soberania alimentar

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1 Camponesa - Novembro de 2009 www.aaccrn.org.br Ano I - Número 01 - Novembro de 2009 Soberania alimentar Alimentos bons, limpos e justos Carlo Petrini “Eu gosto de ser trabalhadora rural” Neneide Lima Alimentação saudável é um direito humano inviolável Marília Leão Alimentos bons, limpos e justos Carlo Petrini “Eu gosto de ser trabalhadora rural” Neneide Lima Alimentação saudável é um direito humano inviolável Marília Leão C A M P O N E S A R e vista d a Associação de Apoio às Com unidades do Cam po do RN - AACC/RN

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Revista da Associação de Apoio às Comunidades do Campo - AACC/RN, que, neste número, discute o tema da Soberania Alimentar.

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Camponesa - Novembro de 2009 www.aaccrn.org.br

Ano I - Número 01 - Novembro de 2009

Soberaniaalimentar

Alimentos bons, limpos e justos Carlo Petrini

“Eu gosto de ser trabalhadora rural”Neneide Lima

Alimentação saudável é um direito humano inviolável

Marília Leão

Alimentos bons, limpos e justos Carlo Petrini

“Eu gosto de ser trabalhadora rural”Neneide Lima

Alimentação saudável é um direito humano inviolável

Marília Leão

CAMPONESARevista da Associação de Apoio às Comunidades do Campo do RN - AACC/RN

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Camponesa - Novembro de 2009

A Revista Camponesa é uma publicação semestral, de distribuição gratuita, e visa fortalecer o trabalho que esta instituição e seus parceiros desenvolvem no âmbito da agroecologia, economia solidária e gênero no RN, em particu-lar, na região do Mato Grande e no município de São Miguel do Gostoso. A

Revista proporciona debater temas essenciais para a vida das pessoas na contempo-raneidade ao mesmo tempo em que dá visibilidade à ação realizada pela AACC/RN e suas parcerias, acreditando que as questões que dizem respeito aos agricultores e agricultoras familiares têm a ver com o conjunto da sociedade. Assim fortalece sua missão de “contribuir com a autodeterminação das agricultoras e agricultores familiares do Rio Grande do Norte através dos processos de agroecologia, economia solidária e convivência com o semiárido”. Nesta primeira edição, a Revista discute o tema “Soberania Alimentar” e conta com a colaboração dos seguintes pesquisadores, especialistas e/ou ativistas do movimento social: Carlo Petrini, sociólogo, jornalista e presidente da Fundação Slow Food; Angela Küster, coordenadora do Projeto Agricultura Familiar, Agro-ecologia e Mercado (AFAM) desenvolvido pela Fundação Konrad Adenauer (KAS); Henrique Carneiro, professor do Curso de História da Universidade de São Paulo (USP); Francisca Eliane (Neneide), coordenadora da Rede Xique Xique de Comer-cialização Solidária; Severina Carvalho, nutricionista; e Marília Leão, presidente da Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos (ABRANDH) e conselheira representante da sociedade civil no Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA). Além das entrevistas, a Camponesa traz uma reportagem de Bethânia Lima sobre alguns experimentos em soberania alimentar e agricultura familiar em São Miguel de Gostoso e um artigo de Emerson Cenzi sobre o Censo Agro-pecuário 2006, entre outros. A poesia “Cálice da Natureza”, na contracapa, é de au-toria do poeta potiguar, Janduhi Medeiros, retirada de seu livro “Mensageiro das Oiticicas”, de 2007. Neste número, contamos com a colaboração especial de Mariana Gui-marães na tradução da entrevista a Carlo Petrini além do empenho, solidariedade e apoio de toda a equipe de trabalho da AACC/RN. Mas esta publicação não seria pos-sível sem a valiosa colaboração da Fundação Konrad Adenauer, a quem a AACC/RN agradece. Esperamos que esta Revista se constitua em alimento para a alma de espíri-tos livres desejosos de construir relações saudáveis, harmônicas e duradouras das pessoas entre si e na relação com o meio ambiente em que vivem. Como diz Luís da Câmara Cascudo: De todos os atos naturais, o alimentar-se foi o único que o homem cercou de cerimonial e transformou lentamente em expressão de sociabilidade, ritual político, aparato de alta etiqueta. Compreendeu-lhe a significação vitalizadora e fê-la uma fun-ção simbólica de fraternidade, um rito de iniciação para a convivência, para a confiança na continuidade dos contatos (História da Alimentação no Brasil, p.36).

A todas e todos uma ótima leitura e uma passagem de ano muito feliz!

Conselho editorial: Antonia Geane Costa Bezerra

Bethânia Lima SilvaEmerson Inácio Cenzi

Haroldo Gomes da SilvaPaulo Segundo e Silva

Textos: Bethânia Lima Silva

Haroldo Gomes da Silva

Fotografia: Rodrigo Sena

Bethânia Lima SilvaHaroldo Gomes da Silva

Revisão: Bethânia Lima Silva

Haroldo Gomes da SilvaAriana Lopes Correia de Paiva

Projeto gráficoe Diagramação:

Robson Nunes

Impressão: Offset Gráfica

Tiragem: 2000 exemplares

Editorial

Ano I - Número 01 - Novembro de 2009

Soberaniaalimentar

Alimentos bons, limpos e justos Carlo Petrini

“Eu gosto de ser trabalhadora rural”Neneide Lima

Alimentação saudável é um direito humano inviolável

Marília Leão

Alimentos bons, limpos e justos Carlo Petrini

“Eu gosto de ser trabalhadora rural”Neneide Lima

Alimentação saudável é um direito humano inviolável

Marília Leão

CAMPONESARevista da Associação de Apoio às Comunidades do Campo do RN - AACC/RN

Esta publicação foi realizada com apoio da Fundação Konrad Adenauer

Fortaleza. O seu conteúdo não expressa necessariamente a opinião da Fundação

Konrad Adenauer.

Foto capa: Rodrigo Sena

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NESTA EDIÇÃO

Entrevistas

Reportagem

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Carlo Petrini

Angela Küster

Henrique Carneiro

Neneide Lima

Severina Araújo

Marília Leão

Alimentos bons, limpos e justos

O modelo é a agricultura familiar agroecológica

O modelo alimentar do fast-food é pernicioso

“Eu gosto de ser trabalhadora rural”

Alimentação equilibrada é essencial para a vida

Alimentação saudável é um direito humano inviolável

Com o apoio da AACC/RN, famílias rurais de São Miguel do Gostoso vivenciam a agricultura familiar de forma organizada e baseada na agroecologia

20 Quando o alimento é mais gostoso

Seções

192931

Curtas

Para Aprofundar

Artigo: Emerson Cenzi - A agricultura familiar alimenta o Brasil

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Alimentos bons, limpos e justos Na opinião de Carlo Petrini vivemos um momento de crise econômica,

energética e agrícola e o futuro da alimentação exige mudanças nos hábitos de consumo pois a maior parte dos danos que a nossa terra sofreu até agora se

deve à produção de alimentos

O poder que o consumidor possui simplesmente pelo fato de escolher dia-riamente o próprio alimento é inacreditável: exercitá-lo com consciência e responsabilidade é um dever, um ato de civilidade, em relação a si próprios, às próprias famílias, às próprias comunidades e aos próprios povos”, afirma

Carlo Petrini, presidente do movimento Slow Food. Na entrevista que concedeu à Cam-ponesa, considera que “estamos vivendo tempos muito difíceis” e que “é necessário re-definir todo o sistema atual, baseado no consumo”. Afirma ainda que “o bom, o limpo e o justo são os três adjetivos que definem em modo elementar as características que deve ter um alimento para responder a exigências de nós, ecogastrônomos” e que a principal via pela qual realiza “um percurso em relação ao bom, limpo e justo é aquela da economia para o re-posicionamento dos consumos e das produções agrícolas”. Carlo Petrini é italiano, estudou sociologia na Universidade de Trento e logo se envolveu com a política local e com o trabalho associativo. Entre suas muitas cria-ções está a Universidade de Ciências Gastronômicas, em Pollenzo e Colorno, a primeira instituição acadêmica a oferecer um acesso multidisciplinar nos estudos da alimenta-ção; é ele também que está por trás do Terra Madre, fabuloso encontro de 5.000 produ-tores de todo o mundo, ocorrido em Turim, para discutir problemas comuns e suas possíveis soluções. O seu último trabalho Buono, Pulito e Giusto. Principi di uma Nuova Gastronomia foi publicado em 2005 pela editora Einaudi e em 2009 foi traduzido para o português pela SENAC de São Paulo (Brasil) com o título “Slow Food, princípios da nova gastronomia”. No livro, Petrini descreve o desenvolvimento da teoria da “ecogas-tronomia”. O livro também foi traduzido para o inglês, francês, espanhol, alemão e po-lonês. Em 2001, seu livro Le ragioni del gusto foi publicado pela Laterza e em 2003 foi traduzido para o inglês como The Case for Taste pela Columbia University Press. Em janeiro de 2008 foi o único italiano a aparecer na lista das ‘50 People Who Could Save the World’ (50 pessoas que poderiam salvar o mundo) realizada pelo prestigiado jornal inglês The Guardian.

Entrevista: Carlo Petrini

Camponesa – O que é o movimento Slow Food? Como surgiu? Na metade dos anos 80, o frenesi consumista tinha invadido totalmente a Itália, de tal forma que se estava perden-do o contato com a terra, as tradições, as próprias receitas, em poucas palavras, as raízes da identidade de cada um de nós. Quisemos iniciar da mesa, do alimento não visto simplesmente como nutrimento, mas como elemento de prazer decorrente da possibilidade de apreciar as diversas recei-tas e sabores, reconhecer as variedades dos locais de produção e dos artesãos, respeitar os ritmos das estações e a convivência. Hoje estamos convencidos da necessidade de as-sociar um novo sentido de sensibilidade ao prazer e à reivindicação do direito de todos

a beneficiar-se deste prazer: uma atitude que chamamos de ecogastronomia, capaz de unir o respeito e o estudo da cultura enogastronômica sustentando aqueles que atuam em todo o mundo para defender a biodiversidade agroalimentar. Partimos de 1986 do Piemonte, na Itália, para nos tornarmos em 1989 uma asso-ciação internacional que conta hoje com 100 mil sócios em 130 países.

Camponesa – Como tem sido a aceitação no Brasil e, em particular, no Nordeste? O Brasil - um país que possui uma extraordinária biodiversidade agrícola, gas-tronômica, cultural e lingüística – há diversos anos tornou-se um interlocutor fundamental do Slow Food. Em 2003 o Prêmio Slow Food para a Biodiversidade foi concedido à tribo indígena Krahô, na Amazônia nasceu uma das primeiras Fortalezas internacionais (o Guaraná Nativo dos Sateré-Mawé) e em 2004 o Ministé-rio do Desenvolvimento Agrário do Brasil assi-nou um acordo que oficializou uma longa rela-ção de amizade e colaboração. Mas o grande desafio do Slow Food no Brasil é a mobilização de todos os setores da sociedade, e temos con-seguido superar este desafio com a criação de novos Convivia, os núcleos locais de sócios, e o

“Para garantir alimentos bons, limpos e justos, o con-sumidor deve começar a se

sentir co-produtor”

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envolvimento cada vez maior de chefs, jovens e acadêmicos que juntos poderão permitir a inserção do pequeno produtor na própria co-munidade. Hoje temos no Brasil cerca de 600 sócios e este número vem crescendo exponen-cialmente. No Nordeste, temos importantes projetos para a defesa da sua biodiversidade ambiental e cultural, como a Fortalezas do Ar-roz Vermelho do Vale do Piancó na Paraíba e do Umbu no sertão baiano. Chefs de Fortaleza e Salvador estão se unindo a acadêmicos do Maranhão e sócios espalhados ao longo de es-tados do Nordeste brasileiro promovendo uma área com uma riqueza ainda pouco reconhe-cida e valorizada.

Camponesa – Na visão do movimento Slow Food, qual o futuro da alimentação? Estamos vivendo tempos muito difíceis, a crise que estamos atravessando é ao mesmo tempo econômica, energética e agrícola. Não podemos considerá-la e en-frentá-la como se fosse um momento de pas-sagem. É necessário redefinir todo o sistema atual, baseado no consumo. É muito recente a notícia do Global Footprint Network1 de que o overshoot day2 aconteceu no dia 25 setem-bro, ou seja, o dia que teremos terminado de consumir as reservas que a natureza nos dis-ponibilizou para o ano em curso. A cada ano, o dia no qual entramos em débito ecológico e de excesso de consumo antecipa-se no calen-dário. Em 1986, ano do primeiro alarme, o overshoot aconteceu em 31 de dezembro. Em 1995 a falência ecológica aconteceu no dia 21 de novembro. Dez anos depois as contas com a natureza entraram no vermelho já no dia 2 de outubro. Agora retrocedemos até o dia 25 de setembro: consumimos 40% a mais do que a terra pode gerar. Em 2050, se a crise ener-gética não nos tiver obrigado a adotar a sa-bedoria ecológica para manter as contas em paridade, teremos necessidade de um pla-neta gêmeo para usar como supermercado e retirar as matérias-primas, água, florestas e energia. Se pensarmos ainda que a maior parte dos danos que a nossa terra sofreu até agora se deve à produção de alimento, como se nota no relatório da ONU Millennium Eco-system Assesment3, entendemos que a forma como nos relacionamos com a gastronomia é central para o nosso futuro. Comer torna-se um “ato agrário”, e selecionando alimentos de boa qualidade, produtos com critérios de respeito pelo am-biente e pelas tradições locais, podemos fa-vorecer a biodiversidade e uma agricultura igualitária e sustentável. Bom, limpo e justo são os três adjetivos que definem em modo elementar as características que deve ter um alimento para responder às exigências de nós, eco-gastrônomos. Bom, relaciona-se com as sensações de prazer derivadas das qualidades sensoriais de um alimento, mas também à

complexa esfera de sentimentos, recorda-ções e aspectos determinantes de identidade, decorrentes do valor afetivo do alimento; limpo, ou seja, produzido sem estressar a terra, respeitando os ecossistemas e o ambi-ente; justo, que quer dizer conforme com os conceitos de justiça social nos ambientes de produção e de comercialização.

1A Global Footprint Network foi criada em 2003 e dedica-se a estimular o surgimento de um mundo no qual todas as pessoas tenham oportunidade de viver satisfeitas, dentro das possibi-lidades da capacidade ecológica da Terra. É responsável pela “Pegada Ecológica”, que mede o grau em que as demandas ecológicas das eco-nomias humanas respeitam ou ultrapassam a capacidade da biosfera de fornecer bens e serviços. 2 Uma semana após o estouro da bolha econômi-co-financeira, no dia 23 de setembro, ocorreu o assim chamado Earth Overshoot Day, quer dizer, “o dia da ultrapassagem da Terra”. Grandes institutos que acompanham sistematicamente o estado da Terra anunciaram: a partir deste dia o consumo da humanidade, em 2008, ultrapassou em 40% a capacidade de suporte e regeneração do sistema-Terra. Ou seja, a humanidade está consumindo um pla-neta inteiro e mais 40% dele que não existe. 3 O Millennium Ecosystem Assessment (Avaliação do Milênio de Ecossistemas, MA) foi pensado para fornecer parte da informação científica necessária para a implementação da Con-venção da Diversidade Biológica, da Convenção do Combate à De-sertificação e da Convenção das Áreas Húmidas. O MA foi lançado a nível mundial pelo Secretário Geral das Nações Unidas em Junho de 2001. É uma avaliação multi-escala, consistindo em avaliações interligadas aos níveis global, sub-global e local. Existem cerca de 15 avaliações sub-globais aprovadas, entre as quais as da Noruega, do Sul de África, da América Central e da China. A Avaliação Portu-guesa foi iniciada em Maio passado e irá decorrer até meados de 2005. É liderada pelo Centro de Biologia Ambiental da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL).

Camponesa – Como se vinculam os con-ceitos de soberania alimentar e economia solidária? De que forma o movimento Slow Food se relaciona com eles? A principal via pela qual realizar um percurso em relação ao bom, limpo e justo é aquela da economia para o re-posicionamen-to dos consumos e das produções agríco-las. A economia de mercado, assim como a conhecemos e como está organizada graças também às dinâmicas da globalização, está revelando enormes limites econômicos. Seja do ponto de vista da sustentabilidade das suas atividades, seja por seu modo de gerar rique-za. Os seus maiores expoentes são conscientes que “anti-ecologia” começa evidenciar-se cada vez mais como uma “anti-economia”. Em um quadro deste tipo – cujas causas devem ser identificadas também nas mudanças que sofreram o sistema agrícola mundial, na industrialização, na centralização

dos sistemas produtivos agroalimentares – as comunidades do alimento representam um exemplo brilhante do que poderia significar pronunciar as palavras “economia local” ou “economia da natureza”. Trata-se de pequenos produtores, criadores, pescadores, coletores de produtos silvestres, artesãos do mundo agroalimentar que a cada dois anos apresentam os seus tra-balhos em nível local na grande sede mundial de Terra Madre4, em Turim (www.terramadre.org). As comunidades do alimento geral-mente atual na cadeia curta, ou em cadeias longas altamente sustentáveis e baseadas no conhecimento recíproco dos envolvidos. A comunidade é o local, o contexto, no qual pode-se realizar o conceito de “adaptação lo-cal” que teorizou Wendell Berry5. É necessário pressionar o quanto for possível para re-posi-cionar produções e consumos, vida social e tradições sem renunciar ao comércio e à troca que nos garantem a rede, mas fortalecendo as comunidades locais e as suas características de funcionamento.

4 A rede Terra Madre é constituída por todos aqueles que querem agir para preservar, encorajar e promover métodos de produção alimentar sustentáveis, em harmonia com a natureza, a paisagem e a tradição. 5 Wendell Berry é um ensaísta americano, autor de livros como Know That What You Eat You Are (“Saiba que o que Você Come, Você É”) e Life is a Miracle (“A Vida é um Milagre”).

Camponesa – Qual o papel do consumidor na promoção de uma cultura do gosto e da convivência? A esfera sensorial do homem con-temporâneo claramente empobreceu. O tato, o gosto e o odor sofreram uma profunda re-gressão. O tempo cada vez mais escasso e a velocidade das nossas vidas nos estão privan-do dos instrumentos que nos podem consen-tir um conhecimento mais profundo, variado e autêntico do mundo que está à nossa volta. Por isso, treinar novamente os nossos senti-dos e aguçar a percepção, são os principais instrumentos que pequenos e grandes con-sumidores devem possuir para se re-apropriar da própria capacidade de decidir com qual ali-mento nutrir-se. Destas considerações, nasce o projeto de Educação do Gosto, destinado a educar as crianças para desenvolver a sensori-alidade, fazendo-as compreender a importân-cia dos produtos alimentares como parte inte-grante da cultura das sociedades. Com relação ao grande público, a melhor ideia foi sem dúvida a dos Laboratóri-os do Gosto, que recolhem exigências do con-sumidor contemporâneo: o desejo do contato direto, da prova em uma degustação guiada, enfim, a recuperação da sensorialidade; a aproximação do alimento como diversão e ato gratificante mais do que necessidade ou obrigação nutricional; o suprimento da curio-sidade em relação aos alimentos, às vezes rara e preciosa, unido à gratificação intelectual de conhecer a história e a particularidade.

“Comer torna-se um ‘ato agrário’, e selecionando

alimentos de boa qualidade, produtos com critérios de

respeito pelo ambiente e pelas tradições locais,

podemos favorecer a biodi-versidade e uma agricultura

igualitária e sustentável”

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Para garantir alimentos bons, lim-pos e justos, o consumidor deve começar a se sentir co-produtor. O tempo do consumi-dor terminou: ele literalmente consome o mundo e é figura chave da sociedade base-ada na economia de mercado resultando, para sua infelicidade, em ser o cúmplice prin-cipal do massacre que a terra está sofrendo. Educando-nos, conhecendo os produtos, os próprios produtores, as técnicas para alimen-tar-se melhor e poluir menos, o co-produ-tor, inserido em sua comunidade, torna-se concretamente e individualmente o motor de uma verdadeira mudança. O poder que o consumidor possui simplesmente pelo fato de escolher diariamente o próprio alimento é inacreditável: exercitá-lo com consciência e responsabilidade é um dever, um ato de civi-lidade, em relação a si próprios, às próprias famílias, às próprias comunidades e aos próprios povos.

Camponesa – Há quem diga que as raízes da fome e da desnutrição no Brasil associam-se a duas dimensões interdependentes de uma mesma crise de nosso modelo de de-senvolvimento: baixo poder aquisitivo da população e insuficiência de produção de alimentos para o consumo interno. À luz da experiência do movimento Slow Food, como enfrentar essas questões? O respeito pelo meio ambiente, a tutela dos territórios, a pureza das águas, a de-fesa das variedades vegetais e das raças ani-

mais estão na base do nosso futuro produtivo se quisermos frear as mudanças climáticas. As notícias que nos chegam são, no entanto muito mais preocupantes e, sobretudo, relacionam-se menos com este simples compartimento mas com a modalidade abrangente de produção e de fluidez das reservas. Deve-se então não reiniciar como se nada acontecesse, não in-sistir no relançamento de consumos que não podem ser a solução para esta crise. É ne-cessário repensar o modelo de produção que todos nós escolhemos e que acreditamos ser único e indiscutível e ter a coragem de confiar novamente nas economias de pequena esca-la, as únicas em condição de dar uma resposta eficaz e radical à situação atual, as únicas em condição de serem auto-suficientes porque mantêm uma estreita relação com a própria terra, as próprias tradições, os próprios ali-mentos.

Camponesa – Como as pessoas podem par-ticipar do movimento Slow Food? Slow Food é uma associação, então o primeiro passo é tornar-se sócio, desta forma cada um pode participar das iniciativas do próprio Convivium, os grupos locais nos quais a associação está organizada em todo o mun-

“A esfera sensorial do homem contemporâneo claramente

empobreceu”

do. Conferências, laboratórios, degustações, atividades de educação do gosto para crian-ças e adultos e, sobretudo a possibilidade de ir a fundo nos argumentos ligados ao alimento que hoje se encontram nos discursos de todo o mundo mas somente em nível superficial, sem aprofundamento. No entanto, o movimento de ideias que lançamos não se limita somente à estrutura associativa, com Terra Madre nasceu uma rede mundial de pessoas que valorizam a diversidade do nosso planeta e que atuam para preservá-lo, para nós e para as gerações futuras. No próximo 10 de dezembro, para celebrar os 20 anos do nascimento do Slow Food, uma grande jornada de mobilização acontecerá em todo o mundo envolvendo sócios e líderes de todos os convivia, pequenos produtores, criadores e pes-cadores de todas as comunidades do alimento e das Fortalezas, professores e estudantes de hortas escolares. Cada um poderá promover o tema central da filosofia do Slow Food: o acesso a um alimento bom, limpo e justo; a biodiver-sidade; a produção em pequena escala; a so-berania alimentar; o conhecimento das línguas, das culturas e das tradições; a produção que respeita o meio ambiente; o comércio équo e sustentável. Em programa haverá pequenos encontros e grandes eventos: degustações e jantares, filmes e concertos que ressaltam a im-portância de um alimento bom, limpo e justo; visita a produtores de Terra Madre, campanhas de sensibilização, atividades de educação ali-mentar e do gosto; encontros entre produtores, cozinheiros, jovens e outros.

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O modelo é a agricultura familiar agroecológica

É preciso fortalecer a soberania alimentar optando pelo consumo de produtos advindos da agricultura familiar, agroecológicos e da própria região

Omodelo econômico adotado no Brasil parte do pressuposto de que a natureza está disponível por tempo indeterminado e os custos da degradação dos solos, da água e do ar ficam para a sociedade enquanto uns poucos enriquecem. Um novo modelo de desenvolvimento deve “optar mais claramente pela agricultura

familiar agroecológica”, diz Angela Küster. A agricultura familiar deve produzir comida e não agrocombustíveis, as sementes crioulas devem ser protegidas, o consumidor deve ser mais seletivo e preferir produtos advindos da agricultura familiar, agroecológicos e da própria região. O Brasil precisa de mais envolvimento de todos e todas, desde as pequenas ações que cada um deve fazer no cotidiano – gastar menos água, produzir menos lixo, an-dar mais a pé – até o envolvimento nas questões políticas”, conclui. Angela Küster é doutora em Ciência Política pela Universidade Livre de Berlim. Foi as-sistente de coordenação e informação das organizações ambientalistas no “Fórum Clima”, em 1995. Em 1989 e 1992 realizou pesquisas em Angola e desde 1996 reside no Brasil, em Fortaleza, Ceará, onde desenvolveu sua tese de doutorado com apoio da Fundação Heinrich Böll. Desde 2001, coordena projetos da Fundação Konrad Adenauer, escritório Fortaleza. É autora do livro Democracia e Sustentabilidade – experiências no Ceará, Nordeste do Brasil, publicado pela Funda-ção Konrad Adenauer, em 2003.

Camponesa – O que é o Projeto Agricultura Familiar, Agroecologia e Mercado (AFAM) e quais os resultados alcançados por ele até o presente momento? O Projeto Agricultura Familiar, Agro-ecologia e Mercado – AFAM é co-financiado pela União Europeia e coordenado pela Fundação Konrad Adenauer Stiftung, tendo atualmente como parceiros o Núcleo de Inicia-tivas Comunitárias – NIC, o Instituto Sesemar, a Agência de Desenvolvimento Local – ADEL e o Centro de Ciências Agrárias da Universidade Federal do Ceará - UFC. O Projeto tem por ob-jetivo contribuir com a melhoria da qualidade de vida de agricultores(as) familiares no nor-deste do Brasil, com o fortalecimento da orga-nização social da agricultura familiar ecológica e sustentável, viabilizando o acesso aos mer-cados, apoiar processos de sistemas de garan-tia participativos e a construção participativa de conhecimentos agroecológicos. O Estado do Ceará é composto por 184 municípios. Deste total, o projeto AFAM atua diretamente em 39 municípios, em três territórios no Ceará que são: Maciço de Batu-rité, que congrega 13 municípios; Sertão Cen-tral, com 07 municípios; e Vales do Curu e Ara-catiaçu, com 18 municípios. Trabalhamos nos eixos de ação: fortalecimento da organização solidária dos agricultores familiares; construção participativa do conhecimento agroecológico; melhoria do acesso aos mercados; formulação

de políticas públicas; articulação de redes agro-ecológicas e certificação participativa. Dentre os resultados alcançados pelo Projeto AFAM destacamos os indicado-res de análise relacionados diretamente ao processo de formação de multiplicadores: 182 agricultores/as familiares, jovens e técnicos formados como agentes multiplicadores em agroecologia, difundindo e multiplicando conhecimentos agroecológicos; 880 agricul-tores familiares usando tecnologias agroecológi-cas na produção; reflorestamente de três áreas; 3 unidades demonstrativas implementadas nos territórios; 3 cartilhas utilizadas em 09 estados do Nordeste em cursos e outros eventos.

Camponesa – Que desafios a experiência deste projeto identifica para o fortaleci-mento da agricultura familiar no Nordeste? Um dos maiores desafios é a descon-tinuidade de programas governamentais e de projetos da sociedade civil, além da precária

assistencia técnica, falta de infraestrutura e de organização social.

Camponesa – Que avanços a senhora visu-aliza no fortalecimento da agricultura fa-miliar e na reforma agrária no Nordeste? O que ainda falta fazer no âmbito das políti-cas públicas? No país estão em curso dois modelos de agricultura – a agroindústria e a agricultura familiar. Houve avanços no apoio a agricultura familiar, mas a agroindústria recebe um inves-timento muito maior. O Brasil precisa optar mais claramente pela agricultura familiar agro-ecológica como novo modelo, forçando a agro-indústria a abandonar a produção aos custos da saúde e do meio ambiente, exportando os bens públicos para outros países, deixando a devasta-ção dos solos e a poluição da água para trás. O mesmo vale para a reforma agrária. Ela não foi feita de forma decisiva, com a integração das políticas públicas para viabi-lizar a sustentabilidade dos assentamentos. Hoje consta, que a maioria é improdutiva, mas isso porque demora muito tempo para colocar a infraestrutura necessária nos assentamen-tos. Às vezes, as comunidades esperam 5, 10 ou 20 anos para receber água, luz, estradas, escolas e outros equipamentos. Assim mesmo, depois da regularização, as terras continuam improdutivas. E ainda existem muitas terras na mão de poucos empresários.

“O desenvolvimento é en-tendido como ‘crescimento’

e assim ainda estamos longe de um outro modelo de

desenvolvimento”

Entrevista: Angela Küster

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Camponesa – Em sua opinião, a agricultura familiar deve produzir energia usando plan-tas e sementes? Por quê? A opção por agrocombustíveis é in-coerente, primeiro porque ainda tem milhões de pessoas sofrendo de fome, enquanto se destinam áreas enormes para a plantação de cana de açucar e sementes oleosas com o ob-jetivo de locomover automóveis. Segundo porque não teve um in-vestimento maior em tecnologias alternati-vas, nem no transporte público, pois o Brasil optou pelo transporte rodoviário ao invés de investir em outros meios como a ferro-via. Agora, com a descoberta de petróleo no fundo do mar, o agrocombustível voltou ao segundo plano, mas não se discute como mudar o sistema de transporte de forma que se viabilize a mobilidade da sociedade de forma coletiva e sem poluir o ambiente, nem explorar as terras. Existem alternativas a es-sas duas opções. Mas o transporte não é dis-cutido de forma objetiva, o carro não é um meio de transporte, é um fetiche da individu-alidade moderna, um objeto de desejo, que se procura manter a todo custo.

Camponesa – Na região Nordeste do Bra-sil, as sementes crioulas – sementes com uma grande variedade genética, por serem selecionadas nos plantios ao longo de gera-ções e adaptadas às condições locais – foram substituídas por sementes compradas ou distribuídas pelos governos. Quais as con-seqüências disso e como os agricultores familiares têm enfrentado essa situação? Precisamos urgentemente de um movimento nacional e internacional para sal-var as sementes crioulas, que estão se perden-do. De acordo com a FAO (1989), os agricultores utilizavam cerca de dez mil espécies de plantas na agricultura. Atualmente, se estima que 90% da produção agrícola fazem uso de apenas 120 espécies. Dessa forma, o agroecossistema fica vulnerável, favorecendo pragas e doenças, alterações climáticas locais e globais, intensifi-cado a erosão e o declínio da produtividade. Estamos, como muitas outras inicia-tivas no Nordeste, procurando conscientizar os agricultores sobre as desvantagens das se-mentes híbridas e transgênicas. Um exemplo é a rede de sementes na Paraíba, as sementes da paixão, como são chamados por lá, são guarda-das. Muitas comunidades têm construído casas de sementes ou bancos de sementes, onde es-tocam e trocam as sementes. Na Paraíba avan-çaram também com uma lei, que reconhece as sementes crioulas como sementes, e não como grãos. Assim se viabiliza que o Governo possa distribuir as sementes crioulas. Precisamos de iniciativas como essas nos outros estados nordestinos.

Camponesa – Na cartilha “Agroecologia – garantindo a segurança alimentar”, da

qual a senhora é uma das elaboradoras, a obra “História da Alimentação no Brasil”, de Luís da Câmara Cascudo, é citada como referência do tema. Em que medida esta obra ajuda a pensar a soberania alimentar no Brasil? O livro “História da Alimentação no Brasil” aborda de uma maneira bastante clara a relação da alimentação com a cultura de um grupo, evocando a dualidade entre o banal e o sagrado contido nela. Certamente esta é a grande contribuição de Câmara Cascudo para a compreensão da soberania alimentar.

Camponesa – Atualmente, muitos governos, têm declarado o seu interesse em preservar o ecossistema global e construir um novo equilíbrio, aderindo ao chamado “desen-volvimento sustentável”. No plano teóri-co, é quase consensual a tese de que é necessário um novo modelo de desen-volvimento. Por outro lado, há quem se pergunte: se é desenvolvimento, pode ser sustentável? Como a senhora se posi-ciona nesse debate? Realmente, o conceito de “de-senvolvimento sustentável” foi mais um compromisso para conseguir acordos entre os governos e empresas, mas o desenvolvi-mento é entendido como “crescimento” e assim ainda estamos longe de um outro modelo de desenvolvimento. As mudanças são lentas e o processo dos acordos interna-cionais está tomando já décadas, sem que vejamos medidas mais drásticas para preve-nir as mudanças climáticas e a degradação ambiental. O problema é que construímos um modelo econômico na hipótese de que a natureza – a terra, a água e o ar – está eter-namente disponível e só entram nos custos de produção a chamada matéria-prima e o trabalho. Os custos da poluição dos solos, da água e do ar ficam para a sociedade e todos estamos pagando por isso de alguma forma, enquanto poucos enriqueceram. O desenvolvimento poderia até ser susten-tável, mas seguramente não dessa forma. E na palavra em português, poderíamos deixar o “des” fora, que é até negativo, e falar mais de um envolvimento. Precisamos do envolvimento de todos e todas desde as pequenas ações que cada um deve fazer no cotidiano – gastar menos água, produzir menos lixo, andar mais a pé – até o envolvi-mento nas questões políticas.

Camponesa – O Programa de Aquisição de Alimentos – PAA foi instituído pelo Artigo

19 da Lei nº 10.696 e regulamentado pelo Decreto 4.772, ambos de 02 de julho de 2003, tendo como objetivo incentivar a agricultura familiar. Suas ações envolvem a aquisição de produtos da agricultura fa-miliar, que são distribuídos para pessoas em situação de insegurança alimentar ou formam estoques estratégicos. Compon-do o Fome Zero, essas ações integram-se a um leque mais amplo de políticas voltadas ao fortalecimento da segurança alimentar e nutricional do país. Em sua opinião, qual o alcance e o impacto desse Programa na agricultura familiar da região Nordeste? O PAA teve um impacto significa-tivo para a agricultura familiar. Ele incen-tivou os agricultores a se organizar melhor para poderem comercializar coletivamente. A compra direta oferece uma oportunidade para acessar o mercado ao mesmo tempo em que estimula as prefeituras a comprar produtos dos seus municípios e da região. Além disso, oferece uma alimentação mais saudável para os alunos nas escolas. Ainda é difícil para muitos agricultores se organizar e vencer as burocracias para entrar no Pro-grama, mas é importante e como já virou lei, que as prefeituras têm que comprar 30% da merenda escolar no município, espera-se que o PAA continue nos próximos governos.

Camponesa – Que papel joga o consumi-dor na afirmação do princípio da sobera-nia alimentar? O papel do consumidor é decisivo porque ele tem o poder de comprar ou não um produto. Optando por alimentos industri-alizados e/ou importados fragiliza a sobera-nia alimentar. Ao contrário, para fortalecer a soberania alimentar deve-se optar pelo con-sumo de frutas, verduras e outros produtos, de preferência da agricultura familiar, agro-ecológicos, da própria região e considerando as épocas de safra.

Camponesa – Como a senhora tem visto a participação das mulheres nas experiên-cias de agricultura familiar no Nordeste? Que significado tem esta participação? A participação das mulheres au-mentou consideravelmente e muitas vezes são elas, que iniciam a produção agro-ecológica nos seus quintais, garantem a se-gurança alimentar da família e ainda levam os produtos para as feiras. As mulheres são cada vez mais reconhecidas como agriculto-ras e a agroecologia mudou a vida de muitas delas, mostrou perspectivas para a sua eman-cipação. Precisamos, agora, também aumen-tar a participação dos jovens, para que eles tenham também orgulho de serem agricul-tores e agricultoras e não deixar mais as suas terras para tentar sobreviver nas grandes ci-dades superlotadas.

“O Brasil precisa optar mais claramente pela agricultura familiar agroecológica como

novo modelo”

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O modelo alimentar do fast-food é pernicioso

Comer é um ato social na medida em que o alimento revela a forma como as sociedades se abastecem e se organizam

política, social e culturalmente

O modelo alimentar do fast-food derivado de uma cadeia alimentar agroindustrial é pernicioso do ponto de vista da saúde e da autonomia e identidade cultural dos povos da ter-ra”, afirma Henrique Carneiro, que considera o livro “História

da Alimentação no Brasil”, de Luís da Câmara Cascudo, o “mais impor-tante, pela amplitude e erudição” na historiografia da alimentação no Brasil apesar do “ecletismo teórico” e de “um excessivo empirismo”. Nesta entrevista à Revista AACC/RN, Henrique Carneiro afirma ainda a condição onívora do ser humano embora, no século XX, as popula-ções dos países ocidentais tenham retomado o vegetarianismo por in-fluências orientais mas, também, como “atitude de crítica ao modelo agroindustrial devido a suas conseqüências nefastas do ponto de vista socioambiental”. Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), com a tese Afrodisíacos e alucinógenos nos herbários modernos: a história moral da botânica e da farmácia séculos XVI ao XVIII, Henrique Carneiro é professor de História Moderna da USP, tem experiência na área de História, onde leciona e desenvolve pesquisas em História da Alimentação, das Bebidas e das Drogas. Entre suas principais publicações estão os livros: Comida e sociedade. Uma história da alimentação. Rio de Janeiro: Campus, 2003, e Pequena enciclopédia de história das drogas e bebidas. 1. ed. Rio de Janeiro: Campus/Elsevier, 2005.

Entrevista: Henrique Carneiro

Camponesa – Qual a finalidade do ato de comer? Em que medida “somos o que comemos”? Obviamente, os organismos vi-vos se alimentam para repor a energia perdida e constituir os seus corpos. Mas esse ato biológico nutritivo se torna o mais importante socialmente, revelando tanto a capacidade econômica das sociedades se abastecerem, como a forma social e política de dividirem a comida e os demais produtos e, de forma talvez ainda mais significativa, plasmando um conjunto de hábitos e regras culturais sobre os alimentos.

Camponesa – Que lugar ocupa a obra “História da Alimentação no Brasil”, de Luís da Câmara Cascudo, na historiogra-fia da alimentação no Brasil? É até hoje, certamente, o livro mais importante, pela amplitude e erudição. Suas debilidades: um ecletismo teórico e mesmo

um excessivo empirismo, não diminuem a importância desta obra.

Camponesa – Como esta obra pode ajudar a pensar a soberania alimentar no Brasil? Este aspecto é menos presente no livro de Cascudo, mais voltado para os aspectos socioculturais do que para a elaboração de políticas concretas relativas ao tempo presente, no sentido político o autor foi bastante conservador e vincu-lado aos poderes vigentes, sem grande crítica aos aspectos de injustiça social e de

ausência de liberdades durante o próprio regime militar.

Camponesa – Historicamente, que relação se estabelece entre o consumo de alimen-tos de origem animal e a dieta vegetari-ana? O ser humano é, por essência, um ser carnívoro? Quais as conseqüências disso? O ser humano, desde a domesti-cação dos grãos e dos animais, na chamada revolução neolítica, viveu predominante-mente de cereais e outros produtos vegetais. A carne sempre foi alimento de luxo, aris-tocrático. Apenas no século XX que os deriva-dos da carne se tornaram um consumo pre-dominante em certos países industrializados, como os EUA, causando diversos problemas de saúde, tais como obesidade e males car-diovasculares. O ser humano é onívoro. O debate sobre o consumo de carne é muito antigo. Os hinduístas condenam a carne. Pitágoras

“O modelo agroindustrial globalizado traz danos so-cioambientais irreparáveis,

devido ao uso excessivo de fertilizantes”

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“O modelo alimentar do fast-food derivado de uma

cadeia alimentar agroindus-trial é pernicioso do ponto

de vista da saúde e da auto-nomia e identidade cultural

dos povos da terra”

no Ocidente, e depois Plutarco e, na Idade Média, os cátaros, hereges combatidos e massacrados pela Igreja, foram todos vege-tarianos. No século XX, houve uma retoma-da do vegetarianismo nos países ocidentais devido a mudanças culturais, abertura à in-fluências orientais e uma atitude de crítica ao modelo agroindustrial devido a suas conseqüências nefastas do ponto de vista socioambiental.

Camponesa – Nesses tempos de globaliza-ção, observa-se a ocorrência de uma pa-dronização cada vez maior dos produtos consumidos, dos comportamentos alimen-tares e dos gostos. Caminhamos para for-mas de alimentação idênticas entre dife-rentes povos? Que implicações têm isso? O modelo agroindustrial globalizado traz danos socioambientais irreparáveis, devi-do ao uso excessivo de fertilizantes, alterando o ciclo do nitrogênio e produzindo eutrofia nas águas, e também do uso de agrotóxicos, monocultura e sementes transgênicas, que, diferentemente da agricultura familiar, levam a desigualdade social, concentração de renda, poluição, aumento do aquecimento global. Além disso tudo, o modelo alimentar do fast-food derivado de uma cadeia alimentar agro-industrial é pernicioso do ponto de vista da saúde e da autonomia e identidade cultural dos povos da terra.

Camponesa – Que desafios se apresentam à pesquisa historiográfica no campo da alimentação? A maior de todas é obter fontes, pois quanto mais remoto o período histórico mais as fontes são escassas. Depois é pre-ciso diferenciar os grupos sociais internos a cada sociedade, pois as suas práticas e representações alimentares não são as mes-mas. Finalmente, é preciso comparar sempre e o máximo possível para tentar escapar dos particularismos e tentar alcançar descrições mais dinâmicas e abrangentes que devem ir em direção de uma história “total”, como dizia Lucien Febvre1, fugindo de uma histo-riografia que faça dos próprios alimentos um sujeito histórico.

1 Lucien Febvre, nascido em 22 de julho de 1878 e falecido em 11 de setembro de 1956, foi um historiador francês, co-fundador da chamada “Escola dos Annales”.

Próximo número da Camponesa:

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Eleições 2010: o que vem lá?

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“Eu gosto de ser trabalhadora rural”Francisca Eliane de Lima conta como surgiu a experiência produtiva do Grupo de

Mulheres Decididas a Vencer, do Assentamento Mulunguzinho, em Mossoró, e mostra as mudanças que este acontecimento provocaram em sua vida e na vida

de outras mulheres da região

No início, a gente não pensava em grupo de produção. A gente pensava em ir atrás dos direi-tos. Por que as mulheres eram tão isoladas das discussões do Assentamento?”, afirma Neneide

Lima, em entrevista concedida à Camponesa, na sede da Rede Xique Xique de Comercialização Solidária, em Mos-soró (RN). Neneide fala de onde vem a alimentação das pessoas que vivem no Assentamento Mulunguzinho, de como surgiu o grupo produtivo, o que e como produz, o destino da produção do grupo, a distribuição dos resul-tados do trabalho, as dificuldades, os apoios recebidos, as influências que marcam sua trajetória, as mudanças ocorridas em sua vida e na própria comunidade a partir dessa experiência. Diz do seu prazer em trabalhar com a terra e com firmeza acrescenta “não queríamos produzir só para livrar as hortaliças de produtos químicos e não ter mais nenhuma preocupação com nada. A gente queria ir além disso. A gente queria ter um produto agroecológi-co, não pensar só no valor monetário mas noutras rela-ções de economia solidária, de agroecologia, da questão do meio ambiente.” Neneide Lima é assentada do Assentamento Mulunguzinho, em Mossoró (RN), onde vivem 112 famílias e cerca de 500 habitantes, e é integrante da coordenação da Rede Xique Xique de Comercializa-ção Solidária.

Camponesa – O Assentamento Mulun-guzinho, em Mossoró/RN, é constituído por 112 famílias. De onde vem a alimenta-ção dessas famílias? O que é produzido e consumido no próprio assentamento? A alimentação do assentamento vem muito de produtos adquiridos na cidade de Mossoró. Como Mulunguzinho fica neste município, as pessoas vêm fazer feira aqui, em Mossoró. Só que tem muita coisa que é produ-zida lá no Assentamento. Por exemplo: eu não compro fruta porque hoje, nessa época, eu tenho sirigüela, caju, mamão, manga, goiaba, acerola. Tudo isso tem no Assentamento, além dos produtos que são de sequeiro, de roçado. Só compra feijão quem não planta ou quem planta mas tem uma colheita pequena. Quan-do o meu lote não dá milho, eu compro milho do vizinho. Milho e feijão, que são de sequeiro, a gente compra dentro do próprio assenta-mento quando não planta. O que a gente

compra fora do assentamento são produtos que a gente não produz, como arroz, massas (o macarrão, por exemplo). E têm as hortaliças. Como eu sou do grupo de mulheres, onde a gente produz também hortaliças, o Assentamento também disponibiliza hortaliça. Tanto eu tenho pra consumo como também o pessoal do As-sentamento compra lá na horta. Do coentro à

cebolinha, cenoura, beterraba... Só não temos o que não é de nossa região, como a batatinha. Têm pessoas que ainda compram batatinha, chuchu, mas o que a gente tem no assenta-mento dá conta. Têm pessoas que têm a di-versidade no seu quintal. Minha mãe mesmo tem a horta dela no quintal. Também é muito raro as pessoas no Assentamento comprarem ovo, tem muita galinha lá, tanto se consome a carne quanto o ovo.

Camponesa – Você participa do Grupo de Mulheres Decididas a Vencer, constituído por mulheres do assentamento Mulun-guzinho. Como surgiu o grupo? O grupo surgiu a partir da partici-pação de algumas mulheres num evento que teve aqui em Mossoró, há alguns anos, pro-movido pelo Centro Feminista 8 de Março1 e pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais. E, nesse encontro, elas perceberam que existiam

“A gente queria ter um produto agroecológico, não

pensar só no valor monetário mas noutras relações de

economia solidária, de agro-ecologia, da questão do meio

ambiente”

Entrevista: Neneide Lima

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vários outros grupos de mulheres organizados e que no Assentamento Mulunguzinho não existia grupo. Isso foi por volta de 1994. Minha mãe participou dessa atividade, ela era presi-dente do Assentamento, eu não era inserida no processo ainda. Elas voltaram desse evento decidi-das a formar um grupo de mulheres dentro do Assentamento. Nessa época, não tínhamos ainda nem agrovila. Cada qual morava nos seus lotes, nas suas casas, e elas andaram a pé nos lotes, de carroça, e conseguiram juntar um número de mulheres, e convidaram o Centro Feminista 8 de Março pra fazer uma reunião com as mulheres. E foi aí que tivemos a nossa primeira reunião, pra realmente ter um grupo de mulheres no Assentamento. No início, a gente não pensava em grupo de produção. A gente pensava em ir atrás dos direitos. Por que as mulheres eram tão isoladas das discussões do Assentamento? Da discussão de crédito, de ser sócia da asso-ciação porque só quem podia se associar eram os homens, raramente se tinha uma mulher como titular, apenas aquelas que não tinham marido. Minha mãe foi presidente porque ela era titular do lote mas a maioria das outras mulheres ficavam só em casa, não participa-vam das reuniões. Depois de muito tempo de orga-nização, a gente percebeu que vinha crédito pras famílias, que era dito que era pra famí-lia, mas só quem tinha direito de comprar, de mexer com o dinheiro eram os homens. E foi aí que reivindicamos ao Centro Feminista 8 de Março um encontro de trabalhadoras rurais onde o tema fosse “Geração de Renda para as Mulheres”. E aí foi quando a gente veio para esse encontro e foram convidados vários gru-pos de mulheres e várias agências financiado-ras. E teve uma agência que se interessou pelo grupo de Mulunguzinho.

Camponesa – O grupo produtivo: o que e para quem produzir? Tivemos muita reunião pra dis-cutir o que a gente queria. A gente pensou em beneficiar uma fábrica de doces porque existia um megaprojeto de irrigação lá em Mulunguzinho, que até hoje ainda existe. Como estava no início, pensamos em fazer doces das frutas que vinham desse projeto e, também, desse recurso a gente ia comprar freezers, uma estrutura e tal. Depois refle-timos: “Ora, vamos começar uma coisa pra depender dos outros, dos homens?”. A gente continuaria dependendo dos homens. E ain-da bem que a gente desistiu disso porque até hoje ainda não vi fruta desse projetão. Depois pensamos em criar galinhas mas logo desistimos. A gente queria uma coi-

sa que fosse iniciativa nossa, que dependesse do nosso esforço e que também não nos ti-rasse de nossas raízes, que era ser trabalha-dora rural, lutar com a terra, produzir. Foi aí que chegamos nas hortaliças, que também iriam servir pra nossa alimentação. Mas qual hortaliça? Dessa hortaliça convencional? Na época, hortaliça estava no auge, as hor-taliças orgânicas. Era 8% mais caro no mer-cado e nós pensávamos em ganhar dinheiro, em melhorar de vida. E foi aí que a gente chegou na horta orgânica. Se queremos hor-ta orgânica, vamos ver no grupo de mulheres (30 mulheres), quem se interessa, quem quer participar. Eu sei que ficamos com nove mulheres. Começamos nesse projeto, cercar o terreno, adubação natural e as primeiras sementes. Tivemos cursos de formação em agricultura orgânica porque a gente era acos-tumada ao padrão convencional; e cursos de contabilidade, como fazer a gerência. No decorrer do processo, percebe-mos que não queríamos produzir só para livrar as hortaliças de produtos químicos e não ter mais nenhuma preocupação com nada. A gente queria ir além disso. A gente queria ter um produto agroecológico, não pensar só no valor monetário mas noutras relações de economia solidária, de agroeco-logia, da questão do meio ambiente. Che-gamos a ter mais de 60 variedades de coisas dentro da horta. Ficou um negócio muito cheio, muito diverso. Teve um período que resolvemos trabalhar só com 15 produtos porque não tínhamos condições de ficar com tanta produção.

Camponesa – Quantas mulheres partici-pam do grupo atualmente e o que o grupo produz? Nós temos o grupão e o grupo produ-tivo. O grupão discute essa parte organizacio-nal, essa parte que discute direitos, saúde, rei-vindicações para o Assentamento, participa da Marcha Mundial das Mulheres2, do Grito dos Ex-cluídos3, do Encontro dos Trabalhadores Rurais, que está muito na discussão política e do As-sentamento, e temos o grupo produtivo. Hoje o grupo produtivo tem só 5 mulheres e o grupão tem pouco mais de 20 mulheres. O grupo de mulheres surgiu a par-tir dessa concepção de auto-organização e da vontade de dar visibilidade às mulheres dentro do Assentamento na luta por direitos, por igual-dade. Só depois é que surgiu o grupo produtivo.

Camponesa – Como se dá a organização do trabalho no grupo produtivo? O grupo surgiu com a horta e hoje nós temos um sistema de produção integrado. Trabalhamos com três produtos ou três ca-deias: apicultura, hortifrutigranjeiro e capri-novinocultura. O grupo de caprino envolve o grupo de mulheres e outras pessoas do as-sentamento, trabalha desde a parte de abate até o beneficiamento. O grupo de apicultura é só o nosso grupo de mulheres. Como a apicul-tura tem uma demanda pontual, não é perma-nente, a gente faz a revisão de 15 em 15 dias, e faz a colheita no tempo da colheita, três por ano. Que é nisso que hoje eu estou participan-do porque eu estou liberada pelo grupo para a coordenação da Rede Xique Xique de Comer-cialização Solidária4. Tem a parte de hortifrutigranjeiros. Hoje, trabalha-se de 6h:30 até 11h e de 15h:30 até às 17h:30. Tem todo um calendário de atividades: desde ações que fazemos juntas (canteiro, limpar a área...) até outras individu-alizadas. Toda terça-feira é dia de plantar can-teiro pois trabalhamos no sistema de entrega de cestas, tem que ter planejamento semanal para que todo mês tenha aquela cesta. Tem as mulheres que raleiam, as que plantam mudas, a que cuida da bandeja. E, além da produção em si, a gente é quem faz a gestão, aí tem a contabilidade, tomar de conta dos recibos, das notas. Esse manejo é feito entre essas cinco mulheres. A horta produz alface, coentro, ce-bolinha, beterraba, cenoura, jerimum, rúcula, berinjela, pimentão, toda essa variedade. Além disso tem as frutas, temos mamão, goia-ba, manga, acerola. E outras coisas, como a macaxeira.

Camponesa – Qual o destino da produção do grupo? A alimentação no próprio Assenta-mento e a Rede Xique Xique de Comercialização Solidária, para o grupo de consumidores que te-mos, a quem fazemos a entrega de cestas. Quando decidimos produzir hor-

1 Centro Feminista 8 de Março é uma organização feminista que acompanha grupos de mulheres e jovens mulheres da periferia de Mossoró, assentamentos da zona rural da cidade e municípios vizinhos da região. Articula também atividades, cursos, seminários e palestras junto aos movimentos sociais rurais e urbanos. Maiores informações no site: www.cf8.org.br.

4 A Rede Xique-Xique de Comercialização Soli-daria constituída em 2003, é resultante de um processo de con-strução coletiva com participação de grupos produtivos de áreas reformadas de nove municípios: Apodi, Baraúna, Grossos, Gover-nador Dix-Sept Rosado, Janduis, São Miguel do Gostoso, Mossoró, Serra do Mel e Touros. Em sua maioria, esses grupos são formados por mulheres, que produzem mel de abelha, castanha de caju, artesanato de palha, sisal e sementes, marisco, além de derivados da caprinocultura e hortifrutigrangeiros, seguindo os princípios da agroecologia. A Rede tem sede em Mossoró, cidade-pólo da Região Oeste do Estado do Rio Grande do Norte.

2 A Marcha Mundial das Mulheres é uma ação do movimento feminista internacional de luta contra a pobreza e a violên-cia sexista. Sua primeira etapa foi uma campanha entre 8 de março e 17 de outubro de 2000. Aderiram à Marcha 6000 grupos de 159 países e territórios. As manifestações de encerramento desta primeira fase da Marcha no dia 17 de outubro de 2000 mobilizaram milhares de mulheres em todo o mundo, nesta ocasião foi entregue a ONU um abaixo assinado com cerca de 5 milhões de assinaturas em apoio às reivindicações da Marcha. Maiores informações: www.sof.org.br/marcha/.

3 O Grito dos Excluídos é uma manifestação popu-lar carregada de simbolismo, é um espaço de animação e profecia, sempre aberto e plural de pessoas, grupos, entidades, igrejas e movi-mentos sociais comprometidos com as causas dos excluídos. Maiores informações: www.gritodosexcluidos.org/.

“O grupo de mulheres surgiu a partir dessa concepção de auto-organização e da von-tade de dar visibilidade às

mulheres dentro do Assenta-mento na luta por direitos”

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taliças já pensamos em pra quem íamos vender. O Centro Feminista 8 de Março, a Terra Viva5, a AACC/RN, a COOPERVIDA6 começaram a convidar pessoas que gostariam de con-sumir hortaliças. Marcavam uma reunião com essas pessoas e nós vínhamos. Era uma festa. A gente vinha para o que chamávamos de “assembleias” pra discutir a quem iríamos entregar essas verduras. Antes da Rede Xique Xique, criamos a “Associação dos Parceiros da Terra – APT”. A gente produzia o que as pes-soas queriam, entregávamos a cesta padrão e, nessas assembleias, discutíamos o preço. Toda semana a pessoa recebia uma cesta, que tinha tudo o que produzíamos no Assenta-mento e a gente entregava nas entidades. Es-sas pessoas do grupo de consumidores eram de classe média, pessoas da universidade, médicos etc. Chegamos a entregar de 50 a 60 cestas por semana. As pessoas vinham pegar nas entidades. Atualmente, o grupo de consumi-dores tem cerca de 30 a 40 participantes. Varia muito. Algumas pessoas se mudam, outras saem do grupo e depois voltam.

Camponesa – Como o resultado da produção se distribui entre as partici-pantes? Cada pessoa tira, durante o dia, o que necessita pra se alimentar. Isso é uma coisa. A outra coisa, o dinheiro que a gente apura vendendo hortaliças, em primeiro lugar, é destinado às despesas da horta. Não temos subsídio, a horta se mantém com os próprios recursos. A gente paga energia, que é altís-sima porque temos um poço de 1.500m, um poço que estava desativado e nós reativamos. Energia do poço e da irrigação da horta. Paga-mos esterco (antes a gente ia buscar no cur-ral), hoje um carro vem direto deixar; o frete do carro. Terminou isso, tirou o dinheiro das despesas, o que sobra a gente divide em par-tes iguais entre as cinco mulheres.

Camponesa – Quais as principais dificul-dades enfrentadas pelo grupo, atualmente? Já passamos por muitas dificuldades. Por estarmos no semiárido, a necessidade de água é muito grande e quando nos decidimos

pelas hortaliças não pensamos nisto. Hoje nos preocupamos muito em como poupar, como reduzir, a história das “coberturas mortas”7, todo esse manejo. Essa é uma dificuldade pela qual a gente paga caro. Por isso que hoje a horta não tem um rendimento melhor. Outra coisa é a mão-de-obra porque nós escolhemos uma atividade, que a maioria das mulheres dentro do assenta-mento não tem condições de trabalhar, por serem idosas ou terem muitos filhos. Por mais que as pessoas pensem que a igual-dade já existe mas a gente sabe que ainda tem muita desigualdade, as mulheres não tem com quem deixar os filhos. Como a horta necessita de mão-de-obra diária, te-mos muita dificuldade. Tentamos agora en-volver algumas jovens mas o trabalho é muito pesado. A gente disse que elas ficariam na parte mais maneira de limpar os canteiros, limpar com a mão, ralear, mas elas não conseguiram. Não queríamos funcionárias, queríamos pessoas que se sentissem donas, parte do processo. Um dos critérios que a gente usa para entrar no grupo de produção é que, pelo menos, a pessoa passe pelo grupo de mulheres pra ter o convívio de trabalho com outras pessoas.

Camponesa – O grupo conta com algum tipo de assistência ou apoio? Como isso acontece? Nós nunca ficamos sem assessoria. Por mais que as entidades passem por dificul-dades, a gente sempre teve apoio ou direta-mente em assessorias ou em projetos especi-ais dessas entidades que eu citei. A AACC/RN sempre contribuiu com tudo que nós temos e somos. O Centro Feminista 8 de Março tem duas agrônomas que acompanham o grupo. O Centro Terra Viva teve um período que dava assessoria no Assentamento e também tinha a preocupação de passar lá na horta, de saber como a gente estava. Tem o PDA Margarida Alves8 que sempre está por lá. E a gente tem até consumidores mesmo que ajudam, dando assessoria quando a gente precisa. Relação com as Universidades, visi-tas de alunos. Atualmente, a assessoria vem mais diretamente do Centro Feminista 8 de Março, na parte de organização e de assesso-

ria técnica com as agrônomas. Hoje, até a Pre-feitura disponibiliza um agrônomo que está lá, também, junto.

Camponesa – A Rede Xique Xique de Co-mercialização Solidária, que atualmente conta com mais de 50 grupos participantes, teve seu início na experiência de organiza-ção, produção e comercialização do Grupo de Mulheres Decididas a Vencer. Como a Rede Xique Xique fortaleceu o trabalho do Grupo de Mulheres Decididas a Vencer? Quando a gente começou com a “As-sociação de Parceiros da Terra – APT”, tivemos muitos intercâmbios. Fomos visitar uma ex-periência em Fortaleza, juntos com outros grupos de Apodi, e lá nessa visita, percebemos que existia também entrega de cestas e que não era só hortaliça. Tinha queijo, galinha, outras coisas. E a gente veio com a ideia de criar isso aqui em Mossoró. De deixar de ser o grupo de Mulunguzinho, que entregava cestas, e pensar em algo maior, que envolvesse outros grupos, outras cooperativas, outras pessoas. Junto a isso, o PDA (da Visão Mun-dial) estavam pensando em construir uma Central de Comercialização para os grupos e famílias que acompanhavam. Existia uma produção e não tinha onde as pessoas escoar esta produção. Decidimos somar com a ideia do PDA, chamar outras entidades e construir essa Central juntos. Achamos o nome Central muito pesado e juntos pensamos em construir algo que estivesse a altura dos trabalhadores e trabalhadoras, artesãos, grupos urbanos e rurais. Não queríamos um mercado conven-cional, queríamos uma coisa diferente, onde as relações fossem diferentes. Aí pensamos no espaço de comercialização solidária e numa carta de princípios que regulasse a participa-ção nessa construção. Nasce a Rede Xique Xique de Co-mercialização Solidária Começamos a construir isso. O PDA tinha um projeto que bancava o aluguel de um espaço e começamos a ter essa dinâmica de formação e, também, de comercialização. Surgiu o espaço. Como a gente não perdeu essa dinâmica de se reunir, de dialogar, dis-semos: “Não queremos só o espaço”. Não adi-anta trazer os produtos de Apodi, São Miguel do Gostoso e não ter uma dinâmica em cada município. Foi aí, depois de um ano, em 2004, que construímos a Rede Xique Xique. O es-

5 O Centro de Apoio ao Desenvolvimento da Agri-cultura Familiar - Terra Viva, foi constituído em 03 de outubro de 1997, por um grupo multidisciplinar de profissionais autônomos, inicialmente sob o nome de Cooperativa de Trabalho para a Agricul-tura Familiar do Oeste Potiguar - Terra Viva. O Centro Terra Viva vem desenvolvendo, ao longo desses anos, ações baseadas em metodo-logias sintonizadas com as características dos trabalhadores e das trabalhadoras dos assentamentos da Reforma Agrária e comunidades rurais, nos mais diversos programas e projetos de assessoria técnica e capacitação. Maiores informações: www.terravivarn.org.br/. 6 A Cooperativa de Assessoria e Serviços Múltiplos ao Desenvolvimento Rural – COOPERVIDA é uma entidade que desenvolve suas ações voltadas para o desenvolvimento rural, numa perspectiva agroecológica, pautada na equidade de gênero e gera-ção, que tem como missão “trabalhar atividades que promovam o desenvolvimento sustentável, considerando a cultura e os recursos naturais existentes, promovendo/potencializando a transformação da sociedade, mediante a construção de novos valores que pos-sibilitem a igualdade de gênero e etnia, melhorando a qualidade de vida e o exercício da cidadania”. Maiores informações: http://coopervidarn.org/?pagina=acoopervida.

7 “Cobertura morta “ é a prática agrícola de cobrir a superfície do solo com uma camada de material orgânico, como a palha ou cascas que sobraram de outros cultivos. Visa proteger o solo do impacto direto das chuvas e da radiação solar mediante a colo-cação de materiais diversos sobre a sua superfície. Ajuda também a manter a umidade do solo, dificulta o aparecimento do mato, evita a evaporação da água e mantém o ponto de aeração do solo que é a circulação do ar nos espaços do solo, essencial a respiração das raízes das plantas e demais organismos vivos.

8 A Visão Mundial é uma organização não governa-mental cristã, brasileira, de desenvolvimento, promoção de justiça e assistência, que, combatendo as causas da pobreza, trabalha com crianças, famílias e comunidades a fim de que alcancem seu poten-cial pleno. Dedica-se a trabalhar lado a lado com as populações mais vulneráveis e a servir a todas as pessoas, sem distinção de religião, raça, etnia ou gênero. Nos mais de 100 países onde atua, a Visão Mundial trabalha com uma ferramenta chamada Programa de De-senvolvimento de Área – PDA. A tecnologia do PDA fortalece nas comunidades as noções de cidadania, mobilização comunitária e defesa de direitos, com foco nas áreas de educação, saúde e segu-rança alimentar, desenvolvimento econômico, agroecologia, orga-nização comunitária, promoção de justiça, formação sociopolítica e compromisso cristão, além de socorro e reabilitação em situações de emergência. É a esta ferramenta que Neneide está se referindo. Maiores informações: www.visaomundial.org.br/.

“Se hoje nós temos crédito, como trabalhadoras rurais, é porque alguém se organizou

e foi buscar isso”

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critório da Rede é em Mossoró mas a rede é formada pelos núcleos. E a Rede adquiriu essa dinâmica. Com isso, pudemos nos aproximar de outros grupos. A Rede fortaleceu nessa in-tegração com outras pessoas porque éramos sós. Hoje, trabalhamos fortemente a agro-ecologia, a economia solidária e o feminismo porque a Rede Xique Xique bebe muito da fonte dos grupos de mulheres organizados. Têm muitos grupos na rede e a gente con-segue se entrelaçar nesses temas que a Rede hoje trabalha.

Camponesa – Qual a relação da Rede Xique Xique com as instituições de apoio às co-munidades rurais? O que precisa melhorar nesta relação? Desde o início até hoje, as instituições tem um papel fundamental na Rede porque hoje a gente considera a Rede Xique Xique como de produtores e produtoras, de artesãos e artesãs, mas se não fossem as parcerias a Rede não existia. Mesmo que as assistências técnicas, parcerias e entidades de apoio não tenham direito a voto na Rede porque são os trabalha-dores e trabalhadoras que tomam as decisões finais, mas essas entidades trazem formação em economia solidária, agroecologia e dão sua contribuição pra gente poder estar aqui. No início da Rede, o Conselho Di-retor ou os grupos que vinham, só vinham porque essas assessorias estavam por trás apoiando. Hoje, as pessoas que assumem e defendem a Rede Xique Xique o fazem porque tiveram formação. E, assim, as as-sessorias são muito importantes para que a Rede sobreviva.

Camponesa – Que mudanças a participação no grupo provocou em sua vida pessoal, na relação com a família e com a comunidade? Eu devo muito de minha formação a essas assessorias que fazem parte da Rede. Minha formação política, de gostar do que faço, do que desenvolvo porque quando a gente vive no assentamento e que não tem essa formação acha que as coisas caem do céu. E quando você passa a ter uma forma-

ção, você percebe que não é assim. Hoje, se as mulheres tiveram direito ao primeiro voto é porque alguém lutou pra isso. Se hoje nós temos crédito, como trabalhadoras rurais, é porque alguém se organizou e foi buscar isso. Não é porque foi dado, é porque alguém lu-tou por isso. Quando você começa a se formar, começa a perceber isso. As coisas não caem do céu e não são dadas, alguém lutou pra que elas estivessem ali. A formação no movimento de mulheres Minha formação veio a partir do movimento de mulheres. Hoje, a Marcha Mundial das Mulheres é, pra mim, o espelho com que me identifico porque é quem me for-talece como mulher, e faz com que sempre eu esteja lutando. Eu casei com 14 anos, tive meu primeiro filho com 15. Percebi como eram as relações familiares e que as pessoas tinham direitos iguais, poderiam dialogar. As mudanças são muitas. Eu dizia que não participava de nada por causa dos meninos. Mas fui me dizendo: “Pra eu par-ticipar, meus filhos têm de participar porque eu não tenho com quem deixar”. Eu não tinha esse diálogo familiar que hoje já existe dentro do Assentamento. Se você chegar hoje e perguntar as mulheres da horta se elas fazem alimentação quando chegam em casa, você vai escutar que não. Já tem diálogo com os maridos. As mulheres dizem: “Meu marido só fazia o almoço, hoje ele faz até o pé da porta”. “Eu gosto de ser trabalhadora rural”Eu comecei armando rede debaixo dos galpões pra poder participar de uma reunião de capacitação com minhas filhas. Hoje, todas as mulheres que participam da horta e que já participaram, dizem: “Eu criei meus filhos aqui”. A gente tinha até um berço. E pra onde

“A Marcha Mundial das Mulheres é, pra mim, o

espelho com que me identi-fico porque é quem me fortalece como mulher”

ia ajudava as outras armando as redes nos pés de árvores pra poder garantir que as mulheres estivessem. Hoje temos uma relação boa, um diálogo, as mulheres dizem: “De primeiro eu ia deixar o lanche do meu marido, hoje ele vem deixar o meu”. Quer dizer, hoje a gente já tem esse reconhecimento. Terminei meus estudos, passei um ano e meio fazendo supletivo, saía da horta, não dava nem pra tomar banho direito, pega-va um ônibus, saía do Assentamento, vinha aqui pra Mossoró, voltava, o ônibus atolava no caminho, eu ajudava a empurrar o ônibus pra poder chegar em casa mas consegui terminar. Tem toda essa história também de como eu cresci como pessoa, na militância e nos meus estudos, mas com a cabeça centrada no As-sentamento, nada de querer ir embora de lá, de querer sair porque eu gosto de lá. Eu gosto de ser trabalhadora rural, gosto de trabalhar com a terra, de ser apicultora, pra mim isso é muito importante. Não perder essa identidade porque se eu estou hoje aqui foi a partir do grupo e o grupo é meu alicerce. O grupo é que me dá sustentação porque se um dia eu dis-ser que não sou mais do grupo, acabou meu alicerce, caiu minha casa.

Camponesa – Pela sua experiência, em que essa participação das mulheres melhorou o desenvolvimento do assentamento, as relações entre as pessoas, o trabalho? Se você chegar em Mulunguzinho, o povo diz que o assentamento só é visto porque existe o grupo de mulheres. Dentro do assenta-mento você tem que brigar pelo seu espaço. Têm pessoas que defendem mas têm pes-soas que criticam, também. Não é tudo as mil maravilhas, como também dentro do grupo. Quem quer formar grupo, tem que ter jogo de cintura e respeitar as diferenças porque a gente discute, a gente briga, também. Agora tem que ser adulta pra quando sair do portão (tem um portão lá) ser as mesmas amigas. Um empreendimento com várias donas é difícil, é muito mais fácil ter uma que manda e as outras que obedecem, mas ter várias que mandem, é difícil porque cada uma quer mandar do seu jeito, tem suas diferenças.

VISITE O SITE DA FUNDAÇÃO KONRAD ADENAUER:

www.kas.de/brasil

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“Existe uma enorme distância entre alimentar-se

e nutrir-se”

Alimentação equilibrada é essencial para a vida

Alimentos saudáveis, sem agrotóxicos, garantem o bom funcionamento do organismo e são cada vez mais essenciais no tempo em que vivemos

O ato de comer exige cuidados especiais. Para Severina Araújo, nutricionista, “o alimento deve ser escolhido para a nutrição de cada célula que compõe o nosso organismo e não simplesmente como fonte de calorias”. Na época em que vivemos, onde a oferta de alimentos é cada vez maior e menos

nutritiva, é preciso encontrar tempo para se alimentar de forma saudável pois como afirma ela: “A alimentação equilibrada é fator essencial na manutenção de funções vitais básicas, além de prevenir e ajudar a tratar inúmeras doenças da vida moderna”.Severina Araújo é nutricionista, com pós-graduação em Nutrição Social, Nutrição Clínica e Tecnologia de Alimentos e Nutrição, trabalha no Centro de Reabilitação In-fantil (CRI) e na Clínica São Marcos.

Entrevista: Severina Araújo

Camponesa - As opções alimentares são definidas pela cultura, ou seja, pelos homens e mulheres que a compartilham, também o alimento escolhido constrói a pessoa que o ingere, que se busca construir no ato alimen-tar. Por isso é que se fala que “somos o que comemos”. Dentro dessa perspectiva, que cuidados deve-se ter com o ato de comer? Devemos utilizar alimentos sau- dáveis bem variados que possam suprir as necessidades de proteínas (substâncias que servem para formar e reparar as células),  lipídeos (fonte de energia que serve para fun-ção, manutenção e integridade das membra-nas celulares,do sistema imunológico e forma-ção dos hormônios), glicídeos, que fornecem combustível contínuo para o funcionamento do sistema nervoso central, vitaminas (regu-ladoras do metabolismo, convertem lipídeos e glicídeos em energia e colaboram na forma-ção de osso e tecidos) e minerais, que regulam o ritmo cardíaco, respiratório e comunicação neural. Esses nutrientes em harmonia são fun-damentais para um bom funcionamento do nosso organismo.

Camponesa - Quais os princípios de uma alimentação saudável? Quais são os ali-mentos considerados saudáveis? Escolher o alimento indispensável para a formação de cada célula que compõe o or-ganismo, e não simplesmente utilizar como fonte de energia, cada célula do organismo necessita pelo menos de 44 nutrientes para sua função nor-mal. Os alimentos considerados saudáveis são os naturais sem agrotóxicos e sem aditivos químicos.

Camponesa - Observamos, atualmente, em tempos de globalização, a ocorrên-cia de uma padronização cada vez maior dos produtos consumidos, dos comporta-mentos alimentares e dos gostos. Como a

senhora vê essa situação e qual a conse-qüência disso para nossas vidas? Nossos hábitos alimentares vêm so-frendo grandes mudanças nos últimos anos, com uma enorme distância entre a alimenta-ção e hábitos alimentares saudáveis, a oferta de alimentos está cada vez maior, porém bem menos nutritiva e com uma carga de produ-tos químicos e gorduras trans  promovendo a praticidade e gerando desequilíbrios funciona-is com prejuízo para o organismo, concorrendo com os nutrientes das células e deixando mais vunerável á doenças.

Camponesa - Há quem afirme que uma dieta centrada na carne é geradora das principais doenças que levam ao óbito nas sociedades ocidentais, como cardiopatias, diabetes, vários cânceres e pressão alta. Como a senhora vê esta situação? A carne é um alimento protéico que pode ser utilizado em nossa alimentação, porém a quantidade e freqüência de ingestão deve ser moderada por diversos motivos; um deles é que a grande quantidade de proteína de origem animal na refeição acidifica o ph sanguíneo, aumentando a excreção de nutri-entes como, por exemplo: excreção urinária de cálcio, de oxalatos e de ácido úrico que for-mam os cálculos renais.

Camponesa - Na sua prática de nutricionista, quais as principais dificuldades que as pessoas enfrentam para seguir uma dieta saudável? As principais dificuldades encontra-das são seguir horários regulares de alimen-tação, fracionar as refeições durante o dia e

horário suficiente para alimentar-se, devido a longa jornada de trabalho.

Camponesa - Qual a importância de se consumir alimentos sem agrotóxicos? Que conseqüências podem advir do consumo de agrotóxicos? Os alimentos sem agrotóxicos per-mitem um bom funcionamento orgânico. Os agrotóxicos são substâncias estranhas ao nos-so corpo, “xenobióticos” que levam a intoxi-cação orgânica e conseqüentemente dese-quilíbrios funcionais gerando principalmente uma baixa imunidade deixando o sistema de defesa debilitado.

Camponesa - Ter comida em abundância é sinônimo de nutrição? Quais as diferenças entre passar fome e ser desnutrido ou mal nutrido? Comida em abundância não é sinônimo de nutrição, existe uma enorme dis-tância entre alimentar-se e nutrir-se. A escolha do alimento é muito importante, cada alimen-to se destaca pelo nutriente que ele contém em maior quantidade. Os nutrientes agem em conjunto nas nossas células, portanto, ser des-nutrido ou mal nutrido vem do desequilíbrio da carência ou excesso de alimentos.

Camponesa - Que mensagem a senhora deixa aos nossos leitores? A alimentação equilibrada é um fator essencial na manutenção de funções vitais básicas, além de prevenir e ajudar a tratar inúmeras doenças da vida moderna, lembrando que temos cerca de 100 trilhões de células no corpo e cada uma delas exige um suprimento constante e diário de nutri-entes para funcionar com perfeição e poder alcançar seu potencial pleno em todo o me-tabolismo orgânico.

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“As grandes empresas agrícolas não cultivam ali-

mentos, elas produzem mer-cadoria, e aí reside a questão

crucial do atual modelo de desenvolvimento do Brasil”

Alimentação saudável é um direito humano inviolável

Nossa alimentação está cada vez mais padronizada em todo mundo e os alimentos vão deixando de ser um meio de reproduzir a vida e as culturas para

se tornarem meras mercadorias

A necessidade de maiores investimentos nas políticas públicas de desenvolvi-mento agrário, em particular às que favorecem a agricultura camponesa e fa-miliar, o incentivo ao associativismo e cooperativismo como também a pro-moção da agroecologia e da economia solidária, na opinião de Marília Leão,

são essenciais para garantir o direito humano à alimentação saudável e adequada. Segundo ela, “é preciso reafirmar que as raízes da fome estão no modelo econômico e de desenvolvimento vigente no mundo”, o que desafia a sociedade a pensar para além de um outro modelo de desenvolvimento agrário, sendo imprescindível repensar o “próprio modo de organização da economia”. Mas ressalta que “isso só será possível com muita luta política, tanto dos movimentos sociais de massa como de organiza-ções que trabalham com foco em políticas públicas e nas instituições formais da de-mocracia”. Entre as muitas formas de luta, o consumo consciente se apresenta como uma delas pois “o poder do consumidor urbano é enorme e ele precisa saber disso”, afirma Marília. Marília Leão é Especialista em Políticas Públicas e Mestre em Nutrição Humana. Atualmente preside a Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos (ABRANDH) e é conselheira representante da sociedade civil no Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA).

Entrevista: Marília Leão

Camponesa - Os pilares mais fundamen-tais da soberania alimentar incluem o reconhecimento e o cumprimento do di-reito à alimentação e o direito à terra; o direito de cada nação ou povo a definir a sua própria política agrícola e alimentar, respeitando o direito dos povos indígenas aos seus territórios, os direitos dos pesca-dores tradicionais a áreas de pesca, etc.; um refúgio das políticas de comércio livre, com uma concomitante maior prio-ridade de produção alimentar para mer-cados locais e nacionais, e o fim da venda abaixo do preço de custo (dumping); re-forma agrária genuína; e práticas agrícolas sustentáveis, com base nos camponeses, ou agroecológicos. O que nós, habitantes de centros urbanos, temos a ver com a so-berania alimentar? O debate sobre soberania e segu-rança alimentar e nutricional no contexto dos centros urbanos é muito interessante e nos remete a questões novas e necessárias, pois estamos condicionados a pensar a questão quase sempre da perspectiva da produção agrícola camponesa e familiar, daqueles que vivem nas áreas rurais e quase nunca dos consumidores urbanos. Sabemos

hoje que mais de 80% da população brasilei-ra vive nas áreas urbanas e que qualquer movimento desse contingente tem um alto poder de transformação da realidade. As-sim, começar a discutir como podemos pro-mover a soberania e segurança alimentar e nutricional enquanto consumidores urba-nos conscientes, politizados e militantes da causa poderá gerar impactos importantes na sociedade em curto, médio e longo prazo.

Camponesa - Muitos pesquisadores con-temporâneos tentam relacionar sistemas sociais e sistemas ecológicos para enfren-tar os desafios alimentares do século XXI. Como conciliar soberania alimentar e o manejo sustentável dos agroecossistemas com base nos princípios da agroecologia

e no fortalecimento da produção familiar? É imperativo ampliar o compromis-so dos governos em destinar recursos expres-sivos para as políticas públicas de desenvolvi-mento agrário que fortaleçam a agricultura camponesa e familiar por meio de medidas de acesso à terra e ao território, à água e às sementes crioulas; ao crédito; à infraestrutura e serviços; à educação, capacitação e assistên-cia técnica que articulem o conhecimento for-mal com as culturas e os saberes locais; que in-centivem o associativismo e o cooperativismo; que promovam a agroecologia e a economia solidária; e que garantam o controle de toda a cadeia alimentar, da produção à distribuição, dentre outras etapas. Os programas públicos devem ainda fortalecer as organizações da so-ciedade civil como forma de contribuir para a consolidação de espaços públicos plurais e a participação ativa, democrática e informada.

Camponesa - Nesses oito anos de governo Lula, em que estágio se encontra a disputa entre o modelo agroindustrial, baseado na produção monocultural em larga escala voltada para exportação, e o modelo de agricultura praticado pelos camponeses e pequenos agricultores? Que avanços e

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aquisição de alimentos da agricultura familiar, como o PAA (Programa de Aquisição de Ali-mentos) que apenas no ano de 2008 executou R$ 551,7 milhões.

Camponesa - Há quem diga que as raízes da fome e da desnutrição no Brasil associam-se a duas dimensões interdependentes de uma mesma crise de nosso modelo de de-senvolvimento: baixo poder aquisitivo da população e insuficiência de produção de alimentos para o consumo interno. Como enfrentar essas questões? Em primeiro lugar, é preciso reafir-mar que as raízes da fome estão no modelo econômico e de desenvolvimento vigente no mundo. As políticas de desenvolvimento têm se pautado em interesses do mercado fi-nanceiro e dos grandes conglomerados mul-tinacionais e não na garantia de direitos e da dignidade humana. Nesse contexto, o ali-mento é visto como mercadoria e não como um direito humano cuja garantia é obrigação dos Estados. Atualmente, o mundo produz alimentos em quantidade suficiente para to-dos. O que ocorre é que muitos não têm aces-so a eles. Milhões de pessoas não possuem rendimentos ou outros meios para comprar ou produzir os alimentos que necessitam para viver com dignidade. No mundo todo, estima-se que, depois da crise dos preços dos alimentos (2007/2008), mais de um bilhão de pessoas têm o seu direito humano à alimen-tação adequada violado, isto é, convivem dia-riamente com o flagelo da fome, em situação de insegurança alimentar permanente. No Brasil, ainda temos fome no país das supersafras. O balanço líquido das calo-rias mínimas necessárias para cada brasileiro ou brasileira consumir é positivo, tanto é que somos um dos maiores exportadores de alimentos. Ou seja, temos um problema de acesso aos alimentos, determinado pela pobreza e vulnerabilidade social. Mas a questão é: que alimento é esse que estamos produzindo em larga escala? Que modelo agrícola é esse que produz muitas “calorias”, mas que traz juntos os resíduos – como os agrotóxicos – que causam doença e morte? As grandes empresas agrícolas não cultivam alimentos, eles produzem mercadoria, e aí reside a questão crucial do atual modelo de desenvolvimento do Brasil. Nas últimas décadas, temos assistido ao avanço vigoroso

“Não podemos, portanto, pensar apenas em mudar o

modelo de desenvolvimento rural, mas o próprio modo de

organização da economia”

“Falamos muito da preser-vação da natureza, e é claro

que isso inclui o ser humano, mas falamos pouco da eco-logia humana, da preserva-ção da saúde dos homens e

mulheres”

que dificuldades pode-se apontar? A concentração de terras no Brasil aumentou no Governo Lula e continua entre as mais altas do mundo. O modelo hegemônico no campo, baseado no agronegócio de ex-portação e nos monocultivos, se radicalizou e colocou o Brasil como o maior exportador de alimentos do mundo. Por exemplo, a maior empresa de carne bovina do mundo, inclusive com ramificações em vários países, é brasilei-ra. Não faltou fomento para as monoculturas de cana, para agrocombustíveis, eucalipto para papel e soja para rações animais. O plan-tio da cana de açúcar avança sobre as áreas de cultivos de alimentos e tem aumentado o desmatamento da Amazônia, e a devasta-ção de outros biomas, como o Cerrado e o Pantanal, além de ainda trazerem consigo o trabalho escravo ou semi-escravo. O número de famílias assentadas pela Reforma Agrária empacou nos últimos anos (136 mil em 2006, 68 mil em 2007 e 70 mil em 2008). Ainda as-sim, os movimentos sociais que defendem a Reforma Agrária vêm sendo criminalizados, os trabalhadores do campo continuam com dificuldades de acesso a muitas políticas públicas, entre outros problemas. Então, o balanço no campo da soberania e segurança alimentar e nutricional não é positivo. Mas não podemos deixar de fazer justiça e reconhecer que tivemos avanços em alguns setores, como por exemplo: as estatísticas oficiais mostram a redução da fome, da desigualdade social, e re-fletem o aumento da renda entre os mais po-bres; além disso, a desnutrição infantil aguda foi virtualmente eliminada do país. O fato de o Governo Federal ter colocado o combate à fome como uma de suas prioridades acabou gerando algumas conquistas importantes: (i) a aprovação de uma Lei Federal (LOSAN – Lei n° 11.346 de 15/09/2006), formulada com a participação ativa da sociedade civil e que tem como objetivo a garantia do Direito Hu-mano à Alimentação Adequada; (ii) a insti-tucionalidade permanente para o CONSEA Nacional como espaço de aperfeiçoamento da democracia, da participação social e do exercício propositivo das políticas públicas na área da segurança alimentar e nutricional; (iii) a adoção de nova lei que fomenta a compra de alimentos da agricultura familiar por pro-gramas públicos de alimentação escolar (Lei n° 11.947/09 de 16/16/2009); (iv) a política de transferência de renda, que efetivamente têm contribuído para reduzir a extrema po-breza urbana e rural (Programa Bolsa Família); (v) a adoção de novas políticas públicas de

do capitalismo financeiro e das empresas transnacionais sobre todos os aspectos da agricultura e do sistema alimentar dos países e do mundo. Desde o controle das sementes a venda cada vez maior de agrotóxicos, até a compra da colheita, o processamento dos alimentos, transporte, distribuição e venda ao consumidor, tudo já está em mãos de um número reduzido de empresas. Os alimen-tos deixaram de ser um meio de reproduzir a vida e a cultura das pessoas, tornaram-se apenas mercadorias.

Camponesa - Como fazer a passagem dos atuais padrões de desenvolvimento rural ou de sistemas de produção de baixa sus-tentabilidade para modelos de agricul-tura e de manejo rural que privilegiem e incorporem princípios, métodos e tecno-logias de base ecológica? O desafio é enorme, pois o modelo hegemônico na indústria da alimentação (in-cluindo todas as suas dimensões, da produção agrícola à venda dos produtos, passando pelo processamento, pela publicidade, pela distribuição etc) hoje é um dos pilares do capitalismo, é uma das suas indústrias mais rentáveis e que maior número de pes-soas, empresas e instituições envolvem. Não podemos, portanto, pensar apenas em mudar o modelo de desenvolvimento rural, mas o próprio modo de organiza-ção da economia, que precisa ser focado no desenvolvimento da sociedade como um todo, e não apenas de um punhado de empresas e seus acionistas. Alternativas existem e mostram que são capazes de se tornarem padrão: as experiências de eco-nomia solidária, com algumas funcionando há décadas e com indicadores de eficiência financeira até melhores do que os bancos e instituições tradicionais do mercado; os projetos de agroecologia, que inclusive têm criado um novo nicho de mercado, o dos produtos orgânicos, que hoje já são uma alternativa de negócio rentável e possuem um mercado consumidor crescente, entre outros exemplos possíveis, mostram que é possível construirmos um outro modelo de organização social, no campo e na cidade. Mas isso só será possível com muita luta política, tanto dos movimentos sociais de massa como de organizações que trabalham com foco em políticas públicas e nas instituições formais da democracia.

Camponesa - Em 2008, o Brasil tornou-se o maior consumidor mundial de venenos agrícolas (733,9 toneladas), ultrapas-sando os Estados Unidos (646 milhões de toneladas). Há que se deve isso e que implicações têm para os consumidores? Isso se deve, novamente, ao mode-lo agrícola vigente, que só enxerga os lucros possíveis ao final da próxima safra. Isso se

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deve às empresas e ao mercado dos agrotóxi-cos que não encontram barreiras concretas para entrarem no Brasil. Muitos agrotóxicos que são proibidos nos Estados Unidos, na União Europeia e na China conseguem regis-tro no Brasil. Isso é inaceitável! Num encon-tro recente, quando discutíamos o aumento do consumo de frutas, legumes e hortaliças pela população - alimentos importantes na promoção da saúde - muitos dos espe-cialistas presentes defendiam a tese de que devemos iniciar uma campanha nacional por um país livre do uso de agrotóxicos na produção das frutas, legumes e hortaliças e na conseqüente adoção dos princípios da agroecologia. Todos os presentes, entre nu-tricionistas, pesquisadores, produtores cam-poneses, gestores governamentais e militan-tes sociais foram unânimes em defender esta tese como a única saída para a promoção da agricultura familiar e a sustentabilidade do meio ambiente e da ecologia humana. Aliás, este é um ponto: falamos muito da preserva-ção da natureza, e é claro que isso inclui o ser humano, mas falamos pouco da ecologia hu-mana, da preservação da saúde dos homens e mulheres.

Camponesa - Segundo o Censo Agro-pecuário 2006, divulgado no último dia 30 de setembro pelo IBGE, a concentração da terra, no Brasil, aumentou: a área ocupada pelos estabelecimentos rurais de mais de mil hectares concentra mais de 43% do espaço total, enquanto as propriedades de menos de 10 hectares ocupam menos de 2,7%. No entanto, estas propriedades menores, onde se encontra a agricultura familiar são as principais responsáveis pelo abastecimento dos itens da cesta básica. Como a senhora analisa esses dados e outros apresentados pelo Censo Agro-pecuário 2006? Eles confirmam o que já citamos acima: a concentração do capital e das em-presas nas mãos de poucos donos, o que gera a brutal desigualdade social e econômi-ca do Brasil. Por outro lado, sabemos que

milhares de famílias sem terra lutam por condições dignas de viver, trabalhar e pro-duzir. Os dados nos confirmam a importân-cia da realização de uma verdadeira e efetiva Reforma Agrária.

Camponesa - Nesses tempos de globaliza-ção, observa-se a ocorrência de uma pa-dronização cada vez maior dos produ-tos consumidos, dos comportamentos alimentares e dos gostos. Caminhamos para formas de alimentação idênticas entre diferentes povos? Que implicações têm isso? Há cerca de 20 anos, vi uma charge numa revista americana que mostrava uma raposa muito dócil dentro de um galinheiro, dormindo serenamente ao lado das galinhas, com o seguinte título: “Isso é a globalização”. Então é isso: a globalização serviu aos in-teresses dos países mais fortes, das espertas raposas capitalistas, dos países bem posicio-nados economicamente, dos países desen-volvidos com situação social e econômica bem resolvida. A globalização serviu ao grande capital, para crescer e se ampliar cada vez mais. Vejam quantas fusões de grandes empresas ocorrem a cada ano no Brasil. As pequenas empresas de alimen-tos, as cooperativas de produtores foram todas compradas por gigantes multinacio-nais dos alimentos. E, então, se no campo da produção agrícola, na indústria de ali-mentos, na distribuição e no varejo dos ali-mentos temos concentração, o resultado é que caminhamos para uma dieta cada vez mais monótona – com menos variedade de alimentos – e vamos comer o alimento ou

a “mercadoria” que der mais lucro ao capi-talista. Este prognóstico é sombrio, mas de fato, caminhamos para esta situação. Nossa alimentação está cada vez mais padronizada em todo mundo, não comemos necessaria-mente o que queremos, mas sim alimentos de má qualidade, a preços que são contro-lados pelas bolsas de valores dos grandes países. As tradições culinárias de nossos po-vos estão se perdendo. Só há uma maneira de reverter o processo: apoiar e ampliar a pequena produção, a produção agrícola camponesa e familiar, pois é ela que ga-rante a biodiversidade, a continuidade da produção em qualquer tempo, a preserva-ção da cultura local e saúde dos alimentos na sua forma tradicional. A produção agrí-cola camponesa e familiar pode resolver, ao mesmo tempo, a crise econômica – ge-rando milhares de empregos permanentes a um custo muito mais baixo do que os em-pregos industriais – e a crise alimentar, com a produção de alimentos saudáveis voltados para o mercado interno.

Camponesa - Que papel joga o consumi-dor na afirmação do princípio da sobera-nia alimentar? O consumidor urbano precisa estar informado sobre o seu importante papel na cadeia alimentar. O consumo consciente e a cobrança por alimentos oriundos da agro-ecologia e da produção sustentável, que promove famílias e pessoas que defendem a natureza, podem causar uma revolução no campo da soberania e segurança alimen-tar e nutricional. Na realidade, o poder do consumidor urbano é enorme e ele precisa saber disso. Vale ressaltar que estar livre da fome e ter acesso regular e permanente a uma alimentação adequada e saudável é um direito fundamental de cada brasileiro ou brasileira, indispensável à realização de todos direitos consagrados na Constituição Federal. É um direito humano inviolável e é uma obrigação do Estado Brasil garantir este direito a todos(as) que vivem no ter-ritório nacional.

“Estar livre da fome e ter acesso regular e permanente a uma alimentação adequada e saudável é um direito fun-damental de cada brasileiro

ou brasileira”

Calendário das Feiras Agroecológicas e de Economia SolidáriaNúcleos da Rede Xique Xique:

Rede de Comercialização Solidária Xique XiqueRua Mário Negócio, 158A- Centro - Mossoró-RN- Cep: 59610-080

e-mail: [email protected] - fone(084) 3316-1315

Governador Dix Sept Rosado - Domingo Tibau - Domingo Baraúna - Domingo São Miguel do Gostoso - Segunda-feira Janduís - Segunda-feira Apodi - Sábado Jucuri - Sábado Mossoró - Sábado

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Com o tema “Seguiremos em mar-cha até que todas sejamos livre”, a Marcha Mundial das Mulheres está preparando a sua terceira Ação Internacional para 2010. Com as articulações e discussões girando em tor-no de quatro campos de ação para as ativi-dades que serão desenvolvidas no próximo ano: Autonomia econômica das mulheres, Bens comuns e serviços públicos, Paz e des-militarização e Violência contra as mulheres; as militantes da MMM no Brasil já estão en-volvidas em atividades preparatórias para a execução do calendário 2010. Uma das ações internacionais será no período de 8 a 18 de março de 2010, e de-verá reunir 3 mil mulheres numa caminhada de Campinas a São Paulo.

A área ocupada pelos estabeleci-mentos rurais de mais de mil hectares concen-tra mais de 43% do espaço total, enquanto as propriedades de menos de 10 hectares ocu-pam menos de 2,7%. A gritante desigualdade consta do Censo Agropecuário 2006, divul-gado, após mais de 10 anos da última edição, no dia 30 de setembro pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Utilizando-se do índice de Gini, o estudo mostra a ferida aberta da concentração de terras no país e a falta de estímulo ao pequeno agricultor. O censo revela ainda a opção por um projeto primário-exportador em detrimento da re-alização da reforma agrária.

A simples comparação do destino da produção de nossas terras, entre o que tem origem nos latifúndios e o que é gerado pela agricultura familiar (pequenas proprie-dades rurais), prova que o direito humano fundamental à alimentação do povo é ga-rantido  pela última e não pelos primeiros. A agricultura familiar chega a responder por “até 70% da produção” que integra a cesta-básica, assim superando, “em muitos casos,

o agronegócio”. 70% do feijão, 87% da man-dioca, 58% do leite, 59% do plantel de suínos, 50% do de aves. Mesmo em lavouras voltadas para a exportação, a agricultura familiar tem um espaço de destaque. É o caso do milho, cultura na qual possuía uma participação de 46%. O mesmo ocorre com o café, cujo peso é de 38%.

A concentração da propriedade privada da terra no Brasil, em vez de diminu-ir, está aumentando. Em matéria assinada por Jacqueline Farid, o jornal Estado de São Paulo, de 30 de setembro, demonstra: “A concentração e a desigualdade regional é comprovada pelo índice de Gini da estru-tura agrária do país. Quanto mais perto esse índice está de 1, maior a concentração. Os dados mostram um agravamento da concen-tração de terra nos últimos 10 anos. O Censo do IBGE mostrou um Gini de 0,872 para a estrutura agrária brasileira, superior aos ín-dices apurados nos anos de 1985 (0,857) e 1995 (0,856). “De acordo com o Instituto, en-quanto os estabelecimentos rurais de menos de 10 hectares ocupam menos de 2,7% da área total ocupada pelos estabelecimentos rurais, a área ocupada pelos estabelecimen-tos de mais de 1.000 hectares ocupam mais de 43% da área total.”

Índices de produtividade são in-dicadores usados para verificar se proprie-dades rurais são utilizadas de forma racional e adequada - condições para a chamada função social, parâmetro para desapropria-ção visando à reforma agrária. Sua atualiza-ção está prevista na Constituição Federal de 1988 e na Lei Agrária, de 1993, com o intuito de garantir a função social da propriedade da terra. A liderança nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) vê a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), criada em outubro/2009, como uma represália da chamada “bancada ruralista” às pressões do movimento para que o governo federal altere os índices de produtividade rural em vigor no País.

“Na safra passada, as empresas transnacionais, e são poucas (Basf, Bayer, Monsanto, Du Pont, Sygenta, Bungue, Shell química...), comemoraram que o Brasil se transformou no maior consumidor mun-

dial de venenos agrícolas. Foram despejados 713 milhões de toneladas! Média de 3.700 quilos por pessoa. Esses venenos são de ori-gem química e permanecem na natureza. De-gradam o solo. Contaminam a água. E, sobre-tudo, se acumulam nos alimentos”, escreve João Pedro Stédile, economista e integrante da coordenação nacional do Movimento dos Sem Terra (MST), em artigo publicado no jor-nal O Globo, 24-09-2009.

“Os chineses compõem 20% da população do mundo, mas têm apenas 6% da terra arável e 6% da água doce. Os brasileiros têm tudo: muitas terras, muita água (cerca de 20% da água do mundo ou mais). Os indianos começam a entrar no paraíso do Mc’Donalds. Eles eram, desde muitos séculos atrás, vege-tarianos, mas agora muitos deles começam a comer carne. E, em 20 anos, haverá mais indi-anos que chineses. Pense que os indianos têm ainda menos terra e água por pessoa do que os chineses. Então, quando estes povos mudam o hábito de comer, sentimos isso no mundo inteiro, sobretudo no Brasil, porque o país tem muita terra e água. Quando você ”consome carne, precisa de muito mais terra e água do que quando consome verduras, grãos, frutas, nozes, etc. Com o boom econômico da China, agora eles têm muito dinheiro para, por exem-plo, comprar terras. Eles compram no Brasil e na África e muito barato!”. A afirmação acima é de Luc Vankrunkelsven, filósofo e teólo-go, consultor independente da Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar do Brasil, em entrevista para o IHU-Online, em 13/08/2009.

Em agosto, o deputado estadual Fernando Mineiro (PT) realizou audiência pública para discutir a Lei 11.947, de julho de 2009, que dispõe sobre a compra dos produtos da agricultura familiar para a ali-mentação escolar. Segundo a lei federal, pelo menos 30% dos alimentos consumidos na merenda escolar devem ser produzidos por agricultores familiares. Representantes de mais de 20 municípios estiveram presentes, além de inúmeras entidades e cooperativas de agricultura, no evento que ocorreu na As-sembleia Legislativa do Rio Grande do Norte. O parlamentar explicou que para participar desse programa, os agricultores familiares têm que se organizar através de associações e cooperativas, além de garantir a continui-dade da produção e a qualidade dos produ-tos comercializados.

3ª Ação Internacional da Marcha Mundial

Censo Agropecuário 2006 (1)

Índice de Produtividade Rural

Agrotóxicos no seu estômago

Sobre o consumo de carne

Merenda escolar produzida por agricultores familiares

Censo Agropecuário 2006 (3): a concentração da terra

Censo Agropecuário 2006 (2): a agricultura familiar produz mais

em menos terra

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Quando o alimento é mais gostoso

Com o apoio da AACC/RN, famílias rurais de São Miguel do Gostoso vivenciam a agricultura familiar

de forma organizada e baseada na agroecologia

Por Bethânia Lima

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A simpática cidade de São Miguel do Gostoso está localizada a cerca de 100km de Natal, a capital do Rio Grande do Norte. São Miguel

do Gostoso nasceu em setembro de 1884, mas só passou a ser município em 1993, pois, até então, pertencia ao município de Touros. A primeira reação das pessoas que não a conhecem, ao ouvir seu nome, é: “Por que Gostoso?”. A cidade foi batizada com esse nome em virtude de um vendedor ambu-lante que tinha uma risada tão contagiante que os moradores denominavam de “gos-tosa”. Sob o signo do riso, os moradores de São Miguel, ainda comunidade de Touros, passaram a chamar o local de “Gostoso”. São Miguel do Gostoso. Cidade com uma população de pouco mais de 9 mil habitantes (IBGE, 2009). Seu Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é de 0,558 – o que a deixa na 165º posição na escala dos 167 municípios no Rio Grande do Norte, e na 5240º posição quando comparada aos 5561 municípios do Brasil. Com uma taxa de alfabetização de 56,1% (Idema, 2000), percebe-se que a situação do município não é tão alegre. Pelo contrário, é delicada com referência a alguns aspectos. Embora, sua localização litorânea, tenha ren-dido destaque na mídia nacional. Em 2008, por exemplo, na edição especial da Revista

VEJA – O Melhor do Brasil, São Miguel do Gostoso foi apontada como o melhor “Novos Destinos” da região Nordeste. Com características do semiárido nordestino, o município integra o território do Mato Grande, junto com outros 15 mu-nicípios. Em São Miguel do Gostoso, as chu-vas costumam se concentrar entre os meses de fevereiro e julho; já entre setembro e dezembro é rara a ocorrência das chuvas. Apresentando mudanças na sua história local e com muito que ensinar para outros lugares do país, o município tem se tornado referência diante experiências de-senvolvidas por parte da população, dis-tribuída entre a sede do município e cerca de 20 comunidades e assentamentos ru-rais. São inúmeras as famílias rurais do mu-nicípio que estão envolvidas em trabalhos que refletem na soberania alimentar delas e, indiretamente, de outras pessoas do município.

A noção de soberania alimentar

A soberania alimentar é um direito dos povos a alimentos nutritivos e cultural-mente adequados, acessíveis, produzidos de forma sustentável e ecológica, e seu direito de decidir seu próprio sistema alimentício e produtivo. Essa abrangência da noção de

soberania alimentar, foi concebida pela Via Campesina (movimento camponês mundial que luta pela dignidade e acesso à terra) e está na Declaração de Nyélény – Fórum Mun-dial pela Soberania Alimentar – 2007. É um conceito que tem sido adotado em todo o mundo devido sua importância. Os crescentes investimentos e, principalmente, o avanço do agronegócio, nesses últimos anos, fragilizam a agricul-tura familiar camponesa e a soberania ali-mentar dos povos, provocam o aumento do uso de agrotóxico nos plantios, incentivam a mecanização dos processos agrícolas e reforçam o esgotamento das fontes e dos recursos naturais que levam ao comprome-timento da biodiversidade. As experiências dos trabalhadores e trabalhadoras rurais de São Miguel do Gostoso vão na contramão desse movimento, afirmando que “um outro mundo é possível”.

Áreas rurais conquistadasno município

Cerca de metade da área do mu-nicípio de São Miguel do Gostoso é consti-tuída de assentamentos rurais. Foram cria-dos seis assentamentos federais nos últimos 12 anos com o apoio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA/

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RN. Várias comunidades rurais também fa-zem parte do município, sendo algumas mais antigas do que a própria cidade. É o caso da comunidade de Reduto, com mais de 300 anos, e cerca de 80 famílias morado-ras. “Quase todo mundo tem uma tirinha de terra, do mar para dentro. Nós nos reunimos e plantamos na terra que não tinha dono, depois eles foram aparecendo”, diz o apicul-tor Gonçalo Miranda. A “peleja” pela terra em

Reduto refletia a situação de vários outros lugares e de outras famílias, que buscavam a terra para o sustento familiar. “Trouxeram jagunços e nos expulsaram, e acabaram com os plantios, mas conquistamos apoios e a terra foi desapropriada, em 1999”, relembra orgulhoso o apicultor. Com uma história mais pacífica de conquista da terra, as famílias do Assenta-mento Arizona, em 1996, contaram com o

apoio do INCRA e do Movimento dos Tra-balhadores Rurais Sem Terra – MST, para a criação do Arizona. Com uma área de 5.914 hectares, o assentamento fica a 15 Km da sede do município e está dividido em três agrovilas: Paraíso, Arizona e Novo Horizon-te. A divisão em agrovilas foi uma forma de descentralizar a estrutura administrativa do assentamento, e ainda facilitar o acesso aos lotes. Cada agrovila conta com 60 famílias, aproximadamente, e cada família possui uma casa de alvenaria e um lote de 25 hectares. Com o acesso a terra, as famílias de agricultores e agricultoras cultivam milho, feijão e roça para autoconsumo, e para comercialização os plantios maiores são de abacaxi e caju.

Agroecologia fortalece a agricultura familiar

No intuito de contribuir com a autodeterminação das agricultoras e agri-cultores familiares do Rio Grande do Norte, a Associação de Apoio às Comunidades do Campo do RN (AACC/RN) vem atuando junto a alguns grupos do Assentamento Arizona e de comunidades de São Miguel do Gostoso. A instituição, juntamente com os grupos, tem apostado nos processos agroecológicos, organizacionais e de economia solidária. Em

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fins da década de 90 e início dos anos 2000, a AACC/RN passou a desenvolver e apoiar gru-pos e famílias nos processos produtivos de transição agroecológica. A agroecologia foi o ponto de par-tida para a reinserção e superação dos agri-cultores e agricultoras familiares, diante das dificuldades vividas no meio rural. Assimi-lada e vivenciada como algo que vai além do conceito científico, a agroecologia tem sido trabalhada e disseminada como uma prática de muito respeito às relações huma-nas e ambientais. “A Agroecologia resgata o que de há de mais valioso para mulheres e homens que vivem no campo, o valor dos saberes e costumes, ou seja, o valor das pessoas. Com isso, a agroecologia a partir do seu princípio que é pra mim o funda-mental - a diversidade, de produção, de participação (mulheres e homens), tenta al-cançar o elementar para a manutenção das pessoas que vivem no campo, a segurança alimentar”, comenta a integrante da equipe da AACC/RN, a engenheira agrônoma, Ivi Aliana Carlos Dantas. “A agroeocologia é a preservação da natureza”, frisa a agricultora Sônia Maria Pereira, da Agrovila Paraíso. Em Paraíso, dois grupos de mulheres desenvolvem trabalhos de cultivo de hortas e criação de pequenos animais no sistema agroecológico. O Grupo Unidas Venceremos é constituído por cinco mulheres e, desde 2002, desenvolve ativi-dades produtivas com o apoio da AACC/RN. Já o Grupo de Mulheres Juntas Venceremos está formado por quatro mulheres, que atuam há pelo menos quatro anos, e também desen-volvem trabalhos agroecológicos. Com vários princípios em comum, essas mulheres já es-tiveram durante um tempo desenvolvendo ações conjuntamente, e devido a esse tra-balho, elas foram vencedoras, em 2008, do Prêmio Valores do Brasil, concedido pela Fundação Banco do Brasil. A premiação gerou um recurso para as mulheres e elas converteram uma parte dele em recursos para o trabalho. “Compra-mos sementes, mangueiras, expressores e estamos investindo na produção de salgados e bolos”, diz a agricultora Maria do Socorro Gomes, do Grupo Juntas Venceremos. Com uma larga experiência no tra-balho agroecológico, essas mulheres agricul-toras já enfrentaram muitos obstáculos para chegarem onde estão hoje. Maria Salete e Sô-nia Maria, do Grupo Unidas Venceremos, res-gatam que para conseguir a permissão de uso da terra coletiva para fazerem a horta, foi preci-so muita negociação com a associação, porque as mulheres não tinham o poder de participa-ção e nem eram reconhecidas. “Hoje em dia, a associação já conta com seis mulheres na coordenação, em um total de 12 pessoas”, diz Salete. A área destinada aos grupos é de um hectare e meio para cada um dos grupos.

Entrosado com a participação no meio rural

João Eudes Rodrigues da Silva, 23 anos, morando temporariamente na sede da cidade, São Miguel do Gostoso. É natural da comunidade de

Tabua, e é para lá que ele voltará, em breve

E nvolvimento e emoções. Não há como não perceber na voz, no olhar e na narração da sua história, que o jovem João Eudes é dedicado e apaixonado

pelo que faz. Tem algumas datas gravadas na memória, não como símbolo de presunção e exibição, mas como significado de conquista e partilha de algo importante para várias pes-soas, como foi o primeiro dia de realização da Feira Agroecológica e da Economia Solidária de São Miguel do Gostoso – o dia 28 de agosto de 2006.

  Com apenas 23 anos, João Eudes é um dos Coordenadores do FOPP – Fórum de Participação Popular nas Políticas Públicas, Coordenador do Núcleo de São Miguel do Gostoso da Rede Xique Xique, e foi eleito re-centemente Conselheiro Tutelar da Criança e do Adolescente do município. “Eu comecei a participar de movi-mento muito cedo, eu tinha uns 12 anos e morava na Tabua e já coordenava o grupo de jovens da minha comunidade”, relembra João Eudes. A participação no FOPP, segundo João, também foi conseqüência desse entro-samento e gosto pelas atividades em grupo, “fui um dos escolhidos pela comunidade para ir representá-la no fórum, e foi lá que conheci o trabalho da AACC/RN”. Selecionado no espaço do FOPP, em 2004, para ser estagiário da AACC/RN e integrar um projeto temático que buscava trabalhar com o protagonismo juvenil, João diz ter aprendido e ensinado muita coisa. “O que eu aprendia de agroecologia no estágio, eu repassava para o grupo de jovens que tra-balhava com horta na comunidade”, afirma. A socialização, a solidariedade e a força estão entrelaçadas na vida de João Eudes, e os caminhos percorridos até agora mostram isso. Enquanto coordenador do Fórum de Políticas Públicas, ele avalia que “o FOPP é um instrumento da sociedade para cobrar e dar oportunidades; ele é um espaço político social e econômico que possibilita conquistas à população de São Miguel do Gos-toso”. Reconhecer e saber identificar as dificul-dades temporárias para o funcionamento de um espaço da sociedade civil também é algo avaliado pelos participantes do fórum. “A or-ganização é fundamental para termos o FOPP existindo, passamos por momentos delicados, assim como temos nossas ações de destaque porque já realizamos Encontros de Juventude,

Encontros de Agroecologia e Mesas de Soli-dariedade e isso se deve à nossa organização”, afima João Eudes. A sua colaboração junto ao Núcleo da Rede Xique Xique também percorre a mesma lógica de dedicação e estímulo à organização dos grupos produtivos do município, que têm a agroecologia e a economia solidária como fontes dos trabalhos e realizam a feira agro-ecológica. “Não somos só uma feira”, defende João. Além da produção diferenciada, baseada no comércio justo e no reconhecimento dos valores do trabalho da mulher, por exemplo, a diferença da feira também está na proposta de reflexão das temáticas que cercam a vida em sociedade. “No dia 9 de março de 2009, as mu- lheres fizeram uma ação durante a feira agro-ecológica para comemorar o Dia Internacio-nal da Mulher e quando eu cheguei em casa, para o meu espanto, eu ouvi o meu pai dizer emocionado que a feira tinha sido muito bonita com a atividade das mulheres”, relata João. Com a agenda cheia de planos para o futuro, uma das intenções de João Eudes é estudar agronomia, “penso em fazer o curso e implementar o meu saber aqui em São Miguel”, confessa. “Eu aprendi nesses anos todos de participação que é possível ter vida digna e oportunidades no meio rural”, encerra sorridente a conversa.

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O processo de assistência ao tra-balho agroecológico possibilitou, e ainda possibilita, que todo o contexto vivido pelas mulheres tenha passado por mudanças. “A gente trabalha pela segurança alimentar”, diz convicta Dona Salete. Com a oportuni-dade de aprenderem e discutirem técni-cas para a melhor execução do trabalho no campo, as agricultoras costumam participar de eventos e viagens para conhecer histórias semelhantes às delas. “Quando uma de nós vai conhecer uma experiência, na volta essa pessoa repassa para as outras o que apren-deu, e saímos multiplicando e testando na nossa área”, conta Sônia. “A gente não trabalha com quei-magem nem com trator, e desde que me en-tendia de gente trabalhava assim, com meus pais, e não sabia que era agroecológico”, con-fessa rindo Dona Salete. Valorizar e resgatar práticas antigas e descobrir novas possibili-dades que garantam a qualidade do plantio é uma tarefa que as agricultoras também executam no campo. “Quando dá praga a gente perde por completo o plantio porque a gente não usa veneno. Usamos caldas, nim, alho, pimenta e cobertura morta para que tudo dê certo com a terra e com o produto”, conta a agricultora Francisca Tenório. A diversidade cultivada na horta das mulheres é mais uma ferramenta apren-dida, para que o plantio responda de forma saudável à dedicação do trabalho delas. “Jun-

to com as hortaliças e as frutíferas plantamos muitas flores também na horta, para que os insetos não estraguem os canteiros”, explica Sônia Tenório. A relação de sustentabilidade e partilha é bem interessante, porque o que acaba se estragando ou dando em excesso é aproveitado para os animais que os gru-pos criam. Frutas como mamão, bananas e resto de hortaliças são repassados para os porcos, ovelhas e galinhas. Assim como, o

esterco produzido pelos animais serve para enriquecer a terra.

Provocando mudanças de hábitos

Ter hábitos saudáveis e consumir alimentos sem agrotóxicos são práticas que essas famílias vão adotando e estimulando à vizinhança a adotar. “Desde o tempo que começamos a cuidar da horta que o café da

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manhã da minha família é vitamina ou suco”, destaca Sônia. Já a agricultora Maria Matias, do Grupo de Mulheres Maria, da Agrovila Arizo-na, confessa que nem conhecia algumas das hortaliças que hoje em dia consome muito. “Eu não sabia como era a rúcula, e agora eu adoro comer”, diz a agricultora. O Grupo Maria é composto por quatro mulheres, e além da horta, elas tam-bém criam galinhas. Por enquanto, a maioria da produção da horta agroecológica é con-sumida pelas famílias dessas mulheres. “É um produto saudável que eu tenho na mesa para a minha família”, ressalta Maria Matias, mais conhecida por Dadá. Com a assessoria da AACC/RN, o trabalho de apicultura também é desen-volvido junto a alguns grupos. Desenvolver o trabalho com a apicultura traz o comple-mento do mel para as famílias. A partir da produção, o mel é utilizado pelas famílias para vários fins, dentre eles: adoçar comi-das como bolos e vitaminas, preparo de lambedores e rechear pães e biscoitos. “Uma das sobremesas boas para a gente é comer o mel com farinha”, diz a apicultora Lucineide Menezes, da comunidade de Reduto.

Alternativa que respeita a diversidade ambiental

Com três grupos, a AACC/RN tra-balha a perspectiva agroecológica na api-cultura. Na comunidade de Reduto, o grupo é bem heterogêneo, sendo formado por jovens e adultos, homens e mulheres. No Assentamento Arizona, nas Agrovilas Novo Horizonte e Arizona os grupos também são formados por jovens e adultos, sendo tam-bém de caráter misto. “A gente tem cuidado com o lixo e com o desmatamento”, explica a apicultora Maria das Dores Cardoso, conhecida por Dorinha. A apicultura sendo desenvolvida na linha agroecológica consegue diminuir as queimadas na região, consequentemente aumenta e preserva a mata nativa e a sua diversidade. “Temos muita flor por perto do nosso apiário, é comum encontrar o cajueiro, coqueiro, mangueiras e a carnaú-

Uma jovem aprendiz que transforma a realidade local

Maria Katiana Barbosa da Silva, 22 anos, moradora do Assentamento Arizona, em São Miguel do Gostoso

E m 2003, com apenas 16 anos de idade, Maria Katiana Barbosa da Silva conheceu o trabalho da AACC/RN; com vontade de acompanhar as

ações da instituição, ela passou a participar de capacitações e cumprir a agenda de proje-tos desenvolvidos para fortalecerem a juven-tude nas organizações e nos espaços comu-nitários, provocando ainda a capacitação em temáticas como: agroecologia, organização e gênero. A partir do momento em que passa a se integrar às discussões entre a juventude e as mulheres do assentamento, ela passa também a conhecer outros espaços e movi-mentos, tais como o FOPP (Fórum de Partici-pação Popular nas Políticas Públicas) e a Mar-cha Mundial das Mulheres - MMM. Envolvida pelas oportunidades de discutir temáticas que “tinham a ver” com a sua realidade, e o local em que vivia, ela foi conhecendo e cada vez mais participando. “Quando conheci a Marcha já comecei a me envolver, porque percebi que as temáticas e a proposta do movimento tinham a ver com a minha vida, e com a vida das outras mulheres que eu conhecia no assentamento”, diz Katiana. Batalhar contra as dificuldades enfrentadas pelas mulheres, e buscar a instrução e o esclare-cimento a partir da compreensão e do debate em torno de assuntos como: violência sexista e exploração trabalhista, só nutrem a importân-cia do fortalecimento e da identidade enquan-to mulher para Katiana, que passa a participar de várias atividades com o apoio da AACC/RN e das suas instituições parceiras. Integrada às mulheres do assenta-mento, e com ideias para colaborar com a organização, Katiana viu vários grupos de mulheres aparecerem no município em bus-ca de melhorias para suas vidas. “Os grupos de mulheres surgem e vão além do trabalho produtivo e das discussões das políticas públi-cas”, destaca a jovem. E é com esse ritmo, organização e poder de participação que as mulheres de São Miguel do Gostoso se tor-nam referencial para o território do Mato Grande. “Somos organizadas e cobramos as responsabilidades cabíveis aos poderes; nas discussões de saúde e educação somos referên-cia”, argumenta. Com pique para o engajamento e atuação nos espaços de decisões, Katiana é a Coordenadora de Jovens do Sindicato dos(as) Trabalhadores(as) Rurais do município, e uma das Coordenadoras do FOPP – já que o fórum

tem coordenações que costumam compar-tilhar as responsabilidades. Lidando ainda com pique e ritmo, Katiana acompanhou também o surgimento do “Batuk Feminista”, um grupo de jovens que toca batucada e faz o seu som a partir de instrumentos reciclados. Elas estão sempre animando e espalhando o batuque musical e político pelos eventos que acontecem na cidade. O que deveria ser somente uma ação de lazer, tornou-se uma atividade de reflexão. Em um curto período de luta pelas melhorias e qualidade de vida das mulheres e da juventude, Katiana é uma multiplica-dora e disseminadora das possibilidades de transformar para melhor a realidade local. Morando no assentamento Arizona desde 1998 com sua família, ela sabe reconhecer a importância da sociedade civil para decidir e resolver o que é o melhor. “Sei que todos esses esforços vêm transformando a minha vida e recebo essas influências porque acredito nisso”, assegura a garota que com firmeza diz querer estudar, para cada vez mais atuar e ser capaz de contribuir com a melhoria das comunidades, dos assenta-mentos e do município.

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ba”, diz Gonçalo, mais conhecido como Seu Dadá, de Reduto.

Espaço de aprendizagem e decisão

Todas as pessoas inseridas nesses projetos desenvolvidos pela AACC/RN, tam-bém fazem parte do Fórum de Participação Popular nas Políticas Públicas – FOPP. Esse espaço surgiu em 1999, a partir da necessi-dade da sociedade civil de se reunir e discu-tir melhorias para o município, visando rei-vindicar e controlar a aplicação das políticas públicas para o bem estar da população no âmbito municipal. O FOPP tem uma coordenação composta por seis pessoas da sociedade civil e se reúne uma vez por mês. Com o objetivo de afirmar a auto-nomia e o empoderamento dessas pessoas, a AACC/RN apoia esse espaço e recorre a ele para definir a execução de parte dos projetos aprovados para serem desen-volvidos no município. “Nesses dez anos de existência e resistência, conseguimos mais de dois milhões de reais para investimento no município. Isso é o que contamos, e em termos de atores locais e aprendizados é imensurável o que conseguimos”, diz João

Eudes Rodrigues, um dos coordenadores do FOPP. Reconhecido como um instrumen-to muito importante para a sociedade civil, a organização é visível no fórum a partir das discussões temáticas existentes e dos en-caminhamentos e decisões tomadas. “Reivin-dicamos o que é nosso por direito, e às vezes, chegamos a incomodar”, diz João Eudes. Com representação e diversidade, o FOPP é o espaço para definir quem deve se capacitar em determinadas temáticas, quais as datas que merecem ser comemoradas pela população, quem pode participar de intercâmbios e eventos. E assim, o investi-mento na participação vai cada vez mais se consolidando. “As mulheres do município são beneficiadas pelas discussões do FOPP, porque temos participação e conquistamos esse espaço”, diz Maria Katiana Barbosa, uma das coordenadoras do fórum.

Água transformada em cidadania

Executando o Programa 1 Milhão de Cisternas, desde 2001, a AACC/RN já cons- truiu em parceria com as famílias rurais de São Miguel do Gostoso 583 cisternas. O propósito é levar um pouco mais de cidadania para as famílias que não tinham

água de qualidade para beber e cozinhar os alimentos. O reservatório é capaz de arma-zenar 16 mil litros de água da chuva, e pode garantir água para as famílias do semiárido por uns seis meses durante o ano. Uma das etapas de execução do programa é justamente a definição das famí-lias a serem beneficiadas, pois critérios devem ser atendidos, e é justamente no FOPP, um espaço civil e democrático, que a população de São Miguel do Gostoso discute quem deve ser contemplado. “A gente só tomava água salgada, e com a cisterna mudou tudo”, fala a agricultora Maria Matias, da Agrovila Arizona.

Diversos produtos, cores e sabores

Também foi a partir do Fórum de Participação Popular nas Políticas Públi-cas que as discussões dos(as) agricultores e agricultoras foram convergindo para a necessidade de uma feira agroecológica na cidade. “Discutimos no FOPP a vontade de ter uma feira em separado da feira conven-cional, para mostrar e garantir às pessoas a qualidade dos nossos produtos”, fala a agri-cultora Maria Socorro. Conhecer a experiência de outras fei-ras que já existiam, e espaços que trabalhavam

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na perspectiva da economia solidária era o diferencial. “Fomos conhecer a experiência da Rede Xique Xique no Oeste Potiguar, e amadurecemos as discussões e a articulação em São Miguel do Gostoso”, resgata João Eudes Rodrigues. Fortalecer os princípios solidários na economia e na produção agro-ecológica foram coisas básicas para a cria-ção do Núcleo da Rede Xique Xique de São Miguel do Gostoso, a partir da experiência da feira que começou a dar certo e a mobili-zar cada vez mais as pessoas. “O lançamento da Feira Agro-ecológica e da Economia Solidária de São Miguel do Gostoso aconteceu no dia 28 de agosto de 2006, uma segunda-feira”, resgata João Eudes. O dia oficial da Feira é a segun-da-feira, em local específico, numa das ruas principais do município, com barracas pa-dronizadas e identificadas, e as pessoas tam-bém com roupas específicas para a feira. Lançada em 2006, porém com os grupos se reunindo há pelo menos um ano; a feira vem se consolidando e apresentando resultados de que é possível criar uma rela-ção de comércio confiável, ética e de res-peito entre os(as) produtores(as) e os(as) consumidores(as). “Somos organizados, pa-dronizados e as pessoas sentem essa diferença na feira”, resume João, um dos coordenadores do Núcleo da Rede Xique Xique de São Miguel do Gostoso. “A minha família consome os produtos, e costumo vender também tudo o que trago para a feira”, diz satisfeito o agricul-tor Damião Pedro, da comunidade de Tabua. O Núcleo local da Rede Xique Xique é formado por uma diversidade de grupos

que trabalham com a economia solidária e a agroecologia, e oferece uma gama de produtos que contempla: hortaliças, frutas, mel, doces, salgados, roupas e artesanato. Nem todos os grupos participam efetiva-mente da feira, pois alguns produtos não são comercializados com a mesma praticidade das frutas, por exemplo. Porém, o Núcleo é composto por todo o pessoal que está nos grupos e não se preocupa somente com os momentos de comercialização, porque a par-ticipação e integração do Núcleo envolvem a discussão e a formação em eventos e outras atividades que servem para a instrução das pessoas. Com a dinâmica de estarem sem-pre debatendo a respeito das fragilidades e avanços, as pessoas que integram o Núcleo costumam se reunir uma vez no mês para conversarem. “Nossa vida melhorou com a fei-ra porque não temos mais prejuízo com a produção, não temos mais a pessoa do atravessador”, reflete o agricultor Francisco Clemente, mais conhecido por Tiquinho e integrante da Coordenação da Rede Xique Xique. A integridade com que os produ-tores e produtoras trabalham e legitimam a feira, é algo notório porque os consumi-dores e consumidoras de São Miguel do Gostoso também reforçam e acreditam nessa relação e nos princípios democráti-cos e justos da economia solidária e da agroecologia. Um produto de qualidade e mais saudável, por não conter nenhum tipo de agrotóxico é motivo para cativar clientes. “Temos que incentivar a agricul-tura familiar com o produto sadio, e ainda

pensar na autoestima dessas pessoas que fazem cursos, trocam experiências e sabem que o que fazem é muito importante para muita gente”, diz Andrée-Anne Raboud, moradora de São Miguel do Gostoso, e consumidora dos produtos agroecológicos da feira. O Núcleo da Rede Xique Xique já está trabalhando pela certificação partici-pativa dos produtos agroecológicos dos grupos, e para isso vem desenvolvendo, com a colaboração dos consumidores e consumidoras, as etapas necessárias para alcançar a certificação. Com a opção por desenvolver a agricultura familiar baseada na agroecolo-gia e na economia solidária, os agricultores e as agricultoras do município de São Miguel do Gostoso vêm alimentando o sonho pos-sível, de que a soberania alimentar pode ser garantida. Ainda que os resultados alcança-dos até agora sejam um trajeto pequeno da longa estrada de trabalho e conscientização a ser percorrida, o caminho é traçado com alegria e sorrisos. Para desenvolver os programas e projetos institucionais ao longo desses anos, a AACC/RN tem contado com a parce-ria de várias instituições que apoiam a orga-nização social, as tecnologias de beneficia-mento, a economia solidária e a produção agroecológica. Dentre estas parcerias, estão: Fundação Konrad Adenauer, União Europeia, Agrônomos e Veterinários Sem Fronteiras, Fundação Genéve Tiers Monde, Sebrae, As-sociação do Programa 1 Milhão de Cisternas, Ministério do Desenvolvimento Agrário e o Ministério do Trabalho e Emprego.

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Monoculturas da MentePerspectivas da Biodiversidade e da BiotecnologiaAutor: Shiva, VandanaEditora: Global EditoraAssunto: Ciências Biológicas - EcologiaSinopse: De maneira séria e corajosa, Vandana Shiva tece suas críticas aos programas de biotecno-logia e de monoculturas impostos por grandes empresas ou cooperativas, �nanciadas principal-

mente por agências internacionais que destroem a biodiversidade e abafam milênios de saber da humanidade. Em 'Monoculturas da mente', com uma linguagem de fácil compreensão, a autora expõe seus argumentos a favor da proteção da biodiversidade e sobre as implicações da Biotecnologia e as consequências da predominância global do tipo de saber cientí�co do ocidente para a agricultura.

Geogra�a da FomeO Dilema Brasileiro - Pão ou Aço

Autor: Castro, Josué deEditora: Civilização BrasileiraAssunto: Geogra�a

Sinopse: Um ensaio sobre o fenômeno da fome generalizada, numa época em que esta se torna cada vez mais visível em tempos de globalização.

Josué de Castro foca seu estudo no continente americano, dando especial atenção à fome no Brasil.

Comida e SociedadeUma História da AlimentaçãoAutor: Carneiro, HenriqueEditora: CampusAssunto: Culinária-Gastronomia

Sinopse: A alimentação é, após a respiração e a ingestão de água, a mais básica das necessidades humanas. Mas como 'não só de pão vive o homem', a alimentação, além de uma necessidade biológica, é um complexo sistema simbólico de signi�cados

sociais, sexuais, políticos, religiosos, éticos, estéticos etc. 'Comida e Sociedade - Uma História da Alimentação' abrange, portanto, mais do que a história dos alimentos, de sua produção, distribuição, preparo e consumo. O que se come é tão importante quanto quando se come, onde se come, como se come e com quem se come. As mudanças dos hábitos alimentares e dos contextos que cercam tais hábitos é um tema intrincado que envolve a correlação de inúmeros fatores.

Slow Food - Princípios da Nova GastronomiaAutor: Petrini, CarloEditora: SENAC São PauloAssunto: Culinária-GastronomiaSinopse: 'Slow Food' preconiza uma nova gastro-nomia. Ao gastrônomo cabe o papel que Carlos Petrini denomina 'coprodutor' - alguém conhece-dor da agricultura e pecuária; das condições dos

trabalhadores do campo; da procedência dos produto. Ser uma pessoa ativa na mudança do planeta - rejeitar alimentos provenientes de exploração humana, de meios de transporte poluidores em excesso, de empresas que arruínam culturas locais ao se instalarem nas comunidades. Tudo isso para que um mundo mais justo e sustentável se torne realidade.

O Mundo Segundo a MonsantoAutor: Robin, Marie-MoniqueEditora: Radical LivrosAssunto: Ciências Biológicas - EcologiaSinopse: 'O mundo segundo a Monsanto' apresenta os perigos do crescimento das planta-ções de transgênicos, e a verdade escondida por trás da empresa que tem 90% das sementes OGMs

patenteadas e apresenta-se como uma 'empresa agrícola'. Essa hegemonia coloca a multinacional norte-americana no centro do debate sobre os benefícios e os riscos do uso de grãos geneticamente modi�cados.

Sinopse: 'História da alimentação no Brasil' chama a atenção dos estudiosos pela sua ideia, conteúdo e pela apresentação dos temas. A obra dá oportuni-dade a todos os interessados e curiosos em

culinária de conhecer o que se comeu e bebeu no Brasil, sob a in�uência de várias etnias, principalmente a portuguesa, a indígena e a africana. Luís da Câmara Cascudo pesquisou e selecionou os antigos costumes universais comparando-os com o do Brasil, bem como a fabricação de objetos de uso no preparo da alimentação e até a padronização de horários de refeições, suas superstições e crendices.

História da Alimentação no BrasilAutor: Cascudo, Luís da CâmaraEditora: Global EditoraAssunto: Ciências Sociais - Antropologia

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Articulação Nacional da Agroecologia – ANA www.agroecologia.org.br A Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) reúne movimentos, redes e organizações engajadas em experiências concre-tas de promoção da agroecologia, de fortalecimento da produção familiar e de construção de alternativas sustentáveis de desenvolvimento rural.

Rede Pardal www.redepardal.org.br Constituída em 1999, a Rede Programa de Assessoria Rural para o Desenvolvimento e a Autonomia do Local, conhecida por Rede Pardal, no Rio Grande do Norte, surgiu da necessidade de uma ação mais integrada e articulada entre nove instituições, que assessoram áreas de assentamentos e comunidades rurais no estado, que possuem e, rea�rmam até hoje, a�nidades políticas e institucionais, a saber: AACC/RN, Centro Padre Pedro, Centro Terra Viva, Centro Proelo, Ceacru, Coopervida, Techne, CPT e Sertão Verde.

Rede Ecovida de Agroecologia www.ecovida.org.br Agricultores familiares, técnicos e consumidores reunidos em associações, cooperativas e grupos informais que, juntamente com pequenas agroindústrias, comerciantes ecológicos e pessoas compro-metidas com o desenvolvimento da agroecologia, organizados em torno da Rede Ecovida com o objetivo de desenvolver e multiplicar as iniciativas em agroecologia; estimular o trabalho associativo na produção e no consumo de produtos ecológicos; articular e disponibilizar informações entre as organiza-ções e pessoas; aproximar, de forma solidária, agricultores e consumidores; estimular o intercâmbio, o resgate e a valorização do saber popular.

Semeando Agroecologia O vídeo Semeando Agroecologia é uma síntese das experiências agroecológicas vivenciadas por diversos grupos produtivos espalhados por assentamentos e comunidades rurais do Rio Grande do Norte e assessora-dos pela Rede Pardal nesses seus 10 anos de existência. É possível ousar dizer que toda essa dinâmica de produção, respeitando a natureza e buscando uma relação direta com quem consome, alimentado pelo espírito da agroecologia e da economia solidária, signi�ca a construção social de uma nova agricultura.

Fazendo a AgroecologiaO DVD “Fazendo a Agroecologia” apresenta as experiências desenvolvi-das através da agreocologia e da economia solidária narradas em seus espaços naturais, o que ajuda a perceber a importância dessas ações e a possibilidade das trocas e de uma qualidade de vida para as pessoas. Trabalho com a agricultura familiar com mais responsabilidade, ética e compromisso com o meio ambiente e as relações sociais é o que vem sendo feito e pode ser acompanhado nesse vídeo executado pela Rede Pardal que teve ainda o apoio do MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário, através da Secretaria de Agricultura Familiar.

Cartilha Fazendo aAgroecologiaAutor: AACC/RN

Sinopse: A Cartilha “Fazendo a Agroecologia - Construindo processos de transição agroeco- lógica” tem por objetivo discutir o tema da agroecologia a partir da compreensão dos agricultores e das agricultoras envolvidas em processos de transição agroecológica. A cartilha foi produzida pela Rede Pardal, e contou com o apoio da Secretaria da Agricultura Familiar do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA/SAF) e do Conselho Nacional de Desen-volvimento Cientí�co e Tecnológico (CNPq).

Soberania Alimentar

Sinopse: Esta cartilha visa apresentar a Soberania Alimentar. Bandeira de luta da Via Campesina, a Sobera-nia Alimentar propõe o direito dos povos, países e Estado de definir suas políticas agrícolas e alimentares, assim como de proteger sua produção e cultura no âmbito da alimentação. Isso significa que o povo deve ter o direito de decidir o que comer e como produzir. As prioridades se tornariam, portanto, a produção local de alimentos e o acesso à água, aos recursos naturais, à terra e às sementes. Acessível no site:www.sof.org.br/arquivos/pdf/portugues_completo.pdf

Autores: Anamuri - Associação Nacional de Mulheres Rurais Indígenas (Chile), Redes/Amigos da Terra - Programa Uruguai Sustentável (Uruguai), SOF -Sempreviva Organização Feminista (Brasil), Programa Cone Sul Sustentável.

Uma resposta às mudanças climáticasAgroecologia

Sinopse: Este caderno pretende contribuir para o debate no contexto político desse direito humano básico para que se cumpram os outros direitos da Declaração das Organizações Unidas e dos Objetivos do Milênio, entre as quais se destaca o combate à fome no mundo, que passa pelos hábitos alimentares de cada um e cada uma. Acessível no site:www.agroecologia.inf.br/biblioteca/Cartilha%2003.pdf

Autor: Projeto Agricultura Familiar, Agroecologia e Mercado / Desenvolvimento Sustentável da Agricultura Familiar no Nordeste

Garantindo a Segurança Alimentar

Outras Publicações

Brasil - Transição para o verde O DVD “Brasil: Transição para o verde e os desa�os dos combustíveis” tem o objetivo de discutir o tema da Agricultura familiar e dos biocombustíveis – conside-rando riscos e oportunidades. A gravação aconteceu no estado do Rio Grande do Norte, e foi elaborado de maneira participativa, simples e objetiva. O DVD serve como um suporte para provocar a re�exão e o debate sobre o tema, a partir da apresentação da complexidade da situação no RN. As várias realidades agrícolas do RN são mostradas, a partir de imagens e depoimentos de pessoas das regiões Oeste e do Mato Grande. Produção da AACC e da Agrônomos e Veterinários Sem Fronteiras.

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A agricultura familiar alimenta o Brasil

Há alguns anos, ao assistir uma palestra da professora Nazaré Wanderley, naquela ocasião pro-fessora da UFRPE, ampliei con-

sideravelmente minha compreensão sobre a agricultura familiar e o sentido da reforma agrária no Brasil. Na ocasião, a professora re-latava sobre uma pesquisa que realizou sobre assentamentos rurais e o viver neles. Uma de suas conclusões foi que para a maior parte das famílias o estar vivendo no meio rural, numa área de assentamento e o fato de serem agri-cultores e agricultoras familiares, significa “ter onde viver e o que comer”. Este é o sentido inicial, apenas uma centelha, mas que toma dimensões gigantescas quando analisada em nível de país. Não se está falando somente de conquistar casa e comida. Tal afirmação pos-sui, na verdade, uma relação direta sobre a so-berania alimentar e econômica da agricultura familiar, pois os resultados deste “viver e ter o que comer” produzem resultados diretos no desenvolvimento do país. Por décadas, no Brasil, a imagem que se faz da agricultura familiar é a de que ela é atrasada, não possui nem desenvolve tecnologia nos seus processos de produção, não nos serve. Porém, os dados do Censo Agropecuário 2006 vêm contrariando isso, mostrando que a agricultura familiar ocupa outra posição. Os números do IBGE mostram que a agricultura familiar é mais produtiva, gera mais emprego e renda, produz a maior parte da cesta básica no país, ou seja, a agricultura familiar alimenta o país. Podemos avançar mais um pouco afirmando também que ela é mais saudável, pois consegue, quando as condições lhe são dadas, produzir um produto agroecológico, coisa que o grande latifúndio nunca poderia proporcionar. O resultado do Censo Agropecuário 2006 vem nos confirmar que viver no meio rural significa efetivamente contribuir com o desenvolvimento do país. A agricultura fa-miliar consegue empregar 75% da mão-de-obra da agricultura quando o latifúndio ocupa uma área três vezes maior e emprega menos (apenas 25 % da mão-de-obra). Apesar disso, a agricultura familiar ainda responde por 38% do valor total da produção, sendo cerca de 75% destes referentes a produção da cesta básica dos brasileiros/as. É responsável ainda por 87% da produção nacional de mandioca, 70% da produção de feijão, 46% do milho, 38% do café,

Por Emerson Cenzi

Artigo

34% do arroz, 58% do leite , 59% do plantel de suínos, 50% das aves, 30% dos bovinos e, ainda, 21% do trigo. O valor médio da produção anual da agricultura familiar foi de quase R$ 14 mil. Isso significa soberania e segurança alimentar não apenas para a agricultura familiar, mas para as cidades também, pois a maior parte desta produção é consumida nas cidades. Apoiar efetivamente a agricultura fa-miliar é enfrentar duas grandes batalhas, uma é a luta por políticas de Estado, que cada vez mais percebam e incorporem as necessidades efetivas de se subsidiar os agricultores e agri-cultoras familiares como forma de distribuir renda e proporcionar soberania alimentar. A outra, que se relaciona com a primeira, é trabalhar para que a sociedade em geral re-conheça e apóie a agricultura familiar pois ela é a responsável por alimentar o país. Nesta

Emerson Cenzi é graduado em Tecnologia de Cooperativismo (UFRN) com mestrado em Ciências Sociais (UFRN)

“Os números do IBGE mostram que a agricultura familiar é mais produtiva,

gera mais emprego e renda, produz a maior parte da cesta básica no país, ou

seja, a agricultura familiar alimenta o país”

perspectiva, a mídia tem um papel fundamen-tal a desempenhar no sentido de valorizar as iniciativas desenvolvidas pelos agricultores e agricultoras familiares, muitas vezes unidos em pequenas associações ou até em grupos informais de produção, organizando-se em ex-periências de economia solidária, estabelecendo relações de trabalho e produção a partir de uma perspectiva de respeito aos homens e mulheres que ali vivem. Experiências que, geralmente, se desenvolvem nos quintais, sob os cuidados atentos do núcleo familiar, principalmente das mulheres e em sintonia com o meio ambiente, respeitando os limites da natureza. O censo vem, portanto, afirmar que nossa luta pela consolidação de políticas para agricultura familiar como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), as iniciativas de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) de Assistência Técnica, Social e Ambiental à Reforma Agrária (ATES), bem como também pelo convencimento da socie-dade civil, para que seja mais aberta e com-preenda a importância da agricultura familiar, se colocam como fundamentais para a sobera-nia alimentar não só da agricultura familiar, mas de todos os brasileiros e brasileiras.

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A consciência busca, brandamente,Acordar o beija-flor que invade o amanhecer...

Despertar um sonho divino, encantador,Na esperança da soberana caatinga sobreviver.

Precisamos erguer o ramo da civilidade na campinaPara combater a desertificação que abate o juremal...

A fumaça da olaria que tisna as nuvens do entardecer,Alegra o forno do egoísmo com flores de funeral.

Por que será que o semi-árido é degredado?O homem selvagem não tem sensibilidade

De passarinho, não voa pelas copas da alegriaNem pensa na felicidade da floresta.

Floresta que oferta o vinho à vidaNo orvalho que adoça o cálice da flor,

Onde o beija-flor degusta a natureza divina.

CÁLICE DA NATUREZA

A poesia “Cálice da Natureza” é de autoria do poeta potiguar, Janduhi Medeiros, e está no livro “Mensageiro das Oiticicas”, de 2007