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42 VOLUME VII Nº5 SETEMBRO/OUTUBRO 2005 Leituras / Readings No seu estudo clássico sobre o suicídio, Durkheim definia o suicídio anómico como aquele que surge quan- do um falhanço ou deslocamento dos valores sociais provoca a desorientação individual e um sentimento de falta de significado da vida. Para o pai da sociologia, a anomia ,como estado social, é uma falta de direcção que costuma aparecer nas épocas de revolução social; no indivíduo traduz um desconcerto ou insegurança, que se corresponde com o que hoje costumamos chamar alienação ou perda de identidade. Stefan Zweig, romancista e ensaísta de sucesso, biógrafo insigne, e p í- gono da ilustrada burguesia judia vienense, suicidou-se, juntamente com a sua segunda mulher, Lotte, no seu exílio brasileiro, em Petrópolis, p e rto do Rio de Janeiro, em 1942, no fragor da segunda guerra mundial. Os seus corpos foram encontrados fundidos num abraço, rígidos e pálidos, deitados em duas camas de tamanho solteiro encostadas uma na outra. Não se sabe se tomaram Veronal, Adalina ou morfina. O autor deixou, com o intuito de explicar a sua decisão, uma carta com a epí- grafe “Declaração” (o título escrito em português e o texto redigido em alemão) que bem poderia servir como exemplificação do conceito de suicídio anómico de Durkheim: “Declaração Antes de deixar a vida por vontade própria, com a mente lúcida, imponho-me a última obrigação: dar um carinhoso agradecimento a este maravilhoso país, o Brasil, que propi - ciou, a mim e à minha obra, tão gentil e hospitaleira guarida. Em cada dia aprendi a amar este país, mais e mais. Em parte alguma poderia reconstruir a minha vida agora que o mundo da minha língua está perdido e o meu lar espiritual, a Europa, autodestruído. Depois dos 60 anos são necessárias forças incomuns para começar tudo de novo. Aquelas que possuo foram exauridas nestes longos anos de desampara - das peregrinações. Assim, em boa hora e conduta erecta, A tragédia de Stefan Zweig The Stefan Zweig tragedy Adrián Gramary Médico Psiquiatra Centro Hospitalar Conde de Ferreira, Porto Direcção: Adrian Gramary Centro Hospitalar Conde de Ferreira, Rua Costa Cabral, 1211 4200-227 Porto e-mail: [email protected] No mar, tanta tormenta e tanto dano, tantas vezes a morte apercebida; Na Terra tanta guerra, tanto engano, tanta necessidade aborrecida! Onde pode acolher-se um fraco humano? Onde terá segura a curta vida, Que não se arme e se indigne o céu sereno Contra um bicho-da-terra tão pequeno? Luís de Camões: Os Lusíadas (os quatro últimos versos - em caligrafia gótica e emoldurados – estavam pendurados na parede do quarto de dormir de Stefan Zweig na sua casa de Petrópolis)

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VOLUME VII Nº5 SETEMBRO/OUTUBRO 2005

Leituras / Readings

No seu estudo clássico sobre o suicídio, D u r k h e i m

definia o suicídio anómico como aquele que surge quan-

do um falhanço ou deslocamento dos valores sociais

p rovoca a desorientação individual e um sentimento de

falta de significado da vida. Para o pai da sociologia, a

a n o m i a,como estado social, é uma falta de direcção que

costuma ap a recer nas épocas de revolução social; n o

indivíduo traduz um desconcerto ou insegurança,que se

c o rresponde com o que hoje costumamos chamar

alienação ou perda de identidade. Stefan Zwe i g ,

romancista e ensaísta de sucesso, b i ó g r a fo insigne, e p í-

gono da ilustrada burguesia judia vienense, s u i c i d o u - s e,

juntamente com a sua segunda mu l h e r, L o t t e, no seu

exílio brasileiro, em Pe t r ó p o l i s , p e rto do Rio de Janeiro,

em 1942, no fragor da segunda guerra mu n d i a l . Os seus

corpos foram encontrados fundidos num abraço,r í g i d o s

e pálidos, deitados em duas camas de tamanho solteiro

encostadas uma na outra. Não se sabe se tomaram

Ve ro n a l , Adalina ou morfina. O autor deixou, com o

intuito de explicar a sua decisão, uma carta com a epí-

g r a fe “Declaração” (o título escrito em português e o

texto redigido em alemão) que bem poderia serv i r

como exemplificação do conceito de suicídio anómico

de Durkheim:

“ D e cl a ração

Antes de deixar a vida por vontade própri a , com a mente

l ú c i d a , imponho-me a última obri g a ç ã o : dar um cari n h o s o

a g radecimento a este maravilhoso país, o Bra s i l , que pro p i -

c i o u , a mim e à minha obra , tão gentil e hospitaleira guari d a .

Em cada dia aprendi a amar este país, mais e mais. E m

p a rte alguma poderia reconstruir a minha vida ago ra que o

mundo da minha língua está perdido e o meu lar espiri t u a l ,

a Euro p a , a u t o d e s t r u í d o .Depois dos 60 anos são necessári a s

forças incomuns para começar tudo de nov o . Aquelas que

possuo fo ram exauridas nestes longos anos de desampara -

das pere g ri n a ç õ e s. A s s i m , em boa hora e conduta erecta,

A tragédia de Stefan ZweigThe Stefan Zweig tragedy

Adrián Gramary

Médico Psiquiatra

Centro Hospitalar

Conde de Ferreira,

Porto

Direcção:

Adrian Gramary

Centro Hospitalar

Conde de Ferreira,

Rua Costa Cabral, 1211

4200-227 Porto

e-mail:

a d r i a n _ g r a m a ry @ y a h o o. e s

No mar, tanta tormenta e tanto dano,

tantas vezes a morte apercebida;

Na Terra tanta guerra, tanto engano,

tanta necessidade aborrecida!

Onde pode acolher-se um fraco humano?

Onde terá segura a curta vida,

Que não se arme e se indigne o céu sereno

Contra um bicho-da-terra tão pequeno?

Luís de Camões: Os Lusíadas

(os quatro últimos versos - em caligrafia gótica e emoldurados – estavam pendurados na parede do quarto de dormir

de Stefan Zweig na sua casa de Petrópolis)

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Leituras / Readings

achei melhor concluir uma vida na qual o labor intelectual foi a mais

pura alegria e a liberdade pessoal o mais precioso bem sobre a terra.

Saúdo a todos os meus amigos. Que lhes seja dado ver a aurora desta

longa noite. Eu, demasiadamente impaciente, vou-me antes.”

As circunstâncias que envolveram a vida e a morte do autor aus-

tríaco são brilhantemente analisadas pelo jornalista e crítico

brasileiro Alberto Dines no seu belíssimo livro Morte noParaíso: A Tragédia de Stefan Zweig, cuja primeira edição

em Portugal (ampliação da primeira edição brasileira de 1981)

apareceu recentemente publicada pela editorial Rocco.

Zweig nasceu em Viena em 1881, filho de um rico industrial judeu

assimilado. A cidade de Viena era, nessa altura, a capital do

Império Austro-húngaro, um estado-puzzle que antes da Primeira

Guerra Mundial compreendia 17 nacionalidades e cujo hino era

entoado em 13 idiomas. Cerca de 9% da população urbana aus-

tríaca era constituída por judeus, mas como recorda Dines no

seu livro, no campo intelectual, nove em cada dez austro-hún-

garos que se destacavam nove eram judeus. No seu livro de

memórias O Mundo de Ontem: recordações de umeuropeu (reeditado este ano pela editora Assírio & Alvim).

Zweig canta o desaparecimento do seu mundo:“Nasci em 1881,

numa nação grande e poderosa, na monarquia dos Habsburgos;

mas não a procurem no mapa, que ela desapareceu sem deixar

rasto. Cresci em Viena, nessa metrópole bimilenária e cosmopoli-

ta, e fui obrigado a abandoná-la como um criminoso, antes de a

condenarem à degradação, fazendo dela uma simples cidade de

província alemã. A minha obra literária, na sua língua original,

reduziram-na a cinzas, precisamente na mesma terra onde os

meus livros tinham feito de milhões de leitores outros tantos

amigos. Não sou pois de nenhuma terra: sou, onde quer que me

encontre, um estrangeiro, e, no melhor dos casos, serei um hos-

pede; até a minha pátria propriamente dita, a eleita do meu

coração, a Europa,até essa eu perdi, a partir do momento em que

ela, pela segunda vez, se despedaçou numa guerra fratricida, que

equivale ao seu suicídio.”

Cada cidade tem o seu momento de glória, e Viena conheceu

talvez uma das suas etapas mais empolgantes no seu canto de

cisne como capital imperial, nesse período que vai do fim do

século XIX até o fim do primeiro terço de século XX. Nesse

caldo mágico, surgiram pensadores como Husserl, Witgenstein,

Freud, Lukács e Karl Popper, historiadores como Hobsbawm e

Gombrich, pintores como Klimt, Kokoscha e Schiele, drama-tur-

gos como Max Reinhardt, músicos como Mahler, Alban Berg e

Schoenberg, e escritores como Schnitzler, Zweig, Musil, Roth e

Broch. O contributo do exílio austríaco ao cinema de Hollywood

conforma uma lista interminável: cineastas como Fritz Lang,Von

S t ro h e i m , Von Stenberg, Max Ophuls, B i l ly Wilder e Otto

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Preminger participaram na construção das bases do cinema clás-

sico americano. Se considerarmos todavia que Viena era, nessa

altura, a capital do Império Austro-húngaro, então teríamos que

alargar esta lista fantástica com outros nomes que se nutriram

nesse mesmo berço cultural: escritores como Rilke, Kafka, Celan

ou Canetti eram cidadãos desse mesmo império e escreviam

também em alemão. Muitos destes intelectuais eram judeus e

todos eles juntos criaram – pelo menos em parte - os alicerces

da nossa modernidade. Nunca foi suficientemente destacado o

papel da intelectualidade judia no esplendor cultural da Viena dos

séculos XIX e XX. Como refere Zweig na sua autobiografia:“foi

muito importante a acção desenvolvida pela burguesia judaica,

fomentando e protegendo todas as formas de cultura. Os judeus

constituíam o verdadeiro público; enchiam os teatros e as salas

de concertos, compravam os livros e os quadros, visitavam as

exposições e, precisamente porque se encontravam menos sub-

metidos à influência da tradição, tornavam-se os arautos de tudo

o que era novo.” Esta burguesia culta e rica, com a sua profunda

vontade de assimilação, integrou-se totalmente na vida cultura da

capital do império, conferindo-lhe, em troca, o seu característico

espírito cosmopolita e supranacional.

Stefan Zweig foi, em vida, um escritor de grande sucesso, cujos

livros foram autênticos best-sellers na Alemanha e na Áustria e o

seu sucesso prolongou-se com alguma irregularidade após a sua

morte (em Portugal toda a sua obra foi publicada com grande

sucesso pela Editora Civilização, embora mais recentemente

Assírio & Alvim e Antígona tenham feito novas traduções). As

suas obras serviram de base para inúmeros filmes (entre os mais

conhecidos Carta a uma desconhecida de Max Ophuls).

Escreveu elaborados contos e romances psicológicos (Amok,

Confusão de Sentimentos, O Medo,Vinte e quatro horas na vida de

uma mulher, A partida de xadrez), livros de divulgação de conteú-

do histórico (Os grandes momentos da humanidade), ensaios (O

Combate com o Demónio: Hölderlin, Kleist, Nietzsche) e múltiplas

biografias, que são inesquecíveis perfis psicológicos de conheci-

dos personagens históricos e escritores (Maria Antonieta, Maria

S t u a rt , M a g a l h ã e s, E rasmo de Rotterd a m , B a l z a c , D i cke n s,

Dostoievski). Zweig escolheu para os seus perfis biográficos per-

sonagens derrotados,“meus personagens são os vencidos” expli-

cou uma vez,“uma nota bem característica do meu temperamen-

to, que me incita sempre a tomar partido do vencido, em vez de

me colocar ao lado do vencedor. Em lugar de cantar o “herói”,

preferia dar realce ao drama trágico da vítima. Essa tendência

manifesta-se posteriormente em todas as minhas obras, pois,

desprezando o lado material do lucro ou da glória, apenas me

preocupo com o fundo moral dos temas que apresento.E é assim

que dignifico Erasmo e não Lutero; Maria Stuart e não Isabel;

Castelio e não Calvino” explica na sua autobiografia, mas, como

conclui Dines, este estranho magnetismo que empurra Zweig

para perto dos vencidos e tão forte “que às vezes parece um

deles”.

Dois dos seus livros biográficos, seguindo o modelo plutarquiano

das vidas paralelas, tentaram abordar o confronto entre duas

personalidades históricas, um vencedor de facto perante um

vencedor moral: Castelio contra Calvino e Erasmo de Rotterdam

(onde é analisado o conhecido confronto entre Erasmo e

Lutero).

A vida de Zweig também poderia ser abordada em paralelo com

duas personalidades empolgantes da sua época: Freud e Hitler.

Com Freud – também vienense e judeu - manteve uma longa

relação epistolar e de amizade. Convém recordar que foi Zweig

o autor da primeira interpretação da psicanálise para o grande

público (A cura pelo espírito) e já no exílio londrino, fugindo os

dois do terror nazi, Zweig foi escolhido - juntamente com Ernst

Jones, que falou em nome dos psicanalistas de todo o mundo –

para fazer a leitura da elegia final perante as cinzas do ilustre cri-

ador da psicanálise. Zweig sentia-se em dívida com Freud.

Apercebia-se que os seus romances psicológicos não existiriam

sem a influência das leituras da obra de Freud. Numa das suas

cartas reconhece: “ sob o ponto de vista espiritual pertenço a

uma geração que, relativamente ao conhecimento, a ninguém

deve tanto como ao senhor, e sinto, simultaneamente com ela,

que se aproxima a hora em que a importância da sua descober-

ta da alma transformar-se-á num património comum para a ciên-

cia europeia”. A Freud dedicou um dos seus ensaios mais

famosos (A luta contra o demónio: Hölderlin, Kleist e Nietzsche) e é

conhecido que Freud, leitor fiel da obra de Zweig, gostava espe-

cialmente de duas obras do nosso romancista: Confusão de senti -

mentos e Vinte e quatro horas da vida de uma mulher (um estudo

psicológico brilhante sobre um ludopata).A propósito desta últi-

ma obra, afirmava Freud que, mesmo sem conhecer as técnicas

psicanalíticas, Zweig as utilizava literariamente de forma perfeita.

Quanto aos paralelismos com Hitler, começam pela fisionomia:

os dois usavam um bigode semelhante, existindo até alguma

semelhança geral nos traços da face.Ambos austríacos, de idade

semelhante, coincidiram na mesma época em Viena, quando o

ditador, rejeitado pela Academia de Viena, arrastava o seu fracas-

so como pintor pelas ruas da cidade. Na sua autobiografia, O

Mundo de Ontem, Zweig relata as suas estadias na sua casa perto

de Salzburgo:“Tantas vezes passamos ali horas agradáveis, olhan-

do desde a varanda a bela e pacifica paisagem, sem suspeitar que

mesmo em frente, na montanha de Berchtesgaden, alojava-se o

homem que haveria de destruir tudo aquilo”. Hitler também

apreciava a obra de Zweig, especialmente a biografia de Joseph

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Fouché, o político maquiavélico que sobreviveu à Revolução

Francesa, a Napoleão, ao Congresso de Viena, chegando até à

Restauração Borbónica. Um mês antes do suicídio do autor, no

lago de Wannsee, perto de Berlim, os chefes da SS tinham tido

uma reunião secreta, organizada por Hitler, para decidir a

“Solução Final” para o problema judeu. O paralelismo completa-

se com a morte, também voluntária, de Hitler no seu bunker

berlinês, três anos após a morte do nosso escritor.

Qual era a situação anímica de Zweig em 1942? O seu país, em

vinte anos, tinha passado de ser um império multicultural e mul-

tilinguístico – o Império Austro-húngaro – para se transformar

numa república, terminando por desaparecer como estado – o

chamado finis Austriae - com o Anchsluss, a anexação de Áustria

ao Terceiro Reich. O nosso autor, que tinha fugido de Áustria, já

não tinha nacionalidade. A sua língua, o alemão, era a língua

daqueles que tentavam eliminar os membros da sua raça com a

máquina de morte mais sofisticada criada pela mente humana. Em

1933, numa praça perto da Unter den Linden, colunas de estu-

dantes nazis, com tochas acesas, tinham invadido a Universidade

de Berlim e queimaram vinte mil livros tirados da biblioteca,

entre outros, obras de Zweig, ficando o seu nome banido do

mercado editorial de Alemanha.A partir dessa altura teve que se

conformar com publicar os seus livros traduzidos em outras lín-

guas.Ao editor francês Max Fischer confessa no exílio brasileiro

“sua língua é a francesa, o senhor pode pensar em francês. Eu sou

obrigado a pensar em alemão… em alemão como…”

Relativamente à raça e a religião, como muitos dos membros da

burguesia urbana vienense, a sua família tinha abandonado a sua

religião e tinha sofrido um processo gradual de assimilação, per-

dendo quase totalmente a sua vinculação com o seu povo, até ao

momento em que os nazis os voltaram a colocar na sua situação

de origem de povo perseguido.

Muitos outros intelectuais judeus austríacos também desistiram,

embora de formas mais subtis. Joseph Roth, o autor da Marcha

Radetzky e da Lenda do Santo Bebedor, o cantor da morte do

Império e do fim da casa dos Habsburgo, no seu exílio parisiense,

morreu afogado em álcool. Herman Broch, o autor do famoso

romance A morte de Virgílio, como recorda Dines, em 1951, exila-

do nos Estados Unidos, provavelmente também terá forçado a

sua morte: proibido de fazer esforços físicos, subiu três andares

carregando um baú. Mais tardiamente outros judeus testemunhas

do holocausto puseram fim aos seus dias voluntariamente: Paul

Celan, Primo Levi e Bruno Bettelheim (o autor da Psicanálise dos

contos de fadas).

Dines defende uma tese com a qual é difícil não concordar, isto

é, que, independentemente da análise das causas, Zweig era víti-

ma de uma depressão profunda, agravada provavelmente pelo

consumo exagerado de hipnóticos que o autor usava como auto-

tratamento para o seu problema crónico de insónia. O próprio

Zweig, embora não aceitasse iniciar tratamento específico para a

depressão, era ciente da situação psíquica pela qual estava a pas-

sar. Dias antes de se matar, explicou a vários amigos do Rio de

Janeiro o motivo do seu abatimento: estava tomado pela melan-

colia, “ich habe meine schwarze Leber” (tenho meu fígado negro)

explicava aos amigos mais próximos.Dines reproduz no seu livro

a lúcida “autópsia psiquiátrica” do médico e perito forense

Cláudio de Araújo Lima:

“Ciclotímico… maníaco-depressivo… matou-se como qualquer tuber -

culoso pode sucumbir, de súbito, a uma hemoptise. Ou como o

hipertenso por uma crise fulminante de angina… acidente talvez

evitável… se perto dele existisse alguém capaz de interpretar menos

poeticamente o estado doentio do seu espírito… suicídio de melancóli -

co, de vítima de uma depressão de climatério, agravada por factores

reactivos externos… que, até pelo envolvimento da companheira, traz

uma sugestão capaz de valer como elemento de diagnóstico”

Zweig tinha fugido inicialmente para Inglaterra, mas quando a

situação na Europa se tornou insustentável decidiu fugir para o

Brasil. De Lisboa, saiu de barco para o Rio de Janeiro.Ao chegar

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ao Brasil, declarou a um jornalista “sinto-me feliz por ter aban-

donado a incerteza, a inquietação e a insegurança de Europa”.

Mas, como refere Dines,“o exílio é sempre desolador, mesmo no

mais aprazível recanto. O trópico viçoso não espanta todas as

sombras,o sol nunca basta para secar os náufragos encharcados”.

Previa um conflito longo e devastador e sentia o cerco fechar-se

à sua volta. O afundamento de vários navios brasileiros por parte

de submarinos alemães aumentou a sua angústia. O seu estádio

depressivo foi testemunhado por diferentes pessoas.Assim, Klaus

Mann, o filho do prémio Nobel alemão, encontrou-o na 5ª

Avenida de Nova Iorque (para onde tinha ido, convidado como

palestrante) “derreado, imerso em profunda tristeza, a barba por

fazer, aparência amarfanhada”. No Rio, o editor francês Max

Fisher, refere, sempre seguindo o livro de Dines: “senti nele o

pavor de ficar sozinho, telefonava-me cedo e vinha conversar

comigo no quarto ou ficávamos no hall do hotel… desde o

primeiro dia estava abatido. Expressão melancólica, a tristeza

estava nos olhos”.

A tragédia de Zweig é a mesma que viveram muitos judeus que,

como Joseph K, o famoso protagonista de O Processo, eram cul-

pados e sacrificados por um crime que não conseguiam entender.

O autor vienense apercebeu-se desta tragédia, escrevendo na sua

autobiografia: “mas o que de mais dolorosamente trágico havia

neste novo fadário dos judeus do século XX era, com certeza,

que, de facto, não sabiam porque eram tão cruelmente persegui-

dos. Outrora, na Idade Média, os seus antepassados ainda tinham

o consolo moral de saber que eram imolados à causa da sua fé

que os animava, ainda dispunham do talismã maravilhoso da indis-

cutível e absoluta crença no seu Deus, crença que de há muito já

não era apanágio dos judeus contemporâneos (…) Se por acaso

os expulsavam da pátria tinham ainda o refúgio inviolável da man-

são de Deus, de onde não havia nenhum imperador, nenhum rei,

nenhuma Inquisição, nenhuma força terrestre, enfim, que os

pudesse banir (…) Mas outro tanto já não se podia dizer dos

judeus do século XX, que, de facto, desde há muito nas consti-

tuíam uma comunidade, nem sequer estavam unidos estreita-

mente pela fé, e para quem, ser judeu, era mais um motivo de

pesar que de orgulho, acrescendo ainda que já não acreditavam

na lenda do povo eleito.As leis e os preceitos sagrados de antan-

ho foram-se transformando em letra morta, e até a língua

hebraica se foi sumindo no desuso, visto que cada qual tinha ape-

nas a preocupação de se diluir no agregado nacional onde vivia,

de modo a afastar para sempre o negro fantasma do banimento,

pondo um ponto final no interminável drama do judeu errante.

Animados desse desejo, era natural que não se entendessem per-

feitamente unos com os outros. Procurando assimilar a cultura

dos povos onde viviam, sentiam-se mais franceses, alemães, ingle-

ses ou russos do que propria-mente judeus. Porém, eis que o

mundo os obrigava a reconstituir à força a comunidade de ou-

trora, tantas vezes fortalecida e desfeita desde os tempos de

Egipto (…) tinham sido condenados sem apelação, não havia

dúvida. E cada qual, na febre que a inacreditável tragédia fazia

nascer, balbuciava: Por que estou aqui? Sim! E tu? E aquele? E

aqueleoutro? Sim! Porque estou junto a ti, e daquele e deste, se

não há nada que nos ligue, nem moral, nem religião, nem ideal, e

se, em boa verdade, somos de mundos completamente distintos?

Todos formulavam a mesma pergunta e todos obtinham a mesma

resposta - nada.”. Zweig relata, na sua biografia de Maria

Antonieta que, no turbilhão revolucionário, pouco tempo antes

de ser decapitada, a rainha escreveu no seu caderno diário “só na

desgraça conseguimos saber quem realmente somos” e Zweig

compreendeu na desgraça quem realmente era, mas não con-

seguiu encontrar para esse ser um espaço e um tempo próprios,

“em parte alguma poderia reconstruir a minha vida” escreveu na sua

declaração.

O livro de Dines, fruto de um feliz encontro precoce (Dines,

membro da comunidade hebreia do Rio de Janeiro, teve a opor-

tunidade de conhecer Zweig, em criança, na visita que o escritor

fez à sua escola) é uma leitura obrigatória, rica em material epis-

tolar inédito, imprescindível não só pela análise lúcida da vida do

escritor, mas também como reflexão única sobre uma geração e

um mundo - o que surgiu da simbiose austro-judia - definitiva-

mente desaparecidos.

B i bl i o graf i a

Dines A (2005): M o rte no Paraíso:A Tragédia de Stefan Zwe i g . Editora Rocco

– Temas e Debates. L i s b o a .

Durkheim E (1998): El suicidio. Editorial A k a l . M a d r i d .

Z weig S (1953): O Mundo de Ontem. Editora Civilização. Po rt o. (esta foi a

versão usada para as re ferências do art i go ) .

Z weig S (2003): Maria A n t o n i e t a : Retrato de una reina mediocre. E d i t o r i a l

D e b a t e.B a rc e l o n a .

Z weig S (2004): C o rrespondencia com Sigmund Fre u d , Rainer Maria Rilke y

A rtur Schnitzler. Editorial Paidós Te s t i m o n i o s . B a rc e l o n a .

Z weig S (2004): Confusão de sentimentos. Editora A n t í go n a . L i s b o a .

Z weig S (2005): O Mundo de Ontem: re c o rdações de um euro p e u . E d i t o r a

Assírio & A l v i m . L i s b o a .

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