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ECONOMIA GLOBAL, MERCADORIZAÇÃO E INTERESSES COLECTIVOS CICLO INTEGRADO DE CINEMA, DEBATES E COLÓQUIOS NA FEUC DOC TAGV / FEUC 2008 - 2009 SESSÃO 7 ECONOMIA MUNDIAL, INDUSTRIALIZAÇÃO E MEIO AMBIENTE INICIATIVA DA XI SEMANA CULTURAL DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

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ECONOMIA GLOBAL,

MERCADORIZAÇÃO

E INTERESSES COLECTIVOS

CICLO INTEGRADO DE CINEMA, DEBATES E COLÓQUIOS NA FEUCDOC TAGV / FEUC2008 - 2009

SESSÃO 7

ECONOMIA MUNDIAL,INDUSTRIALIZAÇÃO E MEIO AMBIENTE

INICIATIVA DA XI SEMANA CULTURAL

DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

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ECONOMIA GLOBAL,

MERCADORIZAÇÃO

E INTERESSES COLECTIVOS

CICLO INTEGRADO DE CINEMA, DEBATES E COLÓQUIOS NA FEUCDOC TAGV / FEUC2008 - 2009

http://www4.fe.uc.pt/ciclo_int/

SESSÃO 7

ECONOMIA MUNDIAL, INDUSTRIALIZAÇÃO E MEIO AMBIENTE

4 DE MARÇO DE 2009

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4 DE MARÇO DE 2009

SALA KEYNES DA FACULDADE DE ECONOMIA 16:00 HORAS

CONFERÊNCIA DE

GILLES CHARBONNIER (THE GRADUATE INSTITUTE, GENEBRA)

CONVIDADO ESPECIAL

MÁRIO RUIVO (FCT)

COMENTÁRIOS DE

LUÍS CRUZ (FEUC)

TEATRO ACADÉMICO DE GIL VICENTE 21:15 HORAS

FILME/DOCUMENTÁRIO

PAISAGENS TRANSFORMADAS

(MANUFACTURED LANDSCAPES, 2006)

DE JENNIFER BAICHWAL

DEBATE COM

GILLES CARBONNIER

MÁRIO RUIVO

LUÍS CRUZ

INICIATIVA DA XI SEMANA CULTURAL

DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

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ÍNDICE

ECONOMIA MUNDIAL, INDUSTRIALIZAÇÃO E MEIO AMBIENTE

I PARTE.

O FOTÓGRAFO, A REALIZADORA, O FILME

1. O QUE DEVE OUVIR SOBRE EDUARDO BURTYNSKY

2. UMA EXPOSIÇÃO DE PINTURA

3. FOTOGRAFIA E CINEMA

4. A LEITURA DO NEW YORK TIMES

5. PAISAGENS TRANSFORMADAS E O CAPITALISMO NA CHINA

6. ENTREVISTA COM A REALIZADORA

II PARTE.

ECONOMIA GLOBAL, INDUSTRIALIZAÇÃO E MEIO AMBIENTE

1 O MOVIMENTO ECOLOGISTA NO SUL GLOBAL.

2. A CHINA, A INDUSTRIALIZAÇÃO E O MEIO AMBIENTE

2.1. A CHINA E O AMBIENTE: UMA PEÇA EM QUATRO ACTOS

2.2. INDUSTRIALIZAÇÃO E CRISES AMBIENTAIS: ALGUNS CENÁRIOS

3. ECONOMIA GLOBAL, DESREGULAÇÃO E O ESPAÇO MARÍTIMO

3.1. OS ESTALEIROS QUE DESTROEM A INFÂNCIA

3.2. A ONU, A OIT E A CONVENÇÃO DE BASILEIA

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© Manufactured Landscapes, 2006.

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ECONOMIA MUNDIAL, INDUSTRIALIZAÇÃO E MEIO AMBIENTE

I PARTE.

O FOTÓGRAFO, A REALIZADORA, O FILME

1. O QUE DEVE OUVIR SOBRE EDUARDO BURTYNSKY

Disponível em:www.ted.com/index.php/speakers/edward_burtynsky.html

Para descrever o trabalho do fotógrafo canadiano Eduardo Burtynsky num só adjectivo, precisa de saber falar francês: jolie-laide ( bonito-feio). As suas imagens de paisagens agredidas- de montanhas de pneumáticos a rios cor de laranja forte cheios de resíduos provenientes de uma mina de níquel -- são assustadoramente bonitas mas simultaneamente  feias. As fotografias a cores em grande  formato de Burtynsky exploram o impacto da pegada da humanidade em grande expansão e as várias formas através das quais estamos a remodelar a superfície do planeta. As suas imagens alteram poderosamente a forma como pensamos o mundo e o lugar que nele ocupamos. 

Com o seu apoio e incentivo, WorldChanging.com e outras organizações utilizam o seu trabalho a fim de inspirar as discussões à escala global  que se desenvolvem em redor do conceito de vida sustentável. As fotografias de Burtynsky’s têm sido incluídas nas colecções de muitos dos grandes museus, incluindo a Bibliotèque Nationale de Paris e o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque. Um livro de grande formato, Manufactured Landscapes (2003), agrupa o seu trabalho,

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e em 2007, um documentário com base nas suas fotografias, também chamado Manufactured Landscapes, foi estreado no Festival de Cinema Toronto e editado em DVD em Março de 2007.

“Um possível critica contra o seu trajecto profissional-- ele torna belo o que é terrível. Burtynsky diz que as suas imagens são ‘um segundo olhar para a dimensão daquilo a que chamamos progresso’ e espera que estas familiarizem os espectadores com as consequências do nosso estilo de vida.”

2. UMA EXPOSIÇÃO DE PINTURA

Edit: Edward Burtynsky - Manufactured Landscapes,

disponível em: www.edit-revue.com/?Article=173

Nota sobre uma exposição de fotografia de Burtynsky

Depois de uma infância passada em Ontário, entre altos-fornos, centrais eléctricas e outras fábricas da petroquímica, marcada pela sua experiência como trabalhador nas linhas de montagem da General Motors, Edward Burtynsky ainda não deixou de percorrer o mundo para inventariar as paisagens transformadas pelo homem: minas, pedreiras abandonadas ou a serem exploradas, campos de petróleo, refinarias, lixeiras industriais, indústrias marinhas, paquetes desfigurados pela ferrugem, montanhas de pneus, lixo colocado em sacos para a reciclagem. Estas ruínas dos nossos tempos modernos, nascidas dos excessos da industrialização e da nossa sociedade de consumo são-nos apresentadas frontalmente e sem complacência.

A primeira sala é dedicada à China de que gosta particularmente, porque só muito tarde se converteu ao modo de vida dos países ocidentais. Um lugar especial é dado à Barragem das Três Gargantas, estaleiro gigante que necessitou de deslocar centenas de milhares de pessoas e de destruir um grande número de aldeias. A sublinhar o gigantismo e para mostrar melhor este local no interior, as

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provas fotográficas em grande formato abundam em detalhes impressionantes; uma certa densidade e uma certa melancolia são aqui bem patentes. Burtynsky também fotografou o avanço espectacular e incontrolado da urbanização em Xangai, a revolução industrial chinesa e as suas consequências sobre o meio ambiente, as montras de produtos chineses exportados para todo o mundo, as vilas inteiramente dedicadas à reciclagem do lixo, os nós de auto-estradas entrelaçados ou de gasodutos.

Testemunhos de uma paisagem fruto da construção humana, as suas fotografias desprovidas de toda e qualquer manipulação poderiam ser consideradas de documentários. Estas fotografias são objecto de referências minuciosas; Burtynsky determina de modo bem preciso o ponto de vista – intencionalmente sobrevalorizado – e a hora em que cada uma foi obtida. Estas imagens não deixam de nos fazer lembrar as grandes séries tipológicas dos alemães Bernd e Hilla Becher em torno dos símbolos arqueológicos de uma era industrial em via de extinção (moinhos de água, silos, altos fornos, gasómetros, etc.). Contudo, enquanto o património de Becher é todo ele de rigor, de distância e de austeridade, as imagens de Burtynsky adquirem um grau de abstracção e um potencial metafórico surpreendente, uma forma de beleza inesperada. Fascinado pela ideia simples de que “a todo e qualquer edifício ou estrutura construída corresponde um volume idêntico, negativo, extraído da terra”, Burtynsky pôs-se a fotografar pedreiras no Canadá, no Quebeque, no Vermont ou em Itália nos anos 90. Ao ver estes grandes blocos de mármore recortados à maneira de um tabuleiro nas profundidades das pedreiras, o ciclo extracção-consumo-reciclagem, a reciclagem tem para Burtynsky uma função redentora, assume todo o seu sentido. As marcas gigantescas que o homem deixa na sua passagem são aqui mais do que evocadas.

A grande força plástica das imagens constitui, por vezes, quase um obstáculo à legibilidade das mesmas; é necessário pormo-nos, por vezes, face às imagens antes de compreendermos que estes camiões no fundo das pedreiras, basicamente, não são brinquedos abandonados ou que esta cabina em equilíbrio no centro da imagem é “uma barraca” de trabalhadores. A utilização calculada da luz e das cores saturadas como na sua série Lixos, na qual os vazamentos de níquel incandescentes atravessam

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o Sudbury no Ontário, reforça a dimensão sublime destas obras que nos narram a relação mutável do homem para com a natureza. Um pouco antes, Sebastião Salgado também explorou esta relação complexa entre o homem e o território, colocando-se mais numa óptica de fotografia de reportagem: as suas imagens dos estaleiros do canal Rajasthan na Índia, das minas de ouro no Brasil ou das jazidas de petróleo no Kuwait nos anos 90 contam uma história. Burtynsky, pelo contrário, perde-nos e perturba-nos para melhor nos reencontrar. Burtynsky joga com os contrários nas suas imagens onde a vista de conjunto se opõe aos detalhes, o real ao abstracto, a sedução ao medo diante do que está a ser contemplado. Sem qualquer discurso moralizante, o artista lembra-nos que estas paisagens industriais estranhamente sublimes constituem um simples reflexo do dilema da existência humana. Chama-nos a atenção sobre os aspectos preocupantes do progresso como que para nos confrontar perante as nossas contradições e revelar ao nosso inconsciente o progressivo crescimento do poder da indústria à custa do meio ambiente.

3. FOTOGRAFIA E CINEMA

Disponível em :www.cineclubdecaen.com/realisat/baichwal/paysagesmanufactures.htm

Províncias de Zhejiang e de Fujian, em 2004. Uma longa sequência de imagens de 7 min e 45 s mostra-nos lateralmente uma cadeia de montagem de diversos produtos de uma fábrica chinesa. Edward Burtynsky, de seguida, posiciona os trabalhadores chineses de modo a tirar-lhes uma fotografia de grupo.

Esta fotografia encontra-se numa exposição onde Edward Burtynsky fez uma conferência sobre os seus trabalhos anteriores. Evoca os seus trabalhos na Pensilvânia sobre as minas de níquel, de cobre e de ferro a céu aberto:

“A paisagem de que devemos falar é a que transformamos, a que deslocamos em nome do progresso. Tento por conseguinte encarar a

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paisagem industrial como um meio para definir a nossa identidade e a nossa relação com o planeta”.

Regresso à China a uma fábrica de ferros de engomar. Vê-se uma operária a furar diversas componentes, uma outra a montá-los, ainda uma outra a fazer passar fio de cobre à volta de um tubo flexível.

Edward Burtynsky fala do problema geral dos desperdícios. Tira poucas fotografias mas não resiste a tirar uma fotografia a uma velha mulher que conheceu provavelmente Mao e a revolução cultural e que está agora em frente da sua porta, cercada de desperdícios industriais. Em contraponto, Jennifer Baichwal mostra imagens de arquivo de crianças nas lixeiras de produtos electrónicos.

Na fábrica Sentai Electronical. Uma voz-off explica que a empresa já tem treze anos de experiência e que exporta para 60 países. Exporta material de protecção para baixa tensão. Uma trabalhadora monta um disjuntor em 45 segundos e diz fazer sempre assim, montando cerca de 400 por dia. A voz-off elogia a excelência dos materiais utilizados. Tan Yanfang explica que ela trabalha na empresa desde há seis. O jovem responsável pelas relações públicas lê o seu discurso: “uma produção de massa de qualidade fará de nós uma empresa líder. Visamos a excelência, o profissionalismo é a nossa divisa”.

Estaleiro naval de Chittagong, Bangladesh, em 2001. Discurso de responsabilidade global de Edward Burtynsky: os petroleiros transportam a gasolina para os nossos automóveis, as minas de prata permitem o sal de prata das nossas fotografias.

A ideia do tema unificador das fontes de energia começou a ser trabalhada por Burtynsky, em 1997, quando filmava os campos de petróleo e as refinarias na Califórnia.

Centro de distribuição de mercadorias do porto de Tianjin. Edward Burtynsky mostra-nos que uma boa parte do material de reciclagem é transportada em embarcações para a China, que cerca de 50% dos computadores são reciclados

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neste país para lhes retirar o cobre. Os habitantes pobres reciclam as mothersboards aquecendo-as e retirando-lhes as componentes com pinças. Os cheiros dos fumos tóxicos espalham-se por um raio de cinco a seis quilómetros à sua volta.

A Barragem das Três Gargantas foi começada a 14 de Dezembro de 1994, há já mais de 14 anos, e o fim dos trabalhos está previsto para 2009. Esta barragem foi construída para impedir as inundações, produzir electricidade, melhorar os transportes e tem 2 309 metros. Com base no recenseamento de 1992, contabilizaram-se 830 000 pessoas deslocadas; estando hoje muito provavelmente perto de 1 100 000. É uma paisagem intencional com treze grandes cidades deslocadas em altura do rio Yangtze.

A maqueta de Xangai à escala de 1/500 sobre 600 m2 com, em contraponto, o rio Azul, em Huang-Pu. O peso da população rural da China passará de 90% na época de Mao Tsé Tung para 30%. Em Xangai, as torres substituem as casas tradicionais. Uma idosa resiste à expulsão de que foram vítimas os seus vizinhos. Isto não perturba uma jovem burguesa, nova-rica do imobiliário, que mostra a sua luxuosa casa.

Edward Burtynsky, nascido em 1955, trabalha desde 1985 sobre os lugares de conflito entre a actividade humana e a natureza, com um acento tónico na acção degradante do homem e nas cicatrizes monumentais da terra: grandes pedreiras, oficinas de caminhos-de-ferro, loteamentos, minas.

A sua intenção documental é incessantemente contradita pelos meios utilizados que o colocam entre os pictorialistas: uma busca de belas imagens, composições sofisticadas, grande domínio dos cenários, cores incontestáveis e concordantes de uma foto a outra.

Esta contradição está completamente de acordo com a profissão de fé que colocou no seu sítio de internet: trabalhar sobre a contradição insolúvel entre a procura de um nível de vida elevado e a nossa dependência da natureza, ou seja,

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“uma metáfora do dilema da nossa existência: procurar um diálogo entre a atracção e a repulsa, entre a sedução e o medo.”

No fim do filme, Burtynsky diz recusar orientar o seu trabalho para fins mais políticos. Prefere deixar os seus espectadores interrogar-se eles mesmos sobre as suas paisagens onde o homem não se revela sob a melhor luz mas que para ele é a imagem do nosso mundo.

Roland Barthes dizia que a emoção da fotografia, o seu punctum, é “isto já foi”. A força das imagens de Burtynsky está antes em nos dizer que o mundo de hoje “é isto”. Para o efeito, à maneira de Bernd e de Hilla Becher, posiciona os elementos determinantes da modernidade económica (energia e transporte) e aplica-lhes os efeitos repetitivos que se reencontram em Alex MacLean.

É a violência, o choque deste “é isto” de que nos dá conta Jennifer Baichwal neste filme. Para descrever a fábrica, o cinema tem necessidade deste longo plano, desta sequência de 7 min e 45 s sob a forma de obtenção de imagens cinematográficas laterais. A este trajecto longo e paciente do cinema, a realizadora opõe a foto dupla, magistral, filmada a partir de um eixo perpendicular. Similarmente, enquanto os trabalhadores deitam abaixo os muros das suas antigas casas, filmados num preto e branco perfeito, aparece num outro ângulo a foto do que poderia ter sido este terreno rapidamente alagado.

Jennifer Baichwal utiliza também outros meios para valorizar o trabalho do fotógrafo: com um som off mecânico, acompanha um a um os trabalhadores da fotografia que estão a trabalhar na cadeia de montagem. Recorre ao método geral de ampliação do campo que faz desaparecer a noção de quadro de fotografia e, com base nas suas dimensões, procura reencontrar a ideia de que a câmara é algo que escondida se passeia sobre o mundo. Dá assim a impressão de uma fotografia muito maior do que é realmente, reencontrando pela grandeza do ecrã de cinema os efeitos únicos que procura Andreas Gursky nas suas imensas fotografias. A utilização do preto e branco é às vezes um pouco ingénua, nomeadamente

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quando passa para a cor como no caso do episódio do Bangladesh em que se trata sobretudo de uma utilização modesta da câmara vídeo para fazer explodir, por oposição, o lirismo da fotografia.

Paisagens transformadas tem por conseguinte como primeiro mérito o de se colocar ao serviço da fotografia para assim revelar todas as potencialidades.

O discurso político de Edward Burtynsky é um pouco simplista relativamente à extraordinária e bem-vinda ambiguidade do seu trabalho fotográfico. Jennifer Baichwal realça, através dos meios do cinema, este mesmo discurso sem ser apenas mais original. Notar-se-á contudo a constante intenção em confrontar duas palavras: a dos que sofrem as condições de vida difíceis (os trabalhadores das fábricas, os soldadores no Bangladesh, a velha mulher de Xangai) e a dos discursos formatados dos pequenos chefes (o chefe de equipa na primeira fábrica, na descarga dos ferro de engomar, o jovem encarregado das relações públicas em Sentai Electronical, a jovem do imobiliário, orgulhosa da sua casa em Xangai).

4. A LEITURA DO NEW YORK TIMES

Manohla Dargis, Industrial China’s Ravaging of Nature, Made Disturbingly Sublime, New York Times,Junho de 2007. Disponível em: movies.nytimes.com/2007/06/20/movies/20land.html

Num determinado momento do absorvente e perturbante documentário «Paisagens Transformadas ,» sobre o trabalho do fotógrafo canadiano Eduardo Burtynsky, algumas vozes sem nome tentam fazer com que um par de funcionários chineses não fiquem preocupados. O fotógrafo Burtynsky, dizem-no estas vozes, vai fazer tudo – significando que as montanhas de carvão que parecem extenderem-se sempre atrás deles– de de modo maravilhoso. E assim o faz Burtynsky. Seja num centro de distribuição de carvão ou numa lixeira , ele transforma o grotesco em algo de belo, ou pelo menos em qualquer coisa que

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parece ser bastante bonita para estar na parede de uma galeria.

Ninguém sabe com plena certeza se os dirigentes chineses são governantes responsáveis ou se trabalham para as grandes empresas que controlam e canalizam, em primeiro lugar as montanhas de carvão para as fábricas, e em seguida para o meio ambiente. «Paisagens Transformadas « é um daqueles documentários contemporâneos que ganham um prémio pelo seu visual (que é considerável) e pela sua concepção um pouco intimista (um pouco vago), e dão um pouco menos de atenção a pormenores nominalmente considerados irrelevantes como datas e nomes, factos e números, história e política. Assim, embora algumas imagens a preto e branco de Burtynsky, feitas por Jeff Pwis durante os seus safaris fotográficos, estejam marcadas pelo tempo de há alguns anos antes, muito do filme assume-se num presente não específico.

Neste presente, Burtynsky e um número indefinido de colaboradores calcorreiam toda a a China a trote obtendo polidas imagens em longos planos, geralmente como fotografias a cores, das fábricas locais, dos sítios de soldagem e dos centros de reciclagem, com uma breve viagem, aqui secundária, pela costa do Bangladesh, onde jovens desmontam os petroleiros, por vezes com as pernas atoladas na lama até aos tornozelos. Trata-se de um filme dirigido por Jennifer Baichwal com uma câmara altamente sensível de 16 milímetros, com imagens de Peter Mettler. «Paisagens Transformadas» (também o nome de um livro de fotografias de Burtynsky de 2003) é, pelo menos parcialmente, um documentário de um Grande Homem, o registo de um artista imortalizado no seu momento de criação: olhe,veja,filme!

O filme parece ser um pouco mais interessante e, por vezes, parece ser também uma tentativa, talvez mesmo inconsciente, de crítica do mesmo artista e da sua visão.

Crítica, é uma palavra que pode ser demasiado forte. Mesmo assim, o que é mais surpreendente em Paisagens Transformadas é que se sugere que a realizadora,

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Baichwal e o seu excelente câmera men não estão completamente à vontade com o trabalho de Burtynsky, que tende a subordinar a forma humana a um harmonioso uso da cor, ao equilíbrio formal, ao surpreendente trabalho manual e ao ambiente destruído pelo homem

Em muitas destas paisagens (que analisei neste filme e só online), uma multidão de trabalhadores anónimos transformam-se em manchas de canários amarelos e borrões de chiclet cor de rosa, a população. Os ângulos das suas cabeças e dos seus braços levantados e cuidadosamente organizados atrás das linhas de montagem, são apenas alguns dos elementos decorativos formalmente bem precisos. Note-se como esses ângulos encaixam com os das máquinas.

O que se perde com estas fotos, das povoadas e não só, é todo o sentido de processo, de contexto e consequências.  Em grande parte, o filme permanece igualmente na mesma linha de silêncio embora se repitam diversas sequências dos trabalhadores que parecem limitados nas linhas de marcação previamente estabelecidas pela equipa de realização e sugerem que Baichwal está mais preocupada com as pessoas do que com o tema. Neste filme, pelo menos, uma montanha de carvão é rigorosamente um objecto estético para Burtynsky, e não um índice das condições miseráveis dos seus mineiros ou uma terrível recordação dos 6.000 trabalhadores que morreram nas minas chinesas em 2005, ano em que o filme foi realizado. Ou então que fosse um aviso sobre a poluição suspensa no ar a partir das chaminés da China Ocidental para os Estados Unidos, cobrindo os montes em Oregão, Califórnia e Washington

Os detalhes estranhos, cristalinos e as composições obsessivamente exactas dos trabalhos de Burtynsky podem fazer lembrar os de Ansel Adams, embora o principal assunto signifique que isto pertence mais ao tecnologicamente sublime do que ao sublime natural. No seu livro «American Tecnological Sublime,» um estudo sobre as experiências sublimes manufacturadas – muito bem representado pelas fotografias de Walker Evans, que celebram a grandeza da façanha de engenharia que é a ponte Brooklyn Bridge - o historiador Davi E. Nye escreve que «o que é sublime

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para uma pessoa pode ser uma abominação para outra». Como o filme indica, intencionalmente ou não, um artista pode nem sempre ser capaz de estabelecer a diferença entre o que é belo e o que é abominável, mas com conhecimento e um desejo de consciencializar o espectador de que o pode fazer.

5. PAISAGENS TRANSFORMADAS E O CAPITALISMO NA CHINA

Manufactured LandscapesSocialistcephalopod7 de Julho de 2008

Disponível em http://socialistcephalopod.wordpress.com/2008/07/07/manufactured-landscapes/

No último fim-de-semana consegui finalmente ter a possibilidade de ver o documentário Paisagens Transformadas. Este filme foi editado no ano passado e foi aplaudido pela crítica da especialidade e nele acompanha-se o fotógrafo Edward Burtynsky numa viagem à China para nos fazer uma reportagem sobre o enorme processo da industrialização e da urbanização que se está a dar neste país.

Burtynsky é um fotógrafo canadiano que passa a sua vida a tirar fotografias da destruição que a indústria provoca em torno do mundo. Realizou uma grande série sobre minas e pedreiras, mostrando os locais onde nós extraímos os minerais e a riqueza natural que as nossas indústrias precisam, furando e afastando a terra que lhe está no caminho. Actualmente interessou-se e documentou-se sobre as fábricas e as centrais eléctricas.

Todos nós sabemos que estes locais existem. A dado nível sabemos e compreendemos que o universo altamente consumidor em que habitamos, com as suas montanhas de produtos, muitos concebidos para serem imediatamente destruídos têm que ser criados algures, mas disso estamos desligados, não sabemos. O que o trabalho deste fotógrafo tenta fazer é mostrar-nos a parte escondida da

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nossa vida actual e que nós habitualmente não queremos nem conhecer, nem ver, especialmente no mundo ocidental.

Tem-se estado a dar uma mudança monumental e sem precedentes da actividade da indústria transformadora mundial para os países de baixos salários em vias de desenvolvimento e sobretudo para a surpreendente China. Muito do trabalho utilizado na produção destes produtos está literalmente longe da vista, longe das nossas preocupações enquanto consumidores, na sua maioria ocidentais, forçados a outras formas de trabalho nas indústrias de serviços e nos “McJobs”.

As imagens que Burtynsky capta são aterradoras. Na sua maior parte estas concentram-se na enorme dimensão da indústria, fornecendo-nos também algum distanciamento para as analisar e mostrando-nos literalmente uma paisagem devastada massivamente tão longe quanto os nossos olhos conseguem ver. O cineasta Jennifer Baichwal, que o acompanhou para realizar Paisagens Transformadas, procura transmitir o sentido da enorme dimensão de algumas das suas imagens numa forma cinematográfica bem conseguida.

A abertura do documentário é uma sequência de quase 10 minutos em que filma em movimento lento ao longo do piso de uma grande fábrica na China que emprega 23.000 pessoas. A câmara move-se ao longo das linhas de montagem, umas a seguir às outras, com a sensação de que estamos numa fábrica que nunca mais acaba, até que finalmente vemos uma fotografia da fábrica tirada por Burtynsky de um ponto muito alto, a uma tão grande distância que nos dá uma imagem intencionalmente baça da fábrica.

Há uma coisa que eu teria gostado de ver mais em foco no filme e que seria a sua maior centragem sobre os trabalhadores, os seres humanos envolvidos nestas mega fábricas relatadas pelos projectos de Burtynsky que aqui estão filmados. O que lá está é fascinante. Após a cena de abertura, começamos a ouvir uma campainha a anunciar o sinal de saída enquanto milhares de pessoas saem da fábrica no fim da sua jornada de trabalho. Enquanto elas se deslocam para a saída, a câmara volta atrás

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no seu trajecto de filmagem ao longo do piso da fábrica até vermos um trabalhador adormecido no seu lugar de trabalho.

Há também muitas imagens de mãos de trabalhadores que estão a executar as mesmas tarefas repetitivas, umas atrás das outras, fabricando disjuntores ou a testar o borrifador dos ferros de engomar. Algumas das breves entrevistas com os trabalhadores são realmente de espantar, falando-nos dos anos que trabalharam no mesmo local, falando-nos pois do muito tempo em que têm feito sempre a mesma coisa.

Quando os cineastas perguntam a um homem, que há nove anos está a trabalhar provavelmente no maior projecto mundial da engenharia, a barragem das Três Gargantas, se o trabalho é duro e se está orgulhoso de fazer parte de um empreendimento tão grande, responde, “Claro que o trabalho é duro, olhe para este lugar. Eu estou apenas a trabalhar para o meu patrão, tal como todos os outros.”

No documentário, Burtynsky fala sobre a sua tentativa de ser mais político no seu trabalho, de tentar e de argumentar que o que ele mostra é algo profundamente errado. Contudo, a sua decisão foi a de simplesmente descrever o que vê quando vai a estes lugares, para tentar e impedir que seja silenciado pelas pessoas que pensam que ele tem uma agenda. As imagens falam por si, e o espectador tem de lhes dar o uso que acha que elas devem ter.

Numa cena, os patrões estão a tentar impedi-lo de ter acesso a uma mina de carvão ao ar livre, preocupados com a possibilidade de se mostrar o que ali se passa afecte negativamente a sua empresa. O tradutor de Burtynsky argumenta que, nas suas mãos, a mina será trabalhada para parecer agradável e mostra aos patrões alguns de seus trabalhos anteriores. Muitos críticos interpretaram isto como um estratagema para entrar dentro da mina, mas eu penso que foi dito de uma forma sincera.

Estas imagens têm uma beleza real. Noutro tempo e noutro espaço, não haveria qualquer dúvida sobre o que se passou. Nós esquecemo-nos do quanto o

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nosso conhecimento sobre o que a indústria parece e sobre o que faz é colorido pelo nosso conhecimento da crise ambiental. No séc. XX, muitas destas imagens seriam vistas como heróicas, e nós precisamos somente de olhar para alguma propaganda soviética ou para os escritos de Trotsky sobre a tecnologia para perceber até que ponto essa mesma visão permitiu o movimento socialista.

Naturalmente que a razão principal pela qual esta visão foi celebrada pelos socialistas como progresso foi porque consideravam que assim se estava a formar uma classe trabalhadora e a juntar os povos na produção social e dar-lhes assim uma consciência de classe. E essa é precisamente a razão pela qual eu gostaria de ter ouvido mais dos operários que trabalham nestes lugares. As fotografias de Burtynsky em minha opinião são um corpo de trabalho realmente importante, e o papel que podem jogar em acordar os consumidores para as realidades em que as suas vidas estão construídas.

Mas, realmente, nós como vulgares consumidores ocidentais temos um poder muito reduzido para fazer qualquer coisa sobre os horrores que de alguma forma conhecemos e que estão a revelar a China e outros países. E certamente os patrões, quer estejam ao nível dos gerentes das equipas que molestam as suas equipas mas reduzidas, no início do filme, quer estejam ao nível dos indivíduos que tentam impedir a entrada de Burtynsky na mina de carvão, não podem e não pararão igualmente o que está a acontecer. O desenvolvimento rápido do capitalismo da China é último lançamento insano do capitalismo anárquico, e já está para além das capacidades dos patrões a sua paragem.

As pessoas que puderam ter algum tipo de impacte são apenas os trabalhadores nos locais que nós vemos no documentário. O povo chinês organiza dezenas de milhar de greves, de protestos e de petições contras as suas condições de trabalho, as privatizações, o desemprego e a perda das suas casas, terras ou regalias.

As autoridades chinesas elas mesmas admitem que em 2004 houve 74.000 “manifestações, incidentes maciços ou greves”, mais 10.000 do que uma década antes. O governo chinês abandonou todas as tentativas de construir o socialismo

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na China, e neste processo tem removido toda e qualquer segurança no emprego, todos os direitos sociais que os trabalhadores e agricultores chineses tinham, “the Iron rice bowl”, ou seja: habitação, cuidados médicos, instrução, etc., gratuitos e fornecidos pelo estado.

Privatizaram as grandes indústrias, literalmente significando que milhões de trabalhadores perderam seus postos de trabalho. Aqueles que ainda pertencem à força de trabalho são forçados a ter salários muito baixos com os custos enormes de perderem o apoio governamental que tinham anteriormente.

É claro que, apesar da repressão maciça enfrentada pelos trabalhadores na China, há uma raiva enorme que espreita abaixo da superfície, e que a experiência da revolução e dos anos de Mao, e isto por muitas falhas, mesmo graves, que possam ter ocorrido nesse processo como uma tentativa de construir o socialismo, servem como experiências importantes para a consciência de classe na China no combate da ditadura capitalista que os governa agora. O artigo de Robert Weil, Conditions of the Working Classes in China, publicado na Monthly Review1 (juntamente com outros da mesma revista, porque eu nunca me canso de dizer que é simplesmente a melhor fonte para os socialistas) é realmente um bom ponto de partida para se aprender mais.

A escala do que Burtynsky documenta sobre a China é realmente sem precedentes, e é, de muitas formas, um exemplo claro da dinâmica da destruição da Terra feita pelo capitalismo. Não há nenhuma possibilidade de isto se sustentar ecologicamente, que é o que me faz muito céptico quanto à ideia de que China poderá dominar o planeta de uma forma semelhante ao que os EUA fizeram desde a Segunda Guerra Mundial. Essa era acabou, nós agora vivemos num tempo de alterações climáticas, de redução de matérias-primas e de guerras pelo controle de recursos naturais.

1 Robert Weil, “Conditions of the Working Classes in China”, Monthly Review , vol. 58, n.º 2, Junho, 2006. Disponível em http://www.monthlyreview.org/0606weil.htm.

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Numa dada fase do seu trabalho, Burtynsky visita uma cidade dedicada à reciclagem de “E-waste”, o lixo electrónico. Este termo refere-se às vastas quantidades de componentes electrónicos dos computadores, dos telemóveis, etc. que são construídos para se tornarem obsoletos virtualmente imediatamente, para que maximize os lucros dos fabricantes. Quando nós deitamos fora este material afastado muito dele é enviado de volta a China, onde há uma indústria enorme de pessoas que desmantelam os componentes para recuperar os elementos valiosos e as matérias-primas nelas envolvidas.

Não somente isto ilustra os desperdícios gerados pelo capitalismo, como torna claro igualmente claro como estes materiais importantes que entram nos dispositivos electrónicos que utilizamos se estão a tornar raros, que é valioso e necessário os recuperar dos componentes velhos. Os cineastas dizem-nos que se pode cheirar o fedor de uma cidade a 10 quilómetros, tão perigoso e sujo é o trabalho. Os lençóis freáticos ficaram poluídos, e a população tem que beber água engarrafada que é para lá enviada.

Num bom ensaio que li recentemente sobre o imperialismo no mundo actual refere-se que:

“Adicionalmente, tal como é reconhecido agora extensamente, a ascensão de China está a revolucionar toda a economia mundial.”2

A China tem uma parte substancial e crescente na produção global de materiais. Desde 1996, tornou-se o maior produtor mundial do aço, um material básico para a indústria. Oded Shenkar argumenta que os chineses já produzem “70% dos brinquedos do mundo, 60% das suas bicicletas, metade dos seus sapatos, e de um terço da sua bagagem”, assim como metade “dos microondas mundiais, um terço dos seus televisores e aparelhos de ar condicionado, um quarto das suas máquinas de lavar e um quinto dos seus frigoríficos”.

2 Paula Cerni MPhil, “Imperialism in the Twenty-First Century”, Theory & Science , 2006. Disponível em http://theoryandscience.icaap.org/content/vol8.1/cerni.html.

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Um outro autor escreve que a “China tem mais de 160 cidades com pelo menos 1 milhão de habitantes. Pode-se ir a cidades na costa leste de China hoje que nunca se ouviu falar antes e para descobrir que uma cidade produz a maioria das lentes de óculos do mundo, enquanto a cidade do lado produz a maioria dos isqueiros do mundo, e ainda que a cidade ao lado está a produzir a maioria dos ecrãs de computador para a Dell, e que outro se está a especializar em telemóveis.

Kenichi Ohmae, consultor comercial japonês, estima no seu livro Os Estados Unidos de China, que só na área do delta do Rio das Pérolas, no norte de Hong-Kong, há cinquenta mil fornecedores chineses de componentes electrónicos.

Hoje, há aproximadamente 30.000 exportadores de produtos têxteis na China. As exportações de produtos têxteis de empresas privadas e com investimento directo estrangeiro correspondem a quatro quintos do total. A concepção de centro comercial da China, na qual as fábricas integradas com uma disponibilidade imediata de matérias-primas têm operações de fiação, tecelagem, tinturaria, corte e confecção, é difícil de bater. Adicionalmente, estas fábricas têm a vantagem adicional do acesso às redes de transportes eficientes.

Além disso, adverte Shenkar, a produção industrial chinesa está rapidamente a mover-se para cima na cadeia de valor, de modo que a China está “a tornar-se um agente nos produtos intensivos em capital, tais como veículos a motor, assim como em linhas de produção intensivas em tecnologia, algumas das quais, como as televisões de écran plano, podem ter implicações estratégicas. Clyde Prestowitz refere que a “China tem mais fábricas de semicondutores em construção ou a entrar em funcionamento do que a América”.

Mas, são talvez as estatísticas de emprego que fornecem as medidas mais impressionantes da capacidade industrial chinesa. Um relatório recente estimou a mão-de-obra industrial da China em 2002 em 109 milhões, número comparado com os 53 milhões para o conjunto dos países do G7.

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Na película Burtynsky refere que na altura da revolução a China era 10% urbana e 90% rural. O objectivo das autoridades chinesas actuais é o de inverter esta estatística e têm vasta maioria de megacidades industriais na costa. Possivelmente, isto não pode continuar indefinidamente.

Em nenhuma parte no mundo é mais claro que é necessário um poder da classe trabalhadora para combater os efeitos perniciosos do capitalismo da classe média relativamente à possibilidade de sobrevivência da civilização.

A história final ambiental e de horror humano que merece um destaque é quando a película visita a barragem das Três Gargantas. Esta é a maior barragem hidroeléctrica mundial, sendo construída para alimentar a necessidade insaciável de toda a sua indústria por energia. Está em construção há anos, e não será terminada completamente antes de 2011. Gerará eventualmente 22.500 megawatts de energia, sendo a quantidade de aço usado na sua construção suficiente para construir 63 torres Eiffel.

A barragem é um projecto numa escala inimaginável. O peso da água que conterá é o suficiente para fazer um ajuste minucioso à inclinação axial da terra. Mais importante ainda, o peso da água pode bem aumentar os riscos de terramotos na área. Um outro mega projecto hidroeléctrico foi implicado como uma causa no terramoto que assolou a província de Sichuan no iníco deste ano. A barragem foi igualmente um factor determinante na extinção dos golfinhos do Rio Yangtzé.

A área que está a ser inundada pelas águas da barragem inclui 13 cidades, que Burtynsky visita no documentário. Quase um milhão e meio de pessoas está a ser forçada pela construção da barragem a mudar-se de suas casas, estimando as autoridades que outras 4 milhões sejam deslocadas até 2020.

O problema que as autoridades, contudo, enfrentam é que as cidades condenadas não podem ser deixadas intactas antes da inundação. Se assim o fizessem, constituiriam então um perigo para o transporte por barco acima delas. Assim,

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os actuais habitantes destas cidades são empregues na demolição, tijolo por tijolo das suas casas e dos seus bairros vizinhanças onde e suas famílias cresceram acima. A película documenta bem esta história que nos causa uma angústia profunda, despertando a nossa simpatia.

Naturalmente, é fácil criticar os povos ocidentais que olham para estas paisagens e dizem que é errado. Devemos ser todos muito cuidadosos ao mostrar que a China constitui uma ameaça especial, um mau original incomparável com os nossos próprios crimes humanos e ecológicos. Quem sou eu para negar ao povo chinês os frutos da industrialização?

Mas, a questão central para mim é que todo este trabalho não está a ocorrer em benefício do povo chinês. Durante a era maoísta havia pelo menos a ideia que o desenvolvimento industrial era para ser a favor das pessoas. Agora já não se pretende nada disso. O documentário num ponto evidencia o contraste entre as condições dos trabalhadores chineses e as de uma especuladora imobiliária com a sua casa palaciana, uma mulher que está a beneficiar muito do enobrecimento urbano das cidades chinesas ao mesmo tempo que o cidadão vulgar não tem recursos par pagar a renda de casa que antes não tinha de pagar3.

Tal como Deng Xiaoping disse, numa afirmação famosa, resumindo a filosofia dos líderes de uma das mais formidáveis operações capitalistas do mundo, o Partido Comunista Chinês moderno, “Ficar rico é ficar glorioso.”

O desenvolvimento que ocorre em China é em favor das pessoas como ela. E para os seus sócios ocidentais, os mesmos conglomerados corporativos de grandes dimensões que dominam as nossas vidas e as nossa políticas. Se a raça humana, e a classe trabalhadora de China e o ocidente devem ter alguma esperança de sobreviver

3 N.T. O enobrecimento urbano, diz respeito à expulsão de moradores tradicionais, que pertencem a classes sociais menos favorecidas, de espaços urbanos e que subitamente sofrem uma intervenção urbana (com ou sem auxílio governamental) que provoca sua valorização imobiliária.

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à destruição que é feita pela escala inaudita do desenvolvimento industrial que ocorre no mundo em vias de desenvolvimento, então os trabalhadores chineses têm de redescobrir o espírito revolucionário e começar a ser mais organizados nas suas lutas contra os seus patrões.

Mas esta é a minha reacção ao trabalho de Burtynsky. Eu penso que está feliz apenas para obter de nós uma reacção. O seu trabalho pretende mostrar-nos o que está escondido, oculto, a face da realidade que está escondida de nós pelas fantasias da publicidade e dos consumidores. Por detrás do consumismo encontram-se o ambiente natural que ele espoliou, e os trabalhadores que labutam para o manter.

Nas cenas de fim do documentário nós vemos canadianos a confundir as imagens em exposição numa galeria. Olham perplexos e perturbados. Não sabem de todo o que fazer, confrontados com algo que sempre souberam no seu subconsciente. A minha única esperança é que alguns deles tenham sido compelidos a começar a tomar acções, mesmo que pequenas, sobre as destruições humanas e ambientais do descarrilamento do comboio causado pelo capitalismo senil.4

6. ENTREVISTA COM A REALIZADORA.

Entevista a Jennifer BaichwalPingMag, 12 de Abrl de 2007

Disponível em http://pingmag.jp/2007/04/12/manufactured-landscapes/

O Canadiano Edward Burtynsky tirou bonitas fotografias de grande escala de paisagens que foram alteradas industrialmente até ao seu extremo. O documentário Paisagens Transformadas realizado pela cineasta Jennifer Baichwal de

4 Samir Amin, Michael Hardt, Camilla A Lundberg, Magnus Wennerhag, “How Capitalism went Senile”, 4 de Março, 2002. Disponível em http://www.eurozine.com/articles/2002-05-08-amin-en.html.

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Toronto visita agora, com o fotógrafo, lugares na China e no Bangladesh e mostra como estas fotografias surpreendentes foram tiradas. Fornece uma experiência estranha assim como das consequências grotescas e desagradáveis da produção em massa. Por exemplo, cinquenta por cento de todos os computadores do mundo acabam na China, entre muitos outros materiais usados… Não necessitamos de ser ecologicamente orientados, mas este documentário deixar-nos-á a pensar, sem nenhuma dúvida. PingMag falou com Jennifer Baichwal sobre sua película da sensibilização.

Jennifer, como começou o projeto Pasiagens Transformadas?

Eu conhecia o trabalho de Edward Burtynsky há muito tempo e comecei a interessar-me realmente quando começou tirar fotografias da pedreira. Eu vejo nelas uma metáfora tão bonita, é literalmente um buraco na terra que nós criamos quando necessitamos de materiais para a civilização. O projecto surgiu-me então quando o fotógrafo, que viajou com Edward, abordou o nosso colega produtor Daniel Iron com 60 horas de imagens amadoras, procurando alguém que pudesse fazer um filme a partir delas. Eu estava a ver o filme e a chegar à conclusão que poderia de precisar de algo mais. Eu comecei a reunir-me com Edward e o projecto global surgiu-me muito rapidamente: incrivelmente, nós conseguimos reunir todos os fundos necessários no Canadá em aproximadamente quatro meses.

Quanto tempo demorou as filmagens?

Nós estávamos na China para três e meio das semanas em 2005, filmando em Super 16 com uma pesado trabalho de câmara. Antes disso, tiramos fotografias da lição de Edward na conferência de TED5. E nós incorporamos a fotografia a preto e branco que foi tirada pelo fotógrafo a sua câmara vídeo.

5 Disponível em http://www.ted.com/tedtalks/tedtalksplayer.cfm?key=e_burtynsky.

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Este não é o retrato usual de uma pessoa, é sobre os seus assuntos…

Eu não quis fazer um retrato convencional de um artista. O que seria realmente importante era usar as fotografias como um ponto de partida e estender o seu significado até meio do documentário Estão a tentar arrastar as consciências de uma forma não-didáctica: não querem discursar ou entregar a si uma mensagem, mas sim convidá-lo para uma arena de reflexão sobre o nosso próprio impacto no planeta. Também, se você olha para as fotografias de Ed mais próximo para se verem os detalhes - centenas de pessoas nas suas actividades. Nós estávamos a tentar seguir estas linhas narrativas com a película, porque com os close-ups das caras das pessoas nós quisemos dignificar o indivíduo nesta paisagem completamente despojada de dignidade.

Que cena era a mais significativa, ou difícil, de filmar para você?

O plano de abertura, filmado num dolly6, documentário era um momento grande. [Para os nossos leitores: A abertura do documentário toma quase 7 minutos no início da película.] A filmagem desta sequência demorou um dia inteiro nesta fábrica enorme de ferro e assim terminámos eu sabia que esta ia ser a cena de abertura. Eu achei que era a perfeita tradução do trabalho de Edward na película, porque a única maneira de expressar a escala da fábrica utilizando um meio que expresso o tempo é: tem que sentar-se completamente e prestar atenção às linhas de montagem após linhas de montagem da fábrica. Você pensa que esta é apenas a sequência da abertura, mas por outro lado, continua e você começa a ficar cansado e começa a olhar para as caras da pessoa. Então você começa a ficar saturado com a ideia que este lugar é enorme. E é somente depois de todo este processo que a voz de Edward entra [como voz-off]. Também, como a película inteira é razoavelmente meditativo, a cena de abertura permite reproduzir o seu ritmo.

6 N.T. O dolly é um veículo com rodas pneumáticas, para movimentar a câmara e o operador (e um ajudante) durante as filmagens ou a captação de imagens. A coluna onde assenta a câmara sobe e desce por comandos electro-hidráulicos.

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Eu achei extremamente emocionante ver a sequência de imagens da barragem das Três Gargantas na China: como os povos têm que arrasar os seus próprios repousos para pavimentar o que vai ser a via navegável para os navios. E estão a ser pagos pelos tijolos ao quilo…

Parece uma paisagem do após-guerra, quando você percebe: as pessoas estão a arrasar as suas próprias casas unicamente à mão, tijolo a tijolo. A outra tragédia é que muita da terra mais fértil da China foi perdida. É tão arrogante mudar tão radicalmente a terra - por electricidade.

Há muitas cenas silenciosas e intensas que demonstram o impacte ambiental. Certamente que a Jennifer já era uma pessoa consciente, mas a sua atitude mudou ainda mais durante a filmagem na China?

Para começar, a China é um país poderoso e a escala de tudo é maciça. Eu nunca estive em fábricas com estas dimensões como aquela em que entrámos antes. Produz 20 milhões de acessórios para o cabelo por ano. O local de reciclagem de alumínio que nós visitámos é o terceiro maior mundial. Enviam tudo do resto do mundo para lá. Vendo o Trabalho de Sísifo destes povos que saem destas pilhas enormes de alumínio, tornei-me muito mais ciente das particularidade dos ciclos do consumo e do desperdício em que nós todos entramos - e como devastadores eles são.

Posso supor que nós não podemos só responsabilizar a China que tenta acompanhar as nações industrializadas

China fez o que cada outro país fez: industrializar, tornar-se suja, fazer dinheiro, a seguir limpar e exportar o lixo para um outro país que não atravesse o mesmo processo ainda. O problema é que a escala é muito maior na China e agora está sob a pressão porque cada indústria suja no mundo foi convidada a instalar-se lá. Há a possibilidade de zonas inteiras se desmoronarem antes de se poderem regenerar. O que era incrivelmente moderado…

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Eu gostava de saber como as pessoas podem realmente viver nestas áreas

Numa cena nós estávamos no maior centro de distribuição de carvão da China, de onde sai para todo o país, transportado por camiões, comboios, navios. Tão longe quanto se podia ver, havia estes montes massivos de carvão. Enquanto nos deslocávamos de carro para mais longe, percebemos que existia uma central nuclear num canto e o centro de carvão no outro – no meio de todas estas construções a decorrer, percebemos que a terra em que estávamos não tinha nenhuma matéria orgânica nela deixada nela: era como a cinza. Mas, esta não era uma parte industrial longe da civilização residencial. Estava no meio dos apartamentos com milhares de pessoas a lá viverem. Eu apenas pensei: nós todos nos dirigimos para estes cenários se não pararmos.

Como reagiram as audiências depois dos visionamentos nos diversos festivais em que participaram?

Primeiramente, as Paisagens Transformadas foram editadas durante aproximadamente oito meses, um processo longo de relativo isolamento. Quando foi premiado no Festival de Cinema de Toronto [que lhe valeu uma um prémio como o melhor documentário canadiano] era a primeira vez que mais de duas pessoas para além de mim o viram: foi particularmente pesado vê-lo e perceber que havia um tipo de silêncio após a última cena. Mas, depois os espectadores aplaudiram-no e tudo correu bem. Desde então, eu vi-o várias vezes com muitas audiências e as pessoas depois perguntavam sempre: “Para onde nós vamos a partir daqui?”

Finalmente, fale-nos, por favor, do seu projecto seguinte…

Actualmente nós estamos a tentar financiar a sua passagem nos EUA e na Europa, e estamos a filmar o nosso próximo filme: sobre as que são atingidas por relâmpagos. Eu vejo os relâmpagos como uma espécie de metáfora para o paradoxo da escolha aleatória. Estamos a fazer várias entrevistas, por exemplo, com Paul Auster que, enquanto criança, viu um relâmpago a atingir uma pessoa à sua frente

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e que morreu. Eu penso que deve ter afectado bastante o seu trabalho, como a sua obsessão pela sorte e destino. Eu nunca fiquei satisfeita com os documentários científicos dado que todos seguem uma fórmula convencional que dispensa a informação que é inquestionável. Assim, esta será uma película da arte sobre um assunto científico.

O relâmpago é incontrolável. As Paisagens Transformadas são as opostas

Não exactamente. Nós colocámos algo em movimento que agora algo já não conseguimos controlar. Mas, nós somos muito responsáveis por ele!

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© Manufactured Landscapes, 2006.

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II PARTE.

ECONOMIA GLOBAL, INDUSTRIALIZAÇÃO E MEIO AMBIENTE

1. O MOVIMENTO ECOLOGISTA NO SUL GLOBAL.

Walden Bello, Terça-feira, 2 de Dezembro de 2008, disponível em http://alternatives-international.net/article2762.html.

Nesta contribuição, Walden Bello retorna às lutas ecologistas na Ásia, a sua articulação com os outros movimentos sociais e o seu papel no combate contra a mudança climática.

A atitude do mundo em desenvolvimento em relação à questão ecológica frequentemente foi assimilada aos comentários combativos do antigo primeiro-ministro da Malásia, Mahamad Mahatir, que declarava, em Junho de 1992, aquando da conferência de Rio de Janeiro sobre o ambiente e o desenvolvimento: “Quando os ricos desbastaram as suas florestas, construíram as suas fábricas cuspideiras de veneno e correram o mundo à procura de recursos baratos, os pobres não disseram nada. Pagaram para o desenvolvimento dos ricos. E agora os ricos exigem controlar o desenvolvimento das nações pobres… Como colónias, fomos explorados. Agora, como nações independentes, somos igualmente explorados”7. Mahatir foi visto no Norte como sendo o porta-voz de um Sul que procura efectuar a sua convergência a qualquer preço e onde o movimento ecologista é fraco ou

7 Discurso de Mohamad Mahathir, aquando da Conferência da ONU sobre Ambiente e Desenvolvimento, Rio de Janeiro, 13 de Junho de 1992.

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inexistente. A China seria hoje exemplar nesta obsessão de industrialização rápida sem consideração pelo ambiente.

Esta percepção é uma caricatura. Na realidade, os custos ambientais da industrialização rápida constituem um assunto essencial de preocupação para sectores significativos da população dos países em desenvolvimento e o movimento ecologista tem um papel importante. Para além disto, actualmente, têm lugar debates intensos sobre as alternativas ao modelo desestabilizante de crescimento rápido. Embora neste artigo o acento seja posto na Ásia, esta tendência observa-se na América Latina e em outras regiões do Sul global.

A emergência do movimento ecologista nos novos países industriais

Na Coreia e em Taiwan, países anteriormente chamados de novos países industrializados, os movimentos ecologistas são dos mais avançados. Isto não é surpreendente, dado que o processo de desenvolvimento industrial rápido nestas duas sociedades, de 1965 à 1990, se efectuou com muito pouco ou mesmo nenhum controlo ambiental. Na Coreia, os rios Han e Nakdong que atravessam respectivamente Seul e Pusan foram tão poluídos pelas descargas de desperdícios industriais não controladas que chegaram ao ponto de serem classificados como biologicamente mortos. As descargas de desperdícios tóxicos atingiram proporções críticas. Em 1978, Seul obteve a distinção pouco invejável de ser a cidade com a mais elevada concentração de dióxido de enxofre no ar, níveis elevados registados igualmente em Incheon, Busan, Ulsan, Masan, à Anyang e Changwon8.

Em Taiwan, a industrialização rápida teve igualmente o seu lado obscuro. A versão taiwanesa da industrialização equilibrada visava limitar a concentração industrial e incentivava os industriais a instalar as suas fábricas nas áreas rurais. O resultado foi que uma parte substancial dos 90 000 hectares que ocupam se situa em

8 A crise ecológica na Coreia é tratada longamente em Walden Bello e Stéphanie Rosenfeld, Dragons in Distress: Asia’s Miracle Economies in Crisis (São Francisco: Food First, 1990), p. 95-118.

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campos de arroz, ao longo de cursos de água e perto de zonas de habitação. Com três fábricas por milha quadrado (2,6 km2), a densidade industrial em Taiwan é 75 vezes superior à dos Estados Unidos. Resultado, 20% das terras aráveis estão poluídos pelas águas residuais industriais e 30% do arroz cultivado na ilha é contaminado por metais pesados como o mercúrio, o arsénico e o cádmio9.

Nestes dois países, os camponeses, os trabalhadores e o ambiente suportaram os custos da industrialização acelerada. Não é por conseguinte surpreendente que nos dois se assiste ao surgimento espontâneo de um movimento ecologista, de muitos militantes, que atrai participantes de diferentes categorias sociais e que faz ao mesmo tempo a ligação entre as reivindicações ambientais e as questões do emprego, da saúde no trabalho e da crise agrícola. Para este movimento, a acção directa tornou-se uma arma de escolhas porque, como indica Michale Hsiao: “As pessoas sabem que as lutas podem produzir resultados; a maior parte das acções da qual se pode fazer um balanço atingiu os seus objectivos. As fábricas poluentes foram forçadas quer a efectuar melhorias imediatas quer a pagar compensações às vítimas. Certas fábricas foram obrigadas a fechar ou a serem deslocadas. Algumas acções preventivas impediram mesmo a construção de unidades poluentes”10.

Nos dois países, os movimentos ecologistas obrigaram o governo respectivo a adoptar regras restritivas relativamente aos produtos tóxicos, aos desperdícios industriais e à poluição do ar. Contudo, de maneira irónica, estes sucessos registados pela mobilização dos cidadãos criaram novos problemas com a migração das indústrias poluentes de Taiwan e Coreia para a China e o Sudeste asiático. Da mesma maneira que as empresas japonesas, as empresas coreanas e taiwanesas implantaram-se na Ásia do Sudeste principalmente por duas razões: uma mão-de-obra barata e normas ambientais laxistas.

9 Ibidem, p. 195.

10 Ibidem, p. 213.

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As lutas ecologistas em Ásia do Sudeste

Em numerosos países do Sudeste asiático, ao contrário da Coreia e do Taiwan, o movimento ecologista existia mesmo antes do período de industrialização rápida entre meados dos anos 80 meados dos anos 90. Os movimentos emergiram nos anos 70 no âmbito de lutas contra centrais nucleares (Filipinas) ou centrais hidroeléctricas gigantes, contra o desflorestamento e as poluições marinhas (Tailândia, Indonésia, Malásia e Filipinas). Algumas destas lutas deram lugar a batalhas épicas. Assim, as mobilizações contra as barragens nos rios Chico nas Filipinas e Pak Mun no Nordeste da Tailândia forçaram o Banco Mundial a renunciar a apoiar estes projectos hidroeléctricos gigantes. Foi igualmente o caso da barragem de Narmada na Índia (cf. infra). Outra frente de luta para a preservação do ambiente foi o combate contra as empresas estrangeiras que se implantaram para beneficiar de normas ambientais menos restritivas que no seu país de origem.

Mais ainda que na Ásia do Nordeste, a questão ambiental na Ásia do Sudeste é uma preocupação que, para além das classes médias, toca largamente a população. Assim, na mobilização contra a barragem de Chico, a oposição principal foi a dos povos indígenas enquanto no caso da barragem de Park Mun, o núcleo da contestação era formado por pequenos camponeses e pescadores. A questão ambiental também era integrada de maneira mais coerente numa crítica globalizante. Num caso, nas Filipinas, por exemplo, o desflorestamento era visto como uma consequência inevitável da estratégia de crescimento impulsionado pelas exportações imposta pelos programas de ajustamento estrutural do Banco Mundial e do FMI: as exportações de madeiras, de outras matérias-primas e de bens manufacturados produzidos com mão-de-obra barata deveriam gerar as receitas em divisas que permitissem reembolsar a enorme dívida externa do país. A classe média, os trabalhadores, os pobres urbanos e os ecologistas foram assim estimulados a aliarem-se contra o eixo anti-ecológico constituído pelo capital transnacional, o capital local monopolístico e o governo central.

Os movimentos ecologistas na Ásia do Sudeste jogaram um papel não somente

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boicotando projectos como o de uma central nuclear em Bataan, mas igualmente despojando as ditaduras dos anos 70-80. Com efeito, dado que a questão ambiental não era entendida como “política” pelos regimes autoritários, organizar-se em redor destas questões assim como em redor das questões de saúde não era inicialmente proscrito. Assim, as lutas ecologistas constituíram um dos eixos a partir do qual o movimento antidictatorial se estruturou e sensibilizou outras pessoas. A destruição do ambiente tornou-se numa ilustração suplementar da irresponsabilidade dos regimes. Na Indonésia, por exemplo, a organização ambiental WALHI envolveu-se em processos contra a continuação da poluição e destruição do ambiente contra seis instituições governamentais, incluindo o ministério do Ambiente e a população11. Quando as ditaduras compreenderam o que se estava a jogar, era demasiado tarde para elas: ecologia e antifascismo tinham-se alimentado mutuamente.

Mobilizações ecologistas em China

Um processo similar poderia desenrolar-se hoje na China. A crise ambiental é profunda. Por exemplo, o nível hidrográfico subterrâneo na planície da China do Norte diminui de 1,5 metro/ano. Esta região produzida 40% dos cereais do país. A ecologista Ladrilho Wen observa: “Pode-se apenas interrogar como é que a China se irá alimentar, uma vez que os lençóis freáticos se irão esgotar.”12 A poluição da água, a sua rarefacção, a poluição e a degradação dos solos, a desertificação, o aquecimento climático e a crise energética podem vir a constituir produtos quer derivados da industrialização rápida na China quer da expansão intensa do consumo.

Embora o essencial da desestabilização ambiental da China resulte de empresas locais ou de gigantescas empresas públicas como a Barragem das Três Gargantas, a contribuição dos investidores estrangeiros está longe de ser

11 Frieda Sinanu, «Coming of Age: Indonesia’s Environmental Network; Faces Dilemmas as it Frieda Sinanu, «Coming of Age: Indonesia’s Environmental Network; Faces Dilemmas as it Turns 25», Inside Indonesia, 2007; http://insideindonesia.org/content/view/72/29/.

12 Entrevista com Dale Wen, Focus on the Global South website, http://www.focusweb.org/interview-with-dale-wen.

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negligenciável. Aproveitando a aplicação pouco rigorosa das normas ambientais, numerosas multinacionais ocidentais deslocalizaram as suas fábricas mais poluentes para o país, criando e exacerbando problemas ambientais. Wen indica que os deltas dos rios Pérola e Yangzi, onde se situam as zonas económicas especiais, onde estão implantadas a maior parte das multinacionais, são as regiões mais afectadas pela poluição de metais pesados e de poluentes orgânicos persistentes13.

O aquecimento climático não constitui uma ameaça longínqua. O primeiro estudo detalhado do impacte do aumento do nível dos mares, efectuado por Gordon McGranahan, Deborah Balk e Bright Anderson, considera que a China é o país da Ásia mais ameaçado pela subida esperada de 10 metros do nível dos mares durante o próximo século14. 144 milhões de chineses vivem em zonas costeiras de baixa altitude e este número deverá aumentar devido à estratégia do governo de desenvolvimento das exportações que inclui a criação de numerosa zona económica especiais. O estudo avisa: “Do ponto de vista do ambiente, não há nenhuma dúvida sobre a dupla desvantagem de um desenvolvimento costeiro excessivo (e potencialmente rápido). Primeiramente, um desenvolvimento costeiro não controlado corre o risco de degradar ecossistemas frágeis e outros recursos importantes. Em segundo lugar, a construção de habitações nestas zonas expõe os residentes a perigos com origem no mar como a elevação do nível das águas e as tempestades tropicais que constituem riscos crescentes com o aquecimento climático”15. A recente vaga de super-tufões originária do continente asiático no sentido Pacífico Ocidental sublinha a gravidade desta observação.

No que diz respeito à saúde pública, a infra-estrutura sanitária rural periclita de acordo com Ladrilho Wen. O sistema foi privatizado com a introdução de um mecanismo de honorários por serviços prestados por quem participa no programa

13 Ibidem.

14 Citado por R. Ramachandran, «Coming Storms», Frontline, vol. 24, n.º 7, Abril de 2007. http:// Citado por R. Ramachandran, «Coming Storms», Frontline, vol. 24, n.º 7, Abril de 2007. http://www.frontlineonnet.com/fl2407/stories/2007042001609000.htm.

15 Ibidem.

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de reforma neoliberal. Uma consequência desta evolução é a ressurgência de doenças que tinham sido reabsorvidas em parte como a tuberculose e a schistosomíase16. Cuba, pelo contrário, é reconhecida pela qualidade do seu sistema de saúde rural, que, como sublinha Wen, é baseado no sistema do médico de pés descalços da época maoista17.

A segurança alimentar constitui outra questão relevante de saúde pública. A combinação da industrialização da produção alimentar e o alongamento das cadeias de abastecimento do produtor ao consumidor é grandemente suspeita de ser a origem da gripe aviária que parte da China estendeu a outros países. O governo não se mostrou capaz na gestão das novas doenças como a gripe aviária e o SRAS (Severe Acute Respiratory Syndrome), procurando minimizar a ameaça ou mesmo escamotear o caso do SRAS.

Como em Taiwan ou na Coreia quinze anos mais cedo, a industrialização orientada para a exportação tem-se traduzido simultaneamente numa migração de mão-de-obra barata, numa apropriação ou numa degradação de terras das comunidades campesinas e, em reacção, numa emergência de movimentos ecologistas e partidários de uma mudança essencial em matéria de economia política que constituem “a nova esquerda”. Os motins, manifestações e conflitos ecológicos aumentaram 30% na China em 2005 – contaram-se mais de 50 000 acontecimentos; a agitação social relativa às poluições tornou-se, de acordo com um relatório, “numa origem de contágio de instabilidade no país”. Com efeito, um grande número de mobilizações mistura questões ambientais, sociais e políticas. Aquilo que o ministério da Segurança Pública chama de “incidentes em reunião” passou de 8 700, em 1995, a 87 000, em 2005, sendo a maior parte nos campos. Adicionalmente, o número de participantes passou de uma média de 10 pessoas ou

16 A schistosomíase é uma afecção parasitária potencialmente curável, que se estima afecte cerca de 200 milhões de pessoas em todo o mundo, distribuídas por 74 países das Caraíbas, África, América do Sul e Ásia. Os agentes causais utilizam, como hospedeiro intermediário, moluscos de água doce [N. T.].

17 Comunicação por e-mail em 25 de Setembro de 2007.

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menos em meados dos anos 90 a 52 pessoas por acontecimento, em 200418. Em Abril de 2005, em Huashui, dez mil polícias enfrentaram aldeões desesperados que conseguiram pôr em causa direitos adquiridos de poderem poluir a sua terra.

Como em Taiwan, as pessoas descobriram nas campanhas chinesas a eficácia da acção directa. “Sem motins, não teria havido alteração nenhuma”, declara Wang Xiaofang, um camponês de 43 anos. “As pessoas finalmente têm atingido um ponto de ruptura”19. Como na Ásia do Sudeste, as lutas para a defesa do ambiente e a saúde pública podem conduzir a um alargamento da consciência política.

A força do movimento ecologista na China não deve ser exagerada. O número dos seus malogros excede largamente o número dos seus sucessos. As alianças são frequentemente espontâneas e não se estendem para além do nível local. Aquilo a que Dalle Wen chama de uma coligação nacional “vermelho-verde” para o desenvolvimento permanece no momento uma força potencial que deve ser construída. No entanto, o movimento ecologista não é mais um actor marginal. É algo com o qual o Estado e o capital devem contar. Com efeito, o fermento rural é um factor chave que é visto como tendo tornado a actual direcção do país mais aberta a sugestões “da nova esquerda”: uma mudança da política económica que quebre com o crescimento rápido orientado pelas exportações a favor de uma estratégia de crescimento sustentável, mais lento e orientado para a procura doméstica.

O movimento ecologista na Índia

Como na China, o ambiente e a saúde pública foram temas de combate. Durante os vinte e cinco últimos anos, o movimento para a defesa do ambiente e

18 Fred Bergsten Fred Bergsten et al., China: What the World Needs to Know now about the Emerging Superpower (Washington: Center for Strategic and International Studies and Institute for International Economics, 2006), p. 40-41.

19 «Increase in Environmental Unrest Causes Instability in China», Green Clippings, http://www. «Increase in Environmental Unrest Causes Instability in China», Green Clippings, http://www.greenclippings.co.za/gc_main/article.php ?story=20060906170952367.

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da saúde pública explodiu. É uma das forças vivas que trabalha no aprofundamento da democracia indiana.

O combate pelo ambiente e pela saúde pública remonta há já algum tempo, mas talvez apenas um grande acontecimento permitiu realmente ao movimento atingir uma massa crítica: a fuga de gases Bhopal, em 3 de Dezembro de 1984, que deixou escapar 40 toneladas de isocianato de metilo, matando imediatamente 3 000 pessoas e causando entre 15 000 e 20 000 mortes no total. A luta por uma indemnização justa das vítimas Bhopal prossegue até hoje.

Observa-se actualmente uma proliferação de lutas neste vasto país. Há a campanha nacional contra as fábricas da Coca-cola e Pepsi Cola, porque utilizam águas subterrâneas e poluem os campos com os seus resíduos. Há lutas locais contra a aquicultura intensiva em explorações agrícolas de Tamil Nadu, de Orissa e de outros estados costeiros. Há igualmente a campanha não violenta mas determinada efectuada pelos agricultores contra os OGM (Organismos Geneticamente Modificados), como por exemplo as práticas de arranque de plantas ou de atear fogo nos campos de arroz OGM. E certamente, há movimentos contra as barragens como o movimento Narmada Bachao Andolan. Estas lutas fizeram emergir grandes líderes, passando alguns a ser figuras chave da luta ecologista à escala mundial.

Em matéria de saúde pública, o problema central vem da enorme pressão das empresas farmacêuticas estrangeiras para que a Índia adopte uma legislação sobre as patentes e seja coerente com o Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio (Acordo TRIPS/ADPIC) da OMC. A inquietação baseia-se no risco de ver desaparecer a possibilidade de produzir medicamentos genéricos a baixos preços ao mesmo tempo para o mercado interno e para a exportação. Que o país escolha submeter-se ou não a este Acordo tornou-se uma questão de vida ou de morte para 2 a 3,6 milhões de pessoas que vivem com o HIV na Índia – ou seja, menos que na África do Sul ou na Nigéria – mas também para a larga franja da população de numerosos países africanos infectada pelo vírus e que depende das importações de medicamentos a baixos preços para ser tratada.

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Há dois anos, alterações chave defendidas por forças progressistas foram incorporadas na “lei sobre as patentes indianas”. Resultou, como escreveu um jornal influente, “um regime de patentes relativamente flexível para o momento”20. Um destas alterações declarava que as empresas indianas podiam continuar a produzir e a colocar no mercado medicamentos que produzissem antes de 1 de Janeiro de 2005, após terem pago “royalties razoáveis” ao detentor da patente. Sob o regime anterior não podiam fazer isto. Outra alteração importante permitiu que o processo de exportação dos medicamentos para um outro país se tornasse menos difícil, porque deixou de ser necessário pedir uma licença a este país. Alguns consideraram que estas alterações não foram de uma grande utilidade na oposição à ofensiva das multinacionais destinadas a privatizar o conhecimento em detrimento da saúde pública. Outros apoiam que se as alterações parecem menores, têm a sua importância porque no mundo bizantino do Acordo TRIPS/ADPIC, o diabo está nos pormenores.

É necessário também falar do movimento ecologista indiano, o mais intenso e o mais influente: o movimento antibarragem. As barragens são uma ilustração do que era para numerosos governos do terceiro mundo a modernização no pós-guerra: a convergência com o nível de desenvolvimento do Ocidente. No domínio da energia, o projecto tecnológico consistia em criar um número limitado de centrais eléctricas – barragens gigantescas, fábricas que funcionam a carvão ou a petróleo ou centrais nuclear –, posicionadas estrategicamente de maneira a fornecer electricidade aos quatro cantos do país. As fontes de electricidade locais ou tradicionais que permitiam um certo grau de auto-suficiência eram consideradas antiquadas. Se não se ligassem a uma rede central, seriam antiquados.

A electrificação centralizada com as suas grandes barragens, as suas fábricas que operam a carvão e as suas centrais nucleares faziam furor. Havia quase um fervor religioso nesta visão dos chefes e dos tecnocratas que qualificavam o seu

20 V. Sridhar Siddharth Narrain, «A Tempered Patents Regime», Frontline, vol. 22, n.º 8, 2005; V. Sridhar Siddharth Narrain, «A Tempered Patents Regime», Frontline, vol. 22, n.º 8, 2005; http://www.flonnet.com/fl2208/ stories/20050422004602800.htm.

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trabalho diário “de electrificação missionária”: tratava-se de conectar a aldeia mais afastada à rede central. Nehru, a figura dominante da Índia da pós-guerra mundial, qualificou as barragens “de templos da Índia moderna”. Uma afirmação que, como aponta uma autora indiana, Arundhati Roy, conseguiu impor-se até nos manuais da escola primária em todas as línguas da Índia. As grandes barragens tornaram-se um objecto de fé inextrincavelmente ligado ao nacionalismo. “Questionar a sua utilidade é quase tornar-se culpado de rebelião”21.

No seu ensaio The Cost of Living, Roy observa brilhantemente que em nome da electrificação missionária os tecnocratas indianos não somente construíram “novas barragens e planos de irrigação… [mas têm também] tomado o controlo de pequenos sistemas tradicionais de abastecimento de água que existem desde há milhares de anos, deixando-os periclitar”22. Aqui Roy confessa uma verdade essencial: a electrificação centralizada impediu o desenvolvimento de sistemas alternativos que teriam podido ser descentralizados, mais orientados para as necessidades das pessoas, menos problemáticos para o ambiente e menos dispendiosos em capital.

Potentes coligações locais constituídas por tecnocratas da energia, homens de negócio e elites urbanas e industriais executaram o projecto de electrificação centralizado. Apesar da retórica sobre “a electrificação rural”, a electrificação centralizada era encaminhada essencialmente para as cidades e as indústrias. Para além disto, no caso das barragens, isto implicou utilizar o capital natural dos campos e as florestas para subvencionar o crescimento das indústrias baseadas nas zonas urbanas. A indústria era o futuro. A indústria era o que gerava o valor acrescentado. A indústria era sinónima de poder nacional. A agricultura era o passado.

Enquanto certos interesses recolhiam benefícios, outros pagavam os custos. São particularmente as zonas rurais e o ambiente que sofreram os custos

21 Arundhati Roy, � e Cost of Living, London, Flamingo, 1999. Arundhati Roy, �e Cost of Living, London, Flamingo, 1999.

22 Ibidem.

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da centralização da electrificação. Crimes imensos foram cometidos em nome da produção de electricidade e da irrigação, refere Roy, mas são escondidos porque os governos nunca os registaram. Na Índia, Roy calcula que as grandes barragens causaram a deslocação de cerca de 33 milhões de pessoas nos últimos cinquenta anos, 60% entre elas seriam intocáveis ou povos indígenas.

A Índia não tem política nacional de reinstalação para as populações deslocadas devido a estas barragens. Os custos em matéria de ambiente foram gigantescos. Roy aponta o facto de que “as provas contra as grandes barragens são cada vez mais numerosas: desastres na irrigação, inundações provocadas, zonas mais áridas…”23.

As coisas alteraram-se quando o governo anunciou os seus projectos de barragem no grande rio Narmada no fim dos anos 70. Em vez de aceitarem tranquilamente a empresa apoiada pelo Banco Mundial, as populações afectadas organizaram-se para resistirem e a mobilização continua até agora. Os movimentos Narmada Bachao Andolan sobre a barragem Sardar Sarovar, criados por Medha Patkar, e sobre a barragem Maheshwar, criados por Alok Aggarwal e Silvi, foram apoiados em toda a Índia e internacionalmente. A resistência popular efectuada principalmente por adivasis e indígenas conseguiu dobrar o Banco Mundial que renunciou o seu apoio financeiro ao projecto. Adicionalmente, as mobilizações fizeram atrasar a construção de tal forma que a realização da barragem tornou-se incerta. O Tribunal supremo ordenou a indemnização a todos os que foram afectados pela construção da barragem de Sardar Sarovar e, em Março de 2005, exigiu a paragem da construção da barragem até que todos fossem efectivamente compensados. A construção da barragem foi parada a 110,6 metros, nível bem mais elevado que os 88 metros propostos pelos militantes e mais baixo que os 130 metros que a barragem é suposta atingir. A saída do conflito não é clara hoje e não se sabe se a construção será retomada e quando, embora seja suposto que o projecto na sua

23 Ibidem.

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totalidade termine em 202524. O destino da barragem Maheshwar está também muito pouco claro.

O impacte político da luta de Narmada foi também muito importante. Esta luta posicionou-se na ponta dos movimentos sociais que fizeram avançar a democracia indiana e transformaram a cena política. A burocracia de Estado e os partidos políticos devem agora ouvir estes movimentos sob pena de se defrontarem com uma oposição e, no caso dos partidos, de perder o poder. Os movimentos sociais nas zonas rurais jogaram um papel chave na emergência de uma consciência de massa que permitiu a derrota em 2004 da coligação neoliberal criada pelo Partido Nacionalista Hindu (Bharatiya Janata Party: BJP) e cujo slogan pró globalização de campanha era: “A Índia brilha”. O seu sucessor, a coligação criada pelo Partido do Congresso, virou as costas aos protestos rurais que permitiram a sua eleição e pôs em marcha as mesmas políticas anti-agricultura e pró globalização. Isto corre o risco de provocar um regresso da violência num futuro próximo.

O movimento ecologista está hoje na frente do maior desafio da sua história: o aquecimento climático. Como na China, a ameaça não é remota, nem em termos de tempo nem em termos de espaço. O dilúvio que a cidade de Bombaim conheceu em 2005 deve-se a precipitações excepcionais que chegam normalmente apenas uma vez por século25. Os glaciares himalaicos perdem terreno e um dos maiores recua a uma velocidade qualificada por um jornal “de alarmante, e influenciando o caudal dos rios que descem os Himalaias”26. 6% da população indiana, ou seja, 63,2 milhões de pessoas, vivem em zonas inundáveis, vulneráveis aos maremotos27. Sobre a costa do Gujarat, o aumento do nível do mar desloca aldeias. É também o caso de numerosos lugares ao longo dos 7 500 km de costas indianas. Um relatório indica que “no

24 «Narmada River», Wikipedia; http://en.wikipedia.org/wiki/Narmada_River.

25 R. Ramachandran, «Himalayan Concerns», Frontline, vol. 24, n.º 14, 2007; http://www.fl onnet. R. Ramachandran, «Himalayan Concerns», Frontline, vol. 24, n.º 14, 2007; http://www.flonnet.com/fl2404/stories/20070309006201000.htm.

26 Ibidem.

27 R. Ramachandran, «Coming Storms…». R. Ramachandran, «Coming Storms…».

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Sunderbans, duas ilhas já desapareceram do mapa, causando a deslocação de 7 000 pessoas. Doze outras ilhas são susceptíveis de desaparecer porque o mar sobe cada ano de 3,14 metros. Isto criaria 70 000 refugiados. Cinco aldeias no parque nacional de Bhitarkanakina no Orissa, muito conhecido pelas suas tartarugas de tipo Olive Ridley, foram submersas e dezoito outras deveriam conhecer o mesmo destino”28.

Como na China, o grande desafio é construir um movimento de massa que ponha em causa não somente a elite mas também os sectores da classe média urbana que foram os principais beneficiários da estratégia económica de crescimento elevado prosseguida desde o início dos anos 90.

Elites nacionais e terceiro-mundistas

Quis reconstituir a evolução do movimento ecologista de massa na Ásia do Este e na Índia para opor à ideia espalhada segundo a qual as massas asiáticas são elementos inertes que aceitam sem crítica os modelos de industrialização via exportações, destruidores do ambiente e promovidos pelas elites governantes. É cada vez mais claro para as pessoas comuns em toda a Ásia que este modelo arruinou a agricultura, amplificou as desigualdades de rendimentos, provocou um aumento da pobreza após as crises financeiras asiáticas e causou por toda a parte prejuízos relevantes no ambiente.

São as elites nacionais que professam a linha ultra terceiro-mundista, segundo a qual o Sul tem ainda uma quota elevada de poluição enquanto o Norte excedeu a sua. São elas que apelam à isenção dos limites obrigatórios de emissão de gases de efeito de estufa do novo Protocolo de Quioto para os países em via de industrialização rápida. Quando a administração Bush diz que não respeitará o Protocolo de Quioto porque não tem efeito na China e na Índia e que os governos chineses e indianos dizem que não tolerarão limites às suas emissões de gases de efeito de estufa porque os Estados

28 Dionne Busha, «Gone with the Waves», Frontline, vol. 24, n.º 14, 2007; http://www.fl lonnet. Dionne Busha, «Gone with the Waves», Frontline, vol. 24, n.º 14, 2007; http://www.fllonnet.com/fl2414/stories/20070727000206600.htm.

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Unidos não ratificaram o Protocolo, todos eles formam com efeito uma aliança pouco reconhecida para permitir às suas elites económicas continuarem a subtrair as suas responsabilidades em matéria de ambiente às expensas do resto do mundo.

Esta aliança doravante é formalizada através da “Parceria Ásia Pacífico” criada em 2006 pela China, pela Índia, pelo Japão, pela Coreia e pelos Estados Unidos para fazer concorrência ao Protocolo de Quioto negociado no âmbito das Nações Unidas. Este grupo recentemente recrutou o Canadá, doravante governado pelo clone de Bush, Stephan Arpoar, e procura introduzir a noção de limites voluntários, e não impostos, quanto às emissões de gases de efeito de estufa. É uma perigosa banda de países que não tem muito mais na sua agenda do que procurar lançar o carbono onde lhes interessa, porque é isto que significa realmente “pôr limites voluntários”.

Uma necessidade de ajustamento global

Não há nenhuma dúvida que o ajustamento no aquecimento climático pesará largamente sobre o Norte e que deverá ter lugar nos próximos dez a quinze anos. Este ajustamento necessário será certamente mais importante que os 50% de redução em 2050 em relação às emissões dos anos 90 (que é preconizado pelo G-8). Para certos peritos, 90 a 100% de redução em relação aos níveis actuais é que poderia ser conveniente – o que quereria dizer emissão zero29. Independentemente da taxa real, é evidente que o Sul terá também necessidade de ajustar-se, proporcionalmente menos que o Norte, mas igualmente de maneira bastante estrita.

O ajustamento do Sul não terá lugar se o Norte não assumir a dianteira. Mas ele não terá jamais lugar se os líderes do Sul não puserem no caixote de lixo o paradigma de forte crescimento orientado para as exportações promovido pelo Banco Mundial e pela maior parte dos economistas e ao qual as elites e numerosas camadas médias se sentem dependentes.

29 Catherine Brahic, «�ero Emissions Needed to Avert “Dangerous” Warming», New Scientist, Catherine Brahic, «�ero Emissions Needed to Avert “Dangerous” Warming», New Scientist, http://environment.newscientist.com/article.ns ?id=dn12775&print=true.

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As pessoas no Sul estão abertas a uma alternativa ao modelo de desenvolvimento que prejudicou ao mesmo tempo o ambiente e a sociedade. Por exemplo, na Tailândia, um país devastado pela crise financeira asiática e envolvido em numerosos problemas ecológicos, a globalização e o crescimento impulsionado pelas exportações têm surgido como os grandes motes. Para consternação da revista The Economist, os tailandeses são cada vez mais receptivos à ideia “de economia de suficiência” promovida pelo monarca popular King Bhumibol. É uma estratégia virada para o interior e que insiste na auto-satisfação ao nível local e na criação de relações mais fortes entre as redes económicas internas e tudo isto “trabalhando moderadamente com a natureza”30.

A Tailândia é talvez uma excepção no que diz respeito ao compromisso de uma parte da elite em prol de uma via mais duradoura. E mesmo neste caso, a orientação deste grupo em prol de uma alternativa é muito questionada. O que é claro, é que não se pode, na maior parte dos países do Sul, depender das elites e de certos sectores das classes médias para alterar de maneira decisiva o curso das coisas. No melhor dos casos, terão dúvidas. A luta contra o aquecimento climático global terá necessidade a ser efectuada por uma aliança que passe sobretudo pelas sociedades civis progressistas do Norte e os movimentos de massa do Sul.

Como no Norte, os movimentos ecologistas do Sul conheceram fases melhores e fases piores. Parece, como com todos os movimentos sociais, que seria necessário uma conjunção específica de circunstâncias para dar visibilidade aos movimentos ecologistas após fases de menor actividade ou para transformar diversas lutas locais num movimento à escala nacional. No caso do aquecimento climático, o desafio ao qual fazem face os militantes do Norte e do Sul é ainda maior: trata-se de fazer emergir as circunstâncias que provocarão a formação de um movimento de massa à escala global, capaz de fazer face de maneira decisiva à grande ameaça do nosso tempo.

30 � ailand Human Development Report 2007: Su� ciency Economy and Human Development, �ailand Human Development Report 2007: Su�ciency Economy and Human Development, Bangkok, United Nations Development Program, 2007, p. 48-49.

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2. A CHINA, A INDUSTRIALIZAÇÃO E O MEIO AMBIENTE

2.1. A CHINA E O AMBIENTE: UMA PEÇA EM QUATRO ACTOS

A China e o Meio Ambiente: Uma Peça em Quatro Actos (Tragédia ou Comédia?)

Marc Lucotte, “La Chine et l’environnement : pièce en quatre actes (tragédie ou comédie  ?”), VertigO - la revenue électronique en sciences de l’environnement, 2008, Regards sur le monde, 2008, [em linha], colocado em 12 de Fevereiro de 2009. URL: http://vertigo.revues.org/index7783.html.

Introdução

1. Raras são as semanas em que a situação ambiental da China não é tema de discussão nos media e objecto de anúncios alarmistas. A nuvem de poluição acastanhada (“brown cloud”) que cobre prática e permanentemente a China e os países vizinhos atinge dimensões inigualáveis e espalha-se de tal modo que atinge a América do Norte e ainda polui o Árctico, estando agora provado de modo definitivo que afecta o conjunto do hemisfério Norte. A poluição severa do rio Songhua devida às descargas de benzeno tem sido recentemente alvo das manchetes dos media, enquanto milhões de pessoas foram privadas de água potável, incluindo também a população da vizinha Sibéria. Como cada um de nós o sabe, a China vive um crescimento económico fenomenal (10,7% em 2006), com todas as consequências ambientais que isto está a comportar, incluindo uma procura sem precedentes de recursos minerais e uma contribuição crescente para as infracções ambientais que afectam o conjunto do planeta (gases de efeito de estufa, compostos que destroem a camada de ozono, etc.).

2. Neste texto, analisa-se a evolução da degradação do ambiente na China desde a revolução comunista e encaram-se as vias possíveis para limitar os estragos na ausência da criação a curto prazo de um verdadeiro modelo de desenvolvimento

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duradouro assente no equilíbrio do desenvolvimento humano, do desenvolvimento económico e da projecção do ambiente.

Primeiro Acto, a China comunista

3. Os fundamentos do regime comunista têm tradicionalmente privilegiado o desenvolvimento humano em detrimento do desenvolvimento económico e muito certamente em detrimento da protecção do ambiente (Figura 1). Isto traduziu-se em políticas de industrialização sistemáticas das cidades e dos campos, sobretudo situadas perto da costa. Ao mesmo tempo, partir dos anos 60, foram implantadas indústrias pesadas e centrais de produção termoeléctrica (combustão do carvão) em todos os centros das cidades. As minas de carvão em pequena escala elaboravam por toda a parte onde o recurso existia, o que permitia alimentar localmente as centrais térmicas ou os altos-fornos. Estas políticas provocaram poluições generalizadas, mas unicamente proporcionais ao consumo interno da época, ou seja, foram relativamente limitadas. Assim, a situação global do ambiente da China comunista era preocupante mas relativamente circunscrita.

Figura 1. A ordem de prioridades de sociedade sob a China comunista, neomercantilista e “verde”.

A China comunista

Desenvolvimento humano ----> Desenvolvimento económico --> Protecção do ambiente

A China neomercantilista

Desenvolvimento económico --> Desenvolvimento humano ----> Protecção do ambiente

A China “verde”

Protecção do ambiente --> Desenvolvimento económico --> Desenvolvimento humano

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Segundo Acto, a China neomercantilista

4. À partir de 1979, Deng Xiaoping declara “a pobreza, não é o socialismo. Ser rico é glorioso!”. Em 1992, lança o seu famoso “enriquece!”. A China “neomercantilista” vai assim ver o dia, que se distingue com o seu Estado central forte do sistema meramente capitalista onde unicamente as forças do mercado intervêm. Os líderes chineses de hoje, Hu Jintao (presidente, secretário do Partido Comunista Chinês, chefe dos exércitos) e Wen Jiabao (primeiro-ministro) reforçaram esta óptica neomercantilista com vigor abrindo a China ao mundo. Doravante, o desenvolvimento económico prima sobre o desenvolvimento humano, relegando sempre para terceira posição a protecção do ambiente (Figura 1).

5. Em alguns anos, passou-se de uma indústria chinesa que preenchia essencialmente as suas necessidades internas a uma China que se tem tornado na oficina do mundo de numerosos bens de consumo (aparelhos electrónicos – particularmente as televisões –, têxteis sintéticos, automóveis – 3.º produtor mundial por volta de 2010 –). Este “despertar do dragão” comporta numerosos prejuízos colaterais, até então desconhecidos na China. A procura energética sobe em flecha, o carvão representa 75% da energia primária e fornece dois terços da produção eléctrica (Feng e coll., 2002). Actualmente, mais de mil milhões de toneladas de carvão são queimadas todos os anos, sem estar a contar as duas centenas de milhões de toneladas de carvão que são queimadas espontaneamente todos os anos “fora de controlo” no Norte do país. A hidro-eletricidade conhece também um desenvolvimento sem precedentes. A Barragem das Três Gargantas, que gerará 85 mil milhões quilowatt/hora em plena capacidade, representa só ela um investimento de 24 mil milhões de dólares (40 à 50 mil milhões de dólares de acordo com fontes ocidentais) e causou a deslocação de mais de um milhão de pessoas (Li e coll., 2001). A China transformada em oficina do mundo passou também a ter o primeiro lugar mundial nas emissões de dióxido de enxofre e de compostos de cloro-fluor-carbono (CFC) e o segundo nas emissões de dióxido de carbono e outros gases de efeito de estufa como o óxido de azoto (Streets e coll., 2003; �e World Bank, 2005). A acumulação de números desanimadores é medonha: dezasseis das vinte cidades

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mais poluídas do planeta são chinesas, 40% do território chinês é afectados por severas chuvas ácidas (Feng e coll., 2002; Larssen e coll., 2006).

6. Em paralelo ao despertador do dragão, assiste-se à emergência de consumidores de classes média e rica, que comporta também repercussões enormes sobre o ambiente. A construção de milhões de novos alojamentos (80 milhões em 2000, fazendo passar o número de pessoas sob um mesmo teto de 4,5 a 3,5, entre 1985 e 2000, Liu e coll., 2003a) e de outras grandes obras urbanas são em grande parte responsáveis pelo teor de partículas em suspensão no ar das cidades, três a cinco vezes superiores às normas da Organização Mundial de Saúde (Feng e coll., 2002, Wong e coll., 2006). Cada ano, os novos consumidores chineses compram quase três milhões de automóveis novos e mais de 5 000 km de auto-estradas são construídos. Esta mesma classe média rejeita actualmente seis mil milhões de toneladas de lixos domésticos por ano, facto novo na sociedade chinesa. Estes lixos de momento são acumulados simplesmente em redor das cidades, contribuindo para a poluição dos lençóis freáticos, para a perda de terras aráveis e para a emissão de gases de efeito de estufa (Liu et Diamond, 2005). Apenas algumas cidades como Pequim, Xangai e Gangzhou começaram a triagem selectiva dos lixos, bem como a incineração dos desperdícios. Além disso, o consumo em crescendo de carne, de peixe e de outros produtos agro-industriais faz subir não somente a utilização de adubos mas sobretudo de pesticidas (de 250 000 toneladas por ano, ou seja, o segundo utilizador mundial), poluindo-se assim os cursos de água e os lençóis freáticos, provocando-se o desaparecimento de insectos depredadores e favorecendo-se o aparecimento de insectos prejudiciais resistentes.

7. O desenvolvimento económico acelerado da China provoca globalmente mudanças ambientais essenciais à escala do país: considera-se que 19% da sua superfície sofre processos de erosão dos solos, 9% de salinização dos solos e 25% de desertificação (Liu e Diamond, 2005). As terras húmidas desaparecem rapidamente, enquanto 90% dos prados naturais do país já se encontram destruídos em diversos graus. Geralmente, a qualidade, a fertilidade e a quantidade de solos aráveis têm diminuído drasticamente nos últimos anos e o processo está longe de abrandar. Esta

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constatação é ainda mais alarmante quando os chineses dispõem em média apenas de 0,1 hectare de terra arável por pessoa, ou seja, a metade da média mundial. No conjunto, a biodiversidade sofre sérios efeitos negativos enquanto em paralelo numerosas pragas invadem e espalham-se (Liu e coll., 2003b). No que respeita à situação das águas, a sua qualidade é geralmente má e continua a deteriorar-se. Apenas 20% das águas domésticas usadas são tratadas de imediato. Por exemplo, a água do reservatório Guanting em Pequim foi várias vezes declarada imprópria para consumo a partir de 1997 (Liu e Diamond, 2005). Além disso, mais de cem cidades sofrem de escassez crónica de água, e a parte a jusante do Rio Amarelo (Huang Ele) conhece episodicamente cessações completas de água. Recentemente, a poluição severa do rio Songhua por descargas acidentais de benzeno em Harbin privou de água potável milhões de pessoas, ao mesmo tempo na China e a jusante na vizinha Sibéria. Símbolo da degradação da qualidade das águas à superfície na China é a redução da captura de peixes no rio Yangtse, que diminuiu 75% nos últimos anos.

8. Os problemas ambientais da China neomercantilista também são agravados pela herança da era comunista. Assim, indústrias vetustas e muito poluentes (carvão, aço, papel, cimento, adubos) são mantidas em actividade a fim de preservar não somente milhões de empregos mas também a paz social. Por exemplo, a produção de uma tonelada de aço no Nordeste da China (Dongbei) ilustra a glória siderúrgica comunista caída em desuso quando necessita ainda de 23 a 56 m3 de água comparativamente à 6 m3 em média nos países ocidentais (Liu e Diamond, 2005).

9. A prosperidade económica actual da China está longe de abranger o conjunto da população. Cerca dos dois terços da população, ou seja, mais de 800 milhões de pessoas, formam hoje uma classe social pobre, em oposição às classes médias e ricas em emergência (�e World Bank, 2005). De acordo com o Banco Mundial, cerca de 135 milhões de chineses vivem com menos de um dólar por dia. Ora, estas pessoas pobres aspiram, elas também, à sua parte de prosperidade e estão frequentemente dispostos a tudo, incluindo infracções ao ambiente, para o conseguir. O exemplo flagrante desta corrida ao desenvolvimento é representado pelas cerca de

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17 000 minas artesanais de carvão repartidas pelo país e que produzem ainda um terço da produção nacional de carvão. Estas minas colocam os trabalhadores a laborar em condições frequentemente inumanas e particularmente arriscadas e poluem o ambiente em grande escala (perdas de terras aráveis e desflorestamento, poluição dos lençóis freáticos, poeiras, etc.). No entanto, o governo central tem dificuldade em encerrar muitas destas minas já que são uma (a) fonte principal de rendimentos dos governos locais. Por último, milhões de ignorados pelo desenvolvimento são forçados a utilizar ambientes contaminados para a sua sobrevivência, utilizando até águas de lixiviação de minas contidas em barragens de retenção para irrigar os seus campos ou ainda operando ilegalmente minas artesanais de mercúrio, de zinco, etc., em condições de insalubridade extremas (Gunson e Veiga, 2004, Wong e coll., 2006). Os fracos números sobre a esperança média de vida na China (71 anos ao nascimento, do qual 64 anos em boa saúde) testemunham os atentados à saúde provocados pela degradação do ambiente. As disparidades crescentes de condições de vida na China são assim responsáveis pela multiplicação exponencial dos protestos e das revoltas populares.

Terceiro Acto, a China “verde”

10. Para além dos protestos operários e campesinos, a degradação do ambiente na China tornou-se uma preocupação essencial do governo, uma vez que o crescimento económico poderia mesmo ser travado por uma massa operária enfraquecida pela poluição. Isto é ainda mais preocupante para os líderes chineses quando a chave do sucesso económico actual da China assenta em grande parte numa mão-de-obra abundante e barata. A partir do fim dos anos 90, Jiang �emin, antigo presidente da República e secretário do Partido Comunista Chinês, reconhece a importância de uma viragem verde da China. Hu Jintao lança em 2003 o seu conceito “de sociedade harmoniosa”, baseado no humanismo, no desenvolvimento duradouro, na harmonia homem-natureza e no progresso socioeconómico equilibrado entre as diferentes regiões. Com efeito, a situação ambiental tornou-se extremamente crítica a muitos níveis. A falta de terras aráveis, de água potável e de energia é cada vez mais gritante. Os custos na saúde e o absentismo, em parte

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devidos aos problemas de degradação ambiental, estão em nítido crescimento. A poluição do ar causa a morte prematura de 400 000 pessoas por ano (Larssen e coll., 2006). A gestão do pesadelo ambiental custa 270 mil milhões de dólares por ano ao Estado, ou seja, 10% do PIB. Parece por conseguinte, em fachada pelo menos, que a protecção do ambiente tenha agora precedência sobre o desenvolvimento económico e o desenvolvimento humano (figura 1).

11. As medidas concretas tomadas para esta viragem verde incluem em primeiro lugar a promulgação de leis que exigem estudos de impacte ambiental para a implantação de novas indústrias, em especial estrangeiras. Contudo, a corrupção crescente entre os industriais faz com que muitas indústrias não cumpram sempre as leis ambientais. A instalação de indústrias limpas, cuja tecnologia frequentemente é importada de países desenvolvidos, multiplicam-se contudo (Liu e Diamond, 2005). Isto é particularmente o caso da construção de automóveis, com emissões poluentes limitadas, ou ainda das indústrias de produção de papel e de amoníaco. Assiste-se também progressivamente à implantação de produções agrícolas que utilizam menos pesticidas e menos água, ao reprocessamento das águas usadas, à utilização de energias mais limpas e à limitação de drenagem das terras húmidas. Além disso, indústrias vetustas da era comunista têm sido fechadas ou modernizadas (minas, fábricas de cimento, fábricas de massas e papel, indústrias químicas), mas também às vezes infelizmente muito simplesmente deslocadas das regiões costeiras para as províncias do interior mais pobres. Outras medidas ambientais incluem a transmissão da gestão da água potável e do ar são a sociedades privadas, ou ainda a adopção de critérios de mérito para os funcionários que põe em prática medidas que favorecem o ambiente. Por último, desde há alguns anos, os poderes do SEPA (State Environmental Protection Administration, 2007) foram reforçados em paralelo com os incentivos ao desenvolvimento económico.

12. A promoção da China Verde é veiculada através de gestos mediáticos do governo central, como o anúncio de Jogos Olímpicos “ecológicos” em Pequim em 2008, anúncio que forçou, designadamente, o encerramento de centenas de pequenas minas de carvão no município da capital. No mesmo seguimento, o

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governo pretende até 2010 passar de 17 000 a 10 000 o número de minas artesanais de carvão através do país. O governo utiliza também a mão-de-obra barata para proceder ao reflorestamento de centenas de milhares de hectares, particularmente ao Norte de Pequim, com o intuito de travar o progresso do deserto Gobi e de minimizar as tempestades de areia que afectam periodicamente a capital (Holden, 2001). A construção da linha de caminho-de-ferro “verde” que liga o Qinghai ao Tibete é outro exemplo muito mediatizado da utilização do pretexto ecológico para fazer com que projectos controversos sejam melhor aceites (Peng e coll., 2007). Por último, a China conseguiu criar recentemente mais de mil reservas naturais, que cobrem mais de 7% do território nacional (Liu e coll., 2003b). Contudo, esta difícil viragem num país já superpovoado é realizada geralmente graças “a migrações ecológicas encorajadas”. Desde 2000, cerca de um milhão de habitantes de zonas de pastos degradadas foi deslocado, frequentemente à força (Du, 2006). Num futuro próximo, o governo planifica estender esta medida, em nome da preservação do ambiente, a sete milhões de pessoas suplementares. Ora, é necessário sublinhar que a maior parte “das migrações ecológicas” toca minorias étnicas (como os tibetanos) e visa a sua integração em cidades povoadas maioritariamente por Hans (maioria chinesa) (Du, 2006).

13. O aspecto certamente mais prometedor para a instauração de uma China mais verde é o interesse marcado dos jovens chineses por questões ambientais. Os programas tanto de formação pré-universitária e universitária como de educação popular inscrevem cada vez mais frequentemente o ambiente como matéria secundária, ou mesmo principal. A escola central do partido (“Central Party School”) que forma os quadros superiores da República Popular inclui conhecimentos de gestão ambiental nos seus programas.

Quarto Acto, o ecodesenvolvimento da China

14. Apesar de todas as medidas para uma China verde da qual se vem fazendo propaganda e que é anunciada sistematicamente com grandes esforços de divulgação, é necessário constatar que o desenvolvimento económico prossegue o seu progresso

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depredador. A situação geral do ambiente continua a degradar-se e por conseguinte, ao mesmo tempo, a saúde das trabalhadoras e dos trabalhadores chineses deteriora-se e os conflitos sociais a propósito de questões ambientais agravam-se. O quarto acto da história moderna do desenvolvimento da China permanece por escrever e determinará a natureza cómica ou trágica da peça. De facto, não será sobretudo para permitir à China prosseguir alegremente o crescimento da sua economia, que os líderes chineses deveriam seriamente planificar “o ecodesenvolvimento” do seu país? Dentro desta lógica, dever-se-á necessariamente abolir alguma prioridade entre os três conjuntos que são o desenvolvimento económico, o desenvolvimento humano e a protecção do ambiente. Numa visão verdadeiramente ecossistémica, as três componentes do desenvolvimento duradouro deverão ser consideradas no mesmo pé de igualdade, em total interacção umas com as outras.

15. Pode já sugerir-se algumas pistas a serem seguidas, como o aumento da parte do PIB chinês atribuída à protecção do ambiente (1,2% em relação a 2% nos Estados Unidos), a eliminação dos subsídios às indústrias poluentes (por exemplo, a do carvão) e a imposição de mais taxas elevadas ao consumo (por exemplo, de automóveis) (Liu e Diamond, 2005). Outras medidas também simples, como tentar reduzir a multiplicação da construção de alojamentos (favorecer a coabitação, retardar o número de divórcios – 1,6 milhões, em 2004), poderiam ter efeitos benéficos imediatos no ambiente (Liu e coll., 2003a). Também, continuando a investir maciçamente na educação, em especial nas províncias do interior, o governo chinês contribuirá para multiplicar o número de pessoas letradas que procurarão empregos, não afectando as zonas ecológicas sensíveis.

16. A instauração de um ecodesenvolvimento na China respeita ao futuro do planeta como um todo. Com efeito, apesar do seu crescimento económico fulgurante, o PIB chinês per capita permanece ainda muito inferior ao dos países desenvolvidos. A China oculta assim ainda um gigantesco potencial de crescimento. Por exemplo, pode imaginar-se a poluição planetária causada por uma multiplicação por dez do consumo energético chinês? Esta multiplicação representaria com efeito apenas a correcção da diferença actual do consumo energético médio per capita

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entre a China e os Estados Unidos. O desenvolvimento de um ambiente são na China é urgente e incontornável e far-se-á também com vantagem para os países desenvolvidos. Em contrapartida, os países desenvolvidos deverão aceitar pagar o preço justo dos produtos manufacturados chineses que importam, preço este que inclui necessariamente os custos de produção de acordo com critérios rigorosos de protecção do ambiente. Isto quer dizer que os ocidentais têm que aceitar pagar duas ou três vezes mais caro a factura das suas compras numa loja de “grande superfície”!

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2.2. INDUSTRIALIZAÇÃO E CRISES AMBIENTAIS: ALGUNS CENÁRIOS

Excertos extraídos de : L’eau, facteur d’instabilité en Chine – Perspectives pour 2015 et 2030, Alexandre Taithe, publicado por Fondation pour la Recherche

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Será que os pés de argila do colosso China serão submersos por um deserto de areia, de nitratos e de metais pesados? Um balanço catastrofista do meio ambiente na China é com efeito fácil de elaborar: o território desertifica-se a Norte e a Oeste; o Sudeste sofre de secas periódicas; os principais lençóis freáticos do país reduzem-se de vários metros por ano; o rio Amarelo está seco em pelo menos 600 km em 250 dias por ano… Além do mais, a poluição torna impróprios para uso humano perto de dois terços das águas dos sete maiores rios da China; e 700 milhões de Chineses bebem uma água de má qualidade.

Laboratório à escala continental, a China reúne o conjunto dos problemas encontrados na gestão da água doce em todo o mundo: secas e inundações, sobre exploração das águas subterrâneas e de superfície, multiplicação das infra-estruturas pesadas (grandes barragens e transferências maciças de água), ausência de governança do recurso água a que se adiciona a concorrência Centro/Periferia, e abundantes poluições de origem agrícola, industrial e doméstica.

Indirectamente, a falta de água de qualidade influencia igualmente os níveis de aridez e de desertificação, a salinização dos solos e a sua erosão, a produção agrícola (superfícies cultiváveis) ou ainda o êxodo rural. A água pode, por fim, influenciar e alimentar os protestos sociais ou as tensões inter-estatais.

A China vive animada por um crescimento médio de 9,5% desde há 20 anos, mas está tranquila quanto a este “desastre ambiental” anunciado. Quais são então os impactes das infracções ao meio ambiente e aos recursos de água sobre a dinâmica social, económica e política? Responder a esta pergunta exige contudo incluir na

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análise elementos que excedem os domínios da água doce e do ambiente. É por exemplo difícil (e qual o interesse?) dissociar o descontentamento ligado à água das suas outras formas.

Um relatório dos desafios, riscos e incertezas ligados à água é o que iremos imediatamente fazer. As incidências deste balanço distinguem-se em duas categorias de riscos. Os riscos internos que têm a ver com as instabilidades que afectam o território ou com o equilíbrio do regime político chinês. Os riscos externos que traduzem a influência da gestão dos recursos de água e das poluições sobre as relações da China com os seus vizinhos imediatos.

Hidrologia da China

Os dados globais deixam prever uma água abundante em toda a extensão do território. Os 9,6 milhões de km² do território chinês protegem mais de 50 000 cursos de água cuja bacia excede os 100 km², e mais de 1 500 cuja bacia hidrográfica atinge os 1 000 km². O débito total dos rios que atravessam a China situa-se em 2 700 km3, ou seja, 5,8% do débito fluvial mundial. Só o rio Yangtsé drena um terço dos recursos renováveis chineses (águas de superfície e subterrâneas).

As precipitações testemunham profundas disparidades hidrológicas. Oscilam entre 25 a50 mm por ano na província de Qinghai ou na região autónoma de Xinjiang e 2 000 mm nas províncias do Sudoeste da China (média nacional de 601 mm, em 2004). Do Noroeste ao Sudeste, a higrometria permite distinguir quatro zonas: árida, semi-árida, semi-húmida e húmida (as duas primeiras representam 53% do território).

Além da sua irregularidade anual (concentração de 70% das chuvas em cerca de poucos meses nas províncias que estão sob o regime de monções), as precipitações sofrem igualmente variações inter-anuais. Os recursos de água disponíveis eram assim de 2 896 km3, em 2002, e 2 413 km3, em 2004, ou seja, respectivamente 2 259 e 1 856 m3/ano/habitante. Relativamente à população, estes volumes colocam a

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China em situação de vulnerabilidade hídrica e no limite do limiar de stress hídrico (1 700 m3/ano/habitante). Certas regiões, como a Planície do Norte, estão já em estado de carência absoluta (menos de 500 m3/ano/habitante).

A mudança climática em China

As temperaturas médias anuais na China aumentaram de 1 à 2° C desde há cinquenta anos. A aceleração do aquecimento da China foi particularmente espectacular: 60% do aumento da temperatura operou-se em 16 anos, entre 1988 e 2004. Esta subida deverá continuar e atingir 1 à 2° C suplementares em 2030. Certas regiões não costeiras do Sul da China conhecem, pelo contrário, um arrefecimento de aproximadamente um a dois graus. Estas características são sensíveis no Inverno e no Verão. A principal consequência do aumento de temperatura, a evaporação, aumentará por exemplo de 13 a 15% na bacia do rio Amarelo, em 2030, sendo que ela hoje já atinge mesmo os 80%. Ao Norte do rio Huai, o rácio entre a evaporação e as precipitações excede os 75%, contra 50% ao Sul deste curso de água.

Seguidamente, as precipitações aumentaram globalmente, o que esconde fortes diferenças regionais. Este aumento resulta exclusivamente quase da intensificação das monções em volume, e contrasta com as reduções encontradas no Norte e a Leste da China. Aquelas, no entanto, não compensam o aumento das evaporações. As alterações climáticas na China podem levar à exacerbação das estações e das características climáticas regionais actuais.

Além do mais, os lagos chineses sofrem os efeitos conjuntos das mudanças climáticas e da sobre exploração dos recursos de água. A sua superfície passou de 90 000 km² a 60 000 km² entre 1960 e 2000, ou seja, uma baixa de um terço.

Por último, o aumento do nível do mar, previsto entre 1 e 2,5 metros em 2100, pouco afectará as zonas de delta costeiras antes de 2050 (a cidade-província de Tianjin é particularmente exposta).

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Desafios e Riscos comuns aos diferentes cenários

Riscos Internos

Instabilidades sociais, estabilidade política e políticas da água

A degradação do ambiente, associada ao aumento dos conflitos sociais, constitui o primeiro factor de instabilidade interna ligada à escassez de água doce.

Nas cidades e nos campos, a rarefacção do recurso água ou as suas múltiplas poluições entravam as condições de vida já precárias de uma imensa parte da população chinesa.

Os camponeses sofrem a diminuição da superfície de terras cultiváveis (e por conseguinte a sua fonte de rendimento), cujas origens se conjugam: progressão da desertificação, sobre exploração dos recursos de água, poluições dos solos pela indústria (ou descargas agrícolas), extensão das zonas urbanas e re-implantações de zonas industriais… A superfície cultivável diminuiria assim de acordo com várias estimativas de 1 a 1,5 milhão de hectares por ano (a superfície média de uma exploração familiar – quatro pessoas – oscila em redor de 0,6 hectares, mas a maior parte tem uma dimensão aproximada de 0,3 hectares). As terras habitáveis e cultiváveis foram divididas por dois desde há cinquenta anos. Entre 1999 e 2003, quase 7 milhões de hectares de terras aráveis foram convertidos em terrenos de construção. Num contexto de escassez, a prioridade dada à água doméstica e industrial faz-se em detrimento da agricultura irrigada (de que a China é dependente em 70%, contra 17% nos Estados Unidos).

A construção de barragens provoca também o descontentamento das pessoas deslocadas, mal indemnizadas e re-instaladas em zonas menos férteis no interior, como é o caso do complexo das Três Gargantas, que forçou à migração de 1,5 milhão de indivíduos. Desde 1949, as modificações feitas no rio Yangtsé teriam já forçado 10 milhões de pessoas a deixarem as suas habitações e as suas terras. Do

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mesmo modo, o controlo das cheias preocupa particularmente Pequim quanto às suas consequências sociais e económicas (em 1998, por exemplo, 25 milhões de hectares tinham ficado submersos pela ruptura de diques no rio Yangtsé), o que também terá provocado a perda do seu habitat para 14 milhões de pessoas.

Sempre nos campos, a diminuição quantitativa e qualitativa da água disponível aumenta a situação precária. Ora estas multiplicam-se. O compromisso social implícito, a obediência da população ao modelo de crescimento, só beneficia algumas zonas costeiras e urbanas. O PIB das províncias costeiras é assim três vezes superior ao das províncias e regiões do Oeste. À fraqueza dos rendimentos acrescenta-se as pensões de reformas não pagas, as estruturas educativas defeituosas, uma protecção social imperfeita (40% dos rurais), e pesados impostos locais e nacionais… 47% da população chinesa vive com menos de dois dólares por dia (limiar de pobreza definido pelo Banco Mundial). Além do mais, as regras destinadas a limitar o êxodo rural (certificado de residência) criam igualmente precariedade: recenseia-se 150 milhões de camponeses operários relegados para a periferia das cidades, os quais, pela sua ausência de estatuto, não dispõem de acesso urbano aos cuidados de saúde ou à educação quer para eles quer para a sua família. Não aparecendo nas estatísticas de emprego ou de desemprego, são privados de protecção social.

A segmentação cidade/campo é certamente mais marcada, mas a contestação ganha, sob formas variadas, populações cada vez mais variada, incluindo urbanas: reformados cuja pensão não foi paga, desempregados, trabalhadores precários, camponeses… A tudo isto, somam-se 120 000 litígios ligados a questões sobre a água, recenseados pelo Ministério dos Recursos de Água entre 1990 e 2002, o que traduz tensões entre categorias de utentes, mas também entre particulares e o Estado.

Os recursos de água alimentam assim uma instabilidade social ainda mais problemática quanto revestem ocasionalmente formas violentas (sabotagem de instalações hidráulicas entre aldeias, casas de quadros do partido ou construções

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oficiais incendiadas…). Com a fragmentação étnica e religiosa, a explosão social (e designadamente o despertador campesinato) constitui o primeiro risco para a estabilidade do regime (o imposto camponês já antigo de 2 500 anos acaba agora de ser suprimido, a partir de 1 de Janeiro de 2006).

As autoridades chinesas parecem proceder a uma leitura restritiva da segurança ambiental. As medidas ligadas ao ambiente não têm como seu primeiro objectivo a sua protecção, mas sim o de limitar as desordens que a sua alteração provoca. As infracções ao ambiente amputam de vários pontos de percentagem o PIB (chegando a atingir 7,5% do PIB, de acordo com o Banco Mundial).

O risco para o governo central e para o partido é tanto a desagregação social como a democratização gerada pelos movimentos de descontentes de onde emanam elites locais reivindicativas. Os campos, em matéria de contestação, estão bem mais avançadas politicamente que as cidades. São o lugar de iniciativas, de novas formas de mediação com as elites intermediárias.

A capacidade institucional de desencadear e impor soluções é uma das chaves das próximas décadas. As respostas governamentais à escassez passam por tentativas de gestão da oferta de água. Símbolo e expressão da potência do Estado sobre os seus administrados, a construção de infra-estruturas pesadas prossegue. Em complemento ao complexo das Três Gargantas, um projecto de derivação maciça do Yangtsé para o Norte (mais de 70 km3 por ano, em 2050) foi iniciado em 2002 através de três canais (dois actualmente em construção, entre os quais um com mais de 1 000 km). As administrações centrais de gestão dos recursos (Ministério dos Recursos de Água), de protecção do meio ambiente (State Environmental Protection Administration – SEPA) e as suas ligações locais ainda pesam pouco perante o objectivo de crescimento. Ganham progressivamente em autoridade, à imagem do SEPA, são levados à categoria de Ministério em 1988, data da nova lei sobre a água. A reforma desta lei em 2002 tenta impor uma gestão por bacia hidrográfica, transversal à estrutura administrativa.

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A poluição dos recursos de água

Omnipresentes na China, diversas poluições afectam o ar, os solos e os recursos de água. Para avaliar o estado das águas de superfície e subterrâneas, uma escala de qualidade em cinco graus foi elaborada, em que os três primeiros indicam que a água é compatível com as utilizações domésticas e os dois últimos que a água é reservada para os usos industriais e agrícolas. A partir de 3 200 sítios de medida repartidos por 1 300 rios, verificou-se que 59,4% de águas respondem aos três primeiros graus, 18,8% às categorias 4 e 5 e 21,8% estão fora de normas e por conseguinte incompatíveis com qualquer uso que seja. Se retivermos apenas os sete maiores cursos de água chineses, 41,8% das águas têm uma qualidade que corresponde aos graus 1 a 3, enquanto 27,9% estão para além das normas de utilização.

O abastecimento de água potável é evidentemente afectado: embora o governo chinês admita que 320 milhões de pessoas não têm acesso a água potável, a água de qualidade está disponível em quantidade deficiente para perto de 700 milhões de chineses se tivermos em conta as normas mínimas de potabilidade da Organização Mundial de Saúde. Os resíduos industriais, agrícolas e domésticos somados atingiam 48,24 mil milhões de toneladas em 2004, dos quais 22,11 mil milhões de toneladas eram o resultado da indústria. Atingindo o mar, estes resíduos afectam as zonas húmidas e costeiras, favorecendo nomeadamente a proliferação de algas (exemplos de marés vermelhas…). A qualidade do meio ambiente das cidades é imediata e igualmente atingida: as zonas próximas de 90% dos lençóis freáticos estão poluídas, de acordo com os dados disponíveis em França. As intoxicações pelo flúor e pelo arsénico multiplicam-se assim e o aumento dos cancros das vias digestivas (do fígado nomeadamente) é já mensurável.

A conjunção da sobre exploração de água e das poluições múltiplas da qual esta está afectada conduz à presença de externalidades negativas regionais imputáveis à China. A China não retém no seu território as poluições que gera. Além dos acidentes industriais, à imagem do derrame de 100 toneladas de benzeno no rio Songhua em Novembro de 2005 que atingiu a Rússia pelo rio Amor, as

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tempestades de areias ligadas à desertificação, “as marés vermelhas” (proliferação de algas), as chuvas ácidas, os resíduos comuns de águas usadas têm já impactes nos países vizinhos, nomeadamente no Japão, nas duas Coreias e na Rússia.

Alimentação da população e dependência alimentar

Apesar dos evidentes progressos em matéria de luta contra a fome (304 milhões de pessoas subalimentadas entre 1979-80 e 119 milhões em 1998-2000), o crescimento da subalimentação poderia ser um factor agravante das crises sociais já sensíveis, e com incidências mundiais.

Relativamente aos seus objectivos de auto-suficiência alimentar, a China chegará a fornecer a sua população em produtos alimentares? Se não for o caso, e para além do desafio alimentar mundial, a China aceitará depender de países exportadores de cereais, nomeadamente os Estados Unidos, o Canadá ou a Austrália?

Estes riscos alimentam-se de vários factos. Em primeiro lugar, as superfícies cultiváveis diminuem em média de 1 à 1,2 milhão de hectares por ano, e isto para uma superfície cultivável de 99 milhões de hectares em 2004. A escassez de água é um factor agravante da aridez, embora seja difícil distinguir os seus efeitos dos da mudança climática. A produção cerealífera chinesa diminui assim desde os picos dos anos de 1996 (504 milhões de toneladas) e de 1998 (512 milhões de toneladas) para atingir 430 milhões de toneladas em 2003. Ora, a população chinesa está a aumentar (calcula-se que atinja, entre 2030 e 2040, 1 450 mil milhões de habitantes contra 1 310 mil milhões em 2005) antes de se estabilizar em redor de 1,39 mil milhões em 2050. Seguidamente, a qualidade e os volumes de água disponíveis tornam-se factores que limitam a sua aplicação nas culturas agrícolas. A escassez física da água (diminuição da superfície dos lagos, drenagem de rios em centena de quilómetros…) e/ou o seu forte teor de sal obstruem assim a produção agrícola.

O desafio consiste então em determinar as margens de progressão da agricultura chinesa e como é que estes constrangimentos coexistem com os

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elementos que contribuem para o aumento da produção alimentar. Por exemplo, os rendimentos agrícolas podem aumentar facilmente (mecanização, adubos, pesticidas, em detrimento da qualidade da água), da mesma maneira que a produtividade hídrica (luta contra as perdas agrícolas, melhoria das técnicas de irrigação…). Além do mais, a superfície consagrada aos cereais (mais estratégicos mas menos remuneradores que outros géneros) pode ser estendida em detrimento de outras culturas como os cogumelos, o alho ou a maçã. Assim, os anos 2004 (469 milhões de toneladas) e sobretudo 2005 (484 milhões de toneladas) marcam uma retoma espectacular da produção cerealífera.

Riscos ligados às grandes barragens

A China dispõe de 22 000 grandes barragens (contra 22, em 1949), havendo 45 000 no mundo. O Ministério dos Recursos de Água recenseia 85 160 barragens de todas as dimensões, tendo uma capacidade de retenção total de 554,2 km3. Ora, mais de 30 400 são consideradas pelo Ministério como funcionando mal ou perigosas. Em Julho de 2005, a ruptura de uma barragem na província de Yunnan provocou a morte de uma quinzena de pessoas. Em 1975, o desmoronamento de diques e das barragens no Sul de Hénan tinha feito entre 85 000 e 230 000 mortes. Os numerosos precedentes tiveram como origem os materiais de qualidade insuficiente (dimensão das areias grossas, qualidade do cimento…), uma insuficiência de infra-estruturas de recursos para conterem globalmente mais água (como aconteceu com cheia centenária em 1975) e uma gestão de recursos inadaptada (fraco poder das instituições de bacias hidrográficas face ao poder das províncias…). Em 2003, foram detectadas 80 fissuras em superfície na Barragem das Três Gargantas, obrigando a trabalhos de urgência. Além dos defeitos de construção, as autoridades chinesas parecem temer tentativas de deterioração de uma obra também ela simbólica. Pesadas forças armadas (helicópteros, embarcações, blindadas) foram dispostas para proteger a barragem durante o Verão de 2004. Se a realidade do risco terrorista na China exigir uma resposta cuidadosa, a hipótese, embora improvável, do envio de mísseis sobre a barragem por Taiwan no caso de invasão da ilha foi levantada pelas autoridades chinesas para justificar a protecção militar desta infra-estrutura.

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Do mesmo modo, os 240 000 km de diques exigem uma manutenção constante; a ruptura de um só bocado pode conduzir à inundação de milhões de hectares.

Riscos Regionais

A dependência de um Estado de recursos exógenos (que provêm do exterior das suas fronteiras) é uma configuração que se reencontra na maior parte das bacias hidrográficas que conhecem tensões ligadas à água. Historicamente, o ordenamento das regiões de chegada dos cursos de água (planície, com desnivelamento fraco) de um rio transfronteiriço precedeu geralmente o das regiões da parte a montante (regiões montanhosas, de débito mais fraco, zonas de cultura restringidas…). Os Estados a jusante devem fazer face à valorização energética e agrícola dos cursos de águas internacionais por parte de países a montante. Reencontra-se a oposição entre dois tipos de reivindicações: a de direitos de usos históricos (defendido pelos primeiros utilizadores, em geral a jusante) e a do exercício de uma soberania territorial total sobre os recursos de água a montante (preconizado pelos residentes desta zona).

A China não está envolvida nesta relação montante-jusante. Com efeito, os débitos dos cursos de água que vêm de outros Estados (uma dúzia pelo menos de 0,1 km3) representam apenas uma fraca parte dos escoamentos de superfície (17 km3 contra 2 312,6 km3, ou seja, 0,73%). É por conseguinte improvável que tensões graves nasçam a partir destes recursos não vitais para a China.

Em contrapartida, a China situa-se a montante de numerosas bacias hidrográficas. Os débitos de saída para outros Estados situam-se em 719 km3. Três bacias parecem particularmente preocupantes: as dos rios Ili e Irtych, Mékong e Brahmapoutre. A China é um dos três Estados (com a Turquia e o Burundi) que se opôs, em 1997, à adopção da Convenção das Nações Unidas sobre o direito relativo às utilizações dos cursos de água internacionais para outros fins que não sejam a navegação e que fixa as regras para uma repartição equitativa e razoável do

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recurso água. Os rios Salween e Amor poderão ser igualmente, embora de menor intensidade, sujeitos a tensões de interesses.

Cenário provável para 2015

A produção alimentar chinesa não irá estar na origem de instabilidades específicas, internas ou regionais até ao horizonte 2015. A superfície cultivada (99 milhões de hectares em 2004) diminuirá certamente de pelo menos 15% (cerca de 85 milhões de hectares), o que corresponde ao ritmo actual. Esta perda de terras agrícolas é causada conjuntamente pela aridez, pela sobre exploração do recurso água, pela urbanização e pela deslocalização de fábricas, pela poluição dos solos (poluentes industriais e salinização) e pela erosão dos solos. A intromissão das cidades nos campos reduzir-se-á tendo em conta a escassez das terras exploráveis pela agricultura, mas isto não compensará a aceleração da erosão dos solos a montante, causada pelo crescimento da fusão dos glaciares chineses.

Os ganhos de produtividade (mecanização, uso de adubos e pesticidas, melhoria das técnicas de irrigação, adaptação das culturas aos climas…) absorverão o agravamento da escassez de água e a perda de superfícies cultivadas. Do mesmo modo, a melhoria do armazenamento e do transporte de géneros alimentares limitará as perdas e evitará as rupturas de abastecimento.

Em 2015, a auto-suficiência, colocada pelo Partido Comunista Chinês em 85% do seu consumo alimentar, deveria ser atingida apesar da perda de terras cultiváveis evocada acima e da diminuição de recursos de água. O objectivo dos 500 milhões de toneladas de cereais produzidos em 2010 deveria ter sido largamente defendido e a produção poderia ter-se mantido a este nível até 2020. O pico de 482 milhões de toneladas em 2005 é, com efeito, um sinal da reactividade do sector agrícola às preocupações a este respeito. A capacidade de produção cerealífera é doravante uma prioridade enunciada no 11.º plano quinquenal (2006-10). A estagnação dos investimentos na agricultura, ou mesmo a sua regressão desde 1990, testemunhava a prioridade dada ao desenvolvimento industrial.

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A partir de 2015, a manutenção de objectivos elevados de produção cerealífera será uma escolha cada vez mais cara para as autoridades chinesas: por um lado, far-se-á em detrimento de culturas de exportação e remuneradoras (cogumelos, alho, pêra, maçã…), por outro lado, mobilizará capitais crescentes em infra-estruturas para uma produção estagnante.

2015 – governar pelas queixas: conciliar crescimento económico, limitar as infracções ambientais e a estabilidade social

O horizonte 2015 marcará sem nenhuma dúvida um momento decisivo na gestão do ambiente e este tornar-se-á compatível com o crescimento económico. Esta questão inscreve-se contudo numa série de desafios complexos, caracterizados por múltiplas contradições. Vivas tensões e interesses divergentes opõem assim as províncias ricas e as pobres, as províncias a montante e a jusante, as autoridades locais às provinciais, as cidades aos campos e, certamente, o poder central às autoridades locais e provinciais.

A ausência de solidariedade entre as províncias ilustra-se frequentemente no domínio da água: certas províncias como Jiangsu não gostam de ter que assumir os custos energéticos das transferências de água para o Norte; outros a montante desejam igualmente a melhor repartição das vantagens trazidas pelas barragens, até porque são elas que sofrem mais com os seus inconvenientes.

Quatro hipóteses de evolução política predominam: a desagregação social, a fragmentação do Estado, a afirmação da predominância do poder central, e o status quo pela paralisia dos actores políticos. Os factores ambientais têm as mesmas hipóteses que foram sublinhados pela análise do contexto político e social.

Se as queixas e as manifestações, às vezes violentas, se multiplicam, estas traduzem menos uma contestação da ordem política que necessidades acrescidas de protecção, de segurança (profissional, social), de acções públicas em seu favor e finalmente de uma necessidade de Estado (ainda que os quadros e responsáveis

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locais possam ser o alvo dos descontentamentos). Ilustram igualmente a ausência de institucionalização dos relatórios entre o poder e a população como sublinha Jean-Luc Domenach. Para além disto, uma certa diferenciação cultural de uma grande parte da população, conjugada com o medo tradicional do caos, e um nacionalismo compartilhado limitam os riscos ao mesmo tempo da desagregação social e da fragmentação. Apesar do aparecimento “de uma nobreza política provincial”, poderosa nas ricas divisões administrativas costeiras, a fragmentação parece tanto improvável pelo fraco número de minorias não chinesas como pela desconfiança das populações inspirada por elites locais. É verdade que o caso de Taiwan mostra a Pequim o perigoso exemplo de uma fragmentação conseguida, não obstante “um nacionalismo” comum.

A reafirmação do poder central parece igualmente pouco provável até 2015. Se o desejo do Centro voltar a uma posição dominante não levantar nenhuma dúvida, o principal obstáculo para esta hipótese reside nos meios de que se dispõe face às províncias mais ricas. As instabilidades ligadas à água favorecem as duas últimas hipóteses.

É por isso que o essencial das tensões entre 2006 e 2015 se deverá adiar e situar-se nas relações Centro-Periferia. Face aos descontentamentos, dois “guichets” estão em concorrência: as províncias e o poder central. A complexidade dos problemas encontrados, correlacionada com um défice de informação das autoridades públicas, conduz a restringir a gestão dos negócios públicos à gestão de situações de crises. Os diferentes reguladores beneficiam para isso de uma fonte de primeira qualidade: as queixas dos cidadãos. Dez milhões de queixas foram apresentadas em 2003.

Este sistema remedeia a falha das redes de vigilância dos ecossistemas, ao passar a ser um verdadeiro indicador ambiental. A vitalidade do sistema das queixas contribui de resto para a estabilização da ordem política, canalizando por vias legais numerosos descontentamentos. A isto acrescentam-se os múltiplos litígios e conflitos de usos ligados à água e ao ambiente. Segundo os dados oficiais, estes terão atingido os 50 000 em 2005, ou seja, 30% a mais que durante o ano precedente.

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Longe de um vazio de poder, esta “gestão corrente das crises” sociais e ambientais poderia inscrever-se numa estratégia do Centro para reencontrar uma supremacia duradoura sobre as subdivisões administrativas chinesas. Esta passaria por uma descredibilização das autoridades provinciais e locais quanto aos problemas primordiais da questão social (miséria, desemprego…) e da degradação do ambiente (impactes sobre a saúde pública, o habitat…).

Pode, por exemplo, surpreender o tom deliberadamente catastrofista em vários momentos e em público (entrevistas, discursos) de Pan Yue, Vice-Ministro do SEPA (instituição que é equivalente a um ministério) que anuncia desastres ecológicos, migrações ambientais, poluições de cursos de água essenciais… Esta liberdade de palavras desde a sua nomeação em 2003 duplica-se com a publicação frequente pelo SEPA de estatísticas surpreendentes, sinceras, sobre o estado do ambiente na China. Ora Pan Yue, próximo de Jiang �emin, genro do almirante Liu Huaqing, membro de círculos reformistas e neo-autoritários, inscreve-se na sequência do reforço do poder central em 1992-93 por �hu Rongji, depois por Jiang �emin em 1995, instituindo, por exemplo, a rotação dos quadros provinciais.

Se Hu Jintao e Wen Jiao deverão ser reconduzidos na sua função (Presidente da República e Primeiro-Ministro) no Congresso do Partido Comunista Chinês em 2007, o prazo de 2012 será fulcral para determinar a liderança nas relações Centro-Periferia.

O futuro provável entre 2015-2030

As poluições internas e transfronteiriças

Quatro tipos de poluição que provêm da China são susceptíveis de afectar o ambiente (terras e água, meios aquáticos e oceano), a própria população da China assim como os seus vizinhos.

Em primeiro lugar, os acidentes industriais provocam uma maior poluição de um rio e dos seus afluentes. Pela visibilidade da poluição, pelo controlo acrescido da

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qualidade da água dos rios (a descarga maciça de mercúrio durante uma dezena de anos, como em Minamata no Japão nos anos 50, seria doravante impossível), pelo seu carácter em geral pontual, tais acidentes não constituem as mais graves ameaças ao ambiente ou à saúde das populações. Isto, contudo, na condição de que medidas enérgicas (suspensão do abastecimento de água potável, adição de produtos que fixam ou pelo contrário que destroem os poluente, divisão de informações e colaboração com os Estados limítrofes que podem ser afectados) sejam tomadas imediatamente. Sem dúvida a poluição do rio Songhua, em 13 de Novembro de 2005, marcou um momento decisivo na gestão das poluições industriais. Após um período de retenção de informações, as autoridades chinesas foram forçadas à transparência em relação à sua população e ao governo russo. Desde este acontecimento, o SEPA então multiplicou e melhorou os seus controlos. Referenciou 76 acidentes industriais que têm poluído os cursos de água entre Novembro de 2005 e Março de 2006, ou seja, mais que a totalidade dos acidentes deste tipo em 2004. Na falta de reimplantações de zonas industriais (que teriam provocado custos dissuasivos), a necessidade de uma planificação industrial impôs-se. O SEPA por exemplo suspendeu a aprovação de 44 projectos devido às zonas onde seriam implantados.

Relativamente à actividade industrial da China, os acidentes industriais afectarão os países limítrofes entre 2006 e 2030, nomeadamente a Rússia (Amor e Tumen), o Kazaquistão (Ili e Irtych) e a Coreia do Norte (Tumen). De novo, pode pensar-se que tais acidentes não perturbarão as relações bilaterais face aos enormes desafios energéticos e de segurança entre a China e os seus vizinhos do Norte e do Oeste, sobretudo se a China usar tantos cuidados como os que manifestou para com a Rússia na segunda parte da crise do Songhua (convite de cientistas russos, proposta de ajuda para a reabsorção da poluição ao longo do rio Amor…).

Em segundo lugar, a descarga das águas usadas sem tratamento é a principal causa de poluição interna e transfronteiriça. O exemplo mais notável será a multiplicação das marés vermelhas (devidos à proliferação de uma alga tóxica). Favorecidas pelas descargas agrícolas (a agricultura chinesa é a primeira consumidora mundial de adubos, nomeadamente de nitratos) e pelas águas domésticas usadas,

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as marés vermelhas estendem-se pelos mares da China e pelo mar Amarelo, embora agora ocasionalmente também pelos principais rios chineses. De uma superfície que pode atingir até à 10 000 km², uma maré vermelha paralisa a actividade económica durante várias semanas (pesca, turismo…). As costas da Coreia e o mar do Japão sofrem já de marés vermelhas.

Em terceiro lugar, a actividade industrial na China conduz ao aumento do teor de dióxido de enxofre (SO2) e de óxidos de azoto. Transformando-se em ácido nítrico (HNO3) e em ácido sulfúrico (H2SO4), estes poluentes afectam as terras, os recursos de água e os oceanos. O fenómeno das chuvas ácidas torna as terras progressivamente estéreis, faz reduzir o pH dos recursos de água subterrânea ou de superfície, o que restringe a riqueza ecológica dos ecossistemas até os ameaçar. A acidez atinge assim um terço das terras na China (pH inferior a 5,6). A água não é aqui a causa das chuvas ácidas, mas um vector de poluição. Devido ao lugar preponderante ocupado pelo carvão na sua produção energética, a China é a primeira fonte mundial de dióxido de enxofre. Levado pelos ventos, esta poluição toca os países vizinhos. 37% das chuvas ácidas em relação ao Japão provinham em 1998 da China, proporção de 34% para a Coreia do Norte e 30% para a Coreia do Sul. O crescimento energético chinês, ao que se soma um mau rendimento das suas centrais térmicas, deixa temer um agravamento das chuvas ácidas nestes países. A partir de 2000, análises novas indicavam uma origem chinesa de 50% das chuvas ácidas sobre o Japão.

Em quarto e último lugar, as tempestades de areia que nascem na Mongólia e na China tendem a ter incidências transfronteiriças. Acentuada pela mudança climática, pelo desflorestamento, pelas práticas agrícolas e pela sobre exploração dos recursos de água, a desertificação progride rapidamente no Nordeste da China e fornece uma abundante matéria-prima às tempestades: a areia. O deserto abrangia 18% do território em 2005 e tem aumentado anualmente muito mais que nos anos 90, que, por seu lado, já tinha aumentado mais do que nos anos 50. Numa vintena de anos, o número de tempestades de areia que atingem o Japão passou de um para uma dezena. Para além dos problemas respiratórios que causam, estes fenómenos

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climáticos suscitam igualmente perdas económicas (suspensão do tráfego aéreo…). Se as duas Coreias são ainda regularmente mais afectadas que o Japão, algumas tempestades chegam até às costas americanas. Duas tempestades dissiparam-se mesmo acima de Denver no Colorado em 2001 e 2005.

Apesar das suas incidências, é improvável que estas poluições transfronteiriças conduzam a fortes tensões regionais. Em primeiro lugar, a sua imputação é delicada. Se a China é a principal fonte, não é o único responsável pelas chuvas ácidas ou pelas tempestades de areia na Ásia do Norte. Apesar de tensões recorrentes entre a China e o Japão, estes temas ambientais fazem pelo contrário com que haja uma colaboração inter-Estados desde meados dos anos 80.

3. ECONOMIA GLOBAL, DESREGULAÇÃO E O ESPAÇO MARÍTIMO

3.1 OS ESTALEIROS QUE DESTROEM A INFÂNCIA

Excertos de Ces chantiers qui brisent l’enfance, FIDH, disponível em: www.fidh.org/spip.php?article5856

Alguns dados sobre o Bangladesh:

– 50% da população vive abaixo do limiar de pobreza;

– 50% das crianças com menos de 5 anos mostram sinais de malnutrição crónica;

– em 2003, 7,9 milhões de crianças entre os 5 os 17 anos estavam a trabalhar;

– destas, 1,3 milhões trabalham 43 horas ou mais por semana;

– cerca de 20% do rendimento das famílias resulta de trabalho infantil;

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– cerca de 75% das crianças que trabalham são rapazes;

– mais de um milhão destes empregos são empregos de risco.

A demolição dos navios no Bangladesh:

– 60% dos barcos desmantelados em 2007 foram desmantelados no Bangladesh;

– 30 000 trabalhadores estão empregados directamente na demolição dos navios e indirectamente estará um valor situado entre 100 000 e 200 000;

– a reciclagem dos navios fornece 30 % das necessidades do Bangladesh em aço;

– 25% dos trabalhadores dos estaleiros de desmantelamento são crianças.

Actividades perigosas no Bangladesh (estes dados são estimativas devido à ausência de dados oficiais):

– centenas de trabalhadores morreram nos últimos anos e milhares de pessoas foram feridas,

– as ONG puderam documentar que pelo menos 18 trabalhadores morreram nestes dois últimos anos (2006-2007) e 10 trabalhadores morreram em 2008.

A Federação Internacional das Ligas dos Direitos do Homem (FIDH) e a YPSA (Young Power in Social Action), em cooperação com a plataforma internacional das ONG sobre as demolições dos navios, publicam um relatório da missão de investigação intitulado Estes estaleiros que destroem as crianças: o trabalho das crianças na indústria de reciclagem dos navios no Bangladesh.

Alertados pelo grande número de crianças que trabalham nos estaleiros de

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desmantelamento de navios e na ausência de um estudo sério sobre este assunto, a FIDH e a YPSA decidiram investigar juntas esta matéria. O presente relatório tem por base um levantamento de campo em redor dos estaleiros de desmantelamento dos navios assim como nas aldeias a Norte do Bangladesh de onde são originários muitos dos trabalhadores menores. Este relatório não apresenta dados estatísticos sobre este fenómeno porque não há dados oficiais e a sua obtenção exigiria uma investigação de longo prazo dadas as severas restrições de acesso aos estaleiros. No entanto, os autores consideram que 25% dos trabalhadores são crianças.

Nestes trabalhos sobre trabalho infantil, a FIDH e a YPSA descrevem pela primeira vez com detalhe o trabalho das crianças nos estaleiros de desmantelamento dos navios de Chittagong. Através de testemunho e de fotografias, o objectivo deste relatório consiste não só em denunciar o trabalho das crianças mas também chamar a atenção para o contexto económico e social que leva as crianças a trabalhar em condições tão perigosas.

Estes estaleiros que destroem a infância

O desmantelamento de navios é uma indústria chave no Bangladesh. É uma prática muito perigosa mas que atrai muitos trabalhadores migrantes e os agricultores pobres. Trata-se de um trabalho que nestes estaleiros lhes permite ganhar um salário mais elevado do que se eles trabalhassem na agricultura. Esta actividade é extremamente perigosa e provoca muitos acidentes e mortes trágicas. Muitos trabalhadores ficam gravemente feridos, e o seu estado de saúde fica severamente afectado devido às substâncias perigosas contidas nos barcos e às condições deploráveis dos estaleiros. Trabalhar em tais condições é ainda mais perigoso para as crianças a quem faltam capacidades físicas e que estão ainda em pleno crescimento.

As causas do trabalho das crianças nos estaleiros

A pobreza é um dos principais factores que explica que um quarto dos trabalhadores dos estaleiros de Chittagong tem menos de 18 anos. A perda da terra, em especial devido à erosão, pode forçar um membro da família a viajar

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até Chittagong para aí procurar encontrar um emprego. O desaparecimento do chefe de família (morte ou abandono da família), porque é uma importante fonte de rendimento, pode criar uma crise financeira e obrigar uma família a enviar o filho mais velho para trabalhar nos estaleiros navais para ajudar a família. Famílias, endividadas devido a um casamento, são às vezes obrigadas a vender a sua terra, os seus bens e o seu gado ou a pedirem dinheiro emprestado aos seus vizinhos.

Os testemunhos recebidos revelaram que os microcréditos obtidos facilmente junto de ONG são em certos casos uma razão para as famílias retirarem as suas crianças da escola e de as enviarem para trabalhar. Com efeito, os empréstimos contratados junto das ONG são frequentemente menos flexíveis que aqueles que são obtidos junto dos aldeões.

Independentemente destas razões financeiras, a facilidade em obter um emprego sem qualificação nem experiência e a um salário bem melhor que nos outros sectores de actividades é atractiva para numerosas crianças.

Práticas correntes nos estaleiros

Certas crianças são originárias da região de Chittagong mas o recrutamento faz-se também através de contramestres que passam pelas aldeias. A mão-de-obra é quase 100% masculina contrariamente ao que se passa noutros sectores de actividade. As crianças abaixo dos 10 anos são contratadas muito raramente porque não possuem a força física requerida para este ofício. De acordo com várias fontes locais que têm experiência nos estaleiros, mais ou menos 10% dos trabalhadores têm menos de 12 anos. Às vezes, as crianças vêm para Chittagong com um membro da família que já aí trabalha.

A maior parte das crianças que testemunharam trabalha como “ajudantes no corte” (assistem os cortadores, utilizando maçaricos de sopro para cortar as pontas do ferro), algumas são “varredoras” (retiram a lama de todas as partes do navio), outras ficam encarregadas das correntes e dos cabos utilizados para deslocar as placas

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de aço e as partes das embarcações e depois de as carregarem em camiões e por último entregá-las aos compradores.

As crianças não trabalham com a protecção adequada, trabalham em plena luz do sol e inalam fumos. As crianças trabalham geralmente 12 horas por dia nos estaleiros. A maior parte tem cerca de uma hora de pausa para almoçar bem como duas pausas para o chá, alguns trabalham mesmo durante a noite. Não têm feriados oficiais, mas beneficiam de metade de um dia para descansar, Sexta-feira a seguir ao almoço.

A maior parte das crianças entrevistadas declarou não trabalhar todos os dias porque frequentemente estão muito cansadas, feridas ou doentes.

Jowel, 14 anos, antigo “ajudante no corte”: “regularmente, não posso comer nada porque engoli demasiado fumo. Quando se tem gás dentro do nosso corpo, não se pode comer, os meus olhos choram. Quando volto para o meu quarto, frequentemente não posso comer devido à esta horrível dor”.

Ajub, 15 anos, originário da ilha de Moheshkali Island, em frente da cidade de Cox’s Baazar: “Quando o meu pai morreu há 7 anos, a minha mãe tentou alimentar-nos, a mim e à minha pequena irmã. Ela cultivava mas já não era o suficiente. Tinha 8 anos quando comecei a trabalhar numa fábrica de sal. Trabalhei aí durante 7 anos, mas há 7 meses, este contramestre veio à minha aldeia e ofereceu-me um trabalho em que me paga o dobro que eu ganhava. Por conseguinte, parti para Chittagong. Sou actualmente carregador. Sou o único rendimento da família. Todas as semanas, envio 300 a 400 takas através de uma loja de telefone portátil na aldeia; recarrego aqui de um número de telemóvel que pertence à loja da aldeia e o seu proprietário transmite a ordem para o dinheiro chegar à minha mãe”.

Nuramol, 12 anos, chegou há 2 semanas de Comilla: “Nós tivemos que fazer uma hipoteca da nossa terra para pagar o casamento da minha irmã. Seguidamente, para recuperar a nossa terra e cultivá-la, o meu pai pediu emprestado 20 000 takas a uma ONG. Possivelmente, para obter este empréstimo, o meu pai não disse a verdade a esta ONG. O meu primeiro recebimento, aqui nos estaleiros, ajudou-me a reembolsar o meu bilhete de comboio e o meu equipamento. Após isto, enviarei regularmente dinheiro para ajudar o meu pai a reembolsar os empréstimos”.

As crianças queixam-se de dores e estão frequentemente doentes (dores de cabeça, vertigens) devido ao ambiente tóxico no qual trabalham. Não há um só um dia sem doenças, feridas ou mesmo mortes nos estaleiros.

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Uma criança vítima de um acidente e seriamente aleijado não pode mais trabalhar nos estaleiros. Neste caso, as crianças são reenviadas para casa e transformadas num peso para as suas famílias; muito frequentemente chegam antes do fim do seu tratamento e sem qualquer indemnização.

As crianças originárias de Chittagong vivem geralmente em pequenas casas familiares e as crianças que imigraram estão alojadas em dormitórios perto dos estaleiros onde não há água corrente e onde a electricidade é rara.

De acordo com a lei sobre o trabalho de 2006, as crianças com menos de 14 anos não podem ser empregadas nem em nenhum estabelecimento nem em nenhuma profissão. Contudo, esta lei não é respeitada, e a inspecção do trabalho não apresentou nenhuma queixa relativa ao trabalho infantil nos estaleiros. A Convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre as piores formas de trabalho infantil e ratificada pelo Bangladesh impõe a obrigação “de tomar acções imediatas e medidas eficazes para assegurar a proibição e a eliminação das piores formas de trabalho infantil como medidas de urgência”, e criança neste caso significa uma pessoa com menos de 18 anos de idade.

Depois de 20 ou 30 anos, os navios chegam ao fim da sua vida. Estas embarcações “em fim de vida” são vendidas e desmontadas para recuperação do aço. Contudo, estes navios contêm umas quantidades importantes de materiais perigosos. O desmantelamento de navios produz-se hoje em estaleiros em praias dos países do Sul da Ásia. O Bangladesh, bem como a Índia e o Paquistão, oferecem preços muito baixos devido à mão-de-obra muito barata, à ausência de máquinas dispendiosas, mas também devido ao desrespeito dos padrões internacionais em matéria do direito do trabalho e do ambiente. Esta situação vai-se agravar pelo número de navios que serão colocados fora de uso nestes próximos anos devido à supressão de cargueiros de simples casco, um número importante de velhos navios, assim como devido à forte expansão na construção naval ao longo destes últimos anos.

Os desperdícios tóxicos presentes nestes navios “em fim de vida” são

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vendidos e trocados livremente sem restrições no mercado internacional. Os custos para garantir que estes desperdícios são recuperados e destruídos sem estarem a poluir nem pôr em perigo a saúde pública são hoje suportados pelos trabalhadores e pelo meio ambiente nos países em desenvolvimento na Ásia do Sul. Isto é ilegal de acordo com o direito internacional e contrário ao princípio bem estabelecido “do poluente pagador”.

Quadro Jurídico internacional de desmantelamento de navios

A Convenção de Basileia sobre o controlo dos movimentos transfronteiriços de desperdícios perigosos e da sua eliminação foi criada como resposta a numerosos escândalos internacionais relativos ao tráfego de desperdícios perigosos começado no final dos anos 80. A convenção é relevante para o desmantelamento de navios porque estes navios contêm muito frequentemente uma quantidade importante de materiais perigosos. Em 2002, a Convenção de Basileia adoptou directivas técnicas sobre a boa gestão ambiental (ESM) respeitante à demolição total ou parcial dos navios, um documento que é sobretudo uma chamada de atenção para os países que têm já instalações para o seu desmantelamento.

Em Dezembro de 2003, a Organização Marítima Internacional (OMI) adoptou um documento intitulado “directivas sobre a reciclagem dos navios”. Este documento foi estabelecido para melhorar o procedimento do desmantelamento e para dar conselhos a todas as pessoas que têm um papel no processo de reciclagem, e nestes estão compreendidos os administradores dos equipamentos navais e marítimos, os países fornecedores, os países de pavilhão, os portos e os Estados que reciclam, bem como as organizações inter-governamentais e os corpos comerciais como os proprietários de navios, os reparadores e os estaleiros de demolição. A OMI está actualmente em vias de negociar uma convenção sobre a reciclagem dos navios que tem como objectivo substituir a Convenção de Basileia sobre as questões de desmantelamento de navios. As partes signatárias aceitarão ratificar a nova convenção da OMI se considerarem que o nível de controlo é pelo menos equivalente ao da Convenção de Basileia. Contudo, o esboço da convenção da OMI

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é actualmente tão medíocre que não impõe nenhuma obrigação ou estímulo real aos países que desmantelam os navios e aos seus proprietários a fim de melhorar o estado actual da situação. De facto, o esboço actual não representa nenhum avanço relativamente ao actual quadro legal internacional.

A OIT publicou em 2004 um conjunto de directivas sobre a destruição e a reciclagem dos navios. As directivas sugerem um conjunto de regras nacionais que definem as responsabilidades e o direito dos empregadores. Estas directivas prevêem recomendações sobre a segurança aquando das operações de desmantelamento, sobretudo quanto à gestão das substâncias perigosas, sobre medidas preventivas e medidas de protecção contra os perigos respeitantes a trabalhadores. Além do mais, as directivas incentivam programas de formação.

3.2 A ONU, A OIT E A CONVENÇÃO DE BASILEIA

Excertos extraídos de Où finissent les “ bateaux poubelles “ ?, de FIDH, disponível em : www.fidh.org/spip.php?article2687

O desmantelamento de navios é ao mesmo tempo um exemplo esclarecedor do potencial e dos perigos de uma economia cada vez mais mundializada. As empresas do Norte deslocalizam as suas actividades (e assim a produção de lixo e de desperdícios, as suas matérias perigosas) para os países em desenvolvimento com baixos salários, fazendo criar milhares de empregos e contribuindo para o crescimento económico de regiões onde há falta de investimentos no sector privado. No conjunto do continente asiático, o desmantelamento de navios fornece trabalho a dezenas de milhares de trabalhadores, produzindo ao mesmo tempo grandes quantidades de aço e evitando assim o recurso ao minério, não renovável. Constitui também uma fonte importante de materiais já usados. Na medida em que praticamente 100% de um navio é reciclado, a demolição pode em certa maneira ser considerada apenas como uma indústria. De acordo com um relatório da OCDE publicado em 2001, “as demolições de navios eliminam frotas de navios velhos de

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uma tonelagem considerável, reciclam uma grande parte dos materiais utilizados na construção dos navios e empregam um grande número de pessoas principalmente nas zonas demolição”.

Ao mesmo tempo, esta deslocalização de empresas expõe os trabalhadores nos países em desenvolvimento a perigos que seriam inaceitáveis nos países industrializados, já que aqueles países têm normas em matéria de direitos dos trabalhadores claramente abaixo das normas internacionais: criam-se assim duas classes de trabalhadores.

Os perigos que apresenta o desmantelamento de navios são agora bem conhecidos e documentados: trata-se de uma actividade altamente perigosa, expondo os trabalhadores a risco de morte, feridas graves e problemas de saúde crónicos devido à presença de substâncias tóxicas. O facto de os governos dos países em desenvolvimento não poderem – ou não quererem – assegurar o respeito dos direitos do Homem, o seu receio de perderem esta indústria em proveito dos países onde os salários são ainda mais baixos, o facto de não se assumirem como elementos de regulação internacional neste âmbito e implicitamente colocarem-se ao lado dos operadores privados, tudo isto conduz a um jogo de poder no qual são os trabalhadores que pagam as despesas. Como é frequentemente o caso, o lucro económico está primeiro que o respeito dos direitos e liberdades fundamentais.

A verdadeira questão que se põe, como aliás é muito comum quando os direitos do Homem têm a ver com a questão do desenvolvimento económico, é a da responsabilidade. Os governos dos países onde se encontram os estaleiros são no fundo os responsáveis pela protecção dos direitos dos trabalhadores, sem que isto exonere os operadores privados ou semi-públicos ao longo de toda a cadeia: estes devem ser considerados como responsáveis do estado da embarcação no momento da venda (actualmente, o armador pode libertar-se de qualquer responsabilidade relativa aos perigos que o navio pode apresentar, o que é contrário ao princípio “do poluente pagador”). Do mesmo modo, os demolidores ou desmontadores de navios devem ser considerados responsáveis pelas condições que impõem aos trabalhadores nos seus estaleiros.

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Se as violações dos direitos do Homem mais visíveis e melhor documentadas se referem à indústria do desmantelamento e às violações de que são responsáveis os governos dos países em desenvolvimento, outras responsabilidades situam-se ao nível internacional: com efeito, os trabalhadores dos estaleiros de demolição encontram-se no fim da cadeia no sistema complexo e mal controlado do transporte marítimo internacional e do qual são os grandes perdedores.

Assim, enquanto os países ocidentais são criticados, a justo título, pelo facto de utilizarem estes estaleiros como locais de descarga (o que tranquiliza a sua própria opinião pública, cada vez mais preocupada com a protecção do ambiente), os governos destes países parecem satisfazer-se em adoptar procedimentos destinados a garantir o carácter não poluente dos navios que serão construídos no futuro. Infelizmente, a questão vai para além disto, dado que os governos, e principalmente os governos ocidentais, criaram uma situação na qual Estados e armadores pouco escrupulosos podem furtar-se na sua maior parte, se não na totalidade, às responsabilidades regulamentares; actualmente, em tudo o que se refere à propriedade de um navio e à sua matrícula – elementos essenciais para assegurar o respeito de qualquer regulamento – desenrola-se num sistema clandestino, confidencial e opaco de pavilhões de conveniência, pertencentes na sua maior parte a paraísos fiscais, aos quais pertence mais de 50% da frota mundial. E enquanto esta anomalia dos pavilhões de conveniência subsistir, os governos e as organizações intergovernamentais como a Organização Marítima Internacional (OMI) permanecerão impotentes para assegurar o respeito de um regulamento eficaz que garanta a segurança na indústria de demolição de navios.

Um dos factores chave desta insuficiência de regulamentação do sistema mundial da demolição naval é por conseguinte a ausência de uma política adequada por parte dos países industrializados, de onde provêm a maior parte dos navios. Na ausência de quadro regulamentar eficaz para equilibrar os direitos e as responsabilidades dos diversos receptores, os estaleiros de demolição dos países em desenvolvimento serão submetidos a pressões desproporcionadas. O primeiro elo de ligação desta cadeia de (não) responsabilidade, são os países que fornecem os

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pavilhões de conveniência, que não se conformam a um quadro regulamentar geral e que, pior ainda, não podem ser obrigados a isso. Em virtude das suas obrigações em matéria de cooperação internacional, os países industrializados devem tomar as suas responsabilidades de forma séria e ajudar a colocar em pé um quadro regulamentar equilibrado, eficaz e aplicável, com um programa de retirada sistemática de circulação de navios que excedem certa idade. Para este fim, os Estados-membros da OCDE deveriam utilizar todas as instituições internacionais à sua disposição, criando ao mesmo tempo programas bilaterais de assistência técnica.

A importância do direito do trabalho

É nos anos 90 que a comunidade internacional tomou consciência da questão das violações dos direitos do Homem nos estaleiros de demolição de navios graças à acção concertada de organizações não governamentais, principalmente a Greenpeace, de sindicatos como a Federação Internacional dos Trabalhadores dos Transportes e a Federação Internacional das Organizações dos Trabalhadores da Metalurgia, e de organizações intergovernamentais, como a Organização Internacional do Trabalho (OIT). As condições de trabalho catastróficas e os perigos para a saúde e para a segurança aos quais os trabalhadores eram expostos, assinalados por vários inquéritos dos meios de comunicação social, comoveu fortemente a opinião pública e deu lugar a uma mobilização internacional. A atenção foi assim concentrada em grande parte nas questões de segurança e de saúde: a presença nos locais de trabalho de grandes quantidades de substâncias tóxicas, tais como o amianto, o arsénico, os metais pesados, o estanho tributílico, os hidrocarbonetos aromáticos policíclicos, as dioxinas, e a ausência ou a não-aplicação de regras de segurança, davam lugar a centenas de acidentes anualmente. Estas questões apareceram claramente como tendo que ser tratadas e com toda a urgência. Contudo, com o tempo, pareceu cada vez mais claro que qualquer melhoria duradoura da situação dos trabalhadores nos estaleiros de desmantelamento exige o respeito pelo direito do trabalho, e nomeadamente pelos direitos sindicais. É de resto muito preocupante constatar os poucos progressos realizados na elaboração de leis e na aplicação destes mesmos direitos, nomeadamente em matéria de liberdade de associação e de negociação

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colectiva, de protecção social e de ajuda social, e contra a violação das obrigações nacionais e internacionais da Índia e do Bangladesh. Como testemunha o presente relatório, os trabalhadores encontram-se numa situação de vulnerabilidade e de dependência totais, sujeitos a todo e a qualquer arbítrio – sem contrato, sem sindicato, sem segurança do emprego; são governados pela vontade de um particular, e não pela lei ou por regras geralmente aceites.

O problema não é tanto a ausência de leis, como é frequentemente o caso, mas sim a não-aplicação das leis existentes e a fraqueza das vias de recurso. Enquanto o empresário se compromete numa corrida contra o relógio para ganhar um desmantelamento e para ultrapassar qualquer obstáculo a um desmantelamento rápido do navio, tudo é descartado, tais como as garantias relativas à saúde e à segurança dos trabalhadores, tais como os direitos sociais etc., tudo isto é afastado automaticamente.

O problema é exacerbado pelo clima de medo e de intimidação alimentado pelos poderes exorbitantes de que gozam os proprietários dos estaleiros na vida local. Isto é particularmente visível no Bangladesh, onde é impossível criar um sindicato, e onde os jornalistas e outros defensores dos direitos do Homem são impedidos de inquirir sobre a situação nos estaleiros. A Federação Internacional das Ligas dos Direitos do Homem (FIDH), cuja própria delegação sofreu uma perseguição, considera que tal falta de transparência, que tais pressões e actos de intimidação, não somente levam a infracções directamente contra os interesses dos trabalhadores, como também aumentam as críticas contra os estaleiros e as dúvidas quanto à vontade real de fazer mudanças que são bem necessárias. A corrupção repetidamente assinalada do poder judicial e dos funcionários não reforça mesmo nada a credibilidade destas instituições supostas defender os trabalhadores contra as violações dos seus direitos.

A FIDH está fortemente convencida que pôr em prática verdadeiros procedimentos de regulamentação dos diferendos entre empregadores e trabalhadores, passando pela aplicação do direito do trabalho e nomeadamente

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pelos direitos de negociação colectiva, é um elemento crucial de toda e qualquer melhoria da situação nos estaleiros dos navios na Ásia. O facto de estes direitos não serem respeitados não somente bloqueia qualquer reforma nos estaleiros em matéria de saúde e de segurança como torna, por outro lado, os trabalhadores mais vulneráveis e enfraquece ainda mais a sua posição. A FIDH considera que não se pode dissociar uma melhoria em matéria de saúde e de segurança da aplicação do direito do trabalho, e nomeadamente dos direitos sindicais. Uma estrutura sindical eficaz permitiria representar os interesses do conjunto dos trabalhadores.

Não obstante os problemas ligados aos estaleiros, não há nenhuma dúvida de que o desmantelamento de navios melhorou claramente a situação da maior parte dos compradores de barcos para demolir, incluindo os trabalhadores. Para eles, que são geralmente migrantes vindos de regiões mais pobres do país, um emprego num estaleiro representa um imenso aumento de salário. Em Alang, por exemplo, um trabalhador ganha em média de 60 a 150 rupias por dia (1,25 a 3,102 dólares americanos) contra em média 10 rupias (0,21 dólares americanos) como trabalhador agrícola na sua terra. É necessário contudo acrescentar que se todos os trabalhadores reconhecem que trabalhar em Alang melhora as suas condições de vida bem como as da sua família, consideram no entanto que os salários são muito baixos tendo em conta os riscos incorridos.

O encerramento puro e simples dos estaleiros de desmantelamento, ou o seu repatriamento para os países industrializados onde a segurança poderia ser melhor assegurada, não constitui por conseguinte uma solução, porque o destino dos trabalhadores seria ainda mais miserável do que o é actualmente.

A FIDH considera por conseguinte que a questão que se põe não é manifestamente a de saber se é necessário ou não fechar os estaleiros, mas a de saber como o benefício económico e social resultante da sua actividade pode ser melhor partilhado com os trabalhadores e com as colectividades locais. Tudo isto exige que as reformas sejam introduzidas progressivamente nos estaleiros, de modo a que se tornem locais de trabalho, que possibilitem uma actividade duradoura e viável,

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onde sejam respeitadas as normas internacionais sobre os direitos dos trabalhadores. A FIDH espera que este relatório possa contribuir para pôr em prática tais reformas.

É claro que os esforços tendentes a melhorar as condições de trabalho nos estaleiros de desmantelamento na Ásia do Sul devem ser de alcance e aplicação mundiais. O debate internacional sobre esta questão tem sido levantado por Alang, o maior estaleiro mundial no mundo. Contudo, as condições de trabalho são aí indiscutivelmente melhores que noutros estaleiros, quer seja na Índia (por exemplo em Darukhana, perto de Bombaim), quer seja noutros países, como em Chittagong no Bangladesh. É evidente que a introdução de leis mais severas (ou uma melhor aplicação das leis existentes) num lugar dado conduzirá apenas à deslocação da actividade para outros sítios onde tais normas não existem, provocando uma corrida violenta para baixo, para onde houver maior desregulação. É pois assim da mais alta importância que os esforços de regulamentação e da sua aplicação que levaram a cabo a comunidade internacional, os governos nacionais e a sociedade civil se alarguem à escala mundial.

Visão de conjunto dos estaleiros de desmantelamento na Ásia

Alguns dados de base

Estimam-se em 45 000 o número de navios de mar que circulam nos mares do globo. Com exclusão dos navios militares, nestes números encontram-se cargueiros, porta-contentores (os ro-ro), navios cisternas, navios de cruzeiro, navios frigoríficos… Estão autorizados a ir para o mar depois de terem recebido um certificado de navegabilidade válido por quatro anos, emitido pelo Estado do pavilhão do navio, e podendo ser examinado pelos serviços do Estado do porto. Após um período de 25 ou 30 anos em média, o trabalho necessário para a renovação do certificado é geralmente demasiado dispendioso para que valha a pena e o armador envia então o navio para abate: é vendido, através de corretores internacionais onde os compradores a pronto (cash-buyers) compram as embarcações para as revender aos demolidores, a fim de ser retirado de circulação num estaleiro de desmantelamento.

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Cada ano, em média, 700 navios, ou seja, entre 15 e 25 Mtpt (milhões de toneladas de peso total), são classificados em situação de ruptura. Em 1999, o número atingiu o seu mais elevado nível em 14 anos, 31 Mtpt. Este número deveria aumentar nos próximos anos com a chegada ao fim de vida de numerosos navios construídos nos anos 80. A tudo isto acrescente-se o facto de os transportadores de mercadorias gerais se tornarem obsoletos com a chegada dos porta-contentores e a aplicação de novas regras de segurança. A obrigação de equipar os navios cisternas com um duplo casco (regra MARPOL 13 G da OMI) é particularmente importante deste ponto de vista, embora a cláusula “avô” – ou seja o período de 20 anos durante o qual os navios cisternas de simples casco devem ser retirados progressivamente de circulação – tivesse reduzido consideravelmente o seu poder regulamentar. Os navios militares não figuram neste cálculo, porque não passam pelo sistema de corretagem internacional; o número total de navios classificados em situação de ruptura é por conseguinte superior aos números disponíveis.

Até aos anos 60, o desmantelamento naval era uma actividade altamente mecanizada concentrada nos países industrializados, sobretudo nos Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha e Itália. O Reino Unido representava 50% da indústria – era na Escócia que se encontrava a mais importante operação de desmantelamento no mundo. Durante os anos 60 e 70 viu-se a reciclagem migrar para países semi-industrializados, como a Espanha, a Turquia e Taiwan, essencialmente devido a salários mais baixos e à existência de um mercado para o aço re-laminado. Se durante a última década, 79 países alojaram, sob uma forma ou outra, certa actividade de reciclagem de navios, os estaleiros asiáticos, que descolaram nos anos 80, cobrem actualmente 95% do mercado. Alang, na Índia, mantêm-se à cabeça como sendo o maior local de desmantelamento do mundo, cobrindo em média 70% da tonelagem mundial e 50% das vendas de navios em situação de ruptura. O Bangladesh é o segundo país depois da Índia em volume de reciclagem.

Diversos factores explicam a migração do desmantelamento naval para a Ásia:

– A disponibilidade de uma mão-de-obra pouco dispendiosa tanto mais que

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se trata de uma actividade fortemente intensiva em trabalho, utilizando técnicas simples.

– Uma aplicação laxista das normas sociais e ambientais. Inversamente, com normas mais exigentes reduz-se a actividade do país em questão: por exemplo, a decisão em 1997 do governo da Índia de exigir certificados de desgasificação provocou uma baixa sensível das demolições de navios cisternas. Os estaleiros indianos ocupam-se actualmente sobretudo de navios em doca seca.

– Um mercado interno para o aço. No Bangladesh, por exemplo, os estaleiros de demolição fornecem actualmente 100% das necessidades de aço. Na Índia, o aço dos estaleiros representariam 15% da produção total do país, aproximadamente a metade do preço do aço de produção clássica.

– Condições físicas que permitem a dispensa de muitas infra-estruturas pesadas, como a possibilidade de encalhar as embarcações numa praia, evitando assim a necessidade de cunhas secas, um clima que permite que a actividade prossiga praticamente durante todo o ano, e as infra-estruturas necessárias para transportar as matérias recuperadas para os locais de venda.

– Uma situação geográfica propícia: a proximidade de grandes estradas marítimas para o Oriente desempenhou um papel importante no desenvolvimento da indústria do desmantelamento na Ásia do Sul.

– Há igualmente lugar para ter em conta a evolução das paridades monetárias entre o dólar dos EUA e as moedas dos outros países desmanteladores.

Contudo, estão em estudo projectos para reintroduzir na Europa uma actividade de desmantelamento naval, nomeadamente em Antuérpia (Bélgica), sob a égide da União Europeia, que encomendou um estudo sobre a viabilidade destas operações nos estaleiros europeus existentes. Todavia, os meios oficiais dos países ocidentais reconhecem que os armadores não manifestam nenhum interesse por tais

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projectos, e o mesmo se passa com as empresas que poderiam ser as compradoras dos barcos. Com efeito, os custos provocados por uma demolição “limpa” seguramente excedem largamente o ganho que se poderia esperar, dados os preços actuais no mercado dos navios em situação de fim de vida – entre 150 e 190 dólares americanos por tonelada de peso total, sendo isto em função do mercado e do tipo de navio; os navios cisternas são naturalmente mais caros devido sobretudo à maior quantidade de aço que comportam. Em 1997, o governo dos Estados Unidos proibiu provisoriamente a exportação de navios de guerra e da Administração da Marinha Americana (MARAD) com o propósito da sua demolição nos países em via de industrialização, na sequência da reacção violenta da opinião contra as condições de trabalho nos estaleiros asiáticos. A moratória prolongou-se posteriormente.

Uma actividade muito perigosa

Ninguém contesta o facto de a demolição de navios ser uma indústria de alto risco. “É inegável que a desmantelamento de navios é uma actividade perigosa e suja”, escreveu Paul Bailey, na sua nota de informação para a OIT. “É muito simplesmente um trabalho demasiado perigoso para um salário tão baixo”, explica um antigo trabalhador de Alang reconvertido ao fabrico e à venda de móveis. É certo que o debate internacional sobre o desmantelamento de navios incidiu em grande parte sobre os riscos para a saúde e segurança gerados por este actividade. O Relator Especial das Nações Unidas sobre as consequências nefastas dos movimentos e do derrames ilícitos de produtos e desperdícios tóxicos e nocivos para a fruição dos direitos do Homem, Fatma-�ohra Ouhachi-Vesely, denunciou, nos seus relatórios de 1999 e 2000, o impacte da demolição de navios sobre a plena fruição dos direitos do Homem. Os riscos ligados ao desmantelamento de navios são em suma de duas espécies: a intoxicação por substâncias perigosas e os acidentes nos estaleiros. A explosão de resíduos gasosos e vapores de petróleo nas cisternas constitui a primeira causa de acidentes. Em 1997, uma enorme explosão em Alang provocou, de acordo com as estimativas, 50 mortes, que forçaram as autoridades indianas a exigir certificados de desgasificação a todos os navios e a utilização de óculos e de capacetes de protecção pelos trabalhadores. Depois, o número de

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explosões baixou significativamente. Outra causa importante de acidentes é as quedas de trabalhadores, que trabalham sem cintos de segurança em navios que chegam a atingir 70 m na parte mais alta. Entre os outros acidentes, citam-se as quedas de vigas e de placas de aço que esmagam os trabalhadores sob o seu peso, os choques eléctricos, etc…

Segundo médicos inquiridos na Índia pela delegação da FIDH, para além dos traumatismos ortopédicos e das queimaduras graves ligadas aos acidentes ocorridos nos estaleiros, há numerosos casos de doenças de pele, paludismo (40% dos doentes, de acordo com um médico do hospital da Cruz Vermelho de Alang), desnutrição, diarreia, tuberculose, problemas respiratórios... Os casos de lepra são claramente mais numerosos que a média nacional.

Os perigos inerentes à demolição de navios foram confirmados mais uma vez com três acidentes mortais ocorridos em Julho de 2001 na China, cujos estaleiros têm a reputação de estarem de acordo com as normas e de serem “seguros”, quando comparados com os do sub-continente indiano. Em dois casos, tratava-se de explosões durante o desmantelamento e no terceiro caso da queda de uma grua num estaleiro novo, perto de Xangai.

A montante: o mercado dos barcos em situação de ruptura é desorganizado e mal controlado

As flutuações no mercado dos navios para demolição têm um impacte directo nas condições de trabalho nos estaleiros. Uma das principais causas das violações do direito do trabalho reside na ausência de segurança do emprego, com a possibilidade de se ser despedido no dia seguinte, o que torna os trabalhadores extremamente vulneráveis. Sem estar a exonerar os empregadores da sua responsabilidade na matéria, é manifesto que esta precariedade está directamente ligada ao facto de o mercado da sucata de ferragem ser muito flutuante; a demolição é por conseguinte uma actividade “mais induzida, condicionada pela oferta de embarcações vendidas para sucata de ferragem e a chegarem ao mercado, que voluntarista na eliminação

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dos navios indesejáveis”. É contudo claro que actualmente é mais vantajoso continuar a fazer navegar navios demasiado idosos e perigosos que os enviar para uma situação de fim de vida, sobretudo face à relativa incapacidade da OMI em fazer respeitar as suas convenções em matéria de segurança. O relatório de 2001 da OCDE elabora a lista das doze razões principais pelas quais o mercado não chega a retirar de circulação todos os navios de alto risco. Eis algumas:

– a diferença entre o valor para ferragem de um navio e o seu valor com o propósito de continuar em exploração, que pode ser o dobro ou mesmo mais;

– o facto de o vendedor não incorrer em nenhuma responsabilidade legal no caso da perda ou sinistro grave ulterior do navio;

– o facto de certos Estados do pavilhão não assumirem as suas responsabilidades em matéria de aplicação das normas internacionais relativas à segurança dos navios e de medidas de prevenção da poluição marítima. Isto está evidentemente ligado à questão dos pavilhões de conveniência. Os Estados em questão são geralmente aqueles mesmos que não respeitam as normas internacionais relativas aos direitos dos marinheiros e das gentes do mar;

– tal atitude reencontra-se muito claramente em certas sociedades de classificação, certos seguradores e certos fretadores;

– nem os Estados do porto, nem os Estados do pavilhão têm o poder legal de exigir a demolição de navios pouco seguros.

Um programa sistemático de detecção de barcos em situações de ruptura teria como efeito limitar as flutuações do mercado, que têm um impacte directo, e frequentemente negativo, sobre os trabalhadores; naturalmente, tudo isto reduziria também e em muito o número de navios que não respeitam as normas, o que tornaria o mar mais limpo.

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Um quadro regulamentar internacional inadequado

Enquanto existem numerosas regras relativas à construção de um navio e à sua exploração no mar, até muito recentemente havia extremamente pouco a nível internacional sobre barcos em fim de vida. “A regulamentação existente dos transportes marítimos internacionais cobre as diferentes etapas da concepção, da construção do navio, da sua exploração e da sua manutenção, e define as normas mínimas a respeitar. Contudo, a infra-estrutura legislativa marítima não toma em conta as últimas fases da vida de uma embarcação, ou seja, a sua retirada de circulação”, declara o Programa das Nações Unidas para o Ambiente (PNUA). Diferentes iniciativas estão em curso para o estabelecimento de directivas para o desmantelamento de um navio em boas condições ambientais, garantindo ao mesmo tempo a saúde e a segurança dos trabalhadores nos estaleiros. A ideia central que está por detrás destes esforços internacionais é o conceito “do construtor transgressor”; noutros termos, como diz o Secretário-geral da OMI, William O’Neil: “A morte de um navio deve ser preparada mesmo antes do seu nascimento. A sua concepção e a sua construção devem ter em conta a forma como o desmantelamento e a reciclagem se poderão fazer”.

Tratando-se de navios em exploração, a ideia seria proceder a uma certa descontaminação do navio antes da sua última viagem. Ora, isto não é possível para todas as substâncias perigosas porque assim o navio não seria autorizado a juntar-se ao estaleiro de demolição pelos seus próprios meios e o reboque aumentaria imensamente o custo do desmantelamento, o que lhe retira, com efeito, qualquer interesse económico.

O problema reside em parte na confusão que reina quanto à organização que seria competente na matéria, porque há um debate imediato sobre as competências: os poderes regulamentares da OMI, por exemplo, param no limite das águas territoriais; a partir de lá, o navio tem apenas a ver com os empresários locais e o seu governo. Ainda aqui seria necessário um quadro regulamentar mundial que abrangeria todos os aspectos da demolição de navios e que se aplicaria a todos os

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actores, incluindo os representantes dos trabalhadores. É somente com esta condição que se poderá certamente melhorar a situação nos estaleiros.

Uma das grandes ambiguidades com que nos defrontamos todos hoje ao procurar-se regulamentar este domínio tem a ver com a questão da responsabilidade; é da mais elevada importância atribuir responsabilidades precisas a cada actor no processo de demolição:

– armadores privados

– demolidores privados

– governos que asseguram a demolição

– Estados do pavilhão

– governos dos países construtores

– Estados do porto

Se é admitido que a responsabilidade final pelo respeito dos direitos dos trabalhadores e da protecção da sua saúde e da sua segurança pertence aos governos nacionais, todos os operadores da cadeia, quer sejam públicos, semi-públicos ou privados, têm também a responsabilidade de velar para que estes direitos sejam respeitados e protegidos e no mundo inteiro. O direito internacional dos Direitos do Homem é claro: o preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do Homem precisa que “todos os órgãos da sociedade… esforçam-se… em desenvolver o respeito destes direitos e liberdades” (sublinhado por nós). De resto, no seu relatório para 2000, o Relator Especial das Nações Unidas sobre as consequências nefastas dos movimentos e do derrames ilícitos de produtos e desperdícios tóxicos e nocivos para a fruição dos direitos do Homem, Fatma-�ohra Ouhachi-Vesely, assinala a relação entre a questão da demolição de navios em condições seguras e a dos

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pavilhões de conveniência; pede em especial que se “estabeleça a responsabilidade do proprietário do navio desde a compra inicial até à sua venda para a sucata de ferragem”.

O carácter não obrigatório das diversas directivas relativas à demolição de navios e a ausência de mecanismos claros para assegurar o respeito efectivo das regras justificam graves apreensões. A necessidade de um mecanismo mundial para assegurar a aplicação efectiva das regras é igualmente importante. Não é pois surpreendente que as autoridades nacionais, regionais e locais dos países em desenvolvimento estejam de tal modo desejosas de verem criar empregos que frequentemente fecham os olhos às violações cometidas nos estaleiros. As tentativas em fazer aplicar os regulamentos chocam com o temor que os obceca de ver a actividade deslocar-se para países menos caros. A FIDH considera que os países ocidentais, de onde provêm a maioria dos navios de que se está a falar, descartam-se da sua responsabilidade na matéria. É evidente que não é suficiente criar-se procedimentos para assegurar que no futuro os navios sejam concebidos e construídos de forma a reduzir ao mínimo a presença de matérias perigosas. Os governos têm uma obrigação geral em matéria de cooperação internacional e poderiam desempenhar um papel muito mais activo para ajudar os países em desenvolvimento a melhorar a situação nos estaleiros.

De resto o artigo 2(1) do Pacto Internacional relativo aos Direitos Económicos, Sociais e Culturais precisa que: “Cada um de Estados partes ao presente Pacto compromete-se a agir, tanto pelo seu próprio esforço como pela assistência e pela cooperação internacionais, nomeadamente nos planos económicos e técnicos, …para assegurar progressivamente o pleno exercício dos direitos” (sublinhado por nós). De acordo com o Comité sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, esta obrigação de cooperação para o desenvolvimento e por conseguinte para a realização dos direitos económicos, sociais e culturais “impõe-se particularmente aos Estados que estão em condições de assistir outros a esse respeito”.

O programa de ajuda posto em prática pelo governo holandês em Gujarat (Índia), e que consiste essencialmente numa transferência de know-how, é um bom

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exemplo do que esta obrigação de cooperação internacional pode dar na prática e que os governos ocidentais poderiam fazer para contribuir para melhorar as condições de vida e de trabalho, bem como as condições sociais, nos estaleiros de demolição. Infelizmente, esta iniciativa permanece um caso isolado.

De uma maneira mais geral, tratando-se do sistema mundial de desmantelamento de navios, a ausência de uma política adequada dos países industrializados constitui um dos factores chave. A necessidade de um quadro regulamentar mundial e eficaz, que definisse os direitos e as responsabilidades (jurídicas e igualmente económicas e financeiras) e que criasse regras vinculativas fundadas nas normas internacionais, faz-se certamente sentir com particular acuidade na extremidade da cadeia – nos estaleiros de demolição; e esta necessidade é, de toda a maneira, cada vez mais urgente com o aumento actual do número de embarcações velhas, de alto risco, que navegam nos mares do globo. Trata-se com efeito de pôr fim ao sistema de pavilhões de conveniência, sob os quais navega mais da metade da frota mundial. Tal quadro político deveria comportar normas adequadas para o desmantelamento dos navios em boas condições de segurança, normas adequadas para a construção dos novos navios, um programa mundial e coordenado para a retirada de circulação dos navios velhos, a aplicação de normas sobre as condições de trabalho e um mecanismo próprio para assegurar a aplicação das regras por cada um dos Estados do pavilhão, estabelecendo um sistema eficaz para assegurar o respeito do direito internacional por todos os Estados do pavilhão.

É certo que tratando-se dos perigos ligados ao desmantelamento de navios e às condições de trabalho catastróficas dos trabalhadores nos estaleiros, a crítica que sofrem os países demolidores de barcos é desproporcionada. Sem estar a querer minimizar a sua responsabilidade, é claro que os custos ligados a práticas mais perigosas em matéria de demolição não podem ser suportados somente pelos proprietários dos estaleiros. Em numerosas vezes, em conferências sobre o desmantelamento de navios, foi sugerido criar “uma dotação mundial para a demolição de navios” e “uma taxa mundial para a demolição de navios”. Como escreveu o Professor N. Wijnolst: “A indústria marítima internacional tem uma

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responsabilidade no que diz respeito à solução dos problemas actuais nos países demolidores, uma responsabilidade que deveria traduzir-se em termos financeiros, quer por um sistema de cobrança obrigatória sobre os navios, quer pelos mecanismos do mercado”. A FIDH considera que um tal fundo para a demolição de navios, que poderia financiar os investimentos necessários para que a demolição se faça em boas condições de segurança, é indispensável; este poderia ser posto em prática de modo relativamente rápido e eventualmente organizado pela OMI.

O quadro jurídico internacional

A Convenção de Basileia

No campo da saúde, segurança e defesa do ambiente nos locais dos abates de embarcações, muitas vezes é feita referência à Convenção de Basileia. É esta que permite estender o âmbito da responsabilidade para além dos governos dos países demolidores e dos proprietários de estaleiros, para aí também incluir os armadores e os Estados do pavilhão. Esta é de crucial importância para a descontaminação de navios antes de serem enviados para demolição.

A Convenção de Basileia sobre o Controle de Movimentos Transfronteiriços de Resíduos Perigosos e sua Eliminação entrou em vigor em 5 de Maio 1992. São 133 os Estados signatários da Convenção, que proíbe a exportação de resíduos perigosos aos Estados do anexo VII (países da OCDE, a União Europeia e Liechtenstein) com destino aos países do anexo VII. Também proíbe a exportação de resíduos perigosos para os Estados signatários que tenham proibido a importação desses resíduos. Este é o caso da Índia: em Maio de 1997, o Tribunal Supremo pronunciou a interdição de importar resíduos perigosos no sentido da Convenção de Basileia – sem grande efeito uma vez que, apesar disto, a importação de navios contaminados continuou sem parar. O Bangladesh (como a China e as Filipinas) também proibiu a importação de resíduos perigosos.

A Convenção também proibiu a exportação de resíduos perigosos de um

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Estado signatário “se tiver razões para crer que os resíduos em questão não vão ser geridos segundo os métodos ecologicamente correctos”.

No que diz respeito à União Europeia, o Regulamento (CEE) n.º 259/93 de 1993 sobre as transferências de resíduos, tal como alterado pelo Regulamento (CE) n.º 120/97 de 1997, proíbe todas as exportações dos Estados-membros da OCDE para países não membros da OCDE, de resíduos perigosos destinados a operações de reciclagem ou de recuperação, desde 1 de Janeiro 1998. Em Dezembro de 1998, o Governo belga prendeu o navio britânico MV Forthbank que fazia a rota para a Ásia para ser demolido. O Governo considerava que um navio europeu enviado para a Ásia para demolição constituía uma exportação de resíduos perigosos, abrangidos pela proibição de exportação de resíduos perigosos em vigor na União Europeia desde 1 de Janeiro de 1998. O navio só foi libertado quando os armadores prometeram que o navio não seria desmantelado.

Apesar de alguns governos não considerarem a demolição de navios como dependendo da Convenção de Basileia, a FIDH pensa que esta Convenção, embora insuficiente, é o único instrumento de regulamentação da demolição de navios e que se lhes aplica plenamente.

Os navios como resíduos perigosos

O termo “resíduos perigosos” é definida no artigo 1.º da Convenção que precisa que se trata de “resíduos que pertencem a uma das categorias inscritas no Anexo 1, a não ser que não tenham nenhuma das características indicadas nesse anexo”.

O Anexo I enumera diversas substâncias, incluindo as misturas e as emulsões óleo/água e hidrocarbonetos/água e os resíduos de tratamento de superfície dos metais. O Anexo 1 dá a lista das características do perigo, incluindo as substâncias explosivas, os líquidos e sólidos inflamáveis, e as matérias tóxicas e infecciosas. Dadas as substâncias de que se corre o risco de serem emitidas durante a demolição

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de navios, é claro que os navios como tais (e não somente as matérias individuais a bordo) podem ser considerados como “resíduos” na acepção do artigo 1(1).

Além disso, os navios enviados para demolição caem sob a definição “de resíduos” na acepção do artigo 2(1) da Convenção, que precisa: “entende-se ‘por resíduos’ substâncias ou objectos que se eliminem, que se tem a intenção de eliminar ou que é considerado dever-se eliminar em virtude das disposições do direito nacional”.

De acordo com um acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias publicado em 1998, “os resíduos não devem ser compreendidos como os que excluem substâncias e objectos que são susceptíveis de uma reutilização económica”. A FIDH partilha o parecer do Professor Geir Ulfstein: “Um navio deve ser considerado como resíduo, quer ele seja ou não ainda considerado como um navio, ou que ainda seja utilizado para transportar mercadorias, a partir do momento em que a decisão para o enviar para a ferragem foi tomada. Isto significa que o navio deve ser considerado como resíduo, mesmo se fizer paragem em vários portos antes de atingir o sítio do desmantelamento”. A possibilidade de esconder a intenção de o enviar para sucata de ferragem (ou seja, que o navio é destinado à demolição) põe contudo um problema: “este cenário constitui uma lacuna jurídica que vai ser necessário tratar”, escreveu o Relator Especial das Nações Unidas sobre as consequências nefastas dos movimentos e do derrames ilícitos de produtos e desperdícios tóxicos e nocivos para a fruição dos direitos do Homem, Fatma-�ohra Ouhachi-Vesely.

A questão do Estado de exportação

De acordo com os termos da Convenção de Basileia, “o Estado de exportação” é o Estado a partir do qual se efectua o movimento transfronteiriço, ou seja, onde começa a acção física de deslocar os resíduos ou onde é previsto que comece, quer o navio navegue ou não sob o pavilhão deste Estado. Contudo, “embora o Estado do porto seja o Estado de exportação na acepção da Convenção de Basileia, não

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há órgão jurisdicional – e pouca motivação – para controlar navios que pertencem ao direito internacional”, escreve Geir Ulfstein. A FIDH considera que os Estados do pavilhão que, de acordo com o direito internacional, são responsáveis pelas actividades dos seus navios, deveriam também ser responsáveis pela demolição destes. São já responsáveis pelo derrame sem perigo a partir dos seus navios nos termos da Convenção de Londres de 1972 sobre a imersão de resíduos e do seu protocolo de 1996. Como diz Geir Ulfstein, “obrigações similares poderiam ser postas em prática para a demolição dos navios, o que significaria que o Estado do pavilhão teria não somente o direito de exercer a sua jurisdição sobre os seus navios ‘do berço ao túmulo’, mas teria também a obrigação”.

Directivas específicas para a indústria de desmantelamento

Por organismos internacionais

Directivas e regulamentos específicos estão a ser elaborados sob a égide de diversas instâncias internacionais para controlar a indústria da demolição de navios. Como se podia esperar, trata-se de questões de segurança e de saúde, e também de normas para práticas ecologicamente racionais. A FIDH considera que esta abordagem reduz excessivamente o alcance dos problemas com os quais a indústria do desmantelamento se deve confrontar. A FIDH está preocupada igualmente com a ausência de mecanismos para assegurar o respeito das directivas e a falta de precisão relativamente à natureza exacta da responsabilidade de cada um dos actores no processo de demolição. As três organizações internacionais referidas são o PNUA, a OMI e a OIT.

O PNUA está encarregado da aplicação da Convenção de Basileia. A organização procede actualmente à elaboração de directivas sobre o desmantelamento total e parcial de navios com o objectivo de formular recomendações sobre os procedimentos e práticas de modo a obter-se uma gestão ecologicamente racional nos estaleiros de demolição. As directivas formularão também conselhos sobre o controlo e a verificação dos resultados do ponto de vista da protecção do ambiente. As directivas deveriam apresentar “uma instalação modelo”, que poderia

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ser realizada num prazo de cinco anos. As directivas “prescreverão as medidas a tomar para a eliminação em boas condições de resíduos e substâncias perigosas, incluindo a recolha, a triagem e a evacuação/reciclagem dos resíduos de uma maneira ecologicamente racional”. As directivas não tratarão contudo das questões de segurança e de saúde. A FIDH exprime a sua preocupação relativamente ao carácter “facultativo” destas directivas e à ausência de um mecanismo adequado para assegurar a sua aplicação.

Quanto à OMI, o seu Comité de Protecção do Meio Marinho (MEPC) debruçou-se sobre a questão da demolição de navios em 1998, quando a Noruega propôs inscrever este ponto na ordem do dia da OMI. Desde então está sempre na ordem do dia do Comité, sessão a sessão, e um grupo de trabalho por correspondência foi instituído aquando da 44.ª sessão do Comité em Março de 2000; o seu papel é o seguinte:

– identificação dos receptores, e a forma como apreciam o seu papel respectivo durante as diferentes fases da vida do navio;

– identificação e elaboração do papel da OMI na reciclagem de navios;

– identificação das normas ou directivas industriais relevantes internacionais, nacionais ou adicionais, que poderiam aplicar-se à reciclagem de navios, no âmbito da OMI;

– recomendações sobre as acções possíveis por parte do Comité, com as vantagens e os inconvenientes de cada opção.

O papel que poderia desempenhar a OMI seria o de assumir uma responsabilidade geral para as questões de coordenação ligadas à reciclagem dos navios, e uma responsabilidade das questões relativas ao controlo que se levantam aquando da concepção, construção e exploração do navio e podendo ter um impacte ainda sobre a reciclagem, incluindo a preparação da reciclagem a bordo.

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Na sua 47.ª sessão, em Março de 2002, o MEPC “aceitou que, de momento, a OMI deveria elaborar recomendações de directivas para adopção de uma resolução da Assembleia”. O MEPC aceitou utilizar como base para estas directivas o “Industry Code of Practice”. Um grupo de trabalho reuniu-se durante a sessão e elaborou um projecto que comporta as grandes linhas das futuras directivas sobre a reciclagem de navios. A mais longo prazo, a OMI deveria elaborar projectos de medidas preventivas dada a aplicação de novas técnicas de construção e a utilização de materiais ecologicamente racionais. Já que um navio deixa de ser considerado tecnicamente como tal a partir do momento em que passa a ser considerado para demolição, a OMI e a Convenção de Basileia convieram que de momento, a OMI continuará a regulamentar os navios em todas as circunstâncias, sobre o mar e nos portos, e a Convenção de Basileia regulamentará o transporte internacional de resíduos produzidos pelos navios durante a reciclagem. Como vimos, a OMI desempenha um papel crucial para envolver a responsabilidade dos Estados do pavilhão para com a demolição de navios em boas condições de segurança. O facto de a organização ser relativamente impotente quando se trata de fazer respeitar as suas próprias convenções e regulamentos mostra contudo que, no domínio da demolição de navios, mecanismos mais vinculativos devem ser postos em prática. Neste domínio devem também participar outras instituições, nomeadamente para forçar todos os Estados do pavilhão a assegurar o respeito das normas internacionais.

A OIT trata das questões de saúde e de segurança dos trabalhadores no local de trabalho, o que as outras duas organizações não abordam. Na sua 279.ª sessão em Novembro de 2000, o Conselho de Administração aprovou a conclusão da Reunião tripartida sobre o impacte da mundialização no domínio social e do trabalho e no sector do fabrico do material de transporte, precisando que “a OIT deveria elaborar uma recolha de directivas práticas adaptadas às condições locais como uma primeira etapa para a elaboração de um código de prática global sobre a segurança e a saúde no trabalho no sector do desmantelamento dos navios, e que os governos deveriam ser incentivados a exigir que seja elaborado a bordo dos navios o inventário das matérias perigosas, que seria actualizado ao longo de toda a vida do navio”.

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A responsabilidade fundamental da OIT consiste em definir normas operacionais para as actividades em terra ligadas à demolição de navios, ou seja, fixar as normas quanto às condições de trabalho no navio e em redor dele depois da sua paragem. Um elevado número de Convenções, Recomendações e Códigos de Práticas da OIT poderiam ser aplicadas relativamente às questões de segurança e de saúde no trabalho nos estaleiros de demolição.

As primeiras investigações começaram pela elaboração de um Guia Técnico sobre a segurança nas indústrias do desmantelamento, tendo como fio condutor o guia prático da OIT sobre os sistemas de gestão da segurança e da saúde no trabalho. Um projecto de texto será testado ao longo de todo o ano de 2002 e validado em 2003.

Iniciativas tomadas pela marinha comercial por sua própria conta

A Câmara Internacional da Marinha Comercial (ICS) tomou a iniciativa em Fevereiro de 1999 de criar um grupo de trabalho sobre a reciclagem dos navios (IWPSR). Em Agosto de 2001, este grupo elaborou um Código prático sobre a reciclagem de navios. Este código serve de base às futuras directivas da OMI. É destinado aos armadores e incentiva, de momento, todas as companhias marítimas “a lançar e a efectuar até ao fim um programa destinado a identificar e a registar, na medida em que isto for possível, no plano prático, em cada um dos seus navios actuais, qualquer matéria potencialmente perigosa” e “de fazer todos os esforços para limitar tanto quanto possível a presença a bordo de matérias potencialmente perigosas”. No futuro, o objectivo é incentivar os arquitectos navais e os construtores de navios a terem em conta o desmantelamento em fim de vida do navio a partir da sua concepção e da sua construção; é sugerido igualmente criar “um passaporte verde” para os novos navios. No entanto, o carácter não obrigatório e não executório destas directivas enfraquece consideravelmente o seu alcance e o seu efeito potencial.

O enquadramento legal mais recente

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Em 2004, foi adoptada uma importante decisão, ao considerar-se que um navio em fim de vida fica sujeito obrigatoriamente às determinações da Convenção de Basileia. Esta decisão relembra aos países signatária da Convenção que devem assumir as suas obrigações relativamente aos barcos em fim de vida. Torna-se evidente que estes princípios não estão de modo algum a ser cumpridos na prática do dia-a-dia quanto à exportação de barcos para demolição.

Obrigações

Estas determinações incluem a obrigação dos proprietários dos navios informarem as autoridades quanto aos seus planos relativamente aos seus barcos em fim de vida e solicitarem a autorização necessária. Um outro princípio foi instituído e expressa a possibilidade de haver controlo dos estaleiros encarregados de fazer o desmantelamento do navio no sentido de se saber se têm ou não as condições técnicas para o fazerem de modo correcto: o mecanismo Environmentally Sound Management. E estabeleceu-se igualmente a obrigação de não permitir a exportação dos resíduos perigosos dos países desenvolvidos para os países em vias de desenvolvimento (a proibição de Basileia).

Em 2003, foram aprovadas pelas directrizes OMI sobre os barcos em fim de vida. As orientações vão no sentido, entre outras coisas, da elaboração de um registo ou passaporte verde e da elaboração de um plano sobre o ciclo de vida do barco.

Em Dezembro de 2005, foi tomada uma importante decisão durante a 24.ª sessão da Assembleia da OMI: a OMI irá desenvolver um novo sistema mundial obrigatório quanto ao regime de desmantelamento de navios em fim de vida. Um tal desenvolvimento é positivo, desde que venha a incluir a justiça ambiental e o respeito pelos direitos do Homem. Além disso, deve reforçar o actual Regime da Convenção de Basileia que foi concebido para proteger os países em desenvolvimento. Este novo instrumento jurídico permitirá nomeadamente o estabelecimento de uma regulamentação respeitante à concepção, construção e preparação de navios, de modo a aumentar a segurança e a melhorar a reciclagem em termos ecológicos.

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Na sequência de uma proposta feita pelo Bangladesh, os signatários também concordaram sobre a necessidade, em princípio, de se estabelecer um Fundo Internacional para a reciclagem dos navios. Este fundo deverá promover a segurança e a gestão ambiental do navio em situação de reciclagem, através das actividades de cooperação técnica da OMI.

As três organizações da ONU, a OIT, a OMI e a Convenção de Basileia, decidiram trabalhar em conjunto. Assim estabeleceram um Grupo de trabalho conjunto sobre a demolição de navios (Joint Working Group on Ship Scrapping (JWG)) que se reuniu pela primeira vez em Fevereiro de 2005. O JWG é uma plataforma para consulta, coordenação e cooperação entre as três organizações. Este organismo deve tentar garantir que a justiça ambiental e os princípios dos direitos do Homem sejam integrados no próximo novo regime de desmantelamento mundial obrigatório.

Ainda uma referência ao mundo sem leis

Situado ao Sul dos Himalaias e banhado pelo golfo de Bengala, o Bangladesh sofre o resultado de duas situações naturais bem agrestes: de um lado, do Norte, caiem milhares de milhões de metros cúbicos de água e sedimentos dos dois gigantes, Ganges e Brahmapoutre, que alimentam, no decorrer das estações, as inundações mais desastrosas para a população. E, por outro lado, esta terra, uma das mais planas e baixas no mundo, expõe-se igualmente às águas do Golfo de Bengala. Ciclones e maremotos acompanhados de chuvas diluvianas diluem regularmente a fachada marítima do país e fazem dezenas, ou mesmo centena de milhares de vítimas. Ironicamente, foi a partir de um destes ciclones, durante os anos 60, que nasceu uma indústria das mais prósperas do Bangladesh: a reciclagem dos navios de mar. Na época, um grande cargueiro de mercadorias ficou imobilizado pela tempestade ao largo de Chittagong. A embarcação ficou encalhada e tornou-se inutilizável, não podendo sequer ser rebocada. A única solução para libertar a costa desta montanha de aço foi desmantelar o barco no local. Os barcos naufragados, abandonados sobre a costa meridional do país, multiplicar-se-ão com o conflito

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entre a Índia e o Paquistão (que precede a separação do Paquistão e a criação do Bangladesh, em 1971) e oferecerão assim matéria para reciclar. No sítio mais perto dos barcos naufragados será instalado o primeiro estaleiro de desmantelamento. A guerra de independência fornecerá ainda o seu lote de barcos naufragados que alimentarão esta nova indústria ao longo dos anos 70.

Depois destes desmantelamentos, a actividade de reciclagem naval vai conhecer uma verdadeira descolagem durante os anos 80. Os homens de negócios implicados nesta actividade vão importar cada vez mais navios.

Os proprietários

Os proprietários dos estaleiros são empresários frequentemente implicados noutras actividades industriais, às vezes ligados à própria reciclagem dos navios. Alguns entre eles são nomeadamente investidores nas fábricas de laminação. Não estão presentes nos estaleiros mas gerem os seus negócios desde Chittagong.

Os proprietários agruparam-se na Associação dos demolidores de barcos, a BSBA. (Bangladesh Ship Breakers Association). Trata-se da única entidade que tem como objectivo a reciclagem dos navios. A BSBA serve os interesses dos proprietários dos estaleiros sem ter em conta os outros actores da indústria. Nem as instituições governamentais, e ainda menos os trabalhadores, gozam de uma estrutura equivalente.

A BSBA desempenha um papel tanto mais importante quanto os estaleiros de reciclagem se tornaram a única fonte de fornecimento de aço no país. A associação pode assim impor os seus preços às fábricas de laminação, impor também quotas de produção aos estaleiros a fim de evitar qualquer sobre-produção e baixa do preço da tonelada. Além disso, com um peso económico considerável dado que a actividade dos estaleiros directa e indirectamente garante trabalho a mais de 100.000 pessoas, a BSBA dita a sua lei às autoridades mais do que ela respeita as leis do país.

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Homens de mão e grupos criminosos

A maior parte dos estaleiros de Shitakundu está cercada por uma nebulosa de homens de mão e de outros grupos criminosos que se considera estarem a proteger a actividade de reciclagem, mas que evidentemente dela tiram também proveito. Homens de fortes braços estão sempre prontos para fazer fugir qualquer visitante inoportuno, seja ele jornalista, sindicalista ou membro de uma ONG. Eles também sabem bem como reprimir qualquer veleidade de protesto dos trabalhadores relativos por exemplo aos salários não pagos. Normalmente, os homens de mão são utilizados pelos estaleiros mas em certos casos a situação deteriora-se e voltam-se contra os seus “empregadores”.

Um negócio sem direitos nem lei

Depois de mais de 20 anos de actividade, apesar do seu peso económico, a indústria de reciclagem dos navios conservou o seu carácter “informal”.

Apesar das numerosas leis nacionais existentes, nomeadamente sobre a indústria, que deveriam permitir regulamentar este verdadeiro sector económico, os estaleiros de desmantelamento têm estado sempre, e ainda hoje estão, acima das leis. Esta recusa em aplicar a lei permite nomeadamente uma exploração sem limite dos trabalhadores cujos direitos são inexistentes. Apesar de esta situação ser das mais alarmantes, o governo do Bangladesh ainda não mostrou vontade para impor a lei nos estaleiros. Satisfaz-se em obter receitas através das taxas e, a título individual, por meio dos subornos.

“Os proprietários de estaleiros estabeleceram boas relações com os barões locais. Nos seus círculos, incluíram homens políticos. Trata-se com efeito de uma verdadeira máfia. Puseram em funcionamento um sistema para evitar qualquer complicação no caso de explosão, acidente, nomeadamente através de subornos à polícia, aos barões locais, aos jornalistas, etc. Todo este negócio é apenas extorsão e é efectuado ao preço da vida dos trabalhadores”, concluiu o jornalista Murtaza Ali.

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Uma indústria acima das leis, e as leis existem

Mais de vinte anos depois dos primeiros estaleiros terem aberto, continua a não existirem no Bangladesh leis específicas para a reciclagem dos barcos. “Muitas das nossas leis datam do período britânico e não cobrem os novos sectores dos quais faz parte a reciclagem dos navios”, explica o magistrado Mohammad Harisuddin.

Contudo, as numerosas leis existentes que se aplicam à indústria, ao ambiente, ao petróleo ou ainda aos trabalhadores são, embora mal adaptadas, aplicáveis aos estaleiros de reciclagem. Até agora nenhuma da legislação que lhes poderia ser aplicada está de facto a ser aplicada nos estaleiros de reciclagem cujos responsáveis juram apenas por uma só uma lei, a do lucro. “É necessário primeiro aplicar as leis existentes e poder-se-á então verificar quais as suas insuficiências”, considera B. Mondal, encarregado da OIT para as questões dos estaleiros de reciclagem em Daca. “Em segundo lugar, se for preciso, serão revistas as leis ou redigir-se-ão outras”. A lei que deveria permitir o melhor possível enquadrar a actividade de reciclagem é a de 1965 sobre as fábricas e que se refere a toda a indústria do Bangladesh. Os inquiridos sobre a sua não aplicação, proprietários de estaleiros, respondem que não são reconhecidos como indústria pelas autoridades e que portanto esta lei não se lhes aplica. Esta lei mostra-se no entanto crucial dado que impõe deveres, nomeadamente em matéria de segurança, e direitos para os trabalhadores. “Sem a lei sobre as fábricas, os trabalhadores não podem sequer formar um sindicato, pois, com efeito, não são sequer reconhecidos como trabalhadores”, explica Mohammad Harisuddin. E o magistrado acrescenta: “Os proprietários dos estaleiros afirmam que querem ser reconhecidos como uma indústria mas eles não fazem nada para isso, eles não o querem realmente porque teriam então muitas obrigações como, por exemplo, um salário mínimo, ou ainda compensações no caso de acidente. E no caso de reconhecimento, serão também dependentes da inspecção do departamento da Indústria do governo”. Com efeito, explicam-nos, a retórica dos proprietários sobre a sua vontade em serem reconhecidos como indústrias não tem sentido na medida em que os estaleiros são, de facto, indústrias e estão, por conseguinte, sujeitos às leis existentes.

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Ciclo organizado pelos docentes da disciplina de Economia Internacional

da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra

Colaboração do Núcleo de Estudantes de Economia da Associação Académica de Coimbra

Apoio da Coordenação do Núcleo de Economia da FEUC

Com o apoio das instituições:

Reitoria da Universidade de Coimbra

Teatro Académico de Gil Vicente

Caixa Geral de Depósitos

Fundação para a Ciência e a Tecnologia

Ciclo Integrado de Cinema, Debates e Colóquios na FEUC

DOC TAGV / FEUC

2008 - 2009

Economia Global, Mercadorização e Interesses Colectivos

Textos seleccionados, traduzidos e organizados por:

Júlio Mota, Luís Peres Lopes e Margarida Antunes

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