sobre metodologia qualitativa pesquisa

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  • 8/4/2019 Sobre Metodologia Qualitativa Pesquisa

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    Anlise Social, vol. xxxiii (148), 1998 (4.), 871-883

    Sobre a metodologia qualitativa na pesquisasociolgica

    A P R E S E N T A OEste texto pretende reflectir sobre um percurso de investigao assente naprtica da metodologia qualitativa e sobre o valor que pode ter para a pesquisasociolgica a utilizao da entrevista compreensiva (J. C. Kaufmann), ouseja, o contacto directo com o objecto de estudo, enquanto objecto falante (onarrador). A narrativa de vida, que desse contacto se obtm, contribui para aemergncia de um relevo numa realidade, por vezes aplanada pelos n-meros, difcil de obter pelas tcnicas de quantificao.Trata-se, no essencial, de confrontar impresses do trabalho de campocom a experincia de alguns tericos da etnossociologia que privilegiam a

    biografia e a narrativa de vida na recolha da informao (D. Bertaux, J.Peneff, J. C. Kaufmann e M. Maffesoli).Baseamo-nos em extractos do dirio de bordo elaborado, entre Julho eSetembro de 1998, na sequncia das entrevistas realizadas no concelho de PontaDelgada (So Miguel, Aores) e que integram uma pesquisa de doutoramentosobre As transies familiares e a construo da identidade das mulheres.NOTAS E REFLEXES DO TRABALHO DE CAMPO

    Aproximei-me de carro. porta a senhora esperava-me... Tenho estado a pensar no que me vai perguntar! Espero saber responder! Com certeza que sabe! respondo eu.* Instituto de Cincias Sociais da Universidade de Lisboa. 871

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    Piedade Lalanda A i n d a p re o c u p a d a , a s e n h o r a a f i r m a ; No que estiver ao meu alcance! Vai ver, apenas da sua vida que se trata... nada mais!Ento faa-me perguntas!M a s , lanada a primeira, a conversa desfiou como quem abre a comporta deum dique... [Dirio de bordo, 7-8-98.]

    A tarefa do socilogo a de falar de um mundo concreto de homens emulheres, entre os quais ele prprio se situa. E, na medida em que o pen-samento sociolgico potencialmente portador de conhecimento, de com-preenso e de apreciao, o socilogo tem de ser entendido no apenas poruma elite cientfica, mas por essa sociedade que ele faz falar, a quempode legar a sua prpria pesquisa, numa linguagem que ilumine o desconhe-cimento geral (Daniel Bertaux, 1979, 11).A realidade sociolgica sempre uma construo que se fundamenta numuniverso factual. Ao investigador cabe encontrar, atravs dessa construo,o essencial de um real , por vezes, quotidiano e anulado pelas rotinascomportamentais. O discurso do socilogo tanto mais fundamentado emelhor entendido quanto mais enraizado for na realidade que pretendeexplicar. Nesse sentido, o socilogo que se interessa pelo quotidiano procuraintegrar no e atravs do conhecimento o que est prximo; inventa (nosentido de in-venire), salientando todos os fragmentos de situaes minscu-l a s , banalidades que, por sedimentao, constituem o essencial da existn-cia (M. Maffesoli, 1988, 48) 1 . hoje consensual afirmar a importncia de uma abordagem plurimetodo-lgica com o estratgia eficaz na clarificao dos fenmenos, q uer em term osda sua extenso, quer em termos do seu significado. Para a sua compreenso,as tcnicas de recolha de informao e as metodologias quantitativas ouqualitativas que as enquadram no se opem, antes se completam. Essa plu-riabordagem corresponde, em termos metodolgicos, prpria integraocientfica das diferentes cincias sociais. Tendem a estabelecer-se fronteirascada vez menos rgidas entre as vrias dimenses do real. Sem prejuzo daespecificidade de cada leitura cientfica, procura-se um modo de olhar que sequer aberto. Nesse sentido, cada vez mais frequente a utilizao por parteda sociologia de tcnicas qualitativas baseadas na relao aprofundada com umpequeno nmero de actores sociais. A histria de vida, a biografia, a entrevistaem profundidade, so disso exemplo e podero representar para a investigaosociolgica instrumentos privilegiados de anlise da realidade. O contacto

    1 Nota: todas as citaes foram traduzidas pela autora do texto.2 Distanciamento foi muitas vezes entendido como insensibilidade, pura neutralidadeafectiva, objectividade cientfica, como se o socilogo ser humano no existisse no inves-87 2 tigador.

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    Sobre a metod ologia qualitativa na pesquisa sociolgicadirecto do socilogo com os actores no anula o distanciamento 2 que a cinciaexige. Antes transforma a recolha de informao numa experincia quehumaniza a prpria investigao3, ou seja, proporciona ao investigadora possibilidade de ver por dentro, tomando uma dupla posio de obser-vao: a de investigador e a do prprio actor.Como em qualquer tcnica de trabalho, o instrumento de recolha dedados (quer se trate do questionrio, quer de uma entrevista gravada) repre-senta, ao mesmo tempo, um prolongamento da capacidade de entendimentodo investigador na procura de sentido, constitui-se como uma barreira entreos dois universos em jogo a realidade factual e a anlise cientfica , alisagravada pelo prprio acto de inquirir no caso do questionrio, exigindoa compreenso de questes escritas, algumas de resposta condicionada, nocaso da entrevista, marcada pela barreira de um gravador ou de um contextonem sempre favorvel conversa, como acontece em entrevistas feitas emgabinetes, mediadas pela presena de uma secretria, que intimida o en-trevistado.

    Sente-se, esteja vontade...no sei se quer ficar aqui, na cozinha? Por mim, tudo bem! Mas, se quiser, podemos ir para a sala! No necessrio, estamos muito bem aqui e assim podemos conversar volta da mesa. J agora, a sua cozinha muito bonita, tem muita luz!... [Diriode bordo, 8-8-98.]

    Desculpe l a pequenez, mas o nico stio que eu tenho para receber aspessoas. [Dirio de bordo, 28-7-98.]A eficcia na utilizao da tcnica da entrevista em profundidade no sdepende do domnio da metodologia em que se insere, mas tambm exigeuma atitude antropolgica do entrevistador. A empatia fundamental naentrevista. A psicologia social h muito que definiu essa condio bsica

    para o sucesso da relao, nomeadamente na relao teraputica (C. Roger).No entanto, a sociologia, porventura marcada por um formal distanciamentoprovocado pelo conceito de objectividade cientfica, tem sido levada ao usoexagerado de um rgido esquema predefinido de questes. A entrevista,como refere o texto crtico de N. Mayer 4 (1995, 362), deve ser tida cada vez3 Entenda-se humanizao no sentido em que introduz o contacto directo com o objectode estudo, introduz a subjectividade dos actores e o contacto face a face do investigador coma humanidade desses actores em contextos concretos de interaco.4 Nonna Mayer analisa neste texto a obra coordenada por Pierre Bourdieu, La misre dumonde, e sublinha alguns dos aspectos negativos de que a metodologia da entrevista enfermanesse estudo, realando, por outro lado, os benefcios e alguns segredos do sucesso dessatcnica de pesquisa. 87 3

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    Piedade Lalandamais como um momento que pode, ou deve, proporcionar ao entrevistadouma ocasio inesperada de se interrogar sobre si mesmo e de testemunhar.H, porm, segundo o mesmo autor, duas condies a no esquecer. Uma de ordem tica, que poder resumir-se na atitude bsica da compreenso, oque no significa envolvimento, antes a capacidade de estar disponvel parao outro, de olhar de um modo diferente. A outra de carcter cognitivo:exige ao socilogo o conhecimento do meio onde se realiza o trabalho decampo e um olhar crtico sobre essa mesma realidade. Nesta perspectiva,nada substitui o contacto do socilogo com o outro (o real), de prefernciasem a total mediao de entrevistadores recrutados, quanto mais no sejaporque atravs dessa sua experincia que poder situar o contedo trans-crito de cada entrevista. Contudo, e como refere Mayer (1995, 363) na suaanlise sobre algumas atitudes bsicas no uso da tcnica da entrevista:

    Et, s'il existe un mtier de sociologue permettant de restituer lediscours de 1'enquet dans le contexte social et culturel dont il est produit,d'ajuster ses questions et ses relances, il existe aussi un mtier d'enqu-teur. La c apac ite cou ter autrui et se projeter en lui ne s' imp rovisepas. Un bon sociologue n'est pas ncessairement un bon enquteur.A relao do socilogo com o entrevistado dever transformar-se, durantea entrevista, numa relao de confiana, o que pressupe uma certa familia-

    ridade com a populao em estudo. Mas no se trata de criar intimidade coma pessoa em causa, o que em muitos casos provoca efeitos negativos, limi-tando quer a espontaneidade do entrevistado, quer a prpria capacidade doentrevistador de se deixar surpreender.O entrevistado deve sentir-se vontade e ser levado a ocupar lugar cen-tral durante a entrevista. Da que seja ele a tomar em muitos momentos ainiciativa do discurso. O entrevistador deve evitar condicionar as respostaspelas prprias perguntas que faz. Este risco existe sobretudo quando se partepara o trabalho de campo com um esquema terico explicativo predefinidoe demasiado elaborado.Uma entrevista corresponde sempre a uma verso de uma histria. Porum lado, sempre que algum se conta, conta-se a algum em concreto enuma determinada circunstncia (J.-L. Le Grand, 1988, 4). O prprio discur-so est, pois, condicionado por uma certa anamnese. Ou seja, estamos peran-te uma construo selectiva baseada na memria e nas representaes. Poroutro lado, a entrevista conduzida segundo os objectivos definidos pelaprpria investigao. No se trata, por isso, de ouvir um qualquer relato ouum a histria sem estrutura de sentido, mas de ouvir falar a realidade segundoum traado que lhe proposto e em relao ao qual o entrevistado se cola874 ou se desv ia. Cabe depois ao socilogo explicar esses discurso s, descod ifi-

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    Sobre a metod ologia qualitativa na pesquisa sociolgicacar-lhes o sentido, interpret-los, aproximando a definio inicial do seuobjecto com o real encontrado.

    Nem percebo como que m e estou a abrir tanto consig o... [Dirio de bordo,24-7-98.]Quando sa da casa de A. senti de repente um enorme cansao e um sentimen-to de que carregava comigo o peso de uma vida, que eu no podia silenciar.[Dirio de bordo, 28-7-98.]

    A entrevista em profundidade (compreensiva5) permite abordar, de ummodo privilegiado, o universo subjectivo do actor, ou seja, as representaese os significados que atribui ao mundo que o rodeia e aos acontecimentosque relata como fazendo parte da sua histria. Essa subjectividade , para osocilogo, no um mero reflexo da individualidade desse actor, mas de umprocesso de socializao e de partilha de valores e prticas com outros, ouseja, resulta de uma intersubjectividade. Nesse sentido, e para obviar o ca-rcter individual da biografia, J.-L. Le Grand (1988, 3) aponta a importnciada entrevista em grupo, porventura mais prxima do contexto de uma anlisesociolgica. Parte-se do pressuposto de que, em grupo, os indivduos retra-tariam melhor a prpria dinmica grupai. H, no entanto, um seno nessaperspectiva: o facto de o significado dos comportamentos, das aces, ou algica que justifica as opinies serem sempre, em parte, conhecidos e, emparte, privados e nem sempre conscientes para o prprio actor. , por vezes,no acto de se contar que o prprio indivduo encadeia situaes e motivosque nunca foram por ele explicitados.Na realidade, a narrativa de uma vida revela uma sucesso de contextosinteractivos e de personagens, onde as experincias relatadas no s afectamesses contextos, mas tambm transformam os prprios actores (Bertaux,1979). Num discurso orientado pelo fio condutor do tempo, o entrevistado levado a rever-se em diferentes contextos e a situar as diferentes persona-gens que neles de alguma forma interagiam. Contar-se tambm olhar-se eidentificar momentos marcantes de transio e mudana.

    Naquele tempo, enquanto a minha me foi viva, ns ramos mais alegres...[Lcia, 35 anos, divorciada.]Muitas das minhas colegas viveram o 25 Abril como um tempo de euforia!Naquela altura eu queria era libertar-me dos meus pais e por isso fui viver com

    5 J. Claude Kaufmann (1996) introduz o conceito de entrevista compreensiva comometodologia qualitativa que permite a construo de uma sociologia, tambm ela, compreen-875

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    Piedade Lalandaum amigo! Hoje sinto que devia ter antes optado por fazer um curso superior![Rita, 37 anos, casada.]

    Eu antes, quando olhava os pedintes, sentia repulsa, preferia afastar-me econviver com pessoas mais educadas; hoje compreendo-os e olho-os de um mododiferente, eu j sofri como eles. [Berta, 49 anos, casada.]Como classificar o tipo de informao recolhida atravs da entrevista emprofundidade? Facilmente se confunde a designao histria de vida, narra-

    tiva, testemunho. Na realidade, cada designao corresponde a uma orientaoepistemolgica: a histria de vida implica a globalidade de uma existncia,feita de diferentes pocas ou fases, tratando-se de um discurso autobiogrfico.A narrativa corresponde ao discurso de um actor sobre a sua histria de vida,onde este se conta, sem, no entanto, ser forosamente autobiogrfico. Final-mente, o testemunho representa um relato centrado num acontecimentovivenciado pelo autor do discurso de uma determinada maneira.A importncia da entrevista em profundidade numa pesquisa sociolgicadecorre do facto de este tipo de recolha de dados poder ser definido por doisaspectos: a sua dimenso narrativa e a enunciao ou emergncia de um eusocial (Chanfrault-Duchet, 1988, 27). Trata-se de uma narrativa na medidaem que o indivduo conta a sua histria ou melhor dizendo, conta-se numdeterminado momento ou si tuao; todavia, o investigador no pretendecentrar-se no particularismo de cada narrativa, no eu individual que elarepresenta. Esta metodologia, ou etnometodologia, exige a recolha de dife-rentes narrativas, de diferentes actores que viveram experincias similares,mas pode ultrapassar as singularidades de cada narrativa e construir pro-gressivamente uma representao sociolgica das componentes sociais (co-lectivas) dessa situao em estudo (Bertaux, 1997, 33). Ao comparar casosdiferentes, o socilogo subsume, das narrativas individuais, lgicas maisamplas. Neste sentido, o trabalho do socilogo consiste precisamente emcriar novas formas temporais de causalidade para dar a ver novas vias deinteligibilidade das prticas sociais (Conninck e Godard, 1990, 25). O ob-jectivo da perspectiva etnossociolgica, utilizando a designao de DanielBertaux (1997, 7), no o de procurar os esquemas de representaes ou osistema de valores de uma determinada pessoa isolada, nem mesmo de umgrupo social, mas de estudar um fragmento particular da realidade scio--histrica 6, um objecto social.

    6 Daniel Bertaux define fragmento particular da realidade scio-histrica, um determi-nado mundo social centrado numa actividade especfica ou uma determinada categoria de8 7 6 situao que rene determinadas pessoas numa mesma situao.

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    Sobre a metod ologia q ualitativa na pesquisa sociolgicaDa que no se excluam outras fontes de informao, como seja a infor-mao estatstica, as entrevistas a informadores privilegiados.A sociologia, ao utilizar a entrevista compreensiva como fonte de infor-

    mao/recolha, procura, entre outras coisas, entender o modo como os indi-vduos vivenciam o seu quotidiano, em particular determinados aconteci-mentos ou mudanas, durante a sua vida. Na realidade, uma histria de vidano uma sequncia uniforme de acontecimentos, mas um traado, porvezes sinalizado por acontecimentos marcantes, momentos de transio queconfirmam trajectrias ou contribuem para as redefinir. Trata-se ao mesmotempo de olhar um conjunto de pequenos fragmentos de vida e de os situarnum contexto mais alargado, em particular quando nos detemos nos mo-mentos de transio do ciclo de vida. Estes momentos interessam, em par-ticular, anlise sociolgica, na medida em que so situaes onde a histriaindividual aponta para uma dimenso do contexto social, institucional, derepresentaes e modelo em que o indivduo em causa se insere. Noestamos perante retratos acabados de uma identidade particular, mas pe-rante parcelas de um contexto onde se evidenciam as vivncias individuais.Como refere Hoerning (1988, 38), este tipo de estudo comea num mo-mento preciso da histria de vida, e tal significa que o passado biogrficoentra no estudo c om o parte integrante dessa histria de vida e influencia quero presente, quer o futuro, sendo tido como uma varivel, to importantecomo o sexo, as aquisies sociais ou outras. Este indivduo, cuja biografiapode ser contextualizada num determinado tempo histrico, participa comomembro de um grupo e de uma gerao, e, nesse sentido, a pesquisa socio-lgica procurar descobrir em que medida as experincias individuais podemser utilizadas como recursos biogrficos, quando relacionadas com os recur-sos estruturais, na explicao de uma transio biogrfica.

    A minha me morreu; o meu pai era uma pessoa que bebia e maltratava agente; e isso tudo que me levou a casar mais cedo (14 anos). [Lcia, 35 anos,divorciada.]A estrutura identitria de uma narrativa no representa uma sucessode etapas que se excluam mutuamente, porque o narrador, ao contar-se,constri a sua identidade, reconstruindo o seu passado, revelando lugares deconflito, rupturas e aquisies/aprendizagens que fez com outros e consigomesmo. A unidade identitria, que permite associar uma determinada narra-tiva a uma determinada histria de vida, uma construo dinmica namedida em que, ao reconstruir de um modo diacrnico a sua prpria iden-7 Tipologia entendemos esta construo terica como um conjunto de categoriasconstrudas pelo socilogo no sentido de melhor enquadrar a lgica de uma determinadarealidade na diversidade de caractersticas e de situaes que a definem. 87 7

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    Piedade Lalandatidade, o narrador integra diferentes momentos numa mesma experincia,conferindo-lhes coerncia. Esta no resulta apenas dos traos individuais donarrador, nomeadamente da sua personalidade, mas contem processos sociaisestruturais.

    Naquele tempo, ps-25 de Abril, eram poucas as raparigas que os pais deixa-vam ir estudar para Lisboa; restava-lhes o magistrio ou a enfermagem. [Marga-rida, 40 anos, casada.]O contedo de uma narrativa de vida pode ser utilizado em trs momen-tos da investigao: na fase exploratria, na fase analtica e na fase de

    sntese terica (Daniel Bertaux, 1988, 19). A primeira utilizao (explorat-ria) porventura a mais f requente , j que no impl ica uma grandeformalizao do guio temtico nem a exausto na procura da informao.O objectivo principal entrar no terreno e detectar alguns dos processosmais evidentes. A preocupao principal do investigador a de fazer emer-gir as linhas de fora [...] os ns do terreno (D. Bertaux, 1988, 19). Na faseanaltica, o objectivo reside na construo, a partir da transcrio das nar-rativas de vida, de tipologias, de hipteses, ou seja, na elaborao de umateoria que permita interpretar o sentido da realidade social em estudo. ParaDaniel Bertaux, o discurso narrativo pode, nesta fase, ser analisado segundodois grandes eixos. Uns interessar-se-o pelos significados transmitidos pe-los actores que contam a sua vida. Outros privilegiaro as relaes, as nor-mas, os processos que estruturam e suportam a vida social e c'est ici lesocial qui s'exprime travers des voix individuelles (D. Bertaux, 1988, 20).A este nvel coloca-se, frequentemente, a dvida sobre a representatividadedos discursos encontrados. Na realidade, essa validade no corresponde auma medida estatstica, como acontece nos mtodos quantitativos. Ela resul-ta da saturao dos casos que repetem a mesma estrutura de um determinadofenmeno, que no do foro psicolgico, mas releva do universo social . essa saturao que permite construir um modelo analtico e pode, aposteriori, ser confrontada com outros casos, a que Bertaux, citando L idesm ith,chama casos negativos, que permitem verificar o modelo construdo. A fasede sntese, ou seja, a passagem ao texto escrito, exige do autor a capacidadede transpor para a palavra no s o modelo terico explicativo, mas tambma prpria realidade observada. Da ser frequente introduzir expresses reti-radas das entrevistas, das narrativas individuais, no sentido de ilustrar odiscurso cientfico, que valem na medida em que contribuem para levar oleitor a situar a anlise terica numa realidade concreta. Algumas obrasbaseiam-se, na ntegra, na revelao das narrativas, fazendo desapareceraparentemente o autor da obra, que, assim, d voz a outros que ele soube878 fazer falar de si e de uma circunstncia concreta.

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    Sobre a metod ologia qualitativa na pesquisa sociolgicaA anlise de uma narrativa de vida permite fazer emergir um enredo, quese fundamenta em diferentes temporalidades, e definir a historicidade de umfenmeno no apenas como resultado de uma sucesso de momentos, mas

    como um processo. Por este facto, este tipo de material fundamental napesquisa da identidade, como fenmeno processual. Esta metodologia permi-te situar o tempo individual (a trajectria de uma vida concreta) num con-texto situacional mais abrangente.Enquanto falava de si... o seu olhar procurava-me, revelando uma confianaprogressiva. [Dirio de bordo, 19-8-98.]Tenho pensado nesta metodologia. Realmente muito rico ouvir as pessoasfalarem de si, sentir as emoes que os momentos geram, as cores, os gestos eas expresses do rosto que ilustram as palavras... A gravao no guarda um

    sorriso ou uma crispao do rosto, uma lgrima ou um simples brilho no olhar...s em parte a memria e as notas do entrevistador. [Dirio de bordo, 5-8-98.]Quando o investigador, o socilogo, recolhe uma narrativa de vida,coloca, ao mesmo tempo, a interaco como um momento concreto do de-senrolar da sua investigao (Chanfrault-Duchet, 1988, 28). O acto de en-trevistar, a experincia da entrevista, da recolha, devem ser cuidados e ana-lisados no apenas como uma simples tcnica que se aplica, mas como umaexperincia humana que se vive e que, por esse facto, compromete o inves-

    tigador e o narrador. Atravs da narrativa da sua histria, o indivduo de-brua-se sobre si mesmo e obrigado a organizar, de uma forma coerente,as suas memrias desorganizadas e as suas percepes imediatas [...](Cipriani et al., 1985, 261). No raras vezes o discurso gravado marcadopor momentos de silncio, sobreposies de vozes, monosslabos, frasesincompletas..., que devero ser respeitados na transcrio e tidos em contana leitura e interpretao do texto escrito.Trata-se de um dilogo, de uma conversa intencionada. entrevista estsubjacente um contrato entre o invest igador e o entrevistado. SegundoChanfrault-Duchet (1988, 28-29), esse contrato , ao mesmo tempo, narra-tivo, autobiogrfico e interpessoal. narrativo, na medida em que oentrevistador solicita que o entrevistado lhe conte como foi..., utilizandopara tal uma baliza temporal, um fio condutor que confere coerncia aodiscurso narrativo. autobiogrfico, uma vez que essa narrativa se centranuma vida concreta, a do entrevistado, que fala na primeira pessoa e se tornao sujeito da histria que contada. interpessoal, porque o entrevistadortem, tambm ele, um projecto, o de investigar um determinado objecto,devendo procurar fazer convergir o discurso do narrador para os seus objec-tivos. A este nvel, a relao entre os dois parceiros corresponde doinvestigador com o seu objecto, objecto que aqui se torna um 'corpo falan-te' (Ch anfrault-Duchet, 1988, 29). 879

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    Piedade LalandaContar-se ou deixar que outros o levem a isso no tarefa fcil, em parteporque a auto-reflexo um exerccio nem sempre habitual no quotidianodos indivduos. Por esse facto, o sentimento que, frequentemente, emerge nofim de uma entrevista o de mtuo agradecimento: o investigador, por terpodido ouvir uma narrativa at ento privada; o entrevistado, porque lhe fezbem contar-se. A este propsito, J. C. Kaufmann (1996, 48) refere que oinformador levado a sentir-se o centro da conversa sem que tal dependa docontedo de uma opinio que dada em funo de um interrogatrio deperguntas fechadas, mas antes porque possui um saber, uma histria particular,que o entrevistador desconhece, mas que ir poder registar na medida em quesouber orientar a conversa segundo os objectivos da pesquisa.

    [...] mas a que propsito se lembrou de mim?... Por que que algum quersaber coisas da minha particularidade ordinria?! [Dirio de bordo, 22-7-98.]H em cada entrevista uma fase de enquadramento, que pode ser formal (opreenchimento de um ficha de caracterizao), mas que na prtica permite aosdois intervenientes a definio dos limites em que vai decorrer a conversa. Porvezes, h necessidade de aprofundar um pouco mais a prpria rea de interesseque leva o socilogo ao trabalho de campo, mas tambm acontece que esteaquecer de motores se faa a partir de um conversa mais banal sobre otema da entrevista ou at mesmo sobre o quotidiano; o importante que nesta

    fase no h entrevistador nem entrevistado. Trata-se de uma conversa informalque, ao m esmo tempo que contribui para um certo interconhecimento, descom-prime a tenso que sempre se gera perante a gravao de uma conversa.[...] faa de conta que o gravador no est aqui, e conversemos vontade!

    A conduo da entrevista , em geral, orientada por um guio que seconstruiu, mas que se procurou interiorizar (decorar) nas suas grandes linhas.Quando se acciona o gravador, h um momento de embarao, mas quelogo ultrapassado. O entrevistado levado a contar-se e, progressivamente,a proximidade entre o narrador e o investigador aumenta, na mesma medidaem que este ltimo coloca a vida do narrador no centro da entrevista. Pas-sado pouco tempo, torna-se irrelevante a presena do gravador.. Pena queo entrevistador no possa esquec-lo totalmente, pois correria o risco deperder parte do discurso.

    [...] olhos nos olhos, vi-lhe algumas lgrimas correrem; s vezes ficava comos olhos brilhantes quando a comoo, a tristeza ou mesmo a raiva... faiscavamnos seus olhos... [Dirio de bordo, 7-8-98.][...] de vez em quando batia com o punho fechado na mesa quando, nas880 palavras, sobressaa a raiva e o dio. [Dirio de bordo, 28-7-98].

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    Sobre a metodo logia qualitativa na pesquisa sociolgicaA entrevista no se resume a uma gravao. Alis, ningum se conta a umgravador, mas a algum! O entrevistador esse algum que se faz eco de umagargalhada ou de um soluo, algum que reage, no um simples gravador

    humano. H, como referimos, uma relao interpessoal onde ressaltam expres-ses no verbais, silncios, palavras que se dizem com mais intensidade ou, pelocontrrio, se sussurram quase a medo. medida que a confiana se instala, odiscurso adensa-se, a histria deixa de ser banal e recheia-se de pormenoresparticulares. Acontece, por vezes, que a narrativa feita em diferentes graus deprofundidade; num primeiro tempo o entrevistado apenas situa espaos e perso-nagens, marca datas numa histria que parece igual a tantas outras. S a atenodo investigador consegue dar conta de contradies, vazios de sentido e, noraras vezes, num segundo momento que o entrevistado levado a retomar omesmo percurso, esclarecendo zonas de sombra deixadas na primeira versoda narrativa. A regra de ouro no ter pressa de acabar.

    Ningum vai poder saber que fui eu que disse isto?! Fique descansada, ser sempre salvaguardado o seu anonimato. [Dirio debordo, 19-8-98.]De cada vez que ouo uma narrativa ponho prova no s a minha capaci-dade de entendimento e de pesquisa de sentido, mas tambm a minha capacidadede escuta da vida. um trabalho solitrio, duro e difcil, mas que nada o subs-titui! Sinto que, se outros o fizessem por mim, ouviria apenas um eco, sem podersentir vibrar o real atravs das vozes. [Dirio de bordo, 28-7-98.]

    A entrevista permite sentir o real na medida em que o investigadoresclarece junto do entrevistado, desde o incio, os seus objectivos, a estruturaque pretende dar ao evoluir do inqurito e a finalidade a que se destina omaterial a recolher. Esta dimenso revela-se de importncia acrescida para aconquista da sua colaborao. Saber que o seu discurso ir integrar umestudo alargado, uma tese ou mesmo a produo de um livro provoca emmuitos casos a participao entusiasta do entrevistado e, ao mesmo tempo,compromete o investigador nessa contrapartida, ou seja, divulgar e reflectirsobre o sentido, de forma explicativa, daquilo que para cada entrevistado apenas um caso, um contexto particular.S N TES E D E U M TR A B A LH O D E C A M P O

    No me lembro de escrever um dirio seno quando passei por essetempo a que chamamos adolescncia. Voltar a faz-lo, sob a forma de um'dirio de bordo', para registar as impresses de um 'percurso' que ia trilhan-do no trabalho de campo, os ambientes em que decorriam as entrevistas e osprimeiros sentimentos que me provocavam, foi para mim uma experincia de 881

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    Piedade Lalandaamadurecimento cientfico, talvez uma 'adolescncia', maturao do meupercurso de investigadora.. .!No h dvida de que a narrativa de vida, que em parte se obtm atravsda tcnica da entrevista em profundidade {compreensiva), uma metodologiaque conduz o investigador a procurar o essencial. O ponto de partida dainvestigao deixa de ser exterior realidade, mas nasce desta. Alis, J. C.Kaufmann (1996, 23) e Daniel Bertaux (1997, 21) apontam mesmo para aconstruo das hipteses a partir do trabalho de campo, numa dialctica cons-tante entre a reflexo terica e a realidade concreta. O cientista como queencontra a intimidade da realidade social, porventura trivial e quotidiana.A esta etapa da investigao, fundamental numa postura compreensiva darealidade, corresponde a convico de que os homens no so simples agen-tes, portadores de estruturas, mas so produtores activos do social, logo depo-sitrios de um saber importante que preciso apreender do interior, por via doprprio sistema de valores dos indivduos; trata-se, por isso, de uma fase deintropatia (J. C. Kaufmann, 1996, 23). claro que o objectivo da pesquisasociolgica no reside apenas nesta fase de intropatia, mas pretende interpretare explicar, de modo compreensivo, o social (J. C. Kaufmann, 1996, 23).Esta reflexo sobre a metodologia qualitativa corresponde ao impactegerado por este mergulhar na realidade que representa o trabalho de cam-po . Contactar as pessoas a entrevistar, recolher as suas narrativas, representauma parte difcil do percurso que se trilha numa investigao. Se ela abrepossibilidades de um melhor entendimento da realidade, tambm exige aoinvestigador um maior cuidado nas leituras e interpretaes que da possamnascer. por vezes no acto de transcrio das entrevistas que o investigadorreencontra as vozes do real e descobre as linhas de fora que iroestruturar a prpria investigao, o que significa ultrapassar a singularidadeda situao e atingir os elementos que conduzem construo da dimensosocial (colectiva) subjacente e permitem a descoberta de uma tipologia1.A utilizao das narrativas de vida na construo de uma tipologia noinvalida a utilizao de outras tcnicas de recolha que possam confirmar essatipologia a partir de um conjunto de questes comuns, de uma caracterizaoalargada da populao em estudo. O importante demonstrar a coernciainterna dos diferentes tipos, que, no caso das narrativas, nos conduzem adefinir diferentes tipos de trajectria, e encontrar subjacentes a essa tipologiaos mecanismos sociais que a justificam (D. Bertaux, 1997, 96).O socilogo que escolhe a entrevista compreensiva como meio de in-vestigao da dimenso social que o preocupa encontra, atravs da nar-rativa de vida, o sentido, o pormenor, a particularidade, que torna um actorsocial um informador privilegiado e nos permite olhar a realidade social882 por dentro.

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    Sobre a metod ologia qualitativa na pesquisa sociolgicaBIBLIOGRAFIA

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