fundamentos historicos biologicos e legais da surdez

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  • Liliane Assumpo Oliveira

    Fundamentos Histricos, Biolgicos e Legais da Surdez

    IESDE Brasil S.A. Curitiba

    2011Este material parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A.,

    mais informaes www.iesde.com.br

  • IESDE Brasil S.A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel Curitiba PR 0800 708 88 88 www.iesde.com.br

    Todos os direitos reservados.

    2010 IESDE Brasil S.A. proibida a reproduo, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorizao por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

    Capa: IESDE Brasil S.A.

    Imagem da capa: IESDE Brasil S.A.

    O48f Oliveira, Liliane Assumpo. / Fundamentos Histricos, Biolgicos e Legais da Surdez. / Liliane Assumpo Oliveira. Curitiba:

    IESDE Brasil S.A., 2011152 p.

    ISBN: 978-85-387-1715-7

    1. Surdez. 2. Bilinguismo. 3. Libras. 4. Metodologias. 5. Leis. I. Ttulo.

    CDD 376.33

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  • Liliane Assumpo Oliveira

    Especialista em Educao Especial pelo Instituto Brasileiro de Ps-Graduao e Extenso (IBPEX). Licenciada em Educao Fsica pela Pontifcia Universidade Catlica do Paran (PUCPR). Atua desde 1998 como professora bilngue de Edu-cao Infantil e Sries Iniciais do Ensino Fundamental, no Colgio Estadual para Surdos Alcindo Fanaya Jnior. Intrprete de Libras desde 1993, atua em escolas, cursos de graduao e ps-graduao nas modalidades presencial e EAD, pales-tras e outros eventos. Certificada pelo MEC, em 2007. Intrprete do Grupo Educa-cional Uninter desde 2008. Scia-diretora do Centro de Educao Infantil Brincar de Aprender, desde 2003.

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  • Sumrio

    A surdez: noes de anatomia e fisiologia da audio ............................................................ 11

    O rgo da audio e do equilbrio .................................................................................... 11

    Etiologia ........................................................................................................................................ 13

    Tipos e graus das perdas auditivas ..................................................................................... 14

    O implante coclear .................................................................................................................... 14

    Histria da educao de surdos: da Antiguidade Idade Moderna ...................................... 29

    A Era Crist ................................................................................................................................... 30

    Final da Idade Mdia e Idade Moderna ............................................................................ 31

    Sculo XVIII .................................................................................................................................. 34

    Histria da educao de surdos: Idade Contempornea ........................................................... 43

    Difuso dos mtodos na Europa e Amrica..................................................................... 44

    Histria da educao de surdos no Brasil ........................ 55

    A chegada de novos mtodos .............................................................................................. 56

    A incluso ..................................................................................................................................... 57

    Cronologia dos ltimos anos ................................................................................................ 58

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  • Oralismo e Comunicao Total ............................................ 65

    Oralismo ....................................................................................................................................... 65

    Comunicao Total ................................................................................................................... 67

    Bilinguismo ................................................................................. 75

    Proposta bilngue ...................................................................................................................... 75

    Aquisio da linguagem ......................................................................................................... 76

    O processo de escolarizao ................................................................................................. 76

    Concepes de surdez............................................................ 87

    Viso clnico-teraputica ........................................................................................................ 87

    Viso socioantropolgica ....................................................................................................... 88

    Identidade e cultura surda ..................................................................................................... 89

    A Libras .......................................................................................................................................... 91

    Neurolingustica: estruturao da Libras no crebro ...................................103

    Funes cerebrais ....................................................................................................................103

    Plasticidade neuronal ............................................................................................................107

    Teorias de aquisio da linguagem ..................................................................................107

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  • Legislao brasileira e a educao de surdos ..............117

    Legislao especfica para a surdez ..................................................................................119

    Reconhecimento da profisso de Tradutor e Intrprete de Libras ........................121

    Legislao para o Ensino Superior ....................................................................................123

    O atendimento de surdos nas escolas .............................................................................123

    Modalidades de atendimento educacional para surdos ......................................................135

    Entendendo a proposta inclusiva e os servios de apoio .........................................135

    A rede de apoio especializado e as modalidades de atendimento ......................136

    Avaliao educacional ...........................................................................................................140

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  • Apresentao

    A educao de surdos, no decorrer da histria, sofreu transformaes impor-tantes em suas concepes, inicialmente sendo marcada por uma caracterstica discriminatria e de segregao, evoluindo para a viso atual da incluso, em que a escola transforma-se em local de aceitao e convivncia com as diferenas.

    No mbito da surdez, algumas especificidades devem ser consideradas em qualquer proposta educacional, primeiramente pela aceitao de que a lngua de sinais a lngua natural dos surdos e o meio de comunicao que lhes permite pensar, agir e apreender o mundo. Depois, h a necessidade da implantao de programas bilngues, seja por meio da atuao de professores proficientes nas duas lnguas envolvidas nesse processo, a saber, a Libras Lngua Brasileira de Sinais e a lngua portuguesa, seja por meio dos profissionais intrpretes atuan-tes nas escolas regulares, ou ainda pela atuao direta de professores e instruto-res surdos na dinmica educacional.

    Dessa forma, os conceitos trabalhados neste livro, por meio dos fundamentos histricos, biolgicos e legais da surdez, visam apresentar de forma contextuali-zada, dentro de uma perspectiva cronolgica, toda a transformao na rea edu-cacional, as lutas e avanos sociais que marcaram esse processo e as conquistas legais que derivaram dessa evoluo.

    Finalmente, faz-se importante ressaltar que todos aqueles que de alguma forma estejam envolvidos na rea pedaggica dediquem-se a esta leitura, a fim de conhecer, analisar e participar da continuidade desse processo, buscando co-laborar por meio suas atividades profissionais, na manuteno das polticas p-blicas e na efetivao do cumprimento dessas propostas em prol dos alunos com surdez.

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  • atravs dos sentidos que o ser humano recebe as informaes que formam sua experincia. Quando existe falta parcial ou total de um desses sentidos, o campo de experincias do indivduo transformado, o que resulta numa percepo de mundo adquirida por canais alternativos. No caso dos surdos, essa percepo se d principalmente pelo canal visual. Mas ento como se processa no organismo humano essa transformao? Em que medida a surdez interfere no desenvolvimento humano?

    A princpio, um tema como este poderia sugerir um texto de carter clnico, que s interessaria a profissionais da rea da sade, porm o co-nhecimento de informaes bsicas referentes anatomia e fisiologia da audio, bem como os tipos, graus e causas da surdez, se fazem importan-tes para que novas propostas de trabalhos sejam criadas. Para isso, fun-damental primeiro compreender o processamento neural da criana com surdez, para ento saber quais so os recursos a serem utilizados a fim de facilitar seu aprendizado, visando melhoria da qualidade de ensino e ao aumento de sua efetividade.

    O rgo da audio e do equilbrioO sistema auditivo est localizado no osso temporal (crnio) e possui

    duas funes para os seres humanos: o equilbrio, que possibilita estabi-lidade e locomoo; e a audio, um dos cinco sentidos, ou seja, um dos canais de aquisio de informaes sobre o mundo. dividido em trs pores: a orelha (ou ouvido) externa, orelha mdia e orelha interna ou labirinto (CASTRO, 1983).

    Osso temporal

    IESD

    E Br

    asil

    S.A

    .Orelha mdia

    Orelha externa Membrana

    timpnica

    Orelha interna

    A orelha externa compreende o pavilho auricular e o meato acstico externo, cuja funo coletar e encaminhar as ondas sonoras at a orelha mdia.

    A surdez: noes de anatomia e fisiologia da audio

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    A surdez: noes de anatomia e fisiologia da audio

    A orelha mdia constituda por uma caixa cheia de ar, onde encontramos a membrana timpnica. Esta vibra ao receber o estmulo sonoro e movimenta os ossculos martelo, bigorna e estribo, continuando a transmisso do som. A orelha mdia contm tambm os msculos tensor do tmpano e estapdio, a tuba auditiva e o nervo facial.

    A orelha interna apresenta forma semelhante de um caracol, e onde se encontram as rampas vestibular e timpnica e o rgo de Corti (rgo senso-rial da audio), estando situada no interior da parte petrosa do osso temporal. Contm, no seu interior, o labirinto membranoso, que se subdivide em dois seg-mentos: um anterior, constitudo pela cclea e destinado funo auditiva, e outro posterior ou vestibular, formado por canais semicirculares, que participam da funo do equilbrio. Sua funo principal receber as vibraes sonoras pro-venientes da orelha mdia e transform-las em impulso nervoso enviando-as ao crebro. Aqui o impulso mecnico da onda sonora transforma-se em impulso eltrico (VIANA, 1996).

    O rgo de Corti possui as clulas ciliadas, que so clulas nervosas sensveis, cada uma reconhecendo diferentes frequncias. Os impulsos recebidos na sua base so os graves e os recebidos na parte posterior da cclea so os agudos. Esses impulsos so enviados ao crtex cerebral atravs do nervo auditivo, finali-zando o processo de recepo sonora. No crebro os sinais sonoros so codifica-dos, decodificados, interpretados e armazenados na memria.

    Cera

    Pelos

    IESD

    E Br

    asil

    S.A

    .

    Cartilagem

    CondutoExternoAuditivo

    Martelo

    Bigorna

    EstriboLabirinto

    Nervo Facial

    Nervo Auditivo

    Trompa de Eustquio

    Janela OvalTmpano

    Ouvido Externo

    Ouvido Mdio

    Ouvido Interno

    Utrculo

    Cclea

    VestbuloSculo

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  • A surdez: noes de anatomia e fisiologia da audio

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    EtiologiaFatores etiolgicos so aqueles que podem causar perda da audio e

    provm de diferentes causas, como: genticas, infecciosas, mecnicas, txicas, desnutrio e algumas doenas. Esses fatores podem ainda ocorrer no perodo pr-natal, perinatal ou ps-natal, ou seja, antes, durante e depois do nascimento (LAFON, 1989).

    A seguir apresentamos um quadro demonstrativo dos fatores etiolgicos que podem causar surdez.

    Quadro 1 Fatores etiolgicos que podem causar surdez

    Causas / Perodo Pr-natal Perinatal Ps-natal

    Genticas

    Anomalias genticas como trissomias e duplicaes

    Erros inatos do meta-bolismo

    Infecciosas

    Rubola Sfilis Citomegalovrus Aids (alteraes do

    sistema imunolgico)

    Infeco hospitalar Meningite Sarampo Caxumba

    Mecnicas

    Quedas Traumatismos Tentativas de aborto Partos prematuros Sangramentos e pro-

    blemas placentrios

    Traumas cranianos, musculares e sseos

    Leses nervosas

    Acidentes auto-mobilsticos

    Traumatismos Quedas

    Txicas Medicamentos Drogas (legais ou

    no)

    Medicamentos Oxigenoterapia no

    controlada (encuba-dora)

    Medicamentos ototxicos

    M alimentao Desnutrio e anemia materna

    Desnutrio Anemia Problemas metab-

    licos

    Desnutrio Anemia Problemas

    metablicos

    Doenas

    Hipertenso Problemas cardacos Diabetes Rh negativo

    Prematuridade Deficincia respira-

    tria Ictercia (hiperbilir-

    rubinemia)

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    A surdez: noes de anatomia e fisiologia da audio

    Tipos e graus das perdas auditivasA unidade usada para se aferir sons o decibel (dB). Considera-se normal, em

    termos de audio, a pessoa que discrimina perfeitamente sons com intensida-de de at 20 dB. Segundo Russo (1996) tem-se como critrio os seguintes valores para classificao dos graus de perdas auditivas:

    Leve 21-39dB

    Moderada 40-70dB

    Severa 71-90dB

    Profunda Acima de 90dB

    Quanto perda auditiva, so identificados trs tipos: condutiva, neurossen-sorial ou sensrio-neural, e mista.

    A perda auditiva condutiva ocorre quando h interferncia na conduo do som da orelha externa para a orelha mdia. passvel de tratamento medica-mentoso ou cirrgico, por exemplo, otites, otosclerose, perfurao timpnica e cerume.

    A perda auditiva sensrio-neural ocorre por leses na orelha interna, vias au-ditivas nervosas e centrais, que impedem a transmisso do som.

    A perda auditiva mista ocorre por leso de orelha externa e/ou mdia, asso-ciada leso de orelha interna e/ou vias auditivas.

    O implante coclearA perda auditiva neurossensorial foi considerada por muito tempo como

    irreversvel, porm hoje uma nova tecnologia existente, chamada de implante coclear, visa estimular eletronicamente as fibras nervosas remanescentes, per-mitindo a transmisso do sinal eltrico para o nervo auditivo, para que este seja decodificado no crebro, permitindo ao indivduo perceber o som.

    De acordo com os especialistas em otorrinolaringologia e fonoaudiologia, o implante indicado para pacientes com perda auditiva bilateral, ou seja, nas duas orelhas, e com grau severo ou profundo. J a partir dos 12 meses de vida o implante pode ser realizado, possvel tambm na idade adulta, porm o ideal que o tempo de perda auditiva seja o mais curto possvel.

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  • A surdez: noes de anatomia e fisiologia da audio

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    H tambm alguns fatores que impedem a realizao do implante coclear, como, por exemplo, a ausncia do nervo auditivo e malformao da cclea, pois essas estruturas anatmicas necessitam estar em plena condio funcional para que a cirurgia possa apresentar resultados positivos.

    O sistema do implante composto por um microfone externo que processa a fala, uma antena e dois cabos, que enviam os sinais para o receptor interno (chip) e este, por meio de um cabo formado por vrios filamentos de eletrodos, inseridos cirurgicamente na orelha interna do paciente, libera impulsos eltricos enviados ao crebro que sero decodificados, gerando a sensao de audio.

    Seus resultados podem ser satisfatrios, dependendo da reao de cada or-ganismo aos atendimentos complementares com fonoaudilogos, porm no se pode fazer um prognstico exato dos nveis de audio que podero ser al-canados pelos implantados.

    IESD

    E Br

    asil

    S.A

    .

    IESD

    E Br

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    S.A

    .

    Os recentes estudos nas reas da lingustica e da neurolingustica demons-tram que a organizao cerebral da linguagem, seja ela oral ou gestual, exa-tamente a mesma. Assim, de acordo com Snchez (1993), comprova-se que a lngua de sinais uma lngua natural do ponto de vista biolgico e, dessa forma, tem um perodo crtico para ser aprendida. Portanto, no que se refere ao desen-volvimento do surdo, muito mais importante que o grau de perda auditiva o perodo de vida em que a criana imersa dentro de um ambiente lingustico propcio ao seu desenvolvimento cognitivo, cultural e social.

    A surdez, ento, concebida no como deficincia, mas sim como diferena, sendo reconhecida como a caracterstica de uma comunidade linguisticamente legtima, usuria da lngua de sinais, como principal aspecto definidor de sua identidade. Portanto, embora nossos estudos se iniciem pela parte biolgica que envolve a surdez, nosso objetivo maior preparar para a compreenso das implicaes que essa diferena pode gerar no indivduo, suas formas de organi-zao, sua lngua e sua forma de apreender o mundo.

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    A surdez: noes de anatomia e fisiologia da audio

    Texto complementarO texto a seguir uma entrevista realizada com Carlos Snchez, mdico e

    pesquisador radicado na Venezuela. Na entrevista, ele aponta os primeiros estu-dos sobre a organizao da lngua de sinais no crebro, defende a liberdade de uso da lngua de sinais nos ambientes educacionais e permite a viso do pano-rama geral da rea da surdez na dcada de 1990.

    Vida para os surdos!(ROSA, 1993)

    A lngua de sinais a nica que lhes d a possibilidade de desenvolver a linguagem e uma personalidade s, defende Carlos Snchez, mdico e pes-quisador radicado na Venezuela, onde as escolas pblicas de surdos substi-turam o oralismo pelo bilinguismo, que os faz chegar lngua escrita pelos sinais. A tentativa de fazer os surdos falarem no deu frutos at hoje, apesar das boas intenes de pessoas srias ligadas ao oralismo linha de ensino que tenta desenvolver nos surdos a capacidade de compreender nossa lngua oral e se comunicar por ela, criando assim a possibilidade de alfabetiz-los.

    Em maio passado, em So Paulo, no Simpsio Internacional de Lngua de Sinais e Educao dos Surdos, promovido pela Sociedade Brasileira de Neuropsicologia, ficou claro que a mudana no ensino dos surdos interessa a muita gente, inclusive todos os surdos. Fora os especialistas convidados pela Sociedade brasileiros, americanos, uruguaios, argentinos, venezuelanos e ingleses , mais de 800 pessoas envolvidas com a questo foram ao Simpsio ouvir o que se pode fazer para melhorar a situao do surdo, marginalizado socialmente e encarado como um indivduo menos capaz que os ouvintes. Se o oralismo no a soluo para esse problema, outra deve haver. E certa-mente h.

    A proposta de educao de surdos que surgiu no Simpsio no tenta oraliz-los e possui fundamentos cientficos: o bilinguismo. Chama-se assim porque utiliza a lngua de sinais que a cincia comprova ser a lngua na-tural dos surdos, proibida no oralismo e a lngua escrita, encarada como completamente independente da lngua oral. Com cerca de 20 mil surdos, a Venezuela o pas onde o bilinguismo est mais adiantado. Isso porque o implantamos de uma s vez nas nossas 42 escolas pblicas de surdos, alm de duas das cinco escolas particulares o terem adotado tambm, comenta

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  • A surdez: noes de anatomia e fisiologia da audio

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    Carlos Snchez, mdico uruguaio que se tornou assessor da Secretaria de Educao Especial venezuelana, apaixonou-se pela lingustica e pela ques-to dos surdos, fez mestrado em Lngua Escrita e se bateu pelo fim do oralis-mo na Venezuela.

    A vantagem do uso da lngua de sinais, diz Snchez, que s ela capaz de desenvolver o centro cerebral da linguagem nos surdos, o que signifi-ca dar a eles reais possibilidades de desenvolvimento cognitivo, afetivo e emocional ou seja, torn-los efetivamente pessoas idnticas s ouvintes, s que falando outra lngua. Muito bem impressionado com a receptividade no Simpsio s ideias bilinguistas, Carlos Snchez (CS) conta nesta entrevista Nova Escola (NE) como se introduz a lngua escrita sem, claro, alfabetizar ningum.

    Nova Escola - Como o senhor, que mdico, foi se interessar por lingus-tica e por surdos?

    Carlos Snchez - Exerci primeiro a psiquiatria. Depois a pediatria, e traba-lhei com crianas com os chamados exerccios de reabilitao das dislexias e de todas as dis o que hoje me d vergonha. Sempre foi uma preocupao minha o problema da linguagem, por uma paixo que tenho pela literatura. Em 1984, j como membro da Secretaria de Educao Especial venezuela-na, tomei contato com as ideias de Emilia Ferreiro, cujo trabalho continha, naquela poca, uma viso lingustica. Eu decidi investigar como era a leitura em surdos, ou seja, o processo de aquisio da escrita, na escola oralista que tnhamos.

    NE - Os surdos liam bem?

    CS - Nem poderiam, pois os surdos eram ensinados a ler como se ouvis-sem. Mesmo depois do fracasso na escola, quando comeavam a aprender globalmente ir direto do significante (a palavra escrita) ao significado , os surdos nunca chegavam a ser usurios constantes e fluentes da lngua escrita. Terminado meu trabalho de pesquisa, mostrei-o ao educador francs Jean Foucambert, quando foi Venezuela, em 1988. Diante daquelas difi-culdades dos surdos de ter acesso escrita, Foucambert me disse: No s os surdos, mas toda e qualquer criana pode aprender a lngua escrita sem basear-se na oral, porque so independentes. Isso ficar comprovado no dia em que se conseguir fazer os surdos lerem e escreverem bem, pois eles no podem passar pelo oral. Isso foi um tremendo insight1 para mim!

    1 Insight: intuio, ideia repentina, clareza sbita na mente.

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    A surdez: noes de anatomia e fisiologia da audio

    NE - E a sua pesquisa foi parar no lixo?

    CS - Claro! Estudvamos um processo de aquisio da escrita pelos surdos que estava totalmente equivocado. Com o oralismo das nossas escolas, eles no possuam linguagem normal nem um ambiente em que pudessem con-versar sobre o que escrito. Meu trabalho no tinha sentido algum era como estudar como corre um atleta com pesos nos ps e as mos amarradas.

    NE - Ento vocs perceberam a necessidade de mudar o ensino dos surdos?

    CS - Sim. A lingustica prova que a lngua de sinais a lngua natural dos surdos. Ento eu conclu: se uma lngua, deve ser usada na educao de surdos. mais que bvio: se francs uma lngua, deve ser usada pelos fran-ceses, e assim por diante. Por que no, ento, usar a lngua de sinais com os surdos? Acontece que a tradio oralista, que dominava na Venezuela e domina na maior parte do mundo, probe aos surdos o uso da lngua de sinais. A proposta que levamos ao Ministrio da Educao foi implantar a lngua de sinais nas escolas pblicas de surdos.

    NE - Qual a reao nas escolas?

    CS - Os argumentos lgicos e comprovados pela lingustica convenceram a todos os envolvidos de que esse era o caminho certo. A partir de 1990, todas as 42 escolas pblicas venezuelanas de surdos passaram a ser bilin-guistas, ou seja, a usar na educao a lngua de sinais e a lngua escrita. Os que mais nos criticaram foram os vendedores de aparelhos de surdez, que se tornaram obsoletos com a liberdade dada lngua de sinais. Para desen-volver o bilinguismo, necessrio aceitar que a lngua de sinais uma lngua natural e que os surdos so uma comunidade lingustica minoritria.

    NE - Por que a lngua de sinais uma lngua natural?

    CS - Por cumprir com uma srie de requisitos que todas as lnguas natu-rais possuem espanhol, portugus, alemo, ingls, polons... a criatividade um deles , pode-se sempre dizer alguma coisa nova. Outro requisito a combinao de partculas no significativas que, usadas de certa maneira, criam significao. Eu me refiro aos fonemas da lngua oral e s configura-es da mo na lngua de sinais. Com 30, 40 configuraes da mo, podem-se transmitir milhares de sinais significativos, como os fonemas da lngua oral. A lngua de sinais, que, como as lnguas nacionais, diferente em cada pas e at em regies dos pases, possui, alm do mais, uma gramtica toda prpria, organizada e complexa, e nos permite transmitir qualquer coisa.

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  • A surdez: noes de anatomia e fisiologia da audio

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    NE - Portanto, a lngua de sinais atinge significados profundos?

    CS - Claro que sim! Com ela, pode-se transmitir, criar e recriar o que se quiser: poesia, romance, filosofia... E pode-se at formular ideias com duplo sentido, ou mentir, que outra caracterstica das lnguas naturais.

    NE - A funo das lnguas naturais s a de transmitir e criar ideias?

    CS - A grande funo das lnguas naturais, ao lado de possibilitar a comu-nicao, permitir ao indivduo desenvolver o instrumento mental chamado linguagem. A linguagem permite o uso da lngua, mas s pode se desenvol-ver com a aquisio de uma lngua natural. Desse modo, sem linguagem no h desenvolvimento cognitivo, nem emocional, nem afetivo. Isso se aplica para qualquer ser humano, surdo ou ouvinte. H uma histria clssica, entre outros exemplos bem documentados, que mostra que sem um ambiente lingustico a criana no pode desenvolver a linguagem: o rei Psamtico, do Egito, queria saber que lngua falaria uma criana que no tivesse contato com nenhuma lngua. Mandou fechar duas crianas num cubculo, isoladas do mundo exterior, s recebendo alimentao por uma abertura na porta. Depois de alguns anos, soltaram os meninos, que, claro, no falavam lngua alguma. Eram como bichos. Um experimento terrvel, mas muito claro.

    NE - A partir de que idade a criana surda deve ter contato com a lngua de sinais?

    CS - Quanto mais cedo melhor. Se uma criana surda s tem contato com os sinais a partir dos 5 anos de idade, certo que o instrumento cerebral de linguagem j foi afetado, ainda que ela aprenda alguma coisa. o mesmo que ocorreria com uma criana ouvinte. Para os surdos, no entanto, o conta-to com a lngua de sinais mais difcil, visto que 95% deles, na Venezuela, so filhos de pais ouvintes, que no dominam a lngua de sinais e, portanto, no propiciam ao filho um ambiente lingustico. E os 5% de pais surdos muitas vezes se recusam a usar sinais, por causa do preconceito difundido pela tra-dio oralista.

    NE - De que maneira vocs mostram aos pais a necessidade de um filho surdo frequentar uma escola que no vai faz-lo falar?

    CS - Deve-se compreender o principal problema dessa questo: quais-quer pais querem os filhos para eles. No entanto, na realidade, o filho surdo pertence a outra comunidade. uma situao muito peculiar. Quando os

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    A surdez: noes de anatomia e fisiologia da audio

    pais acabam de receber o diagnstico de que seu filho surdo, eu digo a eles, com a convico de que falo a verdade: Seu filho normal; pode ser inteligente, criativo. S que ele fala outra lngua; ele um estrangeiro. Essa realidade dura deve ser dita sem meias palavras. No oralismo, garantiam aos pais que o filho viria a ser normal, que viria a falar como a maioria das pes-soas uma grande mentira. Aps muitos anos era uma frustrao e, pior, a criana no havia tido nenhuma possibilidade de desenvolver a linguagem.

    NE - E o tipo de escola que vocs implantaram d essa possibilidade?

    CS - Sem dvida nenhuma. A primeira meta da nossa escola bilinguista garantir aos surdos o desenvolvimento da linguagem e do cognitivo. Para isso, necessrio que todos na escola usem a lngua de sinais, da mesma forma que toda criana ouvinte tem direito a um meio lingustico rico. Assim, possibilitamos o desenvolvimento afetivo, emocional o desenvolvimento de uma personalidade s. Com tudo isso, o surdo pode construir uma teoria sobre o mundo. Veja que a uma criana ouvinte naturalmente dada a opor-tunidade de perguntar muito, sobre tudo, para formar sua teoria a respeito do mundo. O mesmo deve ser garantido ao surdo.

    NE - Quais so as etapas de evoluo de um surdo?

    CS - O processo de desenvolvimento de uma criana surda exatamente igual ao de uma criana ouvinte. Acredita-se em muitos lugares que o surdo precise de dois anos de uma srie escolar para se equiparar a um ouvinte. Isso uma insanidade! O surdo tem as mesmas possibilidades que um ouvin-te, s que falando em outra lngua, a de sinais. Portanto, em primeiro lugar a criana adquire espontaneamente a lngua, para desenvolver a linguagem e ento ter acesso lngua escrita, que uma segunda lngua repito, trata-se ou no de surdos. Jean-Paul Sartre, aquele famoso filsofo francs, tem uma frase tima a respeito: Falamos em nossa lngua materna, mas escrevemos numa lngua estrangeira.

    NE - Como a criana surda pode ter contato com a lngua escrita?

    CS - A lngua escrita se adquire da mesma forma que a oral. Emilia Ferreiro dizia isso h dez anos hoje mudou seu ponto de vista. Se adquire da mesma forma, tem de ser por meio de um processo espontneo. Eu acredito nisso, assim como, entre outros, Jean Foucambert e o americano Frank Smith. No necessrio, como imaginam os alfabetizadores, uma racionalizao sobre

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    a lngua escrita como objeto de conhecimento. A racionalizao s ocorre depois que a criana incorporou espontaneamente certa quantidade de con-venes da escrita, o que significa sem sistematizao. As metodologias do-minantes procuram facilitar a reflexo sobre a escrita, mas isso no uso da escrita. O uso da escrita inconsciente, no contexto de uma prtica social.

    NE - Se a aquisio da escrita depende da prtica social, a criana deve viver num meio que a utilize sempre?

    CS - Nem sempre, mas significativamente. Um exemplo seria o pai, em casa, comentar com a mulher sobre um livro que leu. Esse um ato de leitura, de uso da escrita. No mensurvel quando a criana, ao escutar essa con-versa, adquire da lngua escrita, mas certo que adquire, da mesma forma que a oral. Ao se comentar o contedo de um livro, usa-se uma gramtica dis-tinta, e a criana assimila as convenes da escrita que transparecem nessa gramtica especial. O conhecimento intuitivo dessas normas e convenes o primeiro componente para o uso eficiente da lngua escrita. O segundo a criana saber o que dizem os livros a respeito dos temas que sero lidos.

    NE - Como assim?

    CS - Por exemplo: se a criana quer entender, ler bem um conto de fadas, ela precisa saber o que dizem os livros sobre as fadas, porque ningum fala de fadas corriqueiramente. A escola deve dar esse conhecimento prvio sobre o tema codificado na escrita, abordando temas que s se encontram escritos fadas, seres mitolgicos, um circo romano etc. Ao fazer isso, a escola estar despertando o interesse da criana para a lngua escrita.

    NE - Como a criana vai decifrar o que est impresso num livro?

    CS - Ela tem de saber que naquela parte do livro est escrito, por exemplo, chovia demais. Algum j leu para ela esse trecho, que tambm diz que chovia de noite. A criana percorre o livro com os olhos e encontra essas duas formas iguais, chovia. S que numa ela v de noite, e noutra, demais. Esse o mecanismo, multiplicado por milhares de vezes que ela tenha con-tato com a lngua escrita, veiculada pela oral ou gestual e impressa. Assim como a aquisio das palavras e do sentido em lngua oral. Durante muitos anos, at 7, 8 anos de idade, a criana no l para inteirar-se de mensagens novas, mas sim para comprovar o que j sabe. Se a criana obrigada antes disso a ler, ela vai letra por letra como na alfabetizao , sem internalizar conhecimento, sem apreenso de sentido.

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    A surdez: noes de anatomia e fisiologia da audio

    NE - Quando ela formar sentido a partir do que est escrito?

    CS - Quando possuir um estoque suficiente de palavras reconhecveis. como ocorre com os japoneses e chineses, que comeam a ter condies de ler bem ao reconhecer, digamos, 5 mil ideogramas. Fazendo um paralelo, na nossa lngua escrita as palavras assumiram o aspecto de um ideograma, transmitindo imediatamente a ideia, o significado. Como diz Sartre, assimilar a lngua escrita o mesmo que aprender uma lngua estrangeira. Vai-se des-cobrindo pelo contexto.

    NE - isso que vocs fazem em suas escolas?

    CS - Exatamente isso. Usamos muito a escrita, procurando dar criana surda as mesmas oportunidades que tem a ouvinte, de modo que se interes-se pelo escrito, visto que possui significao. Aquele mesmo processo a que me referi, de dizer o escrito com uma gramtica toda prpria, s que com a lngua de sinais. Ainda no tivemos tempo, no entanto, de levar os surdos a ler corretamente. Para adquirir espontaneamente a lngua escrita, preciso que os pais, a famlia, o meio escola inclusive falem da lngua escrita. Ns ainda no temos surdos que falem disso. Apesar de alguns pais utiliza-rem a lngua escrita, a maioria deles desconhece a lngua de sinais. Temos de dar tempo para que se crie um meio social com uso significativo da lngua escrita.

    NE - Vocs seguem alguma metodologia?

    CS - No. A ideia geral promover atividades em espaos que convidam participao. Temos, claro, tericos que admiramos, como Foucambert, C-lestin Freinet e o venezuelano Simn Rodrguez. Somos criticados por gente que quer saber qual o programa, qual a metodologia. Acredito que atual-mente qualquer inteno pedaggica viria a ser muito extremista toda in-teno pedaggica dos ouvintes colonizadora. A meta principal da escola bilinguista , neste momento, propiciar o desenvolvimento da linguagem, sem freios ao uso da lngua de sinais.

    NE - Quais so as atividades que o senhor mencionou?

    CS - So cinco as reas de atividades, das quais participam crianas, jovens e adultos, de modo a se reproduzir o ambiente familiar: jogos e esportes; teatro; cincias; leitura e escrita; e trabalho. A criana surda, no oralismo, no sabia brincar com jogos e brinquedos de criana! No codificava, tambm,

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    em passear com amigos. Faltava, evidentemente, o pensamento abstrato. Em cincias desenvolvemos vrios projetos, como criao de galinhas, agro-nomia, sempre com a participao de pais ligados a cada assunto. Na rea de trabalho so produzidos objetivos competitivos no mercado, como objetos artsticos.

    NE - Qual a funo do professor?

    CS - A funo do professor passou a ser a de colaborar e participar nas ati-vidades escolares. Custou convenc-los de que eles no dariam mais aulas o tempo todo. Em cinco horas de atividades dirias, uma utilizada pelo pro-fessor para ampliar o conhecimento dos alunos, nas vrias disciplinas. Ainda assim, na medida do possvel essa informao adicional se relaciona ao que foi trabalhado na prtica, porque da surge a internalizao de conhecimento. No fcil, pois isso exige um professor bem informado e bem integrado.

    NE - Qual a formao dos professores?

    CS - De trs anos para c, todo professor primrio venezuelano precisa ter formao universitria. Todas as escolas de formao de professores de surdos, aps a universidade, so oralistas. Nossos professores, todos ouvin-tes, so obrigados, pois, a aprender a lngua de sinais com os surdos.

    NE - Essa escola s para surdos no contraria o princpio da integrao deles com ouvintes?

    CS - A integrao a que voc se refere, lamentavelmente determinada pela Constituio Brasileira, faz parte do oralismo. Na verdade, uma desin-tegrao, porque o surdo totalmente marginalizado entre ouvintes. Eles no tm com quem falar. H poucos anos, dois oralistas espanhis estiveram na Venezuela, defendendo a presena de apenas uma criana surda numa classe regular de ouvintes, porque, se duas estivessem juntas, j falariam com sinais. Esse o temor tremendo de que os surdos acabem como num gueto.

    NE - Mas uma escola s de surdos no soa como segregao?

    CS - No haver isolamento se o surdo encontrar em sua comunidade o que necessita. Conviver na prpria comunidade a nica sada. Em So Paulo, por exemplo, onde deve haver pelo menos 16 mil surdos, tem de ser possvel para um surdo encontrar amigos e tudo mais. Se tiverem acesso lngua es-

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    A surdez: noes de anatomia e fisiologia da audio

    crita, ser muito mais interessante. E, se puderem se tornar psiclogos, mdi-cos, jornalistas, escritores, podero ter horizontes ainda mais amplos, o que no os obrigaria a buscar amigos na comunidade ouvinte. Alm disso, h o fato de que a comunidade de surdos nunca fechada, justamente porque a maioria deles no filho ou filha de surdos, e os filhos de surdos no so surdos. uma questo provocante, que muda a noo de integrao.

    NE - E o que integrao?

    CS - Para mim, a integrao tem dois componentes indispensveis: pri-meiro, a interao plena poder falar o que se queira com vrias pessoas; se-gundo, o poder para tomar decises. A criana surda colocada numa escola regular no tem interao real e nenhuma possibilidade de tomar decises. Na nossa escola, tentamos garantir esses dois componentes, porque ela democrtica (o professor deixa de ser o que manda); participativa (por incor-porar os pais dos alunos), comunitria ( da comunidade de surdos), e ativa (porque ao se fazer coisas que se aprende). O processo que implantamos pode ser demorado, de mais de uma gerao, mas fundamental para que os surdos possam criar coisas novas, deles.

    NE - O primordial dar vida aos surdos?

    CS - exatamente isso! Hoje, as crianas e adolescentes surdos demons-tram que querem saber mais. Tm a expectativa de se tornar o que os surdos nunca pensaram ser: professores, mdicos, psiclogos, linguistas eles tm um interesse enorme por lingustica. Os surdos que esto terminando o ensino secundrio escrevem muito, ainda com dificuldade, mas percebem a escrita como um instrumento acessvel. E notam tambm que o encaminha-mento, agora, o correto, pois sabem que no vo ficar na escola anos a fio, ou dois anos por um, e que no vo fracassar.

    Dica de estudoPara complementar os estudos, sugere-se o filme Gestos do Amor (Dove Siete?

    Io Sono Qui/Itlia/1993), que relata a histria de uma me que no aceita a con-dio de seu filho surdo. A tia o ajuda a integr-lo em um grupo de surdos, ensi-nando-lhe a lngua de sinais.

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    Atividades

    1. Faa um esquema com as trs partes que compem o sistema auditivo e seus principais rgos.

    2. Cite alguns dos principais fatores etiolgicos causadores da surdez.

    3. A surdez hoje concebida como diferena, e no como deficincia. Por qu?

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    Gabarito1. O esquema deve apresentar:

    orelha externa pavilho auricular e meato acstico externo;

    orelha mdia membrana timpnica, ossculos (martelo, bigorna e estri- bo), msculo tensor do tmpano e msculo estapdio;

    orelha interna cclea que contm o rgo de Corti, responsvel pela audio e os canais semicirculares, responsveis pelo equilbrio, e o ner-vo auditivo.

    2. Doenas maternas como rubola, citomegalovrus, sfilis; anomalias gen-ticas, traumatismos e leses neurolgicas, ototoxidade (medicamentos t-xicos), desnutrio materna. Tambm parto prematuro e doenas infantis como meningite, sarampo e caxumba.

    3. A marca principal o uso de Libras, lngua de sinais, sendo, portanto, repre-sentativa de uma comunidade linguisticamente reconhecida. Assim, reco-nhece-se a surdez como uma diferena em virtude do uso de outro idioma oficial, diferente da lngua portuguesa.

    RefernciasCASTRO, Sebastio Vicente de. Anatomia Fundamental. So Paulo: McGraw- -Hill, 1983.

    LAFON, Jean-Claude. A Deficincia Auditiva na Criana: incapacidade e rea-daptao. So Paulo: Manole, 1989.

    RUSSO, Ieda Pacheco; SANTOS, Tereza. Audiologia Infantil. So Paulo: Cortez, 1996.

    ROSA, Carlos Mendes. Revista Nova Escola. So Paulo: Abril, 1993.

    SNCHEZ, Carlos. A implantao do bilinguismo na Venezuela. Simpsio Inter-nacional de Lngua de Sinais e Educao do Surdo. So Paulo, 1993.

    VIANA, Regina Lcia. A Integrao do Surdo: uma abordagem multissensorial. Rio de Janeiro: CELD, 1996.

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  • A histria comum dos surdos uma histria que enfatiza

    a caridade, o sacrifcio e a dedicao necessrios para

    vencer grandes adversidades.

    Ndia Limeira de S

    Buscando na histria da educao informaes significativas sobre o atendimento educacional dos surdos, pode-se constatar que, na Antigui-dade, as noes a respeito dessas pessoas eram basicamente ligadas ao misticismo e ao ocultismo, no havendo base cientfica para o desenvol-vimento de noes reais. O conceito de diferena individual no era com-preendido ou avaliado.

    Considerando que, de modo geral, as coisas e situaes desconhecidas causam temor, a falta de conhecimento sobre as deficincias em muito contribuiu para que essas pessoas, por serem diferentes, fossem margina-lizadas, ignoradas.

    Assim, podemos compreender como eram vistas as pessoas surdas desde os primrdios da civilizao. Eram entendidas como no hu-manas, seres desqualificados e inferiores e que, por isso, deveriam ser eliminados.

    Juntamente com o pensamento de como poderiam sobreviver, os surdos enfrentavam outro problema, comum a todas as minorias huma-nas, ou seja, a constante busca do homem em sua existncia na imposio de padres. Essa situao agravou ainda mais as prticas discriminatrias e inferiorizantes contra aqueles considerados fora dos padres.

    Tais prticas discriminatrias eram traduzidas por polticas de assassi-natos de bebs e crianas portadoras de algum tipo de deficincia, e isso esteve presente em diferentes povos e culturas da Antiguidade. As prin-cipais civilizaes da poca eliminavam os surdos de diferentes formas como, por exemplo, os chineses, que os lanavam ao mar. J os gauleses os sacrificavam aos deuses, e na Grcia, principalmente em Esparta, eram lanados do alto dos rochedos.

    Histria da educao de surdos: da Antiguidade Idade Moderna

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    Histria da educao de surdos: da Antiguidade Idade Moderna

    Com os hebreus, em suas leis escritas na Tor, encontra-se pela primeira vez referncia aos surdos, onde se pode ler: Quem d a boca ao homem? Quem o torna mudo ou surdo, capaz de ver ou cego? No sou Eu, Jav? (xodo, 4:11), ou [...] no amaldioes o mudo nem coloques obstculos ao cego (Levtico, 19:14). Ser surdo e ser mudo representava a vontade do Senhor e, por isso, que poderia o homem fazer? Nesse sentido, aos surdos puderam ser reconhecidos alguns direitos como cidados, mas no era permitido o casamento, possuir ou herdar bens e nem ser proprietrio de algo. Assim, privados de diversos outros direitos, ficavam com sua sobrevivncia comprometida.

    Ainda nesse contexto histrico, Scrates declarou aceitvel que os surdos se comunicassem com gestos. E mais tarde, no sculo IV a.C., Aristteles afirma-va que a educao somente poderia ser obtida atravs da audio. Portanto, algum que no conseguia ouvir, que no possusse linguagem, dentro de sua concepo, no seria capaz de aprender nada, sendo impossvel o desenvolvi-mento do raciocnio.

    A Era CristEntre o ano 1 d.C. e o incio da Idade Moderna, as referncias sobre a surdez so

    escassas, mas no incio desse momento histrico a prpria religio, com toda a sua fora, ao colocar o homem como imagem e semelhana de Deus, o ser perfeito, inculcava a ideia da condio humana como incluindo perfeio fsica e mental. E no sendo semelhantes a Deus, os portadores de deficincia ou imperfeies eram postos margem da sociedade. Nesse sentido, essas pessoas eram conside-radas impuras e condenadas por Deus, como sendo castigadas por Ele, e acometi-das de doenas ou diferenas fsicas, com uma existncia cruel a cumprir.

    Com o nascimento de Jesus, o Filho de Deus para os cristos, a teologia oci-dental mudou significativamente. Os diferentes no eram mais considerados impuros, nem carregavam sobre si o castigo de seus pecados. Segundo Jesus, todos seriam filhos de Deus, amados por Ele, no pelo que pudessem ter ou fazer, mas sim pelo que eram: seres humanos.

    Obviamente, ainda restaram alguns resqucios do passado, pois pela cultura da poca no era to fcil assim aceitar as diferenas. At mesmo pela prpria Bblia, muitos dos diferentes foram curados por Jesus. Isso poderia significar para aquele tempo que a perfeio seria possvel dependendo da vontade do Senhor.

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    Dessa forma, com toda a implicao religiosa que os ensinamentos de Jesus suscitaram, as controvrsias ocorreram, at mesmo porque So Paulo, no sculo I d.C., em sua Epstola aos Romanos, 10:17, afirmou: [...] a f deriva da pregao e a pregao o anncio da palavra [...], justificando, assim, aqueles que teriam negado aos deficientes o acesso religio, aos sacramentos e mesmo salvao da alma.

    Mesmo assim, as mensagens de Jesus serviram para o resgate do valor e da dignidade humana e essa influncia est na base de muitas das escolas fi-losficas e de muitos comportamentos que, hoje, julgamos bons, adequados e verdadeiros.

    Do mesmo modo que So Paulo, no se pode dizer que todos compartilha-vam das mesmas opinies, pois Santo Agostinho, filsofo e telogo cristo muito influente, defendeu a ideia de que os pais de filhos surdos estariam pagando por algum pecado que haviam cometido. Por outro lado, aceitava que os surdos podiam se comunicar por meio de gestos, que substituiria a fala, e que assim po-deriam apreender os ensinamentos cristos e garantir a salvao de suas almas.

    H relatos que, por volta de 700 d.C., John Beverley foi considerado o primei-ro educador de surdos, pois pela primeira vez ensinou um surdo a falar.

    Final da Idade Mdia e Idade Moderna No final da Idade Mdia que os dados

    com relao educao de surdos torna-ram-se mais disponveis. Nessa poca co-meam a surgir os primeiros trabalhos na rea da educao para crianas surdas, e na forma de integr-las na sociedade.

    Foi tambm nessa poca que samos da perspectiva religiosa para a perspecti-va da razo, em que a deficincia passa a ser analisada sob a ptica mdica e cient-fica. Os primeiros registros de educadores de surdos no ocidente comeam a surgir a partir do sculo XVI, principalmente na Espanha, Frana, Inglaterra e Alemanha. Girolamo Cardano (1501-1576), mdico,

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    Histria da educao de surdos: da Antiguidade Idade Moderna

    teoriza que a audio e o uso da fala no so indispensveis compreenso das ideias e que a surdez mais uma barreira aprendizagem do que uma condio mental.

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    Fundador da Escola para Surdos em Madri, na Espanha, Pedro Ponce de Lon (1520-1584), monge beneditino, dedicou-se educao de crianas surdas da nobreza castelhana. O seu mtodo inclua a datilologia, a escrita e a fala. Tambm na Espanha, em 1575, Lasso, um ju-rista, concluiu que os surdos que aprendiam a falar deixariam de ser mudos e deveriam ter direitos hereditrios garantidos.

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    Outro educador espanhol que se ocupou da educao de surdos, Juan Pablo Bonet (1579-1633), publicou em 1620 o livro Reduc-cin de las Letras y Arte para Ensear a Hablar a los Mudos. Desenvolveu seu trabalho, inician-do o processo pela aprendizagem das letras do alfabeto manual, passando ao treino audi-tivo, pronncia dos sons das letras, depois s slabas sem sentido. Em seguida, ensinava as palavras concretas e as abstratas, para fi-nalizar com as estruturas gramaticais com-plexas. considerado um dos mais antigos defensores da Metodologia Oralista.

    No sculo XVII surgiu a lngua de sinais e sua utilizao no processo de ensino dos surdos.

    Na Inglaterra, em 1644, o mdico John Bulwer, publicou Chironomia, or the Art of Manuall Rhetorique. Nessa obra descreveu centenas de gestos e defendeu que a linguagem da mo era a nica natural para os surdos. Quatro anos mais tarde, defendendo as possibilidades de expresso por meio de gestos e algumas questes referentes rea mdica, como o porqu de surdos gerarem filhos no surdos, lanou Philocophus: or the deafe and dumbe mans friend.

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    No mesmo pas, George Dalgarno (1628- -1687), fillogo e professor em Oxford, lanou em 1680 The Deaf and Dumb Mans Tutor, com diversas teorias para ensinar aos surdos por meio da linguagem gestual, principalmente com a utilizao do alfabeto manual.

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    Histria da educao de surdos: da Antiguidade Idade Moderna

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    J na Sua, o mdico Johann Konrad Amman (1698-1774) descobriu que os surdos podiam sentir as vibraes da voz quando colocavam as mos na gar-ganta. Utilizou esse artifcio para treinar a fala e publicou A Dissertation Speech, em 1700.

    Sculo XVIIIUm dos perodos mais prsperos da educao de surdos foi o sculo XVIII,

    pois houve a fundao de vrias escolas ao redor do mundo e qualitativamen-te a educao de surdos tambm evoluiu. Por meio da lngua de sinais, esses indivduos podiam aprender e dominar diversos assuntos e exercer diferentes profisses. O abade Charles Michel de LEpe, francs, nascido em 1712, foi um dos responsveis por esse avano. Ele reuniu os surdos dos arredores de Paris e criou a primeira escola pblica para surdos, que tambm era precursora no uso da lngua de sinais.

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    Em 1776, LEpe publicou Instruction de Sourds et Muets par la Voix des Signes Mthodiques numa tentativa de integrar a gramtica da lngua francesa com a lngua de sinais, com o objetivo de fazer com que todos os surdos franceses aprendessem a ler e escrever. Ele morreu em 1789, e suas principais contribui-es foram:

    criao do Instituto Nacional de Surdos-Mudos, em Paris;

    reconhecimento do surdo como ser humano, por reconhecer a sua lngua;

    adoo do mtodo de educao coletiva;

    reconhecimento de que ensinar o surdo a falar seria perda de tempo; an- tes, devia se ensinar a lngua gestual (WIKIPDIA, 2010).

    Compreendendo esses fatos, pode-se concluir que os seres humanos, no de-correr da histria, tentaram entender e aceitar as diferenas fsicas, lingusticas e culturais. Mas tambm no se pode negar que nem sempre tenham agido com a melhor das intenes. O fato que, muitas vezes, os preconceitos geraram regras extraoficiais de tratamento, a despeito do que rogava a lei e do que se considerava correto. Portanto, embora tenham havido tentativas de se fazer res-peitar as caractersticas individuais dos surdos, isso no impediu a ocorrncia de prticas discriminatrias.

    E por outro lado, apesar de todo o desenvolvimento desse perodo, os avan-os deram lugar a uma era de disputas entre os mtodos oralistas e os baseados na lngua de sinais, culminando no momento mais obscuro de toda a educao de surdos, o Congresso de Milo.

    Texto complementar

    A histria dos surdos contada pelos ouvintes(S, 2006. Adaptado.)1

    Em sntese, a histria dos surdos, contada pelos no surdos, mais ou menos assim: primeiramente os surdos foram descobertos pelos ouvintes, depois eles foram isolados da sociedade para serem educados e afinal con-seguirem ser como os ouvintes; quando no mais se pde isol-los, porque

    1 Prof. Dr. Ndia Limeira de S me de surda, psicloga, mestre e doutora em Educao, professora da Faculdade de Educao da Univer-sidade Federal da Bahia, coordenadora do Espao Universitrio de Estudos Surdos (EU-SURDO).

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    Histria da educao de surdos: da Antiguidade Idade Moderna

    eles comearam a formar grupos que se fortaleciam, tentou-se dispers-los, para que no criassem guetos. A histria comum dos surdos uma histria que enfatiza a caridade, o sacrifcio e a dedicao necessrios para vencer grandes adversidades. A histria tradicional enfatiza que os resultados apresentados geralmente so pequenos, mas so enobrecidos pelos esfor-os despendidos para consegui-los.

    Prefiro entender, no entanto, que a histria dos surdos mais produto de resistncia que de acomodao aos significados sociais dominantes. Segun-do Carlos Skliar (1998, p. 17), como formas de resistncia ao poder do ou-vintismo, os surdos se serviram de expedientes tais como: o surgimento de associaes de surdos enquanto territrios livres do controle ouvinte sobre a deficincia, os matrimnios endogmicos, a comunicao em lngua de sinais nos banheiros das instituies, o humor surdo etc.. Segundo ele, estes constituem apenas alguns dos muitos exemplos que denotam uma outra interpretao sobre a ideologia dominante.

    Chegamos ao quadro de dominao dos ouvintes sobre os surdos porque a sociedade tem repertrios interpretativos constitudos atravs da Hist-ria, e estes repertrios instituem poderes e definem prticas que na maioria das vezes no atendem aos interesses dos grupos colonizados. Mas, existe a resistncia, e o agrupamento identificatrio dos surdos com outros iguais possibilitou a construo de identidades que ultrapassaram/ultrapassam o pertencimento de classe e construram identidades baseadas naquilo que alguns defendem como etnia da surdez. Wrigley (1996, p. 12) traz uma figura interessante quando diz: a surdez um pas sem um lugar prprio. uma cidadania sem uma origem geogrfica.

    Esta uma questo interessante: o grupo das pessoas surdas poderia ser considerado como um grupo tnico? A etnia definida, geralmente, atravs de duas dimenses principais: raa e lngua. No caso das pessoas surdas, a lngua uma importante categoria definidora. As pessoas surdas so vistas como um grupo fsico diferente, isto , como se fosse uma raa diferente, ou seja, elas se tornam racializadas atravs da lngua de sinais diferente que utilizam. A definio da identidade tnica dependente de um processo em que entra em conflito a forma como um grupo dominante define a etnia e

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    a forma como um grupo tnico se define a si prprio. [...] O local da etnia um local contestado, numa luta para definir quem definir a etnia do grupo, quem a construir, diz Davis (1995, apud SILVA, 1997, p. 11). Por essa via de interpretao, pode-se observar o quanto as questes patolgico-teraputi-cas so distanciadas da complexidade da questo.

    Caso essa etnicidade seja considerada, ser possvel construir uma escola de surdos que possibilite trocas culturais e o fortalecimento do discur-so surdo, trocas que possibilitem s comunidades manifestarem sua prpria produo cultural e sua forma de ver o mundo. Haver de surgir identidades comunitrias e culturais pensadas a partir do que o grupo pensa sobre si mesmo. Dessa forma, os surdos podero reconstruir seu prprio processo de educao, e tero vez no contexto escolar, afinal, necessrio dar vez s subjetividades silenciadas.

    Diga-se de passagem, a interpretao aqui levantada no est baseada numa perspectiva que v ms intenes em tudo e em todos os que traba-lham/trabalharam com surdos segundo outra perspectiva, significa uma ten-tativa de desvelamento dos critrios pelos quais ns, enquanto seres sociais, fazemos as delimitaes quanto quilo que aceitvel ou no, produzimos identidades aceitveis e tendemos a excluir o que sai da norma. O objetivo romper com o habitual para dar visibilidade produo dos sentidos que vo surgindo na sociedade, fazendo com que nos posicionemos e sejamos posicionados.

    Dica de estudoPara complementar os estudos, sugere-se a leitura da tese de doutorado de

    Karin Lilian Strobel, intitulada Surdos: vestgios culturais no registrados na hist-ria. Florianpolis: UFSC, 2008.

    A pesquisa da autora consiste em um estudo que possibilitou a coleta de dados sobre a cultura do povo surdo, a reflexo sobre as prticas ouvintistas nas escolas de surdos e resistncias do povo surdo contra essa prtica, procurando resgatar a cultura surda na histria.

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    Histria da educao de surdos: da Antiguidade Idade Moderna

    Atividades1. Aponte quais eram as concepes acerca da surdez e da educao de surdos

    na Antiguidade.

    2. Na Era Crist houve uma mudana no pensamento sobre os diferentes, a par-tir dos ensinamentos de Jesus. Porm, nem todos compartilhavam opinies favorveis. Comente.

    3. No final da Idade Mdia at o sculo XVIII houve muitos avanos no que se refere educao de surdos, inclusive com a publicao de diversos mate-riais, com tcnicas de ensino e mtodos. Cite alguns dos estudiosos da poca e suas principais contribuies.

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  • Histria da educao de surdos: da Antiguidade Idade Moderna

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    Gabarito1.

    As noes eram baseadas no misticismo e ocultismo.

    Os surdos eram considerados inferiores e incapazes.

    No se aceitava a educao desses indivduos.

    Eram marginalizados e ignorados.

    Eram eliminados nas diversas culturas, sendo condenados morte de di- ferentes formas, como: sacrifcios aos deuses, lanamentos ao mar ou do alto dos rochedos.

    2. Embora Jesus ensinasse que todos eram filhos de Deus e seriam amados por Ele, independentemente de sua condio, alguns religiosos da poca, como So Paulo e Santo Agostinho, ainda carregavam resqucios do passado. Afir-maram que queles com deficincia seria negado o acesso religio, aos sacramentos e mesmo salvao de sua alma e que estariam pagando por algum pecado cometido por seus pais.

    3.

    Girolamo Cardano: a audio e o uso da fala no eram indispensveis compreenso das ideias e que a surdez mais uma barreira aprendiza-gem do que uma condio mental.

    Pedro Ponce de Leon: fundador da Escola para Surdos em Madri, seu m- todo inclua a datilologia, a escrita e a fala.

    Juan Pablo Bonet: desenvolveu seu trabalho, iniciando o processo pela aprendizagem das letras do alfabeto manual, passando ao treino auditivo, pronncia dos sons das letras, depois as slabas e as palavras. conside-rado um dos mais antigos defensores da Metodologia Oralista.

    John Bulwer: descreveu centenas de gestos e defendeu que a linguagem da mo era a nica natural para os surdos.

    George Dalgarno: props teorias para ensinar aos surdos por meio da lin- guagem gestual, principalmente com a utilizao do alfabeto manual.

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    Histria da educao de surdos: da Antiguidade Idade Moderna

    Johann Konrad Amman: descobriu que os surdos podiam sentir as vibra- es da voz quando colocavam as mos na garganta.

    Abade Charles Michel de LEpe: criou o Instituto Nacional de Surdos- -Mudos, em Paris; reconheceu o surdo como ser humano, admitindo a sua lngua natural; adotou o mtodo de educao coletiva e acreditava que ensinar o surdo a falar perda de tempo, devendo ensinar-lhes a lngua gestual.

    RefernciasCABRAL, Eduardo. Para uma Cronologia da Educao dos Surdos. Porto: NEPES - IFSC, 2001.

    LANE, H. A. A Mscara da Benevolncia: a comunidade surda amordaada. Lisboa: Instituto Piaget, 1992.

    POKER, Rosimar Bortolini. Abordagens de Ensino na Educao da Pessoa com Surdez. Marlia: Unesp, 2007.

    REVISTA da Feneis. ano 1, n. 1. Rio de Janeiro, jan./mar. 1999.

    REVISTA da Feneis. ano 1, n. 2. Rio de Janeiro, abr./jun. 1999.

    REVISTA da Feneis. ano 2, n. 6. Rio de Janeiro, abr./jun. 2000.

    REVISTA da Feneis. ano 2, n. 8. Rio de Janeiro, out./dez. 2000.

    S, Ndia Regina Limeira de. Educao de Surdos: a caminho do bilinguismo. Niteri: UFF, 1999.

    ______. Cultura, Poder e Educao de Surdos. So Paulo: Paulinas, 2006.

    SALLES, Helosa Maria Moreira Lima et al. Ensino da Lngua Portuguesa para Surdos: caminhos para a prtica pedaggica. v. 2, MEC: Braslia, 2004.

    STROBEL, Karin Lilian. Surdos: vestgios culturais no registrados na histria. Flo-rianpolis: UFSC, 2008.

    WIKIPDIA, a Enciclopdia Livre. Disponvel em: . Acesso em: 3 ago. 2010.

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  • O final da Idade Moderna foi marcado por uma disputa entre o mtodo adotado pelo Abade LEpe, que utilizava a lngua de sinais na educao de surdos (mtodo francs), e o mtodo hoje conhecido como oralista (mtodo alemo), concebido pelo pedagogo alemo Samuel Heinicke (1729-1790), que ensinou vrios surdos a falar.

    Paralelamente ao trabalho de LEpe, destacou-se na Frana Roch Ambroise Sicard (1742-1822), tambm abade, que fundou a Escola de Surdos de Bordus e mais tarde foi sucessor de LEpe na direo do Ins-tituto Nacional de Surdos-Mudos de Paris, em 1790. Nesse perodo, o nmero de professores surdos superou o nmero de ouvintes atuantes na instituio.

    Em 1779, Pierre Desloges, que ficou surdo aos sete anos devido varo-la, autor do livro (sem ttulo oficial conhecido) considerado como a primei-ra publicao de um surdo, defendeu o uso da lngua de sinais e manifes-tou-se contra as ideias oralistas que se firmavam naquele perodo.

    Outro fator que tambm contribuiu para o fortalecimento da mentali-dade oralista foi a inveno da pilha eletroltica, por Alessandro Volta, em 1800. Em seus estudos, Volta relata, ainda, a estimulao eltrica dos ouvi-dos, ligando uma varinha a duas baterias introduzidas no canal auditivo. Dessa forma, teve-se notcia das primeiras prteses auditivas manufatura-das em Londres.

    A disputa entre os mtodos espalhou- -se por vrios pases, sendo que em 1807 Peter Castberg fundou a primeira escola para surdos na Dinamarca, que utilizava o mtodo francs, ou seja, com uso da lngua de sinais. E nesse mesmo perodo, em 1808, surgiu na prpria Frana um mdico cha-mado Jean-Marc Itard, que ensinou alguns surdos a falar, propondo um mtodo base-ado no treinamento da deteco e discrimi-nao dos sons, passando aos exerccios de fala e por ltimo escrita, ou seja muito con-vergente proposta alem.

    Dom

    nio

    pb

    lico.

    Jean-Marc Itard (1774-1838).

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    Histria da educao de surdos: Idade Contempornea

    Difuso dos mtodos na Europa e AmricaComo as metodologias concentravam-se na Europa, em 1815, o norte-ame-

    ricano Thomas Hopkins Gallaudet (1787-1851), dirigiu-se quele continente para conhecer as escolas de surdos e seu trabalho educacional. Recusado em Londres para aprender o mtodo l utilizado, seguiu para Paris, onde conhece Laurent Clerc, surdo francs e educador que o acompanha aos Estados Unidos com o objetivo de criar uma escola para surdos naquele pas. Assim, em 1817, a escola de Hartford foi inaugurada, baseando o seu ensino na Lngua Gestual Americana, como foi denominada na poca uma mescla do francs gestualizado com o ingls e que mais tarde estruturou-se como ASL (American Sign Langua-ge). Alm disso, a escola tambm usava o alfabeto manual e o ingls escrito para a formao de seus alunos.

    Por volta de 1821, Itard reviu sua posio anterior e passou a defender a lngua de sinais como natural aos surdos e que seria similar em benefcio pessoal lngua oral, porm ainda acrescentou que para poder viver na sociedade, de maioria ouvinte, seria tambm necessrio a expresso pela fala. Nesse mesmo ano, na Baviera criou-se uma escola experimental de surdos e ouvintes integra-dos, onde para os surdos haveria o diferencial de um apoio intensivo, porm em 1854 esse sistema foi desfeito, com a alegao de prejudicar a educao dos ouvintes.

    Em Portugal, por deciso do rei D. Joo VI, no ano de 1823, foi fundado o Instituto de Surdos-Mudos e Cegos, sob a orientao do especialista sueco Pr Aron Borg, que muito contribuiu para o ensino de crianas surdas da Sucia e Finlndia, com a implementao do alfabeto manual e comunicao gestual.

    No ano de 1838, Itard, agora mdico do Instituto de Paris, obteve resultados apreciveis de recuperao de audio com alguns alunos e marcou o incio da recuperao cirrgica da surdez do ouvido mdio. Mais tarde, em 1853, os brit-nicos William Wilde e Joseph Toynbee publicaram um tratado sobre a cirurgia do ouvido e outro sobre a patologia do ouvido mdio, conferindo respeitabilidade clnica e cientfica otologia.

    Nesse nterim, nos Estados Unidos foram sendo fundadas diversas institui-es, como o Instituto de Colmbia que, graas a Edward Miner Gallaudet, filho de Thomas Gallaudet passou a ter status de colgio e mais tarde, em 1857, deu origem Universidade Gallaudet, onde foi presidente por 40 anos.

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    Alexander Graham Bell (1847-1922), conhecido por registrar a patente do te-lefone, abriu uma escola oralista para professores de surdos, em Boston no ano de 1872. Entre suas ideias estavam a proibio da atuao de professores surdos, a no permisso do casamento entre surdos e ainda a exigncia de se ensinar a fala a todos.

    Porm, mesmo com a tendncia de origem francesa em manter a lngua de sinais na educao dos surdos, as crticas geradas pela proposta oralista, que afirmava que somente a lngua oral seria capaz de expressar toda a plenitude de pensamento do ser humano, colocando at mesmo a lngua escrita num plano secundrio, ganhou muitos adeptos e se fortaleceu. Com isso, no incio do sculo XX, a maioria das escolas de surdos, em todo o mundo, abandonou o uso da lngua de sinais e passou a embasar todo seu trabalho na reabilitao da fala.

    Em consequncia do avano e da divulgao das prticas pedaggicas com surdos no mundo inteiro, foi realizado, em 1878, em Paris, o I Congresso Interna-cional sobre a Instruo de Surdos. Esse evento foi o cenrio de acalorados de-bates a respeito das experincias e dos trabalhos realizados at ento, e dividiu as opinies em dois grandes grupos. Um, que defendia a importncia do uso dos sinais na educao, e outro, que afirmava que somente a instruo oral podia integrar o surdo na sociedade.

    Congresso de MiloNo ano de 1880, em Milo, realizou-se o II Congresso Internacional sobre a

    Educao de Surdos e foi o marco histrico de maior impacto na rea da surdez e tambm o momento mais obscuro de toda essa jornada, sendo que as resolu-es ali definidas repercutiram at quase um sculo.

    O congresso foi organizado por uma maioria ouvinte e oralista, sendo que apenas 3 dos 255 participantes eram surdos, com o objetivo especfico de dar fora de lei s propostas de trabalho exclusivamente na modalidade oral na edu-cao dos surdos.

    As recomendaes debatidas tiveram apoio de praticamente todas as de-legaes, incluindo a alem, a italiana, a francesa, a inglesa, a sueca e a belga, sendo apenas contestadas pelo grupo norte-americano, liderado por Edward Miner Gallaudet, tendo como consequncia a excluso total da lngua de sinais no ensino de surdos. Alm disso, outras resolues foram aprovadas, porm apenas uma, a primeira, por unanimidade. Foram elas:

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    Histria da educao de surdos: Idade Contempornea

    os governos devem tomar medidas para que todos os surdos recebam educao;

    o mtodo que desenvolve a fala deve ter preferncia sobre os gestos na instruo e na educao dos surdos;

    considerando que a utilizao simultnea dos gestos e da fala tem a des- vantagem de prejudicar a fala, a leitura labial e a preciso das ideias, o Congresso declara que o mtodo oral puro deve ser preferido;

    a maneira mais apropriada para os surdos adquirirem a fala o mtodo intuitivo, ou seja, que ensina primeiro a fala, depois a escrita;

    os professores de surdos, que utilizavam o mtodo oralista, deveriam re- gistrar seu trabalho a fim de public-los e divulgar suas tcnicas;

    a comunicao dos surdos deveria ser sempre por meio da fala, indepen- dentemente se essa comunicao se daria exclusivamente entre surdos, ou entre estes e os ouvintes.

    as turmas de surdos poderiam somente ter, no mximo, 10 alunos, e a ida- de admitida de ingresso nas escolas seria entre os 7 ou 8 anos.

    as crianas surdas recm-admitidas nas escolas deveriam permanecer se- paradas das mais velhas, que j utilizavam a lngua de sinais, para que no fossem contaminadas e sua instruo deveria ser implementada com ur-gncia dentro do mtodo oralista.

    Observou-se no congresso que, com a ampla importncia dada aquisi-o da lngua oral, o ensino das disciplinas (Histria, Geografia, Matemtica etc.) foi deixado em segundo plano, o que resultou num nvel muito baixo de escolarizao.

    Em 1900, no Congresso Internacional de Paris, menos polmico, Edward M. Gallaudet props que o ensino da lngua oral fosse ministrado apenas para aqueles que pudessem dela se beneficiar, entretanto sua proposta foi ampla-mente rejeitada, mantendo-se ento as indicaes do Congresso de Milo.

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    Em Viena, no ano de 1901, na clnica Politzer, Ferdinand Alt inventou a prte-se auditiva eltrica, baseada na tecnologia do telefone.

    A WFD World Federation of the Deaf (Federao Mundial de Surdos) foi fundada em 1951, em Roma.

    No campo da otologia, foram sendo realizados diversos estudos e experimen-tos, at que em 1955 surgiram novos modelos de prteses auditivas, colocados num molde inserido na orelha.

    Assim, no mundo todo, a partir do Congresso de Milo, o oralismo foi o refe-rencial assumido e as prticas educacionais vinculadas a ele foram amplamente desenvolvidas e divulgadas. Porm, em 1958, na cidade de Manchester, na In-glaterra, o Congresso Internacional sobre o Moderno Tratamento Educativo da Surdez deu incio a uma renovao, extinguindo o mtodo oral puro na maior parte dos pases europeus, consagrando o mtodo materno-reflexivo do holan-ds Van Uden.

    Em seguida, a partir da publicao do artigo Sign language structure: an ou-tline of the usual communication system of the american deaf, em 1960, William Stokoe demonstrou que a lngua de sinais tem uma estrutura semelhante s ln-guas orais, e desenvolveu o conceito de querema, isto , a unidade mnima da lngua o equivalente gestual de um fonema da lngua oral.

    Assim, com a insatisfao de vrios educadores, com o insucesso do oralismo na efetiva incluso social dos surdos, com os avanos nas pesquisas sobre as lnguas de sinais e sua aceitao como cdigo complexo e com reconhecimen-to de lngua genuna, iniciou-se um perodo de novas propostas educacionais, partindo-se para a origem de um novo mtodo, conhecido como Comunicao Total, idealizado por Roy Holcon em 1968. Esse mtodo baseava-se na utilizao da lngua de sinais, alfabeto manual, leitura labial e fala, dependendo da possi-bilidade do aluno. Posteriormente, na dcada de 1980, comeou a ter projeo mundial a filosofia do bilinguismo, a qual at hoje est permeando todos os pro-cessos pedaggicos voltados educao de surdos. O bilinguismo defende o uso de duas lnguas no contexto escolar, sendo a primeira lngua a de sinais e a segunda lngua, a oficial do pas, preferencialmente na modalidade escrita.

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    Histria da educao de surdos: Idade Contempornea

    Texto complementar

    Histria dos surdos: representaes mascaradas das identidades surdas

    (STROBEL, 2007)1

    Assim como a identidade depende da diferena, a diferena depende da identidade.

    Identidade e diferena so, pois, inseparveis.

    Tomaz Tadeu da Silva

    Este artigo versa sobre as identidades e as representaes e se refere s prticas dos sujeitos famosos sobre as suas percepes cotidianas na so-ciedade nos vestgios histricos que envolvem suas identidades surdas ca-mufladas, isto , mascaradas. Esses seres famosos so sujeitos que todos conhecem atravs de vrios discursos oficiais por meio de seus feitos que marcaram na histria da humanidade, por exemplo, a inveno da luz, em performances nos cinemas e televises, participao na poltica e outros, no entanto os registros nada dizem que esses mesmos famosos so surdos.

    Refletimos o porqu e como se d a representao exonerada e disfara-da da identidade surda dos discursos oficiais, tais como os registros histri-cos em vrios livros, enciclopdias, jornais, artigos etc. nas atividades e vidas de sujeitos famosos no seu cotidiano. As representaes sociais de modo geral analisam na sua forma discursiva na linguagem em que se estimulam a respeito de suas identidades imaginrias, isto , sendo concebidos como seres ouvintes, em uma dimenso histrica no contexto agradvel e aceit-vel para a sociedade.

    Moscovici analisa a representao social como uma formao de outro tipo de conhecimento adaptado a outras necessidades, obedecendo a outros critrios, num contexto social preciso (1978, p. 24) e para esse autor as re-presentaes sociais se formam principalmente quando as pessoas esto expostas s instituies, aos meios de comunicao de massa e herana histrico-cultural da sociedade. E com isso brotou a necessidade de aperfei-

    1 Karin Lilian Strobel surda e doutora em Educao pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

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    oar a qualidade de vida dos sujeitos surdos, realada pelos princpios que norteiam a incluso e a normalizao e pela evoluo do conceito de pro-moo de sade. Por exemplo, improvisar para que os sujeitos surdos possam aprender a falar e a ouvir, fazendo que aparentem ser ouvintes, isso usar identidade mascarada de ouvintes, tendo a surdez fingida ou negada.

    Cito o exemplo do famoso inventor de telefone, Alexander Graham Bell, cuja me e esposa eram surdas e, segundo o autor Sacks (1990), elas tinham as identidades da surdez negada. Sabe-se que de modo geral a represen-tao social respinga a averso ou vem de forma paternalista sobre quem deficiente na sociedade. Houve um tempo em que o sujeito surdo era tratado como um ser doente ou anormal. Como esclarece Lane (1992) a respeito das representaes dos surdos, a surdez no um privilgio para a sociedade porque os surdos no podem apreciar msicas, nem participarem numa conversa, no ouvem anncios ou utilizam o telefone, o sujeito surdo anda toa, parece que est numa redoma; existe uma barreira entre ns, por isso o surdo est isolado (p. 23). O que ser diferente? No ser igual ou no gostar das mesmas coisas? E com isso, muitas vezes os sujeitos surdos ficam com vergonha de suas identidades surdas na sociedade e tm seu prprio medo de contar a algum para no prejudicar a si mesmos, pois no querem que sejam vistos como doentes ou anormais.

    O pesquisador surdo Miranda (2001, p. 23) adverte no que se refere iden-tidade surda: Ela ameaada constantemente pelo outro. Esse outro pode se referir aos surdos que optaram pela representao da identidade ouvin-te. Essa poltica de representao geralmente ter uma incidncia negativa. Ento se um sujeito surdo se sobressai, excepcionalmente aprendeu a falar e a ler os lbios, isso faz muita diferena na representao social. De fato, quanto mais insistem em colocar mscaras nas suas identidades e quanto mais manifestaes de que para os surdos importante falar para serem aceitos na sociedade, seno eles ficam nas suas prprias sombras, medos, angstias e ansiedades. As opresses das prticas ouvintistas so comuns na histria passada e presente para o povo surdo.

    Cito alguns exemplos de identidade mascarada: o inventor da luz eltrica, Thomas Edison, na escola era mau aluno, pouco assduo e desinteressado. Saiu da escola e foi alfabetizado pela me. Aos 12 anos vendia jornais, livros

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    Histria da educao de surdos: Idade Contempornea

    e foi telegrafista numa ferrovia. Aos 31 anos, props a si mesmo o desafio de obter luz a partir da energia eltrica. Procurei em muitas enciclopdias, artigos, revistas e na maioria dessas referncias bibliogrficas nem citam que ele era surdo. Por que no? Ser que para a sociedade difcil conceber que um sujeito surdo possa ser um gnio a ponto de inventar a luz eltrica? Du-rante a infncia, Thomas Edison teve uma srie de infeces de ouvido que no foram propriamente tratadas. Pelo menos em uma delas, houve a reten-o de fluido no ouvido mdio. Artrite tambm foi mencionada como causa. Alm disso, ele teve escarlatina. mais provvel que a verdadeira causa da deficincia auditiva de Thomas Edison seja uma das explicaes mdicas. Mas, seja l qual for a razo, ele uma vez disse: Eu no ouo o canto de um pssaro desde que tinha treze anos.

    Dica de estudoO livro autobiogrfico de Emmanuelle Laborit, uma atriz francesa surda, cha-

    mado O Voo da Gaivota (1996), retrata momentos marcantes de sua infncia, adolescncia difcil, as dificuldades na rea da comunicao e sua superao na conquista de uma vida autnoma e feliz.

    Atividades1. No incio da Idade Contempornea duas metodologias se sobressaram na

    educao de surdos. Cite quais so elas, suas principais caractersticas e seus idealizadores.

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  • Histria da educao de surdos: Idade Contempornea

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    2. Aponte os fatos principais de resistncia ao oralismo, ocorridos inicialmente na Frana e posteriormente nos Estados Unidos, que culminaram na funda-o da Universidade Gallaudet.

    3. Em sua opinio, quais foram as principais consequncias das resolues apresentadas pelo Congresso de Milo, em 1880?

    Gabarito1. Abade LEpe mtodo francs utilizava a lngua de sinais na educao

    de surdos.

    Samuel Heinicke mtodo alemo, conhecido como oralismo somente trabalhava expresso oral.

    2. Pierre Desloges, francs, autor do livro considerado como a primeira pu-blicao de um surdo, defendeu o uso da lngua de sinais e manifestou-se contra as ideias oralistas que se firmavam naquele perodo.

    Thomas Hopkins Gallaudet americano dirigiu-se para Paris, onde conhe-ce Laurent Clerc, surdo francs e educador, que o acompanhou aos Estados Unidos com o objetivo de criar uma escola para surdos naquele pas. Assim, foi fundada uma escola que baseava o seu ensino na Lngua Gestual Ame-ricana, que mais tarde estruturou-se como ASL (American Sign Language). Alm disso, a escola tambm usava o alfabeto manual e o ingls escrito para a formao de seus alunos. Depois, seu filho, Edward Miner Gallaudet, tambm educador de surdos, deu origem Universidade Gallaudet, onde foi presidente por 40 anos.

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    Histria da educao de surdos: Idade Contempornea

    3. Extino do uso da lngua de sinais nas escolas; utilizao do mtodo oralista em todas as escolas de surdos, privilegiando o uso da fala e da leitura labial; desrespeito aos profissionais surdos que foram impedidos de exercer sua profisso; falta de referncia da cultura surda e sua identidade por meio da imposio da cultura ouvinte; colocao dos indivduos surdos num status inferior ao dos ouvintes.

    RefernciasCABRAL, Eduardo. Para uma Cronologia da Educao dos Surdos. Porto: NEPES/IFSC, 2001.

    HISTRIA dos surdos. Disponvel em: . Acesso em: 3 ago. 2010.

    LANE, H. A. A Mscara da Benevolncia: a comunidade surda amordaada. Lisboa: Instituto Piaget, 1992.

    POKER, Rosimar Bortolini. Abordagens de Ensino na Educao da Pessoa com Surdez. Marlia: Unesp, 2007.

    REVISTA da Feneis. ano 1, n. 1. Rio de Janeiro, jan./mar. 1999.

    REVISTA da Feneis. ano 1, n. 2. Rio de Janeiro, abr./jun. 1999.

    REVISTA da Feneis. ano 2, n. 6. Rio de Janeiro, abr./jun. 2000.

    REVISTA da Feneis. ano 2, n. 8. Rio de Janeiro, out./dez. 2000.

    S, Ndia Regina Limeira de. Educao de Surdos: a caminho do bilinguismo. Niteri: UFF, 1999.

    SALLES, Helosa Maria Moreira Lima et al. Ensino da Lngua Portuguesa para Surdos: caminhos para a prtica pedaggica. v. 2, MEC: Braslia, 2004.

    STROBEL, Karin Lilian. Histria dos Surdos: representaes mascaradas das identidades surdas. In: QUADROS, Ronice Mller; PERLIN, Gladis. (Orgs.) Estudos Surdos II. Petrpolis, RJ: Arara Azul, 2007.

    ______. Surdos: vestgios culturais no registrados na histria. Florianpolis: UFSC, 2008.

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  • Histria da educao de surdos: Idade Contempornea

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  • A histria da educao de surdos no Brasil teve incio em 1855, quando o imperador Dom Pedro II trouxe ao pas o professor francs surdo Hernest Huet, com o objetivo de iniciar um trabalho com surdos, especificamente duas crianas, que foram beneficiadas com bolsas de estudos pagas pelo governo. O trabalho proposto por Huet baseava-se no mtodo francs, portanto, com a utilizao da lngua de sinais e a escrita. A estimulao da fala e leitura labial era secundria e estaria voltada apenas para os que apresentassem aptides de desenvolver a linguagem oral. Nesse perodo houve o primeiro contato dos surdos brasileiros com a lngua de sinais francesa, trazida por Huet, possibilitando, assim, a compreenso de sua forte influncia na Lngua Brasileira de Sinais.

    No dia 26 de setembro de 1857, foi fundado o Imperial Instituto de Surdos-Mudos no Rio de Janeiro. Paralelamente sua fundao, foi apro-vada a Lei 939, que designava a verba para auxlio oramentrio ao novo estabelecimento e penso anual para cada um dos dez alunos que o go-verno imperial admitiu no Instituto.

    Em 1862, Huet deixou a direo do Instituto, e quem assumiu seu cargo foi Dr. Manuel de Magalhes, que, por no ser especialista na rea, acabou por comprometer todo o atendimento aos surdos. Isso resultou em uma inspeo do governo, que passou a considerar o local um asilo para surdos.

    Mais tarde, por volta de 1911, sob influncia da Europa e seguindo a tendncia determinada pelo Congresso de Milo, o Instituto passou a as-sumir o oralismo como mtodo de educao de surdos, restabelecendo os trabalhos com a articulao da fala e leitura labial.

    Na mesma poca comearam a surgir outras escolas para surdos no Brasil, como o Instituto Santa Terezinha para Meninas em So Paulo, a Escola Concrdia em Porto Alegre (RS), a escola de Surdos de Vitria (ES) e o Centro de Audio e Linguagem Ludovico Pavoni em Braslia (DF). Todas movidas pela mesma filosofia, elas adotavam o mtodo oralista na educa-o de seus alunos.

    Histria da educao de surdos no Brasil

    55Este material parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informaes www.iesde.com.br

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    Histria da educao de surdos no Brasil

    Em 1956 o Instituto passou a ser chamado de Instituto Nacional de Surdos-Mudos e ainda permitia que a lngua de sinais fosse usada nas salas de aula entre os alunos, nos corredores e nos espaos sociais, at que, em 1957, a ento dire-tora Ana Rmola de Faria Dria proibiu oficialmente sua utilizao no ambiente escolar. Nesse mesmo ano o Instituto passou a ser denominado (INES) Instituto Nacional de Educao de Surdos, nome que permanece at hoje.

    A chegada de novos mtodosNa dcada de 1970, com a visita de Ivete Vasconcelos, educadora de surdos

    da Universidade Gallaudet, chegou ao Brasil a filosofia da Comunicao Total, ou seja, a que defende que todos os recursos so importantes e indispensveis para promover a comunicao: fala, leitura labial, escrita, lngua de sinais e alfabeto manual. tambm conhecida como bimodalismo ou portugus sinalizado.

    Em 1977 foi fundada a Federao Nacional de Educao e Integrao dos De-ficientes Auditivos (Feneida) (RJ), sendo que toda a sua diretoria era composta por ouvintes.

    A partir da dcada de 1980, com as pesquisas realizadas pela linguista Lu-cinda Ferreira Brito sobre a Lngua Brasileira de Sinais (Libras) e as contribuies de outros estudiosos da rea, iniciaram-se no Brasil as primeiras propostas da filosofia do bilinguismo. Essa filosofia tem por base o ensino de duas lng