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Surdez & Educação COLEÇÃO TEMAS & EDUCAÇÃO

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Surdez & Educação

COLEÇÃO

TEMAS & EDUCAÇÃO

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Maura Corcini Lopes

Surdez & Educação

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COPYRIGHT © 2007 BY MAURA CORCINI LOPES

C O O R D E N A D O R D A C O L E Ç Ã O

Alfredo Veiga-Neto

R E V I S Ã O

Lavínia Lobato Valadares

E D I T O R A Ç Ã O E L E T R Ô N I C A

Carolina Rocha

L864s

Lopes, Maura Corcini

Surdez & Educação / Maura Corcini Lopes. – BeloHorizonte: Autêntica , 2007.

104 p. – (Temas & Educação, 5)

ISBN: 978-85-7526-283-2

1. Educação de surdos. I. Lopes, Maura Corcini. II. Título.III. Série.

CDU 376.33

B E L O H O R I Z O N T ERua Aimorés, 981, 8º andar . Funcionários30140-071 . Belo Horizonte . MGTel: (55 31) 3222 68 19TELEVENDAS: 0800 283 13 22www.autenticaeditora.com.bre-mail: [email protected]

S Ã O P A U L OTel.: 55 (11) 6784 5710e-mail: [email protected]

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Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora.Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida,seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópiaxerográfica sem a autorização prévia da editora.

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SUMÁRIO

CAPÍTULO I

Rupturas e posições ...................................................... 7

Um começo ............................................................... 7

A surdez como diferença primordial e cultural ........... 15

Estudos Surdos e Educação ...................................... 23

NUPPES: produção e militância ................................. 31

CAPÍTULO II

Flashes da história da educação e da escola de surdos .... 39

Mecanismos disciplinarese a engrenagem escolar para os surdos ................... 39

A recusa às práticas ouvintistas e a resistência surda ..... 50

A língua de sinais e a escola de surdos ................... 56

CAPÍTULO III

Comunidade, identidade e currículo surdo .................... 71

Escola de surdos e Currículo surdo .......................... 83

CAPÍTULO IV

Para saber mais... .......................................................... 91

Os sites .................................................................... 93

Referências ................................................................ 95

A autora ................................................................... 101

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RUPTURAS E POSIÇÕES

CAPÍTULO I

Mas, se não ouvir não definefundamentalmente o ser surdo, o que é que está

em jogo, então, nesta afirmação?

(BENVENUTO, 2006, p. 227)

Um começo

A surdez é uma grande invenção. Não estou me refe-rindo aqui à surdez como materialidade inscrita em um cor-po, mas à surdez como construção de um olhar sobre aqueleque não ouve. Para além da materialidade do corpo, cons-truímos culturalmente a surdez dentro de distintas narrati-vas associadas e produzidas no interior (mas não fechadas emsi mesmas) de campos discursivos distintos – clínicos, lingüís-ticos, religiosos, educacionais, jurídicos, filosóficos etc.

Não há comparações entre narrativas sobre a surdezproduzidas a partir de tais campos, pois estas não se pro-põem a eliminar umas às outras. Todas foram e estão sendoforjadas a partir de nossos conhecimentos e interpretaçõessobre a materialidade de um corpo ou sobre o que pode-mos dizer ser a natureza de um corpo. Portanto, todas asinterpretações possíveis sobre o que convencionamos cha-mar de surdez são interpretações sempre culturais. Nãohá nada do que possamos afirmar sobre a surdez que nãoesteja alojado dentro de campos de sentidos produzidos

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culturalmente. Culturalmente produzimos o normal, o dife-rente, o anormal, o surdo, o deficiente, o desviante, o exó-tico, o comum, entre outros que poderiam compor uma listainfindável de sujeitos. Sustentando a produção dessa lista,vemos argumentos consistentes que podem ser aceitos ounão, considerados ou não por nós que pensamos as ques-tões relativas à surdez. Qualquer escolha será sempre feitaa partir de interpretações e representações que construí-mos, partindo de um conjunto de justificativas que escolhe-mos para sustentar nossas formas de entender aquilo quesomos e aquilo que o outro é. Toda escolha que fazemos eas justificativas que lhe damos são culturais, mas nem todainterpretação feita sobre a surdez está sustentada em umateorização de base antropológica.

A ciência, no desejo de produzir conhecimentos capa-zes de explicar o desconhecido, inventou a surdez atravésdos níveis de perdas auditivas, das lesões no tímpano, dosfatores hereditários e adquiridos. Decorrentes da ciência ede padrões históricos estabelecidos por diferentes gruposculturais, foram criados distintos modos de se trabalhar comsujeitos acometidos pela surdez. Na clínica, terapias de fala,aparelhos auditivos, técnicas diversas de oralidade foram de-senvolvidas com a finalidade da normalização. Na família, abusca por especialistas, a dedicação integral aos filhos comsurdez e a inconformidade pela falta de audição, por muitosanos mobilizaram e mobilizam pais e mães. Na igreja, confis-sões, sentimento de culpa, pecado, tolerância e solidarieda-de com aquele que sofre são cada vez mais alimentados pelaspráticas religiosas. Na justiça, as mobilizações por salário epor direito a ser reconhecido – ora como diferente, ora comodeficiente, ora como sujeito de risco e ora como sujeito “nor-mal” – confundem os sujeitos. Na educação – recorte queinteressa neste livro –, a surdez como deficiência que marcaum corpo determinando sua aprendizagem é inventada atra-vés do referente ouvinte, das pedagogias corretivas, da nor-malização e dos especialistas que fundaram um campo desaber capaz de “dar conta” de todos aqueles que não se en-quadram em um perfil idealizado de normalidade.

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Durante anos, a surdez ocupou o centro das atençõesde experts de diferentes campos do saber. Grande parte detais experts era fortemente atravessada por discursos clíni-cos que se impunham na forma de descrever e classificar asurdez e os seus “portadores”. A maioria deles produziusaberes que orientaram grupos a olhar os sujeitos com sur-dez como capazes de serem “tratados”, “corrigidos” e “nor-malizados” através de terapias, treinamentos orofaciais,protetização, implantes cocleares e outras tecnologias avan-çadas que buscam, pela ciborguização do corpo, a condi-ção de normalidade.

Distante de querer somar mais uma referência na vastabibliografia que aborda a surdez como uma deficiência, bemcomo longe de querer somar mais uma referência sobremetodologias de ensino, proponho olhar a surdez de outrolugar que não o da deficiência, mas o da diferença cultural.Não nego a falta de audição do corpo surdo, porém deslo-co meu olhar para o que os próprios surdos dizem de siquando articulados e engajados na luta por seus direitos dese verem e de quererem ser vistos como sujeitos surdos, enão como sujeitos com surdez. Tal diferença, embora pare-ça sutil, marca substancialmente a constituição de uma co-munidade específica e a constituição de estudos que foramproduzindo e inventando a surdez como um marcador cul-tural primordial.

Assim como o sexo, que aparece marcado no corpofeminino e no corpo masculino, a surdez também marcaaquele que a possui, diferenciando os que ouvem daquelesque não ouvem. Sem cair nas oposições entre surdos e ou-vintes, quero mostrar que, anterior a qualquer narrativasobre a surdez, esta aparece como elemento diferenciadorcapaz de aproximar e mobilizar aqueles que a possuem emprol de causas e lutas comuns.

Romper com a concepção de surdez arraigada àdeficiência é um dos objetivos deste livro. Ele se propõe aconstruir uma outra narrativa sobre os surdos, inspiradanas discussões de base antropológica e culturalista. Sigo a

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escrita buscando referenciais que me possibilitem narrar ossurdos como sujeitos culturais que, por não nascerem terri-torialmente próximos (WRIGLEY, 1996), necessitam ser apro-ximados uns dos outros. Tal aproximação tem se dado,geralmente, nas escolas e, mais recentemente, nas associa-ções de surdos.

Com a compreensão da surdez como um marcador cul-tural primordial, quero dar as costas para a interpretaçãoclínica à qual comumente damos a palavra; meu interesse ésignificar a surdez dentro de um outro campo que, emborajá bastante divulgado por diferentes produções acadêmicase pela própria luta surda, ainda é constituído por poucosinteressados – a saber, o campo dos Estudos Surdos. Talcampo, formado por especialistas de distintas áreas do sa-ber (sobretudo por especialistas da Educação e da Lingüís-tica), está produzindo pesquisas que têm como foco ahistória dos surdos e da surdez contada a partir de umaperspectiva surda. Trata-se, nesse caso, de uma história quese constitui de forma tensionada e entrelaçada a determina-das épocas e contextos sociais, políticos, econômicos, cul-turais etc. e que está fortemente marcada por movimentosde resistência surda.

Vale esclarecer aqui, mesmo que minimamente, o queestou entendendo por resistência surda. Não estou afirman-do que os surdos se opuseram, ao longo de suas histórias,aos processos de articulação das formas de significação dasurdez feitas pelos ouvintes ou pelos próprios surdos. Uti-lizo resistência no sentido que lhe dá Foucault (1997), ouseja, como um movimento interno à própria “invenção sur-dez” e ao próprio acontecimento do “tornar-se surdo” – ummovimento de suspeita permanente sobre si e sobre as re-lações que os surdos vivenciam, um movimento de abertu-ra feito dentro da própria invenção “ser surdo” que rompecom fronteiras discursivas, espaciais e temporais. Nas pala-vras de Vilela (2006, p. 107), “resistir é criar um modo derespiração que rompe o espaço contínuo de um tempo li-near”. Os surdos, em tensão no grupo e consigo mesmos,

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são produtos de frutíferas relações de poder, sempre articu-ladas com as resistências dos próprios sujeitos.

A resistência ocorre onde existe poder, pois ela é insepa-rável das relações de poder. A um tempo só, a resistênciafunda as relações de poder, sendo, também, o resultadodessas mesmas relações. (VILELA, 2006, p. 117)

Resistir significa viver intensamente a relação com ooutro surdo que vive e sente a surdez de outras formas oude formas semelhantes e que compartilha das mesmas lu-tas. A negociação de significados para o ser surdo e para asurdez é uma negociação que se dá, portanto, no interiordas relações de poder e de resistência.

Com essas pontuações iniciais, objetivo dar o tom paraa leitura deste livro, qual seja, seguir na esteira das teoriza-ções culturais e, dentro delas, das teorizações dos EstudosSurdos, compreendendo a surdez como condição primordialna constituição de outros marcadores identitários surdos.

Uma vez já localizado o lugar onde me posiciono parafalar da surdez, vale outro esclarecimento: por que surdez eeducação? Sou pesquisadora e professora no campo da edu-cação. Tenho divulgado a surdez e os surdos dentro docampo dos Estudos Surdos, além de ter militado e produzi-do pesquisas em um grupo constituído na Universidade Fe-deral do Rio Grande do Sul (UFRGS), sob a coordenação deCarlos Skliar. Vejamos um pouco dessa história.

Na década de 1990, um grupo de pesquisadores sur-dos e ouvintes – do qual eu mesma fazia parte – aglutinou-se a partir da necessidade de orientação de mestrado e dedoutorado, uma vez que eles haviam sido selecionados paracursarem o Programa de Pós-Graduação em Educação daUFRGS. Todos eles estavam interessados em desenvolverinvestigações e estudos no campo da Educação Especial,mais especificamente, no campo da Educação de Surdos.Alguns professores daquele Programa assumiram o grupo ese dedicaram à orientação; porém, conforme nossos estu-dos iam tomando forma e ganhando peso acadêmico, co-meçou a surgir a necessidade de a Universidade ter um

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pesquisador na área específica da educação de surdos. Foinesse contexto que, em 1996, o professor argentino CarlosSkliar foi convidado, na qualidade de professor visitante,para integrar o Programa de Pós-Graduação em Educaçãoda UFRGS.

Com a entrada de Skliar no Programa, constituiu-se oNúcleo de Pesquisa em Políticas de Educação para Surdos(NUPPES), o que permitiu a abertura de mais vagas para oingresso de mestrandos e doutorandos. Desse modo, atémesmo pesquisadores surdos puderam iniciar uma outra fasede sua militância em prol da causa surda. Além disso, a uni-versidade, em parte graças ao seu caráter público, tornou-seum lugar privilegiado para o desenvolvimento de pesquisasque tinham, entre seus objetivos, a orientação das comuni-dades escolares na construção de uma outra forma de olhare narrar os sujeitos surdos que estavam na escola.

Conforme o núcleo foi se fortalecendo em seus estu-dos – fortemente marcados pela linha de pesquisa em Estu-dos Culturais em Educação, que já existia no Programa dePós-Graduação em Educação –, abriram-se novos espaçospara a entrada da comunidade surda na Universidade. Aabertura e o reconhecimento nacional e internacional doNUPPES foram muito rápidos e expressivos. Os fatores quemais contribuíram para isso foram principalmente a partici-pação da comunidade surda nas pesquisas que ali se reali-zavam, as publicações científicas em periódicos nacionais einternacionais, os cursos sobre educação e língua surdaministrados em todo o Brasil, os fóruns de discussões, aorganização e a realização do Congresso Latino-Americanode Educação Bilíngüe para Surdos, as assessorias às esco-las de todo o Brasil, a participação na construção de políti-cas educacionais para surdos etc.

No que se refere às políticas de educação, o grupo, pormeio de um convênio com a Secretaria de Educação do Es-tado, promoveu a formação de professores para atuarem naEducação de Surdos na rede pública estadual. Devido à reper-cussão desses trabalhos, o grupo foi várias vezes chamado

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por outros estados brasileiros para atuar como formador deprofessores, bem como para ministrar conferências, pales-tras e cursos. A disseminação da Língua Brasileira de Sinaisfoi uma das metas colocadas pelos pesquisadores, que bus-cavam parcerias em outros estados para fortalecer a pesqui-sa e a comunidade surda, já integrada na produção e navida acadêmica.

Na busca por outros pesquisadores que atuassem den-tro do recorte teórico dos Estudos Surdos, nomes como Lu-cinda Ferreira Britto, Eulália Fernandes, Regina Maria deSouza, Bárbara Gerner, entre outros, começavam a ser cita-dos e referenciados por nós.

Penso que, considerando a expressão que tal grupoteve no cenário nacional e internacional, não há como pen-sar a educação de surdos no Rio Grande do Sul e talvez noBrasil sem a sua presença e influência. Isso não significa, éclaro, que as discussões de fundo culturalista1 tenham seiniciado com esse grupo ou que as discussões no campodos Estudos Surdos tenham se restringido a ele. Muitospesquisadores dispersos pelo Brasil já faziam estudos sobrea surdez e a educação de surdos fora do âmbito clínico e,concomitantemente ao NUPPES, já se mobilizavam dentro deseus contextos para que os surdos fossem vistos e narradosa partir de discursos antropológicos, culturais e lingüísticos.

As produções desses pesquisadores nacionais, bemcomo as de vários estrangeiros, somadas às produções dospesquisadores do NUPPES, compõem o que atualmente

1 Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, podemos localizarum grupo de pesquisadores que não só divulgaram produções es-trangeiras que tinham como eixo central a cultura, como tambémproduziram outros conhecimentos que nos permitiram entender asurdez e os surdos dentro do debate das diferenças culturais. OsEstudos Surdos produzidos no Rio Grande do Sul, especialmenteno NUPPES, foram, desde o início, fortemente influenciados porpesquisadores que, naqueles anos iniciais, compunham a Linha dePesquisas Estudos Culturais em Educação: Alfredo Veiga-Neto, Ma-ria Lúcia Wortmann, Marisa Vorraber Costa, Norma Marzola, RosaHessel Silveira e Tomaz Tadeu da Silva. Todos eles muito contribuí-ram para a expansão e o aprofundamento dos Estudos Surdos.

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denomina-se Estudos Surdos. Sob essa designação, agru-pa-se uma ampla gama de temas, problemas e enfoques teó-ricos que muito têm contribuído para uma compreensão maisrefinada e matizada dos surdos e da surdez. É nesse hori-zonte que se situa este livro.

Vale salientar que, com as produções feitas nos últi-mos 15 anos no campo da educação de surdos, muitos te-mas podem ser vistos como que entrecruzados. Considerotais produções como um grande movimento de ruptura, tan-to com uma concepção de Educação Especial fechada em simesma e ainda fortemente marcada por um interesse clíni-co e corretivo, quanto com uma concepção de educação desurdos que essencializa a diferença surda. Essencializa por-que, muitas vezes, parte do pressuposto de uma “pureza”na forma surda de ser, pensar e relacionar-se. Não há umaforma correta, uma identidade surda mais bem definida queoutra, não há um conceito melhor, não há uma essênciasurda, nem mesmo um estágio que marque um desenvolvi-mento cultural desejado. Mas há formas diferentes de vivera condição de ser surdo e de pertencer a um grupo especí-fico. Há subjetividades surdas em relação, produzindo mar-cas culturais surdas (LOPES; VEIGA-NETO, 2006).

Colocadas as balizas que guiarão os interessados naleitura deste texto, passo a comentar algumas questões queàs vezes localizam a história dos surdos separadamente dahistória da surdez. Embora eu não compartilhe a interpreta-ção de que sujeitos surdos e surdez sejam acontecimentosque devam ser vistos e entendidos separadamente um dooutro, farei, em muitos momentos deste texto, o percursoque os separou. Tal separação entre história surda e histó-ria da surdez ganha força na literatura quando o movimen-to surdo começa a mostrar a necessidade de distinguirmosos processos de correção e constituição da comunidadesurda, bem como de reconhecermos o caráter cultural ex-presso na forma de ser surdo.

Reconheço que a posição que adoto – a saber, consi-derar a surdez como a primeira diferença que agrega os

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surdos – não é consensual; porém, mesmo na contramãode muitos pesquisadores e militantes surdos, assumo o ris-co de argumentar que natureza-corpo/surdez-cultura nãosão coisas que possam ser vistas separadamente (EAGLETON,2005). Assumir tal posição não significa pensar que, emmuitos momentos da história surda, a história da deficiên-cia auditiva não tenha aparecido para “abafar” ou desviar aatenção daqueles interessados em entender a surdez comocondição primeira e mínima de pertencimento a uma comu-nidade surda.

Ao atribuir a noção de surdez de forma não binarizadaao ser surdo, quero, antes de qualquer interpretação, fazeruma ruptura radical na forma de concebermos a própriasurdez. Ao contar fragmentos de acontecimentos históricosque foram produzindo a surdez, os sujeitos surdos e a cul-tura surda, proponho produzir, ancorada em outras pes-quisas, uma outra forma de olhar, interpretar e narrar adiferença surda.

A surdez como diferença primordial e cultural

Entender o surdo como um sujeito cultural é, para mui-tas pessoas que a ele são ligadas direta ou indiretamente,uma questão complexa e, por isso, de difícil abordagem.Complexa porque as representações culturais inscrevem-seem campos discursivos distintos, muitas vezes vistos comocontraditórios justamente por aqueles que se valem da cultu-ra para produzirem argumentos binários que legitimam lutassociais específicas; complexa, também, porque não há umaforma única nem mais adequada de conceituarmos cultura. Épraticamente trivial afirmar que a complexidade do conceitode cultura inscreve-se na história e nos movimentos que de-sencadearam muitos problemas, debates e embates filosófi-cos e políticos acirrados e, não raro, até mesmo sangrentos.

Entrar de forma articulada nas relações entre cultura esurdez permite-me tornar mais consistente a argumentaçãoque faço de que a surdez é um primeiro traço de identida-de, e não somente uma materialidade sobre a qual apenas

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discursos médicos se inscrevem. Sobre tal materialidade,pode inscrever-se qualquer saber que tenha como objeto asurdez ou o sujeito surdo, inclusive os saberes de cunhoculturalista. Diferentes discursos criam distintos significadospara a surdez, porém nenhum deles pode negar a materialida-de presente no corpo. Diante dessa existência (digamos) “na-tural” da surdez, há sentidos sendo criados a partir de modosparticulares de vivenciar a questão. Os significados são inse-paráveis da cultura em que se formam e circulam; são eles osresponsáveis pela nossa visão cultural do ser surdo; isso paranão citar as outras visões que estão no âmbito da clínica, daantropologia, da política, da economia etc.

Quero dizer que entender a surdez como um traço cul-tural não significa retirá-la do corpo, negando seu caráternatural; nem mesmo significa o cultivo de uma condiçãoprimeira de não ouvir. Significa aqui pensar dentro de umcampo em que sentidos são construídos em um coletivoque se mantém por aquilo que inscreve sobre a superfíciede um corpo.

Sem marcar oposições entre natureza e corpo, mas des-construindo ou contornando tal oposição, a surdez podeser vista dentro de um campo de ações construídas pelalinguagem. É a linguagem que permite a criação de um sis-tema de significações para representar coisas e negociarsentidos sobre elas. É sobre os sentidos que damos às coi-sas que construímos nossas experiências cotidianas e nos-sas interpretações sobre nós e os outros.

Se a linguagem nos permite entrar em um campo socialde produção de verdades e de representações, ela tambémnos permite inventar as próprias coisas; nesse caso especí-fico, inventar a surdez de muitas formas, dependendo dasrelações em que estamos mergulhados. Cultura, significa-do e comunicação estão tão intimamente intrincados quenão há como saber quando um termina para começar ooutro. Assim, entender os significados que damos à palavrasurdez ou à expressão ser surdo vai depender de um conjun-to de relações entre aqueles três elementos. Afirmar que asurdez é uma invenção é dizer que, sobre um corpo surdo,

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se inscrevem saberes que me permitem significar o sujeitosurdo dentro do contexto social, cultural e comunicativoem que ele está inserido. Não há como fazer significaçõessem que haja conhecimentos, representações sobre o que éser surdo e o que seja surdez. Para longe de uma essencia-lização, é importante frisar que não haverá invenção de sen-tidos se não houver materialidade e conhecimento dequalquer ordem produzindo condições para a sua criação.Conforme Hall (1997), não há como fugir aos significadosproduzidos no circuito da cultura, nem como nos livrarmosda cultura que nos faz seres produtivos e interpretativos. Comisso, posso afirmar que, se a palavra surdez remete a umsentido clínico e terapêutico, é porque a produzimos dessaforma – acontecimento que nos permite virar de costas paraessa interpretação e passar a operar com outras formas designificação. O sentido clínico também é uma invenção cul-tural, assim como o sentido antropológico, entre tantos ou-tros. Diante de tal compreensão, o que se torna imprescindívelé demarcar o terreno e escolher bem os parceiros que vãoajudar a definir um tipo de entendimento e um tipo de cons-trução de sentidos para a questão do ser surdo. É a partirdisso tudo que se pode compreender a surdez como umainvenção antropológica e cultural; é por aqui que olho e pro-curo pensar as comunidades e as subjetividades surdas.

Hall (1997), ao descrever o circuito da cultura, mostra aarticulação entre movimentos como os de representação,identidade, produção, consumo e regulação, intimamenteligados uns aos outros em torno de uma produção/inven-ção cultural. O termo invenção é utilizado, tendo como fun-damento o sentido que lhe atribui Wittgenstein (1979). Ascoisas são inventadas quando usamos a linguagem para fa-lar delas, quando elas passam a existir em nosso cotidiano,quando passam a ter nomes. Se passarmos a narrar a sur-dez dentro de circuitos não-clínicos e medicalizantes, pode-remos inventá-la de outras formas.

Mas por que insistir nessa preocupação em manter asurdez como uma “forma de falar dos surdos”?

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A resposta a essa pergunta é aparentemente simples:porque ela é a diferença primeira que possibilita a aproxi-mação surda e a diferenciação de outros não-surdos. Umouvinte pode ser amigo dos surdos, companheiro de luta,solidário com a causa surda, pesquisador na área, freqüen-tar a associação e as festas surdas; ele pode, enfim, tertodas as razões para ser aceito pelos surdos. No entanto,para a comunidade surda, qualquer ouvinte estará sem-pre sob suspeita justamente por não ser surdo. Será sem-pre um ouvinte entre surdos, mesmo que conviva anosentre eles.

Isso nos leva a pensar na surdez como elemento de umcircuito cultural que não pode ser esquecido ou relegado acomparações entre ouvintes e surdos. A surdez pela surdeznão existe. Para a surdez constituir-se em um caso, umadeficiência, uma marca de uma cultura, é preciso que a in-ventemos de determinadas formas ou de outras não mencio-nadas ou menos explícitas. Inventamos a surdez quando atransformamos em um caso a ser estudado, em números aserem levantados, em um problema a ser tratado, em umacaracterística de um grupo específico etc.

Nessa perspectiva, a invenção da surdez como diferen-ça primordial ganha status de verdade e de realidade quan-do começa a ser produzida nas narrativas surdas a partir deum entendimento que não é aquele marcado pelas práticasclínicas ou pela diferenciação entre deficientes e não-deficien-tes. A surdez é entendida como uma invenção quando avemos como um traço/marca sobre o qual a diferença seestabelece produzindo parte de uma identidade; quando ausamos para nos referirmos àquilo que não sou; quandoela é que mobiliza a formação de políticas de acessibilida-de; quando ela começa a circular em diferentes grupos comouma bandeira de luta pelo reconhecimento daquele que seaproxima, antes de qualquer outra razão, porque comparti-lha de uma experiência comum (ser surdo).

Daí se justifica por que ainda faz sentido falarmos desurdez.

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Talvez, para marcar claramente essa posição, seja inte-ressante entrar minimamente, para não sair de meu foco,na discussão sobre o próprio conceito de cultura.

Originalmente, a palavra cultura está relacionada à no-ção de cultivo agrícola. A palavra cultivo aponta para umaprodução orientada e regulada por práticas sociais distin-tas; agrícola, por sua vez, aponta para a idéia de atividade,de ação sobre o que poderíamos chamar de natureza. Oconceito de cultura, portanto, pode ser entendido como umaação, como uma possibilidade de intervenção sobre algo;assim, a palavra cultura coloca-se na própria ordem do mun-do material.

Desse modo, pode-se dizer que a cultura inscreve-sesobre uma materialidade que não está em oposição a elamesma, cultura; ao contrário, a própria natureza entra comocondição de possibilidade para que a cultura se estabeleçacomo tal. Por outro lado, a cultura, ou caráter cultural, podeser modificada, porém a base material sobre a qual ela seinscreve tem uma existência autônoma. Às vezes, isso éexemplificado da seguinte maneira: independentemente dosmuitos significados culturais que se possa atribuir à morte,o fato é que se morre... Isso equivale a dizer que, mesmoconsiderando que aquilo que chamamos de realidade sejauma construção lingüística – e, por isso mesmo, uma cons-trução social e cultural –, a negação da existência de umarealidade material não se sustenta racionalmente. Uma coi-sa é o sentido que damos a isso que chamamos de realida-de – um sentido que só pode ser pensado e formuladolingüisticamente. Outra coisa é assumir um idealismo ingê-nuo e reducionista que supõe nada mais existir a não ser asidéias que se faz das coisas e do mundo. Não se trata, aqui,de colocar em discussão a velha polêmica entre o idealismoe o realismo, mas entre o realismo e o anti-realismo, pois,como argumentou Richard Rorty e já explicamos em outrolugar (VEIGA-NETO; LOPES, 2007), “a questão não é tanto per-guntar ‘a realidade material é dependente da mente?’, mas‘que tipos de asserções verdadeiras, se alguma houver, en-contram-se em relações representacionais para com itens

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não-lingüísticos?’”. Em termos práticos, “na melhor das hi-póteses, o que se pode dizer é que, ‘mesmo que exista umarealidade para além do nosso entendimento, ela só poderáser pensada quando estiver sendo (minimamente) entendi-da e, nesse caso, já não estará mais para além do nossoentendimento’...”. Em outras palavras, essa realidade, en-quanto estiver para além e independentemente do nossoentendimento, não interessará no âmbito do que estamosaqui discutindo, pois não passará de uma suposta realida-de, de uma questão metafísica. Tal realidade só interessaráquando estiver conectada lingüisticamente a nós, isto é,quando estiver noâmbito da nossa linguagem e, por issomesmo, no âmbito da cultura.

Nessa concepção que busca entender cultura como cul-tivo e também como sistematização da vida, capaz de culti-var espaços e relações em torno de um dado objetivo, estáa necessidade de determinação de regras de convivência.Trata-se de regras que determinam o que é regulável e oque não é regulável. Tais dimensões não devem ser enten-didas dicotomicamente, mas como uma condição intrinse-camente colocada numa relação de dependência produtiva,ou seja, dentro de uma relação de produção de movimen-tos ambivalentes em que materialidade e convenções semantêm de outras formas. Como explica Eagleton, “regras,como culturas, não são nem puramente aleatórias nem rigi-damente determinadas – o que quer dizer que ambas en-volvem a idéia de liberdade” (EAGLETON, 2005, p. 13).

Retomando a reflexão sobre a surdez, pode-se dizerque a materialidade que a determina – como uma condiçãoda natureza – não está dissociada das regras que a narram eque a fazem aparecer em distintos contextos. A questão aquiestá na presença dela como algo material, em que regrasespecíficas são criadas a partir de uma série de contingên-cias culturais determinadas por saberes temporais espacial-mente específicos. Tais saberes podem criar sentidosdiferentes para a surdez sem que a ela se sobreponham.Assim, não podemos deixar simplesmente de falar na sur-dez, dado que esse é um termo que pode remeter à condição

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de não ouvir – associado imediatamente a regras de cura ede normalização vividas em diferentes períodos históricos.Podemos falar na surdez porque ela remete a uma condiçãoem que regras culturais se apegam para ganhar sentidos –sentidos sempre e imediatamente associados a regras confi-guradas a partir do (e com o) outro semelhante a mim como qual eu convivo.

Nas palavras de Eagleton,

Se somos seres culturais, também somos parte da nature-za que trabalhamos. Com efeito, faz parte do que caracte-riza a palavra “natureza” o lembrar-nos da continuidadeentre nós mesmos e nosso ambiente, assim como a pala-vra “cultura” serve para realçar a diferença. (EAGLETON, 2005,p. 15)

A diferença surda dá-se no âmbito da cultura sem ex-cluir a diferença primordial inscrita no corpo surdo – o não-ouvir. É verdade que a falta não deve ser um elementodefinidor do ser surdo, por isso não concentro minha argu-mentação na falta de audição, mas na surdez.

Aqui, convém marcar a diferença entre surdez e faltade audição. Talvez valha perguntar: existe alguma diferen-ça entre surdez e falta de audição? Sim. A diferença está nasnoções de normalização e de completude implicadas naidéia de “falta”. Não é disso que falo quando digo que asurdez, como algo que se inscreve no corpo, deve ser toma-da como a diferença primeira na defesa da cultura surda.

Entender a surdez como uma questão cultural talvezpareça um tanto estranho para alguns. Igualmente, pensaroutros grupos nessa mesma lógica culturalista também podeparecer estranho para aqueles que pensam segundo outrosreferenciais de racionalidade – seja fora das Filosofias daDiferença, seja fora dos registros da virada lingüística e dasperspectivas pós-estruturalistas. Nesses registros, não hácomo pensar por fora da cultura; nem a própria cultura podeser pensada de algum lugar fora dela mesma, pois isso im-plicaria aceitar que seria possível pensar a partir de um “lu-gar nenhum”. É preciso compreender que isso significa bem

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mais do que simplesmente dizer que a cultura influi naqui-lo que pensamos e dizemos. Condé (2004), ao discutir aobra de Ludwig Wittgenstein, diz que a elaboração de ummodelo de racionalidade deve considerar a forma de vidaque a produziu com seus usos e práticas sociais. Conside-rando tal afirmação, podemos dizer, então, que não há comopensar numa cultura em si, mas em acontecimentos vistosno interior de uma forma de vida que se organiza a partirde um universo de sentidos produzidos a partir de condi-ções comuns.

Com a aproximação entre o conceito de cultura comoalgo em si mesmo e o conceito de cultura que atribui à lin-guagem o papel da construção simbólica, estabeleceram-semuitas mudanças nas formas de pensar e de utilizar o con-ceito junto às comunidades que se narram dentro de cultu-ras específicas. A noção de diferença cultural coloca-sedentro da necessidade de estabelecer comparações entresujeitos pertencentes a grupos culturais distintos. Na rela-ção de aproximação e de diferenciação cultural (BURBULES,2003), grupos fortaleceram-se e mobilizaram-se na luta porse manterem incluídos em suas comunidades. A noção depertencimento a determinados grupos foi um dos aconteci-mentos que marcaram não só a compreensão do termo cul-tura, como também a dos termos identidade e diferença.

Conforme expliquei em outro texto, onde problemati-zo as possibilidades de leitura e tradução da diferença (LO-PES, 2007), identidade e diferença podem ser vistas comosendo condição uma para outra, se entendermos a diferen-ça no limite da tradução. As inúmeras traduções da diferen-ça em identidades, para que o outro seja capturado epretensamente “desvendado”, mostram a impossibilidadeda própria tradução e da captura do outro. Sem rompermoscom a filiação da diferença à identidade, não haverá porque ficar pensando e querendo falar, escrever e produzirsaberes sobre a diferença. Compreender a diferença comosimples diferença, sem fixá-la em identidades nem minimi-zá-la na diversidade, pressupõe, no caso dos surdos, não

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mais pensar se eles são ou não diferentes dos ouvintes, seeles são ou não diferentes de outros grupos culturais (étni-cos, religiosos etc.). No entanto, continuar pensando a di-ferença como marca identitária parece ainda ser importantepara o fortalecimento político da comunidade surda. Aindaé preciso, em muitos espaços, incluindo aí os próprios es-paços acadêmicos, manter a diferença como identidade.

Em suma, proponho olhar a surdez não pela falta, maspor aquilo que ela marca como diferente. A surdez, antesde qualquer outra diferenciação que possa ser estabeleci-da, chama a presença do som para o contraponto. Não apro-xima o som para que uma relação de oposição se estabeleça,mas para que uma relação de diferenciação tenha condi-ções de se colocar. Quem tem surdez parte de uma condi-ção narrada como diferenciada em relação a quem temaudição. Muito além de um corpo, aqui estão implicadasformas de se relacionar, formas de se identificar com algunse se distanciar de outros, formas de se comunicar e de utili-zar a visão como um elo aproximador entre sujeitos seme-lhantes. A surdez, nessa narrativa, é marcada pela presençade um conjunto de elementos que inscrevem alguns sujei-tos em um grupo, enquanto que outros são deixados defora desse grupo. Assim, as formas de comunicação advin-das da condição surdez são um dos elos mais fortes da pró-pria comunidade, uma vez que nosso modo de ver, entendere nos comunicarmos entre pares se dá efetivamente segun-do processos no comum, para os quais as marcas identitá-rias são uma condição radicalmente necessária.

Estudos Surdos e Educação

Os Estudos Surdos em Educação podem ser pensados comoum território de investigação educacional e de proposi-ções políticas que, através de um conjunto de concepçõeslingüísticas, culturais, comunitárias e de identidades, defi-nem uma particular aproximação – e não uma apropriação– com o conhecimento e com os discursos sobre a surdeze o mundo dos surdos. (SKLIAR, 2001, p. 29)

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Embora para muitos a expressão “Estudos Surdos” possaparecer incômoda ou até estranha, para aqueles que divul-gam e produzem esses estudos segundo uma orientaçãoculturalista, essa expressão é uma forma de marcar uma posi-ção política e epistemológica. Os estudos que têm os sujeitossurdos em seu centro partem da compreensão da surdez comouma diferença que agrega, gera e alimenta tanto relações comoutros surdos quanto tensões e diferenciações inventadas nointerior do próprio grupo. Trata-se de uma diferença que nãoprocura dizer quem é o surdo, como ele deve fazer para desen-volver a identidade surda, como ele deve fazer para aprenderetc., mas que quer – na combinação entre as diferentes pers-pectivas teóricas que possibilitam pensar quaisquer relações apartir da centralidade da cultura – problematizar a surdez comouma marca que inclui alguns sujeitos e exclui outros, que de-termina algumas condições de vida e de comunicação e que,principalmente, determina formas de organização de vida emum dado grupo cujas formas de estar e de se relacionar com ooutro são compartilhadas.

A expressão “Estudos Surdos” surgiu no Brasil a partirde uma tentativa de tradução dos chamados deaf studies,que eram realizados por pesquisadores de outros países,principalmente dos Estados Unidos. É difícil – e aqui, pou-co relevante – determinar a origem dos deaf studies; mas,com alguma segurança, pode-se afirmar que o lingüista Wil-liam Stokoe foi um dos primeiros pesquisadores que, emtorno de 1960, começaram a produzir nesse campo. Ele uti-lizava critérios lingüísticos para afirmar outro status para alíngua de sinais. Em contraposição a Saussurre – que acre-ditava que a língua de sinais se tratava de um sistema semió-tico elaborado –, Stokoe descreveu a Língua Americana deSinais como uma língua natural de um grupo cultural espe-cífico. Com tal afirmação, Stokoe tornava visível que a “es-trutura cultural” dos sujeitos surdos é constituída de outraforma, na medida em que a língua está estritamente vincu-lada à cultura. Vinte anos depois desses estudos iniciais,Stokoe (1980) publicou Sign and culture, insistindona rela-ção entre comunidade, cultura, língua e comunicação.

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A partir de tal entendimento, muitos pesquisadores de-dicaram-se a analisar e a problematizar aspectos relaciona-dos à Língua de Sinais em seus respectivos países. No Brasil,tal discussão não tardou a chegar.

Por volta de 1980, no Rio de Janeiro e em São Paulo,alguns pesquisadores, educadores, psicólogos, filósofos esociólogos foram aos poucos se filiando à questão surda.Buscavam entender como a língua de sinais atravessava asidentidades dos sujeitos que a compartilhavam.

A história surda,2 embora marcada por episódios comoos citados acima, em que a diferença surda passa a ser men-cionada e “aceita”, é construída por muitos movimentos deoposição e resistências. Com as conquistas surdas e as “des-cobertas” em torno da língua de sinais, professores come-çam a reivindicar, juntamente com lingüistas, historiadores,antropólogos e psicólogos, outras condições de ensino ede vida para pessoas surdas. As lutas pelo reconhecimentoda língua de sinais nas escolas, pelo reconhecimento dacomunidade surda e pelo fim de práticas oralistas nos tra-balhos com sujeitos surdos ocuparam o cenário educacio-nal com mais expressão acadêmica, social e política só apartir do final da década de oitenta e início da de noventado século XX.

A formação de pesquisadores e professores de surdoscomeçou a acontecer nesse mesmo tempo. Eles lutavam paraque a comunidade surda não se submetesse às imposiçõesouvintes de representações sobre os surdos e sobre a surdez.Filiaram o movimento surdo aos movimentos étnicos, impri-mindo assim a compreensão que pensavam ser a melhor paraa surdez, ou seja, entendendo-a como uma diferença forjadano e pelo grupo social. Ser surdo passou a representar, a par-tir dos anos oitenta do século passado, inclusive no Brasil, serintegrante de um grupo étnico minoritário.

2 No campo dos Estudos Surdos é comum o uso de expressões taiscomo história surda, identidades surdas, narrativas surdas, comuni-dades surdas, línguas surdas, conquistas surdas, movimentos sur-dos etc.

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Claro que é importante lembrar que essa não foi umavisão aceita com tranqüilidade, principalmente por aquelesque atuavam no campo da Educação. Entender a diferençasurda como uma diferença cultural e admitir que a línguade sinais seja uma língua própria dos surdos é, ainda hoje,uma dificuldade em muitos espaços educativos e sociais.Essa é uma luta de idas e vindas. As conquistas não ocor-rem de forma homogênea nas diferentes regiões brasilei-ras, nem mesmo no interior de cada região.

Com a forte ênfase na formação de professores e pes-quisadores surdos, principalmente no campo da Educação,os cursos de magistério começaram a ser os mais procuradospelos surdos para fazerem a sua formação. A luta era pelaqualificação de um corpo de profissionais surdos capazes deservirem como referência para crianças e jovens surdos.

Com a ênfase colocada no caráter cultural da surdez ecom a compreensão de que os surdos são sujeitos que per-tencem a uma minoria lingüística cultural, o debate da edu-cação de surdos foi retirado do contexto da EducaçãoEspecial, fortemente marcada pela ênfase numa dimensãoclínico-medicalizadora. Não quero dizer que a partir de 1960os discursos clínicos tenham sido negados e excluídos dahistória surda, pois eles continuam até os dias de hoje fa-zendo investigações e ações de profilaxia. Entretanto, taisolhares médicos não entram no que chamamos hoje de Es-tudos Surdos.

Karnopp (2004), ao trabalhar a questão da língua desinais e da educação de surdos, argumenta que o reconhe-cimento político e social da diferença surda e da língua desinais é recente. Aqui cabe um comentário. Embora o reco-nhecimento político da diferença surda seja recente no Bra-sil, como aponta Souza (1998), a língua de sinais já circulano Brasil com dimensão política – se é possível colocar des-sa forma – desde a chegada de Hernest Huet ao Rio de Ja-neiro, em 1857. Huet fundou uma escola residencial no Riode Janeiro, e dela nasceu, com o apoio do Imperador D.Pedro II, o Instituto de Educação de Surdos, existente até

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hoje como instituição federal, agora chamado de InstitutoNacional de Educação de Surdos (INES). É importante des-tacar que vários saberes surdos foram produzidos no e apartir do INES. A produção de tais saberes foi possível gra-ças à convivência entre os surdos no espaço escolar.

Citando Wrigley, Karnopp (2004) mostra o quão recen-te é o reconhecimento da língua de sinais e da educação desurdos. Essa autora reporta-se às declarações da UNESCO,das Organizações Mundiais da Saúde (OMS), da FederaçãoMundial dos Surdos – World Federations of the Deaf (WFD)– e do Encontro Global dos Especialistas sobre o statuslingüístico das línguas de sinais para afirmar que os surdosainda precisam lutar para terem direitos mínimos respeitados.

Wrigley (1996) afirma que foi apenas em 1984 que aUNESCO declarou que a língua de sinais deveria ser reco-nhecida como um sistema lingüístico. Karnopp diz que “aFederação Mundial do Surdo, em julho de 1987, adotou suaprimeira Resolução sobre Língua de Sinais, rompendo comuma tradição oralista” (KARNOPP, 2004, p. 104). Na mesmalinha, essa autora argumenta que o Encontro Global de Es-pecialistas, em dezembro de 1987, apontou que pessoas sur-das deveriam ser reconhecidas como uma minoria lingüísticae, por isso, teriam direito a intérpretes de língua de sinais.Conforme a lei federal 10.436, de 24 de abril de 2002, aLíngua Brasileira de Sinais foi oficializada no Brasil.

Atualmente, devido às conquistas da comunidade sur-da, em articulação com pesquisadores de várias instituiçõesde ensino superior, muitos são os cursos de Intérpretes deLíngua Brasileira de Sinais oferecidos pelas universidades fe-derais brasileiras. Também os cursos de Pedagogia, em todo opaís, estão vivendo o auge de suas reformulações curricularespara que a língua de sinais seja colocada como uma disciplinaobrigatória. O mesmo acontecerá nos próximos anos com osdemais cursos de licenciatura e de fonoaudiologia.

Na linha de discussões recentes, embora tardias, no XVCongresso Mundial de Pessoas Surdas, realizado em Madrientre os dias 16 e 22 de julho de 2007, os surdos reafirmaram

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que as pessoas surdas têm os mesmos direitos humanos queos outros grupos sociais e que a diversidade é um fator in-trínseco à comunidade surda. No documento, traduzido porIrene Lagranha, da Federação Nacional de Educação e Inte-gração dos Surdos (FENEIS/RS), é mencionado o reconheci-mento da língua de sinais como um instrumento cultural.Acrescento que a língua de sinais pode ser entendida, decerta maneira, como a materialização da própria cultura.

As línguas de sinais são instrumentos essenciais para trans-mitir cultura e conhecimento. O status e o reconhecimen-to das línguas de sinais no mundo devem ser reforçadosmediante políticas lingüísticas, pesquisa e ensino da línguade sinais. As línguas de sinais deverão fazer parte do currí-culo escolar de cada país. (DECLARAÇÃO MUNDIAL DE EDUCA-ÇÃO DE SURDOS, 2007)

A comunidade surda – organizada em associações erepresentada pela FENEIS –, regionalmente articulada àsuniversidades, tem mostrado sua força e tem se potencia-lizado à medida que a militância surda se qualifica e conse-gue lutar e entrar nas instituições de ensino superior, umespaço que até há pouco tempo praticamente não era fre-qüentado por surdos. Nessa e em outras lutas travadas emprol do reconhecimento surdo é que os Estudos Surdos fo-ram e continuam sendo produzidos e divulgados.

Carlos Skliar (1997a), escrevendo sobre a necessidadede olhar de outras formas para os sujeitos surdos, bem comode pensar outras possibilidades de articulação teórica paraas pesquisas e práticas educacionais com surdos, desenvol-ve alguns argumentos e aponta algumas potencialidades te-máticas que ajudam a definir, no final dos anos noventa, oque hoje nos referimos como sendo Estudos Surdos. O au-tor indica, entre outras sugestões,

[...] um refinamento na análise dos mecanismos de podere de saber exercidos pela ideologia dominante na educa-ção dos surdos [...];

[...] estabelecer ou uma redefinição dos problemas que sesupõem estar na base da educação para os surdos; ou bem

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um olhar completamente novo sobre aquilo que é real-mente variável nela;

[...] ocorrer uma ampliação dos sentidos e significados acercado papel que cabe à educação dos surdos, a partir de umadefinição mais extensa e crítica de um campo para a edu-cação de surdos [...] que compreenda as diferentes forçasque existem dentro e fora da escola;

[...] ampliar-se os espaços conquistados pelos surdos den-tro de uma educação, e não depender de uma concessãofragmentária e descontínua dos ouvintes. (SKLIAR, 1997a,p. 255-256)

Apesar de essa citação ter sido um pouco longa, pensoque ela nos dá um panorama de como se configurou a histó-ria dos Estudos Surdos no Brasil e, mais especificamente, noRio Grande do Sul, principalmente a partir da década de 1990.

De lá para cá, muitos foram os desdobramentos e asarticulações teóricas no campo dos Estudos Surdos. No en-tanto, é interessante frisar o quanto foi necessário prescre-ver e recomendar, em muitos momentos, os estudos quedeveriam ser realizados para que pudéssemos fazer umaoutra história surda. Um dos textos mais pedagógicos e,assim, mais prescritivos que Skliar escreveu no Brasil tal-vez tenha sido o que citei acima: A reestruturação curriculare as políticas educacionais para as diferenças: o caso dossurdos. Com os Estudos Surdos, ficou cada vez mais eviden-te a necessidade de pensarmos e colocarmos em ação no-vas políticas de educação e novos currículos para as escolasde surdos – currículos que contemplem e possibilitem aconstrução da história surda, e não da história da surdez.

Contribuindo para a consolidação dos Estudos Surdosno Brasil, muitos foram e ainda são os pesquisadores sur-dos e ouvintes que se agregaram e se agregam na busca deprodução acadêmica, formação profissional, inserção naescola de surdos e na comunidade surda. Entre os gruposque podem ser citados, temos:

� Grupo de Estudos Surdos (GES), formado na Univer-sidade de Campinas/SP;

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� Grupo de Estudos sobre Linguagem e Surdez (GELES),na Universidade Federal do Rio de Janeiro;

� Núcleo de Pesquisa em Políticas de Educação de Sur-dos (NUPPES), na Universidade Federal do Rio Gran-de do Sul;

� Grupo de Estudos Surdos (GES), na Universidade Lu-terana do Brasil;

� Grupo de Estudos Surdos (GES), na Universidade Fe-deral de Santa Catarina;

� Grupo de Pesquisa em Educação de Surdos (GIPES),formado por pesquisadores de sete universidades lo-calizadas no Estado do Rio Grande do Sul.

Os pesquisadores atuantes nesses grupos – assim comooutras pessoas, que militam na causa surda, que às vezestrabalham de forma solitária ou em parceria com outros pro-fissionais – organizaram e continuam organizando eventosque têm mobilizado a academia, as escolas, as famílias, ascomunidades surdas e os agentes públicos. Graças, em boaparte, a tais eventos, a produção acadêmica nos campos daEducação e da Lingüística, realizada em outros países, co-meçou a circular no Brasil. Muitos pesquisadores do campodos Estudos Surdos têm sido freqüentemente convidados aministrar cursos e conferências e a participar como profes-sores visitantes em universidades brasileiras. Estiveram nonosso país – a partir da grande mobilização de alguns pes-quisadores, tais como Regina Maria de Souza, Lucinda Fer-reira Britto, Zilda Gesuelle, Maria Cecília Góes e Carlos Skliar– os especialistas James Gregory Kyle (coordenador do Cen-tre for Deaf Studies, da Bristol University), Bárbara GenerGarcia (pesquisadora da Gallaudet University), Jemina Na-pier (da Macquarie University), entre outros.

A formação de um quadro de pesquisadores atuantesno movimento surdo e na academia foi crescendo e se mul-tiplicando nas universidades brasileiras. Mestres e douto-res, a partir do final da década de noventa e início dos anos2000, começaram a dar retornos substanciais de suas pesqui-sas, fortemente marcadas por atravessamentos lingüísticos e

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embaladas pela necessidade de difundir a educação de sur-dos a partir de bases sociais, culturais e políticas.

NUPPES: produção e militância

Na história da produção e da formação acadêmica bra-sileira no campo da educação de surdos, o Rio Grande doSul destacou-se ao longo dos últimos 15 anos. Ao afirmar isso,não estou desconsiderando aqueles programas de pós-gradua-ção em Educação no Brasil que pontualmente desenvolviam econtinuam desenvolvendo investigações e formando especia-listas, tendo como foco principal a educação de pessoas sur-das. Quero tão somente dar destaque a um grupo de pessoasque se reuniram sob o abrigo institucional da UniversidadeFederal do Rio Grande do Sul e de cujos esforços resultouuma considerável produção acadêmica e uma intensa militân-cia, no campo dos Estudos Surdos. Trata-se do Núcleo de Pes-quisa em Políticas de Educação para Surdos (NUPPES), dentrodo qual foram realizados vários projetos de pesquisa e de ondesaíram muitas publicações – na forma de dissertações, teses,livros e artigos publicados em periódicos nacionais e estran-geiros – que hoje circulam amplamente. Até mesmo parte doque discuto neste livro pode ser considerado como um desdo-bramento daquela produção.

Conforme já referi, o Núcleo de Pesquisa em Políticasde Educação para Surdos (NUPPES), do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do RioGrande do Sul, sem dúvida, contribuiu muito para algunsavanços sociais, educacionais e políticos no que concerneà causa surda, no Brasil. Tendo como aliada a Linha dePesquisas Estudos Culturais em Educação daquele mesmoprograma de pós-graduação, o NUPPES, durante muitosanos, funcionou como um centro tanto produtor e irradia-dor de conhecimentos e formador de especialistas no cam-po dos Estudos Surdos quanto catalizador de ações políticasem prol dos direitos dos surdos.

Resultou certamente daí que – um tanto na contramãoda história da inclusão vivida no Brasil – o Estado do Rio

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Grande do Sul, dentro de seus limites, conseguiu traçar novas(e inovadoras) diretrizes para a educação de surdos. Taisdiretrizes foram estabelecidas por meio de uma ação con-junta entre pesquisadores do NUPPES, pesquisadores e pro-fessores militantes na educação de surdos, FENEIS,Secretaria Estadual de Educação3 e Fundação de Articula-ção e Desenvolvimento de Políticas Públicas para PessoasPortadoras de Deficiência e Pessoas Portadoras de Altas Ha-bilidades no Rio Grande do Sul (FADERS).

Sempre agindo de forma articulada, os pesquisadoresdo NUPPES e a FENEIS buscaram articular novas políticasde formação de professores e militaram junto com órgãosrepresentativos do Estado, pela criação de políticas que con-templassem a diferença surda e o direito surdo de ter aces-so a uma escola de surdos; lutaram para que os programastelevisivos fossem traduzidos; fomentaram a necessidadeda divulgação da LIBRAS entre os surdos, as escolas e asfamílias de surdos; lutaram para que pesquisadores e pro-fessores surdos tivessem uma formação sistemática.

Por intermédio dos eventos promovidos, os sujeitossurdos foram colocados e colocaram-se em outras posiçõessociais e escolares. Um evento organizado em Porto Alegrepelo NUPPES – do qual, na época, faziam parte Carlos Skliar(coordenador), Adriana da Silva Thoma, Gládis Perlin, Li-liane Ferrari Giodani, Madalena Klein, Márcia Lise Lunardi,Maura Corcini Lopes, Mônica Dusso de Oliveira, OttmarTeske e Sérgio Lulkin – marcou a história surda e contri-buiu para a inscrição do movimento surdo entre os movi-mentos sociais em prol do reconhecimento das diferençasculturais. Esse evento – o III Congresso Latino-americanode Educação Bilíngüe para Surdos, realizado em 1999 – reu-niu centenas de sujeitos surdos. Em um pré-congresso or-ganizado por eles mesmos, reuniram-se e redigiram um

3 Aqui é preciso registrar a longa e importante contribuição da pro-fessora Selene Barbosa, incansável militante da causa surda e pro-motora da articulação entre o ambiente acadêmico e a Secretaria deEducação do Estado do Rio Grande do Sul.

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documento intitulado “A educação que nós surdos quere-mos”. O documento continha esclarecimentos sobre a formacomo os surdos gostariam de ser narrados; diretrizes surdaspara a educação (desde a educação infantil); discussões acercada Língua Brasileira de Sinais; o direito a intérpretes e a ne-cessidade do reconhecimento, pelo Estado, da LIBRAS comouma língua oficial. Tal documento foi entregue em ato oficialao então Governador do Estado do Rio Grande do Sul, Olí-vio Dutra, após uma passeata de aproximadamente 2000 pes-soas que estavam presentes naquele III Congresso.

O Congresso e a entrega do documento elaborado pe-los surdos deram visibilidade a outras ações que vinhamsendo realizadas dentro e fora da Universidade Federal doRio Grande do Sul. Pode-se considerar que o III Congressoalavancou decisivamente as ações do NUPPES. A partir daí,sob a coordenação do professor Carlos Skliar, mestrandose doutorandos trabalharam com afinco na produção de pes-quisas que possibilitaram mostrar a diferença surda nãonarrada pelo viés tradicional da Educação Especial, maspelo viés da cultura. Esses acontecimentos trouxeram, paraas discussões no campo da educação de surdos, outros atra-vessamentos teóricos que permitiram aos pesquisadorespensar a surdez dentro de novas bases epistemológicas, atéentão desconhecidas ou pouco divulgadas. Partidários daidéia de que a surdez é uma invenção cultural, eles introdu-ziram em suas pesquisas e produções textuais novas refle-xões sobre identidade, diferença, comunidade e diversidade.Com isso, reposicionaram a surdez, deixando para trás osdiscursos clínicos e reabilitadores que, desde há bastantetempo, têm sido dominantes nas representações sobre asurdez. Isso não significa que o NUPPES ignorava tais dis-cursos; pelo contrário, em quase tudo o que ali era produ-zido havia consistentes problematizações sobre as práticasde normalização e de correção a que se submetem os sur-dos. Pode-se dizer até mesmo que não foram poucos osesforços para tornar explícitas as redes discursivas em quea surdez fora narrada como uma deficiência e os surdoshaviam sido levados a se narrarem como deficientes.

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Narrar os surdos a partir da concepção da cultura nãofoi algo que se iniciou com o NUPPES. No próprio Estado doRio Grande do Sul – mais especificamente, na UniversidadeFederal de Santa Maria – e principalmente nos Estados deSão Paulo e Rio de Janeiro, esse era um movimento já inicia-do. No entanto, logo que os pesquisadores do NUPPES co-meçaram a trabalhar juntos, em meados da década de 1990,houve uma espécie de potencialização de forças, até entãodispersas. As produções acadêmicas passaram a ser maisaprofundadas e regulares, graças às pesquisas de mestradoe de doutorado que estavam sendo ali realizadas. As dis-cussões e produções de pesquisas estavam alicerçadas napromoção de modelos lingüísticos, na importância do co-nhecimento da estrutura da língua de sinais e na divulga-ção do bilingüismo como uma forma de compreensão dacondição de ser surdo em uma sociedade ouvinte. Nutrin-do-se das discussões feitas a partir da lingüística e fixadasna necessidade de visibilizar a diferença surda e divulgar alíngua de sinais, aqueles pesquisadores investiram na apro-ximação da comunidade surda com os professores de sur-dos da universidade. A democratização da produçãoacadêmica realizada no NUPPES foi um dos primeiros mo-vimentos do grupo. Nesse movimento, dissertações de mes-trado realizadas em várias universidades (para pensar aeducação e a língua surda sob um enfoque culturalista eantropológico) passaram a circular com mais facilidade, so-mando-se à produção que se realizava no NUPPES.

Em todo esse processo, os professores que trabalha-vam com surdos não só começaram a buscar o conhecimen-to da língua surda e a contratar professores surdos paraservirem de “modelo cultural” para outros surdos, como tam-bém procuraram articular outras formas de trabalhar comseus alunos. Interessante foi perceber que tanto os pesqui-sadores quanto os professores que trabalhavam diretamen-te com os alunos surdos não demoraram em sentir anecessidade de outras formas de olhar e de trabalhar suasquestões. Nesse movimento, foi muito importante a entradade pesquisadores surdos na universidade. Com a presença

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marcante dos surdos como pesquisadores e como sujeitosparticipantes de fóruns de discussão e de pesquisas na áreade Educação no espaço da academia, aconteceram muitasmudanças. Além de possibilitar a formação de professorese de pesquisadores surdos, o NUPPES também gerava, nacomunidade científica, na comunidade surda e naqueles quedireta ou indiretamente se relacionavam com surdos, ou-tras representações e outras verdades sobre esses sujeitos.

Skliar (2001), ao afirmar que os Estudos Surdos em Edu-cação devem gerar reflexões orientadas em quatro níveis,mostra o desenho das produções feitas a partir da interfacecom outros estudos de fundo culturalista. Os níveis, paraSkliar, são:

um nível de reflexão sobre os mecanismos de poder/sa-ber, exercidos pela ideologia dominante na educação dossurdos [...];

um nível de reflexão sobre a natureza política do fracassoeducacional na pedagogia para os surdos [...];

um nível de reflexão sobre a possível desconstrução dasmetanarrativas e dos contrastes binários tradicionais naeducação de surdos;

um nível de reflexão acerca das potencialidades educacio-nais dos surdos que possa gerar a idéia de um consensopedagógico. (SKLIAR, 2001, p. 15)

Considerando os níveis citados pelo autor e toda a ar-ticulação mantida com a comunidade surda e com os teóri-cos no campo da Educação, apresento boa parte dos temasque foram desdobrados em pesquisas dentro do NUPPES.São eles: a história da medicalização surda e do ouvintis-mo; as histórias escolares e do currículo na escola especiale de surdos; as produtivas oposições surdo/ouvinte na ge-ração de políticas sociais e na comunicação; a produçãodos surdos e da surdez na mídia; a invenção de práticaspedagógicas para o trabalho com surdos; a inclusão surdaentre surdos e a inclusão surda entre ouvintes; o intérpretede língua de sinais; o trabalho na formação e na históriasurda; a comunidade e os elos identitários surdos; a língua

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escrita de sinais; a participação surda na sociedade, currí-culo e escola de surdos etc.

Vale fazer aqui um parêntese, a fim de esclarecer aqui-lo que Carlos Skliar começou a nomear como ouvintismo.Ouvintismo, para Skliar, pode ser entendido como

representações dos ouvintes sobre a surdez e sobre ossurdos [...]. Trata-se de um conjunto de representações dosouvintes, a partir do qual o surdo está obrigado a olhar-see a narrar-se como se fosse ouvinte. (SKLIAR, 2001, p. 15)

Em outro texto, afirmo que

o ouvintismo pode ser colocado como um conjunto depráticas culturais, materiais ou não, voltadas para o proces-so de subjetivação do “eu” surdo. Essas práticas deixammarcas visíveis no corpo, assim como imprimem uma for-ma, um tipo de disciplina e de sujeição surda aos valores,padrões, normas, normalidade e médias ouvintes. (LOPES,2002, p. 102)

A história surda está marcada por ouvintismos que ul-trapassam uma materialidade visível e abrangem verdadesque nos orientam e que (con)formam olhares e sujeitos sur-dos ou não-surdos. Devido ao caráter histórico e invasivodas práticas ouvintistas, o movimento surdo pelo direito deser narrado dentro das discussões étnicas tem de ser cons-tantemente renovado para que não sucumba a uma espéciede tradição ouvintista.

Fechando o parêntese aberto acima, volto a focar oNUPPES. Diferentes pesquisadores integraram esse grupo.Alguns deles permaneceram no grupo, do início até seu térmi-no, em 2006; outros entraram durante a existência do grupo;outros, ainda, saíram e criaram outros grupos de pesquisa.Por exemplo, Ottmar Teske coordenou o Centro de Estu-dos Surdos na Universidade Luterana do Brasil (ULBRA);Ronice Quadros coordenou, na Universidade Federal deSanta Catarina (UFSC), o Grupo de Estudos Surdos, atual-mente coordenado por Gládis Perlin. Além dos já mencio-nados fundadores do NUPPES, também compuseram o

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grupo: Elisane Rampelotto, Nídia de Sá, Gisele Rangel (pes-quisadora surda), Wilson Miranda (pesquisador surdo), Mô-nica Dusso, André Reichert (pesquisador surdo), LodenirKarnopp, Marianne Stumpf (pesquisadora surda); CarolinaHessel Silveira (pesquisadora surda), Ricardo Martins e Li-zianne Batista Cenci.

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