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Adrian Gramary “Se não vivêssemos perigosamente (…) tremendo a beira dos precipícios, não estaríamos nunca deprimidos, estou segura disto, mas seríamos cinzentos, fatalistas e velhos.” V. Woolf, Diário: 2 Agosto de 1924 1 “A loucura é aterradora, posso assegurar-te isto, e vale a pena tê-la em conta; na sua lava encontro ainda a maior parte das coisas acerca das quais escrevo.” Carta de V. Woolf a Ethel Smyth, 22 de Junho de 1930 1 “Vivemos as nossa vidas, fazemos seja o que for que fazemos e depois dormimos: é tão simples e tão normal como isso. Alguns ati- ram-se de janelas, ou afogam-se, ou tomam comprimidos; um número maior morre por acidente, e a maioria, a imensa maioria é len- tamente devorada por alguma doença ou, com muita sorte, pelo próprio tempo. Há apenas uma consolação: uma hora aqui ou ali em que as nossas vidas parecem, contra todas as probabilidades e expectativas, abrir-se de repente e dar-nos tudo quanto jamais imagi- námos, embora todos, excepto as crianças (e talvez até elas), saibamos que a estas horas se seguirão inevitavelmente outras, muito mais negras e mais difíceis. Mesmo assim, adoramos a cidade, a manhã, mesmo assim desejamos, acima de tudo, mais.” M. Cunningham: As Horas 2 Virgínia Woolf: The Death and the Maiden 49 Leituras / Readings Volume VIII Nº3 Maio/Junho 2006 Virgínia Woolf: A Morte e a Donzela Gordon Square (Bloomsbury).

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Adrian Gramary

“Se não vivêssemos perigosamente (…) tremendo a beira dos precipícios, não estaríamos nunca deprimidos, estou segura disto, mas

seríamos cinzentos, fatalistas e velhos.”

V. Woolf, Diário: 2 Agosto de 1924 1

“A loucura é aterradora, posso assegurar-te isto, e vale a pena tê-la em conta; na sua lava encontro ainda a maior parte das coisas

acerca das quais escrevo.”

Carta de V. Woolf a Ethel Smyth, 22 de Junho de 1930 1

“Vivemos as nossa vidas, fazemos seja o que for que fazemos e depois dormimos: é tão simples e tão normal como isso. Alguns ati-

ram-se de janelas, ou afogam-se, ou tomam comprimidos; um número maior morre por acidente, e a maioria, a imensa maioria é len-

tamente devorada por alguma doença ou, com muita sorte, pelo próprio tempo. Há apenas uma consolação: uma hora aqui ou ali em

que as nossas vidas parecem, contra todas as probabilidades e expectativas, abrir-se de repente e dar-nos tudo quanto jamais imagi-

námos, embora todos, excepto as crianças (e talvez até elas), saibamos que a estas horas se seguirão inevitavelmente outras, muito

mais negras e mais difíceis. Mesmo assim, adoramos a cidade, a manhã, mesmo assim desejamos, acima de tudo, mais.”

M. Cunningham: As Horas 2

Virgínia Woolf: The Death and the Maiden

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Leituras / ReadingsVolume VIII Nº3 Maio/Junho 2006

Virgínia Woolf: A Morte e a Donzela

Gordon Square (Bloomsbury).

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Saúde Mental Mental HealthLeituras / Readings

1 - Uma carta suicida e uma cenografia shakespeariana

Numa antologia de cartas de suicidas, compilada pelo his-

toriador e jornalista alemão Udo Grashoff, recentemente

publicada pela Editora Quetzal (“Vou-me embora: Cartas

suicidas”) 3, podemos ler que em 2001 apareceu por pri-

meira vez na literatura médica uma carta de despedida de

um suicida por s.m.s. Mais uma demonstração do velho

adágio: Vinho velho em odres novos. No livro de Grashoff,

o leitor pode deparar-se com frases lapidárias de despe-

dida, últimas linhas inscritas no limiar da morte, expressão

e extracto de contradições insolúveis, como a de um jovem

com psicose maníaco-depressiva que termina a sua mis-

siva com a frase terrível “é preferível um fim com medo do

que um medo sem fim”. O autor confessa na introdução

que, com esta antologia, propôs-se mostrar a fala fracas-

sada dos falhados. A leitura deste livro poderá ser dura e

pouco grata, mas seguramente não irá deixar nenhum lei-

tor indiferente.

A falar em “cartas suicidas”, talvez uma das mais famosas

representantes deste obscuro subgénero epistolar seja a

que deixou a escritora inglesa Virgínia Woolf, que podemos

encontrar na biografia escrita pelo seu sobrinho Quentin

Bell (“Virgínia Woolf: A Biography”) 4. No ano 2003 – sem

dúvida o ano de Virgínia Woolf, a morte da autora foi visual-

mente imortalizada na abertura do filme “As Horas” de

Stephen Daldry (baseado no romance homónimo de

Michael Cunningham): a romancista inglesa escolheu para

a sua despedida uma cenografia shakespeariana, mergu-

lhando com os bolsos cheios de pedras nas frias águas do

rio Ouse, em Sussex, numa manhã de Março de 1941, tal

como o teria feito Ofélia, a comovente e perturbada don-

zela de Hamlet. Na carta que deixou para o seu dedicado

marido, Leonard Woolf, confessava que se sentia nova-

mente presa da loucura, declarando, no entanto, numa ten-

tativa de o ilibar de qualquer responsabilidade, que aban-

donava este mundo com uma derradeira certeza: “Não

creio que duas pessoas possam alguma vez ter sido mais

felizes do que nós fomos”.

2 - A mãe do romance do século XX

Virgínia Woolf é considerada mãe das inovações formais e

estilísticas do romance do século XX. Para o título de pais

existem mais candidatos: Joyce e Faulkner, entre outros.

Um doente meu dizia-me recentemente numa consulta,

tentando argumentar o prazer suscitado pela leitura de “O

linguado” de Günter Grass, que afinal todas as histórias já

tinham sido contadas, e que o que permitia diferenciá-las

era o estilo. E o estilo é a palavra fulcral que poderia definir

a obra de Virgínia Woolf: um estilo caracterizado pelo des-

envolvimento e depuração do monólogo interior, esse

recurso literário que tenta, usando as próprias palavras da

autora, iluminar “as obscuras veredas da mente”, ou,

usando as palavras de Vargas Llosa, “desaparecer nas

consciências dos personagens, transubstanciar-se com

elas.” 5 Nos seus romances o leitor assiste perplexo a uma

permeabilização absoluta entre o mundo interior da

consciência dos personagens e o mundo exterior, movi-

Virgínia Woolf

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Leituras / ReadingsVolume VIII Nº3 Maio/Junho 2006

mentos subtis que fazem que a leitura das suas obras seja

uma experiência única, por vezes, deslumbrante, embora

esforçada e cansativa.

Li em algures que um critico literário, mestre da ironia, ten-

tando sublinhar o carácter soporífero da obra da roman-

cista inglesa, afirmava reservar a sua leitura para depois da

sua morte (da do crítico, é claro). Talvez desconheça este

crítico sagaz e brincalhão a existência de uma pequena

ermida na Galiza, perdida nas falésias do norte, famosa

pelo lema ameaçador e admonitório que usava para atrair

os peregrinos, que se dirigiam preferentemente a Santiago

de Compostela: “A San Andres de Teixido, vai de morto,

quen non vai de vivo”. Eu, pelo sim ou pelo não, já lá fui; e

confesso que também já li a Virgínia Woolf. Se calhar, por-

que prefiro não imaginar-me habitante de um círculo do

inferno, não pensado pelo Dante, onde os pecadores fos-

sem submetidos ininterruptamente à leitura das obras da

autora inglesa.

3 - Uma infância à sombra da Rainha Vitória

Adeline Virgínia Stephen nasceu em 1882 no aristocrático

bairro londrino de Kensington, no seio de uma família da

alta classe média instruída. A sua casa, no nº 22 de Hyde

Park Gate era o cenário adequado para aquela vetusta

família vitoriana: uma casa de cinco andares, de paredes

pintadas predominantemente a preto e cores escuras,

preenchida de móveis inúteis, onde as eras da parede exte-

rior e as grossas cortinas do interior pareciam aliar-se para

impedir a entrada da escassa e cinzenta luz dos Invernos

londrinos. Jane Dunn, a autora do livro “A Very Close

Conspiracy”, biografia paralela de Virgínia e Vanessa,

descreve o espírito repressivo e lúgubre desta casa: “Não

havia vistas, não havia horizontes, só camadas e mais

camadas de recordações familiares, muitas delas doloro-

sas, todas viradas para o passado.” 1 O pai, Leslie Stephen,

era um conhecido intelectual vitoriano: antigo clérigo e

catedrático de Cambridge, erudito circunspecto, filósofo

agnóstico e jornalista, cujas cumpridas barbas brancas lhe

conferiam um ensimesmado aspecto profético. Este

patriarca permanecia dias a fio fechado na sua biblioteca,

dedicado ao trabalho de redigir um monumental e enciclo-

pédico Dictionary of National Biography (Dicionário de

Biografias Nacionais), tarefa titânica que não conseguiu

concluir. Pensava, como qualquer dos seus contemporâ-

neos, que o papel da mulher devia limitar-se a ter filhos,

cuidar do bom funcionamento da casa e servir de suporte

afectivo incondicional do homem; qualquer saída deste

esquema preconcebido era considerada extemporânea e

condenada ao fracasso social e pessoal. A mãe, Júlia

Stephen, uma boa materialização dos princípios acima

referidos, dedicava os seus dias a supervisionar o ade-

quado funcionamento da casa, reservando o seu tempo

livre para acções de caridade, atendendo doentes moribun-

dos e ajudando às famílias necessitadas. A sua defesa dos

velhos valores vitorianos, que compartilhava com o seu

marido, determinou que assinasse um documento oficial

contrário às reclamações das sufragistas. Os pais de

Virgínia tinham ficado viúvos dos seus respectivos primei-

ros casamentos, casando em segundas núpcias. Do pri-

meiro casamento, Leslie tinha uma filha (Laura, portadora

de deficiência mental, que passou a maior parte da sua

vida internada numa instituição); e Júlia tinha três filhos

Leslie Stephen

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Saúde Mental Mental HealthLeituras / Readings

(George, Gerald e Stela). Do segundo casamento nasce-

ram quatro filhos: Vanessa, Virgínia, Thoby e Adrian.

Aquelas quatro crianças brincavam à sombra do palácio de

Kensington (onde tinha nascido a Rainha Vitória, o símbolo

da época), perseguindo esquilos e fadas pelos verdes rel-

vados dos jardins de Kensington e Hyde Park, como as

crianças protagonistas do livro Peter Pan de Barrie.

Durante os meses de verão a família deslocava-se a uma

casa de campo em St. Ives, na costa de Cornualles,

paraíso marítimo que Virgínia tentaria mais tarde recriar no

seu romance Rumo ao farol. No entanto, nem tudo era tão

idílico na infância destas crianças, que precocemente

viram-se obrigadas a seguir os percursos preestabelecidos

por aquela sociedade fechada e anquilosada: os rapazes

foram preparados para seguir estudos superiores,

enquanto as duas raparigas eram educadas para ser boas

amas de casa, recebendo uma educação rudimentar,

baseada em conhecimentos básicos de música e dança,

na aprendizagem da direcção do serviço doméstico e no

conhecimento do ritual do chá, tudo orientado para o objec-

tivo final e imprescindível do casamento.

Imaginamos a Virgínia, que já despontava como uma

criança perspicaz e imaginativa, olhando extasiada para o

seu pai, enquanto este lia, mergulhado entre montes de

livros, desejosa de absorver os seus conhecimentos enci-

clopédicos, tornando-se ela própria uma infatigável leitora.

A escritora sempre respeitou e reconheceu a categoria

intelectual do pai, embora nunca conseguisse perdoar-lhe

os seus inamovíveis esquemas machistas, “as mulheres

não sabem escrever nem pintar” era uma das suas famo-

sas frases lapidárias. No entanto, apesar deste rígido

esquema familiar, as duas irmãs conseguiram furar subrep-

ticiamente o esquema: Vanessa entrou na Royal Academy

Schools para estudar pintura, e Virgínia conseguiu a auto-

rização do seu pai para receber explicações de grego clás-

sico, fortalecendo assim uma formação forçosamente auto-

didacta. Mas o destino reservava para as duas irmãs um

precipitado acesso ao mundo dos adultos: a morte da mãe,

na sequência de uma pneumonia, deixou, especialmente

às duas filhas, num estado de fragilidade extrema no limiar

da vida adulta. Virgínia encontrou na crisálida das borbole-

tas nocturnas uma metáfora adequada para a situação de

aquelas duas adolescentes, abandonadas num ponto

situado entre a infância e a adolescência; no seu diário

podemos ler: “Com as suas patas e antenas pegajosas e

trementes, esperando um momento, junto ao casulo par-

tido, as asas húmidas e ainda coladas, os olhos deslumbra-

dos, incapaz de voar” 1. A sensação de que nunca tinham

sido suficientemente amadas, especialmente pela mãe,

que as abandonou prematuramente, uniu as duas irmãs

numa simbiose emocional que foi fundamental na vida de

Virgínia. Mas a morte iria tornar-se uma presença contínua

na vida de Virgínia: à morte da mãe seguiu-se a da meia-

irmã mais velha (Stela), autentica mãe em funções; e, final-

mente, a morte do pai por cancro, nove anos depois (já na

vida adulta, ainda seria abalada pela morte do irmão mais

velho, Thoby). Estas perdas sucessivas deixaram aos qua-

tro irmãos sob a soturna tutela de George, o meio-irmão

mais velho, enquanto Vanessa era obrigada a assumir o

papel de ama de casa, vago após a morte da mãe. Foram

dias difíceis para as irmãs Stephen, pois George, represen-

tante fiel do velho credo vitoriano, tentou, durante algum

tempo, introduzi-las no mundo da alta sociedade londrina,

procurando com rapidez candidatos adequados para os

seus imprescindíveis casamentos.

4 - O Grupo de Bloomsbury

A Rainha Vitória - a avó da Europa - cujo reinado se esten-

deu durante sete longas décadas, tinha morrido com o des-

pontar do século, em 1901, deixando passo ao período

eduardiano. Pouco tempo depois, em 1904, os quatro

irmãos, decidem libertar-se do jugo de George e mudam-

se para Gordon Square, no bairro boémio e mais barato de

Bloomsbury. Vanessa, pintora e decoradora, esforçou-se

por impor na nova casa de Bloomsbury um estilo em tudo

diferente ao da velha casa vitoriana de Kensington: espa-

ços abertos, paredes brancas, poucos móveis, luz abun-

dante. Um espaço adequado para uma fase nova, cheia de

expectativas, que se abria nas suas vidas. Virgínia escre-

veu no seu diário: “A fenda que atravessamos entre

Kensington e Bloomsbury era como a que existe entre a

impostura respeitável e mumificada e a vida tosca e talvez

impertinente, mas vida ao fim.” 1 O irmão mais velho de

Virgínia, Thoby, que estudava em Cambridge, começou a

convidar os seus colegas de universidade à nova casa de

Bloomsbury, assumindo as irmãs o papel de anfitriãs.

Assim, surgiram os serões das quintas-feiras à noite,

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Leituras / ReadingsVolume VIII Nº3 Maio/Junho 2006

acompanhados de chocolate e bolachas, gérmen do deno-

minado Grupo de Bloomsbury, o grupo de intelectuais que

haviam de renovar o panorama cultural inglês, fazendo tre-

mer os pilares da sociedade vitoriana. O núcleo do grupo

estava inicialmente formado pelos críticos de arte Clive Bell

e Roger Fry, os escritores Lytton Stratchey e E.M. Forster,

o que se iria tornar famoso economista Maynard Keynes, o

intelectual socialista Leonard Woolf, e o pintor Duncan

Grant. Todos eles compartilhavam uma visão racionalista,

agnóstica e pacifista, durante alguns anos bastante boé-

mia, e frontalmente contrária aos velhos ideais vitorianos e

ao seu excesso de formalismos nas relações sociais. O

grupo, que recebeu (e ainda recebe) críticas azedas pelo

seu snobismo cultural, caracterizou-se por uma grande per-

meabilidade perante as novidades plásticas e intelectuais

vindas do continente (foi este o grupo introdutor das esco-

las pictóricas pós-impressionistas e da psicanálise no

mundo anglo-saxónico), e assumiu uma atitude permissiva

e desinibida em termos sexuais (Stratchey, Forster e Grant

eram homossexuais; Keynes e Adrian – o irmão mais novo

de Virgínia - mantiveram relações homossexuais até a

altura dos seus casamentos; e existiram ainda vários triân-

gulos amorosos, como os formados por Vanessa, Duncan

Grant e David Garnett; e Lytton Stratchey, Ralph Partridge

e Dora Carrington).

5 - Feminismo e Movimento Sufragista

Virgínia Woolf sofreu na própria carne as limitações impos-

tas às mulheres pela sociedade vitoriana. Num dos seus

livros podemos encontrar a seguinte critica irónica aos prin-

cípios tacitamente aceites por aquela sociedade: “Ao longo

dos séculos as mulheres têm servido de espelhos, pos-

suindo o poder mágico e delicioso de reflectir a figura do

homem duplicando o seu tamanho natural… Se ela

começa por dizer a verdade, a figura no espelho encolhe; a

sua aptidão para a vida diminui. Como é que ele vai conti-

nuar a julgar, a civilizar os selvagens, a fazer leis, a escre-

ver livros, a vestir-se com fatos de cerimonia e a discursar

em banquetes se não se vir ao pequeno-almoço e ao jan-

tar, pelo menos, com a sua estatura duas vezes maior que

a realidade?”.6 A sua luta pessoal para se abrir um espaço

nesse mundo, quase vedado às mulheres, decidiu-a a

escreve dois livros que se tornaram precursores do femi-

nismo (“Um quarto só para si” e “Three Guineas”), onde

fez uma análise da situação da mulher na Inglaterra da sua

época. No primeiro dos livros referidos, a nossa autora

chega a singela conclusão de que “a liberdade intelectual

depende de situações materiais” 6, sublinhando as necessi-

dades materiais básicas para a mulher criadora: um quarto

próprio com fechadura na porta, espaço protegido para a

intimidade; e uma quantidade económica mínima (que cal-

culou em quinhentas libras por ano) que permitisse a sua

independência. O seu feminismo fez com que se impli-

casse, embora de maneira muito tangencial e indirecta, no

movimento sufragista, escrevendo o endereço nos envelo-

pes da associação (convém recordar que a sua mãe,

alguns anos antes, tinha tido um papel bem mais directo e

diametralmente oposto, ao assinar um documento contrário

ao direito ao voto das mulheres). Embora sempre se man-

Virgínia Woolf pintada por Vanessa Bell

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Saúde Mental Mental HealthLeituras / Readings

tivesse afastada da luta politica directa, participou pontual-

mente apoiando as actividades do seu marido Leonard no

Partido Trabalhista, e dando aulas gratuitas para operárias

fabris.

6 - Sexualidade e Psicanálise

A sexualidade complexa e ambígua da escritora inglesa

tem sido objecto de múltiplos estudos. Os abusos sexuais

de que foi vítima por parte dos seus meio-irmãos George e

Gerald durante a sua infância - tema que abordou explicita-

mente nos seus diários – terão deixado nela uma ferida

aberta que interferiu de maneira definitiva nas suas rela-

ções como os homens, e permitiria explicar, pelo menos

em parte, a sua conhecida frigidez. Aos cinquenta e nove

anos de idade, dois meses antes de morrer afogada, escre-

via à sua amiga Ethel Smyth. “Ainda me estremeço de ver-

gonha ao recordar o meu meio-irmão… explorando as min-

has partes íntimas”.1 O seu casamento com Leonard,

baseado num afecto autêntico, e na amizade e respeito

mútuo, foi praticamente assexuado, pelo menos nos últi-

mos anos da sua vida. Fica ainda o seu famoso homoero-

tismo, sempre ávido de figuras maternais, baseado na fas-

cinação que sentia pela sensibilidade feminina, e susten-

tado mais na compreensão e partilha emocional do que na

atracção sexual. Em 1927, no entanto, conseguiu escanda-

lizar a sociedade britânica ao assumir o seu relaciona-

mento com a aristocrata, escritora e poetisa Vita Sackville-

West, relação que inspirou o seu livro Orlando: a história

de um homem que atravessa três séculos, ao tempo que

muda de sexo, acabando o livro como mulher. A edição do

livro, com fotografias de Vita, transformou-se num êxito de

vendas. Numa das cartas dessa época encontramos esta

descrição do relacionamento com Vita: “Ela colma-me de

protecção materna que, por alguma razão, é o que mais

desejo sempre de qualquer pessoa.”4 Relativamente a

maternidade, os diferentes médicos que a seguiram reco-

mendaram-lhe evitar ter filhos, pelas eventuais consequên-

cias que poderia ter na evolução da sua doença psiquiá-

trica. Para a autora, que adorava crianças, esta proibição

foi vivida com grande sofrimento, “penso que os meus

esforços por comunicar com as pessoas são o resultado do

facto de não ter filhos e do horror que às vezes me invade”1,

encontramos numa carta. É difícil não concordar com as

palavras de Dunn, quando refere: “Virgínia não chegou a

sair nunca totalmente da crisálida, onde existia como filha,

e não conseguiu assumir a sua plena maturidade sexual e,

com ela, a carga da maternidade.” 1

É conhecida a rejeição que manifestava a nossa autora

relativamente ao seu eventual seguimento psiquiátrico (ou

psicanalítico). Da psiquiatria que poderíamos chamar mais

médica e clássica, pintou um retrato implacável através da

figura do psiquiatra que segue Septimus Severus, o como-

vente doente psicótico, torturado pelas recordações da

Grande Guerra, protagonista do seu romance Mrs.

Dalloway. Relativamente a psicanálise, manteve um inte-

resse intelectual pela obra de Freud (que leu e publicou na

sua editora Hogarth Press), chegando a conhecer o mestre

vienense em 1939, no seu exílio de Hampstead; comparti-

lhando este interesse com vários membros do grupo de

Bloomsbury, que chegaram a estar ligados de forma directa

à Sociedade Psicanalítica Britânica (James Stratchey, o tra-

dutor da obra de Freud, e a sua mulher Alix; e o seu próprio

irmão Adrian Stephen, que estudou o curso de Medicina

para se transformar depois em conhecido analista, tal

como sua mulher Karin). No entanto, apesar da natureza

da sua própria obra, tão introspectiva e dirigida para o

estudo da subjectividade e da voz interior dos persona-

gens, a escritora sempre recusou deitar-se no divã, talvez,

porque como Hemingway, pensava que a sua autêntica

analista era a sua máquina de escrever. Por sua vez, o seu

marido Leonard também pensava que a natureza do qua-

dro de Virgínia não iria responder à terapia psicanalítica.

Podemos encontrar, no entanto, espalhadas pelos seus

livros, iluminações sobre o sono:

“Mas se de sono se tratara, não podemos deixar de per-

guntar qual é a natureza de tais sonos… Terá o dedo da

morte que poisar de tempos a tempos no tumulto da vida

para que este nos não destrua? Seremos feitos de tal

massa que precisemos de tomar diariamente pequenas

doses de morte, sob pena de não conseguirmos cumprir a

missão de viver?” 7

“No entanto, é na nossa ociosidade, nos nossos sonhos,

que a verdade imersa vem, por vezes, ao de cima.” 6

Ou reflexões sobre a disparidade entre o tempo mental e o

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Leituras / ReadingsVolume VIII Nº3 Maio/Junho 2006

tempo do relógio:

“A alma do homem, aliás, age de forma igualmente

estranha sobre o corpo do tempo. Uma hora, alojada no

bizarro elemento do espírito humano, pode valer cinquenta

ou cem vezes mais que a sua duração medida pelo relógio;

em contrapartida, uma hora pode ser fielmente represen-

tada no mostrador do espírito por um segundo.” 7

7 - Psicose Maníaco-depressiva ouPerturbação Esquizoafectiva?

Virgínia Woolf sofreu uma doença que começou na adoles-

cência (já nessa altura os irmãos costumavam chamá-la “a

Cabra louca”, epíteto que ela aceitava com boa disposi-

ção), caracterizada por alterações do humor, na forma de

episódios depressivos e/ou disfóricos, associados ocasio-

nalmente a sintomas psicóticos não congruentes com o

humor (actividade alucinatória auditiva na forma de vozes,

umas vezes vozes em comando que lhe mandavam fazer

coisas desatinadas, outras vezes ouvia os pássaros can-

tando em grego clássico ou referia ouvir o rei Eduardo VII

falando de forma imunda entre os arbustos). Durante as

fases depressivas ficava acamada, recusando qualquer ali-

mento, e apresentava insónias, crises de palpitações,

ideias delirantes de culpabilidade e autoreferenciais, e sin-

tomatologia somática (intensas cefaleias que a incapacita-

vam para qualquer actividade intelectual). O seu sobrinho

Quentin Bell, na sua biografia, descreve com grande

riqueza de detalhes os sintomas destas crises depressivas:

“Acreditava que as pessoas se riam dela, que era a causa

dos problemas de todas as pessoas; sentia-se invadida por

um sentimento de culpa pelo qual devia ser castigada.

Chegou a estar convencida de que o seu corpo, de alguma

maneira, era monstruoso, com uma sórdida boca e um sór-

dido intestino que pediam comida (…) a única solução era

recusar-se a comer. As coisas materiais adoptaram aspec-

tos sinistros e imprevisíveis, bestiais e horríveis.” 4 Existe o

registo de, pelo menos, cinco ou seis episódios depressi-

vos, dois deles depois da morte da mãe e do pai (prováveis

quadros endo-situacionais). Existe ainda um episódio, em

1915, em que terá ficado num estado compatível com um

episódio maníaco: “entrou num estado de frenesi verbor-

reico, falando de forma mais turbulenta e incoercível, até

cair numa total incoerência e afundar-se no coma.” 4

Durante os episódios, com o apoio e a presença continua

de Leonard e Vanessa, permaneceu internada em casas

de saúde e sanatórios, pois sempre recusou os interna-

mentos psiquiátricos. A prescrição básica consistia em

repouso, comida, sossego e evitar excitações intelectuais,

ao que se acrescentava a escassa farmacopeia disponível

nessa época (veronal, paraldeido, hidrato de cloral ou vinho

quente para a insónia, e aspirina para as cefaleias). Como

refere Jane Dunn, fora dos episódios, a sua vida e a sua

actividade criativa, foram perfeitamente normais, “De

acordo com seus próprios cálculos, Virgínia cedeu à

doença apenas cinco anos de uma vida que durou quase

sessenta. A sua vida esteve caracterizada por um trabalho

intenso, uma grande claridade intelectual, uma alegria de

viver e uma visão absolutamente lúcida das coisas.” 1 Na

carta que deixou escrita antes de suicidar-se, confessava

apresentar novamente alucinações auditivas: “Comecei

novamente a ouvir vozes e não me posso concentrar” 4.

Previamente tinha tido duas tentativas de suicídio: na pri-

meira delas atirou-se de uma janela, na segunda fez uma

ingestão de grandes quantidades de veronal. A maioria dos

autores que tentaram analisar a doença psiquiátrica de

Virgínia Woolf parecem concordar no diagnóstico de

Psicose Maníaco-Depressiva (episódios depressivos recor-

rentes com sintomas psicóticos não congruentes com o

humor para uns; perturbação bipolar para outros). 8,9 Para

quem escreve, embora fiquem algumas dúvidas para

excluir definitivamente o eventual diagnóstico de

Perturbação Esquizoafectiva, a ausência de qualquer dete-

rioração cognitiva parece inclinar mais o diagnóstico para a

Psicose Maníaco-Depressiva.

Existe ainda uma forte carga genética de tipo afectivo, que

poderia explicar os quadros depressivos que também

sofreram os irmãos de Virgínia, Vanessa e Adrian. Pelo

menos, no caso deste último, temos a certeza que sofreu

repetidas e graves depressões, e talvez foi a consciência

da sua perturbação afectiva uma das razões que o empur-

raram à jovem disciplina da psicanálise. Como explica Jane

Dunn no seu livro: “Parece evidente que os três comparti-

lharam uma mesma herança genética e que viveram uma

infância particular pelos privilégios intelectuais que goza-

ram, pelas desgraças pessoais que sofreram e pela repres-

são de qualquer manifestação de emotividade.” 1

56

Saúde Mental Mental HealthLeituras / Readings

8 - E quem se lembra de Leonard Woolf?

Leonard Woolf, intelectual judeu, socialista activo e com-

prometido, assume, nesta história, um papel secundário,

embora transcendental. Ficará na história por ser o marido

de Virgínia e talvez, por ter criado, junto com ela, a editora

Hogarth Press, em cuja imprensa foram publicadas, entre

outras, a obra completa de Freud vertida para o inglês por

James Stratchey; ao lado das obras de outros autores da

geração de Bloomsbury (os romances de E.M. Foster, para

além, obviamente, de todas as obras da própria Virgínia) e

de obras emblemáticas de outros autores contemporâneos

(The Waste Land de T.S.Eliot, a poesia de Auden e

Spender). Leonard foi, no entanto, o pilar imprescindível da

vida de Virgínia, conseguindo ser, ao mesmo tempo, o

marido tenaz e incansável, e o amigo capaz de servir de

suporte emocional e artístico da criadora. Durante as múl-

tiplas recaídas da sua doença mental, a sua presença (jun-

tamente com a da irmã, Vanessa Bell) foi o factor decisivo

para uma recuperação cada vez mais difícil.

Após a morte de Virgínia, Leonard confessou a Vanessa

que tinha depositado as cinzas da sua mulher debaixo de

um casal de ulmeiros que ela costumava chamar Leonard

e Virgínia. Encima do tronco de um deles mandou colocar

uma placa com as últimas linhas do romance As Ondas: “A

Morte é o nosso inimigo. É contra a Morte que cavalgo de

lança em riste e os cabelos flutuando ao vento.” 10 A figura

de Leonard faz-nos pensar em todos aqueles homens e

mulheres amantes, que observamos nas consultas dos

nossos doentes, cuidadores infatigáveis, que conseguem

acompanhar, dia a dia, a doença mental dos seus compan-

heiros, aguentando situações que, por vezes, parecem

insustentáveis, até para nós, cuidadores profissionais. A

sua presença torna mais leves as horas mais negras e difí-

ceis.

Bibliografia:1. Dunn Jane (1993): Vanessa Bell, Virgínia Woolf. Circe. Barcelona

(tradução espanhola do original inglês “A very close conspiracy”).

2. Cunninghan M (2000): As Horas. Gradiva. Lisboa.

3. Grashoff, Udo (2006): Vou-me embora: Cartas suicidas. Editora

Quetzal. Lisboa.

4. Bell, Quentin (2003): Virgínia Wolf. Lumen. Barcelona (tradução

espanhola do original inglês “Virgínia Woolf: A Biography”).

5. Woolf V (2003): La señora Dalloway. Introducción de Mário

Vargas Llosa. Lumen. Barcelona.

6. Woolf V (2005): Um quarto só para si. Relógio D´Água. Lisboa.

7. Woolf V (1994): Orlando. Relógio D´Água. Lisboa.

8. Jamison KR (1993): Touched with Fire: Manic-Depressive Illness

and the Artistic Temperament. The Free Press. New York.

9. Gustavo Figueroa C (2005): Virginia Woolf: enfermedad mental y

creatividad artística. Rev Méd Chile 2005; 133: 1381-1388.

10. Woolf V (1988): As ondas. Relógio D´Água. Lisboa.

Leonard Woolf