stefan zweig - 24 horas na vida de uma mulher

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  Na pequena pensão da Riviera, onde me encontrava então, dezanos antes da guerra, rebentara a nossa mesa uma discussão violenta,que, subitamente, ameaçou transformar-se em furiosa altercação, echegou mesmo a ser acompanhada de palavras ultrajantes erancorosas. A maior parte das pessoas possui apenas uma imaginação

fraca. que não as fere directamente, enterrando-se-lhes como umapunhalada em pleno c!rebro, não as chega a impressionar" por!m, sediante dos seus olhos se produz qualquer coisa, mesmo de poucaimport#ncia, mas que esteja ao alcance da sua sensibilidade,imediatamente brota nelas uma pai$ão desmedida. Assim, com uma veem%ncia impr&pria e e$agerada, essas pessoas compensam, de certomodo, o pouco interesse que t%m pelos outros acontecimentos.

 'oi o que sucedeu desta vez na nossa sociedade de comensais, omais burguesa poss(vel, que, de costume, se entregava paci)camenteao san,all tal* e a pequenos e ligeiros divertimentos e logo sedispersava ap&s a refeição+ o casal de alem es, para fazer as suas

e$curses e tirar retratos" o dinamarqu%s rotundo, para praticar amon&tona arte da pesca" a senhora inglesa, distinta, para voltar aosseus livros" os esposos italianos, para darem a sua corridinha a ontearlo" e eu, para preguiçar numa cadeira do jardim, ou para trabalhar.

 /esta vez, por!m, )c0mos ali todos, muito perto uns dos outros,em acesa discussão" e, se um de n&s se levantava bruscamente, não ofazia, como ! h0bito, pedindo delicadamente licença para se retirar,mas num acesso brutal de irritação, a qual, como j0 e$pliquei, assumiaquase furiosas proporçes.

 1 certo que o acontecimento que e$citava a tal ponto a nossapequena mesa-redonda era bastante singular. A pensão habitada por

n&s sete possu(a e$celente aspecto e$terior, o aspecto de um palaceteisolado 2ah, como era linda a vista que se gozava das janelas que davampara o litoral, orlado de rochedos34, mas, na realidade, não passava deuma depend%ncia mais barata do grande 5alace 6otel, que estavadirectamente ligada com elepelo jardim, e, assim, n&s, os pensionistas do lado, viv(amos, apesar detudo, em constantes relaçes com os h&spedes do 5alace. ra, na v!spera, este hotel tinha registado um esc#ndalo espantoso.joluso  No comboio do meio-dia, e$actamente do meio-dia e vinte 2devoindicar a hora com precisão porque ! importante, tanto para esteepis&dio como para o assunto da nossa animada conversa4, um jovem

franc%s havia chegado ao hotel e ocupado um quarto que dava para omar+ isto, s& por si, anunciava j0 um certo desafogo pecuni0rio. 'azia-senotar agradavelmente, não s& pela sua eleg#ncia discreta, mas,sobretudo, pela sua e$traordin0ria beleza e simpatia. No meio de umrosto )no, de rapariga, o bigode louro e sedoso acariciava-7he os l0bios,de uma quente sensualidade. No alto da sua fronte, muito branca,espalhavam-se as ondas castanhas e soltas dos seus cabelos anelados"cada olhar dos seus olhos doces tinha o sabor de uma car(cia " tudo na

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sua pessoa era terno, lisonjeiro, am0vel, sem ter nada, apesar disso, dearti)cial ou amaneirado.  8isto de longe, na verdade, lembrava um pouco essas )guras decera cor-de-rosa que, numa eleg#ncia estudada e de bengala na mão,encarnam, nas vitrinas dos grandes armaz!ns de modas, o ideal da

beleza masculina. as, desde que o olhassem mais de perto, toda aimpressão de fatuidade desaparecia, porque nele 2facto rar(ssimo3 4 aamabilidade era coisa natural e fazia corpo com o indiv(duo. 9uandopassava, cumprimentava toda a gentede forma modesta e cordial, e era um verdadeiro prazer observar como,a todo o momento, a sua graça, sempre sol(cita, se e$pandia livremente.  :e uma senhora se dirigia ao vesti0rio, apressava-se a procurar-lhe o casaco" tinha para cada criança um olhar amig0vel ou uma frasealegre" era, ao mesmo tempo, soci0vel e discreto" em suma, parecia umdesses entes privilegiados, a quem a #nsia de ser agrad0vel aos outros,sempre com um rosto sorridente e um encanto juvenil, d0 uma graça

nova. A sua presença era como um benef(cio para os h&spedes do5alace, na maior parte j0 idosos e de sa;de prec0ria" e, graças ao seuentusiasmo e esp(rito moço, ao seu aspecto vivo e juvenil, e a essafrescura que um natural encanto confere tão soberbamente a certoshomens, conquistara, sem di)culdade, todas as simpatias.  /uas horas depois da sua chegada, jogava j0 o t!nis com as duas)lhas dum gordo fabricante lion%s+ Annete, de doze anos de idade, e<ranca, de treze" e sua mãe, a )na, delicada e reservada . 6enriet e via, sorrindo, como, inconscientemente, as suas rapariguinhas aindanovitas =irtavam, com esse jovem estrangeiro. A noite divertiu-nosdurante uma hora, jogando o $adrez" contou-nos ao mesmo tempo, com

perfeita discrição, algumas anedotas galantes" e passeou tamb!m noterraço, durante muito tempo, com . 6enriette, cujo marido, comosempre, jogava o domin& com um comerciante amigo e a quem, muitotarde j0, encontrei numa conversa de suspeita intimidade com asecret0ria do hotel, na sombra do escrit&rio.  No dia seguinte, acompanhou a pesca o meu parceirodinamarqu%s, revelando profundos conhecimentos nessa mat!ria "depois, palestrou muito tempo sobre pol(tica com o fabricante de 7ião,no que se mostrou tamb!m agrad0vel conversador, pois ouvia-se o bomriso do homem gordo suplantar o ru(do das ondas do mar.  Ap&s o almoço 2! absolutamente necess0rio, para bem se

compreender a hist&ria, que eu mencione com e$actidão todas estasfases do seu emprego de tempo4, passou ainda uma hora a s&s com .6enriette, a tomar caf! no jardim" tornou a jogar t!nis com as raparigase conversou no vest(bulo com os esposos alemães. As seis horas,quando levei uma carta a estação, encontrei-o na gare. 8eio ter comigoapressadamente, como se tivesse de me apresentar desculpas, econtou-me que era obrigado a partir, pois tinha sido chamadoinesperadamente, mas que voltaria da( a dois dias.

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 A tarde, com efeito, j0 não se encontrava na sala de jantar" masera apenas a sua pessoa que faltava, pois em todas as mesas se falavaunicamente dele, elogiando-se-lhe o feitio agrad0vel e alegre.

 A noite, seriam talvez onze horas, estava eu no meu quarto,prestes a terminar a leitura de um livro, quando ouvi de repente,

atrav!s da janela aberta, gritos e chamamentos no jardim" no hotel dolado havia, visivelmente, um movimento desusado. ais por inquietaçãodo que por curiosidade, desci tamb!m os cinquenta degraus da escadae fui encontrar os h&spedes e o pessoal num estado horr(vel dedesolação e ansiedade. . 6enriette não voltara ainda do passeio quedava todas as noites no terraço do litoral, enquanto o marido, com acostumada pontualidade, jogava o domin& com o seu amigo de Namur -e receava-se um acidente. :emelhante a um touro, esse homem pesadoe calmo, como era habitualmente o lion%s, precipitava-se, desvairado,na direcção do litoral, e quando a sua voz, alterada pela emoção,gritava na noite + 6enriette... 6enriette..., este nome produzia

impressão, como que uma impressão de terror, parecida com a quepoderia causar um animal gigantesco das idades primitivas quando sesentisse ferido de morte.  s criados e os porteiros subiam e desciam febrilmente asescadas" acordaram todos os h&spedes e telefonaram para a pol(cia.as, no meio de todo este tumulto, o homem gordo, de coletedesabotoado, passava em grandes pernadas, atrav!s da noite,soluçando e gritando, de forma insensata, um ;nico nome + 6enriette3. .6enriette3. . . , >ntretanto, l0 em cima, as crianças acordaram e, nassuas roupinhas de noite, chamavam pela mãe, da janela, enquanto o paicorria para elas, a )m de as tranquilizar.

  /eu-se depois qualquer coisa de tão espantoso, que não !poss(vel cont0-lo, porque a natureza, violentamente tensa nosmomentos e$cepcionais da crise, d0 a atitude do homem tão tr0gicae$pressão que nem a imagem nem a palavra a podem reproduzir com verdadeira )delidade.

 /e s;bito, o pobre homem gordo e pesado desceu os degrausgementes da escada, com o rosto completamente transtornado, cheiode lassitude, e, mesmo assim, feroz, com uma carta na mão. - hame toda a gente3 - disse, em voz quase impercept(vel, ao chefe dopessoal. - hame toda a gente" ! in;til procurarem mais + minha mulherabandonou-me3

 > havia dignidade neste homem ferido de morte, uma dignidadefeita de tensão sobre-humana, diante de toda essa gente que o cercava,que se agrupava, curiosa, a sua volta, para o contemplar, e que logo seafastava confusamente, como que receosa. ?eve ainda a força precisapara passar diante de n&s, cambaleando, sem olhar para ningu!m, epara apagar a luz da sala de leitura" depois, ouviu-se o seu corpo cairpesadamente numa poltrona, e, em seguida, um soluço selvagem eanimal, como s& o pode soltar algu!m que nunca chorou. >sta dor

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primitiva produziu em cada um de n&s, mesmo nos menos sens(veis,uma esp!cie de efeito estupefaciente. Nenhum criado do hotel, nenhumh&spede, vindo ali apenas por curiosidade, ousou arriscar um sorriso ousequer uma palavra de comiseração.  udos, uns ap&s os outros, como envergonhados por esta tocante

e$plosão de sentimentos, volt0mos, silenciosos, para os nossos quartos,enquanto na sala obscura palpitava e soluçava aquele pedaço dehumanidade aniquilada, completamente s& consigo mesmo, no andaronde, a pouco e pouco, se iam e$tinguindo as luzes e se ouviam apenasmurm;rios, segredos, ru(dos d!beis e abafados.

  1 f0cil compreender que um acontecimento tão fulminante,passado ali diante dos nossos olhos, fosse de natureza a emocionarpessoas habituadas ao t!dio e a passatempos ins(pidos.

 as a discussão que a seguir estalou a nossa mesa com tanta veem%ncia e que parecia, com efeito, querer degenerar em vias defacto, apesar de ter por ponto de partida este surpreendente caso, era,

em si, sobretudo, uma questão de princ(pios que se debatiam, e umaoposição calorosa de concepçes antag&nicas da vida. 5or causa da indiscrição de uma criada que lera a carta 2o marido

enraivecido, na sua c&lera impotente, havia-a deitado, toda amarrotada,para um canto4, soube-se, dentro de pouco tempo, que . 6enriette nãopartira s&, mas sim com o jovem franc%s, e a simpatia da maior partedaquelas pessoas começou logo a declinar.

  A primeira vista, compreendia-se perfeitamente que essapequena . <ovar@ trocasse o esposo, rotundo e provinciano, por umbelo homem, distinto e atraente. as o que espantava toda a gente eraque nem o fabricante, nem as )lhas. nem mesmo . 6enriette, tinham

 visto anteriormente o 7ovelace, e que, por consequ%ncia, uma conversanocturna de duas horas, no terraço, e uma hora passada tomando caf!em comum no jardim, tivessem sido su)cientes para levar uma mulherirrepreens(vel, de trinta e tr%s anos apro$imadamente, a abandonar,sem hesitação, o marido e as duas )lhas, para seguir, a aventura, um jovem elegante que lhe era totalmente desconhecido.  A nossa mesa-redonda era un#nime em ver neste acontecimentoapenas a apar%ncia manifesta de uma traição p!r)da efectivada porobra astuciosa do amoroso par, pois tornava-se evidente que .6enriette mantinha, havia muito tempo, relaçes secretas com esserapaz e que aquele açambarcador de sorrisos, não viera ali senão para

combinar os ;ltimos preparativos da fuga. om efeito, e$plicavam eles,era absolutamente imposs(vel que uma mulher honesta, apenas ao )mde tr%s horas de conv(vio, fugisse assim, ao primeiro aceno.

 >ntão, eu saboreei o prazer de manifestar opinião contr0ria esustentei, energicamente, a possibilidade, e mesmo a probabilidade, deum acontecimento deste g!nero, tratando-se de uma mulher a quemuma união feita de longos anos de decepçes e aborrecimentos tivesseintimamente preparada para vir a tornar-se presa de qualquer homem

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audacioso. >m consequ%ncia da minha maneira de ver, a discussãogeneralizou-se, e o que sobretudo a tornou apai$onada foi o facto de osdois casais, tanto o alemão como o italiano, se recusarem, com umdesprezo deveras ofensivo, a admitir a e$ist%ncia do coua de fozcdrf" noque viam apenas uma loucura e ins(pida imaginação romanesca.

 as, a)nal, não h0 interesse em rememorar aqui, com todos ospormenores, o prosseguimento tortuoso de uma discussão que sedesenrolou entre a sopa e o doce3 >ntão, s& os pro)ssionais da mesa dehotel t%m esp(rito" e os argumentos de que se servem os convivas nocalor das discusses, que o acaso levanta, são, na maioria das vezes,pouco originais, porque, por assim dizer, são agarrados a pressa com amão esquerda. > seria igualmente dif(cil de e$plicar por que motivo anossa discussão tomou rapidamente aquele tom agressivo, mas creiobem que a irritação proveio de, mau grado seu, os dois maridospretenderem insinuar que as suas mulheres escapavam a possibilidadede tais riscos e de semelhantes quedas. nfelizmente, não acharam

nada melhor a objectar-me senão que s& assim podia falar quem julgasse a alma feminina apenas pelas conquistas f0ceis e frequentesdum celibat0rio. sto começou a irritar-me quando a senhora alemãterminou aquela lição com uma esp!cie de mostarda sentenciosa,a)rmando que e$istiam, dum lado, as verdadeiras mulheres e, doutro,essas naturezas de gald!ria, a que, na sua opinião, . 6enriette deviapertencer. >sgotou-se-me então a paci%ncia por completo e tornei-meagressivo tamb!m.

 /eclarei que a negação do facto evidente de que uma mulher, emcertas horas da sua vida, pode ser impelida por forças misteriosas maisfortes do que a sua vontade e do que a sua intelig%ncia, dissimulava

apenas o medo do pr&prio instinto, o medo do demonismo da nossapr&pria natureza, e que muitas pessoas parecia sentirem prazer em julgar-se mais fortes, mais honestas e mais duras do que as outrasf0ceis de seduzir.

 5ela minha parte, achava mais honesto que uma mulher seguisselivre e apai$onadamente o seu instinto do que, como acontece emregra, enganasse o marido nos seus pr&prios braços, de olhos fechados./isse isto, pouco mais ou menos" e, quanto mais na conversa crepitanteos outros atacavam a pobre . 6enriette, tanto mais calorosamente adefendia eu 2e, para dizer a verdade, tinha a sensação de que estavae$agerando muito a minha maneira de sentir4. >ste ardor parecia uma

provocação aos dois casais e o pouco harmonioso quarteto caiu sobremim com tamanha viol%ncia que o velho dinamarqu%s, num ar jovial e,por assim dizer, com o cron&metro na mão, como um 0rbitro de desa)ode futebol, era obrigado, de vez em quando, a bater na mesa com os n&sdos dedos, a guisa de advert%ncia, dizendo+ - Bentlemen, please. . .

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  as a advert%ncia apenas produzia efeito por um momento. C0por tr%s vezes um dos dois convivas se levantara, vermelho deindignação, e s& com di)culdade a mulher havia conseguido acalm0-lo.

 /ez minutos mais e a nossa discussão teria acabado a pancada,se, de repente, rs. . . . não tivesse acalmado, com palavras serenas,

como se fossem azeite, as vagas espumantes da conversa.  rs. . . . , a idosa senhora inglesa de cabelos brancos, cheia dedistinção, era, sem ser necess0rio proceder a eleição, a presidente dehonra da nossa mesa.

  uito direita na sua cadeira, manifestava por todos umaamabilidade permanentemente igual. falando pouco. mas sempre deuma maneira interessante e encantadora " bastava at! o seu f(sico paraagradar a todos os olhos" um recolhimento e uma calma admir0veisirradiavam das suas maneiras aristocraticamente reservadas.onservava-se at! um pouco a dist#ncia de todos, se bem que, com )notacto, soubesse ter para cada um de n&s particulares atençes.

  >stava quase sempre sentada no jardim, com os seus livros"outras vezes tocava piano, e s& em raras ocasies a v(amos emsociedade. u envolvida numa conversa animada.  al se dava pela sua presença e, no entanto, e$ercia sobre n&ssingular in=u%ncia. Assim que entrou, pela primeira vez, na nossadiscussão, tivemos todos, com efeito, a desagrad0vel impressão dehavermos falado demasiado alto, perdido o dom(nio de n&s pr&prios.

  rs. . . . aproveitou a pausa embaraçosa que se produziuquando o alemão, tendo saltado bruscamente do seu lugar, se viucompelido a voltar a ele com mais calma.

 >rgueu de s;bito os seus olhos cinzentos e claros, )tou-me um

instante, indecisa, para pDr em seguida, no seu esp(rito, o problema,por assim dizer com a precisão de um perito.  - Acha então, se bem compreendi, que . 6enriette. . . que umamulher pode, sem querer, ser precipitada repentinamente numaaventuraE Acha então que e$istem actos que uma mulher julgariaimposs(veis uma hora antes e de que não pode ser consideradarespons0velE - Absolutamente, minha senhora. -:endo assim, toda a moral comum )caria por completo desvalorizadae toda a violação das leis da !tica justi)cada. :e o senhor admite,realmente, que o crime passional, como dizem os 'ranceses, não !

crime, para que serve conservar os tribunaisE Não ! preciso muito boa vontade 2e o senhor tem uma espantosa boa vontade - acrescentou ela,sorrindo ligeiramente4 para descobrir em cada crime uma pai$ão, e,graças a essa pai$ão, uma desculpa. tom claro e, ao mesmo tempo,quase alegre destas palavras, fez-me um bem e$traordin0rio. mitando,contra a minha vontade, a sua maneira objectiva, respondi, meio s!rio,meio risonho +

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 -:em d;vida, os tribunais são mais severos do que eu nestes casos"eles t%m por missão proteger, implacavelmente, os costumes e asconvençes sociais" e isso obriga-os a condenar em vez de desculpar.as eu, simples particular, não vejo razão para que, por minha livre vontade, v0 assumir o papel do minist!rio p;blico. 5re)ro ser defensor

de pro)ssão. 5essoalmente, tenho mais prazer em compreender oshomens do que em julg0-los. rs. . . . )tou-me durante um determinado tempo, bem de

frente, com os seus olhos cinzento-claros, e )cou indecisa Receava j0 que ela não tivesse compreendido bem e dispunha-me

a repetir-7he em ingl%s o que tinha dito. as, com uma gravidadenot0vel e, como num e$ame, ela continuou as suas perguntas + - não lhe parece então conden0vel e odioso que uma mulher abandoneo marido e dois )lhos, para seguir um indiv(duo qualquer, sem tão-pouco saber ainda se ! digno do seu amorE 5ode realmente desculparum comportamento tão leviano e impensado numa mulher que j0 não !

criança e que devia ter aprendido a respeitar-se, quando mais nãofosse, em atenção aos )lhosE  - Repito-lhe, minha senhora-disse eu, persistindo -, que me recuso a julgar ou a condenar um caso destes. as, diante de 8. >$. possotranquilamente reconhecer que fui h0 pouco um tanto e$agerado. >ssapobre . 6enriette não ! certamente uma hero(na" não possui mesmoum temperamento de aventureira, e muito menos o de grande amorosa.?anto quanto me ! permitido conhec%-la, julgo-a apenas uma mulherfraca e vulgar, por quem sinto um certo respeito, pois teve a coragemde obedecer a sua vontade, mas por quem tenho ainda mais compai$ão,porque, com toda a certeza, amanhã, se não for j0 hoje, ser0

profundamente infeliz. 1 poss(vel que tenha agido de uma maneiraest;pida" em qualquer caso, andou depressa de mais, mas de nenhumaforma o seu comportamento ! vil e bai$o, e, agora como sempre,negarei a quem quer que seja o direito de desprezar essa pobre edesgraçada mulher - > o senhor tem ainda o mesmo respeito e a mesma consideração porelaE não e$iste para o senhor diferença entre a mulher honesta emcompanhia de quem esteve na v!spera, e esta que ontem fugiu com umhomem que lhe era totalmente desconhecidoE - Nenhuma, nem a mais pequena, nem a mais ligeira diferença. -s that soE

  :em querer, e$primia-se em ingl%s, de tal modo e tãosingularmente a conversa parecia interess0-la3 >, depois dum curto momento de re=e$ão, o seu olhar ergueu-se

uma vez mais para mim+ - > se amanhã encontrar . 6enriette, em Nice. por e$emplo, pelobraço desse rapaz, continua a cumpriment0-laE - om certeza3 - > fala-lheE

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 - :em d;vida. - > se o senhor. . . se o senhor fosse casado, apresentava semelhantemulher a sua esposa, como se nada se tivesse passadoE - ertamente. - Fould @ou reall@E - disse de novo em ingl%s, num tom incr!dulo e

estupefacto. - :urel@ Gould - respondi igualmente em ingl%s, sem sequer dar porisso. rs. . . . calou-se. 5arecia mergulhada numa intensa re=e$ão "de s;bito disse, olhando-me de frente, como que espantada da suapr&pria coragem+ - donHt *noG if Gould. 5erhaps - might do it also.

 > com essa )rmeza indescrit(vel com que os ngleses sabem pDr)m a uma conversa, de forma radical, sem usarem todavia de grosseriaou de aspereza, levantou-se e estendeu-me amigavelmente a mão.Braças a sua interfer%ncia, a calma fora restabelecida e, no (ntimo,

todos lhe est0vamos reconhecidos por podermos ainda, emboraadvers0rios, cumprimentar-nos com cortesia e vermos dissipar-seaquela atmosfera pesada por efeito de alguns f0ceis gracejos.  >mbora a nossa discussão tivesse terminado cort%smente, nempor isso dei$aria de subsistir, dessa luta e dessa e$citação, uma ligeirafrieza entre mim e os meus contraditores.

casal alemão mostrava-se reservado, enquanto o italiano secomprazia em perguntar-me constantemente, nos dias seguintes, comum arzinho de troça, se eu tinha not(cias da cara senhora 6enriette. 5ormais polidas que fossem aparentemente as nossas maneiras, haviaqualquer coisa de irrevogavelmente destru(do no ambiente leal e franco

da nossa mesa. A frieza ir&nica dos meus antigos advers0rios tornou-se aindamais notada pela particular amabilidade com que rs. . . . passou atratar-me depois dessa discussão.

 >la, que habitualmente era da mais e$trema reserva e que, foradas horas das refeiçes, não conversava quase nunca com oscompanheiros de mesa, passou a dirigir-me v0rias vezes a palavra no jardim, e posso mesmo dizer que me deu a honra de me distinguir,porque a nobre reserva das suas maneiras emprestava a qualquerconversa particular o car0cter dum favor especial.

 :im, para ser sincero, devo confessar que ela at! me procurava e

aproveitava todas as ocasies para conversar comigo, e isso era tão vis(vel que eu podia conceber vaidosos e estranhos pensamentos, senão se tratasse duma senhora velha, de cabelos brancos. as, todas as vezes que fal0vamos assim, a nossa conversa reca(a invariavelmente nonosso ponto de partida+ . 6enriette.  rs. . . . parecia sentir um secreto prazer em acusar de poucos!ria, e absolutamente destitu(da de moral, essa mulher que esqueceraos seus deveres. as, ao mesmo tempo, parecia tamb!m )car satisfeita

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em notar a )delidade com que a minha simpatia se mantinha ao ladodessa mulher )na e delicada e ao veri)car que nada me levaria arenegar tal simpatia. >ra sempre para este assunto que encaminhava aconversa. 'inalmente, eu j0 não sabia que pensar de tão singular equase m&rbida insist%ncia. sto durou alguns dias, cinco ou seis, sem

que uma s& das suas palavras me revelasse a razão por que era tãoimportante para ela aquele assunto de conversa. as essa import#nciatornou-se-me evidente quando, no decurso dum passeio, lhe disse, poracaso, que estava a chegar ao )m da minha perman%ncia ali e que da( adois dias me retirava.

 >ntão, o seu rosto, ordinariamente impass(vel, tomou, de s;bito,uma estranha e$pressão de abatimento e, pelos seus olhos cinzentos, dacor do mar, passou a sombra duma nuvem+ -9ue pena3 ?inha ainda tantas coisas para lhe dizer3 - e$clamou.

  >, desde esse momento, uma certa agitação, uma certainquietação mesmo, indicava que, enquanto falava, pensava em

qualquer outra coisa que apreocupava vivamente e a desviava da nossa conversa. /epois, aquelaabstracção pareceu constrang%-la, porque, ap&s um instante desil%ncio, estendeu-me a mão, declarando+  - 8ejo que não posso dizer-7he claramente o que desejava. 5re)roescrever-lhe.  >, num passo r0pido, que eu não estava habituado a ver-7he,dirigiu-se para o hotel.

 I noite, um pouco antes do jantar, encontrei, com efeito, no meuquarto uma carta escrita com a sua letra en!rgica e franca.nfelizmente, sempre consagrei pouca atenção a correspond%ncia que

recebi nos anos da mocidade, e, assim, não posso reproduzir )elmenteo te$to daquela carta - tenho de me contentar com uma indicaçãoapro$imada do conte;do- pela qual me perguntava se a autorizava acontar-me um epis&dio da sua vida.  >sse acontecimento - escrevia ela - era tão antigo que j0 nemfazia, a bem dizer, parte da sua vida actual, e, visto eu ter de partir doisdias depois, tornava-se-lhe mais f0cil falar duma coisa que havia maisde vinte anos lhe atormentava a consci%ncia.  Assim, no caso de essa conversa não me parecer importuna,desejava que eu a procurasse a uma hora que me indicaria. >sta carta,de que esboço aqui apenas o sentido, fascinou-me e$traordinariamente"

a sua redacção em ingl%s, s& por si, dava-lhe um alto grau de clareza edecisão. Apesar disso, não me foi f0cil achar a resposta e rasguei tr%srascunhos antes de encontrar a forma de)nitiva +

  1 para mim, uma honra conceder-lhe 8. >z.a sua con)ança eprometo-lhe que corresponderei sinceramente, se assim, o desejar.omo ! natural, não 5osso pedir-lhe que me conte mais do que aquiloque me quiser contar, mas, o que me quiser contar, faça-o, tanto por

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mim como 5or 8. >$.a, com inteira verdade. reia, peço-lhe, queconsidero a sua con)ança como uma 5articular(ssima prova de estima.

Nessa mesma noite, o meu bilhete passou para o seu quarto, e namanhã seguinte encontrei esta resposta+

?em, muita razão" a meia verdade não vale nada, ! precisosempre que seja com5leta. A5elarei 5ara toda a minha coragem, e tentarei nada dissimular diantedo senhor e de mim, pr&pria. 8enha depois do jantar ao meu quarto Jaos sessenta e sete anos j0 não tenho a recear nenhuma falsainterpretação deste convite- porque no jardim ou 5r&$imo doutraspessoas não poderia falar. 5ode crer que não foi f0cil decidir-me.

  /urante o dia, vimo-nos ainda a mesa e convers0mosamigavelmente de coisas indiferentes. as, j0 no jardim, quando me

encontrou, evitou-me com vis(vel embaraço, e foi para mim muitodoloroso e impressionante ver essa mulher j0 idosa, de cabelos brancos,fugir de mim, assustada como uma rapariga, atrav!s duma alameda depinheiros. a noite, a hora combinada, bati a sua porta" abriu-maimediatamente. quarto estava imerso numa semiobscuridade p0lida"apenas uma l#mpada em cima da mesa projectava um jacto de luzamarela no aposento, onde reinava uma obscuridade crepuscular. :emo mais leve embaraço, rs, .. veio ter comigo, ofereceu-me umapoltrona e sentou-se na minha frente. ada um dos seus movimentos,bem o senti, era estudado" mas, mesmo assim, houve uma pausamanifestamente involunt0ria" uma pausa que precedia uma resolução

dif(cil de tomar, pausa que durou muito tempo ainda, mas que não ouseiinterromper tomando a palavra, porque sentia que ali, naquelemomento, uma vontade forte lutava energicamente contra umaresist%ncia ainda mais forte. /a sala de visitas, que )cava por bai$o den&s, subiam as vezes, em turbilhão, os sons enfraquecidos duma valsa,que eu escutava com grande tensão de esp(rito, como para quebrar umpouco a opressão daquele sil%ncio. ?amb!m ela parecia estardesagradavelmente impressionada pela dureza pouco natural dessacalma, porque, de repente, ergueu-se como para ganhar coragem ecomeçou+ - que mais custa ! a primeira palavra. C0 estou preparada h0 dois dias

para )car completamente calma e ser verdadeira" espero que oconseguirei. 1 poss(vel que não compreenda ainda porque lhe contotudo isto, ao senhor, que ! um estranho para mim, mas ! que não sepassa um dia, uma hora sequer, em que não pense neste acontecimento,e pode acreditar na palavra duma mulher j0 velha como eu, que lhe dizser intoler0vel )car toda a vida com os olhos presos a um ;nico pontoda e$ist%ncia - um dia apenas. 5orque tudo que lhe vou contar ocupasomente o espaço de vinte e quatro horas, numa e$ist%ncia de sessenta

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e sete anos, e quantas vezes tenho repetido a mim pr&pria, num del(rio+9ue importa, se durante tanto tempo tive apenas um momento deloucura, um s&E as a gente não pode desembaraçar-se daquilo a quechama, numa vaga e$pressão, a consci%ncia.  9uando o ouvi e$aminar tão objectivamente o caso de 6enriette,

pensei que talvez terminasse com esta maneira absurda de me voltarcontinuamente para o passado e que esta incessante acusação, feitacontra mim pr&pria, teria )m se eu pudesse decidir-me a falarlivremente diante de algu!m, a respeito desse dia da minha vida.  :e, em vez de pertencer a religião anglicana, fosse cat&lica, h0muito tempo que a con)ssão me teria fornecido ensejo de desabafar omeu segredo" mas essa consolação est0-nos vedada, e ! por isso quefaço hoje esta estranha tentativa para me absolver a mim pr&pria,tomando-o por con)dente.

 <em sei que tudo isto ! muito singular, mas o senhor aceitou semhesitação a minha proposta, e estou-lhe por esse motivo muito grata.

 /emais, j0 7he disse que desejo contar-lhe simplesmente um;nico dia da minha vida" o resto parece-me sem import#ncia, e seriamesmo aborrecido para outra pessoa que não fosse eu pr&pria. A minha vida, at! a idade de quarenta e dois anos, não conta nenhum factonot0vel. eus pais eram ricos landlords da >sc&cia" possu(amosgrandes f0bricas e importantes fazendas" viv(amos como os nobres donosso pa(s, a maior parte do ano nas nossas terras, e em 7ondresdurante o senso..  Aos dezoito anos conheci meu marido na sociedade" era o )lhosegundo da not0vel fam(lia dos R. . . e tinha servido na Kndia durantedez anos.

  as0mos em breve e pass0mos a viver a vida sem cuidados daspessoas da nossa classe social+ tr%s meses em 7ondres, tr%s meses nasnossas propriedades, e o resto do tempo de hotel em hotel, na t0lia, em>spanha e em 'rança. Nunca a mais ligeira sombra turvou a felicidadedo nosso lar" os dois )lhos que tivemos são hoje homens feitos. ?inha euquarenta anos, quando meu marido morreu subitamente. ?rou$era dosanos passados nos tr&picos uma doença do f(gado " perdi-o ao )m deduas atrozes semanas. eu )lho mais velho estava j0 a cumprir oserviço militar, o mais novo conservava-se ainda no col!gio, e, assim,numa noite, )quei completamente s&, e essa solidão era para mim,habituada a uma companhia afectuosa, um tormento horr(vel. 5arecia-

me imposs(vel continuar um dia mais naquela casa deserta, onde cadaobjecto me falava da perda tr0gica do meu querido marido, e, assim,resolvi viajar durante os anos seguintes, enquanto meus )lhos nãoestivessem casados.

No (ntimo, desde esse momento, considerei a minha vida sem)nalidade e completamente in;til. homem com quem durante vinte etr%s anos partilhara cada hora e cada pensamento estava morto" meus)lhos não precisavam de mim, e receei perturbar a sua mocidade com o

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meu humor sombrio e a minha melancolia" quanto a mim, nada maisqueria nem desejava.

'ui primeiro a 5aris, percorrendo, para matar a minha ociosidade,lojas e museus" mas as cidades e as coisas constitu(am para mim umambiente estranho, e evitava as pessoas, porque não suportava os seus

olhares de com pai$ão am0vel que o meu luto provocava. :er-me-iaimposs(vel contar hoje como se passaram esses meses de vagabundagem mon&tona e sem descanso" sei apenas que me assaltavasempre o desejo de morrer" faltava-me, por!m, a coragem paraantecipar, eu pr&pria, esse )m dolorosamente ambicionado.

 No segundo ano da minha viuvez, tinha então quarenta e doisanos, durante essa fuga inconfessada diante da e$ist%ncia, seminteresse para mim, e diante do tempo, que me era imposs(vel aniquilar,fui, no m%s de arço, at! onte arlo. 5ara falar com sinceridade, foimais para fugir ao t!dio, a essa vida torturante da alma que nos causauma esp!cie de n0usea e nos faz procurar, como uma distracção, os

mais pequenos e$citantes e$teriores. 9uanto mais insens(vel meencontrava, mais sentia a necessidade de me embrenhar no turbilhãoda vida. 5ara quem não pode interessar-se por coisas profundas, aapai$onada agitação dos outros entret!m os nervos, como o teatro e am;sica.

 a, por isso, v0rias vezes ao asino. onstitu(a para mim umae$citação ver perpassar febrilmente pelo rosto dos outros a felicidadeou a desilusão, enquanto no meu (ntimo nenhuma onda vital se agitava.

 Al!m disso, meu marido, sem ?er sido leviano, gostava muito defrequentar salas de jogo, e era com certa devoção inconsciente que eucontinuava a ser )el aos seus h0bitos. A( começaram as vinte e quatro

horas que foram mais emocionantes que todos os jogos e transtornaramdurante muitos anos o meu destino.  Ao meio-dia, tinha ido almoçar com a duquesa de . . . , umaparente da minha fam(lia. /epois do jantar, não me sentia aindabastante fatigada para me ir deitar, e, então, entrei na sala de jogo,passando, sem jogar, de uma mesa para outra, e olhando, de formaespecial, para os jogadores ali reunidos ao acaso.  /igo duma forma especialH porque foi essa a que me ensinou omeu falecido marido, quando um dia, fatigada, me quei$ei do t!dio queme causava o contemplar, com ar embasbacado, todas aquelas caras,sempre as mesmas" caras de velhas encarquilhadas, que para ali )cam

sentadas durante horas antes de arriscar uma )cha, de pro)ssionaisastuciosos e de cocottes de jogo de cartas - toda essa sociedadeequ(voca, vinda dos quatro cantos do horizonte e que, como se sabe, !bem menos pitoresca e rom#ntica do que habitualmente a pintamnovelas miser0veis, que a dão como representante da )na =or daeleg#ncia e da aristocracia da >uropa. 'alo-7he de h0 vinte anos atr0s,quando o metal sonante rolava e as notas do banco, os napolees deouro e as grandes moedas de cinco francos se amontoavam em

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confusão, quando o asino era in)nitamente mais interessante do quehoje, em que, nesta pomposa cidade de jogo, reconstru(da a moderna,um p;blico aburguesado de turistas da ag%ncia oo* atira, com fastio,as suas )chas incaracter(sticas. No entanto, nessa !poca, pouca graçaencontrava eu naquela monotonia de rostos indiferentes, at! que um

dia, meu marido, para quem a quirom#ncia era pai$ão dominante, meindicou uma forma absolutamente nova de ver, efectivamente muitomais interessante, muito mais e$citante e cativante que a de )car paraali plantada com indol%ncia+ consistia em não )tar nunca o rosto daspessoas, mas unicamente o quadrado da mesa e, dentro dele, as mãosdos jogadores - nada mais do que o movimento dessas mãos.

 Não sei se, por acaso, o senhor algum dia contemplou j0, nasmesas de jogo, e$clusivamente o quadrado verde, no meio do qual abola cambaleia de n;mero para n;mero, como um homem embriagado,e onde, no interior das casas quadrangulares, as notas em torvelinho eas peças redondas de ouro e prata tombam como sementes que, em

seguida, a p0 dos crou5iers colhe, num golpe certeiro como duma foice,que empurra, como um fei$e, na direcção daquele que ganhou. A ;nica coisa que varia neste quadro são as mãos, a multidão de

mãos claras agitadas ou em e$pectativa a volta do pano verde, todassemelhantes a feras prontas a saltar, sempre diferentes na forma e nacor, umas nuas, outras carregadas de an!is e de pulseiras chocalhantes"umas peludas como feras selvagens, outras =e$(veis e h;midas comoenguias, mas todas atravessadas por oculta tensão e vibrando dee$traordin0ria impaci%ncia. :em querer, vinha-me sempre L ideia umcampo de corridas onde, no momento da partida, os cavalos, e$citados,são contidos a força, para que não abalem antes da hora marcada. 1

e$actamente desta maneira que as mãos dos jogadores tremem, seerguem e se preparam. >las revelam, pela forma como esperam, comoagarram, ou ainda como estão quietas, a individualidade do jogador.rispadas como garras, denunciam o homem c;pido" =0cidas, o pr&digo" calmas, o calculista " e frementes, o homem desesperado. emcaracteres se traem, assim, com a rapidez dum rel#mpago, no gestoque fazem para agarrar o dinheiro, quer o jogador o amachuque, quer,nervosamente, o espalhe, quer, esgotado j0, fechando a mão =0cida, odei$e rolar livremente pelo tapete.

  jogo revela o homem, ! uma frase banal, bem sei " mas digomais + a mão, durante o jogo, revela-o melhor ainda.

  ?odos, quase todos os que praticam o jogo de azar, depressaaprendem a modelar a e$pressão do rosto" l0 no alto, por cima docolarinho, e$ibem a m0scara fria da impassibilidade " obrigam adesaparecer as rugas que se vão formando ao canto da boca" abafam aemoção entre os dentes cerrados" ocultam, aos pr&prios olhos, o re=e$oda sua inquietação" atenuam a sali%ncia dos m;sculos da face numacalma arti)cial que procura )ngir de eleg#ncia. as precisamenteporque toda a sua atenção se concentra, de maneira convulsiva, no

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trabalho de dissimular o que h0 de mais vis(vel na sua personalidade -isto !, o rosto esquecem por isso as mãos, esquecem que h0 indiv(duosque observam unicamente essas mãos, e que, graças a elas, adivinhamquanto se pretende esconder debai$o do franzir dos l0bios que tentamsorrir e dos olhos que se esforçam por simular indiferença. A mão trai,

sem pudor, o que se sente de mais (ntimo. Mm momento chega,inevitavelmente, em que todos aqueles dedos, di)cilmente contidos eque parecem dormir, abandonam a sua indolente postura+ no segundodecisivo em que a bola da roleta cai na cavidade e se ouve apregoar on;mero que ganhou, faz, sem querer, um movimento pr&prio,absolutamente individual, imposto pelo mais primitivo instinto. >quando uma pessoa est0 habituada, como eu - que fui iniciada, graças apai$ão de meu marido, a observar essa esp!cie de arena das mãos -,então tal maneira brusca, sempre diferente, sempre imprevista, comoos temperamentos sempre novos, desmascara-se, ! maisimpressionante do que o teatro ou a m;sica. não me ! poss(vel

descrever-lhe as mil atitudes das mãos + umas, de animais selvagens,com dedos peludos e aduncos que agarram o dinheiro como o faria umaaranha" outras, nervosas, tr!mulas, de unhas p0lidas, ousando apenastocar-lhe, nobres e vis, brutais e t(midas, astuciosas e, por assim dizer,balbuciantes" mas cada uma delas com a sua caracter(stica particular,porque cada um daqueles pares de ranger e um estalar como queproveniente de articulaçes que se que brassem. :em querer, olhei,admirada, para o outro lado do pano verde. > divisei 2com que susto3 4duas mãos como nunca vira iguais, a mão direita e a mão esquerdaenclavinhadas uma na outra como animais em luta, que se apertavam ese debatiam furiosamente de forma tão dura e tão convulsiva que as

articulaçes das falanges estalavam com o ru(do seco duma noz que separte.  >ram de rara beleza essas mãos, e$traordinariamente longas,e$traordinariamente magras, e, no entanto, atravessadas por m;sculosde e$trema rigidez - mãos muito brancas, com unhas p0lidas, levementenacaradas e delicadamente ovais. ontemplei durante toda a noite, comsurpresa sempre nova, essas mãos estranhas, verdadeiramente ;nicas"mas o que me surpreendeu de forma aterradora foi o seu estado febril,a sua e$pressão loucamente apai$onada, aquela maneira convulsiva dese apertarem e lutarem entre si. ompreendi logo tratar-se dum homeme$uberante de força, que concentrava toda a sua pai$ão nas

e$tremidades dos dedos, para não fazer e$plodir toda a sua pessoa. > então. . . quando a bola caiu na cavidade com um ru(do seco eabafado e o banqueiro apregoou o n;mero.. nesse momento as duasmãos separaram-se uma da outra, como dois animais feridos de mortepela mesma bala.  a(ram ambas, realmente mortas e não apenas e$austas "tombaram com uma e$pressão tão vis(vel de abatimento e desilusão, detal sorte fulminadas, aniquiladas, que as minhas palavras são

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impotentes para o descrever. Nunca at! então, e nunca mais depoisdisso, tornei a ver mãos tão e$pressivas, em que cada m;sculo eracomo uma boca e donde a pai$ão sa(a, quase tang(vel, por todos osporos.  /urante um momento, )caram ambas estendidas sobre o pano

 verde, quais medusas atiradas a praia, inertes, sem vida. /epois, umadelas, a direita, começou penosamente a erguer as pontas dos dedos+tremeu, encolheu-se, girou a sua pr&pria volta, hesitou, descreveu um c(rculo e, por )m, pegou nervosa mente numa )cha que fez rolarnum gesto perple$o, entre a e$tremidade do polegar e a do indicador,como uma pequena roda. /e repente, a mão arqueou-se como umapantera que ergue felinamente o dorso, arremessou, ou melhor, cuspiuquase a )cha de cem francos, que segurava, no meio do quadradonegro.

  7ogo, como obedecendo a um sinal, a agitação apoderou-setamb!m da mão esquerda, que se conservava im&vel" então esta

ergueu-se, escorregou, ras tejou mesmo, por assim dizer, at! junto dairmã, que tremia e parecia fatigada pelo gesto que acabava de fazer, eali )caram ambas, frementes, uma ao lado da outra" e, ambas,semelhantes a dentes que, no tremor da febre, batem uns contra osoutros, tamborilavam na mesa, com as articulaçes, sem produzir ru(do.  Realmente, nunca at! então eu vira mãos com tão e$traordin0riae$pressão, mãos que falavam de forma tão espasm&dica de agitação etensão nervosa. ?udo o mais que se passava debai$o daquele grandetecto - o murm;rio que enchia os sales, os gritos agudos dos croupiers,o vaiv!m das pessoas e da pr&pria bola, que, lançada agora, de alto,saltava como possessa na sua gaiola redonda e reluzente, toda esta

multiplicidade de impresses, confundindo-se, sucedendo-se emdesordem, obcecando com viol%ncia os nervos-, tudo isso me pareceubruscamente morto e inerte, ao lado dessas mãos frementes,arquejantes, como que sufocadas, vencidas pela e$pecta tiva, tr!mulase arrepiadas" ao lado dessas mãos espantosas que, de todos os modos,fascinavam e prendiam inteiramente a minha atenção. 5or )m, nãopude resistir por mais tempo" tinha de ver este homem, ver o rosto aque pertenciam essas mãos m0gicas, e ansiosamente 2sim, com verdadeira ansiedade, porque aquelas mãos me causaram medo4, o meuolhar deslizou lentamente ao longo das mangas at! ao seus ombrosestreitos. > tive outra vez um sobressalto de terror, porque este rosto

falava a mesma linguagem fren!tica, fant0stica, supere$citada, dasmãos" possu(a, simult#neamente, a mesma e$pressão de terr(velencarniçamento e a mesma beleza delicada, quase feminina.

 Nunca vira um rosto como aquele, colocado, por assim dizer,sobre a criatura e quase separado dela, para viver a sua vida pr&pria,para se dei$ar arrastar pela mais completa e$acerbação" e tinha ali umae$celente ocasião de poder e$amin0-lo a vontade, como se fosse umam0scara, como se fosse uma obra pl0stica, sem olhos, porque esse olhar

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demente não se voltava para a esquerda nem para a direita um segundosequer" a pupila, r(gida e negra, era como uma bola de vidro sem vida,sob as p0lpebras dilatadas como que o re=e$o brilhante dessa outrabola cor de mogno que rolava, saltando loucamente, insolentemente, napequena cai$a redonda da roleta.

Nunca, repito-o mais uma vez, vira um rosto tão e$citado e tãofascinante.  >ra o rosto dum rapaz de vinte e quatro anos, apro$imadamente,delgado, delicado, um pouco comprido e por isso tão e$pressivo. ?alcomo as mãos, nada tinha de viril, parecendo pertencer a uma criançaque jogava com pai$ão" mas s& reparei nisso mais tarde, porque,naquele instante, esse rosto desaparecia completamente sob umae$pressão vincada de avidez e furor. A boca )na, aberta e ardente,mostrava metade dos dentes, e, a uma dist#ncia de dez passos, podia ver-se como eles batiam febrilmente, enquanto os l0bios continuavamim&veis e entreabertos.

  Mma linda madei$a, de cabelos dum louro luminoso, estava coladaa testa h;mida" tombava para o rosto como se fosse cair e um tremorininterrupto fazia-7he palpitar a carne dum e outro lado das narinas,como se, sob a pele, lhe rolassem pequenas e invis(veis vagas. > essacabeça, pendida para diante, inclinava-se inconscientemente cada vezmais, chegando a dar a impressão de que era atra(da pelo turbilhão dapequena bola. > s& então compreendi por que motivo aquelas mãos seapertavam tão convulsivamente" era apenas por essa contrapressão,por essa contracção que o corpo, arrancado ao seu centro de gravidade,podia ainda conservar o equil(brio.  Nunca, at! esse momento 2não me canso de o repetir4, vira um

rosto onde a pai$ão brotasse tanto a descoberto, tão bestial na suaimp;dica nudez, e )quei para ali completamente entregue acontemplação )$a desse rosto. . . tão fascinada, tão hipnotizada pelasua loucura, como estava o seu olhar pelos movimentos palpitantes dabola em rotação.

 A partir desse momento, não vi mais nada na sala, tudo meparecia apagado, embaciado, tudo se me a)gurava obscuro emcomparação com o fogo que brotava daquele rosto" e, sem dar atençãoa mais ningu!m, observei, talvez durante uma hora, apenas aquelehomem e cada um dos seus gestos. Mma luz brutal iluminou-lhe osolhos, o novelo convulso das mãos foi bruscamente desfeito como por

uma e$plosão, e os dedos alargaram-se com viol%ncia, frementes, mal ocroupier empurrou, em sua direcção, vinte moedas de ouro. Nessemomento, o seu rosto iluminou-se e rejuvenesceu por completo" asrugas des)zeram-se lentamente" os olhos começaram a brilhar" o corpo,antes contra(do, endireitou-se, tornou-se leve como um cavaleiroimpelido pelo entusiasmo do triunfo" os dedos faziam tilintar com vaidade e amor as moedas redondas, obrigando-as a escorregar umasde encontro as outras, fazendo-as dançar e tinir como numa

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brincadeira. /epois, voltou de novo a cabeça com inquietação,percorreu o pano verde com as narinas dilatadas como um cãozinho decaça farejando a boa pista, e, a seguir, num gesto r0pido e nervoso,atirou todas as suas moedas de ouro para um dos quadros. > logocomeçou a mesma atitude de e$pectativa, a mesma hipertensão.

Novamente lhe saiu dos l0bios aquele marulhar de ondas com vibraçes el!ctricas" novamente as mãos se contra(ram " o rosto decriança desapareceu sob a ansiedade do desejo, at! que, como umae$plosão, a decepção veio desmanchar essa crispação e essa tensão" orosto, que por um momento parecia infantil, murchou, tornou-se triste eenvelhecido, os olhos apagaram-se, )caram embaciados, e tudo isso noespaço dum segundo, enquanto a bola ca(a num n;mero que ele nãotinha escolhido. 5erdera.

 /urante uns segundos, olhou )$a mente, num ar quase est;pido,como se não tivesse compreendido" mas logo, a primeira chamada docroupier, como estimulado por uma chibatada, os seus dedos agarraram

outra vez em algumas moedas de ouro. as agia sem con)ança"primeiro pDs as moedas num quadrado" depois, mudando de ideia,passou-as para outro, e, com a bola j0 em rotação, atirou a pressa paraum n;mero, com mão tr!mula, sob o efeito duma s;bita inspiração,mais duas notas de banco, amarrotadas.  >sta alternativa, este movimento palpitante de perdas e deganhos, prolongou-se, sem descanso, talvez por uma hora" e, duranteessa hora, não tirei um s& momento os meus olhos fascinados daquelerosto constantemente transtornado, em que se re=ectiam o =u$o e ore=u$o de todas as pai$es.

 Não despreguei mais os olhos dessas m0gicas mãos, onde cada

m;sculo acusava, plasticamente, toda a escala de sentimentos, subindoe descendo, como um repu$o. Nunca, nem mesmo no teatro, contemplei com tanto interesse o

rosto dum actor como este rosto em que se desenrolavaincessantemente, em bruscas alternativas -como um jogo de luz e desombra numa paisagem - a gama variada de todas as cores e de todasas sensaçes.  Nunca at! então me tinha abandonado tão completamente a umdivertimento como com o re=e$o daquela pai$ão que me era alheia. :ealgu!m me tivesse observado nesse instante, teria certamente tomado a)$idez do meu olhar de aço por uma hipnose, a que o meu absoluto

estado de entorpecimento se assemelhava" mas não me era poss(veldei$ar de olhar para esse jogo de e$presses" e toda aquela mistura deluzes e de risos, de seres humanos e de olhares, =utuava a minha voltacomo fumarada amarela, no meioda qual sobressa(a aquele rosto - chama entre chamas. Não percebianada, não sentia nada, não via sequer a gente que passava ao p! demim, não via outras mãos estenderem-se bruscamente, como antenas,para atirar dinheiro para a mesa do jogo ou para o recolher as

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braçadas. não notava a bola, nem ouvia a voz do croupier, e, nãoobstante, via, como num sonho, tudo quanto se passava, ampliado eengrandecido pela emoção e pela e$altação, no espelho cDncavodaquelas mãos. 1 que, para saber se a bola ca(a em n;mero vermelhoou preto, se rolava ou se tinha parado, não precisava de olhar a roleta"

cada fase, perda ou ganho, lia-se em caracteres de fogo nos nervos enos movimentos desse rosto dominado pela pai$ão. mas eis quechegou um momento terr(vel, momento que eu receara j0,secretamente, durante todo aquele tempo, momento que estavasuspenso como tempestade sobre os meus nervos e$citados, e que, derepente, os arrebatou ao desencadear-se. /e novo a bola iaamortecendo os ru(dos no )nal da sua carreira circular" de novopalpitou um instante, durante o qual duzentos l0bios retiveram arespiração, at! que a voz do croupier anunciou desta vez+ ero aomesmo tempo que a sua p0 arrebanhava de todos os lados as moedassonoras e as notas amarrotadas. Nesse instante, as duas mãos

contra(das tiveram um movimento particularmente horr(vel como paraagarrarem qualquer coisa que j0 não e$istia, mas em seguida ca(ramcomo agonizante sobre a mesa, obedecendo apenas, na sua in!rcia, asleis da gravidade.  as, logo a seguir, readquiriram vida novamente" correram,febricitantes, da mesa para o corpo de que faziam parte, treparamcomo gatos selvagens ao longo do tronco, vasculharam nervosamentetodas as algibeiras, em cima, em bai$o, a direita e a esquerda, para verse haveria ainda em algum lugar, como ;ltima migalha, qualquer moedaesquecida.

as voltaram sempre vazias e sempre renovavam, com maior

ardor, essa procura vã e in;til, enquanto o movimento e o jogo dosoutros continuava. As moedas tilintavam, as cadeiras afastavam-se e milpequenos barulhos confusos enchiam a sala com o seu rumor.  >u tremia, num estremecimento de horror, de tal modoparticipava j0, contra minha vontade, de todos aqueles sentimentos,como se fossem os meus pr&prios dedos que estivessem ali,esquadrinhando desesperadamente, a procura de qualquer moeda, nasalgibeiras e nas dobras do fato amarrotado.  /e repente, num movimento brusco, o homem levantou-se naminha frente, como algu!m que se sente de s;bito mal e se ergue paranão sufocar" por tr0s dele a cadeira caiu no chão, produzindo um ru(do

seco.  as, sem mesmo dar por isso, nem prestar sequer atenção aos vizinhos, retirou-se da mesa com passo arrastado.  Ao ver o seu aspecto, )quei como petri)cada. 5ercebi logo paraonde ia aquele homem+ para a morte. 9uem se levanta daquela formanão vai, decerto, a um hotel, a um bar, ao encontro duma mulher, outomar o comboio, não se dirige, en)m, a qualquer coisa da vida" vai,sem d;vida, precipitar-se directamente no nada.

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 esmo a pessoa mais insens(vel desta sala infernal teria porforça reconhecido que aquele homem não podia contar com o mais leveapoio -nem em sua casa, nem num banco, nem em casa de parentes -"que acaba de jogar o seu ;ltimo dinheiro, a pr&pria vida" e que, naquelemomento, se retirava a passos trDpegos, para onde quer que fosse, mas,

sem d;vida, para fora da e$ist%ncia. /esde o primeiro momento, compreendi, magicamente, que ali setratava de coisa superior ao ganho ou a perda do jogo. :enti-me comoque fulminada por um raio ao ver a vida abanãonar bruscamente osolhos desse homem, ao notar que a morte punha a sua marca l(vidanaquele rosto ainda cheio de vitalidade. nvoluntariamente 2de talforma estava fascinada pelos seus gestos pl0sticos4, tive de me agarrar,enquanto ele se erguia com di)culdade da cadeira, porque o que haviade vacilante no seu andar passava agora para o meu pr&prio corpo,como antes a sua e$citação me penetrara nas veias e nos nervos. asum desejo mais forte do que eu obrigou-me a segui-lo. :em querer, os

meus p!s puseram-se automaticamente em movimento. sto aconteceuduma maneira de todo inconsciente" não era eu que agia" as coisaspassaram-se de tal forma que, sem ter a consci%ncia dos meus pr&priosmovimentos, corri para o vest(bulo, disposta a sair tamb!m.

  homem estava no vesti0rio, o criado entregava-lhe o sobretudo,mas os seus braços não lhe obedeciam j0, e o criado teve de ajud0-lo,como a um doente, a en)ar com di)culdade as mangas. 8i-o levarmec#nicamente os dedos aos bolsos do colete para dar uma gorjeta,mas os dedos, depois de terem tacteado no fundo, sa(ram vazios. >ntão,parecendo recordar-se de quanto se acabava de passar, balbuciou, comembaraço, uma palavra qualquer ao criado e, como anteriormente, deu

alguns bruscos passos para diante " depois, como um homemembriagado, desceu, cambaleante, as escadas do casino, donde o criado)cou a olh0-lo ainda um momento com um sorriso, a princ(pio dedesprezo e depois de compai$ão. >sta cena era tão comovente que tive vergonha de me encontrar ali. :em querer, voltei-me, ve$ada por terassistido, como num lugar de teatro, a este drama dedesespero,passado com algu!m que eu não conhecia" mas, de repente,a mesmaang;stia que sentia obrigou-me a segui-lo. 5edi depressa o meuagasalho e, sem qualquer pensamento determinado, maquinalmente, omais instintivamente poss(vel, lancei-me na escuridão, seguindo ospassos daquele homem. rs....interrompeu por um momento a sua

hist&ria. >stivera todo aquele tempo im&vel na sua cadeira em frente demim, e falara sem descanso, com a calma e a clareza que lhe eramnaturais, como s& o pode fazer quem primeiro tenha posto em ordemcom todo o cuidado,a recordação dos acontecimentos. >ra a primeira vez que ela se calava. 6esitou, e um segundo depois, de modo brusco,largando o )o a sua hist&ria, dirigiu-se a mim directamente.  - 5rometi ao senhor e a mim pr&pria - recomeçou ela um poucoinquieta contar-lhe, com absoluta sinceridade, tudo quanto se passou,

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mas, pela minha parte, devo e$igir-lhe que acredite inteiramente naminha sinceridade e que não atribua motivos ocultos a minha maneirade proceder, motivos de que eu hoje talvez me não envergonhasse, masque seria, neste caso, uma suposição completamente falsa. /evo frisar"bem que, quando segui precipitadamente na rua esse jogador

desesperado, não estava, de forma alguma, enamorada dele" nãopensava nele como uma mulher pode pensar num homem" pois a verdade ! que eu, então mulher de mais de quarenta anos, nunca maisolhara para nenhum homem depois da morte de meu marido. >ra coisa,para mim, de)nitivamente sepultada no passado. >$plico-lhe este factocom toda a verdade, e ! necess0rio que o creia, porque, doutra forma,tudo o que se passou em seguida não se lhe tornar0 compreens(vel emtodo o seu horror. ?amb!m ! verdade que, por outro lado, vai ser-medif(cil quali)car com precisão o sentimento que, naquele instante, mearrastou assim, irrestivelmente, a seguir esse desgraçado " havia emmim curiosidade, mas, sobretudo, um medo horr(vel, ou, para me

e$plicar melhor, o medo de qualquer coisa de horr(vel que sentia, desdeo primeiro instante, pairar como uma nuvem a volta desse rapaz. astais impresses não se podem analisar nem dissecar, principalmenteporque se produzem amalgamadas umas com as outras, com viol%ncia,rapidez e espontaneidade, e ! prov0vel que nada mais )zesse senãoaquele gesto instintivo que se tem para socorrer uma criança prestes ameter-se debai$o dum autom&vel, no meio da rua.

 A não ser assim, como e$plicar que pessoas que não sabem nadarse atirem do alto duma ponte em socorro de algu!m que se afogaE 1apenas um poder m0gico que as impele, uma vontade estranha que asleva a atirarem-se a 0gua, antes que tenham tempo de re=ectir na

insensata temeridade do seu acto. > foi e$actamente assim, semqualquer pensamento, sem re=e$ão e numa absoluta inconsci%ncia, queeu segui aquele desgraçado desde a sala de jogo at! a sa(da e da sa(daat! ao terraço que precede o asino. > estou certa de que nem osenhor, nem qualquer outra pessoa com olhos para ver, se teria podidofurtar a essa curiosidade ansiosa, pois nada se pode imaginar de maislament0vel do que o aspecto desse rapaz, de vinte e quatro anos,quando muito, arrastando-se di)cilmente, como um velho, da escadapara o terraço, cambaleante como um !brio, com as articulaçes=0cidas e quebrantadas. /ei$ou-se cair num banco, pesadamente,como um fardo.

  >sse movimento fez-me estremecer de novo, porque senti queaquele homem tinha chegado ao )m de tudo. :& pode tombar assim um morto ou algu!m que não tenha um

;nico m;sculo vivo. A cabeça, pendida para o lado, inclinava-se porcima das costas do banco" os braços ca(am, frou$os e ao acaso, para ochão" na meia obscuridade das lanternas de chamas vacilantes, aspessoas que passavam deviam forçosamente tom0-lo por um cad0ver.

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 > foi assim 2nem posso e$plicar como essa visão se formou emmim, mas sei que se formou, tangivelmente pl0stica, com uma realidadehorr(vel e aterradora4, e foi assim, repito, com o aspecto dum cad0ver,que eu o vi na minha frente nesse momento, e tive a absoluta certeza deque havia um rev&lver na sua algibeira e que, no dia seguinte,

encontrariam o seu corpo estendido naquele banco, ou em outroqualquer, sem vida e banhado em sangue. 5orque a maneira como setinha atirado para ali era a duma pedra que cai num abismo e s& p0rano fundo.

 Nunca vi um gesto f(sico e$primir tanta lassidão e tão grandedesespero. > imagine agora a minha situação+ eu estava a vinte outrinta passos do banco onde esse homem se encontrava im&vel, e nãosabia o que fazer, possu(da, por um lado, do desejo de o socorrer e, poroutro, devido a uma questão de educação e de hereditariedade, retidapelo medo de, no meio da rua, dirigir a palavra a um estranho.  s bicos de g0s projectavam a sua chama baca e vacilante em

direcção ao c!u enevoado" os raros transeuntes passavam apressados"era quase meia -noite e eu estava ali s&, no parque, com aquele homemque tinha o aspecto dum suicida.

 inco, dez vezes, reuni todas as minhas forças para me dirigir aele, mas sempre o pudor me sustinha, ou talvez esse instinto, essepressentimento profundo que nos avisa de que aqueles que caemarrastam, as vezes, na queda, as pessoas que os vão socorrer.  No meio de tal incerteza, era a primeira a sentir a loucura, orid(culo da situação. No entanto, não podia falar nem retirar-me, nãopodia fazer fosse o que fosse, nem sequer dei$0-lo. > espero que meacredite, se 7he disser que )quei assim nesse terraço, passeando dum

lado para o outro, talvez uma hora, uma intermin0vel hora, enquanto as vagas do mar invis(vel iam marulhando sempre, sentindo-me penetrarcada vez mais por essa imagem de aniquilamento total dum serhumano.

 as, apesar de tudo, não tinha coragem para falar nem agir" eteria )cado ali ainda o resto da noite, esperando não sei o qu%, outalvez um ego(smo mais inteligente me )zesse, )nalmente, voltar paracasa. :im, creio mesmo que estava j0 decidida a abandonar a sua sorteaquele monte de mis!ria, quando um poder superior triunfou da minhaindecisão. omeçou a chover. /esde o anoitecer que o vento tinha feito juntar por cima do mar pesadas nuvens carregadas de vapor. s

pulmes e o coração da gente sentiam que o c!u pesava profundamentesobre a terra. Mma gota de chuva caiu no chão, e logo um dil;viomaciço desabou em pesadas b0tegas de humidade, que o vento impelia.nvoluntariamente, refugiei-me debai$o do tecto dum quiosque e,embora abrisse o chap!u-de-chuva, as rajadas furiosas encharcavam-meo vestido. :obre o meu rosto e as minhas mãos sentia bater as gotas de0gua, que tombavam depois no chão com um ru(do seco.

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 as 2e era uma coisa tão atroz de ver que ainda hoje, vinte anospassados, se me seca a garganta s& de o pensar4, apesar desse dil;viotorrencial, o infeliz continuava im&vel sobre o banco, sem se me$er. A 0gua ca(a por todas as goteiras " ouvia-se, do lado da cidade, o ru(dodas carruagens" a direita e a esquerda, as pessoas fugiam a correr,

aconchegando os agasalhos" tudo o que era vivo se tornava pequeno,fugindo receosamente, a procura dum abrigo" por toda a parte, oshomens e os animais tinham medo dos elementos desencadeados - s&ali, no banco, o negro vulto humano não se movia.

 C0 lhe disse que esse homem possu(a o m0gico poder de e$primirplasticamente as suas emoçes pelos movimentos e pelos gestos" masnada, nada sobre a ?erra poderia traduzir aquele desespero, aqueleabandono absoluto da sua pessoa, essa morte viva, de um modo tãoe$pressivo, como essa imobilidade, essa maneira de )car inerte einsens(vel debai$o da chuva forte, essa lassidão grande de mais para odei$ar levantar-se e dar os passos necess0rios a )m de procurar um

abrigo qualquer - a suprema indiferença em relação a sua pr&priaindividualidade.Nenhum escultor, nenhum poeta, nem iguel Ongelo, nem /ante,

me )zeram compreender o gesto do desespero supremo, a mis!riain)nita da ?erra, de forma tão comovedora e tão potente, como esse ser vivo que se dei$ara inundar pela chuva, demasiado fatigado para sepermitir um ;nico movimento.

 'oi mais forte do que eu " não teria podido agir de modo diverso./um salto, passei sob as b0tegas l(quidas e brutais da chuva e sacudi,em cima do banco, aquela trou$a humana a escorrer 0gua. - 8enha3 - disse, pu$ando-7he por um braço.

 Mma coisa inde)n(vel olhou para mim, )$amente, com m0goa.Mma esp!cie de movimento pareceu querer esboçar-se nele, mas dir-se-ia não com preender o que se passava.  -8enha3 - repeti, tornando a pu$ar-lhe pela manga molhada e, desta vez, quase com c&lera.

 >ntão, ele levantou-se lentamente, sem vontade, cambaleante. - que desejaE - perguntou-me.

 5ara isto não encontrei resposta alguma, pois eu nem sequersabia para onde o levar" o que procurava era unicamente arranc0-loaquele temporal, aquela insensata indiferença, tão parecida com osuic(dio, que o fazia permanecer ali, num desespero supremo. :em lhe

largar o braço, continuei a pu$ar por ele, por aquele farrapo humano,at! ao quiosque da =orista, cujo tecto formava uma pequena sali%ncia epodia proteg%-lo, de certo modo, contra os furiosos ataques doselementos l(quidos, que o vento chicoteava implacavelmente. Al!mdisso, eu não sabia mais nada, não queria mais nada. :& tinha pensadonuma coisa+ abrigar aquele homem em qualquer lugar seco.

 > assim estivemos os dois, um ao lado do outro, naquele pequenoabrigo, tendo atr0s de n&s os taipais corridos do quiosque e por cima

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apenas o tecto protector, que era muito pequeno, e sob o qual a chuvaincessante penetrava per)damente, em sucessivas rajadas, atirando,para cima do nosso fato e do nosso rosto, pedaços de frio l(quido. A situação tornava-se intoler0vel.

 Não podia, ainda que quisesse )car mais tempo junto daquele

estranho todo encharcado. >, por outro lado, era imposs(vel, depois deo ter arrastado comigo, dei$0-lo ali sem lhe dizer uma palavra. >raabsolutamente indispens0vel fazer qualquer coisa. 5ouco a pouco, tiveuma ideia clara e precisa. melhor, pensei, ! lev0-lo a casa dele numcarro, e eu voltar para a minha " amanhã saber0 o que lhe conv!mfazer.  >, assim, perguntei a esse homem, que estava im&vel diante demim e me olhava )$amente, no meio da noite tempestuosa + - nde moraE - não tenho casa. . . heguei de Nice esta noite. . . não podemos ir paraminha casa. . .

  Não percebi imediatamente esta ;ltima frase. :& mais tardecompreendi que esse homem me tomava por. . .por.. por uma dessasmulheres que andam, em grande n;mero, a volta do asino, porqueesperam sempre encontrar dinheiro no bolso dos jogadores felizes, oudos que dali saem embriagados. /e resto, que outra coisa podia elepensar, pois se ainda agora, ao contar-7he este facto, sinto toda ainverosimilhança, todo o fant0stico da minha situaçãoE 9ue outra ideiapodia ele fazer de mim, se a maneira como o tinha ido arrancar dobanco, e o levara comigo sem a menor hesitação, era de facto impr&priaduma senhoraE as este pensamento não me ocorreu imediatamente.:& mais tarde, muito mais tarde j0, ! que, a pouco e pouco, tomei

consci%ncia do espantoso engano que ele tivera a meu respeito. /econtr0rio, nunca eu teria pronunciado as palavras seguintes, que nãopodiam dei$ar de con)rmar o seu erro+ -<em, então vai alugar-se um quarto num hotel. senhor não podecontinuar aqui, de forma alguma. 1 preciso que lhe encontre, semdemora, um ref;gio em qualquer parte. as logo me apercebi doterr(vel erro, porque, sem se voltar para mim, contentou-se em dizercom uma certa ironia +- não, não tenho necessidade de quarto, j0 não preciso de nada. Não tepreocupes, porque daqui não levas nada. a(ste mal+ estou semdinheiro. sto foi dito num tom terr(vel, com uma indiferença

impressionante" e a sua atitude - aquela maneira fraca de se apoiar aobalcão do quiosque, por parte duma criatura encharcada at! aos ossose com a alma desfeita impressionou-me a ponto de não me poder sentirsequer mesquinha e tola mente ofendida. :enti, somente, o mesmo quedesde o princ(pio, quando o vira sair, cambaleando, da sala, e duranteessa hora inimagin0vel e$perimentara continuamente+ que estava alium ser humano, novo, cheio de vida, condenado a morrer - e que o meudever era salv0-lo.

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 Apro$imei-me dele e disse-lhe+ - não se preocupe com a questão do dinheiro e venha. senhor nãopode )car aqui" eu vou arranjar-lhe um abrigo, não se inquiete comcoisa al guma, s& lhe peço que venha.

  'ez um movimento com a cabeça enquanto a chuva ca(a

densamente a nossa volta, e senti que ele, no meio daquelaobscuridade, diligenciava, pela primeira vez, ver-me o rosto. seucorpo parecia tamb!m despertar da letargia. - omo quiseres - disse, aceitando. - ?udo me ! indiferente. . .

>, a)nal, porque nãoE 8amos. Abri o meu chap!u-de-chuva" ele chegou-se para mim e en)ou o

seu braço no meu. >sta s;bita familiaridade foi-me e$tremamentedesagrad0vel. :im, aquilo perturbou-me e senti-me invadida de terrorat! ao fundo do coração. as não tive coragem de me opor, pois, se orepelisse, ele cairia no abismo, e tudo que at! ali tinha feito resultariain;til. Avanç0mos mais uns passos em direcção ao asino.

 'oi s& nesse momento que compreendi que não sabia o que haviade fazer dele. /epois duma r0pida re=e$ão, pensei que o melhor eralev0-lo a um quarto de hotel, meter-lhe dinheiro na mão para quepudesse pagar a conta e voltar para Nice na manhã seguinte. Nãopensei em mais nada.

 omo naquele momento os trens passassem apressados diantedo asino, chamei um, para o qual subimos. 9uando o cocheiroperguntou para onde quer(amos ir, não soube que responder. as,pensando que aquele homem, que tinha a meu lado, molhado at! aosossos, a escorrer 0gua, não seria admitido em nenhum dos bons hot!is,e, por outro lado, mulher ine$periente como eu era, não pensava sequer

na possibilidade dum equ(voco, contentei-me em responder aococheiro + - A qualquer hotel modesto.  cocheiro, est&ico, inundado de 0gua, pDs o cavalo em marcha. desconhecido sentado a meu lado, permanecia mudo" as rodaschapinavam na lama e a chuva ca(a, batendo com força nos vidros.Naquele cubo obscuro, sem luz, semelhante a uma cova, eu julgavaacompanhar um cad0ver.

 ?entei re=ectir, encontrar palavras para atenuar a singularidadee o horror dessa vizinhança taciturna, mas não o consegui. Ao )m dealguns minutos, o trem parou. 'u( a primeira a descer, paguei ao

cocheiro, enquanto ele, muito sonolento, fechava a portinhola.>st0vamos, naquele instante, diante da porta dum hotelzito modesto,que eu não conhecia " por cima das nossas cabeças, uma pequenaab&bada de vidro protegia-nos contra a chuva, que, a nossa volta, numaa=itiva monotonia, franjava a noite impenetr0vel.  desconhecido, cedendo a força da gravidade, tinha sido forçadoa apoiar-se a parede" do seu chap!u encharcado, da sua roupaamarrotada, a 0gua escorria como duma goteira. >stava ali como um

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afogado a quem acabassem de salvar, com o esp(rito ainda entorpecido. I volta do pequeno espaço onde se encontrava, a 0gua formava umriacho. as esse homem não fazia o m(nimo esforço para se me$er,para sacudir o chap!u que 7he pingava, constantemente, gotas de 0guasobre o rosto. >stava para ali em absoluta impassibilidade, e nem lhe

posso dizer quanto me comovia aquele esgotamento.as era preciso agir. eti a mão ao bolso + - Aqui tem cem francos - disse. - 80 arranjar um quarto e volte amanhãpara Nice. lhou para mim, espantado. - bserveio-o na sala do jogocontinuei eu, insistindo, depois de ?ernotado a sua hesitação. -:ei que o senhor perdeu tudo, e creio tamb!mque esteve quase disposto a fazer umatolice. não ! vergonha aceitar um au$(lio. . . 8amos, pegue. . .  as ele repeliu a minha mão com uma energia que eu julgavaimposs(vel da sua parte. - ?u !s uma boa rapariga - disse-, mas não deites fora o teu dinheiro. C0

não h0 nada a fazer por mim" ! indiferente que eu durma ou não estanoite. Amanhã , acabar0 tudo. C0 não h0 nada a fazer. - não, ! preciso que guarde este dinheiro - insisti. - Amanhã j0 pensar0doutra forma. Agora, entre no hotel e durma, se puder. A noite ! boaconselheira, as coisas mudam de aspecto a luz do dia. omo eu lheestendesse de novo o dinheiro, ele repeliu-me quase com viol%ncia.- 1 in;til3 - repetiu em voz surda.- sso não serve de nada. 1 melhor que a coisa se passe c0 fora, do queir sujar de sangue o quarto dessa gente. em francos não servem denada, nem mesmo mil. . . om os francos que me restassem eu voltariaamanhã ao asino, e s& sairia quando tivesse perdido tudo. 5ara que

recomeçarE >stou farto3  senhor não pode imaginar a impressão que produziu, no fundoda minha alma, esta voz surda. ra pense na minha situação+ a doispassos de mim estava um ser humano, novo, brilhante, cheio de vida, desa;de, e eu sabia que, se não empregasse todas as minhas forças, da( aduas horas, essa=or de mocidade, que pensava, que falava e respirava, seria apenas umcad0ver. >ntão, senti um furioso desejo de triunfar dessa resist%nciainsensata.

 Agarrei-lhe no braço e disse+ -/ei$e-se de dizer tolices como essa3 8ai entrar no hotel e arranjar

um quarto" amanhã de manhã venho busc0-lo para o levar a estação. 1preciso que saia daqui, ! forçoso que amanhã mesmo entre em suacasa, e eu não terei sossego enquanto não o vir, com os meus pr&priosolhos, munido do seu bilhete, a subir para o comboio. não se abandonaa vida quando se ! novo, l0 porque se perderam algumas centenas oualguns milhares de francos. :eria uma cobardia, uma est;pida crise dec&lera e de desespero. Amanhã vai dar-me razão.

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 - Amanhã3 - repetia ele, num estranho tom de amarga ironia.Amanhã3:e soubesses onde eu estarei amanhã 3 :e eu pr&prio o soubesse3

5ara te dizer a verdade, j0 tenho certa curiosidade em o saber3não, vai para tua casa, minha )lha, não tenhas pena de mim, e nãodesperdices o teu dinheiro. >u não cedia. 6avia em mim como que uma

mania, uma f;ria. Agarrei-lhe violentamente na mão e meti-7he nela, aforça, a nota de cem francos. - 5egue o dinheiro e entre j0.

 >, dizendo isto, toquei resolutamente a campainha da porta. - <em, agora j0 toquei, o porteiro vai abrir, entre e deite-se. Amanhã ,as nove horas, espero-o ali em frente para ir consigo at! a estação. nãose preocupe com o resto" eu tratarei do que for preciso para que possa voltar para casa. Agora, v0 deitar-se, durma bem e não pense em maisnada.

 Nesse momento, do interior, a chave deslizou na fechadura e oporteiro do hotel abriu a porta.

  - 8em da(3 - disse então, bruscamente, o rapaz, numa voz dura,decidida, irritada.>u senti, em volta do meu pulso, o anel de ferro dos seus dedos.

'iquei transida de medo, de tal modo paralisada, como se um raio metivesse fulminado ou me tivesse feito perder a cabeça.  9uis defender-me, soltar-me. . . mas a minha vontade estavainerte. . . e eu. . . o senhor compreende. . . tive vergonha diante doporteiro - que se mostrava impaciente - de estar para ali a discutir comum estranho. > assim. . . assim. . . encontrei-me, de s;bito, dentro dohotel. quis falar, dizer qualquer coisa, mas a voz abafou-se-me nagarganta. A sua mão estava pousada no meu braço, autoritariamente. . .

 :enti que ele me levava, sem que eu tivesse consci%ncia do quefazia. No alto da escada uma chave girou na fechadura. . . > então,encontrei-me s& com esse estranho num quarto desconhecido, numhotel qualquer, de que ainda hoje não sei o nome. rs. . . . emudeceude novo, e levantou-se repentinamente " a sua voz parecia recusar-se aobedecer-7he. 'oi at! a janela, olhou em sil%ncio para fora durantealguns minutos, ou talvez tivesse apenas apoiado a fronte contra o vidrofrio" não tive coragem de certi)car-me com e$actidão, porque me eradoloroso ver aquela senhora de idade assim comovida.  'iquei mudo, sem fazer perguntas, at! que ela, mais calma, se veio sentar na minha frente+

 -<em, agora, o mais dif(cil est0 dito. >spero que o senhor me acredite,se lhe a)rmar uma vez mais, se 7he jurar por tudo o que tenho de maissagrado, pela minha honra e sobre a cabeça de meus )lhos, que, at!aquele momento, nunca me passara pela mente a ideia duma ... dumaligação com esse desconhecido" que estava, realmente, sem vontadepr&pria e que, privada de consci%ncia, tinha ca(do abruptamente comonum alçapão, do caminho recto da minha vida para esta situação falsa.

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 C0 7he jurei que seria verdadeira consigo e comigo pr&pria, erepito-lhe, uma vez mais, que foi pelo desejo ;nico de socorrer esserapaz, e não por outro sentimento pessoal, sem nenhuma ideia do queiria passar-se, que fui precipitada nesta tr0gica aventura.  5eço-7he que me dispense de lhe contar o que se passou nesse

quarto" nunca mais esqueci, nem esquecerei, nenhum segundo dessanoite, porque, ali, lutei com um ser humano para lhe salvar a vida. :im,repito-lhe, nessa luta tratava-se da vida ou da morte dum homem. adaum dos meus nervos sentia que, infalivelmente, esse desconhecido, essehomem, j0 quase perdido, se agar raria a ;ltima t0bua de salvação comtodo o ardor e toda a pai$ão de algu!m que est0 ameaçado de morte. Agarrava-se a mim como uma pessoa que se sente a beira dum abismo.5ela minha parte, desenvolvia todos os meus recursos, tudo quanto meera poss(vel fazer, para o salvar.

 Mma hora destas s& se vive uma vez na vida e s& acontece a umapessoa, entre milhes. Nunca me teria sido dado saber, sem esse

terr(vel acontecimento, com que força de desespero com que raivadesenfreada, um homem abandonado, um homem perdido, sorve, pela;ltima vez, a gota vermelha do sangue da vida. :eparada durante vinteanos, como eu tinha estado, de todos os gozos diab&licos da e$ist%ncia, jamais poderia compreender a maneira grandiosa e fant0stica como, as vezes, a natureza concentra, nalguns r0pidos bafejos, tudo o que e$istenela de calor e de gelo, de vida e de morte, de deslumbramento e dedesespero.

> esta noite foi de, tal forma cheia de lutas e de palavras, depai$ão, de c&lera e de raiva, de l0grimas e de s;plicas, que me pareceudurar mil anos, e que n&s - dois seres humanos que oscilavam

enlaçados, no fundo dum abismo+ um trazendo em si a f;ria da morte,outro sem nenhum pressentimento oculto - sa(mos dela completamentetransformados, diferentes, inteiramente mudados, com outro esp(rito eoutra sensibilidade. as não lhe falarei nisso. Não posso nem quero descrev%-lo. /evo, noentanto, dizer-lhe uma palavra acerca desse minuto espantoso que foi omeu despertar na manhã seguinte. Acordei dum sono de chumbo, dumaescuridão profunda, como não conhecera nunca. 'oi-me preciso muitotempo para abrir os olhos, e a primeira coisa que vi foi, por cima demim, o tecto dum quarto desconhecido e, depois, tacteando um poucomais, um aposento estranho, ignorado, horr(vel, ao qual nem eu sabia

como tinha ido parar. A princ(pio, diligenciei convencer-me de que tudoaquilo não passava de um sonho, um sonho claro e transparente, queera, a)nal, a continuação dum pesadelo confuso " mas, diante das janelas, brilhava j0 a luz real e intermin0vel do :ol, a claridade damanhã , e ouviam-se ru(dos na rua, o rodar dos carros, as campainhasdos el!ctricos e o falar dos homens. >ntão, percebi que não sonhava,que estava acordada.

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ontra minha vontade, ergui-me para recuperar a razão, e voltando o olhar para o meu lado. . . vi 2 nunca 7he poderei descrever omeu terror4 um homem desconhecido, dormindo a minha beira, naquelelargo leito. . . um estranho, um estranho inteiramente estranho, seminue desconhecido. Não, este terror, bem sei, não se pode contar"

apoderou-se de tal forma de mim, que tombei inanimada. as não foium verdadeiro desmaio, dessesem que se perde a consci%ncia de tudo" pelo contr0rio+ com a rapidezdum rel#mpago, tudo me apareceu tão consciente como ine$prim(vel, esenti apenas o desejo de morrer de nojo e de raiva por me encontrarassim de repente, com um homem absolutamente desconhecido, noleito dum hotel barato e de aspecto suspeito. 7embro-me ainda, comnitidez, de que o meu coração parou de bater, que detive a respiração,como se assim pudesse pDr termo a vida, e principalmente calar aconsci%ncia, essa consci%ncia clara, duma clareza pavorosa, que seapercebia de tudo e que, no entanto, não compreendia nada.

  Nunca soube, com e$actidão, quanto tempo estive assim,estendida, com todos os membros gelados. s mortos, nos seus cai$es,devem ?er uma rigidez semelhante. . . :ei apenas que fechei os olhos eque rezei a todas as pot%ncias do !u, sem distinção, para que tudoaquilo não fosse real. as os meus sentidos apurados não meconsentiam a m(nima ilusão" ouvia no quarto pegado homens a falar,0gua a correr e cada um desses ru(dos aumentava, implacavelmente, ocruel estado de vig(lia dos meus sentidos.  Não 7he posso dizer quanto tempo durou esta atroz situação"segundos como este não t%m o mesmo tamanho dos outros na vida.as, de repente, fui invadida por novo receio, pelo receio selvagem,

espantoso, de que este estranho, de quem não sabia sequer o nome, selevantasse e me dirigisse a palavra.  ompreendi logo que s& me restava um recurso+ vestir-me e

fugir, enquanto ele dormia, para que não me visse nem me falasse.'ugir a tempo, fugir, fugir, para voltar de qualquer forma a minha verdadeira vida, para entrar no meu hotel, e imediatamente, noprimeiro comboio, dei$ar aquela terra maldita, dei$ar aquele pa(s paranunca mais encontrar tal homem, para nunca mais ver diante de mimaquela testemunha, aquele acusador, aquele c;mplice. >stepensamento triunfou do meu abatimento" com prud%ncia, e imitando osmovimentos furtivos dum ladrão, saltei da cama, apanhei a minha roupa

as apalpadelas, avançando passo a passo, para não fazer barulho.  8esti-me com in)nitas precauçes, receando, a todo o momento,que ele acordasse. C0 estava quase pronta, prestes a alcançar o meu)m. 9uando me faltava o chap!u, que se encontrava do outro lado dacama, e, caminhando nas pontas dos p!s, a tactear, procurava alcanç0-lo, foi-me imposs(vel dei$ar de fazer o que )z+ contra a minha pr&pria vontade, lancei um olhar para o rosto daquele homem que tinha ca(dona minha vida como uma pedra do alto duma cornija. Não queria

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lançar-lhe mais do que um olhar, mas...coisa curiosa, aqueledesconhecido que ali dormia, era, ma verdade um estranho para mim+no primeiro momento não reconheci o rosto da v!spera.om efeito, osm;sculos distendidos, crispados pela pai$ão e convulsivamentealterados desse homem, e preso de supere$citação mortal, tinham-se

como que apagado. rosto do indiv(duo que se encontrava estendidodiante de mim era outro+ infantil, radiante de pureza e de sinceridade.  s l0bios, na v!spera cerrados e crispados sobre os dentes,sonhavam, suavemente entreabertos e quase iluminados por umsorriso" os cabelos louros espalhavam-se, em carac&is soltos, pelafronte sem rugas, e a respiração era serena como um doce arfar deondas saindo do seu peito.  ?alvez se lembre de eu 7he ter dito que nunca vira em qualqueroutro homem, com tanta viol%ncia e em tão alto grau, como naqueledesconhecido sentado a mesa do jogo, uma tal e$pressão de avidezferoz e de pai$ão. > digo-lhe agora que nunca, mesmo nas crianças,

que, quando dormem o sono da primeira inf#ncia, t%m a rode0-las umresplendor de serenidade ang!lica, notei uma tão l(mpida e purae$pressão, um sono de tão real beatitude.  :obre aquele rosto, todos os sentimentos se gravavam com umaplasticidade sem igual" sentia nele, agora, uma paz paradis(aca, umalibertação de todos os pesadelos (ntimos, um al(vio, um renascimento.  Ante este aspecto surpreendente, toda a ansiedade, todo o medo,tombou como um pesado manto negro" j0 não tinha vergonha, e quaseme sentia feliz. >ste facto, terr(vel e incompreens(vel, ganhava, derepente, signi)cado para mim" sentia-me contente, orgulhosa, aopensar que aquele rapaz delicado e belo que ali dormia, sereno e calmo,

como uma =or, sem a minha dedicação teria sido encontrado ferido,ensanguentado, o rosto despedaçado, sem vida, com os olhos abertos,em qualquer lugar, no =anco duma rocha. > eu salvara-o3 :alvara-o3ontemplei, então, com um olhar maternal 2não acho outracomparação4 aquele adolescente adormecido, a quem havia restitu(do a vida, ainda com mais sofrimento do que quando os meus )lhos tinham vindo ao mundo. > no meio do quarto s&rdido e guarnecido de velharias, naquele repugnante e sujo hotel de entrevistas, e$perimenteide repente 2por muito rid(culas que estas palavras lhe pareçam4 omesmo sentimento que teria numa igreja+ uma impressão encantadorade milagre e de santi)cação. /o momento mais. horr(vel que tinha

 vivido em toda a minha e$ist%ncia nascia em mim um outro momentomais espantoso e+ainda mais forte.  ?eria feito barulho, teria falado sem dar por issoE não sei. as, derepente, o rapaz abriu os olhos. 'iquei assustada e recuei bruscamente.lhou com surpresa a sua volta, tal como eu )zera pouco antes, epareceu sair a custo dum abismo, dum caos imenso. seu olhar girava,não sem esforço, por aquele quarto estranho e desconhecido, depoisparou sobre mim, com estupefacção. as, antes mesmo que pudesse

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falar, ou ser senhor dos seus pensamentos, j0 eu me tinha dominado.>ra preciso não o dei$ar dizer uma palavra, não lhe consentir umapergunta, uma familiaridade " nada que recordasse o que se haviapassado. - ?enho de me ir embora - disse eu, rapidamente.

- senhor )que aqui e vista-se. Ao meio-dia, espero-o a entrada doasino, e então ocupar-me-ei de tudo o que for necess0rio.  >, antes que ele pudesse dizer uma palavra, fugi para não tornara ver o quarto, e corri, sem me voltar, para fora daquela casa, cujonome ignorava - como ignorava o daquele desconhecido com quemtinha passado a noite.

rs. . . . interrompeu a sua narrativa, s& o tempo preciso paratomar fDlego. as toda a tensão e todo o nervosismo tinhamdesaparecido da sua voz. omo um carro que sobe, a princ(piocustosamente, uma encosta, e, depois de ter atingido o cimo, desce odeclive do outro lado, rolando mais ligeiro e mais r0pido, a sua

narração tinha agora asas. > prosseguiu, aliviada + ->ntão corri para casa, atrav!s das ruas cheias da claridade da manhã . A tempestade desaparecera do c!u, todas as nuvens haviam

fugido, como se haviam dissipado em mim todos os sentimentosdolorosos. 1 preciso que não esqueça o que j0 7he disse+ depois damorte do meu marido, eu renunciara completamente a vida. não eranecess0ria aos meus )lhos, não sentia por nim pr&pria o menorinteresse, e toda a vida que não se vive com um )m determinado ! umerro.  ra, pela primeira vez, de imprevisto, cumprira uma missão+salvara um homem, tinha-o arrancado a destruição, pondo em jogo

todas as minhas forças. Restava me, apenas, triunfar dum pequenoobst0culo para levar esta missão a bom )m. heguei ao meu hotel" oolhar do porteiro, que e$primia admiração de me ver chegar sozinha, asnove da manhã , deslizou por mim sem me enervar. /a vergonha e daraiva que eu antes sentira nada subsistia" havia um renascimento s;bitodo meu desejo de viver, um sentimento novo da utilidade da minhae$ist%ncia, fazendo-me correr nas veias um sangue abundante e quente.hegando ao meu quarto, mudei rapidamente de roupa. ?irei, de modomaquinal 2s& mais tarde reparei nisso4, o meu vestido de luto, quesubstitu( por outro mais claro, fui ao banco buscar dinheiro, corri aestação a informar-me das horas dos comboios e, com uma decisão de

que eu pr&pria me assombrava, pus em ordem outros assuntos ecompromissos marcados. Restava-me, apenas, assegurar o regresso asua terra e o salvamento de)nitivo daquele homem que o /estino metinha con)ado.  5ara dizer a verdade, faltava-me agora a coragem de meapro$imar dele. 5orque, na v!spera, tudo se havia passado naobscuridade, num turbilhão, como quando duas pedras, arrastadas poruma en$urrada, se chocam de repente. al hav(amos visto a cara um ao

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outro, e não tinha mesmo a certeza de que esse estranho pudessereconhecer-me. Na v!spera, fora tudo um acaso, uma desgraça, umaloucura diab&lica de dois entes desesperados, mas, no dia seguinte, erapreciso que me unisse a ele mais abertamente do que na v!spera,porque, assim, a claridade impiedosa da luz do dia, seria forçada a

apro$imar-me dele com a minha personalidade, com o meu rosto, comoum ser humano. as tudo isso aconteceu mais facilmente do que eu pensava.

al, a hora combinada, cheguei ao asino, o rapaz levantou-se dumbanco e correu para mim. 6avia qualquer coisa de tão espont#neo, detão infantil, de tão feliz, na sua surpresa, como em cada um dos seusgestos tão e$pressivos3 orreu para mim, tendo no olhar um brilho dealegria agradecida, e, ao mesmo tempo, respeitosa, e, quando os seusolhos sentiram que os meus se perturbavam, bai$aram-sehumildemente. Ah3 1 tão raro notar-se gratidão nos homens3 >precisamente os mais reconhecidos não encontram a e$pressão que

conv!m, calam-se muito perturbados, envergonham-se e pretendem,com embaraço, esconder os seus sentimentos e, a quem /eus, escultormisterioso, concedera o dom de e$primir sentimentos duma formasens(vel, bela e pl0stica, o seu gesto de reconhecimento brilhava comouma pai$ão que lhe irradiava atrav!s do corpo. nclinou-se sobre aminha mão e, com a linha )na da sua cabeça de criança devotamenteinclinada, )cou durante um minuto a beij0-la, respeitoso, roçando-aapenas com os l0bios. /epois recuou, informou-se da minha sa;de,olhou-me com ternura, e havia tanta dec%ncia em cada uma das suaspalavras, que da( a pouco toda a minha inquietação se havia dissipado.>, como re=e$o da minha pr&pria alegria moral,a paisagem

resplandecia a nossa volta, completamente serena" o mar, que na v!spera estava encolerizado, aparecia calmo, silencioso e tão l(mpidoque todas as pedras, sob as pequenas ondas que rolavam na praia,mostravam, vistas do lado em que n&s permanec(amos, o seu prateadobrilho.

asino, esse abismo infernal, erguia a sua alvura mourisca noc!u l(mpido, de leves manchas adamascadas, e o quiosque, sob o qualna v!spera estiv!ramos abrigados da chuva torrencial, transformara-senuma lojinha de =orista. >, em abund#ncia, havia ali uma misturamatizada de ramos de =ores e de verdura, brancos, vermelhos, verdesde variados tons, vendidos por uma rapariga loura, com uma blusa de

tons garridos.  onvidei o desconhecido a almoçar num restaurantezinho, ondeele me contou a sua tr0gica aventura. >ra a completa con)rmação domeu primeiro pensamento, quando vi em cima do pano verde as suasmãos tr!mulas, nervosamente agitadas.

 /escendia duma fam(lia da velha nobreza da 5ol&nia austr(aca")zera os seus estudos em 8iena e, um m%s antes, conclu(ra o primeirodos seus e$ames, com %$ito e$traordin0rio. 5ara festejar esse dia, seu

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tio, o)cial graduado do >stado-aior, com quem vivia, levara-o de tremao 5rater e tinham jogado juntos nas corridas.

tio fora feliz no jogo+ ganhara tr%s vezes seguidas. unidosdum bom maço de notas de banco, assim adquiridas, foram em seguida jantar a um restaurante elegante.

 No dia imediato, como pr!mio do e$ame o futuro diplomatarecebeu de seu pai uma quantia correspondente a mensalidade quecostumava dar-lhe. /ois dias antes, essa soma ter-lhe-ia parecidoenorme, mas, então, depois da felicidade daqueles ganhos, pareceu-7heinsigni)cante e mesquinha.

 Assim, mal acabou de almoçar, voltou ao hip&dromo, apostouapai$onadamente, desesperadamente, e a sua sorte 2ou talvez a suadesgraça4 fez que sa(sse do 5rater com o triplo do dinheiro.

 /esde então, o v(cio do jogo, tanto nas corridas como nos caf!s enos clubes, apoderou-se dele, devorando o seu tempo, os seus estudos,os seus nervos

e, sobretudo, os seus recursos. 5erdeu a faculdade de pensar, de dormirem paz e, ainda mais, a de se dominar.  Mma noite, voltando do clube onde tinha perdido tudo, encontrou,ao despir-se, uma nota de banco esquecida e toda amarrotada no bolsodo colete" então o v(cio foi mais forte do que ele" tornou a vestir-se,andou dum lado para outro, at! que encontrou, num caf!, alguns jogadores de domin& com quem )cou at! ao amanhecer.  erto dia, sua irmã casada, veio em seu au$(lio e pagou-lhe asd(vidas que havia contra(do com usur0rios, diligentes em abrir cr!ditoaos herdeiros de grandes nomes. /urante um certo tempo, a sortefavoreceu-o, mas, depois, foi um azar cont(nuo, e, quanto mais perdia,

mais os seus compromissos não satisfeitos e a sua palavra de honradada e não cumprida e$igiam imperiosamente, para se poder salvar,importantes ganhos. 6avia muito que empenhara j0 o rel&gio e os fatosquando se deu um acontecimento espantoso+ roubou, do cofre duma velha tia, dois grandes al)netes cravejados de p!rolas, que elararamente usava. >mpenhou um deles por uma quantia importante quenessa noite foi quadruplicada pelo jogo. as, em vez de se retirar,arriscou tudo, e perdeu.  9uando partiu em viagem, o roubo não tinha ainda sidodescoberto " assim, resolveu empenhar a outra j&ia, e, obedecendo auma s;bita inspiração, tomou um comboio para onte arlo, a )m de

ganhar a roleta a fortuna que sonhava. C0 tinha vendido a mala, osfatos, o guarda-chuva, restando-7heapenas o seu rev&lver com quatro balas e uma pequena cruz incrustadadepedras preciosas, que lhe dera sua madrinha, a princesa P..., e de quenão queria separar-se. as, durante a tarde, havia vendido a cruz porcinquenta francos, para naquela noite poder gozar, pela ;ltima vez, oprazer fascinante do jogo - dum jogo de vida ou de morte.

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  ontou-me tudo isto com a sua graça cativante, que tão bem sabiadescrever as coisas.

 > eu estava comovida, empolgada pelo interesse, e nem por ummomento pensei em me indignar, pelo facto de aquele homem, queestava ali na minha frente, ser um ladrão.

 :e, na v!spera, algu!m me tivesse simplesmente insinuado queeu, mulher de irrepreens(vel passado, e$igindo as pessoas das minhasrelaçes sociais uma dignidade absoluta e convencional, estaria um diaassim, familiarmente, ao lado dum homem que me era de tododesconhecido, pouco mais velho que meu )lho, e que praticara umroubo de p!rolas, teria tomado esse algu!m por um louco. as, nem ums& instante, no decorrer desta narrativa, tive uma sensação de horror.>le contava tudo isto tão naturalmente e com tal pai$ão, que o seu actopareceu-me mais o efeito dum estado febril do que maldade ou delitoescandaloso.  > depois, para algu!m que, como eu, havia na noite anterior

 vivido factos tão inesperados, precipitados como uma catarata, apalavra imposs(vel tinha bruscamente perdido o sentido./urante essas dez horas, a e$peri%ncia que eu adquirira da realidadeda vida era in)nitamente maior do que aquela que me tinham dadoquarenta anos de vida burguesa.  No entanto, havia uma coisa que me arrepiava naquela con)ssão+era o brilho febril que passava pelos seus olhos e que lhe fazia vibrar,electricamente, todos os m;sculos do rosto, logo que falava da suapai$ão do jogo.  A simples narração do facto bastava para o e$citar, e, com uma

terr(vel clareza, o seu rosto pl0stico e$primia, em atitudes alegres outristes, osmovimentos de tensão que nele se agitavam.  esmo sem gestos, as suas mãos, as suas admir0veis mãosnervosas e de ligeiras articulaçes, voltavam a )car, como na mesa de jogo, vorazes, violentas e indecisas. >nquanto ele ia contando, eu via-as,frementes, curvarem-se vivamente, crisparem-se como garras, depoisabrirem-se de novo e fecharem-se uma sobre a outra. >, no momentoem que ele confessou o roubo dos al)netes, imitaram 2o que me fezestremecer involuntariamente4, r0pidas como um rel#mpago, o gesto deroubar. 8i, com nitidez, os dedos agarrarem, de modo febril, as j&ias e

guardarem-nas na concavidade da mão. > reconheci, com indiz(veldesgosto, que aquele homem se encontrava envenenado pela pai$ão at!a ;ltima gota de sangue.  que dessa descrição me comovia e horrorizava era unicamentea escravidão dum homem tão novo, sereno e naturalmentedespreocupado a uma pai$ão insensata. 5or isso considerei, comoprimeiro dever, convencer amigavelmente o meu improvisado protegidoa dei$ar, sem demora, onte arlo, onde a tentação era muito perigosa,

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e fazer que, nesse mesmo dia, voltasse para junto da fam(lia, antes quea desaparição dos al)netes fosse notada e o seu futuro )casse destru(dopara sempre. 5rometi-lhe dinheiro para a viagem e para desempenharas j&ias, mas com a condição de tomar o comboio nesse mesmo dia e deme jurar, sobre a sua honra, que nunca mais tocaria numa carta, nem

tomaria parte em qualquer jogo de azar.  Nunca esquecerei o reconhecimento apai$onado, ao princ(pioquase humilde, depois a apouco e pouco iluminado, com que aqueleestranho, aquele homem perdido, me escutava.Nunca esquecerei a forma como ele bebia as minhas palavras quandoprometi ajud0-lo, e como, depois, estendeu as duas mãos num gesto que)car0 para sempre gravado no meu esp(rito, num misto de con)ança eadoração.Nos seus olhos claros, at! então um pouco vagos, brilhavam l0grimas "todo o seu corpo tremia nervosamente de comoção e de felicidade.  ?entei j0, por v0rias vezes, descrever-lhe a e$pressão ;nica da sua

)sionomia e da sua atitude, mas esse gesto nunca o poderei descrever,porque era uma beatitude de tal forma e$t0tica e tão sobrenatural, queseria dif(cil encontrar outra semelhante em rosto humano" era, apenas,compar0vel a essa sombra branca que julgamos aperceber ao sair dumsonho, quando imaginamos ter diante de n&s a face dum anjo quedesaparece.  5ara que hei-de estar com dissimulaçesE não pude resistiraquele olhar. A gratidão torna-nos felizes, porque raras vezes aencontramos encarnada de forma vis(vel" a delicadeza faz-nos bem, e,para mim, pessoa fria e comedida, tal e$altação era qualquer coisa denovo, de reconfortante e delicioso.

  > tamb!m, tal como aquele homem acabrunhado e vencido, apaisagem, depois da chuva da v!spera, rejuvenescera milagrosamente.7ogo que sa(mos do restaurante, o mar, acalmado como por

encanto brilhava, magn()co, inteiramente azul at! a linha do horizonte,apenas salpicado de branco nos pontos em que, sobre ele, esvoaçavamas gaivotas num outro azul, no azul do c!u. onhece a paisagem daRiviera, não ! verdadeE

ausa-nos sempre uma impressão de beleza, mas, um tantoins(pida como um bilhete-postal ilustrado, apresenta languidamente aosnossos olhos as suas cores sempre intensas, qual mulher formosa,sonolenta e preguiçosa, que dei$a passear sobre ela, indiferente, todos

os olhares - quase com um aspecto oriental, no seu abandonoeternamente pr&digo.  No entanto, as vezes, muito raramente, h0 dias em que essabeleza se e$alta, em que surge com pai$ão, em que faz sobressair comenergia as suas cores fantasticamente cintilantes, atirando-nos aosolhos, vitoriosa, a riqueza variada das suas =ores, em que arde e vibra asensualidade.

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  'oi um dia assim de entusiasmo que sucedeu ao caosdesencadeado na noite de tempestade" a rua, lavada de fresco, brilhavamais " o c!u estava cor de turquesa" e, por todos os lados, na verdurasaturada de seiva, se iluminavam os ramos, como bales coloridos.  As montanhas pareciam agora mais claras e mais pr&$imas, na

atmosfera calma e banhada de sol, e juntavam-se, curiosas, o maisperto poss(vel da pequena cidade faiscante e polida com esmero. >mcada olhar sentia-se o convite provocante e o encorajamento danatureza, perturbando os coraçes sem que eles se pudessem defender.  - 8amos tomar um carro - disse eu - para darmos uma volta pelaornicha.

 'ez sinal que sim, com alegria. 5ela primeira vez, desde a suachegada, aquele rapaz parecia reparar na paisagem. At! ali, s& tinhaconhecido a sala as)$iante do asino, com a sua atmosfera pesada,impregnada de suor com o seu tumulto de horrendas criaturas de rostocrispado, e um mar triste, acinzentado e turbulento. as, agora, o

imenso leque do litoral, inundado de sol, estendia-se diante de n&s e oolhar vagueava, feliz, dum lado para outro.5ercorremos vagarosamente no trem 2os autom&veis não

e$istiam ainda4 o magn()co caminho, passando ao p! de muitas vivendas e de numerosas pessoas. >, agora, diante de cada habitaçãosombreada de verdura, eu sentia um secreto desejo+ como seria bom viver ali, calma, contente, retirada do mundo3  ?erei eu sido mais feliz na minha vida do que fui nessa horaE Aomeu lado, no carro, aquele rapaz, ainda na v!spera preso pelas garrasda fatalidade e da morte e agora aureoladopelos raios brancos de sol, parecia rejuvenescido uns poucos de anos.

5arecia outra vez uma criança, um bom garoto alegre, de olhosardentes e, ao mesmotempo, respeitosos.

que nele me encantava, principalmente, era a sua constantesolicitude. :e a encosta era (ngreme e o cavalo pu$ava mal o carro,saltava lesto, empurrando-o por detr0s.

 :e eu citasse o nome duma =or, se lhe indicasse alguma ao longoda estrada, corria a colh%-la. Apanhou e levou cautelosamente para aerva verde, para que não fosse esmagado pelo carro, um sapito que,atra(do pela chuva da v!spera, se arrastava penosamente pelo caminho"e, ao mesmo tempo, ia contando com e$uber#ncia as coisas mais

divertidas e mais graciosas. hego a crer que a sua maneira de rir eracomo que uma esp!cie de derivativo, porque, de contr0rio, teria sidoforçado a cantar, a saltar ou a fazer loucuras, tanta felicidade eembriaguez havia na e$altação s;bita da sua atitude.  9uando, num planalto, atravess0mos uma aldeia min;scula, tirou,delicadamente, o chap!u, num gesto repentino. 'iquei espantada eperguntei quem cumprimentava ele, estranho entre estranhos. oroulevemente a minha pergunta e+disse-me, como a desculpar-se, que

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t(nhamos passado diante duma igreja, e que, na sua terra, na 5ol&nia,como em todos os pa(ses cat&licos, h0 o h0bito de os homens sedescobrirem diante das igrejas e dos santu0rios.  >sse respeito gentil diante das coisas religiosas comoveu-meprofundamente " ao mesmo tempo, lembrei-me da cruz de que me tinha

falado e perguntei-lhe se era crente.  >ntão, com uma certa e$pressão de vergonha, confessou-me queesperava alcançar a salvação da sua alma. /e s;bito tive uma ideia. - 5are3 - gritei ao cocheiro. > desci, depressa, do carro. >le seguiu-me,surpreendido, dizendo+ - Aonde vamosE

Respondi apenas + - 8enha comigo.  'ui, acompanhada por ele, at! L igreja - pequeno santu0rio dealdeia todo de tijolo. As paredes interiores surgiram na penumbra,caiadas e nuas" a porta encontrava-se aberta, de forma que um cone de

luz amarela se recortava nitidamente na obscuridade, onde a sombradesenhava, em azul, os contornos dum pequeno altar./uas velas luziam no crep;sculo impregnado dum quente

perfume de incenso. >ntr0mos" tirou o chap!u, molhou os dedos na piada 0gua benta, persignou-se e dobrou o joelho. al se levantou,agarrei-o por um braço+ -8enha-disse energicamente ante um altar, ou ante uma dessas imagensque para o senhor são sagradas, e faça-me o juramento que lhe voupedir.

>le olhou-me, admirado, quase assombrado. as depressacompreendeu" apro$imou-se dum nicho onde estava uma imagem, fez o

sinal da cruz e ajoelhou docilmente. - Repita comigo - disse eu,tremendo de emoção + - Curo - 2juro - repetiu ele 4 depois, eucontinuei +que nunca mais tomarei parte em jogos de azar, de qualquerg!nero que sejam, que nunca mais e$porei a minha vida e a minhahonra aos acasos dessa pai$ão.  >le repetiu, tremendo, estas palavras, que, com força e nitidez,ressoaram na igreja, absolutamente vazia. /epois houve um momentode sil%ncio, tão grande que se podia ouvir l0 fora o ligeiro ciciar das0rvores, atrav!s de cujas folhas passava o vento. /e s;bito, prostrou-secomo um penitente e pronunciou, com um %$tase novo para mim, eml(ngua polaca, palavras r0pidas e encadeadas que não entendi. as

creio que devia ser uma prece de reconhecimento, de contrição, porquea tempestuosa con)ssão fazia-lhe curvar constantemente a cabeça, comhumildade, por cima do genu=e$&rio. Aqueles sons em l(nguaestrangeira eram cada vez mais veementes e as palavras jorravam-lheda boca com indiz(vel fervor. Nunca, antes ou depois, ouvi rezar destaforma em nenhuma igreja do mundo.  As suas mãos apertavam nervosamente o genu=e$&rio demadeira, todo o seu corpo era sacudido por uma tempestade interior,

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que, as vezes, o lançava em profunda prostração. Não via nem sentiamais nada, tudo em si parecia passar-se num outro mundo numpurgat&rio de puri)cação ou em pleno voo para uma esfera de maiorsantidade. 7evantou-se, en)m, lentamente" persignou-se mais uma veze voltou-se com di)culdade" os seus joelhos tremiam, o rosto estava

p0lido como o de algu!m que se sentisse esgotado. as, mal me viu, oseu olhar brilhou, um sorriso puro e visivelmente crente iluminou-lhe orosto inclinado, apro$imou-se de mim, muito curvado, a maneira eslava,pegou-me nas mãos para as a=orar respeitosamente com os l0bios. - 'oi /eus que a pDs no meu caminho. Acabo de 7he agradecer.  >u não sabia que dizer, mas teria desejado que, de repente, doalto do seu pequeno estrado, o &rgão se pusesse a tocar, porque sentiaque triunfara completamente+ tinha salvo aquele homem para sempre.  :a(mos da igreja a )m de voltarmos a luz radiosa e deslumbrantedaquele dia de aio" nunca o mundo me parecera tão belo. /uranteduas horas, percorremos ainda no carro, lentamente, at! ao cume da

montanha, o caminho panor#mico que, a cada volta, oferecia umaspecto diferente.  as n&s não diz(amos nada. /epois desta e$altação desentimentos, todas as palavras pareciam fracas e vãs.  > quando, por acaso, o meu olhar encontrava o dele, sentia-meobrigada a desvi0-lo, confusa" era para mim uma emoção grande demais contem plar o meu pr&prio milagre.

 5elas cinco horas da tarde entr0mos em onte arlo. ?inha umencontro aprazado com uns parentes, que não me era poss(vel adiar. >,para dizer a verdade, desejava profundamente uma pausa, umaparagem naquela violenta e$altação dos meus sentimentos. >ra

demasiada felicidade. :entia que me era necess0ria uma diversão paraaquele estado de %$tase e de e$cessivo ardor como nunca conheceranada parecido, e pedi ao meu protegido que me acompanhasse ao hotel,um momento apenas. Ali, no meu quarto, dei-7he o dinheiro precisopara a viagem e para desempenhar as j&ias.

ombin0mos que durante a minha entrevista, ele iria comprar obilhete e depois, as sete horas, nos encontrar(amos no vest(bulo daestação, meia hora antes da partida do comboio, que, por B!nova, olevaria ao seu destino. Assim que me viu estender-lhe as cinco notas debanco, os seus l0bios empalideceram singularmente. - não. . . dinheiro, não. . . peço-lhe. . . dinheiro, não3 - dizia ele entre

dentes, enquanto os dedos tr!mulos recuavam cheios de nervosismo eagitação.  -/inheiro, não... dinheiro, não... não o posso ver - repetiu uma vezainda, como que )sicamente dominado pelo nojo e pelo medo.  as eu acalmei o seu escr;pulo, dizendo-lhe que aquilo eraapenas um empr!stimo, e que, se o envergonhava receb%-lo assim, mepassasse um recibo. - :im. . . sim. . . um recibo - murmurou, desviando os olhos.

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> amarrotou o dinheiro como se fosse qualquer coisa imunda quelhe sujasse os dedos" meteu-o no bolso sem olhar para ele e escreveunuma folha de papel algumas palavras em letra precipitada. 9uandolevantou os olhos, tinha a testa molhada de suor+ qualquer coisa parecialutar violenta mente no seu (ntimo. al me entregou nervosamente

aquele pedaço de papel, foi acometido dum grande tremor em todo ocorpo, e depois 2sem querer, recuei, assustada4 caiu de joelhos e beijou-me a orla do vestido. >sse gesto, como ! natural, essa veem%ncia sempar, fez-me estremecer toda. 5ercorreu-me um estranho arrepio, e foimuito tr!mula que consegui balbuciar+  - Agradeço-lhe muito o seu reconhecimento, mas peço-lhe que partaagora. >sta tarde, as sete horas, estarei na estação, para nosdespedirmos.  'itou-me, e um brilho enternecido humedeceu o seu olhar. Culgueique me queria dizer qualquer coisa e, durante um momento, pareceudesejar apro$imar-se de mim. as logo se inclinou uma vez mais,

profundamente, o mais profundamente poss(vel, e saiu do quarto. Novamente rs. . interrompeu a narrativa. 7evantou-se e foiat! a janela+ olhou para fora e )cou muito tempo em p!, sem se mover,e eu notava como que um ligeiro estremecimento percorrer-lhe o corpo./e s;bito, voltou-se com decisão. As suas mãos, at! ali calmas eindiferentes, tiveram de repente um movimento brusco, um movimentoen!rgico, como se quisessem despedaçar qualquer coisa. /epois olhou-me duramente, quase com aud0cia, e continuou+  - 5rometi-lhe ser inteiramente sincera. ompreendo bem como essapromessa foi necess0ria, porque s& agora, diligenciando descrever pelaprimeira vez, de forma ordenada, tudo quanto se passou nessa ocasião

e procurando as palavras precisas par0 e$primir sentimentos que eramentão vagos e confusos, s& agora compreendo, com clareza, muitascoisas que não compreendia, ou que talvez não quisesse compreender"eis a razão por que 7he quero dizer, ao senhor e a mim pr&pria, toda a verdade, com energia e resolução. Naquela hora, quando o rapazdei$ou o meu quarto, e )quei s&, senti como que um des#nimoapoderar-se subitamente de mim, e dir-se-ia ?er recebido uma grandepancada no coração.  6avia qualquer coisa que me causara um mal de morte, mas eunão sabia 2ou talvez não quisesse saber4 de que maneira a atitudeam0vel e respeitosa do meu protegido me ferira assim tão

dolorosamente. as hoje, que me esforço por fazer surgir do fundo da minhaalma, como uma coisa estranha, todo o passado, com ordem e energia,pois a sua presença não consente nenhuma dissimulação, nenhumsubterf;gio cobarde para esconder um sentimento de ver gonha, hojecompreendo claramente o que me fez então tanto mal+ foi adecepção. . . a decepção de ver. . . que esse rapaz partia docilmente. . .sem nenhuma tentativa para me conservar, para )car junto de mim. . .

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por ver que ele obedecia, humilde e respeitosa mente, a minha primeirasugestão para que se fosse embora, em vez. . . em vez de tentar pu$ar-me violentamente para si. . . por ver que ele me venerava apenas comouma santa que aparecera no seu caminho. . . e que. . . e que não sentiaque eu era uma mulher. sto foi para mim uma decepção. . . decepção

que não confessei a mim pr&pria, então, ou depois+ mas o coração dumamulher adivinha tudo, sem palavras, e sem ter a n(tida consci%ncia doque se passa em si. as. . . agora, não tenho d;vidas. . . se aquelehomem me tivesse pedido que o seguisse, teria ido com ele at! ao )mdo mundo" teria desonrado o meu nome e o dos meus )lhos. . .ndiferente a opinião dos outros ! a razão interior, teria fugido com ele,como esta . 6enriette fugiu com o seu moço franc%s, que, na v!spera,não conhecia ainda. não teria sequer perguntado aonde ia nem porquanto tempo, não deitaria um s& olhar para tr0s, para sobre a minha vida passada. . . ?eria sacri)cado a esse homem o meu dinheiro, o meunome, a minha fortuna, a minha honra. . . ?eria sido capaz de ir

mendigar e, provavelmente, não haveria bai$ezas no mundo que ele nãome levasse a praticar.?eria desdenhado tudo isso a que os homens chamam pudor e

reserva" se ele tivesse dado um ;nico passo para mim, se tivesse ditouma palavra" se tivesse tentado guardar-me, estaria nesse momentoperdida e )caria ligada a ele para sempre.

 as. . . como j0 lhe disse. . . esse ente estranho não lançousequer um olhar sobre mim, sobre a mulher que eu era. . . > como meconsumia em desejos de me abandonar, de me abandonar inteiramente3:& mais tarde o senti quando )quei a s&s comigo, quando a pai$ão, queum momento antes e$altava ainda o seu rosto iluminado e quase

ser0)co, caiu obscuramente no meu ser, começando a palpitar no v0cuodum peito despedaçado.  7evantei-me com di)culdade, aquela entrevista era-me

inteiramente desagrad0vel. 5arecia que tinha a cabeça cingida por umcasco de ferro que a oprimia, e sob o peso do qual vacilava" os meuspensamentos eram descone$os, os meus passos incertos quando,)nalmente, cheguei ao hotel em que se encontravam os meus parentes.5ara ali )quei sentada, pensativa, no meio duma conversa animada,e$perimentando um sentimento de receio cada vez que, por acaso,levantava os olhos e se me deparavam esses rostos ine$pressivos que,comparados com o daquele rapaz, que dir-se-ia sempre animado pelas

sombras e pela luz dum movimento de nuvens, me pareciam gelados ecobertos por uma m0scara.  A)gurava-se-me estar no meio de pessoas mortas, tão

terrivelmente desprovida de vida era aquela sociedade" e, enquantodeitava aç;car na ch0vena e dizia palavras vagas, com o esp(ritoausente, sempre dentro de mim surgia, como que impelido pela ondaardente do meu sangue, aquele rosto cuja contemplação se tornara umaalegria ardente e que 2 terr(vel pensamento3 4 da( a uma ou duas horas

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iria ver pela ;ltima vez. :em d;vida, contra a minha vontade, soltei umligeiro suspiro ou um gemido, porque logo a prima de meu marido seinclinou para me perguntar o que tinha, se não estava bem, por que)cara tão p0lida. >sta pergunta inesperada foi logo aproveitada pormim para declarar que, efectivamente, me do(a imenso a cabeça e, por

consequ%ncia, pedi para me retirar, sem dar nas vistas.  >ntregue outra vez a mim pr&pria, regressei ao hotel. alcheguei e me encontrei s&, logo tornei a e$perimentar uma sensação de v0cuo e de abandono" e o desejo de ir para junto daquele rapaz, que medevia dei$ar nesse dia para sempre, tomou conta de mim, furiosamente. Andei no meu quarto, dum lado para outro" abri sem razão todas asgavetas, mudei de vestido e achei-me, sem saber como, diante dumespelho, indagando com olhar inquisitorial se, assim arranjada, nãoconseguiria atrair sobre mim o seu olhar. . .

:ubitamente compreendi-me en)m+ era preciso fazer tudo paranão o dei$ar3 >, num segundo, com toda a veem%ncia, esse desejo

transformou-se numa resolução.orri a participar ao porteiro do hotel que partiria, nesse mesmodia, no comboio da tarde.

 > agora era preciso andar depressa+ toquei para a criada dequarto me arranjar a bagagem, pois o tempo urgia" e enquanto, comuma pressa comum, (amos metendo nas malas os meus vestidos eobjectos de uso, ia eu pensando antecipadamente no que iria ser aquelasurpresa" como o acompanharia at! ao comboio, e no )m, mesmo no;ltimo minuto, quando me estendesse a mão para o adeus )nal, comoeu saltaria bruscamente para o vagão perante o seu olhar admirado,para )car com ele nessa noite, na noite seguinte, enquanto ele me

quisesse.  Mma esp!cie de deliciosa embria guez e de entusiasmo corria emturbilhão no meu sangue" por vezes ria alto sem motivo, atirando os vestidos para as malas, com grande espanto da criada de quarto" mas omeu esp(rito, bem o sentia, não estava absolutamente normal. 7ogo queo empregado veio buscar as malas, olheio-o com ar surpreendido " era-me muito dif(cil pensar em coisas positiv as " a e$altação alterava, porcompleto, a minha alma.  tempo passava " eram quase sete horas, faltavam, quandomuito, vinte minutos para a partida do comboio. onsolava-me a pensarque não seria j0 uma separação nem um adeus, visto ter tomado a

resolução de o acompanhar na viagem, at! onde ele mo consentisse. carregador levou a bagagem e eu precipitei-me para o escrit&rio dohotel a )m de pagar a conta. C0 o gerente me dava o troco, estava quasea sair, quando senti algu!m tocar-me delicadamente no ombro.:obressaltei-me. >ra a minha prima, que, inquieta com a minha supostadoença, me viera ver. bscureceu-se-me a vista+ realmente, não sabiaque fazer dela" cada segundo de demora signi)cava um atraso fatal e,

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no entanto, a delicadeza obrigava-me a ouvi-la e a responder-lhe aomenos durante um minuto. - 1 preciso que te v0s deitar insistia ela. - om certeza tens febre. > eraposs(vel, pois eu sentia as fontes latejarem com e$trema viol%ncia e, as vezes, passarem-me pelos olhos sombras azuis, que anunciam um

pr&$imo desmaio, mas protestei, diligenciando compor um aragradecido, ao passo que cada palavra me escaldava e eu ansiava porme desembaraçar daquela importuna solicitude.

  as a indesej0vel criatura )cava, )cava, )cava sempre.fereceu-me 0gua-de-col&nia e quis ela pr&pria refrescar-me asfontesQenquanto eu contava os minutos. meu pensamento estavacheio desse rapaz e procurava um meio qualquer de fugir aquelescuidados torturantes. >, quanto mais inquieta me encontrava, mais lheparecia suspeito o meu estado" e foi quase com rudeza que ela, por )m,me quis obrigar a recolher ao quarto e deitar-me.  >ntão, no meio de tudo isto, olhei para o rel&gio que estava no

 vest(bulo " eram sete e vinte e oito e o comboio partia as sete e trinta ecinco. <ruscamente, com a brutal indiferença dum ser desesperado,estendi a mão a minha prima e, sem outra e$plicação, disse+ - Adeus, tenho de me ir embora. >, sem me importar com o seu olharestupefacto, sem me voltar, precipitei-me para a porta da sa(da, perantea surpresa dos criados, e corri para a rua e depois para a estação.  5ela gesticulação animada do carregador que me esperava com abagagem, compreendi que chegara tarde. om f;ria cega, lancei-mepara a grade que dava entrada no cais, mas a( o empregado deteve-me.?inha-me esquecido de comprar bilhete. >, enquanto, com viol%ncia,tentava conseguir que me dei$assem, mesmo assim, passar a linha

f!rrea, o comboio pDs-se em andamento. lhei-o )$amente, a tremer,para encontrar ainda ao menos um olhar nalguma das janelas dos vages, um gesto de adeus, quando mais não fosse.

 as, com a velocidade que o comboio levava, não me foi poss(veldistinguir nenhum rosto. Rolava cada vez mais depressa e, ao )m dumminuto, s& )cava diante dos meus olhos obscurecidos uma negra nuvemde fumo.

 'iquei para ali como petri)cada. /eus sabe por quanto tempo,pois o carregador dirigiu-me a pal0vra v0rias vezes antes que ousassetocar-me no braço. >sse ;ltimo gesto fez-me estremecer de susto.  5erguntou-me se devia levar a bagagem para o hotel. 5recisei

ainda de alguns minutos para serenar " não, não era poss(vel + depoisdaquela partida rid(cula e mais que precipitada, não podia mais voltarao hotel 2e era esse, de resto, o meu desejo4, nunca mais. >ntão,impaciente por )car s&, mandei-o meter as bagagens no dep&sito. > s&depois, no meio da multidão sempre renovada, entre pessoas quepassavam ruidosamente no hall, e cujo n;mero foi diminuindo pouco epouco, ! que tentei re=ectir com clareza nos meios de fugir a essadolorosa obcecação de c&lera, de saudade e de desespero, pois 2porque

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não o confessarE4 a ideia de ter, por minha culpa, faltado aquelesupremo encontro despedaçava -me a alma com intensidade brutal eimpiedosa. /esejava gritar, tanto mal me fazia aquela l#mina de aço embrasa que me penetrava, cada vez mais implac0vel.

  :& talvez as pessoas absolutamente alheias a pai$ão

desconheçam estes momentos e$cepcionais, estas e$ploses s;bitas de viol%ncia semelhantes a uma avalancha ou a uma tempestade, em queanos seguidos de forças não utilizadas se precipitam e rolam nasprofundezas dum peito humano.

Nunca anteriormente sentira atal surpresa e tal furor deimpot%ncia, como naquele momento em que, disposta a todas ase$travag#ncias 2disposta a lançar de vez no abismo todas as reservasduma vida impec0vel, todas as energias contidas e refreadas at! ali4,encontrava, de repente, diante de mim uma barreira est;pida, contra aqual a minha pai$ão ia inutilmente esbarrar-se.

  que )z depois, não podia ser senão igualmente disparatado "

foi uma loucura, uma estupidez mesmo, e quase tenho vergonha de ocontar 2mas prometi a mim e ao senhor nada lhe ocultar. . . 4, depois. . .tentei. . . encontr0-lo outra vez, isto !+ tentei evocar todos os momentosque tinha passado ao seu lado. . . :entia-me furiosamente atra(da peloslugares onde, na v!spera, hav(amos estado juntos, pelo banco doparque donde o arrastara, pela sala de jogo em que o encontrara pelaprimeira vez, e at! por esse hotel duvidoso, apenas para reviver uma vez mais, ainda uma vez, o passado. >, no dia seguinte, havia depercorrer de carro o mesmo caminho da ornicha, para que, cadapalavra, cada gesto, pudesse reviver para mim, tão insensata, tão puerilera a desordem do meu esp(rito3 as pense que estes acontecimentos

se tinham precipitado sobre mim, como um raio, como um golpe seco,um golpe ;nico que me aturdisse.?endo sa(do brutalmente desse tumulto, queria uma vez mais

reviver -para gozar uma alegria retrospectiva -, uma a uma, essasemoçes fugitivas, graças a forma m0gica de nos enganarmos a n&spr&prios, a que chamamos recordação. . . 5ara dizer a verdade, tudoisto são coisas que a gente ou compreende bem, ou não podecompreender. ?alvez seja preciso um coração em chama para asconceber. al cheguei a sala de jogo, fui procurar a mesa onde eletinha estado, para tornar a ver, em imaginação, entre todas, as suasmãos.

 >ntrei" a mesa onde o vira pela primeira vez e que bem melembrava ser a esquerda, )cava no segundo salão. ada um dos seusgestos estava presente no meu esp(rito com perfeita nitidez. omo umason#mbula, de olhos fechados e de mãos estendidas, teria ido encontraro seu lugar. >ntrei, pois, e atravessei a sala. Mma vez ali quando, depoisde ter aberto a porta, o meu olhar procurava entre aquela multidãoruidosa. . . produziu-se qualquer coisa de singular. . . Naquele ponto, justamente no lugar que eu tinha imaginado, ali estava ele sentado

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2seria alucinação de febreE4, ele pr&prio, em carne e osso. . . ele. . .ele. . . e$actamente tal como na v!spera, com os olhos )tos na bola,l(vido como um espectro. . . mas. . . ele. . . ele. . . indubitavelmente ele. .. >stive quase a gritar, tão grande era o meu espanto, mas contive-mediante desta insensata visão e fechei os olhos.

 - >ndoideceste. . . sonhas. . . tens febre. . . - dizia a mim pr&pria. - 1absolutamente imposs(vel, est0s alucinada. . . >le saiu daqui nocomboio, h0 talvez meia hora3

>ntão, abri os olhos. as - terr(vel espectro3 -tal como antes, eleestava ali sentado, em carne e osso, iniludivelmente. . . ?eriareconhecido aquelas mãos entre milhes doutras mãos. . . não, nãosonhava " era efectivamente ele3 tresloucado voltara, trou$era para opano verde o dinheiro que eu lhe dera para regressar a casa, e,totalmente esquecido de si pr&prio, dominado pelo v(cio, viera jog0-loaquela mesa, enquanto o meu coração se desesperava na #nsia detornar a encontr0-lo.

  Mm estremeção de todo o meu corpo atirou-me para a frente " ofuror brilhava nos meus olhos, um furor imenso, que me fazia ver tudo vermelho, um desejo furioso de agarrar pela garganta o perjuro que tãomiseravelmente tra(ra a minha con)ança, o meu sentimento, a minhaabnegação. . . as contive-me ainda e, com uma lentidão propositada2que energia me foi precisa para isso3 4, apro$imei-me da mesa e pus-me mesmo em frente dele. . .

 Mm homem cedeu-me amavelmente o lugar. /ois metros de pano verde estavam entre n&s, e eu podia, como num balcão de teatro,observar a minha vontade o seu rosto, aquele mesmo rosto que duashoras antes vira radiante de gratidão, iluminado pela aur!ola da graça

divina e que, agora, se tornara presa fremente de todos os gozosinfernais daquela pai $ão. As mãos, essas mãos que, naquela tarde,tinha visto erguidas por cima do genu=e$&rio, enclavinhavam-se agorade novo, crispando-se para o dinheiro que estava a sua volta, comol;bricos vampiros. ?inha ganho, devia mesmo ter ganho uma quantiamuito elevada. /iante dele, brilhava um amontoado confuso de )chas,de lu(ses de ouro e de notas de banco, uma mistura de coisas atiradaspara ali ao acaso, nas quais os seus dedos, os seus dedos nervosos efrementes, se enterravam com vol;pia.  8i-os agarrar ! dobrar notas, acariciando-as, virar e apalparamorosamente as moedas e, depois, de modo brusco, agarrar um

punhado e atir0-lo para um n;mero. > logo as narinas lhe recomeçarama tremer. A voz do croup-cer fazia-lhe desviar do dinheiro os olhosc;pidos, que seguiam o movimento furioso da bola atr0s da qual a almaparecia seguir, enquanto os cotovelos )cavam colados ao pano verde.  seu aspecto de homem inteiramente dominado pela loucura do jogo era, para mim, ainda mais terr(vel e a=itivo do que na v!spera,porque cada um dos seus gestos assassinava dentro de mim a imagem,a faiscar como em fundo de ouro, que eu, cr!dula, formara na minha

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olhava, estupefacto, como se se tratasse duma m0gica, todo aqueledinheiro que desaparecia.

  :upe, por acaso, que se voltou para mimE não3 ?inha-meesquecido por completo" eu havia desaparecido, estava perdida,apagada na sua e$ist%ncia" todos os seus sentidos se encontravam

e$acerbados, )$os no general russo, que, com absoluta indiferença,segurava na mão duas novas moedas de ouro, sem saber ainda em quen;mero as havia de pDr. Não sei descrever-lhe a minha amargura, omeu desespero. as o senhor pode imaginar o que eu sentia" para ohomem a quem consagrara toda a minha vida, era apenas uma mosca,que mão indolente afasta com lassidão +

 /e novo, uma onda de furor se apossou de mim. Apertei-lhe obraço com tamanha viol%ncia que ele levantou-se com brusquidão. - senhor vai imediatamente sair daqui - murmurei muito bai$o, masnum tom autorit0rio. - 7embre-se do juramento que me fez na igreja,miser0vel perjuro3

  lhou para mim tocado pelas minhas palavras e empalideceu. sseus olhos tomaram, de repente, a e$pressão dos dum cão batido. sseus l0bios tremeram. 5arecia lembrar-se, de s;bito, do passado e podiapensar-se que sentia horror de si pr&prio. - :im, sim. . . - gaguejou. - meu /eus, meu /eus. . . sim, eu vou, perdoe-me.

> j0 a sua mão agarrava todo o dinheiro, a princ(pio rapidamente,com movimentos largos e en!rgicos, e logo com uma indol%ncia cada vez maior,como se fosse retido por uma força contr0ria. seu olhar caiu sobre ogeneral russo, que ia precisamente jogar.

 - ais um momento. . . - disse ele atirando, lesto, cinco moedas de ouropara o mesmo quadrado. - :& esta vez. . . Curo-lhe que vou logo. . s& esta vez. . . s& esta. . .  > de novo a sua voz e$pirou.

 A bola começou a rolar, arrastando-o no seu movimento. utra vezo possesso me escapava+ tinha perdido o dom(nio de si mesmo, levadopela agitação da bola min;scula que saltava na. cai$a polida.  croupier gritou um n;mero e a sua p0 apoderou-se das cincomoedas de ouro" ele tinha perdido, mas nem sequer se moveu.>squecera, como o seu juramento, a palavra que me acabara de dar,

ainda não havia um minuto.  C0 a sua mão 0vida se crispava no monte do dinheiro, quediminu(ra, e o seu olhar de !brio estava inteiramente embebido namascot fronteira, que lhe magnetizava a vontade.

 A minha paci%ncia tinha-se esgutado. :acudi-o, uma vez mais,mas agora com a maior viol%ncia+  - 7evante-se imediatamente3 C0. . . o senhor disse-me que seria a;ltima jogada. . >ntão, deu-se qualquer coisa de inacredit0vel. 8oltou-

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se, de s;bito" o rosto que me )tava j0 não era o dum homem humilde econfuso, mas dum furioso, dum possesso de c&lera, cujos olhosbrilhavam e cujos l0bios tremiam de raiva.  - /ei$e-me em paz3 - gritou ele, felinamente. - 80-se embora3 A senhora d0-me azar3 :empre que est0 aqui perco. C0 ontem aconteceu

assim e hoje ! a mesma coisa. 80-se embora.  'iquei um momento como fulminada, mas logo, ante a sualoucura, a minha c&lera trasbordou+ - /ou-lhe azarE ente, ladrão3 senhor tinha-me jurado. . . as fui forçada a calar-me, porque ele,enraivecido, saltou do seu lugar e empurrou-me, indiferente ao tumultoque se levantava.- /ei$e-me em paz - gritou com voz forte, sem nenhum comedimento.- não estou para aturar a sua tutela. . . Aqui tem, aqui tem o dinheiro. . .- e atirou-me com umas notas de cem francos.-as agora dei$e-metranquilo.  /isse tudo isto aos gritos, como um louco, indiferente a presença

de centenas de pessoas que se encontravam a nossa volta. ?oda a genteolhava, cochichava, insinuando coisas, rindo, e at! da sala vizinhachegavam curiosos. >u tinha a sensação de que me haviam arrancado aroupa e me e$ibia inteiramente nua diante de toda aquela gent> cheiade curiosidade. -:il%ncio, minha senhora, por favor3 - disse a voz forte e autorit0ria docroupier, batendo com a p0 na mesa. >ra a mim que se dirigiam as palavras daquele miser0vel. 6umilhada,coberta de vergonha, )quei ali e$posta a curiosidade murmurante echocarreira, como uma prostituta a quem acabassem de dar dinheiro./uzentos, trezentos olhos insolentes, estavam cravados em mim. >,

quando me afastava, curvada sob aquela imunda humilhação, eis quediante de mim encontrei dois olhos que a surpresa fazia esgazear. >ra arninha prima, que me olhava, assombrada, de boca aberta, at&nita eaterrada.

 'oi como se me dessem uma chicotada. Antes que ela pudessefalar e refazer-se da surpresa, precipitei-me para fora da sala e tiveainda a força precisa para ir direita ao banco, sobre o qual, na v!spera,aquele doido se dei$ara cair. > tão fraca, tão humilhada e ferida comoele, dei$ei-me cair tamb!m sobre a t0bua dura e impiedosa.  5assou-se isto j0 h0 vinte e quatro anos e, no entanto, quandopenso neste momento em que me vi fustigada pelos seus insultos, sob

os olhares de tantos estranhos, gela-se-me o sangue nas veias. > sintode novo, com horror, como ! fraca, miser0vel e cobarde a subst#ncia deque deve ser feita essa coisa a que n&s chamamos, com %nfase, alma,esp(rito, sentimento e dor, porque tudo isso, mesmo no mais altoparo$ismo, ! incapaz de esmagar inteiramente o corpo que sofre, acarne torturada. 5ois, apesar de tudo, o sangue continua a correr e agente sobrevive a horas semelhantes, em vez de morrer e de se abatercomo uma 0rvore fulminada pelo raio.

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  A dor não me despedaçou os mem bros senão por um momento+naquele em que recebi o choque, de forma a tombar sobre o banco, semrespiração, ofegante e sentindo, por assim dizer, o antegosto voluptuosoda morte )nal. as, como acabei de a)rmar, todo o sofrimento !cobarde e recua diante do amor a vida, que ! ainda mais poderoso e

)ca mais fortemente ancorado na nossa carne do que toda a #nsia demorte no nosso esp(rito. >, coisa ine$plic0vel para mim pr&pria, depois de tal destruição

de sentimentos, apesar de tudo, levantei-me, a bem dizer sem saberpara qu%. > então lembrei-me de que as minhas malas estavam naestação. /esde esse instante, tive um ;nico pensamento+ partir, partir,partir dali, simplesmente, partir para longe daquele lugar maldito,daquele asino infernal. orri a estação sem ver ningu!m e perguntei aque horas sa(a o primeiro comboio para 5aris. empregado disse-meque as dez horas, imediatamente, mandei despachar a minha bagagem./ez horas3 6aviam decorrido precisamente vinte e quatro horas depois

daquele maldito encontro+ vinte e quatro horas absolutamente cheiaspela tempestade ululante dos sentimentos mais estranhos que tinhamferido a minha alma para sempre. No entanto, ouvia apenas uma ;nicapalavra com o seu ritmo eternamente martelado e /entro do meuc!rebro repetia-se , vibrante + partir partir partir sem cessar estapalavra + partir3 partir3 partir 5artir para longe daquela terra maldita,para longe de mim pr&pria, voltar a minha vida antiga,a minha verdadeira vida. 5assei a noite no comboio, a caminho de 5aris. 9uandocheguei, fui duma estação a outra, em direcção a <olonhaprimeiramente, depois de <olonha a /Dver, de /Dver a 7ondres, e de7ondres fui ter com os meus )lhos, e, tudo isto com a rapidez dum voo,

sem pensar, sem re=ectir em nada, durante quarenta e oito horas, semdormir, sem falar, sem comer" quarenta e oito horas durante as quais asrodas não faziam senão repetir esta palavra + partir 5artir3 5artir 5artir

9uando, en)m, sem ser esperada 5or ningu!m, entrei na casa decampo de meu )lho, todos tiveram um movimento de espanto. 1 quehavia sem d;vida em mim, no meu olhar, qualquer coisa que me tra(a.eu )lho apro$imou-se para me beijar. Recuei diante dele + era-meinsuport0vel a ideia de lhe tocar com os l0bios que consideravamaculados. >vitei todas as perguntas e pedi apenas um banho, porquesentia necessidade de puri)car o corpo 2sem pensar na imund(cieproduzida pela viagem4, de tudo o que parecia ainda restar nele da

pai$ão por aquele louco, por aquele homem indigno. >m seguida, fuipara o meu quarto e dormi durante doze a catorze horas um sono deanimal ou de pedra, como nunca dormi antes nem depois, um-sono queme pareceu ser o que se dorme num cai$ão+- o sono da morte. A minha fam(lia inquietou-se por mim como por umadoente. as a sua ternura s& conseguia fazer-me mal" tinha vergonha,sentia-me acanhada diante do respeito e dos cuidados que medispensavam, e precisava de dominar-me, constantemente, para não

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gritar que os havia tra(do a todos, que os tinha esquecido, quaseabandonado, sob o imp!rio de uma pai$ão louca e insensata.

  ais tarde, dirigi-me ao acaso para uma pequena cidadefrancesa onde não conhecia ningu!m, pois andava perseguida pelaobsessão de que toda a gente podia, ao primeiro olhar, perceber a

minha vergonha e a minha transformação, de tal forma me sentia tra(dae manchada at! ao fundo da minha alma. Is vezes, ao acordar demanhã no meu leito, tinha um medo horr(vel de abrir os olhos.  Assaltava-me de s;bito a lembrança daquela noite em queacordara ao lado dum desconhecido, dum homem quase nu, e então, talcomo da primeira vez, sentia apenas um desejo+ morrer imediatamente.  Apesar de tudo, o tempo tem um grande poder, e a idadeamortece de maneira estranha todos os sentimentos. Culgamo-nos cada vez mais pertoda morte" a sua sombra cai, negra, no caminho" as coisas parecemmenos vivas e j0 não afectam tão intensamente o mais profundo da

nossa alma, perdendo muito da sua perigosa força. 5ouco a pouco, re)z-me do choque recebido, e quando, bastantes anos depois, encontrei nasociedade, como adido a 7egação da ustria, um moço polaco, e emresposta a uma pergunta que lhe )z sobre a fam(lia, ele me disse queum seu primo se tinha suicidado dez anos antes, em onte arlo, memsequer estremeci. Não me impressionou + talvez mesmo 2para quenegar o meu ego(smoE4 me )zesse bem, porque assim desaparecia operigo de o tornar a encontrar. C0 não e$istia para mim outratestemunha al!m da minha pr&pria recordação./epois )quei maistranquila. >nvelhecer não !, no fundo, senão perder o medo do passado., > agora j0 deve compreender porque me decidi a contar-7he a minha

 vida. 9uando o vi defender . 6enriette e sustentar apai$onadamenteque vinte e quatro horas podem mudar, por completo, a vida dumamulher, senti-me, eu pr&pria, visada por essas palavras, e )quei-lhereconhecida porque, pela primeira vez, me via, por assim dizer, justi)cada, e então pensei que, talvez libertando a minha alma por umacon)ssão, o pesado fardo, eterna obcecação do passado, desaparecessee que, amanhã , me seria poss(vel entrar de novo na sala onde encontreio meu destino, sem sentir &dio por ele nem por mim. >ntão, a pedra quepesa na minha alma erguer-se-0, cair0 com todo o seu peso sobre opassado, que fechar0 como um t;mulo, impedindo-o de ressuscitar.

 'oi para mim uma felicidade poder contar-lhe tudo. Agora estou

aliviada e quase feliz. uito obrigada.  om estas palavras, levantou-se de repente, e eu percebi que elaacabara. Mm pouco embaraçado, tentei dizer-lhe qualquer coisa, masela compreendeu, sem d;vida, o meu desejo, porque logo atalhou + - não. . . peço-7he. . . não fale. . . Não queria que me respondesse, queme dissesse fosse o que fosse. Agradeço-7he ter-me escutado e desejo-7he boa viagem.

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  >stava em p!, na minha frente, e estendia-me a mão, como quemdiz adeus.  lhei, sem querer, para o seu rosto e achei singularmenteenternecedor o aspecto daquela mulher idosa, que se encontrava diantede mim, am0vel e ao mesmo tempo acanhada. :eria o re=e$o duma

e$tinta pai$ãoE :eria confusão, o que de repente 7he coloriu dum vermelho inquieto as faces at! a raiz dos seus cabelos brancosE certo! que estava ali como uma menina, pudicamente perturbada pelarecordação, mas a quem a con)ssão dera a felicidade. Acanhado, semsaber porqu%, e$perimentava um vivo desejo de lhe testemunhar poruma palavra a minha consideração, mas sentia a garganta apertada enada mais pude fazer do que inclinar-me profundamente e beijar comrespeito, a sua mão enrugada, que tremia ligeiramente como afolhagem de utono.

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