t10 observação metodologia, 2003

19
In Caria, Telmo (org.) (2003), Metodologia e Experiência Etnográfica em Ciências Sociais. Porto: Afrontamento (pp. 61-76). UM SOCIÓLOGO NA FÁBRICA: para uma metodologia de envolvência social Elísio Estanque Centro de Estudos Sociais Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra A metodologia, por mais sofisticada que seja, não pode ser tomada separadamente dos restantes procedimentos científicos e do processo global de construção da pesquisa (Schutz, 1970: 315; Bourdieu, 1973: 88). Convirá, por isso, sublinhar que o trabalho de ―observação participante‖ que levei a cabo numa fábrica de calçado só adquire pleno significado no quadro das preocupações analíticas e dos pressupostos teórico- epistemológicos inerentes a esse projecto de pesquisa. Centrado nos processos de estruturação e fragmentação da classe trabalhadora da região do calçado, o estudo procurou analisar as práticas sociais no espaço produtivo à luz da sua vinculação às identidades comunitárias face ao impacto das transformações sociais e históricas que acompanharam o processo de industrialização na região (Estanque, 2000) 1 . Este texto pretende, por um lado, dar conta das principais preocupações de ordem metodológica que acompanharam a pesquisa de terreno e, por outro lado, divulgar alguns aspectos do quotidiano fabril por mim experienciados ao longo do período em que permaneci na empresa. Além de traçar um retrato parcelar das vivências do mundo laboral num sector tradicional, marcado pelo trabalho intensivo, destina-se a divulgar e partilhar algumas das inúmeras hesitações e dilemas inerentes a este tipo de método, e 1 Não estando embora nos objectivos do presente texto explicitar as linhas orientadoras desse estudo, vale a pena referir que, embora a metodologia qualitativa tenha ocupado aí um papel fulcral no aprofundamento da análise (nomeadamente a componente da observação participante), ela constituiu apenas uma componente entre outras, no quadro da pluralidade de metodologias utilizadas nessa pesquisa, tais como as entrevistas semi-directivas, a análise de conteúdo de artigos de jornal e documentos históricos variados, bem como os métodos quantitativos, designadamente o inquérito por amostragem às classes sociais da região. A indústria do calçado foi estudada a partir dos territórios abrangidos pelos concelhos de S. João da Madeira, Vila da Feira e Oliveira de Azeméis.

Upload: elisio-estanque

Post on 06-Jun-2015

277 views

Category:

Education


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: T10 observação metodologia, 2003

In Caria, Telmo (org.) (2003), Metodologia e Experiência Etnográfica em Ciências

Sociais. Porto: Afrontamento (pp. 61-76).

UM SOCIÓLOGO NA FÁBRICA:

para uma metodologia de envolvência social

Elísio Estanque Centro de Estudos Sociais

Faculdade de Economia

da Universidade de Coimbra

A metodologia, por mais sofisticada que seja, não pode ser tomada separadamente

dos restantes procedimentos científicos e do processo global de construção da pesquisa

(Schutz, 1970: 315; Bourdieu, 1973: 88). Convirá, por isso, sublinhar que o trabalho de

―observação participante‖ que levei a cabo numa fábrica de calçado só adquire pleno

significado no quadro das preocupações analíticas e dos pressupostos teórico-

epistemológicos inerentes a esse projecto de pesquisa. Centrado nos processos de

estruturação e fragmentação da classe trabalhadora da região do calçado, o estudo

procurou analisar as práticas sociais no espaço produtivo à luz da sua vinculação às

identidades comunitárias face ao impacto das transformações sociais e históricas que

acompanharam o processo de industrialização na região (Estanque, 2000) 1.

Este texto pretende, por um lado, dar conta das principais preocupações de ordem

metodológica que acompanharam a pesquisa de terreno e, por outro lado, divulgar

alguns aspectos do quotidiano fabril por mim experienciados ao longo do período em

que permaneci na empresa. Além de traçar um retrato parcelar das vivências do mundo

laboral num sector tradicional, marcado pelo trabalho intensivo, destina-se a divulgar e

partilhar algumas das inúmeras hesitações e dilemas inerentes a este tipo de método, e

1 Não estando embora nos objectivos do presente texto explicitar as linhas orientadoras desse estudo,

vale a pena referir que, embora a metodologia qualitativa tenha ocupado aí um papel fulcral no

aprofundamento da análise (nomeadamente a componente da observação participante), ela constituiu

apenas uma componente entre outras, no quadro da pluralidade de metodologias utilizadas nessa

pesquisa, tais como as entrevistas semi-directivas, a análise de conteúdo de artigos de jornal e

documentos históricos variados, bem como os métodos quantitativos, designadamente o inquérito por

amostragem às classes sociais da região. A indústria do calçado foi estudada a partir dos territórios

abrangidos pelos concelhos de S. João da Madeira, Vila da Feira e Oliveira de Azeméis.

Page 2: T10 observação metodologia, 2003

7

que ilustram a permanente tensão entre as exigências científicas, a dimensão ética e os

jogos de poder que envolvem o investigador num contexto como este.

1. Questões de metodologia compreensiva

1.1.Para uma epistemologia auto-reflexiva

A metodologia nas ciências sociais não é apenas uma mera ferramenta que o

investigador utiliza objectivamente para testar as suas hipóteses, tal como o social não

pode ser visto pelo investigador como simples objecto que ele mobiliza ou usa de forma

racional e utilitária. O social não está unicamente no objecto de estudo, e não basta

reconhecer (cinicamente) que o cientista é também ele um ser social, para que o

problema esteja resolvido. Não só o sociólogo é um ser social como o processo de

conhecimento que ele procura levar a cabo é um processo social. Para desenvolver uma

sociologia auto-reflexiva é inevitável que este entendimento seja extensível ao próprio

trabalho de pesquisa, de modo a questionar o vasto conjunto de riscos e de contradições

que ele encerra. Importa, portanto, considerar a prática de investigação enquanto

processo social orientado por uma dada estratégia, mas sujeito a uma infinidade de

contingências. A estratégia seguida e os procedimentos adoptados devem, pois, ser

expostos a avaliação do mesmo modo que o são os resultados obtidos. Sendo certo que

este tipo de problemas se levanta nos mais variados contextos de investigação, é

evidente que quanto maior for o grau de envolvimento do investigador com os sujeitos

sociais sob observação, mais pertinentes eles se tornam. Por isso, a presente reflexão

ganha um significado especial no caso da observação participante realizada na fábrica.

Quer os actores ou agentes em estudo, quer o próprio investigador orientam as suas

acções e percepções segundo o esquema de disposições sócio-cognitivas e afectivas

modeladas pelo mundo vivido das suas experiências e trajectórias. Mas, a acção social

não é mera estratégia. O mesmo é dizer que muito embora o comportamento humano

obedeça a regularidades e padrões de conduta socialmente inteligíveis e coerentes, não

se limita a seguir conscientemente um dado conjunto de regras com vista a alcançar

objectivos premeditados (Bourdieu e Wacquant, 1992: 25).

Para a sociologia compreensiva de Bourdieu, a principal diferença na estratégia de

pesquisa não é entre uma ciência que introduz no seu seio os pressupostos subjectivos

do investigador e uma ciência que não os introduz, mas sim entre uma ciência cujos

efeitos implícitos passam adiante sem que o investigador se dê conta deles ou uma

Page 3: T10 observação metodologia, 2003

8

ciência em que o mesmo está alertado para eles e procura revelá-los o mais abertamente

possível de modo a que esses efeitos perversos sejam por ele controlados e

incorporados na análise (Bourdieu, 1996: 18). Quando o investigador mergulha no

contexto da pesquisa, é necessário procurar os efeitos arbitrários dessa intrusão, os

quais são inerentes à própria forma como ele se apresenta. Ele deve tentar situar e

contextualizar as expectativas dos observados e, ao mesmo tempo, esclarecer o modo

como se estabelece a interacção e as razões que levam, por exemplo, uns a colaborar e

outros a recusar colaborar. Nesta mesma linha, outros autores, como Fowler, chamam a

atenção para o facto de que, quando o sociólogo trabalha dentro de uma instituição, ele

tende a criar mecanismos de protecção contra os enviesamentos a que o seu trabalho

está sujeito, incluindo o do próprio estatuto ―soberano‖ do cientista: ―uma condição da

compreensão é a constante interrogação dos pressupostos tomados por adquiridos que

nos autorizam a mover-nos no mundo social como peixe na água‖ (Fowler, 1996: 11).

A reflexividade baseia-se num sentimento e num olhar sociológico que habilita o

investigador a perceber e a dirigir no terreno os efeitos da estrutura social em que a

pesquisa está a decorrer, mas não se pode dissociar a construção do objecto, do

instrumento de construção do objecto e da sua crítica (Bourdieu e Wacquant, 1992: 30).

Acresce que o conhecimento é sempre situado e produzido a partir de uma perspectiva

parcial que, em situação, canaliza de modo selectivo e definido dimensões sociais

diversificadas (concepções de justiça social, por exemplo) que são constitutivas de um

contingente de subjectividades (Haraway, 1992). Quer isto dizer que, qualquer que seja

a modalidade cognitiva de que falamos, o processo de construção do conhecimento

contém sempre uma dimensão autobiográfica, e esta não é redutível à reflexividade, tal

como a entende Bourdieu.

1.2.O método de caso alargado: entre a estrutura e a acção

O chamado ―método de caso alargado‖ (extended case method) — desenvolvido e

aplicado em vários estudos de campo, entre outros, por Boaventura Sousa Santos (1983

e 1995) e Michael Burawoy (1979, 1985 e 1991; Burawoy e Lukács, 1992) — pretende

ao mesmo tempo evitar o determinismo e o relativismo, estabelecendo uma causalidade

múltipla e interactiva, isto é, olhando os fenómenos a partir de baixo mas tendo

presentes as forças externas que os modelam. Não se trata de procurar os micro-

fundamentos da macro-estrutura (Collins, 1981) nem os macro-fundamentos da micro-

Page 4: T10 observação metodologia, 2003

9

estrutura (Fine, 1991). Trata-se antes de tomar ambas as dimensões como interactuantes,

com vista a permitir que a experimentação no terreno possa obrigar à reformulação das

teorias e hipóteses existentes acerca do contexto social mais amplo (Burawoy, 1991).

Esta orientação metodológica procura em larga medida contrariar os tradicionais

métodos positivistas, opondo à generalização pela quantidade e pela uniformização, a

generalização pela qualidade e pela exemplaridade. Boaventura Sousa Santos sintetiza

bem as suas vantagens na seguinte passagem: ―em vez de reduzir os casos [em estudo]

às variáveis que os tornam mecanicamente semelhantes, procura analisar, com o

máximo de detalhe descritivo, a complexidade do caso, com vista a captar o que há nele

de diferente ou mesmo de único. A riqueza do caso não está no que há nele de

generalizável, mas na amplitude das incidências estruturais que nele se denunciam pela

multiplicidade e profundidade das interacções que o constituem‖ (Santos, 1983: 11-12).

O ―método de caso alargado‖ é discutido por Burawoy em articulação com o

método da ―teoria ancorada‖ (grounded theory), tradicionalmente utilizado pelos

estudos etnográficos. Ambas as perspectivas incorporam o micro e o macro,

considerando estes dois níveis como mutuamente implicados na realidade. A primeira

centra-se numa situação social concreta procurando compreender as forças particulares

que a moldam, evitando assim o problema da generalização; enquanto a grounded

theory pode construir o macro a partir das suas micro generalizações, o método de caso

alargado pode fazer emergir generalizações através da teoria reconstruída (Burawoy,

1991: 274).

Deste modo, a estrutura é vista como indissociável e reflexivamente ligada às

situações, e a sua invocação e explicitação deve ser feita de modo relevante para conferir

unidade às situações no quadro de uma realidade estruturada. Através desta abordagem é

possível demarcarmo-nos, por um lado, do excessivo relativismo, segundo o qual parece

não existir um mundo real, mas apenas múltiplas situações e, por outro lado, do

universalismo estruturalista, centrado na procura de características invariantes que

tendem a generalizar todas as situações sociais com base nos princípios universais.

Enquanto a grounded theory descobre generalizações abstraindo-as do tempo e do

espaço, ou seja, pondo em marcha uma estratégia indutiva que leva a explicações

genéricas, o método de caso alargado visa construir explicações genéticas, isto é,

explicações com base em resultados particulares. ―No modo genético, o significado de

um caso refere-se ao que ele nos diz acerca do mundo no qual está inserido. Qual será a

Page 5: T10 observação metodologia, 2003

10

verdade acerca do contexto social ou passado histórico para que o nosso caso tenha

assumido as características que nós observámos? O significado refere-se aqui ao

significado societal. A importância do caso único recai sobre o que ele nos diz sobre a

sociedade como um todo mais do que acerca da população de outros casos similares‖

(Burawoy, 1991: 281).

Apesar do método de caso alargado também adoptar uma análise situacional, ele

evita os efeitos do relativismo e do universalismo, olhando a situação como fortemente

modelada a partir de cima. Diferentemente da etnometodologia – que em geral trata o

poder sobretudo através dos modos como ele se realiza no interior do micro-contexto,

colocando a ênfase nas variáveis que podem ser manipuladas na situação imediata – a

presente orientação metodológica não menospreza as forças mais amplas, procurando

ver como elas limitam a mudança e criam os meios de dominação na esfera micro.

Pretende-se dar conta da generalização ―através da reconstrução das generalizações

existentes, isto é, da reconstrução da teoria existente‖ (Burawoy, 1991: 279). Foi

justamente no cruzamento entre estas duas lógicas contrárias – o top down e o bottom

up – que procurei estudar a classe trabalhadora desta região a partir da interpretação das

práticas e subjectividades sociais onde o consentimento e a resistência apareciam como

dimensões articuladas entre si2.

Por outro lado, pode dizer-se que esta perspectiva metodológica pretende

ultrapassar a velha dicotomia entre a estrutura e a capacidade de acção dos sujeitos.

Embora, como lembra Giddens, se devam distinguir analiticamente os sujeitos e a

estrutura, o que importa é ter presente que a mudança depende das formas de articulação

entre ambas as dimensões. Para compreender a transformação há que atender às linhas

de continuidade e descontinuidade no tempo e no espaço e conceber os sujeitos não

como meros ―suportes‖, mas sim como elementos com ―capacidade de monitorização

reflexiva‖ sobre as estruturas em que estão inseridos. Na prática, os sujeitos são parte

integrante da estrutura e por isso, embora esta imponha fortes limites e obstáculos ao

conhecimento e à acção dos indivíduos, as acções ou reacções que eles desenvolvem

face às pressões exteriores são geradoras de mudança, muito embora essa mudança

2 Significa isto pressupor que as formas particulares que assumem as relações entre a classe e a

comunidade ou entre a produção e as identidades culturais locais nesta região não se esgotam em si

mesmas, podendo antes dizer-nos alguma coisa acerca dos processos de mudança estrutural mais vastos,

embora as suas principais linhas de transformação histórica possam assumir formas discrepantes nos

níveis nacional e local.

Page 6: T10 observação metodologia, 2003

11

possa por vezes ser contrária às suas intenções. É nesse sentido que a estrutura pode ser

vista como uma ―ordem virtual‖ que se refere às ―propriedades de estruturação‖

(Giddens, 1989: 13), as quais tendem a assegurar as necessidades de reprodução

sistémica, mas, dadas as múltiplas pressões e adaptações que encerram, são obrigadas a

uma permanente reconstituição dessas propriedades (Fine, 1991 e 1992; Collins, 1981).

Tal como a macro-estrutura e a acção dos actores sociais são duas componentes de

um mesmo processo, a estruturação e a mudança têm implicações tanto no nível micro

como no macro. A manter-se esta distinção, ela só tem sentido se nos posicionarmos no

cruzamento entre os dois níveis para levar a cabo um conhecimento multifacetado e

complexo do mundo social mais vasto. É, pois, necessário estabelecer pontes que

permitam ver a forma como as dicotomias acção-estrutura e micro-macro, são

impregnadas uma pela outra (Fine, 1991: 162).

Assim, o poder assume-se aqui como um elemento incontornável. Se nos situamos,

por exemplo, no micro nível das organizações, a análise do poder e dos seus efeitos

exige que se observe o exercício do constrangimento não só enquanto resultado da

interiorização de normas e valores aí sediados, mas ao mesmo tempo enquanto efeitos

da estrutura societal que modelam a organização a partir do exterior. Enquanto o

constrangimento opera internamente, tanto pela coerção como pela interiorização

individual da disciplina, as contingências da realidade exterior operam

independentemente da percepção, impondo limites ao sucesso almejado pelo esforço

individual de conquista de oportunidades. A exterioridade é a estrutura persistente, em

certo sentido incontornável, que exerce os seus efeitos dramáticos sobre os actores,

mesmo quando estes não os reconhecem ou o analista não fala deles. É nessa dupla

articulação que se afirmam os macro-fundamentos da micro-estrutura (Fine, 1991). Não

se trata de os indivíduos não poderem agir ―como eles querem‖, mas sim de ter em

conta que a percepção incorpora constrangimentos no comportamento. É o nosso

entendimento do mundo material, ou seja, na prática, é a actuação das pessoas num

sentido macro-sociológico que está em causa, já que a própria aprendizagem é a leitura

do mundo social através de tipificações de situações, de instituições, de ideias, etc.,

vistas num sentido unitário e concebidas intuitivamente como efeitos da macro-

estrutura.

Page 7: T10 observação metodologia, 2003

12

2. Contornos de um estudo de caso

2.1. Negociações tácitas com o proprietário da fábrica

A empresa onde realizei a observação participante é uma PME com cerca de 60

trabalhadores. A sua escolha ficou a dever-se, por um lado, ao reduzido número de

respostas que obtive das cerca de vinte empresas que contactei e, por outro, à

receptividade que obtive da parte do seu Director. O número limitado de alternativas de

que dispunha para poder escolher a fábrica mais adequada revela, desde logo, alguma

coisa acerca do sector industrial do calçado nesta região. Refiro-me não só à fraca

sensibilidade dos proprietários para com as questões sociais, mas igualmente à sua

habitual desconfiança para com a Universidade e a sociologia, em especial perante a

situação ―bizarra‖ de um académico se dispor a trabalhar como operário numa linha de

montagem.

Em face das dificuldades, aderi sem hesitações à abertura e entusiasmo

manifestados por este empresário desde o nosso primeiro contacto. Essa era uma

condição decisiva para realizar um trabalho desta natureza, pois deixei de lado a

hipótese (por ser inverosímil) de procurar ―emprego‖ numa fábrica sujeitando-me às

regras vigentes do mercado de trabalho. O interesse do patrão, o seu espírito jovem e o

carácter informal da nossa relação rapidamente me colocaram numa posição de ouvinte

privilegiado, a quem ele transmitia as dificuldades, problemas e ―incompreensões‖ que,

do seu ponto de vista, se erguiam ao seu esforço de desenvolvimento e modernização da

empresa.

Como se compreende, adoptei inicialmente uma postura passiva e de ouvinte atento

e interessado, manifestando as minhas opiniões com a timidez e a contenção de quem se

encontra numa posição de dependência. Contudo, à medida que me fui integrando junto

dos trabalhadores e conhecendo por dentro alguns dos problemas laborais, comecei a

contrariar por vezes as suas posições quanto à forma de encarar os problemas. O

contacto directo com o patrão foi de uma importância decisiva para o decurso da

investigação, não só pela cordialidade da relação, mas ainda porque isso me permitiu,

numa fase posterior, levar a cabo diversas interpelações e conversas junto dos restantes

sectores da empresa, em particular das chefias intermédias (que passarei a nomear por

―encarregados‖ ou ―chefes de secção‖).

O processo de autorização que permitiu a realização deste trabalho no interior da

fábrica passou por uma negociação tácita que se revestiu de várias nuances e alguma

Page 8: T10 observação metodologia, 2003

13

diplomacia. Os objectivos estratégicos que eram perseguidos pelo proprietário, de um

lado, e pelo investigador, de outro, apenas parcialmente estavam em sintonia. Da parte

do primeiro, era clara a obsessão com a imagem da empresa e a expectativa de que com

este estudo o seu estatuto de industrial ―inovador‖ com ―espírito empresarial‖ avançado

pudesse sair reforçado. Da minha parte, pretendia pôr em prática uma perspectiva

teórica dirigida fundamentalmente às práticas de classe do operariado, aos mecanismos

de poder e à natureza ambígua dos comportamentos de resistência e aceitação por parte

dos trabalhadores em relação à hierarquia. Tal orientação não poderia de modo algum

ser abertamente explicitada porque tal iria, com toda a probabilidade, conduzir a

incompreensões e porventura pôr em causa a realização da pesquisa, sobretudo tendo

em conta as conotações político-ideológicas que continuam a envolver questões como o

poder, a acção colectiva ou, por exemplo, o sindicalismo, dimensões a que a perspectiva

teórica subjacente à investigação pretendia captar.

A referida ―negociação tácita‖ traduziu-se formalmente na disponibilidade do

investigador para realizar, paralelamente, um trabalho de recolha e de ―diagnóstico‖

destinado à empresa e orientado para a melhoria das suas performances produtivas. Esta

foi, portanto, uma cedência calculada já que se afastava dos objectivos científicos do

estudo. Sendo esse um requisito para assegurar as condições de cooperação que

necessitava preservar com o Director da empresa, não podia fugir a ele. Todavia, se no

início isso se destinava sobretudo a garantir a necessária margem de manobra para os

meus movimentos e contactos dentro da empresa, este novo elemento passou de

imediato a fazer parte da análise e ao mesmo tempo passei a encará-lo como um meio

que poderia potenciar as implicações práticas do estudo, designadamente no próprio

contexto da empresa e das condições de trabalho do colectivo operário. Neste capítulo

tudo correu conforme o previsto e no final facultei ao proprietário o prometido

―diagnóstico‖, assinalando diversos pontos críticos e apontando um conjunto de

sugestões destinadas a flexibilizar a estrutura organizacional e os canais de

comunicação da empresa.

Não deixa, contudo, de ser significativa a reacção algo violenta do patrão, quando

soube, semanas depois da conclusão do meu trabalho, que tinha participado num debate

promovido pelo sindicato onde foram referidos (e depois divulgados na imprensa)

alguns dos constrangimentos e práticas autoritárias de que os trabalhadores do calçado

são vítimas nas empresas. Apesar de se tratar de um comentário genérico sobre o sector

Page 9: T10 observação metodologia, 2003

14

e não obstante o nome da empresa nunca ter sido divulgado, isso não me impediu de ser

acusado de estar a ―fazer o jogo do sindicato‖, de ―prejudicar a imagem dos

empresários‖ do sector e mesmo de ―traição‖. Em parte, a sua irritação ficou a dever-se

aos comentários de outros empresários locais a quem ele próprio teria divulgado a

minha presença na empresa, muito provavelmente como forma de reforçar a referida

auto-imagem de empresário inovador.

2.2.Entrar no ritmo: esforço físico e adaptação

No meu primeiro dia de trabalho saí de casa bastante cedo, num dia de inverno

chuvoso e ainda de noite. Alcancei a Zona Industrial localizada junto à entrada sul de S.

João da Madeira ainda antes das 8h da manhã. Parei por momentos numa fila de carros

a olhar as correrias dos trabalhadores que cruzavam a rua em direcção aos portões das

fábricas. A minha ansiedade aumentava com a expectativa de enfrentar pela primeira

vez o trabalho na fábrica. O ―choque‖ inicial dos primeiros dias foi particularmente

marcante e ilustra um pouco daquilo que são as dificuldades desta metodologia. A

entrada na fábrica faz-se normalmente pelas traseiras das instalações. Numa rápida

passagem pelos balneários — localizados na mesma divisão da casa de banho —,

guarda-se o casaco e o saco com o almoço num armário onde estão também a toalha, o

sabonete, papel higiénico, etc., veste-se a bata de trabalho e dirigimo-nos rapidamente

para o relógio de ponto, aguardando depois o toque da sirene para iniciar o dia de

trabalho.

Como era o meu primeiro dia e desconhecia ainda tudo isto, só no intervalo da

manhã (10 h) tomei contacto com este local e a primeira impressão que me ficou foi de

desagrado, sobretudo pelo mau cheiro e falta de higiene. Nesse dia entrei pela porta da

frente e dirigi-me ao encarregado geral, que me aguardava. Trocámos breves impressões

mas não adiantei muito sobre o conteúdo do meu trabalho, do qual já estava, aliás,

minimamente ao corrente. Limitei-me a adiantar que me interessava sobretudo trabalhar

junto dos operários a fim de sentir as dificuldades e exigências da produção na linha de

montagem e aceitei de imediato a sugestão que se fizesse uma ficha com o meu nome,

destinada ao registo diário das entradas e saídas no relógio de ponto, como acontece

com todos os outros. Nesta altura estava preocupado acima de tudo em ter uma

actuação discreta e cuidadosa, não divulgando detalhadamente e muito menos logo no

início todos os aspectos da observação que pretendia realizar.

Page 10: T10 observação metodologia, 2003

15

Recordo com particular nitidez os sentimentos contraditórios que me assaltaram ao

mergulhar no ambiente mecanizado e ruidoso das instalações fabris. A agitação e

azáfama do pessoal, o barulho das máquinas e descargas de pressão das caixas de

aquecimento e refrigeração, os sons dos martelos, o cheiro a óleo e a produtos químicos

transmitiram-se uma impressão estranha. Ali estava eu à mercê de uma poderosa

engrenagem que parecia já estar a modelar-me, também a mim, desde os primeiros

instantes. Assaltaram-se emoções contraditórias, de angústia e curiosidade, de

apreensão e expectativa. ―Isto é mesmo a sério‖, pensei. Mas a preocupação em

começar não me deixou tempo para reflexões.

Após uma rápida explicação do chefe da linha de montagem ocupei o meu posto de

trabalho ao lado do tio António, o meu primeiro companheiro, grande conversador e

brincalhão apesar dos seus 62 anos de idade. A secção de montagem, onde trabalhei até

ao fim é a que ocupa maior número de trabalhadores e a mais importante no processo de

fabrico. A ela está ligada também a chamada secção de acabamentos, envolvendo

ambas cerca de trinta operários, mulheres e homens, predominantemente jovens. Ao

longo da pesquisa realizei diversas tarefas produtivas entre as quais arrancar pregos,

riscar as palmilhas, desenformar, dar cola e facear (operações manuais), cardar e

prensar os tacões (operações mecânicas). Principalmente na fase inicial o ritmo de

trabalho foi extremamente violento em especial se atendermos a que se trabalha (cerca

de 9 h por dia) em pé, sob a cadência da linha de montagem semi-automática, cujo

andamento varia em função das exigências produtivas e consoante os compromissos

quanto ao número de pares a entregar em cada semana.

Na semana em que iniciei o meu trabalho vivi momentos de grande ansiedade,

nomeadamente quando estive a desenformar sandálias manualmente. Desapertar os

atacadores com os dedos da mão, segurar contra o peito e pressionar para dar a folga

suficiente, puxar a forma de dentro da sandália e voltar a colocá-la no mesmo tabuleiro,

arrumar, contar e registar o número de pares que iam saindo segundo as cores e os

modelos. Tudo isto a uma velocidade estonteante, e acima de tudo insustentável face à

minha inexperiência e ao défice de calosidade das minhas mãos. Como estava ansioso

com a necessidade de mostrar qualidades e predisposto a não ―dar parte de fraco‖

perante os colegas, uma vez que pretendia ser, ou pelo menos parecer, o mais possível

igual a eles, fiz todo o esforço por aguentar firme entre o suor e o desespero quando, por

vezes, me atrasava e o tio António me gritava do outro lado dos tabuleiros ―agora é

Page 11: T10 observação metodologia, 2003

16

você que manda na linha…‖. Nessa noite cheguei a acordar de com dores nos dedos e,

ao fim de dois dias tive mesmo de ceder. Dei conta da situação ao encarregado e voltei

ao posto anterior.

Durante os escassos 10 minutos dos intervalos da manhã e da tarde o cronómetro

continuava a marcar os movimentos dos trabalhadores. Apressadamente dirigíamo-nos

ao WC para lavar as mãos, de seguida caminhava-se em passada larga para o bar/

refeitório onde, depois de se entrar na rotina e de conquistar a simpatia da D. Amélia

(responsável por esse serviço), já tínhamos o café ou a sandes preparada no local

habitual do balcão; os restantes 3 ou 4 minutos era o tempo de descomprimir um pouco,

caminhar mais lentamente até ao portão, fumar meio cigarro ou trocar duas palavras

com o companheiro e regressar ao posto ao toque da campainha. Largar e pegar são

gestos completamente automatizados e imediatos. Não há tempo para acabar a tarefa

que se tenha em mãos. Ninguém o faz.

Para além do posto de trabalho e da correria dos intervalos, as possibilidades de

contacto com os trabalhadores ficavam reduzidas à hora do almoço (1 hora apenas) e ao

período após a saída, onde a pressa continuava a ser marcante. Por motivos óbvios,

almoçava regularmente no refeitório a fim de timidamente me começar a familiarizar

com o maior número possível de colegas. Nos primeiros dias recordo-me de ter

ocupado uma das mesas mais vazias e estar sentado num dos bancos corridos em frente

a uma operária que comia isolada e silenciosa a sua sopa de dentro da marmita.

Enquanto olhava para o rosto fechado da minha companheira de ocasião, e para os

grupos das mesas vizinhas, partilhava aqueles saborosos momentos de descompressão e

sentia um enorme desejo de sossego e alívio por estar momentaneamente fora do torpor

dos equipamentos fabris e da azáfama produtiva. Além do silêncio geral, certamente

agravado pela presença de um estranho que gerava alguma desconfiança (como se

provou depois), notei ainda que a maioria almoçava em menos de um quarto de hora.

Por exemplo, enquanto eu ainda me preparava para começar a almoçar já algumas das

jovens se aprontavam para arrumar as coisas e limpar a mesa, tentando assim aproveitar

a o resto do tempo para descomprimir e passear um pouco pelos arredores da fábrica.

Este desejo de paz, esta necessidade de evasão, aparece assim como consequência

directa da cadeia de pressões, do stress físico e psicológico a que o processo produtivo

nos conduz.

Page 12: T10 observação metodologia, 2003

17

2.3. Angústias e dilemas

Ao relatar estes episódios da minha vivência na fábrica, que correspondem a

pequenos fragmentos do meu Diário de Campo, pretendo dar a conhecer situações que,

apesar de serem pontuais, mostram como aquilo que se observa é inseparável daquilo

que se sente, e neste caso concreto ilustram a importância do desgaste físico e seus

efeitos psíquicos na construção das rotinas e das atitudes perante o trabalho. Uma

experiência que, sentida na pele, nos ajuda a perceber algumas das resistências desta

colectividade operária, não só quanto à adesão aos objectivos da empresa mas também

quanto a uma participação mais activa nas estruturas sindicais.

É nessa medida que a vivência da experimentação é tão importante para observar e

compreender. A partilha da vida prática com a comunidade em estudo é uma forma de

perscrutar o caminho das experiências alheias através da experiência própria ou, para

usar as palavras de Bourdieu, é ―uma espécie de exercício espiritual que nos permite

alcançar, através do esquecimento do self uma verdadeira transformação do olhar que

lançamos sobre os outros‖ (Bourdieu, 1996: 24)

Efectivamente, através da relação que estabeleci com os trabalhadores, pude

comprovar como os papéis de ―observador‖ e de ―observado‖ se misturam e

permanecem em constante conflito. O impacto da minha chegada à fábrica implicou

que me tornasse o principal objecto de atenção, de observação e até de ―estudo‖. São

estas situações que nos devem levar a pôr em causa a tradicional divisão que tende a

tomar os membros da comunidade em estudo como meras instâncias vulneráveis,

ingénuas e passivas. Ao penetrarmos no seu universo somos levados a orientar o

exercício da pesquisa para a partilha do mundo comum com os nossos parceiros

momentâneos e a aceitar que também eles possuem teorias acerca dos outros e de si

próprios. Neste sentido, é inevitável e até desejável relativizar a autoridade da ciência

para entrar em diálogo com outras formas de conhecimento prático que emanam da

experiência empírica da própria colectividade (Burawoy, 1991: 293).

No início estava preocupado, antes de mais, em ser capaz de dar resposta às

exigências produtivas porque tinha consciência que tudo o resto passaria por aí. Assim,

quer a inexperiência técnica quer a ansiedade gerada pelo querer aprender e querer

―estar à altura‖ para melhor poder integrar-me, obrigavam a que a minha atenção se

concentrasse quase em exclusivo nas tarefas da produção. Parecia-me impossível

conciliar a concentração no trabalho com a observação dos comportamentos dos meus

Page 13: T10 observação metodologia, 2003

18

colegas e do funcionamento geral da fábrica. Por um lado, porque demorou algum

tempo até que a destreza na realização das operações me permitisse ao mesmo tempo

dar atenção ao que se ia passando à minha volta sem que isso perturbasse o meu

trabalho, por outro lado porque, conforme me fui apercebendo com o correr do tempo,

os trabalhadores desenvolveram os seus mecanismos perceptivos até níveis

particularmente sensíveis, conseguindo captar com facilidade tudo aquilo que sai fora

das suas tarefas e rotinas normais. Ao contrário do que se passava comigo, que nos

primeiros tempos não conseguia conversar nem entender os meus colegas no meio de

todo aquele ruído, o meu colega de posto (o tio António), por exemplo, conversava com

as operárias dos acabamentos através da linha de montagem e entendia tudo o que elas

diziam olhando para os movimentos dos lábios.

Qualquer movimento menos usual era em geral detectado à distância mesmo

quando, para meu espanto, todos pareciam estar completamente absorvidos na tarefa

que tinham em mãos. Quando aparece uma visita na fábrica, quando surge uma

discussão, quando alguém entra ou sai do portão a horas fora dos horários normais,

quando, por qualquer motivo, alguém se desloca a outra secção ou esteve à conversa

com o patrão ou com o encarregado, logo um vasto conjunto de olhares discretos e

silenciosos trata de registar pormenorizadamente o referido ―acontecimento‖. Assim, o

tratamento dos encarregados, o cumprimento do patrão quando passava na linha de

montagem e a facilidade com que se detinha a trocar impressões comigo, foram os

primeiros sinais a levantar dúvidas e cautelas. Sinais esses que vêm juntar-se à falta de

umas mãos robustas e calejadas, à postura gestual denunciadora de um estatuto social

diferente e principalmente à ―maneira de falar‖, conforme mais tarde me confirmaram

alguns daqueles que de certo modo se vieram a tornar os meus amigos dentro da

empresa.

As especulações em meu redor ao longo da primeira semana de trabalho foram

diversas: desde ser um engenheiro que estava a aprender as diferentes tarefas para

depois assumir uma posição de encarregado, até ser um psicólogo contratado pelo

patrão para tentar estudar o pessoal a fim de melhorar a produção, passando por ser um

amigo do patrão que vinha para ali aprender com vista a mais tarde abrir uma fábrica e,

finalmente, surgiu até o boato de que se trataria de um agente da Polícia Judiciária que

se queria infiltrar na indústria do calçado para detectar negócios de tráfico de droga.

Este é o momento em que aquilo que os ―observados‖ vêem é mais significativo do que

Page 14: T10 observação metodologia, 2003

19

o próprio olhar do ―observador‖. Mas este tipo de respostas revela ao mesmo tempo o

muro de obstáculos que de imediato começou a erguer-se entre o investigador e o

colectivo dos trabalhadores. O panorama era, nesta altura, de desconfiança e

retraimento.

Rapidamente me apercebi que esta situação se apoiava, em boa parte, na relação

privilegiada que o patrão e os encarregados mantinham comigo. Embora estivesse a

cumprir todas as exigências produtivas e disciplinares com o maior rigor, o modo como

os responsáveis se dirigiam a mim, a atenção que me dedicavam e certamente também a

forma como eu falava com eles indiciavam que era alguém que estava ―do lado deles‖,

isto é, do lado do patrão. Como também não foi difícil perceber, nesta fábrica, apesar da

fraca ou nula actividade sindical, a clivagem classista era óbvia mesmo no campo das

representações e atitudes, ou seja, os trabalhadores funcionavam na base do habitual

esquema dicotómico — o ―eles‖ e o ―nós‖ — e deste modo, no jogo diário das

interacções esse critério selectivo exigia opções claras.

É sabido que a atitude do investigador tem de pautar-se, como assinalei atrás, pela

discrição. Pensei então em esclarecer os meus objectivos de pesquisa e mostrar-lhes que

o estatuto ―especial‖ que ocupava na fábrica poderia constituir um instrumento capaz de

lhes proporcionar algumas vantagens. A ideia de esperar pacientemente que as coisas

evoluíssem no bom sentido foi então posta em causa. Era urgente assumir o meu

distanciamento perante a direcção da empresa e mostrar alguma solidariedade para com

a resistência em surdina que, sob a forma de permanentes queixumes e desabafos, os

trabalhadores deixavam transparecer no dia-a-dia.

Conversei com a única operária conotada como sindicalista mas, como percebi a

sua fraca popularidade, optei por diversificar os contactos, procurando abrir portas sem

fechar nenhuma e evitando privilegiar os elementos claramente conotados, fosse como

―sindicalista‖, fosse como ―mau profissional‖ ou como ―graxista‖, por exemplo. A

revelação do meu estatuto de investigador era incontornável, quer por razões éticas,

quer porque a conquista da confiança exige que se exponham alguns elementos da

identidade pessoal, como em qualquer processo de interconhecimento. Comecei, então,

a pouco e pouco a emitir opiniões e a fazer perguntas sobre alguns assuntos que

surgiam entre os grupos de trabalhadores, desde o desporto aos temas do dia-a-dia de

trabalho.

Page 15: T10 observação metodologia, 2003

20

Passaram-se momentos de desânimo e só lentamente as oportunidades começaram

a surgir. Tentei aproveitá-las da melhor maneira, procurando integrar os pequenos

diálogos e conversas informais que surgiam durante as pausas, mas, como grande parte

dessa actividade discursiva tinha uma forte componente lúdica, de brincadeira e de

subentendidos, à mistura com jogos de sedução e piadas sexistas entre homens e

mulheres, era uma tarefa difícil para alguém pouco familiarizado com o meio. De facto,

a vertente da informalidade e das brincadeiras mais ou menos corrosivas que a

colectividade operária põe em marcha, não é senão o reflexo de um jogo de poderes,

como outros estudos já mostraram (Collinson, 1992). E neste caso foi, na verdade, uma

das dimensões que mais directamente serviu de critério de selecção no meu processo de

aceitação pelo grupo operário.

A aprendizagem inicial, apesar de intensa e dolorosa, foi extremamente importante.

Desde logo porque me obrigou a questionar alguns dos meus próprios pressupostos. Por

exemplo, a tendência para procurar estabelecer conversas ―sérias‖ que fossem

claramente orientadas para os objectivos da pesquisa — os conflitos com as chefias, as

relações com o sindicato, as opiniões sobre a empresa, etc. — levava sistematicamente

ao silêncio ou a respostas evasivas. Ao fim de algum tempo fui obrigado a constatar

que, no fundo, estava a querer ver aquilo que não existia e, sem me aperceber disso, a

avaliar aquele operariado segundo os velhos parâmetros da militância sindical e os

estereótipos tradicionalmente atribuídos à classe operária. À medida que se sucediam os

dias e as pequenas ocorrências, fui explicando a alguns trabalhadores os meus

objectivos — sublinhando que todas as minhas fontes seriam anónimas — e, a pouco e

pouco, comecei a assistir a pequenos desabafos e gestos de revolta que eram

abertamente exibidos junto a mim, perante as mais diversas situações laborais e os

comportamentos despóticos de alguns encarregados, sinais estes que comprovavam

finalmente a minha aceitação no seio do grupo. Alguns sectores da força de trabalho

passaram a procurar-me espontaneamente e a pedir a minha opinião sobre diversos

assuntos. Mas isso só aconteceu quando se tornou clara a minha postura crítica perante

as chefias e, consequentemente, o meu alinhamento cúmplice com as atitudes de

descontentamento dos operários, que se repetiam diariamente. Apesar disso, persistiu

sempre algum embaraço e retraimento, aspectos que, por um lado, exprimem a distância

cultural e de estatuto que nos separava e, por outro, são um sintoma da condição de

subordinação. Não apenas a subordinação de classe ou a dupla subordinação no caso

Page 16: T10 observação metodologia, 2003

21

das operárias — a condição de classe e a condição feminina — mas também a atitude

de dependência cultural de quem, perante um ―académico‖, se sentia mais inclinado a

ouvir do que a falar.

2.4. O investigador e os jogos de poder

A necessidade de dar atenção aos efeitos perturbadores da minha presença na

fábrica deve-se não só ao desejo de controlar a sua interferência nas observações diárias

mas também ao seu significado em termos da análise substantiva. Obviamente que me

refiro, não a perturbações de ordem funcional mas, apenas, ao impacto simbólico e

sociológico introduzido por um elemento estranho e com um estatuto próprio. A forma

como procurei compatibilizar o apoio institucional das hierarquias com a aceitação e

colaboração dos trabalhadores, além das inúmeras dificuldades que levantou, deu lugar

a um processo dinâmico e contraditório que pode ser interpretado à luz da estruturação

das relações de poder no interior da fábrica.

Desde a desconfiança inicial agravada pela atenção que me dedicavam os chefes de

sector e o próprio patrão até à fase final em que foi visível a utilização estratégica que

alguns trabalhadores faziam da relação privilegiada que mantinham comigo, passando

pelo relacionamento com os encarregados, não é difícil identificar situações que

comprovam a forma como o investigador personifica um papel activo na configuração

dos jogos e lutas internas, favorecendo em certos casos a sua momentânea

transfiguração.

As relações com os encarregados podem servir para ilustrar esse jogo. Por

exemplo, no que respeita à divulgação dos objectivos da pesquisa tinha sido prevista a

necessidade de jogar na ambiguidade, isto é, divulgar o suficiente para clarificar a

situação mas sem entrar em detalhes excessivos, potencialmente comprometedores.

Apesar de no global ter conseguido uma colaboração aberta da parte dos encarregados,

no início notei o cuidado com que observavam a minha conduta junto dos operários. No

caso particular do chefe da secção onde eu próprio trabalhei, a nossa relação, embora

sempre colaborante, pautou-se por alguma instabilidade e evoluiu ao longo do tempo

entre atitudes de curiosidade e aproximação onde cheguei a detectar sinais de

reverência, momentos pontualmente reveladores de hostilidade e, noutras alturas,

expressões de insegurança e desconforto perante o meu crescente à-vontade com os

trabalhadores.

Page 17: T10 observação metodologia, 2003

22

Em particular ao longo das últimas três semanas, em que procedi à aplicação de um

pequeno inquérito aos trabalhadores — preenchido nos intervalos ou levado para casa e

trazido no dia seguinte e onde, entre outras questões, se faziam perguntas sobre a

empresa e as relações com as chefias —, terá ficado clara junto dos encarregados a ideia

de que na posse daquele tipo de informações a sua posição perante mim estava de

algum modo mais vulnerável. Foi também nas últimas semanas que, seguindo a

solicitação inicial do proprietário, realizei algumas reuniões com os chefes de secção a

fim de retirar daí elementos para a elaboração do relatório de ―diagnóstico‖ que me foi

solicitado. Nessas reuniões discutiram-se alguns conceitos de teoria das organizações e

da liderança (por mim introduzidos) e debateram-se problemas gerais da empresa

(insatisfação do pessoal, relações com o patrão, etc). É claro que, ao pôr em prática

estas iniciativas e sabendo-se que tinha para isso o apoio do proprietário, os

encarregados foram percebendo que eles próprios estavam a ser objecto de particular

atenção. Se, por um lado, isso reforçou de certo modo a sua vulnerabilidade face à

posição particular e ―privilegiada‖ em que me encontrava, por outro lado, à medida que

o mesmo foi sendo percebido pelos operários, começou a desenvolver-se no seu seio

um crescendo de à-vontade onde por vezes transparecia uma ironia latente e um gozo

subliminar perante o embaraço de alguns dos encarregados, em particular o do sector da

montagem, visível, por exemplo, nas relações que mantinha comigo no posto de

trabalho e até na alteração subtil ao seu comportamento, mais comedido e cauteloso,

face aos seus subordinados. Para dar um exemplo concreto, na fase final, como o meu

trabalho me permitia circular junto das operárias dos acabamentos (pois estava a dar

cola nos palmilhados ao longo da linha de montagem), era visível a procura de que

comecei a ser alvo por parte delas, para conversarem comigo. Além de já me

conhecerem melhor sabiam que podiam fazê-lo sem serem chamadas à atenção, ao

contrário do que acontecia quando falavam umas com as outras. Assim, podiam

aproveitar para descomprimir face ao stress do ritmo produtivo e ao mesmo tempo era

uma forma de afirmação e de pequena vingança dissimulada perante o seu mais directo

opressor. Por vezes diziam-me: ―quando você for embora isto vai acabar…‖.

3. Conclusão

Se a observação participante é, em qualquer situação de pesquisa, um tipo de

metodologia que sempre põe à prova a capacidade de resistência e de integração do

investigador, num ambiente como o de uma empresa industrial com estas

Page 18: T10 observação metodologia, 2003

23

características, as dificuldades ganham contornos muito próprios. As clivagens são

evidentes e sobrepõem-se claramente às orientações ideológicas dos agentes. Os

antagonismos estruturais repousam nos recursos incorporados e nas condições

objectivas em que os actores se situam no mundo do trabalho, mas reflectem-se nas

subjectividades colectivas diferencialmente estruturadas pelos diversos segmentos da

força de trabalho. Posicionado entre este conjunto de lógicas e pressões cruzadas, o

investigador confronta-se permanentemente com uma exigência de neutralidade nunca

totalmente conseguida e os imperativos de solidariedade exigidos pelo elo mais fraco da

estrutura de poderes da empresa. É, como vimos, um jogo dinâmico feito de múltiplas

subtilezas, que exige um constante esforço de readaptação e onde o próprio papel do

cientista no meio desse jogo deve ser questionado e discutido.

As dúvidas e inquietações de ordem científica e pessoal que me assaltaram foram

sendo diariamente registadas no meu Diário de Campo. Anotar as observações

efectuadas constitui um requisito imprescindível para o sucesso de uma observação

desta natureza. Escrever o diário todos os dias é essencial. Apesar do esforço

suplementar que representa escrever durante pelo menos duas ou três horas após a saída

da fábrica – em particular tendo em vista o desgaste físico, e psicológico, de um dia de

trabalho na linha de montagem –, essa é uma tarefa decisiva. O trabalho da escrita

representa, ele próprio, uma prática reflexiva que, por isso mesmo, vai modelando as

condições de envolvimento com o grupo por parte do cientista. Longe de ser uma

transcrição, um puro reflexo do que aconteceu, a escrita é uma tradução e uma

interpretação. Nessa medida, compatibilizar a ―fidelidade‖ com a ―legibilidade‖ do

produto final, conciliar a riqueza sociológica da informação recolhida com a defesa do

anonimato dos informantes, são requisitos difíceis de conciliar.

O envolvimento com o outro é sempre um processo através do qual os actores

sociais se projectam a si mesmos. A esse jogo de espelhos – onde se inscrevem

múltiplas dimensões identitárias – não é alheio o cientista social enquanto investigador

e observador. Ao procurar dar visibilidade aos observados está, ele próprio, a expor-se e

a confrontar o seu saber com os saberes alternativos em estudo. Para ser aceite pela

comunidade que estuda tem de participar nesse jogo e negociar as suas próprias

representações e os juízos implícitos que se inscrevem nos equipamentos teóricos e

metodológicos que leva consigo. Se o conhecimento científico tem de despir-se da sua

tradicional postura de autoridade, a prática do envolvimento pode assumir-se como uma

Page 19: T10 observação metodologia, 2003

24

via fundamental para a sua reinvenção. A perspectiva auto-reflexiva que aqui procurei

adoptar situa-se nessa linha.

Referências bibliográficas

Bourdieu Pierre (1973), Le Métier de sociologue, Paris, Mouton.

Bourdieu Pierre (1996), ―Understanding‖, Theory, Culture and Society, vol. 13, nº 2.

Bourdieu Pierre e Wacquant, Loïc (1992), An Invitation to Reflexive Sociology,

Chicago, University of Chicago Press.

Burawoy, Michael (1979), Manufacturing Consent, Chicago, The University of

Chicago Press.

Burawoy, Michael (1985), The Politics of Production, Londres, Verso.

Burawoy, Michael (1991), Ethnography Unbounded — power and resistence in the

modern metropolis, Berkeley, U. of California Press.

Burawoy, Michael e Jánus Lukács (1992), The Radiant Past: Ideology and Reality in

Hungary’ Road to Capitalism, Chicago, Chicago University Press.

Collins, Randall (1981), ―On the Microfoundations of Macrosociology‖, American

Journal of Sociology, nº 86.

Collinson, David (1992), Managing the Shopfloor - Subjectivity, Masculinity and

Workplace Culture, Berlim/Nova Iorque, Walter de Gruyter.

Estanque, Elísio (2000), Entre a Fábrica e a Comunidade: subjectividades e práticas

de classe no operariado do calçado, Porto, Afrontamento.

Fine, Gary Alan (1991), ―On the Macrofoundations of Microsociology‖, The

Sociological Quarterly, Vol. 32, nº 2.

Fine, Gary Alan (1992), ―Agency, Structure, and Comparative Contexts: Toward a

Synthetic Interactionism‖, Symbolic Interaction, vol. 15, nº 1.

Fowler, Bridget (1996), ―An Introduction to Pierre Bourdieu‘s ‗Understanding‘‖,

Theory, Culture and Society, vol. 13, nº 2.

Giddens, Anthony (1989), A Constituição da Sociedade, S. Paulo, Martins Fontes

Editora.

Haraway, Donna (1992), Primate Visions: Gender, Race and Nature in the World of

Modern Science, Londres, Verso

Santos, Boaventura de Sousa (1983), ―Os conflitos urbanos no Recife: o caso do

‗Skylab‘‖, Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 11.

Santos, Boaventura de Sousa (1995), Toward a New Common Sense, Londres/Nova

Iorque, Routledge.

Schutz, Alfred (1970), On Phenomenology and Social Relations, Chicago, The

University of Chicago Press.