sérgio roveri

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Sérgio Roveri * * * A Coleira de Bóris Não Contém Glúten Ensaio para um Adeus Inesperado

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Primeiras Obras

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Page 1: Sérgio Roveri

Sérgio Roveri* * *

A Coleira de BórisNão Contém Glúten

Ensaio para um Adeus Inesperado

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Sérgio RoveriColeção Primeiras Obras, 4Ivam Cabral (organizador)

Apoio Cultural

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Sérgio Roveri* * *

A Coleira de BórisNão Contém Glúten

Ensaio para um Adeus Inesperado

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PrefácioSobre Sérgio Roveriotavio frias filho

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A Coleira de Bóris9

Não Contém Glúten69

Ensaio para um Adeus Inesperado133

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“Um verdadeiro movimento teatral está acon-tecendo em São Paulo. São espetáculos muitas vezes produzidos em condições precárias, mas com grande vitalidade, feitos por atores e dire-tores de talento inovador. O centro geográfico é a Praça Roosevelt, embora palcos e artistas de outros lugares participem do mesmo espírito. E o melhor símbolo dessa efervescência, na dramaturgia, é o trabalho de Sérgio Roveri.

 Este é nada menos que um autêntico po-eta do tablado. É fantástica sua capacidade de extrair lirismo do banal e de revelar epifanias a partir do medonho. Seu domínio do diálogo afiado e cortante é pleno. Seu humor é original. Treinado na observação jornalística, Roveri tem ouvido musical para o detalhe expressivo

Sobre Sérgio Roveri

Prefácio

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perdido na superfície do cotidiano. Mas sua imaginação se expande por territórios tão lon-gínquos como a ficção científica, o monólogo sério, a farsa grotesca.

Coisa rara hoje em dia, Roveri é um ca-valheiro, figura doce que tem um gesto deli-cado para cada pessoa. É também um autor incomum, eclético, cujo trabalho se transforma a cada passo num desenrolar que acena com grandes surpresas ainda por vir”.

 Otavio Frias Filho

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A Coleira de Bóris

Cenário

Duas celas conjugadas (não necessariamente o realismo de uma cadeia), separadas por uma parede ou divisória que impede os presos de se verem, mas não de se comunicar. As celas estão de frente para a plateia. Quando o espetáculo começa, A já ocupa uma das celas, a da esquer-da do público. A outra está vazia. Depois de alguns segundos, B é como que atirado na cela da direita. Vai ao chão de bruços e permanece em silêncio. A aproxima o ouvido da parede.

A – Ei, você estava nu? (Pausa) Quando eles te pegaram. Você estava nu?

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Silêncio. B, imóvel.

A – E agora, como você está? Ainda está nu ou eles deixaram você vestir alguma coisa? Chegue um pouco mais perto. Quem sabe você consiga me ouvir melhor. É importan-te que você me ouça. É impressão minha ou você não geme? Você já deveria estar gemendo. Há casos em que eu ouço os ge-midos vindos do corredor, antes mesmo de a cela se abrir. Sim, eu ouço. Eu digo que são aqueles casos em que a dor chega primeiro à cela. Antes mesmo das pessoas. No seu caso, talvez não esteja doendo ainda, não é? Mas isso não quer dizer que eles não fizeram nada. Se você quiser gemer, fique à von-tade. Não precisa ficar envergonhado por minha causa, eu já estou acostumado. Sabe que há algumas dores que a gente sente algum tempo depois, quando o corpo já se acalmou? A calma, às vezes, pode trazer um pouco de dor. Você não acredita nisso? Está me ouvindo um pouco melhor agora?

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B começa a se movimentar aos poucos.

A – Eles rasparam o seu cabelo? Eles costu-mavam raspar logo no primeiro dia. É uma maneira de deixar a pessoa nua, de alguma forma. Rasparam, não rasparam? Por isso este seu silêncio. Você está nu?

B levanta-se, passa a mão pelo corpo e observa o pequeno ambiente da cela.

A – Esta cela aí, onde você está... sabe, ela é reservada só para quem tenta atravessar para o lado de lá. Nunca um criminoso comum foi colocado aí. E olha que eu tenho expe-riência nisso. Por isso eu não pergunto o que você fez para vir parar aqui. Esta parte, pelo menos, eu já sei. Sabe de uma coisa? Eu nunca acreditei que fosse mais fácil atra-vessar para o lado de lá quando se está nu. Há muitos que acreditam nisso e é por isso que quase todos os que chegam aqui estão assim, pelados. Os corpos pelados ficam mais lisos, é mais difícil de serem pegos,

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é o que todos dizem. Você já deve ter-se ensaboado muito alguma vez na vida, para se livrar de alguma coisa. Como se as coisas indesejáveis ficassem presas na pele, não é assim que dizem? Eu não tenho nenhum interesse pessoal em saber se você está nu. Quer dizer, eu não sou daquele tipo que quer saber se o companheiro do lado está nu só para...bom, quando se está aqui, a única coisa que a gente tem é a imaginação. Seria bom se você acreditasse nisso.

B – Não.A – Não... o quê?B – Não... e não. Eu não estou nu e não raspa-

ram a minha cabeça. A – Não pense que você é especial por isso.

Com muitos outros foi assim também. Hoje é só o primeiro dia. A primeira hora do pri-meiro dia.

B – Você é quem?A – Que diferença isso faz? Eu podia responder

qualquer coisa, se minha intenção fosse a de te agradar.

B – Não se ouve nada aqui.

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A – Como não? Nós estamos conversando.B – Além da sua voz, eu quero dizer. Por que

é tudo assim quieto? Onde estão os outros? Eles colocaram alguém aí com você?

A – Que outros?B – Eu sei que nós não estamos sozinhos aqui.

Quando eles me trouxeram, havia outros, vários outros.

A – Alguém mais veio parar aqui, além de você?

B – Havia vários outros comigo. No momento em que nós fomos pegos eu podia ouvi-los. Eram muitas vozes.

A – Alguém mais entrou aqui com você? O que você viu?

B – As vozes foram se calando pouco antes de chegarmos aqui. Os que gritavam, no come-ço, passaram a sussurrar depois, durante o caminho. Eu podia sentir que eles sussurra-vam de medo. Até que se fez silêncio. Mas eu sei que eu não estava sozinho.

A – Alguém tocou em você?B – Sim, quando me trouxeram para cá.

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A – Mas aí foram eles, os daqui. Eu não estou falando deles. Eu quero saber se alguém mais tocou em você antes, antes deles. Os daqui podem tocar em quem eles quiserem, são pagos para isso, eu acho. Eu falo durante a sua vinda para cá. Um esbarrão que tenha sido. Um toque diferente do toque deles.

B – Eu não me lembro.A – Seria bom se você se lembrasse.B – Eu só me lembro das vozes. A – E você? Você tocou em alguém?B – Eu não me lembro, eu já disse.A – Então não há resposta para a sua pergun-

ta.B – Pergunta?A – Sobre os outros. Não há como saber onde

eles estão. Vamos ter de esperar.B – Mas eles podem chegar, então?A – Não é comum, mas talvez cheguem. On-

tem chegou um, mas foi embora antes de dizer qualquer coisa. Eu não soube nada dele, ele foi embora antes que seu corpo co-meçasse a doer. Eu prefiro acreditar nisso.

B – Por que você está me dizendo isso?

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A – Para que você não se assuste quando seu corpo começar a doer. É bom se preparar para a dor. Isso a enfraquece um pouco. Só um pouco, mas enfraquece.

Os dois estão sentados com o queixo apoiado nos joelhos e os braços em volta das pernas.

A – Eles retiraram tudo de você?B – Eu não sei.A – Você não vai sobreviver aqui se não tiver

ao menos uma boa resposta. Verifique, olhe com calma. Veja se eles retiraram tudo ou se sobrou alguma coisa.

B levanta-se e olha em cada um dos bolsos, em cada parte do seu corpo, até mesmo nos pés.

B – Não sobrou nada em mim. Eles ficaram com tudo.

A – Mas isso não é motivo para desespero. Onde você está?

B – Aqui, ao seu lado. Eu acho.A – Em que parte da cela.

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B – No meio.A – Exatamente no meio?B – Acho que sim. A – Parece que você não está prestando atenção

no que eu digo. Você só vai sobreviver aqui se tiver alguma certeza. Vá exatamente para o meio da cela.

B posiciona-se no meio da cela.

B – Estou no meio.A – Abra os braços.

B obedece.

A – Você consegue abri-los totalmente ou seus dedos tocam as paredes?

B – Eu consigo abri-los.A – Agora gire. Veja se você é capaz de dar uma

volta inteira sem que seus dedos toquem na parede.

B – (fazendo o giro) Sim, eu consigo.

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A – Ótimo. Vai demorar mais para você entrar em desespero, então. Os que enlouque-ceram aqui, aqueles que enlouqueceram mais depressa, eles não conseguiam abrir os braços totalmente. Isso é muito perigoso. É possível aguentar um tempo aqui dentro, desde que a gente não tenha a sensação constante de que está preso.

B – Você fala como se isso aqui fosse durar para sempre. Não pode. Eu não fiz nada, eu só estava tentando passar para o outro lado.

A – Você precisa somente abrir os braços e acreditar que ao menos da ponta de uma mão até a ponta da outra você é um homem livre. A liberdade que lhe interessa, no mo-mento, é esta, a que está ao seu alcance. Fora disso é o outro mundo. Não se esqueça disso nesta primeira hora. Além do mais, você é um criminoso confesso.

B – Eu não fui acusado de nada.A – Você acaba de confessar um crime antes

mesmo de ter sido acusado. Você quis pas-sar para o outro lado. Eu o condenaria sem remorsos.

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B – Era um direito meu tentar passar para o outro lado.

A – Não por isso. Eu o condenaria por acreditar que existe alguma coisa que valha a pena do outro lado.

B – A que horas eles virão falar comigo?A – Eles podem estar falando com os outros

agora. Talvez queiram deixar você por úl-timo.

B – Por que justamente eu por último? Havia um grupo de nós. Um grupo grande, eu pude notar pelas vozes.

A – Mas você não viu ninguém. Como pode saber que era um grupo grande?

B – Era, eu sei que era. Só os que estavam comigo já eram muitos. Depois apareceram uns outros, na última hora. Eram muitas vozes. Diferentes. Alguns diziam coisas que eu não compreendia. Foi por causa destes últimos que eu vim parar aqui, eu tenho certeza disso.

A – Se ninguém tocou em você, eles não po-diam ser tantos assim.

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B – Que fossem oito, ou dez. Não importa. Eu não estava sozinho, por que eles vão me deixar por último?

A – Porque alguém tem de ser o último, eu acho que não há nada de errado nisso.

B – O que existe do lado de lá?A – No lugar onde você estava tentando ir?B – Não. Do lado de lá destas paredes.A – Você não viu quando o trouxeram?B – Eu não vi nada. Depois que as vozes se

calaram, eu também não pude ver mais nada. Talvez tenham colocado um capuz na minha cabeça. Ou me dado alguma droga. Eu não lembro, eu não vi. Ou melhor: eu só me lembro que não vi.

A – É melhor que você mesmo veja o que existe do lado de lá, quando eles vierem falar com você.

B – Eles virão falar comigo aqui dentro?A – Claro que não. Eu, que estou aqui há muito

mais tempo, ainda não tenho esta regalia. O costume é que você vá até eles. E então poderá ver como é lá fora. Eles não costu-mam entrar aqui.

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B – Como eles são?A – Eu imagino que não muito diferentes de

você. De nós. Isso se eu e você formos pa-recidos, eu não sei. Eu não o vejo.

B – Eles são diferentes de mim, por isso me trouxeram para cá.

A – Eu já pensei muito nisto, mas agora eu acho que é só uma questão de ponto de vista. Se você estivesse no lugar deles, era você que os teria trazido até aqui.

B – Eu não faria isso. Eu não teria por que fazer isso. Eles não me fizeram nada.

A – Se você estivesse no lugar deles, ia achar que eles teriam feito. Isso eu aposto.

B – Por que eles não me deixaram nu?A – E nem rasparam a sua cabeça.B – Por que eles não rasparam a minha cabe-

ça?A – E não o deixaram nu.B – Você está nu? Está de cabeça raspada?A – Eu cheguei faz tempo. As regras eram ou-

tras.B – Então você conhece as regras.A – Conhecia, antes que eles as mudassem.

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B – E o que elas diziam?A – Que todo homem tinha direito às suas pró-

prias roupas e a não ter a cabeça raspada.B – Elas não podiam dizer só isso. Elas tinham

de significar mais alguma coisa.A – Eu acho que eles concordam com você

neste ponto. Por isso mudaram as regras.B – Mas se hoje raspam a cabeça dos homens e

tiram suas roupas, eles têm direito a quê?A – A esperar. E a esticar os braços algumas

vezes por dia para ter a sensação de que continuam livres, mesmo aqui.

B – Mas eu não estou livre.A – Estique os braços. É muito importante,

como eu disse. Ao menos nesta primeira hora.

B – (abrindo os braços) Perto da estação de trens da minha cidade vivia uma mulher cega. Nos finais de tarde, ela passeava pela plataforma guiada por um cachorro cor de creme chamado Bóris. Ela era a primeira coisa a ser vista por quem desembarcasse do trem que parava ali: uma mulher cega com seu cão chamado Bóris. Algumas pessoas se

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abaixavam para acariciar a cabeça do cão e eu sentia que havia algo de errado naquele gesto. Entre os dois, Bóris e a mulher cega, eu sempre achei que quem precisava de ca-rinho era ela. Mas nunca ninguém dirigia a palavra à mulher – que permanecia imóvel, com o olhar, se é que se pode chamar assim no caso dos cegos, perdido nos vagões, como se esperasse que daquele escuro que era a sua vida alguém pudesse desembarcar. Eu não gostava de olhar para ela, embora eu fosse à plataforma todas as tardes. Eu via nela a imagem incômoda de alguém que carregava os próprios olhos presos numa coleira. Uma tarde a mulher não apareceu, nem na tarde seguinte, nem na outra. Bóris tinha morrido. Envenenado. Com a morte de Bóris, a mulher ficou cega pela segunda vez. E as pessoas que desciam do trem, do único trem que parava na minha cidade, também não tinham mais nada para ver. Com a morte de Bóris, eu senti que todos nós tínhamos ficado um pouco mais cegos. Eu tinha sete anos e a certeza de que, da-

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quele dia em diante, a maldade nunca mais nos abandonaria.

A – Quando eles vierem falar com você, se vierem, é bom que você não repita esta história para eles.

B – Por quê?A – Porque eles não precisam de novas ideias.

(Pausa) Deste lugar aí de onde você veio, as pessoas ainda cantam?

B fica em silêncio

A – (cantando) Lá no alto onde os olhos Já não dizem de onde eu vim Uma nuvem passa ao longe Vai chover no teu jardim Canta, canta o passarinho. És feliz longe de mim? Lá no alto onde os olhos... B – Não me deixes triste assim...A – Onde você aprendeu isso?B – Todos conhecem.A – O que vem depois, então?

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B – Não sei, termina aí, eu achoA – Não termina. Há uma parte que fala de

uma mulher. De uma mulher que foi embo-ra e não levou nada, só um lenço. E, então, o homem, desesperado, sobe no alto de um monte. E é pensando nela que ele canta esta canção, todos os dias. Ele canta para que chova no jardim que ela abandonou. Você tem de saber esta parte também.

B – (arranca um fio de cabelo e o passa por uma fresta no chão) Tome. Você consegue apanhar?

A – (alcança o fio de cabelo do outro lado e o observa) Para que isso?

B – Eu não estou mentindo para você. A can-ção termina aí. E eles não rasparam a minha cabeça.

A – Você vai se lembrar dela, algum dia você vai. Ninguém aqui tem pressa.

B – Você nunca sentiu vontade de ir para o lado de lá?

A – Você me deve o resto da canção. É só isso.

B – Do lado de lá as coisas são bem mais fáceis.

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Você pode me perguntar que coisas. E eu responderei: tudo. À noite eles iluminam as cidades e você pode caminhar de onde você está até onde você quer ir – com a certeza de que vai chegar inteiro. Pode parecer pouca coisa, mas nós sabemos que hoje em dia não é. Mas se você não quer ir a lugar algum, do lado de lá isto também é possível. Você pode ficar quieto até conseguir pegar no sono, e então dormir uma noite inteirinha, sem ser perturbado pelo barulho das crianças que choram de fome ou de medo. Com um pouco de sorte, você pode ter um lugar apenas seu para viver. Não que isto seja muito fácil, pelo menos no começo. No começo, talvez a gente precise dividir tudo o que a gente tem, absolutamente tudo. Mas para nós isto não é problema algum. Desde pequenos que a gente já sabe dividir até o seio de nossas mães.

A – Cale a boca.B – Mas eu não quero enganar você com a ideia

de que tudo fica rapidamente assim tão fácil para quem consegue atravessar. No início,

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nos primeiros tempos, eu quero dizer, você precisa se habituar a comer pelo menos três vezes por dia, em alguns casos até quatro ou cinco. Isso faz com que a gente se sinta um pouco pesado e sem tempo para fazer outras coisas, pois você vai precisar parar o que estiver fazendo, mesmo que não esteja fazendo nada, apenas para comer. Tanta comida talvez atrapalhe um pouco seus planos, mas com o tempo você se habitua a esta nova rotina.

A – Eu aposto que na sua cela não tem um espelho. Tem?

B – (olhando em torno) Não.A – Eu tenho um espelho aqui, você acredita?

Pois tenho mesmo. Não é muito grande, mas é suficiente. De manhã, quando eu acordo, eu gosto de olhar para ele e ver que eu continuo sendo o mesmo do dia anterior. É um privilégio que nem todo mundo tem aqui, sabe? Uma hora dessas, você também vai querer ter esta sensação. (Em tom ame-açador) – Você ouviu isso?

B – O quê?

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A – Cale um pouco esta sua boca e ouça.

A e B ficam em silêncio.

A – (mentindo) Ouça só. São eles. Eles estão chegando. Estão vindo atrás de você. Não diga nada.

B – Dizer o quê?A – Nada. Nada de nada. Principalmente o que

nós conversamos. Não diga a eles nada disso que a gente acabou de falar.

A encosta o rosto à parede da cela e diz mais baixo.

A – Eles já chegaram?B – Não. A – Fique calmo, então. Eles devem estar

procurando a chave certa. Eles carregam muitas chaves, todas juntas, e por isso se confundem na hora de abrir as celas.

B – O que eu devo falar?A – (gritando) Não!B – O que foi?

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A – (sentado tranquilo, no centro da cela) É atrás de mim que eles estão vindo. Apaga-ram a luz da minha cela. É assim que eles chegam, sempre no escuro.

B – O que você fez para eles?A – Sua cela continua clara?B – Continua.A – (ainda mentindo, agora em tom desespera-

dor) Me ajuda, você precisa me ajudar.B – Mas...A – Não deixe que eles me batam. (Gritando)

– Não façam isso, por favor. Eu já falei tudo o que sabia. Por favor, não. Aiiii!.... Me sol-tem, seus covardes, vocês não têm coragem nem de mostrar a cara.

B – O que vocês estão fazendo com ele? Por favor, parem com isso.

A – (gritando) Aiiiiii!... Parem, parem... Eu não sei mais de nada...

B – (apavorado) – Deixem ele em paz. Por favor, não façam isso. Não é certo o que vocês estão fazendo.

A – (tom de súplica) Você precisa me ajudar, você prometeu.

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B – Eu estou pedindo pra eles pararem. Parem. Parem com isso.

A – Divide comigo.B – O quê?A – Divide comigo, por favor. Diz que você...

ai, por favor, parem, parem, eu não estou aguentando.

B – O que você está dizendo?A – Diz que você aceita dividir comigo. Só

assim eles vão parar. B – Mas eu...A – Diz que divide comigo, porra!B – Eu divido.A – Grita. Grita para que eles te ouçam.B – (gritando) Eu divido.A – (súplica) Diz tudo. Depressa.B – Mas o quê?A – Diz logo... ai....B – Eu divido tudo. Eu divido tudo com ele.

Deixem ele em paz. A – Isso... Agora pede...B – Oi?A – Agora pede para que eles me deixem e

façam um pouco disso com você...

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B – Eu não sei...A – É minha única chance. Não me recuse

isso...B – Sua chance? Que chance?A – Minha chance de me ver um pouco livre

disso.B – Façam comigo. Aqui comigo, seus covar-

des. Façam comigo. A – Bata na cela e grite... Grite, por mim...B – (batendo na cela) Vocês estão surdos? Fa-

çam comigo, aqui. Comigo. Vamos, apare-çam, façam comigo... Covardes, seus putos covardes...

Abre-se uma porta na cela do prisioneiro B, que para de gritar. Esta porta dá para um corredor ao final do qual avistam-se uma mesa vazia, uma cadeira e uma luminária antiga que ba-lança sobre elas, no estilo das antigas salas de interrogatório. Ao notar o silêncio de B, o prisio-neiro A também fica quieto.

B – Você ainda está aí?A – Eles acabaram de ir.

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B – Como você está?A – Obrigado. B – Minha cela está aberta. A – (levantando-se surpreso) Aberta?B – Eles abriram. Tem um corredor com uma

mesa lá no fundo. A sua voz...A – O que tem?B – Parece que ela está mais firme...A – É o costume. Você está vendo alguém?B – Não tem ninguém, o corredor está vazio.A – Eles ouviram você gritar. Agora vão querer

saber o que você tem para dizer. Talvez seja melhor você contar tudo. E de uma vez só.

B – Eu gritei para ajudar você. A – Mas eles não sabem disso. Se eles descobri-

rem que foram incomodados à toa, é bem provável que queiram se vingar. Ninguém aqui jamais os incomodou sem motivo. Eles são ocupados demais. Senão eles já teriam vindo até aqui falar com você. Eles têm tanta coisa pra fazer que ficam sem tempo de vir. Você devia ter pensado nisso antes de gritar.

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B – Não foi sem motivo. Eles estavam prestes a matar você.

A – Diga isso a eles, então. Se eles acreditarem, nada de grave vai acontecer com você.

B – Eles virão me buscar?A – Se eu fosse você, não daria ainda mais este

trabalho para eles. Vá até lá e seja convin-cente em sua história.

B – Eu prefiro não ir. A – Você tem este direito.B – Eu não vou.A – Faça como quiser.B – Eu vou ficar aqui.A – ClaroB – Eles que venham me buscar, se querem

tanto falar comigo.A – Hum-hum.B – Você acha mesmo que eu devo ir? A porta

continua aberta. A – (sentando-se com as costas apoiadas na

divisão entre as celas) É uma boa história esta do cachorro. Bóris. Envenenar um cão guia de cegos. As pessoas não param de se superar, não é mesmo? Muito boa história.

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Embora... você era menino, você mesmo disse. Talvez ela não tenha acontecido exa-tamente da maneira como você contou. O tempo passa, alguns detalhes se apagam. Talvez você acrescentou algumas coisas que você acredita que tenham acontecido e, na verdade...não foi bem assim que tudo se deu. Mas isso não é culpa sua. Quando as histórias são muito boas, como esta aí do cachorro, a gente também quer contribuir com alguma coisa... E então... Bom, então a gente já não sabe mais o que aconteceu de verdade e o que a gente gostaria que tivesse acontecido.

B – (caminhando em direção à porta) Aconte-ceu exatamente como eu lhe disse.

A – Pode ser, eu não duvido. Eu também sei de algumas coisas. Você está me ouvindo?

B – (já quase na saída da cela) Sim.A – Uma vez colocaram um homem aí na

cela em que você está. Eu nunca soube nada dele, ele não costumava falar. De-pois que o levaram, muito tempo depois eu quero dizer, alguém me disse que ele era

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um homem temente a Deus. Eu não posso confirmar isso, ele nunca me disse nada... Você acredita nisso?

B – Nesta sua história?A – Não. Em que haja um homem temente a

Deus, você acredita?

B sai da cela e senta-se à mesa no fim do cor-redor.

A – Eu não acredito. Aqui, o único medo que nós temos é de quando as portas se abrem e a gente não sabe o que é que vai entrar por elas. Você vai aprender isso se ficar mais tempo aqui.

Apagam-se as luzes do abajur sobre o prisionei-ro B e também as de sua cela.

A – Então, um dia eu ouvi uma série de baru-lhos secos, pancadas eu pensei, vindas daí, da sua cela. Não havia vozes, gritos, nada. Só mesmo estas batidas: pá pá, pá….Depois, o silêncio de novo. No dia seguinte eu resol-

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vi perguntar se ele estava bem. Eu já havia desistido de tentar conversar com ele. Uma pessoa que não está a fim de conversa con-segue deixar isso bem claro com o passar do tempo. Mas foram tantas batidas, tantos pá, pá, pá que eu resolvi dar mais uma chance a ele. Eu precisei repetir a pergunta várias ve-zes para que ele me respondesse sabe o quê? Ei, sabe o que ele me respondeu? Eu os perdôo. É uma boa história também. Eu os perdoo. Foi só o que ele me disse. Por quê?, eu ainda perguntei. Por que perdoá-los se dizem que Deus já está morto mesmo? Ei, você já comeu hoje?

Luz da cela de B volta a se acender. Ele está deitado no canto inferior da cela, mais próximo do público.

B – Um de cada vez, sem levantar a cabeça. E sem abrir a boca. Vai um, 15 segundos depois vai o outro. Nem mais, nem menos. Quinze segundos. Ou o farol vai iluminar vocês bem no meio da travessia. Eu vou por

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último para não deixar ninguém se arrepen-der. Alguém precisa ficar na retaguarda. Foi muito duro chegar até aqui, nós já con-cordamos sobre isso. Ninguém agora pode voltar. Quem é que está falando alto? Eu estou ouvindo vozes. Vocês aí da frente, o que eles estão dizendo? Como assim, outro grupo? Não pode existir outro grupo, somos só nós aqui. Por que eu ouço palavras que não compreendo? Quem falou sobre a nos-sa travessia? Não estava tudo acertado que seríamos só nós? E agora? Como vamos saber o que eles vão fazer? E se eles não respeitarem os 15 segundos? Quem aqui conhece a língua deles para mandá-los de volta, hein? Alguém tem de falar a língua deles. Afinal, eles não apareceram aqui do nada, alguém os convidou, está na cara. Não podemos chegar do lado de lá com um grupo grande. Agora é dispersar, um de cada vez, sem levantar a cabeça. Não dá mais tempo de voltar atrás. Você, o primeiro, ao meu sinal: três, dois, um... Avance. Avan-ce, desgraçado, não fique aí parado. Corra,

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corra seu covarde. (Em pé) Você é surdo ou o quê? Corra, corra, seu puto. Quando a gente chegar do lado de lá, eu prometo que te mato. Você não podia ser o primeiro nunca, covarde. Eu sempre fui contra você ser o primeiro. Eu nunca gostei de você.

Luz forte ilumina o prisioneiro B, acompanha-da de ruído de sirene. Prisioneiro B se joga ao chão, com as mãos na cabeça.

B – Eu não fiz nada. A ideia não foi minha, eu só ia contar os 15 segundos.

A – Ei, por que você não me responde? Você já comeu hoje?

B – (ainda no chão) Eu só ia marcar os 15 se-gundos, mais nada. Por que vocês me trou-xeram para cá? E os outros? Onde estão todos os outros?

A – Eu ainda acho que não comi. Eu sempre sou capaz de dizer se já comi ou não, mas acho que falar com você distraiu um pouco a minha atenção.

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B – Você sabe se alguém conseguiu atraves-sar?

A – Olha, eu vou te ensinar uma coisa. Eu já falei de manter os braços esticados, não fa-lei? Mas não é isso, não. Você precisa prestar atenção, porque isso é um pouco mais difí-cil. Em compensação, o resultado é muito melhor. Você precisa apenas se deitar com a barriga para cima e a boca aberta.

A deita-se da maneira como descreveu.

A – E então você começa a imaginar que o teto seja feito inteirinho de nhoque. Com muito molho vermelho e queijo ralado também. Nhoque é o seu prato predileto? Bom, isso agora não vem ao caso. O importante é ima-ginar um teto todinho revestido de nhoque. E então você imagina que um a um eles vão caindo direitinho na sua boca. Seu único trabalho é mastigar, engolir e abrir a boca de novo para receber o nhoque seguinte. Você pode também mexer o pescoço para abocanhar aqueles nhoques que iam cair

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um pouco mais longe. Há dias em que eu não perco nenhum, acredita? No começo não vai ser fácil, tudo é uma questão de prática. Está pronto?

Prisioneiro A, de costas para o chão, abre e fe-cha a boca, numa expressão de contentamento. B permanece sentado na cela.

A – Quantos você já pegou? Quantos? Eu não ouvi. Claro, você não quer falar de boca cheia, está certo. Os nhoques são ótimos para isso. Houve uma época em que eu tentei com azeitonas, mas então era preciso levantar o pescoço para cuspir o caroço. Com o nhoque tudo ficou bem mais fácil.

A continua neste processo por mais alguns se-gundos.

A – Não é muito melhor assim, com o estômago cheio? Eles me disseram que eu sempre tive muita fome. Dizem até que eu vim parar aqui por causa da fome. Quando eles vie-

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rem falar com você, você poderia me fazer um favor? Assim, de um jeito discreto... eu sei que você consegue ser discreto, pergunte a eles há quanto tempo eu estou aqui. Mais ou menos eu tenho uma ideia, mas eu pre-cisaria tanto confirmar. Você vai perguntar, não vai? É o mínimo que você pode fazer por mim, depois que eu dividi meu nhoque com você. Eu me lembro um pouco do dia em que eu cheguei aqui, mas o que aconte-ceu antes é que vive me fugindo...

Porta de cela de B é fechada

B – Eu nem comi.A – Amanhã você vai mudar de ideia. (Pausa)

Você não precisava ter feito aquilo.B – Aquilo o quê?A – Ter pedido para compartilhar comigo na-

quela hora. Não foi honesto da sua parte.B – Aquela hora lá?A – ÉB – Você praticamente implorou por ajuda.

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A – Eu sei. Mas você não precisava ter sito tão... tão... Qual é a palavra que eu estou procurando?

B – Não sei.A – Solícito, uma palavra tão feia quanto aquilo

que ela quer dizer. B – Seus gritos estavam me deixando louco.

Qualquer um teria feito o que eu fiz.A – Quem te ensinou a agir daquela maneira?B – Ninguém ensina essas coisas. A gente sente

que precisa fazer, só isso.A – Mas não é bom. É arriscado. Agora eu não

sei mais se posso confiar em você.B – Você preferia o quê? Que eu deixasse que

eles acabassem com você?A – Agora eu sei que quando não for dor o que

eu estiver sentindo, você também vai querer compartilhar. Por isso que eu estou com medo de você. Quem aceita dividir a dor dos outros, assim tão depressa como você fez, é porque no fundo mal vê a hora de dividir o prazer também. Quando eu sentir algum prazer, embora isso seja muito raro por aqui, você também vai querer que eu

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divida com você. E eu já vou avisando: não espere isso de mim.

B – Faça como quiser.A – No dia em que eu acordar feliz, muito feliz

de verdade, fique quieto aí no seu canto. Tem coisas que não se dividem. Se você quer ser solidário, problema seu. Mas não para cima de mim.

B – E tudo isso que você tem me falado?A – O quê?B – Sobre eu esticar os braços para não enlou-

quecer aqui dentro, imaginar um céu feito de nhoque na hora da fome...

A – Não é um céu, é um teto. E isso não tem nada a ver com prazer.

B – Mas talvez possa ser útil em algumas ho-ras.

A – Eu falei essas coisas só para manter você vivo, e mais ou menos com o juízo em or-dem. Nada mais. Eu não estava querendo compartilhar nada com você. Se eu quisesse compartilhar alguma coisa com você, eu poderia, por exemplo, te emprestar o meu espelho. Mas eu não vou fazer isso. Um

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espelho pode se tornar uma coisa muito pe-rigosa aqui dentro, ele não pode cair assim, na mão de qualquer um.

B – Quando é o dia de visita?A – Quem falou sobre isso com você?B – Ninguém.A – Então você ainda não tem direito. B – Quando chegar a minha visita, eu vou pedir

sabe o quê?A – Havia uma mulher que vinha me visitar

também. Uma vez por semana, sem fal-ta. Não que eu ficasse contando os dias, eu acho que era uma vez por semana por causa da pergunta que ela sempre me fazia quando chegava.

B – (agora como a visitante) Como passou a semana?

A – Já faz uma semana que você veio?B – Isso quer dizer que o tempo passa rápido

aqui, não é? Eu não tinha te dito que ia ser bem mais fácil?

A – Eu gosto quando você vem.B – Eu sei.A – Sabe? Como?

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B – Eles me disseram que você fica mais feliz, que às vezes ouvem até você cantando aqui dentro.

A – Disseram isso mesmo?B – Disseram. Eles disseram que você canta

muito bem.A – (encabulado) Ah, não canto, não. B – Um dia você podia cantar para mim.A – Imagine só. Eu só sei uma canção.B – Uma canção, para mim, já basta. A – Mas eu acho que nem sei ela inteira. É

sobre uma mulher que um dia vai embora e não leva nada, só um lenço...

B – É uma canção triste. A – Você a conhece?B – Mais ou menos. É que... é sempre triste al-

guém que vai embora e leva só um lenço. A – Se você quiser mesmo, assim, se você fizer

muita questão, eu posso cantar o pedaço que eu sei.

B – Eu acho melhor não. Quando eles me disseram que você cantava aqui dentro, eu pensei que fosse uma canção mais alegre.

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A – Com o tempo, ela pode se tornar alegre. Se você pensar no homem que está esperando que esta mulher da canção volte... já imagi-nou a alegria dele quando ela voltar?

B – Pode ser. O que você está olhando?A – Nada...B – Eu sinto muito. Eles não me deixaram

entrar com nada hoje. A revista foi muito mais rigorosa hoje, não sei por quê. Ficou tudo lá fora. Eu insisti muito para que eles me deixassem entrar com ao menos...

A – Não precisa.B – Mas eu sei o quanto você gosta. A – Não faz mal, de verdade. Enquanto eles

deixarem você entrar eu já me dou por satis-feito. Eu tenho medo de que um dia...

B – Não pense nisso. Eles vão me deixar entrar sempre. Eles gostam de você. Você nunca deu trabalho para eles, desde o dia em que chegou aqui. É isso que eles dizem.

A – Que bom que eles falam com você. Assim você não se sente tão estranha aqui. Tão sozinha, eu quero dizer.

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B – Você mudou tão pouco nesse tempo todo. Se não fosse pelas suas mãos...

A – Minhas mãos?

A e B tocam as mãos através da parede.

B – Suas mãos ficaram tão finas com o tempo, tão lisas. Às vezes elas se parecem com...

A – Mãos de mulher?B – Não, eu ia dizer mãos de artista. É, mãos de

artista. Talvez um músico. Eu acredito que os músicos tenham mãos assim, como as suas. A maciez das suas mãos... é a prova de que há muito pouco a se fazer por aqui, não é?

A – Quase nada, para ser sincero. E ainda assim você acredita que o tempo passa rápido. Quando chega o dia de você vir, ou melhor, quando eu desconfio que é o dia de você vir, eu penso tanto em você. Eu poderia dizer que eu chego a contar as horas, se eu tivesse um relógio. Eu acho que este lugar é tão longe de onde você vive agora. Eu não tenho o direito de te dar tanto trabalho. As pessoas fazem tantas coisas boas em seus

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dias de folga. E você gasta todo o seu tempo vindo até aqui.

B – O que de tão importante as pessoas fazem em seus dias de folga?

A – Não sei, mas... Eu queria tanto ter a certeza de que se fosse o contrário, de que se você estivesse aqui no meu lugar, eu também viria te ver nos meus dias de folga. Mas eu sinceramente não sei se viria. Talvez no começo, mas depois... não sei. Eu acho que haveria o risco de... Me desculpe, eu estou sendo grosseiro com você.

B – Não, continue. Que risco haveria?A – O risco de te esquecer. Com o tempo, eu

quero dizer. Não de imediato, mas com o tempo. O tempo faz a gente se esquecer até de quem está mais perto. Eu falo tudo isso para que você saiba, para que você tenha certeza, de que eu já sinto um medo ante-cipado de te esquecer algum dia.

B – Quem sabe você não encontrasse prazer em vir me ver? As coisas são assim. De re-pente, você iria se descobrir feliz vindo até aqui para me ver.

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A – Eles ainda se lembram de mim lá fora?B – Claro que sim, que pergunta.A – Todos eles? B – Talvez nem todos, mas a maioria se lembra

de você, sim. Eu faço o possível para que eles não se esqueçam. Eu relembro algu-mas histórias, mas... eles já disseram que eu estou me tornando repetitiva. Talvez eu devesse inventar algumas coisas novas ao seu respeito, o que você acha? Algumas aventuras, ainda que não fossem verdade. Eu ouvi dizer que hoje as pessoas fazem muito isso. Elas inventam tantas coisas a respeito delas mesmas que, com o tempo, elas já nem sabem o que é verdade e o que é mentira. Mas enquanto as outras pessoas continuarem acreditando no que elas con-tam, elas vão vivendo bem.

A – Não, não quero te dar mais este trabalho. É natural que eles se esqueçam de mim, não faz mal. Você trocou de perfume?

B – Eu tinha apostado comigo mesma que você nem iria perceber.

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A – Você podia andar um pouco pela cela, bem devagar? Assim... assim este seu cheiro ficaria em todos os lugares.

B – (caminhando devagar ao redor da cela) As-sim está bom? Eu vou ficar um pouquinho mais neste canto. É aqui que você dorme, não é? Pronto, veja se ficou bom?

A – Eu vou sentir falta da sua visita se algum dia...

B – Eu já disse que virei visitá-lo sempre.A – Não. Se algum dia eu sair daqui, é isso que

eu ia dizer.B – Você terá tantas coisas para fazer lá fora que

talvez não se lembre mais de mim.A – Isso não, não mesmo. B – Você gostaria que eu ficasse nua para

você?A – Eles entrariam aqui na mesma hora. Você

sabe que isso não é permitido.B – Eu não me importo. Eu poderia ficar nua

para você por alguns segundos, antes que eles cheguem.

A – Seria ruim para nós dois.

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B – Semana que vem então, quem sabe. Eu volto na semana que vem. Você promete ficar bem até lá? Se você precisar de al-guma coisa, eu poderia tentar trazer. Mas você sabe, as revistas estão cada vez mais rigorosas.

A – Eu não preciso de nada... Eu só...B – O quê?A – Eu posso pedir uma coisa?B – É claro que pode.A – Na semana que vem, quando você voltar,

você não se incomodaria de vir com o per-fume antigo?

B – Foi sempre muito fácil atender aos seus pedidos. Adeus.

A – Quando você voltar, então, já vai ter passa-do mais uma semana?

B – (voltando a ser o prisioneiro B) Você sabe o que eu vou pedir para a minha visita? Um daqueles sininhos que tocam com o vento. Eu sempre sonhei em ter um, sabe?

A – Eles nunca vão tocar aqui dentro. É tudo tão parado.

B – Tanto melhor. Assim eu não me assusto.

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A – Deve ter havido uma razão para que ela nunca mais voltasse. Não pode ser só por causa do perfume. Foi tão inocente aquilo.

B – As mulheres são um pouco estranhas, você já parece ter idade para saber disso.

A – São mesmo, não são?B – Claro que são. Ainda mais aquelas que

estão soltas. Escuta, nunca anoitece aqui? A – Já anoiteceu, faz muito tempo.B – Verdade? Como é que você sabe que já é

noite lá fora?A – Lá fora eu não sei. Estou falando daqui de

dentro.B – Eu achei que você fosse me perguntar o

que eu vi depois do corredor, quando eles abriram a porta da minha cela.

A – Mesas.B – Como você sabe?A – Só suposição. É que eu imaginei que eles

não ficassem em pé o dia inteiro.B – Mas eram muitas, dezenas de mesas. Todas

velhas e enfileiradas, assim, uma atrás da outra. E quase todas vazias. (Em tom mais baixo) – Eles não são muitos, talvez seja

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fácil sair daqui. Nós só precisamos pensar em alguma coisa para distraí-los. Para ser bem sincero, eles são muito poucos até. Eu consegui contar, enquanto eu falava com eles, disfarçadamente... eu consegui contar em quantos eles são. Agora nós precisamos de um plano.

A – Um plano?B – Chegue mais perto. Encoste seu rosto na

parede.

A obedece.

B – Eles são apenas dois. Assim como nós, só dois. As outras mesas estão vazias, eu tive tempo de olhar para todas elas. Eram só pilhas imensas de papéis amarrados com barbante, sem ninguém por trás.

A senta-se calado, num canto da cela.

B – E então, você não me diz nada? Não quer discutir um plano para a gente sair daqui?

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A – Se eu pudesse olhar para a sua cara, eu ia ter certeza de que você está mentindo. Ape-nas dois! Que bobagem, eu sei que eles são muito mais. Você mesmo acabou de dizer. Todas aquelas mesas para quê, se eles são apenas dois? Eles deviam estar no horário de almoço, só pode ser isso.

B – Almoço? Pois você acabou de dizer que já anoiteceu.

A – Então é a troca de turnos, aposto que a esta hora todos já estão de volta. Eles estão lá, fingindo que examinam os papéis, à espera de que um de nós dois cometa uma besteira, alguma besteira qualquer, para que eles já venham com as punições. E ainda você vem me falar de plano.

B – Eu vou sozinho, então. No fundo, deve ser bem mais fácil ir sozinho mesmo. Se eu tivesse tentado atravessar sozinho naquele dia, eu não estaria aqui agora. Eu já teria chegado do outro lado. A esta hora, eu já estaria vivendo bem melhor do lado de lá. Agora eu não vou cometer o mesmo erro, já vi que não posso confiar em você tam-

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bém. Eu vou levar adiante o meu plano sozinho. Quando eu estiver fora daqui, vou me lembrar de você. Vou me lembrar que você sonha com nhoque e já nem sabe mais quando é noite e quando é dia.

A – Eu sinto um pouco de pena de você, quan-do você fica assim, falando com tanta espe-rança do lado de lá. Como se o lado de lá fosse realmente tão bom quanto você pensa. Conhece alguém que já tenha ido?

B – Claro que o lado de lá é bom. Desde pe-queno eu já sabia que um dia eu teria de fazer a travessia. De onde eu venho, todos os meninos crescem com esta esperança.

A – Se você não estivesse aqui, a esta hora eu já estaria dormindo.

B – Eu vou embora ainda esta noite. Acho que eles esperam isso de mim.

A – Eles quem, os amigos com quem você foi pego?

B – Não. Os dois que estão lá fora. A – Você está louco. B – Eles esperam que eu fuja. Se eu fugir,

eles vão pedir reforços. E então virá mais

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gente para ocupar algumas daquelas mesas. Eles também se sentem muito sozinhos, eu percebi isso. Eles ficam o dia inteiro olhando para os mesmos papéis. Eu sinto que eles vivem esperando que alguma coisa aconteça para eles também, como nós dois aqui. Mas eu não vou esperar mais, eu vou hoje mesmo.

A – Você é o primeiro que fala deles desta ma-neira, assim, como se eles fossem gente que valesse a pena conhecer.

B – Eles sabem tudo sobre você. De mim eles não conhecem nada, meus papéis ainda não chegaram. É bem provável que demorem muito a chegar.

A – Você pode passar a noite inteira falando que a cada palavra eu acredito menos no que você diz.

B – Como queira, então. Eu vi a pasta com o seu nome. Estava na mesa deles, era a pri-meira de uma grande pilha. Você já a viu? Não é uma pasta muito grossa. Algumas fotos, um ou outro relatório. Eles me dis-seram que era muito fácil saber tudo sobre

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você porque... Bom, eu só estou repetindo o que eles disseram... porque não havia muita coisa para saber mesmo. Eu ainda tentei defender você, mas... quando eu vi a pasta, me desculpe, tive de dar razão para eles.

A – Por que você está me contando estas coisas? Se é que elas são verdade, porque eu ainda não acredito.

B – Porque eu quero que você os surpreenda. Amanhã de manhã, quando eles abrirem a sua cela para trazer a comida e não o encontrarem mais aqui, porque você já vai ter fugido comigo, eles vão se arrepender de não ter prestado mais atenção em você, de ter subestimado tanto você, eu quero dizer. Você só precisa fugir comigo.

A – Eu não quero acompanhar você. Eu não acredito neste lugar para onde você está indo. Alguns precisam atravessar para perce-ber isso, eu já percebi ficando aqui, parado no meu canto.

B – Você não precisa ir comigo até o fim, basta que você fuja daqui comigo esta noite. A pasta com o seu nome...

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A – O que tem ela?B – Eu ouvi o que eles disseram. A sua pasta,

que era a primeira da pilha, vai para o fim. A – E o que isso quer dizer?B – Que eles não se importam mais com você.

Você era só o homem errado na hora erra-da, e agora eles não têm mais como voltar atrás. Eles nem sabe ao certo por que você veio parar aqui. Mas agora eles vão manter você aqui até conseguirem trocar você por alguém mais importante. Pode demorar anos.

A – Você ouviu isso deles?B – OuviA – Exatamente assim, com essas mesmas pa-

lavras?B – Bom, talvez eu tenha trocado uma frase ou

outra, mas é isso que eles queriam dizer.A – Se for isso mesmo, se eles vão me trocar

por alguém mais importante, é por que eu tenho algum valor. Se eu não valesse nada, eles não me trocariam. Isso me parece tão óbvio. Se você queria me deixar triste, não conseguiu. Agora eu sei que tudo é uma

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questão de tempo. Você está me dizendo a verdade, não está?

B – Estou.A – Então, um dia desses, e vai ser muito mais

cedo do que você imagina, esta porta vai se abrir e eles vão trazer alguém mais im-portante que eu. Daí eu estarei livre para ir embora, de cabeça erguida, como quando eu cheguei aqui. Eu só preciso esperar mais um pouco.

B – Eu não acho que eles pensem desta ma-neira. Esta pessoa mais importante, não sei, talvez ela nunca apareça, talvez ela nunca seja pega. Talvez ela nem exista, o que é pior. E, além do mais, esta troca não tem sentido. O normal seria trocar alguém importante por alguma coisa, e não o con-trário. O que uma pessoa mais importante faria aí no seu lugar?

A – Você mesmo me disse. Eles passam o dia todo lá, lendo aqueles processos, todos aque-les papéis amarrados com barbantes. Eles devem ter uma resposta para isso. Eu sou uma peça importante no jogo deles, você

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não entende? Eu não posso decepcioná-los agora, eles precisam de mim. Eu tenho de estar aqui, saudável, pronto, para quando chegar o dia da troca. Se eu fugir com você, todo este tempo que eu passei aqui não terá valido de nada.

B – É esta noite, não pode passar de hoje.A – Eu preciso esperar por esta troca, agora é só

isso que eu preciso fazer. Eu preciso pensar em alguma coisa para dizer também, algu-ma coisa inteligente para dizer para quem me perguntar o que eu achei de tudo isso. Ela tinha razão, talvez eu precise mesmo inventar algumas histórias ao meu respeito. Eu não posso sair daqui assim, sem uma história convincente para contar. As pes-soas vão querer ouvir minha opinião sobre tantas coisas, eu preciso estar preparado. Porque tudo que eu disser vai ser repetido centenas de vezes. E eles também vão me falar de tudo que aconteceu no mundo du-rante este tempo que eu passei aqui. E eu não posso demonstrar muita surpresa. Eu terei de fingir que é tudo natural, que eu

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acompanhei cada acontecimento, ainda que eu nem saiba direito se é dia ou noite, como você mesmo disse. Mas nada pode me causar espanto, eu tenho de parecer muito à vontade lá fora.

B – Quem é ela?A – Ela? B – Você disse agora que ela tinha razão... Ela

quem?A – Ah, a mulher que vinha me visitar. Mas eu

já falei sobre ela, ela dizia que precisava de novas histórias ao meu respeito, porque eles já estavam me esquecendo.

B – Ela era paga para isso.A – O quê?B – Ela era paga para visitar você. Como não

deu muito certo, eles a demitiram. Mas não se culpe por isso. Ela seria demitida de qualquer maneira, ela se envolvia muito com os presos. Houve alguns com quem ela foi longe demais.

A – Não mesmo.B – Ela tirou a roupa para alguns deles.A – Não para mim.

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B – Pois é, eles me disseram que nem isso ela conseguiu com você.

A – Ela era diferente, não adianta eu ficar falando sobre isso com você. Quando ela vinha...

B – Você já me contou tudo isso. E eu estou te dizendo: ela era tão paga quanto aqueles dois que estão lá nas mesas agora... Tem alguma coisa que você queira levar? Quanto menos coisa, melhor.

A – Eu acho que gostava mais de como as coisas eram antes de você chegar aqui. Eu podia ficar mais tempo em silêncio. Os que ocuparam esta cela aí, antes de você, ah, que prazer que era ter cada um deles como vizinhos. Eles ficavam aí por tão pouco tempo e nenhum deles nunca deu trabalho nenhum.

B – Quanto tempo você precisa para arrumar suas coisas? Eu não tenho nada. Se eu fosse você, não me preocuparia em levar nada também. Lá fora a gente consegue coisas novas.

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A – Eu já falei do último que foi trazido para sua cela, não falei? Só abriu a boca para dizer eu os perdoo. Isso sim é um compa-nheiro.

B – Agora você tem de pensar em outras coisas. Em como vai ser sua vida fora daqui, nas pessoas que estão esperando por você do outro lado.

A – Pessoas?B – Claro. Mulher, filhos, amigos, essas coisas. A – A mulher que vinha me visitar... ela...B – Você vai querer dormir um pouco antes?

Eu sei que não vou conseguir. Eu estou excitado demais para dormir. Eu tenho tan-tas coisas para pensar que, se eu colocar a cabeça na cama, eu vou enlouquecer. Se você quiser dormir um pouco, tudo bem. Eu posso esperar. Mas não muito tempo. A gente tem de sair daqui enquanto ainda for noite. A gente precisava muito saber se já anoiteceu lá fora. Você não tem como descobrir isso mesmo?

A – Ela morreu, não morreu? Foi por isso que ela deixou de vir.

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B – Você não desiste disso, não é? Eu já disse por que ela deixou de vir. Eu acho melhor você dormir um pouco agora. Quando for a hora de ir, eu te chamo.

A e B sentam-se cada um no meio de sua cela, de frente para o público.

B – Você já pensou onde vai querer viver quan-do sair daqui? O mundo não oferece tantas opções, mas algumas delas continuam sen-do muito boas. Pode ser perto do mar, ou numa grande cidade. Você pode escolher um lugar onde haja muitos vizinhos e eles tomarão conta da sua casa quando você for viajar. Eles olharão o seu cachorro e, se você não aparecer no portão por um ou dois dias, eles virão bater na sua porta para saber se está tudo bem. É importante pensar nisso, ajuda você naquele momento em que tudo parece dar errado. Às vezes acontece isso, sabe? Por mais que você pla-neje, há um momento em que parece que tudo vai sair mal. Mas desta vez, não. Eu

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já tenho tudo em mente, pode confiar em mim. Está tudo desenhado aqui, na minha cabeça. (...) Eu só precisaria saber, afinal, se já é noite lá fora...

A – Você já se deitou?B – Eu já disse que não vou me deitar. A – Eu, no fundo, gosto de você. Talvez, se eu

o conhecesse melhor, se eu soubesse como é a sua cara pelo menos, talvez eu não gos-tasse tanto. As pessoas sempre estragam tudo quando mostram a cara, não é? Por isso eu gosto de você assim.

B – Eu acharia melhor se você dormisse um pouco. Eu estou preparado para saltar e correr, se for o caso, mas você não. Você passou muito tempo aí, está sem fôlego para nada. Ia ajudar se você estivesse ao menos descansado.

A – Se você quiser levar o meu espelho, eu dei-xo. Daqui a pouco eu não vou mais precisar dele mesmo.

B – Descanse um pouco.A – Se você se lembrar do resto da canção, a

qualquer hora da noite, pode me acordar

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para dizer. Eu volto a pegar no sono fácil depois.

B – Então já é noite?A – Meu espelho não é muito grande, nem

tem moldura. É mais um pedaço de vidro, para falar a verdade.

B – Só me responda isso: já é noite?A – Eu já disse, sempre é. Aqui, sempre é noite.

A levanta-se e retira o espelho da parede.

B – Você se lembra se a montanha fica muito longe daqui?

A – Montanha?B – Aqueles dois lá fora, eles falam demais. Era

como se eu não estivesse por perto. Eles contaram que sempre que alguém resolve fugir, a patrulha persegue só até a monta-nha, e depois desiste. Então, eu pensei, se nós não formos pegos antes de chegarmos à montanha, estaremos livres. Chegar à mon-tanha, como eles mesmos falaram, é uma espécie de brinde para os fugitivos. Depois dela, a liberdade.

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A – A montanha, claro, agora me lembro. Eles chamam aquilo de montanha? Na minha memória ela aparece tão pequena. Eu não sei, sinceramente, a que distância fica. Já faz tanto tempo.

B – Entendo.A – Talvez eles tenham falado de uma outra

montanha que eu não conheço. Quando você chegou aqui?

B – Ora, acho que foi hoje ainda. Não sei ao certo.

A – O tempo passa muito devagar aqui, não é?B – Lá fora será diferente.A – Eu acho que você tem razão. Eu preciso

mesmo descansar um pouco.B – Claro que sim. Você precisa estar muito

bem daqui a pouco.A – Eu me sinto muito cansado, sabe. É um

cansaço tão grande que às vezes eu acho que o trago de outras vidas. Esta vida que eu tenho agora... ela me parece pequena demais para tanto cansaço.

B – Eu posso deixar você dormir um pouco mais, se este for o problema. Mas não muito,

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eu já disse. Temos de ir enquanto ainda é noite.

A – Talvez eu precise disso, dormir um pouco mais. Você tem certeza de que não vai se incomodar?

B – A ideia foi minha.

A deita-se de costas no chão, arregaça as man-gas do uniforme e, aos poucos, começa a seccio-nar os pulsos com seu espelho.

A – Quando você for embora...B – Nós iremos juntos, trate de dormir. A – A montanha... ela fica muito longe. Acre-

dite em mim, agora eu me lembro. Nós não conseguiremos chegar.

O sangue dos pulsos de A começa a escorrer pelo chão do palco.

B – Se você calar um pouco a sua boca e dor-mir, nós conseguiremos.

A – Antes de eu dormir, você me promete uma coisa? Me promete que as noites nunca mais

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voltarão a ser tão compridas? Me promete isso? E que os dias também não serão mais tão vazios?

B – Prometo, prometo tudo. Agora durma. Eu ainda tenho muito no que pensar.

A – E o silêncio... e o silêncio?

A cala-se, com os dois pulsos cortados.

B – Nunca mais haverá silêncio assim. Eu prometo isso para você também. Quando chegar a hora, eu te chamo.

Fim

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Não Contém Glúten

Personagens

Sue – a mulherMichael (que às vezes será chamado de Mike)

– o maridoDorothy e Henry – os visitantes invisíveis

* * *

Sala do apartamento de Sue e Mike. O am-biente está repleto de ventiladores dos mais dife-rentes tipos. Todos desligados. Quanto maiores os ventiladores, mais efeito cênico eles poderão propiciar. Sue, bem-vestida, está sozinha em cena, girando com mãos nervosas as hélices dos ventiladores. Ao longo do espetáculo, este movi-mento será executado repetidas vezes.

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Sue – Como eles podem dizer que já esteve mais quente? Todos dizem que já esteve mais quente. Mas eu sinceramente não me lembro... A televisão... Hoje mesmo uma apresentadora da televisão disse que já este-ve mais quente. Todos dizem também que eu me pareço com ela. Mas eu também não concordo com isso. Às vezes eu posso até concordar, para não parecer deselegante. Com isso eu ainda posso concordar. Mas nunca esteve mais quente. Não mesmo.

Para de mexer nos ventiladores e senta-se em um sofá na frente deles. Observa os ventiladores, cujas hélices aos poucos vão parando.

Sue – Tudo parece tão inútil. É tão pouco o que eles podem fazer num dia como hoje. Talvez Dorothy saiba lidar com esta situ-ação. Dorothy sempre consegue resolver os problemas mais insolúveis. Eu sei que Henry a ajuda. Eu sei que, no fundo, é sem-pre Henry quem resolve tudo. Mas eu não quero que Dorothy saiba que eu já percebi

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isso. Não hoje, pelo menos. (Grita) – Mi-chael!... Michael, você ainda vai demorar muito para se aprontar? Eles não costumam se atrasar, você sabe. Da última vez que eles vieram aqui... bem, não me obrigue a repetir esta história, Michael. Michael, você também acredita que já esteve mais quente, querido?

Sue levanta-se do sofá e volta a girar as hélices.

Sue – Eu estou tentando. Eu estou fazendo um grande esforço para me recordar de um dia mais quente que hoje, de um único dia.

Michael, bem-vestido também, entra em cena. Observa a mulher girando as hélices.

Mike – Henry acaba de me ligar. Eles vão chegar no horário.

Sue – É claro que vão.

Mike vai até uma mesa ao fundo e faz um drin-que. Senta-se no sofá e fica observando a mulher.

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Sue (vem até Mike, toma um pouco do drinque e volta aos ventiladores) – Henry às vezes me surpreende. Ele não precisaria ter ligado.

Mike – Ele quis ser gentil. Sue – Seu drinque é horrível, Mike. Você não

pretende servir isso para eles, pretende? Mike, você ouviu o que eu perguntei?

Mike – Henry sempre faz o seu próprio drin-que. O dele e o de Dorothy também.

Sue – Não isso. Eu perguntei se você se lembra de algum dia mais quente que hoje.

Mike – Disseram que houve?Sue – Mike, por Deus. É só o que estão di-

zendo, desde cedo... Henry talvez possa esclarecer isso. Ele é tão bom neste tipo de coisa, não é?

Mike – Henry e Dorothy são determinados. Não me parece um dia bom para sair de casa. Um pouco quente, talvez.

Mike levanta-se e muda alguns ventiladores de lugar. Sue o observa intrigada.

Mike – Pronto, muito melhor assim.

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Sue – Não notei tanta diferença.Mike – Você tem passado muito tempo em

casa, Sue. Está perdendo a noção de si-metria. Qualquer um percebe que ficou melhor assim. Eu diria que é uma questão de equilíbrio.

Sue (indo até a janela) – Você sabe se eles trocaram de carro? Há um carro estranho es-tacionando lá embaixo. Espere, espere um pouco... Não, não são eles. Eles costumam trocar de carro todo ano.

Mike – Costumam?Sue (começa a colocar os ventiladores em sua

posição original, mas para diante do olhar de reprovação de Mike) – O que está havendo com você hoje? Eles costumam trocar de carro todo ano. Dorothy sempre me liga para dizer que eles trocaram de carro... Mas, talvez você esteja certo. Não me lembro de Dorothy ter me ligado este ano ainda... Isso quer dizer então que eles estão com o mesmo carro do ano passado? Você devia conversar mais com Henry. Talvez ele esteja precisando de algum tipo de ajuda.

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Mike – Henry nunca precisa de ajuda.Sue – Estranho Dorothy não ter me ligado este

ano ainda. Estamos praticamente em março.Mike – Hoje é 6 de fevereiro, Sue.Sue – Não se apegue tanto a estes detalhes,

Mike. O tempo sempre nos ilude.Mike – Henry também disse que tinha uma

novidade. Talvez seja isso. Sue – Mike, este drinque que você faz... Ele é

tão horrível, querido.Mike – Estou me lembrando. Era uma sexta-

feira. Era uma sexta-feira porque nós íamos passar o fim de semana na fazenda. Meu pai foi me buscar na escola logo depois do almoço. Ele disse que se saíssemos cedo chegaríamos à fazenda ainda a tempo de pescar naquele mesmo dia. Claro, agora eu me lembro. Me lembro até dos poucos carros que vimos na estrada e de meu pai dizendo que aquela era a melhor hora para se deixar tudo para trás. Minha mãe já estava na fazenda, ela tinha passado aquela semana toda lá. Quando nós chegamos, eu nem en-trei na casa. Também me lembro muito bem

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disso. Eu tirei a roupa ali mesmo no carro e mergulhei só de cueca no lago. É claro, Sue. Como eu pude me esquecer disso?

Sue faz com as mãos que não entende.

Mike – Aquele dia, Sue. Aquela sexta-feira foi muito mais quente que hoje. Eu posso apostar.

Sue – Você era só uma criança excitada. Nada mais que isso. (Pausa) Mike, você podia me ajudar com isso, não?

Mike levanta-se e também começa a girar as hélices.

Sue – Sabe, eu li numa revista que não há nada que impressione mais uma visita do que uma casa bem arejada. Há outras coisas que impressionam também, ah, mas uma casa bem arejada ainda está no topo do ranking.

Mike – Eu me lembro de ter visto alguma coisa sobre isso também... Foi naquela revista que está...

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Sue (cortando) – Então você viu as fotos? Ah, Mike, as fotos... Você reparou que não havia ninguém transpirando nas fotos, estavam todos secos e lindos. Você acha que estas revistas mentem, Mike?

Mike – Olha, eu...Sue – Não, não me responda. Se elas mentem

eu prefiro não saber.Mike (parando de girar as hélices e olhando no

relógio) – Henry não costuma se atrasar. Sue – São eles.

Os dois olham simultaneamente para a porta. A partir deste momento, os atores precisam cro-nometrar um tempo mental para as respostas e intervenções de Henry e Dorothy – já que a rigor os dois não existem no espetáculo.

Mike (abrindo a porta) – Henry, meu caro. Eu estava prestes a apostar com Sue que vocês não se atrasariam. Dorothy, deixe-me vê-la. O que você andou fazendo, garota? Há algo de diferente em você.

Sue – É o cabelo dela, querido. (Aproximando-

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se da porta) – Dorothy, você ficou deslum-brante. Henry, quanto a você... uau! Você também não está nada mal. Tão gentis, vocês. Sair de casa com este calor todo. Mas, o que é isso em suas mãos, Dorothy? Eu não acredito. Veja isso, Mike. Eles nos trouxeram flores. São lindas.

Mike – Vocês não deviam ter se preocupado com isso. Tenho até medo de perguntar onde vocês conseguiram flores. Não existem mais flores em lugar algum. Henry, por favor, não me diga que você andou indo até as docas apenas para nos trazer flores. Aquilo está mais perigoso a cada dia. São tantas patrulhas rondando por ali. Ontem mesmo, você não viu nos jornais, uma apre-ensão gigantesca. Se não me engano, com tiros e toda a cavalaria a postos. Uma cena horrível.

Sue – Mike, por favor, não seja indelicado. Henry, querido, não ligue para Mike, ele está cada dia mais avesso a gentilezas... Mike, não fique aí parado. Coloque as flo-res num vaso. É tão raro receber flores hoje

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em dia que nem sabemos mais o que fazer com elas...

Mike apanha o buquê imaginário e sai em bus-ca de um vaso. Grita lá de dentro.

Mike – Você mexeu mesmo no cabelo, Do-rothy?

Sue – Ora essa, Mike. Não se preocupe, Doro-thy. Nós poderíamos pintar nossos cabelos de roxo que nossos maridos seriam os últi-mos a perceber, não seriam? (...) Ah, não querida. Em mim não ficaria bem.

Mike (gritando de dentro) – Henry, venha me dar uma mão aqui com um banquinho. O vaso está em cima do armário.

Sue (para Henry) – Por aqui, Henry.Mike (gritando de dentro) – Não precisa, não,

Henry. Já peguei.Sue (rindo) – Ele não consegue fazer nada sozi-

nho. Então, Dorothy, eu vi este corte numa revista, mas só fica bem para quem tem cabelos lisos, como os seus, não é mesmo?

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Mike volta e traz um vaso transparente e vazio, que deposita em cima da mesa.

Sue – Ficaram lindas. Ainda não acredito que vocês nos trouxeram flores.

Mike – Dorothy, espero que você não repare. Mas... é que nós estamos sem água no mo-mento para colocar no vaso. O pouco que temos estamos guardando para beber. A nossa cota...

Sue (interrompendo-o) – Claro que eles não vão reparar. Assim que recebermos mais água, a primeira coisa que faremos será encher o vaso. Talvez ainda amanhã. Vocês não viram o comunicado na entrada do edifício? Todos os apartamentos ímpares deverão ter um pouco mais de água amanhã.

Mike – Mas nós vamos passar a noite aqui na porta? Entrem, por favor. Henry, me dê aqui a sua capa... Henry, que capa, meu camarada! Você deve ter pagado uma for-tuna por ela.

Sue (aproximando-se) – Deixe-me vê-la. Henry, você comprou uma capa na Maxwell and

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Sons? Eu não acredito. Esta é a primeira vez na vida que eu seguro uma capa da Maxwell and Sons. Você o ajudou a escolher, não ajudou, Dorothy? (...) Está vendo só, Mike? Você devia se inspirar em Henry e também comprar suas roupas sozinho. Você acredita, Henry, que depois de todos esses anos eu ainda continuo acompanhando Mike nas compras?

Mike – Você jamais me deixaria comprar uma capa da Maxwell and Sons, querida.

Sue – Bom, todos sabem... a Maxwell and Sons é aquele tipo de loja que a gente já deve se dar por satisfeito apenas por passar diante das vitrines, não é mesmo?

(...)Mike – Ah, não, Henry, mesmo nos períodos

de liquidação aquilo ainda é impraticável. Esta capa é a prova de que as coisas estão dando certo para você, hein!? Mas deixe-me guardá-la.

Mike vai até o fundo do palco e pendura a capa imaginária.

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Mike (diz, enquanto caminha de volta ao centro do palco) – Nós ficamos sabendo disso, cla-ro. Quando Sue veio me dizer que a loja da Maxwell and Sons ia ser fechada por causa do avanço da maré, eu não achei que fosse verdade. Acredita que eu fui até aquele lado da cidade para conferir?

Sue – Mike voltou arrasado, Dorothy. A água já tinha subido nas calçadas e estava come-çando a invadir algumas lojas, não estava, querido? Eu sei que não serve de consolo, mas isso está ocorrendo no mundo inteiro. Ainda assim, eu não quis ver esta cena, nem mesmo pela televisão. Aquela sempre foi a região mais linda da cidade para mim. Quando você se mudou para cá, ainda havia os coqueiros, Dorothy?

(...)Sue – Que pena, você teria adorado. Vocês

acreditam que Mike e eu....Mike (interrompendo) – De novo esta história,

não, Sue, por favor.Sue – Como de novo? Eu não me lembro de

ter contado esta história para eles. Dorothy,

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eu já contei que o primeiro beijo que Mike me deu....

Mike – ...e o primeiro baseado também...Sue – Para, Mike, que coisa. Então, a pri-

meira vez que Mike e eu nos beijamos foi ali, debaixo de um daqueles coqueiros. Você acredita, Dorothy, que aqueles co-queiros tinham vindo de algum lugar dos trópicos?

(...)Sue – Viu só, Mike, eu nunca tinha contado

esta história para Dorothy. Você nunca pen-sou em voltar para o interior, querida?

Mike – Sue insiste em achar que no interior as coisas ainda são melhores...

Sue – Não sei se ainda são, mas eu não conhe-ço ninguém do interior que tenha sido obri-gado a se mudar porque a maré começou a invadir suas casas, como está acontecendo aqui...

Mike – Mas lá eles também têm seus proble-mas, querida. E posso garantir que não são pequenos. Ah, mas não mesmo.

(...)

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Sue – Não estou tão certa disso, Henry.Mike – Eu estou com Henry.Sue – Mas as queimadas podem ser controla-

das, Henry. Quanto ao ataque das gangues infantis, olha, para mim tudo isso não passa de um mito. Você sabe que eu sou uma pes-soa bem informada. E eu nunca vi sequer uma foto destes ataques. Mike insiste em dizer que eles existem. Se existem mesmo, ainda não chegaram às revistas.

Mike – Talvez não às revistas que você lê.Sue – Que seja. O maior problema, para mim,

ainda são as marés. Não há nada que se possa fazer em relação a isso...

(...)Mike – Dorothy está certa. De que vale perder

tempo com isso?Sue – Ótimo. Este tipo de discussão também

me deprime muito. Além do mais, de que adianta falar sobre o inevitável, não é mes-mo? Eu proponho que hoje à noite nós só falemos de coisas que ainda podem ser mudadas, que tal? E por falar em mudan-ças, Henry, por favor, sente-se mais perto

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de nós, querido. Mike, chegue um pouco mais para lá.

Os atores se movimentam de modo a acomodar o visitante.

Sue – Pronto, não ficou muito melhor assim? E Dorothy ainda pode esticar as pernas. Fique à vontade, Dorothy. Quer que eu guarde sua bolsa?

(...)Sue – Eu reparei. Elas estão cada dia menores.

Mas isto é apenas este ano, tenho certeza. Quanto você quer apostar que no ano que vem voltaremos a carregar aquelas bolsas gigantescas? Espere só.

Mike – Henry, o que você está esperando para começar a nos contar do seu novo posto, hein?

Sue – Nós ficamos tão orgulhosos de você, Henry. Mike me contou. O mais jovem di-retor-executivo do grupo, vejam só. Olhem só a cara de boba da Dorothy.

(...)

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Sue – Nem ouse pensar numa coisa dessas, querida. Deixe que digam. Henry chegou lá por merecimento, ora essa. A gente tem de ser filho de alguém neste mundo, não tem? Pois então. Eu disse isso para o Mike. O fato de Henry ser filho de quem é, pode ter ajudado um pouco, é inegável. Mas ele não teria chegado a lugar algum se não tivesse talento.

Mike – Sue, deixe Henry falar um pouco. Sue – É claro, mas é que eu fiquei um pouco

cismada com o que Dorothy disse. Não é justo que Henry tenha de viver sempre à sombra do pai. Henry, querido, por favor, a palavra agora está com você. Você definiti-vamente não precisa que eu o defenda.

Os atores passam, a partir de agora, a prestar muita atenção no que Henry está dizendo. Fazem algumas expressões de aprovação, riem um pouco, às vezes fazem cara de espanto. O importante é que a conversa pareça ser a mais natural possível.

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Mike – Não é possível? Mas você está falando em euros?

Sue – Mike, em que mundo você vive? Claro que ele está falando em euros. Acha que ele estaria assim empolgado se estivesse falando em reais...

Mike – Mas é que é muita responsabilidade, meu Deus...

Sue – Por isso que ele foi o escolhido. Em quem mais a empresa poderia confiar assim cegamente?

Mike (maroto) – Henry, Henry... agora entendo por que você passou a fazer compras na Maxwell and Sons, não é mesmo, Dorothy? Aposto que até os panos de chão da casa de vocês agora são de grife.

Sue – Mike! Que brincadeira mais inoportuna, meu Deus. Peça desculpas a Henry, já.

(...)Sue – Nada disso de deixar pra lá, Dorothy.

Há coisas que a gente não diz nem mesmo brincando.

Mike – Sue, o Henry me conhece desde o co-légio. Se de repente eu tivesse começado a

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fazer compras na Maxwell and Sons, tenho certeza de que ele também ficaria no meu pé, não ficaria?

(...)Mike – Como assim, Henry? Claro que eu

estava brincando, por favor. Eu acho que nós temos esta intimidade.

(...)Mike – Está bem, Henry, se você prefere assim,

retiro o que eu disse. Pronto, foi uma brin-cadeira de mau gosto. Não está mais aqui quem falou.

Sue – Isso mesmo, Mike. Foi um comentário infeliz, sim. Mas tenho certeza de que não foi por mal. Mike, querido, que tal fazer uma coisa de útil, hein? Henry e Dorothy devem estar doidos por um drinque.

Mike – Claro.

Mike levanta-se e vai até o bar. Sue o interrom-pe.

Sue – Melhor não, Mike. (Cochichando para os visitantes) – Eu acho que ele perdeu a mão.

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Antes de vocês chegarem, ele fez um drin-que horrível. Eu mesmo vou cuidar disso.

Mike (do fundo) – O que você está dizendo, querida?

Sue – Nada, eu estou indo aí. O drinque hoje é por conta das mulheres. Venha comigo, Dorothy, por favor.

Sue e Dorothy vão até o fundo do palco, onde está o bar.

Mike – Aquilo foi só uma brincadeira, Dorothy. Sue (brincalhona, empurrando Mike até o sofá)

– Fique aí um pouco com Henry. Vocês vão ver o que é uma coqueteleira na mão de uma mulher

Sue volta para o bar. Mike está no sofá, ao lado de Henry.

Mike – Juro para você, Henry. Esta é a minha terceira semana sem cigarro. (Falando alto para Sue) – Sue, Henry não acredita que eu estou sem fumar há três semanas.

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Sue – Só um instante, querido. Dorothy está me dizendo algo importante.

Mike – Mas só confirma para ele.Sue – Dorothy, você já imaginou como seria a

vida deles sem nós? (Para Henry) É verdade, Henry. Há três semanas que Mike não toca num cigarro. Aqui em casa, pelo menos. Não sei o que ele tem feito no escritório.

Mike – Você mesma falou que o cheiro de cigarro já sumiu das minhas roupas. Não falou?

Sue (entretida com Dorothy) – O quê, queri-do?

Mike (um pouco impaciente) – Você não disse que as minhas roupas já não têm mais chei-ro de cigarro?

Sue – Disse?Mike – Claro que disse.Sue – Está bem, então eu disse. (Para Dorothy)

– Desculpas, querida. E então?Mike – Viu só, Henry?(...)Mike – Nem charutos, nada mais de fumaça

na minha boca.

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(...)Mike – Bom, eu torço para que não. Tanta

gente foi adiante sem ter recaídas. O Phil mesmo... Lembra-se de quando ele jogou um maço quase cheio no lixo e disse que nunca mais fumaria? Pois então. O Phil, para mim, virou um exemplo. Se ele con-seguiu, eu também vou conseguir.

(...)Mike – Não posso acreditar nisso. (Para Sue) –

Sue, o Phil voltou a fumar. Sue (alto) – Não acredito.Mike – Pode acreditar, Henry acabou de me

contar.Sue (efusiva) – Eu não acredito nisso, Dorothy.Mike – Dorothy, você também conhece o

Phil?Sue – Ninguém aqui está falando do Phil,

Mike, tenha paciência. Dorothy, mas isso é... isso é fantástico. Me deixe contar, que-rida, por favor.

Sue corre até Mike e diz em voz alta

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Sue – Mike, Dorothy está grávida. Grávida, querido, acaba de entrar no quarto mês. Venha até aqui, querida.

Mike – Eu sabia que não era apenas o cabe-lo, Sue. Olhe para ela, olhe bem para ela. Até quem não a conhece sabe que há algo de diferente neste rostinho. Henry, meu camarada. Venha aqui, me dê um abraço rapaz....

Sue – Mike, antes que você faça mais uma piada idiota, eu vou logo dizendo que a Maxwell and Sons não vende fraldas, não é mesmo...

Mike – Ora, Sue, agora quem foi sem graça foi você.

Sue – Minha brincadeira foi sem maldade.Mike – A minha também havia sido.(...)Sue – Claro, Henry, espere só um momento

que eu vou pegar mais um copo.

Sue corre até o bar e apanha um copo para si. Mike tem outro copo nas mãos.

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Mike – Um brinde ao... a... Esperem um pou-co: a quem devemos brindar?

(...)Sue (um pouco melancólica) – Jura? As meni-

nas costumam ser mais graciosas, mesmo. Embora Mike e eu, não nos perguntem por quê, ainda torcemos para que nosso primei-ro filho seja um homem. (Mais alegre) Um brinde a ela, então!

Todos bebem.

Sue (para Dorothy) – Da última vez em que nos falamos, você não me disse nada que estava pensando em engravidar.

Mike – É verdade, Henry. Quando foi que jo-gamos tênis pela última vez? Você também não comentou nada comigo.

(...)Mike – Nossa! Tudo isso, já? (...)Sue – Eu também acho que é melhor assim.

A vida está correndo tranquila, você não

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espera por nenhuma surpresa e, de repente, descobre que uma criança está a caminho.

Mike – Mas nem sempre esta é uma boa notí-cia, Sue. Há tantas garotas por aí que...

Sue (interrompendo-o) – No caso deles é, claro que é. É uma ótima notícia, aliás. Olhe só para a cara deles. Sua mãe deve estar ra-diante, não está, Henry? Três filhos homens e, quando ela menos esperava, vem uma netinha. Mike, qualquer um estaria feliz nesta situação.

(...)Sue – Obrigada, Henry. Eu sei que ainda posso

fazer um bom drinque, sim. Embora Mike viva dizendo que a única coisa que eu sei fazer é jogar uma pedra de gelo num copo de tônica.

Mike – Eu nunca disse isso, Sue.Sue – Disse, mas agora deixa pra lá. Dorothy,

eu não acredito que você não me ligou antes para me contar.

Mike – Henry disse ao telefone que tinha uma novidade.

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Sue – Mas isso é uma coisa que as mulheres co-memoram mais. Dorothy, eu não te perdoo. Aposto que todas as nossas amigas ficaram sabendo antes de mim.

(...)Sue – Ah, imagine só, fazer segredo de uma

coisa dessas. Eu seria capaz de ligar da sala do ginecologista.

Mike – A Dorothy sempre foi discreta, Sue. Sue – O que você quer dizer com isso?Mike – Nada, só isso mesmo. Que ela sem-

pre foi discreta demais. Não me lembro de Dorothy ficar falando de suas próprias con-quistas. Quando ela ganhou aquela bolsa de estudos para passar seis meses em Paris, você se lembra? Ficamos sabendo disso praticamente na véspera do embarque. E ainda porque Henry nos contou. Dorothy é diferente.

Sue – Diferente de quem?Mike – Como assim?Sue – Se ela é diferente, é diferente de alguma

coisa ou de alguém. Você está insinuando que ela é diferente de mim?

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Mike – Sue, por favor.Sue – Dorothy, não me leve a mal, mas isso

é algo que eu preciso esclarecer. Vamos, Mike, continue. Dorothy é diferente de mim, é isso que você quis dizer, não é?

Mike – Eu não disse isso. Eu disse isso, Henry?(...)Mike – Viu só? Henry também não levou a

coisa por este lado.Sue – Isso é porque Henry não vive ao seu

lado há tanto tempo, é porque ele não sabe ler o que você está pensando, como eu sei. Quando você disse que Dorothy é diferen-te, você quis dizer que Dorothy é discreta. Não foi isso? Que ela não sai por aí fazendo propaganda de seus próprios feitos.

(...)Sue – Você sabe onde é o banheiro, Dorothy,

fique à vontade. (...)Mike – Concordo com Henry. Mais um drin-

que, é do que estamos precisando, mais um drinque. Desta vez eu preparo.

Sue (correndo até o bar) – Não. Eu preparo.

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Seus drinques só pioram ainda mais as coi-sas. Henry, você não quer ver se está aconte-cendo alguma coisa no banheiro? Dorothy está demorando.

Mike – Ela acabou de ir ao banheiro.Sue (histérica) – Ela está demorando. Henry,

por favor, veja se está tudo bem com ela. Ah, e leve seu drinque.

Sue volta ao centro da sala

Sue – Por que você está fazendo isso comigo na frente deles?

Mike – Você está louca, Sue? O que foi que eu fiz?

Sue – A maneira como você vem se referindo a Dorothy desde a hora em que eles che-garam.

Mike – Que maneira?Sue – Fale mais baixo. Você quer que todos

ouçam?Mike (olhando) – Henry também entrou no

banheiro. Eu tenho certeza de que eles estão constrangidos. Você não precisava ter

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feito esta cena. Há tanto tempo que eles não vinham nos ver. E, quando resolvem vir, você decide se alterar desta maneira.

Sue – Eu estou cansada de ser comparada com Dorothy. O cabelo dela, o rosto dela, a bolsa de estudos em Paris. Você precisava ter se lembrado disso? E, como se não bastasse tudo isso, agora ainda ela me surge grávida aqui. Ela não precisava ter nos dado este golpe. Assim, sem avisar.

Mike – É isso, então?Sue – Às vezes eu acho que você ainda se ar-

repende.Mike – De novo com isso, não, Sue. Tenha

paciência. Foi algo que aconteceu no século passado, meu Deus. Dorothy já está com Henry há quase dez anos.

Sue – E daí que aconteceu no século passado? Há várias coisas que são do século passado e que continuam a nos atormentar.

Mike – Você, por exemplo.Sue – Mike, eu...Mike – Sue, eu não vou continuar com este

assunto. (Cochichando para ela) – Eles es-

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tão voltando. Tudo bem, Henry? Venha, Dorothy, sente-se aqui. Você quer mais um drinque?

Sue – Grávidas não bebem tanto, querido. Um chá gelado você aceitaria, Dorothy?

(...)Sue – Trabalho nenhum, eu vou buscar na

cozinha.

A caminho da cozinha, Sue para nos ventilado-res e começa a girar suas hélices.

Sue – Vocês não acham que este é o dia mais quente que nós já tivemos? (Girando as hélices com mais intensidade) – Mike diz que não. Ele se lembra de um dia na in-fância dele em que o calor foi ainda maior. Às vezes eu tenho um pouco de medo de engravidar, Dorothy. O mundo me parece tão pouco hospitaleiro nos últimos tempos. É tão estranho, não é mesmo? Você gerar uma coisa que pode viver pelos próximos cem anos. Me desculpe, eu não devia ter falado coisa. Pessoa, o nome correto é pes-

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soa. Mas o nome que se dá não importa. Importante é o fato. Gerar uma pessoa que terá ao menos cem anos de vida pela frente. Eu nem estou segura de que o planeta vá durar tudo isso. Me parece tanto tempo. Eu acho que você foi muito corajosa. Foi mesmo. (Pausa) Todas as revistas dizem que as grávidas sentem ainda mais calor. Sentem mesmo, querida?

(...)Sue – Está vendo só, Mike? Depois vocês di-

zem que nós mulheres reclamamos à toa. Dorothy, você quer chegar mais perto dos ventiladores?

(...)Sue – Que ótimo. Isso, fique paradinha aí, bem

aí. (Sue gira as hélices de maneira histérica) – Não é uma delícia, Dorothy? Se um dia eu ficar grávida, eu vou exigir que Mike também faça isso por mim. Eu vou ficar parada aí, bem onde você está, e Mike vai fazer o vento soprar em mim, eu vou querer todo o vento do mundo soprando em minha direção... Dorothy, querida. Eu estou um

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pouco cansada. Você não se incomodaria de voltar para o sofá? Eu vou até a cozinha preparar o seu chá gelado.

Dorothy volta para o sofá e se junta a Mike e Henry. Sue se dirige à cozinha.

Mike – Sente-se aqui, Dorothy. Sinceramente, não sei, Henry. Talvez eu lhes deva des-culpas. Antes de vocês chegarem ela pare-cia muito bem. Estava reclamando muito do calor, é claro. Mas como todo mundo. Embora Sue, eu confesso, ela fica alterada demais nestes dias tão quentes.

(...)Mike – Por favor, Dorothy, não tem nada a

ver com vocês, eu garanto. Se vocês forem embora agora, ela vai ficar pior, tenho cer-teza. Ela vai se acalmar, me deem alguns minutos.

Sue (voltando da cozinha) – Eu encontrei o baralho.

Mike – E o chá de Dorothy?

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Sue – Me desculpe, Dorothy, mas não temos mais chá. Pensei em trazer um copo de água, mas, você sabe, a nossa cota... nós estamos com tão pouca água. No máximo três ou quatro copos, que devem durar até amanhã, pelo menos.

Mike (irritado) – Às vezes você passa dos li-mites, Sue. Só um instante, Dorothy, por favor.

Mike dirige-se nervoso até a cozinha.

Sue – Talvez eu lhes deva desculpas. Antes de vocês chegarem ele parecia muito bem. Estava reclamando muito do calor, é claro. Mas como todo mundo. Embora Mike, eu confesso, ele fica alterado demais nestes dias tão quentes.

(...)Sue – Por favor, Dorothy, não tem nada a ver

com vocês, eu garanto. Se vocês forem embora agora, ele vai ficar pior, tenho cer-teza. Ele vai se acalmar, me deem alguns minutos.

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Mike (volta da cozinha com um copo de água nas mãos) – Pronto, Dorothy. É verdade que não temos mais chá, mas aqui está a água (coloca o copo sobre a mesa).

(...)Mike – Claro, quando você tiver vontade. Aí

está.Sue – Podemos começar o jogo, então? Henry,

você dá as cartas?Mike – Sue, você nem ao menos perguntou se

eles querem jogar. Sue – É claro que querem. Você sabe que eles

adoram jogar cartas. Tudo bem, eu mesma dou as cartas, então.

Sue, com agilidade, embaralha e distribui as cartas para os quatro.

Sue – Nestas horas eu sinto falta de ver você fumando, Mike. Você ficava tão charmoso com as cartas nas mãos e o cigarro no canto dos lábios.

(...)

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Sue – Eu não acredito que você foi se lembrar dele, Dorothy. Meu Deus, há décadas que ninguém mais fala dele. Você ouviu isso, Mike? Dorothy se lembrou do Humphrey Bogart. Eu sempre achei que Mike tinha um quê do Humphrey Bogart, mas com o cigarro nas mãos, é claro. Eu não imaginava que Dorothy achasse isso também. Deixe-me ver você, Henry... Não, assim não, que-rido, baixe as cartas, deixe-me ver seu rosto. Dorothy, peça para que Henry tire as cartas da frente do rosto, que coisa. Hum, não sei, sinceramente não me lembra ninguém. Com quem ele se parece, Mike?

Mike (nervoso) – Com Henry Patrick Gol-dstein. Ele se parece com Henry Patrick Goldstein. Satisfeita agora?

Sue (pensativa, olhando as cartas) – Eu adoro as suas covinhas, Mike. Pena que elas só aparecem quando você está contrariado.

Os quatro ficam um pouco em silêncio, jogando cartas.

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Mike (brincando) – Henry, não vale, eu vi isso. Você piscou para Dorothy por trás dos óculos. Vocês já começaram a blefar. Da última vez vocês ganharam todas porque Sue simplesmente não sabe blefar. Por mais que eu combine alguns truques com ela, na hora do jogo ela se atrapalha toda.

Sue – Mike adora colocar a culpa em mim. Não importa qual seja a derrota, a culpada sempre sou eu.

(...)Sue – Este pigarro é algum tipo de blefe, Henry?(...)Sue – Eu acho que nós ainda temos um pouco

de própolis. Você quer?Mike – Henry, você jamais adivinharia quem

começou a trabalhar no escritório no mês passado.

Sue – Você sabe que eu odeio este tipo de frase, Mike. Se ele jamais vai adivinhar, então diga logo.

Mike – A Maggie.(…)

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Mike – A Maggie, oras. Que fez o primeiro ano da faculdade junto com a gente e depois de-sistiu do curso porque engravidou daquele paquistanês.

Sue – É a noite das grávidas!(...)Mike – Ela mesma. Mas eu não sabia disso.

Você tem certeza?(...)Mike – Amanhã eu confirmo com ela. Puxa,

quem diria, a Maggie. Você acredita que ela falou de você ainda ontem? Assim do nada. Nós nos encontramos no elevador e ela, com aquele sotaque do sul que ela ainda não perdeu, depois de tantos anos vivendo aqui, me perguntou se eu tinha alguma notícia do bom e velho Henry Pica-pau.

Sue – Henry Pica-pau? Que história é essa?Mike – Era só um apelido. Mesmo. Ela anda

péssima, me deu até pena.Sue – Sua vez, Mike.Mike (atirando uma carta sobre a mesa) – O

psiquiatra dela se matou no fim de semana.

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Sue – Eu acho que Dorothy não me parece interessada nesta história.

(...)Mike – Foi exatamente o que eu disse para ela.

Se os psiquiatras estão-se matando, alguma coisa deve estar errada. Ou com o mundo, ou com eles. (Pausa) Na verdade, me parece que ele já não era mais o psiquiatra dela.

Sue (suspirando) – Meu Deus!...Mike – Maggie me disse que ele andava mui-

to triste nos últimos tempos. Que parecia, assim, bastante solitário. Palavras delas, é claro. Então ela sugeriu que ele lhe des-se alta, assim eles poderiam se ver mais, como amigos, eu quero dizer. Maggie pa-recia muito disposta a ajudá-lo. Ele ficou de pensar na proposta, mas se matou, dois dias depois. No próprio consultório. Ingeriu todos os soníferos que ele tinha de amostra grátis. Maggie não se perdoa. Ela acha que poderia ter feito mais.

Alguns segundos de silêncio e concentração nas cartas.

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Sue (jogando uma carta na mesa) – Você é feliz, Henry?

Mike – Isso não é justo, Sue. Você quer que eles percam a concentração.

Sue (pulando de susto) – Henry! Não precisa gritar assim na hora de jogar. Você quer me matar de susto, é?

Mike – Pode gritar à vontade, Henry. A casa é sua.

Sue – Você acredita que uma vez Mike me fez esta pergunta, Dorothy?

(...)Sue – Se eu era feliz, oras. Nós estávamos

quietos, vendo um filme, quando ele me perguntou se eu era feliz.

Mike (enfadonho) – Eu não me lembro disso.Sue – Eu disse que me sentia muito bem ao

lado dele, sim. Falei que nós tínhamos uma bela casa, nós tínhamos um ao outro e que as coisas, até aquele momento, estavam correndo bem.

Mike – Sua vez de jogar, Dorothy. Henry, aqui está o cinzeiro.

Sue – Sabe o que Mike fez então, Dorothy?

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Saiu da sala, com a cara de quem não teve a pergunta respondida. Dorothy, você nunca parou para pensar no que os homens que-rem exatamente ouvir de nós? Eu achei a minha resposta tão prática e abrangente.

Mike (com o rosto enfiado no baralho) – Talvez nós, os homens, queremos apenas um pou-co de silêncio, pelo menos na hora de jogar cartas. Você acha que isso é pedir demais da vida, Henry?

(...)Sue – Ora, Henry, você bem que podia ficar

um pouco do meu lado às vezes. Só para variar, não é?

Mike – Feliz agora, Sue? Dorothy bateu.Sue (jogando suas cartas de lado e apanhando

aquelas que estavam na mesa) – Não é possí-vel. Deixe-me ver. Você não existe, Dorothy. Eu acho que preciso aprender muito com você. Você fica aí, quietinha, quietinha e, de repente, pronto! Lá vem você e ganha tudo. Uma outra rodada?

(...)Mike – Concordo com Henry.

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Sue (recolhendo as cartas) – Está bem. Mas depois não me digam que eu não os avisei. Os drinques do Mike ultimamente estão horríveis.

Mike – Henry, eu quero que você experimente e depois me diga se Sue está ou não exage-rando.

Mike caminha até o bar e começa a preparar mais drinques.

Sue (animada) – Mike, eu posso contar para eles?

Mike (entretido com os drinques) – Contar o quê?

Sue (aproxima-se de Mike, beija-o e volta ao centro da sala) – Mike está tendo aulas de samba.

Mike (parando com os drinques) – Sue, você tinha me prometido.

Sue – Este é o tipo de coisa que não se escon-de, querido. Se você faz aulas de samba, é por que algum dia vai dançar em público, não é?

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Mike – Eu não sei se vou dançar em público. Eu resolvi fazer aulas de samba porque...porque...ora, cada um faz o que bem enten-de do seu tempo livre.

(...)Mike – Eu não parei com o tênis, Henry. Eu

só quis experimentar uma coisa diferente ao menos uma vez na vida. É um direito que eu tenho, não é mesmo?

Sue – Eu também estranhei muito no início, Dorothy. Eu vivia perguntando: Mike, mas por que justamente samba? Se você queria algo assim, mais ao gosto popular, por que não capoeira, ou mesmo tango? Eu adoraria que Mike estivesse aprendendo a dançar tango. Se ele tivesse entrado num curso de tango, eu seria bem capaz de acompanhá-lo. Aqueles corpos tão excitados, tão colados uns nos outros. Mas ele preferiu o samba. Eu respeito, mas já disse para ele: eu defini-tivamente não vou sambar com você.

Mike – Nem passou pela minha cabeça pedir isso a você.

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Sue – É melhor nem perder mesmo seu tempo com isso.

(...)Mike – Acho que não é o caso, Dorothy.Sue – Mike, ela está grávida.Mike – E daí?Sue – Você vai se recusar a atender ao pedido

de uma mulher grávida?Mike – Pare com isso, Sue.Sue – Não seja grosseiro, Mike, por favor. Se

Dorothy está pedindo para que você sambe um pouco para nós, que mal há nisso?

Mike – Eu não estou com vontade de sam-bar.

Sue – É uma simples gentileza, querido. Há meses que eles não vinham nos ver. Qual o problema de você dar uma sambadinha aqui para nós? Henry, por favor, me ajude a empurrar a mesa mais para o canto. Acho que Mike precisa de um pouco mais de espaço para sambar.

Mike (alterado) – Eu não vou sambar, Sue. Pare com isso.

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Sue (nervosa) – Eles nos trouxeram flores, Mike. Sabe o que significa isso? Henry e Dorothy se arriscaram nas docas para nos trazer um pouco de flores e agora você, na segurança da sua casa, é capaz de dizer não a um pedi-do de Dorothy? Um pedido de uma mulher grávida. Você vai sambar, sim. E é já.

(...)Sue – Por favor, Dorothy, fique fora disso. Se

Mike está mesmo tendo aulas de samba, ele vai ter de provar isso agora. A menos que....

Mike – A menos que o quê?Sue – A menos que você sai de casa duas noites

por semana para fazer alguma outra coisa e me engane dizendo que está indo aprender samba.

Mike – Não seja ridícula.Sue – Eu já disse isso uma vez esta noite, Mike.

Não me humilhe na frente dos nossos con-vidados. Eu quero que você sambe aqui e agora, para deixar Dorothy feliz e para afastar da minha cabeça esta impressão de que estou sendo enganada.

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Sue começa a arrastar a mesa

Sue – Pode deixar, Henry. Eu faço isso sozi-nha. Eu preciso fazer isso, se é que você me entende. Pronto, Mike, a sala está livre. Sambe.

Mike, incrivelmente desajeitado e sem ritmo, co-meça a sambar na frente das visitas. Aos poucos, a expressão de Sue demonstra o quanto a situa-ção é constrangedora. Ela ameaça interrompê-lo uma vez, mas se detém. Permite que ele sambe mais um pouco para finalmente se manifestar.

Sue – Não há graça alguma nisso, Henry. Ele está fazendo o melhor que pode.

Sue caminha até Mike, acaricia seu rosto e lhe beija a boca com muita ternura.

Sue – Obrigada, Mike. Eu sentia que você não estava me traindo, mas de alguma maneira eu precisava ter esta confirmação. (Para os visitantes) – Foram só três aulas, na verdade.

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Vocês não acham que Mike está bem de-mais para quem teve apenas três aulas?

Mike (encabulado) – Talvez eu devesse voltar para os drinques. Para ser sincero, eu nem sei se vou continuar com estas aulas. Na maioria das vezes eu me sinto um pouco ridículo no meio dos outros alunos.

(...)Mike – Imagine só, Henry. Esqueça isso.Sue – Mas se ele quer aprender samba tam-

bém, Mike, qual o problema? Talvez com uma companhia você se anime a continuar com as aulas. Se bem que, bom, não sei, Henry. Não ia parecer estranho um execu-tivo do seu calibre saindo do escritório mais cedo para ir sambar?

Mike – Mas ninguém precisaria ficar saben-do disso. Seria o nosso segredo, meu e do Henry.

(...)Sue – Exatamente, Dorothy. Por que fazer

segredo de uma coisa tão banal? Eu pagaria para ver você sambando, Henry. Você sem-pre foi tão durão, tão sem ginga.

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(...)Sue – Mas naquela noite estávamos todos bê-

bados. Eu queria ver se você seria capaz de repetir tudo aquilo sóbrio.

(...)Sue – Não vou apostar nada, ainda mais em

euros. Você não está falando sério, Henry.(...)Sue – Mike, o Henry ficou louco.

Sue corre para guardar o vaso e os copos. Esta sequência deve ser feita com muita rapidez e nervosismo.

Sue – Mike, ele vai quebrar tudo. Isso não é samba, Henry. Eu nem sei o que é isso, mas não é samba. Você tem de mexer os quadris, não é só ficar pulando desta maneira.

Mike – Henry, os vizinhos vão reclamar. Por favor, não pule tanto.

Sue – Mike, por favor, mostre a ele como se deve mexer os quadris. Isto que ele está fa-zendo é quase um ataque epiléptico. Henry, você está assustando a Dorothy.

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Mike – Eu não sei mexer os quadris, Sue. Eu tenho o quadril mais duro de toda a turma, a professora disse isso em voz alta na terça pas-sada. Não me obrigue a mexer o quadril.

Sue – Está bem, mas então peça para ele parar com isso. Você o conhece há mais tempo do que eu. Dorothy, não! Não há a mínima graça nisso. Você precisa é de repouso, e não disso. Mike, peça para que eles parem.

Mike (dividido entre a ordem de Sue e a cena que está vendo) – Sue, no fundo isso tudo é muito lindo. Eu acho que eu...

Sue – Não, Mike, não.

Mike começa a dançar raivosamente pela sala, uma coreografia meio punk, completamente enérgica.

Sue – Pare de imitá-lo, Mike. Você quer ser igual a ele em tudo.

Mike – Eu estou mandando bem, Henry? Venha também, Sue. (Gritando) Isso é o máximo.

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Sue – Mike, o síndico... Eu não vou tomar parte nisso.

Mike – Mande-o à merda, Sue. Henry, você é o melhor amigo que um homem pode ter. Eu vou pular mais alto que você. Veja isso. (Dá um salto no ar e continua a dançar). Uau! Você não, Dorothy, você não pode pular deste jeito, sua maluca. (Arrasta Sue pelo braço) – Você não vai ficar aí parada. (Sobe no sofá) Desça daí, Henry, volte para o chão. Eu quero ter Sue aqui ao meu lado. Suba aqui, querida.

Sue, resistente, sobe no sofá. Fica alguns segun-dos retesada, mas, aos poucos, vai-se soltando, até começar a pular ao lado de Mike, mas com menos empolgação que ele.

Sue (olhando para os visitantes) – Levante o vestido, Dorothy. Eu quero ver sua barri-guinha.

(...)Sue – Não faz mal, levante mesmo assim.Mike – Ah, ainda não dá para ver nada.

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Sue – Tire as mãos da barriga dela, Henry. Eu tenho certeza de que dá para ver algu-ma coisinha. Ela está cansada, você não está vendo? Eu acho que você devia dizer para ela parar de se mexer desta maneira. (...) Eu acho que você devia parar com isso também.

Mike e Sue começam a diminuir o ritmo da dança e a empolgação que estavam demons-trando.

Mike (constrangido) – Henry... vamos descan-sar um pouco, que tal?

Sue (espantada) – Dorothy, vocês não acham melhor ir para o quarto? Henry, não sei se o chão é o melhor lugar para isso. Ela está grávida, não sei se é seguro.

Mike – Henry, Dorothy... por favor, vocês não estão sozinhos.

Sue – Vamos sair daqui, Mike.Mike – Claro, vamos...Sue – Michael, pare de olhar.Mike – Claro, é, vamos... Henry, se vocês pre-

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cisarem de alguma coisa, nós estaremos logo ali...

Sue – É, logo ali, no quarto. Mike – Inclusive, vocês podem entrar sem

bater mesmo...Sue (assustada) – Eu não acredito no que estou

vendo. Dorothy, não sei se você chegou a reparar, mas este tapete é novo. Eu o tirei da caixa hoje, pela primeira vez, apenas para receber vocês. Mas é claro que você não reparou, não é mesmo? Afinal, vocês trocam de carro todo ano e Henry é o exe-cutivo mais jovem da companhia. Por que você iria reparar em um simples tapete, não é verdade?

Mike – Não é hora de falar sobre isso. Vamos sair daqui.

Sue – Mike, veja só isso. O que você está que-rendo provar com isso, Dorothy? Mike, ela sempre me disse que nunca permitiu isso. Quando eu disse que nós fazíamos, ela ficou chocada.

Mike – Você disse a ela que nós fazíamos isso?

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Sue – Claro que disse. Nós mulheres contamos estas coisas para as amigas.

Mike – Mas por quê, caralho? Nós homens nunca falamos sobre isso.

Sue – Não sei, Mike. Sei lá. Eu acho que é porque temos medo de ser as únicas a fazer isso. Todas dizem que não fazem. (Com raiva) – Dorothy, você é uma mentirosa. Você só queria me deixar com culpa, não é isso? Eu passei três meses sem deixar o Mike fazer isso comigo depois daquela nos-sa conversa.

Mike – Então foi por isso?Sue – Deve ter sido.Mike – Você acha justo ter feito isso comigo,

Dorothy? Retiro tudo o que eu disse sobre você ser discreta e elegante.

Sue – E você podia gemer um pouco menos, Henry. Afinal, um executivo que ganha em euros...

Mike e Sue olham calados para o casal, que demonstram ter concluído o ato.

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Mike (solícito e deslocado) – Quer que eu apa-nhe seu cigarro, Henry?

Sue – Dorothy, você nem tocou na sua água. Eu vou buscar o copo enquanto vocês... enquanto vocês se vestem, talvez?

Mike senta-se no sofá enquanto Sue volta com o copo de água e o deixa de lado.

Sue – Vá um pouco mais para lá, Mike. Deixe Dorothy sentar-se aqui. (Apontando) – Você está abotoando errado. Veja, você pulou uma casinha do botão aqui em cima. Quer que eu ajude?

(...)Sue – Como achar melhor.Mike – E então, Henry, vocês ainda não nos

disseram. Que nome vão dar para a garo-tinha?

(...)Sue – É lindo. Nós sempre gostamos de nomes

assim, simples. Se for menino, quer dizer, se algum dia tivermos um garoto, ele irá se chamar John. Combina tanto com o nome

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que vocês escolheram. Eles poderão crescer juntos talvez, e serem ótimos amiguinhos de infância, se um dia tivermos o nosso John, é claro...

Mike – Sue tem levado o tratamento tão a sério. Eu me orgulho muito dela por isso. Poucas vezes eu vi uma pessoa tão determi-nada em conseguir algo.

Sue – Por favor, Mike.Mike – Mas é verdade, Sue.Sue – Eu sei que é. Mas alguns elogios, como

este que você acabou de fazer, mais cons-trangem do que enaltecem. É como se você dissesse o quanto eu tenho me esforçado para não chegar a lugar algum.

Mike – Deixa que eu acendo, Henry. (Tira um isqueiro do bolso e o exibe para Henry) – Está vendo só este isqueiro? Ele deve ter no mí-nimo uns 50 anos. Talvez até mais. Foi do meu avô. Quando ele morreu, minha avó quis que ficasse comigo. (Para Sue) – Você sabe o que eu quis dizer, não seja assim cruel com você mesma.

Sue – Mike me contou que todos os outros ne-

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tos brigavam por este isqueiro. Isso prova o quanto ele era o predileto da avó. Estes pon-tinhos vermelhos aqui, vocês estão vendo, são rubis, legítimos. Dezenas deles. Às vezes eu acho que Mike nunca gostou tanto assim de fumar. Ele só fumava para poder exibir esta pequena joia de vez em quando.

Mike – Você é capaz de imaginar hoje uma avó presenteando algum neto com um isqueiro? Do jeito que as pessoas andam apavoradas com o cigarro, é mais provável que elas lhes dessem uma arma.

Sue – Você gostaria de ter conhecido a avó de Mike, Dorothy. Foi espirituosa até o fim.

Mike – Espirituosa? Eu usaria outra definição.Sue – As coisas que ela falava sobre a velhice,

querido. Você imagina, Henry, que no dia em que ela fez cem anos, ela disse, na fren-te de todos os convidados, que a velhice cheirava mal.

Mike – Não foi bem isso que ela disse.Sue – Claro que foi.Mike – Ela disse que não adiantava nada a

ciência permitir que as pessoas vivessem até

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os cem anos se ninguém conseguia eliminar o cheiro que a velhice traz.

Sue – Bom, é quase a mesma coisa. Às vezes, Dorothy, ela pedia para que lhe dessem ba-nho com álcool. Mike também me contou isso. Ela dizia que não se importava em se parecer com uma velha, ela só não queria cheirar como tal.

(...)Mike – Não sei, Henry. No fundo, acho que

são todos iguais. Meu avô também era cheio de manias, só que ninguém achava graça nelas. Vocês pretendem se mudar quando o bebê nascer?

(...)Sue – Vocês estão falando sério? Meu Deus,

me parece tão longe de tudo. Mike – Mas é muito mais seguro. Pena que os

trens não cheguem até lá.Sue – Espero que a gente não passe a se ver

menos por causa desta mudança. Eu sei que nos primeiros tempos vai ser difícil, tantas responsabilidades. Ainda mais em se tratando de um primeiro filho. Mas...

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depois... Vocês não acham que está ficando quente de novo?

Sue volta aos ventiladores para girar as hélices

Sue – Lá deve ser um pouco mais frio, não Dorothy? Aposto que você terá tantas babás para auxiliá-la.

(...)Sue – Em alguns dias, um ou dois graus podem

ser uma benção. Mike, o suflê, querido. (Abandona os ventiladores e volta para o cen-tro da sala) – Como eu posso me esquecer tão facilmente das coisas?

Mike – Sue fez um suflê àValentin. E compota de peras Williams de sobremesa.

Sue – Mas Mike me ajudou.(...)Sue – Mas está tudo pronto. Eu insisto. Seria

horrível se vocês fossem embora sem ao menos provar.

(...)Sue – Eu não saberia dizer. Você sabe se o suflê

contém glúten, Mike?

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Mike – Eu acho que não, mas não poderia afirmar com certeza. Talvez fosse preciso ver todas as embalagens. Podemos ir até a cozinha para conferir.

(...)Sue (desapontada) – Eu entendo, claro. Mike – A irmã de Sue também é alérgica a

glúten. Uma vez...

Mike interrompe a frase. Alguns segundos de silêncio.

Sue – Continue, querido.Mike – Não sei ao certo o que eu ia dizer, talvez

nem fosse verdade. Sue – Nestes casos, eu também sempre sou

pelo silêncio.

Mike e Sue aproximam-se, na pose típica de quem vai se despedir das visitas.

Sue – Ainda bem que você descobriu esta sua alergia a tempo de evitar algo mais grave, não é?

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(...)Sue – Pois é, hoje os médicos não deixam passar

mais nada. Ao menos os bons. Vocês não querem ficar um pouco mais mesmo?

(...)Mike – Ah, isto não serve como desculpa, Hen-

ry. Se existe alguém que é dono do próprio horário no emprego, este alguém é você. Mas eu entendo.

Sue – Nós acompanhamos vocês até a porta, então.

Mike – Henry, você não gostaria de ficar com meu isqueiro? Estou pensando no que Sue acabou de dizer. Eu tenho medo de voltar a fumar com a desculpa de exibi-lo em públi-co. Se você quiser, eu lhe dou de presente. Eu acho que, no fundo, ele combina mais com você do que comigo. Todos estes ru-bis...

(...)Mike – Claro. Mas se você algum dia mudar

de ideia.

Sue abre a porta. Mike fica ao lado dela.

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Sue – Me prometa que eu tornarei a vê-la antes da mudança, Dorothy. Eu gostaria tanto de acompanhar sua gravidez mais de perto. Se nós nos víssemos a metade do que nossos maridos se veem, eu já estaria satisfeita.

Mike acende o isqueiro na frente dos visitantes.

Mike – Olhe só que beleza de chama, Henry. Tem certeza de que não o quer mesmo?

Sue – Ele já disse que não, Mike.Mike – Até a próxima, então.Sue – E, mais uma vez, obrigado pelas flores.

Amanhã teremos água e elas ficarão ainda mais lindas. Adeus.

Sue e Mike esperam a saída do casal para fe-char a porta. Sue caminha até a janela. Mike vai para o sofá.

Mike (em tom de advertência) – Sue...Sue – Eu só queria ver se eles trocaram... Estão

saindo. Trocaram, Mike. Não é o mesmo carro da última vez.

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Mike – Henry está um pouco mais gordo, não está? Você gostou mesmo do cabelo de Do-rothy?

Sue – Uma mulher tão sem pescoço. Com aquele corte de cabelo.

Sue sai da janela e vem se sentar ao lado de Mike no sofá.

Mike – Mas não é algo que os impeça de serem felizes, não é mesmo?

Sue – Você acha que há algo de errado com o nosso tapete?

Mike (passando o pé pelo tapete) – Eu gosto dele. Talvez Henry tenha gostado mais. Sue, você me pareceu um pouco desconfortável na presença deles.

Sue – Às vezes você não tem a sensação de que tudo está derretendo?

Mike – O mundo?Sue – Não só o mundo. Todo o resto também.Mike – Logo será verão novamente.Sue (em voz alta, olhando para o canto da sala)

– Henry esqueceu a capa.

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Mike corre até a janela, com a capa na mão

Mike – Já foram. Vou ligar para eles.Sue – Eles voltarão. Ninguém deixa para trás

uma capa da Maxwell and Sons.Mike – Ela é mesmo linda, não é?Sue – Linda? Não a subestime.

Mike sai da sala. Fica alguns segundos fora de cena.

Mike (fora de cena) – Está pronta?Sue – Quando quiser.

Mike entra, vestindo a capa.

Sue (carinhosa) – Ficou perfeita, Mike. Eu diria que quem a fez estava pensando em você naquela hora. Sente-se aqui.

Sue levanta-se do sofá e cede seu lugar para Mike. Abre uma gaveta e apanha um cigarro para ele.

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Sue – Não é para fumar. Apenas o mantenha aqui, no canto da boca.

Mike obedece. Sue volta para um dos ventilado-res e começa a girar a hélice.

Sue – É assim que eu quero me lembrar de você. Lindo e tão... tão indiferente ao ca-lor.

Mike, com o cigarro na boca, reforça a pose de galã.

Sue – Por um segundo apenas, um Humphrey Bogart para mim.

Mike (tirando o cigarro da boca) – Eu não quis perguntar naquela hora. Mas quem é ele?

Sue – Bogart? Isso não importa, ninguém mais se lembra mesmo... (Encarando o marido com suavidade) Mike, talvez eu o ame, de alguma maneira.

Mike – Pode ser um bom começo, Sue.

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Sue aproxima-se de Mike, senta-se em seu colo e começa a beijá-lo na boca com fúria. Luz sai do casal para fechar sobre a hélice do ventilador, que, aos poucos, vai parando.

Fim

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Ensaio para um Adeus Inesperado

Mãe sentada em uma cadeira à direita do palco. Filho em uma cadeira à esquerda. Luz distribuída igualmente sobre os dois. Quando a mãe começa a falar, a luz sobre o filho vai aos poucos caindo, permanecendo somente ela iluminada.

Mãe – Meu filho se matou. Ele tinha 22 anos e não deixou nenhum bilhete. O que se revela, com o tempo, quase tão triste quan-to a morte em si. Eu já tinha ouvido falar de casos assim. Num prédio ao lado da casa em que nós morávamos, naquela casa em que meu filho se matou e de onde nós saímos algum tempo depois, um dentista se atirou pela janela do oitavo andar numa tarde de

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domingo. Ele tinha uma filha de três anos que brincava sozinha na sala na hora em que ele pulou. Quando eu soube da notícia pelos vizinhos, eu intimamente desejei que ele tivesse tido a delicadeza derradeira de esperar que a menina ao menos se virasse para o outro lado, que ele tivesse tido a gentileza, ou sei lá que nome se pode dar a isso, de poupá-la de uma cena aparente-mente tão inexplicável. Não me lembro de ter ficado especialmente triste com a notí-cia. Eu acho que não o conhecia e, por mais que os vizinhos tenham passado dias me descrevendo sua fisionomia melancólica, era assim que se referiam a ele, nenhum rosto familiar me veio à mente. Quando meu filho se matou, eu e meu marido ter-minávamos de tomar o café da manhã em uma segunda-feira de outubro. Você quer que eu fatie o queijo?, eu lhe perguntei as-sim que ele sentou-se à mesa. Eu tinha com-prado um queijo branco na véspera, desses que vêm embalados em um saquinho com muita água. O queijo ainda estava na gela-

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deira. Só se alguém mais quiser, ele respon-deu. Este alguém mais era o pai dele – eu nunca gostei de queijo branco. Hoje, menos ainda. E foi praticamente tudo o que ele disse durante seu breve café. Isso não me deixou intrigada. Até aquele momento, era só mais um café da manhã igual a todos os outros. Meu filho era daquele tipo que não gosta de conversar de manhã. Há muitas pessoas assim, eu sei. É como se elas fossem se apoderando do dom da fala à medida que o dia avança. São praticamente mudas quando levantam, soltam alguns monossí-labos antes do almoço para só então, no início da tarde, arriscarem as primeiras fra-ses compreensíveis do dia. Não que ele acor-dasse mal-humorado, o meu filho, ele ape-nas não gostava de conversar de manhã. Não há mal algum neste hábito. E sei que nisso ele também não era único – meu ma-rido, logo que nos casamos, se comportava da mesma forma. Depois, com o tempo e a convivência, ele foi mudando. Ele se apro-ximou mais do meu jeito. Quando eu abro

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os olhos de manhã, não importa o horário, os meus outros sentidos também já estão a postos. Estou pronta para falar e ouvir, às vezes mais uma coisa do que outra. Mas quem é que nesta vida já conseguiu equili-brar suas próprias habilidades? Eu vou co-locar o queijo aqui, no caso de vocês muda-rem de ideia. Levantei-me, fui até a geladei-ra, apanhei o queijo, cortei a embalagem com a faca de pão, deixei escorrer aquela água amarelada e quase sempre malcheiro-sa na pia, acomodei o queijo num pratinho de vidro fosco e o coloquei sobre a mesa. Só vim a retirá-lo de lá no dia seguinte, quando voltamos do enterro. Enquanto eu jogava o queijo inteiro no lixo, um queijo ainda ima-culado e ao mesmo tempo impróprio, com-preendi que nas últimas horas eu havia sido obrigada a encarar o desperdício em suas formas mais dolorosas. Meu filho terminou o café, disse que ia buscar alguma coisa no quarto e logo desceria para tirar o carro da garagem. Era assim em todas as manhãs: o carro dele era o primeiro a sair da garagem,

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depois o do meu marido. Nos dias que se seguiram, e por muito tempo ainda, aquelas palavras assumiram um significado diferen-te daquele que estamos acostumados a dar a elas. Alguma coisa no quarto. Foi o que ele disse antes de subir. Uma carteira? Um envelope? Um documento? Alguma coisa o quê? Todas as coisas têm um nome e eu nunca me deparei, pelo menos dentro da minha própria casa, com um objeto pagão, algo que precisasse ser chamado de alguma coisa e não daquilo que realmente era. Tal-vez fosse alguma coisa sem importância, mas mesmo um elástico, um único clipe, um pedaço de papel com um telefone ano-tado, tudo isso tem um nome e ninguém precisa se referir a eles como alguma coisa. Talvez ele não estivesse querendo dizer ab-solutamente nada, mas é no mínimo cruel acreditar também que as últimas palavras que eu ouvi do meu filho fossem estas, tão despidas de importância. Por que ele está demorando tanto? Este é o meu marido. Eu disse que ele tinha aprendido comigo a falar

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mais no começo do dia. Talvez eu tenha exagerado um pouco. Ou talvez eu tenha mesmo me esquecido de outras coisas que ele falou durante aquele café. Acho impro-vável que eu tenha me esquecido de alguma coisa daquela manhã, mas o tempo costuma apagar algumas certezas. Você pode descer e tirar o carro dele, assim você não se atrasa, argumentei. Cadê as chaves? É claro, ele disse isso também. Cadê as chaves? Vocês precisam me desculpar, talvez estes lapsos voltem a ocorrer, mas meu marido não dis-se mais. Agora eu posso garantir. Subi ao quarto dele, do meu filho, para buscar as chaves. A porta estava fechada. Você está-se trocando? Eu fiz esta pergunta seguida do nome dele, mas aqui eu volto a pedir des-culpas. Eu não gostaria de repetir o nome dele. É só uma mania minha, espero que vocês compreendam. Às vezes eu digo o nome dele, muitas vezes até. Mas hoje eu não sinto vontade. Você está-se trocando? Nessa segunda vez, eu coloquei o nome dele antes da pergunta. Silêncio. Eu nunca

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gostei de portas fechadas dentro de casa – ninguém é obrigado a convidar o outro a entrar no seu espaço, mas se por acaso este outro quiser, é bom que se sinta bem-vindo, ao menos às vezes. Somos uma família, afinal. Abra a porta. A ordem já era nervosa, premonitória. Abri. De quanto tempo eu precisaria para fazer uma descrição precisa daquilo que eu vi? E ainda que vocês fossem muito pacientes comigo, talvez eu não con-seguisse fazer com que as palavras, ainda agora, me aproximassem daquilo que eu vi. Talvez eu nem mesmo desejasse isso. A corda estava amarrada no ponto mais alto de uma viga que saía do meio do telhado e descia até um pouco acima de sua escriva-ninha. “Madeira nobre, senhora.” Foi o que o construtor nos disse quando compramos a casa. Com o tempo ela vai escurecer um pouco e dar um ar mais aconchegante para o quarto. Da escrivaninha para o nada, um salto de pouco mais de um metro. A gente se torna inexplicavelmente forte em alguns momentos. Eu vou tirá-lo daí, pensei, e as

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coisas vão voltar a ser mais ou menos como eram. Em que momento ele se tornara tão pesado? Meu marido subiu. Meu marido gritou o nome dele, o nome que eu não vou repetir. Cortamos a corda e o deitamos tão carinhosamente no chão. Cuidado, não o machuque, eu pedi para o meu marido. Eu sei o que estou fazendo, não vou machucá-lo. Chame alguém. Quem? Não sei. Gritei. A casa se encheu de gente. Quem são estes vizinhos? Eu sei que não estava no melhor dos meus dias, mas grande parte deles eu não reconhecia. Quando eles se mudaram para o bairro, de onde eles vieram? Como eles puderam chegar tão rápido ao quarto do meu filho? Até onde meu grito foi ouvi-do? Por que aquelas perguntas me atormen-tavam tanto quando na verdade havia algo muito mais sério a ser resolvido? Depois a polícia, depois os bombeiros. Sentei-me na cadeira onde ainda repousavam as roupas do domingo à noite. Roupas que cheiravam a cigarro e a... a mulher, talvez. Quanto tempo se passou? Não sei. Então meu ma-

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rido voltou. Nós precisamos vesti-lo. Ele já está vestido, eu disse. Você me entende, nós precisamos vesti-lo com outras roupas, um terno. Abri o seu armário e lá, no fundo de uma gaveta, encontrei um ovo de páscoa. Olha, eu disse para o meu marido, choco-late ao leite com crocante e bombons reche-ados de cereja no interior. Por que alguém que acaba de fazer o que ele fez compra um ovo de páscoa, eu perguntei. Acho que ele queria presentear alguém, meu marido dis-se. Mas estamos ainda tão longe da Páscoa. Escolhi o terno azul, era o que ele mais gostava. Eu, pessoalmente, sempre achei que ele ficava mais velho com este terno azul. Eu teria escolhido o cinza. Mas não era o momento de discordar dele.

Filho – Até aquele dia, eu acho que nunca ti-nha visto uma palavra assim tão grande: a-cam-pa-men-to. Quando a professora termi-nou de colocar o cartaz na parede, os meni-nos foram aos poucos se aproximando. O problema não era só o tamanho da palavra,

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era a altura do cartaz. Parece que até a pro-fessora tinha se esquecido de que, naquela idade, a gente precisava tanto dos dedos quanto dos olhos para ler. Os mais altos da classe ficaram na frente do cartaz e come-çaram a deslizar os dedos por cada uma das sílabas: a – cam – pa – e alguém já gritou antes que terminassem de ler: acampamen-to!!! Claro, só podia ser isso mesmo, acam-pamento. Não tivemos mais dúvidas quanto à palavra, mas será que aquilo dizia respeito a nós mesmos? Acampar com sete anos. E, mais do que isso: acampar com sete anos sem os pais? Não podia ser verdade. Não que fosse bom demais para ser verdade, era so-mente estranho. A gente não podia ir nem voltar sozinho da escola e agora poderíamos acampar, dormir em barracas, acordar no meio do mato, muito, muito longe de casa? Bom, descobrimos depois que não era assim tão longe de casa. Havia um gramado no fundo da escola que nós chamávamos de campo de futebol, e, se a memória não re-solveu me trair agora, havia mais brechas

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com terra batida do que grama naquele terreno. E o nosso acampamento, a nossa primeira grande aventura sem os pais por perto, seria ali, na noite da próxima sexta-feira. Hoje eu percebo o quanto era pouco, mas naquela semana era impossível falar de outra coisa que não fosse o acampamento. O planejamento era muito simples: a escola ia montar algumas barracas no campinho e nós só teríamos de levar lanches e um saco de dormir, isso se alguém tivesse um. Quem não tivesse, que levasse almofadas, um col-chãozinho, um cobertor dobrado, qualquer coisa sobre a qual nosso corpo pudesse ficar um pouco confortável naquela única noite que passaríamos ali. O acampamento come-çaria às seis da tarde daquela sexta-feira e a partir das oito da manhã do sábado nossos pais já poderiam nos buscar. Continuo achando, hoje, que parecia tão pouco. Mas eram 14 horas de liberdade total. Sabe lá o que são 14 horas de liberdade total? Todos nós havíamos esperado sete anos por aquelas 14 horas de liberdade e ai de quem dissesse,

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naquela semana, que tudo não passaria de apenas uma noite na escola. Eu sabia que seria uma semana comprida, ainda que na-quela época a nossa noção do tempo deves-se ser outra. O cartaz foi colocado numa terça-feira de manhã e ainda havia uma eternidade a nos separar da sexta. Eu tinha certeza de que todos nós, naquela semana, sonharíamos com o acampamento. E foi ao acordar de um destes sonhos, em que eu chegava na escola atrasado e as barracas já estavam sendo desmontadas, que eu corri para o quarto da minha mãe. Mãe, mãe, cadê meu lanche? Você ainda não fez o meu lanche? Já está todo mundo indo acam-par. Minha mãe acendeu a luz, pediu para o meu pai parar de resmungar e olhou no relógio de cabeceira. São duas e quinze da manhã, ela falou. E ainda é quinta-feira. Você vai acampar só amanhã à noite. Volta pro seu quarto, volta. Mas mãe, se a senho-ra vai fazer o lanche, não era bom já levan-tar? Eu sonhei que já tinha acabado tudo. Não acabou nada, nem começou ainda.

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Pode deixar que ainda tem muito tempo. Agora vai dormir. Voltei para a cama muito preocupado mesmo. Eu ia acampar na sex-ta à noite, já eram duas e quinze da manhã de quinta-feira e minha mãe ainda não tinha feito nada. Quando o dia amanhecesse, eu tinha de tomar alguma providência, a gente não pode deixar tudo nas mãos dos outros, eu dizia para mim mesmo. Demorei para pegar no sono, meus olhos ardiam um pou-co, mas não era vontade de chorar. No dia seguinte, como sempre, acordei com minha mãe me chamando pelo nome, mas a ima-gem dela demorou um pouco mais para surgir diante de mim, sentada ali, ao meu lado da cama. O que é isso em seus olhos, ela me perguntou, já com a voz um pouco mais alterada. Olhos, olhos, mãe, cadê você? Por que é que eu não consigo... Espera, eu te ajudo. Deve ter levado não mais que al-guns segundos, mas aquela impossibilidade momentânea de enxergar me pareceu uma eternidade. Aos poucos, minhas pálpebras foram se descolando e a imagem da minha

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mãe surgiu embaçada e, de alguma forma, dolorida. Conjuntivite, ela decretou. Só pode ser conjuntivite. Já para o médico. Sim, era conjuntivite, disse o médico, en-quanto ensinava minha mãe alguns proce-dimentos para aliviar aquele desconforto todo. Mãe, eu falei, pergunta pra ele se eu vou poder... Minha mãe não perguntou. Enquanto voltávamos para casa, ela mesma se encarregou de responder à pergunta que nem formulada foi. Acampar? É claro que não. Não ouviu o que o doutor disse? Isso que você tem é contagioso, nem à escola você poderá ir, quanto mais acampar. Nin-guém vai querer pegar conjuntivite. Em dois dias, eu havia aprendido duas palavras compridas: acampamento e conjuntivite. A segunda parece ter sido inventada só para acabar com a alegria da primeira. Nada de dormir fora de casa, nada de aventura, nada de sanduíches, nada de barracas. Em vez disso, apenas água gelada para lavar os olhos de quando em quando. Naquele dia, o tele-fone da minha casa não parou de tocar.

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Mesmo quem nunca tinha me ligado, mes-mo quem nunca tinha falado comigo, na-quele dia resolveu falar. É verdade que você está doente e não vai mais acampar? É ver-dade que você não enxerga mais? É verdade que se a gente chegar perto de você vai ficar assim também? Eu pensava no que real-mente poderia estar provocando tamanha excitação entre os colegas de classe: o acam-pamento da sexta à noite ou um aluno de olhos inchados e vermelhos que nem sair à rua podia mais. Aquela sexta-feira talvez tenha sido um dos dias mais longos da mi-nha vida. A cada cinco minutos eu pergun-tava para minha mãe que horas eram. Duas, duas e cinco, duas e dez, duas e... mas... de novo, chega de me perguntar as horas. Des-se jeito, até o meu dia já parou de andar. Quando terminou o jantar, minha mãe dis-se que eu já podia ir para a cama. Mas desde ontem que eu só fico na cama, eu respondi. Só assim você vai sarar logo. Obedeci. Dei-tei na cama e, antes de dormir, eu fiz ques-tão de imaginar cada um dos meus colegas

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de classe, com que cara eles estariam naque-la noite de sexta-feira dormindo sobre a gra-ma e tendo uma barraca como teto. Eu não sei se chorei ou se ainda era aquela maldita conjuntivite que provocava aquelas lágrimas um pouco melosas que escorriam dos meus olhos. Então eu acordei com minha mãe me chamando pelo nome. Ainda era um pouco difícil abrir os olhos, mas nem tanto quanto no dia anterior. Levanta, ela falou. Já está tudo aqui dentro, ela disse enquanto me mostrava uma mochila aparentemente leve. Tem uma lanterna, uma garrafa de água e três sanduíches. Se faltar alguma coisa, a gente vem buscar. Mas mãe, eu tentei dizer... Vamos logo, dorminhoco. Você não vai querer perder o acampamento, não é? Pulei da cama sem entender o que estava acontecendo. Ela me ajudou a vestir uma roupa que já estava ali ao lado, separa-da para aquela ocasião que eu não conse-guia compreender. Quando eu fiquei pron-to, minha mãe tirou a lanterna da mochila, apagou a luz do quarto e ordenou: agora

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venha atrás de mim. Ela não está passando bem, eu pensei. Eu não enxergo direito e ela perdeu o juízo. A casa estava completa-mente no escuro. Atravessamos a sala, a cozinha e a pequena área de serviço com ela à frente, sempre dizendo: cuidado, não vá se perder de mim, este já é um momento muito importante. Eu olhava para o escuro à minha volta e tomava muito cuidado antes de dar cada passo, eu me sentia um ladrão dentro da minha própria casa, seguindo obediente o foco de luz que minha mãe conduzia em direção ao quintal. Quando chegamos ao quintal, ela iluminou o rosto do meu pai, que usava um boné de uma marca de cigarro, mas meu pai nunca fu-mou. Ele estava sentado diante de uma barraca, amarrada de um lado a alguns pre-gos colocados no muro e, do outro, ao para-choque do carro, que ele precisou deixar praticamente fora da garagem para que as cordas da barraca pudessem alcançá-lo. Quem disse que você não ia acampar hoje, meu pai perguntou em voz alta. Você não

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vai ficar devendo nada aos seus coleguinhas de escola. Até a barraca é igualzinha. Na-quela tarde, meus pais tinham ido à escola pedir uma barraca emprestada para o nosso acampamento muito particular. Meu irmão, quatro anos mais novo que eu, já estava dormindo lá dentro, amarrotado em um cantinho de uma barraca para duas pessoas, mas que, naquela noite, teria de comportar quatro. Não me lembro de ter dormido tão apertado em minha vida, nem tão protegi-do também. Como era difícil pegar no sono, mais pela excitação do que pelo desconfor-to, minha mãe me levou para fora e me mostrou o Cruzeiro do Sul, depois as Três Marias e depois outras estrelas de cujo nome não me recordo mais. Na manhã seguinte, quando eu acordei, ela tinha colocado uma mesinha com café com leite na porta da barraca e então pudemos, finalmente, co-mer os sanduíches com gosto de pão ama-nhecido. Aos sete anos, a gente não faz a mínima ideia do que a vida vai nos reservar algumas noites em que não será mais possí-

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vel enxergar o Cruzeiro do Sul, ou qualquer outra constelação. A mínima ideia de que, uma noite assim tão clara, só mesmo nas nossas memórias de menino. Não sei se é obrigação das mães nos alertar sobre isso, a minha não me alertou. Ninguém da família pegou conjuntivite por causa daquela noite e, na segunda-feira, quando todos os colegas de classe vieram falar sobre o que eu havia perdido, eu resolvi ficar quieto. Não que eu não tivesse gostado do meu acampamento, mas algo me dizia, naquela manhã de se-gunda-feira, que todos os colegas de classe, por algum motivo, haviam se tornado um pouco mais livres do que eu. Um pouco mais maduros, quem sabe. Com o tempo, eu percebi que a barraca armada no meu quintal era um grande e perigoso útero feito de lona, com espaço de sobra para meu pai e meu irmão. Mas um dia, eu sei, ela iria ficar apertada. Senti que era minha obriga-ção sair dali. Alguém precisava nascer.

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Mãe – E se eu tivesse chegado alguns minutos antes? E se a viga, indefesa diante do seu peso, tivesse se partido no exato momento do salto? Sobre o que nós conversaríamos depois? O que você estava tentando fazer, talvez eu lhe perguntasse enquanto o aju-dava a se levantar do chão, descomposto e provavelmente envergonhado diante de um fracasso que me soa re-tum-ban-te. Ou talvez eu me calasse, como sempre foi mais usual entre a nossa família. O silêncio no lugar da indiscrição. No jantar daquela noite, claro, haveria um jantar, uma viga rompida talvez não seja um acontecimento de magnitude tal que altere a rotina de uma casa, é pro-vável que o filho mais novo, sim, eu tenho mais um filho, olhasse para ele e perguntas-se: o que é isto em seu pescoço? Eu teria de encontrar na mesma hora um assunto mais urgente para ocupar nossa atenção à mesa. Ou talvez meu marido dissesse ao filho mais novo: fique quieto, agora é hora de comer. Mas eu não cheguei mais cedo, e a viga resistiu heroicamente aos seus 78 quilos. Eu

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não gosto muito de pensar nessa possibili-dade. A de ter evitado tudo, eu quero dizer. Eu sinto que não seria fácil para nenhum de nós caso ele ainda estivesse aqui, mas penso que seria uma dificuldade de outra natureza. Mais áspera, mais constrangedo-ra, e seguramente menos solitária. No dia seguinte ao enterro, meu marido levou uma cadeira de praia para um canto do quintal em que a nossa faxineira costumava colocar os lençóis para secar. Eu ainda disse a ele que ia chover, mas foi inútil. Ele sentou-se na cadeira e estacionou seu olhar imóvel e sem brilho em algum ponto imaginário que eu não podia enxergar. Se você me dissesse ao menos o que está vendo, quem sabe en-tão eu pudesse ajudá-lo, eu disse. Veríamos a mesma coisa, acho que isso ia nos fazer bem hoje. Ele preferiu ficar mudo. Não era a primeira vez em tantos anos de casamento que um de nós não conseguia ver o que o outro via, mas nunca antes os nossos olhares levaram tanto tempo para convergir de novo na mesma direção. O vento que precedia a

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chuva começou a agitar os lençóis no varal, e às vezes a figura dele, do meu marido, era ocultada por este balançar de roupas limpas. Quando os lençóis se acalmavam, eu podia novamente contemplá-lo, e era como se eu estivesse vendo um fantasma que no segundo seguinte iria desaparecer de novo atrás de um pano colorido. Não choveu. Mesmo assim eu achei melhor voltar para dentro da casa. Eu acreditava que se hou-vesse algum momento em que seria possível retomar minha vida, o momento era aquele, enquanto tudo ainda estava muito quente. Mas eu me antecipei. A gente leva um tem-po incalculável para perceber o quanto está enganada. Eu nunca gostei muito de foto-grafias, até aquele dia. Nas viagens, é bom que eu esclareça que não foram tantas assim as vezes em que viajei, nunca me preocupei em fotografar. Presentes eu trazia; fotos, jamais. Nunca gostei daquelas pessoas que quando voltam de uma viagem qualquer, mesmo que elas tenham ido daqui até ali, reúnem os amigos para mostrar as fotos.

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Acho que é uma maneira tola que elas en-contraram de tentar prolongar um pouco mais a existência daquilo que já acabou faz tempo. E que talvez nem tenha sido assim tão bom quanto elas querem demonstrar depois. Museus e estátuas que aparecem ao fundo, grande coisa. Parques bem-cuidados onde esquilinhos saltitam felizes de manhã sobre uma grama imaculadamente verde, nada disso me atrai. Figuras patéticas com um gorrinho tentando se equilibrar na neve, não sejam tão ridículos, por favor. Quem já olhou para uma única foto de alguém na neve poderia se considerar livre dessa obri-gação pelo resto da vida – todas as pessoas de gorro na neve são absolutamente iguais. E eu não gosto delas. Mas naquele dia eu comecei a me interessar por fotografias, não qualquer uma, estou falando das fotografias do meu filho. Entrei no quarto dele e vascu-lhei cada gaveta, cada caixa fechada, cada bolso de blusa e calça, cada um dos seus livros e cadernos. Ele estudava, estudava arquitetura. Último ano. Tudo tão perto

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da formatura. Eu estava atrás de suas fotos, ao contrário de mim, eu sabia o quanto ele gostava delas. No fim de uma hora, saí do quarto com 37 fotos dele nas mãos. Estas não são as melhores, disse o filho mais novo. As melhores estão arquivadas no computa-dor. Estas me servem. É uma questão de pressa, e não de bom gosto. Comprei 37 porta-retratos baratos e os espalhei por todos os cantos da casa. Sete na sala, cinco na cozinha, três no meu quarto, dois no quarto do filho mais novo. No meu quarto, não, por favor, mãe. No seu quarto, sim. Ele era seu irmão. Mais oito nos corredores e três no escritorinho onde ele costumava estudar. E, depois de tudo isso, eu ainda tinha oito imagens nas mãos. No banheiro elas fica-riam embaçadas, não seria justo com ele. Neuza, eu chamei a empregada. Neuza, estas duas fotos são suas, um presente para você. O que a gente faz quando a casa já está asfixiada com a lembrança do filho e você ainda tem mais seis fotos para espalhar? É algo no que eu ainda preciso pensar, vou

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manter minha cabeça um pouco ocupada com isso, talvez me ajude a passar o tempo. Por ora, vou guardá-las. Ao longo dos meses, eu posso revezá-las. As que estão na sala vão para a gaveta, as que estão na gaveta saem e vão para a sala, trocarei as que estão na cozinha por aquelas que estão no corredor. Mudando tanto o meu filho de lugar, talvez eu me esqueça um pouco da imobilidade na qual ele resolveu adentrar. Mãe. Era o mais novo chamando, de novo. Mãe, eu.... Você não pode esperar um pouco, eu per-guntei. Mãe, quem olhar a casa vai pensar que o filho morto é o único filho. Eu ainda vivo aqui. Eu sei que sim, eu sei que sim, eu repeti impaciente. Mas não me culpe por isso, não hoje. Mais tarde, talvez. Hoje não. Guardei os seis porta-retratos na se-gunda gaveta do meu guarda-roupa, sentei na cabeceira da cama e percebi que tudo que eu podia fazer, naquele dia, já havia sido feito. Eu tinha diante de mim todo o tempo necessário para finalmente chorar. A senhora não vai falar para o seu marido

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entrar? Começou a chover. Eu já recolhi os lençóis. O que você quiser, Neuza. Por mim, está tudo certo. Mas não deixe que ele se molhe tanto. Eu sempre achei que as pessoas molhadas de chuva parecem ficar ainda mais desamparadas. O mais novo saiu da cozinha. Ele disse que não consegue co-mer com tanta foto do irmão olhando para ele. Ele disse que a casa ficou parecendo um altar. A senhora ouviu o que eu falei? Não. Mas não quero que você repita.

Filho – Meu pai sempre foi um homem de riso fácil. Não pretendo falar muito dele aqui, mas é interessante que se saiba, e que eu me recorde, do tanto que ele ria. Seu riso constante não era algo que me incomodava muito, embora eu sempre achei que um homem devesse ter outras ocupações na vida além de rir. Ele era capaz de rir da conta que não havia sido paga, do pneu do carro que murchou durante a noite, de não ter acertado um único número na lote-ria. Ele era capaz de rir quando eu saía do

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banheiro, depois de ter ficado quase uma hora lá, e ele sabia fazendo o quê, como todos os pais sabem o que os filhos homens fazem trancados durante tanto tempo no banheiro. E ele riu, também, quando eu levei para casa minha primeira namorada, uma garota de olhos azuis e o rosto bom-bardeado pela acne. Hoje eu acredito que meu principal desejo ao levar aquela garota para casa foi tirar o sorriso do rosto dele, mas ele riu durante todo o tempo em que ela ficou lá – ela era muito engraçada, eu admito – e continuou a rir depois, quando me disse que as espinhas eram coisas da idade e que em poucos meses ela seria uma jovem deslumbrante. Eu voltei a vê-la muito mais tarde, quando ela estava com 20 anos e grávida de três meses. Ela havia mudado muito pouco, principalmente em relação às espinhas: parecia que todas continuavam no mesmo lugar e algumas novas tinham surgido para fazer companhia às antigas. Antes que eu perguntasse como ela estava, ela levou a mão ao rosto e me disse que a

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gravidez costumava provocar uma explosão hormonal no corpo das mulheres e que era muito comum, nesta fase, que surgissem es-pinhas. Beijei seu rosto de leve e me despedi dela desejando boa sorte ao bebê. Não quis saber quem era o pai da criança, nem se ela estava casada. Apesar de tantas espinhas, ou quem sabe até por causa delas, ela foi a primeira garota que eu comi. Eu acreditava que, ao contrário das garotas, os rapazes não precisavam fantasiar tanto assim a sua primeira vez. E uma garota com seios pe-quenos e o rosto coberto de espinhas parecia ser a mulher ideal para ser esquecida no dia seguinte. Mas eu não me esqueci dela justamente porque ela parecia ter a certeza de que não nascera para ocupar por muito tempo a cabeça de um rapaz. Eu não me esqueci dela, na verdade, porque na nossa primeira vez ela se virou para mim e disse sem nenhum constrangimento: você só está comigo porque não sabe como fazer, não é? Se já soubesse, talvez tivesse preferido uma garota mais bonita. Eu acho horrível pensar

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assim, mas também não há mais motivos para esconder aquilo que eu penso: quando uma mulher diz algo deste tipo, na hora ela deixa de ser mulher para se transformar num cãozinho molhado. E, às vezes, é mais difícil abandonar um cãozinho molhado do que uma mulher. Elas sabem disso, por isso são capazes de se transformar em al-guma coisa aparentemente menos digna do que uma mulher. Não me levem a mal: há muito de romantismo em tudo isso que estou dizendo. E muito de amor também. Durante inúmeras outras noites, ela voltou a ser o meu cãozinho molhado e não sei realmente se ela ficava feliz com isso. Mas o importante é que nós ficávamos juntos e, às vezes, para que as pessoas possam ficar juntas, talvez elas tenham mesmo de abrir mão daquilo que costumam chamar de fe-licidade, ou de amor-próprio. Meu irmão é quatro anos mais novo que eu. Mesmo nas famílias de alguma posse, parece ser normal que os irmãos mais jovens herdem algumas coisas dos mais velhos. Assim foi

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com o meu irmão: ele herdou o berço que havia sido meu, alguns brinquedos, vários livros e duas jaquetas. Quando eu levei a ga-rota das espinhas para casa, ele me chamou num canto e perguntou: Mano, quando eu vou poder ficar com ela? Eu perguntei se ele queria. Quando ela servir para mim, ele respondeu, eu posso ficar com ela sem problemas. Acho que esta é uma das ma-neiras que as crianças encontram para dizer que gostam das coisas. No fundo, talvez eu não passasse de uma criança também, mas quando nasce o irmão mais novo, o posto de criança da casa vai automaticamente para as mãos dele. No fundo eu gostava disso, eu gostava de algumas frases do meu irmão. Esta sobre a menina das espinhas é ótima, mas está longe de ser a melhor. A melhor, a mais refinada delas, ele me disse quando tinha sete anos, talvez. Ele me perguntou se eu sabia qual era a coisa mais bacana de ser o segundo filho. Confesso que pensei um pouco, mas respondi que não, que eu não sabia. A coisa mais bacana de ser o se-

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gundo filho, ele disse com uma convicção que eu sempre achei espantosa para sua idade, é que quando a gente nasce os pais já descobriram que os filhos não quebram. Havia uma coisa muito particular no meu irmão: ele nunca esperava pelo resultado de suas frases de efeito. Ele dizia algo como isso que eu acabei de contar e ia embora, sem jamais esperar pela resposta. É provável que ele soubesse, ainda tão novo, que para al-gumas coisas não existem resposta mesmo. Eu nunca perguntei a ele o que ele gostaria de ser na vida. Eu acho que esta é uma daquelas perguntas que devem ficar sem resposta por muito tempo. Eu tinha medo de que ele me respondesse alguma coisa aparentemente lógica e, quando chegasse a minha vez de falar, eu não encontrasse nada de sensato para dizer. Porque nós todos temos uma ideia do que queremos ser, mas no fundo não sabemos como ser, ou como fazer. E talvez tenhamos muito medo de nos transformar naquilo que passamos a vida toda desejando ser. Eu devia ter comprado

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uma guitarra. Ter comprado uma guitar-ra elétrica e ter dado um nome a ela, um nome de mulher. O mesmo nome da garota das espinhas. Muitos amigos compraram uma guitarra e a batizaram com nomes de mulher. A maioria não sabia tocar, elas ficavam abandonadas em cima dos armários ou esquecidas no quartinho da empregada. Eles compravam as guitarras e depois não sabiam o que fazer com elas. Mas isso não é um grande problema, porque com a vida também é um pouco assim: na maior parte do tempo, a gente não sabe muito bem o que fazer com ela.

Mãe – Eu também poderia fazer o mesmo, não poderia? Ao menos em um daqueles dias em que a dor atinge um ponto a partir do qual não existe mais lucidez, eu quero dizer. A corda ainda continuava lá, guardada dentro de uma caixa em um canto da garagem. A viga do quarto também já tinha dado provas de que, se fosse o caso, ela seria capaz de sustentar um segundo corpo, um terceiro,

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e todos os demais corpos que algum dia resolvessem seguir pelo mesmo caminho que meu filho desbravou. Eu confesso que cheguei a pensar nisso, várias vezes. Várias vezes ao longo de um único dia, é bom que se esclareça. Não foi por heroísmo que eu não levei meu gesto adiante. Foi por vergo-nha. Eu conheço bem o efeito que o tempo costuma exercer sobre as tragédias, as gran-des e as pequenas. Eu sei que o motivo da dor de hoje é o mesmo da piada de amanhã. Se eu tivesse resolvido fazer comigo o mes-mo que ele se permitiu fazer com ele, den-tro de alguns meses, ou talvez semanas numa probabilidade menos otimista, eu seria lembrada apenas como aquela que não soube ser original nem na hora de morrer. E talvez as pessoas rissem de mim, como costumam rir, ou se apiedar de maneira indecente, daqueles que em algum momen-to decidiram por dar um basta na dor. Meu marido finalmente parou de se sentar no jardim e agora, confesso, eu sinto um pouco de saudade daquela sua imagem tão corro-

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ída no meio dos lençóis coloridos. No apar-tamento em que vivemos agora, é claro, nem é preciso dizer que não existe jardim aqui. Neuza não veio conosco. Ou melhor, veio, mas apenas no primeiro dia, no dia da mudança. É pequeno aqui, a senhora não vai precisar de mim todos os dias, não. Olha só o tamanho desta cozinha. Mesmo se a senhora pedir para eu vir todos os dias, eu acho que não venho. Eu não quero ficar olhando para as paredes, foi o que ela disse. Eu preferia que você viesse, Neuza, pelo menos nas primeiras semanas. Nós não po-demos mudar tudo na nossa vida de uma maneira tão rápida, algumas coisas do pas-sado nós precisamos manter por perto, é uma forma de preservar a nossa sanidade, eu argumentei. Sabe, a senhora deu de falar de um jeito estranho depois que o mais ve-lho... Continue, Neuza. Ela então conti-nuou. É que eu ouço a senhora falando e não sei dizer se as coisas estão melhorando ou se tudo já foi por água abaixo. A senhora fez bem de dar o quarto maior para o filho

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mais moço. Ele precisava ficar um pouco contente. Eu queria combinar uma coisa com a senhora: eu venho três dias por sema-na. Acho que está bom demais. Se isso for melhor para você, Neuza, está bem. Mas eu posso pagá-la pelo mês todo, como sempre foi. Não precisa, ela disse. A vida mudou tanto para todos vocês que alguma coisinha precisa mudar na minha vida também. Eu também morava na casa, não é certo que em cima de mim não caia nada. A senhora me paga só pelos dias que eu vier, já está bom, ela falou. Decidimos assim, então. Neuza passaria a vir três dias por semana. Com o tempo, acredito eu, talvez Neuza perceba que eu não deixei o quarto maior para o filho mais novo: os dois quartos são absolutamente do mesmo tamanho. Na última tarde em que passou sentado no quintal daquela casa, meu marido me per-guntou se nós precisávamos mesmo nos mudar para um apartamento de apenas dois quartos. Nós sempre moramos em casas tão grandes, dois quartos agora, não sei, me

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parece tudo tão apertado, ele sussurrou. Eu não quis dizer a ele que nossas vidas haviam encolhido tanto que agora já era possível acomodá-las em um apartamento de dois quartos. É muito importante para mim, eu disse a ele, que a partir de agora eu passe a viver em um lugar pequeno. Ao perceberem que não há um lugar para elas, quem sabe as lembranças não fiquem do lado de fora. Nas últimas semanas eu comecei a pensar muito em uma prima que mora na praia. Nós crescemos juntas. Ela sempre foi, eu não queria dizer exatamente isso, mas me sinto obrigada: ela sempre foi feia. Quando estávamos entrando na adolescência, eu desconfiava que ela não seria feliz. Ela sem-pre tinha sido uma criança feia, e me des-culpem os que pensam o contrário, mas é absolutamente natural que existam crianças feias. Elas existem, aos milhares. E minha prima era apenas mais uma delas. Não há mal algum nisso. O único inconveniente se dá quando a adolescência chega e apaga os poucos resquícios daquela graça propiciada

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pela infância, transformando aquela criança feia, mas com um pouco de sorte encanta-dora, em uma adolescente apenas feia, na qual não acreditamos mais que o tempo possa vir a operar um pequeno milagre es-tético. Mas esta minha prima contrariou todas as minhas expectativas e se tornou uma pessoa feliz. Ela se casou com um homem bom e, indiferente a toda tragédia que pode resultar disso, da presença de um homem bom por perto, eu quero dizer, ela comprou uma casa na praia, abriu um tipo qualquer de escolinha, talvez um jardim de infância, ao lado da oficina mecânica que seu marido bom montou e, todas as ma-nhãs, os dois saíam juntos de casa para se sujar: ele de graxa e ela, das tintas que as crianças usavam para pintar suas casinhas em papel sulfite e suas folhas em papel cre-pom. À noite, voltavam juntos também: ele invariavelmente com o macacão preto e pegajoso, e ela com manchas coloridas es-palhadas pelas roupas e pelos cabelos, como se diariamente sua cabeça conduzisse um

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arco-íris para dentro da casinha de cômodos abafados que eles levaram 15 anos para pa-gar. Poderíamos pagar em até 25 anos, ela me dizia. Mas conseguimos pagar em 15. Eu tenho uma vida boa. Que bom, eu pensava. Eu gostava de visitá-la, em momento algum eu senti inveja da vida que ela levava, mas nunca pude calar aquela dúvida inconve-niente que me indagava como uma pessoa tão desprovida de atrativos pudesse sentir tamanha paz. Eu voltei a pensar na minha prima nos últimos dias porque o marido dela morreu. O filho mais velho dela vai cuidar da oficina enquanto não surgir uma solução melhor. Ela não pensa em se mudar de lá e também não quer fechar sua escoli-nha, embora ela já tivesse, há algum tempo, contratado duas professoras jovens, nem aparecesse mais por lá com tanta frequên-cia. Quando ela me ligou para contar tudo isso, eu senti o quanto ela estava se esforçan-do para aparentar mais força e resignação do que na verdade tinha. Quem já foi visi-tado por este tipo de dor, reconhece facil-

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mente seus pares. Em pouco tempo as coi-sas vão se ajeitar, eu disse. Eu sei que é algo estúpido de se dizer, mas foi a única coisa em que consegui pensar naquela hora, tal-vez por ter sido, também, a única coisa que ouvi das mais diferentes bocas quando meu filho morreu. As coisas já estão-se ajeitando, ela respondeu. Só que... E então ela inter-rompeu. Só que o quê, eu perguntei. Acho que não há nada que você possa me dizer que vá me surpreender. Só que, ela então continuou, agora eu sinto mais frio. Não é estranho isso? Eu moro na praia e sinto frio todos os dias. Desde que o meu marido se foi, eu passei a dormir com cobertor, mesmo naquelas noites em que você sabe que o mundo inteiro está ardendo de calor. Eu já estou um pouco conformada com a morte dele, ela continuou. Mas por algum motivo o frio não passa. Eu estava enganada de novo: minha prima conseguiu me surpre-ender mais uma vez. Eu combinei de passar uma semana com ela. Mas, depois do que ela me disse, acho melhor esperar o verão

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chegar, talvez seja mais apropriado. Eu sei que vai ser uma semana boa. Ela não vai me obrigar a falar nada do que eu não queira. Ela foi uma das poucas pessoas que nunca tentou se mostrar compreensiva e discreta no início para, logo depois, formular algum tipo de pergunta que começava sempre as-sim: Viu, mas você não estava observando nada de estranho no comportamento dele? Não, eu não estava. Não reparou se as com-panhias com que ele andava... Não, não reparei. Mas assim, nos últimos tempos, ele não parecia mais triste, mais melancólico? Nos últimos tempos todos nós, sem exceção, parecemos mais tristes e melancólicos. Eu sei, mas... Não, você não sabe. Definitiva-mente você não sabe. Ninguém sabe. E não tente, por favor, fazer com que eu abandone esta certeza: ninguém sabe. E eu ficaria muito feliz se nós pudéssemos mudar de assunto.

Filho – Uma manhã eu entrei no quarto dos meus pais. Era um dia de faxina, daqueles

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dias em que, por maior que seja a casa, você não consegue encontrar um só cômodo que não lhe dê a sensação de que uma gangue acabou de passar por ali, em busca de joias, dólares, um cofre escondido e de outras coi-sas que nós também não temos. Aquele foi um dia assim. Então eu vi a cama dos meus pais revirada, travesseiros sem fronhas joga-dos em um canto e o colchão sem lençóis. Às vezes as pessoas costumam dizer que a imagem mais marcante da vida delas é algo como o nascimento de um filho, um pôr do sol em alguma paisagem maravilhosa, uma ceia de Natal e todas as outras versões possíveis para estes mesmos temas. Comigo, não. A cena mais marcante da minha vida foi a imagem do colchão sem lençóis dos meus pais. Eu me aproximei dele e pude ver, como se estivesse em um sítio arqueo-lógico, os contornos dos corpos do meu pai e da minha mãe impressos pacientemente naquele colchão ao longo de anos e anos de noites bem-dormidas ou talvez nem tanto. Anos e anos de noites estáticas que produ-

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ziram naquele colchão um ligeiro afunda-mento na altura dos ombros do meu pai, e um contorno mais suave no que seriam as pernas da minha mãe – a minha mãe que, descobri naquele dia, dormia de pernas dobradas. Eis aí a deformação causada por anos de amor, eu pensei. Imaginei o quanto de intimidade, cumplicidade ou renúncia deveria haver entre duas pessoas a ponto de elas permitirem que o tempo esculpisse os seus corpos em um colchão de molas cujo marca na etiqueta o mesmo tempo se encar-regou de apagar. Se alguém em um futuro distante observasse aquele colchão, pensei comigo, provavelmente diria que era assim, suavemente e aos pares, que as pessoas da nossa época deixavam-se morrer. Como eu sempre me senti constrangido diante dos ca-rinhos familiares, naquela manhã eu abracei o que havia dos meus pais naquele colchão e, pela primeira e única vez na vida, bati com carinho no ombro do meu pai e disse a ele: calma, tudo vai dar certo. Não podemos desesperar. Já arrumei o seu quarto, meni-

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no, pode voltar para lá. Com estas palavras, ditas sem qualquer cerimônia, a empregada destruiu meu pequeno sítio arqueológico, que logo seria encoberto por lençóis limpos e coloridos, à espera do visitante do futuro e do seu terrível diagnóstico. Voltei para o meu quarto e desfiz a cama que a mesma empregada havia acabado de arrumar. Pu-xei os lençóis presos com elásticos, joguei também o travesseiro no chão e procurei demoradamente pelas minhas digitais em um colchão liso e impessoal. Não, eu ainda não havia deixado minha marca neste mun-do. Me pareceu tudo tão cedo e ao mesmo tempo tão urgente e, de certa forma, tão assustadoramente vazio. Por que as pessoas insistem em nos dar agendas de presente? Eu sei que a intenção delas deve ser boa, mas as agendas são o presente mais angus-tiante que alguém pode ganhar. Sempre que nos dão uma agenda, as pessoas nos dão também um ano inteiro e vazio que teremos a obrigação de preencher de qualquer que seja a forma. Eu digo isso porque ganhei

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várias agendas ao longo de uma vida sem tantos compromissos. Mas nenhuma delas se comparou à última que eu recebi – ela trazia o calendário dos dois anos seguintes. Um próximo janeiro e um janeiro mais distante. Um fevereiro separado do outro fevereiro por um amontoado de páginas em branco e eu me perguntava: eu terei mesmo de encontrar alguma coisa que preencha tudo isso? Talvez seja exagero dizer que era um presente que eu não queria – afinal, eu poderia consumir todas aquelas páginas com intermináveis rabiscos e anotações dis-pensáveis. Mas a agenda de dois anos me acenava com alguma coisa para a qual eu não queria olhar, um futuro que, naquele momento, não me dizia respeito. E então, gostou?, me perguntaram. Sim. Mais ou menos. Sim ou mais ou menos? Não sei, é como uma passagem aérea para um lugar que eu nunca tive vontade de conhecer. Como assim? É só uma agenda! Eu sei, mas não existe nada mais terrível do que isso neste momento. Por favor, não se chateie.

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A capa é tão linda. É couro, não é? Não? Eu jurei que era. Engraçado, a gente se engana com as coisas até quando consegue pousar as mãos sobre elas. Mas não fique triste, eu não gostaria mais dela ainda que fosse couro. O problema, neste caso, não é a capa. Mas você não podia adivinhar isso. Se perguntassem para mim, eu também não teria a resposta. Não, por favor, não fique assim. Você não tem culpa de nada. Eu também não sei do que estou falando. É que... eu só acho que... em alguns casos, o silêncio consegue ainda ser pior. É uma agenda muito linda, sim. Pena que haja tanto tempo dentro dela, não é mesmo? Guardei a agenda na segunda gaveta da minha escrivaninha, já sabendo que dentro de alguns dias eu a daria de presente ao meu irmão. Ao contrário de mim, ele gosta delas. Em suas mãos, elas vão engordando com o passar dos meses, não com anotações, mas com recortes, com fotos, panfletos e toda uma quinquilharia da qual, segundo ele mesmo, algum dia é capaz de se sentir

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saudades. É só você que pensa que agenda serve só para lembrar a gente de tudo que a gente precisa fazer. Eu, não. Eu olho para elas e fico feliz com tudo aquilo que eu já fiz, ele me falou. Eu sei que eu já disse isso duas vezes, mas acho que o fato ainda me-rece um reforço: meu irmão é quatro anos mais novo que eu e eu nunca tive a chance de lhe perguntar se foi ali, na nossa casa, que ele tinha aprendido a ser como era. Tão diferente de mim.

Mãe – O médico não queria que eu lesse as bulas dos medicamentos. Não que ele me proibisse de ler, ele apenas insistia que aqui-lo não me traria benefício algum. É inútil ler tudo isso, ele me dizia. A senhora vai perder o seu tempo para, no final, perceber que não adiantou de nada. Mas eu tenho tanto tempo, doutor. Faça algo mais produ-tivo, então. Alguma coisa que lhe dê mais prazer do que ler as bulas. Deixe-as de lado. Mas eu não conseguia. As bulas desperta-

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vam em mim, todas elas, o mesmo interes-se que um belo romance – mas um roman-ce escrito em alguma língua estranha: eu desconfiava que algo de muito importante estava sendo dito ali, embora eu não com-preendesse. Doutor, eu ligava para o médi-co três, quatro vezes por semana. Doutor, a bula diz que os estudos in vitro demonstra-ram que o remédio que o senhor me recei-tou não possui praticamente qualquer afi-nidade por receptores opiáceos, benzodia-zepínicos fencicildina ou do ácido N-metil-aspártico. O senhor poderia me explicar o que isso quer dizer? Eu acho que me senti-ria mais segura se soubesse o que isso real-mente significa. Mas por quê?, ele me per-guntava, cada vez mais impaciente. Por que a senhora quer entender tudo isso? É tão simples, doutor. É o que eu estou tentando dizer para o senhor desde o primeiro dia em que vim aqui. É porque eu quero entender, só isso. Eu quero entender, e ficaria muito grata se o senhor pudesse me ajudar. Por maior que seja a nossa disposição em con-

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trário, nós precisamos acreditar em alguma coisa. Eu não gosto do outono. O outono, para mim, sempre foi uma não estação, um período de entressafra, um momento em que a natureza tenta nos dizer que ela não sabe se administrar com muita eficiência também. Não é muito quente, nem muito frio, não é muito claro, nem muito escuro. Eu sinto como se a natureza nos dissesse, a nós, os seres humanos: tenham calma, eu estou tentando me ajustar. Mas isso leva algum tempo, alguns meses talvez. En-quanto isso, os dias terão de ser um pouco mais curtos. O que está por vir, eu temo, talvez seja um pouco pior. E foi num dia curto de outono que eu decidi entrar na garagem e vasculhar no meio de tantas caixas de papelão cheias de revistas que eu nunca li e que também nunca tive coragem de jogar fora, acreditando sempre que, em algum momento, elas me seriam útil em alguma coisa. A corda estava lá. Era impres-são minha ou as cordas também envelhe-cem, também ressecam como a nossa pele,

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também se tornam menos maleáveis e me-nos suscetíveis ao toque? Eu não pretendia fazer nada com ela. Eu já disse isso a vocês. E já tinha dito isso ao meu marido também, ele não precisava se preocupar tanto comi-go. Não precisava voltar para casa mais cedo, alguns dias da semana, com a descul-pa de que tinha pouco trabalho quando, na verdade, queria apenas saber se eu continu-ava viva. Agimos assim com os filhos peque-nos, os bebês eu digo. Nós sabemos que eles não têm como fugir do berço, mas paramos o que estamos fazendo a todo instante para dar uma olhada neles, para nos certificar de que eles não praticaram o impossível: esca-par dali. Eu não vou a lugar algum, você sabe disso, eu disse ao meu marido quando ele me surpreendeu com a corda amarrada em torno do meu corpo. Você está- se arra-nhando, ele me disse sem sair do lugar. Vamos, me dê a corda. Eu quero ficar mais um pouco assim, apertada, segura. Eu não quero mais fugir de mim, só isso. Veja o seu braço, ele me apontou. Você já está toda

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esfolada. Vamos jogar esta corda fora, jun-tos, ele me disse. Não, eu repliquei. Eu quero que você a corte, eu quero que você a corte agora, assim, com ela toda enrolada em mim. Ela, esta corda, é o cordão umbi-lical da minha morte. Eu quero que você a corte e me faça respirar novamente. Por maior que seja a nossa disposição em con-trário, eu repito agora, nós precisamos acre-ditar em alguma coisa. E eu quero acreditar no senhor, doutor. Só no senhor. Meu ma-rido me trouxe aqui, até este consultório tão longe, porque ele começou a dizer que nós precisamos acreditar em alguma coisa. Me ajude a entender as bulas, eu as leio, eu as leio tanto e com tanta atenção, mas eu sinto que não é de mim que elas estão fa-lando. O que eu devo fazer para acreditar nelas se elas falam de uma dor que eu não reconheço? Bom, o médico tornava a me dizer com um pouco menos de paciência desta vez, é o máximo que elas conseguem se aproximar da senhora. É preciso um tempo de adaptação, logo vocês duas vão

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estar falando a mesma língua. Eu e elas, o senhor quer dizer? Isso, a senhora e as bu-las. Já que a senhora não desiste delas, eu espero que ao menos algum dia a senhora possa compreendê-las. Não foi ontem, não. Nem no mês passado, nem mesmo no ano passado. Foi há quase sete anos. O tempo é ótimo para apagar algumas coisas, e perver-so o bastante para aumentar a nitidez de outras. Depois que o filho mais novo se casou, eu olhei para o meu marido e disse: agora nós vamos precisar de assunto. Ou este apartamento, que você sempre recla-mou de ser tão pequeno, vai-se tornar gran-de demais para nós dois. Sobre o que nós iremos conversar ao longo dos anos que virão? A vida vai se encarregar disso, ele respondeu. Sossegue. Naquela noite, quan-do voltamos da festa do casamento do filho mais novo, eu retirei todos os retratos do mais velho das paredes. Eu os embalei em uma folha de papel de seda, apenas uma volta de papel, mas algo me dizia que eu não voltaria a desembrulhá-los tão cedo. O

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filho mais novo se casou com uma japone-sa. Linda. Tão silenciosa e tão elegante nos movimentos que às vezes eu julgava que ele tivesse me arranjado uma gata como nora. Esta moça vai fazê-lo feliz, meu filho. Não me pergunte o porquê. Talvez por ela ser tão...tão... Tão o quê, minha mãe? Com o tempo é você quem vai descobrir isso. Mas as chances são grandes. Agora eu tenho um neto. Eu me tornei avó cedo, todos os ami-gos disseram. Minha prima que ainda vive na praia não mencionou a palavra avó ne-nhuma vez quando telefonou para me cumprimentar. A vida sempre se renova, não há nada que termine para sempre, ela me disse. Quando eu fui visitá-lo no berçá-rio pela primeira vez, o meu neto, eu pre-cisei que uma enfermeira me apontasse quem ele era. Traga-o mais para junto do vidro, eu pedi. Eu quero vê-lo um pouco mais de perto. Depois de algum tempo em que deve ter notado uma expressão de feli-cidade nos meus olhos, meu marido aper-tou forte a minha mão e perguntou se esta-

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va tudo bem. Olhe bem para ele, o seu neto, eu pedi ao meu marido. Ele não se parece com nenhum de nós. Temos, enfim, alguma coisa para comemorar. É estranho ver que um filho seu já gerou um filho dele e que este garotinho japonês possa vir a ter a cor dos meus olhos, um sorriso semelhan-te ao meu – eu sinto como se minha própria história começasse a se desdobrar indepen-dentemente da minha vontade. É como se algo em mim tivesse escapado irreversivel-mente. Claro que ele se parece com a gen-te, meu marido corrigiu. Olhe só o narizi-nho dele. É você ali. Gelei. As crianças mudam muito rapidamente, você vai ver, eu disse. Sinalizei para que a enfermeira o conduzisse de volta ao berço. Você vai co-meçar a me chamar de avô de hoje em diante, meu marido perguntou. Não sei, você gostaria? Também não sei, eu precisa-ria de um tempo para me acostumar com isso. Mas a ideia, assim de cara, me agrada, ele falou. Se você quiser eu o chamo, mas só quando estivermos sozinhos, pelo menos

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agora no início. Meu marido colocou o braço em volta do meu ombro e me convi-dou para um café. Você está pensando em alguma coisa, eu lhe perguntei. Estávamos caminhando pelo corredor da maternidade, deslizando nossos pés por aquele piso tão liso, evitando fazer qualquer ruído, tão si-lenciosos como sempre foi a nossa nora que havia acabado de se tornar mãe. Eu imagi-no no que você esteja pensando, eu disse. Não estou pensando em nada muito espe-cífico, ele falou. É que, por um momento apenas, me passou pela cabeça a ideia de como tudo poderia ser tão mais completo se... Eu sei, eu interrompi. Escolhemos a mesa mais próxima da janela. Dois cafés, meu marido pediu. O dela com um pouco de leite. Não, eu corrigi. Hoje eu vou que-rer o meu puro, por favor. A garçonete se afastou. Ficamos os dois em silêncio, com as mãos dele sobre as minhas, em cima da mesa cujo tampo imitava o mármore. E eu pude comprovar mais uma vez o quanto as mãos dele sempre foram bonitas. Você gos-

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taria de fazer uma viagem, ele me pergun-tou. Viagem? Agora? Por que isso, eu res-pondi. Foi uma coisa que me passou pela cabeça, eu acho que eu gostaria de fazer uma viagem com você. Não sei, nosso neto acabou de nascer, o filho mais novo talvez precise da gente, nossa nora, você sabe, é o primeiro filho dela... tão sem experiência. Não precisa ser agora, talvez daqui uns dois ou três meses, podemos perguntar ao mais novo se ele vai precisar de nós. Você sabe que ele vai dizer que não, eu disse. Mas podemos perguntar, de qualquer forma, meu marido falou. Claro, podemos. A gar-çonete voltou com o nosso café, um peda-cinho de chocolate em forma de flor acom-panhando cada xícara. Se nós decidirmos mesmo viajar, eu disse, eu não serei obriga-da a tirar fotografias, serei? Ele sorriu mais com os olhos do que com a boca, há muito tempo que ele não sorria desta forma tão doce, talvez um marido tão bom também. Vamos fazer um brinde, ele propôs. Mas com café, eu perguntei. É, com café, está

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mais do que na hora de a gente sair um pouquinho da linha. Levantamos nossas xícaras, que produziram um barulhinho abafado quando se tocaram de leve. Olhei para a garçonete, que nos observava sorrin-do por detrás do balcão. Sorri para ela tam-bém e tomei um gole do café que nem es-tava assim tão bom e nem assim tão quente. Ao observar a garçonete eu senti, depois de muitos anos, que alguém olhava para mim e talvez pensasse: eis aí uma mulher feliz. Talvez ela estivesse um pouco certa. Talvez eu aceitasse fazer aquela viagem. Talvez, mas muito remotamente, talvez eu até acei-tasse fazer algumas fotos caso fôssemos mes-mo viajar. Mas isso eu não posso prometer para ninguém.

Filho – Eu comprei um ovo de páscoa tão fora de época. Não porque eu goste deles, eu comprei mais por pena de vê-los ali, tão deslocados em uma gôndola de supermer-cado naquela época do ano em que a Pás-coa já havia ficado tão para trás. Comprei

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porque talvez eu estivesse querendo fazer companhia a eles. Ali, naquela gôndola, tão fora do seu contexto e do seu propósito, eles pareciam um bando colorido e indefeso de passarinhos caídos do ninho. Quantos deles eu precisaria comer para que meu rosto fi-casse tão cheio de espinhas como o daquela menina que foi a minha primeira? Naquela hora, eu senti uma vontade tão grande de que ela estivesse ali comigo. Vamos trepar no meio destes ovos de páscoa esquecidos, eu a convidaria. Vamos camuflar os nossos corpos com estas embalagens coloridas e barulhentas? Se nós trepássemos aqui, nin-guém prestaria atenção às suas espinhas e esta gôndola seria o seu ninho e o meu, dois pardaizinhos enfim recolhidos. Escolhi um só, o maior deles, e o levei para casa. Daqui a pouco vai ser manhã de segunda-feira. Nos últimos dias eu comecei a sentir mui-tas saudades, não sei exatamente do quê. Talvez nem fosse saudade o que eu andava sentindo, era mais como a falta de algo que eu não conhecia. Eu comecei a olhar

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para as coisas, para todas as coisas, com os olhos de um cientista, à espera de alguma revelação que pudesse mudar algum rumo previamente traçado. E todos os contornos foram se confundindo, e todas as texturas foram se tornando mais ásperas ao meu toque. E tudo parecia querer se despedir de mim aos poucos. Ou talvez fosse o contrá-rio. E já resta tão pouco a dizer. Eu gostaria que meu pai continuasse a sorrir, que meu irmão continuasse a ter respostas espirituo-sas e que, agora já nesta manhã de segunda-feira, eu tivesse algo de relevante a dizer para minha mãe. Ou sobre ela. Eu preciso voltar para o meu quarto. Há alguma coisa lá que eu preciso buscar, embora eu não saiba exatamente o que é. Não se trata de egoísmo ou maldade: eu, sinceramente, não sei o que foi que eu deixei no meu quarto e que preciso recuperar com tanta urgência. É apenas algo que não tem nome. Se eu conhecesse, se eu fosse íntimo de sua essência, eu garanto que compartilharia com vocês, como o último e meu maior

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segredo. Eu me limitei, até agora, a falar das coisas sobre as quais eu tive um certo domínio. Talvez todas elas tenham sido irrelevantes, mas foram, também, insupor-tavelmente honestas. E como eu sempre tive medo de ser leviano, me calo a partir de agora. A única certeza é esta: eu preciso ir. Nesta manhã de segunda-feira, eu sinto como se tivesse novamente sete anos. Eu sou apenas um garoto indo acampar pela primeira vez.

Filho sai de cena. Mãe o acompanha com o olhar.

Mãe – E foi assim que tudo se deu. Eu gosta-ria de ter uma outra história para contar a vocês, mas esta é a história possível, a histó-ria que eu tenho e que me cabe. Agora eu também preciso ir. A minha prima, a que mora na praia, vem passar o dia comigo. Ela disse que queria que nós três, eu, ela e meu netinho japonês fôssemos tomar sorvete na Liberdade. Mas por que isso, eu perguntei.

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Porque agora eu já não sinto mais tanto frio, ela me disse. Tenho certeza de que será uma tarde maravilhosa. Obrigado a todos.

Fim

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Coleção Primeiras Obras

1. Otávio Martins2. Gabriela Mellão3. Ivam Cabral4. Sérgio Roveri5. Vera de Sá6. Sergio Mello7. Rudifran Pompeu8. Marcos Damaceno9. Lucianno Maza10. Dramamix 2007

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Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (lei n. 10.994, de 14.12.2004)Proibida a reprodução total ou parcial sem a autorização prévia dos editoresDireitos reservados e protegidos (lei n. 9.610, de 19.02.1998)

Impresso no Brasil 2010

Imprensa Oficial do Estado de São PauloRua da Mooca 1.921 Mooca03103-902 São Paulo sp Brasilsac 0800 0123 [email protected]@imprensaoficial.com.brwww.imprensaoficial.com.br

© Sérgio Roveri, 2009

Crédito fotográfico - Caio Guatelli

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação(Biblioteca da Imprensa Oficial)

Roveri, SérgioA coleira de Bóris; Não contém glúten; Ensaio para um adeus inesperado /

Sérgio Roveri [Organização de Ivam Cabral]. – São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009. 200 p. – (Coleção Primeiras Obras, 4)

isbn 978-85-7060-800-0Apoio: Grupo Satyros Literatura

Associação dos Artistas Amigos da Praça

1. Teatro – Brasil 2. Literatura – Teatro 3. Textos literários i. Roveri, Sérgio ii. Título iii. Série.

cdd 808.2

Índice para catálogo sistemático:1. Textos literários 808.2

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formato 105 x 155 mm

tipologia Electra

papel miolo Chamois Fine Dunas 85 g/m2

papel capa Cartão Supremo 250 g/m2

número de páginas 200

tiragem 1500

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Clodoaldo Pelissioni

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Lucia Maria Dal Medico

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Dante Pascoal Corradini

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Governo do Estado de São Paulo

governador

José Serra

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