o ultimo luar peça sergio roveri

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1 O ÚLTIMO LUAR Texto de Sérgio Roveri ([email protected]) PERSONAGENS Tenente Brühl O chefe da operação. Em torno de 30 anos, formação militar sólida e apegado à hierarquia Soldado Ágata Subordinada de Brühl. Por volta de 25 anos, treinada para captar sentimentos humanos Daniel (ou Cidadão Ômega) Mesma faixa etária dos militares, arredio e solitário. CENÁRIO: a casa de Daniel, um ambiente sombrio que lembra uma fortificação. O cômodo em que se passa a ação está repleto de objetos antigos, todos espalhados pelo chão, o que transmite um clima de abandono e desleixo. Muitos livros apoiados nas paredes. Dois quadros (ou pôsteres) de personalidades do século 20 sugiro Che Guevara e Marilyn Monroe, esta na pose clássica em que o vento do metrô levanta seu vestido branco. Ao menos uma grande janela na parede do fundo. O acúmulo de objetos pode dificultar a movimentação dos personagens. CENA 1 Batidas fortes e pesadas na porta da casa. Silêncio. Novas batidas. Silêncio. Batidas ainda mais fortes. A porta, grande e pesada, vem abaixo, levantando poeira no cenário. Tenente Brühl e soldado Ágata entram em cena, caminhando cautelosamente sobre a porta caída. Estão vestidos com roupas militares, armados e com máscaras. Examinam o local cuidadosamente, com as armas em punho. Observam pela janela. Vasculham cada canto do aposento. TENENTE Nada. SOLDADO (olhando pela janela) Não pode ter ido muito longe, senhor. As patrulhas continuam lá fora. TENENTE As patrulhas não estão ocupadas só com ele. E tudo indica que não estamos lidando com um sujeito comum.

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TENENTE Nada. SOLDADO (olhando pela janela) Não pode ter ido muito longe, senhor. As patrulhas continuam lá fora. Texto de Sérgio Roveri PERSONAGENS Daniel (ou Cidadão Ômega) Mesma faixa etária dos militares, arredio e solitário. CENA 1 ([email protected]) 1

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Page 1: O ULTIMO LUAR peça Sergio Roveri

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O ÚLTIMO LUAR

Texto de Sérgio Roveri ([email protected])

PERSONAGENS Tenente Brühl O chefe da operação. Em torno de 30 anos, formação militar sólida e apegado à hierarquia Soldado Ágata Subordinada de Brühl. Por volta de 25 anos, treinada para captar sentimentos humanos Daniel (ou Cidadão Ômega) Mesma faixa etária dos militares, arredio e solitário. CENÁRIO: a casa de Daniel, um ambiente sombrio que lembra uma fortificação. O cômodo em que se passa a ação está repleto de objetos antigos, todos espalhados pelo chão, o que transmite um clima de abandono e desleixo. Muitos livros apoiados nas paredes. Dois quadros (ou pôsteres) de personalidades do século 20 – sugiro Che Guevara e Marilyn Monroe, esta na pose clássica em que o vento do metrô levanta seu vestido branco. Ao menos uma grande janela na parede do fundo. O acúmulo de objetos pode dificultar a movimentação dos personagens. CENA 1 Batidas fortes e pesadas na porta da casa. Silêncio. Novas batidas. Silêncio. Batidas ainda mais fortes. A porta, grande e pesada, vem abaixo, levantando poeira no cenário. Tenente Brühl e soldado Ágata entram em cena, caminhando cautelosamente sobre a porta caída. Estão vestidos com roupas militares, armados e com máscaras. Examinam o local cuidadosamente, com as armas em punho. Observam pela janela. Vasculham cada canto do aposento. TENENTE Nada. SOLDADO (olhando pela janela) Não pode ter ido muito longe, senhor. As patrulhas continuam lá fora. TENENTE As patrulhas não estão ocupadas só com ele. E tudo indica que não estamos lidando com um sujeito comum.

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SOLDADO Mas os soldados sabem que com ele a atenção deve ser redobrada, senhor. TENENTE (retirando a máscara) Que tipo de lugar é esse? SOLDADO O senhor tem certeza de que não é arriscado ficar sem a máscara? Não seria mais prudente solicitar uma medição antes? TENENTE Sem riscos, por enquanto. Soldado Ágata retira a máscara. Os dois se movem com curiosidade pelo ambiente. Soldado apanha um livro da pilha. SOLDADO Eu nunca havia tocado em um, senhor. Eles pesam mais do que eu imaginava. TENENTE Deixe isso aí, soldado. Não sabemos até que ponto é seguro mexer nestas coisas. SOLDADO Mas, tenente Brühl, olhe. Eles são diferentes do que nos ensinaram. As palavras não se movem. Por mais que eu mexa neles, nenhuma palavra sai do lugar. Tenente aproxima-se e apanha o livro das mãos do soldado. Olha para ele com curiosidade. Folheia-o rapidamente e depois o sacode com força. SOLDADO O senhor vê? Nada acontece. Parece que está tudo morto dentro deles. TENENTE (devolvendo o livro ao seu lugar) Isso agora não é prioridade. SOLDADO Mas há vários deles, tenente. Centenas. Eles ainda existem, então. Devem ter resistido. O senhor quer que eu inspecione um a um? TENENTE Afaste-se deles, soldado. SOLDADO Todos estes objetos... O senhor acha que eles são algum tipo de artefato que poderia ser usado contra nós? TENENTE

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Ao que parece, a única coisa que poderia ser usada contra nós é o dono deles. Ou quem guardou tudo isso aqui. Soldado Ágata continua a caminhar, curiosa, pelo ambiente. Pára diante de um dos pôsteres na parede. Retira um objeto da cintura, uma espécie de leitor ótico, e o aponta para o quadro. Faz com que a luz o percorra de alto a baixo. Repete o mesmo procedimento no segundo pôster. SOLDADO Não há registro deles, senhor. TENENTE Devem estar mortos. SOLDADO (olhando o equipamento) Eles também não aparecem no registro de mortos. TENENTE Mortos em outra época, arquivos apagados. SOLDADO Se o senhor estiver certo, então eles não podem ser cultuados. O senhor não acharia melhor destruí-los antes que alguém da patrulha chegue aqui? TENENTE Deixe estas coisas onde estão por enquanto. Não viemos aqui atrás de relíquias, soldado. SOLDADO Desculpas, senhor. Eu pensei que talvez fosse arriscado se a patrulha encontrasse tudo isso aqui. Fui treinada para reportar imediatamente aos meus superiores qualquer objeto estranho encontrado nas buscas. TENENTE Ninguém da patrulha vai subir até que eu ordene. SOLDADO Entendido, senhor. TENENTE Como ele se mantém aqui? SOLDADO Até o momento não localizei nenhum tipo de provisão. Nem mesmo cápsulas de água ou sinal de alguma outra ração. TENENTE Alguém que guardou isso por tanto tempo não vai querer se desfazer de tudo tão facilmente. Ele deve voltar.

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Soldado Ágata fecha os olhos e faz um gesto afirmativo com a cabeça. SOLDADO Senhor, a patrulha pergunta se deve continuar aqui ou se pode prosseguir nas buscas. TENENTE Diga que eles podem ir. Soldado volta a fechar os olhos para se comunicar mentalmente com a patrulha. SOLDADO Senhor, eles têm medo de deixá-lo desprotegido aqui. Eles pedem autorização para manter pelo menos alguns homens na frente do prédio. TENENTE Libere todos, soldado. Informe que não preciso de ninguém no momento. SOLDADO (de olhos fechados) Sim, senhor. TENENTE (caminhando até a janela) Você sente alguma pena, soldado? SOLDADO Perdão, senhor? TENENTE Sente alguma pena desta região e de tudo isso que está aqui quando pensa no escudo? SOLDADO O escudo é a nossa principal garantia de sobrevivência, senhor. No momento, nada parece ser mais importante que ele. TENENTE É o que você realmente acharia, se não fosse obrigado a dizer isso? SOLDADO Nós fomos treinados para defender a construção do escudo acima de qualquer outra coisa, senhor. Ainda que muita coisa precise ser destruída para dar lugar a ele. É isso que devemos dizer sempre. Tenente se aproxima e aponta o dedo para o peito do soldado, em cuja farda há uma etiqueta com seu nome impresso. TENENTE Ágata. Um belo nome, um pouco antigo, na verdade. Quem escolheu, sua mãe?

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SOLDADO Eu não conheci minha mãe, senhor. TENENTE Você é dos que foram criados nas... SOLDADO (interrompendo) Sim, senhor. TENENTE Talvez você deva se considerar uma pessoa de sorte, soldado. As colônias estão cada vez mais aptas na criação de crianças, não estão? SOLDADO Eu não tenho do que me queixar, senhor. TENENTE De quantas patrulhas você já tomou parte, soldado? SOLDADO De desocupação esta é a primeira, senhor. Eu vim transferida do controle de fronteiras. TENENTE De qual delas? SOLDADO A do deserto. TENENTE Controle de fronteiras... Interessante... Transferência rara, esta sua. Você é o primeiro soldado vindo de lá a integrar minhas tropas. Deve imaginar que o movimento por aqui é um pouco maior do que o das fronteiras, principalmente as do deserto. SOLDADO Eu já notei isso, senhor. TENENTE (caminhando pelo aposento) Qual foi seu ano de conversão, soldado? SOLDADO 2072, senhor. TENENTE Um bom ano, pouco trabalho para as tropas. Teve sorte. SOLDADO

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Obrigado, senhor. TENENTE Acredita nas histórias dos que foram convertidos antes? SOLDADO Para ser sincera, não tive muito contato com eles, senhor. Nas fronteiras, éramos todos mais jovens. TENENTE Mas as histórias sempre correm, mesmo entre os mais jovens, não? Não é preciso ter contato com os veteranos para saber o que eles ainda contam. SOLDADO Eu sei, senhor. Mas é que... TENENTE Prossiga, soldado. SOLDADO Mas é que eu prefiro não conhecer as histórias de perto, se o senhor me permite. TENENTE Tem medo delas, soldado? SOLDADO Medo? Jamais, senhor. Mas foram tantos os que não voltaram da Grande Guerra e eu não sei se... Me desculpe, tenente. Eu não sei se posso falar desta maneira com o senhor. Eu estou no primeiro estágio da conversão e os diálogos com os superiores até agora não são permitidos, o senhor sabe. TENENTE Está com medo de estar sendo testado, soldado? SOLDADO Não, senhor. Mas eu sei que dirigir a palavra aos superiores no primeiro estágio da conversão significa quebra de regulamento sujeita a punição. TENENTE E se recusar a responder as perguntas feitas por um superior, isso significa o quê? SOLDADO Também significa quebra de regulamento, senhor. TENENTE Mais ou menos grave? SOLDADO Gravidade absoluta.

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TENENTE Então, prossiga. SOLDADO O que o senhor deseja de mim? TENENTE Por que você não acredita nas histórias dos que foram convertidos antes? SOLDADO Senhor, eu... TENENTE Tem certeza de que não está com medo, soldado? SOLDADO Tenho certeza, senhor. TENENTE (elevando a voz) Então prossiga, soldado. Agora é uma ordem. SOLDADO (em posição de sentido) Se eu acreditasse em todas as histórias...eu acho que a conversão seria mais difícil. TENENTE (irônico) Muito bem, ponto de vista interessante. Então os que se converteram antes de você, antes de 2072, podem ser considerados mentirosos? SOLDADO Eu não quis dizer isso, senhor. TENENTE O que você quis dizer, então, soldado? Vamos. Temos algum tempo. A patrulha não vai retornar tão cedo. SOLDADO Talvez tudo que eles contem seja verdade.... TENENTE (gritando) Talvez? SOLDADO É provável que seja, senhor. Tudo pode ser verdade nestes tempos. TENENTE Você saberia me dizer quantos soldados foram convertidos em 2072?

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SOLDADO Pouco mais de um milhão, senhor. TENENTE Então para vocês, para esses pouco mais de um milhão de soldados, os que foram convertidos antes não passam de um exército de mentirosos? SOLDADO Eu também não quis dizer isso, senhor. Em nenhum momento eu pensei em dizer isso. Eu estou falando apenas de mim.. TENENTE Apenas de mim? Como assim? Você defende a individualidade, soldado? Defende que o ponto de vista de um único cidadão, ainda mais sendo ele um soldado em primeiro ano de conversão, deve se sobrepor ao ponto de vista da maioria? SOLDADO Senhor, eu sei que a individualidade foi banida. Mas eu falo... TENENTE E quantos mais haveria iguais a você? Quantos não acreditam no passado? SOLDADO Todos nós acreditamos no passado, senhor. Eu apenas fiquei confusa neste ambiente. Eu nunca havia visto estes objetos antes e nem imagens dos mortos de uma outra época, eu pensei que nada disso mais existisse. Eu não esperava encontrar nada disso logo na minha primeira patrulha. Queira me desculpar, senhor. TENENTE (mais paciente) Eu fui convertido em 2063, soldado, primeira fase da Grande Guerra. Nisso você acredita? SOLDADO Sim, senhor. TENENTE E eu posso garantir, como testemunha visual se isso for de alguma ajuda, que as histórias que os soldados mais antigos contam, as quais você parece não fazer questão de ouvir, não chegam sequer perto do tamanho da verdade e nem aos seus horrores. Nisso você é capaz de acreditar ou não? SOLDADO Acredito, senhor. TENENTE Acredita por que eu sou seu superior ou simplesmente acredita? SOLDADO

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Eu acredito no meu íntimo, senhor. TENENTE E a partir de agora vai espalhar para os seus companheiros de conversão esta sua nova fé? SOLDADO Eu sinto que não poderia, senhor. Eu não poderia dizer para eles que conversei diretamente com um oficial, eles não acreditariam em mim. E acreditariam ainda menos no que eu viesse a dizer. Talvez eu deva me calar sobre isso, senhor. TENENTE Desde que seu silêncio jamais seja o mesmo, soldado. Pode destruir. SOLDADO Perdão, senhor? TENENTE (apontando para os quadros) Os dois ícones, pode destruir. SOLDADO Devo comunicar a existência deles antes, senhor? TENENTE Destrua agora. SOLDADO Sim, senhor. Soldado começa a retirar os quadros da parede e pára no meio da operação. TENENTE O que foi, soldado? SOLDADO Pressinto medo, senhor. TENENTE (empunhando uma arma) A que distância? SOLDADO Se aproximando, senhor. Devagar. (Apontando a porta) Nesta direção. TENENTE O que mais? SOLDADO Apenas medo.

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Tenente aponta a arma para a entrada do aposento, onde a porta foi derrubada. Daniel surge pela porta, com um embrulho nas mãos. DANIEL (para Soldado) Por favor, não são meus. TENENTE Coloque isso no chão, agora. SOLDADO Ele não está armado, senhor. TENENTE No chão, agora. Daniel abaixa-se e deixa o pacote no chão. DANIEL As imagens, por favor, não destrua. De tudo isso que está aqui, era o que ele mais prezava. Tenente faz um sinal para soldado recolocar os quadros na parede. DANIEL Obrigado. TENENTE Quem são eles? DANIEL Eu não sei. Tenente olha para soldado. SOLDADO Ele mente, senhor. Tenente volta a empunhar a arma. DANIEL São inofensivos, senhor. Estão mortos há muito tempo. Não significam mais nada. Ninguém nunca mais irá cultuá-los. TENENTE Então destrua-os, soldado. DANIEL (apressado) Por favor, não. Eu prometi que tomaria conta deles até o fim. Deles e dos livros. Embora...quanto aos livros eu sei que ele já não tinha mais esperanças. Ele sabia

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que era apenas uma questão de tempo. Se vocês quiserem destruir, eu não tenho mesmo como impedir. TENENTE Quem mais vive aqui? DANIEL Somente eu. TENENTE (para Soldado) O pacote. O que há dentro dele? Soldado abre o pacote, fecha-o e olha para Daniel. TENENTE E então? SOLDADO Dois ratos, senhor. Já mortos. DANIEL Não restou mais nada aqui. A única coisa que resiste a tudo isso é a fome. TENENTE Por que você não se apresentou no prazo? Ninguém está comendo ratos entre nós. DANIEL Vocês nunca disseram para onde nós seríamos levados. Eu sei que muitos removidos... TENENTE Continue. DANIEL Muitos removidos nunca mais foram vistos. TENENTE Porque foram enviados para um lugar melhor. DANIEL E...mesmo falar com eles... nunca mais ninguém conseguiu falar com eles. TENENTE Qualquer um sabe o quanto as comunicações se tornaram difíceis após a Grande Guerra. Estamos trabalhando nisso, em breve voltaremos a nos comunicar. SOLDADO Senhor, posso solicitar a volta da patrulha, agora que ele já se apresentou?

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TENENTE Ainda não. Onde mais há insubordinados? DANIEL Seus soldados estão lá fora, vasculhando tudo. Talvez eles possam informar melhor que eu. TENENTE Suponhamos que eu prefira ouvir de você. DANIEL Há muitos dias que não vejo ninguém. Eu acho que todos já se foram. TENENTE As patrulhas vão continuar as buscas. Eu não confio em você. Em cada palavra sua eu percebo um indício de insubordinação. Por que você ainda insiste em contar o tempo em dias? DANIEL Hábito, senhor. Eu nunca aprendi o novo método. Não me ensinaram. TENENTE Você nunca foi enviado às colônias? DANIEL Não. TENENTE A quem você prometeu tomar conta das imagens? DANIEL Isso é importante, senhor? SOLDADO Tudo o que o senhor disser ao tenente é importante. DANIEL (para Soldado) Ele podia perguntar diretamente a você. A resposta seria mais confiável, não seria? SOLDADO Tenho certeza de que o tenente prefere ouvir do senhor. Se o senhor colaborar, eu não preciso usar meu treinamento. A justiça reserva um tratamento melhor aos prisioneiros que colaboram sem a nossa intervenção. O senhor tem alguns direitos, e eu posso dizer quais são, se o tenente me permitir. DANIEL Eu sou um prisioneiro?

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TENENTE Ele é um prisioneiro, soldado? SOLDADO Desculpas, senhor. Eu não quis interferir no interrogatório. TENENTE Nem ele é um prisioneiro e nem isso é um interrogatório. Ainda. DANIEL O senhor sabe, e este soldado também sabe, que eu não posso ser acusado de nada. TENENTE O senhor não se apresentou dentro do prazo para a remoção. DANIEL O convite não dizia que era obrigatório. TENENTE Convite? Desde quando uma operação deste porte se faz por meio de convite? Não era um convite, era uma convocação. E estava implícito que era obrigatório. Todas as remoções são obrigatórias. Famílias inteiras se apresentaram. A convocação dizia que toda a área deveria ser esvaziada para a construção do escudo. Isso significa que nenhum aposento, nem o mais mísero dos quartos, poderia permanecer habitado após o prazo final da convocação. Tudo isso vai desaparecer em questão de dias. O simples fato de continuar vivendo aqui é uma acusação contra o senhor. Por isso eu quero saber: quantos mais restaram? DANIEL Eu já disse para o senhor que não vejo ninguém por aqui há muitos di... há muito tempo. Se sobrou mais alguém, deve andar pelas sombras, como eu. Eu sei que o senhor não precisa das minhas respostas, basta minha presença aqui para o senhor conseguir saber tudo que quer. Por isso o senhor trouxe esta aberração. TENENTE Ela é um soldado, apenas isso. E ela pode ficar fora da nossa conversa, a menos que o senhor se recuse a cooperar. DANIEL Eu sei que diante de vocês não existe mais a opção entre querer colaborar ou não. Desde que vocês criaram este tipo de... este tipo de soldado, se é assim que o senhor quer que ela seja chamada. Tudo isto aqui é inútil, não é? TENENTE É o senhor quem está dizendo. DANIEL

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Ela tem de estar presente? TENENTE (para Soldado) Soldado, eu não gostaria que estes ratos começassem a cheirar mal. SOLDADO Claro, senhor. O senhor tem certeza de que não acharia mais seguro se eu... TENENTE Eu acho que já estou começando a sentir um cheiro estranho, soldado. SOLDADO Pois não, senhor. Soldado apanha o pacote e sai de cena. TENENTE E então? DANIEL Eu nunca tinha visto um de verdade, às vezes eles parecem humanos. TENENTE Eles são humanos. DANIEL Nenhum leitor de mentes é humano. Todos sabem que eles são o pior tipo de soldado que já foi criado. TENENTE Um mal necessário, na sua opinião? DANIEL Só um mal. TENENTE E ser mau elimina a humanidade que há neles? DANIEL Não existe humanidade no que eles fazem. Eles podem levar uma pessoa à loucura, o senhor sabe disso. TENENTE Você então é um defensor dos métodos antigos para extrair a verdade de um inimigo? DANIEL Eu acredito que não sou seu inimigo, senhor. Além do mais, eu não conheço ninguém que tenha passado pelos métodos antigos. Mas já vi gente que ficou

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frente a frente com um leitor de mentes. E a única coisa que eu posso dizer é que não é humano o que eles fazem. TENENTE Talvez você possa me ajudar a esclarecer uma coisa. DANIEL Eu já disse para o senhor. Eu não tenho opção. TENENTE Por que há tantos exageros nas histórias que circulam entre vocês? Eu também poderia fazer um relatório aumentando consideravelmente as histórias que vou ouvir aqui, não poderia? DANIEL Como assim, exageros? TENENTE Tudo o que vocês dizem a respeito das patrulhas, das remoções, das guerras, da falta de contato com aqueles que precisaram ser transferidos...Tudo isso não é uma coleção de exageros? Isso mesmo que você acabou de dizer a respeito deste soldado é o quê? Silêncio TENENTE Quem vivia aqui antes? Silêncio. TENENTE Um pouco de colaboração de sua parte não iria nos fazer mal. Seria interessante, talvez até mais para você do que para mim, se eu pudesse ter algumas respostas antes que o soldado voltasse. Por exemplo: uma explicação sobre todas estas coisas banidas que ainda continuam aqui. DANIEL Nada disso é meu. Quando eu cheguei aqui, tudo já estava exatamente assim. Eu só ajudei a conservar, nada mais que isso. O que vai acontecer comigo? TENENTE Nesta parte do jogo, quem faz as perguntas sou eu. Soldado retorna ao aposento. Está com o rosto sangrando. SOLDADO Eram pelo menos dois, tenente. Um gritou e, quando eu me virei, veio a pedra. Crianças, praticamente.

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Daniel corre até a janela e observa a rua. Vira-se com ar triunfante. DANIEL Acho que não vai ser tão fácil para vocês. TENENTE Por que eram crianças? DANIEL Não. Porque não eram as únicas. No fundo, eu acho que vocês sabem que em todos os lugares sempre vai haver alguém disposto a barrar vocês, mesmo que seja só com pedras nas mãos. TENENTE O bairro vai ser eliminado em alguns dias. E isso ninguém vai impedir. Se ainda houver gente aqui no dia da explosão, mesmo que sejam crianças, paciência. O que estamos fazendo aqui, com você, já vai além da nossa obrigação. Basta este soldado chamar que a patrulha estará aqui em alguns minutos e o tratamento que você vai receber dela, eu garanto, é muito diferente deste aqui. DANIEL (irônico) Este soldado deve estar avariado. Uma boa pedrada na cabeça e pronto, a grande invenção de vocês foi por terra. (Para o Soldado) – Seu chip deve ter caído lá fora, não? Se você quiser, eu posso te ajudar a procurá-lo... Soldado avança sobre Daniel e dá uma joelhada em seu peito. Daniel cai. Soldado segura sua cabeça e põe em prática sua habilidade.] SOLDADO Vocês são dois grandes filhos da puta... TENENTE Quem eram as crianças que atacaram o soldado? Silêncio. Soldado mostra esforço. SOLDADO Não está sendo tão simples tenente. Ele mostra um tipo de resistência que eu nunca conheci. TENENTE (mais forte) Quem eram as crianças que atacaram o soldado? SOLDADO “Elas...elas estão sendo treinadas. Há dezenas delas, centenas. A região não foi esvaziada. Há um esconderijo.” TENENTE Onde?

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Daniel se debate, soldado parece perder o controle da situação. SOLDADO Tenente, preciso parar, senhor. TENENTE Onde fica este esconderijo? SOLDADO “Uma saída de metrô, uma galeria desativada... Uma saída cimentada, uma porta lateral, uma espécie de buraco.” Tenente, por favor, eu preciso parar. Nós vamos perdê-lo... TENENTE Só mais um pouco. Quem é o líder deles? SOLDADO Ele está apagando, senhor. Eu insisto, nós vamos perdê-lo. Soldado solta Daniel e os dois caem, exaustos. TENENTE Eu só precisava de um nome, soldado. SOLDADO Talvez mais tarde, senhor. A resistência dele é descomunal. Um pouco mais e talvez ele não resistisse. TENENTE Você sabe o que significa isso, não sabe? SOLDADO O quê, senhor? TENENTE Isso que acabou de acontecer aqui. SOLDADO Foi uma dificuldade momentânea, senhor. Mais tarde eu conseguirei as informações que o senhor precisa. Foi o prisioneiro mais resistente que eu já encontrei. TENENTE Eles já encontraram mecanismos para anular a ação de vocês. Dentro da corporação sempre houve quem afirmasse que era uma questão de tempo. Aconteceu mais cedo do que eu previa. SOLDADO

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Eu tenho certeza de que foi um fato isolado, senhor. Não há humano que resista ao nosso treinamento. Eu estou ferida e ele é resistente demais, só isso. Eu garanto que não há nada com o que se preocupar, senhor. TENENTE Se isso voltar a acontecer, soldado, serei obrigado a reportar o fato. Os leitores de mente são um dos nossos projetos mais caros. Se o que aconteceu aqui se tornar comum, a ala da corporação que exige a extinção de vocês ganhará força. Pense nisso e se esforce um pouco mais da próxima vez. Eu, pessoalmente, tenho medo do que possa vir a acontecer com vocês. SOLDADO Ele está despertando, senhor. Tenente passa a mão no sangue no rosto do solado e depois esfrega na boca de Daniel. TENENTE Que gosto tem isso? Daniel tosse. TENENTE Que gosto tem isso, rapaz? DANIEL Sangue. TENENTE Você me deve mais uma, soldado. Agora ele sabe que você é humano. CENA DOIS Daniel continua caído. Tenente tem um disco de vinil nas mãos. Soldado folheia um livro. TENENTE (exibindo o furo do vinil para Daniel) Foi um disparo? DANIEL Não. TENENTE Serve para alguma coisa? DANIEL O senhor vai quebrar também?

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TENENTE Se eu não souber para que serve, sim. DANIEL Para nada. Tenente joga o disco de lado. Olha para soldado. TENENTE Alguma coisa reveladora? SOLDADO Talvez, senhor. Há algo aqui que me chamou a atenção. Se o senhor me permitir... TENENTE Prossiga. SOLDADO (lendo) “Oh, meu Deus...” TENENTE Deus? SOLDADO É o que diz aqui, senhor. TENENTE Que Deus? SOLDADO Eles não dizem qual, só o chamam assim. TENENTE Continue. SOLDADO “Oh, meu Deus. O tempo passará e nós partiremos para sempre... Seremos esquecidos... E serão esquecidos nossos rostos, nossa voz. Não se saberá mais se éramos muitos, mas, para aqueles que viverão depois de nós, nossos sofrimentos se transformarão em alegria... A felicidade e a paz reinarão sobre a Terra e, para esses que estão vivendo agora, haverá uma palavra boa e bênçãos. Viveremos”. TENENTE (apanhando o livro do Soldado) Onde está isso? SOLDADO Bem aqui, senhor.

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TENENTE “Não se saberá mais se éramos muitos...” (Para Daniel) – O que isso quer dizer? Há uma mensagem cifrada nisso aqui, não há? Vocês são ou não são muitos? DANIEL Como eu vou saber? TENENTE (olhando para a capa do livro) As Três Irmãs... quem são elas? Você as conhece? Daniel dá de ombros. SOLDADO Se o senhor me permite, eu acredito que seja alguma coisa para nos confundir. Mesmo entre os rebeldes, há muito tempo que não temos mais notícias sobre casos de irmãos. Ainda mais três. E do mesmo sexo... TENENTE (apontando para os livros) Eu sei, nada do que vimos aqui até agora faz sentido. Quanto aos livros, é tudo assim, impreciso e vazio? Ninguém vai sentir falta disso. Quando a patrulha voltar, talvez seja melhor destruir tudo isso. Daniel observa o tenente por alguns instantes. Depois levanta-se com dificuldade e caminha até a janela. DANIEL O senhor consegue enxergar daí aquele prédio amarelo? Tenente caminha até a janela. DANIEL Está vendo, aquele no fim da rua? Era a confeitaria do velho Kendor, o confeiteiro mais famoso de quando eu era criança. Dizem que ele fazia os melhores biscoitos de creme da cidade. Vinha gente de todos os cantos atrás dos biscoitos do velho Kendor, alguns até corriam o risco de atravessar a fronteira, dizem. Tudo por causa de alguns biscoitos de creme. O senhor pode acreditar nisso? Alguém disposto a cruzar uma fronteira só para conseguir alguns biscoitos? Quando chegou a grande fome, o velho Kendor não teve mais como produzir seus biscoitos. E então ele começou a passar os seus dias sentado sozinho, imóvel atrás do balcão, olhando sabe-se lá para onde. Até que um dia ele reuniu a família e mandou chamar alguns poucos amigos. Quando todos chegaram lá, ele avisou que voltaria a oferecer seus biscoitos, pelo menos era o que falavam no bairro. Somente 12 pessoas foram convidadas para aquele pequeno banquete...e o velho Kendor presenteou cada uma delas com apenas um biscoito. E pediu para que elas saboreassem muito devagar, com os olhos fechados e o pensamento nos velhos tempos, nos tempos antes da grande fome. Enquanto os convidados comiam, todos de olhos fechados, o velho Kendor deve ter caminhado devagar para a cozinha da confeitaria. E então ouviu-se um tiro. Ao lado do corpo do velho,

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os convidados encontraram um bilhete que dizia apenas isso. “Ontem, depois de três dias sem comer, meu filho mais moço apareceu aqui com um rato. Não há mais lugar para um confeiteiro neste mundo”. TENENTE E então? DANIEL Eles descobriram, depois, que o velho Kendor tinha usado leite humano para fazer seus últimos biscoitos. TENENTE Ele usou leite humano? DANIEL Pode ser. Nunca ninguém conseguiu comprovar. Nem sei se as mulheres ainda tinham leite naquela época. Eu cresci ouvindo esta história. Os convidados disseram que aqueles eram os melhores biscoitos que eles tinham comido na vida. Depois que levaram o corpo do velho Kendor embora, alguns ainda se ajoelharam para lambar as migalhas que tinham caído no chão. Ouve-se um grande estrondo. Daniel, que estava próximo da janela, recua assustado. TENENTE Começaram. Agora é questão de horas. DANIEL O que o senhor está dizendo? SOLDADO As explosões. Eles anteciparam os planos. Deve haver uma razão muito séria para isso. Daniel tenta correr para a porta. É contido pelo tenente. DANIEL Vocês não podem fazer isso. TENENTE Por que não? Nós avisamos que faríamos. Demos tempo para que cada um de vocês abandonasse suas casas e procurasse as equipes de remoção. DANIEL Mas muitos ficaram, vocês não podem explodir tudo isso assim, ainda há crianças no bairro. Tenente, eu preciso sair daqui. TENENTE

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Nossa prioridade era acomodar quem saiu, não cuidar da integridade de quem desobedeceu e preferiu ficar. SOLDADO Você mesmo disse que não vê humanos há muito tempo por aqui. Se isso for verdade, não há motivo aparente para preocupações, não é? DANIEL Olhe para a sua cabeça, soldado. Quem você acha que fez isso, hein? As pedras caíram do céu? Novo barulho de explosão. DANIEL Por favor, tenente. Eu preciso sair. Tenente solta Daniel. TENENTE Pode ir. Daniel fica imóvel no lugar. TENENTE E então? A porta é aquela ali. Ou era, pelo menos. DANIEL O senhor vai me matar pelas costas? TENENTE Que tipo de oficial você pensa que eu sou? DANIEL (apontando para o Soldado) Ela me mataria, então. SOLDADO A menos que você represente uma ameaça física e real para mim ou para o tenente, eu não tenho autorização para matá-lo. DANIEL Vocês não entendem. Eu preciso sair daqui, há muitas vidas inocentes em jogo. Pessoas que... que nunca viram a luz do sol, eu preciso retirá-las de lá. TENENTE (deixando sua arma de lado) Não há nada que o impeça de ir. Soldado, coloque sua arma na mesa. Se ele quer ter certeza de que não será morto pelas costas, vamos colaborar. (Soldado coloca arma na mesa) – Mais tranqüilo, agora? Daniel sai correndo pela porta. Tenente pega o rádio que traz à cintura.

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TENENTE Eu quero que os tiros cheguem o mais perto possível dele, mas não o atinjam. Brinquem à vontade, mas sem machucá-lo. Ele ainda é muito importante para mim. Rajadas de metralhadoras são ouvidas do lado de fora. TENENTE (indo até a janela) Venha ver isso, soldado. Se ele gosta tanto de ratos, que viva alguns minutos como um. SOLDADO O senhor tem certeza de que não vão matá-lo? Alguns soldados perderam a família nas mãos dos rebeldes, senhor. Eles são movidos muito mais pela vingança do que por qualquer outra coisa. TENENTE Não estes meus soldados. SOLDADO Eu aprendi um ditado na época das fronteiras, senhor. Ele dizia que a vingança é a maior inimiga da boa pontaria. TENENTE A ele não farão nada. Todos sabem que não se trata de um rebelde qualquer. As pessoas que ele está tentando ajudar já devem estar mortas a esta hora. SOLDADO Mas então...? TENENTE Então eu quero apenas um pouco de diversão. Que mal há nisso? Há quanto tempo você não se diverte, soldado? Observe como meus soldados são caprichosos nos tiros. Quando não existe mais graça em matar, precisamos aprender a nos divertir de outras maneiras. Deixar alguns inimigos vivos é uma delas. SOLDADO Por um momento eu pensei que... TENENTE Você sente dificuldade em terminar as frases, soldado? SOLDADO Me desculpe, senhor. Eu pensei que o senhor tivesse se apiedado dele. TENENTE

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Eu não vou dizer que sinto alguma simpatia por você, soldado. Mas sua maneira de pensar às vezes me agrada. Confesso que me preocupa também, mas na maioria das vezes me agrada. Você acredita que eu poderia ter sentido pena dele? Por quê? Por ele viver aqui, no meio de todo este lixo? Por ele ter me contado esta história ridícula dos biscoites de leite humano? SOLDADO Eu sei que as histórias dele não podem ser levadas a sério. É só isso que os rebeldes fazem: contar histórias que não servem para nada, a não ser para tirar a nossa concentração. TENENTE Qual o motivo da pena, então? SOLDADO Por ele ser tão, se o senhor me permite dizer, indefeso. Tenente puxa uma cadeira, senta-se e encara o soldado. TENENTE A cada nova frase você parece se comprometer ainda mais. Eu sei de muitos soldados que, por muito menos que isso, foram levados aos interrogatórios. Indefeso... então é assim que você o vê, indefeso? Teria coragem de entregar sua arma nas mãos deles? SOLDADO Não, senhor. TENENTE Então, a palavra para ele é desarmado, e não indefeso. Mesmo um soldado em primeiro ano de conversão devia saber a imensa diferença que existe entre estes dois termos. SOLDADO É que, me desculpe mais uma vez, tenente, eu acredito que por ter vivido tanto aqui, ele se tornou parecido com tudo isso – alguma coisa que talvez não sirva para mais nada e só esteja à espera do momento de ser eliminado, porque o tempo para ele já acabou. Tenente levanta-se da cadeira e volta a circular pelo ambiente. TENENTE Vamos supor, apenas supor, que você pudesse ficar com algumas dessas coisas aqui. O que você escolheria? SOLDADO Nada, senhor. São itens proibidos. Eu não poderia fazer nada com eles. TENENTE

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Ora, não me decepcione mais uma vez. Quantos de nós já tivemos a chance de ter tudo isso ao alcance da mão? O que você escolheria soldado? Os livros? (Apanha o disco de vinil) – Este círculo furado? O quê, me diga? SOLDADO (apontando para o pôster de Marilyn) Ela. TENENTE Ela? Logo isso? SOLDADO Desde o momento em que chegamos aqui que eu me pergunto se ela realmente existiu ou se é apenas uma holografia como aquelas que podemos ver nos arquivos da corporação. TENENTE E o que você acha? Existiu ou não? SOLDADO (passando a mão pelo quadro) Realmente não sei, senhor. Este uniforme estranho que ela está usando, tantas partes do corpo à mostra, como se não tivesse mais medo da radiação. Quando o Cidadão Omega saiu daqui para tentar ajudar os outros rebeldes... eu...eu fiquei pensando se entre eles haveria alguém como ela. É possível que ela tenha sido um deles, um dos mortos de antes. Mas é difícil acreditar que eles tenham sido assim em algum momento, o senhor não acha? Isso me parece tão pouco prático. É quase primitivo. Por outro lado, ela parece estar feliz. TENENTE Feliz? Foi isso que ouvi? SOLDADO É só uma impressão, senhor. Novas rajadas de metralhadora lá fora. TENENTE Já se tornou enfadonho, não? (Apanha o rádio) – Mostrem a ele o caminho de volta. Tenente também se aproxima e agora cada um está de um lado do quadro. TENENTE As guerras são eficientes para dar conta dos vivos, soldado. O problema é o que fazer depois, com os fantasmas. Tem algo a me dizer antes que o nosso rato volte? SOLDADO Não, senhor.

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TENENTE Melhor assim. SOLDADO Tenente, eles estão mesmo mortos? TENENTE Quem? SOLDADO Os rebeldes que ele saiu daqui para ajudar? TENENTE Vamos dizer que eles tombaram em combate. É uma maneira mais digna de sair do jogo, não é? SOLDADO As explosões...São nos esconderijos, não são? Daniel entra correndo e exausto. TENENTE Deve haver algo muito interessante lá fora. Vocês voltam de lá com uma expressão tão curiosa. Sem falar de tantos respingos de sangue pelo corpo. Olhe para ele, soldado. Seus amiguinhos com as pedras estão inspirados hoje. DANIEL O senhor sabe muito bem que não foram pedras. TENENTE Não, não sei. O que foi? DANIEL (apontando para o soldado) O senhor pode ser pior que ele, não é? É isso que quis me dizer? TENENTE (irônico) Há algo para se comer nesta casa? Além daquela sua especialidade, eu quero dizer... Você não está com fome, soldado? SOLDADO Não senhor, eu estou bem. TENENTE Que pena! Tenente volta a apanhar a arma, coloca-a na cintura e caminha mais um pouco pelo ambiente. TENENTE

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Pensei em algo melhor que comida. Soldado, tire as calças. SOLDADO Perdão, senhor. TENENTE Tire as calças. SOLDADO Senhor, me desculpe, mas eu não vejo sentido... TENENTE Desde quando um soldado tem de ver sentido nas coisas? Não me faça repetir a ordem, soldado. Soldado tira as calças vagarosamente e fica com elas nas mãos. TENENTE Pode colocá-las ali, em cima da mesa. Bem dobradas, é claro. As roupas são da corporação, não se esqueça disso. Soldado deixa as calças sobre a mesa. TENENTE Agora venha cá, ao lado desta figura. (Soldado coloca-se ao lado do quadro de Marilyn). Isso. Agora imite-a. SOLDADO Senhor, talvez não seja o caso de fazer isso. TENENTE Imite-a, soldado. Em detalhes, em todos os detalhes. Eu quero ver uma ao lado da outra e não saber quem é quem. Soldado começa timidamente a imitar a pose de Marilyn. TENENTE Não está bom, soldado. Nada bom. Talvez seja melhor tirar a jaqueta também. Soldado começa a tirar a jaqueta. TENENTE Não desta maneira, soldado. Não quero que você tire a jaqueta como se estivesse no alojamento. Eu quero que você tire a jaqueta como se estivesse no seu quarto. Você deve ter um, não tem? Um quarto só seu? SOLDADO Não senhor, não tenho.

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TENENTE Imagine que tivesse, então. Imagine que tivesse um quarto só seu e que após um dia de patrulha ao ar livre, um dia em que a temperatura tivesse atingido os 48 graus, você pudesse voltar para o seu quarto. Sozinha e feliz por ter ajudado a prender, ou melhor, a matar dois rebeldes, e soubesse que seria recompensada por isso. Como você tiraria a jaqueta nesta noite, soldado? Hein? É desta maneira que eu quero que você se dispa agora. Com a sensação de que, quando fosse vestir esta jaqueta de novo, ela teria uma medalha reluzente no peito. Pode começar. Soldado, com a humilhação estampada no rosto, tenta despir a jaqueta de forma mais provocadora. TENENTE Está no caminho, soldado. Mas sem tanta pressa. Calma, você tem a noite toda pela frente e está sozinha no seu quarto, lembre-se disso. (Para Daniel) – Você, venha até aqui. Como eles te chamam? DANIEL Daniel TENENTE Daniel... Você quer saber como nós o chamamos? Cidadão Ômega. Tem mais autoridade, não tem? Gosta de ser chamado assim? DANIEL Não sei. TENENTE Mas não se sente importante por saber que todo um setor da corporação trata você por Cidadão Ômega? Você sabe o que significa? Cidadão Ômega? DANIEL Não. TENENTE Ela é o soldado Ágata, em seu primeiro ano de conversão. Um soldado altamente recomendado, transferido das fronteiras, com uma habilidade especial que você...bem, que você pôde testar por si próprio. Sente-se aqui, ao meu lado. Daniel senta-se ao lado do tenente e os dois ficam observando o soldado, que neste momento reproduz com muita semelhança a pose de Marilyn. TENENTE Eu quero que você me responda uma coisa, Daniel. Daniel ou Cidadão Ômega? O que você prefere? É uma chance rara esta que estou lhe dando: a de ser chamado pelo nome que mais lhe agrada. DANIEL

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Por que o senhor está fazendo isso? TENENTE Por que eu quero uma resposta sua. Está pronto? DANIEL Sim TENENTE Ela parece feliz? Daniel demora a responder. TENENTE É uma pergunta muito simples, Daniel. Ela parece estar feliz? DANIEL Não, senhor. Não me parece nada feliz. TENENTE Foi a mesma impressão que eu tive, desde o início. Eu só queria tirar a prova. Se existe uma coisa que realmente me incomoda, Daniel, algo que realmente me tira do sério, é constatar que as pessoas insistem em ver a felicidade onde ela não existe. Soldado Ágata, pode se vestir. E lembre-se de que estamos em uma operação em que o uniforme se faz extremamente necessário. Depressa, vamos. Soldado veste-se com rapidez. TENENTE Enxugue este rosto, soldado. As lágrimas de um militar devem estar reservadas para casos muito mais nobres. SOLDADO Sim, senhor. DANIEL Eles podiam ter me matado lá fora... TENENTE Com muito mais facilidade do que você imagina. DANIEL E, no entanto, só se divertiram comigo. TENENTE E nós aqui em cima também, não é soldado? Talvez ela um pouco menos. Mas por um momento foi muito bom. Depois, como quase tudo, ficou sem graça. DANIEL

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Aqueles caminhões que estavam saindo do bairro. O senhor sabe o que havia dentro deles, não sabe? TENENTE Você viu algum caminhão da janela, soldado? SOLDADO Não, senhor. TENENTE Pronto, pergunta respondida. DANIEL Eu tenho certeza do que havia dentro daqueles caminhões. Com eles os seus soldados não estavam apenas se divertindo, não é? O que foi que eles fizeram contra vocês? Vocês os mataram só por que eles também não acreditavam nesta bobagem de escudo? TENENTE Sabe que eu percebi que existe uma grande afinidade entre vocês dois? É, entre você e o soldado Ágata. Vocês são capazes de revelar mais sobre vocês mesmos quando fazem as perguntas, e não quando respondem o que eu peço. Agora mesmo, o que você acabou de dizer: eles também não acreditavam no escudo. Por que este também? Quem mais não acredita no escudo? DANIEL Os que permaneceram aqui, todos eles. Ninguém jamais acreditou que o escudo fosse necessário. E, para vocês, foi mais fácil acabar com eles, eliminá-los, em vez de provar a necessidade do escudo. TENENTE Acabar com eles, eliminá-los... por que estes termos agora? Você viu alguém sendo...eliminado? DANIEL Os caminhões estavam carregados de mortos. Eu tenho certeza disso. Eram os mesmos caminhões que vinham aqui durante a grande fome, para levar os corpos embora. Qualquer um que já tenha visto um caminhão desses jamais vai se esquecer da sua imagem. A morte já não é suficientemente horrível para vocês? Ela precisa ser transportada num caminhão daqueles? TENENTE Vamos imaginar que você realmente tenha visto alguns caminhões... DANIEL Eu os vi. TENENTE

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Calma. Que você realmente tenha visto alguns caminhões saindo do bairro. E que estes caminhões estivessem... veja bem, nós continuamos a imaginar, estivessem carregados de mortos. Qual é a pergunta mais importante que você deveria ter se feito? DANIEL Eu já fiz esta pergunta. E o senhor não me respondeu. Por que é que eles foram eliminados? TENENTE Esta é uma questão secundária. Se você viu um caminhão cheio de mortos deixando o bairro, a pergunta mais lógica a ser feita é esta: por que é que eu não estou lá com eles? Por que é que eu fui poupado? Você não acha que é uma questão muito mais interessante? DANIEL Se eu pensar desta maneira, a única conclusão a que eu vou chegar é a de que eu deveria estar lá, no meio deles agora. Teria sido mais corajoso de minha parte. Eu só não estou lá por um mero acaso. TENENTE Não subestime a corporação desta maneira. Nós não chegamos aonde chegamos para depender do acaso. Soldado, você gostaria de fazer as honras da casa? SOLDADO O senhor quer dizer...tudo, tenente? TENENTE O que você julgar necessário. SOLDADO Sim, senhor. Cidadão Ômega, também chamado de O Guardião dos Mortos. Registro número... TENENTE Sem estes detalhes, soldado. SOLDADO Resistente à convocação para abandonar o bairro. Sem experiência de vida nas colônias. Monitoramento não acusa hábitos coletivos. Sem registro de pais ou filhos. Comportamento arredio e despadronizado. Simpático à causa dos rebeldes sem no entanto compartilhar de seus refúgios. Sem notícia de acasalamento por métodos laboratoriais ou primitivos. Movimentações noturnas e hábitos alimentares condenáveis. Sem registro de filiação partidária ou solicitação de passes para locomoção. Diagnóstico nível cinco. DANIEL O que é isso?

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TENENTE Ora, é o que nós também queremos saber. Isso é você. SOLDADO Diagnóstico nível cinco: risco indesejável e possivelmente daninho de atividades solitárias. Recomenda-se cautela máxima no monitoramento e eventual intervenção física das forças da corporação. Prioridade máxima na captura do indivíduo com vida e garantia de sua integridade física enquanto for conveniente à corporação. Descartá-lo na seqüência e eliminar os registros que possam vir a comprovar sua existência. TENENTE (aplaudindo) Parabéns, soldado. Há muito tempo que eu não via o regulamento sendo dito com tanta competência e convicção. Você não fez a pergunta, Daniel, Guardião dos Mortos, mas nós oferecemos a resposta: é por isso que você não estava lá, no caminhão junto com eles. A corporação tem mais apreço pelas pessoas solitárias. Há uma lenda de que elas costumam ser mais perigosas. Você concorda com isso? CENA 3

Soldado Ágata está sentada em uma cadeira de frente para o público. Tenente Brühl, à janela, observa a lua, que também deve ser visível para a platéia. TENENTE Não está sentindo falta do barulho das explosões, soldado? SOLDADO O senhor confia nele, não confia, tenente? TENENTE Com o tempo, você também vai aprender que o barulho das explosões, por mais incômodo e assustador que seja no início, é o ruído da vida em movimento. Não é mais possível seguir adiante sem elas. Se não fossem pelas explosões, ainda estaríamos vivendo nas cavernas. O silêncio, sim, é sinal de que algo vai mal... O que você me perguntou? SOLDADO Se o senhor confia nele TENENTE Por que a pergunta? Você não confia? SOLDADO Acho que não o suficiente para deixá-lo sozinho. TENENTE

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Entre todos os lugares do mundo em que ele poderia estar nesta noite, este ainda é o mais seguro. Ele sabe disso. SOLDADO É que...talvez ele não queira ser o último, senhor. Quando ele se der conta de que não restou mais nada, de que não há mais nenhum insubordinado no bairro... TENENTE ...é para cá que ele vai voltar. SOLDADO Tenho medo de que ele se auto-elimine. TENENTE Quem tinha vocação para fazer isso, já fez muito antes. Os que chegaram até aqui é porque acreditam em alguma coisa que talvez nem a corporação saiba o que é. Qual vai ser a próxima lua, soldado? Soldado levanta-se da cadeira e vai até a janela. SOLDADO Nova, senhor. TENENTE Nova... Você acha que a corporação pode ter pensado nisso ou foi só uma coincidência? SOLDADO O quê, senhor? TENENTE Permitir que toda esta área visse a lua pela última vez... Daqui a alguns dias, tudo isso aqui terá deixado de existir... E também não haverá lua no céu. Lua nova, se ainda me lembro, é quando ela não aparece, correto? SOLDADO Sim, senhor TENENTE Então tudo será escuro, aqui no chão e também no céu. A corporação pensou nisso, soldado? SOLDADO Acredito que não, senhor. Se o senhor me permite dizer, eu nunca ouvi falar que eles se preocupassem com estas coisas... TENENTE Isso me deixa muito feliz, soldado. Porque prova que a corporação, mesmo quando não pensa, toma as decisões nos momentos certos.

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Daniel retorno ao aposento, vindo da rua, a tempo de ouvir a fala do soldado, que está à janela. Daniel traz alguns objetos nas mãos. SOLDADO “...e os que virão no futuro não sentirão falta de nada disso. Eles simplesmente olharão para o escudo e se sentirão protegidos. Sem se importar com tudo que está prestes a desaparecer – uma igreja vazia, construída na época em que os homens ainda tinham alguma esperança no Deus deles, uma dezena de ruas estreitas pelas quais não é mais seguro caminhar, casas que se tornaram grandes demais desde que ter irmãos passou a ser proibido, alguns poucos quintais, com a grama calcinada pelo sol que se tornou inclemente e assassino, uma pequena praça, cuja fonte seca em seu canteiro central é o único testemunho ainda em pé de uma época em que havia água e a água costumava correr, e bancos, muitos bancos, nos quais ninguém mais se senta por não saber se seu vizinho é um rebelde ou membro da corporação. Nada disso fará falta a eles – que olharão orgulhosos para o grande escudo antimísseis, com a certeza de que a morte não mais virá pelo céu. E, ainda que viesse, haveria tão pouco a ser destruído... “ TENENTE Você leu mais destes livros? SOLDADO Não, senhor. Estava na mente de um dos primeiros rebeldes capturados pela patrulha, senhor. Ele não resistiu muito mais tempo após a leitura. DANIEL Em pelo menos uma coisa ele tinha razão, não tinha? A morte deles não veio pelo céu. O que foi que vocês fizeram? Tenente e Soldado continuam na janela. DANIEL O que foi que vocês fizeram? TENENTE Eles foram removidos, o edital de desocupação tinha de ser cumprido. DANIEL Eu sei que eram eles que estavam naqueles caminhões. O que o senhor mandou fazer com eles? SOLDADO Tenente, o senhor quer que eu.... TENENTE Não, pode deixar. Se você quer saber se houve tempo para resistência, eu digo que não, não houve. Por outro lado, também não houve sofrimento de nenhum dos dois lados. As explosões empurraram todos eles para o esconderijo, onde o

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encontro com as patrulhas se tornou ligeiramente mais fácil. É assim que você chamava aquele buraco, não é, esconderijo? Pois bem, você deve ter encontrado o esconderijo limpo e sem sinal de batalha. Se eu fosse você, eu pensaria que eles apenas se mudaram para outro lugar. DANIEL Mortos. Eles se mudaram mortos. Por que o senhor não diz que foi assim que aconteceu? TENENTE Porque talvez não tenha sido, só por isso. O que é isso que você tem nas mãos? DANIEL Coisas. Coisas nossas, mais deles do que minhas. Soldado se dirige até Daniel SOLDADO É melhor você me entregar. A partir de agora, tudo pertence à corporação. Daniel coloca os objetos em cima da mesa. DANIEL Um dia, o homem que guardava tudo isso aqui foi embora. Eu já não sei mais que tipo de história eu posso contar para vocês. Eu tenho a impressão de que para vocês não existem mais segredos, vocês querem apenas que as pessoas repitam tudo aquilo que vocês já sabem, só para...só para confirmar, talvez, o quanto vocês são eficientes. Vocês as machucam, as torturam, apenas para isso: para provar que os métodos de vocês não têm falhas. TENENTE Claro que existem as falhas. Nosso soldado aqui falhou com você, não falhou? DANIEL O senhor chama de falha aquilo que ela fez? Ela conseguiu identificar o local do esconderijo. TENENTE Nós já sabíamos muito antes, não se sinta um delator. Aquilo foi só um...como eu posso dizer, um ajuste de contas entre vocês, eu acho. Você o provocou, ele se sentiu no direito de reagir com a melhor das armas que possui. Qualquer um faria o mesmo. SOLDADO Tenente, eu... Com todo respeito pela sua patente, eu gostaria que o senhor não me defendesse mais diante dele. Isso, se o senhor me permite dizer, me diminui. TENENTE

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É a primeira vez, em toda minha carreira, que eu ouço uma afronta tão grande vinda de um subalterno. No entanto, como esta afronta representa menos trabalho para mim, vou encarar como um pedido feito com humildade. SOLDADO Por favor, senhor, eu agradeceria muito. O senhor quer examinar as coisas que ele trouxe do esconderijo? TENENTE Não agora. Eu quero que ele continue do ponto em que parou. Do homem que guardava tudo isso aqui. DANIEL Para quê? Na certa ele teve o mesmo destino de todos os outros que estavam no caminhão. À esta altura, o senhor deve saber muito mais dele do que eu. Quem sabe até aonde o corpo dele pode ser localizado... TENENTE Antes do projeto de construção do escudo, não havia qualquer interesse especial em nenhum de vocês daqui. Vocês não significavam nada para a corporação. DANIEL Continuamos sem significar nada, acredito. TENENTE Talvez as coisas tenham mudado. Termine a história. Se você preferir, posso pedir para que o soldado a termine para mim. O que você prefere? DANIEL Um dia ele foi embora. Ele disse que havia ficado muito tempo aqui, esperando pela verdade. E como ela não apareceu, ele decidiu ir ao encontro dela. Quanto tempo um homem de mais de 70 anos é capaz de caminhar para provar que...que não existe nada mais além de vocês neste mundo? Talvez ele não tenha conseguido cruzar as fronteiras da cidade, talvez não tenha sequer saído do bairro. Ele nunca mais voltou, mas isso também não prova que ele tenha chegado aonde queria, não é? TENENTE E aonde ele queria chegar? DANIEL Ao Império do Oeste. TENENTE O que um homem sozinho, com mais de 70 anos, como você mesmo diz, pretendia fazer no Império do Oeste? DANIEL

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Nada. Apenas verificar se realmente havia um Império do Oeste. Ele nunca acreditou que existisse algum Império do Oeste. SOLDADO Não acreditar no Império do Oeste é não acreditar na nossa própria existência. Nós só existimos para nos defender do Império do Oeste. TENENTE Cale a boca, soldado. SOLDADO Sim, senhor. TENENTE Quem estava com ele, quem o ajudou? Um velho não iria empreender uma viagem desta sozinho. É ridículo imaginar que alguém queira chegar a pé ao Império do Oeste. Ele não tinha idéia da distância que nos separa deles? DANIEL Ninguém o ajudou, os que acreditaram nele ficaram aqui. À espera de que ele voltasse com alguma revelação. Mas nós sabíamos que ele não voltaria. Ninguém volta de um lugar que não existe, não é mesmo? Se vocês ainda não o mataram, talvez ele esteja, agora mesmo, caminhando em direção ao Império do Oeste. Mas todos nós, os que ficamos, preferimos torcer para que ele nunca regresse. Só assim teremos a certeza de que ele tinha razão. Com o passar do tempo, nossa adoração por ele só cresceu. Há os que afirmam que ele vai voltar, há os profetas, que dizem saber até como será o dia de seu regresso, com a boa nova de que nada foi encontrado, nenhum outro império. Mas a maioria de nós o venera sabe por quê? Porque, entre todos os homens que conhecemos, ele foi o único a ter coragem de seguir convicto por uma estrada que não vai dar em lugar nenhum. De tempos em tempos, nós nos reunimos para celebrar o fato de ele não ter retornado. Tem sido assim há 20 anos, desde que ele saiu daqui sozinho. Há 20 anos que ninguém aqui acredita mais no Império do Oeste. Nós estamos sozinhos, e o senhor sabe disso. TENENTE Quando os mísseis do Império do Oeste começarem a cair sobre nossas cabeças, destruindo nossas cidades e mandando para os ares o nosso projeto de civilização, talvez vocês comecem a acreditar que nós não estamos sozinhos. Tudo que a corporação deseja é que este dia não precise chegar para que vocês finalmente acreditem na existência do outro império. DANIEL Nós não acreditaremos. Peça para que este soldado repita o que ela roubou da mente de um dos nossos: a morte não virá por cima. Não existe nada além da corporação. Nada resistiu à guerra, nada. Tenente empurra Daniel até a janela

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TENENTE Olhe para fora, olhe para fora, seu idiota. Diga adeus a este amontoado de escombros. Em pouco tempo somente o grande escudo vai poder ser visto aqui. Ele vai ser construído em cima destas convicções imbecis de vocês, de um bando de fanáticos que passou 20 anos esperando por um velho doido que foi ao encontro do inimigo. Ele não vai voltar porque deve ter tombado de fome, foi devorado pelos ratos, pelos cães famintos, morreu antes mesmo de dar dois passos no deserto. Há 20 anos que vocês esperam por um fantasma. DANIEL Nisso nós somos iguais, tenente. Nós vivemos à espera do regresso de um fantasma. E vocês, vocês vão construir um escudo para nos proteger de um outro fantasma. A nossa crença, pelo menos, não precisou sacrificar ninguém. TENENTE O Império do Oeste existe, de uma vez por todas, ele existe. Eles estão quietos, apenas isso. Estão se recuperando da guerra, como nós também estamos. Mas em pouco tempo eles vão despertar, eles vão despertar loucos para concluir aquilo que a guerra não terminou. E isso vai ser muito antes do que nós esperamos. Novo ruído de explosão do lado de fora TENENTE Ouçam, ouçam... SOLDADO Tenente, eu creio que desta vez somos nós mesmos. É o bairro sendo explodido pelas nossas patrulhas. TENENTE Definitivamente, esta sua preocupação com os detalhes me cansa, soldado. Soldado caminha até a janela e observa a paisagem demoradamente. SOLDADO Tenente... o senhor me autorizaria a revelar um episódio ocorrido nas fronteiras durante meu período de treinamento lá?

TENENTE Para que isso agora? SOLDADO Talvez o Cidadão Ômega se convença de que o senhor está com a razão. TENENTE Eu não preciso de sua ajuda para isso, soldado. Ele será convencido, agora ou mais tarde. No caso dele, parece não haver assim tanta pressa.

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SOLDADO Entendo, senhor. TENENTE Ainda assim...vamos encarar esta sua história como a primeira das inúmeras que ele será obrigado a ouvir. Prossiga. SOLDADO No início do meu treinamento nas fronteiras, eu fui chamada para ajudar no interrogatório de um grupo capturado a algumas milhas dos nossos postos. TENENTE Algumas milhas dentro do nosso território? SOLDADO Não senhor, do lado de lá. Nossas patrulhas não costumam cruzar para o outro lado, o senhor sabe, mas os radares tinham registrado uma movimentação estranha, algo que se aproximava de nós muito vagarosamente. Era um pequeno grupo de pessoas, uns pobres andarilhos em trajes diferentes dos nossos. Havia algumas crianças entre eles, por isso avançavam tão devagar. Eles foram trazidos até o nosso posto e submetidos a todo tipo de interrogatório. Nem os leitores mais experientes conseguiram extrair o que se passava na mente deles, era um outro vocabulário, uma senha que nós não conseguimos decifrar a tempo, um código mais que secreto, como foi dito na época. O comandante ordenou que eles ficassem sem água até que resolvessem colaborar. Nenhum deles colaborou, ou, se tentou, não foi compreendido. As crianças resistiram menos, os adultos morreram logo depois. Nós nunca descobrimos com certeza de onde eles vieram, mas... mas tudo leva a crer que eram de lá, do Império do Oeste. DANIEL Na dúvida, vocês os mataram também. SOLDADO Nunca houve intenção de matar, faltou colaboração da parte deles. O que podíamos fazer diante de pessoas das quais não sabíamos nada, das quais não conseguimos extrair uma frase sequer? DANIEL Quem sabe dar um pouco de água. SOLDADO A água nas fronteiras consegue ser ainda mais escassa do que é aqui. Não existe a mínima chance de compartilhá-la com supostos inimigos. DANIEL Havia crianças... SOLDADO

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Sim, e daí? Nós lhes damos água hoje e o que elas fazem mais tarde? Atiram pedras na cabeça dos soldados. TENENTE Preciso voltar às fronteiras em breve. As coisas por lá, pelo visto, continuam interessantes. Veja o que ele trouxe do esconderijo, soldado. Soldado abre o pacote de Daniel e retira de lá algumas velas e um globo terrestre. DANIEL Era praticamente tudo o que restou lá. Seus homens são ágeis, tenente. Ninguém limpa a sujeira tão rapidamente quanto eles. TENENTE (olhando o globo) Onde estava isso? DANIEL Na entrada, à vista de todos. Sou obrigado a admitir uma coisa: sua patrulha não deve ter perdido totalmente a noção do que é o respeito. TENENTE Não se iluda com isso. Eles não recolheram por uma razão bem simples. Eles sabem que isso aqui não serve mais para nada. Tanto faz ir parar nas mãos da corporação ou continuar decorando um esconderijo qualquer. O que era realmente importante eles levaram, tenho certeza. Isso, aos poucos, está indo para o lixo, em todos os territórios da corporação. DANIEL Eu gostaria de ficar com ele, se for possível. TENENTE Você acha que vai precisar disto no lugar para onde o estamos levando? DANIEL Não deve ser um lugar tão pequeno que eu não possa dividir com um simples globo, não é? TENENTE Me responda uma pergunta simples. Se você conseguir me convencer, o globo é seu. Por que você o quer se em qualquer lugar há dezenas de outros com a nova configuração do mundo? Na entrada do seu futuro lar, eu posso garantir, há um modelo muito maior e mais belo que este. E, o que é melhor, muito mais fácil de compreender. DANIEL Era neste mundo que os que estavam no esconderijo acreditavam quando a sua patrulha chegou. TENENTE

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Só isso? DANIEL Só. TENENTE Você quer me convencer só com isso? Não vai me falar dos números, das vítimas que tombaram, dos anos de batalhas, das explosões que apagaram o sol por meses, até o ponto de as pessoas já não saberem mais contar o tempo em dias, da fome, das epidemias? Ora, é só disso que vocês sabem falar. São incapazes de admitir o que existiu de mais básico na grande guerra, o que, acima de tudo, motivou a grande guerra. Todos os que foram riscados deste mapa é por que não mereciam um lugar no mapa novo. Não cabiam nele, se você aprecia uma linguagem mais clara. Consumiam muito oxigênio e ofereciam pouca coisa em troca... Soldado, dê o globo a ele. Ele vai ter muito tempo para olhar para este passado, quem saiba tire alguma lição disso. Soldado apanha o globo da mão do tenente e vai entregá-lo a Daniel, quando é interrompido. TENENTE Um momento, soldado. Me devolva. Ele teve tempo demais no meio de tudo isso aqui e não chegou a lugar algum, uma mapa sozinho não vai alterar muita coisa. Soldado segura o globo nas mãos. TENENTE Eu estou esperando, soldado. SOLDADO Tenente... se ainda há tempo, eu gostaria de dizer que mudei de idéia. O senhor me perguntou se eu gostaria de ficar com alguma coisa daqui, caso fosse possível. Naquela hora eu não havia visto este globo ainda... eu poderia ficar com ele? TENENTE Você? SOLDADO (quase num sussurro) É só um capricho, tenente. TENENTE É dado a caprichos, soldado? SOLDADO Não... é que...o senhor sabe, eu, eu gostaria de ficar com ele porque o mundo era assim quando eu nasci. TENENTE

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O mundo era assim quando todos nós nascemos, soldado. E todos nós, com exceção dele e de seus poucos amigos rebeldes, aprendemos a aceitar...não apenas aceitar, mas principalmente a respeitar o novo desenho. Me entregue isso. Soldado entrega o globo ao tenente, que caminha até a janela. TENENTE (colocando o globo sobre a mesa) A patrulha regressou. Eu quero comandar pessoalmente a colocação dos explosivos neste prédio. Se existe um lugar, em toda esta área, que eu faço questão de que não sobre absolutamente nada, é este lugar aqui. Algeme-o, soldado. SOLDADO Sim, senhor. Soldado coloca algemas em Daniel. TENENTE (para soldado) Separe o que você puder carregar com as mãos. A corporação talvez queira algumas amostras do que encontramos aqui. Eu volto para buscar os dois. Tenente sai. De um lado do palco está Daniel, algemado. Do outro, o soldado Ágata. Os dois se olham por alguns segundos. DANIEL Ele está falando sério? Vai ter coragem de explodir tudo isso aqui? SOLDADO Receio que sim. Não existe a mínima chance de um oficial da corporação brincar com um assunto destes. DANIEL O que você vai escolher para levar? SOLDADO Isto tem alguma importância agora? DANIEL Os quadros? SOLDADO Não, eles não. Talvez alguns livros. DANIEL Quais? SOLDADO Por que você está me perguntando isso? Não faz a mínima diferença, para mim eles são todos iguais.

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Daniel ri. SOLDADO O que foi? DANIEL Eu gostaria que o dono deles, o velho que saiu daqui há 20 anos para encontrar o Império do Oeste, ouvisse isso. SOLDADO Ouvisse o quê? Que eles são todos iguais? E não são? DANIEL Desde que ele me recolheu das ruas, depois que meus pais desapareceram na grande guerra, que ele não fez outra coisa senão me convencer de que cada objeto que ele guardava aqui era único, diferente de todos os outros. Depois que ele foi embora, eu passei tempo suficiente aqui dentro para entender o que ele estava querendo me dizer. SOLDADO E isso muda alguma coisa? DANIEL O que tinha de mudar, já foi mudado. Eu posso te perguntar uma coisa, soldado Ágata? SOLDADO Antes que o tenente volte. DANIEL Por que você não me denunciou naquela hora? SOLDADO Eu estive muito perto de fazer isso. DANIEL Mas não fez. SOLDADO Não, não fiz. Eu queria saber como terminaria a sua história. Quando eu percebi, ela já estava avançada demais para ser interrompida. Talvez até o tenente estivesse gostando dela. Parabéns, foi uma bela história. Muito melhor do que aquelas que estou acostumada a ouvir. DANIEL Obrigado. SOLDADO

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De onde você tirou aquele nome, foi dos livros? DANIEL Não. Alfred, Alfred Kendor, o velho dono de tudo isso aqui... (Rindo) Garanto que ele nunca cozinhou um só biscoito em toda sua vida...Você sabe para onde eles vão me levar? Soldado o encara, mas não responde. DANIEL Você está vendo aquele objeto em cima da mesa? Sabe como ele se chama? Vitrola. Você poderia fazer um último favor? Poderia abri-lo para mim? SOLDADO O que há dentro dele? DANIEL Nada, eu garanto. Por favor, confie em mim. É só abri-lo. Soldado caminha até a porta e certifica-se de que o tenente não está vindo. Vai até a mesa e abre a vitrola. SOLDADO E então? Não acontece nada? DANIEL Agora aquele objeto escuro, o que tem um buraco no meio. Encaixe-o naquele pino no meio da vitrola. Depressa, antes que o tenente volte. SOLDADO Não. DANIEL Por favor, você pode ler minha mente se quiser. Não existe risco nenhum. Por favor, encaixe este objeto escuro no pino da vitrola. Isso é um disco, talvez o último. Eu quero que você conheça uma coisa antes que tudo isso vá pelos ares. Soldado, vagarosamente, coloca o disco na vitrola. DANIEL Agora arraste esta pequena haste, nós a chamamos de braço, até a borda do disco e a solte sobre ele, delicadamente, delicadamente por favor. SOLDADO Se isso for alguma tentativa de me ferir, serei obrigada a atirar em você. DANIEL Não é, você sabe que não é.

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O soldado obedece e o disco começa a tocar a canção Close to You, em uma gravação dos Carpenters. O soldado olha intrigado para Daniel por alguns segundos. SOLDADO O que é isso? É o que os rebeldes ouvem? DANIEL Por favor, chegue perto de mim. Soldado mostra-se reticente. DANIEL Por favor, você sabe que está é a última vez em que nos vemos. Chegue perto de mim. Soldado aproxima-se e fica frente a frente com Daniel. DANIEL Agora cruze seus braços em volta do meu corpo. SOLDADO (ameaçando apanhar a arma) Que golpe é este? DANIEL Golpe nenhum, o que um homem algemado poderia fazer contra você? Seus braços, devagar, em torno do meu corpo. Soldado Ágata, devagar e sem convicção, envolve Daniel em seus braços. Timidamente, Daniel se movimenta aos poucos e conduz o soldado a uma dança sutil. SOLDADO O que é isso? DANIEL Se nós tivermos sorte, algum dia voltaremos a fazer isso. Os dois fecham os olhos. Tenente retorna e observa a cena. Dirige-se até a vitrola e, depois de alguns segundos, coloca o dedo indicador sobre o disco. O disco pára. Soldado e Daniel olham assustados para o tenente. TENENTE A patrulha está esperando apenas a nossa saída para explodir o prédio. SOLDADO Claro, senhor. TENENTE

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Venha até aqui, soldado. Me dê os seus braços. Soldado aproxima-se do tenente e estende seus braços. Tenente retira uma algema do bolso e a coloca no soldado. TENENTE Nossa missão aqui está encerrada, soldado. Saiam na minha frente. Os dois começam a sair quando o tenente chama o soldado. TENENTE Soldado Ágata, nunca ninguém foi detido nas fronteiras do deserto. SOLDADO Não, senhor. TENENTE Pode ir, soldado. Ágata e Daniel saem algemados. Tenente olha demoradamente para o ambiente, coloca o mapa-múndi debaixo do braço e começa a sair de cena. Volta e põe o disco dos Carpenters novamente para tocar. Finalmente sai do aposento. SETEMBRO DE 2007