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O mundo impossível de Stefan Zweig [Parte 2]
Uma nova vida em Salzburg
Em fevereiro de 1920, Zweig, que por alguns anos vinha mantendo um
relacionamento amoroso a respeito do qual somente seu irmão e amigos mais íntimos
sabiam, casou-se com Friderike von Winternitz. Junto com as duas filhas do primeiro
casamento de Friderike, Alexia e Susanna, mudaram-se para uma casa que ele havia
adquirido em Salzburg, cidade a aproximadamente 300 km a oeste de Viena.
Friderike von Winternitz (1882-1971)
Fotógrafo não identificado
Fonte: www.commons.wikimedia.org
A casa da Rua Kapuzinenberg, 5 em Salzburg, Áustria
Neste endereço Stefan Zweig viveu até sua partida para o exílio em 1934.
Fotógrafo não identificado, s/d
Fonte: www.flickr.com
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Friderike e Stefan em sua casa em Salzburg
Fotógrafo: Ludwig Boedecker, 1922.
Arquivo de Ullstein Bild
Fonte: www.gettyimages.com
Nos anos 1920, Zweig havia-se tornado um fenômeno editorial, não somente em
alemão, mas também nas mais diversas línguas como o inglês, espanhol búlgaro,
finlandês, armênio, chinês, entre outras. Tornou-se inclusive o autor mais traduzido no
mundo. Suas peças de teatro assim, como alguns filmes baseados em suas obras também
alcançaram enorme sucesso de público e crítica. Uma das mais importantes, Jeremias,
drama escrito nos últimos anos da Grande Guerra, estava entre suas obras preferidas e
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relata a história do profeta bíblico; era também um manifesto contra os horrores da
guerra.1 Sua produção foi também levada aos palcos de diversos países.
Desenho para o poster da peça Jeremias, Teatro Ohel, Tel-Aviv, Palestina 1929
Criado Arieh-El Hanani2
Fonte: The National Library of Israel
www.gizra.github.io
A Europa do pós-Primeira Guerra, porém, não era a mesma. Por todo o
continente, de maneira crescente, as crises do período encontravam respostas em
movimentos que anos mais tarde aos poucos, de país em país, iam conduzindo à
instauração de regimes totalitários. A Grande Depressão que se sucedeu à queda da
bolsa de valores de Nova York, atingiu duramente os países europeus com graves
efeitos na situação social e econômica o que aumentou o choque das diferentes forças da
sociedade gerando ondas sísmicas.
A mãe de todos os cataclismos, porém, teria seu início em janeiro de 1933, com
a chegada de Hitler ao poder na Alemanha. Assim que assumiu, seu governo começou
1 ZWEIG. The World of Yesterday. p. ... Como narra Alberto Dines em sua biografia de Stefan Zweig,
Morte no Paraíso, não foi por acaso que o Rabino Lemmle escolheu um fragmento desta obra para a
elegia lida no sepultamento de Stefan Zweig e sua esposa Lotte, em Petrópolis. 2 O arquiteto, designer e artista plástico Arieh El-Hanani (Sapoznikov), autor do pôster de divulgação da
peça de Zweig na Palestina em 1929, foi um importante nome na vanguarda artística judaica na Rússia e
posteriormente na Palestina para onde se mudou em 1922. In, Manor, Dalia. Art in Zion: The Genesis of
Modern National Art in Jewish Palestine. London: Routledge Curzon, 2005, p. 234.
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rapidamente a mover-se na direção da instauração de um regime totalitário. O discurso
antissemita do nazismo ecoava como verdade em muitos ouvidos. Na escalada desse
processo que culminaria no genocídio de 6 milhões de judeus, as primeiras ações do
nazismo, no entanto, foram justamente contra os intelectuais.
“Onde quer que queimem livros, homens também, no fim, são queimados”3
Imediatamente à subida ao poder do nazismo, Joseph Goebbels, o Ministro de
Propaganda e Esclarecimento de Hitler, iniciou o processo de alinhar as artes e a cultura
à ideologia nazista. Essa política, denominada Gleischaltung, tinha como objetivo
“limpar” todas as instituições e organizações culturais de todo elemento “não-alemão”,
fossem eles pessoas ou produções artísticas ou literárias, consideradas “degeneradas”.
Para alcançar seus objetivos, Goebbels teve como forte aliada a Associação de
Estudantes Alemães Nacional Socialistas [Nationalsozialistischer Deutscher
Studentenbund, NSDStB]. Em 6 de abril de 1933, a Associação proclamou uma ação
nacional contra o que chamou de “espírito não-alemão”. Entre as dozes “teses”
apontadas por eles em seu manifesto, estavam o ataque ao “intelectualismo judeu” e as
ações propostas descritas como resposta à “campanha do judaísmo mundial contra a
Alemanha”.4
Na noite de 10 de maio de 1933, ou seja, pouco mais de três meses depois do
início do novo governo, dezenas de milhares de estudantes em 34 cidades universitárias
alemãs, reuniram-se para iniciar seu macabro ritual queimando milhares de livros em
fogueiras localizadas em pontos centrais.5 Em Berlin, por volta de 40.000 estudantes
universitários reuniram-se na Opernplatz, para, além de queimar livros, ouvir o discurso
de líderes estudantis, professores, reitores e, principalmente, do próprio Joseph
Goebbels:
Meus colegas estudantes, homens e mulheres alemães, a era de
exagerado intelectualismo judaico chega agora a seu fim. O triunfo da
revolução limpou o caminho para a via alemã; e o futuro homem alemão
não será somente um homem de livros, mas também um homem de
caráter e é para essa finalidade que queremos educar vocês. Para que
ainda jovens tenham a coragem de olhar diretamente nos olhos
impiedosos da vida. Para repudiar o medo da morte e assim ganhar
novamente o respeito pela morte. Essa é a missão dos jovens e vocês
fazem bem a esta hora, confiar às chamas o lixo intelectual do passado.6
Os autores judeus eram, portanto, os principais escolhidos para a orgia. Assim,
como um dos mais famosos autores contemporâneos e também judeu, inúmeros
3 “Dort, wo man Bücher/Verbrennt, verbrennt man auch am Ende Menschen”. Fragmento da tragédia
Almansor, escrita em 1823 por Heinrich Heine (1797-1856). In, KNOWLES, Elizabeth (ed.) The Oxford
Dictionary of Quotations. Oxford: Oxford University Press, 5ª ed. 1999, p. 747 4 Fonte: United States Holocaust Memorial Museum (USHMM), Book Burning. Disponível em:
https://www.ushmm.org/wlc/en/article.php?ModuleId=10005852 5 Ibidem. 6 Discurso de Joseph Goebbels traduzido a partir de vídeo disponível em:
https://www.ushmm.org/wlc/en/media_fi.php?ModuleId=10005852&MediaId=158
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exemplares de todos os títulos da vasta lista que Stefan Zweig havia escrito ao longo das
décadas foram arremessados às várias fogueiras que queimaram por toda a Alemanha
naquela noite.
Multidão reunida na Opernplatz para a queima de livros, Berlim, 10 de maio de 1933
Fotografia: World Wide Photo
Fonte: United States Holocaust Memorial Museum (USHMM)
www.ushmm.org
Estudantes e membros da AS carregam livros “não-alemães”, Berlim, 10 de maio de 1933
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Fotógrafo não identificado.
National Archives and Records Administration, College Park, Md.
Fonte: United States Holocaust Memorial Museum (USHMM)
www.ushmm.org
Joseph Goebbels discursa para a multidão reunida para a queima de livros
Opernplatz, Berlim, Alemanha, 10 de maio de 1933
National Archives and Records Administration, College Park, Md.
Fonte: United States Holocaust Memorial Museum (USHMM)
www.ushmm.org
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Membros da AS e estudantes da Universidade de Frankfurt transportam livros em carroças
puxadas por bois, Frankfurt-am-Main, 10 de maio de 1933
Fotografia: World Wide Photo
Fonte: United States Holocaust Memorial Museum (USHMM)
www.ushmm.org
Principais cidades alemãs onde houve queima de livros em 10 de maio de 1933
Fonte: United States Holocaust Memorial Museum (USHMM)
www.ushmm.org
Restos de exemplar do livro de Stefan Zweig, Amok escrito e publicado em 1922
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Este exemplar, parcialmente destruído durante a queima de livros em 1933, foi apresentado em
2012 no evento “Lesen gegen das Vergessen” (Ler contra o esquecimento) realizado todos os
anos, no dia 10 de maio, na mesma Opernplatz (hoje denominada Bebelplatz) em Berlim.
Fotografia: Fraktion Die Linke im Bundestag
Fonte: www.commons.wikimedia.org
Beate Klarsfeld com exemplar do livro Amok de Stefan Zweig, Berlim, 2012
Beate Klarsfeld, que dedicou sua vida, junto com seu marido, a perseguir e levar para a justiça
perpetradores nazistas, participou da edição de 2012 do evento “Lesen gegen das Vergessen” e
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foi fotografada com o exemplar do livro de Stefan Zweig em frente ao monumento que
rememora a queima de livros organizada em 10 de maio de 1933.
Neste memorial, abaixo da placa de vidro, podem-se ver prateleiras brancas, vazias.
Fotografia: Fraktion Die Linke im Bundestag
Fonte: www.commons.wikimedia.org
De cidadão internacional a judeu Zweig
Os ataques aos intelectuais judeus não se limitaram àquele infame episódio de
10 de maio de 1933. No caso de Zweig, sua projeção pública converteu-o em alvo de
ataques também por parte da imprensa, mediante críticas e escândalos. Ainda em
novembro de 1933, Anton Kippenberg, seu editor alemão proprietário da Insel Verlag,
recebeu uma carta da Associações de Livreiros alemães com uma lista confidencial de
livros que seriam imediatamente retirados de circulação. Entre eles, nada menos do que
quinze títulos de Stefan Zweig.7
Apesar de todos esses sinais claros, e enquanto muitos de seus amigos das
letras começavam a partir para o exílio, Zweig considerava que, de alguma maneira,
ainda estava a salvo. Continuava suas viagens pela Europa, embora evitasse a
Alemanha. Mais tarde ele iniciaria inclusive uma parceria com Richard Strauss - quem
havia sido nomeado por Goebbels à presidência do Conselho de Música do Estado8 -
para o libreto de uma ópera, segundo o próprio Zweig, “o maior e mais famoso
compositor vivo da nação alemã”.
No entanto, em fevereiro de 1934, a ameaça ficou visível, como ele mesmo
relata em suas memórias:
Eu regressara à tarde de Viena para minha casa em Salzburg, encontrara
pilhas de provas tipográficas e de cartas e trabalhara até tarde da noite para pôr
tudo em dia. Na manhã seguinte, eu ainda estava na cama, alguém bateu à porta:
nosso bravo velho criado, que nunca me acordava a não ser que na véspera eu
tivesse determinado expressamente um horário, entrou com o rosto perturbado.
Pediu-me que descesse, pois tinham chegado homens da polícia que desejavam
falar comigo. Fiquei surpreso, vesti meu robe e desci. Ali havia quatro policiais
à paisana que declararam ter ordens de revistar a casa e que eu entregasse logo
todas as armas da Liga de Defesa Republicana que estavam escondidas ali.
(...) Os quatro detetives passearam pela casa, abriram alguns armários,
bateram em algumas paredes, mas pelo modo desleixado ficou logo claro para
mim que aquela investigação era pro forma e que nenhum deles acreditava
seriamente em um depósito de armas naquela casa. Depois de meia hora deram
a busca por terminada e desapareceram.
(...) A partir daquela visita policial, me desgostei da minha casa, e algo
me dizia que tais episódios seriam apenas um tímido prelúdio de intervenções
de alcance muito mais amplo. Na mesma noite comecei a arrumar meus
principais papeis, decidido a viver para sempre no exterior (...).9
7 MATUCHECK, Three lives, p. 256 8 Em 1935 Richard Strauss (1864 – 1949) acabou tendo que renunciar ao seu cargo devido a essa parceria
com Zweig. Embora ao longo de sua carreira tivesse tido parcerias com proeminentes intelectuais judeus,
sua colaboração com figuras do nazismo fez com que tenha sido desde então considerado como uma
figura ambígua e polêmica, visto por muitos, como por exemplo Hannah Arendt, como um antissemita
(ver The Jewish Writings, p. 325). Até 1998, o governo de Israel manteve um embargo às obras de
Strauss. 9 Zweig pressentira corretamente. A partir de 1934 começariam de forma sistemática as investidas de
Hitler para anexar a Áustria. Em 25 julho do mesmo ano, uma tentativa de golpe por parte de nazistas
austríacos vitimou fatalmente o chanceler austríaco Engelbert Dolfuss (1892 – 1934). Após o episódio,
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Stefan Zweig decidiu então partir para Londres onde fixou residência em um
apartamento de um prédio recém construído na Rua Hallam, 49.10 A ruptura em relação
à Áustria não seria ainda definitiva já que ele permaneceu em trânsito entre, Londres e
Viena. No entanto, o mecanismo externo que iria transformar o Zweig cosmopolita no
“judeu Zweig”, no dizer de Hannah Arendt11, havia entrado em ação. Não era um
mecanismo desconhecido; já havia ocorrido inúmeras vezes na longa história do
antissemitismo. Como afirmou Hannah Arendt em seu livro Origens do Totalitarismo,
em relação ao caso Dreyfus, ocorrido na França no final do século XIX, este “já havia
mostrado ao mundo que, em cada judeu nobre e multimilionário, havia ainda algo do
antigo pária sem nação, para quem os direitos humanos não existem, e de quem a
sociedade teria prazer de retirar os seus privilégios12.” E prossegue mais adiante:
“Precisamente por haverem representado papel tão insignificante no desenvolvimento
político dos países em que viviam, a igualdade jurídica transformou-se, para eles, num
fetiche, parecendo-lhes constituir a base indiscutível de sua eterna segurança.13
foi declarada lei marcial na Áustria, e o novo governo instaurado liderado pelo chanceler Kurt
Schuschnigg teve que recorrer à ajuda de outros países europeus para evitar a concretização do projeto
expansionista da Alemanha. Mussolini enviou suas tropas para a fronteira dos dois países, respeitando um
acordo de proteção previamente assinado entre o líder italiano e Dolfuss caso a Áustria fosse agredida. A
Áustria ainda conseguiria resistir mais quatro anos, mas em 12 de março de 1938, não foi mais possível
fazer frente aos planos expansionistas do país vizinho. Nesse dia, as tropas alemãs invadiram a Áustria e
no dia 13, o território do país era incorporado à Alemanha, evento conhecido como Anschluss (anexação).
10 Informações sobre a construção deste prédio podem ser encontradas no site da Bartlett School of
Architecture, University College London, UCL. O documento cita Stefan Zweig com um dos primeiros
residentes do edifício. O mesmo documento descreve que fachada de tijolo aparente foi realizada em ter
1934 e 1936, portanto quando Zweig já era residente.
Disponível em: https://www.ucl.ac.uk/bartlett/architecture/sites/bartlett/files/chapter21_hallam_street.pdf 11 ARENDT, Hannah. The Jewish Writings... p. 318 12 ARENDT, Hannah. The Origins of Totalitarianism. p. 117 13 Ibidem. Arendt aprofundaria esta análise crítica em sua resenha ao livro de Zweig “O Mundo de
Ontem”, op. cit.
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O prédio da Rua Hallam, 49, em Londres.
Zweig residiu em um de seus apartamentos entre abril de 1934 e setembro de 1939.
Fotógrafo não identificado, s/d
Fonte: www.rightmove.co.uk
No plano pessoal, o início do exílio de Zweig coincidiu com o processo que
levaria ao fim de seu casamento com Friderike. Embora ela ainda estivesse a cargo de
organização de muitos assuntos relacionados ao seu dia-a-dia, permaneceu com suas
filhas na residência de da Rua Kapuzinenberg, em Salzburg.
Como maior parte de seus documentos e de sua coleção também estavam em
Salzburg, para conseguir retomar normalmente seus trabalhos, Zweig decidiu contratar
uma secretária para a nova residência em Londres, a qual coordenaria tarefas com a
outra secretária que permaneceu em Salzburg,14 Entre as exigências para o cargo
estavam que candidata tivesse fluência em alemão e inglês e um bom domínio do
francês. A escolha recaiu sobre Elisabet Charlotte Altmann, ou Lotte, como preferia ser
chamada. Nascida em Kattowitz - cidade que na época de seu nascimento pertencia à
Alemanha, hoje à Polônia - após a ascensão do nazismo, Lotte foi impedida de estudar
em seu país pelo fato de ser judia. Lotte transferiu-se então para Londres onde morava
seu irmão, o Dr. Manfred Altmann.
14 MATUCHEK. Three Lives, p. 264.
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Elisabeth Charlotte (Lotte) Altmann (1908-1942)
Fotógrafo não identificado, s/d
Fonte: www.theartsdesk.com
Aos poucos, Zweig foi retomando seu ritmo de trabalho em Londres,
concentrando-se inicialmente na biografia de Mary Stuart, um gênero pelo qual já havia
incursionado ao longo de sua carreira15. Mas talvez a mais contundente das biografias
escritas por Zweig tenha sido aquela que acabara de publicar em 1934 sobre um dos
personagens históricos que mais admirava, Erasmo de Rotterdam, considerada pelo
New York Times, no mesmo ano, como “um penetrante estudo do grande humanista
cuja tragédia era a de alguém que ficou no meio do caminho em tempos turbulentos”16.
Mas a biografia de Erasmo não foi somente um relato sobre o homem histórico; nela
Zweig estabelece uma forte correspondência com a situação contemporânea à sua
época. No fragmento que segue, por exemplo, é difícil deixar de pensar que o mesmo
não foi escrito com o olhar direcionado à Europa dos anos 1930:
Às vezes, no entanto, muito raramente ao longo dos séculos,
antagonismos atingem tais níveis de tensão que é como se algo
estivesse a ponto de se romper. Então, um verdadeiro furacão se
precipita sobre a terra, despedaçando a humanidade como se esta
fosse um pano frágil que as mãos pudessem rasgar. (...)
Em momentos tão terríveis de delírio em massa e de divisão
do mundo dos homens, o indivíduo se torna desamparado.17
15 Entre elas a de seus mestres Emile Verhaeren (1910), e Romain Rolland (1921), a de Nietzsche (1925) 16 PROCHNIK, George. The Impossible Exile: Stefan Zweig at the End of the World. New York: Other
Press, 2014. Edição Kindle, Capítulo 4, Traveling Womb. 17 ZWEIG, Stefan. Erasmus of Rotterdam. London: Penguin Random House. Edição Kindle, Capítulo 1,
“Aims and Significance” (tradução nossa)
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Em meio ao caos em que a Europa adentrava de maneira acelerada, outra das
preocupações de Zweig era sua valiosíssima coleção de manuscritos; foi em Londres
que decidiu começar a distribuí-los em diferentes localidades e a iniciar a venda de
outros. Um dos locais que receberam parte dos documentos como doação foi a
Biblioteca Nacional de Israel, localizada em Jerusalém, para onde enviou
principalmente manuscritos de autores judeus; talvez um sinal de que, embora não tendo
sido favorável ao movimento nacional judaico, Zweig começava a entender a
necessidade de um estado para os judeus.18
A nova Marlene Dietrich...
Apesar das restrições na Alemanha, os livros de Zweig continuaram sendo
best-sellers no mundo inteiro o que o fez prosseguir com sua agenda de viagens,
palestras e lançamentos. Era também uma forma de escapar ao ambiente que cada vez
mais que oprimia tanto a Europa como a seu círculo de amigos a quem procurava ajudar
constantemente. Essa aparente normalidade na vida de Zweig, entretanto, começava a
despertar ressentimentos em muitos intelectuais cujas condições de vida haviam sido
completamente arruinadas. Assim, após uma viagem aos Estados Unidos em 1935 e de
outra a Viena que fez em 1936 para o aniversário de 85 anos de Ida, sua mãe – Moriz,
havia falecido em março de 1926 – Stefan Zweig decidiu aceitar um convite como
convidado de honra para participar do XIV Congresso Internacional de Clubes P.E.N.,
no qual faria um discurso em homenagem a H. G. Wells19.
A caminho para Buenos Aires, a convite de seu editor no Brasil e proprietário
da Editora Guanabara, Abraham Koogan20, Zweig iniciou uma visita de doze dias ao
país, que, graças ao trabalho de Koogan junto ao governo brasileiro, teve caráter oficial.
No dia 21 de agosto de 1936, escreveu em seu diário: “Entrei ao porto esta manhã: que
18 Nesta biblioteca encontra-se também o original da declaração que Zweig deixou quando cometeu
suicídio em Petrópolis em 1942. Ela foi doada à instituição no início dos anos 1990. Fontes:
www.haaretz.com/jewish/israeli-library-uploads-suicide-letter-of-jewish-writer-stefan-zweig-1.414312. A
afirmação sobre uma possível evolução na sua visão sobre a importância do sionismo e do trabalho de
Theodor Herzl para o povo judeu, está baseada nas próprias memórias de Zweig: “No primeiro momento,
Herzl podia se sentir incompreendido. Viena, onde se sentia mais seguro, com seu vasto prestígio,
abandonava-o e até zombava dele. Mas então a resposta retumbou com tanta veemência e êxtase que ele
se assustou com o movimento poderoso e amplo que despertara com algumas dezenas de páginas*.
Naturalmente, essa resposta não vinha dos judeus bem-situados (...) e sim das gigantescas massas no
Leste (...). Sem imaginar, Herzl inflamara com sua brochura o núcleo do judaísmo que ardia sob as cinzas
do estrangeiro, o sonho milenar e messiânico da promessa da volta para a Terra Prometida confirmada
pelos Livros Sagrados (...). Sempre quando alguém – profeta ou impostor – tangeu essa corda nos dois
mil anos da maldição, pôs a vibrar a alma inteira do povo, mas nunca com tanta intensidade, com tanta
retumbância. Com algumas dezenas de páginas, um único homem unira uma massa dispersa e desunida.
ZWEIG, Stefan. The World of Yesterday, p...
* Aqui Zweig refere-se ao livro de Theodor Herzl Der Judenstaat [O Estado dos Judeus], publicado em
Leipzig e Viena em 1896, M. Breinstein Verlag & Buchhandlung. 19 Speeches and Discourses of the XIV International Congress of P.E.N. Clubs, 5 - 15 Sept., 1936, P.E.N.
Club de Buenos Aires, Argentina, G. J, Pesce & Co, 1937 20 Abraham Koogan (1912-2000) era nascido na Ucrânia e havia chegado ao Brasil, trazido por seus pais,
em 1920. Koogan foi também responsável por introduzir no Brasil, entre muitas outras, as obras
traduzidas ao português de Sigmund Freud.
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experiência inacreditável.”21 A maneira como foi recebido ao desembarcar - o próprio
Ministro das Relações Exteriores do Brasil, Macedo Soares estava aguardando no porto
- assim como o tratamento especial a ele oferecido nos dias seguintes também lhe
deixaram uma forte impressão. Ele era sem dúvida um dos autores europeus mais lidos
no Brasil. Como observou em uma carta que escreveu a Friderike durante a viagem:
“Estou tão feliz de estar aqui que nem posso começar a descrever a recepção que me
deram; nos últimos seis dias, tenho sido a nova Marlene Dietrich22.
Stefan Zweig em sua visita ao Brasil com seu editor Abraham Koogan
Fotógrafo não identificado, agosto-setembro, 1936
Arquivo Casa Stefan Zweig, Petrópolis
O adeus ao mundo de ontem
De volta à Europa, após cumprir seu compromisso em Buenos Aires, Zweig
prosseguiu com seu trabalho e seus planos de novas viagens. Sua vida pessoal, porém,
passava por grandes mudanças: o aprofundamento de seu relacionamento com Lotte, os
planos de divorciar Fridrike, a decisão de desfazer-se da casa de Salzburg. Em seu
círculo de amigos, por outro lado, a pressão por uma mudança em sua posição apolítica
aumentava. Em julho de 1937, por exemplo, seu amigo Joseph Roth, ele mesmo vítima
durante anos de um duríssimo exílio, reclamava a Zweig:
Você já tem uma clara noção [...] da inadequação de todos os
idealismos humanos nos quais se banhou desde a sua juventude e dos quais
você está embebido. Você está obrigado a estar desapontado. A não-
21 MATUSCHECK, extraído do diário de Zweig, p. 399 22 Carta de Stefan Zweig a Friderike, 25 de agosto de 1936, State University of New York, Fredonia. In,
MATUSCHEK
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violência de Mahatma Gandhi é tão inútil para mim, quanto a violência de
Hitler é detestável. Claro que você não deveria aliar-se a nenhum partido ou
grupo. Não vejo porque isso deveria ocorrer-lhe. Você é um membro não
registrado de um grupo heterogêneo constituído de acrobatas, homens do
mundo, malandros e diletantes e mentirosos, todos coexistindo com um
pequeno punhado de indivíduos decentes. Você acha que está fora dele. Não,
não está. (...) Você não consegue superar a perda da Alemanha! Você só
consegue ser um cosmopolita se a Alemanha existir.23
No final de 1937, porém, a situação política do continente parecia alienar
Zweig cada vez mais. Em carta ao mesmo Roth, meses mais tarde, contou seus planos
de visitar a sua mãe em Viena, voltar a Londres e depois partir novamente: “Não quero
ver ninguém, não quero ler nenhum jornal, provavelmente irei para Portugal, onde meu
conhecimento da língua é bem pobre24.” Zweig de fato fez essa viagem a Viena. Seria a
última vez que veria a cidade e também sua mãe.
Meses depois, a anexação da Áustria pela Alemanha nazista – Anschluss –
ocorrida em 13 de março de 1938, fecharia de uma vez as portas para milhares de
judeus da Áustria que estavam no exílio e converteria em um inferno a vida daqueles
que haviam ficado.
Alfred Zweig, irmão de Stefan, conseguiu sair do país com sua esposa via
Suíça, mas, embora tivesse conseguido um visto para Ida e sua enfermeira, a idade
avançada de sua mãe impossibilitou a saída. Alfred, antes de partir, providenciou todos
os cuidados para Ida e mesmo à distância controlava seu bem-estar. Ela, no entanto,
faleceu em 23 de agosto do mesmo ano. A tecelagem que Moriz havia construído e que
Alfred havia cuidado por décadas ficou para trás, confiscada pelos nazistas.
O cerco fechava-se rapidamente para os judeus da Europa; Zweig, em
Londres, prosseguia sua vida em relativa normalidade. Mas só aparentemente. Cercos
não são somente definidos por fronteiras, ou toques de recolher, ou buscas, ou exílios.
Os cercos podem destruir algo mais intangível. E para o homem que Romain Rolland
tão bem definiu como um “caçador de almas” sobre as quais empreendia verdadeiras
operações de vivissecção em suas obras, era o mundo das grandes almas que estava em
decomposição. Para Zweig, o papel do intelectual não era imiscuir-se na política: estas
eram duas vocações completamente separadas. O intelectual deveria ao máximo,
favorecer a ideia de unidade entre os povos e não aprofundar discórdias, tal como ele
próprio o fez em sua conferência no Rio de Janeiro intitulada “A Unidade Espiritual do
Mundo”. Este fragmento de seu discurso resume a resistência de Zweig a assumir uma
posição ativa:
Cada um de nós tem uma infinidade de coisas para fazer em
silêncio: precisamos nos privar de qualquer palavra que possa aumentar a
desconfiança entre pessoas e nações; ao contrário, temos o dever positivo
de agarrar a menor oportunidade para julgar as realizações de outras
raças, outros povos e países de acordo com o seu mérito, precisamos
23 ROTH, Joseph, A Life in Letters. Editado e traduzido ao inglês por Michael Hofmann. New York:
Granta, 2012. Edição eletrônica, Kindle. Carta escrita por Roth em 10 de julho de 1937, Parte IV, “After
Hitler: Work, Despair, Diminishing Circles, Work and Death”. 24 Ibidem.
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ensinar a juventude a odiar o ódio, porque ele é infértil e destrói o prazer
da existência, o sentido da vida; precisamos educar as pessoas de hoje e
amanhã a pensar e sentir em dimensões mais amplas. Precisamos ensinar
a elas que é mesquinhez e exclusão limitar a camaradagem apenas ao
próprio círculo, ao próprio país, em vez de se ter fraternidade além dos
oceanos, para com todos os povos do mundo.25
As pressões para que assumisse um papel antagonista e a forma como via que
o círculo ao seu redor, o círculo das belas almas com as quais antes debatia os temas que
lhe eram caros, estava sendo arrastado – devido ao contexto – na direção contrária a
suas crenças; essa era outra forma de ver seu mundo ruindo.
As perdas físicas eram por outro lado sucessivas. Talvez uma das mais
profundas nos anos de exílio tenha sido a de outro de seus grandes mestres e ilustre
vienense, Sigmund Freud. A amizade entre estes dois homens - separados em idade
praticamente por uma geração - e seu legado epistolar é, sem dúvida, um dos capítulos
mais interessantes da história cultural daquelas décadas. Zweig foi um dos primeiros a
perceber o significado para as letras da revolução que a teoria psicanalítica de Freud
trazia consigo e também um dos primeiros a utilizar seus recursos no desenvolvimento
de sua obra.
Algo que ambos obviamente não sabiam, contudo, é que teriam também em
comum a cidade de seus respectivos exílios. Em 6 de junho de 1938, assim como Zweig
fizera anos antes, Freud chegava a Londres acompanhado de sua esposa e de seus filhos
Anna e Ernst. Mas, apesar de sua idade avançada e sua saúde precária, Freud manteve-
se em intensa atividade profissional, intelectual e social, recebendo Zweig, seu amigo de
longa data, em visita nos dois endereços onde morou na capital britânica - endereços,
aliás, localizados a uma curta distância de Hallam Street, a residência de Zweig.
25 “L’Unité spirituelle du monde”. Discurso proferido por Stefan Zweig na sala de concertos do Instituto
Nacional de Música (Lapa, Rio de Janeiro), em 27 de agosto de 1936. O manuscrito original em alemão
foi presenteado por Zweig ao chanceler brasileiro Macedo Soares. Em 1940, quando retornou à América
do Sul, a pedido do jornalista Cásper Líbero, reiterou em setembro o discurso na sede de A Gazeta e
entre 29 e 31 de outubro, apresentou-o em castelhano, traduzido por seu editor argentino Alfredo Cahn
em conferências que realizou em Buenos Aires, Córdoba, Mendoza e Montevideo. In, ZWEIG, Stefan.
Um Ensaio. A Unidade Espiritual do Mundo. Coleção Expresso Zahar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2013.
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Detalhe de mapa de Londres Em destaque, a distância entre os endereços de Stefan Zweig (49, Hallam Street) e de Sigmund
Freud (39, Elsworthy Road). O segundo endereço de Freud na cidade - 20, Maresfield Gardens -
ficava a apenas mais 1 km ao norte de sua primeira residência na cidade.
Fonte: Google Maps
Malgrado as agruras causadas pelo exílio e pelas notícias que vinham da
Áustria, Zweig havia mantido intacta sua vocação de liaison entre as mais proeminentes
personalidades de seu tempo. Em 18 de julho de 1938, por exemplo, escreveu uma carta
a Freud nos seguintes termos:
Querido e estimado professor!
Somente umas palavras informativas. O Sr. sabe que tenho sempre
evitado meticulosamente apresentar-lhe pessoas, mas amanhã é de veras
uma importante exceção. Para mim, Salvador Dalí (...) é o único pintor
genial da época e o único que perdurará, um fanático de suas próprias
convicções e o mais leal e grato discípulo que o Sr. tem entre os artistas.
Há anos que este autêntico gênio tem o desejo de encontrá-lo (ele afirma
que em termos artísticos não deve a ninguém tanto quanto ao Sr.). Assim
amanhã iremos ambos, junto com sua esposa [Gala]; ele gostaria de
aproveitar a oportunidade de talvez desenhar um esboço enquanto falamos
(...).26
No dia seguinte à visita à residência de Elsworthy Road Freud
escrevia a Zweig nos seguintes termos:
Querido doutor:
Realmente devo agradecer-lhe pela expedição que me trouxe os
visitantes de ontem. Até então, inclinava-me a considerar os surrealistas,
que aparentemente haviam-me escolhido como santo patrono,
absolutamente (digamos 95%, como o álcool), uns tolos. O jovem
26 Carta de Stefan Zweig a Sigmund Freud, 18 de julho de 1938. In, BURELLO, Marcelo G (Ed.).
Sigmund Freud y Stefan Zweig: “La invisible lucha por el alma”. Epistolario completo 1908-1939.
Buenos Aires: Miño y Dávila Editores, 2016.
40
espanhol, contudo, com seus fanáticos olhos cândidos e sua indiscutível
maestria técnica, fez-me chegar a outra apreciação. (...)27
Salvador Dalí, Retrato de Freud28
Fonte: Freud Museum London
www.freud.org.uk
O idílio com Freud em Londres, porém, seria curto; apenas pouco mais de um
ano. No dia 23 de setembro de 1939, chegou a notícia da morte do mestre, o que para
Zweig foi um duro golpe, assim como havia sido durante a Primeira Guerra a morte de
outro de seus mestres, Emile Verhaeren. No dia 26 de setembro, no crematório Golders
Green em Londres, foi o próprio Zweig o encarregado de pronunciar o discurso fúnebre
de Freud:
Em presença deste glorioso féretro, permitam-me umas palavras
de sentido agradecimento em nome de seus amigos vienenses, austríacos e
universais, ditas nesse idioma que Sigmund Freud enriqueceu e enobreceu
tão esplendidamente com sua obra [o alemão]. (...) Nele, nós e nossa época
vimos de modo exemplar que não há coragem mais gloriosa sobre a Terra
que a coragem livre e independente do homem de espírito. Para nós será
inesquecível essa sua coragem de achar conhecimentos que os demais não
descobriram por não se atrever e achá-los ou ainda a expressá-los ou a
admiti-los. (...). Obrigado pelos mundos que nos revelaste e que agora
percorremos sós, sem guia, sempre fieis a ti, o mais precioso amigo, o mais
querido mestre: Sigmund Freud.
27 Carta de Sigmund Freud a Stefan Zweig, 20 de julho de 1938. Ibidem. 28 Retrato que Dalí criou baseado no esboço realizado durante a visita. Zweig, no entanto, aconselhou
Dalí a não mostrar o resultado a Freud pois considerou que nele ficava claro o avanço da doença que
acometia o mestre . Fonte: Freud Museum, London, www.freud.org.uk
41
A morte de Freud ocorreu pouco mais de duas semanas após o casamento de
Stefan e Lotte, celebrado em 6 de setembro de 1939, apenas cinco dias depois da
invasão da Polônia pela Alemanha, evento que oficialmente arremessava a Europa à
guerra. A vida do novo casal começaria na mesma cidade onde oficializaram seu
casamento, Bath, localizada a aproximadamente 115 km a oeste de Londres. Ali, Zweig
esperava poder afastar-se um pouco das pressões e das notícias cada vez piores que
circulavam na capital britânica.
Rosemount, a casa dos Zweig em Bath
Arquivo Casa Stefan Zweig
42
Eva (sobrinha de Lotte), Stefan e Lotte Zweig, Bath, Inglaterra, verão de 1940
Arquivo Casa Stefan Zweig
Em março de 1940, os Zweig obtiveram a cidadania britânica, o que lhes
propiciava certa liberdade de movimento. Em abril, Stefan Zweig foi convidado a dar
uma palestra em Paris, a qual intitulou “A Viena de Ontem” - um prenúncio do que viria
a ser sua autobiografia escrita no ano seguinte – e onde fez pesquisas para seu novo
livro sobre a vida do escritor francês, Honoré de Balzac. No entanto, as invasões do
exército alemão à Dinamarca, Noruega e posteriormente, os ataques à França, Bélgica,
Luxemburgo e Holanda deixavam claro que a partir de então, a Inglaterra havia ficado
isolada no continente contra a Alemanha. Era o momento certo para que os Zweig
aceitassem um novo convite para a América do Sul, via Estados Unidos.
Assim como vinha fazendo ao longo dos anos, desde que Hitler tomou o
poder, Zweig procurou ajudar vários de seus amigos, fosse financeiramente ou mediante
contatos para obter-lhes vistos de entrada em diversos países do mundo, como mostram
muitas de suas cartas.29 Em junho de 1940, Stefan e Lotte partiram da Europa, talvez
pressentindo que dessa vez, não haveria volta.
Em 21 de agosto de 1940, Stefan e Lotte desembarcaram novamente no Rio de
Janeiro após um mês em Nova York. No final de outubro retornaram a Buenos Aires,
para outra rodada de apresentações de Zweig, de onde tramitaram seus vistos
permanentes para fixarem residência no Brasil; os mesmos foram concedidos em 5 de
novembro de 1940.
Ficha de imigração de Stefan Zweig, 1940
Arquivo Nacional, RJ
29 Stefan and Lotte Zweig’s South American Letters: New York, Argentina... pp. 12
43
Ficha de imigração de Lotte Zweig, 1940
Arquivo Nacional, RJ
Foi também nessa época que Zweig começou a escrever seu livro Brasilien:
ein Land der Zukunft - traduzido ao português como Brasil: País do Futuro, sem o artigo
“um” – baseado em suas impressões sobre um lugar que parecia não sofrer os males do
continente que havia deixado para trás, rasgado pela guerra. Zweig via o Brasil como
uma esperança para o mundo e principalmente como resposta à sua própria pergunta:
“como é possível conseguir em nosso mundo uma convivência pacífica entre os homens
apesar das mais decididas diferenças de raça, classe, cor e convicções? ” Ao que ele
mesmo responde:
Em nenhum país essa questão se apresentou, por uma constelação
particularmente complicada, de um modo mais perigoso que para o
Brasil, e nenhum o resolveu de maneira tão feliz e exemplar quanto o
Brasil. O objeto deste livro é o testemunho agradecido disso. Resolveu-o
de um modo que, a meu juízo pessoal, chama, não somente a atenção,
mas também a admiração do mundo.30
(...)
O Brasil – e o significado deste experimento magnífico me parece
exemplar – levou o problema racial, que transtorna nosso mundo
europeu, do modo mais simples ad absurdum: ignorando simplesmente a
sua pretensa validez.31
30 ZWEIG, Stefan. Brasil: País de Futuro. Ediciones. Madrid: Editorial El Aleph, 1941. Edição
Eletrônica. pp. 13. 31 Ibidem. pp. 14.
44
Brasil: um País do Futuro, é uma declaração de amor não somente ao país,
mas também ao que o mundo poderia ter sido, à sua utopia. E mesmo se uma análise
mais aprofundada das complexidades da nação brasileira não resiste completamente às
impressões de Zweig, sua força está justamente em seu próprio caráter de modelo
adotado por alguém que havia escapado de uma parte do mundo acometida de
insanidade e, mesmo se seu modelo não era de fato “o paraíso”, era sem dúvida um
lugar que tinha, sem dúvida, possibilidades muito maiores de um dia chegar a sê-lo.
Contudo, o “caçador de almas” e de futuros estava cansado. Em março de
1941 voltou mais uma vez a Nova York, onde escreveu sua biografia O Mundo de
Ontem. Mas ele não se sentia à vontade ali. Talvez porque não se sentisse à vontade em
um mundo que não era mais seu mundo. As frustrações de um exílio que cada vez mais
parecia não ter fim começaram a causar danos que aos poucos iam tornando-se
irreversíveis assim como parecia ser irreversível o futuro da Europa, principalmente
após a notícia da invasão da União Soviética pela Alemanha em 22 junho do mesmo
ano.
A casa da Rua Gonçalves Dias, 34, em Petrópolis, RJ, último endereço de Stefan e Lotte Zweig
Fotógrafo não identificado, s/d
Arquivo Casa Stefan Zweig, RJ
Fonte: Deutsche National Bibliothek
www.dnb.de
O Brasil, nesse sentido, parecia ser o único lugar que ainda propiciava a Zweig
um pouco de calma e – por que não – felicidade. Em novembro de 1941, já instalados
em Petrópolis, naquela que seria sua última residência. Em uma carta a seus cunhados
Manfred e Hannah – o irmão de Lotte e sua esposa - em tom de certa forma agridoce,
Zweig escrevia:
45
Queridos H. & M. Não acreditava que em meu sexagésimo
aniversário estaria sentado em uma cidadezinha brasileira, sendo servido
por uma menina negra, descalça e a milhas e milhas de distância de tudo
o que era anteriormente a minha vida: livros, concertos, amigos,
conversa. Mas estamos extremamente felizes aqui, o pequeno bangalô
com sua grande varanda coberta (nossa verdadeira sala) tem uma
esplêndida vista das montanhas e bem em frente há um pequenino café,
chamado “Café Elegante” onde posso tomar um delicioso café por
centavos e desfrutar a companhia de condutores de carroças negros. A
vida é muito barata aqui e você não tem oportunidade de gastar. Estou
trabalhando e em minhas horas ociosas jogo partidas mestras de um
grande livro de xadrez – sentimo-nos distantes de tudo, até mesmo da
guerra.32
O jogo que Zweig estudava, no entanto, não era somente uma atividade para
as horas ociosas: o xadrez foi um dos protagonistas do último livro que Zweig
escreveria em sua vida.
Uma obra rica em termos do olhar psicanalítico nela contido e que gira em
torno a uma partida de xadrez que tem lugar em um navio que sai de Nova York rumo à
América do Sul. Nesse navio embarca Czentovitz, que, na ficção, é um dos maiores
enxadristas de todos tempos. Durante a viagem, uma partida é organizada entre o
campeão e um grupo de amadores. Após um impasse no jogo, o narrador relata o
aparecimento de um desconhecido que irá desafiar Czentovitz: o Dr. B., um advogado
vienense, preso após a anexação da Áustria pela Gestapo e condenado a um isolamento
total, em uma sala sem estímulos, sem nenhuma noção de tempo ou lugar, sem
possibilidade de ocupar seu espírito. Seu único entretenimento eram os interrogatórios.
Durante um desses interrogatórios o Dr. B. consegue roubar um livro. Ao
chegar à sua sala/cela, decepciona-se profundamente ao ver que se trata de um livro que
descreve partidas de xadrez. Mesmo assim, por falta de opção, começa a estudá-lo.
Naquele isolamento, as partidas tornam-se uma obsessão e ele começa a jogá-las em sua
mente. Ao redobrar seu espírito para jogar contra si mesmo, perde a razão e adoece. O
governo alemão permite então que ele parta para o exílio. O trauma, no entanto, deixou
nele marcas profundas, uma espécie de esquizofrenia:
Mas mesmo os pensamentos, por mais insubstanciais que
pareçam, precisam de um ponto de apoio, sem o qual começam a rodar e
a girar sobre si mesmos sem propósito. Eles também não toleram o
vácuo. Você esperava alguma coisa de manhã até a noite, mas nada
acontecia. Esperava novamente, e novamente. Nada acontecia. Você
esperava, esperava, esperava, você pensava, você pensava, você pensava
até que sua cabeça doía. Nada acontecia. Você era deixado só. Só. Só.33
Lotte terminou de datilografar Schachnovelle [A Novela do Xadrez], em três
cópias, na sexta-feira 20 de fevereiro de 1942. O original foi entregue no mesmo dia ao
editor Abraham Koogan, no Rio de Janeiro. Uma das cópias foi enviada aos editores de
Zweig em Nova York, Gottfried Bermann Fischer e Ben Huebsch e outra a seu editor e
32 Ibidem., p. 148. 33 ZWEIG, Stefan. Chess. London: Penguin Books, 2006, p. 28-29 (tradução nossa)
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tradutor em Buenos Aires, Alfredo Cahn.34 No dia seguinte, as cópias seguiram pelo
correio junto com mais de vinte cartas de despedida de Zweig para amigos familiares, as
quais chegariam dias após a sua morte. Entre os destinatários estavam seu irmão
Alfred35 e sua ex-esposa Friderike36. Na tarde de 23 de fevereiro, os corpos de Stefan e
Lotte foram encontrados sem vida na casa de Petrópolis, a última etapa do exílio. No dia
24, foram sepultados no cemitério da cidade, acompanhados por inúmeros intelectuais,
artistas, políticos; entre eles, os muitos amigos que haviam feito no Brasil.
Stefan e Lotte Zweig
Fotógrafo não identificado, s/d
Arquivo Casa Stefan Zweig, RJ
34 Fonte: www.elke-rehder.de/stefan-zweig.htm 35 Após uma passagem pela Suiça após o Anschluss, Alfred e sua esposa Stephanie fixaram residência nos
Estados Unidos. Documento relativo ao censo do país em 1940 indica que ele habitava no lado Oeste da
Rua 70, em Manhattan e era presidente de uma tecelagem. Faleceu em 19 de julho de 1977 aos quase 98
anos de idade e foi sepultado no cemitério Woodlawn, do Bronx, Nova York. 36 Friderike Maria von Winterwitz, Zweig (Burger) também se refugiou nos Estados Unidos durante a
guerra e onde viveu por várias décadas escrevendo memórias e dedicando-se a atividades voltadas a
causas sociais. Faleceu em 18 de janeiro de 1971, aos 88 anos de idade, na cidade de Stamford,
Connecticut, Estados Unidos
47
Saiba mais...
Livros
ARENDT, Hannah. The Origins of Totalitarianism. New York: Harcourt, Brace and
Company, 1973.
ARENDT, Hannah. The Jewish Writings. New York: Schocken Books, 2007.
BURELLO, Marcelo G. (Ed.). Sigmund Freud y Stefan Zweig: “La invisible lucha por
el alma”. Epistolario completo 1908-1939. Buenos Aires: Miño y Dávila Editores,
2016.
DAVIES, D.; MARSHALL, J. (Eds.) Stefan and Lotte Zweig’s South American Letters.
New York: Continuum, 2010.
DINES, Alberto. Morte no Paraíso. São Paulo: Rocco, 2014.
HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Parte II. Petrópolis: Editora Vozes,
1999, 4ª ed. Trad. Paulo Meneses, com a colaboração de José Nogueira Machado.
KATZ, Jacob. Out of the Ghetto. The Social Background of Jewish Emancipation,
1770-1870. Cambridge: Harvard University Press, 1973.
KNOWLES, Elizabeth (ed.) The Oxford Dictionary of Quotations. Oxford: Oxford
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MATUSCHEK, Oliver. Three Lives. A Biography of Stefan Zweig. London: Pushkin
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ORWELL, George. “Pacifism and the War”. Publicado pela primeira vez na edição de
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Journalism and Letters of George Orwell, 1940-1943. New York: Harcourt, Brace &
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PROCHNIK, George. The Impossible Exile: Stefan Zweig at the End of the World. New
York: Other Press, 2014. Edição eletrônica, Kindle.
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ZWEIG, Stefan. Beware of Pity. London: Pushkin Press Edição eletrônica para Kindle,
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_____________. Chess. London: Penguin Books, 2006
_____________. Um Ensaio. A Unidade Espiritual do Mundo. Coleção Expresso Zahar.
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_____________. Autobiografia: O Mundo de Ontem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
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www.viennatouristguide.at
Zentrales Verzeichnis Antiquarischer Bücher
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www.zweigatfredonia.com
Artigos
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Monatshefte, Vol. 43, N. 4/5 (Apr – May 1951). Madison: University of Wisconsin
Press, pp. 199-206.
Speeches and Discourses of the XIV International Congress of P.E.N. Clubs, 5 - 15
Sept., 1936, P.E.N. Club de Buenos Aires, Argentina, G. J, Pesce & Co, 1937
Pesquisa e texto Carol Colffield