o circo dos horrores - memórias de uma aldeão

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O Circo dos Horrores Memórias de um aldeão A linha tênue que separa a razão da loucura já está desaparecendo diante dos meus olhos cansados. No fim, quem ler entenderá o que digo. Sobre tudo o que irei revelar, declaro de antemão que os fatos apresentados aqui nesses relatos não foram vividos por mim, nem tampouco por nenhum conhecido meu. Na verdade, não faço a mínima ideia de quem sejam essas pessoas sobre as quais irei mencionar. Até mesmo a forma como tomei conhecimento dessas ocorrências é algo inusitado; acima de tudo misteriosa! Todavia decidi torná-las pública nesse fórum de contos numa tentativa de auto-convencimento” de que tudo isso não passou de uma mera ficção, produto de uma mente doentia de alguém que queria simplesmente amedrontar um ouvinte impressionado ou mesmo buscar notoriedade através de um suposto livro de histórias macabras, cujo qual creio que jamais chegou ser lançado. Do alto do meu ceticismo eu tenho que confessar aos leitores que a primeira vez em que tive contato com tais relatos a princípio fiquei impressionado e na minha inquietude diante da história cheguei até mesmo procurar outros casos dessa correlacionados ao mesmo tema. Revirei livros em bibliotecas, pesquisei aqui na internet, tive até o disparate de procurar idosos em asilos pelas cidades as quais eu porventura passei nesse meio tempo (pois tenho parentes em diversas cidades e às vezes viajo pra vê-los), mas não obtive nenhum retorno a contento para que eu pudesse endossar o que vou relatar nesses próximos parágrafos. Tudo o que li e vim saber sobre o atual Circo dos Horrores não condiz com a narrativa que se seguirá. Hoje, essa companhia circense só difere das demais pelo fato de ser excêntrica, com apresentações de pessoas e animais um tanto quanto estranhos e bizarros. Mas isso não valida a história. Queria ter encontrado pelo menos alguém que tivesse escutado de alguém..., isso já seria pra mim uma forma de partilhar o assunto, mas não encontrei ninguém. Por fim me dei por vencido, e acabei tentei arquivar a história apenas na minha mente, no intuito de ignorar essa minha então obsessão no assunto. Até há pouco tempo tinha convicção do que houvera proposto a mim mesmo - não repassá-la a ninguém, porém num impulso me peguei redigindo essas linhas, deixando aqui esse registro, como quem lança uma garrafa ao mar, sem destinatário. Chego a pensar que tal atitude seja uma maneira subjetiva de expurgar de mim visões perturbadoras, sensações assustadoras, pensamentos macabros que passei a ter desde que tive acesso ao que vou lhes contar. Assim vou relutando e insistindo comigo mesmo para voltar a crer que isso tudo não passe de uma maldita ficção, nada além disso. Mas lá no fundo eu tenho comigo que caso tenha sido verdade, algo factual, eu então deva agradecer a Deus todos os dias que vivi e os que eu acho que ainda me restam, por não ter presenciado esses acontecimentos macabros como testemunha ocular. Agora vou contar-lhes os fatos:

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O Circo dos Horrores - Memórias de uma aldeão.

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O Circo dos Horrores – Memórias de um aldeão

A linha tênue que separa a razão da loucura já está desaparecendo diante dos

meus olhos cansados. No fim, quem ler entenderá o que digo.

Sobre tudo o que irei revelar, declaro de antemão que os fatos apresentados aqui

nesses relatos não foram vividos por mim, nem tampouco por nenhum conhecido meu.

Na verdade, não faço a mínima ideia de quem sejam essas pessoas sobre as quais irei

mencionar. Até mesmo a forma como tomei conhecimento dessas ocorrências é algo

inusitado; acima de tudo misteriosa! Todavia decidi torná-las pública nesse fórum de

contos numa tentativa de “auto-convencimento” de que tudo isso não passou de uma

mera ficção, produto de uma mente doentia de alguém que queria simplesmente

amedrontar um ouvinte impressionado ou mesmo buscar notoriedade através de um

suposto livro de histórias macabras, cujo qual creio que jamais chegou ser lançado. Do

alto do meu ceticismo eu tenho que confessar aos leitores que a primeira vez em que

tive contato com tais relatos a princípio fiquei impressionado e na minha inquietude

diante da história cheguei até mesmo procurar outros casos dessa correlacionados ao

mesmo tema. Revirei livros em bibliotecas, pesquisei aqui na internet, tive até o

disparate de procurar idosos em asilos pelas cidades as quais eu porventura passei nesse

meio tempo (pois tenho parentes em diversas cidades e às vezes viajo pra vê-los), mas

não obtive nenhum retorno a contento para que eu pudesse endossar o que vou relatar

nesses próximos parágrafos. Tudo o que li e vim saber sobre o atual Circo dos Horrores

não condiz com a narrativa que se seguirá. Hoje, essa companhia circense só difere das

demais pelo fato de ser excêntrica, com apresentações de pessoas e animais um tanto

quanto estranhos e bizarros. Mas isso não valida a história. Queria ter encontrado pelo

menos alguém que tivesse escutado de alguém..., isso já seria pra mim uma forma de

partilhar o assunto, mas não encontrei ninguém. Por fim me dei por vencido, e acabei

tentei arquivar a história apenas na minha mente, no intuito de ignorar essa minha então

obsessão no assunto. Até há pouco tempo tinha convicção do que houvera proposto a

mim mesmo - não repassá-la a ninguém, porém num impulso me peguei redigindo essas

linhas, deixando aqui esse registro, como quem lança uma garrafa ao mar, sem

destinatário. Chego a pensar que tal atitude seja uma maneira subjetiva de expurgar de

mim visões perturbadoras, sensações assustadoras, pensamentos macabros que passei a

ter desde que tive acesso ao que vou lhes contar. Assim vou relutando e insistindo

comigo mesmo para voltar a crer que isso tudo não passe de uma maldita ficção, nada

além disso. Mas lá no fundo eu tenho comigo que caso tenha sido verdade, algo factual,

eu então deva agradecer a Deus todos os dias que vivi e os que eu acho que ainda me

restam, por não ter presenciado esses acontecimentos macabros como testemunha

ocular. Agora vou contar-lhes os fatos:

Há alguns anos, enquanto ministrava um curso de férias numa oficina de artes

em minha cidade natal, na penúltima aula solicitei aos participantes que preparassem e

apresentassem à turma redações (em formato de textos livres) relatando casos

assombrosos, fantasiosos, inexplicáveis, objetivando trabalhar a criatividade de cada um

deles. Os participantes eram alunos filiados a diversas instituições de ensinos, cuja

grande maioria nunca tinha visto na vida. Adolescentes e jovens que estavam ali apenas

no intuito de recreação e aprimoramento literário e gramatical. Como o tempo

disponível nas aulas era pouco, deixei como uma atividade a ser concluída em casa,

podendo eles solicitar auxílio dos pais, tios ou avós, a fim de que contribuíssem,

enriquecendo assim o texto dos alunos com “causos” que os mais antigos sempre

sabem. Além da criatividade de cada um, queria realizar um exercício de memória, algo

regional e mesmo parental, por isso o fomento de buscar entre os familiares casos e

ocorridos. Na última aula, pedi que alguns alunos lessem para a turma as suas

produções. Foi algo até divertido, pois algumas eram tão mirabolantes que provocavam

muitos risos e comentários, por isso não tivemos tempo de ouvir todos. Ao término

daquela aula pedi a todos os alunos que colocassem seus textos dentro de uma pasta que

estava sobre a mesa, todos, sem exceção, para que eu pudesse ler posteriormente a fim

de prestigiar assim o trabalho e a criatividade de cada um dos participantes. E assim eles

fizeram. Despedi-me da turma encerrando minha participação naquele evento, levando

comigo os trabalhos para apreciação futura.

Estava disposto a ler tudo no dia seguinte, e bem que poderia ter o feito (pois

acredito que assim teria condições de ao menos tentar identificar de onde surgira tal

relato naqueles dias), mas o que aconteceu foi algo inesperado, pois tive uma mudança

abrupta na minha rotina: fui diagnosticado com uma doença grave e por isso iniciei de

imediato um tratamento com acompanhamento médico local e rapidamente transferido

para ser tratado na capital. Por conta disso tive que me afastar das salas de aulas,

passando a dedicar-me tão somente a cuidar da minha saúde. Acabei perdendo contato

com vários amigos de profissão e praticamente todos os alunos. Fiquei meio desgostoso

da vida, e até depressivo. Onde passei a morar (por conta do tratamento) eu não fiz

amizades, quase não saía, não via pessoas e só às vezes (muito raramente) viajo pra ver

alguns parentes em cidades circunvizinhas. Era só dentro de casa ou então no hospital, e

pra passar o tempo eu lia muito. Os seis primeiros meses foram muito cruéis, mas

depois fui me recuperando, e assim paulatinamente retomei certas atividades, tentando

imprimir um ritmo de normalidade ao meu cotidiano. Numa das minhas idas ao interior

resolvi pegar alguns livros que eu tinha guardado, porém ainda não havia lido, e

enquanto separava para levá-los, vi no armário aquela pasta etiquetada como “Curso de

Férias”. Lembrei-me daquela minha última ministração de cursos e me dei conta de que

estava em dívida com meus alunos que me entregaram várias redações que até então não

tinham sido lidas. Abri a pasta e fui folheando as redações, lendo os primeiros

parágrafos de algumas, passando rapidamente por elas. Umas eu separei e outras eu

optei por descartar. Deixei para ler em detalhes depois da viagem de volta para a capital.

E foi assim, num fim de semana chuvoso, curtindo a minha solidão nesse

apartamento que me deparei com o texto que veio a me deixar estupefato. Entre as

redações dos estudantes, estava ali, num papel velho, um manuscrito, cheio de dobras e

marcas do tempo, contendo uma história tão macabra que me perturbou na primeira

leitura e me incomoda a lembrança até hoje.

Por não conter assinatura e nem menção de nomes, sempre me questionei de

onde poderia ter vindo ou como aquilo fora parar ali entre os textos do curso férias.

Qual daqueles alunos teria deixado ela naquela pasta? Deduzi que algum parente de

algum daqueles jovens que participaram do curso, fosse o protagonista de tal relato.

“Seria o pai? Talvez o avô? Quem sabe o bisavô?” – pensei.

Fato é que ninguém poderia me responder esse questionamento e por mais que

eu cogitasse, nunca teria essa certeza concreta. Tentei relembrar dos rostos dos

participantes – em vão. Tentei encontrar entre os textos uma lista de presença, algo que

me reportasse a algum nome, ainda que fosse uma vaga lembrança, mas também não

logrei êxito.

Só me restaram dúvidas e incertezas; perguntas, e com elas o incômodo de tomar

ciência dessa assombrosa história.

Com uma xícara de chá quente e um pote de biscoitos resolvi ligar o som,

coloquei um Cd instrumental e me propus a ler todas aquelas redações do meu último

curso de férias ministrado, para distrair a mente. Algumas eram criativas; a maioria

cômica. Foi quando peguei o manuscrito dobrado, amassado. De cara achei estranho,

por destoar do padrão das demais, a começar pelo tamanho e textura do papel. Ficava

evidente que não tratar-se de uma produção recente, como as outras; não fora escrito no

mesmo período que as demais. Era notório que se tratava de algo escrito há bastante

tempo. Só isso já foi suficientemente intrigante pra mim. Não entendi se aquele texto

que eu tinha em mãos na verdade era um fragmento de uma história ainda maior, que

fora desmembrada por algum motivo ou simplesmente algo avulso, sem nenhuma

continuidade. Pode ser que nem o anterior guardião daquele documento tinha idéia do

conteúdo, talvez nunca nem tenha lido ou atentado pro relato. Ou então quem sabe ele

tinha ciência sim, e propositalmente tenha dilacerado uma história maior, omitindo

coisas mais comprometedoras, que jamais deveriam ser de conhecimento ou domínio

público? Não sei mesmo. São respostas que sei que jamais terei.

Como disse anteriormente, a leitura do texto me deixou aturdido, e depois de

muitas releituras, um dia, acometido por um acesso de fúria o amassei e o arremessei

contra a parede, numa tentativa tola de me livrar daqueles personagens malditos que me

atraíam à leitura quase que devocional. O pior é que eu estava meio alterado devido as

várias taças de vinho que tinha ingerido e por conta do meu estado de embriaguez,

acabei adormecendo e esquecendo de pegar o texto, arremessado ao léu, em direção a

cozinha. Não foi a primeira vez que eu fizera aquilo; nas outras, porém, eu me dava ao

trabalho de ir lá buscar e desamassar as folhas, e então guarda-las pra ler

posteriormente, como numa penitência. Só que dessa vez, ao acordar no dia seguinte saí

rapidamente para meus compromissos esquecendo-me de que uma faxineira estaria aqui

para a limpeza de rotina, as sextas-feiras. No domingo, ao ser arrebatado pelo impulso

vicioso de analisar as minúcias do enigmático texto, me dei conta num flashback, do

ocorrido na quinta à noite. Lembrei da faxina da sexta, e lamentei amargamente a perda

irreparável. Revirei nas lixeiras do apartamento, desci até pra ver na caçamba coletiva

do prédio se encontrava minhas valiosas folhas amassadas, mas foi tudo em vão. Já

havia se passado dois dias, e agora jamais encontraria aquele texto novamente. Mas de

tanto lê-lo, estava ávido em minha mente. Conseguia remontar os detalhes, de cada

linha, de tudo enfim. Então o descrevo, tal qual tenho na minha lembrança. Sei que o

leitor notará que não há mudanças no estilo literário quando eu vier a narrar a história

logo abaixo, por se tratar da minha maneira de transmitir. É que tentarei ser o mais fiel

possível à minha memória.

Trata-se da narrativa de um enfermeiro, cujo nome não é mencionado em seus

próprios escritos, nem o local de trabalho onde aconteceu parte dos relatos, muito

menos onde os fatos que ele testemunhou como ouvinte também se deram. Nada que

pudesse servir de referência para uma busca mais localizada. Era tudo sombrio e envolto

numa névoa de mistérios. Segue abaixo aquilo que tenho na memória, da narrativa do

enfermeiro:

*****************

“Conheci o velho no asilo pouco antes da sua partida. Um homem de aparência

estranha. Dentre todos, pra mim o mais esquisito. Chegou transferido não tinha muito

tempo, e nem os mais antigos internos sabiam seu nome de batismo. Isso por causa de

um princípio de incêndio que acabou destruindo o livro de registro contendo os dados

de cada paciente ali internado. Sendo assim, não havia nenhuma outra referência de

como chamá-lo, a não ser de “velho”. Por algum motivo que nem eu mesmo sabia, ele

me prendia a atenção, tanto que passei a observá-lo com mais frequência, e reparei que

ele passava seus dias imerso num silêncio profundo, com olhar evasivo, desprovido de

emoções. Ouvia dizer que desde a sua chegada ele não se interessou em aproximar de

ninguém, e também não fez sequer uma amizade entre seus pares. Visitas também não

há relato que tenha recebido ao menos uma única. Ficava ali, durante horas, no seu

recato. Vez ou outra folheava revistas e jornais que estavam à disposição dos pacientes

e visitantes, como se tivesse a procurar por algo, mas nada declarava a ninguém. Nem

mesmo os demais profissionais de enfermagem costumavam dar maior atenção àquele

senil. Além da estranheza no aspecto físico, ele ainda pra agravar-lhe a situação,

também não tinha a orelha direita. Não sabíamos se ele era assim devido a uma má

formação congênita ou se fora algum tipo de acidente posterior. Pelo fato dele não falar

nem responder a nenhum questionamento, nem mesmo se incomodar com os gritos

ensurdecedores de outros pacientes em crises, todos nós presumíamos que ele também

fosse surdo. Todos achavam que ele nada escutava, e isso acabava me reportando a

memória da minha saudosa mãe, que tinha nascido sem audição. Talvez por isso eu

sentia de alguma forma vinculado a ele.

Na busca de uma forma alternativa de terapia para os pacientes ali internados, a

direção do asilo optou por receber profissionais travestidos de palhaços, os quais em

suas visitas alegravam os velhinhos com brincadeiras e atividades. Eles eram recebidos

com muita simpatia por todos. Até nós, os funcionários, nos divertíamos com eles. O

velho não. Parecia inquieto, incomodado. Nunca esboçou sequer uma reação amistosa

para simpatizar com os comediantes, antes se trancava e recusava contato com os

mesmos quando eles chegavam. Nós estranhávamos esse comportamento dele, mas

tínhamos que respeitar sua conduta, afinal, pessoas nessa idade tendem a ser

temperamental e cheia de manias.

As coisas transcorriam de forma aparentemente normal no asilo, e no período

devido eu saí de férias. Quando retornei no primeiro dia de serviço fui escalado para

atuar num plantão noturno. Foi nessa noite que algo espantoso aconteceu. No céu,

prenúncio de forte chuva. Tempestade mesmo. Raios cortavam o firmamento.

Como havia feito uma refeição em casa, antes de sair pro trabalho, não jantei no

asilo, mas na ceia, antes de todos recolherem-se para dormir, eu não resisti aos

saborosos biscoitinhos que estavam a nossa disposição. Que delícia! “Vou ver pego essa

receita com a cozinheira depois” – pensei.

Já era quase meia-noite, e eu começava a me sentir estranho. Uma sonolência

diferente, pesada. Pra espantá-la, decidir vistoriar os quartos dos pacientes. Quarto por

quarto, e o sono me vencendo. Às vezes achava que ia dormir andando... Ao passar num

dos corredores, vi uma porta entreaberta. Era do quarto do velho. Olhei para o interior

do recinto onde ele se alojava, e vi que ele não estava no leito. Aquilo me recobrou um

pouco a atenção. Estranhei porque naquele horário era habitual todos ali encontrarem-se

em repouso. Notei também uma vela acesa, sobre um armário próximo a cabeceira da

cama. “O que será aquilo?” – pensei comigo. Mesmo acesa a vela, o quarto ainda estava

escuro demais pra vê-lo por inteiro, então entrei para acender a luz. Foi quando senti em

minhas costas o tocar de uma mão fria, tão gelada como as de um defunto. Quis gritar,

mas não consegui. Apenas me virei pra ver quem estava ali comigo.

Era o velho, me encarando nos olhos, segurando uma vela, equilibrada num

pratinho. Levou o dedo indicador aos lábios e me pediu silêncio. Falou num timbre

fúnebre, num tom grave e baixo uma frase enigmática: “estou de partida”.

Se a visão daquele velho em movimento me petrificou, quanto mais ouvi-lo

falar. Acho que ali naquele asilo eu era a única pessoa que tinha conseguido ser

testemunha de tal proeza. Balbuciando eu falei: “Vo.. você fala...”

“Falo e ouço!” – me respondeu ele em tom objetivo e direto.

Ele apontou em direção a uma cadeira, para que eu me sentasse. Pensei em

recusar, mas fui e me sentei. Ele fechou a porta atrás de mim, e eu mais que depressa

me levantei dizendo:

“Não posso ficar aqui, tenho que continuar vistoriando os quartos, estou no meu

plantão. E se alguma senhora estiver precisando de mim..”

Nem concluí minha fala e aquele velho disse num tom seco:

“Essa noite ninguém vai acordar de madrugada. Não se preocupe, seremos só

nós dois. Só nós dois, por enquanto.”

O espanto em estar presenciando aquela situação me deixou meio atônito, sem

ação, e sentia que era ele quem estava no controle.

Uma vez sentado diante dele, resolvi fazer-lhe algumas perguntas sobre sua

história. Só que antes mesmo de eu perguntar seu nome ele me disse:

“Não me pergunte nada, apenas me escute. Não me interrompa, pois não terei

muito tempo. Enquanto eu falar, inspire profundamente.”

Coisa de velho mesmo. Inspirar profundamente? O ambiente estava ficando

impregnado com o cheiro da vela queimando. Relâmpagos provocavam trovões

medonhos, e o som do vento era tal qual uivo de lobos.

Aquele velho com semblante pacato, aparentemente inofensivo, agora tinha uma

aparência austera, de postura convicta e decidida.

Ele então começou sua narrativa:

“Eu já esperava que ele me encontrasse. Sabia que mais cedo ou mais tarde isso

aconteceria. Desde que começaram as visitas com os palhaços eu presumi que estava

chegando a hora. Questão de tempo apenas.”

“Não estou entendendo...”

“Cale-se, e apenas me ouça” – disse ele mais impaciente dessa vez.

Minha história bem que poderia ser considerada uma tragédia, pois desde que

me entendo por gente, cada riso, cada gargalhada eu reputava por afronta, uma ofensa a

minha existência. Nunca soube ao certo se fui um sobrevivente ou se sou apenas mais

um dos muitos condenados. Sempre tentei disfarçar minha feiúra no anonimato da

minha reclusão pessoal, mas não passou de uma vã tentativa. Minha aparência

defeituosa foi motivo de olhares e comentários, meu comportamento excêntrico idem.

Não sou normal, nunca fui. Já nasci assim, bizarro.

Fui parido, numa casa simples, com ajuda de uma parteira do vilarejo onde

minha bondosa mãe nasceu e sempre morou. Um povoado humilde, com cerca de no

máximo uns 100 habitantes, entre o rio Danúbio e o lago Constanza, próximo da

fronteira com a Suiça. Era uma comunidade fechada, isolada do convívio com as

cidades vizinhas. O contato externo era pouco, e sempre que necessário era feito pelo

Reverendo – que além de líder espiritual era também o mentor daquela comunidade. Se

não fosse ele, era alguém com a sua permissão. Ele quem ditava as regras e as normas,

decidia o destino de toda a comunidade. De tanto que lhe confiaram, tornou-se uma

espécie de “semi-deus”, com prerrogativas de infalibilidade e dotado do que

chamavaqm de “dons sobrenaturais”, com os quais dizia ser capaz de profetizar sobre o

fim dos tempos, e até mesmo sobre as particularidades dos membros daquela

comunidade. Só que na verdade, eu constatei que tudo aquilo não passava de uma

grande armação. O Reverendo era um homem corrupto por natureza, que se beneficiava

de um status adquirido com o tempo pra gozar de privilégios e assim tornar a maioria

dos membros da comunidade numa espécie de serviçais a seu bel-prazer. Seus supostos

“dons” com os quais fazia premonições do fim do mundo nada mais era do notícias por

ele adquiridas em suas raras viagens fora do vilarejo , e as “revelações” sobre a vida

alheia, era simplesmente delação por parte dos seus asseclas. Esses se beneficiavam

juntamente com o Reverendo, tendo certas regalias em relação aos demais habitantes.

Pessoas desgraçadas, que abusavam da autoridade que detinham pra explorar, humilhar,

sobrecarregar, de todas as maneiras a todos que pudessem. Cometiam delitos de ordem

material e até mesmo íntimo! Eles, principalmente o Reverendo, abusavam

discaradamente de moças e rapazes. Sem nenhum tipo de escrúpulo. O Reverendo era o

mais pervertido de todos. Chamava suas vítimas em particular, com desculpa de ouvir

confissão ou então prestar orientação religiosa, para molestá-los sem nenhum tipo de

remorso. O silêncio era imperativo, e ninguém declarava publicamente os ocorridos. Era

comum ver nos sermões do Reverendo, algumas daquelas pessoas que foram abusadas

chorando em silêncio, tendo que engolir a hipocrisia daquele depravado maldito, pois

temiam pela própria integridade ou então pela dos seus entes. Com o tempo, elas

próprias acabavam entrando no jogo e se tornavam tão corruptas quanto aquela corja de

pessoas das trevas. Os que relutavam e demonstravam sinais de insatisfação ou protesto,

primeiramente recebiam ex-comunhão da congregação dos santos, e posteiormente

adoeciam, fatalmente vindo a falecer. Dizem que era maldição de Deus, mas eu

discordo: pra mim tratava-se de envenenamento. Um crime premeditado, proposital,

para conter qualquer tipo de tumultuador ou levante. Assim era a vida naquele ninho de

víboras. Estávamos a mercê dos caprichos de um regime insano que era um misto de

religião, depravação moral e escravidão, reclusos num mundo de portas fechadas. Como

eu sei disso tudo? Eu fui criado dentro da casa do Reverendo. Cresci entre os seus. Não

recebendo a criação como a dispensada aos seus filhos, mas como um reles serviçal, um

doméstico inútil, considerado por ele (e também pelo restante da comunidade adepta de

seu discurso) como uma aberração devido a minha aparência nada convencional. Um

castigo divino, devido a minha fisionomia defeituosa.

Fui morar com ele quando ainda era uma criança. Me recordo muito pouco da

minha mãe. Quase ninguém fala dela comigo. Morreu de circunstâncias misterioras.

Não tive pai, nem outros parentes aqui. O pouco que tinhamos foi parar nas mãos do

Reverendo. Pra não dizer que ficou apenas com aquilo que era material, ele também me

tomou por adoção e passei a residir com sua família. Sua esposa, uma senhora bruta e

ranzinza, sempre me agrediu. Me chingava de demônio, de aleijado, de aberração. Me

batia sempre que se irritava, mesmo quando o motivo da irritação era seus filhos, ela

descarregava em mim. Ela sabia de toda imundície de seu marido, mas lhe dava ampla

cobertura, forjando álibis pra que ele nunca fosse desmascarado. Seus filhos, um mais

velho que eu, e outro da minha idade, também tinham repúdio de mim. Só eu sei o que

vivi durante minha infância e adolescência. Mas as coisas iriam mudar, e ninguém

estava preparado para o que estava porvir. Não sei se foi a mão direita de Deus

açoitando aquele covil de pecadores, ou se o próprio Diabo viera tomar posse do trono

que lhe adornaram durante décadas; fato é que as chamas do inferno estavam sendo

aquecidas praquele local, e ninguém se dava conta.

Foi durante o inverno, quando eu tinha uns 16 anos que num dos cultos na vila a

congregação se espantou com dois visitantes que apareceram do nada e se assentaram

num dos últimos bancos. Homens bem vestidos, que foram recepcionados com muito

entusiasmo pelo Reverendo, pois aparentavam ser pessoas de posses. Um de semblante

mais maduro, aparentava ter mais idade, mais imponente, mais bem-vestido. Esse

destava-se. Ficava evidente que era superior ao outro. Esse outro era um pouco mais

novo, não tão adornado, tinha um aspecto esquelético, uma magreza excessiva, mas que

se disfarçava nas roupas que ele trajava. Aos mesmos foi oferecido um lugar de

destaque de frente pra congregação, conduzidos pelo porteiro do recinto. Eu, fazia de

tudo pra me manter no anonimato, pois estava cansado de ser observado apenas como

uma aberração. As pessoas da comunidade até já haviam se acostumado com a minha

estranheza, mas quando acontecia de algum visitante passava por ali, e participava de

alguma reunião na congregação, o Reverendo gostava de fazer exposição de um sermão

que ele havia elaborado, cuja tônica era uma analogia entre a perfeição divina e a

deformidade do pecado na alma humana, e para enfatizar o conteúdo de sua pregação

me convocava para ficar diante da platéia como um exemplo vivo, tirando proveito da

minha deficiência. Seu público em boa parte do sermão era inflamado a dar glórias e

aleluias confirmando suas declarações óbvias sobre a bondade de Deus. Porém, quando

ele me expunha, entravam num estágio de transe: uma histeria coletiva possuia a

congregação e todos denotavam indignação e fúria, se colocando de pé, apontando seus

dedos contra a minha direção e me amaldiçoando, como se eu fosse a personificação do

próprio Satanás entre eles. E isso satisfazia o ego daquele pregador maligno, que

gostava de adulação. Sei que aquilo reforçava seu status de líder, ver os membros

compactuando com suas loucuras e sua interpretação distorcida dos textos bíblicos.

Naquele dia não foi diferente. Quando chegou a hora da apresentação do sermão,

ele leu aqueles versículos que eu bem sabia aonde culminaria o assunto. Ameacei até

esboçar uma retirada estratégica, mas fui impedido por um dos dos seus auxiliares da

congregação, que também sabedor do repetitivo roteiro, não deixaria que eu, a peça

principal, me ausentasse e tirasse o brilhantismo do espetáculo. E assim aconteceu –

diante dos olhos embriagados dos seus fiéis, e também diante da postura crítica

daqueles dois visitantes eu fui convocado a subir no púlpito para ser exemplificado. Ao

me postar perante a platéia, imediatamente encarei os visitantes pra ver qual seria a

reação dos mesmos ao me contemplarem, e para minha surpresa, ao invés de se

espantarem com meu aspecto eles abriram um sorriso de satisfação. Estranho, sempre

que me viam pela primeira vez, faziam cara de insatisfação, meneavam a cabeça com

ares de reprovação, ou mesmo cara de nojo devido a minha ausência de uma orelha e

feição bizarra. Mas aqueles homens demonstraram simpatia por mim, por algum

motivo. Enquanto o fanático Reverendo prosseguia em seu discurso hipócrita, eles nem

lhe davam atenção discurso fajuto. Com olhos cerrados o mais bem vestido dos dois

homens observava tudo. Fitava os detalhes de cada canto daquele edifício, como se

estive a visualizar alguma coisa que mais ninguém via, apenas ele. De repente os dois

visitantes passaram a falar baixinho um com o outro, com a mão na frente dos lábios

para não chamarem muito a atenção. Os membros estavam atentos às palavras do

orador, mas os visitantes não. Me olhavam e sorriam. Balançavam a cabeça

afirmativamente. Foi então que o Reverendo começou a se dirigir a mim, com tom de

rejeição, expondo minha deficiência, principiando a sessão de humilhações. “O pecado

deteriora a alma!” Gritava ele. “Vocês querem ter uma alma defeituosa assim como esse

ser infeliz? Olhem só irmãos!!! Vejam que lástima. Esse não foi poupado do vitupério!

Melhor pra ele ter nacido morto, mas aprouve ao Sinhô nos enviar esse exemplo vivo de

como não nos tornarmos espiritualmente. Arrependam-se dos seus pecados, e fujam das

chamas eternas!” E a congregação respondia inflamada com gritos de “aleluia”. No fim,

como de rotina, o Reverendo fez um apelo, mais direcionado aos visitantes. Ele disse:

“Vocês, nobres viajantes, visitantes, homens de negócios, Deus me revela isso, me

mostra que vocês são homens de negócios”, dizia ele. Mas era óbvio que sim. A julgar

pelo aspecto daquele homem bem trajado, portador de anéis nos dedos, e postura de

nobre, acompanhadado de outro que parecia ser um empregado, qualquer um deduziria

a mesma coisa. “Vocês não passaram pela nossa vila por acaso, dizia o Reverendo. Hoje

é dia de arrependimento!!!” Dizia ele aos gritos, acompanhado pelo entusiasmo fanático

dos seus seguidores “E vocês estão convidados a virem até aqui na frente diante de

todos esses santos da congregação, para confirmarem vossa fé nas minhas palavras, e

terem vossos pecados perdoados por mim. Venham agora e tomem posse disso. Livrai

as vossas almas do fogo do inferno. O fogo que consome não a carne, mas o espírito!

Livrai-vos das chamas!!!” Enquanto a congregação dizia em coro: “vai, vai, vai...”

Aqueles dois visitantes entreolharam-se. Passado uns instantes eles se colocaram de pé.

O semblante deles agora não era mais de cortesia, mas ambos estavam sério.

Atravessaram a congregação a passos lentos, porém firmes e pararam em frente ao

Reverendo. O de aparência mais madura estendeu sua mão pra ele, que como

hipnotizado retribuiu segurando-a. De mãos dadas, foi sendo conduzido a sair do

púlpito e assentar-se no primeiro banco ao lado de seus comparsas religiosos. Fiquei

sozinho naquele púlpito, tal qual uma atração central. Os dois visitantes permaneceram

embaixo, no nível da congregação. Os membros se calaram, houve um silêncio no

recinto. O visitante então falou: “Irmãos, realmente a minha vinda aqui não foi em vão,

e isso vocês hão de saber. Me sinto lisongeado com a vossa recepção e tratamento

cordial para comigo e com meu assistente. Realmente, Reverendo, sou empresário. Sua

revelação sobre mim foi acertada. Meu nome? Serge Tissot.”

Pausou a fala, depois prosseguiu: “Estou disposto a atender o vosso apelo nesse

culto, Reverendo, desde que aceite um convite meu, lógicamente...”

“Sim”, respondeu o Reverendo diante da congregação muda.

“Dentro de alguns dias retornarei com meus empregados até a sua vila, e armarei

aqui uma lona. Uma suntuosa estrutura, onde exibirei à todos os habitantes dessa

comunidade coisas impressionantes, uma exposição nunca vista antes. O maior

espetáculo da Terra!”

“São maravilhas modernas, sr. Tissot?”

“Não Reverendo. Não são invenções, nem nada ligado a tecnologia. Na verdade,

reputo por “obras divinas”, coisas totalmente naturais, todavia considero-as

excepcionais. Sei que ficarão im-pres-sionados”, disse ele acentuando a última palavra.

“Ah... que benção!!! Quem concorda com esse convite do nosso irmão diga

amém comigo!!!” conclamou o Reverendo.

A resposta veio em uníssono.

O sr. Tissot sorriu. Eu percebia malícia e maldade naquele sorriso. Uma ironia

no olhar dele para a congregação.

“Que ótimo irmãos”, disse Tissot.

O Reverendo ardilosamente diz:

“Irmão Tissot, neste momento em que declaras a sua fé na minha pregação,

acredito que pra um homem de posses como o senhor, não seria nenhum infortúnio nos

contemplar com uma generosa oferta, seria?”

A pergunta vem recheada de interesses escusos, e Tissot bem que percebe a

ganância e o materialismo destilado nas palavras do Reverendo. E responde:

“Prontamente, santo homem.”

E dizendo isso tirou do bolso de seu terno uma calhamaço de cédulas, e

caminhou em direção ao púlpito. Os membros ficaram em extase diante da caridosa

atitude do visitante, aos gritos de aleluia, juntamente com o Reverendo, que bem sabia o

destino daquele montante ofertado.

Eu permanecia imóvel, sozinho ali, exibido. O sr. Tissot depositou a oferta no

púlpito e me olhando falou comigo tão baixo, que ninguém percebeu, só eu o ouvi. Ele

disse: “garoto, vou mudar a sua vida, se você quiser.” Disse isso e nem esperou de mim

resposta, a qual eu também nem tinha. Virou-se e dirigiu-se novamente à congregação

falando em tom de despedida:

“Irmãos, estamos de partida. Precisamos ir. Meus empregados estão em outra

cidade, trabalhando, e eu vim conhecer vossa vila, saber mais sobre essa comunidade

que eu já ouvira falar antes, e o que eu presenciei aqui nessa noite me dá a certeza de

que tudo que eu tinha em mente deve ser levado adiante. Aqui é o lugar certo.”

“Sim, sim, irmão Tissot, aqui é o lugar certo”, dizia o Reverendo sendo seguido

pelos membros.

“Preparem-se, santos irmãos, pois voltaremos em breve, e então banquetearemos

convosco”!

Sem mais delongas os dois visitantes caminharam decididamente pelo corredor

daquele edifício e saíram sem olhar pra trás. Dessa vez com passos rápidos. Os

membros tão empolgados que estavam até se esqueceram de mim ali sozinho naquele

púlpito. Aproveitei essa distração geral e saí dali. Fui olhar os visitantes partindo. Não

havia carro, nem diligência, nem cavalo, nada. Seja de onde for que tenham vindo,

vieram a pé, e a pé se foram, ambos, até sumirem do meu campo de visão.

Desapareceram na escuridão da noite. Os dias seguintes transcorreram dentro da

expectativa da imintente chegada do nobre empresário Sr. Tissot e seus empregados.

Cogitavam entre si sobre qual seria o ramo de atividade daquele elegante homem de

negócios. Por onde eu passava na vila eu via nas pessoas euforia. Mas também havia

curiosidade no ar, afinal de contas não havia ficado claro sobre o que de fato se tratava

aquilo que ele classificou como “obras divinas”.

Era um dia nublado quando um dos auxiliares do Reverendo bateu à porta da

casa dele trazendo um visitante inesperado. Eu, por detrás da mobília que ficava entre a

sala e a cozinha ouvi a conversa deles. O visitante disse:

“Boa noite Reverendo. Trabalho como emissário do sr. Tissot e vim dizer que

nossa companhia estará chegando aqui amanhã”

“Que maravilha meu nobre amigo. Será uma honra recebê-los.”

“Sei que será Reverendo. O sr. Tissot pediu-me para fazer apenas mais um

pedido especial para o senhor” – disse o emissário.

“Sim, diga qual é meu filho.”

“Ele quer que o senhor reúna todos os membros da sua congregação, todos os

habitantes da vila lá no edifício principal, onde se processa vossos cultos. Lá ele quer

oferecer-lhes uma ceia, como gratidão pela vossa receptividade e boa vontade em

recebê-lo juntamente com seus empregados.”

“Ceia, como assim? Não filho, acho que isso não será possí...”

“Reverendo, ele pediu pra lhe dar mais uma humilde oferta para vossas boas

obras aqui na comunidade” – disse o assistente entregando mais um apanhado de

cédulas nas mãos do Reverendo, “e também há outro detalhe...”

“Diga então” disse o Reverendo já salivando sobre as cédulas.

“Ele liberou três de nossas melhores cozinheiras para preparar todo o banquete.

Elas estão ali, veja”, disse o assitente apontando pra fora, em direção a uma carroça de

carga, coberta de lona. O condutor, que era um anão de fisionomia bizarra, abriu a aba

de uma das lonas da carroça, deixando mostrar as cozinheiras que estavam ali dentro.

De silhuetas belíssimas e vestimentas provocativas as jovens acenaram para o

Reverendo que imediatamente sorriu maliciosamente.

“Elas podem lhe ser bastante úteis, Reverendo”, disse o assitente com um sorriso

irônico.

“Sim, podem sim...” respondeu o depravado religioso.

Em tom ordinário, o Reverendo dirigiu-se ao seu serviçal religioso orientando-o

a levar as cozinheiras até ao prédio onde se daria a reunião e a ceia. Pediu também que

fosse de casa em casa conclamando os membros para estarem lá no horário por ele

estipulado. Todos, sem exceção. Sem dar maiores satisfações a sua mulher e filhos,

bradou para que se arrumassem logo para o repentino evento, porém me olhou com

desrezo e disse:

“Hoje você não tem nenhuma utilidade, sabia disso? Fique aqui e não apareça lá

por nada nesse mundo seu traste imundo. E saia logo da minha frente, seu demônio

aleijado! Sai, sai...”

Me retirei pra evitar uma agressão física, um tapa ou mesmo um chute. Me

trancafiei no porão e fiquei quieto lá, enquanto eles se preparavam para a misteriosa

ceia. No porão que eu dormia havia uma pequena janela, um vitrô que dava quase no

nível das ruas da vila. Dali dava pra observar o vai-vém das pessoas mobilizando-se

para a ceia que se daria em questão de poucas horas. Era uma visão privilegiada, porque

a casa do Reverendo ficava de frente para a contrução onde se reunia a congregação,

então dali eu poderia ver os que iriam participar do evento. Daquele pequenino vão eu

observava o em torno do edifício onde se daria a reunião. Vi a carroça parada em frente.

As cozinheiras e aquele pequenino condutor deveriam estar dentro do recinto nos

preparativos da recepção. Vi um por um chegando, empolgados, pessoa por pessoa. Por

fim, a porta fechou-se. Ninguém de fora. Do interior da congregação emanavam risadas

e falatórios em vozes desordenadas. Música. Ouvi música vinda de lá também. Um

cheiro de comida impregnou a vila. Que cheiro delicioso! Aquilo ficou aguçando a

minha curiosidade, a ponto de eu me levantar e sair da casa, esgueirando-me pelas

sombras a fim de ver de perto o que faziam lá dentro. Quanto mais perto eu chegava

mais alto a música ficava, mais confusa as vozes pareciam. As vezes um riso macabro

se misturava a demais gargalhadas que eles soltavam ali. Parecia que o próprio demônio

estava entre eles rindo de algo. Aquilo me meteu medo, mas ainda assim continuei

procurando de uma certa distância ver por alguma janela o que se passava no interior

daquel ambiente. Vi dança, movimentos desordenados. Dei a volta e cheguei de

mansinho onde dava os fundos da cozinha ali no salão. Pela greta da madeira vi que

uma mulher jovem e bela, provavelmente uma das cozinheiras, pois eu não a conhecia

ali da vila, que estava atracada com o próprio Reverendo, em práticas libidinosas.

Aquilo mais uma vez me provocou indignação. Era uma garota que aparentava pouca

idade, e já estava sendo corrompida por aquele velho maníaco. Mas eu estava engando,

pois de inocente aquela mulher com cara de menina não tinha nada! Enquanto ele se

fartava da garota, seus fiéis se fartavam do banquete oferecido pelo Sr. Tissot. E por

falar nele, não o vi chegar. Será que teria vindo? Depois soube que ele simplesmente

proporcionou aquele momento, mas não foi ceiar com os anfitriões. Ainda olhei antes

de ir embora e vi todos se alimentando fartamente de bolos e guloseimas, bebendo em

taças e canecos, líquidos de cores variados. Pareciam sucos, de diversos sabores. Me

deu até vontade de tomar também, mas minha ida até lá tinha sido censurada, e por isso

eu tinha que me contentar com a exclusão. Desde o mais novo ao mais velho beberam e

comeram o que lhes foi oferecido ali, menos eu, que não participei de nada.

Senti que era momento de me retirar, pois se fosse pego, com certeza sofreria

uma punição severa devido a minha desobediência em relação a ordem do Reverendo.

Voltei pra casa e me trancafiei no porão.

Quando ouvi barulhos externos fui olhar pelo vitrô e vi que as pessoas já

estavam indo embora pras suas casas. Todas elas, rindo, alegres, cantando, cada qual em

direção a sua habitação. Vi o Reverendo voltando com sua esposa, com ares de

satisfação. Vi seus filhos andando cambaleando, como que embriagados, ou

simplesmente cansados. Alguma coisa estranha havia acontecido lá naquele banquete e

eu não sabia o quê. Achei melhor deitar e dormir, amanhã saberia de alguma novidade.

Ao despertar, notei algo estranho. Havia um silêncio incomum, não apenas na

casa, mas na vila toda. Onde estava o murmurinho das pessoas? E aquela corriqueira

falação dos transeuntes da vila? Não havia nada além de um silêncio mórbido.

Saí do porão e constatei que não havia movimento de ninguém mesmo. Em dias

normais, aquela hora a esposa do Reverendo já estaria mexendo nas coisas da cozinha,

reclamando da vida como de costume. Mas estranhamente só havia o silêncio.

Saí pra fora da casa e não vi ninguém também. Nenhum passante, nenhuma

criança correndo, nenhuma pessoa pra me xingar. Nada. Retornei à casa e fui verificar:

primeiramente no quarto dos filhos do Reverendo. Abri a porta devagar e ambos

estavam dormindo. Um sono pesado, acompanhado de um ronco de cansaço. Estariam

bêbados? Fui até o quarto do Reverendo, e estava trancado. Tentei abrir a porta, mas

não consegui. Dei a volta e espiei pelo vidro da janela. Pude ver ele estirado na cama

com sua esposa. Ambos em pleno estágio de hibernação, num sono pesadíssimo.

Estariam todos na vila dormindo? Parecia que sim. Então esse era o motivo do silêncio!

Mas não estavam mortos, era dormindo mesmo. O ronco de cansaço evidenciava que

estavam apenas em profundo repouso. Sentado, sozinho comecei a pensar no que

poderia ter provocado aquele sono coletivo nos participantes da ceia na anterior. “Será

que colocaram algum tipo de sonífero na bebida deles? Será que foi na comida? O que

fizeram?” Não sabia ao certo. Só sabia que todos dormiam um sono pesado. Quando me

dei conta já havia se passado quase meio dia, e eu imerso nesses pensamentos. Achei

que alguém acordaria, mas ninguém despertava.

Resolvi sair mas não vi ninguém. Apenas reparei que a porta do salão onde

ocorreu a ceia estava aberto e então me dirigi pra lá. Chegando perto senti que ainda

perdurava na atmosfera local aquele cheiro forte de comida, um tempero diferente meio

que inebriante. O que seria? Andei e fui constatanto que o lixo produzido pela ceia na

noite anterior ainda encontrava-se espalhado no recinto. Ninguém se preocupou em

limpar nada. Fui me desviando de taças quebradas, restos de frutas, bolos, pães, poças

de líquidos que pareciam até mesmo urina. De repente gelei. Sentado sobre o púlpito,

sozinho em uma cadeira, aquele enigmático homem que se apresentara alguns dias atrás

como Sr. Serge Tissot. Antes de eu vê-lo, ele já tinha me visto. Eu me assutei com ele,

porém ele não esboçou nenhum espanto ao me ver. Apenas disse:

“Aproxime-se garoto.”

Eu não tinha como fazer outra coisa a não ser ir até o encontro dele.

“Por que não compareceu na ceia de ontem?”, perguntou ele.

“Como o sr. sabe que eu não estava aqui”?

Ele gargalhou de forma sinistra. Depois falou:

“Se tivesse vindo, essa hora você estaria dormindo, como eles”, fez assim com a

mão como se abrangesse toda extensão do vilarejo. “Me responde garoto, por que não

veio?”

Eu então o expliquei o motivo. Ele aproveitou o ensejo e me questionou sobre a

minhas origens. Quis saber sobre minha infância, me fez perguntas sobre mim que nem

eu mesmo soube responder. Depois me perguntou sobre o Reverendo, sobre a família

dele, sobre as pessoas da vila. Enfim, nunca falei tanto na minha vida. Acho que

conversamos até o anoitecer. Até então ninguém tinha me dado tamanha atenção. Tissot

me tratava não de uma maneira carinhosa ou gentil, mas me respeitava, como se

compreendesse minha rejeição e discriminação sofrida até então.

Colocou sua mão sobre meu ombro e entendi que era pra sairmos dali.

Caminhamos conversando até um anexo do salão. Lá ele pegou jarro e encheu um copo

com um líquido que me parecia suco de frutas vermelhas. Depois tirou do bolso do seu

paletó uma garrafinha pequena, medindo cerca de umas 5 polegadas, cujo conteúdo era

um líquido de coloração arroxeada. Notei que pingou duas gotas no copo de suco que

ele tinha em mãos. Depois balançou o copo em círculo, como que para misturar os

elementos ali contidos.

“Olha garoto, eu conheço bem a desgraça humana... Sei de casos que são

parecidos com o seu, uns até piores, pode acreditar em mim. Conheci de xamãs a

alquimistas, de bestas feras as mais lindas mulheres do mundo. Vi coisas

inacreditáveis!!! Eu te darei uma oportunidade de mudar de vida. Mas entenda bem,

garoto, não estou te dizendo que você comigo terá mordomias ou regalias – nada disso.

Lhe ofereço trabalho, teto, comida bebida e até mesmo prazer; isso eu te garanto! Você

que sobreviveu a todos esses anos nessa penitência convivendo com essas escórias

nesse vilarejo fedido, com certeza não terá dificuldade de adaptar-se ao meu mundo.

Quantas cidades você conhece garoto?”

“Cidades? Nunca saí daqui da vila. Geralmente é só o Reverendo quem sai, ou

alguém que ele autoriza a sair. Nunca fui à lugar algum...”

Tissot riu. Depois falou:

“Se você me acompanhar conhecerá o mundo. Já faz uns anos que temos idos a

lugares que você nem imagina. Ainda temos muito chão pela frente”.

As palavras dele eram convidativas e cheias de convicção. Eu já estava saturado

de tanta humilhação e escárnio, e via nesse convite uma oportunidade de me livrar

daquela vila e de todas aquelas pessoas perversas, e assim ganhar o mundo.

“Eu quero ir Sr. Tissot.”

Ele sorriu e disse: “Eu já esperava isso...”

“A gente pode aproveitar que o Reverendo está dormindo e ir embora sem ele

saber.”

“Não garoto. Não será assim. Antes de irmos tenho um compromisso com o

Reverendo. Um trato não deve ser desonrado. Naquele dia que eu lhes visitei aceitei o

convite dele” – disse gargalhando – “só que depois EU fiz um convite a ele”, disse ele

mudando a entonação da voz e enfatizando a si mesmo. “Ele aceitou. Ele e todos os

habitantes daqui. Eu prometi que eles veriam coisas supreendentes, e eu vou cumprir

minha promessa. Em contrapartida, estou em dívida com alguns empregados meus, e

será justamente nessa ocasião que eu pretendo quitar minha dívida com eles. Na verdade

será um pacote de soluções: eu quitarei a minha dívida para com esses meus

empregados, resolverei os seus problemas pessoais e por fim presentearei o Reverendo e

seus fiéis. Vai ser proveitoso pra nós garoto, pra todos nós.”

“E quando será?”, perguntei.

“Dentro de pouco tempo”, ele disse, “o circo já está à caminho daqui.”

Enquanto conversávamos fomos andando até a casa do Reverendo. Diante da

porta ele que esteve o tempo todo com o copo nas mãos, estendeu pra mim e disse:

“Toma garoto, beba.”

“O que é isso?” questionei.

“Isso é pra você relaxar. Você vai descansar um pouquinho...”

“Mas sr. Tissot, então eu vou domir também?”

“Sim. Dessa vez sim, mas nas próximas não.”

Não entendi naquele momento o que ele quis dizer com “nas próximas”, depois

eu vim saber.

Ele concluiu:

“A dose que misturei aqui fará você despertar praticamente junto com todos eles.

Ao acordar, não comente nada do que conversamos com ninguém. O que falamos aqui

ficará apenas entre nós, certo garoto?”

“Sim sr Tissot”.

Peguei o copo das mãos dele e tomei o líquido, num único gole. Aquilo desceu

doce, suave, mas em questões de segundos senti a cabeça começar a rodar. Tissot,

sabedor das reações daquela química, tratou de me dispensar logo para que eu pudesse

dormir e ele pudesse dar continuidade a sua macabra empreitada.

Fechei a porta e me dirigi ao porão para me deitar. A cabeça começou a ficar

pesada, e os sentidos confusos. Deixei o corpo cair na cama e o teto girava. Antes de

apagar de vez ouvi barulhos vindos de fora. Fiz um esforço pra me firmar e observar o

que se tratava tal movimentação. Com as vistas embaçadas eu notei várias carroças

lonadas encostando e mal paravam pessoas iam descendo em uma mobilização grande

que começava no centro da vila. Eram pessoas apressadas, agitando-se pra lá e pra cá.

No meio da agitação vi algumas formas estranhas entre eles, silhuetas desfiguradas.

Cochilando eu fui despertado por uma agitação entre eles. Um corre-corre desenfreado.

“Pega, pega” – gritavam aquelas pessoas.

De repente, eu vi passar diante dos meus olhos embaçados através daquele vitrô

um bicho estranho. Jamais tinha visto coisa assim: era algo bestial, um roedor mutante.

Parecia uma espécie de ratazana gigante. Tinha um antebraço humano entre os dentes e

corria descompensadamente pra lá e pra cá, totalmente desorientada. Vi quando a

encurralaram e jogaram uma rede de captura sobre ela, imobilizando-a para ser

apreendida novamente.

“Rápido pessoal, temos que montar a estrutura do circo, rápido” – bradou um

homem de bigodes. Não sei se era o efeito de tal líquido em meu cérebro ou se

realmente eu estava lúcido, mas aquele homem parecia ter a estatura acima do normal.

Perto do Sr. Tissot (que não era baixo), o homem deveria ter mais de um metro acima

dele. Eram muitas imagens confusas. Tentava manter-me acordado pra ver outras

coisas, mas lentamente fui sendo vencido pela substância sonífera. Apaguei. Hoje sei

que se todos estivessem despertados ali naquela vila, Tissot não teria conseguido

executar seu espetáculo como programou naquela feita. Aquelas pessoas excêntricas

não teriam condições de acelerarem o serviço sem serem interrompidas diante da

curiosidade dos habitantes da vila.

Enquanto a vila dormia aquele sono imposto, os membros da trupe de Serge

Tissot se preparavam para um espetáculo especial, enquanto seus empregados investiam

todas suas energias em um serviço braçal descomunal de preparação do espetáculo.

“Acorda desgraçado! Levanta logo, seu traste imundo!”

Assim, aos berros, fui despertado pela mulher do Reverendo. Estava ainda meio

aéreo, cabeça pesada. Acho que pelo fato de ter sido o último a ingerir o composto

químico, eu ainda deveria estar mais sob efeito do mesmo do que os demais. Meio

cambaleante fui até a cozinha tomar uma água. O Reverendo estava lá também. Sem

reflexo, deixei o copo cair, espatifando perto do pé dele. Antes que eu pudesse me dar

conta do ocorrido tomei uma bofetada. Um tapa tão forte no rosto que fez dar uns três

passos pra trás. Não satisfeito o Reverendo veio xingando em minha direção e me

desferiu outro golpe, mas não me acertou em cheio. Não satisfeito tentou mais uma

agressão, mas aí segurei sua mão. Ele indignado gritou:

“Meninos, socorro! O filho do demônio está tentando me matar!!!”

Mentira, eu apenas estava tentando me defender. Mais que depressa seus filhos

apareceram e partiram pra cima de mim, imobilizando-me. O Reverendo aproveitou a

ocasião e me desferiu socos e pontapés. Seus filhos na covardia me bateram também. Eu

ainda abobado pelo efeito do sonífero, e pelas agressões do Reverendo nem esboçava

mais reação. Servia como um mero saco de pancadas praqueles três perversos.

Não bastasse a minha feirúra natural, agora estava com o rosto todo recortado de socos e

tapas. A boca inchada e ferida. Os olhos roxos. Quando a mulher do Reverendo chegou

e viu a cena, disse:

“Meus filhos, por favor! Deixem esse lixo de lado. Ele não vale nada! Vão se

arrumar, rápido, rápido. Dentro de algumas horas o espetáculo do Sr. Tissot vai

começar. Ontem na ceia o assistente dele disse que ninguém deve faltar, ninguém!”

Quando eu ouvi aquilo foi como ser submetido de uma descarga elétrica. Limpei

o rosto e me encostei no armário pra fazer uma recapitulação dos últimos fatos –

visitantes na vila, emissário na casa do Reverendo, ceia no salão, sono coletivo, Sr.

Tissot. Sim, a minha conversa com ele. Recordei-me da caminhada, e da proposta pra

seguir viagem com sua companhia. Me lembrei também da chegada das carroças, dos

empregados agitados, da ratazana mutante, do gigante gerenciando os trabalhos de

montagem. Enfim, voltei a realidade dos fatos. Perplexo, o Reverendo grita a mulher na

porta principal:

“Veja...” disse ele atônito.

Na minha curiosidade, olhei da janela também. No lugar do salão, havia uma

imponente lona circense esticada. A estrutura que outrora servia para o ajuntamento da

congregação religiosa dos residentes daquele vilarejo já não existia mais. No seu lugar,

bem ali no centro daquela comunidade, estava armada aquela tenda de vislumbre

impactante. Cores vivas compunham aquela imagem exótica. De longe se percebia ser

um material de altíssima qualidade. Perto da entrada principal havia três diligências de

extremo bom gosto. Notava que eram luxuosas, atreladas a cavalos de raça, mais bem

cuidados do que qualquer um habitante daquela lugar. Tudo pra impressionar mesmo.

Ao lado do Reverendo estava a mulher e seus dois filhos, encantados com aquela

estrutura imponente, ainda não vista por aquelas bandas.

“Como conseguiram montar isso tão rápido pai? Em apenas uma noite?”

A reposta não veio. Apenas o silêncio perdurou.

Pra todos eles, tinha se passado apenas uma noite entre a ceia e a montagem do

circo. Eu sabia do sonífero, sabia sobre a montagem da tenda, todavia agora eu tinha

dúvida de quanto tempo todos nós passamos dormindo até que tudo estivesse pronto.

Dois, três dias? Uma semana? Não sei dizer quanto tempo ficamos pausados pelo sono

induzido por Tissot para que tudo ficasse devidamente pronto. Agora também não

importava – o espetáculo de Serge Tissot estava prestes a começar.

“Eles destruíram o salão pra erguer essa lona imensa”, disse a mulher, “e depois

que eles se forem, o que vamos fazer sem o nosso salão de reuniões?” perguntou ela.

“Calma mulher. Com todo dinheiro que o Sr. Tissot me deu, eu mando construir

pelo menos 10 edifícios melhor do daquele”, disse ele rindo em tom de escárnio pra ela,

que o correspondeu com o mesmo sarcasmo na expressão facial.

O Reverendo foi se arrumar no quarto, sua mulher o seguiu. Seus filhos me

ignorando também foram se preparar. Eu, pensativo, fui pro porão, e me sentei na cama,

com dores pelo corpo devido à surra e fiquei por um tempo a imaginar o que estaria por

vir naquela noite, o que haveria por baixo daquela lona que causaria tanto espanto aos

espectadores?

Olhei pelo vitrô e vi pessoas já adentrando no circo. Crianças e adultos, sendo

recepcionados por uma pessoa fantasiada parecendo um leão em duas patas, na entrada

principal.

O barulho da porta de casa batendo me despertou a atenção. Corri pra ver e

constatei que o Reverendo havia acabado de sair com a mulher e os dois filhos. Mais

uma vez fiquei sozinho. Sem pressa me ajeitei e saí. Observei pelo caminho que

praticamente todas as casas já estavam fechadas, com as luzes todas apagadas e uns

últimos retardatários saíam em direção a atração da vila naquela noite. Depois que todas

as residências se apagaram, apenas o circo no centro da vila servia como fonte de

iluminação ali naquelas imediações.

“Devem ter um gerador possante pra manter isso tudo aceso”, pensei. Fui

assaltado pelo aroma delicioso; aquele cheiro de tempero, de alimento sendo cozido, tal

qual na noite da ceia. Me deu fome.

Ao chegar à entrada do circo me aproximei do homem fantasiado de leão, que

recepcionava três rapazes que estavam em clima de muita euforia. Logo ali já recebiam

gratuitamente um saquinho com pipocas e um copo com um líquido vermelho. Aquilo

me chamou a atenção. Eles ao me verem não perderam a oportunidade de mais uma

zombaria:

“Olha ali”, disse um deles apontando em minha direção, “uma atração do circo

fugiu”.

Isso provocou risada dos outros dois.

“Esse aí fugiu foi do inferno! Que coisa feia, nem arrumado melhora.” E riam

descompensadamente.

E assim, com deboches e ofensas aqueles rapazes adentraram sob aquelas lonas

sem nenhum tipo de cerimônia enquanto comiam avidamente aquelas saborosas

pipocas.

“Não liga pra eles não garoto. Essa foi a última vez que riram de você. O que foi

no rosto garoto?”

Olhei praquele recepcionista fantasiado, e pude reparar na perfeição daquela

maquiagem. Me impressionou.

“Nada não”, respondi. Perguntei em seguida: “Onde o senhor comprou essa

roupa?”

O homem riu. Um riso debochado. Apenas riu.

“Parte dela aquiri de um comerciante chinês. Tecido de alta qualidade”, ele me

respondeu, “outra parte, ganhei da mamãe”.

“Ganhou da sua mãe, como assim?”

“É, ganhei da mamãe. Nasci com ela”.

Eu olhei pra ele meio que sem entender, e foi quando ele grunhiu pra mim,

mostrando seus dentes pontiagudos, tais como de felinos. Presas enormes. Eu me

espantei e dei um passo pra trás. Ele riu e disse:

“Olha garoto, se isso que você viu agora está te causando espanto, então se

prepara para o que você vai ver aí dentro...”

Meio espantado caminhei em direção ao interior da lona. Senti sua forte mão

sobre meu ombro quando passei por ele, e vi que suas unhas também era algo anormal,

unhas de felinos. Naquele primeiro momento não soube se era algum tipo de truque ou

se era de nascença também, vindo a confirmar a segunda opção tempos mais tarde. Ele

então me disse:

“Garoto, o Sr. Tissot me recomendou que te avisasse pra não comer nem beber

nada durante a sessão, entendeu?”

Balancei a cabeça afirmativamente.

“Nem mesmo uma bala...” disse ele num tom mais sério, porém não agressivo.

A música vindo lá de dentro me chamou atenção. De tão alta que era, creio ser

capaz de sufocar qualquer tipo de grito, seja de euforia, seja de pavor.

Ao adentrar, um anão bem vestido, montado num pônei negro veio ao meu

encontro.

“Então é você nosso novo colega de profissão, certo?”

Eu disse sim, sem me dar conta da complexidade daquela resposta.

“O Sr. Tissot está numa reunião particular com o Reverendo, e me pediu pra te

dar as boas vindas no nosso circo. Depois ele virá pessoalmente te encontrar. Venha

comigo, vou te mostrar algumas coisas interessantes”, disse ele.

O circo por dentro era todo dividido de maneira extremamente engenhosa. Uma

verdadeira obra de arte. Decorações de requinte, detalhes de luxo, tudo feito no fito de

impressionar os visitantes. Entalhes em madeira de lei, lustres de cristais, castiçais em

ouro, ornatos variados e de extremo luxo. Vi que era todo subdividido, formando seções

e ambientes distintos. Corredores que davam acesso a saletas. Nessas saletas, em

exposição haviam as coisas mais estranhas que nem minha imaginação jamais tivera

criatividade de produzir. Na primeira câmara que adentrei eu vi uma mulher espremida,

toda contorcida em um cubo de vidro, sorrindo, como se divertido fosse passar horas

dobrada ali naquele diminuto espaço; noutra sala havia um aquário grande, e dentro um

homem que eu achava estar usando uma fantasia de escamas e guelras no pescoço (mas

não era fantasia); noutra sala uma mulher tão gorda que não se sabia onde começava e

terminava seus membros inferiores. Deitada nua sobre um estrado, só se via uma massa

de pele e banha espalhadas sobre a plataforma. Estava ali se fartando em carne e vinho.

Noutro espaço estava um homem todo rebatido de pregos, noutro um com duas mãos

num único braço, noutra uma garotinha coberta de pelos por todo o corpo e rosto,

noutro sala, seminu, um homem esquelético, parecia até um boneco. Havia coisas

estranhas, até agressivas de se verem. Haviam várias outras câmaras. O que mais de

horrendo estaria ali atrás daquelas cortinas? O anão me conduziu a uma sala de animais

exóticos, bichos estranhos. Vi novamente a ratazana, só que dessa vez enjaulada.

Parecia agressiva. Um tamanho descomunal. Vi uma serpente de patas, correndo de

quatro pés atrás de um desafortunado coelho, vencido pelo cansaso no reduzido espaço

que ambos dividiam. Vi uma cobra inchada. Muito gorda, e fui acompanhando sua

extensão. Ao olhar na boca daquela cobra, vi um par de botas pra fora. Botas que não

me eram estranhas. Eram os pés de um homem. Aquilo me impressionou. Como aquela

cobra poderia ter acabado de se alimentar de uma pessoa diante do olhar deles? Não

fizeram nada? Seria apenas um truque pra impressionar o público? Fiquei confuso...

O anão percebeu minha reação. Olhei novamente pra ratazana gigante e vi que

ela roía ossos, mas não eram ossos de boi ou porco. Eram ossos humanos. Havia um

crânio ali dentro da gaiola que prendia aquela besta. Ameacei vomitar, mas segurei.

Ainda havia muito a ser visto.

Depois o mestre de ceriônias me chamou pra irmos pra outro ambiente. Fomos

andando e senti um forte cheiro de carne sendo assada. Vi dois homens vestidos de

palhaços passarem com um prato e nele um suculento pedaço de carne. Um dos

palhaços reparou que eu olhava pro prato com a carne e me ofereceu. Me lembrei do

conselho do “homem-leão” pra não comer nada e recusei. Um dos palhaços chamou o

anão, e saíram. Fiquei ali sozinho com o outro palhaço que tinha uma maquiagem

estranha, com vários olhos pintados no rosto. Devido a baixa luminosidade daquele

corredor eu fiquei meio confuso, porque apenas um olho dele piscava. Mas não o olho

direito ou esquerdo, e sim um que ele tinha no centro da testa. Quando o encarei,

apavorei, e saí depressa daquele recinto. Ele não me seguiu, pois prcebeu a motivação

da minha saída repentina. Entrei na sala de onde partia o cheiro da carne. Dois fornos

grandes estavam em atividade, e minha fome me fez ir olhar aquele alimento em

preparação. Ao abrir a tampa daquele forno, quase desmaiei: um daqueles jovens que

havia me xingado na entrada estava sendo cozido. Amarrado, ele ainda estava meio

vivo, e desesperado tentava se soltar das amarras, se debatendo inutilmente. Eu me

afastei horrorizado. Não resisti a curiosidade e fui inspecionar o outro forno. Nele

estava mais um daqueles jovens, já num estágio mais avançado de cozimento.

Completamente nu, ele estava todo retalhado. Lembrei do pedaço de carne no prato dos

palhaços, e deduzi que foram retirados daquele infeliz. Apesar de repugnate aos olhos, o

cheiro da carne humana em cozimento era atrativo, de estimular o apetite. Eu repudiei

meus instintos. Dei dois passos pra trás e desmaiei.

Ao acordar estava numa sala bem arejada. Nela, uma mesa farta de alimentos.

Frutas frescas, variedade de pães, aves assadas, tudo à minha disposição. Também tinha

jarros de bebidas, que nem sei ao certo o que eram.

“Fique à vontade garoto, daí você pode se servir com o que quiser...”

Era Tissot.

“Esse alimento não contem nenhum tipo de química. Nem sonífero, nem

alucinógeno, nem veneno, nada disso. Alimento puro. Limpo e puro.”

“Vi pessoas morrendo Tissot”, falei.

“Pessoas?” – ele disse – “não, garoto. Pessoas não. Você viu foi bichos

morrendo. Animais são animais. Homens são homens, agora aquilo que não é animal,

nem humano, então deve ser considerado como bicho. E bicho bom, é bicho morto.”

Falou de maneira categórica.

Eu tinha um semblante de assustado.

“Não se espante garoto! Eles estão tendo o que mercem, todos eles. Essas

pessoas passaram a vida engando-se a si próprio, mentindo, explorando, vivendo nesse

mundo de hipocrisia que você bem conheceu.”

“Mas nem todos eram maus...”, eu disse.

“Todos são culpados garoto!”, ele disse em tom incisivo. “Quem não pecou por

ação, pecou por omissão, sendo conivente com as barbáries desse maldito Reverendo e

seus obreiros desgraçados. A única pessoa digna de oportunidade aqui é você, que

sempre foi o marginal dessa sociedade cancerosa. Se não aparecessemos, você

fatalmente ficaria louco, seria morto num acesso de fúria por parte de qualquer morador

local, que sairia ileso, isento de culpa pelo ato, ou então você no auge de sua

desesperança cometeria suicídio. Seu final não seria diferente dessas opções.”

“Então quer dizer que todos vão morrer essa noite?”

“A maioria já está morta”, disse ele sem ressentimento algum, “e os outros

vivem seus últimos suspiros.”

Abriu uma cortina e havia um vidro grande, uma espécie de espelho no qual se

via o outro lado. Ao me aproximar vi que no ambiente que ela dava acesso estavam

vários corpos de pessoas da vila estirados no chão, sem vida, e os que ainda tinham

fôlego brigavam entre si. Vi familiares, amigos de infância, todos atracados um contra o

outro, como inimigos mortais. Agrediam-se gratuitamente com paus e quaisquer objetos

que pudessem ter em mãos.

Tissot me explicou:

“O alucinógeno é tão poderoso que provoca visões espantosas. Alucinações

terríveis e insuportáveis. Diluído nas bebidas e granulado nas guloseimas, as pessoas o

ingerem se darem conta. E uma vez ingerido, ninguém vê o outro mais. Os semelhantes

perdem a identidade, passando a enxergarem monstros, demônios, seres do espaço,

coisas assim. Vêem de tudo, menos gente na sua frente. Tomados pelo pavor e incitados

pelo frenesi dos palhaços canibais, eles se agridem até a morte, e por fim, os palhaços

fazem além da refeição, a limpeza do ambiente.”

Olhei e vi ao menos meia dúzia de palhaços desossando os corpos já sem vida no

chão. Os meio-mortos eles acabavam de matar com estocadas de facas robustas. Alguns

enquanto dilaceravam, levavam pedaços de carne humana e vísceras ao paladar,

saboreando com imenso apetite. Vi inclusive o palhaço de um olho só entre eles,

arrastando uma senhora gorda, vizinha do Reverendo.

“Lembra que eu te falei de uma dívida com meus empregados, garoto? Então,

esses palhaços canibais são nativos de uma ilha no Pacífico. São antropofágicos por

natureza, que por capricho do homem ocidental passou a ser alvo de caça. Eu me

infiltrei entre os caçadores, já no intuito de trazer algumas dessas criaturas bizarras

comigo, mas não consenti com um massacre geral e resolvi poupar alguns deles do

extermínio total. Assim eu os trouxe para o continente para viverem comigo no circo,

servindo de atração. Cerca de pouco tempo atrás, eu ia ser morto numa emboscada por

uns desafetos que tinha e eles me salvaram. Em gratidão prometi que lhes

proporcionaria um banquete de fartura, com carne humana de sobra. Foi quando de

passagem por aqui eu conheci esse asqueroso Reverendo e sua corja de imundos, que só

prestam mesmo para serem devorados pelos meus palhaços canibais.

“Sim, o Reverendo”, pensei, “o que teriam feito dele? E sua mulher, e seus

filhos?”

Como que se tivesse lido meus pensamentos, Tissot falou:

“Aquela velha inútil sofreu antes de morrer...”

“O que aconteceu com ela Tissot?” – perguntei.

“Ela depois de ficar embriagada de tanto comer as coisas com alucinógenos, foi

levada aos risos a uma ante-sala e amarrada num giral, onde serviu para mais um

número do meu espetáculo.”

“Que tipo de atração ele veio ser?” perguntei espantado.

“Arremesso de facas”, ele respondeu. “Nosso arremessador é um exímio

profissional nisso. Atirou 10 facas com destreza, e não errou nenhuma!”

“Então como foi que ela morreu?”

“Ah, foi o aprendiz dele quem a matou.” Ele falou com frieza. “Tadinho, o rapaz

é um jovem que nasceu sem olhos. Apenas as órbitas vazias, nada mais. Igual você, ele

sempre foi discriminado também. Descobrimos ele numa aldeia, no interior da Espanha,

não tem muito tempo, e resolvi ajudá-lo. Ele ainda é assistente do atirador de facas, e

um dia irá substituí-lo. Ele está ficando bom. Dos 10 arremessos ele errou apenas 8, e

foram justamente essas 8 facas que perfuraram a mulher do Reverendo. Duas na cabeça,

uma no antebraço direito, outras três no tórax, uma na perna e outra no abdômen. Ela

não resistiu...”

Eu espremi os olhos, sentindo em mim a dor do cravar daqueles punhais... E

perguntei:

“E os filhos dele?”

“Um deles eu vi brincando com a anaconda que trouxe da Amazônia. Acho que

depois foi devorado por ela. Um idiota mesmo.”

Bem que quando eu vi as botas pra fora da boca da cobra, pensei já ter visto

aquelas botas.

“O outro mandamos brincar no trapézio, de olhos vendados, mas ele caiu lá de

cima. Embaixo não tinha rede de proteção e ele teve múltiplas fraturas. Morreu

agonizando também.”

Quanto sadismo, meu Deus, nunca imaginei presenciar tanta barbárie de uma só

vez, concentrada em um único local! Agora, só restava saber do Reverendo.

“Venha garoto, vamos ao último número. Nesse você terá participação

especial.”

Acompanhei Tissot desnorteado; já não sabia se era pesadelo ou realidade. E se

etivesse dormindo, sob efeito do suco alucinógeno que tomei na porta da casa do

Reverendo, dado pelo Tissot? Sim, poderia ser apenas um sonho louco. Mas não era...

Entramos numa sala maior, estava escuro, eu ia quase tateando. De repente uma

voz retumbante bradou:

“Respeitável público, nessa noite temos o prazer de apresentar nossa principal

atração!!!”

Fêz-se um silêncio. A voz retumbou mais incisiva em tom de anúncio:

“O filho do Reverendo!!!”

Filho do Reverendo? Como pode ser? Já não estavam ambos mortos? Só poderia

ser mais uma brincadeira sádica de alguém da trupe de Tissot.

De repente as luzes se acendem. Eu estava só novamente, no centro do

picadeiro. Olhei em minha volta e vi que e assentados no lugar da platéia estavam vários

funcionários de Tissot. Criaturas das mais estranhas já vistas até então: pessoas

anômalas, defeituosas, de aparência bizarra, até animais mutantes porém mais

domesticados estavam lá entre eles. Algo familiar me chamou a atenção ali. A

arrumação daquele picadeiro era praticamente idêntica ao púlpito da congregação do

Reverendo. Reproduziram ou a mantiveram intacta durante a montagem do circo ali

onde era o salão? Não sei ao certo...

De um dos cantos veio andando nas sombras alguém. Ao aproximar-se no

escuro, reparei sua silhueta parecida com a minha, pois lhe faltava a orelha, tal qual

comigo. Quando se aproximou eu me espantei: era o Reverendo!

Desfiguraram seu rosto e o fizeram ficar muito parecido comigo. Muito parecido

mesmo. Ficamos sem reação, eu e ele ali no centro daquele picadeiro/púlpito. O

Reverendo de rosto deformado chorava, querendo piedade.

“Conte pra ele, verme maldito” – era a voz de Tissot soando alto num

microfone, falando com o Reverendo.

Agora era a trupe-platéia que gritava “aleluia, aleluia...”

O Reverendo tremia e chorava tal qual um covarde, sabendo do seu fim certo.

“Diga a todos que você é pai do garoto, Reverendo perverso! Diga que impôs

silêncio a mãe dele para que não te denuciasse o estupro sofrido. Conte que matou a

mãe depois porque ela ameaçou fugir com o filho para dar-lhe um tratamento digno, o

qual você nunca deu! Diga verme dos infernos!!!” e gargalhava acompanhado dos urros

da platéia insandecida. “Confesse pra eles o que você já confessou pra mim, seu homem

satânico!”

Então eu era o filho do Reverendo...

Ouvindo as frases de Tissot, meu ódio ia me dominando. Todos aqueles anos

sendo submetido a humilhações e espancamentos por parte de alguém que deveria ter

me dado amor, ter cuidado de mim... Que sujeito maligno!

Tissot, numa ironia com aquele homem tomou-o pelas mãos e disse:

“Vem Reverendo, vem comigo.”

O infeliz sem alternativas acompanhou o sádico apresentador do espetáculo

daquela noite.

“Quando te visitei naquele dia, você me convidou a me livrar do fogo, lembra

desgraçado?”

O Reverendo chorando só balançava a cabeça afirmativamente.

“Eu não fiz disfeita à você nem em sua congregação hipócrita. Agora é a sua

vez. Não me desmereça nem me decepcione na frente dos meus empregados.” E

conduziu-o a uma grande pira de madeira e feno num dos cantos do picadeiro.

O Reverendo entregou-se ao show de Tissot, e foi. Posicionou-se aos prantos.

Sobre ele caiu um jorro de líquido, que na verdade era um óleo viscoso. Tissot ascendeu

um palito e estendeu na minha direção.

“Tome garoto, pegue. O “Grand Finale” pertence a você...”

Não havia como ser diferente. Nem se eu quisesse.

“Demônios!!!” gritou o Reverendo dirigindo-se a todos ali - “Vocês são uns

demônios!!!”

Tissot gargalhou num timbre tenebroso, que causou espanto até na platéia

bizarra que o assitia.

Quando o silêncio se fez novamente, Tissot falou com a voz calma, dirigindo-se

ao Reverendo pela última vez:

“Não, nós não somos demônios. Somos apenas humanos, ainda que bizarros.

Com os demônios você vai se encontrar agora!” E olhou em minha direção como se me

ordenasse o arremesso do palito aceso na direção daqueles elementos destinados à

queima.

E assim o fiz. Não com receio ou pena, mas com o doce sabor da vingança!

Ao entrar em contato com o feno seco e os gravetos embebidos naquele óleo, o

fogo ateou com muita facilidade. Foi alastrando-se pelo corpo do Reverendo e a platéia

delirava em gritos de escárnio e euforia. O homem se desfazia em gritos de dor,

sufocados pela algazarra dos circenses bizarros. Fogos de artifício estouravam do lado

de fora da lona, enquanto ele queimava ali dentro aos olhos de todos os presentes.

Assim o show de Tissot na naquela comunidade pseudo-puritana chegara ao fim.

“Pronto garoto, acabou. Agora somos só nós. A partir de hoje somos a sua

comunidade, somos o seu mundo particular. Este é o universo bizarro de Serge Tissot e

sua trupe. Enquanto estiver conosco, ninguém te tratará com desdém ou escárnio. Quem

te desrespeitar, desrespeitará Serge Tissot, por isso me pagará com o sofrimento e a dor,

me pagará com a própria vida!”

E foi assim, nessa noite macabra que ingressei na trupe do Circo de Tissot, ou

naquilo que anos depois ficou conhecido como “Circo dos Horrores” .

Antes de partirmos, os empregados de Tissot vasculharam todas as casas da

aldeia, e retiraram tudo de valor que encontraram. De roupas a jóias. Levaram até

mesmo os mantimentos. Depois, numa ação rápida, as residências foram destruídas,

uma a uma numa velocidade assombrosa, sob a supervisão do gigante operário. Por fim,

todo aquele entulho oriundo da destruição foi queimado e suas cinzas espalhadas pelo

vento. Quando não havia mais vestígio algum de habitação ali, então começaram a

desmontar a lona principal. Tissot se desediu discretamente de alguns e partiu na frente,

com seu assistente particular. Nós os que ficamos, trabalhávamos para partir dias

depois. Rumores diziam que ele estava indo em direção a Veneza, na Itália, para

procurar por novas atrações bizarras e talvez promover uma apresentação da trupe num

subterrâneo da cidade. A nós, empregados, não cabia todas as respostas, principalmente

no meu caso, o mais novato de todos. Fui instruído a trabalhar primeiro como auxiliar

de montagem e desmontagem da estrutura circense, onde fiquei íntimo do gigante;

depois fui responsável pelo transporte e alimentação dos animais do circo e por fim

fiquei incumbido de ser um caça talentos pro circo dos horrores. Passei anos recrutando

seres bizarros em grandes capitais ou mesmo em áreas isoladas do continente. Vi coisas

absurdas, que nunca imaginei existir.

Numa dessas minhas idas solitárias em busca de novidades, conheci uma mulher

deficiente visual. Aquela cega, me deu atenção, me fez sentir algo que até então eu

nunca houvera sentido. Me amou antes de eu amá-la (talvez pelo fato de não enxergar

minha feiúra, minhas deficiências). Por isso acabei me apaixonando por ela. Sabia que

tinha voltar para meus compromissos com o Circo, mas meu coração não consentia que

me afastasse daquela mulher que me cativou. Contei a ela minha história, falei de tudo.

Ela chorou, me abraçou e disse que me amava do jeito que eu era. Entendendo meus

motivos, ela arcou com as consequências da nossa decisão, e passamos a viver de

maneira errante, até encontrarmos um lugar que julgamos ser mais seguro. Juntos

vivemos isolados no campo durante muito tempo, distante de todas as formas de contato

com os grandes centros. Acreditávamos que o anonimato me manteria afastado do Circo

e dos seus integrantes. Um dia recebi uma visita inusitada. Era o próprio Tissot em

pessoa. Chegou sozinho e não estava irado comigo. Tratou minha esposa com muita

gentileza, foi polido, e não estava sendo irônico. Antes de ir, no particular me falou

enquanto tomava uma última xícara de café:

“Por todos os anos de serviço prestados ao circo, eu não vim pra te fazer nenhum

mal. Posso ser sádico com alguns, mas sou extremanete justo com outros, e você sabe

disso. Posso parecer um monstro, mas conheço os sentimentos humanos. Nem a você,

nem a sua mulher farei mal algum. Sei que você está recebendo dessa mulher algo que

nunca teve em sua infância nem em sua juventude. Vou deixá-los viver, e aproveitar ao

menos um pouco esse prazer que a vida lhe proporcionou. Você merece. Sei também

que ela com certeza morrerá antes de você, e depois eu te encontrarei e você tornará a

me servir, trabalhando no circo até por fim morrer.”

Eu não respondi nada. Ele ainda permanecia dono daquela capacidade de ser

preciso e incisivo, roubando do outro qualquer tipo de fala contestatória. Ele sabia que

eu não responderia ele. Meu silêncio era o consentimento para a sentença dada.

Que certeza ele tinha que eu demoraria pra morrer, e que minha esposa morreria

primeiro? Será que as coisas que comíamos ou bebíamos durante aqueles anos no circo

teria o poder de prolongar nossa existência diferente das demais pessoas normais? Mais

uma pergunta sem resposta.

Despediu-se de nós e foi. Deixou sobre o móvel uma caixinha de música com

uma canção, de decoração circense. Talvez pra que eu nunca esquecesse pra onde

deveria voltar. Desde então nunca mais o vi depois daquele dia.

Passaram-se duas décadas, e minha esposa faleceu, conforme ele havia predito.

Eu não tinha família, não gerei filhos. Estava sozinho no mundo. Quando minha saúde

começou a ficar debilitada, me internei em hospitais e depois fui sendo transferido de

instituição pra instituição, de asilo pra asilo, até chegar aqui. As vezes, lá no fundo sinto

vontade de encontrar um lugar pra mim, numa aldeia pacata, para morrer em paz. Mas

sei que não será assim. De aldeia em aldeia, de cidade em cidade, o horror não me

concedeu o meu tão desejado sossego, exceto os anos em que estive casado. Ah que

saudade...” E enxugou discretamente uma lágrima. “Não que eu seja ingrato ao que

Tissot fez por mim na minha mocidade, sei que se não fosse por ele eu teria um final

desgraçado e com certeza todos daquela comunidade teriam morrido na sua velhice,

impune das atrocidades que aquele vilarejo foi testemunha. Reconheço que ele me

ajudou, mas confesso que vi tantas barbáries nos espetáculos, presenciei tanta

carnificina, vi tantas atrocidades, torturas, mutilações, coisas estranhas e bizarras, que

minha mente não suporta mais. Cada dia longe do Circo tornava mais difícil o retorno.

Agora já se passaram anos, décadas, e eu sei que tenho que voltar ao trabalho, mas eu só

queria agora descansar...”

Respirou profundamente e arrematou:

“Essa é a minha história moço: as memórias de um aldeão. Eu sei que

inevitavelmente eles virão me buscar, e mesmo não querendo, já estou preparado pra

ir.”

Assim terminou a narrativa do velho.

Eu, ouvinte hipnotizado permaneci atônito e não conseguia esboçar reação

diante da história macabra do velho. Quebrei o silêncio falando:

“Isso não pode ter acontecido... não pode ser verdade...”

“Creia que é”, disse o velho, e continuou: “Tissot está vindo me buscar. Vi um

dos seus anões um dia nas dependências desse asilo. Ele fingiu que não me reconheceu,

mas sei que ele me viu. Estão a minha procura. Quando começaram a aparecer os

palhaços aqui no asilo, numa das visitas deles eu vi que estava infiltrado entre os artistas

comuns um integrante do Circo, era outro serviçal de Tissot. Eles estão infiltrando-se

aqui já algum tempo, eu sei, mas já não tenho mais vigor e disposição para fugir. A vida

de deserção não me compete mais, por isso resolvi me entregar, esperando aqui. Todos

os dias eu fico a buscar evidências da vinda deles, mas não percebo nada de anormal,

além desses fatos que te falei. Porém hoje, desde a tarde, senti um cheiro inconfundível

vindo da cozinha, e ao provar da comida, senti o gosto do tempero que só havia sentido

nas refeições preparadas pelas cozinheiras de Tissot. Como esquecer o paladar daquilo

que consumi por anos a fio? E deduzi que se alguma delas veio e preparou o alimento,

então fatalmente iriam induzir o sono dos pacientes e enfermeiros. Isso com que

finalidade? Me buscar, lógico. “

“Mas e eu, por que então não estou dormindo como os demais?”, perguntei.

“Vou te explicar”, disse o velho, “desde que você entrou no quarto eu acendi

uma vela. Se você pensa que é apenas para espantar a escuridão, está enganado. A

fumaça produzida pela queima dessa vela tem o poder de inocular o efeito dos soníferos

utilizados pelos asseclas de Tissot. Ele mesmo me ensinou essa artimanha. Desenvolveu

isso ao longo dos anos, mesclando seus saberes de xamanismo, bruxaria, alquimia e até

medicina moderna. Extrato de ervas, polém de flores, sementes de frutos raros, vísceras

de animais e até sangue humano são utilizados nessas composições sem patente, mas de

produto da mente de Tissot. Já conheço a eficácia desses produtos. Aprendi a manipulá-

los e sempre levo a mão comigo algumas dessas velas que também aprendi a fabricar.

Enquanto nós conversávamos, quando uma delas ia apagar, eu acendia outra, e assim o

tempo todo te mantive alerta.”

“Então você está querendo que eu acredite que se essa vela apagar, eu pego no

sono junto com os demais aqui do asilo?” eu disse meio em tom de riso...

“Acredite que sim!” – uma terceira pessoa me respondeu das sombras na porta

do quarto.

“Tissot”, disse o velho em tom melancólico. E antes que eu pudesse levantar pra

conferir um vento assoprou no quarto a pequenina chama da vela, que desfez-se. Ainda

tentei tatear no escuro, mas quase que de imediato eu apaguei, como todos os outros ali

na clínica.

Fui acordado no dia seguinte, sozinho naquele quarto, e nunca mais vi o velho.

Ninguém soube dar uma explicação plausível do ocorrido. Os mais céticos dizem que

ele simplesmente fugiu. Outros preferem não dizer nada. Nunca tive coragem de contar

o que eu ouvi naquela madrugada. Fui intimado a responder numa sindicância

instaurada pelo sumiço do paciente, e depois perdi meu emprego. Fiquei descredibilizdo

profissionalmente, e abandonei tudo, inclusive minha família. Parti pra uma acurada

investigação que me tomou muito tempo da vida, mas reconheço ter sido inútil. Fiz tudo

que pude, mas nunca consegui encontrar rastro nem daquele velho enigmático, nem

daquele empresário excêntrico denominado Serge Tissot. Ainda hoje o circo dos

horrores vive em minha mente, e se não os vi fisicamente, ao menos nos meus sonhos,

todas as noites eu participo daqueles espetáculos bizarros que insistentemente me

perturbam. Tenho pavor de circenses, nunca mais tive coragem de entrar debaixo de

uma lona pra assistir espetáculos. Não me alimento de nada na rua, nem sólido, nem

líquido. Sou desconfiado de todo tipo de pessoa defeituosa, e passei a ter mania de

perseguição. A voz daquela pessoa que o velho chamou de Tissot naquela madrugada

ainda me persegue, e é só fechar os olhos que eu a ouço. Temo pela minha sanidade...”

*****************

Foi assim que se encerrou a narrativa do enfermeiro. Assim terminava os

escritos, naquele velho e amassado papel.

Já ouvi falar de um tal circo dos horrores, com exibições de atrações um tanto

quanto excêntricas, composto por uma trupe também bizarra, mas nunca se noticiou na

mídia impressa ou falada algo dessa natureza. Qualquer pessoa normal descartaria essa

narrativa, considerando-a demasiadamente fantasiosa e até mesmo de mal gosto.

Todavia eu me sinto cada dia mais cativado pela lembrança de tais escritos, e acho que

inconscientemente eu tenho absorvido tal universo em minha mente. Outro dia, no

metrô ouvi chamarem pelo meu nome. Por um momento achei que fosse Tissot me

chamando. Cheguei a gelar. Era apenas um conhecido meu, que me avistara de longe.

Como pode? Nem mesmo tenho idéia de como seria o timbre da voz desse homem, ou

personagem... Como poderia ele me chamar? Como poderia ele mem conhecer? Em

outra ocasião fui visitar um circo que se instalou aqui na cidade, e vasculhei cada

detalhe, em busca de alguma evidência que corroborasse a história que eu tivera

conhecimento. Mas não encontrei absolutamente nada que desabonasse a conduta

daqueles profissionais circenses. Não sei porque, mas depois disso, sinto que não sou

mais o mesmo. Comecei sonhando noite após noite que estava assentado na platéia,

assistindo Tissot apresentando atrações bizarras; com o passar do tempo, mesmo

acordado, não consigo me livrar desses pensamentos mais.

“Atualmente eu é quem temo pela minha sanidade.”

Aqui encerro a minha própria narrativa.