sombras, delírios e outros horrores - volume i

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    Sombras, Delrios e

    Outros Horrores - Volume I

    Edson Tomaz

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    Sombras, Delrios e Outros Horrores Volume I Pgina 2

    Os melhores contos de terrorAs melhores histrias de suspense

    So aquelas escritas com

    www.letrasdesangue.com.br

    http://letrasdesangue.com.br/http://letrasdesangue.com.br/http://letrasdesangue.com.br/
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    Agradecimentos

    Quero dedicar esta coletnea ao meu amigo Vanderlei Oliveira, que foi a vozdissonante, o nico a no torcer o nariz e perguntar Mas por que contos deterror? e ainda entender o alcance que este projeto poderia ter, o que elepoderia fazer pelas pessoas.

    Tambm quero dedicar este trabalho a Rafael Waldrighi, amigo, parceiro e ocara pra quem eu peo socorro quando a parte tcnica dos meus projetos dn. Tambm a dois amigos que estiveram presentes na fase vale delgrimas da minha vida, quando comecei a escrever Cludio Marques eMrcio Fris.

    querida amiga Maria Anglica Contreras, algum que muito me ajudou apr alguma ordem no meu caos. Ao Osvanir, com quem tanto lamento terperdido contato, agradeo pelo mesmo motivo.

    Silmara Campos, muito obrigado pelo carinho, apoio e, especialmente, pelapacincia numa poca em que eu parecia um disco riscado e no falava deoutra coisa a no ser como o meu site de terror ia ser o mximo.

    Agradecimentos tambm para Cludia Barcot, amiga cujo apoio na poca dacomposio da verso 2.0 do Letras de Sangue no tem preo.

    Aos sobrinhos Carlos Eduardo, Luiz Ricardo, Flvia e Csar Bob, obrigado

    pelo apoio quando o Letras ainda mal engatinhava.

    Para Elaine Rodrigues e Maria Clara: obrigado por trazerem paz e luz aoAsilo Arkham que eu tenho dentro da minha cabea.

    E para cada autor e autora que j publicou ou venha a publicar conosco noLetras de Sangue. Porque j dizia Raul Seixas: Um sonho que se sonha s, s um sonho que se sonha s, mas sonho que se sonha junto realidade.

    Edson Tomaz

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    ndice

    Prefcio 5

    A Estranha 8Trama Diablica 17

    O Inferno Sua Espera 22

    The Book Is On The Table 27

    Um Acidente De Trabalho 34

    Cuidado Com O Que Deseja 40

    Feliz Aniversrio, Barreto! 42

    O Senhor Das Moscas 46

    Bruxaria 62

    O Escorpio E O Sapo 67Um Crculo De Sal 70

    As Mos Do Carrasco 81

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    Prefcio

    No consigo deixar de achar estranho estar organizando uma coletnea decontos. Uma coletnea dos MEUS contos. Fenmeno que a democracia

    desvairada da internet nos permite, e que at pouco tempo atrs eraprivilgio dos Stephen Kings e Clive Barkers da vida. Agora, at um annimocomo eu pode lanar uma coletnea de contos. Embora que, se ainda estoulonge do sucesso alcanado por meus dolos supracitados, pelo menos jno me sinto mais to annimo assim.

    Os trs volumes que compem esta coletnea UAU! TRS VOLUMES! nada mal para um annimo, no ? compreendem todos os contos quepubliquei na internet entre agosto de 2009 e maro de 2012, que foi quando

    decidi publicar exclusivamente no Letras de Sangue, e que no fazem partede nenhuma outra srie, como meus contos do projeto iniciado com apublicao de Apocalipse 13:18 ou as histrias do meu lobisomem deestimao, Jean Pierre de Grenouille. Exceo feita srie de micro-contosCorao das Trevas, que entrou para equilibrar o nmero de pginas doterceiro volume com os dois anteriores.

    A ltima vez que quis massagear o meu ego, fiz um levantamento e descobrique meus contos, considerando os sites onde publiquei e o meu canal no

    Scribd, somavam algo em torno de quinze mil leituras. Tambm, nada malpara um annimo, ainda mais que haviam leitores de vrios pases do mundodentro dessa conta. Bendita internet!

    Quinze mil leituras. Tem autor amador que tem mais que isso, outros com atMUITO mais que isso. Mas, pouco ou muito, nmero de leituras j no mesatisfaz mais. Criei o Letras de Sangue para mostrar que podemos fazer maisdo que ficar felizes por sermos amadores que tm X leituras e querecebemos boas revises por parte dos leitores, muitas vezes outrosescritores amadores que no leram o texto de verdade, s passaram nonosso perfil pra fazer o que chamo de leitura social faz de conta que eu li

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    Continuem conosco. A estrada frente sinuosa, escura, coberta pela nvoae o nico som que se ouve o uivo dos lobos para a lua cheia.

    Mas exatamente assim que a gente gosta!

    Um BIG abrao e bons pesadelos!

    Edson Tomaz

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    A Estranha

    As horas que Nlson passou encolhido sob a escada naquele beco escurono haviam sido entediantes como ele imaginara, ou como qualquer um

    poderia supor de uma longa espera de mais de oito horas. Apesar dascondies extremamente desconfortveis, de ficar agachado, escondido novo formado por duas fedorentas lixeiras, ele saboreara cada minuto,imaginando a cena, quadro a quadro, do que iria acontecer quando estivessefrente a frente com ela.

    Tudo que ele sabia sobre ela era o primeiro nome: Sabrina. Sobrenome: nemfazia idia. Alis, tudo sobre Sabrina parecia terminar em perguntas para asquais ningum tinha resposta. O que era mais estranho ainda era que, desde

    que ele a conhecera trs semanas atrs, eles haviam se visto praticamentetodas as noites e conversado por longas e longas horas. Conversado talvezno fosse exatamente o termo. Ela quase no falava, ele quem acabavafalando sem parar. Estranho, pois normalmente ele era muito reservado ebem, uma mulher que fala pouco sempre algo estranho, no ?

    Eles haviam se conhecido num barzinho da zona leste, videok at a meia-noite, samba ao vivo at o ltimo cliente. Ela chamara a ateno dele por trsmotivos: primeiro, porque ela era um absurdo de linda; o segundo, porque a

    palidez da pele dela sozinha j era bastante chamativa e quando comparadaaos habituais tons morenos e negros da pele dos outros frequentadores, elapraticamente brilhava no escuro do bar. Terceiro, e este era o motivo maisestranho, era que ela no tirava os olhos dele, como se estivessehipnotizada.

    Como Nlson bem sabia, ele era tudo, menos boa pinta. No que fosse feio,ele era algo mais complicado do que isso. Nlson era extremamente...comum. Era to comum que normalmente acabava entrando e saindo semque ningum percebesse. E tambm no era um cara cuja atitude e posturapudessem justificar o olhar fixo que aquela mulher maravilhosa lhe dirigia,

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    parecendo sonhar em devor-lo vivo e impaciente por ver chegar logo estemomento. Nlson era essencialmente um perdedor e isso se traduzia na suapostura, em seus ombros cados e andar meio cabisbaixo.

    Nlson era aquele tipo de cara que at que todo mundo simpatiza com ele,que todo mundo define como um carinha legal, mas ningum chama prafesta, s chama quando precisa que ele faa alguma coisa. As irms - e eletinha um monte delas - ligavam para pedir ajuda em tudo: para lev-las parafazer compras no mercado, para trocar botijo de gs, para consertar torneirapingando, para trocar cartucho de impressora, todas as tarefas quenormalmente um marido faria, com exceo de sexo. Ele detestava esseschamados, mas a absoluta ausncia de qualquer coisa que parecesse com

    uma vida social faziam com que ele no tivesse uma desculpa pra no ir. Stinha parado naquele barzinho porque era aniversrio de uma colega deservio e, como ela errara na hora de enviar o convite por e-mail, esteacabara indo para todos os funcionrios do administrativo. At para o Nlson.Ele sabia que no havia sido convidado de verdade, mas que diabo: seficasse em casa, sabia que alguma das irms ia arrumar alguma coisa paraele fazer. E isso era tudo que ele no queria.

    Porm ali, naquele momento, para aquela mulher, Nlson parecia o mais

    delicioso macho j nascido na face da Terra, e ela no parecia disposta aperder a oportunidade. Ainda que o olhar fixo dela tenha parecido durar umaeternidade, segundos depois de ele ter percebido que ela olhava para ele, elase aproximou da mesa onde ele estava sentado. Ta outra coisa sobre ela daqual ele no se lembrava: de v-la atravessando o salo para chegar namesa. Quando tentava se lembrar, parecia que ela simplesmente havia sematerializado ao lado dele.

    - Ol! Meu nome Sabrina! Est sozinho? - a voz ligeiramente rouca traduzia

    um leve sotaque, que ele no conseguia identificar de onde era. A partirdesta pergunta, comeavam um sonho e um pesadelo.

    O sonho: eles saram do barzinho, foram para o apartamento dele etransaram como dois coelhos desesperados por toda aquela noite e por todosas noites das trs semanas seguintes. Ele achava incrvel como ela pareciano se cansar, no precisar dormir, no precisar de nada a no ser transar eouvir o que ele tinha a dizer. E ele passara as ltimas trs semanas contandoa ela tudo, absolutamente tudo sobre ele. Para um solitrio como Nlson, no

    poderia haver mulher mais perfeita: linda, silenciosa e interessada em tudoque ele tivesse a dizer.

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    E ningum se lembrava de Sabrina.

    Os colegas de servio negaram t-la visto. Ningum se lembrava dele saindo

    do bar naquela noite, s ou acompanhado. Lembravam de ter comentadocomo ele havia sido negligente ao deixar as bolsas das meninas largadas namesa, sem ningum para tomar conta. Ainda bem que ningum havia sidoroubado. Como o chefe suspeitava que aquela histria toda s podia sercoisa de quem estava se drogando, Nlson acabou sendo mandado embora.

    Desorientado, voltou ao beco onde fora encontrado. O beco ficava entre umpequeno prdio antigo, caindo aos pedaos, e uma casa muito velha e muitomal cuidada, onde funcionava um puteiro. Embora sua mente no trouxesse

    nenhuma lembrana de ter passado por ali nas ltimas semanas, foi tomadopor uma certeza inabalvel de que ali naquele prdio baixo e decadente, umaverdadeira pocilga, estava a resposta do mistrio infernal que tinha setransformado sua vida.

    Foi ao puteiro algumas vezes, tomando todo o cuidado para no transparecerque fora ali para investigar, no para transar. E logo foi recompensado comas informaes que queria por uma das meninas, uma moreninha at quebonitinha, mas que tinha o defeito de no parar de falar nem por um minuto.

    Ficou sabendo por ela que no prdio do lado funcionava uma tecelagemclandestina, onde imigrantes ilegais da Bolvia trabalhavam em regimesemiescravo e que, no poro, morava uma mulher meio maluca, que deviaser garota de programa, porque saia todas as noites usando roupas bastantesensuais e s voltava de manh. Ningum jamais a vira na regio durante odia. Como ela no fazia concorrncia direta com as garotas do puteiro,ningum se interessara por ela. Devia ser alguma drogada, que faziaprograma para sustentar o vcio. Ela devia ser gringa, tambm, porque tinhaa pele branca demais pra ser brasileira. Nessa hora, Nlson teve certeza: era

    Sabrina.

    Com a ajuda do dono do bar onde tomava caf todos os dias, Nlson chegoua um traficantezinho de drogas que lhe vendeu uma arma fria e munio. Eagora estava l, aquela hora, esperando como um louco o momento em queela chegasse, o momento em que teria sua vingana.

    L pelas quatro horas da manh um txi parou em frente ao prdio e deledesceu Sabrina, acompanhada de um homem que se movia de um modo

    meio estranho, como se fosse uma pessoa drogada. Assim que ela pagou otxi - o sujeito parecia incapaz de fazer qualquer coisa sozinho - o motorista

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    saiu de l cantando pneu, afinal no era uma vizinhana para se ficar parado toa, pedindo para ser assaltado. S aceitara levar aquela piranha e aqueledrogado pra l porque a prestao do txi estava atrasada, e a noite tinha

    sido muito fraca. Seno, no ia para aquele cu de mundo de jeito nenhum.

    Acompanhada do homem, ela entrou pelo beco, desceu uma pequenaescada que levava a uma porta, a qual ela abriu sem auxlio de chave.Parecia confiar tanto que ningum entraria ali que no se preocupava com asegurana. Ela e seu acompanhante entraram, mas nenhum dos doisacendeu a luz.

    Auxiliado unicamente pelas luzes que vinham do puteiro ao lado, Nlson

    esgueirou-se at uma janela onde, apesar da pouca luz, ainda era possvelenxergar o interior do aposento. Nlson pretendia esperar que ela fossedormir para entrar. Quanto ao desconhecido, tinha certeza que ele devia seruma vtima do mesmo esquema que ela armara para ele, e que estavadrogado demais para interferir. Assim que ela dormisse, acertaria suascontas com aquela vagabunda. Ela ia pagar por tudo. Com juros.

    Mas o que Nlson viu, dentro do poro do prdio, ele jamais poderia terimaginado, mesmo em seus pesadelos mais insanos.

    Sabrina aproximou-se do homem que a acompanhava, que ficouabsolutamente parado, sem esboar nenhuma reao. Com um movimentorpido, ela rasgou a camisa do rapaz, expondo seu peito. E comeou aarranh-lo, lentamente. O cara devia estar muito chapado, pois no gemia ousequer fazia alguma expresso de dor perante os fortes arranhesprovocados pelas longas unhas de Sabrina. Alis, aquela mulher devia terunhas de ao, seno como ela produziria cortes to profundos, sem quebrarunhas to compridas como aquelas?

    Nlson ficou horrorizado com aquela cena, mas sentiu tambm um certoalvio, proporcionado pela explicao de um entre tantos mistrios: a origemdos arranhes profundos em seu prprio corpo.

    Tornando tudo ainda mais estranho - Deus, onde toda aquela loucura iriachegar? - Sabrina comeou lentamente a lamber o sangue que escorria dasferidas no peito de sua silenciosa vtima. E, com o sangue que absorvia, seusolhos comearam a assumir um tom de vermelho, a princpio muito plido,

    mas que foram se intensificando cada vez mais, at que lgrimas de sanguecomearam a escorrer deles.

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    Mas o que estava por vir faria Nlson duvidar ainda mais de sua sanidade.

    Com uma das mos, Sabrina levantou a cabea do rapaz, expondo seu

    pescoo. E de sua boca, uma gosma incolor comeou a escorrer, emabundncia, e ela derramou esta gosma por sobre o pescoo do sujeito. Coma longa unha do indicador da outra mo, em um gesto rpido e preciso,rasgou a pele e cortou a jugular de sua vtima. O sangue, que em condiesnormais espirraria longe, foi segurado pela gosma extremamente viscosa,passando apenas a escorrer sobre o peito do desconhecido. Ela ento sedebruou sobre ele e comeou a sorver aquele sangue em goles generosos,como quem saboreia com calma uma deliciosa taa de vinho.

    Com o corpo paralisado pelo medo, assim como a vtima dentro do poro,Nlson assistia a tudo com o crebro funcionando em desesperada batalhapela sanidade.

    De repente, Sabrina se levantou, caminhou at um ponto onde a escuridono permitia mais a Nlson ver o que ela estava fazendo. O desconhecidolevantou-se, caminhou em direo porta em seu passo agora ainda maiscambaleante e ganhou a rua. Foi nessa hora que ficou claro o queacontecera: assim como para aquele estranho, ela tambm sugara o sangue

    de Nlson e o deixara partir, para cair morto em algum canto qualquer dacidade, longe do esconderijo. No caso dele, alguma coisa deve ter dadoerrado, e ele cara por ali mesmo e fora resgatado. Agora, por mais absurdaque fosse a verdade, tudo passava a fazer sentido.

    Sua vingana, antes motivada apenas pelo desejo pessoal de desforra damulher que o humilhara e destrura sua vida, agora ganhava um significadomaior: uma criatura monstruosa estava a solta, se beneficiando da descrenado mundo moderno para destruir vidas e se alimentar de seres humanos.

    Ficava claro para ele que o dinheiro devia ser o que menos importava aomonstro que ele descobrira escondido naquele poro. Ela s deveria roubar odinheiro de suas vtimas para cuidar dos detalhes mundanos de seu disfarce.O que lhe interessava de verdade era muito claro: sangue.

    Nlson no estava se importando naquele momento se a criatura era um seraliengena perdido no planeta Terra ou um demnio das profundezas doinferno. Era preciso destru-lo, imediatamente, antes que fizesse novasvtimas.

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    Seria o revlver em seu bolso capaz de destruir uma criatura como aquela?Ser que ele precisava de balas de prata? E onde arrumar tal coisa numahora daquelas? Tinha apenas uma coisa a seu favor: aquele prdio era uma

    tecelagem, e tecelagens tendem a pegar fogo muito fcil. Especialmente asclandestinas, que no cuidam de manuteno.

    Se fosse um filme de terror, ele iria entrar e enfrentar a criatura, mas este noera o caso. Ele no iria fazer uma imbecilidade daquelas. Pelas exploraesque fizera no bairro ao planejar sua vingana, sabia que algumas quadrasabaixo, na avenida principal, havia um hipermercado 24 horas, no qualtambm havia um posto de gasolina.

    Jogou seu revlver e as balas dentro de uma das lixeiras, no queria correr orisco de ser parado pela polcia e ser detido por porte ilegal de armas.Procurou atravessar a distncia entre o covil da criatura e o posto de gasolinada maneira mais discreta possvel, rezando muito para no ser assaltado,rezando ainda mais para que aquela coisa no o seguisse.

    Comprou um pacote de estopa e dois gales plsticos no supermercado, quepediu para encherem de gasolina no posto, alegando que seu carro o deixarana mo, sem combustvel. O frentista, antes de ele partir, ainda aconselhou -

    "Tome cuidado, moo, que a vizinhana perigosa!". Nlson s pode pensarque o frentista no tinha idia do tamanho e muito menos do tipo de perigoque existia naquele lugar.

    De volta ao beco, derramou a gasolina de um dos gales sobre os degraus ea porta de entrada do poro. Tinha medo, pois a criatura poderia sentir o fortecheiro da gasolina e fugir ou, pior ainda, sair e dar cabo dele. No teria amesma sorte duas vezes, com certeza. Corria ainda o risco de algum noputeiro visse o que estava fazendo e chamasse a polcia.

    Sabrina, ou o que diabo fosse aquilo, no se manifestou. No puteiro, amsica continuava alta e animada e, no poro, o silncio continuavaabsoluto. Utilizando a estopa que comprara no supermercado, Nlson fez dosegundo galo um imenso coquetel molotov. Acendeu o pavio e atirou ogalo contra a janela por onde vira aquelas cenas to hediondas.

    O galo estilhaou os vidros da janela e seu efeito se fez sentir rapidamente.As chamas tomaram conta do pequeno poro e, em instantes, houve uma

    grande exploso l dentro. As chamas subiram rpido para o andar de cima ecomearam a tomar conta do prdio.

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    A rua logo ficou cheia de curiosos e Nlson tratou de se misturar a eles o maisrpido possvel. Gritos desesperados vinham de dentro da tecelagem: eramos trabalhadores semiescravos. O prdio estava trancado por fora. Quando

    os bombeiros chegaram, tiveram de usar de machados para abrir as portas.

    Nlson observava todos os que saam da tecelagem, por seus prprios ps ouresgatados pelos bombeiros. Nenhuma das vtimas sequer se parecia comSabrina. Ele permaneceu l at o fogo se extinguir, no meio da tarde. No viunada que indicasse que o monstro pudesse ter sobrevivido ao incndio. Oacontecimento teve ainda um efeito colateral muito til: com a exposio dasituao dos bolivianos na imprensa, o empresrio que os escravizava foipreso. O incndio ajudara a destruir outro tipo de monstro.

    Nos dias seguintes, Nlson pesquisou tudo que pode sobre o fato. Fingindo-se de parente de uma desaparecida, foi aos hospitais da regio e nolocalizou nenhuma vtima do incndio cuja descrio batesse com a deSabrina. Entre mdicos, policiais e bombeiros, no achou ningum quetivesse sequer noo de que havia uma moa como aquela morando naqueleporo. Entre os corpos das vtimas fatais, todos foram identificados e nenhumera dela.

    Deu um jeito de visitar o empresrio dono do prdio na cadeia onde estavadetido. Alugara o poro para a tal mulher, onde ela armazenava um monte decaixas, mas no sabia e no acreditava que ela estivesse morando l. Achouridculo, at. Por que uma mulher to bonita iria morar num poro nojentodaqueles? Ela sempre pagara o aluguel em dia e, se desconfiava dasatividades ilegais da tecelagem, no se manifestara. Alis, todo o arranjo doaluguel fora feito por telefone, ele s a vira no dia de assinar o contrato.Depois disso, s se lembrava dela quando conferia o extrato e via o depsitofeito em sua conta.

    Nlson retomou ento sua vida. Ter sido capaz de vencer uma forasobrenatural daquelas desenvolveu muito sua auto estima. Arranjou um novoemprego, mandou as irms se virarem para resolverem seus problemassozinhas e comeou a frequentar a vida noturna. Todas as mulheres queconheceu, da para frente, eram absolutamente normais. Ele nunca mais tevenotcias de Sabrina ou de qualquer outra criatura sobrenatural como ela.

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    O problema de Giuliano no era apenas a m aparncia: ele era umfracassado, um solitrio, algum totalmente sem perspectivas na vida.Entrara naquele bar de beira de estrada com o nico propsito de se

    embebedar, para ganhar coragem para se jogar no lago da represa dahidreltrica. Ningum iria sentir mesmo falta dele: no tinha parentes, seucasamento fracassara e, depois de pagar todas as dvidas de sua ltimatentativa de se tornar empresrio, ele estava falido.

    Por isso achou to estranho aquela linda mulher de cabelos negros e pele toplida estar olhando para ele com tanto interesse...

    FIM

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    Trama Diablica

    O texto comeava assim:

    "Os investigadores Evandro e Ronaldo leram o primeiro pargrafo e acharamaquilo muito esquisito. Olharam um para o outro, impressionados com abizarra coincidncia de que os personagens do texto ali escrito tivessem osmesmos nomes e a mesma profisso que eles.

    Foi nessa hora que um caminho desgovernado, carregado de combustvel,colidiu contra o muro da casa e explodiu, matando a todos que ali estavam."

    Tudo comeou quando Luiz ganhou o prmio na loteria. No iria virar o maisnovo milionrio da mega-sena, mas pelo menos no precisava mais trabalharna vida. O valor do prmio, devidamente aplicado no banco, iria lhe permitirmanter exatamente o mesmo padro de vida pelo resto de seus dias. Davapara reclamar da sorte?

    Com uma parte do prmio, comeou a investir na bolsa atravs da internet, otal do home broker. E podia agora dedicar mais tempo ao seu hobby favorito:escrever.

    Luiz mantinha uma conta em um site de publicao gratuita para escritoresamadores, o Canto dos Contos. No tinha publicado muita coisa at ali porcausa da falta de tempo, mas agora tempo era algo que ele tinha de sobra.

    Revisou algumas velhas histrias, criou umas tantas novas e comeou apublic-las no site. Os visitantes do site e outros escritores que l tambmescreviam comearam a postar comentrios sobre seus textos. Para afelicidade de Luiz, todos os comentrios at ali sempre foram muito positivos.

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    Comeou ento a se corresponder com vrios destes escritores, trocandocrticas e opinies sobre os textos que postavam no site. Ficou atenvaidecido porque alguns lhe pediam conselhos e lhe mandavam os

    rascunhos de seus textos, para que ele comentasse.

    O que Luiz mais gostava de escrever eram contos de terror. Ele costumavapublicar seus contos assinando normalmente com seu prprio nome, mashavia aqueles no site que usavam pseudnimos variados, que iam desdenomes ingleses ou franceses at apelidos como Inferno, Hell e Vlad Drcula.

    Assim, quando recebeu uma crtica a um texto seu vinda de um tal de Lcifer,no achou nada demais naquilo.

    O comentrio de Lcifer foi muito interessante. Redigido com a classe de umprofessor de literatura, o sujeito mostrava-se admirado pelo talento de Luiz,mas tambm um tanto decepcionado. Suas histrias dizia o tal Lciferpossuem estilo, fora e uma boa construo sobre o argumento proposto.Mas no consigo terminar de l-las sem uma ponta de decepo. Acabosempre achando que voc chegou perto, mas que ainda faltou algumacoisa...

    A partir deste comentrio, Luiz e Lcifer trocaram uma fartacorrespondncia via e-mail e MSN. Nos ltimos contatos, o dilogo entreambos assumiu um tom sinistro, mas que ningum estranharia, j que setratava de pessoas que gostavam de histrias de terror.

    Mostrando certo cansao com a constante crtica de Lcifer de que seuscontos nunca chegavam ao mximo do terror, Luiz escreveu durante um chatvia MSN:

    - Est bem! J que sozinho no sou esperto o suficiente para escrever umahistria que o deixe realmente apavorado, apresente ento uma soluo paraesse impasse.

    - Perfeito! Mas no ser de graa!...rs.

    - Deixe-me adivinhar? Vai custar a minha alma! ;-)

    - Exatamente! Como soube?

    - O que mais Lcifer iria querer de mim?

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    - Tem razo...rs... Aceita pagar meu preo?

    Aquela insistncia do sujeito em falar como se fosse realmente Lcifer s

    vezes aborrecia Luiz. Dava pra entender que o sujeito queria fazer graa,mas insistir tanto ficava cansativo. Alis, uma hora iria voltar a insistir emsaber o nome verdadeiro do cara, porque ficar conversando tanto tempo comalgum s sabendo seu pseudnimo, sei l, parecia muito legal para doisadolescentes; para dois adultos, era passar atestado de infantilidade.

    - Aceito! Fala logo!

    - Muito bem! J ouviu falar em metalinguagem?

    - Sim. Como naquele filme do Woody Allen, A Rosa Prpura do Cairo: onarrador entra na histria e interage com os personagens... No fica meiobobo para um conto de terror?

    - Se fizer como vou te orientar, no...

    E Lcifer explicou sua idia para Luiz, que achou que o cara podia ser meiobestinha, mas tinha mesmo uma tima idia. Pediu licena e fechou o MSN.

    No via a hora de comear a escrever...

    Como j fazia uma semana que no tinha notcias do irmo, Rosngelaresolveu usar a chave que ele lhe havia dado para entrar na casa.

    Ao abrir a porta, o mau cheiro era to forte que ela recuou rapidamente. Noconseguiria entrar l com aquele cheiro horrvel. Chamou a polcia.

    Os policiais que atenderam ao chamado tinham certeza de que aquilo no iadar em nada. Por mais aterradora que fosse a cena, o sujeito tinha morridode morte natural, no fora um crime.

    Imagina s: entrar num surto psictico e escrever at morrer!

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    Sombras, Delrios e Outros Horrores Volume I Pgina 20

    A cena encontrada no quarto do falecido mostrava que este simplesmente sesentara frente ao computador e comeara a escrever como um louco.

    A falta de loua na pia ou de qualquer embalagem de comida delivery, a

    cama perfeitamente arrumada e a grande quantidade de fezes e urina queemporcalhavam o cadver demonstravam que ele no havia se afastado dacadeira e do computador para absolutamente nada.Com certeza, no dormiratambm nos ltimos dias, mesmo que fosse cochilando sobre a mesa docomputador: no rodap da tela, o processador de texto mostrava a incrvelmarca de mil duzentas e dezesseis pginas! Nas propriedades do arquivo, adata de criao no deixava dvidas: aquele calhamao de pginas fora todoproduzido na ltima semana.

    A pele das costas apresentava escaras, as feridas que o corpo apresentaquando fica parado tempo demais em uma nica posio. Com certeza, asndegas e a parte de trs das coxas deviam estar do mesmo jeito. Os dedos,em carne viva, manchavam o teclado de sangue. Ele no parara de escreverat a hora em que cara morto.

    O perito forense que analisava a cena deu uma olhada no que Luiz estiveraescrevendo. O texto comeava normalmente, mas com o passar do tempo iaperdendo todo o sentido. At uma certa parte, as palavras ainda estavam

    escritas corretamente, mas fora de qualquer ordem lgica. Depois as letrascomearam a se embaralhar e pginas e pginas se encheram de umcontedo absolutamente sem nexo.

    Voltando primeira pgina, o perito reparou em algo engraado. Sabendoque aquilo no ia afetar em nada a investigao aquilo nem cena de crimeera imprimiu a primeira pgina e levou at os dois investigadores, queestavam na frente da casa, fumando.

    - Ei, gente! Olha s que interessante... Parece que o cara estava escrevendosobre vocs!

    O ttulo era esquisito e no fez sentido para eles: Um Exerccio deMetalinguagem.

    Os investigadores Evandro e Ronaldo leram o primeiro pargrafo e acharamaquilo muito esquisito. Olharam um para o outro, impressionados com abizarra coincidncia de que os personagens do texto ali escrito tivessem os

    mesmos nomes e a mesma profisso que eles.

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    Sombras, Delrios e Outros Horrores Volume I Pgina 21

    Foi nessa hora que um caminho desgovernado, carregado de combustvel,colidiu contra o muro da casa e explodiu, matando a todos que ali estavam.

    FIM

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    O Inferno Sua Espera

    Luiz Carlos Carboni quase no conseguia se conter de tanta felicidade.Aquele ia ser um golpe de mestre. O seu golpe de mestre.

    Cada um dos dois mil e quinhentos funcionrios ali reunidos no ptio dafbrica podia sentir no ar que a coisa no ia ser boa para eles. Afinal, jfaziam seis meses que a radio-peo estava anunciando que iriam havercortes. E voc sabe: quando a radio-peo fala, ou , ou j foi, ou vai ser. Sno podiam imaginar que os cortes iam ser totais, ou seja, que a fbrica iaser fechada!

    Os acordos j estavam devidamente costurados com sindicato: mais um ano

    de cesta bsica, mais seis meses de convnio mdico e, principalmente,polpudos depsitos nas contas dos delegados sindicais. Assim que o gerentegeral da fbrica anunciasse o encerramento das atividades, haveriachoradeira, talvez alguma tentativa de quebra-quebra, mas j havia sidosolicitado reforo para o policiamento por isso mesmo.

    O fechamento da fbrica que os dois mil e quinhentos funcionrios voentender como injustia e descaso, os acionistas vo entender como lucro.Livre dos pesados custos daquele parque obsoleto, substitudos pelos custos

    irrisrios da mo de obra chinesa, o valor das aes da companhia vo subircomo um foguete. Para Luiz Carlos isso vai garantir uma promoo, que eleno vai curtir por muito tempo. J tem outros planos: ir para outracorporao, levando com ele segredos desagradveis, que iro detonar osnegcios de Leopold Gunther, um dos maiores tubares do mercadofinanceiro mundial e seu atual empregador. Assim, j vai chegar no novoemprego causando um impacto muito, muito positivo.

    Olhando do alto do prdio da administrao, Luiz Carlos no pde conter umsorriso sarcstico. Haviam alternativas ao fechamento da fbrica, claro. Masele no perdeu um minuto sequer para pensar sobre elas.

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    Muitos ali embaixo no acreditaram quando ele, ainda um garoto, um rlesauxiliar de almoxarifado, comentou seus planos de chegar a diretor. No queo tenham perseguido ou feito algo de verdade para prejudic-lo. As pessoas

    apenas tm dificuldade para acreditar que algum prximo delas pode atingirum grande sucesso. Mas, para algum com um ego do tamanho do de LuizCarlos Carboni, aquilo era uma humilhao para ser vingada.

    No se esquecia e nunca o deixavam esquecer do apelido ridculo queganhara dos colegas:

    - Deixa eu adivinhar, pivete: tu quer sair de pereba, que o que tu hoje, equer virar gerente?

    - Gerente, no, Tlio. Gerente no manda nada. Diretor. Com escritrio namatriz!

    - Tu? Com os gringos? Fala srio, Pereba!

    E Pereba ele ficou.

    Mas o tempo passou. Foram muitas horas extras, uma graduao, duas ps-

    graduaes, um casamento falido e dois filhos problemticos e o entoPereba foi virando Senhor Carboni, Doutor Carboni e, por fim, Mister Carboni.E os dois mil e quinhentos perebas l embaixo agora percebiam o quanto avida d voltas. O antigo Pereba agora estava fechando no apenas umafbrica: estava fechando uma cidade. Economicamente dependente dafbrica, sem outras alternativas viveis, seria apenas questo de tempo atque todos os moradores tivessem de abandonar tudo para procuraroportunidades em outras cidades da regio.

    Distrado em seus pensamentos, Luiz Carlos assustou-se quando o celulartocou. Sorriu ao identificar quem ligava.

    - Ora, se no o velho Gunther! Ser que j minha promoo ou seroapenas os primeiros parabns?

    Atendeu.

    - Herr Gunther, em que posso serv-lo?

    - Sr. Carboni, j deram a noticia ao pessoal?

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    Sombras, Delrios e Outros Horrores Volume I Pgina 24

    - Esto fazendo isso neste momento, Herr Gunther.

    - E voc, o que est fazendo?

    - Como disse antes, Herr Gunther, eu estou em segurana aqui na sala dereunies.

    - Bom, gosto quando fazem o que foi combinado. E voc sempre faz o que combinado, no , Sr. Carboni?

    Uma luz amarela acendeu na mente de Luiz Carlos: aquela conversa estavaficando muito estranha. Estranha e perigosa.

    - Claro que eu sempre cumpro o combinado, Herr Gunther!

    - Por isso que dentro de dois meses voc ser o novo vice-presidente danossa maior concorrente, no ?

    O cho sumiu debaixo dos ps de Luiz Carlos.

    - Para ser prtico, Sr. Carboni, eu vou lhe comunicar o seguinte: primeiro,

    como voc deve ter entendido, j conheo todos os seus planos. Ento, noperca seu tempo tentando me enganar.

    Luiz Carlos engoliu em seco.

    - Segundo: no vou gastar dinheiro com uma empresa que vou fechar.Assim, foram cancelados todos benefcios que seriam concedidos aosnossos agora ex-funcionrios...

    Luiz Carlos afundou na cadeira.

    - ... como tambm foram cancelados os depsitos secretos nas contas dosdelegados sindicais...

    Luiz Carlos comeou a suar frio.

    - ... e no autorizei que fossem solicitados reforos para segurana. Alis, deifolga para quase toda a equipe. Mas acho que voc nem percebeu isso, no

    ?

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    Isso significava que, dentro de instantes, dois mil e quinhentos furiosos ex-funcionrios, cujas vidas ele acabara de destruir, estariam ali em busca devingana.

    Ao ouvir os gritos de protesto que comearam a soar no ptio, levantoucorrendo e trancou as portas da sala de reunio.

    No telefone, Gunther chamou sua ateno:

    - Ainda a, Sr. Carboni?

    - Seu desgraado! Voc...

    - Tenho uma informao muito importante, Sr. Carboni! Vai me ouvir ou vaificar me xingando? O interesse seu...

    Luiz no tinha muita opo.

    - Fale!

    - H uma arma no pequeno armrio, sua esquerda.

    - minha esquerda? Voc pode me ver?

    - Tenho um link com as cmeras de segurana. Vejo a fbrica inteira, Sr.Carboni. E vejo que o pessoal j est subindo para acertar as contas com osenhor.

    Luiz Carlos correu at o armrio. Em uma das gavetas encontrou umpequeno revlver calibre 38.

    - Encontrou a arma, Sr. Carboni?

    - Voc louco? No vou conseguir conter essa multido com umbrinquedinho destes!

    - Essa no a idia, Sr. Carboni. Mesmo porque s h uma bala disponvelna arma...

    Luiz Carlos ficou paralisado.

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    - Ento...

    - Vejo que j entendeu suas opes, Sr. Carboni. Assim sendo, vou deix-lo

    em paz para que faa sua escolha. Mas antes queria fazer uma ltimapergunta...

    Luiz Carlos no teve nem foras para responder.

    - Achou mesmo que eu fosse to ingnuo, Sr. Carboni? Achou mesmo queconquistei tudo que tenho confiando cegamente nos outros? Especialmenteem um sujeito como o senhor, que no passa de um... como mesmo queseus colegas dizem... um PEREBA? E assim mesmo que se fala, Sr.

    Carboni? Um PEREBA?

    Rindo muito do outro lado da linha, Leopold Gunther desligou.

    Depois de ter conquistado tudo que queria, motivado por seu desejo cego pordinheiro e poder, agora restava apenas a Luiz Carlos Carboni a opo deliquidar com a prpria vida ou de ser linchado pela multido enfurecida, que

    j comeava a esmurrar a porta da sala da reunio.

    S lhe restou aquela deciso.

    E o inferno sua espera.

    FIM

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    The Book Is On The Table

    Nathaniel Taylor tinha vinte e seis anos e era uma das pessoas mais gentisque conheci em toda a minha vida. Nasceu em Manchester, Inglaterra e era

    um devotado torcedor do Manchester United. Estava morando h trs anosaqui no Brasil. Veio para fazer turismo e resolveu ficar.

    Fisicamente, a forma mais fcil de descrever Nate pedir para voc imaginaro Johnny Rotten, dos Sex Pistols. Agora, no lugar daquele cabelo espetadode punk que ele usava, imagine-o completamente careca. Pois bem: vocacabou de imaginar o Nate.

    Conheci Nate porque ele morava no mesmo prdio que eu e deixou um

    anncio no mural do hall de entrada, oferecendo aulas particulares de ingls.Naquela poca, eu estava me preparando para estudar literatura inglesa emOxford. O interessante que, at conhecer o Nate, estudar em Oxford eraum sonho que eu no tinha a menor idia de como iria realizar. Mas ele erado tipo que adora ajudar as pessoas e, logo que soube das minhasintenes, comprou o meu sonho como se fosse dele e me ajudou com tudo:alm das aulas, ele desencavou pra mim uma bolsa de estudos e, quandofosse para a Inglaterra, ficaria hospedado na casa de uma tia dele.

    A nica coisa que irritava Nate era a insistncia de seus alunos brasileiroseu inclusivede fazer sempre as mesmas piadinhas com a histria do thebook is on the table (o livro est sobre a mesa). Ele dizia que, se ganhasseum centavo cada vez que um aluno fazia alguma piadinha idiota daquelas, jteria uma fortuna maior que a da Rainha da Inglaterra.

    Ficamos muito amigos e comeamos a sair juntos. amos para as maisdiversas baladas e nos divertamos a bea. Como no tenho a menorresistncia para o lcool, eu acabava fazendo o papel de motorista amigo darodada, porque o Nate, como bom sdito de Sua Majestade, bebia pra

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    caramba. Perdi a conta de quantas vezes eu o levei de volta para casacompletamente bbado.

    Alm da bebedeira, outra coisa que o Nate tinha de bem caracterstico era afalta de sorte. Pensou num cara azarado, pensou no Nate. Especialmente setinha mulher na parada. No dava para dizer o que era pior nas mulherescom quem o Nate saa: se a aparncia fsica ou o carter, porque ele pegavaumas barangas que, alm de horrorosas, geralmente acabavam seaproveitando dele. Assim, mesmo ganhando bem, o Nate estava sempreenrolado.

    Fora as mulheres e a bebida, Nate tinha nas veias o vcio da leitura. Lia tudo,

    absolutamente tudo que lhe caa nas mos. Queria deixar o Nate feliz,bastava lhe dar um livro de presente. Qualquer um. De romances gua-com-aucar a literatura de cordel, livros tcnicos de reas em que ele nunca iriatrabalhar, revistas sobre todo e qualquer assunto, fosse o que fosse, falassesobre o que falasse, o Nate lia. Tambm no importava a lngua: aprenderapelos menos seis idiomas diferentes apenas lendo. Seu passeio favorito eragarimpar os sebos ali do centro de So Paulo.

    Pois foi numa dessas garimpagens que o Nate encontrou o que para ele era

    um pequeno grande tesouro. Cheguei para a aula daquela noite e elepraticamente me empurrou para dentro de seu apartamento. Estavaansiosssimo.

    - Voc no vai acreditar no que encontrei hoje.

    - Pela sua animao, deve ter encontrado um manuscrito do Shakespeare.

    - Quase isso. Olha s:

    Em suas mos, uma coisa que eu imaginara s existir na cabea de ummaluco chamado Stephen King: pois bem ali na minha frente estava umexemplar do famigerado De Vermiis Mysteriis Os Mistrios do Verme.

    - Achei que s existisse na fico.

    - Eu tambm, mas olha s: existe de verdade. E agora meu.

    - Considerando que se trata de um livro de magia negra, acha realmente queser o dono dele uma coisa boa?

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    - Ora, s voc mesmo! apenas um livro!

    Eu assumo: sou supersticioso, medroso e fujo dessas coisas. Tanto que fiz

    questo de nem mexer no tal livro.

    Nate ficou um pouco decepcionado com minha reao, mas deixou o assuntode lado. Comeamos a aula e no falamos mais sobre o assunto.

    Aos poucos, as coisas comearam a mudar para Nate. Sua habitual m sortefoi se revertendo.

    Comeou com coisas pequenas, como vagas de estacionamento. Nate j se

    habituara a parar longe de onde queria ou precisava ir. De um tempo para c,no precisava nem fazer esforo para procurar. Sempre tinha algum saindoda melhor vaga, bem na frente do carro do Nate, bem na hora em que eleestava chegando.

    Ingressos de jogos, cinema, teatro, shows. Sempre tinha algumdesesperado, vendendo ou doando ingressos na ltima hora por causa dealgum imprevisto. E l estava o Nate para aproveitar a boa sorte.

    Mas eu s pude mesmo ver o quanto a sorte de meu amigo havia mudadoquando ele me apresentou a nova namorada. Nate sempre gostou dasmulheres brasileiras: negras, mulatas e morenas, longe daquele padrobranquelo ao qual ele mesmo pertencia. Alis, eu tinha certeza que este forao fator principal para que ele tivesse resolvido morar aqui no Brasil. Agora,depois de tanto tempo pegando os tribufus mais horrveis que a terra brasilispoderia oferecer, Nate estava namorando Slvia. Esquea Isabel Fillardis,Naomi Campbell, Tas Arajo ou qualquer outra beleza negra que voc tenhavisto em sua vida. Silvinha botava todas no chinelo.

    Para no dizer que tudo eram flores na vida do Nate, Dona Nora, a me daSlvia, teve um troo quando viu o namorado da filha. Dona Nora me-de-santo e botou Nate para fora da casa dela aos berros, gritando que o gringotinha parte com o Demo, que exu guiava os passos do gringo, coisas assim.Slvia ficou morrendo de vergonha. Mas, apesar da oposio da me, elacontinuou firme com o Nate. Acabou indo morar com ele, pois a mecolocava uma oposio to ferrenha ao relacionamento que o convvio entreas duas ficou insuportvel.

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    Naquela segunda-feira, quando cheguei para a aula, percebi que Nateparecia preocupado com alguma coisa.

    - O que houve, parceiro?

    - Lembra do Mistrio do Verme?

    - Ah, sim.

    - Encontrei com o antigo proprietrio do livro l no sebo. Fui l no sbado demanh e o vendedor me apontou o sujeito, j que eu tinha comentado quequeria conhecer quem havia vendido uma raridade daquelas.

    - E pelo visto a conversa deve ter sido sinistra, porque voc est com umacara horrvel.

    - Bom, o funcionrio do sebo gritou pra ele algo como olha, esse moo aquicomprou teu livro e quer falar com voc. Acredita que o cara tentou fugir?

    - Srio? E a?

    - Corri atrs dele e encurralei o cara contra uma prateleira. Ele caiu dejoelhos e comeou a chorar feito criana, me pedindo perdo.

    - O qu?!?

    - Srio. Ele disse que tinha tentado vrias vezes destruir o livro, mas que olivro sempre voltava para ele. Que ento botou o livro a venda no sebo e sassim o livro parou de persegu-lo.

    - Que conversa mais macabra!

    - E no acabou. Ele me implorou para que no lesse o livro e que procurassepass-lo para frente o mais breve possvel.

    - Isso eu mesmo j tinha te falado.

    Nate tomou flego e continuou:

    - Bom, mas tem algo que me preocupa mais. Ele disse que o livro cobrariacaro por toda a boa sorte que me trouxesse.

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    - Olha, cara, eu j tinha te falado para sumir com esse troo. Se depois deuma conversa medonha dessas voc no fizer nada, porque todo JohnnieWalker que voc bebeu acabou de vez com o seu juzo! O cara falou mais

    alguma coisa?

    - No, eu me distra e ele fugiu.

    - E agora, o que vai fazer?

    Mas Nate no pode me responder. Silvia chegou na sala e achamos por bemmudar de assunto.

    Entrei de frias no trabalho e viajei pro interior, para rever minha famlia.Assim, durante trinta dias no vi Nate nem tive notcias dele. Quando voltei,ele me parecia pssimo.

    - T tudo bem, Nate? - perguntei, mas j imaginava que rumo a conversa iatomar.

    - Algumas coisas vo bem, mas outras esto me deixando maluco.

    - O que houve?

    - Silvia esta grvida!

    - Ora, mas isso maravilhoso! E qual o grande problema?

    - No consigo me livrar do Mistrio do Verme!

    - O que uma coisa tem a ver com a outra? No estou entendendo...

    - Lembra do que o dono anterior do livro me falou? Era verdade. Tentei jogaro livro fora, os lixeiros me devolveram, achando que tinha sido jogado forapor engano. At a, tudo bem, podia ser s coincidncia. Mas, quando tenteide novo, eu o rasguei em pedaos para garantir que no voltaria. Quinze diasdepois eu recebi um pacote annimo pelo correio e l estava o livro. De novo!Intocado!

    - No possvel!

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    - Estou com medo, cara! Estou com medo pela Silvia, pelo beb, por mim...Agora entendo o tal sujeito. Amanh tarde eu vou at algum sebo, bemlonge daqui e ponho o livro venda. E Deus e quem tiver a infelicidade de

    compr-lo que me perdoem.

    - Amanh tarde? Por que no amanh cedo?

    - Amanh cedo a Slvia vai precisar do carro. Vai ao mdico para fazer umultrassom.

    Ao final da tarde do dia seguinte, cheguei em casa do trabalhocompletamente acabado. Desabei no sof e liguei a televiso para me

    distrair. Zapeando entre os canais, passei por um desses jornais que snoticiam desgraa. A principal manchete do dia era sobre uma van,carregada de fogos de artifcio, que explodira naquela manh, em plenaMarginal do Tiet, aps bater contra um carro de passeio.

    Na tela, a imagem mostrava uma enorme cratera no asfalto, tendo no centroas carcaas da tal van e do carro de passeio, completamente carbonizadas.Mas foi o comentrio do reprter que realmente chamou minha ateno:

    - ... o mais incrvel, senhoras e senhores, que havia um livro no porta malasdo carro de passeio que NO FOI destrudo na exploso. O telespectadoracredita nisso? Olha a cratera que a exploso abriu, vocs viram imagens dofogo e esse livro foi encontrado pelos bombeiros intacto...

    Aquilo no podia ser coincidncia. Sa correndo feito louco e cheguei aoapartamento de Nate. Por baixo da porta de entrada, corria um filete desangue. A porta estava apenas encostada.

    Ao entrar, deparei com a origem do sangue: Nate estava cado no cho dasala de estar, com os pulsos cortados. Corri at meu amigo:

    - Nate, pelo amor de Deus, Nate!

    - Shes dead... thebaby is dead get rid of the book please (Elaest morta o beb... est morto livre-se do livro... por favor...)

    Notei que no ia adiantar falar em portugus com ele naquela hora.

    - And where is the book, Nate? (E onde est o livro, Nate?)

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    - The book is on the table (O livro... est sobre... a mesa...)

    Nate no conseguiu dizer mais nada. Estava morto.

    Dizem que Deus est nos detalhes. Neste dia descobri que o diabo tambmgosta deles. A frase que tanto irritava meu amigo se converteu em suasltimas palavras. Aberto sobre a mesa, o livro maldito parecia rir de ns, denossa dor, numa terrvel piada de mau gosto.

    FIM

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    Um Acidente De Trabalho

    A cidade de Portal do Norte s no podia ser chamada de terra-de-ningumpor um motivo: ela sempre pertencera famlia de Tomaz Carvalhal.

    Dono de metade das indstrias que compunham o pequeno plo qumico quedera origem cidade e acionista de todas as outras Tomaz podia serdefinido por duas palavras: truculento e tacanho.

    Os trabalhadores de suas fbricas sabiam que elas eram um pesadelo emtodos os aspectos: em gesto ambiental, segurana e direitos do trabalho. Eassim continuariam, pois todos tinham medo. O ltimo delegado sindical queousara questionar os mtodos de Tomaz fora encontrado morto, engasgado

    ao engolir os prprios genitais.Como engenheiro de Segurana do Trabalho das Indstrias QumicasCarvalhal, Srgio Trigueirinho sabia ter ali uma funo meramente figurativae gostava muito desta idia. Assim, era muito a contragosto que estava ali,nos fundos da fbrica, discutindo com Seu Totonho da Empilhadeira.

    Seu Totonho, apelido que Seu Antnio ganhara quando entrou na empresaainda jovem, agora estava s vsperas de sua aposentadoria. Contornara

    todas as dificuldades at ali, nunca se recusara a nenhum trabalho, mas oque estavam lhe pedindo era suicdio.

    - Escuta o que eu t falando, Trigueirinho. O hidrulico dessa empilhadeiraprecisa de manuteno urgente. Manobrar com ela desse jeito, nessescorredores estreitos, com essas prateleiras podres e sobrecarregadas, suicdio! loucura! Pode acabar em desgraa!

    Srgio Trigueirinho mediu o velho de alto a baixo. E sacou o seu melhorargumento:

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    - Faltando trs meses pra aposentadoria, o senhor no devia perder tempocom bobagem, n Seu Totonho? deu um sorrisinho cnico Daqui a poucoisso nem mais problema seu...

    Seu Totonho entendeu rapidinho onde o dito homem da segurana queriachegar. No tinha escolha. No havia para quem apelar, a no ser a Deus.

    Naquela tarde, j prximo do final de seu turno, Seu Totonho colocava oltimo tambor do dia sobre uma pilha perigosamente alta quando perdeu ocontrole da direo. O tambor caiu sobre a empilhadeira, rompeu-se ebanhou o pobre homem com todo seu contedo. Como todas as providnciasde segurana eram negligenciadas, Seu Antnio morreu ali mesmo, no fundo

    do galpo, sozinho, agonizando lentamente enquanto os resduos qumicosderretiam seu corpo. S foi encontrado porque a turma tinha combinado jogardomin no boteco em frente fbrica e estranhou a falta de Seu Antnio. Ocorpo ficou completamente desfigurado. O velrio teve de ser feito com ocaixo lacrado.

    O Ministrio Pblico moveu uma ao contra a empresa de Tomaz Carvalhal,mas este era poderoso e bem relacionado. O processo arrastou-se nalentido da justia e acabou sendo arquivado.

    Na noite em que receberam a notcia do arquivamento do processo, Maria deLourdes, filha mais nova e xod de Seu Antnio, apesar de adulta, acabouacordando a me no meio da noite:

    - Me?

    - Que , Lurdinha? a me levantou-se assustada Por que est meacordando a essa hora?

    - Me, eu tava sonhando com o Pai.

    - xe, minha filha...

    - Mas me, o Pai num tava no normal dele, no.

    - O que ele tinha, Lurdinha?

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    - O Pai tava de um jeito que eu nunca vi, Me. Fiquei at assustada.O Pai tava se ardendo de dio...

    Se tinha uma coisa sagrada para Tomaz Carvalhal, era seu sono. Por issoera muito bom que o filho da me que estivesse do outro lado da linha tivesseum excelente motivo para acord-lo aquela hora ou ia ser pendurado pelosbagos na Praa da Matriz.

    - Al!

    - Chefe, o senhor me desculpe ligar a esta hora, mas um problema dosgrados...

    - Mas diga logo o que foi, excomungado! E bom que seja um bom motivo,porque eu no t pra brincadeira a uma hora destas.

    - Chefe, coisa grande! Melhor no falar por telefone. Se o Ministrio Pblicotiver grampeado a linha, vai ser uma desgraa...

    Aquilo parecia srio. Tomaz Carvalhal desligou e foi trocar de roupa. Nemchamou seu motorista, preferiu ele mesmo guiar at a fbrica. Pra problemade tanta cautela, quanto menos testemunhas, melhor.

    Srgio Trigueirinho sabia que, se Tomaz Carvalhal chamava, ele tinha de sero primeiro a chegar. Baba ovo de confiana do homem, ele cuidava da roupasuja do todo-poderoso de Portal do Norte. E o homem adorava confuso.

    Portanto, no importava se eram trs horas da madrugada da noite mais friados ltimos vinte e trs anos na regio: Srgio Trigueirinho estava l,aguardando o chefe, onde ele o mandara esperar.

    Estava se borrando de medo. Desde que o falecido Seu Totonho tinha idodesta pra melhor ali no galpo de resduos, Trigueirinho evitava aquele lugara todo custo. Agora tinha a infelicidade de estar ali no meio da noite.

    Foi por isso ficou to aliviado quando Tomaz Carvalhal chegou.

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    - Muito boa noite, Chefe!

    - Vamos parar de frescura, Trigueirinho. Por que diabos voc me fez vir pra

    este lugar maldito s trs horas da madrugada?

    Trigueirinho no entendeu nada.

    - Mas Seu Tomaz, foi o senhor quem me ligou pra que eu viesse aqui...

    Tomaz Carvalhal no era famoso por seu bom humor e aquela brincadeiraimbecil do borra-botas do Trigueirinho estava lhe tirando do srio. Agarrandoo puxa-saco pelo colarinho, esbravejou:

    - Escute aqui, filho de uma gua, voc perdeu o amor vida? Se no eravoc no telefone, quem era?

    - Mas Chefe, eu...

    Srgio Trigueirinho no teve tempo de se explicar. As luzes do galpocomearam a piscar.

    - Mas que diabo...

    Num canto do galpo, a empilhadeira, ainda enguiada e com a pintura todaqueimada pelos produtos qumicos, de repente ligou-se sozinha. Manobrandocom extrema habilidade, sem ningum visvel na direo, desviou-se de umapilha de tambores e partiu na direo dos dois homens, em alta velocidade.

    Aproveitando que j estava com Trigueirinho em suas mos, TomazCarvalhal no hesitou e atirou o puxa-saco na frente da empilhadeira, para

    tentar ganhar tempo para sua prpria fuga.

    Cado de joelhos, Srgio cruzou os braos em frente ao corpo e gritou:

    - Me valha, Nosso Se... mas antes que pudesse falar o santo nome deNosso Senhor, o garfo da empilhadeira atravessou sua barriga. O sangue

    jorrou em grande volume, tingindo o cho e as prateleiras em volta. Com umavelocidade fora do comum, o garfo subiu at a altura mxima, levantandoconsigo o corpo de Srgio Trigueirinho.

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    Tomaz Carvalhal ficou esttico, assistindo quela cena. Trigueirinho,agarrando-se ao garfo, tentava inutilmente arranc-lo de seu corpo.

    Agonizante, tentou pedir ajuda a Tomaz Carvalhal para tir-lo daquela

    situao:

    - Seu Tomaz... soco... nem conseguiu terminar. Um ltimo jorro de sanguesaiu pela sua boca e o infeliz morreu ali mesmo.

    Como se fosse um guerreiro brbaro comemorando a morte de seuoponente, a empilhadeira comeou a girar e girar, cada vez mais rpido, atque o corpo do engenheiro de segurana foi atirado longe, caindo sobre umapilha de tambores vazios.

    O barulho tirou Tomaz Carvalhal de sua inrcia. Comeou a correr comolouco em direo porta do galpo. A empilhadeira, sem hesitao, saiu emseu encalo.

    Tomaz Carvalhal sabia que se corresse em linha reta seria facilmentealcanado e que teria o mesmo destino do puxa-saco. Assim, aproveitando-se de sua maior agilidade, corria fazendo ziguezague entre as prateleiras.

    A empilhadeira seguia Tomaz Carvalhal de perto, lutando para contornar osobstculos e alcan-lo. O pnico o impulsionava para a frente, mas osmuitos anos de vida sedentria e o vcio do cigarro cobravam agora, com

    juros, todo o prazer que haviam proporcionado. Os pulmes ardiam,implorando por ar; o corao ameaava explodir com o esforo.

    Na correria para fugir, Tomaz acabara tomando um rumo totalmente opostoao que desejava. Ao invs de chegar at a porta principal do galpo, chegaraa um canto onde as prateleiras formavam um beco sem sada. Apoiando-se

    numa delas, percebeu pelo silncio que a empilhadeira havia parado depersegu-lo.

    Lutando para controlar o pnico, olhou para trs. A empilhadeira estavaparada de frente para um grupo de prateleiras que, paralelas entre si,ocupavam todo o espao at o corredor onde Tomaz estava parado. Paradadaquele jeito, parecia estar zombando do desespero de sua vtima.

    Olhando sua volta para tentar encontrar uma sada, Tomaz Carvalhal

    percebeu um detalhe que fez seu peito gelar: as prateleiras que o cercavamestavam cheias de tambores vermelhos; as que o separavam da

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    empilhadeira, cheia de tambores verdes. As substncias armazenadas nelestinham nomes mais compridos que o seu brao e a mistura das duasresultava em duas coisas ainda mais desagradveis: primeiro, numa

    substncia com um nome ainda maior e mais impronuncivel; a segunda,uma exploso de propores catastrficas.

    Paralisado pelo medo, Tomaz viu a empilhadeira empurrar a primeira dasprateleiras, que desabou empurrando todas as outras, numa dana dosdomins que pareceu extremamente lenta, at que a ltima atingisse o lugaronde ele se encontrava.

    Estranhamente, no foi atingido pela queda das prateleiras nem dos

    tambores nelas armazenados. Mas ficou preso, assistindo impotenteenquanto os dois lquidos escorriam lentamente em direo um ao outro.

    Pouco antes da exploso que destruiu as Indstrias Qumicas Carvalhal, aviva de Seu Totonho acordou com o choro da filha mais nova. Levantou-see foi at o quarto dela.

    - Lurdinha? Voc t bem? Sentou-se na cama ao lado da filha e tentouconsol-la. - Que foi, sonhou com seu pai novamente, foi?

    - Ai, Me, sonhei sim.

    - E ele ainda estava bravo como nos outros sonhos?

    - No, me. Dessa vez, no. Ele tava de longe, me acenando, sorrindo.

    A filha enxugou as lgrimas dos olhos e completou sua histria, com umsorriso triste:

    - Desta vez ele parecia estar completamente em paz!

    FIM

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    Cuidado Com O Que Deseja

    Ela executou o ritual com extrema preciso. No precisou esperar muito atque na cadeira sua frente se materializasse um espectro, similar a sombra

    de uma pessoa.

    - Por que me chamaste?

    - Porque tenho um desejo!

    - E qual seria ele?

    - Quero permanecer assim, jovem e bela para sempre!

    - E por qu?

    - Porque adoro provocar o desejo dos homens e a inveja das outrasmulheres!

    - Ento te levanta! Desnuda teu corpo! Teu desejo ser atendido!

    - Simples assim? Que vais me pedir em troca?

    - Nada! Meu desejo se realiza em atender o que queres.

    Feliz, ela levantou-se e deixou seu vestido cair ao cho, revelando aperfeio de seu corpo.

    Foi impossvel para ela no ouvir a discusso dos dois. Mesmo depois detantos anos, ainda acontecia a mesma coisa quando um casal passava porela:

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    - Ai! Que foi?

    - Eu vi a forma como voc estava olhando para ela... E ela nem tudo isso!

    - Ah, para de bobagem!

    - Por isso que eu nem gosto de vir nessa praa. Sempre que a gente passapor essa sirigaita a mesma coisa...

    - E precisa ficar com cime? apenas uma esttua...

    FIM

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    Sombras, Delrios e Outros Horrores Volume I Pgina 42

    Feliz Aniversrio, Barreto!

    Tudo comeou com uma leve dor nas costas, que Barreto imaginou ser maisuma das muitas provocadas pelo banco do carro. O infeliz que projetou

    aqueles bancos devia ser condenado a passar o resto da eternidade sentadoneles, para ver o que era bom.

    O problema foi que o dia ia passando e nada da dor cessar. J tomara doisanti-inflamatrios e nada. No conseguiu produzir muita coisa no trabalho,sem falar no mau humor. s cinco horas, deu graas a Deus quando o sinalde sada tocou. Foi para o carro quase correndo.

    Quando chegou em casa, no encontrou ningum. Nem um bilhete. Mas com

    a dor piorando cada vez mais, no conseguiu nem raciocinar sobre ondepoderiam estar a mulher e os meninos. Melhor assim: eles iam encher o sacopra que ele fosse ao mdico, que era a coisa que ele mais detestava na vida.

    Tudo que o Barreto mais queria naquela hora era tomar um banho, engolirmais um anti-inflamatrio e cair na cama. Era uma quarta-feira, ia ter jogo doBrasileiro, mas ele no ia aguentar.

    Jogou a roupa de qualquer jeito sobre a cama. Se a mulher visse ia falar pra

    caramba, mas ia ser um banho rpido. Depois ele dava um jeito. Estavalouco pra dar uma mijada, o resto podia esperar.

    Posicionou-se em frente a privada e foi a que o inferno abriu as portas:sentiu uma dor to lancinante na altura dos rins que acabou vomitando. Noaf de se apoiar para tentar no sujar o cho, escorregou e foi direto com oqueixo na vlvula de descarga. J zonzo de dor, acabou desmaiando.

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    Sombras, Delrios e Outros Horrores Volume I Pgina 43

    Quando a mulher do Barreto viu o carro parado na garagem, xingoumentalmente a mulher do bolo pela milionsima vez. No bastasse aqueletrnsito de So Paulo, quando chegou na casa da mulher o bolo ainda no

    estava pronto. Aguardou mais de quarenta minutos para que terminasse deassar e pudesse ser montado e confeitado. E tome mais trnsito na volta.Tudo isso regado a baguna dos dois moleques, que insistiam em no ficarquietos de jeito nenhum.

    Mandou os meninos entrarem na frente e distrarem o pai. S estavapreocupada para que ele no visse o bolo. Ele no ia lembrar que era seuaniversrio no dia seguinte; na verdade, se no fosse ela, ele no ia nemlembrar que essa tal coisa chamada aniversrio existia. Nem o seu prprio,

    nem o de ningum, especialmente o aniversrio de casamento.

    Perdida em seus pensamentos, assustou-se com o grito de me, que veionum tom muito mais desesperado do que de costume.

    Barreto trocou as contores por causa da dor pelo tiritar de frio. Por queenfermaria tem que ser um lugar to frio desse jeito? pra gente morrer e o

    cadver j ficar preservado?

    Irritado odiava hospital Barreto praguejava baixinho contra o lenol fininhoque no lhe protegia do frio, contra aquele maldito camisolo, que deixava abunda mostra cada vez que ele levantava da cama, contra a enfermeiraque conseguira furar sua veia e deixar seu brao todo roxo, contra o soro quepingava lentamente e, especialmente, por aquela porcaria de plano de sadeda empresa o ter colocado numa enfermaria sem televiso. Estava irritado emorrendo de tdio. No tinha tambm nenhuma companhia para conversar.

    A mulher e os meninos j tinham ido embora, ele ficou para observao. Decerta forma, tinha que ficar feliz por estar internado. O mdico disse que oplano de sade no aceitaria pagar pela internao por causa da pedra nosrins, mas ficou claro que outra crise daquelas sem tratamento adequado e oBarreto poderia sofrer graves complicaes. Ento o mdico explicoudireitinho o que ele deveria falar caso algum comeasse a lhe fazerperguntas sobre seu problema.

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    - E por favor, senhor Barreto, tome cuidado. Eles perguntam primeiro e osenhor s vai saber que era o mdico do plano de sade quando vier a contado hospital. Pode complicar minha vida e a sua.

    Incapaz de dormir por causa do frio e da raiva, ficou observando pela janelada enfermaria o movimento no corredor. Mas, como j era de madrugada, smuito de vez em quando algum de branco passava para l ou para c.

    No soube dizer exatamente o que era, mas alguma coisa naquele mdicoalto e magrelo o tinha desagradado. De cara, o jaleco branco cobria as suasmos at a metade e seu pescoo flutuava dentro da gola. A mulher doBarreto definiria com certeza como um clssico caso de o defunto devia ser

    maior. O sujeito ficou um tempo parado em frente ao vidro, s olhando paradentro da enfermaria. Barreto ficou se perguntando o que tanto ele olhava,pois as luzes estavam apagadas e no dava para ver quase nada l dentrocom a pouca luz que vinha do corredor.

    Quando o magrelo entrou no quarto e acendeu a luz na sua cara, Barretoteve que juntar toda a educao que recebera dos pais para no mandar omdico pros quintos dos infernos. Ser que era por isso que mdico no serefere a gente como cliente, mas como paciente? Porque tudo naquele

    momento parecia ser feito para testar a pacincia dele. E ela estava no limite.

    - Boa noite, Senhor Barreto! O mdico entrou e fechou a persiana do vidroque lhe permitia ver o corredor. Apanhando o pronturio nos ps da cama,continuou - Pedrinha no rim, hein?

    - Pode ser uma pedrinha, mas est doendo pra caramba. Algum motivoespecial para me acordar, doutor? J estava matando a charada. Devia sero tal mdico do plano de sade. Olha s que safadeza: vindo de madrugada,

    para ser mais difcil de algum mentir para ele!

    - Nada, avaliao de rotina. Estou vendo aqui no seu pronturio que hoje seu aniversrio.

    - mesmo? Nem lembrava.

    Enquanto o mdico parecia entretido em continuar avaliando seu pronturio,Barreto ficou pensando: bem, aquilo explicava porque no tinha ningum em

    casa quando ele chegou. Na certa, a mulher havia encomendado um bolo e

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    estavam preparando uma festa surpresa. Sentiu-se culpado: ela nuncaesquecia uma data especial; j ele...

    Assustou-se ao perceber que o mdico estava com o rosto quase colado aoseu. Nem percebera que ele havia se aproximado tanto. Mas no teve tempopara nenhuma reao. Apesar de magrelo, o cara tinha uma fora e tanto.Com apenas uma das mos, agarrou o pescoo de Barreto, imobilizando-o.

    Barreto se debatia, mas no conseguia se soltar. Apavorado, viu os olhos dosujeito assumirem uma cor vermelho sangue e seus caninos superiorescrescerem em presas descomunais.

    - Seu tmulo vai chamar ateno no cemitrio. Coincidncia nascer e morrerna mesma data, no mesmo?

    A ltima coisa que ouviu antes de morrer foi o irnico comentrio do vampiro:

    - Feliz aniversrio, Barreto!

    FIM

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    O Senhor Das Moscas

    No faz muito atravessei um perodo de to forte crise espiritual que escreviuma longa carta a um monsenhor que admiro e estimo, contando-lhe tudo.

    Usei nessa carta confessional a expresso: sinto que minha f est presapor um fio. Sabe o que ele me respondeu? Que se regozijava por saber quea coisa era assim, pois no confiava muito nas chamadas fs inabalveisdessas que julgam poder deslocar montanhas. So demasiadamente teatraispara serem profundasescreveu o monsenhor. O fio que prende a sua fdeve ser do melhor ao e portanto resistente e ao mesmo tempo flexvel. Fsem flexibilidade, f sem dvida pode acabar em fanatismo.Terminou acarta assim:Reze a Deus, pea-lhe para que faa esse fio resplandecersempre a Sua luz.

    Padre Pedro Paulo Incidente Em Antares, de rico Verssimo

    Parte I As Peas Do Jogo

    Padre Tiago sempre trouxera dentro de si uma certeza e uma dvida.

    A certeza era que cham-lo de Homem de Deus no era uma descrioprecisa de sua pessoa. Ele tinha a sua f, claro, mas dizer que tinhavocao era ir longe demais sem saber a verdade dos fatos.

    Nascido numa famlia muito pobre do interior do Paran, o pequeno Tiagotinha duas opes: passar o resto de sua vida na roa com a famlia ou entrarpara um seminrio, se tornar padre e poder dar prosseguimento aos estudosque a famlia jamais poderia pagar. Ele no hesitou nem por um segundo.

    No seminrio descobriu que no estava sozinho e que, antes de seremhomens de f, os religiosos so essencialmente... homens. Muitos outros l

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    estavam por vrios motivos que no o atendimento a um chamado divino. Emesmo os que davam claros sinais da vocao sacerdotal tinham seusdefeitos, suas falhas, suas dvidas, seus momentos de fraqueza. Isso lhe

    deixava com a conscincia bastante tranquila sobre a escolha que fizera.

    Aps a concluso de seus estudos no seminrio, seus superiores decidiramcoloc-lo para trabalhar em um abrigo para crianas e adolescentes vtimasde abuso sexual. Padre Tiago descobriu ento sua verdadeira vocao:cuidar daquelas crianas, para ele, se tornou o que dava sentido para suavida.

    Ficava chocado com as histrias daquelas crianas. Muitas vezes o abuso

    vinha por parte daqueles que deveriam ser a maior fonte de proteo ecarinho: tios, avs, padrastos, pais, tias, madrastas, mes. Sim, meus caros,mulheres tambm cometem abusos sexuais contra crianas, mes tambmmaculam seu amor maternal dessa forma. muito menos comum, masacontece. E tem o mesmo efeito devastador.

    Recuperar o que fosse possvel da autoestima, da confiana, da esperana edos sonhos destrudos pelo abuso, talvez esperar que um dia o sorrisovoltasse aqueles rostinhos, de onde nunca deveriam ter sado. Aquilo passou

    a ser seu grande objetivo. Por aquelas crianas, Padre Tiago enfrentou adura jornada conciliando suas atividades como padre, o atendimento noabrigo, os estudos de graduao em Psicologia e os diversos cursos deespecializao no atendimento de vtimas de pedofilia que vieram depois.

    Todo esse esforo tambm tinha a ver com a dvida que atormentava PadreTiago. Tratar pessoas que passaram por experincias to devastadoras no uma cincia exata. Padre Tiago sabia que haveriam as lembranas,assombrando para sempre os cantos escuros das mentes dos pequenos.

    Alguns talvez at enveredassem pelo mesmo caminho de sombras, muitosabusadores haviam sido vtimas de abuso quando crianas. Ele jamaispoderia ter a pretenso de cur-los por inteiro ento, ser que o que ele faziaera bom o suficiente? Ser que no havia mesmo mais nada que ele pudessefazer por aquelas crianas? Ser que ele realmente estava ajudando?

    As crianas tambm eram a grade fonte da quase infinita pacincia de PadreTiago. Especialmente da pacincia que ele tinha que exercitar com o BispoHermano, seu superior direto. Se Padre Tiago jamais tivera problemas em

    cumprir seus votos de castidade e pobreza, umas tantas vezes passara perto

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    de mandar seu voto de obedincia s favas e dar uns bons cascudos nosujeitinho.Como todo bom carreirista, o Bispo Hermano tinha o dom de colocar suas

    prioridades a frente das da Santa Madre Igreja. Era um grande especialista na arte daautopromoo. Os recursos da diocese no eram distribudos em funo dasnecessidades reais, mas em funo do que lhe daria mais visibilidadeperante seus superiores.

    Ele nutria uma grande antipatia por Padre Tiago. Primeiro, porque PadreTiago sempre queria mais dinheiro para cuidar de suas crianas. Sempremais pedidos de verbas para o abrigo, pedidos de verbas para estudos. E ele

    precisava desse dinheiro para promover, assim digamos, as boas obras dadiocese.

    Em segundo, porque toda aquela especializao num assunto to polmico,mais cedo ou mais tarde iria colocar Padre Tiago em evidncia na mdia.

    Alguns reprteres j haviam pedido autorizao para entrevistar o padre, maso Bispo negara. Morria de medo que o padre, ou qualquer um que fosse,ganhasse mais visibilidade do que ele.

    Padre Tiago no sabia do interesse que a mdia chegara a ter por ele e,mesmo que soubesse, s lhe interessaria se fosse servir para conseguiralguma coisa para as crianas. Para si mesmo, ele mantinha um nico epequeno luxo: uma garrafinha de bolso, que ele mantinha sempre cheia deJohnnie Walker Red Label, que apreciava com a devida moderao.

    Mas, se no podia ter certeza de que os frutos de seu trabalho eramrealmente suficiente para aquelas crianas, outros no pareciam ter dvidade quanto o padre era capacitado.

    Era muito comum que o Conselho Tutelar solicitasse sua opinio em algumassituaes. Assim, quando aceitou dar seu parecer no caso do pequenosLucas, de apenas dez anos, Padre Tiago o fez acreditando que sua jornadade vida o tivesse preparado para encarar o que ia encontrar pela frente.

    Lucas era filho de Amaro Nadel, homem rico e poderoso, milionrio do ramoda construo civil. Segundo o relatrio que recebera do caso, tudocomeara quando a empreiteira do pai de Lucas fora envolvida em

    escndalos de corrupo. Durante a investigao, computadores foramapreendidos e neles, alm das provas dos crimes de colarinho branco, os

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    policiais encontraram vasto material pornogrfico, incluindo fotos e vdeoscaseiros dos abusos cometidos pelo sujeito contra o prprio filho.

    A tentativa de prender o pai de Lucas terminou em tragdia. Encurralado emseu escritrio, o empresrio recebeu as autoridades bala e morreu notiroteio. Morreu rindo da morte. Suas ltimas palavras foram desprovidas dequalquer sentido: Minha alma no mais minha, mas o menino meu. Meupara o que eu quiser. E eu vou viver pra sempre atravs de meu filho.

    O Conselho Tutelar queria uma opinio do Padre para decidir se manteria ouno a guarda do garoto com a me, Carolina Nadel. Famosa por ser toarrogante quanto o marido, a socialite no parecia estar adaptando-se bem a

    nova rotina de sair das colunas sociais para as colunas policiais.

    Como j estava tudo acertado entre a Justia e a me do menino, s restou aPadre Tiago acordar cedo aquela manh. Celebrou a missa e, a seguir, foiat a garagem pegar o velho e pequeno Gurgel que a diocese colocava disposio do abrigo. Teria uma pequena viagem pela frente.

    Parte II O Tabuleiro

    Em condies normais, os Nadel receberiam quem quer que fosse em sualuxuosa manso no bairro do Morumbi. Em condies normais, dificilmenteos Nadel receberiam um padre em sua casa, salvo isso fizesseobrigatoriamente parte de alguma cerimnia social, como um casamento.Mas aquelas estavam longe de ser condies normais.

    A manso, assim como a grande maioria dos bens do casal Nadel, estavam

    bloqueados pela justia, devido investigao da Polcia Federal. MasCarolina Nadel, naquela altura do campeonato, no queria ficar mesmo namanso. A macia presena dos reprteres na entrada de sua casa tiravam-lhe qualquer chance de ter um mnimo de privacidade.

    Assim, numa manobra hollywoodiana, os advogados da famlia costuraramum acordo com a Justia e Carolina Nadel e seu filho Lucas puderam seesconder em um pequeno mas extremamente luxuoso stio que ningum,alm do prprio casal, tinha conhecimento de que pertencia ao falecido

    milionrio. Era para l que a famlia ia quando queria um pouco de sossego.

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    A estrada que dava acesso ao stio era terrvel. Amaro Nadel a mantiveradaquela forma para manter o local ainda mais discreto e inacessvel. Dedentro dos maravilhosos veculos off road que a famlia possua, a

    conservao da estrada pouco importava.

    Naquela manh, Padre Tiago estava dando graas a Deus pelo Gurgelzinhoda diocese. Se estivesse em um carro comum, provavelmente estaria presonaquela estradinha horrvel, com uma suspenso completamente destruda euma tremenda cara de idiota, esperando pelo socorro que nunca iria chegar.

    Seguindo o mapa que a assistente social lhe mandara, Padre Tiago chegouat uma cerca, onde uma cancela automtica e um porteiro eletrnico

    esperavam quem se aventurasse pela estradinha infernal.

    Carolina Nadel demorou um bocado para atender campainha. Sua voz noporteiro eletrnico pareceu meio pastosa, a fala lenta sugerindo o uso detranquilizantes. Isso incomodou Padre Tiago. No era bom que uma mulhernaquele estado estivesse ali sozinha para cuidar de uma criana numasituao to crtica, pensava enquanto a cancela ia se abrindo.

    Subindo com o carro por uma bela alameda arborizada, foi impossvel para

    Padre Tiago no ficar impressionado com o luxo da propriedade quandoparou o carro.

    A ampla varanda apresentava vrias redes penduradas, quase implorandopara que algum deitasse nelas. A casa deveria ter no mnimo uns vintequartos, era possvel contar dez sacadas que davam vista para a maravilhosapiscina da propriedade. Padre Tiago no pode deixar de se imaginar pulandode uma daquelas sacadas para a piscina e nadando para sair do outro lado,de frente para o quiosque com a churrasqueira.

    Provavelmente, do outro lado, as sacadas deveriam dar vista para asquadras. No dava para ver dali onde ele estava, mas duvidava muito queno houvesse pelo menos uma quadra poliesportiva do outro lado do terreno.

    No pode deixar de se sentir um pouco aborrecido, pensando nas crianas.Seriam instalaes maravilhosas para os seus pequenos, se pudesse dispordelas. Mas o Bispo Hermano nunca iria liberar verbas para algo parecido.

    Balanando a cabea para espantar tais pensamentos inteis, tomou ocaminho para a entrada da casa.

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    Carolina Nadel no se levantou para receb-lo, limitando-se a fazer um sinalcom a mo para que entrasse.

    O abatimento da mulher era visvel e ela parecia estar fazendo um esforoenorme para no desmoronar. Outrora uma das mulheres mais elegantes do

    jet set, Carolina Nadel estava vestida com um roupo e sem nenhumamaquiagem. Olheiras profundas marcavam seu rosto. E ao v-lapessoalmente, o padre comprovava suas suspeitas: era evidente que elaestava fazendo uso de tranquilizantes para dormir.

    Quando a mulher comeou a falar, Padre Tiago percebeu que falava comuma me desesperada:

    - Padre, tem... algo errado... com o meu menino... a fala vinha intercaladapelos soluos.

    - Senhora Nadel, ningum sai de uma experincia dessas sem gravescicatrizes...

    - No, padre... no... isso. Tem... tem... algo...algo...pior! os soluostornaram-se ainda mais profundos. O desespero parecia sufocar a mulher.

    O senhor... tem... que ver, padre... meu menino, padre... meu menino...O desespero venceu a resistncia e os calmantes. Carolina Nadel desabounum choro convulsivo.

    O Padre perguntou onde podia encontrar o menino.

    _ L... em cima... no quarto, Padre... meu menino... meu pobre menino... eo choro tornou o resto de sua fala ininteligvel.

    Rapidamente o Padre Tiago subiu as escadas e, sem grandes dificuldades,localizou o quarto do garoto. Bateu trs vezes, mas no obteve resposta.

    Fez o sinal da cruz, respirou fundo e abriu a porta...

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    Parte III Comea O Jogo

    Ao entrar no quarto de Lucas, Padre Tiago viu o menino sentado na cama, de

    cabea baixa, olhar vazio e balando o tronco para frente e para trs, como sefosse um autista.

    Sem fechar a porta para que o menino no se sentisse acuado, Padre Tiagoaproximou-se cuidadosamente:

    - Lucas?

    A resposta surpreendeu Padre Tiago:

    - Lucas no est aqui no momento a resposta veio em uma forte voz dehomem adulto mas estvamos esperando por voc, Padre!

    Padre Tiago recuou assustado:

    - O que isso?

    - Me avisaram que o senhor viria, Padre. Me avisaram que o senhor viria

    tentar tirar meu menino de mim! Enquanto aquela voz impossvel falavapela boca do menino, um cheiro de fezes comeou a tomar conta do ar.

    - Eles me disseram que o senhor bom no que faz, Padre! o cheiro iapiorando, provocando nuseas em Padre Tiago Mas ele meu, Padre!Meu!

    - Quem voc?

    - Ora, Padre, assim que o senhor trata o pai do seu mais novo paciente?

    - Amaro Nadel?

    - Eu disse que viveria para sempre atravs de meu filho, Padre. Se noquiseram entender, se no quiseram acreditar, o problema no meu!

    - Mas... como... isso ... possvel? o mau cheiro j fazia com que o Padretivesse dificuldades para respirar.

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    - Padre, esta privada humana minha para o que eu quiser, eu cago, mijo,cuspo e gozo nele porque ele meu! Ento uma troca justa, Padre... umatroca justa. Eu fico com o menino e eles ficam com VOC!

    - Eles... quem? Quem? Do que... est... falando? Vasculhava a sua voltatentando achar uma rota de fuga. Viu que a porta continuava aberta a rotamais fcil e sabia que a sacada l fora do quarto era voltada para a piscina,o que tambm podia ser uma alternativa.

    - Desculpe, Padre! Eu no lhe contei... Hoje tem reunio de pais e mestres.Os pais de seus pacientes esto todos aqui. E Padre, eles esto muuuitobravos com o senhor! e o estranho ser soltou uma gargalhada maligna.

    Aos poucos, a risada foi se transformando num burburinho cada vez maisalto, e de repente a voz de todos os pedfilos de quem Padre Tiago haviacuidado dos filhos, netos, enteados, crianas abusadas, enfim, ecoavam emprotesto dentro de sua mente:

    - Absurdo! Absurdo! Onde j se viu fazer uma filha esquecer um pai?protestava uma voz.

    - Meu filho, Padre, meu filho, o senhor est fazendo meu filho se esquecer demim. reclamava outra.

    - Como pode ser to insensvel? perguntava mais uma.

    E essas vozes se sobrepunham num clamor to grande e confuso que PadreTiago caiu de joelhos, tampando os ouvidos, numa desesperada tentativa defaz-los se calarem.

    - No! No! Vocs no entendem... Vocs causaram mal a eles. Vocs!Vocs! balbuciava em seu desespero.

    As vozes foram perdendo a clareza e o sentido, transformando-se numzumbido forte. O zumbido de milhares de moscas, que agora cercavamPadre Tiago.

    - Eu acho que voc est numa grande encrenca, Padre! O prprio Senhordas Moscas me autorizou a pegar voc. Voc sabe o que isso significa, no

    sabe?

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    Sombras, Delrios e Outros Horrores Volume I Pgina 54

    O menino-monstro ria, deliciado, enquanto Padre Tiago rolava pelo cho,tentando se livrar das moscas, que se agarravam sua pele, seu contatoespinhento e nojento se misturando a aquele indizvel cheiro de fezes,

    aumentando cada vez mais sua nusea. As moscas invadiam suas orelhas,foravam para entrar por sua boca, por seus ouvidos, pelos olhos. Entravampor baixo de suas roupas. Fazendo um esforo supremo, correu em direo porta.

    -No, voc no ir fugir de mim! e a um gesto da criatura, a porta ia sefechando. Padre Tiago tentou conter o movimento da porta, que prendeu suamo contra o batente, fraturando-lhe quatro dedos. Ainda assim, tirandoforas Deus sabe de onde, ele conseguiu abrir a porta o suficiente para atirar-

    se ao corredor.

    Desceu as escadas correndo, quase caindo. s suas costas, ouvia os gritosda criatura infernal:

    - Voc no tem como fugir, Padre! E o menino meu! Meu! Meu...

    Padre Tiago desceu correndo as escadas. Na sala, passou por uma CarolinaNadel desfalecida sobre o sof. Os calmantes haviam surtido efeito. Mas o

    padre mal reparou nela e continuou em frente. Precisava livrar-se daquelasmoscas nojentas. Sem outra opo, atirou-se na piscina.

    Aquilo funcionou para espantar algumas moscas. Outras no conseguiramsoltar-se a tempo e morreram afogadas.

    Com muita dificuldade, Padre Tiago terminou de cruzar a piscina. De dentroda gua, ainda ouvia os risos assustadores da criatura. S conseguiu sair dapiscina porque a escada de alumnio estava no lugar.

    Esgotado, desabou sobre a grama, sentindo seu corpo esvair-se numaabenoada inconscincia...

    Parte IV Estratgias

    Padre Tiago acordou assustado. Ps-se de p rapidamente e correu para

    trs de uma moita.

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    Sombras, Delrios e Outros Horrores Volume I Pgina 55

    Tremia, tremia muito. Recuperando o auto controle aos poucos, percebeuque tremia porque j era noite e estava frio; tremia porque suas roupasestavam encharcadas mas, acima de tudo, tremia porque estava apavorado.

    No entendia porque aquela coisa no havia dado cabo dele at ali. Estiverainconsciente, teria sido uma vtima fcil. Por que o mantivera vivo? Queriatortur-lo mais?

    A luz no quarto do menino estava acesa, as portas que davam acesso sacada continuavam abertas. Mas de l s vinha o silncio.

    Padre Tiago procurou o pequeno cantil metlico no bolso de seu palet.

    Felizmente ainda estava l. Sua mo direita doa horrivelmente e foicomplicado apanhar e abrir a garrafa naquela situao. A roupa molhadaatrapalhava mais ainda.

    Mas seu bom e velho amigo Johnnie Walker no lhe faltou. Ao descer pelagarganta, o forte calor da bebida ajudou a espantar o frio e a clarear asidias. Precisava fazer alguma coisa, mas o qu?

    Estava apavorado, queria fugir. Tinha srias dvid