soberania alimentar e campesinato: alguns … · permanência das relações feudais: compreendendo...

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7º Encontro Anual da ANDHEP - Direitos Humanos, Democracia e Diversidade 23 a 26 de maio de 2012, UFPR, Curitiba (PR) Grupo de Trabalho 07 - Movimentos Sociais, Acesso à Terra e Ruralidades SOBERANIA ALIMENTAR E CAMPESINATO: ALGUNS APONTAMENTOS Aline Barboza de Lima Professora da Universidade Federal de Campina Grande - UFCG Unidade Acadêmica de Geografia UAG Centro de Humanidades - CH Endereço Eletrônico: [email protected]

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Page 1: SOBERANIA ALIMENTAR E CAMPESINATO: ALGUNS … · permanência das relações feudais: compreendendo a existência dos camponeses e dos latifúndios como permanência de relações

7º Encontro Anual da ANDHEP - Direitos Humanos, Democracia e Diversidade 23 a 26 de maio de 2012, UFPR, Curitiba (PR)

Grupo de Trabalho 07 - Movimentos Sociais, Acesso à Terra e Ruralidades

SOBERANIA ALIMENTAR E CAMPESINATO: ALGUNS APONTAMENTOS

Aline Barboza de Lima

Professora da Universidade Federal de Campina Grande - UFCG Unidade Acadêmica de Geografia – UAG

Centro de Humanidades - CH Endereço Eletrônico: [email protected]

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INTRODUÇÃO:

O presente trabalho versa sobre a busca camponesa pela soberania alimentar

através da Agroecologia no estado da Paraíba. As práticas agroecológicas analisadas neste

trabalho referem-se às ações desenvolvidas por um grupo de camponeses e camponesas

que desenvolve o projeto da Feira Agroecológica Paraibana, projeto de comercialização

direta de alimentos cultivados sem o uso de agrotóxico em feiras livres das cidades.

O projeto iniciou-se em 2001, quando um grupo de camponeses, em sua maioria

advindos de assentamentos de Reforma Agrária, buscou apoio para iniciar uma produção de

base sustentável. Apesar de não conseguirem um apoio governamental, o grupo contou

com auxilio da Comissão Pastoral da Terra - CPT, e outras instituições que se somaram ao

movimento, conforme seu crescimento, tanto em número de camponeses, quanto em

extensão territorial.

Nesses mais de dez anos de existência da Feira Agroecológica o movimento que

começou na mesorregião da Mata, expandiu-se para a mesorregião Agreste e chegou ao

Alto Sertão Paraibano. Mesmo com suas peculiaridades regionais, esses grupos são ligados

pelo projeto da Agroecologia e reúnem-se periodicamente para discutir seus avanços e

desafios.

Como suporte teórico para compreensão da agroecologia, analisamos diferentes

autores que tratam dessa questão, dentre eles, destacamos Altieri (2004), Primavesi (1997)

Gúzman (2001), Fornari (2002), Howard (2007), Lima (2008), Carvalho (2007), dentre

outros. Apesar dos diferentes enfoques e abordagens, esses autores contribuíram para as

discussões apresentadas neste trabalho. Em relação ao conceito de camponês,

corroboramos as ideias de Martins (1986), Oliveira (1990), Rodrigues (1994), Moura (1986),

Almeida (2006), Wanderley (1996), sobre a compreensão do significado dos camponeses no

Brasil, considerando sua importância social e seu papel político. No tocante a discussão

teórica sobre soberania alimentar e segurança alimentar e nutricional, partimos das

discussões apresentadas por Castro (2003), e recorremos ainda à análise de Legislações e

Relatórios Oficiais sobre Segurança Alimentar e Nutricional.

Os dados secundários fornecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística -

IBGE foram utilizados para a elaboração gráfica das informações sobre concentração

fundiária, produção agrícola e indicadores de segurança alimentar e nutricional,

respectivamente pelo Censo Agropecuário (2006) e pela Pesquisa Nacional por Amostra de

Domicílio - PNAD (2004).

Os dados primários que subsidiaram as considerações teóricas neste artigo

correspondem a trabalhos de campo realizados em áreas de produção agroecológica do

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estado da Paraíba. As áreas estudadas foram: Assentamento Apasa, no município de

Pitimbu, Assentamento Padre Gino e Assentamento Rainha dos Anjos, no município de

Sapé, Sítio Ribeiro, no município de Alagoa Nova, Sítio Carrasco, no município de Alagoa

Nova, sítio Almeida, no município de Lagoa Seca e Assentamento Acauã, no município de

Aparecida. Esses trabalhos de campo se deram em momentos de atividades de pesquisa e

de extensão universitária, através de atividades desenvolvidas na Universidade Federal da

Paraíba - UFPB e na Universidade Federal de Campina Grande – UFCG.

O artigo está estruturado em três tópicos. No primeiro tópico discutimos de forma

breve a classe camponesa e seu papel político, a concentração fundiária na Paraíba e as

conseqüências dessa concentração para os camponeses. No segundo tópico apresentamos

indicadores sobre Segurança Alimentar no estado da Paraíba, os avanços na legislação

brasileira e os desafios a serem superados. No terceiro tópico, discutimos o papel da

agroecologia para a busca da soberania alimentar, considerando as características locais.

A intenção deste artigo é trazer alguns apontamentos sobre os temas, indicadores e

problemáticas que permeiam as discussões dos limites e possibilidades da Agroecologia. A

relação entre o acesso camponês à terra e seu conseqüente projeto de soberania alimentar

apontam possibilidades de construção de modelos agrícolas diferenciados, ao mesmo

tempo que indicam contradições, desafios e entraves.

Nesse sentido, apontamos alguns elementos que necessitam de ampla discussão e

investigação, no tocante a temática do acesso a terra, da Segurança Alimentar e Nutricional,

bem como das ações voltadas a alcançar uma efetiva Soberania Alimentar.

I. Terra e campesinato: processos de resistência e recriação

Compreender a classe camponesa e sua permanência tem se constituído ao longo

da história num desafio de interpretação teórica da realidade social que se torna mais

complexa à medida que avançam as relações capitalistas de produção. Nesse contexto, a

busca pela soberania alimentar na atualidade traduz-se de significados que apontam sob

que bases parte dos camponeses têm buscado permanecer na terra.

A relação dos camponeses com a terra é um elemento de fundamental importância

na compreensão desses sujeitos sociais, bem como o surgimento das relações capitalistas

de produção que redefiniram o lugar social dessa classe.

A partir do surgimento das relações capitalistas de produção na Europa as relações

de trabalho baseadas no regime de servidão transmutam-se em diferentes formas, via de

regra, subordinando a produção camponesa ao capital. A subordinação camponesa vai

ocorrer, sobretudo, pelo significado que a terra passa a ter nesse novo contexto social.

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Nesse sentido, diferentes abordagens teóricas buscaram desvelar como esses

sujeitos sociais poderiam ser compreendidos na conjuntura dos avanços das relações

capitalistas de produção. Dentre essas abordagens, podemos citar a destruição dos

camponeses e a modernização do latifúndio: os primeiros estariam fadados a extinção pela

incapacidade de resistir ao avanço do capitalismo, e o segundo deixaria de existir pelo

desenvolvimento do processo de modernização, transformado em empresa rural; a

permanência das relações feudais: compreendendo a existência dos camponeses e dos

latifúndios como permanência de relações feudais de produção; A criação e recriação do

campesinato: compreendendo que o próprio capital cria e recria relações não-capitalistas de

produção, permanecendo então o camponês e o latifúndio. (OLIVEIRA, 1990)

Compreendemos a existência dos camponeses a partir da teoria da criação e

recriação do campesinato, ou seja, da teoria que aponta a existência desses camponeses

dentro do modo capitalista de produção. Concordamos com Oliveira (1990, p. 67), que:

[...] o caminho para entendermos essa presença significativa de camponeses na agricultura dos países capitalistas é pela via de que tais relações não-capitalistas são produto do próprio desenvolvimento contraditório do capital. A expansão do modo capitalista de produção, além de redefinir antigas relações, subordinando-as à sua produção, engendra relações não-capitalistas igual e contraditoriamente necessárias à sua reprodução.

Assim, a existência desses camponeses nos dias atuais torna-se possível à medida

que na ampliação do capital há a incorporação de comunidades e formas de trabalho que

não são tipicamente capitalistas. No caso dos camponeses, o fato de terem na terra o seu

modo de produção, além da permanência de relações de trabalho não assalariadas,

caracterizam suas relações de trabalho como não capitalistas. Apesar das relações não

capitalistas de produção, esses sujeitos sociais estão integrados ao sistema capitalista de

produção, a partir da sujeição da renda da terra ao capital. Nos dizeres de Oliveira (1990, p.

67):

O capital redefiniu a renda pré-capitalista existente na agricultura; ele agora apropria-se dela, transformando-a em renda capitalizada da terra. É nesse contexto que devemos entender a produção camponesa: a renda camponesa é apropriada pelo capital monopolista, convertendo-se em capital.

Esse processo de subordinação camponesa pelo capital não ocorreu, nem ocorre, de

forma pacífica, são numerosos os registros de resistência camponesa, insurgidos sob

diferentes formas: religiosas, pré-políticas, políticas, e comumente travestidas em lutas

populares. Essas lutas nem sempre são associados aos camponeses, por vezes

interpretadas como eventos pontuais dissociados e sem relevância histórica. Sobre essa

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questão, Martins (1986, p.26) aponta que “A história brasileira, mesmo aquela cultivada por

alguns setores da Igreja, é uma história urbana, uma história dos que mandam e

particularmente, uma história dos que participam do pacto político.”

Dessa forma, a luta camponesa pela terra, ou para nela permanecer, comumente foi

ocultada pelo sentido diverso que a ela foi dada. No Brasil, os movimentos messiânicos, o

banditismo social e as ligas camponesas exemplificam essa realidade. (MARTINS, 1986)

O camponês no Brasil difere do camponês europeu principalmente na sua relação

com a terra, pois enquanto na Europa o camponês é expropriado da terra a partir do avanço

do capitalismo no campo e da intensificação da industrialização e urbanização, no Brasil o

camponês já integra a estrutura social como expropriado, desde o início do processo

colonizador. Conforme aponta Almeida (2006, p.103) “Destarte, nasce o nosso campesinato,

homens expropriados, sem vínculos diretos com a produção para o mercado, à margem do

sistema colonial”.

Esse sujeito social apareceu nas diferentes regiões brasileiras sob diferentes

designações, foi chamado de caipira, roceiro, rústico, tabaréu, bronco, caboclo, matuto, jeca,

dentre outros. Nomes que expressam regionalidades e modos de vida, mas que também

denotam preconceitos e segregações sociais. Os camponeses não eram escravos, nem

índios inicialmente, não pertenciam a classe burguesa, nem faziam parte dos latifundiários e

não receberam Capitanias Hereditárias. As origens sociais do campesinato tradicional estão

ligadas a população denominada bastarda, ou seja, mestiços de brancos e índios excluídos

da herança e “dos excluídos e empobrecidos pelo morgadio, regime que tornava o

primogênito herdeiro legal dos bens de um fazendeiro”. (MARTINS, 1986, p.32)

Nesse sentido, o camponês no Brasil não foi reconhecido como dono da terra, sendo

reconhecido como morador, agregado, parceiro, posseiro, meeiro, foreiro, arrendatário,

dentre outras formas que o camponês se submeteu para ter acesso a terra. Essas relações

forjadas no início do processo colonizador permanecem praticamente inalteradas até os dias

de hoje, balizadas pela inexistência de uma Reforma Agrária conseqüente e pelo aumento

da renda da terra.

Os dados do Censo Agropecuário 2006 revelam a atualidade das problemáticas

referentes à chamada Questão Agrária. Na Paraíba a estrutura fundiária permanece

concentrada, conforme observamos na tabela 1.

Grupos de área total (ha)

Imóveis % dos imóveis

área total (ha)

% de área

área média (há)

Menos de 10 110.928 66,32 317.383,46 8,39 2,9

De 10 a -20 19.329 11,56 256.100,84 6,77 13,2

De 20 a -50 16.037 9,59 480.425,51 12,7 30,0

De 50 a -100 6.506 3,89 438.435,56 11,59 67,4

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De 100 a -200 3.675 2,20 491.017,56 12,98 133,6

De 200 a -500 2.505 1,50 737.661,21 19,5 294,5

De 500 a –1.000 723 0,43 471.346,60 12,46 651,9

De 1.000 a –2.500 286 0,17 399.093,63 10,55 1.395,4

De 2.500 e mais 43 0,03 191.413,63 5,06 4.451,5

Produtor sem área 7.240 4,33 0,00 0 0,0

Total 167.272 100,00% 3.782.878 100,00% - Tabela 1. Estrutura Fundiária do Estado da Paraíba – 2006. Fonte: Censo Agropecuário – IBGE – 2006. Organização: Aline Barboza de Lima.

A análise da tabela 1 revela que os imóveis com menos de 10 ha representam

66,32% do total, contudo, ocupam apenas 8,39% da área agrícola, enquanto os imóveis

rurais acima de 100 ha são apenas 8,66% dos imóveis rurais e concentram 65,55% da área

total. Em outras palavras, enquanto 110.928 imóveis pertencentes a agricultores familiares

precisam dividir apenas 8,89% de toda a terra agrícola na Paraíba, 7.232 imóveis

concentram mais da metade dessa terra. Além disso, investigações mais aprofundadas irão

revelar que desses 7.232 imóveis, não raramente pertencem ao mesmo proprietário ou a

mesma família.

A concentração de terras no Brasil é um problema secular, mas que não pode ser

explicado apenas considerando o processo colonizador estruturado em bases monopolistas.

A inexistência de uma Reforma Agrária e a perpetuação do monopólio da terra deve ser

percebido através dos diferentes marcos da história agrária do Brasil e do hibridismo da

classe burguesa com a classe latifundiária, empenhada em manter a desigual distribuição

de terras.

Na Paraíba a luta camponesa pela terra esteve presente ao longo do processo de

formação territorial do estado. As chamadas Ligas Camponesas são consideradas por

vários estudiosos um momento singular dessa luta, ocorrida entre fins de década de 1950 e

início da década de 1960 em todo o Brasil, mas com maior repercussão nos estados da

Paraíba e de Pernambuco. No dia 2 de abril do corrente ano foi inaugurado o Memorial das

Ligas Camponesas, na comunidade rural Barra das Antas, local onde morou João Pedro

Teixeira, líder das Ligas Camponesas no estado da Paraíba, assassinado pelo chamado

Grupo da Várzea.1

A luta das Ligas Camponesas foi abafada pelo golpe de 1964, que impossibilitou o

avanço das mobilizações e adiou a realização da Reforma Agrária. Nos fins da década de

1980, com a abertura do Regime Militar, novamente os camponeses começam a se

organizar sob a bandeira do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra – MST, iniciando um

intenso processo de luta pela terra. Na Paraíba essa luta ocorreu também com o apoio da

1 O Memorial das Ligas Camponesas da Paraíba foi criada em 2008, por vários setores da sociedade civil

organizada, CPT, universidades, movimentos sociais e organizações não governamentais, com o objetivo de manter o legado das Ligas Camponesas e da luta pela Reforma Agrária.

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Comissão Pastoral da Terra – CPT, entidade responsável por apoiar centenas de

camponeses em todo estado. Assim, a CPT e o MST foram as duas entidades que mais

apoiaram a luta pela terra no estado.

De acordo com dados dos projetos de assentamento do INCRA, no estado da

Paraíba atualmente existem 287 assentamentos rurais, distribuídos em uma área de

272.077 ha, para um número estimado de 14.384 famílias. Os dados da relação de

beneficiários do INCRA, em geral mais atualizados, indicam 289 assentamentos rurais e

20.033 famílias, dado que tende a aumentar se considerarmos o número de famílias

agregadas nos assentamentos rurais e que não estão oficialmente cadastradas.

Esses assentamentos rurais, fruto da luta e resistência camponesa, abrigam

numerosa quantidade de camponeses, que junto às pequenas propriedades são

responsáveis pela maior quantidade de produção de alimentos no estado. Essa realidade

contraria a lógica de que as grandes propriedades são responsáveis pela maior produção

agrícola no país. De acordo com Oliveira (2003, p.118):

Os dados do IBGE referentes ao último Censo Agropecuário (1995/6), mostram que são as pequenas unidades quem produzem a grande maioria dos produtos do campo. Esta realidade precisa ser esclarecida, pois há o mito de que quem produz no campo são as grandes propriedades.

Os estudos desenvolvidos por Oliveira (2003) demonstram que além das pequenas

propriedades serem responsáveis pela maior quantidade de produção de alimentos, também

são responsáveis pela maior geração de renda, desmoronando mais um mito que associa

as grandes propriedades a alta produtividade e lucratividade.

Analisando essa questão no estado da Paraíba a partir dos dados do Censo

Agropecuário 2006, podemos observar que esse quadro permanece inalterado, ou seja, as

pequenas unidades agrícolas concentram as atividades agrícolas, desde lavouras

temporárias e permanentes, até a produção de hortaliças e flores, conforme podemos

analisar no gráfico 1.

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Gráfico 1: Produção agrícola no estado da Paraíba por quantidade de unidade, tamanho e tipo de uso. Fonte: Censo Agropecuário 2006 (IBGE). Organização: Aline Barboza de Lima.

As atividades pecuárias e de criação de outros animais na Paraíba também se

concentram nas pequenas propriedades, onde, de acordo com os dados do Censo

Agropecuário 2006 das 71.928 unidades agrícolas que possuem atividade pecuária ou de

outro tipo de criação de animais, 41.335 unidades tem menos de 10 ha.

Dessa forma, através dos dados oficiais constatamos que as pequenas unidades

agrícolas são responsáveis pela produção de alimentos que abastece a população, mas que

possuem uma quantidade de terras muito pequena, em comparação com as grandes

propriedades, denotando uma situação de grave injustiça social de acesso à terra, que

acarreta uma enorme desigualdade social.

A existência da classe camponesa demonstra que mesmo com um acesso precário

as condições de produção, eles continuaram produzindo alimentos e persistiram em

permanecer na terra, criando com ela uma relação perpétua, mesmo como expropriados,

moradores, agregados, meeiros, dentre outras condições de produção em relação à terra.

Essa característica do campesinato brasileiro indica a relevância de compreender como

essa classe tem se organizado em torno da busca pela soberania alimentar, e também

porque protagoniza os inúmeros movimentos e manifestações sob essa temática.

0

10.000

20.000

30.000

40.000

50.000

60.000

até 10 de 10 a 100 de 100 a 2500 mais de 2500

52.926

12.729

1.588 14

7.082

1.613 180 5

6.975

619 62 0

Qu

anti

dad

e d

e u

nid

ade

s p

rod

uto

ras

Tamanho das unidades por hectare (ha)

Produção nas unidades agrícolas no estado da Paraíba - 2006

Lavouras Temporárias Lavouras Permanentes Horticultura e floricultura

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II – A segurança alimentar e nutricional no Brasil: legislação e indicadores

No ano de 2006, durante o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi criado

o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), através da Lei N°11.346

de 15 de setembro de 2006, em consonância com o artigo 6º da Constituição Federal, onde

são considerados direitos sociais: “a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a

moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a

assistência aos desamparados." (grifo nosso, EC n.64/ 24 fev. 2010). No Brasil, o direito a

alimentação foi reconhecido recentemente, em 4 de fevereiro de 2010, 22 anos após a

publicação da nossa Carta Magna de 1988.

De acordo com o SISAN (2006), a segurança alimentar e nutricional consiste na

realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos, qualitativamente

e quantitativamente suficientes. Para tanto, deve-se respeitar as diversidades culturais,

ambientais, econômicas, efetivadas de forma sustentável. De acordo com essa legislação, a

segurança alimentar e nutricional abrange:

I – a ampliação das condições de acesso aos alimentos por meio da produção, em especial da agricultura tradicional e familiar, do processamento, da industrialização, da comercialização, incluindo-se os acordos internacionais, do abastecimento e da distribuição dos alimentos, incluindo-se a água, bem como da geração de emprego e da redistribuição da renda; II – a conservação da biodiversidade e a utilização sustentável dos recursos; III – a promoção da saúde, da nutrição e da alimentação da população, incluindo-se grupos populacionais específicos e populações em situação de vulnerabilidade social; IV – a garantia da qualidade biológica, sanitária, nutricional e tecnológica dos alimentos, bem como seu aproveitamento, estimulando práticas alimentares e estilos de vida saudáveis que respeitem a diversidade étnica e racial e cultural da população; V – a produção de conhecimento e o acesso à informação; e VI – a implementação de políticas públicas e estratégias sustentáveis e participativas de produção, comercialização e consumo de alimentos, respeitando-se as múltiplas características culturais do País.

O SISAN atende as diretrizes do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e

Nutricional (CONSEA) criado no ano de 2003 com o objetivo de zelar pelo direito humano a

alimentação adequada – DHAA e promover a articulação entre o governo e setores da

sociedade civil em prol da segurança alimentar e nutricional, dentre outras atribuições.

Analisando a abrangência do SISAN percebemos que os agricultores familiares e o

trabalho tradicional são destacados no âmbito da ampliação das condições de acesso aos

alimentos por meio da produção. O que coaduna com a importância da classe camponesa

na consecução da segurança alimentar e nutricional, visto que no Brasil, conforme

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discorremos, os pequenos produtores são responsáveis pelo abastecimento alimentar

interno da população.

Outro ponto a ser destacado é que a Segurança Alimentar e Nutricional não se refere

apenas ao acesso aos alimentos, mas ao acesso a alimentos que possuam qualidade e que

atendam as especificidades culturais e sejam produzidos de forma sustentável. Nesse

sentido, além da fome, são consideradas situações de insegurança alimentar a obesidade,

doenças associadas à má alimentação e consumo de alimentos de qualidade duvidosa ou

prejudicial à saúde. Os alimentos contaminados por agrotóxicos, portanto, também são

responsáveis por colocar a população em situação de insegurança alimentar. De acordo

com dados do CONSEA (2010, p.9):

O pacote tecnológico aplicado nas monoculturas em franca expansão levou o Brasil a ser o maior mercado de agrotóxicos do mundo. Entre as culturas que mais os utilizam estão a soja, o milho, a cana, o algodão e os citros. Entre 2000 e 2007, a importação de agrotóxicos aumentou 207%. O Brasil concentra 84% das vendas de agrotóxicos da América Latina e existem 107 empresas com permissão para utilizar insumos banidos em diversos países. Os registros das intoxicações aumentaram na mesma proporção em que cresceram as vendas dos pesticidas no período 1992-2000. Mais de 50% dos produtores rurais que manuseiam estes produtos apresentam algum sinal de intoxicação. (CONSEA, 2010, p.9)

De acordo com o mesmo relatório, os indicadores analisados, apesar dos avanços

que apresentam, ainda apontam lacunas preocupantes. Dentre elas, podemos destacar o

menor crescimento da área agrícola destinada a produção de alimentos para o mercado

interno em relação à área agrícola destinada a produção de monoculturas de exportação. O

uso crescente de agrotóxicos e transgênicos, fazendo do Brasil o maior consumidor de

agrotóxicos no mundo, e o segundo maior plantador de sementes transgênicas do mundo, o

crescimento da obesidade e o alto percentual de população em situação de insegurança

alimentar grave. (CONSEA, 2010)

As empresas produtoras dos chamados organismos geneticamente modificados

(OGMs) formam oligopólios com as empresas produtoras de agrotóxicos. Essa realidade

tem desencadeado uma situação alarmante no comércio de sementes, cuja produção tem

sido cada vez mais centralizada por esses oligopólios, subordinando não apenas os

camponeses, mas toda a sociedade.

Analisando os dados localmente, observamos que a Paraíba apresenta indicadores

pouco satisfatórios, conforme podemos observar no gráfico 2:

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Gráfico 2: Segurança alimentar no Brasil nos domicílios na Paraíba, no Nordeste e no Brasil em 2004. FONTE: Alimentação Adequada e Saudável: direito de todos – 2011. Organizado por: Aline Barboza de Lima, 2012.

Considerando os domicílios que estão dentro dos limites de segurança alimentar, a

Paraíba está abaixo da média nacional, pois enquanto no Brasil 65,05% dos domicílios

estão dentro dos limites de segurança alimentar, na Paraíba esse número cai para 46,70%,

ficando timidamente acima da média do Nordeste, onde apenas 46,40% dos domicílios

estão dentro desses limites. O Norte e Nordeste são as regiões que possuem maior parte

de população com algum risco de segurança alimentar, variando de leve a grave. De acordo

com o CONSEA (2010, p. 124):

As desigualdades regionais no Brasil, apontadas pelos indicadores sociais tradicionais, como por exemplo, renda e escolaridade aparecem da mesma forma na análise da segurança alimentar. Em 2004, as Regiões Norte e Nordeste apresentavam as piores condições familiares de acesso aos alimentos. Havia segurança alimentar em apenas 46% dos domicílios do Nordeste e 53% do acesso à alimentação adequada no Norte. A proporção de famílias do Nordeste com dificuldade grave de acesso aos alimentos (IAG) era 3,5 vezes superior à encontrada no Sul e 3,3 vezes a do Sudeste.

A Paraíba possui 15,10% de seus domicílios considerados com grave insegurança

alimentar. Esse indicador aponta para um significativo número de pessoas afetadas pela

fome, o que ressalta a importância das políticas publicadas destinadas a população desse

estado, bem como das reflexões teóricas que busquem compreender essa problemática e

apontar possíveis caminhos.

0,00%

10,00%

20,00%

30,00%

40,00%

50,00%

60,00%

70,00%

Domicílios com segurança alimentar

Domicílios com insegurança

alimentar leve

Domicílios com insegurança

alimentar moderada

Domicílios com insegurança

alimentar grave

46,70%

17,40%20,80%

15,10%

46,40%

19,50% 21,60%

12,40%

65,05%

16,06%12,34%

6,50%

%

Percentual de domicílios

Segurança Alimentar no Brasil nos domícios na Paraíba, no Nordeste e no Brasil- 2004

Paraíba

Nordeste

Brasil

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Cabe destacar que o relatório do CONSEA (2010) avalia que a concentração

fundiária agrava a situação de insegurança alimentar, pois além de ser o pequeno produtor

responsável pela maior produção de alimentos, as áreas rurais apresentam maior

concentração de insegurança alimentar que as áreas urbanas, demonstrando a real

necessidade e urgência de uma Política Nacional de Reforma Agrária.

Infelizmente no Brasil as desapropriações de terra têm ocorrido de forma lenta, sem

planejamento e em número muito inferior ao necessário, perpetuando a estrutura fundiária

concentrada nas mãos de uma elite que tem se beneficiado da renda capitalista da terra em

detrimento de numerosas famílias que convivem cotidianamente com a fome.

III. A Agroecologia e a busca dos camponeses pela Soberania Alimentar na Paraíba

A Agroecologia e a busca camponesa pela Soberania Alimentar na Paraíba devem

ser compreendidas a partir da realidade local, considerando as particularidades existentes

dos sujeitos sociais analisados, pois conforme discorremos anteriormente, a concentração

de terras e as relações de trabalho pautadas na subordinação camponesa no estado da

Paraíba geraram um quadro grave de acentuada pobreza e concentração de renda. Nesse

sentido, os camponeses na Paraíba estiveram privados de um acesso a terra que garantisse

uma vida digna as suas famílias.

A relação entre os camponeses e a terra foi pautada num contínuo quadro de

empobrecimento dessa população, que só garantiu o acesso à terra mediante a luta.

Historicamente, mesmo que não aparecesse de forma clara, comumente à questão da terra

esteve como pano de fundo ou centro dos conflitos, como na expulsão dos indígenas de

suas terras pelos colonizadores, nos topos de morros com seus escondidos quilombos, nas

revoltas sociais contra as imposições do governo, como à Revolta de Quebra-Quilos e como

nas Ligas Camponesas contra a grave situação de injustiça social vigente.

A sucessão de regimes ditatoriais no Brasil conteve a insurgência de vários desses

movimentos de luta, silenciando a população obrigada a manter latente as suas revoltas. A

abertura democrática em fins da década de 1980 trouxe a tona esse processo e se

materializou através da organização de movimentos sociais como o Movimento dos

Trabalhadores Sem Terra – MST.

Nesse período, inicia-se na Paraíba o processo de criação de assentamentos rurais

de Reforma Agrária, criados sob forte pressão, através da luta e resistência camponesa.

(LIMA, 2008). No final da década de 1970 são marcantes as ações dos movimentos negros

contra o racismo e em busca da igualdade de direitos para a população negra no estado,

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traduzidas em mais de vinte áreas identificadas como remanescentes de quilombos, que

atualmente reivindicam regularização fundiária. (MOREIRA, 2009)

O sentido de comunidade marcou esses processos, pois para alcançar uma vida

mais digna e menos desigual os camponeses tiveram que contar com a colaboração mútua,

num processo de valorização do coletivo e do bem comum. De acordo com Bauman (2003,

p.15) “O tipo de entendimento em que a comunidade se baseia precede todos os acordos e

desacordos. [...] É um sentimento recíproco e vinculante, a vontade real e própria daqueles

que se unem.”

A fase posterior de conquistas, por vezes, foi marcada por um momento de

esvaecimento da memória da luta e dos laços da comunidade, abatidos pela magnitude das

dificuldades erguidas, problemas de infra-estrutura, acesso a crédito, endividamento,

prejuízos na produção agrícola, dentre outros problemas que obstaculizaram a expectativa

gerada pós conquista da terra.

Algumas comunidades começaram a discutir e pensar saídas para solucionar essas

dificuldades, fazendo renascer o sentido de coletividade e de busca por projetos de vida que

garantissem às presentes e futuras gerações não apenas o acesso a terra, mas o acesso

pleno às condições de vida e existência.

É nesse sentido que a Agroecologia e a busca pela soberania alimentar convergem

para um movimento travestido de significados múltiplos relacionados à trajetória campesina

no estado. Em outros termos, a existência dos projetos de Agroecologia, na sua maioria,

está ligada a grupos que em algum momento de sua história de vida, estiveram privados do

acesso a terra.

As ações pautadas no projeto de Agroecologia no estado são recentes, datam do

ano 2001, quando surgem as Feiras Agroecológicas Paraibanas, organizadas por grupos

camponeses de vários assentamentos rurais com apoio da Comissão Pastoral da Terra.

Contudo, é preciso destacar que as práticas agroecológicas retomam saberes antigos da

relação homem-natureza, de uma agricultura praticada sem defensivos químicos, nem

maquinários, que foram introduzidos com maior intensidade a partir da década de 1970 e

causaram um grave processo de contaminação dos ecossistemas locais.

Camponeses que viram seus familiares morrerem em decorrência da contaminação

por agrotóxico, que observaram a morte das aves, das plantas e da biodiversidade que

circundava as plantações, buscaram realizar outras práticas agrícolas.

A escolha da Agroecologia como caminho para a conquista da soberania alimentar

aponta para o sentido social que a Agroecologia possui. Dessa forma, não se trata apenas

de produzir alimentos livres de agrotóxicos, mas de produzir alimentos que atendam

diferentes esferas da produção camponesa, de cunho social, político, econômico e

ecológico. Nesse sentido, a Agroecologia diferencia-se da Agricultura Orgânica, pois não

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está restrita a produção de alimentos livres de agrotóxicos, ligando-se a práticas da

economia solidária e ressignificando o sentido de soberania alimentar.

Atualmente a Agroecologia está presente em todas as mesorregiões do estado, com

várias unidades agrícolas produtoras e dezenas de Feiras Agroecológicas, reunindo numa

rede coletiva centenas de camponeses, oriundos de assentamentos e pequenas

propriedades rurais. Nas figuras a seguir imagens de duas Feiras Agroecológicas do estado:

Figura 01: Agricultor na Feira Agroecológica Regional de Campina Grande. Foto: Ana Paula Araújo. 2011.

Figura 02: Feira Agroecológica do Bessa em João Pessoa. Foto: Aline Barboza de Lima. 2008

Esse movimento tem crescido e sua existência estimulou a criação de cursos

voltados para o conhecimento agroecológico, como os cursos superiores em Agroecologia:

sendo um na Universidade Estadual da Paraíba, no município de Lagoa Seca, um na

Universidade Federal de Campina Grande, no município de Sumé e outro na Universidade

Federal da Paraíba, no município de Bananeiras, além de um curso superior em tecnologia

no Instituto Federal da Paraíba – IFPB, no município de Picuí e do Mestrado em

Agroecologia oferecido pela Universidade Federal da Paraíba, no município de Bananeiras.

Esses cursos de graduação e pós-graduação refletem a importância que Agroecologia tem

tido na produção agrícola do estado.

As unidades agrícolas com produção agroecológica, apesar de numericamente

pouco expressivas, comparadas as unidades agrícolas que utilizam agrotóxicos, são

qualitativamente muito significativas, sendo sua existência a materialização da construção

de um projeto de vida contrário a destruição da natureza e da vida humana.

Nesse âmbito, a soberania alimentar camponesa representa a efetivação de um

projeto coletivo, numa perspectiva comunitária, que visa possibilitar as famílias camponesas

uma reaproximação da natureza e do produto de seu trabalho, percebido como possibilidade

de permanecer na terra com dignidade, perpetuando o caminho para as futuras gerações.

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A rememoração das técnicas agrícolas anteriores ao processo de mecanização e

sua prática nas unidades agrícolas de produção agroecológica, somadas ao

desenvolvimento de técnicas recentes, traduzem-se em dimensões amplas, que extrapolam

a ideia de produção limpa e sustentável, pois possibilita a retomada da busca pela

autonomia camponesa. De acordo com Gúzman (2001, p. 38) “Os próprios habitantes da

zona devem ser os responsáveis pela gestão e controle dos elementos-chave do processo.

Isto não quer dizer que nossa proposta tenha um caráter "autárquico", ao contrário, a

intervenção pública deve existir em um certo grau dentro do processo.”

Nesse sentido, a busca camponesa pela soberania alimentar tem sido construída a

partir da construção de um processo autônomo concretizado pelo projeto da Agroecologia.

Esse processo é delicado e difícil de ser estabelicido de forma efetiva, de acordo com

Gúzman (2001, p. 38):

Entretanto, como mostra a experiência, os processos de desenvolvimento rural, ao longo do tempo, foram impostos pela intervenção pública, o que não deve ocorrer. Tal imposição, muitas vezes, ocorreu de forma inconsciente por parte da administração, já que esta, ao estabelecer as infra-estruturas organizativas necessárias para o estabelecimento dos processos, introduzia, também, um contexto social, tecnológico e administrativo alheio aos mecanismos socioculturais da comunidade, gerando, com isto, barreiras à participação local.

A construção das Feiras Agroecológicas na Paraíba partiu da existência dos anseios

da população camponesa em buscar um projeto de agricultura diferenciada, capaz de

atender as necessidades das famílias e garantir às futuras gerações a possibilidade de

permanecer na terra de forma digna. Dessa forma, podemos analisar que esse projeto partiu

de uma busca pela autonomia, traduzida na construção da soberania alimentar.

Entretanto, essa autonomia é limitada pelas próprias condições históricas do grupo

em questão, marcadas por um processo de subordinação secular. A existência dos grupos

mediadores e de apoio ao projeto, bem como das políticas públicas governamentais

auxiliares, apesar de extremamente importantes para a concretização do projeto, devem ser

observadas com cautela, tendo em vista a necessidade de efetivação da autonomia

camponesa.

Apesar da importância do protagonismo da classe camponesa, e das ressalvas a

participação dos agentes mediadores e dos apoios, entendemos a soberania alimentar

como um processo que só se concretizará coletivamente, mediante a conscientização da

população não apenas do campo, mas também da cidade, através da percepção da

importância de projetos como o das Feiras Agroecológicas e da prática da economia

solidária.

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Considerações Finais

Com base nas questões discutidas, apresentamos as notas conclusivas deste artigo,

que não pretendem encerrar o debate, mas ao contrário disso, provocá-lo. As problemáticas

relacionadas ao acesso a terra, a Segurança Alimentar e Nutricional e a Soberania

Alimentar são amplas e nos levam a múltiplos questionamentos, que carecem de atenção

por parte da comunidade acadêmica, mas sobretudo da sociedade civil.

Os dados sobre produção de agrotóxico e contaminação de alimentos e de pessoas

no Brasil são alarmantes, contudo, a resposta a essa problemática se dá em ritmo lento,

contraditoriamente acompanhado do aumento do uso dessas substâncias, bem como da

contaminação dos alimentos em um ritmo acelerado. Apesar dos alertas de órgãos

governamentais como a Agência de Vigilância Sanitária – ANVISA, e de campanhas como a

“Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida”, desenvolvida pelos

Movimentos Sociais e Organizações Não Governamentais, a população em geral está

distante de ter garantido plenamente o direito a alimentação adequada e principalmente de

alcançar a soberania alimentar.

A má distribuição de terras no Brasil corrobora o agravamento da situação de

insegurança alimentar. Os dados do Censo Agropecuário 2006 apontam a perpetuação da

concentração fundiária, ao mesmo tempo em que mostram a importância dos camponeses

na produção de alimentos que abastecem o mercado interno. Nesse sentido, o debate

acerca da Reforma Agrária necessita ser retomado, não apenas do ponto de vista da

desapropriação de terras, mas enquanto um projeto nacional.

Na Paraíba, o crescimento recente das lavouras de cana-de-açúcar tem pressionado

os ecossistemas locais e subordinado ainda mais as áreas de produção camponesa. Os

órgãos de controle ambiental não dão conta de conter as irregularidades, e a cana avança

sobre Reservas Florestais, Áreas de Preservação Permanentes - APPs e Áreas de

Preservação Ambiental- APAs, destruindo matas ciliares, contaminando o solo, o ar, o lençol

freático, os estuários, a fauna local e finalmente a população. A riqueza extraída desses

territórios da cana concentra-se nas mãos de poucas famílias, tradicionais oligarquias do

estado.

A Agroeocologia tem se mostrado um caminho possível para alcançar a Soberania

Alimentar, a existência de experiências como a da Feira Agroecológica Paraibana indicam a

possibilidade de recriação do campesinato, e também da importância política dessa classe

para a promoção da Soberania Alimentar.

As políticas públicas como o Programa de Aquisição de Alimentos – PAA,

Alimentação Escolar e Seguro Safra, dentre outros, tem colaborado para as melhorias das

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condições de produção dos camponeses, contudo, não são suficientes para proporcionar

um projeto consistente de garantia de condições necessárias a produção agrícola

sustentável de base agroecológica. Os camponeses que integram o projeto da Agroecologia

contam efetivamente com o apoio mútuo e de Organizações Não Governamentais e

Movimentos Sociais, e por vezes, encontram-se fragilizados diante das intempéries,

necessitando de políticas mais consistentes que garantam os resultados da produção

agrícola e que não comprometam a vida da família.

Mesmo diante das adversidades, esses camponeses têm aumentado gradativamente

o número de Feiras Agroecológicas no estado, bem como o número de camponeses que

integram esse projeto. No estado onde 15,10% da população encontra-se em situação de

risco alimentar grave, iniciativas como essa devem ser amplamente apoiadas e difundidas.

Nesse sentido, além da questão da terra, um dos desafios a serem superados liga-se

ao papel da população urbana, no sentido de integrar-se a economia solidária através da

Agroecologia, reaproximando-se do processo produtivo da alimentação que faz parte de seu

cotidiano, promovendo assim um consumo responsável. Nesse caminho, a população pobre

da cidade tem papel decisivo, visto que é esta parcela da sociedade, junto com a população

rural que se encontra em maior situação de vulnerabilidade alimentar.

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