais, do que poderia parecer do ponto de vista de um observador
adulto.
“EU MORREREI”
Esta afirmação pressupõe que o indivíduo desenvolveu uma razoável
constelação de conceitos abstratos. O conjunto que oferecemos a seguir não pretende
esgotá-la. A sentença ―eu morrerei‖ implica:
Eu sou um indivíduo com vida própria, uma existência pessoal.
Pertenço à classe de indivíduos dos quais um dos atributos é a
mortalidade.
Usando o processo intelectual da dedução lógica, chego à
conclusão de que minha morte é uma certeza.
Há muitas causas possíveis de minha morte e elas operam sob
muitas condições diferentes. Embora eu possa me esquivar ou
fugir de uma causa particular, não posso escapar de todas as
causas.
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Minha morte ocorrerá no futuro. Por futuro, entendo um tempo-
de-vida que ainda não transcorreu.
Mas não sei quando no futuro minha morte acontecerá. O evento
é certo; a hora, incerta.
A morte é um evento final. Minha vida termina. Isto significa que
nunca mais sentirei, pensarei ou agirei, pelo menos como um ser
humano nesta terra. Assim sendo, a morte é a derradeira
separação entre mim e o mundo.
―Eu morrerei‖ implica, assim, em autoconsciência, operações de pensamento
lógico, concepções de probabilidade, necessidade e causação, de tempo físico e pessoal,
de finalidade e separação. Também parece exigir o preenchimento de uma tremenda
lacuna: desde o que eu experimentei da vida até à formulação do conceito de morte. É
muito mais fácil desenvolver o conceito de um bicho-papão de dentes aguçados; tive
contato com muitos animais diferentes, de maneira que só preciso selecionar e combinar
atributos.
A morte, porém, é essencialmente uma não experiência. Nunca estive morto (o
estado); nunca experimentei a morte (o processo final da vida ao atingir sua última
parada). As próprias operações mentais que uso em meus esforços para sondar a morte
falsificam-na à medida que prosseguem. O próprio modus operandi da mente equipa-a
para interpretar a vida ou os processos vitais melhor do que o estranho vazio. Talvez eu
me permita em algumas ocasiões acreditar que realmente percebi ou formei um conceito
de morte. Mais próxima da verdade, entretanto, é a realização de que simplesmente
observei minha mente à medida que caminhava às pressas pelas trevas.
Ter visto uma pessoa, um animal ou uma planta mortos pode contribuir para
minha concepção de morte. Todavia, estas percepções não preenchem verdadeiramente
a lacuna. Percebe-se a morte somente de fora. Com que se parece o não sentir escapa-
me. Além disso, sob certas circunstâncias, posso interpretar mal minhas percepções,
encarando os vivos como mortos, ou vice-versa (capítulo 3). Experiências com os
mortos, contudo, é mais um daqueles tópicos que conservaremos em mente à medida
que procuraremos compreender o desenvolvimento das concepções de morte.
O TERROR DA MORTE
BECKER, E. A negação da morte. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1976.
“Será que não cabe a nós confessar que em nossa atitude
civilizada em relação à morte estamos, uma vez mais, vivendo
psicologicamente além de nossos recursos, e devemos nos
reformar e dar à verdade o valor que ela merece?
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Não seria melhor dar à morte o lugar na realidade em nossos
pensamentos que lhe pertence, e dar um pouco mais de destaque
àquela inconsciente atitude para com a morte que até aqui lemos
suprimido com tanto cuidado?
Isso nem parece, realmente, uma realização de maior vulto, mais
sim um passo atrás... mas tem o mérito de levar um tanto mais em
consideração a verdadeira situação(...)”. SIGMUND FREUD
A primeira coisa que temos de fazer com o heroísmo é pôr à mostra o seu
avesso, mostrar o que dá à atividade heroica humana a sua natureza e seu ímpeto
específicos. Apresentamos aqui, de imediato, uma das grandes redescobertas do
pensamento moderno: a de que, de todas as coisas que movem o homem, uma das
principais é o seu terror da morte.
Depois de Darwin, o problema da morte como problema evolucionário ficou em
destaque e muitos pensadores viram de imediato que se tratava de um grande problema
psicológico para o homem. Viram, também com muita rapidez, o que era o verdadeiro
heroísmo, como escreveu Shaler bem na virada do século:3 o heroísmo é, antes de
qualquer coisa, um reflexo do terror da morte. O que mais admiramos é a coragem de
enfrentar a morte; damos a esse valor a nossa mais alta e mais constante adoração; ele
nos toca fundo em nossos corações, porque temos dúvida sobre até que ponto nós
mesmos seríamos valentes.
Quando vemos um homem enfrentando bravamente a sua própria extinção,
ensaiamos a maior vitória que podemos imaginar. E assim, o herói tem sido o centro da
honra e da aclamação humanas desde, provavelmente, o início da evolução
especificamente humana. Mas, mesmo antes disso, nossos ancestrais primatas acatavam
aqueles que eram extra poderosos e corajosos e ignoravam os que fossem covardes. O
homem elevou a coragem animal ao nível de um culto.
A pesquisa antropológica e histórica também começou, no século XIX, a montar
um retrato do heroico desde as eras primitivas e antigas. O herói era o homem que podia
entrar no mundo espiritual, no mundo dos mortos, e voltar vivo. Tinha seus
descendentes nos cultos misteriosos do Mediterrâneo Oriental, que eram cultos de morte
e ressurreição. O herói divino de cada um desses cultos era alguém que tinha voltado
dos mortos. E como sabemos, hoje, com base na pesquisa de mitos e rituais antigos, o
próprio cristianismo era um concorrente dos cultos misteriosos e saiu vencedor — entre
outras razões — porque também tinha em destaque um homem que curava e tinha
poderes sobrenaturais, e que havia ressuscitado. O grande triunfo da Páscoa é o grito de
alegria "Cristo ressuscitou!", um eco da mesma alegria que os devotos de cultos
misteriosos representavam em suas cerimônias da vitória sobre a morte.
Esses cultos, como diz G. Stanley Hall com tanta propriedade, eram uma
tentativa de alcançar "um banho de imunidade" em relação ao maior dos males: a morte
e o terror dela. Todas as religiões históricas se dedicavam a este mesmo problema de
como suportar o fim da vida. Religiões como o hinduísmo e o budismo realizavam o
truque engenhoso de fingir não querer renascer, que é uma espécie de mágica negativa:
alegar que não quer aquilo que mais se quer5. Quando a filosofia assumiu o lugar da
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religião, também assumiu o problema central da religião, e a morte se tornou a
verdadeira ―musa da filosofia‖, desde seus primórdios na Grécia, até Heidegger e o
existencialismo moderno.
Já temos grande quantidade de trabalhos e pensamentos sobre o assunto, da
religião e da filosofia e — de Darwin para cá — da própria ciência. O problema é como
extrair disso alguma coisa que faça sentido; o acúmulo de pesquisas e opiniões sobre o
medo da morte já é demasiado para ser abordado e resumido com simplicidade. Só a
renovação do interesse pela morte, nas últimas décadas, já criou uma pilha enorme de
trabalhos, e esta literatura não aponta para uma direção única.
O Argumento da "Mente Sadia"
Há pessoas ―de mente sadia‖ que afirmam que o medo da morte não é uma coisa
natural para o homem, que não nascemos com ele. Um número crescente de estudos
cuidadosos sobre como o medo da morte; se desenvolve na criança7 está razoavelmente
de acordo em que na criança não tem conhecimento algum da morte até por volta dos
três a cinco anos de idade. E como poderia telo?
É uma ideia demasiado abstrata, demasiado afastada de sua experiência. A
criança vive em um mundo que está cheio de coisas vivas, que se mexem, respondendo
a ela, distraindo-a, alimentando-a. Ela não sabe o que significa a vida desaparecer para
sempre, nem teoriza para onde deveria ir. Só aos poucos reconhece que há uma coisa
chamada morte, que leva algumas pessoas embora para sempre; com muita relutância,
passa a admitir que mais cedo ou mais tarde ela levasse todo mundo embora, mas essa
percepção gradativa de inevitabilidade da morte pode vir a ocorrer só pelo nono ou
décimo ano de vida.
Embora a criança não tenha conhecimento de uma ideia abstrata como a negação
absoluta, tem suas ansiedades próprias. É absolutamente dependente da mãe, sente
solidão quando ela está ausente, frustração quando se vê privada de agrados, irritação
com a fome e a falta de conforto, e assim por diante. Se a criança fosse abandonada à
própria sorte, seu mundo iria despencar, e seu organismo deve perceber isso em
determinado nível; chamamos isso de ansiedade pela perda do objeto. Não será essa
ansiedade, então, um medo natural, orgânico, de aniquilamento? Ora, há muitos que
consideram isso como uma questão muito relativa.
Acreditam eles que, se a mãe tiver cumprido sua tarefa de maneira carinhosa,
que inspire confiança, as ansiedades e culpas naturais da criança irão desenvolver-se de
forma moderada, e a criança conseguirá colocá-las firmemente sob o controle de sua
personalidade em desenvolvimento. A criança que tiver boas experiências no contato
com a mãe irá adquirir um sentimento básico de segurança e não estará sujeita a temores
mórbidos de perder o apoio, de ser aniquilada, ou coisa semelhante9. À medida que ela
crescer e passar a compreender a morte de forma racional, por volta da idade de nove ou
dez anos, irá aceitá-la como parte da sua visão do mundo, mas essa ideia não irá
envenenar sua atitude autoconfiante para com a vida.
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O psiquiatra Rheingold diz categoricamente que a angústia de aniquilação não
faz parte da experiência natural da criança, mas é formada nela por experiências
adversas com uma mãe que lhe causou privações10. Essa teoria coloca todo o ônus da
ansiedade na educação da criança, e não na natureza da criança. Outro psiquiatra, numa
linha menos radical, vê o medo da morte muito aumentado pelas experiências da criança
com os pais, pela negação, por parte destes, de seus impulsos vitais e, de modo mais
geral, pelo antagonismo da sociedade à liberdade e à espontaneidade do homem.
Como iremos ver mais adiante, esse ponto de vista é muito popular, hoje, no
difundido movimento em favor da vida sem repressão, a ânsia de uma nova liberdade
para os impulsos biológicos naturais, uma nova atitude de valorização e prazer em
relação ao corpo, o abandono da vergonha, da culpa e do ódio a si mesmo. Segundo esse
ponto de vista, o medo da morte é algo que a sociedade cria e, ao mesmo tempo, usa
contra a pessoa para mantê-la submissa; o psiquiatra Moloney falava nele como um
"mecanismo da cultura", e Marcuse como uma "ideologia". Norman O. Brown, em um
livro muitíssimo influente que iremos comentar com algum detalhe, chegou mesmo a
dizer que poderia haver um nascimento e desenvolvimento da criança numa "segunda
inocência" que estaria livre do medo da morte porque não iria negar a vitalidade natural
e deixaria a criança inteiramente aberta à vida física.
É fácil perceber que, com base nesse ponto de vista, aqueles que tiverem
experiências adversas no início da vida serão os mais morbidamente fixados na
ansiedade da morte; e se, por acaso, quando crescerem, forem filósofos, é provável que
façam da ideia da morte uma máxima central de seu pensamento — como fez
Schopenhauer, que odiava a mãe e declarou ser a morte "a musa da filosofia". Se você
tem uma estrutura de caráter "amarga" ou teve experiências especialmente trágicas,
deverá vir a ser um pessimista.
Um psicólogo comentou comigo que toda a ideia do temor da morte era uma
importação dos existencialistas e dos teólogos protestantes que tinham ficado marcados
pelas suas experiências europeias e que levavam com eles o peso extra de herança
calvinista e luterana de negação da vida. Até o destacado psicólogo Gardner Murphy
parece pender para essa escola e insiste conosco para que estudemos a pessoa que
manifesta o temor da morte, que coloca a ansiedade no centro de seu pensamento; e
Murphy pergunta por que viver a vida no amor e na alegria também não pode ser
considerado real e básico.
O Argumento da "Mentalidade Mórbida"
O argumento da "mente sadia" que acabamos de examinar é um lado do quadro
das pesquisas e das opiniões acumuladas sobre o problema do temor da morte, mas há
outro lado. Um grande número de pessoas concordaria com essas observações sobre as
experiências vividas no início da vida e admitiria que as experiências pudessem
aumentar as ansiedades naturais e os temores que vêm mais tarde, mas essas pessoas
também iriam argumentar, com muita ênfase, que, apesar de tudo, o temor da morte é
natural e está presente em todos os indivíduos, que ele é o temor básico que influencia
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todos os outros, um temor ao qual ninguém está imune, por mais disfarçado que possa
estar.
William James falou muito cedo em defesa dessa escola e, com o seu pitoresco
realismo de sempre, chamou a morte de "o verme que estava no âmago" das pretensões
do homem à felicidade15. Um estudioso da natureza humana como Max Scheler, nada
mais nada menos, achava que todos os homens deveriam ter algum tipo de certa
intuição desse ―verme no âmago‖, quer admitissem, quer não.
Inúmeras outras autoridades — algumas das quais iremos citar nas páginas
seguintes — pertencem a essa escola: estudiosos da estatura de Freud, muitos de seu
círculo íntimo, e pesquisadores sérios que não são psicanalistas. Como podemos
entender uma discussão na qual existem dois campos distintos, ambos repletos de
eminentes autoridades? Jacques Choron chega mesmo a dizer que é discutível se alguma
vez será possível concluir se o medo da morte é ou não é a ansiedade básica17. Em
assuntos como este, então, o máximo que se pode fazer é apoiar um dos lados, dar uma
opinião baseada nos autores que lhe pareçam mais convincentes e apresentar alguns dos
argumentos convincentes.
Com toda franqueza, eu me coloco ao lado dessa segunda escola - na verdade,
todo este livro é uma rede de argumentos baseados na Universalidade do temor da
morte, o ―terror‖, como prefiro chamá-lo, a fim de transmitir o quanto ele é exaustivo
quando ficamos cara a cara com ele. O primeiro documento que desejo apresentar e
sobre o qual quero me alongar é um trabalho escrito pelo célebre psicanalista Gregory
Zilboorg; é um ensaio especialmente penetrante que — devido ao seu poder de síntese e
ao seu alcance – não recebeu acréscimos que o melhorassem, muito embora tenha
aparecido há várias décadas. Zilboorg diz que a maioria das pessoas pensa que o temor
da morte está ausente porque esse temor raramente mostra a sua verdadeira face; mas
sustenta que, por baixo de todas as aparências, o medo da morte está universalmente
presente:
Porque por trás da sensação de insegurança diante do perigo, por trás
do sentimento de desânimo e depressão, sempre se esconde o medo
básico da morte, um medo que sofre elaborações muitíssimo complexas e
se manifesta de muitas maneiras indiretas. (...) Ninguém está livre do
medo da morte. (...)As neuroses de angústia, os diferentes estados
fóbicos, até mesmo um número considerável de estados depressivos
suicidas e muitas esquizofrenias demonstram amplamente o sempre
presente medo da morte, que se entrelaça com os principais conflitos das
condições psicopatológicas dadas. (...) Podemos considerar como ponto
pacífico que o medo da morte sempre está presente em nosso
funcionamento mental.
Será que James não disse a mesma coisa antes, à sua maneira?
Que as otimistas mentalidades saudáveis aproveitem ao máximo o seu
estranho poder de viver o momento e ignorar e esquecer, mas ainda
assim o pano de fundo maligno está ali para ser lembrado, e a caveira
irá aparecer com um riso escarninho durante o banquete.
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A diferença entre essas duas opiniões está não tanto no uso das imagens e no
estilo quanto no fato de que a de Zilboorg é feita quase meio século depois e é baseada
em todo um trabalho clínico muito mais real não apenas na especulação filosófica ou na
intuição pessoal.
Mas ela continua a linha reta de desenvolvimento a partir de James e dos pós-
darwinianos que viam o medo da morte como um problema biológico e evolucionário.
Aqui, acho que ele pisam solo muito firme, e em especial gosto da maneira como ele
expõe o argumento. Zilboorg salienta que esse temor é, na verdade, uma expressão do
instinto de autopreservação, que funciona como um constante impulso de manter a vida
e dominar os perigos que ameaçam a vida:
Esse gasto constante de energia psicológica na tarefa de preservar a
vida seria impossível se o temor da morte não fosse tão constante. O
próprio termo “autopreservação” dá a entender um esforço contra
alguma força de desintegração; o aspecto afetivo disso é o temor, o
temor da morte.
Em outras palavras, o temor da morte deve estar presente por trás de todo o
nosso funcionamento normal, a fim de que o organismo possa estar armado em prol da
autopreservação. Mas o temor da morte não pode estar presente de forma constante no
funcionamento mental do indivíduo, caso contrário o organismo não poderia funcionar.
Zilboorg continua:
Se esse temor estivesse constantemente no plano consciente não teríamos
condições de funcionar normalmente. Ele deve ser reprimido de forma
adequada, para nos manter vivendo com um pouco de conforto que seja.
Sabemos muito bem que reprimir significa mais do que guardar e
esquecer o que foi guardado e o lugar onde o guardamos. Significa
também um esforço psicológico constante no sentido de manter a tampa
fechada e, no íntimo, nunca relaxar nossa vigilância.
E assim podemos compreender o que parece um paradoxo impossível: o sempre
presente da morte no funcionamento psicológico normal do nosso instinto de
autopreservação, bem como o nosso total esquecimento desse temor em nossa vida
consciente:
Portanto, em épocas normais andamos de um lado para outro sem
acreditar em nenhum momento na nossa morte, como se acreditássemos
plenamente em nossa imortalidade corpórea. Estamos preocupados em
dominar a morte. (...) Alguém dirá, é claro, que sabe que vai morrer um
dia, mas que não se importa. Está aproveitando bem a vida, e não pensa
na morte e não faz questão de se importar com ela — mas isso é uma
admissão puramente intelectual, verbal. O afeto do temor está reprimido.
O argumento da biologia e da evolução é básico e tem de ser levado a sério; não
vejo como pode ser deixado de fora em qualquer debate. Os animais, para
sobreviverem, têm tido de se proteger mediante reações de medo, em relação não
apenas a outros animais, mas à própria natureza. Tiveram que perceber a proporção
verdadeira das suas limitadas forças diante do mundo perigoso em que estavam imersos.
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A realidade e o medo andam juntos, naturalmente. Como o bebê humano se
encontra numa situação ainda mais exposta e desamparada, é tolice presumir que a
reação animal ao medo teria desaparecido numa espécie assim tão fraca e sensível. É
mais razoável pensar que essa reação de medo realmente foi ampliada, como pensavam
alguns dos primeiros darwinianos: os homens primitivos que mais tinham medo eram
aqueles que eram os mais realistas em relação à sua situação na natureza, e transmitiram
a seus descendentes um realismo que tinha um alto valor para a sobrevivência. O
resultado foi o surgimento do homem tal como o conhecemos: um animal hiperansioso
que inventa constantemente razões para a ansiedade, até mesmo quando não há ao
alguma.
O argumento da psicanálise é menos especulativo e deve ser levado ainda mais a
sério. Ela nos mostrou algo a respeito do mundo interior da criança em que nunca
havíamos pensado: ou seja, que ele é mais cheio de terror quanto mais à criança é
diferente dos outros animais. Poderíamos dizer que o medo é programado, nos animais
inferiores, por instintos que já vêm prontos; mas um animal que não tenha instintos não
tem medos programados. Os temores do homem são formados com base nas maneiras
pelas quais ele percebe o mundo.
Ora, o que é que há de peculiar com relação à percepção que a criança tem do
mundo? Em primeiro lugar, a extrema confusão das relações de causa e efeito; em
segundo, a extrema irrealidade quanto aos limites de seus próprios poderes. A criança
vive numa situação de extrema dependência; e quando suas necessidades são atendidas,
deve parecer-lhe que tem poderes mágicos, verdadeira onipotência. Se ela sente dor,
fome, ou desconforto, tudo o que tem a fazer é gritar, e será aliviada e acalentada por
sons suaves, carinhosos. Ela é um mágico e um telepata que só precisa balbuciar e
imaginar, e o mundo funciona segundo os seus desejos.
Agora, porém, a penalidade por essas percepções. Em um mundo mágico no
qual coisas fazem com que outras coisas aconteçam por um simples pensamento ou por
um olhar de insatisfação, tudo pode acontecer a qualquer pessoa. Quando a criança
sente frustrações inevitáveis e reais por parte dos pais, dirige a eles ódio e sentimentos
destrutivos; e não tem meios de saber que os sentimentos malévolos não podem ser
atendidos pela mesma mágica que atendeu a seus outros desejos. Os psicanalistas
acreditam que essa confusão é uma causa principal de culpa e desamparo na criança. No
seu muito bom ensaio, Wahl resumiu esse paradoxo:
...os processos de socialização, para todas as crianças, são dolorosos e
frustrantes e, por isso, nenhuma criança escapa de sentir desejos hostis e
morte em relação aos seus socializadores. Portanto, nenhuma delas,
escapa ao medo da morte pessoal, quer na forma direta, quer na forma
simbólica. A repressão é, em geral, (...) imediata e efetiva.
A criança é demasiado fraca para assumir a responsabilidade por todo esse
sentimento destrutivo, e não pode controlar a mágica execução de seus desejos. É isso
que entendemos por um ego imaturo, a criança não tem a capacidade segura de
organizar suas percepções e o seu relacionamento com o mundo; não sabe controlar a
própria atividade; não tem um comando seguro sobre os atos dos outros. Não tem,
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assim, controle verdadeiro algum sobre os mágicos causa e efeito que percebe, dentro
de si mesma ou do lado de fora, na natureza e em outras pessoas: seus desejos
destrutivos poderiam explodir, o mesmo acontecendo com os desejos de seus pais. As
forças da natureza são confusas externa e internamente; e para um ego fraco, este fato
exige quantidade de poder potencial exagerado e um terror maior. O resultado é que a
criança — pelo menos uma parte do tempo — vive com uma sensação íntima de caos à
qual os outros animais estão imunes.
Ironicamente, mesmo quando a criança percebe relações reais de causa e efeito,
estas tornam-se um fardo para ela porque ela exagera em sua generalização. Uma dessas
generalizações é o que os psicanalistas chamam de "princípio de talião". A criança
esmaga insetos, vê o gato comer um rato e fazê-lo desaparecer, se junta à família para
fazer um coelho de estimação desaparecer dentro deles, e assim por diante. Passa a
conhecer alguma coisa a respeito das relações de poder do mundo mas não sabe dar a
elas um valor relativo: os pais poderiam comê-la e fazê-la desaparecer, e da mesma
forma ela poderia comê-los, quando o pai tem um brilho ameaçador nos olhos enquanto
mata um rato a pauladas, a criança que observa também poderá esperar ser mortal a
pauladas — especialmente se estiver tendo maus pensamentos mágicos.
Não tenho a pretensão de fazer um retrato exato de processos que ainda não
estão claros para nós, ou dar a entender que todas as crianças vivem no mesmo mundo e
têm os mesmos problemas; e, também, eu não iria querer fazer com que o mundo da
criança parecesse mais apavorante do que na realidade é a maior parte do tempo; mas
acho importante mostrar as dolorosas contradições que devem estar presentes nele, ao
menos uma parte do tempo, e mostrar como esse mundo é realmente fantástico nos
primeiros anos de vida da criança.
Talvez então possamos compreender melhor o motivo pelo qual Zilboorg disse
que o temor da morte "sofre elaborações muitíssimo complexas e se manifesta de muitas
maneiras indiretas". Ou, como Wahl explicou com tanta perfeição, que a morte é um
símbolo complexo, e não uma coisa específica, perfeitamente definida, para a criança:
...o conceito de morte que a criança tem não é uma coisa única, mas sim
uma composição de paradoxos mutuamente contraditórios (...) a própria
morte não é apenas um estado, mas um símbolo complexo, cujo
significado irá variar de uma pessoa para outra e de uma cultura para
outra.
Poderíamos compreender, também, o motivo pelo qual as crianças têm seus
pesadelos recorrentes, suas fobias universais de insetos e de cachorros bravos. No seu
torturado mundo interior se entrelaçam símbolos complexos de muitas realidades
inadmissíveis — terror do mundo, o horror dos próprios desejos, o medo de vingança
por parte dos pais, o desaparecimento de coisas, a falta de controle do indivíduo sobre
qualquer coisa, na verdade.
É demasiado para qualquer animal suportar, mas a criança tem que suportar, e
por isso acorda gritando com uma regularidade quase pontual durante o período em que
seu ego fraco está no processo de consolidar as coisas.
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O "Desaparecimento" do Medo da Morte
No entanto, o espaço entre os pesadelos se torna cada vez maior, e algumas
crianças os têm mais do que outras: voltamos outra vez ao início de nossa
argumentação, àqueles que não acreditam que o medo da morte seja normal, que acham
que ele é um exagero neurótico que se alimenta de experiências desagradáveis do
passado. Caso contrário, dizem eles, como explicar que tantas pessoas — a imensa
maioria — parecem sobreviver à perturbação dos pesadelos da infância e levam uma
vida saudável, mais ou menos otimista, sem ser perturbadas pela morte?
Como disse Montaigne, o camponês tem uma profunda indiferença e paciência
em relação à morte e ao lado sinistro da vida; e se dizemos que isso se deve à sua
estupidez, então ―vamos aprender com a estupidez‖28. Hoje, quando sabemos mais do
que Montaigne, diríamos ―vamos todos aprender com a repressão‖...mas o moral teria o
mesmo peso: a repressão toma conta do símbolo complexo da morte, na maioria das
pessoas.
Mas o seu desaparecimento não significa que o medo nunca esteve presente. O
argumento daqueles que acreditam na universalidade do terror inato da morte baseia-se,
em sua maioria, naquilo que sabemos sobre o quanto a repressão é eficiente. É provável
que a discussão nunca possa ser decidida com clareza: se você alega que um conceito
não está presente porque está reprimido, você não pode perder; não é um jogo justo,
intelectualmente falando, porque você tem sempre o trunfo. Esse tipo de argumento faz
com que a psicanálise pareça não científica para muitas pessoas, pelo fato de seus
proponentes poderem alegar que alguém nega um de seus conceitos porque esse alguém
reprime a consciência da verdade daquele conceito.
Mas a repressão não é uma palavra mágica para se ganhar discussões: trata-se de
um fenômeno verdadeiro, e temos conseguido estudar muitos de seus funcionamentos.
Este estudo dá a ela legitimidade como conceito científico e faz dela um aliado mais ou
menos confiável de nossa argumentação. Em primeiro lugar, há um crescente número de
pesquisadores tentando chegar à consciência da morte negada pela repressão, que usa
testes psicológicos como a medição das reações galvânicas da pele; esse grupo declara,
com insistência, que por baixo do mais sereno exterior esconde-se a ansiedade
universal, o "verme no âmago".
Em segundo lugar, não há nada como os choques do mundo real para afrouxar as
repressões. Há pouco tempo, psiquiatras anunciaram um aumento das neuroses de
angústia em crianças em consequência dos tremores de terra ao sul da Califórnia. Para
aquelas crianças, a descoberta de que a vida inclui, na verdade, o perigo cataclísmico foi
demais para os seus sistemas de negação ainda imperfeitos — daí os manifestos surtos
de ansiedade. Com os adultos, vemos essa manifestação de ansiedade diante de
catástrofe iminente, onde ela toma a forma de pânico. Recentemente, várias pessoas
sofreram fraturas de membros e outros ferimentos por terem aberto à força a porta de
emergência do avião em que se encontravam, durante a decolagem, e pularam da asa
para o chão; o incidente foi provocado pela possível explosão de gases na descarga de
um motor do avião. E óbvio que, subjacentemente àqueles barulhos inofensivos, outras
coisas estavam ribombando no interior daquelas criaturas.
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Mas ainda mais importante é a forma de funcionar da repressão: não é
simplesmente uma força negativa se opondo às energias da vida; ela vive à custa das
energias da vida e as usa de forma criativa. Quero dizer que os temores são
naturalmente absorvidos pelo esforço organísmico expansivo. A natureza parece ter
embutido nos seres vivos uma mentalidade saudável inata; ela se expressa no auto
prazer, no prazer de estender qualidades do indivíduo ao mundo, na incorporação de
coisas existentes nesse mundo, e de se alimentar com as ilimitadas experiências desse
mundo. Isso corresponde a uma grande quantidade de experiência muito positiva, e
quando um organismo poderoso se move com essa experiência, ela causa satisfação.
Como disse certa vez Santayana: um leão deve sentir-se mais certo do que uma
gazela de que Deus está do seu lado. Ao nível mais elementar, o organismo funciona
ativamente contra a sua própria fragilidade, ao procurar expandir-se e perpetuar-se na
experiência viva; ao invés de encolher-se, ele se desloca em direção a mais vida. E
também faz uma coisa de cada vez, evitando distrações inúteis de uma atividade que
exija dedicação plena; dessa maneira, parece que o medo da morte pode ser
cuidadosamente ignorado ou realmente absorvido pelos processos de expansão da vida.
De vez em quando, parece que vemos um ser assim cheio de vitalidade ao nível
humano: estou pensando no retrato de Zorba, o Grego feito por Nikos Kazantzakis.
Zorba era o ideal de vitória incontestável da paixão de cada dia, que tudo absorve, a
vitória sobre a timidez e a morte, e que assim purificava outros na sua chama de
afirmação da vida. Mas o próprio Kazantzakis não era um Zorba — o que, em parte,
explica o motivo pelo qual a personagem de Zorba parecia um tanto falsa — tampouco
o é a maioria dos outros homens. Ainda assim, todo mundo goza de uma dose prática de
narcisismo básico, muito embora não seja o do leão.
A criança que é bem alimentada e amada desenvolve, como dissemos, um
sentido de onipotência mágica, um sentido de sua própria indestrutibilidade, um
sentimento de poder comprovado e de apoio seguro. Ela pode imaginar-se, lá no fundo,
eterna. Poderíamos dizer que a sua repressão da ideia da morte lhe é facilitada porque
ela, a criança, na sua vitalidade muito narcisista, está fortalecida contra tal ideia. Esse
tipo de caráter provavelmente ajudou Freud a dizer que o inconsciente não conhece a
morte.
Seja como for, sabemos que o narcisismo básico é aumentado quando as
experiências da infância do indivíduo tiverem sido seguramente apoiadoras da vida e
reforçarem afetuosamente o sentimento do eu, o sentimento de ser realmente especial,
verdadeiramente o Número Um na criação. O resultado é que algumas pessoas têm mais
daquilo que o psicanalista Leon J. Saul chamou com propriedade de "Sustentação
Interna". É um sentimento de confiança corporal em face da experiência que faz com
que a pessoa atravesse mais facilmente sérias crises da vida e até mesmo bruscas
mudanças de personalidade; ela quase parece substituir os instintos diretivos dos
animais inferiores. Não se pode deixar de tornar a pensar em Freud, que tinha mais
sustentação interna do que a maioria dos homens, graças à sua mãe e ao ambiente inicial
favorável; ele conheceu a confiança e a coragem que essa sustentação dava a um
homem, e enfrentou com coragem a vida e um câncer fatal, demonstrando um heroísmo
estoico. Uma vez mais, temos evidências de que o complexo símbolo do temor da morte
seria muito variável em sua intensidade; ele seria, como concluiu Wahl, "profundamente
dependente da natureza e das vicissitudes do processo evolutivo".
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Mas quero ter o cuidado de não dar um valor demasiado à vitalidade natural e à
sustentação interna. Como iremos ver no Capítulo Seis, até mesmo Freud, que era um
privilegiado nesse aspecto, sofreu a vida toda de fobias e da angústia da morte; e chegou
a perceber plenamente o mundo sob o aspecto do terror natural. Não creio que o
complexo símbolo da morte esteja ausente por algum momento, não importa o grau de
vitalidade e de sustentação interna que uma pessoa tenha. Ainda mais, se dizemos que
esses poderes tornam a repressão fácil e natural, estamos apenas contando a história pela
metade. Na verdade, eles obtêm o seu próprio poder da repressão.
Os psiquiatras afirmam que o temor da morte varia de intensidade dependendo
do processo evolutivo de cada pessoa; e acho que uma importante razão para essa
variabilidade é que, no processo de evolução, o temor sofre transformações. Se a criança
teve uma criação muito favorável, tanto mais essa criação favorece a ocultação do temor
da morte. Afinal, a repressão torna-se possível pela identificação natural da criança com
os poderes de seus pais. Se ela tiver sido bem cuidada, a identificação virá fácil e
solidamente, e o poderoso triunfo que os seus pais conquistam sobre a morte se torna
automaticamente dela também.
O que é mais natural, para banir os temores do indivíduo, do que viver à custa
de poderes delegados? E o que significa todo o período de crescimento, senão a
renúncia ao projeto de vida do indivíduo? Estarei falando sobre essas coisas durante
todo o livro, e não quero desenvolvê-las nesta abordagem introdutória. O que veremos é
que o homem molda para si mesmo um mundo governável: ele se lança à ação sem usar
de crítica, sem pensar.
Aceita a programação ditada pela sua cultura, que lhe diz para onde ele deva
olhar; não se apossa do mundo com uma única mordida, como faria um gigante, mas em
pequenos pedaços mastigáveis, como faz um castor. Usa todos os tipos de técnicas, que
chamamos de "defesa do caráter": aprende a não se expor, a não se destacar; aprende a
inserir-se no jogo dos poderes externos, tanto de pessoas concretas como de coisas e
ordens de sua cultura; o resultado é que ele passa a existir na imaginada infalibilidade
do mundo que o cerca. Ele não precisa ter medo quando seus pés estão fincados com
solidez e sua vida está mapeada em um labirinto pronto para ser usado. Tudo o que tem
a fazer é lançar-se à frente, em um estilo compulsivo de impetuosidade, aos "hábitos do
mundo" que a criança aprende e no qual vive mais tarde como uma espécie de penosa
equanimidade — a "estranha capacidade de viver o momento e ignorar e esquecer" —,
como disse James. Esta é a razão mais profunda pela qual o camponês de Montaigne só
vai ficar perturbado bem no final, quando o Anjo da Morte, que sempre esteve pousado
em seu ombro, estender as asas.
Ou então quando sofrer um choque prematuro que o deixe com uma percepção
muda, como os "Maridos" no belo filme de John Cassavetes com o mesmo título. Em
épocas assim, quando desponta aquela percepção que sempre foi eclipsada por alguma
atividade frenética disponível no momento, vemos a transmutação da repressão
redestilada, por assim dizer, e o medo da morte surge em pura essência. É por isso que
as pessoas têm surtos psicóticos quando a repressão já não funciona mais, quando a
descarga de tensões através da atividade já não é mais possível.
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Além disso, a mentalidade do camponês é muito menos romântica do que
Montaigne quer nos fazer crer. A serenidade do camponês está, em geral, imersa num
estilo de vida que tem elementos de verdadeira loucura, e por isso ela o protege: uma
subcorrente de ódio e amargura constantes expressos em rixas, provocações, brigas e
discussões em família, a mentalidade mesquinha, a auto reprovação, a superstição, o
obsessivo controle da vida diária por um autoritarismo rígido, e assim por diante. Como
diz o título de um recente ensaio de Joseph Lopreato: "O que é que você acha de ser um
camponês?‖
Vamos abordar, também, outra grande dimensão na qual o complexo símbolo da
morte é transmutado e superado pelo homem — a crença na imortalidade, a continuação
do nosso ser na eternidade. Por agora, podemos concluir que existem muitas maneiras
pelas quais a repressão atua para acalmar o angustiado animal humano, a fim de que ele
não precise ter o mínimo de angústia.
Acho que conciliamos nossas duas posições divergentes em relação ao temor da
morte. As posições "ambiental" e "inata" são, ambas, partes do mesmo quadro; elas se
fundem naturalmente uma na outra; tudo depende de que ângulo você aborda o quadro:
do lado dos disfarces e transmutações do temor da morte, ou do lado da aparente
ausência desse temor.
Admito, com uma sensação de constrangimento científico, que, qualquer que
seja o ângulo que você usar, não chegará ao autêntico temor da morte; e por isso
concordo, relutantemente, com Choron, dizendo que é provável que a discussão nunca
possa ser "vencida" de maneira clara. Apesar de tudo, surge algo muito importante:
existem diferentes imagens do homem que ele pode traçar e dentre as quais pode
escolher.
De um lado, vemos um animal humano que está parcialmente morto para o
mundo, que é mais "nobre" quando mostra certa desatenção para com seu destino,
quando se deixa levar vida afora; que é mais "livre" quando vive numa segura
dependência em relação aos poderes que o cercam, quando menor é o controle que tem
sobre si mesmo.
Do outro lado, temos uma imagem de um animal humano que é evidentemente
sensível em relação ao mundo, que não consegue descartá-lo, que é atirado de volta aos
seus próprios parcos poderes, e que parece muito pouco livre para se deslocar e agir,
com mínimo controle de si mesmo, e muitíssimo desprovido de dignidade. A imagem
que escolhermos para com ela nos identificarmos depende em grande parte de nós
mesmos. Vamos, então, explorar e ampliar mais essas imagens, para ver o que elas nos
revelam.
O INDIVÍDUO, A ESPÉCIE E A MORTE
MORIN, E. O. O homem e a morte.
Rio de Janeiro: Imago, 1970.
REDE NACIONAL DE TANATOLOGIA www.redenacionaldetanatologia.psc.br Página 32
A consciência humana da morte não supõe apenas a consciência daquilo que era
inconsciente no animal, e sim uma ruptura na relação individuo-espécie, uma promoção
da individualidade em relação à espécie, uma decadência da espécie em relação à
individualidade. E vamos mostrar que a vida animal implica muito menos a ignorância
da morte, como pretende um mau truísmo filosófico, que a adaptação à morte, isto é, a
adaptação à espécie.
Pois, para nós, esta claro que o animal, ao mesmo tempo em que ignora a morte,
"conhece" entretanto uma morte que seria a morte-agressão, a morte-perigo, a morte-
inimiga. Toda uma animalidade blindada, ajaezada, cheia de espinhos, ou provida de
palas galopantes, de asas loucamente rápidas, exprime sua obsessão de proteção no seio
da mata viva. A tal ponto que ela reage ao menor ruído exatamente como ao perigo de
morte, seja com a fuga, seja com a imobilização reflexa. A imobilização reflexa, que
afasta o perigo da morte imitando-a, numa espécie de refinamento e de astúcia de
autodefesa, traduz uma reação "inteligente" à morte.
Astúcia pela qual, às vezes, se deixa levar o animal predador que fareja o falso
cadáver e já não sente necessidade de atacar, reagindo assim também à morte. Ademais,
existe um ponto muito importante e obscuro, relativo ao comportamento de muitos
animais, e sobre o qual não conhecemos nenhum estudo. Será que eles se escondem
para morrer? Por quê? Qual é a significação dos cemitérios de elefantes, animais, por
outro lado, muito evoluídos? Se, de fato, certos animais têm um comportamento
característico, quando estão para morrer, este comportamento implica então um
"conhecimento" da morte. Mas que "conhecimento" é este?
Tais reações, tais comportamentos, tal "inteligência" da morte implicam, por
certo, o indivíduo, pois são manifestadas por indivíduos em relação a outros indivíduos,
mas constituem reações específicas. A astúcia da imobilização reflexa é uniforme para
todos os indivíduos de uma mesma espécie; o indivíduo age como "espécimen", e
manifesta em suas reações supracitadas, não uma inteligência individual, e sim uma
inteligência específica, ou seja, um instinto. O instinto, que é um sistema de
desenvolvimento e de vida, é também um formidável sistema de proteção contra o
perigo de morte. Noutras palavras, é a espécie que conhece a morte, não o indivíduo; só
ela a conhece a fundo.
Ainda mais a fundo porque a espécie só existe através da morte de seus
indivíduos; esta morte ""natural" é maquinada no próprio cerne dos organismos
individuais: seja com for, os indivíduos morrerão de velhice. E esta morte não é
fatalidade da vida em geral; como iremos mostrar na quarta parte deste livro, as células
vivas são potencialmente imortais, e os unicelulares só morrem por acidente. E a
maquinaria complexa das espécies evoluídas e sexuadas que traz consigo a morte.
De fato, a espécie se auto protege, ao fazer morrerem naturalmente seus
indivíduos; ela salvaguarda seu próprio rejuvenescimento e também se protege da
morte-agressão, da morte-perigo, graças a todo um sistema de instintos de proteção. Os
instintos de conservação individual são específicos, já que idênticos em todos os
membros de uma mesma espécie; possuem uma significação ainda mais totalmente
específica, por que se integram num vasto sistema de proteção da espécie inteira. No
interior da espécie reina um tabu absoluto de proteção: "Os lobos não se devoram entre
si." Quando os indivíduos de uma mesma espécie se atacam mutuamente, é somente em
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caso de luta sexual, quer dizer, de seleção em benefício da espécie, ou, em última
instância, da luta por um alimento insuficiente, o que ainda constitui seleção, ou então
ainda quando certos elementos já se tornaram inúteis para a procriação (zangões)...
E é porque a espécie, defendendo-se contra a morte, é "clarividente", que o
indivíduo animal é cego para a morte. Se o animal é cego para a ideia de sua morte,
evidentemente isto acontece porque ele não tem consciência, portanto não tem ideias.
Mas a simples ausência de consciência é a adaptação do indivíduo à espécie. A
consciência é apenas individual, e supõe uma ruptura entre a inteligência específica, isto
é, o instinto, e o indivíduo. Pois a individualidade animal existe. Quanto mais subimos
na escala animal, mais se afirmam entre os indivíduos de uma mesma espécie as
singularidades psicológicas e psíquicas. Muito mais: é impossível imaginar que os
saberes possuídos hoje pelo instinto não tenham sido primeiro saberes individuais, isto
sem querer suscitar as modalidades do problema da hereditariedade.
Mas, na vida das espécies animais, a individualidade continua integrada; ela
adere à vida bruta sem se separar dela; ou seja, ao mesmo tempo ao comando do instinto
e à sua participação específica no seio da natureza. Como dizia são Tomás, "limitado a
possuir o concreto sensível, o animal só pode tender a possuir o concreto sensível, isto
é, a conservar seu ser hic et mine".
Por outro lado, por mais desenvolvido que seja no animal o setor de invenção
individual, a inteligência específica permanece como a determinante essencial: somente
com a consciência de si é que aparece a afirmação de si, que contradiz então a
hierarquia da espécie e sua "unicidade".
Donde, realmente, na medida em que esta morte significa perda da
individualidade, uma cegueira animal à morte, que é uma cegueira à individualidade. A
cegueira à sua própria morte é a cegueira à sua própria individualidade, que, no entanto,
existe; a cegueira à morte alheia é a cegueira à individualidade alheia, que também
existe. Zuckermann, por exemplo, cita as constatações de Yerkes sobre uma fêmea de
babuíno que carrega durante três semanas seu filhinho morto, como se estivesse vivo,
enquanto o corpo se decompõe, se desmantela, até que, membro após membro, não
resista mais que um trapo que, enfim, a mãe abandona.
Por outro lado, alguns macacos se comportaram com cadáveres de gatos, ratos,
pássaros, como se estivessem vivos. Enfim, foram vistos machos que se introduziam em
suas fêmeas mortas ou montavam guarda sexual junto delas. E por isso que, em relação
aos próprios parentes mais próximos da humanidade, Zuckermann (p. 235) termina
concluindo que "os símios e os antropoides não reconhecem a morte, pois reagem diante
de seus companheiros mortos como se estivessem vivos, mas passivos". Basta-nos, para
corrigir esta definição, especificar que é a morte-perda-de individualidade que os
antropoides não reconhecem.
Entretanto, a cegueira animal à morte-perda-de-individualidade não é absoluta;
pode acontecer que animais superiores e particularmente animais domésticos sintam a
morte alheia com emoções dolorosas e violentas. O caso extremo é o do cão devotado
que morre com a morte do dono, sobre seu túmulo.
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Trata-se, na verdade, de casos complexos, que provocam explicações
heterogéneas. O pássaro afetado pelo desaparecimento de sua ninhada ou de seus ovos
não reage individualmente à perda da individualidade de sua progenitura, e sim
especificamente à perda da herança da espécie. Mas, por outro lado, a perturbação em
que a morte de um gato deixa seu "amigo cachorro" e talvez, como a morte de dois
irmãos siameses que são separados, a ruptura de uma simbiose afetiva unindo dois
seres, embora de espécies diferentes, talvez, a rigor, uma relação "de amor", isto é, de
apego a uma individualidade. Pode-se optar por esta dupla tese no caso do cão incapaz
de sobreviver ao dono.
Daí se poderia talvez inferir que a morte-perda-de-individualidade afeta o animal
quando a ordem de sua espécie foi perturbada, pela domesticação, por exemplo: a
domesticação liberta o animal da tirania vital, afasta-o de suas amigas atividades
específicas, "individualizai-o em certo sentido, e deixa-o disponível, em face do ser
supremamente individualizado: o homem.
Portanto, não há, se não ainda consciência, pelo menos sentimento e
traumatismo provocados pela morte perda- de-individualidade, a não ser quando a lei da
espécie é perturbada pela afirmação de uma individualidade. Estes casos excepcionais
nos trazem a prova contraria de que a morte só aparece quando há promoção da
individualidade em relação à espécie.
E de qualquer modo, caso esta promoção perturbadora se manifeste no animal,
ele não pode, por falta de "consciência de si", chegar à consciência da morte, e crescera
à crença na imortalidade. Nenhum uá... uá... fúnebre jamais significou "tu viverás no
outro mundo".
Portanto, não há somente ignorância animal da morte: há um duplo setor, um de
"clarividência", outro de cegueira, que o esquema que se limita a opor a consciência
humana à inconsciência animal, ou o que opõe abusivamente a individualidade humana
à ausência de individualidade de animal, não podem perceber, se esquecerem da relação
indivíduo-espécie. De fato, é a afirmação da espécie em relação ao indivíduo que
caracteriza o animal. Eis porque, na vida animal, a inteligência específica é "lúcida" em
face do perigo de morte, ao passo que o indivíduo fica cego diante de sua morte ou da
morte de outro.
Schopenhauer, nas páginas admiráveis onde mostra em que "derrisão" a espécie
mantém o indivíduo, sublinhou, romantizando-o, o sentido profundo da cegueira animal
à morte: "O animal, a bem dizer, vive sem conhecer a morte; deste modo, o indivíduo
do gênero animal goza imediatamente de toda a imutabilidade da espécie, só tendo
consciência de si como um ser sem fim. Acrescentemos que, se o indivíduo fica cego no
seio da espécie, já a espécie vê, sabe, e exatamente por isso, dura‖.
Portanto, por mais feroz e ciosa que possa parecer, a individualidade animal não
se opõe à espécie, e sim a confirma. A espécie está nela. Em termos hegelianos, dir-se-
ia que esta individualidade ilustra a universalidade desta espécie, vivendo plenamente
como espécimen, justamente, depois se retirando do jogo, negando-se como
particularidade.
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Ela é seu triunfo do presente quando se atira cheia de vida na natureza, e seu
triunfo do futuro quando se retira desgastada, para dar lugar às novas gerações. A
individualidade animal não tem sentido em si mesma. E a lei da espécie que se defende
da morte não é perturbada pela morte dos indivíduos, ao contrário, vive dela, e
exatamente para se defender da morte.
Logo, o setor animal de clarividência diante da morte, assim como seu setor de
cegueira, têm a mesma significação de adaptação da individualidade à espécie. O anjo e
o animal. Em compensação, como já vimos, é a individualidade humana, que se mostra
lúcida diante de sua morte, que fica traumaticamente afetada por ela, que tenta negá-la,
elaborando o mito da imortalidade. E esta lucidez não é a tomada de consciência do
saber específico, mas um saber propriamente individual: uma apropriação da
consciência. A consciência da morte não é algo inato, e sim produto de uma consciência
que capta o real. E só "por experiência", como diz Voltaire, que o homem sabe que há
de morrer. A morte humana é um conhecimento do indivíduo.
Portanto, é porque seu saber da morte é exterior, aprendido, não inato, que o
homem é sempre surpreendido pela morte- Freud mostrou este fato: "Sempre insistimos
no caráter ocasional da morte: acidentes, doenças, infecções, grande velhice, revelando
assim claramente nossa tendência a despojar a morte de qualquer caráter de
necessidade, a fazer dela um fato puramente acidental." Mas o importante não é tanto a
tendência a despojar a morte de seu caráter de necessidade: é antes o assombro sempre
novo provocado pela consciência da inelutabilidade da morte. Todos já puderam
constatar, como Goethe, que a morte de um ser próximo é sempre "incrível e
paradoxal", "uma impossibilidade que de repente se transforma em realidade"
(Eckermann); e esta aparece como um acidente, um castigo, um erro, uma irrealidade. E
esta reação ao "incrível" da morte que se traduz através dos signos arcaicos onde esta é
explicada como um malefício ou uma feitiçaria.
Portanto, naturalmente cego paia a morte, o homem é obrigado a reaprendê-la o
tempo todo. O traumatismo da morte é exatamente a irrupção da morte real, da
consciência da morte em meio a esta cegueira. E não se deve confundir esta cegueira
com a afirmação da imortalidade, que implica sempre a consciência da morte. Neste
domínio, a terminologia de Freud se presta a confusão: A escola psicanalítica teve
oportunidade de declarar", disse ele, "que no fundo ninguém acredita em sua própria
morte, ou, o que dá no mesmo, em seu inconsciente, cada um está persuadido de sua
própria imortalidade."
De modo algum dá no mesmo não ser capaz de conceber sua morte e se crer
imortal. A "imortalidade" à qual Freud faz alusão não é a mesma imortalidade das
crenças na vida futura, que, cabe repetir, implicam o reconhecimento da morte. E uma
"amortalidade" anterior a este reconhecimento, anterior ao indivíduo acrescentaríamos.
O inconsciente é um conteúdo: neste conteúdo se misturam a cegueira animal à morte e
o desejo humano da imortalidade. E verdade que este conteúdo animal ou biológico de
amortalidade serve de suporte à afirmação de imortalidade sobrevivência. Mas aí ele se
encontra transformado pelo individuo, confiscado à espécie, verdadeiro furto do soma
que se aposse dos atributos do filo; ou melhor, trata-se de uma vontade revolucionária
de apropriação da imortalidade da espécie pelo individuo. Assim, quando o homem
banca anjo imortal, não banca o animal; ele banca anjo para não bancar animal. No
máximo, em sua recusa enganadora da morte, ele bancará imbecil.
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Nem por isto a cegueira animal à morte está eliminada no indivíduo. As
observações de Freud atravessam verticalmente todos os comportamentos cegos à
morte. Na verdade, embora conhecendo a morte, embora "traumatizados" pela morte,
embora privados de nossos mortos amados, embora certos de nossa morte, vivemos
também cegos à morte, como se nossos parentes, nossos amigos e nós próprios não
fôssemos jamais morrer. O fato de se aderir à atividade vital elimina qualquer
pensamento de morte, e a vida humana comporta uma parte enorme de despreocupação
com a morte; muitas vezes a morte está ausente do campo da consciência, que, aderindo
ao presente, reprime o que não é o presente, e neste plano o homem é evidentemente um
animal, isto é, dotado de vida. Nesta perspectiva, a participação na vida simplesmente
vivida implica em si mesma uma cegueira à morte. É por esta razão que a vida
quotidiana é pouco marcada pela morte: é uma vida de hábitos, de trabalho, de
atividades. A morte só volta quando o ego a olha ou se olha a si próprio. (E é por isto
que a morte é muitas vezes o mal da ociosidade, o veneno do amor de si mesmo).
Do mesmo modo, a consciência humana da morte se superpõe a uma
inconsciência da morte sem destruí-la. Ou seja, a fronteira entre a inconsciência
"animal" e a consciência humana da morte não passa apenas entre o homem e o animal,
e sim no interior do homem. Esta fronteira separa o Ego do Id. O Ego é, com a
afirmação da individualidade, a consciência humana da morte em sua tripla realidade. O
Id é, segundo a terminologia de Freud, o ("isso"), e segundo nossa terminologia, o dado
imediato específico. O Id está subjacente ao Ego. Seu domínio não é exatamente o do
inconsciente, pois, a nosso ver, o Ego estende sua marca e sua presença na vida
inconsciente, e sim o domínio da vida bruta suscitada e determinada pela espécie.
Existe, bem entendido, comunicação dialética entre o Id e o Ego, entre o indivíduo e a
vicia. Em sua teoria do divertimento, Pascal tem e não tem razão ao mesmo tempo.
Muito bem, é verdade que o homem das civilizações modernas tenta fugir, em suas
atividades, da ideia da morte, isto é, tenta se esquecer. Mas este esquecimento só é
possível por existir nele um animal inconsciente ignorando sempre que há de morrer.
Esta animalidade é a própria vida, e, neste sentido, a obsessão da morte é um
"divertimento" da vida. O Id pode encobrir e anular a ideia da morte, mas, por sua vez,
pode ser corroído por ela: a consciência obsedante da morte em seu ponto extremo, faz
murchar e apodrecer a vida, e leva à loucura ou ao suicídio. No outro extremo, um Ego
atrofiado pode se ignorar a tal ponto que jamais pensará na morte. Entre estes casos
limites, a presença e a ausência da morte se imbricam e se encobrem diversamente. E a
vida, com e sem a preocupação da morte, a dupla vida. Mas esta dupla vida é "una". E
se a vida específica é a derradeira inimiga da individualidade, pois afinal de contas, ela
a mata, ela lhe permite nascer e se afirmar. Porque sem vida, não há homem, é o nada.
Sem a própria participação biológica, isto é, sem adesão à vida, só haveria horror
permanente, inadaptação absoluta, morte permanente, sempre nada. E exatamente
porque esta participação o faz viver e o afasta da morte que ela põe em relevo a
violência e a significação do conflito que opõe a afirmação do indivíduo à morte. Esta
dupla vida é a própria intimidade do conflito, da inadaptação espécie-indivíduo.
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MORTE - VARIÁVEL RELEVANTE
EM PSICOLOGIA
Herman Feifel in MAY, R. Psicologia Existencial, Rio de Janeiro, 1988.
Mesmo depois de examinar detidamente a imponente literatura, importante ou
não, de que a psicologia está rodeada, é impressionante verificar como é escasso e
negligenciado o conhecimento sistematizado sobre as atitudes para com a morte. Isto é
surpreendente visto de diversos ângulos:
(1) Através da história do homem, a ideia da morte propõe o mistério eterno que
é o centro de alguns de nossos mais importantes sistemas de pensamentos filosóficos e
religiosos; por exemplo, a Cristandade, onde o significado da vida é consumado em seu
termo; o existencialismo e sua preocupação impressionante com o temor e a morte. Este
modo de ver tem enormes consequências práticas em todas as esferas da vida,
econômica e política, bem como moral e religiosa.
(2) Uma das mais distintas características do homem, em contraste com as outras
espécies, é sua capacidade de compreender o conceito de uma futura- e inevitável
morte. Em química e física, um ―fato‖ é quase sempre determinado pelos eventos que o
precederam; nos seres humanos, o comportamento presente depende não somente do
passado, mas, muito mais ainda talvez, da orientação para com acontecimentos futuros.
De fato, o que uma pessoa procura vir a ser bem pode, certas vezes, decidir ao que ela
dá atenção em seu passado. O passado é uma imagem que muda com a imagem que
temos de nós mesmos.
(3) A morte é algo que acontece a cada um de nós. Mesmo antes de sua chegada,
ela é uma presença ausente. Alguns afirmam que o temor da morte é uma reação
universal e que ninguém está livre do mesmo. Quando paramos para considerar o
assunto, a noção da singularidade e da individualidade de cada um de nós adquire
significado somente ao conceber que devemos morrer. E é neste mesmo encontro com a
morte que cada um de nós descobre sua ânsia pela imortalidade.
(4) Mais próximo da família psicológica, Freud postulou à presença de um
inconsciente desejo da morte nas pessoas, que ele ligou com certas tendências para a
autodestruição.
Melanie Klein acredita que o medo da morte está na raiz de todas as ideias
persecutórias e, por isso indiretamente, de toda a ansiedade. Paul Tillich, o teólogo, cuja
influência se faz sentir na psiquiatria americana, baseia sua teoria da ansiedade no
postulado ontológico de que o homem é finito, sujeito ao não ser. A insegurança bem
pode ser um símbolo da morte.
Qualquer perda pode representar uma perda total. Jung vê a segunda metade da
vida como estando dominada pelas atitudes do indivíduo para com a morte. Em suma,
há um crescente reconhecimento da relação entre a doença mental de alguém e sua
filosofia de vida e de morte. Temas e fantasias sobre a morte são proeminentes em
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psicopatologia. As ideias sobre a morte são periódicas em alguns pacientes neuróticos e
nas alucinações de muitos indivíduos psicóticos. Há o estupor do paciente catatônico,
algumas vezes comparado a um estado de morte, e as alucinações de imortalidade em
certos esquizofrênicos. Tem me ocorrido que a negação da esquizofrênica da realidade
pode funcionar, em certos casos, como um obstáculo mágico, se não como anulação, da
possibilidade da morte. Se viver leva inevitavelmente à morte, então a morte pode ser
desviada pelo não viver.
Também, certo número de psicanalistas é de opinião de que uma das principais
razões pela qual as medidas de choque produzem efeitos positivos nos pacientes é que
estes tratamentos fornecem-lhes um tipo de experiência fantasista de morte-e-
renascimento. É relevante notar, contudo, que mesmo quando a ansiedade sobre a morte
é discutida na literatura psiquiátrica, é ela com frequência interpretada essencialmente
como um fenômeno derivado ou secundário, frequentemente como um aspecto mais
facilmente suportável do ―temor à castração‖, ou como a ansiedade de separação ou
perda do objeto amado.
5. Outras investigações de atitudes para com a morte podem enriquecer e
aprofundar nossa compreensão das reações de boa ou má adaptação ao stress e da teoria
da personalidade em geral. A adaptação das pessoas mais velhas a ideia da morte, por
exemplo, pode bem ser um aspecto crucial do processo de envelhecimento; e o estudo
das atitudes para com a morte na pessoa seriamente doente e moribunda, uma
experiência in natura, pode prover-nos novos insights das maneiras com que diferentes
indivíduos enfrentam severa ameaça.
Numa perspectiva mais ampla, não apenas a psicologia, mas a cultura ocidental
em geral, na presença da morte, tendem a correr, esconder-se, e buscar refúgio em uma
linguagem eufemística, no desenvolvimento de uma indústria que tem, como interesse
maior, a criação de maiores qualidades ―naturais‖ na morte, e em estatísticas atuais. O
militar torna a morte impessoal, e o Passa-Tempo dominante trata a morte não tanto
como tragédia, mas como uma ilusão dramática. A preocupação com a morte tem sido
relegada ao território proibido até aqui ocupado por moléstias como tuberculose e
câncer, e ao tópico do sexo. Com o enfraquecimento das crenças paulinas relativas á
pecaminosidade do corpo e a certeza de uma vida após a morte, parece haver um
concomitante decréscimo na capacidade das pessoas de contemplar e discutir a morte
natural.
Não obstante, as investidas de duas guerras mundiais, junto com a herança de
um holocausto nuclear potencial, têm ajudado, em anos recentes, a empurrar a
temporalidade da vida cada vez mais para o primeiro plano. O movimento
existencialista tem sido particularmente conspícuo em redescobrir a morte como um
tema filosófico e um problema no século XX. Num certo sentido, a história da filosofia
existencial, em suas maiores fases, é uma exegese da experiência humana da morte. A
imagem do homem que surge é de uma criança limitada pelo tempo.
O existencialismo de nosso século, expresso nas filosofias de Simmel, Sheler,
Jaspers e Heidegger colocou a experiência da morte perto do centro de suas análises da
condição humana. Tem acentuado a morte como uma parte constitutiva, antes que o
mero fim da vida, e salientou a ideia que somente pela integração do conceito de morte
dentro do eu torna-se possível uma autêntica e genuína existência. O preço de negar a
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morte é a ansiedade indefinida, a auto alienação. Para compreender-se completamente, o
homem tem de enfrentar a morte, tornar-se cônscio da morte pessoal.
O existencialismo não é, certamente, uma técnica psicoterapêutica e não tem
pretensões nesta direção. Sinto, contudo, que sua orientação implica em consequências
de um tipo psicoterapêutico, referente ao que May comentará em maiores detalhes no
cap. IV.
No limitado espaço disponível para mim, desejo indicar algumas descobertas
gerais sobre atitudes para com a morte, resultantes de uma contínua série de
investigações que estou atualmente realizando. Elas terão de ser consideradas tão-
somente como uma rápida reportagem, passível de, e sujeita a, modificações. Espero,
contudo, que elas sugiram possibilidades terapêuticas. Os resultados baseiam-se em
quatro grupos maiores: 85 pacientes mentalmente doentes, na idade média de 36 anos;
40 pessoas mais velhas na idade média de 67 anos; 85 ―normais‖, consistindo de 50
jovens na idade média de 26 anos, e 35 profissionais liberais, na idade média de 40
anos; e 20 pacientes, extremamente doentes, na idade média de 42 anos.
Na resposta à pergunta ― o que a morte significa para você?‖ dois pontos de vista
dominaram. Um vê a morte numa veia filosófica, como o fim natural do processo vital.
O outro é de natureza religiosa, percebendo a morte como a dissolução da vida corporal
e, na realidade, o começo de uma nova vida. Esta descoberta, num certo sentido,
amplamente espelha a interpretação da morte na história do pensamento ocidental.
Destes dois polos opostos, podem se derivar duas éticas contrastantes. ―de uma
lado, a atitude para com a morte é a aceitação estoica ou céptica do inevitável, ou
mesmo a repressão do pensamento de morte pela vida; do outro, a glorificação idealista
da morte é a que proporciona significado à vida, ou é a pré-condição para a verdadeira
vida do homem.‖ 7 Esta descoberta põe em destaque a profunda contradição que existe
em nosso pensamento sobre o problema da morte. Nossa tradição pressupõe que o
homem termina com a morte e que, ao mesmo tempo, é capaz de continuar, de algum
outro sentido, além da morte. A morte é vista, de um lado, como uma ―parede‖, o
desastre pessoal extremo, e o suicídio como o ato de uma mente doentia; de outro lado,
a morte é considerada como uma ― porta de entrada‖, um ponto no tempo no caminho
da eternidade.
O grau de perturbação mental per se nos pacientes, aparentemente, possui
pequeno efeito sobre suas atitudes globais para com a morte. Nem a neurose, nem a
psicose produzem atitudes para com a morte que não possam ser encontradas em
sujeitos normais. O distúrbio emocional aparentemente serve para trazer atitudes
específicas mais claramente para o primeiro plano. Estes resultados reforçam as
descobertas de Bromberg e Schilder.
Incidentalmente, poucas pessoas normais visualizam sua própria morte em
decorrência de um acidente. Isso se opõe às descobertas de que uma boa proporção dos
pacientes mentalmente enfermos visualiza sua morte por efeito da ― pane num avião‖, ―
do atropelamento por um trator‖, ―de fuzilamento‖, etc.
Quando solicitada a expressar sua preferência quanto à ― maneira, lugar e
tempo‖ da morte, uma maioria esmagadora em todos os grupos queria morrer
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rapidamente e com pouco sofrimento - ― pacificamente, dormindo‖, como a maior parte
expressou, ou ― tendo um ataque cardíaco‖. Os demais queriam ter tempo suficiente
para que pudessem fazer as despedidas da família e amigos. ―Em casa‖ e na ― cama‖ são
especificamente mencionados pela maioria como locais favoritos para morrer. Há,
naturalmente, idiossincrasias pessoais - ―num jardim‖, ―contemplando o oceano‖,
―numa rede em dia de primavera‖. Entre 15 e 20% em cada grupo dizem que não lhes
faz muita diferença onde morrer. Gostaríamos de conjecturar se estas respostas não
refletem, por acaso, em certo nível, uma reação à nossa moderna maneira de morrer. Já
não nos é muito comum receber a morte na intimidade de nossas casas, com a família
acompanhada em volta, e com um mínimo de medicamentos para prolongar a vida.
Morremos num ―grande‖ hospital, com seus recursos superiores para proporcionar
cuidados e aliviar a dor, mas também com seus impessoais tubos intravenosos e tendas
de oxigênio. É como se a realidade da morte estivesse obscurecida, tornando-se um
acontecimento público, algo que acontece para todo mundo, ainda que a ninguém em
particular.
Com referência ao tempo da morte, a maior parte das pessoas diz que quer
morrer à noite, porque ―significa menos problemas para todos os interessados‖, ―pouco
rebuliço‖. A escolha da noite, afora o pacífico final da vida considerado, que ela sugere,
tem muita riqueza de sugestão simbólica. Homero, na Ilíada, alude ao sono (hypnos) e à
morte (thanatos) como irmãos gêmeos, e muitas de nossas preces religiosas entrelaçam
as ideias de sono e morte. Os judeus ortodoxos, por exemplo, ao despertar pela manhã
agradecem a Deus por tê-los restaurado para vida novamente.
Enquanto os dados estavam sendo coletados e avaliados, a implicação sugeriu
por si mesma que certas pessoas que temem fortemente a morte, podem recorrer a um
ponto de vista religioso a fim de enfrentar seus temores com relação à morte. Pensei que
seria proveitoso tomar dados comparativos entre pessoas religiosas e não religiosas,
considerando particularmente o aspecto do ―julgamento‖ depois da morte como uma
possível variável importante. A idade média do grupo religioso (N=40) era 31 anos e
meio; a do grupo não religioso (N=42) era de 34 anos. As principais crenças que
caracterizaram o grupo religioso, comparado com o grupo não religioso, foram crenças
num propósito divino nas operações do universo, numa vida-depois-da-morte, e a
aceitação da Bíblia como reveladora das verdades divinas. Deve-se tomar cautela ao se
considerar a pessoa religiosa como invariante; o mesmo vale para a pessoa não
religiosa.
Os indivíduos podem inferir valores (sociabilidade, suporte emocional, sensação
de pertencer etc.) e satisfações de necessidades da participação e da qualidade de
membro religioso, que não se relacionam necessariamente com a crença e o
compromisso religioso. Também, os indivíduos podem frequentemente expressar uma
identificação religiosa (tradição) sem participação ou compromisso formal. E,
frequentemente, pode haver uma diferença entre os compromissos de valores do
indivíduo e os exigidos pela estrutura teológica ―oficial‖ de sua fé em particular.9 Em
outras palavras, algumas pessoas podem professar princípios religiosos, mas não
praticá-los.
Outros podem adotar a religião como um tipo de defesa contra ―azares‖ da sorte.
Então, há os que incorporam suas crenças religiosas nas atividades do seu dia-a-dia. É
preciso uma categorização mais nítida e definitiva nesta área. Por exemplo, as atitudes
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para com a morte podem bem variar entre diferentes grupos de sectários. Nosso
propósito, contudo, neste estágio era obter algumas medidas gerais do ponto de vista
fundamentalista ou não fundamentalista.
A pessoa religiosa, quando comparada com o indivíduo não religioso em nossa
prova, é pessoalmente mais temerosa da morte. O indivíduo não religioso teme a morte
porque ―minha família pode não estar prevenida para‖, ―quero completar certas coisas
ainda‖, ―gosto da vida e quero continuar‖. A ênfase está no temor de descontinuidade da
vida na terra - o que está sendo deixado para trás – em vez de naquilo que poderá vir a
acontecer depois da morte.
A ênfase para a pessoa religiosa é dupla. Preocupa-se com assuntos post-mortem
– ―posso ir para o inferno‖, ―tenho pecados para expiar ainda‖ – bem como a cessação
das presentes experiências terrestres. Os dados indicam que mesmo a crença de ir ao
paraíso não é um antídoto suficiente para pôr fim ao medo pessoal da morte de algumas
pessoas religiosas. Esta verificação, juntamente com o forte temor da morte expresso em
anos passados por um número substancial de indivíduos à religiosidade, pode refletir
um uso defensivo da religião por parte de alguns de nossos objetos de estudo. De modo
correspondente, a pessoa religiosa objeto de nosso estudo sustenta uma orientação mais
significativamente negativa para com os anos mais avançados da vida do que o faz a
correspondente pessoa não religiosa.
No mesmo contexto, creio que a ênfase frenética sobre, e a contínua busca da,
―fonte da juventude‖ em muitos segmentos da sociedade reflete, até certo ponto, as
ansiedades referentes à morte. Uma das razões por que tendemos a rejeitar os velhos é
que eles nos fazem lembrar a morte. Os profissionais, especialmente os médicos, que
entram em contato com pacientes crônicos e extremamente enfermos têm notado em si
próprios tendências paralelas de fuga. Atitudes contra a fobia da morte, por exemplo,
podem ser observadas entre médicos internos. Aqui esta reação por parte do médico é
compreensível: a necessidade de remover à roupagem da libido, o alívio da tragédia
implacável, a realidade de que outros podem se beneficiar mais com seu tempo, etc.
Mas eu advertiria que alguns médicos com frequência rejeitam o paciente moribundo
porque este reativa ou desperta seus próprios temores da morte e que em alguns os
sentimentos de culpa, aliados aos desejos de morte para pessoas significativas em suas
próprias vidas, desempenham certo papel.
Isso para não falar no narcisismo ferido e na ausência de recompensa do médico,
cuja função sendo a de salvar a vida, se vê frente a um paciente moribundo, que
representa uma negação de suas capacidades essenciais. Penso que seria interessante
seguir o aspecto das relações entre a escolha de ocupação, onde a salvação da vida é
imperativa, e as atitudes pessoais dos médicos para com a morte. Um dos obstáculos
insuspeitados contra que tenho esbarrado ao realizar a pesquisa na área não tem sido o
paciente, mas o médico. Uma hipótese que eu sustento, que tem sido constantemente
reforçada, é a de que uma das maiores razões por que certos médicos escolhem a
medicina é para conhecer a fundo suas próprias ansiedades acima do normal a respeito
da morte.
Temos sido obrigados, em medida nada saudável, a internalizar nossos
pensamentos, temores e mesmo esperanças relativas à morte. Um dos sérios erros que
cometemos, penso, ao tratar pacientes extremamente enfermos, é a construção de uma
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barreira psicológica entre o viver e o morrer. Alguns pensam e dizem que é cruel e
traumático falar sobre a morte a pacientes que estão morrendo. Realmente, minhas
descobertas indicam que os pacientes querem muito falar a respeito de seus
pensamentos e sentimentos em torno da morte, mas sentem que nós, os vivos, fechamos
os caminhos para que eles realizem isso. Um bom número deles prefere honesta e
claramente ouvir dos médicos sobre a seriedade de sua doença.
Eles têm a sensação de serem compreendidos e ajudados, em vez de se tornarem
amedrontados ou tomados de pânico quando podem falar sobre seus sentimentos para
com a morte. É verdadeira a ideia de que o desconhecido pode ser mais temido do que a
mais conhecida e temível realidade.
Quando a presente investigação foi inicialmente mencionada, foi levantada a
questão, e legitimamente, quanto ao possível efeito negativo e aspectos oprimentes dos
procedimentos de entrevista e de testes sobre os pacientes. Como fato resultante, a
grande maioria deles não demonstrou reações rebeldes. Alguns deles, na realidade,
agradeceram ao pessoal do projeto por lhes permitirem a oportunidade de discutir seus
sentimentos relativos à morte. Não há nada mais esmagador para uma pessoa à morte,
do que sentir que foi abandonada ou rejeitada.
Essa constatação não somente remove o apoio e impede que o paciente obtenha
alívio dos vários tipos de sentimentos de culpa que ele possa ter, como não lhe permite
mesmo fazer uso de mecanismos de negação que tenha sido capaz de usar até então.
Falando-se de culpa, é alarmante o fato de que muitas pessoas
irremediavelmente enfermas se sentem culpadas. Isto resulta de certo número de razões:
(1) Frequentemente elas manifestam a suspeita de que sua doença e seu
destino são auto impostos e por sua própria culpa.
(2) Assumem, mais ou menos, o papel de criança extremamente
dependente. Alguns conscientemente desculpam-se pelo trabalho e
―confusão‖ que estão causando. Nossa cultura alimenta um sentimento de
culpa na maioria de nós, quando nos colocamos num papel dependente.
(3) Isto é levado mais além na pessoa à morte, pelos sentimentos de que
está forçando os vivos à sua volta a fazer face à necessidade e finalidade
da morte, pelo que eles o odiarão.
(4) Intimamente aliado a isso há o indistinto conhecimento da pessoa
enferma acerca de sua inveja pelos que continuam vivos e do desejo, que
raramente chega ao consciente, de que esposo, pai, filho ou amigo morra
em seu lugar.
Existe a ideia de que pode ser este desejo, em parte, que força a ação, naqueles
casos de pessoas seriamente enfermas, que não só se matam, como matam a família e
mesmo os amigos. Os que continuam vivos respondem com a sua própria culpa - por
estarem vivos e verem alguém mais morrer e, talvez, por desejarem mesmo que a pessoa
moribunda se apresse em seu caminho. Na verdade, a maior parte das pessoas saudáveis
se sente ansiosa e culpada ao ver alguém mais morrer. O confronto direto com o fato
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existencial da morte parece arremessar uma influência maléfica sobre o funcionamento
do ego.
Ainda, estamos cientes de que a maturidade humana traz consigo um
reconhecimento de limite, que é um notável avanço no autoconhecimento. De certa
maneira, a disposição para morrer aparece como uma necessária condição de vida. Não
estamos totalmente livres em qualquer ação enquanto formos comandados por uma
inescapável vontade de viver. Neste contexto, os riscos diários da vida, por exemplo
dirigir na cidade, fazer uma viagem aérea, perder a vigilância ao dormir, tornam-se
formas de quase extravagante insensatez. A vida não nos pertence genuinamente até que
possamos renunciar a ela. Montaigne penetrantemente observou que ―somente o homem
que não mais teme a morte deixou de ser um escravo‖.
A observação clínica sugere a reflexão de que para muitos indivíduos a
percepção da morte desde uma distância temporal e quando ela está pessoalmente
próxima pode constituir dois assuntos diferentes. Também, o conhecimento do grau
―externo‖ de ameaça sozinho parece ser uma base insuficiente com a qual predizer, com
qualquer certeza, como uma pessoa reagirá a ele. A informação de que está para morrer
no futuro próximo não constitui necessariamente uma situação de extrema tensão para
determinados indivíduos. A estrutura do caráter da pessoa - o tipo de pessoa que ela é -
pode muitas vezes ser mais importante do que o próprio estímulo ameaçador-da-morte
para determinar reações. Na continuação do trabalho, esperamos escrutinar mais de
perto as relações existentes aqui, isto é, relacionar as atitudes em relação à morte com o
tipo de pessoa que as possui.
Minha própria tese experimental é que os tipos de reação para com a morte
iminente são uma função de fatores interligados. Firmemente sustento aqui o ponto de
vista de Beigler. Alguns dos mais significativos, a título de hipótese, parecem ser:
(1) a maturidade psicológica do indivíduo;
(2) maneira de fazer frente às técnicas disponíveis para ele;
(3) a influência de sistemas referenciais variáveis, tais como orientação
religiosa, idade, sexo;
(4) severidade do processo orgânico;
(5) as atitudes do médico e de outras pessoas de significação no mundo
do paciente.
A pesquisa em progresso reforça o pensamento de que a morte pode significar
coisas diferentes para diferentes pessoas. Mesmo num grupo cultural estreitamente
definido, torna-se evidente a qualidade psicológica desigual do medo da morte.14 A
morte é um símbolo de múltiplas facetas, cujo significado específico depende da
natureza e dos fatos no desenvolvimento individual e contexto cultural. ―A morte é
terrível para Cícero, desejável para Carlão e indiferente para Sócrates.‖
Um leitmotw, contudo, que persiste em pôr-se em evidência quando se trabalha
neste campo é que a crise, muitas vezes, não é o fato de superar a morte de per si, a
intransponível finitude do homem, mas antes o desperdício de anos limitados, as tarefas
não tentadas, as oportunidades bloqueadas, os talentos definhados no desuso, os males
evitáveis que foram praticados. A tragédia que está sendo sublinhada é que o homem
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morre prematuramente e sem dignidade, e que a morte não se tornou realmente ―de sua
propriedade‖.
Para concluir: o nascimento de um homem é um evento incontrolável na sua
vida, mas a maneira de sua partida da vida guarda uma definida relação com sua
filosofia de vida e morte. Estamos enganados em considerar a morte como um
acontecimento puramente biológico. A vida não é verdadeiramente compreendida nem
completamente vivida a não ser que a ideia de morte seja encarada com honestidade.
Há uma premente necessidade de informação mais fidedigna e sistemática, de
estudo controlado na área. Esta é uma área em que as formulações teóricas não têm
deixado atrás de si um corpo acumulativo de dados descritivos e empíricos. A pesquisa
sobre o significado da morte e o ato de morrer podem realçar nossa compreensão do
comportamento do indivíduo e fornecer uma porta de entrada complementar para uma
análise das culturas.
Permitam-me ser explícito. Não sustento que a condição humana possa ser
completamente descrita por cuidado e ansiedade, temor e morte. Alegria, amor e
felicidade provêm indícios igualmente válidos para a realidade e o ser. Como Gardner
Murphy perspicazmente salientou, está longe de estar estabelecido que todo
enfrentamento da morte represente necessariamente proveito para a saúde mental. Em
certos estudos com pilotos durante a segunda guerra mundial18 descobriu-se que aqueles
que não sucumbiam psicologicamente conservaram, nos momentos de mais extremo
perigo, a ilusão de invulnerabilidade. Aparentemente, há a necessidade de fazer face à
morte e também a de voltar-lhe as costas.
Minha opinião é que há um passo muito necessário a avançar para que a
psicologia reconheça que o conceito de morte representa um fato psicológico e social de
importância substancial e que as palavras atribuídas a Goethe ao morrer - ―Mais luz‖ –
são particularmente apropriadas ao campo em discussão.
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REFLEXÕES SOBRE A PSICANÁLISE E A MORTE
CASSORLA, R. S. M. in KOVÁCS, M. J. (Org.) Morte e desenvolvimento humano.
São Paulo, Casa do Psicólogo, 1992.
"Não existe meio de verificar qual a boa decisão, pois não
existe termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e
sem preparação. Como se um ator entrasse em cena sem nunca
ter ensaiado. Mas o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio
da vida já é a própria vida? É isso que faz com que a vida
sempre pareça um esboço. No entanto, mesmo "esboço" não é
uma palavra certa porque um esboço é sempre o projeto de
alguma coisa, a preparação de um quadro, ao passo que o
esboço que é nossa vida não é nossa vida não é esboço de nada,
é um esboço sem quadro. Tomás repete, para si mesmo o
provérbio alemão: einmal ist keimnal, uma vez não conta, uma
vez é nunca. Não poder viver senão uma vida é como não viver
nunca" (Milan Kundera, em A insustentável leveza do ser).
Proponho-me, neste trabalho, efetuar algumas reflexões sobre a psicanálise e suas
abordagens e teorizações sobre a morte, de uma forma que possa ser compreensível,
mesmo pelos leitores não familiarizados com aquela área do conhecimento. No final do
capítulo, indicarei leituras complementares para aqueles, que queiram aprofundar-se no
tema.
Antes peço ao leitor que me acompanhe num passeio.. Observemos os seres
humanos, as sociedades, e tentemos classificar o que vemos em sua passagem pelo
mundo. Proponho que nesta classificação, coloquemos como extremos de uma faixa,
como um espectro de cores, a VIDA e a MORTE. Entre esses dois extremos há várias
―cores‖ diluindo-se e transformando-se em outras, quase que imperceptivelmente.
Próximo ao extremo da VIDA, teremos: o amor, a solidariedade, o vigor, a dignidade, a
construção de si mesmo e do mundo, a criatividade, a preocupação com o bem de si e os
outros, o aproveitar e tornar a vida o mais rica possível para todos. No extremo oposto
teremos também fenômenos humanos: o ódio, a destrutividade, a inveja, a competição
ambiciosa, o desrespeito, a indignidade, a corrupção, a desumanidade, a guerra. Todas
são formas de atacar a vida estão do lado da morte.
No ser humano encontramos, dentro desse espectro imaginário, todos esses
elementos, paradoxalmente, comumente coexistindo Amor e ódio, solidariedade e
inveja, doação e espoliação, humildade, orgulho e arrogância, criatividade e
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destrutividade, são exemplos, por vezes, de aparentes antíteses, que convivem em todos
nós, de maneiras peculiares.
Num mundo idealizado, o amor; a vida deveriam derrotar o mal e tudo aquilo mais
próximo da destrutividade e da morte. Esse mundo não existe. No mundo real, temos de
conviver com todos esses aspectos: são humanos. Isto nos leva já a um primeiro
problema: o ―moralismo‖. Aparentemente estamos dividindo o ser humano em um lado
bom e outro mau. Esta é uma boa crítica que se faz a certas leituras da psicanálise. Mas,
o psicanalista não deve ver as coisas desse modo – trata-se de fenômenos humanos: os
juízos de valor dependerão da cultura, do momento, do indivíduo. Espera-se que o
psicanalista os abandone em sua lide diária, e isso deve ser trabalhado em sua análise
pessoal, para que, possa aceitar o ser humano como ele é.
Agora nos defrontamos com um segundo problema: isso não nos dá a impressão
de certo cinismo comodista? Do tipo: ―Eu não julgo, sou neutro, não tenho nada com
isso; eu faço o meu trabalho e dane-se o mundo...‖ Penso que existe certa verdade nisso,
mas uma verdade incompleta já é uma mentira. O psicanalista pode e deve lutar pela
vida, como ser humano e como profissional. Mas a própria psicanálise descobriu que a
melhor forma de lutar contra a morte, fortalecendo o lado da vida. É evitar juízos de
valores, aconselhar, condicionar, educar, ou qualquer outra atitude que não seja fazer o
indivíduo (e a sociedade, que em colaboração com outras disciplinas), tomar
consciência daquilo que lhe é inconsciente – e que, recalcado, pode sabotar, impedir ou
dificultar sua vida, sua criatividade, sua felicidade, seja lá o que for felicidade para cada
um.1
O TERROR DIANTE DO “NÃO SABER”
A psicanálise descobriu que existe uma sobre determinação em nossas vidas,
derivada de instâncias inconscientes. Isso provocou uma ferida narcísica na
humanidade, que, de repente, viu-se não mais senhora, de seus atos e comportamento,
ferida essa ainda não cicatrizada que leva muita pessoas anão aceitarem essa área do
conhecimento.
Por outro lado, a tomada de consciência da morte, da finitude do se humano,
constitui-se em outra ferida, esta ainda. mais aterrorizante. Se com a psicanálise,
consegue-se compreender algo acerca da dinâmica do inconsciente, em relação à morte
nada sabemos. E, o não saber é uma das coisas mais apavorantes para o ser humano.
1 Aqui já se assoma outro problema: há quem se sinta feliz ao ver a destruição dos outros e, às vezes, até
de si mesmo. A psicanálise desvela, quando lhe é possível, as motivações inconscientes disso e, se tem
sorte, pode ajudar o indivíduo a sentir-se mais feliz, de outra forma. No entanto, isso nem sempre é
possível, pois a própria relação analítica poderá ser destruída se isso ameaçar ocorrer. Adiante, o leitor
encontrará hipóteses que tentam explicar esse fato. .
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Perde-se a capacidade de controle, fica-se submisso a algo desconhecido, e isso é
desesperante. Daí vem a necessidade de criar verdades, para que esse terror se esvai.
Essas verdades podem fazer parte do domínio da fé. Aqui pouco podemos acrescentar, a
não ser aceitar que é outro fenômeno humano e, como tal, deve ser respeitado e
compreendido. Mas, novamente, o raciocínio não é tão simples, porque desde que a fé
não exige comprovação, poderemos nos ver diante de situações estranhas: por exemplo,
a minha fé está correta e devemos destruir todos aqueles que não comungam com ela.
Esses outros podem ser os hereges, os judeus, os comunistas, os imperialistas, os
protestantes, os ciganos, os homossexuais, as mulheres, os nordestinos, os negros ou os
brancos.
Pior ainda é tornar a fé "ciência". Dessa forma, ela deixa de ser fé e torna seus
dogmas "respeitáveis". Desde a "ciência" inquisitorial para identificar os inimigos do
catolicismo, até a "ciência" que prevê o futuro da luta de classes; passando pela
"ciência" que prova a superioridade racial de alguns, devendo-se eliminar os outros, até
a chamada "ciência cristã" dos fundamentalistas americanos e a "ciência" de alguns
grupos espíritas. Em nível menor, todos nós criamos teorias sobre fatos que fogem ao
nosso controle – às vezes podem estar até corretas, pois a intuição existe (esta é outra
teoria que, para alguns, poderá ser considerada delirante... – veja o leitor onde fui me
meter!), mas comumente são objetos internos que projetamos em outros.
Atualmente passamos por uma fase ainda mais incrível: a própria ciência
tornando-se uma espécie de religião, o cientista (e o leigo) acreditando que aquilo que
se comprovou cientificamente estará sempre correto. E sabemos que a ciência não é
neutra: que por mais rígidas que sejam as técnicas utilizadas pelos cientistas, ocorrerão
transformações na leitura e interpretação dos resultados. Tanto é que teorias que
duraram dezenas de anos, são substituídas por outras, se o cientista se permitir duvidar
de si e da ciência. Mas, muitas decisões são tomadas por pessoas e por governantes,
baseadas em teorias ditas científicas – curiosamente, as teorias que infirmam aquelas
adotadas são ignoradas. Na verdade, isso é fácil de explicar. A ciência, Deus ex
machina, está sendo utilizada, mesmo que o cientista não tenha consciência disso, de
forma delirante ou mal-intencionada.
Aqui podemos deixar de incluir a própria psicanálise, que comumente se
transforma em produto de fé e não de reflexão. Temos desde uma IPA (International
Psychoanalytical Association), fundada por Freud, que tenta preservara "pureza"
científica da psicanálise (o que não que dizer que isso não seja necessário, mas perceba
o leitor o perigo que se corre: queimar os hereges...), até as seitas que se
autodenominam donas; da verdade, queimando seus próprios hereges e maldizendo as
outras correntes psicanalíticas.
Até aqui, percebo, tentar alertar o leitor para aspectos ligados à morte. Mas não
posso deixar de mostrar o lado de vida: os epistemólogos tentam indicar as limitações
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das ciências, os psicanalistas mostram o que existe de invariante nas várias abordagens
escolásticas, os religiosos pregaram a tolerância com as outras religiões e o
ecumenismo, etc. Como sempre, o conflito vida x morte se faz presente.
A psicanálise pode ajudar-nos a compreender muitos mecanismos que usamos
para lidar com esse terror e desespero do desconhecido. Voltando ao nosso tema, o não
saber sobre a morte, tentamos preencher esse, não saber com teorias, intelectualizando.
Tem de existir algo após a morte, senão a vida não teria razão de ser. Como nada existe
que comprove isso, poderíamos dizer que se trata de defesas maníacas. As ideias de
outra vida, de paraíso, de reencarnação, não são sustentadas pelos nossos conhecimentos
atuais. Voltamos aqui para o terreno da fé, com suas vantagens e perigos, como já
assinalei.
AS FANTASIAS DO INCONSCIENTE SOBRE A MORTE
No trabalho psicanalítico verificamos que as fantasias inconscientes sobre o que
seria a morte não são muito abrangentes: 1) o reencontro com pessoas queridas mortas
(e não é por outro motivo que crianças tentam matar-se para encontrar o papai ou o
vovô que morreu, no céu); ou que, agora apelando para mecanismos mais profundos, a
chance de alguém morrer após a morte de pessoas queridas é maior que na população
em geral – evidentemente, aqui poderemos usar teorizações sobre luto patológico, que
veremos adiante; 2) o encontro com outras figuras idealizadas, como Deus ou algo
similar, que seria um complemento da fantasia anterior; 3) a ida para mundo
paradisíaco, regulado pelo princípio do prazer e onde não existe sofrimento. Esta
fantasia se articula com a seguinte; 4) a volta ao útero materno, numa espécie de parto
ao contrário, onde não existem desejos e necessidades. Provavelmente desta fantasia;
entre outras, provém a ideia da "mãe-terra", onde o morto será sepultado.
Mas, ao lado dessas fantasias prazerosas, existem as terroríficas, entre as quais as
relacionadas ao Inferno ou lócus similares têm predominância. São fantasias
persecutórias, que têm a ver com sentimentos de culpa e remorso. As identificações
projetivas em figuras diabólicas, na morte como um ser aterrorizante, com face de
caveira e seu cajado, se interligam a pavores de aniquilamento, desintegração,
dissolução. Essas fantasias se confundem com a loucura, a psicose, e, por vezes não
poder suportá-las pode levar ao suicídio.
Evidentemente, esta ocasião corresponde a mecanismos da posição esquizo-
paranóide, seguindo-se o referencial Kleiniano. Como podem verificar-se, estas
fantasias inconscientes e algumas conscientes, correspondem a revivescências de outras
mais primitivas. E, quase sempre, fazem parte do que se considera "normal" no ser
humano.
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No entanto, uma das questões controvertidas em psicanálise é se, em nosso
inconsciente, poderia existir algum tipo de representação da morte. Para Freud, isso não
existiria, por ser uma experiência que nunca teria sido vivida. Mas ele considerava
como equivalentes os terrores da castração, da perda do amor, do objeto. Para os
kleinianos, já existiria o medo da morte: seria equivalente ao pavor do aniquilamento,
uma ansiedade extremamente primitiva, que teria a ver com o predomínio da pulsão de
morte.
PULSÃO DE VIDA X PULSÃO DE MORTE
E aqui entramos em outro assunto controvertido: existe ou não uma pulsão de
morte, que se contrapõe e ao mesmo tempo se funde com Eros, a pulsão de vida. Em
Além do princípio do prazer, Freud introduz este conceito, como uma especulação,
utilizando inclusive modelos biológicos. Com esse conceito, reformula todo o edifício
da psicanálise, construído até então, Melanie Klein e seus continuadores levam essa
especulação às últimas consequências, passando a utilizá-la de forma produtiva na
clínica e em suas formulações teóricas. No entanto, outros autores e escolas acham
desnecessária a utilização desse referencial, acreditando que a teorização baseada em
pulsões agressivas ligadas às sexuais é suficiente.
Em seu trabalho clínico tenho me valido do conceito de pulsão de morte e creio
que ele tem me enriquecido na melhor percepção dos fenômenos humanos. Basicamente
o que é postulado por Freud e grande parte de seus seguidores é que vivemos,
constantemente num estado de conflito entre Eras e Tanatos, pulsões de vida e pulsões
de morte. As primeiras levam ao crescimento, desenvolvimento, integração, reprodução,
manutenção da vida; as segundas fazem o movimento inverso, de desintegração,
tentando levar o indivíduo para um estado inorgânico, a morte. Esses dois grupos de
pulsões estão "fundidos", funcionando sempre juntos, complementando-se e opondo-se,
num processo dialético. Da pulsão de morte fertilizada pela de vida, deriva a
agressividade normal, que protege o indivíduo dos agravos e faz com que ele possa lutar
para conquistar mais espaço vital. A falta dessa agressividade normal, que prefiro
chamar de vigor, impede inclusive a capacidade de reprodução da espécie.
Quando ocorre a "desfusão" das pulsões, e a de morte se encontra livre
predominante, nos defrontamos com situações de sofrimento, que podem manifestar-se
nas áreas somática, mental e social, em todas elas. Essa predominância em seu auge
pode levar à morte emocional (na loucura) e à morte do corpo, através de somatizações
graves ou atos suicidas, ou mesmo mortes "naturais" precoces.
Mas, por maior que seja a libido (que seria o resultado das pulsões de vida),
Tanatos sempre acaba triunfando, com o tempo: todos acabamos morrendo. Mas isso no
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nível individual – em termos de espécie nossos genes continuam em nossos
descendentes: aqui Eros vence.
Evidentemente esta teorização atrai muitas resistências. Neste momento de minha
vida penso que elas se devem ao terror que inspiram, caso estejam corretas. Esse terror
evidentemente se liga à tomada de consciência da fragilidade e pouca importância que
nós, como seres humanos, temos, dentro da complexidade do Universo. Passamos por
ele, no estado em que nos encontramos, vivos (nesta vida: não sei se existem outras),
em frações infinitesimais de tempo, se levarmos em conta o tempo universal. E a
natureza não nos dá a menor importância – é como se fôssemos simples instrumentos de
perpetuação da espécie.
Pior ainda, essa espécie, a espécie humana, ninguém pode garantir que se
perpetuará. Muito pelo contrário, milhares de espécies viveram milhões de anos e
desapareceram. Por que conosco seria diferente? A diferença crucial é que os seres
humanos provavelmente se constituíram na única (ou quem sabe a primeira) espécie que
tem consciência de sua finitude 'individual. Digo provavelmente, porque o raciocínio
antropocêntrico pode, em algum momento, ser desfeito, até nesta área...
Mais ainda: talvez seja a única (ou a primeira) espécie que pode se exterminar por
si mesma, conscientemente. Já temos um arsenal atômico suficiente para exterminarmos
humanidade dezenas de vezes...
Se o leitor ainda não está aterrorizado, gostaria de lembrá-lo que tudo indica que o
planeta Terra, o Sistema Solar e o próprio Universo podem terminar. Estrelas, planetas,
sistemas planetários também nascem, vivem e morrem... Isso dura bilhões de anos, mas
o tempo deste Universo seria finito.
Penso que agora não há mais necessidade de justificar porque esta teoria é tão
malvista. Alguns autores; mais otimistas, procuram explicar esse pessimismo freudiano
e psicanalítico pelo fato de o pai da psicanálise ter vivido O horror da Primeira Guerra
Mundial e ter acompanhado todo o conturbado período entre as duas guerras, prevendo,
de certa forma, o horror que foi a Segunda Guerra Mundial. Talvez ele tenha morrido
logo que ela começou porque já era demais...
Paradoxalmente, Com todo esse pessimismo, penso que tudo isso pode e deve
ajudar-nos a compreender cada vez melhor o funcionamento das pulsões de morte e de
vida, e dessa forma poderemos lutar ao lado destas, contra aquelas. Obviamente
sabendo de nossas limitações. Aliás, o problema reside justamente aqui: tomaremos
consciência de nossas potencialidades e de nossas limitações para que possamos viver
melhor a vida, aqui e agora. É sobre este tema que gostaria de me deter.
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IMPOTÊNCIA X ONIPOTÊNCIA
Ante a percepção de nossa impotência, por vezes "percepção" inconsciente, nos
defendemos através da onipotência. A certeza de uma vida pós-morte pode ser resultado
desse segundo mecanismo: Embora possamos saber se ela existe ou não, o que se
observa é que essa certeza decorre da necessidade de enfrentar a impotência, incluindo a
impotência do não saber.
De minha experiência clínica, e confirmando, outras investigações, verifica-se,
com frequência, que profissionais de saúde escolheram sua área para lutar contra a
morte. E aqui encontraremos um espectro interessante e variado: desde aqueles que
conseguem fazer isso criativamente, conhecendo seus limites, até os que sofrem
horrorosamente ao se sentirem "derrotados" pela morte, quando perdem um paciente. A
vida desses profissionais se torna um inferno – culpam-se, tornam-se iatrogênicos –,
intervindo, por vezes, desesperadamente e sem necessidade, abandonam seus pacientes
quando se perde a esperança de "vencer", a morte, etc. Estamos no terreno da
onipotência. O leitor já deve ter percebido como isso não só faz o profissional de saúde
sofrer, como impede que ele ajude seu paciente a viver melhor o tempo que antecede
sua morte, e mais ainda, que tenha uma boa morte. Em outros capítulos deste livro
salienta-se a importância disso para o ser humano.
O problema da onipotência x impotência ocorre constantemente em nossas vidas,
em todas as áreas. E está ligado ao que escrevi acima: a sabedoria de viver consiste em
sabermos usar nosso vigor, nossa potência, conscientes de nossas potencialidades e
limitações. Nesse momento poderemos gozar a vida, não um gozar hedonista, mas o
famoso carpe diem: aproveitar cada minuto da vida; podendo "curtir" ao máximo o que
ela nos oferece, não maniacamente, mas com a calma que a felicidade verdadeira pode
trazer.
Diz-se comum ente que existem os sofrimentos necessários, aqueles que fazem
parte da vida, e os desnecessários, aqueles que nós criamos constantemente. E observe o
leitor a criatividade com que os criamos!
AS SABOTAGENS INTERNAS
Penso que esta criatividade que todos nós temos para sabotar nossa felicidade
(podendo ampliar-se o raciocínio para grupos, sociedades e a espécie humana) pode ser
razoavelmente compreendida, usando as teorizações sobre a pulsão de morte, descritas
acima. Para o leitor que quiser aprofundar-se neste tema, os conceitos psicanalíticos de
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masoquismo e de narcisismo são importantes. Principalmente os conceitos pós-
kleinianos de narcisismo destrutivo.
Voltando à prática, procure o leitor lembrar-se das complicações desnecessárias
em que, consciente ou inconscientemente, andou se metendo nos últimos dias. As coisas
que deixou de fazer, as que fez de maneira errada, as brigas inúteis, os estragos
desgastantes, sem qualquer objetivo, as fantasias persecutórias, os lapsos
autocondenatórios, os sentimentos de culpa absurdos, os ataques invejosos e destrutivos
contra si mesmo e contra os outros. Repare também que comumente essas "crises"
ocorrem quando tudo tende a correr bem: os mitos e a própria cultura nos ensinam que
devemos tomar cuidado com o "olho gordo" – a inveja (in-vidia) dos deuses, que são
projeções de aspectos invejosos internos em seres sobrenaturais ou em rivais reais ou
imaginários.
A teoria da inveja, tão criativamente elaborada por Melanie Klein, e cuja antítese
seria a gratidão, é de grande utilidade na compreensão destas características humanas.
A ampliação destes conceitos para grupos maiores, pode ajudar-nos a
compreender um pouco mais acerca das guerras; dos morticínios, dós esquadrões da
morte, das torturas, da indignidade, dos sacrifícios que seres humanos impõem a seus
semelhantes (e a si mesmos), passando pela fome; miséria, desumanização; etc.
No Brasil, em particular, vivemos isto de uma forma extremamente intensa. O
filicídio, um conceito psicanalítico extremamente rico, nos ajuda a compreender vários
desses aspectos, incluindo o massacre de crianças e de "infantes" (a infantaria), que são
a primeira linha de ataque (e de bucha de canhão) em guerras e revoluções. Sãos sempre
as crianças e os jovens as principais vítimas, devido a sua fragilidade diante das atitudes
mortíferas dos adultos – desde os agravos na gestação e nascimento, a desnutrição, a
falta de condições dignas de vida, de escolaridade, de saúde, a exploração no campo de
trabalho, o envolvimento com a criminalidade, as drogas, a violência, etc., de onde
sempre existem adultos responsáveis se omitem ou estimulam estas práticas.
E ainda, em nosso meio, consideremos os velhos; que com a ―aposentadoria‖ que
recebem (ou não recebem) são condenados a mortes precoces ou mortes em vida. Não
seria esta uma maneira de eliminar populações inteiras, que não são mais ―produtivas‖?
Será isto um mecanismo apenas inconsciente? Tenho minhas dúvidas.
MORTE FÍSICA X OUTRAS MORTES
Espero estar conseguindo passar ao leitor a ideia "de que a morte está sempre
presente em nossas vidas, e das mais variadas maneiras". A morte física será a última,
mas teremos mortes parciais ou totais nas áreas somática, mental e social, lembrando
que essa divisão é apenas didática, pois todas se interpenetram.
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Além das situações descritas acima, muitas fazendo parte do que se poderia
chamar de ―micro mortes da vida cotidiana‖, parafraseando o famoso artigo de Freud,
nós nos defrontaremos com situações que trazem tanto sofrimento, que não podemos
deixar de chamá-las de patológica, se usarmos aquele conceito para definir o que será
patologia. Sobre as "patologias" sociais, felizmente, já temos consciência de sua
importância e inclusive têm sido estudadas interdisciplinarmente. O mesmo tem
ocorrido com as grupais e individuais, mas é aqui que a psicanálise se mostra mais
vigorosa, pois pode servir não só como instrumento de compreensão, mas também
como terapêutica.
Na área mental teremos infinitas maneiras de os conflitos se manifestarem,
podendo culminar na psicose que para os psicanalistas kleinianos decorre de ataques
destrutivos (derivados da pulsão de morte) à própria mente, à capacidade de pensar, de
simbolizar, desagregando e desintegrando o indivíduo. O suicídio poderá ser uma forma
de levar isso para a área física.
Quando os conflitos são mais primitivos, podem manifestar-se na área física, pela
impossibilidade de simbolização. Assim teremos doenças dos mais variados tipos, que,
em grau mais amplo (e aqui alguns autor falam em somatização psicótica), poderão
também levar à morte.
Tudo isso se reflete evidentemente, na área social. Mas, às vezes, a predominância
das manifestações conflitivas ocorre nesta área, como já vimos Atualmente o que mais
preocupa é a violência contra si mesmo, contra o outro, contra a sociedade e contra a
própria natureza, podendo levar-nos à destruição de ecossistemas e até da própria
humanidade.
TENTANDO COMBATER A MORTE
Embora a morte física seja inevitável, ela pode ser adiada cada vez mais, e as
demais podem ser combatidas. A humanidade tem demonstrado que possui recursos
para isso. Penso que a própria descoberta da psicanálise comprova esse fato.
Nunca saberemos como terminará a luta constante entre vida e morte. A despeito
do pessimismo a longuíssimo prazo (bilhões de anos), e com grau de conhecimento que
temos agora, existe a possibilidade de que estejamos errados. Afinal, quem imaginaria,
no início do século passado; que a escravidão e o preconceito racial se constituíram em
crime em quase todos os países? Que guerras devem obedecer à Convenção de Genebra,
os primeiros não podendo mais ser escravizados ou mortos e podendo até serem
trocados? (É verdade que isso nem sempre ocorre, que existem outros tipos de
escravidão "assalariada", etc., mas, isto vem sendo denunciado e não se pode negar que,
a despeito de tudo o que ainda há por se fazer, a luta pela dignidade tem dado alguns
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resultados). Que tortura é crime? Que já se considera o direito à vida, à saúde, à
educação e felicidade como algo inalienável a todo ser humano, independentemente de
sexo, raça, religião ou ideias políticas? Que a igreja católica já aceita, há tempos, que os
índios têm alma? E que vem lutando, contrariando seu passado, pelas vidas deles? Que
cada vez mais grupos da população se organizam, reivindicando seus direitos – que
grupos internacionais influem e debilitam ditaduras, como o faz a. Anistia Internacional,
por exemplo; que lutam pelo equilíbrio ecológico e denunciam a desumanidade e a
corrupção?
É claro que ninguém garante que tudo isso não possa cair por terra. Atualmente
volta o racismo na Europa, ao mesmo tempo em que inimigos figadais se unem numa
Europa unida. Guerras genocidas ocorrem contra minorias étnicas e nacionalismo
reacendem irmãos matando irmãos. Mas, na África do Sul o apanheid vai declinando.
No Brasil quase ninguém mais aguenta o "levar vantagem em tudo", antes orgulho
nacional! Infelizmente o tempo é muito curto para efetuarmos especulações sobre a
evolução de tudo isso, mas tendo a ser otimista. Penso que os recursos mentais da
humanidade estão cada vez mais disponíveis, e, a despeito de vitórias eventuais do
aspecto mortes, a força de vida ressurge, teimosa.
Se tivermos ainda a sorte de conhecermos os mecanismos inconscientes
envolvidos, ela ressurgirá com mais vigor: Mas, não podemos ficar passivos vos diante
de Tanatos: devemos estar sempre alertas, denunciando seus mecanismos, comumente
sutis, de insinuarem-se, tanto ao nível individual como social. E para isso não
precisamos ser psicanalistas: temos de ser cidadãos, exercendo nossos direitos,
conquistados a tanto custo, em lutas memoráveis que se estenderam por gerações.
O PROCESSO DE LUTO
Uma das grandes contribuições da psicanálise tem sido uma melhor compreensão
do processo de luto. Em Luto e melancolia, Freud lançou as primeiras hipóteses, que se
constituem na origem e base de alguns desenvolvimentos posteriores. Sempre seguindo
a linha de tentar transpor conceitos nem sempre fáceis para leitor, observa-se, no
trabalho clínico, que o objeto morto (e objeto é um conceito amplo, que implica
também, mas não só, em pessoas inteiras) instala-se no ego do enlutado; funcionando
como objeto ao mesmo tempo protetor e perseguidor; E isto se deve à ambivalência dos
seres humanos, à dualidade de suas fantasias inconscientes, derivadas de aspectos
relativos à Vida e morte.
Durante o trabalho de luto, o ser humano deve recolher sua libido, suas fantasias
destrutivas (e aqui propositalmente estou misturando conceitos freudianos e kleinianos,
que, na verdade, se constituem num contíguo), que estavam dirigidas ao objeto, agora
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perdido. Na concepção freudiana essa "energia" se volta para o próprio ego, para a
figura morta agora introjetada. Na kleiniana, as fantasias inconscientes decorrentes
dessa perda reativam fantasias anteriores, e o objeto introjetado passa a funcionar num
padrão decorrente daquelas fantasias somadas à situação particular com esse ou outros
objetos perdidos no passado. Não é muito diferente da concepção freudiana: apenas se
valorizam mais as fantasias primitivas em vez das pulsões.
O que nos interessa, do ponto de vista clínico, é a possibilidade de uni luto:mal-
elaborado,em que predominam os objetos introjetados persecutórios. Isto 1eva a lutos
patológicos ou quadros melancólicos, e que a depressão é persecutória, carregada de
culpa. Não raro! esses indivíduos, agora identificados com esse objeto morto,
inconscientemente, passam a viver como "mortos" – a melancolia seria o exemplo
típico. As fantasias suicidas, ou o suicídio exitoso, são formas de eliminar esse objeto
aterrorizante: mas, para eliminá-lo, o ser humano tem de eliminar-se como um todo.
Outras vezes, como já vimos, coexistem fantasias de reencontro com objetos perdidos,
sentidos como bons, mas que na realidade, ambivalentemente, levam à autodestruição,
utilizando mecanismos maníacos e liberando aspectos tanáticos. Uma comprovação da
importância disso, em termos epidemiológicos, é que a chance de morte "natural", após
a morte do parceiro(a),é maior rio primeiro ano após essa perda, entre viúvos(as}. Outro
dado que nos revela a frequência desses lutos mal-elaborados, é a verdadeira endemia
de quadros melancólicos (o depressivo, segundo a classificação psiquiátrica) que
assolamos serviços de saúde. Comumente esses sintomas não se manifestam na área
mental, mas principalmente na somática, constituindo-se o que os clínicos e psiquiatras
chamam de "equivalentes depressivos". Na verdade, nada mais são que manifestações
de somatizações psicóticas, devido à dificuldade de simbolização, como já vimos. Se
bem que os progressos da neuroendocrinologia e neurofisiologia vêm estudando, com
algum sucesso, as misteriosas conexões entre mente e corpo – o que vem
complementando o que a psicanálise já descobrira.
Como elaborar melhor os lutos? Isto.vai depender dos mais variados fatores que
têm a ver com as "série complementares", descritas por Freud. Mas, não tenho dúvida
de que alguns fatores sócio culturais têm dificultado essa elaboração. A negação da
morte, o terror que ela inspira, a falta de rituais que auxiliem na sua elaboração, e que
têm a ver com momentos históricos, como o leitor encontrará em outros capítulos deste
livro, são motivos importantes. A falta de auxílio individual, que poderia ser efetuado
por profissionais de saúde treinados psicanaliticamente, é importantíssima. Comumente,
e eu próprio tenho alguma experiência nisso, é de grande valia ouvir o paciente, desde
que este não tenha conflitos muito sérios. Médicos, assistentes sociais e outros
profissionais, não necessariamente psicanalistas, mas com uma visão da importância das
fantasias inconscientes, podem ser de grande ajuda.
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Já no caso de conflitos mais sérios, é indispensável que terapias psicanalíticas ou a
própria o processo psicanálise sejam utilizada. Não raro, o processo de luto reativa
situações extremamente primitivas, que devem ser trabalhadas em profundidade.
Enfim, nos encontramos diante de um processo individual com repercussões
sociais intensas, pois o melancólico, mesmo que aparentemente ―equilibrado‖, passará
seu estado para os filhos e estes para diante, o objeto persecutório pairando por
gerações, culpógeno e impedindo o viver. Postulo, portanto, que o luto mal elaborado é
―contagioso‖, principalmente para as crianças, que terão de identificar-se com objetos
(pais, por exemplo) cujas fantasias mortíferas e moribundas se transmitem verbal e/ou
extra verbalmente..
REAÇÕES DE ANIVERSÁRIO
Uma forma peculiar de manifestação do processo de luto mal elaborado, se
constitui nas chamadas ―reações de aniversário‖. Trata-se de fenômeno nos que,
eliciados por uma data, fazem o indivíduo passar por processos variados de
manifestação de conflitos: ansiedade, tristeza, surtos psicóticos, ideias ou tentativas de
suicídio, somatizações (enfartes do miocárdio, gastrites, crises ulcerosas digestivas,
sintomas vagos, sintomas de vários órgãos com ou sem alteração anatômica), atuações
na área social, ou ainda na relação analítica, sonhos, etc...
Descrevem-se várias situações de "reações de aniversário": 1) o indivíduo passa
pelos processos descritos acima no aniversário de morte ou de algum fato que se associa
à morte ou perda de um objeto ambivalentemente amado e odiado; 2) Pode ocorrer
quando atinge a idade da pessoa morta, às vezes, o processo descrito leva à morte física,
por identificação; 3) Foram descritas situações em que a "reação de aniversário" ocorre
quando os filhos do paciente atingem a idade que ele "tinha quando seu pai ou mãe
morreram, ou foram perdidos; 4) na data de abortos ou na data em que deveria nascer
uma criança abortada. Existem situações ainda mais complexas, mas, na investigação
psicanalítica percebe-se que ocorreu uma identificação com o objeto perdido. Em outros
trabalhos postulei que essa identificação fica, de certa forma, encistada, até que,
eliciada pelo tempo, ela ressurge, inconsciente, propiciando uma revivescência desse
luto mal elaborado, e os conflitos se manifestam nas áreas descritas. Não raro, uma vez
passada a data, se não ocorrerem complicações, tudo volta ao ―normal‖ podendo haver
recaídas em outros anos. Mas, em situações graves, teremos desde quadros psicóticos
até doenças mortais.
Penso que este fenômeno, curioso, é extremamente comum, e adiante indico
bibliografia onde o leitor poderá encontrar situações clínicas e de eventos similares,
descritos na biografia de personagens históricos. Constituem uma prova de que as
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teorias psicanalísticas descritas acima têm uma utilidade prática imensa, pois a tomada
de consciência desses mecanismos permitem sua elaboração e a não repetição. O
mesmo ocorre com o luto.
CONCLUSÃO
Se a morte faz parte da vida; deve ser incluída nela, o que não tem ocorrido. O
trabalho psicanalítico, ao desvendar as fantasias inconscientes em relação à morte nos
auxilia a compreender o fenômeno. O que, evidentemente, deve ser complementado
pela investigação em outras áreas do conhecimento principalmente a história, a
antropologia e a sociologia.
A partir do trabalho psicanalítico, surgiram teorias vigorosas que podem auxiliar
os seres humanos a lidarem com a morte, a morte física e as mortes parciais do dia-a-
dia, de uma forma produtiva, fazendo com que a vida possa ser vivida criativamente e a
morte possa ser aceita como um fato da vida.
É o que observamos em moribundos que tiveram a sorte de se realizarem em suas
vidas – a morte é vivida como algo natural, sem os terrores daqueles para quem a vida
foi um fardo. Realizar-se como ser humano, em vida, será portanto, um dos escopos de
todo tipo de ação, de profissionais de saúde, e da sociedade como um todo, numa luta
pela dignidade e oportunidade de cada pessoa de alcançar a felicidade em vida. O
psicanalista terá sua função, evidentemente, mas não poderá onipotentemente lidar com
tudo o que implica na luta EROS X TANATOS, sem a contribuição de todos os seres
humanos, cada um em sua área, e todos juntos como cidadãos.
Efetuar psicanálise com pessoas em idade avançada, com pacientes de doenças
graves, que levarão à morte em pouco tempo, tem sido uma experiência riquíssima para
clientes e profissionais. Observo que, comumente, os pacientes, quando pode aproveitar
a análise, integram melhor seus objetos internos, podem conhecê-los, lidar com eles,
entrando com mais frequência no que os kleinianos chamam de posição depressiva; O
rever a própria vida, reconhecendo e aceitando seus limites, seus ―fracassos‖ e sua
criatividade, fazem com que os indivíduos vivam realmente, intensamente, o restante de
suas vidas, e morram em paz. Lembro-me em particular de um rapaz que passou toda
sua vida numa promiscuidade maníaca e que se tornou dependente de drogas. Dessa
forma adquiriu o vírus da aids. O seu tempo restante de vida, em análise, foi o melhor –
e passou a agradecer a Deus o fato de ter adquirido aids: só por isso, se dispôs a efetuar
a análise pessoal e descobriu que "vivera" como morto até então. Ao lidar com essas
pessoas o analista se vê também extremamente mobilizado, e aprende muito acerca da
sabedoria de viver.
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Se iniciei este capítulo com Milan Kundera, que nos mostra que vivemos apenas
uma vez cada minuto, e por isso ele deve ser aproveitado, aceitando-se que não
podemos vivê-lo de novo, quero encerrar o texto com a letra de uma Música de Chico
Buarque de Holanda: ―O Velho‖:
―O velho sem conselhos, de joelhos, de partida
carrega com certeza todo o peso desta vida.
Então eu lhe pergunto pelo amor:
A vida inteira diz que se guardou, do carnaval,
Da brincadeira que ele não brincou.
Me diga agora o que é que eu digo ao povo,
o que tem de novo para deixar?
Nada, só a caminhada, longa, pra nenhum lugar.
O velho de partida deixa a vida sem saudade
Sem dívida, sem saldo, sem rival ou amizade
Então eu lhe pergunto pelo amor:
Ele me diz que sempre se escondeu, nunca se
comprometeu e nunca se entregou
Me diga agora o que é que eu digo ao povo
O que é que tem de novo pra deixar?
Nada e eu vejo a triste estrada, onde um dia vou parar.
O velho vai-se agora, vai embora sem bagagem
Não sabe prá que veio, foi passeio, foi passagem
Então eu lhe pergunto pelo amor
Ele me é franco, mostra um verso manco, num caderno
o branco que já se fechou.
Me diga agora o que é que eu digo ao povo
O que é que tem de novo prá deixar?
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Não, foi tudo escrito em vão, eu lhe peço perdão,
mas vou lastimar
Não, não vou lastimar.
Deixo a cargo do leitor as associações que possa efetuar. Eu apenas queria
concluir que, como profissional e ser humano lastimaria muito e que provavelmente este
"velho" (que não necessita ter idade avançada) se encontraria aterrorizado diante dá
morte, pois não pôde viver a vida. Mas, como liberdade poética, que lança uma
mensagem, identifico-me com Chico: não lastimaria e aproveitaria ao máximo o poema
exemplar..
SUGESTÕES PARA LEITURA
Evidentemente o leitor deve iniciar por Freud. Se não tem noções de psicanálise
lhe aconselharia a ler primeiro as ―Conferências introdutória à psicanálise‖ (1916), no
volume da Ed. Standart das Obras Completas de Freud (Ed. Imago). Existem traduções
acessíveis para o espanhol e francês. Obviamente o original é alemão e a Ed. Standard
foi efetuada na Inglaterra.
O conceito de narcisismo aparece pela primeira vez em ―Sobre o narcisismo: uma
introdução‖, no vol 14. Mas, o narcisismo destrutivo é desenvolvido pelos kleinianos:
aqui recomendo o trabalho de Hebert Rosenfeld: ―Uma abordagem clínica para a teoria
psicanalítica das pulsões de vida e de morte: uma investigação dos aspectos agressivos
do narcisismo‖, que pode ser encontrado traduzido no livro Melanle Klein Hoje, vol 1,
editado ;:: por Elizabeth B. Spillius, da coleção Nova Biblioteca de Psicanálise,
coordenada por Elias Mallet da Rocha Barros, Editora Imago, 1990.
Voltando a Freud não pode deixar de ser lido ―Luto e Melancolia‖ (1917), no vol.
14 das Obras Completas. Mas o conceito de pulsão de vida e de morte só aparecerá em
1920, no trabalho ―Além do princípio do prazer‖, vol.18. Em 1923, em ―O ego e o id‖
estabelece-se com clareza a função do superego (vol. 19). Em ―O problema econômico
do masoquismo‖ esse aspecto é dissecado (1924, vol. 19).
Poderia indicar mais de uma dezena de trabalho de Freud. Se quisermos, é
facílimo verificar que toda a psicanálise, mesmo antes do conceito de pulsão de morte
estar desenvolvido, leva em conta, mesmo sem saber, essa noção. Artigos mais
diretamente ligados ao nosso tema, no entanto, são: "Totem e tabu" (1912, vol.12),
principalmente o item relativo ao contato (tabu) com os mortos, "Pensamentos para os
tempos de guerra e morte" (1915, vol.14), onde mostra como devemos aceitar e lidar
com a agressividade como fenômeno humano; "O mal-estar da civilização" (1930, vol.
21), em que relaciona a civilização com as barreiras contra pulsões, agora após a
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publicação de sua teoria de pulsão de morte; ―Inibições, Sintomas e angústia" (1926,
vol. 20), onde surge com mais clareza sua teoria da angústia; ―Porque a guerra?‖ (1933,
vol. 22), onde consta a clássica troca de correspondência entre Einstein e Freud, que já
previam a próxima guerra mundial.
Karl Menninger utiliza com maestria os conceitos freudianos em Eros x Tanatos:
O Homem Contra si Próprio, também clássico, cuja primeira edição é de 1938, revista
em 1965 e editado no Brasil em 1970 pela Ibrasa. Infelizmente, não me consta ter sido
reeditado. O título original é Man Against Himself. Outro clássico é Sadismo x
Masoquismo en la Conducta Humana, do psicanalista pioneiro radicado na Argentina,
Angeli Garma, cuja terceira edição aumentada é de 1952, Ed. Nova, mas que continua
sendo reeditado.
A escola kleiniana leva o conceito de pulsão de morte à origem da ansiedade e das
fantasias inconscientes destrutivas e defensivas contra ela. Não é fácil introduzir-se em
seus conceitos, a não ser vivenciando-os concomitantemente através da análise pessoal
(o que, aliás, também vale para os conceitos freudianos, mas, estes são mais
compreensíveis, na medida em que, de certa forma – correta ou deformada - foram
incorporados à nossa cultura ocidental). Pode-se tomar um primeiro contato com ele
através do conhecido livro de Hanna Seial: Introdução à Obra de Melanie Klein, da
Imago, em várias edições, tradução da segunda edição inglesa, de 1973, da Hogarth
Press. Nesse livro, à medida que a autora introduz o leitos nos: conceitos, indica a
bibliografia original, que assim se tornar mais compreensível.
Para os leitores que já conhecem Melanie Klein, recomendo a releitura do trabalho
de 1940: "O luto e sua relação com os estados maníacos depressivos", que consta de
Contribuições à psicanálise da Ed. Mestre Jou. Este trabalho logo deverá sair pela
Imago, nas Obras Completas, editadas. por R.. Money-Kyrle, na Inglaterra. Quando
acabei de escrever este texto só havia sido editado o vol. 3 onde constam: "Notas sobre
alguns mecanismos esquizóides" (1946), ―Sobre a teoria da ansiedade e da culpa‖
(1948), ―Algumas conclusões teórica sobre a vida emocional do bebê" (1952), ―Inveja e
gratidão‖ (1957) e "Sobre o sentimento de solidão" (1963), Nos últimos trabalhos, a
autora faz uma revisão dos conceitos anteriores. Este terceiro volume das Obras
Completas é intitulado Inveja e gratidão e outros trabalhos -1946-1963, Imágo, 1991.
Os desenvolvimentos posteriores da escola kleiniana podem ser encontrados em
Melanie Klein Hoje. vol.1 e vol. 2, da Imago, 1991 e 1990, respectivamente. Ali se
encontrão os indispensáveis "Diferenciação entre a personalidade psicótiva e não-
psicótica‖, e ―Ataques ao elo de ligação‖, de Wilfred R; Bion, onde se descrevem as
vicissitudes do funcionamento da parte psicótica da personalidade, o artigo de
Rosenfeld sobre o narcisismo citado acima, a chamada organização patológica descrita
por B. Joseph como ―O vício pela quase-morte‖ (vol. 1) e ―Morte e crise da meia-
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idade‖, de Elliot Jacques (vol.2) , além de muitos outros trabalhos que mostram o vigor
da escola.
Impasse e interpretação, de Herbert Rosenfeld é indispensável para quem quiser
aprofundar os conceitos técnicos fertilizados principalmente pelas idéias de narcisismo
destrutivo (Imago, 1988). Numa abordagem peculiar, André Green, influenciado pelos
ingleses e também pelos franceses, nos brinda com um trabalho criativo em Narcisismo
de vida, narcisismo de morte, Ed. Escuta, 1988.
Quem quiser conhecer melhor Bion, poderá iniciar com o livro de Leon Grinberg
e cols.: Introdução às idéias de Bion, também da Ed.lmago.
O conceito de filicídio foi criado por Arnaldo Rascovsky e é desenvolvido em O
assassinato dos filhos (filicídio).
Ed. Documentário, 1983, onde existem trabalhos de outros autores sobre o mesmo
tema. Podemos encontrar Rascovsky e vários autores criativos, escrevendo sobre
psicanálise e guerra, no livro organizado por Gley P. Costa, de Porto Alegre, Guerra e
morte; Imago, 1988. Com esta indicação passamos para os autores nacionais. Em O
que é suicídio, Editora Brasiliense, 1984, tento (Rossevelt M.S.Cassorla), num trabalho
para leigos, mas que tem servido de introdução para profissionais, abordar esse
conceito, utilizando os referenciais citados; mas não só eles. Em Da morte: estudos
brasileiros e Do suicídio: estudos brasileiros, de que sou o organizador (Ed. Papirus,
1991), encontramos 25 trabalhos de autores brasileiros, que efetuaram pesquisas sobre
os temas, sob várias abordagens, não só psicanalíticas. No segundo, encontra-se o
trabalho “O tempo, a morte e as reações de aniversário‖, onde o leitor encontrará
bibliografia acessória sobre esse tema. E nas referências dos demais trabalhos,
praticamente toda a bibliografia brasileira estará à sua disposição.
Evidentemente, a psicanálise não se reduz a Freud e à escola kleiniana, com seus
desenvolvimentos posteriores. Mas, são os que eu conheço. Penso que a vida é muito
curta para conhecer tudo o que gostaríamos; por isso optei em aprofundar-me naquilo
que me faz mais sentido hoje. Não sei se isso persistirá, porque o futuro é imprevisível.
O leitor já percebeu que estou justificando-me por não ter a capacidade de indicar
textos, certamente valiosíssimos, de outras abordagens psicanalíticas, como as da
psicologia do ego, junguiana, a psicanálise com abordagem predominantemente
existencialista, as várias orientações lacanianas, etc. Possivelmente, em outros capítulos
deste livro, autores mais competentes o farão.
O mais importante, no entanto, é que aqueles que me leem percebam que a queda
no dogmatismo, de que eu ou a teoria que eu adoto, é a correta, e a única correta, é um
reducionismo estéril, do lado da pulsão de morte, segundo o referencial que adotei no
texto. Por outro lado, propor-se a conhecer tudo, também é cair na onipotência.
Precisamos suportar o não-saber, fertilizando-nos com eles, quando possível, mas,
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tampouco masoquisticamente, deixar que nos ―queimem‖ em fogueiras inquisitoriais os
que se autodenominam ―donos da verdade‖ e que, em sua insegurança, não toleram o
diferente. Viver não é fácil e, por isso, é fascinante‖.
MORTE: ABORDAGEM FENOMENOLÓGICO
EXISTENCIAL
ROTHSCHILD, D. CALAZANS, R, A. in KOVÁCS, M. J. (Org.) Morte e desenvolvimento humano.
São Paulo, Casa do Psicólogo, 1992.
A referência que nos possibilita falar de morte na abordagem fenomenológico-
existencial é desenvolvida por Martin Heidegger em sua obra fundamental Sein und Zeit
{Ser e Tempo). Heidegger (1889-1976), filósofo alemão discípulo de Husserl,
desenvolve em Ser e Tempo uma busca do sentido de ser, através do método
fenomenológico. A fenomenologia é um método de investigação da história do
conhecimento, que propõe a volta às coisas mesmas, a partir da descrição e da
interrogação do fenômeno, isto é, do que é dado imediatamente.
O existencialismo é uma corrente da Filosofia, que toma como principal centro de
interesse e consideração a experiência mais imediata do homem, ou seja, sua própria
existência. Insurgiu-se contra a filosofia e a teologia racional em favor do sujeito, e este
com a responsabilidade total de sua existência. Toda a história da filosofia nasce a partir
do esquecimento da questão do ser. A filosofia instaura a dicotomia sujeito-objeto, a
partir da ascensão do sujeito como senhor do ente, que acaba enclausurado em si
mesmo.
Heidegger retoma os pré-socráticos, onde a questão do ser e do não-ser já está
presente. Desloca a questão da subjetividade que até então impera na Filosofia. Partindo
do constructo ―ser-aí‖ (Dasein), que substitui as noções tradicionais de sujeito, homem,
indivíduo, como ser-no-mundo, quebra a dualidade sújeito-objeto, reestabelecendo a
importância fundamental da práxis em relação à teoria. Propõe em seu tratado o
desenvolvimento não de uma filosofia, mas sim de uma ontologia, ou seja, um estudo
do sentido do ser.
Quando falamos desde uma ontologia, os termos são descritos como condições de
possibilidade para que alguma coisa se dê. Durante o desenvolvimento da abordagem
proposta, faremos algumas descrições, que devem ser entendidas como ontológicas e
não como psicológicas. Estaremos tratando de elementos estruturais para a compreensão
do ser. Disso pode decorrer uma psicologia, como a que foi desenvolvida por Medard
Boss, L. Biswanger, Rollo May e outros.
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No desenvolvimento de sua analítica existencial em Ser e Tempo, Heidegger
privilegia a morte, como qualquer outro termo pinçado desta obra. No termo ser-no-
mundo já está implícita a circularidade que permeia todo o tratado; ou seja, cada
elemento, na sua descrição, remete a outro já descrito ou ainda por descrever. O ser-aí é
no mundo. Nessa relação fica explicitada uma sujeição do ser-aí a esse mundo que já lhe
é dado como interpretado. Nessa perspectiva, habitamos um mundo familiar, onde tudo
é conhecido, previsível, onde todos somos ninguém: ―a gente‖ chora como todo mundo
chora; ―a gente‖ sofre como todo mundo sofre, ―a gente‖ se alegra como todo mundo se
alegra, pelos mesmos motivos que todo mundo chora, sofre; e se alegra. Em uma
primeira aproximação, esse contexto nos aparece como algo aterrador e aprisionante,
porque nos tira a possibilidade da autenticidade. No entanto, essa é uma estrutura
ambígua, Porque na realidade ela é uma possibilidade de fuga dessa mesma
autenticidade. A nossa vivência mais cotidiana dessa estrutura é a da hospitalidade, do
amparo e do enredamento. É como se soubéssemos e escapássemos da possibilidade de
uma vivência mais singular, que nos coloca fora dessa proteção. Do que escapamos é da
angústia: ―A angústia faz patente no ser-aí, o ser relativamente ao mais peculiar poder
ser, quer dizer, o ser livre para a liberdade de eleger-se e empunhar-se a si mesmo‖ (Ser
e Tempo, p.: 208)
A angústia é a forma autêntica do temor, que é a nossa vivencia cotidiana. Temer é
sempre temer algo, algo frente a mim por um porquê. O nos mais peculiar poder ser, do
qual nos esquivamos, é a morte. A morte é um fenômeno do cotidiano. Vivemos sempre
a morte como morte do outro. Os outros morrem e eu ainda não. A minha morte, eu
penso amanhã. Nós nos esquivamos da possibilidade da singularização da morte.
A morte é a possibilidade mais peculiar, irrefutável e irrepresentável, ser-aí.
Dentro de todas as minhas possibilidades, já está presente a absoluta impossibilidade de
não estar mais aí. A angústia é um fenômeno raro em nossa existência e quando passa,
parece que foi um nada. A angústia põe de manifesto a possibilidade da autenticidade e
da inautenticidade, ou seja, a possibilidade do ser-aí, ser o autor sua história, a partir da
construção, ou não, de um sentido.
―Que faria agora? Iria levantar-me e continuar a viver?
Catarina estava morta, Antônio, Beatriz, Carlier, todos os que
eu amara estavam mortos, e eu continuava a viver; estava
presente, o mesmo há séculos; meu coração podia bater durante
um momento, de piedade, de revolta, de desespero; mas eu
esquecia. Enfiei os dedos na terra e disse com desespero: "Não
quero". Um homem mortal teria podido recusar-se a continuar
seu caminho, poderia ter eternizado a revolta, poderia matar-se.
Mas eu era escravo da vida que me puxava para a frente, para a
indiferença e para o esquecimento. Era vão resistir. Levantei-
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me e tomei lentamente o. caminho de casa‖. (S. de Beauvoir,
Todos os homens são mortais, p. 326)
Em Todos os homens são mortais, Simone de Beauvoir se utiliza de um
personagem mortal (Fosca), que tem a experiência da imortalidade. Essa construção nos
leva a conhecer os sentimentos ambivalentes do personagem que, se em um primeiro
momento se fascina, acaba por viver sua imortalidade como' danação, uma vez que, ao
usar o elixir que lhe dá a vida eterna já não pode mais morrer. Não é o nosso caso. A
morte para nós não é uma escolha, todos vamos morrer. O ser-aí é ser para a morte. O
ser-aí já está sempre lançado em suas possibilidades, e a. a morte é a possibilidade mais
peculiar, irrefutável e irrepresentável.
A angústia nos abre este ser relativamente à morte que é ameaçador, estranho e
inóspito; nos esquivamos e habitamos um mundo protegido, presumível, onde a morte
aparece como um acidente no final da vida, que não é hoje. No texto de Simone de
Beauvoir fica patente a ameaça, a inospitalidade, o estranhamento da imortalidade.
Características tão humanas quanto avançar, 1embrar, se desesperar, se matar, ficam
assim impossibilitada, Só lhe resta continuar. Um continuar e sem projetos, sem sentido,
sem ligação temporal.
Na abertura privilegiada da angústia, nos angustiamos pelo ser no mundo
enquanto tal. Nos deparamos com a falta de sentido no mundo, que não nos pode mais
sustentar. Assim, nos apropriamos do que só nós podemos nos dar a sustentação, ou
seja, ser o autor do sentido de minha existência. No cotidiano vivemos afastando essa
possibilidade de nós mesmos. Acreditamos que amanhã sempre haverá tempo. Só, por
isso nos envolvemos em projetos, acreditando que eles poderão se concretizar e que
sempre teremos tempo para isso.
Na vida de Fosca não existe a possibilidade da morte. Esta é vivida como perda
das pessoas com as quais se envolve. Em nosso existir essas perdas são vividas como
morte factual, separações, término ou interrupção de um projeto. Fosca se desespera
ante a possibilidade do esquecimento das perdas, ressentindo-se de não poder eternizá-
las nesse momento. ―A gente‖ cuida das perdas tentando minimizá-las, pensando que
haverá sempre outra oportunidade, pensando que sempre aprendemos alguma coisa com
isso, fazendo substituições. Assim nos esquivamos da consciência do fim. Não existe
recomeço, não existe substituição, não é possível esquecer.
Nossas perdas, assim como ganhos, nossos erros e acertos, nos constroem, ou seja,
sou eu quem perde, quem ganha, quem erra, quem acerta... A todo momento temos de
escolher. A cada escolha que fazemos decretamos a morte da outra possibilidade não
escolhida. Isso frequentemente nos traz ansiedade frente ao conflito de não podermos
viver tudo ao mesmo tempo, de não podermos estar em mais que em um lugar ao
mesmo tempo. O ser-aí morre cotidianamente todos os dias.
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"Mas eu era escravo da vida que me puxava para á frente, para
o esquecimento. Era vão resistir. Levantei-me e tomei
lentamente o caminho de casa." (Simone de Beauvoir, op. cit.,
p. 326).
Em nosso mais cotidiano modo de ser, nos vemos como escravos do tempo. O
tempo passa, nos carrega para a frente, sem parada, sem sentido, levando-nos ao
esquecimento e à indiferença. Esse é o caminho de casa. Assim nos sentimos abrigados,
fugindo da responsabilidade temporal do projeto de nossa existência.
O ser-aí é lançado, lançado em suas possibilidades no seu tempo, a fim de si
mesmo. Meu projeto aponta para um futuro que ainda não é, mas que , poderá vir a ser,
e que também poderá não ser, uma vez que está implícito nas minhas possibilidades a
de já não estar mais aí Dentro desta perspectiva, cabe-nos a adoção de um sentido que
transforma a leitura desse tempo. Assim me vejo como ser finito e responsável pela
minha existência. Meu futuro já foi projetado por mim; impulsionado pelo meu passado
do qual me utilizo no presente.
Na perspectiva do sentido, o passado tem significado como o já vivido, que passa
a ser acolhido, possibilitando que nos lancemos em projetos. Ao nos lançarmos nesses
projetos o passado é ressignificado a serviço deste futuro. Para Fosca, como não é dada
a possibilidade do morrer, a circularidade não existe. Fosca não consegue ver um
sentido no seu viver. O sentido decorrente da possibilidade de um futuro finito. A Fosca
só resta o esquecimento e a indiferença. O passado não pode ser acolhido,
ressignificado, porque é uma repetição infinita. Às vezes, se engana, se envolve com
pessoas e consequentemente com projetos. Percebe seu engano quando assiste o morrer
das pessoas. Desperta-se. Só lhe resta continuar...
"Olhei meus sapatos de fivela, minhas mangas de rendas;
parecia- me que há vinte anos eu me prestava a esse brinquedo
e que um dia, ao soar a meia-noite, e, eu retornaria ao país das
sombras. Ergui os olhos para a pêndula. Acima do mostrador
dourado, uma pastora de porcelana sorria para um pastor;
dentro em pouco, o ponteiro assinalaria meia-noite, assinalaria
meia-noite. amanhã, depois de amanha, e eu ainda estaria
presente; não havia outro país senão aquela terra onde não
havia lugar para mim. Estivera na minha terra em Carmona e na
corte de Carlos V, e nunca mais. Doravante, o tempo que se
desenrolava à minha frente seria, a perder de vista; um tempo
de exílio; todas as minhas vestimentas seriam fantasias e minha
vida, uma comédia" (Simone de Beauvoir, p. 216)
Presente, passado e futuro; é assim que entendemos o tempo. Dentro dessa leitura
podemos falar separadamente de cada tempo, conforme estejamos mais próximos de um
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ou de outro, e isso é sempre compreendida por todos. No passado fiz tal coisa, amanhã
farei alguma coisa e agora estou fazendo isso. No horizonte da temporalidade circular
de Ser e tempo essa separação não é possível. Na perspectiva do sentido não vivemos
um tempo, somos tempo.
Fosca, na medida em que se vê como imortal, sente-se invadido por um presente
interminável, pesado como um exílio. Para ele o tempo passa, nada acontece de verdade
e nada poderá acontecer, uma vez que o futuro é só uma extensão desse presente, assim
como o passado. O sentido foi exilado de sua existência pela vivência da imortalidade,
nada pode significar nada. Fosca lamenta o tempo todo quanto é inóspita a imortalidade.
―A gente‖ sempre pensa que seria muito bom ser imortal. Fosca nos mostra quanto é
impossível a realização dessa fantasia. Morrer é um dado estruturante de nossa
existência. Todo ser-aí é ser para a morte.
Toda a concepção que temos do que é homem, ser humano, sujeito ou indivíduo
fica perpassada pela ideia de mortalidade. Só podemos entender algum sentimento,
algum afeto, alguma manifestação intelectual ou social, a partir desse dado. Pois assim
temos a noção de ser como todo mundo é, e só assim podemos nos relacionar com os
outros. Só assim frases como: "morrer por", "morrer de", até "morrer"... fazem sentido.―
- Tudo era falso - repetia ela
- Não sofremos dentro do mesmo tempo e tu me amas do fundo de outro mundo, Estás
perdido para mim.
- Não. Agora é que nos encontramos porque agora vamos viver dentro da verdade.
- Nada pode ser verdadeiro de ti para mim.
- Meu amor é verdadeiro.
- Que é teu amor? Quando dois seres mortais se amam, são moldados, corpo e alma,
pelo seu amor, que é a própria substância desse corpo e dessa alma. Para ti...é, um
acidente." (Simone de Beauvoir, p.320.)
Fosca se exilou desse mundo, ou seja o único que ele e nós conhecemos. Está
impossibilitado do compartilhar. Não é mais desse mundo, portanto, esse mundo não lhe
dá mais sentido nem sustentação. Tudo o que existe é o vazio da angústia. Fosca se
angustia porque é um personagem mortal, escrito por uma autora mortal, para leitores
mortais. Tudo o que pode ser compartilhado tem o recorte da mortalidade.
" - Não há mais o que contar - disse Fosca -.Todos os dias o sol
levantou-se e deitou-se. Entrei no hospício, saído hospício.
Houve guerras: depois da guerra, a paz; depois da paz, outra
guerra. Todos os dias homens nascem e homens morrem." (S.
Beauvoir, op., cit., p. 391.)