a doença de van gogh referÊncias - saude …saude-mental.net/pdf/vol7_rev3_leituras2.pdf ·...

4
Leituras / Readings 47 VOLUME VII Nº3 MAIO/JUNHO 2005 neste testamento dos últimos quinze anos da sua vida, este homem apaixonado, impulsivo, inadaptado e estranhamente bom (até à ingenuidade), para o seu escândalo, não encontra nenhum motivo de queixa em relação aos seus contemporâneos. Numa segunda leitura das cartas, e à procura da chave para a resolução deste enigma, na carta 582, encontramos o que poderia ser a resposta à nossa humana interrogação. No início desta carta, o pintor refere ao irmão o encontro casual, folheando um jornal atrasado, da descrição da frase escrita sobre uma antiga tumba perto de Arles, em Carpentras. No epitáfio da campa, que chama a atenção de Van Gogh, encontramos aquilo que bem poderia O conhecido livro “Cartas a Theo” é um texto epistolar cheio de paixão e de cores, formado pelas cerca de 800 cartas dirigidas pelo pintor ao seu irmão e confidente, Theo Van Gogh. Nelas, o autor fala do seu sofrimento, das esperanças e dos desesperos, dos achados artísticos, das inúmeras dificuldades económicas e da terrível evolução da doença. Após virar a última folha do livro, uma ausência destacada chama a atenção ao leitor: em nenhuma destas cartas, até naquelas escritas nos piores momentos da vida pouco fácil do nosso pintor, é possível encontrar uma única linha de crítica dirigida a outra pessoa. O comum leitor, humano e sem perfil de santo, fica atónito ao aperceber-se que, A Doença de Van Gogh Van Gogh’s illness Adrian Gramary Médico Psiquiatra Centro Hospitalar Conde de Ferreira, Porto Direcção: Adrian Gramary Centro Hospitalar Conde de Ferreira Rua Costa Cabral, 1211 4200-227 Porto Tel: 225 071 200 Fax: 225 071 295 e-mail: [email protected] Resumo No seu percurso experimental e de busca de espaços inovadores de expressão formal, a arte do passado século XX foi testemunha de um interesse renovado por áreas artísticas marginais, entre as quais se situava a arte produzida pelos doentes mentais. Este interesse cristalizou na formação de duas colecções dedicadas à arte criada por doentes psiquiátricos: a Colecção Prinzhorn e a Colecção de Art Brut. A primeira, actualmente em exposição permanente na Clínica Psiquiátrica da Universidade de Heidelberg, teve um papel de relevo no desenvolvimento da arte de vanguarda de entre-guerras graças à repercussão que teve no expressionismo e no surrealismo, através de autores destacados como Paul Klee e Max Ernst. A Colecção de Arte Brut, criada por Jean Dubuffet nos anos 40, teve grande transcendência na arte do pós-guerra, em especial no informalismo europeu. Abstract The XX th century art witnessed an interest for outside artistic areas, which included the art created by mentally ill patients.This interest led to the development of two collections dedicated to the art created by psychiatric patients: the Prinzhorn Collection and the Art Brut Collection.The first one, in permanent exibition in Psychiatric Clinic of Heidelberg University, had a relevant role in the vanguard art of between-wars period, through important artists like Paul Klee and Max Ernst. The Art Brut Collection, created by Jean Dubuffet at 40’s, was important in post-war period, specially in european informalism. “Sinto que o supremamente artístico é amar as pessoas”. “Após a experiência dos ataques repetidos, convém-me a humildade. Assim pois: paciência. Sofrer sem se queixar é a única lição que se deve aprender nesta vida”. “Longe de me queixar, é justamente com a vida artística que me sinto quase tão feliz como poderia ser com a vida ideal verdadeira, embora esta não seja propriamente a verdadeira.” Vincent Van Gogh: Cartas a Theo

Upload: vanduong

Post on 08-Sep-2018

221 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Leituras / Readings

47

Leituras / Readings Leituras / ReadingsLeituras / Readings

VOLUME VII Nº3 MAIO/JUNHO 2005VOLUME VII Nº3 MAIO/JUNHO 2005 VOLUME VII Nº3 MAIO/JUNHO 2005 VOLUME VII Nº3 MAIO/JUNHO 2005

neste testamento dos últimos quinze anos da sua vida,este homem apaixonado, impulsivo, inadaptado eestranhamente bom (até à ingenuidade), para o seuescândalo, não encontra nenhum motivo de queixa emrelação aos seus contemporâneos. Numa segundaleitura das cartas, e à procura da chave para a resoluçãodeste enigma, na carta 582, encontramos o que poderiaser a resposta à nossa humana interrogação. No iníciodesta carta, o pintor refere ao irmão o encontro casual,folheando um jornal atrasado, da descrição da fraseescrita sobre uma antiga tumba perto de Arles, emCarpentras. No epitáfio da campa, que chama a atençãode Van Gogh, encontramos aquilo que bem poderia

O conhecido livro “Cartas a Theo” é um textoepistolar cheio de paixão e de cores, formado pelascerca de 800 cartas dirigidas pelo pintor ao seu irmãoe confidente, Theo Van Gogh. Nelas, o autor fala doseu sofrimento, das esperanças e dos desesperos, dosachados artísticos, das inúmeras dificuldades económicase da terrível evolução da doença. Após virar a últimafolha do livro, uma ausência destacada chama a atençãoao leitor: em nenhuma destas cartas, até naquelasescritas nos piores momentos da vida pouco fácil donosso pintor, é possível encontrar uma única linha decrítica dirigida a outra pessoa. O comum leitor, humanoe sem perfil de santo, fica atónito ao aperceber-se que,

A Doença de Van GoghVan Gogh’s illness

Adrian Gramary

Médico PsiquiatraCentro HospitalarConde de Ferreira,Porto

Direcção:Adrian GramaryCentro HospitalarConde de FerreiraRua Costa Cabral, 12114200-227 PortoTel: 225 071 200Fax: 225 071 295e-mail: [email protected]

servir como epitáfio adequado para o próprio pintor: “Thebe, filhade Thelhui, sacerdotisa de Osiris, que nunca se queixou de ninguém”.Quase como arrastadas pela iluminação deste achado, começama brotar, espalhadas pelas cartas, outras variações sobre este “sofrersem se queixar”, que parece ter sido o leit-motiv da vida do pintor(vide supra).Um artigo de revisão recente no American Journal of Psychiatry(2002), intitulado “The Illness of Van Gogh”, e a publicação emportuguês do livro de Antonin Artaud “Van Gogh: o suicidadoda sociedade” (2004) são dois novos pretextos para abordarmoso enigma sem resposta do pintor.Dietrich Blumer, o autor do artigo do American Journal of Psychiatry,retoma o diagnóstico de epilepsia do lobo temporal defendidopelos médicos que acompanharam Van Gogh nos seus internamentospsiquiátricos no Hospital de Arles e no Hospital Psiquiátrico deSaint Rémy. Blumer defende que os sintomas de Van Gogh podemser explicados como crises parciais complexas no contexto deuma epilepsia do lobo temporal, provavelmente desencadeadaspelo abuso de absinto, bebida alcoólica feita com o extracto daplanta Artemisia absinthium, que tem uma substância com potentesefeitos epileptogénicos. Van Gogh iniciou-se nesta bebida - conhecidacomo a bebida verde da bohême literária francesa do século XIX- durante a sua estadia em Paris. O autor argumenta que asalterações do humor e os sintomas psicóticos podem ser explicadoscomo devidos, respectivamente, a uma perturbação disfórica inter-ictal e a episódios psicóticos provocados pela epilepsia.Inúmeros autores têm aportado teorias explicativas para a doençade Van Gogh. Assim, Jaspers, no seu livro “Génio artístico eloucura: Strindberg e Van Gogh”, foi um dos primeiros quedefendeu o diagnóstico de esquizofrenia, reconhecendo, no entanto,a ausência de sintomatologia deficitária característica desta doença.Outros autores têm defendido os diagnósticos de neurosífilis edoença bipolar (por exemplo, a Professora Kay Redfield Jamison,no seu conhecido livro “Touched with fire. Manic-DepressiveIllness and the Artistic Temperament”).O livro de Antonin Artaud foi escrito em 1947, partindo de umaperspectiva nitidamente anti-psiquiátrica, tentando fazer coincidira sua experiência pessoal com a do pintor holandês. Esta atitudeé compreensível tendo em conta o profundo traumatismo pessoalde Artaud, que esteve internado múltiplas vezes por episódiospsicóticos e sentia uma intensa rejeição para tudo o que dissesserespeito a médicos e tratamentos psiquiátricos. Apesar disto, olivro reserva, para o leitor interessado em Van Gogh, páginas debeleza deslumbrante: “Cardadas pelo prego de Van Gogh as paisagensmostram a carne hostil, o azedume das sinuosidades esventradas, aoponto de não sabermos que força estranha se encontra, por outro lado,a fazer metamorfoses”. (...) “Ao pintar, Van Gogh renunciou a contar

ResumoNo seu percurso experimental e de busca de espaços inovadores de expressão formal, a arte do passado século XX foi

testemunha de um interesse renovado por áreas artísticas marginais, entre as quais se situava a arte produzida pelos doentesmentais. Este interesse cristalizou na formação de duas colecções dedicadas à arte criada por doentes psiquiátricos: a Colecção

Prinzhorn e a Colecção de Art Brut. A primeira, actualmente em exposição permanente na Clínica Psiquiátrica da Universidadede Heidelberg, teve um papel de relevo no desenvolvimento da arte de vanguarda de entre-guerras graças à repercussão que teveno expressionismo e no surrealismo, através de autores destacados como Paul Klee e Max Ernst. A Colecção de Arte Brut, criadapor Jean Dubuffet nos anos 40, teve grande transcendência na arte do pós-guerra, em especial no informalismo europeu.

AbstractThe XXth century art witnessed an interest for outside artistic areas, which included the art created by mentally ill patients. This

interest led to the development of two collections dedicated to the art created by psychiatric patients: the Prinzhorn Collectionand the Art Brut Collection. The first one, in permanent exibition in Psychiatric Clinic of Heidelberg University, had a relevant

role in the vanguard art of between-wars period, through important artists like Paul Klee and Max Ernst. The Art BrutCollection, created by Jean Dubuffet at 40’s, was important in post-war period, specially in european informalism.

“Sinto que o supremamente artístico é amar as pessoas”.“Após a experiência dos ataques repetidos, convém-me a humildade. Assim pois: paciência. Sofrer sem se queixar é aúnica lição que se deve aprender nesta vida”.“Longe de me queixar, é justamente com a vida artística que me sinto quase tão feliz como poderia ser com a vida idealverdadeira, embora esta não seja propriamente a verdadeira.”

Vincent Van Gogh: Cartas a Theo

do Hospital de Saint-Rémy, foi usado durante muito tempo comoalvo para os dardos dos filhos do médico. Este visionário, rejeitadoe desprezado em vida, só conseguiu vender um quadro (“As vinhasvermelhas”, comprado pela filha de um pintor amigo) e, no entanto,manteve sempre uma fé inquebrantável e tenaz no seu destino evocação artística, desenvolvendo o seu esforço titânico em solidão,passando fome, vítima de uma terrível doença agravada pelosabusos de álcool e com o único apoio incondicional do irmão. “Dequalquer maneira, quer as pessoas gostem, quer não do que eu façoe de como o faço, não vejo outro caminho pela minha parte senão ode lutar com a natureza todo o tempo que seja necessário, para queela me confie o seu segredo” refere ao seu irmão, explicando estavocação inamovível. Às vezes, porém, a dura realidade impõe-see surgem as dúvidas: “e não posso fazer nada, se os meus quadrosnão se vendem; chegará um dia, no entanto, em que se verá que elesvalem mais do que o preço que nos custam as cores e a minha vida,em verdade muito pobre.” Com ironia trágica, num momento defraqueza, este mártir da arte confessa ao irmão: “não posso imaginaro pintor do futuro vivendo em modestos restaurantes, trabalhando comdentadura postiça e frequentando prostíbulos para a tropa”. Afinal,mais do que a discussão técnica sobre o diagnóstico e a obra genialdo artista, o que permanece e nos desconcerta é o mistério dosacrifício deste homem que, se calhar, com sobrados motivos reaispara se queixar, nos deixou a sua comovedora verdade nua: “sofrersem se queixar é a única lição que se deve aprender nesta vida”. Naaltura da acabar este artigo, ficam a pairar no ar as palavras dopsiquiatra espanhol Juan-António Vallejo-Nágera, na sua patobiografiasobre o pintor: “Também com «santo» resulta original; mas não estouseguro de que não o tenha sido. De um modo extravagante , levandoaté o absurdo a aplicação prática da virtude, mas atingindo estadimensão heróica, pelo menos em certas etapas da sua desconcertantebiografia”.O nosso holandês errante tinha, parafraseando o título do filmede Minnelli sobre a sua biografia, “luxúria pela vida”, e deixou-noscomo herança uma visão luminosa e exultante da natureza. A vozde Kirk Douglas, no fim do filme “Lust for life”, lembra-nos que,quando Van Gogh pensou na morte e tentou representa-laplasticamente - no quadro “Campo de trigo com um ceifeiro” -imaginou uma morte também luminosa, num campo de trigo,“ocorrendo à plena luz do dia, sob um sol que inunda tudo, com claridadede oiro puro…” Porque é que o pintor decidiu pôr fim aos seusdias nesse cenário, numa fase de criação máxima, quando a doençaparecia estar em remissão? Sentiu-se mais isolado após o nascimentodo primeiro filho do irmão? Sentiu-se mais uma vez fracassado noamor? Foi a angústia perante a inevitável recorrência da doença?Apesar dos nossos esforços para resolver o enigma de Van Gogh,este persistirá incontestável, como a sua obra.

O que iria tornar-se o primeiro mito da arte contemporâneanasceu no ano de 1853 em Zundert, numa pequena vila da regiãode Brabante, no sul da Holanda. Era o mais velho de uma famíliade seis irmãos, que se tinha especializado havia muito tempo emduas direcções: o comércio de pintura e a prática religiosa. Umantepassado do Vincent tinha sido bispo de Utrech e o seu própriopai e o avô eram pastores da Igreja Reformada.Após algumas tentativas falhadas para trabalhar em galerias dearte pertencentes a amigos da família, virou-se então para ospobres e necessitados, descobrindo a que considerava que seriaa sua verdadeira vocação: seria pastor como o seu pai e como oseu avô. Decidido a exercer o apostolado por conta própria, emDezembro de 1878 saiu para a região mineira de Borinage, o “paíspreto”, na Bélgica. Alojado no início em casa de um padeiro, nãotardou em mudar-se para uma choça. Lá dormia no chão, sobreum monte de palha. Após repartir à sua chegada toda a sua roupaentre aqueles desgraçados, vestia uma velha roupa de soldado eum boné estragado. Levava a vida dos mineiros e a sua cara estavasempre preta de carvão. Pregava, repartia o seu dinheiro e, de vezem quando, fazia desenhos. Tais excessos alarmaram o Comité deEvangelização de Bruxelas, que lhe retirou o nomeamento e osubsídio. Vincent persistiu lá, sem comida e sem abrigo, durante oterrível inverno, até que o seu pai veio resgata-lo.Na vida afectiva, o fracasso também será absoluto. As quatrotentativas de relacionamento estável terminaram de forma dramática.Em Londres, apaixonou-se pela filha da sua patroa e a rejeição porparte desta sumiu-o num total abatimento. Em Ethem, ficouapaixonado por Kee Vos, uma prima sua que tinha ficadorecentemente viúva e com um filho, que o rejeitou categoricamentee motivou a inimizade com o seu pai, que não vacilou em qualificara paixão como “incestuosa”. Ao verificar que lhe dedicava umaamor não correspondido, Vincent mostra o seu desespero mantendoa mão direita sobre a chama de um candeeiro, até cair inanimado.Em Haia, apaixona-se por uma prostituta chamada Sien, grávida ealcoólica. “Este inverno - explica ao irmão Theo - encontrei uma mulhergrávida, abandonada pelo pai da criança que levava no seu seio... cheiade frio, errava pelas ruas, tratando de ganhar o pão da maneira quepodes imaginar. Tomei-a como modelo e trabalhei com ela todo o inverno.Não pude dar-lhe um ordenado completo de modelo, mas paguei-lheas suas horas de pose, e pude salvá-la, a ela e à criança, da fome e dofrio, dividindo com ela o meu próprio pão.” Com Sien viveu numafelicidade progressivamente deteriorada, ponderando a ideia docasamento como forma de a recuperar. No limite das suas forçasfísicas, Vincent chamou o irmão Theo para o ajudar, o qual o afastoudaquela mulher irrecuperável, que se entregara de novo à bebida.Nuenen foi o cenário de uma nova - e falhada - relação sentimental:uma solteirona cândida, Margot Begeman, que tentou suicidar-se

histórias, mas o maravilhoso é este pintor apenas pintor, e mais pintordo que os outros pintores por ser aquele em que o material, a pintura,tem lugar de primeiro plano, com a cor apanhada como que espremidapara fora da bisnaga, com a marca, como que uns atrás dos outros,dos pêlos do pincel na cor, com a pincelada da pintura pintada, comoque distinta no seu próprio sol, com o i, a vírgula, o ponto da ponta dopróprio pincel enroscada na própria cor em gritaria, e que espirra emfaíscas, que o pintor macera e arrepanha por todos os lados”. O textode Artaud, livre de qualquer intuito de esclarecimento científico,tenta compreender o enigma do homem Vincent Van Gogh, quecontinua a interrogar-nos por trás dos seus quadros.

perante a oposição familiar ao seu matrimónio com odesencaminhado filho do pastor.A partir dessa altura, começa a frequentar prostíbulos, refúgioonde consegue obter o afecto feminino que parece que lhe énegado fora. Em Antuerpia recorre ao médico por causa de “certomal-estar ”, sendo-lhe diagnostica sífilis avançada.É pouco conhecido o autêntico motivo que permite explicar ainterminável quantidade de auto-retratos feitos por Van Gogh. Oruivo pintor decidiu comprar um espelho que lhe permitisse arealização dos auto-retratos, não por uma pulsão narcisista, senãodevido às imensas dificuldades que tinha para arranjar modelospara os seus retratos. Não podia pagar a profissionais e a maioriadas pessoas recusava-se a pousar pois achavam os seus retratosdistorcidos, quase como caricaturas, e até as prostitutas quefrequentava temiam que fizessem pouco delas e consideravam umsério risco para a sua reputação aqueles estranhos quadros. Umfuncionário do Hospital Psiquiátrico de Arles, não aceitou o retratoque tinha pintado para ele: “o que é que eu ia fazer com isto?”retorquiu. Após a sua morte, o retrato que tinha feito do psiquiatrado Hospital de Arles, Félix Rey, apareceu tapando um buraco nachaminé do seu quarto. Outro quadro, que ofereceu ao director

REFERÊNCIAS

Artaud A (2004): Van Gogh, o suicidado da sociedade. Assírio & Alvim.Lisboa.

Blumer D (2002): The Illness of Van Gogh. Am. J. Psychiatry; 159: 519-526.

Jamison KR (1993): Touched with fire. Manic-Depressive Illness and theArtistic Temperament. New York.

Jaspers K (2001): Genio artístico y locura. Strindberg y Van Gogh. ElAcantilado. Barcelona.

Vallejo Nágera JA (1996): Locos egregios. Planeta. Barcelona.

Van Gogh V (2004): Cartas a Theo. Paidós Estética. Barcelona.

Filmes:

Lust for life (1956)-Vincente Minnelli

Vincent e Theo (2000)-Robert Altman

Leituras / Readings Leituras / Readings Leituras / ReadingsLeituras / Readings

48

VOLUME VII Nº3 MAIO/JUNHO 2005VOLUME VII Nº3 MAIO/JUNHO 2005 VOLUME VII Nº3 MAIO/JUNHO 2005 VOLUME VII Nº3 MAIO/JUNHO 2005

Figura 2. Campo de Trigo com um Ceideiro por trás do HospitalSaint-Paul. Saint-Rémy, Setembro de 1889. òleo sobre tela, 59 x 72,5 cm.Essen, Museum Folkwang.

Figura 1. Ala do Hospital de Arles. Arles, Janeiro de 1889. Óleo sobretela, 74 x 92 cm. Winterthur, Collection Oskar Reinhart.

neste testamento dos últimos quinze anos da sua vida,este homem apaixonado , impulsi vo, inadaptad o eestranhamente bom (até à ingenuidade), para o seuescândalo, não encontra nenhum motivo de queixa emrelação aos seus contemporâneos. Numa segundaleitura das cartas, e à procura da chave para a resoluçãodeste enigma, na carta 582, encontramos o que poderiaser a resposta à nossa humana interrogação. No iníciodesta carta, o pintor refere ao irmão o encontro casual,folheando um jornal atrasado, da descrição da fraseescrita sobre uma antiga tumba perto de Arles, emCarpentras. No epitáfio da campa, que chama a atençãode Van Gogh, encontramos aquilo que bem poderia

O conhecido livro “Cartas a Theo” é um textoepistolar cheio de paixão e de cores, formado pelascerca de 800 cartas dirigidas pelo pintor ao seu irmãoe confidente, Theo Van Gogh. Nelas, o autor fala doseu sofrimento, das esperanças e dos desesperos, dosachados artísticos, das inúmeras dificuldades económicase da terrível evolução da doença. Após virar a últimafolha do livro, uma ausência destacada chama a atençãoao leitor: em nenhuma destas cartas, até naquelasescritas nos piores momentos da vida pouco fácil donosso pintor, é possível encontrar uma única linha decrítica dirigida a outra pessoa. O comum leitor, humanoe sem perfil de santo, fica atónito ao aperceber-se que,

A Doença de Van GoghVan Gogh’s illness

Adrian Gramary

Médico PsiquiatraCentro HospitalarConde de Ferreira,Porto

Direcção:Adrian GramaryCentro HospitalarConde de FerreiraRua Costa Cabral, 12114200-227 PortoTel: 225 071 200Fax: 225 071 295e-mail: [email protected]

servir como epitáfio adequado para o próprio pintor: “Thebe, filhade Thelhui, sacerdotisa de Osiris, que nunca se queixou de ninguém”.Quase como arrastadas pela iluminação deste achado, começama brotar, espalhadas pelas cartas, outras variações sobre este “sofrersem se queixar”, que parece ter sido o leit-motiv da vida do pintor(vide supra).Um artigo de revisão recente no American Journal of Psychiatry(2002), intitulado “The Illness of Van Gogh”, e a publicação emportuguês do livro de Antonin Artaud “Van Gogh: o suicidadoda sociedade” (2004) são dois novos pretextos para abordarmoso enigma sem resposta do pintor.Dietrich Blumer, o autor do artigo do American Journal of Psychiatry,retoma o diagnóstico de epilepsia do lobo temporal defendidopelos médicos que acompanharam Van Gogh nos seus internamentospsiquiátricos no Hospital de Arles e no Hospital Psiquiátrico deSaint Rémy. Blumer defende que os sintomas de Van Gogh podemser explicados como crises parciais complexas no contexto deuma epilepsia do lobo temporal, provavelmente desencadeadaspelo abuso de absinto, bebida alcoólica feita com o extracto daplanta Artemisia absinthium, que tem uma substância com potentesefeitos epileptogénicos. Van Gogh iniciou-se nesta bebida - conhecidacomo a bebida verde da bohême literária francesa do século XIX- durante a sua estadia em Paris. O autor argumenta que asalterações do humor e os sintomas psicóticos podem ser explicadoscomo devidos, respectivamente, a uma perturbação disfórica inter-ictal e a episódios psicóticos provocados pela epilepsia.Inúmeros autores têm aportado teorias explicativas para a doençade Van Gogh. Assim, Jaspers, no seu livro “Génio artístico eloucura: Strindberg e Van Gogh”, foi um dos primeiros quedefendeu o diagnóstico de esquizofrenia, reconhecendo, no entanto,a ausência de sintomatologia deficitária característica desta doença.Outros autores têm defendido os diagnósticos de neurosífilis edoença bipolar (por exemplo, a Professora Kay Redfield Jamison,no seu conhecido livro “Touched with fire. Manic-DepressiveIllness and the Artistic Temperament”).O livro de Antonin Artaud foi escrito em 1947, partindo de umaperspectiva nitidamente anti-psiquiátrica, tentando fazer coincidira sua experiência pessoal com a do pintor holandês. Esta atitudeé compreensível tendo em conta o profundo traumatismo pessoalde Artaud, que esteve internado múltiplas vezes por episódiospsicóticos e sentia uma intensa rejeição para tudo o que dissesserespeito a médicos e tratamentos psiquiátricos. Apesar disto, olivro reserva, para o leitor interessado em Van Gogh, páginas debeleza deslumbrante: “Cardadas pelo prego de Van Gogh as paisagensmostram a carne hostil, o azedume das sinuosidades esventradas, aoponto de não sabermos que força estranha se encontra, por outro lado,a fazer metamorfoses”. (...) “Ao pintar, Van Gogh renunciou a contar

ResumoNo seu percurso experimental e de busca de espaços inovadores de expressão formal, a arte do passado século XX foi

testemunha de um interesse renovado por áreas artísticas marginais, entre as quais se situava a arte produzida pelos doentesmentais. Este interesse cristalizou na formação de duas colecções dedicadas à arte criada por doentes psiquiátricos: a Colecção

Prinzhorn e a Colecção de Art Brut. A primeira, actualmente em exposição permanente na Clínica Psiquiátrica da Universidadede Heidelberg, teve um papel de relevo no desenvolvimento da arte de vanguarda de entre-guerras graças à repercussão que teveno expressionismo e no surrealismo, através de autores destacados como Paul Klee e Max Ernst. A Colecção de Arte Brut, criadapor Jean Dubuffet nos anos 40, teve grande transcendência na arte do pós-guerra, em especial no informalismo europeu.

AbstractThe XXth century art witnessed an interest for outside artistic areas, which included the art created by mentally ill patients. This

interest led to the development of two collections dedicated to the art created by psychiatric patients: the Prinzhorn Collectionand the Art Brut Collection. The first one, in permanent exibition in Psychiatric Clinic of Heidelberg University, had a relevant

role in the vanguard art of between-wars period, through important artists like Paul Klee and Max Ernst. The Art BrutCollection, created by Jean Dubuffet at 40’s, was important in post-war period, specially in european informalism.

“Sinto que o supremamente artístico é amar as pessoas”.“Após a experiência dos ataques repetidos, convém-me a humildade. Assim pois: paciência. Sofrer sem se queixar é aúnica lição que se deve aprender nesta vida”.“Longe de me queixar, é justamente com a vida artística que me sinto quase tão feliz como poderia ser com a vida idealverdadeira, embora esta não seja propriamente a verdadeira.”

Vincent Van Gogh: Cartas a Theo

do Hospital de Saint-Rémy, foi usado durante muito tempo comoalvo para os dardos dos filhos do médico. Este visionário, rejeitadoe desprezado em vida, só conseguiu vender um quadro (“As vinhasvermelhas”, comprado pela filha de um pintor amigo) e, no entanto,manteve sempre uma fé inquebrantável e tenaz no seu destino evocação artística, desenvolvendo o seu esforço titânico em solidão,passando fome, vítima de uma terrível doença agravada pelosabusos de álcool e com o único apoio incondicional do irmão. “Dequalquer maneira, quer as pessoas gostem, quer não do que eu façoe de como o faço, não vejo outro caminho pela minha parte senão ode lutar com a natureza todo o tempo que seja necessário, para queela me confie o seu segredo” refere ao seu irmão, explicando estavocação inamovível. Às vezes, porém, a dura realidade impõe-see surgem as dúvidas: “e não posso fazer nada, se os meus quadrosnão se vendem; chegará um dia, no entanto, em que se verá que elesvalem mais do que o preço que nos custam as cores e a minha vida,em verdade muito pobre.” Com ironia trágica, num momento defraqueza, este mártir da arte confessa ao irmão: “não posso imaginaro pintor do futuro vivendo em modestos restaurantes, trabalhando comdentadura postiça e frequentando prostíbulos para a tropa”. Afinal,mais do que a discussão técnica sobre o diagnóstico e a obra genialdo artista, o que permanece e nos desconcerta é o mistério dosacrifício deste homem que, se calhar, com sobrados motivos reaispara se queixar, nos deixou a sua comovedora verdade nua: “sofrersem se queixar é a única lição que se deve aprender nesta vida”. Naaltura da acabar este artigo, ficam a pairar no ar as palavras dopsiquiatra espanhol Juan-António Vallejo-Nágera, na sua patobiografiasobre o pintor: “Também com «santo» resulta original; mas não estouseguro de que não o tenha sido. De um modo extravagante , levandoaté o absurdo a aplicação prática da virtude, mas atingindo estadimensão heróica, pelo menos em certas etapas da sua desconcertantebiografia”.O nosso holandês errante tinha, parafraseando o título do filmede Minnelli sobre a sua biografia, “luxúria pela vida”, e deixou-noscomo herança uma visão luminosa e exultante da natureza. A vozde Kirk Douglas, no fim do filme “Lust for life”, lembra-nos que,quando Van Gogh pensou na morte e tentou representa-laplasticamente - no quadro “Campo de trigo com um ceifeiro” -imaginou uma morte também luminosa, num campo de trigo,“ocorrendo à plena luz do dia, sob um sol que inunda tudo, com claridadede oiro puro…” Porque é que o pintor decidiu pôr fim aos seusdias nesse cenário, numa fase de criação máxima, quando a doençaparecia estar em remissão? Sentiu-se mais isolado após o nascimentodo primeiro filho do irmão? Sentiu-se mais uma vez fracassado noamor? Foi a angústia perante a inevitável recorrência da doença?Apesar dos nossos esforços para resolver o enigma de Van Gogh,este persistirá incontestável, como a sua obra.

O que iria tornar-se o primeiro mito da arte contemporâneanasceu no ano de 1853 em Zundert, numa pequena vila da regiãode Brabante, no sul da Holanda. Era o mais velho de uma famíliade seis irmãos, que se tinha especializado havia muito tempo emduas direcções: o comércio de pintura e a prática religiosa. Umantepassado do Vincent tinha sido bispo de Utrech e o seu própriopai e o avô eram pastores da Igreja Reformada.Após algumas tentativas falhadas para trabalhar em galerias dearte pertencentes a amigos da família, virou-se então para ospobres e necessitados, descobrindo a que considerava que seriaa sua verdadeira vocação: seria pastor como o seu pai e como oseu avô. Decidido a exercer o apostolado por conta própria, emDezembro de 1878 saiu para a região mineira de Borinage, o “paíspreto”, na Bélgica. Alojado no início em casa de um padeiro, nãotardou em mudar-se para uma choça. Lá dormia no chão, sobreum monte de palha. Após repartir à sua chegada toda a sua roupaentre aqueles desgraçados, vestia uma velha roupa de soldado eum boné estragado. Levava a vida dos mineiros e a sua cara estavasempre preta de carvão. Pregava, repartia o seu dinheiro e, de vezem quando, fazia desenhos. Tais excessos alarmaram o Comité deEvangelização de Bruxelas, que lhe retirou o nomeamento e osubsídio. Vincent persistiu lá, sem comida e sem abrigo, durante oterrível inverno, até que o seu pai veio resgata-lo.Na vida afectiva, o fracasso também será absoluto. As quatrotentativas de relacionamento estável terminaram de forma dramática.Em Londres, apaixonou-se pela filha da sua patroa e a rejeição porparte desta sumiu-o num total abatimento. Em Ethem, ficouapaixonado por Kee Vos, uma prima sua que tinha ficadorecentemente viúva e com um filho, que o rejeitou categoricamentee motivou a inimizade com o seu pai, que não vacilou em qualificara paixão como “incestuosa”. Ao verificar que lhe dedicava umaamor não correspondido, Vincent mostra o seu desespero mantendoa mão direita sobre a chama de um candeeiro, até cair inanimado.Em Haia, apaixona-se por uma prostituta chamada Sien, grávida ealcoólica. “Este inverno - explica ao irmão Theo - encontrei uma mulhergrávida, abandonada pelo pai da criança que levava no seu seio... cheiade frio, errava pelas ruas, tratando de ganhar o pão da maneira quepodes imaginar. Tomei-a como modelo e trabalhei com ela todo o inverno.Não pude dar-lhe um ordenado completo de modelo, mas paguei-lheas suas horas de pose, e pude salvá-la, a ela e à criança, da fome e dofrio, dividindo com ela o meu próprio pão.” Com Sien viveu numafelicidade progressivamente deteriorada, ponderando a ideia docasamento como forma de a recuperar. No limite das suas forçasfísicas, Vincent chamou o irmão Theo para o ajudar, o qual o afastoudaquela mulher irrecuperável, que se entregara de novo à bebida.Nuenen foi o cenário de uma nova - e falhada - relação sentimental:uma solteirona cândida, Margot Begeman, que tentou suicidar-se

histórias, mas o maravilhoso é este pintor apenas pintor, e mais pintordo que os outros pintores por ser aquele em que o material, a pintura,tem lugar de primeiro plano, com a cor apanhada como que espremidapara fora da bisnaga, com a marca, como que uns atrás dos outros,dos pêlos do pincel na cor, com a pincelada da pintura pintada, comoque distinta no seu próprio sol, com o i, a vírgula, o ponto da ponta dopróprio pincel enroscada na própria cor em gritaria, e que espirra emfaíscas, que o pintor macera e arrepanha por todos os lados”. O textode Artaud, livre de qualquer intuito de esclarecimento científico,tenta compreender o enigma do homem Vincent Van Gogh, quecontinua a interrogar-nos por trás dos seus quadros.

perante a oposição familiar ao seu matrimónio com odesencaminhado filho do pastor.A partir dessa altura, começa a frequentar prostíbulos, refúgioonde consegue obter o afecto feminino que parece que lhe énegado fora. Em Antuerpia recorre ao médico por causa de “certomal-estar ”, sendo-lhe diagnostica sífilis avançada.É pouco conhecido o autêntico motivo que permite explicar ainterminável quantidade de auto-retratos feitos por Van Gogh. Oruivo pintor decidiu comprar um espelho que lhe permitisse arealização dos auto-retratos, não por uma pulsão narcisista, senãodevido às imensas dificuldades que tinha para arranjar modelospara os seus retratos. Não podia pagar a profissionais e a maioriadas pessoas recusava-se a pousar pois achavam os seus retratosdistorcidos, quase como caricaturas, e até as prostitutas quefrequentava temiam que fizessem pouco delas e consideravam umsério risco para a sua reputação aqueles estranhos quadros. Umfuncionário do Hospital Psiquiátrico de Arles, não aceitou o retratoque tinha pintado para ele: “o que é que eu ia fazer com isto?”retorquiu. Após a sua morte, o retrato que tinha feito do psiquiatrado Hospital de Arles, Félix Rey, apareceu tapando um buraco nachaminé do seu quarto. Outro quadro, que ofereceu ao director

REFERÊNCIAS

Artaud A (2004): Van Gogh, o suicidado da sociedade. Assírio & Alvim.Lisboa.

Blumer D (2002): The Illness of Van Gogh. Am. J. Psychiatry; 159: 519-526.

Jamison KR (1993): Touched with fire. Manic-Depressive Illness and theArtistic Temperament. New York.

Jaspers K (2001): Genio artístico y locura. Strindberg y Van Gogh. ElAcantilado. Barcelona.

Vallejo Nágera JA (1996): Locos egregios. Planeta. Barcelona.

Van Gogh V (2004): Cartas a Theo. Paidós Estética. Barcelona.

Filmes:

Lust for life (1956)-Vincente Minnelli

Vincent e Theo (2000)-Robert Altman

Leituras / Readings Leituras / Readings Leituras / ReadingsLeituras / Readings

49

VOLUME VII Nº3 MAIO/JUNHO 2005VOLUME VII Nº3 MAIO/JUNHO 2005 VOLUME VII Nº3 MAIO/JUNHO 2005 VOLUME VII Nº3 MAIO/JUNHO 2005

Figura 3. Árvores no Jardim do Hospital Saint-Paul. Saint-Rémy,Outubro de 1889. Óleo sobre tela 90,2 x 73,3 cm. Los Angeles, The ArmandHammer, Museum of Art.

neste testamento dos últimos quinze anos da sua vida,este homem apaixonado , impulsi vo, inadaptad o eestranhamente bom (até à ingenuidade), para o seuescândalo, não encontra nenhum motivo de queixa emrelação aos seus contemporâneos. Numa segundaleitura das cartas, e à procura da chave para a resoluçãodeste enigma, na carta 582, encontramos o que poderiaser a resposta à nossa humana interrogação. No iníciodesta carta, o pintor refere ao irmão o encontro casual,folheando um jornal atrasado, da descrição da fraseescrita sobre uma antiga tumba perto de Arles, emCarpentras. No epitáfio da campa, que chama a atençãode Van Gogh, encontramos aquilo que bem poderia

O conhecido livro “Cartas a Theo” é um textoepistolar cheio de paixão e de cores, formado pelascerca de 800 cartas dirigidas pelo pintor ao seu irmãoe confidente, Theo Van Gogh. Nelas, o autor fala doseu sofrimento, das esperanças e dos desesperos, dosachados artísticos, das inúmeras dificuldades económicase da terrível evolução da doença. Após virar a últimafolha do livro, uma ausência destacada chama a atençãoao leitor: em nenhuma destas cartas, até naquelasescritas nos piores momentos da vida pouco fácil donosso pintor, é possível encontrar uma única linha decrítica dirigida a outra pessoa. O comum leitor, humanoe sem perfil de santo, fica atónito ao aperceber-se que,

A Doença de Van GoghVan Gogh’s illness

Adrian Gramary

Médico PsiquiatraCentro HospitalarConde de Ferreira,Porto

Direcção:Adrian GramaryCentro HospitalarConde de FerreiraRua Costa Cabral, 12114200-227 PortoTel: 225 071 200Fax: 225 071 295e-mail: [email protected]

servir como epitáfio adequado para o próprio pintor: “Thebe, filhade Thelhui, sacerdotisa de Osiris, que nunca se queixou de ninguém”.Quase como arrastadas pela iluminação deste achado, começama brotar, espalhadas pelas cartas, outras variações sobre este “sofrersem se queixar”, que parece ter sido o leit-motiv da vida do pintor(vide supra).Um artigo de revisão recente no American Journal of Psychiatry(2002), intitulado “The Illness of Van Gogh”, e a publicação emportuguês do livro de Antonin Artaud “Van Gogh: o suicidadoda sociedade” (2004) são dois novos pretextos para abordarmoso enigma sem resposta do pintor.Dietrich Blumer, o autor do artigo do American Journal of Psychiatry,retoma o diagnóstico de epilepsia do lobo temporal defendidopelos médicos que acompanharam Van Gogh nos seus internamentospsiquiátricos no Hospital de Arles e no Hospital Psiquiátrico deSaint Rémy. Blumer defende que os sintomas de Van Gogh podemser explicados como crises parciais complexas no contexto deuma epilepsia do lobo temporal, provavelmente desencadeadaspelo abuso de absinto, bebida alcoólica feita com o extracto daplanta Artemisia absinthium, que tem uma substância com potentesefeitos epileptogénicos. Van Gogh iniciou-se nesta bebida - conhecidacomo a bebida verde da bohême literária francesa do século XIX- durante a sua estadia em Paris. O autor argumenta que asalterações do humor e os sintomas psicóticos podem ser explicadoscomo devidos, respectivamente, a uma perturbação disfórica inter-ictal e a episódios psicóticos provocados pela epilepsia.Inúmeros autores têm aportado teorias explicativas para a doençade Van Gogh. Assim, Jaspers, no seu livro “Génio artístico eloucura: Strindberg e Van Gogh”, foi um dos primeiros quedefendeu o diagnóstico de esquizofrenia, reconhecendo, no entanto,a ausência de sintomatologia deficitária característica desta doença.Outros autores têm defendido os diagnósticos de neurosífilis edoença bipolar (por exemplo, a Professora Kay Redfield Jamison,no seu conhecido livro “Touched with fire. Manic-DepressiveIllness and the Artistic Temperament”).O livro de Antonin Artaud foi escrito em 1947, partindo de umaperspectiva nitidamente anti-psiquiátrica, tentando fazer coincidira sua experiência pessoal com a do pintor holandês. Esta atitudeé compreensível tendo em conta o profundo traumatismo pessoalde Artaud, que esteve internado múltiplas vezes por episódiospsicóticos e sentia uma intensa rejeição para tudo o que dissesserespeito a médicos e tratamentos psiquiátricos. Apesar disto, olivro reserva, para o leitor interessado em Van Gogh, páginas debeleza deslumbrante: “Cardadas pelo prego de Van Gogh as paisagensmostram a carne hostil, o azedume das sinuosidades esventradas, aoponto de não sabermos que força estranha se encontra, por outro lado,a fazer metamorfoses”. (...) “Ao pintar, Van Gogh renunciou a contar

ResumoNo seu percurso experimental e de busca de espaços inovadores de expressão formal, a arte do passado século XX foi

testemunha de um interesse renovado por áreas artísticas marginais, entre as quais se situava a arte produzida pelos doentesmentais. Este interesse cristalizou na formação de duas colecções dedicadas à arte criada por doentes psiquiátricos: a Colecção

Prinzhorn e a Colecção de Art Brut. A primeira, actualmente em exposição permanente na Clínica Psiquiátrica da Universidadede Heidelberg, teve um papel de relevo no desenvolvimento da arte de vanguarda de entre-guerras graças à repercussão que teveno expressionismo e no surrealismo, através de autores destacados como Paul Klee e Max Ernst. A Colecção de Arte Brut, criadapor Jean Dubuffet nos anos 40, teve grande transcendência na arte do pós-guerra, em especial no informalismo europeu.

AbstractThe XXth century art witnessed an interest for outside artistic areas, which included the art created by mentally ill patients. This

interest led to the development of two collections dedicated to the art created by psychiatric patients: the Prinzhorn Collectionand the Art Brut Collection. The first one, in permanent exibition in Psychiatric Clinic of Heidelberg University, had a relevant

role in the vanguard art of between-wars period, through important artists like Paul Klee and Max Ernst. The Art BrutCollection, created by Jean Dubuffet at 40’s, was important in post-war period, specially in european informalism.

“Sinto que o supremamente artístico é amar as pessoas”.“Após a experiência dos ataques repetidos, convém-me a humildade. Assim pois: paciência. Sofrer sem se queixar é aúnica lição que se deve aprender nesta vida”.“Longe de me queixar, é justamente com a vida artística que me sinto quase tão feliz como poderia ser com a vida idealverdadeira, embora esta não seja propriamente a verdadeira.”

Vincent Van Gogh: Cartas a Theo

do Hospital de Saint-Rémy, foi usado durante muito tempo comoalvo para os dardos dos filhos do médico. Este visionário, rejeitadoe desprezado em vida, só conseguiu vender um quadro (“As vinhasvermelhas”, comprado pela filha de um pintor amigo) e, no entanto,manteve sempre uma fé inquebrantável e tenaz no seu destino evocação artística, desenvolvendo o seu esforço titânico em solidão,passando fome, vítima de uma terrível doença agravada pelosabusos de álcool e com o único apoio incondicional do irmão. “Dequalquer maneira, quer as pessoas gostem, quer não do que eu façoe de como o faço, não vejo outro caminho pela minha parte senão ode lutar com a natureza todo o tempo que seja necessário, para queela me confie o seu segredo” refere ao seu irmão, explicando estavocação inamovível. Às vezes, porém, a dura realidade impõe-see surgem as dúvidas: “e não posso fazer nada, se os meus quadrosnão se vendem; chegará um dia, no entanto, em que se verá que elesvalem mais do que o preço que nos custam as cores e a minha vida,em verdade muito pobre.” Com ironia trágica, num momento defraqueza, este mártir da arte confessa ao irmão: “não posso imaginaro pintor do futuro vivendo em modestos restaurantes, trabalhando comdentadura postiça e frequentando prostíbulos para a tropa”. Afinal,mais do que a discussão técnica sobre o diagnóstico e a obra genialdo artista, o que permanece e nos desconcerta é o mistério dosacrifício deste homem que, se calhar, com sobrados motivos reaispara se queixar, nos deixou a sua comovedora verdade nua: “sofrersem se queixar é a única lição que se deve aprender nesta vida”. Naaltura da acabar este artigo, ficam a pairar no ar as palavras dopsiquiatra espanhol Juan-António Vallejo-Nágera, na sua patobiografiasobre o pintor: “Também com «santo» resulta original; mas não estouseguro de que não o tenha sido. De um modo extravagante , levandoaté o absurdo a aplicação prática da virtude, mas atingindo estadimensão heróica, pelo menos em certas etapas da sua desconcertantebiografia”.O nosso holandês errante tinha, parafraseando o título do filmede Minnelli sobre a sua biografia, “luxúria pela vida”, e deixou-noscomo herança uma visão luminosa e exultante da natureza. A vozde Kirk Douglas, no fim do filme “Lust for life”, lembra-nos que,quando Van Gogh pensou na morte e tentou representa-laplasticamente - no quadro “Campo de trigo com um ceifeiro” -imaginou uma morte também luminosa, num campo de trigo,“ocorrendo à plena luz do dia, sob um sol que inunda tudo, com claridadede oiro puro…” Porque é que o pintor decidiu pôr fim aos seusdias nesse cenário, numa fase de criação máxima, quando a doençaparecia estar em remissão? Sentiu-se mais isolado após o nascimentodo primeiro filho do irmão? Sentiu-se mais uma vez fracassado noamor? Foi a angústia perante a inevitável recorrência da doença?Apesar dos nossos esforços para resolver o enigma de Van Gogh,este persistirá incontestável, como a sua obra.

O que iria tornar-se o primeiro mito da arte contemporâneanasceu no ano de 1853 em Zundert, numa pequena vila da regiãode Brabante, no sul da Holanda. Era o mais velho de uma famíliade seis irmãos, que se tinha especializado havia muito tempo emduas direcções: o comércio de pintura e a prática religiosa. Umantepassado do Vincent tinha sido bispo de Utrech e o seu própriopai e o avô eram pastores da Igreja Reformada.Após algumas tentativas falhadas para trabalhar em galerias dearte pertencentes a amigos da família, virou-se então para ospobres e necessitados, descobrindo a que considerava que seriaa sua verdadeira vocação: seria pastor como o seu pai e como oseu avô. Decidido a exercer o apostolado por conta própria, emDezembro de 1878 saiu para a região mineira de Borinage, o “paíspreto”, na Bélgica. Alojado no início em casa de um padeiro, nãotardou em mudar-se para uma choça. Lá dormia no chão, sobreum monte de palha. Após repartir à sua chegada toda a sua roupaentre aqueles desgraçados, vestia uma velha roupa de soldado eum boné estragado. Levava a vida dos mineiros e a sua cara estavasempre preta de carvão. Pregava, repartia o seu dinheiro e, de vezem quando, fazia desenhos. Tais excessos alarmaram o Comité deEvangelização de Bruxelas, que lhe retirou o nomeamento e osubsídio. Vincent persistiu lá, sem comida e sem abrigo, durante oterrível inverno, até que o seu pai veio resgata-lo.Na vida afectiva, o fracasso também será absoluto. As quatrotentativas de relacionamento estável terminaram de forma dramática.Em Londres, apaixonou-se pela filha da sua patroa e a rejeição porparte desta sumiu-o num total abatimento. Em Ethem, ficouapaixonado por Kee Vos, uma prima sua que tinha ficadorecentemente viúva e com um filho, que o rejeitou categoricamentee motivou a inimizade com o seu pai, que não vacilou em qualificara paixão como “incestuosa”. Ao verificar que lhe dedicava umaamor não correspondido, Vincent mostra o seu desespero mantendoa mão direita sobre a chama de um candeeiro, até cair inanimado.Em Haia, apaixona-se por uma prostituta chamada Sien, grávida ealcoólica. “Este inverno - explica ao irmão Theo - encontrei uma mulhergrávida, abandonada pelo pai da criança que levava no seu seio... cheiade frio, errava pelas ruas, tratando de ganhar o pão da maneira quepodes imaginar. Tomei-a como modelo e trabalhei com ela todo o inverno.Não pude dar-lhe um ordenado completo de modelo, mas paguei-lheas suas horas de pose, e pude salvá-la, a ela e à criança, da fome e dofrio, dividindo com ela o meu próprio pão.” Com Sien viveu numafelicidade progressivamente deteriorada, ponderando a ideia docasamento como forma de a recuperar. No limite das suas forçasfísicas, Vincent chamou o irmão Theo para o ajudar, o qual o afastoudaquela mulher irrecuperável, que se entregara de novo à bebida.Nuenen foi o cenário de uma nova - e falhada - relação sentimental:uma solteirona cândida, Margot Begeman, que tentou suicidar-se

histórias, mas o maravilhoso é este pintor apenas pintor, e mais pintordo que os outros pintores por ser aquele em que o material, a pintura,tem lugar de primeiro plano, com a cor apanhada como que espremidapara fora da bisnaga, com a marca, como que uns atrás dos outros,dos pêlos do pincel na cor, com a pincelada da pintura pintada, comoque distinta no seu próprio sol, com o i, a vírgula, o ponto da ponta dopróprio pincel enroscada na própria cor em gritaria, e que espirra emfaíscas, que o pintor macera e arrepanha por todos os lados”. O textode Artaud, livre de qualquer intuito de esclarecimento científico,tenta compreender o enigma do homem Vincent Van Gogh, quecontinua a interrogar-nos por trás dos seus quadros.

perante a oposição familiar ao seu matrimónio com odesencaminhado filho do pastor.A partir dessa altura, começa a frequentar prostíbulos, refúgioonde consegue obter o afecto feminino que parece que lhe énegado fora. Em Antuerpia recorre ao médico por causa de “certomal-estar ”, sendo-lhe diagnostica sífilis avançada.É pouco conhecido o autêntico motivo que permite explicar ainterminável quantidade de auto-retratos feitos por Van Gogh. Oruivo pintor decidiu comprar um espelho que lhe permitisse arealização dos auto-retratos, não por uma pulsão narcisista, senãodevido às imensas dificuldades que tinha para arranjar modelospara os seus retratos. Não podia pagar a profissionais e a maioriadas pessoas recusava-se a pousar pois achavam os seus retratosdistorcidos, quase como caricaturas, e até as prostitutas quefrequentava temiam que fizessem pouco delas e consideravam umsério risco para a sua reputação aqueles estranhos quadros. Umfuncionário do Hospital Psiquiátrico de Arles, não aceitou o retratoque tinha pintado para ele: “o que é que eu ia fazer com isto?”retorquiu. Após a sua morte, o retrato que tinha feito do psiquiatrado Hospital de Arles, Félix Rey, apareceu tapando um buraco nachaminé do seu quarto. Outro quadro, que ofereceu ao director

REFERÊNCIAS

Artaud A (2004): Van Gogh, o suicidado da sociedade. Assírio & Alvim.Lisboa.

Blumer D (2002): The Illness of Van Gogh. Am. J. Psychiatry; 159: 519-526.

Jamison KR (1993): Touched with fire. Manic-Depressive Illness and theArtistic Temperament. New York.

Jaspers K (2001): Genio artístico y locura. Strindberg y Van Gogh. ElAcantilado. Barcelona.

Vallejo Nágera JA (1996): Locos egregios. Planeta. Barcelona.

Van Gogh V (2004): Cartas a Theo. Paidós Estética. Barcelona.

Filmes:

Lust for life (1956)-Vincente Minnelli

Vincent e Theo (2000)-Robert Altman

Leituras / Readings Leituras / Readings Leituras / ReadingsLeituras / Readings

50

VOLUME VII Nº3 MAIO/JUNHO 2005VOLUME VII Nº3 MAIO/JUNHO 2005 VOLUME VII Nº3 MAIO/JUNHO 2005 VOLUME VII Nº3 MAIO/JUNHO 2005

neste testamento dos últimos quinze anos da sua vida,este homem apaixonado , impulsi vo, inadaptad o eestranhamente bom (até à ingenuidade), para o seuescândalo, não encontra nenhum motivo de queixa emrelação aos seus contemporâneos. Numa segundaleitura das cartas, e à procura da chave para a resoluçãodeste enigma, na carta 582, encontramos o que poderiaser a resposta à nossa humana interrogação. No iníciodesta carta, o pintor refere ao irmão o encontro casual,folheando um jornal atrasado, da descrição da fraseescrita sobre uma antiga tumba perto de Arles, emCarpentras. No epitáfio da campa, que chama a atençãode Van Gogh, encontramos aquilo que bem poderia

O conhecido livro “Cartas a Theo” é um textoepistolar cheio de paixão e de cores, formado pelascerca de 800 cartas dirigidas pelo pintor ao seu irmãoe confidente, Theo Van Gogh. Nelas, o autor fala doseu sofrimento, das esperanças e dos desesperos, dosachados artísticos, das inúmeras dificuldades económicase da terrível evolução da doença. Após virar a últimafolha do livro, uma ausência destacada chama a atençãoao leitor: em nenhuma destas cartas, até naquelasescritas nos piores momentos da vida pouco fácil donosso pintor, é possível encontrar uma única linha decrítica dirigida a outra pessoa. O comum leitor, humanoe sem perfil de santo, fica atónito ao aperceber-se que,

A Doença de Van GoghVan Gogh’s illness

Adrian Gramary

Médico PsiquiatraCentro HospitalarConde de Ferreira,Porto

Direcção:Adrian GramaryCentro HospitalarConde de FerreiraRua Costa Cabral, 12114200-227 PortoTel: 225 071 200Fax: 225 071 295e-mail: [email protected]

servir como epitáfio adequado para o próprio pintor: “Thebe, filhade Thelhui, sacerdotisa de Osiris, que nunca se queixou de ninguém”.Quase como arrastadas pela iluminação deste achado, começama brotar, espalhadas pelas cartas, outras variações sobre este “sofrersem se queixar”, que parece ter sido o leit-motiv da vida do pintor(vide supra).Um artigo de revisão recente no American Journal of Psychiatry(2002), intitulado “The Illness of Van Gogh”, e a publicação emportuguês do livro de Antonin Artaud “Van Gogh: o suicidadoda sociedade” (2004) são dois novos pretextos para abordarmoso enigma sem resposta do pintor.Dietrich Blumer, o autor do artigo do American Journal of Psychiatry,retoma o diagnóstico de epilepsia do lobo temporal defendidopelos médicos que acompanharam Van Gogh nos seus internamentospsiquiátricos no Hospital de Arles e no Hospital Psiquiátrico deSaint Rémy. Blumer defende que os sintomas de Van Gogh podemser explicados como crises parciais complexas no contexto deuma epilepsia do lobo temporal, provavelmente desencadeadaspelo abuso de absinto, bebida alcoólica feita com o extracto daplanta Artemisia absinthium, que tem uma substância com potentesefeitos epileptogénicos. Van Gogh iniciou-se nesta bebida - conhecidacomo a bebida verde da bohême literária francesa do século XIX- durante a sua estadia em Paris. O autor argumenta que asalterações do humor e os sintomas psicóticos podem ser explicadoscomo devidos, respectivamente, a uma perturbação disfórica inter-ictal e a episódios psicóticos provocados pela epilepsia.Inúmeros autores têm aportado teorias explicativas para a doençade Van Gogh. Assim, Jaspers, no seu livro “Génio artístico eloucura: Strindberg e Van Gogh”, foi um dos primeiros quedefendeu o diagnóstico de esquizofrenia, reconhecendo, no entanto,a ausência de sintomatologia deficitária característica desta doença.Outros autores têm defendido os diagnósticos de neurosífilis edoença bipolar (por exemplo, a Professora Kay Redfield Jamison,no seu conhecido livro “Touched with fire. Manic-DepressiveIllness and the Artistic Temperament”).O livro de Antonin Artaud foi escrito em 1947, partindo de umaperspectiva nitidamente anti-psiquiátrica, tentando fazer coincidira sua experiência pessoal com a do pintor holandês. Esta atitudeé compreensível tendo em conta o profundo traumatismo pessoalde Artaud, que esteve internado múltiplas vezes por episódiospsicóticos e sentia uma intensa rejeição para tudo o que dissesserespeito a médicos e tratamentos psiquiátricos. Apesar disto, olivro reserva, para o leitor interessado em Van Gogh, páginas debeleza deslumbrante: “Cardadas pelo prego de Van Gogh as paisagensmostram a carne hostil, o azedume das sinuosidades esventradas, aoponto de não sabermos que força estranha se encontra, por outro lado,a fazer metamorfoses”. (...) “Ao pintar, Van Gogh renunciou a contar

ResumoNo seu percurso experimental e de busca de espaços inovadores de expressão formal, a arte do passado século XX foi

testemunha de um interesse renovado por áreas artísticas marginais, entre as quais se situava a arte produzida pelos doentesmentais. Este interesse cristalizou na formação de duas colecções dedicadas à arte criada por doentes psiquiátricos: a Colecção

Prinzhorn e a Colecção de Art Brut. A primeira, actualmente em exposição permanente na Clínica Psiquiátrica da Universidadede Heidelberg, teve um papel de relevo no desenvolvimento da arte de vanguarda de entre-guerras graças à repercussão que teveno expressionismo e no surrealismo, através de autores destacados como Paul Klee e Max Ernst. A Colecção de Arte Brut, criadapor Jean Dubuffet nos anos 40, teve grande transcendência na arte do pós-guerra, em especial no informalismo europeu.

AbstractThe XXth century art witnessed an interest for outside artistic areas, which included the art created by mentally ill patients. This

interest led to the development of two collections dedicated to the art created by psychiatric patients: the Prinzhorn Collectionand the Art Brut Collection. The first one, in permanent exibition in Psychiatric Clinic of Heidelberg University, had a relevant

role in the vanguard art of between-wars period, through important artists like Paul Klee and Max Ernst. The Art BrutCollection, created by Jean Dubuffet at 40’s, was important in post-war period, specially in european informalism.

“Sinto que o supremamente artístico é amar as pessoas”.“Após a experiência dos ataques repetidos, convém-me a humildade. Assim pois: paciência. Sofrer sem se queixar é aúnica lição que se deve aprender nesta vida”.“Longe de me queixar, é justamente com a vida artística que me sinto quase tão feliz como poderia ser com a vida idealverdadeira, embora esta não seja propriamente a verdadeira.”

Vincent Van Gogh: Cartas a Theo

do Hospital de Saint-Rémy, foi usado durante muito tempo comoalvo para os dardos dos filhos do médico. Este visionário, rejeitadoe desprezado em vida, só conseguiu vender um quadro (“As vinhasvermelhas”, comprado pela filha de um pintor amigo) e, no entanto,manteve sempre uma fé inquebrantável e tenaz no seu destino evocação artística, desenvolvendo o seu esforço titânico em solidão,passando fome, vítima de uma terrível doença agravada pelosabusos de álcool e com o único apoio incondicional do irmão. “Dequalquer maneira, quer as pessoas gostem, quer não do que eu façoe de como o faço, não vejo outro caminho pela minha parte senão ode lutar com a natureza todo o tempo que seja necessário, para queela me confie o seu segredo” refere ao seu irmão, explicando estavocação inamovível. Às vezes, porém, a dura realidade impõe-see surgem as dúvidas: “e não posso fazer nada, se os meus quadrosnão se vendem; chegará um dia, no entanto, em que se verá que elesvalem mais do que o preço que nos custam as cores e a minha vida,em verdade muito pobre.” Com ironia trágica, num momento defraqueza, este mártir da arte confessa ao irmão: “não posso imaginaro pintor do futuro vivendo em modestos restaurantes, trabalhando comdentadura postiça e frequentando prostíbulos para a tropa”. Afinal,mais do que a discussão técnica sobre o diagnóstico e a obra genialdo artista, o que permanece e nos desconcerta é o mistério dosacrifício deste homem que, se calhar, com sobrados motivos reaispara se queixar, nos deixou a sua comovedora verdade nua: “sofrersem se queixar é a única lição que se deve aprender nesta vida”. Naaltura da acabar este artigo, ficam a pairar no ar as palavras dopsiquiatra espanhol Juan-António Vallejo-Nágera, na sua patobiografiasobre o pintor: “Também com «santo» resulta original; mas não estouseguro de que não o tenha sido. De um modo extravagante , levandoaté o absurdo a aplicação prática da virtude, mas atingindo estadimensão heróica, pelo menos em certas etapas da sua desconcertantebiografia”.O nosso holandês errante tinha, parafraseando o título do filmede Minnelli sobre a sua biografia, “luxúria pela vida”, e deixou-noscomo herança uma visão luminosa e exultante da natureza. A vozde Kirk Douglas, no fim do filme “Lust for life”, lembra-nos que,quando Van Gogh pensou na morte e tentou representa-laplasticamente - no quadro “Campo de trigo com um ceifeiro” -imaginou uma morte também luminosa, num campo de trigo,“ocorrendo à plena luz do dia, sob um sol que inunda tudo, com claridadede oiro puro…” Porque é que o pintor decidiu pôr fim aos seusdias nesse cenário, numa fase de criação máxima, quando a doençaparecia estar em remissão? Sentiu-se mais isolado após o nascimentodo primeiro filho do irmão? Sentiu-se mais uma vez fracassado noamor? Foi a angústia perante a inevitável recorrência da doença?Apesar dos nossos esforços para resolver o enigma de Van Gogh,este persistirá incontestável, como a sua obra.

O que iria tornar-se o primeiro mito da arte contemporâneanasceu no ano de 1853 em Zundert, numa pequena vila da regiãode Brabante, no sul da Holanda. Era o mais velho de uma famíliade seis irmãos, que se tinha especializado havia muito tempo emduas direcções: o comércio de pintura e a prática religiosa. Umantepassado do Vincent tinha sido bispo de Utrech e o seu própriopai e o avô eram pastores da Igreja Reformada.Após algumas tentativas falhadas para trabalhar em galerias dearte pertencentes a amigos da família, virou-se então para ospobres e necessitados, descobrindo a que considerava que seriaa sua verdadeira vocação: seria pastor como o seu pai e como oseu avô. Decidido a exercer o apostolado por conta própria, emDezembro de 1878 saiu para a região mineira de Borinage, o “paíspreto”, na Bélgica. Alojado no início em casa de um padeiro, nãotardou em mudar-se para uma choça. Lá dormia no chão, sobreum monte de palha. Após repartir à sua chegada toda a sua roupaentre aqueles desgraçados, vestia uma velha roupa de soldado eum boné estragado. Levava a vida dos mineiros e a sua cara estavasempre preta de carvão. Pregava, repartia o seu dinheiro e, de vezem quando, fazia desenhos. Tais excessos alarmaram o Comité deEvangelização de Bruxelas, que lhe retirou o nomeamento e osubsídio. Vincent persistiu lá, sem comida e sem abrigo, durante oterrível inverno, até que o seu pai veio resgata-lo.Na vida afectiva, o fracasso também será absoluto. As quatrotentativas de relacionamento estável terminaram de forma dramática.Em Londres, apaixonou-se pela filha da sua patroa e a rejeição porparte desta sumiu-o num total abatimento . Em Ethem, ficouapa ixonad o por Kee Vos, uma prima sua que tinha ficadorecentemente viúva e com um filho, que o rejeitou categoricamentee motivou a inimizade com o seu pai, que não vacilou em qualificara paixão como “incestuosa”. Ao verificar que lhe dedicava umaamor não correspondido, Vincent mostra o seu desespero mantendoa mão direita sobre a chama de um candeeiro, até cair inanimado.Em Haia, apaixona-se por uma prostituta chamada Sien, grávida ealcoólica. “Este inverno - explica ao irmão Theo - encontrei uma mulhergrávida, abandonada pelo pai da criança que levava no seu seio... cheiade frio, errava pelas ruas, tratando de ganhar o pão da maneira quepodes imaginar. Tomei-a como modelo e trabalhei com ela todo o inverno.Não pude dar-lhe um ordenado completo de modelo, mas paguei-lheas suas horas de pose, e pude salvá-la, a ela e à criança, da fome e dofrio, dividindo com ela o meu próprio pão.” Com Sien viveu numafelicidade progressivamente deteriorada, ponderando a ideia docasamento como forma de a recuperar. No limite das suas forçasfísicas, Vincent chamou o irmão Theo para o ajudar, o qual o afastoudaquela mulher irrecuperável, que se entregara de novo à bebida.Nuenen foi o cenário de uma nova - e falhada - relação sentimental:uma solteirona cândida, Margot Begeman, que tentou suicidar-se

histórias, mas o maravilhoso é este pintor apenas pintor, e mais pintordo que os outros pintores por ser aquele em que o material, a pintura,tem lugar de primeiro plano, com a cor apanhada como que espremidapara fora da bisnaga, com a marca, como que uns atrás dos outros,dos pêlos do pincel na cor, com a pincelada da pintura pintada, comoque distinta no seu próprio sol, com o i, a vírgula, o ponto da ponta dopróprio pincel enroscada na própria cor em gritaria, e que espirra emfaíscas, que o pintor macera e arrepanha por todos os lados”. O textode Artaud, livre de qualquer intuito de esclarecimento científico,tenta compreender o enigma do homem Vincent Van Gogh, quecontinua a interrogar-nos por trás dos seus quadros.

perante a opos ição familiar ao seu matrimónio com odesencaminhado filho do pastor.A partir dessa altura, começa a frequentar prostíbulos, refúgioonde consegue obter o afecto feminino que parece que lhe énegado fora. Em Antuerpia recorre ao médico por causa de “certomal-estar ”, sendo-lhe diagnostica sífilis avançada.É pouco conhecido o autêntico motivo que permite explicar ainterminável quantidade de auto-retratos feitos por Van Gogh. Oruivo pintor decidiu comprar um espelho que lhe permitisse arealização dos auto-retratos, não por uma pulsão narcisista, senãodevido às imensas dificuldades que tinha para arranjar modelospara os seus retratos. Não podia pagar a profissionais e a maioriadas pessoas recusava-se a pousar pois achavam os seus retratosdistorcidos, quase como caricatur as, e até as prostitutas quefrequentava temiam que fizessem pouco delas e consideravam umsério risco para a sua reputação aqueles estranhos quadros. Umfuncionário do Hospital Psiquiátrico de Arles, não aceitou o retratoque tinha pintado para ele: “o que é que eu ia fazer com isto?”retorquiu. Após a sua morte, o retrato que tinha feito do psiquiatrado Hospital de Arles, Félix Rey, apareceu tapando um buraco nachaminé do seu quarto. Outro quadro, que ofereceu ao director

REFERÊNCIAS

Artaud A (2004): Van Gogh, o suicidado da sociedade. Assírio & Alvim.Lisboa.

Blumer D (2002): The Illness of Van Gogh. Am. J. Psychiatry; 159: 519-526.

Jamison KR (1993): Touched with fire. Manic-Depressive Illness and theArtistic Temperament. New York.

Jaspers K (2001): Genio artístico y locura. Strindberg y Van Gogh. ElAcantilado. Barcelona.

Vallejo Nágera JA (1996): Locos egregios. Planeta. Barcelona.

Van Gogh V (2004): Cartas a Theo. Paidós Estética. Barcelona.

Filmes:

Lust for life (1956)-Vincente Minnelli

Vincent e Theo (2000)-Robert Altman