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MENDEL DOS LIVROS

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Stefan Zweig

MENDEL DOS LIVROS

tradução do alemão, apresentação, cronologia biogrdfica e notas

ÁLVARO GONÇALVES

AS SÍR I O & AL V I M

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Mendel dos Livros Stefan Zwcig

Publicado em Portugal por Assírio & Alvim www.assirio.pt

©Álvaro Gonçalves (tradução) © Porto Editora, 2014

1. • edição: setembro de 2014

Assírio & Alvim é uma chancela da Porto Editora, Lda.

Reservados todos os direitos. Esta publicação não pode ser reproduzida, nem transmitida, no todo ou cm parte, por qualquer processo eletrónico, mecânico, fotocópia, gravação ou outros, sem prévia autorização escrita da Editora.

Este Uvro respeita as regras do Acordo Ortográfico da Ungua Portuguesa.

Distribuição Porto Editora, Lda.

Rua da Restauração, 365 4099-023 Porto 1 Portugal

www.portoedltora.pt

Execução grtifica Bloco Gr6tlco. Ldl. Unidade Industrial da Mala.

DEP. LEGAL 379182114 ISBN 978-972-37-1781-5

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ÍN D I C E

Apresentação, Álvaro Gonçalves...................... 9 Cronologia Biogrdfica .. .. .. .. .. .. .................. ....... 17

MENDEL DOS L IVR OS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33

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APRESENTAÇÃO

ÁLVARO GONÇALVES

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Stefan Zweig nasceu em 28 de novembro de 1881 em Viena no seio de uma família judia de alta burgue­sia. Filho de um próspero e rico industrial têxtil e de uma descendente de banqueiros internacionais, passou a sua infância, adokscência e juventude em Viena. Fez os estudos primdrios na escola primdria de Werdertor­gasse e os estudos liceais no liceu vienense Maxi,milian­gymnasium (mais tarde denominado W asagymna­sium), instituição prestigiada e .frequentada na altura essencialmente por filhos de abastados judeus vienenses. Em 1900, inicia os estudos universitdrios na Universi­dade de Viena, inscrevendo-se no curso de Filosofia e frequentando em simultâneo cadeiras da drea das Ciências Literdrias. Após ter passado uma temporada na Universidade de Berlim, termina os estudos univer­sitdrios, em 1904, com um doutoramento subordinado ao tema «A Filosofia de Hippolyte Taine». Foi justa­mente a «.filosofia» de Taine, segundo a qual o homem era o resultado da influência do seu meio histórico-cul­tural que inftuendou fortemente a sua escrita biogrd­fica de figuras históricas, que incluíam políticos e ex-

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ploradores, mas também pensadores, escritores e poetas. O interesse pelas figuras históricas do passado leva-o também a aproximar-se de importantes personalidades do seu tempo, mantendo contacto, por exemplo, com Sigmund Freud, Paul Valiry, Rainer Maria Rilke e, sobretudo, com o poeta, escritor e dramaturgo belga de expressão francesa Emile V erhaeren, cu,ja obra traduz e divulga em língua alemã.

O seu interesse pela Literatura, que resulta não propriamente dos ensinamentos dos mestres do seu li­ceu, que de resto detesta, mas sim do ambiente literdrio e cu,/tural frroilhante da Viena do pós-guerra, leva-o, logo no início da sua ca'rreira literdria, a dedicar-se à tradução de grandes poetas modernistas, jd citados. Como jovem intelectual, deixa de se interessar exclusi­vamente pelos nomes consagrados da literatura, da mú­sica e da arte alemã e europeia (Gottfried Keller, Hen­rik Ibsen, ]ohannes Brahms, Wilhelm Leibl e Eduard von Hartmann), para se dedicar à leitura e ao estudo de novos talentos que iam emergi.ndo na cena literdria e cu,ltural europeia: Baudelaire, Whitman, Valéry, Mallarmé, entre outros, cu,ja divulgação na língua alemã se deve em grande parte ao seu interesse e, sobre­tudo, às suas traduções e estudos introdutórios publica­dos em prestigiadas editoras alemãs.

Como poeta e dramaturgo, deixa-se influenciar pelo movimento simbolista, vigente, na altura, no

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contexto do chamado Modernismo Vienense. No en­tanto, é no género da chamada N ovelle alemã que mostra a sua grande arte de narrar histórias de perso­nagens em situações-limite, recorrendo formalmente a um estilo simultaneamente intimista, elegante e só­brio. A descrição dos labirintos intrincados da alma humana é fortemente irifluenciada pela leitura dos textos seminais do seu amigo Sigmund Freud, de que se alimentou também o seu conterrâneo vienense Ar­thur Schnitzler. Não obstante ter tido uma atitude crítica em relação a muitos dos conceitos defendidos por Freud, as suas N ovellen, em especial Amok (1922) e Veiwirrung der Gefühle (1927) («Confo­são de Sentimentos»), revelam claramente essa in­fluência, na forma como escalpeliza os conflitos psí­quicos resultantes, segundo a opinião do fondador da psicandlise, das normas morais rígidas da sociedade burguesa contemporânea vienense.

A crescente influência dos nacional-socialistas na sociedade e política austríaca, aliada à instauração do chamado «austrofascismo», em 1933, (regime fon­dado pelo Chanceler Engelbert Dolfuss e que se ba­seava na ideologia fascista de Mussolini) e após ter sido vítima de uma busca domicilidria na sua casa de Salzburgo, forçam-no a abandonar definitivamente a Áustria, mudando-se primeiro para Inglaterra, em 1934 e, posteriormente, para o Brasil em 1940.

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Apesar de ter conseguido a cidadania inglesa, em 1940, receia ser confandido com os alemães e, conse­quentemente, ser considerado um enemy alien. Por isso, decide partir para o Brasil passando pelos Esta­dos Unidos, Argentina e Paraguai, obtendo um visto permanente do regime de Getúlio Vargas. Estabelece­-se, com a sua segunda mulher Lotte Zweig, com quem se casara entretanto, em Petrópolis, onde, recatado e isolado do bulício do Rio de janeiro, pensa ter encon­trado a paz necessária para continuar a escrever. Neste período, redige a Novela de Xadrez, inicia a escrita de um ensaio sobre Montaigne e termina a autobio­grafia O Mundo de Ontem. Recordações de um Europeu.

Na sua condição de «cidadão europeu» tolerante, tal como o seu mentor Romain Rolland, desiludido com a situação de guerra e destruição da Europa, tanto em termos físicos como culturais e vivendo num estado de profunda depressão, que o persegue há já al­guns anos, prepara minuciosamente a sua morte, or­gankando o seu espólio, escrevendo cartas, que seriam de despedida, aos amigos mais íntimos, redigindo o testamento e uma «declaração» dirigida às autorida­des brasileiras, em que agradece a sua hospitalidade durante a sua estada de uns meses em Petrópolis. Fi­nalmente, em 1942, suicida-se, juntando-se-lhe a se­guir a sua mulher no leito de morte.

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A novela Mendel dos Livros foi escrita em 1929 e publicada, em folhetim, no jornal didrio vienense Neue Freie Presse, de que era colaborador perma­nente. Não obstante ser uma obra com um tema pouco comum nele, ao contrdrio do seu amigo e tam­bém judeu Joseph Roth, ela tem muito a ver com o próprio Stefan Zweig. Escrita na perspetiva de um autor/narrador distante e objetivo, que narra a histó­ria de um judeu ortodoxo galiciano, estabelecido hd anos em Viena como alfarrabista/vendedor de livros ambulante, e cujo único interesse eram os livros que comprava e vendia a universitdrios e académicos de Viena, a história constitui espantosamente a anteci­

pação em mais de uma dezena de anos do definha­mento do escritor Stefan Zweig: a metdfora de um es­critor, «cidadão europeu», pacifista empenhado, entregue de corpo e alma, como o próprio Mendel o era aos seus queridos livros, à criação de uma obra li­terdria europeia com características universais, mas que, vítima da barbdrie nacional-socialista, perde tudo, isto é o seu país, a sua língua, os seus leitores da língua alemã para quem escrevia e o próprio sentido da vida. Se, por um lado, Stefan Zweig se serve da novela Mendel dos Livros e, consequentemente, do judeu galiciano jakob Mendel para expressar uma determinada mensagem, que ignora, de certo modo inconscientemente, a condiç do terrível dos judeus

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orientais (descrita por Joseph Roth no seu livro de en­saios Judeus Errantes), utilizando-o como o paradigma das transformações provocadas pelo pós-guerra na Viena dos anos vinte, ela não deixa de ser uma pode­rosa história premonitória do que viria a acontecer anos depois naquela Viena de Mendel e o que viria a acontecer a ele próprio, Stefan Zweig, após o aban­dono da Áustria e da língua alemã que tanto amava.

abril de 2014

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CRONOLOGIA BIOGRÁFICA

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1881

«A sua fama mundial foi bem merecida e é trágico que a força de resistência psíquica deste homem muito talentoso tenha ruído em consequênda da grave pressão destes tem­pos. O que mais admirava nele era o dom que possuía para dar vida, psicoúJgica e ar­tisticamente, às épocas e figuras históricas»

THOMAS MANN, «Elogio fünebre». Aufbau, Nova Iorque, 27 de fevereiro de 1942

Viena: 28 de novembro. Stefan Zweig nasce no seio da alta burguesia vienense, em Viena, Schottenring, 14. Segundo filho do industrial têxtil, Moriz Zweig (1845-1926), e de Ida Brettauer 1854-1938), des­cendente de banqueiros internacionais.

1887-1892 Frequenta a escola primária na Werdertorgasse, 1. 0 Bairro de Viena.

1892-1900 Frequenta o Maximiliangymnasium (liceu austríaco), designado posteriormente Wasagymnasium, no 9. 0 Bairro de Viena.

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A PARTIR DE 1897 Publica os primeiros poemas nas revistas alemãs Deuts­che Dichtung (Berlim) e Die Gesellschaft (Munique).

1900 Termina os estudos liceais. Primeira viagem à França.

1900-1904 Inicia os estudos universitários na Universidade de Viena: Filosofia e Ciências Literárias.

1901 Publica o seu primeiro livro de poemas, Silberne Saiten («Cordas de Prata»), na editora berlinense Schuster & Lõffier.

1902 Inicia a colaboração com o jornal vienense Neue Freie Presse, passando a ser colaborador permanente deste jornal até 1938. Conhece o fundador do sionismo, Theodor Herzl. Viagem à Bélgica. Conhece Emile Verhaeren. Pu­blica, em colaboração com Camill Hoffmann, tra­duções de poemas de Baudelaire: Gedichte in Vers und Prosa (Hermann Seemann, Berlim).

1902/o3 Frequenta a Universidade de Berlim no semestre de verão. Estabelece contacto com o círculo literário berlinense Die Kommenden.

1904 Termina os seus estudos na U nivetsidade de Viena com uma tese de doutoramento subordinada ao tema <<A Filosofia de Hippolyte Taine».

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Sai o seu primeiro livro de contos, Die Liebe der Erika Ewald («0 Amor de Erika Ewald»), na edi­tora Egon Fleischel de Berlim. Sai o livro Ausgewiihlte Gedichte («Poesias Escolhi­das») de Verhaeren, na editora Schuster & Lõffier, de Berlim, em tradução de Zweig. Viagem a Paris. Conhece Rilke e Rodin. Visita Verhaeren na Bélgica. Viagem a Inglaterra.

1905 Viagem a Espanha e Alger. Sai a monografia sobre Paul Verlaine (Schuster & Lõffier, Berlim).

1906 Publica o segundo volume de poemas Die frühen Kriinze («As Primeiras Coroas») na prestigiada edi­tora Insel Verlag, de Leipzig. Estada de quatro meses em Inglaterra. Traduz o livro Die visioniire Kunstphilosophie des William Blake («A Filosofia de Arte Visionária de William Blake»), de Archibald B.G. Russel (edi­toraJulius Zeitler, Leipzig).

1907 Muda-se para o seu primeiro apartamento na Koch­gasse, 8, no 8.0 Bairro vienense. Publica a peça de teatro em verso T ersites. Sai a monografia sobre Rimbaud: Rimbaud: Leben und Dichtung («Rimbaud: Vida e Obra»), na lnsel Verlag, com traduções de Karl Klammer e intro­dução de Zweig.

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1908 Sai o livro Balzac: sein Weltbild aus den Werken (« Balzac: A Sua Conceção do Mundo a Partir das Suas Obras»), na editora Robert Lutz, Estugarda. 26 de novembro: Estreia da peça T ersites simultanea­mente em Dresden e Kassel.

1908/o9 Novembro: Faz uma viagem de longo curso e de longa duração ao continente asiático (Ceilão, Gwa­lior, Calcutá, Benares, Rangum e para o interior da Índia).

1910 Publica dois volumes de obras do poeta e escritor belga Emile Verhaeren, traduzidas por si («Poesias Escolhidas» e «Três Dramas», acompanhados de um estudo monográfico sobre o autor, na editora lnsel Verlag. Nesta mesma editora, publica o en­saio «Dickens» como introdução a uma edição de obras completas. Viagem a Paris. Primeiro encontro com Romain Rolland.

1911 Viagem aos EUA, Canadá, Canal de Panamá, Cuba e Porto Rico. Publica o volume de contos Erstes Erlebnis. Vier Geschichten aus Kinderland. («Primeira Experiên­cia. Quatro Histórias da Terra da Infância»).

1912 Tradução dos Hymnen an das Leben («Hinos à Vida») de Verhaeren, na editora Insel Verlag.

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5 de maio: Estreia da peça Der verwandelte Komo­diant («0 Comediante Transformado»), no Teatro Lobe, em Breslau. 26 de outubro: Estreia da peça Das Haus am Meer (<<A Casa à Beira-Mar») no Burgtheater de Viena. Conhece a sua futura mulher Friderike Maria von Winternitz (1882-1971).

1913 Publica a novela Brennendes Geheimnis («Segredo Ardente»), Der verwandelte Komodiant e a tradu­ção da obra Rubens, de Verhaeren, na editora lnsel Verlag.

1914 Após a eclosão da Primeira Guerra Mundial, alista­-se como voluntário, sendo destacado para o Ar­quivo Militar, a partir de 1 de dezembro. Colabora nos escritos de propaganda do Arquivo Militar e na revista patriótica Donauland.

1915 Viagem em serviço para a Galícia, libertada recen­temente.

1916/I917 Neste período, Stefan Zweig e Friderike von Win­ternitz vivem numa vivenda em Kalksburg, a sul de Viena. Compra a casa na Kapuzinerberg, em Salzburgo, um antigo pavilhão de caça de um bispo do século XVII.

1917 Torna-se sócio da firma Moriz Zweig.

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Conferências na Suíça sobre a temática do paci­fismo. Contacta intelectuais e escritores pacifistas alemães, franceses e suíços. Conhece James Joyce, Hermann Hesse, René Schickele, entre outros. Sai o drama paciflstaferemim na editora Insel Verlag.

1918 Estreia da peça Jeremias' no novo teatro municipal em Zurique. Estreia da peça Legende eines Lebens («Lenda de Uma Vida»). Traduz o romance de Romain Rolland Clerambault e a peça de teatro Die Zeit wird kommen («0 Tempo Virá»). Passa um ano em Zurique no Hotel Belvoir com Friderike, onde redige o ensaio sobre Dostoievski. 25 de dezembro: Estreia da peça Legende eines Le­bens («Lenda de Uma Vida»), em Hamburgo.

1919 Fins de março: regressa à Áustria. Muda-se, junta­mente com Friderike, para Salzburgo. Estreia da peçaferemim no Volkstheater, em Viena. Publica a tradução da obra Emil oder die Erziehung («Emil ou a Educação») de Rousseau, na editora Kiepenheuer, Potsdam.

1920 Casa-se com Friderike von Winternitz na Câmara Municipal de Viena. É publicada a novela Der Zwang (<<A Obrigação») e o conjunto de ensaios Drei Meister («Três Mestres») sobre Balzac, Dickens e Dostoievski, a primeira parte da série Baumeister der Welt (<<Arquitetos do Mundo»).

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1921 Publica a biografia: Romain Rolland, der Mann und das Werk («Romain Rolland, o Homem e a Obra»), na editora Rütten & Loening, Frankfurt am Main. Dostoievski: Siimtliche Romane e Novellen, («Obras Completas»), com a introdução de Stefan Zweig (ln­sel Verlag).

1922 É publicado o volume Amok. Novellen einer Leidens­chaft (<<Amok. Novelas de Uma Paixão») na editora lnsel Verlag. Organiza e publica uma edição das obras de Paul Verlaine em alemão, também na lnsel Verlag. A Insel-Bücherei publica a obra Die Augen des ewigen Bruders («Os Olhos do Eterno Irmão»), que rapidamente se torna um êxito editorial.

1923 Sai o estudo monográfico Frans Masereel. Der Mann und BiUner («Frans Masereel. O Homem e o Artista») na editora Axel J uncker Verlag de Berlim. Sai a obra Sainte-Beuve; Literarische Portriits em dois volumes, organizada por Zweig na editora Frank­funer Verlagsanstalt.

1924 A lnsel Verlag publica Die gesammelten Gedichte («As Poesias Reunidas»). Escreve a introdução à obra Romantische Erziihlun­gen (« Contos Românticos») de Chateaubriand (editora Rikola, Viena-Leipzig-Munique). Primeiro encontro com Salvador Dalí, em Paris.

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1925 Escreve a introdução à obra ]ugenderinnerungen («Memórias da Juventude») de Renan publicada pela editora Frankfurter Verlagsanstalt. É publicado o segundo volume de ensaios da série Baumeister der Welt («Hõlderlin, Kleist e Nietzsche>>): Der Kampf mit dem Diimon («0 Combate com o Demónio»), na editora lnsel Verlag. Viagem à Alemanha e à França.

1926 Falecimento do pai. É publicada a comédia Volpone, adaptação livre da obra de Ben Jonson (Kiepenheuer, Potsdam). Realiza conferências em várias cidades da Alemanha. 6 de novembro: Estreia da peça Volpone no Burgthea­ter em Viena.

1927 Sai o volume de novelas Verwirrung der Gefohle («Confusão de Sentimentos») na editora lnsel Verlag e a obra Sternstunden der Menschheit («Os Momentos Decisivos da Humanidade») na editora Insel-Bücherei. Na União Soviética, sai uma edição de dez volumes das obras de Stefan Zweig, que é prefaciada por Ma­ksim Gorki.

1928 É publicada a primeira biografia de Stefan Zweig da autoria de Erwin Rieger. Sai o terceiro volume de ensaios da série Baumeister der Welt («Casanova, Stendhal e Tolstoi»): Drei Dichter ihres Lebens («Três

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Escritores da sua Própria Existência»), na editora lnsel Verlag. Viagem à Bélgica e à França. Viagem à União Sovié­tica para assistir aos festejos do centenário do nasci­mento de Lev Tolstoi.

1929 É publicada a obra Joseph Fouché - Bildnis eines politischen Menschen («Joseph Fouché- Retrato de Um Homem Político»); Das Lamm des Armen («0 Cordeiro do Pobre») e o volume de quatro novelas Kleine Chronik («Breve Crónica»), na lnsel Verlag. Viaja pela Alemanha e pela Bélgica. Profere o discurso em memória de Hugo von Hofmannsthal no Burgtheater, em Viena.

1930 Viagem prolongada à Itália. Visita, em companhia de Frideríke, Maksim Gorki em Sorrento. Encontro com Alben Schweitzer, em Günsbach. Representa­ção da peça Das Lamm des Armen em Breslau, Ha­nover, Lübeck, Praga e Viena.

1931 Recebe a encomenda do libreto para a ópera Die schweigsame Frau («A Mulher Silenciosa») de Ri­chard Strauss. Viagem a França. Encontro com o seu amigo Jo­seph Roth. Publica o quano volume de ensaios da série Bau­meister der Welt («Freud, Mesmer e Mary Baker-

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-Eddy>>): Die Heilung durch den Geist («A Cura pelo Espírito»), na editora Insel Verlag.

1932 A lnsel Verlag publica Marie-Antoinette. Bilrlnis ei­nes mittleren Charakters («Maria Antonieta. Re­trato de Um Carácter Comum»). Viagem à França e à Itália. Conferências em Florença e Milão.

1933 Queima de livros pelos nacional-socialistas em que se incluem também os livros de Stefan Zweig. Proibição da venda dos seus livros na Alemanha. Até 1938, os livros são publicados pela editora Herbert Reichner de Viena. Inicia os estudos pre­paratórios, em Basileia, para o livro T riumph und Tragik des Erasmus von Rotterdam («Triunfo e Tra­gédia de Erasmo de Roterdão»). Viagem à França e à Itália. Estada prolongada em Londres, onde vive num pequeno apartamento alugado.

1934 Confrontos em Viena entre a Heimwehr e os socia­listas. Após ter sido sujeito a uma busca domiciliária por suspeita de possuir armas, revoltado, Zweig decide abandonar a Áustria e emigrar para Inglaterra. Fride­rike prefere ficar em Salzburgo, juntamente com as filhas do seu primeiro casamento. É publicado o li­vro T riumph und Tragik des Erasmus von Rotterdam. Lotte A.ltmann torna-se sua secretária e acompa­nha-o à Escócia para recolher material para a bio-

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grafia de Maria Stuart. Após o seu regresso, pla­. neia desfazer-se da sua casa em Salzburgo.

1935 Tradução da peça de Pirandello Non si sa come (edi­tora Reichner Verlag). Estreia da ópera Die schweigsame Frau (<<A Mulher Silenciosa») de Richard Strauss, com o libreto de Stefan Zweig. Pouco depois da estreia, a ópera é proibida na Alemanha. Viagem à Suíça e à França. Viagem aos EUA para proferir conferências sobre os mais variados temas. Sai o livro Maria Stuart (Reichner Verlag, Viena).

1936 Muda-se para um apartamento maior em Londres: Hallam Street, 49. São publicados em Viena dois volumes de novelas completas. Sai o estudo Castellio gegen Calvin - Ein Gewissen gegen die Gewalt («Castellio contra Calvino -Uma Consciência Contra a Violência»). Em agosto, viaja pela primeira vez ao Brasil. Gran­diosa receção. Profere conferências e faz leituras das suas obras. A seguir, viaja pela Argentina e par­ticipa no congresso do PEN-Clube.

1937 É publicado em Viena um volume de ensaios e memórias Begegnungen mit Menschen, Büchern, Stadten («Encontros com Pessoas, Livros, Cidades») e a lenda Der begrabene Leuchter ( «Ü Candelabro

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Enterrado», ambos publicados pela editora Herben Reichner. A casa de Salzburgo é vendida. Separação defini­tiva da sua mulher Friderike.

1938 Viaja a Ponugal acompanhado da sua secretária Lotte Altmann. Trabalhos preparatórios para a biografia de Fernão de Magalhães. Sai a obra biográfica Magellan. Der Mann und seine Tat («Magalhães. O Homem e o Seu Feito»). Falecimento da mãe. Requer a cidadania britânica. Divorcia-se de Friderike. Anexação (Anschluss) da Áustria pelo Deutsches R.eich. Os seus livros são queimados publicamente em Salzburgo, juntamente com os dos seus compatrio­tas judeus. Profere conferências em trinta cidades americanas.

1939 Sai a versão inglesa do romance Ungeduld des Her­zens (« Impaciência do Coração») na editora Cas­sells de Londres com o título « Beware of Pity». Sai também a versão alemã em Amsterdão (Albert de Lange) e em Estocolmo (Bermann Fischer). Muda-se para a cidade de Bach, na Inglaterra. Ca­sa-se com a sua secretária Lotte Altmann. Inicia a escrita do ensaio dedicado ao seu escritor preferido Honoré de Balzac.

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26 de setembro: Profere um breve elogio fúnebre perante a urna do seu amigo Sigmund Freud no Golders Green Crematorium.

1940 O casal Zweig adquire a cidadania britânica. Profere uma conferência subordinada ao tema Das "Wien von Gestern («A Viena de Ontem») em Paris. Em julho, viaja a Nova Iorque e à América do Sul. Regressa a Nova Iorque. Último encontro com os escritores no exílio. Inicia a escrita do livro Brasi­lien. Land der Zukunft (« Brasil, País do Futuro»).

1941 Aluga uma casa em New Haven. Prepara a biografia de Américo V espúcio na Universidade de Yale: Ame­rigo - Geschichte eines historischen lrrtums (<<Amerigo

- História de Um Erro Histórico»), publicada na Bermann Fischer, em Estocolmo. O livro Brasilien. Ein Land der Zukunft sai em ver­são alemã na Bermann Fischer de Estocolmo e a versão inglesa na editora Viking de Nova Iorque. Neste mesmo ano, saem as versões portuguesa, es­panhola, sueca e francesa. Viagem ao Brasil. O casal Zweig passa a residir em Petrópolis, a pou­cos quilómetros do Rio de Janeiro. Escreve a novela Schachnovelle (« Novela de Xa­dreZ»). Inicia a escrita de um estudo sobre Mon­taigne e termina a autobiografia Die Welt von Ges-

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tern. Erinnerungen eines Europders. («0 Mundo de Ontem. Recordações de Um Europeu»).

1942 O alastramento da guerra mundial agrava o seu es­tado de depressão. No dia 22 de fevereiro, suicida­-se, juntando-se-lhe mais tarde a sua mulher Lotte. Funeral estatal, em que participa o próprio Presi­dente do Brasil, Getúlio V argas. Em maio de 1942, a Universidade de Viena retira­-lhe o título de Doutor.

Esta Cronologia biográfica de Stefan Zweig recupera a Cro­nologia que elaborei para a Novela de Xadrez, traduzida por mim e publicada na coleção «Ü Imaginário» da Assírio & Alvim em 2013. Foi, no entanto, revista e corrigida para esta edição. Recorri, essen­cialmente, às seguintes fontes:

• Harcmut Müller, Stefan Zweig, mit selbtszeugnissen und Bild­dokumenten. Reinbeck hei Hamburg, Rowohlt Taschenbuch Ver­lag, 2008.

• lnternationale Stefan Zweig Gesellschaft, Literacurarchiv Salzburg - Universitat Salzburg: http://stefan-zweig.sbg.ac.at/ impressum.htm

• Marc Rombach, Die Stefan-Zweig-Homepage: http://www. stefanzweig.de

• Oliver Matuschek, Stefan Zweig:Drei Leben - Eine Biogra­phie, Frankfurt am Main, Fischer Taschenbuch Verlag, 2008.

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MENDEL DOS LIVROS

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De novo em Viena e de regresso a casa vindo de uma visita à periferia, fui apanhado inespera­damente por uma bátega de água que, com o açoite molhado, afugentava rapidamente as pes­soas para os portões das casas e para os abrigos, e eu próprio tive de procurar apressadamente um refúgio protetor. Felizmente; a cada canto de Viena está sempre um café à espera, - assim, com o chapéu já a pingar e os ombros perfeita­mente encharcados, refugiei-me logo naquele que estava mesmo à frente. Visto de dentro, tinha o aspeto de um café de subúrbio tradicional, de tipo quase esquemático, sem as atrações de última moda dos salões de dança do centro da cidade, copiadas da Alemanha, com um ambiente bur­guês da antiga Viena e a abarrotar de gente sim­ples, que consumia mais jornais do que doçaria. Naquele momento, fazia-se já noite, o ar, já de si abafado, estava densamente marmorizado com anéis de fumo azul, contudo aquele café tinha um aspeto limpo com os seus sofás de veludo vi-

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sivelmente novos e a sua caixa registadora de bri­lho de alumínio: com toda aquela pressa, nem se­quer me dei ao trabalho de ler o seu nome, mas também para quê? - E então sentei-me naquele ambiente quente, a olhar com impaciência atra­vés das vidraças tintadas de azul à espera que a chuva importuna se dispusesse a afastar-se uns quilómetros para mais longe.

Sem nada para fazer, deixei-me sentar por ali e comecei a sentir aquela passividade indolente que brota narcoticamente de forma invisível de todos os cafés genuinamente vienenses. Com aquela sensação de vazio, pus-me a contemplar in­dividualmente as pessoas, nas quais a luz artificial desta sala de fumo deixava marcas de sombra dum cinzento pouco saudável em torno dos olhos, olhava para a rapariga da caixa registadora, admi­rando como ela com gestos mecânicos entregava ao empregado de mesa o açúcar e a colher para cada um das chávenas de café, lia, meio adorme­cido e inconsciente, os cartazes, completamente triviais, que se encontravam pendurados nas pare­des, e esta espécie de apatia quase me fazia sentir bem. Mas subitamente despertei de uma forma estranha do meu estado de sonolência, despontava em mim um movimento interior de uma inquie­tação vaga como se fosse o início de uma ligeira

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dor de dente de que ainda não se sabe se parte da esquerda, da direita, do maxilar de baixo ou do de cima; senti apenas uma surda tensão, um desas­sossego espiritual. Pois, subitamente - não teria sabido dizer como - fiquei com a sensação de uma vez ter estado lá havia já anos e que, através de uma recordação qualquer, me sentir ligado àquelas paredes, àquelas cadeiras, àquelas mesas, àquele espaço invulgar e envolto em fumo.

Quanto mais impelia a vontade a fim de apreender aquela recordação, era maior a forma maliciosa e escorregadia como ela recuava -como uma medusa brilhando incerta no estrato mais profundo da consciência e, ainda assim, longe de se poder agarrar, de se poder apanhar. Fitava em vão cada um dos objetos que se encon­travam no local; é certo que não conhecia alguns deles, como por exemplo a caixa registadora auto­mática tilintante e aquele revestimento castanho de parede de falso palissandro, tudo isso deve ter sido colocado mais tarde. Mas sem dúvida que estive ali há vinte anos ou mais, justamente ali fi­cou perdurado, oculto no invisível como o prego na madeira, algo do meu eu, já encoberto há muito tempo. Estendi e empurrei violentamente todos os meus sentidos para o espaço e simulta­neamente para dentro de mim mesmo - e ainda

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assim - raios partam! - não conseguia alcançar aquela recordação desaparecida e afogada dentro de mim mesmo.

Irritei-me como quem se irrita quando uma fa­lha qualquer nos torna conscientes da insuficiência e deficiência das nossas capacidades mentais. Mas eu não perdi a esperança de ainda assim recuperar aquela recordação. Sabia que precisava apenas dum minúsculo gancho ao alcance da mão, pois a minha memória é de uma índole particular, simultanea­mente boa e má, por um lado, desafiadora e obsti­nada e, por outro, indescritivelmente fiel. Ela traga o mais importante, tanto no que diz respeito aos acontecimentos como também aos rostos, tanto ao lido como ao vivido, descendo muitas vezes até ao fundo da sua obscuridade e nada dá desse sub­mundo sem pressão, respondendo apenas ao cha­mamento da vontade. Mas só me basta o mais fu­gaz apoio, um postal, alguns traços de escrita sobre um envelope, uma folha de jornal amarelecido e, rapidamente, como o peixe preso ao anzol, o as­sunto esquecido ressurge, sacudindo-se, da profun­deza escura da superfície da água, completamente viva e sensível. Reconheço então cada um dos por­menores de uma pessoa, a sua boca e, na sua boca, por sua vez, a falha entre os dentes à esquerda quando se ri e o tom rouco do riso e como o bi-

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gode se contrai enquanto se ri e como com esse riso nasce um rosto novo e diferente - vejo tudo isso de imediato numa visão completa e recordo-me, passados anos, de cada palavra que aquela pessoa al­guma Vf1 me tenha dito. Mas, para ver e sentir algo ocorrido no passado de forma sensível, necessitava sempre de um estímulo sensorial, de uma minús­cula ajuda da realidade. Assim, fechei os olhos para poder refletir de forma mais intensa, para moldar e agarrar aquele anzol misterioso. Mas nada! De novo, nada! Soterrado e esquecido! E fiquei de tal modo exasperado sobre o aparelho de memória que se encontra entre as minhas têmporas que podia golpear a fronte com os punhos exatamente como sacudimos uma máquina de venda automática es­tragada, que retém ilicitamente o que lhe pedimos. Não, não podia continuar sentado tranquilamente, era tal a enervação que aquele falhanço íntimo me causava, e levantei-me deveras irritado para me des­contrair. Mas que estranho - mal dera os primei­ros passos na sala, quando começou a produzir-se dentro de mim, tremeluzindo e brilhando, aquele primeiro resplendor fosforescente. Lembrei-me que à direita da caixa registadora devia haver um cami­nho a conduzir para uma sala sem janelas e ilumi­nado apenas com luz artificial. E, de facto, era ver­dade. Estava ali, com um revestimento de papel de

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parede distinto de então, mas, ainda assim, exata­mente naquelas proporções, aquela sala traseira quadrada, com os seus contornos imprecisos, justa­mente a sala de jogos. Instintivamente, pus-me a observar cada um dos objetos em meu redor, com os nervos a vibrar já de alegria (tinha a sensação de que em breve flcaria a saber tudo). Duas mesas de bilhar estavam por ali como lodeiros verdes e silen­ciosos, nos cantos havia mesas de jogos, numa das quais dois conselheiros ou professores universitários jogavam xadrez. E, num canto, junto ao aquecedor de ferro, por onde se ia à cabina de telefone, havia uma mesa de tampo quadrado. E, subitamente, senti um clarão no meu íntimo. Soube, de ime­diato, de imediato, de um único e ardente golpe, que me fez estremecer de encantamento: Meu Deus, esse era o lugar de Mendel, de Jakob Men­del, de Mendel dos livros, e, passados vinte anos, ti­nha ido eu parar de novo ao seu quartel-general, ao Café Gluck, na parte alta de Alserstrassel, Jakob Mendel, como tinha eu podido esquecê-lo, durante um período incompreensivelmente longo, aquela personagem tão particular, aquele homem lendário,

1 Importante rua vienense, que atravessa os 8.0 Qosefstadt) e 9.0 (Alsergrund) bairros. Situa-se aqui o antigo Hospital Geral (Allgemeines Krankenhaus-AKH), que constitui atualmente um dos polos universitários da Universidade de Viena.

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aquela maravilha do mundo peculiar, famoso na Universidade e num círculo restrito e respeitoso -como varrê-lo da memória, a ele, ao mago, ao cor­retor dos livros, que se sentava ali de forma persis­tente, de manhã até à noite, um símbolo do saber, sendo a glória e a honra do Café Gluck!

E só tive de revirar os olhos para dentro, por trás das pálpebras, durante aquele único segundo, quando se ergueu, do sangue iluminado por ima­gens, a sua figura inconfundível e plástica. Vi-o de imediato em pessoa, como ele se sentava sem­pre a uma mesinha quadrada coberta por um tampo de mármore de um sujo acinzentado, que estava sempre repleto de livros e escritos. Como ele se sentava ali, persistente e imperturbável, com o olhar, que, atravessando os óculos, cravava hipnoticamente num livro, como ele se sentava ali e, sussurrando e resmungando, durante a lei­tura, oscilava para a frente e para trás o seu corpo e a calva mal polida e manchada, um hábito que trouxera da chederl, a escola infantil do Leste. Ali, naquela mesa e apenas naquela mesa lia os seus

1 Palavra de origem hebraica para «quarto/habitação• e desig­na, por extensão, a escola tradicional judaica de carácter religioso onde se aprendem as bases do judaísmo e da língua hebraica, tanto no judaísmo ocidental (até fins do séc. XIX) como no oriental (até ao Holocausto).

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catálogos e livros, tal como lhe ensinaram a ler na escola de talmudel, cantarolando em voz baixa e balanceando-se, um berço preto e baloiçante. Pois tal como uma criança que adormece e se desprende do mundo através daquele vaivém rítmico e hipnó­tico, também o espírito, segundo a opinião dos de­votos, se entranha mais facilmente na graça da sub­mersão devido a esse balançar e oscilar do corpo ocioso. E de facto aquele Jakob Mendel não via e não ouvia nada do que acontecia à sua volta. Ao seu lado, os jogadores de bilhar faziam barulho e vociferavam, os marcadores corriam dum lado para o outro, o telefone matraqueava; esfregava-se o chão, acendia-se o fogão e tudo lhe passava ao lado. Um dia, um carvão em brasa saltou para fora do fogão, e, a dois passos dele, o parquê já cheirava a queimado e fumegava, só então, alertado pelo cheiro infernal, um dos hóspedes se deu conta do perigo e atirou-se apressadamente para apagar a fu­marada: mas o próprio Jakob Mendel, que se en-

1 Expressão derivada do hebraico e que significa «estudo» ou «aprendizagem». Constitui o texto mais importante do judaísmo tradicional ou rabínico. É uma compilação, em dezenas de volumes, de discussões e debates legais, éticos e alegóricos conduzidos por antigos rabis ao longo dos séculos. Representa, deste modo, o registo histórico das gerações fundadoras do judaísmo rabínico e a fonte básica da lei judaica tal como é cumprida pelos judeus ortodoxos.

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contrava a pouca distância do local e já enegrecido pelo fumo, não se apercebera de nada. Pois, lia como outros rezam, como os jogadores jogam e os bêbados, atordoados, olham para o vazio, lia com uma concentração tão comovente que, desde aquele momento, todo o tipo de leitura feita por uma outra pessoa me parecia sempre qualquer coisa de profano. Naquele pequeno alfarrabista galiciano chamado Jakob Mendel, vira pela primeira vez como jovem o grande mistério da concentração absoluta que faz tanto um artista como um erudito, um verdadeiro sábio como um louco, esta felici­dade e infelicidade trágica da absoluta obsessão.

Quem me levara até ele fora um colega mais velho da Universidade. Estava, naquela altura, a fazer uma pesquisa sobre o então ainda pouco co­nhecido médico e magnetizador paracélcico Mes­mer, de resto com pouco êxito; pois as obras que diziam respeito ao tema revelaram-se insuficien­tes e o bibliotecário, a quem eu, um novato ingé­nuo, pedira informações, resmungou em termos pouco amáveis, afirmando que informações bi­bliográficas eram algo que me diziam respeito a mim e não a ele. Na altura, o tal colega referiu­-me pela primeira vez o seu nome. «Vou contigo a Mendel», prometeu-me, «ele sabe tudo e conse­gue tudo, ele traz-te o livro mais invulgar do mais

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recôndito alfarrabista alemão. O homem mais eficiente de Viena e, para além disso, é ainda um indivíduo original, um sáurio de livros pré-histó­rico de uma raça em extinção.»

Assim, fomos os dois ao Café Gluck e, quem diria, lá estava sentado Mendel de livros, de óculos, barba desalinhada; vestido de negro e balanceando o corpo, enquanto lia, como um arbusto escuro ao vento. Aproximámo-nos dele, não sentiu a nossa presença. Limitava-se a ficar sentado e balanceava a parte superior do corpo para a frente e para trás, à maneira dum pagode, por cima da mesa, e atrás dele balançava num gancho o seu sobretudo preto e gasto, igualmente atulhado até não poder mais de revistas e papelinhos com apontamentos. Para nos anunciar, o meu amigo pôs-se a tossir com força. Mas Mendel, com os óculos grossos colados ao li­vro, ainda não notou nada. Finalmente, o meu amigo bateu no tampo da mesa com a mesma in­tensidade e força com que se bate à porta - então Mendel olhou finalmente para cima, levantou com a rapidez mecânica para cima da testa os pesados óculos de armação de aço e, por baixo das sobran­celhas cinzentas eriçadas, dois estranhos olhos cra­varam-se em nós, olhos pequenos, negros e desper­tos, rápidos, agudos e tremulantes como a língua de cobra. O meu amigo apresentou-me e eu expus

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o meu pedido, começando por revelar uma apa­rente füria em relação ao bibliotecário - pois o meu amigo tinha-me recomendado expressamente a astúcia -, que não me quisera dar nenhuma in­formação. Mendel recostou-se e cuspiu cuidadosa­mente. Depois, soltou uma breve risada, expres­sando-se com o seu jargão marcante do Leste europeul: «Ele não quis? Não - ele não foi capaz! Não passa de um inútil2, um jumento maltratado com cabelo grisalho. Conheço-o. Para a minha des­graça, há já largos vinte anos, mas não aprendeu nada desde então. Embolsar o salário, é a única coisa que sabem fazer! Deviam carregar pedras, em vez. de estarem sentados rodeados de livros.»

Com esta enérgica descarga emocional tinha­-se quebrado o gelo, e um bondoso movimento da mão convidava-me, pela primeira vez, a aproxi­mar-me da mesa de mármore quadrada repleta de papelinhos com apontamentos, portanto daquele altar de revelações bibliófilas ainda desconhecido para mim. Disse rapidamente quais eram os meus

1 Não sendo possível traduzir o alemão muito característico, com uma forte influência do iídiche, falado pelos judeus orientais residentes na Viena do século XIX e dos princípios do século XX,

tqdas as falas da personagem «MendeJ. foram revertidas ao alto-ale­mão vienense.

2 No original alemão: Parch. Expressão de origem iídiche que significa o mesmo que «inútil» ou «imprestável».

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desejos: Obras contemporâneas sobre o magne­tismo, assim como todos os livros e polémicas pos­teriores a favor e contra Mesmer; mal terminei a frase, Mendel fechou durante um segundo o olho esquerdo, exatamente como se fosse um atirador prestes a disparar. Mas, verdadeiramente, este gesto de atenção concentrada durou apenas um se­gundo, depois enumerou rapidamente e de forma fluida, como se estivesse a ler a partir dum catá­logo invisível, duas ou três dezenas de livros, cada um deles com os respetivos local e ano de publica­ção e o preço aproximado. Fiquei perplexo. Em­bora viesse preparado, não estava à espera daquilo. Mas o meu espanto parecia agradar-lhe; pois, de imediato, pôs-se a tocar no teclado da sua memó­ria as mais espantosas variações bibliotecárias sobre o meu tema. Perguntou-me se queria saber tam­bém alguma coisa sobre os sonambulistas e sobre as primeiras experiências com a hipnose e so­bre Gassnerl, a bruxaria e a Christian Science2 e

1 Trata-se do padre jesuíta austríaco Johann Joseph Gassner (1727-79), que, baseando-se na convicção de que todas as doenças não naturais se deviam às forças demoníacas e utilizando métodos de exorcismo, obteve grande êxito na cura das mais variadas doen­ças de que padeciam os seus paroquianos. É hoje considerado um

dos pioneiros do hipnotismo. 2 Movimento religioso fundado por Mary Baker Eddy (1821-

-1910), descrito pela primeira vez no seu livro Science and Health

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Blavatskyl. Jorravam de novo os nomes, os títulos, as descrições; só nessa altura compreendi como me deparara em Jakob Mendel com uma memória de prodígio sem igual, de facto com uma enciclopé­dia, com um catálogo universal sobre duas pernas. Fitei, completamente atordoado, aquele fenómeno bibliográfico, camuflado num invólucro pouco vistoso, dir-se-ia até algo ensebado, dum pequeno alfarrabista galiciano, que, depois de me ter matra­queado cerca de oitenta nomes para os ouvidos, aparentemente sem dar imponância, mas no seu íntimo satisfeito com o seu trunfo jogado, se pôs a limpar os óculos com um lenço que outrora talvez tivesse sido branco. Para dissimular um pouco o meu espanto, perguntei-lhe timidamente qual de entre aqueles livros poderia, na melhor das hipóte­ses, arranjar-me. «Pois, vamos ver o que se pode fazer», resmungou por entre dentes. «Venha cá amanhã outra vez, Mendel sempre conseguirá en­tretanto desencantar alguma coisa e o que não se

(«Ciência e Saúde»). Defende uma forma radical de idealismo fl­losóflco, considerando a realidade espiritual como a única e verda­deira realidade. De acordo com a fllosofla da «Ciência Cristã», o mundo material não passa de um ilusão.

1 Helena Petrovna Blavatsky (1831-91). Teósofa russa, que fundou em 1875, em Nova Iorque, a Sociedade Teosóflca. Através do estudo do sânscrito, iniciou-se nas práticas esotéricas do ocul­tismo oriental, divulgando-as nas várias revistas fundadas por si.

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encontrar, arranjar-se-á noutro sítio. Quem tem bom sensol, tem também sorte.» Agradeci gentil­mente e, por pura amabilidade, cometi, sem que me apercebesse, uma gafe ao propor-lhe que ano­tasse os títulos dos livros que desejava num papeli­nho. Naquele preciso momento senti uma cotove­lada de advertência da parte do meu amigo. Mas era já tarde de mais! Mendel já me tinha lançado um olhar - e que olhar era! -, um olhar simulta­neamente triunfante e ofendido, sarcástico e de su­perioridade, um olhar decididamente régio, o olhar shakespeariano de Macbeth, quando Macduff exige ao herói invencível que se entregue sem combater. Depois, soltou de novo uma curta gargalhada, a enorme maça de Adão na sua garganta grugulejou para cima e para baixo de forma estranha, ao que parece, Mendel acabara de engolir a custo uma pa­lavra grosseira que quisera proferir. E não há dú­vida que o bom e honrado Mendel teria tido razão em proferir todo o tipo de grosseria; pois só um es­tranho, um ingénuo (um amhorez2, como ele dizia) podia fazer-lhe a ele, a Jakob Mendel, a ele, a Jakob

1 No original alemão: Sechel. Palavra de origem iídiche, que significa «bom senso».

2 Palavra de origem iídiche que significa «idiota•, «ingénuo» ou «inculto», sobretudo no que respeita aos conhecimentos bíbli­cos, talmúdicos, hebraicos e aos costumes judeus.

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Mendel uma proposta tão humilhante para ele ano­tar um título de livro, como se fosse um aprendiz de uma livraria ou um empregado de biblioteca, como se aquele cérebro livresco inigualável e diamantino alguma vez. tivesse necessitado de um tão grosseiro recurso como esse. Só mais tarde compreendi até que ponto tinha ofendido o seu génio singular com aquela amável oferta; pois aquele judeu galiciano, J akob Mendel, pequeno, comprimido e completa­mente envolvido nas suas barbas, para além de ser corcovado, era um titã da memória. Por trás da­quela fonte calcária, suja e coberta por um musgo cinzento, encontravam-se, fazendo parte do mundo invisível de fantasmagoria, como que cunhados por meio de fundição de aço, cada um dos nomes e cada um dos títulos alguma vez impressos num &ontispício dum livro. Conhecia toda e qualquer obra, tanto a que tivesse sido publicada um dia an­tes como a que tivesse duzentos anos de existência, logo à primeira, o local exato de publicação, o autor, o preço, se era nova ou antiga, e, em cada livro, lembrava-se, com uma visão infalível, simultanea­mente da encadernação e das ilustrações e dos suple­mentos fac-similados, via cada obra, independente­mente de a ter tido nas suas mãos ou apenas a ter visto uma vez. ao longe :11uma montra ou numa bi­blioteca, com a mesma clareza ótica como um ar-

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tista vê o interior das suas criações, que são ainda in­visíveis ao resto do mundo. Lembrava-se, por exemplo, se um livro aparecia em oferta no catálogo dum alfarrabista de Ratisbona por um preço de seis marcos e, de imediato, se esse mesmo livro estivera disponível num exemplar diferente havia dois anos num leilão em Viena por quatro coroas, e, simulta­neamente, também do arrematante: não, J akob Mendel nunca se esquecia dum título, dum nú­mero, conhecia cada planta, cada infusório, cada es­trela no cosmo em perpétua oscilação e permanente agitação do universo do livro. Sabia de cada especia­lidade mais do que os especialistas, dominava as bi­bliotecas mais do que os bibliotecários, conhecia de memória os armazéns da maior parte das firmas me­lhor do que os seus proprietários, apesar das suas notas e dos seus ficheiros, enquanto ele de nada dis­punha a não ser da magia da lembrança, daquela memória incomparável e só explicável verdadeira­mente através de centenas de exemplos individuais. Cenamente que aquela memória só tinha podido exercitar-se e formar-se daquele forma diabolica­mente infalível graças ao eterno segredo de toda a perfeição que é a concentração. A exceção dos livros, este homem estranho não sabia nada do mundo; pois todos os fenómenos da existência começavam a tornar-se realidade para ele só quando estes se ti-

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nham vertido em letras, quando se tinham reunido num livro e, por assim dizer, se tinham esterilizado. Mas mesmo esses livros, não os lia com o objetivo de compreender o seu sentido, o seu conteúdo inte­lectual e narrativo: o que atraía a sua paixão era ape­nas o seu nome, o seu preço, o seu aspeto, o seu frontispício. Ao fim e ao cabo, improdutiva e sem nenhuma criatividade, um mero inventário de cen­tenas de milhares de títulos e nomes gravados no macio córtex cerebral de um mamífero, em vez de, como é habitual, estar registado num catálogo de li­vros, aquela memória específica de alfarrabista de Jakob Mendel era, contudo, na sua perfeição única como fenómeno, não menos importante do que a de Napoleão para as flsiognomias, de Mezzofantil para as línguas, de um Lasker2 para as aberturas de xadrez, de um Busoni3 para a música. Colocado numa instituição universitária, num cargo público, aquele cérebro teria ensinado e surpreendido milha­res, centenas de milhares de estudantes e estudiosos, seria proveitoso para as ciências, uma inigualável

1 Giuseppe Caspar Mezwfanti (1774-1849): Cardeal italiano, tornou-se famoso devido ao seu domínio de dezenas de línguas.

2 Emanud Lasker (1868-1941): jogador, matemático e fllósofo alemão, foi campeão de xadrez durante 27 anos.

3 Ferruccio Busoni (1866-1924): compositor, pianista e maes­tro italiano.

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aquisição para o tesouro público a que chamamos bibliotecas. Mas esse mundo superior estava para o pequeno alfarrabista galiciano sem formação acadé­mica, que não fora muito para além da sua forma­ção na escola talmúdica, para sempre vedado; assim, essas fantásticas capacidades podiam apenas ter o efeito de uma ciência oculta sobre a mesa de már­more do Café Gluck. Mas se alguma vez aparecer o grande psicólogo (esta obra ainda falta no nosso mundo intelecrual), que, de uma forma tão persis­tente e paciente como Buffon ordenou e classificou as diferentes espécies dos animais, descreva indivi­dualmente e exponha nas suas variantes, todas as es­pécies e formas primitivas do poder mágico a que chamamos memória, então deveria lembrar-se de Jakob Mendel, deste génio dos preços e dos títulos, deste mestre sem nome da ciência antiquária.

Em termos profissionais e para os ignorantes, Jakob Mendel não passava sem dúvida de um pe­queno comerciante de livros usados. Todos os do­mingos apareciam no Neue Freie Presse e no Neues Wiener Tagblatt os mesmos anúncios estereotipa­dos: «Compro livros antigos, pago os melhores preços, vou de imediato ao local, Mendel, Obere Alserstrasse» e depois um número de telefone, que na realidade era o número do Café Gluck. Vascu­lhava o depósito de livros, arrastava semanalmente,

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com a ajuda de um velho carrejão de barbas impe­riais, o novo despojo até ao seu quartel-general e daqui de novo para outro sítio, pois para exercer a atividade de comércio de livros em conformidade com as normas, faltava-lhe a concessão. De modo que se limitou ao pequeno comércio de livros usa­dos, a uma atividade menos lucrativa. Os estudan­tes universitários vendiam-lhe os seus manuais, que, pelas suas mãos, passavam de um ano mais ve­lho para o ano mais novo, para além disso, com um pequeno custo adicional, intermediava e arranjava qualquer obra procurada. Com ele, um bom conse­lho era barato. Mas o dinheiro não tinha nenhum lugar disponível no seu mundo; pois nunca nin­guém o vira vestido doutra forma que não fosse com o mesmo casaco puído, consumindo de ma­nhã cedo, à tarde e à noite o seu copo de leite e dois pãezinhos, e comendo ao almoço uma refeição ligeira que lhe iam buscar à casa de pasto do outro lado da rua. Não fumava, não jogava, sim, pode di­zer-se até que não vivia, apenas os dois olhos esta­vam vivos por trás dos óculos, alimentando inces­santemente aquele ser enigmático que dá pelo nome de cérebro com palavras, títulos e nomes. E a massa, macia e fértil, absorvia aquela abundante in­formação sofregamente como o prado absorve os milhares e milhares de gotas da chuva. Não lhe in-

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teressavam as pessoas, e de todas as paixões huma­nas conhecia provavelmente apenas uma, sem dú­vida a mais humana de todas elas que é a vaidade. Quando alguém ia ter com ele para lhe pedir al­guma informação, depois de se ter cansado de a procurar em todo o lado, e ele conseguia, logo à primeira, dar-lhe a resposta esperada, isso era sufi­ciente para provocar nele um sentimento de satisfa­ção, de prazer e talvez ainda isto, que, em Viena, e no estrangeiro havia umas dezenas de pessoas que respeitavam e necessitavam dos seus conhecimentos. E em cada um daqueles conglomerados desajeitados de milhões de seres a que chamamos metrópoles surgem, sempre em pontos reduzidos, algumas pe­quenas facetas que refletem, numa minúscula super­fície, o único e o mesmo universo, invisível para a maior parte das pessoas, precioso unicamente para os apreciadores, para os devotos da mesma paixão. E estes apreciadores de livros conheciam todos eles Jakob Mendel. Da mesma forma que quando al­guém queria um conselho sobre uma partitura re­corria a Eusebius Mandyczweski 1 na Sociedade de

1 Musicólogo e compositor austríaco de origem romena ( 1857- 1 929), foi discípulo de Martin Gustav Nottebohm e pro­fessor no conservatório na prestigiada GeseOschaft der Musikfreunde. Editou as obras completas de Franz Schubert, Joseph Haydn e Johannes Brahms, de quem era amigo íntimo.

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Amigos da Música, que, de carapuça cinzenta na cabeça, se sentava ali com aparência amável no meio de documentos e partituras, e, num simples gesto de levantar o seu olhar, resolvia sorridente­mente os problemas mais difíceis que se podiam imaginar, da mesma forma que ainda hoje sempre que alguém necessita de um esclarecimento sobre o teatro e a cultura da Viena antiga 1 se dirige infali­velmente ao omnisciente Glossy2, os poucos biblió­filos ortodoxos de Viena iam, em romaria, com a mesma confiante naturalidade, sempre que lhes surgia um osso especialmente duro de roer, ao Café Gluck para ver Jakob Mendel. Observar Mendel durante uma daquelas consultas proporcionou a um jovem curioso como eu um prazer muito espe­cial. Enquanto, normalmente, sempre que lhe apre­sentavam um livro de menor qualidade, se limitava a fechar a capa com desprezo, murmurando: «Duas coroas», perante uma qualquer raridade ou uma obra única, dava um passo atrás, respeitosamente, colocava uma folha por baixo do livro, e via-se

1 No original alemão: Altwiener Theater und Kultur. O con­ceito de Alt-Wien refere-se nostalgicamente ao período anterior a 1850, coincidente com o chamado período de Biedermeier, que, por sua vez, caracteriza tendências conservadoras e retrospetivas das artes em geral.

2 Historiador da Literatura e curador austríaco (1848-1937).

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como ele se envergonhava de súbito dos seus dedos sujos, manchados de tinta e com unhas negras. De­pois, começava terna e cuidadosamente e com um enorme respeito a folhear o raro exemplar, página a página. Ninguém podia incomodá-lo num mo­mento desses, tão-pouco como a um verdadeiro de­voto durante a oração, e, de facto, aquele gesto de observar, tocar, cheirar, pesar, cada uma daquelas ações individuais tinha qualquer coisa de cerimo­nioso, de uma sucessão regulada por um· culto de um ato religioso. As costas encurvadas moviam-se para lá e para cá, ao mesmo tempo que resmungava e rosnava, coçava o cabelo, soltava sons primitivos vocálicos, um «Ah» e «Üh» prolongado e assustado de uma admiração deslumbrada e depois, de novo, um rapidamente horrorizado «Ai» ou «Ai, meu Deus», quando faltava uma página ou uma folha parecia ter sido carcomida. Finalmente, pesava o calhamaço respeitosamente na mão, farejava e chei­rava o volumoso quadrado com os olhos semicerra­dos não menos comovido do que uma rapariga sentimental frente a uma tuberosa. Durante aquele procedimento de certo modo complicado, o pro­prietário tinha de manter a sua paciência. Mas uma vez terminado o exame, Mendel dava de bom grado, dir-se-ia entusiasmado, todo o tipo de infor­mações, a que se juntavam histórias abundantes e

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inevitáveis e relatórios de preços dramáticos de exemplares similares. Naqueles momentos, parecia ficar mais lúcido, mais novo, mais vivo e só uma coisa o podia irritar desmedidamente: quando, por exemplo, um novato lhe queria oferecer dinheiro por aquela avaliação. Depois, recuava ofendido como um conselheiro de galeria de arte a quem um viajante americano quer dar uma gorjeta pela sua explicação; pois, ter o privilégio de manusear um valioso livro significava para Mendel o mesmo que para uma outra pessoa era encontrar-se com uma mulher. Aqueles momentos eram para ele noites de amor platónicos. Somente o livro, nunca o di­nheiro, tinha poder sobre ele. Por isso, grandes co­lecionadores, de entre eles também o fundador da Universidade de Princeton, tentavam conquistar em vão os seus préstimos para as suas bibliotecas como conselheiro e comprador, - Jakob Mendel recusava as ofertas; não conseguia imaginar-se nou­tro sítio que não fosse o Café Gluck. Jovem baixo e encurvado, com uma barba ainda suave e de um negro macio e melenas em forma de anéis, viera, havia trinta e três anos, do Leste para Viena com o intuito de estudar o rabinato; mas logo deixara o ri­goroso Deus único Jeová para se entregar ao poli­teísmo brilhante e de mil formas dos livros. Na­quela altura dera com o caminho para o Café

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Gluck, que lentamente se transformara na sua ofi­cina, no seu quartel-general, na sua estação de cor­reios, no seu mundo. Como um astrónomo, que, solitário no seu observatório, observa, todas as noi­tes, através da minúscula abertura do telescópio, miríades de estrelas, as suas misteriosas evoluções, o seu caos deambulante, o seu apagamento e reacen­dimento, Jakob Mendel olhava, através dos seus óculos, a partir daquela mesa quadrada para o ou­tro universo dos livros, que gira e renasce da mesma forma perpetuamente, para aquele mundo sobre o nosso mundo.

É óbvio que ele gozava de grande prestígio no Café Gluck, cuja fama se associava, para nós, mais com a sua cátedra invisível do que com o apadri­nhamento do eminente músico, do criador de Al­ceste e de lphigénie: Christoph Willibald Gluck. Pertencia igualmente ao inventário como a velha caixa registadora de cerejeira, como as duas mesas de bilhar mal remendadas, a cafeteira de cobre, e a sua mesa era guardada como se fosse um santuário. Pois, sempre que apareciam os seus inúmeros clientes e informadores, estes eram amavelmente incitados pelo pessoal do Café a encomendar al­guma coisa, de modo que a maior parte do lucro da sua ciência afluía na realidade à volumosa car­teira de couro que o chefe dos empregados de mesa,

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Deubler, trazia presa à volta da cintura. Por esse facto, Mendel usufruía de múltiplos privilégios. Tinha o telefone gratuito, guardavam-lhe o correio e faziam-lhe todas as encomendas; a velha e boa mulher da limpeza escovava-lhe o sobretudo, co­sia-lhe os botões e levava-lhe todas as semanas uma pequena trouxa de roupa para lavar. Só ele tinha o direito que se fosse buscar o almoço a uma casa de pasto que ficava nas imediações, e todas as manhãs vinha à sua mesa o senhor Standhartner, o dono do Café, cumprimentá-lo pessoalmente (obvia­mente, sem que Jakob Mendel, absorto nos seus li­vros, desse por esse cumprimento) . Chegava pon­tualmente às sete e meia da manhã e deixava o Café só quando se apagavam as luzes. Nunca fa­lava com os outros clientes, não lia jornais, não se apercebia de nenhuma mudança, e quando uma vez o senhor Standhartner lhe perguntou cordial­mente se não lia melhor com a luz elétrica do que anteriormente com a luz baça e vacilante das lâm­padas de Auerl , levantou a cabeça e olhou espan­tado para as lâmpadas elétricas: aquela mudança ti­nha-lhe completamente passado ao lado, apesar do ruído e o martelar de obras de instalação que ti-

1 Lâmpada de gás incandescente de filamento metálico de ósmio, ligas de cério e outros metais raros inventada pelo químico austríaco Carl Auer von Welsbach (1858-1929) .

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nham durado vários dias. Era unicamente através das lentes redondas dos óculos, através daquelas duas lentes relampejantes e absorventes que se fil­travam no seu cérebro os milhares de infusórios negros das letras, todos os restantes acontecimen­tos lhe passavam ao lado como se fossem um ruído oco. Na realidade, passara mais de trinta anos, isto é toda a parte consciente da sua vida, sentado uni­camente ali àquela mesa quadrada, lendo, compa­rando, calculando, num estado de sonho contí­nuo, interrompido somente pelo sono.

Por isso, fui acometido por uma espécie de susto aterrador quando vi, vazia como uma lápide tumular, dormitando, naquele espaço, a fonte de oráculos que era a mesa de mármore de J akob Mendel. Só então, com a idade, compreendi quanto é o que desaparece com semelhantes seres humanos, primeiro porque tudo o que é único se torna, de dia para dia, mais valioso no nosso mundo que se vai tornando irremediavelmente uniforme. E mais, jovem e inexperiente como era, por um pressentimento profundo, sentira por ele uma grande afeição. Graças a ele, aproxi­mara-me, pela primeira vez, do grande mistério de que somente através da concentração interior, através da monomania análoga de forma sagrada à loucura se podia alcançar tudo o que é extraor-

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dinário e superior na nossa existência. Que uma vida pura no espírito, a completa abstração numa única ideia se pode produzir, também hoje, uma imersão não inferior à de um iogue indiano ou de um monge medieval na sua cela, demais a mais um café com iluminação elétrica, junto a uma ca­bine telefónica - este exemplo obtivera eu como um jovem muito mais daquele pequeno alfarra­bista completamente anónimo do que dos nossos escritores contemporâneos. Ainda assim, pudera esquecer-me dele - na realidade foi nos anos da guerra e numa entrega semelhante à dele à sua própria obra. Mas naquele momento, em frente àquela mesa vazia, sentira perante ele uma espécie de vergonha e, simultaneamente, uma renovada curiosidade.

Pois, onde estava ele, o que lhe acontecera? Chamei o empregado de mesa e perguntei-lhe. Não, lamentou, não conhecia nenhum senhor chamado Mendel, que um senhor com aquele nome não frequentava aquele Café. Mas talvez o chefe dos empregados de mesa soubesse dizer al­guma coisa. Este, avançando lentamente com a sua barriga proeminente, pôs-se a pensar hesi­tante: Não, nem tampouco ele conhecia um se­nhor chamado Mendel. Mas será que talvez esti­vesse a refe rir-me ao senhor Mandl, o senhor

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Mandl da drogaria da Florianigassel? Senti um sa­bor amargo nos lábios, um sabor da fugacidade: Para que vivemos se o vento atrás dos nossos sapa­tos apaga as nossas últimas pegadas? Durante trinta anos, talvez quarenta anos, uma pessoa respirara, lera, pensara, falara naquele espaço de uns quantos metros quadrados e foi necessário passar apenas três ou quatro anos, vir um novo faraó para que não se soubesse nada mais de Joseph, nada mais se sabia no Café Gluck de Joseph Mendel, de Mendel dos livros! Perguntei quase com raiva ao chefe dos em­pregados de mesa se não poderia falar com o se­nhor Standhartner ou se não haveria ninguém do pessoal antigo? Ó, o senhor Standhartner, ó Deus, há tanto tempo que ele vendera o Café, que ele morrera, e que o antigo chefe dos empregados de mesa vivia agora na sua pequena propriedade perto de Krems. Não, que não estava lá ninguém . . . ou talvez! Sim, claro - a senhora Sporschil ainda lá estava, a mulher da limpeza (vulgarmente conhe­cida como a senhora dos chocolates). Mas que ela certamente já não se lembraria dos clientes indivi­dualmente. Pensei de imediato: ninguém se es­quece de um Jakob Mendel e mandei chamá-la.

1 A Florianigasse (Rua Floriani) situa-se no 8.0 Bairro de Vie­na, denominado Josefitadt.

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E ela veio, a senhora Sporschil, de cabelo gri­salho, desgrenhada, dando pequenos passos hidró­picos, dos seus misteriosos aposentos, limpando apressadamente as mãos a uma toalha: aparente­mente estivera a varrer o seu sombrio aposento ou a limpar as janelas. Notei imediatamente no seu comportamento inseguro que se sentia desconfor­tável por ser chamada assim de súbito para a frente por baixo das grandes lâmpadas elétricas à parte nobre do Café - os vienenses veem em todo lado detetives e polícias quando alguém os quer interro­gar. Assim, ao princípio, olhou para mim descon­fiada, com um olhar dirigido de baixo para cima, um olhar muito cuidadosamente submisso. O que podia eu querer de bom dela? Mas mal a interro­guei sobre Jakob Mendel, fitou-me com os olhos arregalados, dir-se-ia irradiantes, e os ombros levan­taram-se-lhe bruscamente. «Meu Deus, o pobre Mendel, ainda há quem pense nele! Sim, o pobre Mendel» - ficou de tal modo comovida que quase chorou, como pessoas idosas o ficam quando se lhes faz lembrar a sua juventude, alguma feliz expe­riência comum. Perguntei-lhe se ele ainda era vivo. «Ó meu Deus, o pobre Mendel deve ter morrido já há seis anos, não, sete anos. Um homem tão amável e generoso, e quando penso durante quanto tempo o conheci, mais de vinte e cinco

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anos, pois ele já cá estava quando entrei. E foi uma vergonha a forma como o deixaram mor­rer.» Ficava cada vez mais nervosa, perguntava se era um familiar seu. Que nunca ninguém se inte­ressara por ele, ninguém perguntara por ele - e se não sabia o que lhe tinha acontecido.

Não, que não sabia de nada, garanti-lhe; ela que me contasse, que me contasse tudo. A boa mulher olhou tímida e envergonhada, limpando constantemente as suas mãos húmidas . Com­preendi que lhe era penoso, como mulher da lim­peza, ficar com o avental sujo e os seus cabelos brancos desgrenhados no meio do salão do café, para além disso olhava constantemente de forma apreensiva para a direita e para a esquerda com o receio de estar a ser ouvida por algum dos empre­gados de mesa. Então, sugeri-lhe que fôssemos ao salão de jogos, ao velho lugar que outrora fora de Mendel e que ali me contaria tudo. Comovida, acenou com a cabeça afirmativamente de modo que eu percebesse, e a velha senhora, já um pouco vacilante, foi andando à minha frente e eu atrás dela. Os dois empregados de mesa seguiram-nos espantados com o olhar, notaram que havia ali uma ligação qualquer, e até alguns hóspedes fica­ram admirados vendo-nos como um par desigual. E acolá, junto à sua mesa, contou-me {muitos ou-

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tros pormenores foram-me acrescentados através de um outro relato) sobre Jakob Mendel, sobre o declínio de Mendel dos livros.

Sim, portanto, também depois, contou-me, que quando começara a guerra, continuava a vir, dia atrás de dia, pelas sete e meia da manhã, sen­tando-se como habitualmente fazia, e estudava como sempre o dia inteiro, sim, toda a gente ti­nha a sensação e comentava frequentemente de que ele não tinha a mínima consciência de que se estava em plena guerra. Como aliás eu devia sa­ber, nunca pegava num jornal e nunca falava com ninguém; e mesmo quando os ardinas bran­diam as edições especiais e toda a gente se con­centrava à sua volta, nunca se levantava e se dava ao trabalho de se pôr à escuta. Também não no­tara que não estava lá Franz, o empregado de mesa (que morrera em combate em Gorlice) , e não soubera que o filho do senhor Standhartner fora preso em Przemysl, e não dissera uma única palavra sobre como o pão estava cada vez mais miserável e sobre o facto de terem que lhe dar uma zurrapa de chicória em vez de leite. Só estra­nhara uma única vez por virem tão poucos estu­dantes universitários e era tudo. - «Meu Deus, o pobre homem, nada o alegrava ou o perturbava a não ser os seus livros. »

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Mas depois, um belo dia, que acontecera a desgraça. Pelas onze horas da manhã, em plena luz do dia, viera um polícia acompanhado de um agente de polícia secreta e exibira o distintivo e perguntara se costumava aparecer lá um indiví­duo chamado J akob Mendel. Depois, que se ti­nham dirigido de imediato à mesa de Mendel e este ingenuamente pensara ainda que os senhores lhe queriam vender livros ou lhe queriam per­guntar algo. Mas que logo de seguida o tinham intimado a acompanhá-los e o tinham levado consigo. Que fora uma autêntica vergonha para o café, que toda a gente se colocara à volta do po­bre senhor Mendel, que estava ali especado entre os dois senhores, com os óculos debaixo do ca­belo, .olhando para um lado e para o outro, de um para o outro, sem saber bem o que de facto queriam dele. E que ela dissera de imediato ao polícia que devia haver um engano qualquer, que um homem como o senhor Mendel não fazia mal a uma mosca; mas que então o agente de polícia secreta logo lhe gritara, dizendo-lhe que se não imiscuísse em assuntos oficiais . E que depois o ti­nham levado consigo , e que durante muito tempo não tinha voltado a aparecer, durante dois anos. Que ainda hoje não sabia bem o que ti­nham querido dele na altura. «Mas eu j uro» ,

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disse, perturbada, a velha senhora, «O senhor Mendel não pode ter feito nada de mal. Eles en­ganaram-se, eu ponho a mão no fogo por ele. Foi um crime contra o pobre homem inocente, um autêntico crime!»

E ela tinha razão, a boa e comovente senhora Sporschil. O nosso amigo Jakob Mendel não fi­zera de facto nada de mal, mas sim tão-somente (só mais tarde soube todos os pormenores) come­tera um disparate incrível e comovente, uma es­tupidez, mesmo naqueles tempos loucos, comple­tamente inverosímil, algo que se explicava apenas através da absorção total, da sua figura absoluta­mente lunática. Acontecera o seguinte: Nos servi­ços militares da censura, que tinham a função de vigiar toda a correspondência com o estrangeiro, fora, um dia, intercetado um postal escrito e assi­nado por um tal Jakob Mendel, devidamente franqueado para o estrangeiro, mas - caso incrí­vel -, dirigido a um país inimigo, um postal di­rigido ao cuidado de Jean Labourdaire, livreiro, Paris, Quai de Grenelle, no qual um tal Jakob Mendel se queixava de não ter recebido os últi­mos oito números do Bulletin bibliographique de la France mensal, apesar de ter pago antecipada­mente a assinatura anual. O funcionário assala­riado subalterno, um professor de liceu que se in-

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teressava pela romanística, que envergava por imposição um casaco azul de reserva territorial, ficou espantado quando lhe veio parar às mãos este escrito. Uma brincadeira estúpida, pensou. Entre as duas mil cartas que semanalmente vascu­lhava e examinava à procura de comunicações duvidosas e expressões suspeitas de espionagem, nunca lhe passara pelas mãos um facto tão ab­surdo como aquele em que alguém da Áustria en­viara, completamente despreocupado, uma carta a França, portanto, descontraidamente, pusera um postal na caixa de correio destinado a um país beligerante, como se as fronteiras desde 1 9 1 4 não estivessem orladas com arame farpado e, como se cada dia que Deus criara, França, Ale­manha, Áustria e Rússia não tivessem reduzido a sua respetiva população masculina em um par de milhares de homens. No princípio, guardou por isso o postal como uma curiosidade na gaveta da sua secretária sem informar os seus superiores so­bre aquela situação absurda. Mas após algumas semanas veio de novo um postal do mesmo J akob Mendel dirigido a um bookseller John Aldridge, Londres, Holborn Square, perguntando se não poderia enviar-lhe os últimos números do Anti­quarium, e de novo o postal estava assinado pelo mesmo estranho indivíduo Jakob Mendel, que

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com uma ingenuidade comovente anexava o seu endereço completo. Só que desta vez o professor de liceu, entalado no uniforme, sentiu-se um pouco desconfortável dentro do seu casaco. Será que se ocultava algum enigmático sentido cifrado por trás dessa brincadeira tonta? De qualquer modo, levantou-se, bateu os tacões e colocou os dois postais em cima da secretária do major. Este encolheu os ombros: Um caso singular! Primeiro, avisou a polícia para que investigasse se esse Ja­kob Mendel de facto existia, e uma hora mais tarde Jakob Mendel tinha já sido preso e condu­zido, ainda completamente atordoado da sur­presa, até ao major. Este mostrou-lhe os misterio­sos postais e perguntou se reconhecia ser o remetente. Incomodado com o tom severo e so­bretudo com o facto de o terem desencovilado enquanto lia um importante catálogo, Mendel pôs-se quase a vociferar de forma rude, dizendo que sim, naturalmente fora ele a escrever esses postais. Obviamente que tinha o direito de recla­mar uma assinatura que tinha já pago. O major virou-se na cadeira, inclinando-se em direção ao tenente que estava sentado à secretária contígua. Os dois piscaram os olhos em gesto de cumplici­dade: um doido varrido! Depois, o major refletiu se não devia limitar-se a dar uns berros ao pa-

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lerma e correr com ele ou se devia levar o caso a sério . Em qualquer repartição pública, quando surge esse tipo de apuros não fundamentados, de­cide-se quase sempre lavrar o auto . É sempre bom fazer um registo . Se não servir para nada, não prejudica ninguém e fica preenchida mais uma folha de papel no meio de milhões.

Mas neste caso, prejudicou infelizmente um homem pobre e inocente, pois já à terceira per­gunta veio à luz algo embaraçoso. Primeiro foi-lhe exigido que dissesse o seu nome: Jakob, recte Jain­keff Mendel. Profissão: vendedor ambulante {é que ele não possuía nenhuma licença de livreiro, mas sim apenas autorização de vendedor ambu­lante) . A terceira pergunta foi uma catástrofe: o lo­cal de nascimento. Jakob Mendel referiu uma pe­quena localidade situada perto de Petrikau 1. O Major franziu as sobrancelhas . Petrikau, não é uma cidade que fica na Polónia russa, junto à fronteira? Suspeitoso! Muito suspeitoso! De modo que inquiriu com maior rigor quando obtivera a nacionalidade austríaca. Os óculos de Mendel fita­ram-no de forma obscura e perplexa: não entendia muito bem. Que diabo, se e onde tinha os papéis,

I Designação alemã para a atual cidade polaca Piorrków Trybu­nalski, situada na Polónia Central.

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os seus documentos? Disse que não tinha outra coisa senão a autorização de vendedor ambulante. O major franzia cada vez mais a testa. Ele que ex­plicasse de uma vez por todas o assunto da sua na­cionalidade. O que fora o seu pai, se austríaco ou russo? J akob Mendel retorquiu com serenidade: naturalmente, russo. E ele próprio? Ah, para não ter de prestar o serviço militar, passara clandestina­mente a fronteira russa havia já trinta e três anos e que desde então vivia em Viena. O major ficava cada vez mais impaciente. Quando adquirira a na­cionalidade austríaca? Para quê?, perguntou Men­del. Ele nunca se preocupara com essas coisas. En­tão era ainda um cidadão russo? E Mendel, que se sentia há muito intimamente enfadado com aque­las contínuas perguntas, respondeu com indife­rença: «De facto, sou.»

O major, assustado, atirou-se tão bruscamente para trás que a cadeira deu um estalo. Afinal havia coisas destas! Em Viena, na capital da Áustria, em plena guerra, depois de T arnów e da grande ofen­siva, em fins de 1 9 1 5 , andava um russo alegre­mente a passear, escrevia cartas para França e Ingla­terra e a polícia não fazia patavina. E depois os estúpidos nos jornais ficam espantados que Conrad von Hoetzendorf não tenha avançado rapidamente para Varsóvia, e depois, lá no Estado-Maior, admi-

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ram-se quando cada movimento de tropas é co­municado por espiões à Rússia. Também o tenente se levantara e se aproximara da secretária: A con­versa transformou-se num interrogatório. Por que razão não se tinha apresentado como estrangeiro? Mendel, ainda inocentemente, respondeu no seu jargão judeu cantado: «Porque é que havia de me apresentar assim de repente?» O Major interpretou aquela pergunta invertida como sendo um desafio e perguntou, em tom ameaçador, se não lera os avisos? Não! Se porventura também não lia jor­nais? Não!

Como se a lua tivesse caído no meio da sala, os dois oficiais puseram-se a olhar fixamente para Jakob Mendel, que, devido à insegurança que se apoderava dele, começava já a suar ligeiramente. Depois, o telefone começou a matraquear, as má­quinas de escrever a crepitar, as ordenanças a cor­rer, e Jakob Mendel foi entregue à prisão militar a fim de ser conduzido na leva seguinte a um campo de concentração. Quando lhe disseram para seguir os dois soldados, ficou a olhar inde­ciso. Não entendia o que queriam dele, mas na realidade não estava preocupado. Ao fim e ao cabo, que mal lhe poderia fazer o homem com o colarinho dourado e voz grosseira? No seu mundo superior de livros não havia nem guerras nem mal

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entendidos, mas sim tão-somente o eterno saber e o querer saber ainda mais dos números e das pala­vras, dos títulos e dos nomes. Então, pôs-se a an­dar, com expressão bondosa, pelas escadas a baixo. Só quando na esquadra lhe confiscaram todos os livros que tinha nos bolsos do sobretudo e lhe exi­giram que entregasse a carteira, em que tinha me­tido centenas de papelinhos importantes e endere­ços de clientes, é que começou a estrebuchar furiosamente. Tiveram de o amarrar. Mas infeliz­mente os seus óculos terlintaram no chão, e este seu telescópio mágico que lhe permitira contem­plar o mundo do espírito desfez-se em mil peda­ços. Dois dias depois foi enviado, com um flno casaco de verão, para um campo de concentração para presos civis russos situado nos arrabaldes de Komornl .

Não há testemunhos sobre o terror psíquico a que terá sido sujeito Jakob Mendel naqueles dois anos passados no campo de concentração, sem li­vros, sem os seus queridos livros, sem dinheiro, no meio de companheiros indiferentes, grosseiros e na maioria analfabetos daquela enorme prisão, sobre o sofrimento que vivenciou, separado do seu mundo superior e único como uma águia com as asas cor-

1 Designação alemã da cidade divida entre a Hungria (Komá­ron) e a Eslováquia (Komárno) pelo rio Danúbio.

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tadas do seu elemento etéreo. Mas lentamente o mundo desenganado pela sua loucura sabe que de todas as atrocidades e abusos criminosos desta guerra nenhum fora mais absurdo, mais supérfluo e, por isso, moralmente mais indesculpável do que a detenção e enclausuramento dentro do arame far­pado de civis desprevenidos, que há muito tinham ultrapassado o limite de idade para o cumprimento do tempo de serviço militar, pessoas que tinham vi­vido muitos anos num país estrangeiro como se fosse a sua terra natal e que, por fazer fé no direito de hospitalidade, sagrado até para os tunguses e araucanos, perderam a oportunidade de escapar a tempo - um crime contra a civilização, praticado sem sentido algum na França, Alemanha e Ingla­terra, em cada torrão desta nossa Europa enlouque­cida. E talvez Jakob Mendel, como centenas de outros inocentes naquele encarceramento, tivesse enlouquecido ou morrido de forma miserável de disenteria, de extenuação, de esgotamento psíquico, se, justamente a tempo, uma casualidade, uma ca­sualidade autenticamente austríaca, o não tivesse mais uma vez devolvido ao seu mundo. É que ti­nham chegado várias vezes ao seu endereço cartas

de prestigiados clientes; o conde Schoenberg, o an­tigo governador da Estíria, fanático colecionador de obras heráldicas, o antigo decano da Faculdade de

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Teologia, Siegenfeld, que estava a trabalhar num comentário de Santo Agostinho, o almirante de marinha de guerra octogenário, já reformado, Edler von Pisek, que estava ainda às voltas com as suas memórias, - todos eles, os seus fiéis clientes ti­nham-lhe repetidamente escrito para o Café Gluck, e algumas destas cartas tinham-lhe sido enviadas para o campo de concentração. Ali, estas cartas fo­ram casualmente parar às mãos do bem-intencio­nado capitão e este admirou-se com as amizades tão distintas que mantinha aquele pequeno judeu meio cego e sujo, que, desde que lhe tinham esma­gado os óculos (não tinha dinheiro para comprar uns novos) , se acocorava num cantinho como se fosse uma toupeira, cinzenta, sem olhos e muda. Quem tinha semelhantes amigos, tinha de ser al­guém especial. Assim, permitiu que Mendel res­pondesse a essas cartas e pedisse aos seus benfeitores que intercedessem a seu favor. A resposta não se fez esperar. Com a apaixonada solidariedade de todos os colecionadores, tanto a sua excelência como o decano puseram afincadamente em marcha os seus contactos, e o seu aval conjunto conseguiu que Mendel dos livros, no ano de 1 9 17, após mais de dois anos de encarceramento, regressasse de novo a Viena, obviamente com a condição de se apresentar todos os dias na esquadra. Mas o importante era ele

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poder regressar ao mundo livre, à sua velha, minús­cula e exígua mansarda, poder de novo passar pelas suas queridas montras de livros e, sobretudo, re­gressar ao seu Café Gluck.

A boa da senhora Sporschil pôde, pela sua própria experiência, descrever-me o regresso de Mendel de um submundo infernal ao Café Gluck. «Um dia - ai Jesus, penso que não acredito no que estou a ver - a porta abre-se, o senhor sabe como é, de uma forma de certo modo inclinada, apenas meio aberta, como era seu costume entrar e o pobre do senhor Mendel tropeça para dentro do café. Usava um casaco militar arranhado cheio de remendos e na cabeça algo que parecia ter sido uma V'3. um chapéu deitado no lixo. A camisa não tinha gola e parecia a morte em pessoa, com o rosto cinzento e o cabelo grisalho e tão magro que metia dó. Mas ele entra, direto, como se nada fosse, não pergunta nada, não diz nada, dirige-se àquela mesa acolá e despe o casaco, mas não como outrora, despachado e ligeiro, mas sim fá-lo ofe­gante. E não trazia nenhum livro consigo como era habitual - limita-se a sentar-se e não diz nada, olhando em frente, com os olhos ocos e es­vaziados. Só pouco a pouco, depois de lhe termos levado o pacote inteiro com os escritos que lhe ti­nham sido enviados da Alemanha, só então é que

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começou de novo a ler. Mas já não era a mesma pessoa.»

Não, não era a mesma pessoa, já não era o Miraculum mundi, o arquivo mágico de todos os livros; todos aqueles que o viram na altura, relata­vam, nostálgicos, o mesmo. Algo no seu olhar, outrora tranquilo, parecendo apenas sonolento na forma como lia, aparentava estar irremediavel­mente destruído; algo estava reduzido a escom­bros: o terrível cometa de sangue, na sua corrida rasante, deve ter embatido de forma retumbante também naquela isolada, pacífica e alciónica es­trela do seu mundo de livros. Os seus olhos, habi­tuados durante décadas às delicadas e silenciosas letras do tamanho de patinhas de insetos devem ter visto coisas medonhas naquele curral de seres humanos cercado com arame farpado, pois as pál­pebras caíam pesadas ensombrando as pupilas que outrora brilhavam de maneira tão ágil e irónica, sonolentos e com olheiras avermelhadas, os olhos, outrora tão vivos, dormitavam debaixo dos óculos reparados e atados a muito custo com um fio fino. E ainda mais terrível: No edifício fantástico da sua memória deve um pilar qualquer ter-se desmoro­nado, desorganizando toda a estrutura; pois o nosso cérebro, este mecanismo de comando mol­dado a partir da mais subtil das substâncias, este

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instrumento de precisão harmonizado com o nosso saber, é tão delicado que uma artéria obstruída, um nervo afetado, uma célula fatigada, que uma molécula deslocada é suficiente para fazer emude­cer a harmonia mais esplendidamente abrangente e esférica de uma mente. E na memória de Men­del, deste teclado único do saber, aquando do seu regresso, as teclas bloquearam. Quando de ve:z. em quando alguém vinha pedir uma informação, fi­cava a olhar para ele esgotado e não compreendia muito bem, entendia mal e esquecia o que lhe di­ziam - Mendel já não era Mendel, tal como o mundo já não era o mundo. A absorção total já não o baloiçava durante a leitura para cima e para baixo, mas sim na maior parte das vezes ficava sentado paralisado, com os óculos debruçados apenas mecanicamente sobre o livro, sem se saber se lia ou apenas dormitava. Muitas vezes, assim contava a senhora Sporschil, a cabeça, pesada, caía-se-lhe sobre o livro e adormecia em plena luz, por vezes fitava de novo, horas a fio, a estranha e fétida luz da lâmpada de acetileno, que lhe fora colocada na mesa naqueles tempos da escasse:z. do carvão. Não, Mendel já não era Mendel, já não, um milagre do mundo, mas sim um fardo inútil de barba e roupa, que respirava com dificuldade, depositado sem sentido sobre a cadeira outrora

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pítica, já não, a honra do Café Gluck, mas sim uma vergonha, uma mancha suja, malcheiroso, de­sagradável à vista, um parasita incómodo e inútil.

Era também assim que o via o novo proprietá­rio chamado Florian Gurtner, originário de Retz, que, enriquecendo-se no ano de fome de 1 9 1 9 com o contrabando de farinha e manteiga, conse­guira que o honesto Standhartner lhe vendesse o Café Gluck por oitenta mil coroas batidas rapida­mente em papel. Com as mãos duras de campesino, atuou energicamente, virou do avesso o respeitável Café a toda a pressa, transformando-o num estabe­lecimento distinto, comprou oportunamente com dinheiro sem valor cadeiróes novos, instalou um portal de mármore e negociou com o bar contíguo para instalar um salão de baile. Naquele precipi­tado processo de embelezamento, como é natural, incomodava-o muito aquele parasita galiciano, que, diariamente, desde as primeiras horas do dia até à noite, mantinha, sozinho, uma mesa ocu­pada, consumindo, no seu todo, apenas duas taças de café e quatro pães. É verdade que Standhartner lhe recomendara de forma especial o seu velho cliente e tentara explicar como aquele J akob Men­del era um homem notável e importante, tinha-o, por assim dizer, entregado no trespasse, incluído no inventário, como uma serventia a expensas da

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firma. Mas Florian Gutner, com os novos móveis e a reluzente caixa registadora de alumínio, adqui­rira também a grosseira mentalidade dos tempos de lucro e esperava apenas por um pretexto para varrer para fora do estabelecimento, agora tornado distinto, aquele último resto incómodo da miséria suburbana. Pareceu apresentar-se em breve uma boa oportunidade; pois, Jakob Mendel não se en­contrava bem. As suas últimas poupanças bancá­rias estavam pulverizadas na trituradora de papel da inflação, os seus clientes tinham-se dispersado. E para subir de novo as escadas como alfarrabista e recolher livros de porta em porta faltavam forças àquele homem cansado. Sentia-se miserável, no­tava-se isso em inúmeros pequenos sinais. Era já raro pedir que lhe trouxessem algo da casa de pasto e ficava a dever cada vez mais tempo até o mais pequeno pagamento do café e dos pães, uma das vezes ficou a dever até durante três semanas. Já nessa altura, o chefe dos empregados de mesa queria pô-lo no olho da rua. Foi quando a boa se­nhora Sporschil, a mulher da limpeza, cheia de pena se responsabilizou por ele.

Mas no mês seguinte aconteceu então a des­graça. Já repetidamente o novo chefe dos empre­gados de mesa notara que a conta não batia muito bem com os bolos consumidos. Faltavam cada vez

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mais pães, encomendados e pagos. As suas suspeitas recaíram de imediato obviamente sobre Mendel; pois repetidamente viera o velho criado camba­leante para se queixar que Mendel não lhe pagava havia meio ano e não lhe conseguia arrancar um chavo. De modo que o chefe dos empregados de mesa passou a partir de então a estar especialmente atento, e apenas dois dias depois conseguiu, escon­dido por trás do anteparo do aquecedor, surpreen­der Mendel a levantar-se discretamente da sua mesa, dirigir-se à sala da frente, retirar rapida­mente do cesto de pães dois pãezinhos e comê-los sofregamente. Na hora de pagar, afirmou que não comera nenhum. Assim, estava esclarecido o desa­parecimento. O empregado de mesa comunicou de imediato o sucedido ao senhor Gurtner e este, contente por ter encontrado o pretexto, gritou com Mendel na presença de toda a gente, acusan­do-o de roubo, pavoneando-se até que não iria chamar já a polícia. Mas ordenou-lhe que fosse imediatamente e para sempre para o diabo. Jakob Mendel apenas tremia, não disse nada, tropeçou ao levantar-se do seu assento e foi-se embora.

«Foi uma imagem de miséria» , descreveu a senhora Sporschil aquela sua despedida. «Nunca me hei de esquecer de como se levantou, com os óculos levantados para a testa, branco como a cal.

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Nem sequer se deu ao trabalho de vestir o sobre­tudo, embora fosse janeiro, o senhor bem sabe, na­quele ano frio. Com o susto, deixou ficar o seu li­vro em cima da mesa, só reparei mais tarde e queria ainda levar-lho. Mas já se tinha precipitado em direção à porta. Não me atrevi a segui-lo até à rua; pois o senhor Gurtner colocara-se junto à porta berrando para ele, ao ponto de as pessoas pa­rarem e se concentrarem à sua volta. Sim, foi um escândalo, senti-me profundamente envergonhada! Nada disso teria acontecido no tempo do velho se­nhor Standhartner, ser expulso apenas por causa duns pãezinhos, com ele teria podido comer de graça durante o resto da sua vida. Mas as pessoas hoje em dia não têm coração. Afugentar alguém que se sentara ali, dia atrás de dia, durante mais de trinta anos - realmente, foi um escândalo e não gostaria de responder por isso perante Deus - eu não.» A boa mulher estava completamente pertur­bada e com a tagarelice apaixonada, própria da idade, repetiu aquilo do escândalo e do senhor Standhartner, que não teria sido capaz duma coisa dessas. Assim, tive de lhe perguntar finalmente o que acontecera ao nosso Mendel e se voltara a vê­-lo. Então, perdeu a calma e ficou ainda mais per­turbada. «Todos os dias, quando passava ao lado da sua mesa, todas a vezes, pode crer, sentia um

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abanão. Tinha sempre de pensar onde estaria o po­bre do senhor Mendel, e se soubesse onde morava, teria ido lá e levado algo quente para comer; pois, onde poderia ele ir buscar o dinheiro para aquecer e comer? E que eu saiba, não tinha parentes em nenhum lado. Mas como não soube nada mais dele, pensei cá para mim, deve ter sido o fim dele e que nunca mais o veria. E até pensara se não devia mandar rezar uma missa por ele; afinal era um bom homem, e sempre nos conhecíamos, havia mais de vinte e cinco anos.

Mas um dia, logo de manhã, às sete e meia, no mês de fevereiro, estava eu justamente a limpar o latão das barras das janelas, subitamente (pensei que me dava um ataque) , subitamente, a porta abre-se e entra Mendel. Como sabe, entrava sorra­teiramente sempre inclinado e confuso, mas da­quela vez era qualquer coisa de diferente. Notei logo que algo o arrastava para cá e para lá, tinha os olhos completamente brilhantes e, meu Deus, que aspeto tinha, só ossos e barba! Imediata­mente, ocorre-me, que medonho, enquanto o vejo, penso logo, ele não sabe de nada, anda por aí, em pleno dia, como se fosse um sonâmbulo, esqueceu-se de tudo, a história dos pãezinhos e do senhor Gurtner e da maneira vergonhosa como eles o lançaram para fora, ele não sabe nada de si

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mesmo. Graças a Deus, o senhor Gurtner ainda não estava lá e o chefe dos empregados de mesa acabara de beber o seu café. Dei um salto até ele para lhe explicar que não devia estar lá, e não de­via deixar mais uma vez que aquele tipo grosseiro o pusesse na rua» (ao dizê-lo, olhou timidamente à sua volta e corrigiu rapidamente) - «quero dizer, o senhor Gurtner. Portanto, chamei-o: "Senhor Mendel". Olhou para cima. Naquele preciso mo­mento, meu Deus, foi horrível, naquele preciso momento, deve ter-se lembrado de tudo; sobres­saltou-se de imediato e começou a tremer, não lhe tremiam apenas os dedos, não, todo ele tiri­tava, notou-se que tremia até aos ombros e, logo de seguida, precipita-se de novo rapidamente em direção à porta. Ali, tombou ao chão. T elefoná­mos rapidamente ao serviço de salvamento e este levou-o, cheio de febre como estava. Morreu à noite, pneumonia, em alto grau, disse o médico, e também que, quando veio ainda de novo ao nosso café, já não tinha consciência do que fazia. Deixou-se levar até aqui como um sonâmbulo. Meu Deus, quando se ficou assim sentado diaria­mente ao longo de trinta e seis anos, então uma mesa dessas é o seu lugar habitual de casa.»

Ficámos a falar ainda muito tempo sobre ele, as últimas duas pessoas que conheceram aquele

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homem singular, eu, a quem, sendo jovem, e ape­sar da sua existência minúscula de micróbio, dera a primeira noção de uma vida da total abrangên­cia espiritual - ela, a mulher da limpeza pobre e maltratada, que nunca leu um livro, que estava unida àquele camarada do seu mundo inferior e pobre porque escovara o seu sobretudo e cosera os botões durante vinte e cinco anos. E, no entanto, entendíamo-nos maravilhosamente bem, junto à sua velha mesa abandonada, na companhia da sombra evocada em conjunto; pois, a recordação une sempre e duplamente, sempre que é uma re­cordação afetuosa. Subitamente, no meio da con­versa, recordou-se de algo: «Jesus, como eu sou esquecida - ainda tenho o livro, o tal que ele dei­xou ficar na altura em cima da mesa. Aonde é que poderia eu tê-lo levado para lhe entregar? E de­pois, como ninguém reclamou, depois, pensei cá para mim, devia era guardá-lo para mim como recordação. Não é verdade, não há nenhum mal nisso, pois não?» Foi buscá-lo a toda a pressa ao seu cubículo que ficava nas traseiras . E dificil­mente consegui reprimir um leve sorriso; pois, o destino, sempre brincalhão e por vezes irónico, gosta de misturar com maldade o cómico justa­mente com o devastador. Tratava-se do segundo volume da Bibliotheca Germanorum erótica et

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curiosa, de Hayn, um compêndio da literatura ga­lante bem conhecido de todos os bibliófilos. Preci­samente aquele catálogo escabroso - habent sua fota libelli1 - tinha ido parar, como o último le­gado do mago desaparecido, àquelas mãos desgas­tadas, gretadas de vermelho e ignorantes, que não tinham segurado noutro livro que não fosse o li­vro de orações. Tive dificuldades em apertar os meus lábios para resistir ao sorriso, que, involun­tariamente, procurava soltar-se do meu íntimo, e aquela pequena hesitação deixou a boa senhora confusa. Se se tratava afinal de algo valioso ou achava que o devia guardar para si?

Apertei-lhe afetuosamente a mão. «Pode per­feitamente ficar com ele, o nosso velho amigo Mendel só ficaria encantado se ao menos uma de entre milhares de pessoas que lhe devem um livro se lembrasse dele.» E depois fui-me embora e tive vergonha perante aquela velha e boa senhora, que, de modo ingénuo, mas mesmo assim da forma mais humana que se pode imaginar, se manteve fiel à memória daquele morto. Pois ela, aquela

1 Expressão latina que faz parte do aforismo atribuído ao gra­mático Terentianus Maurus (séc. II/III d. C.) e que está contido no poema De litteris, de syllabis, de metris: Pro captu lectoris habent sua

fota libelli («Os livros têm o seu destino de acordo com o poder de compreensão do leitor»).

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mulher sem estudos ao menos guardara um livro para se recordar melhor dele, mas eu, eu tinha-me esquecido durante anos de Mendel dos livros, pre­cisamente eu que tinha a obrigação de saber que os livros só se criam com o flm de unir as pessoas para além da sua própria existência e, assim, de se defender do inexorável oponente de tudo o que vive: fugacidade e o esquecimento.