sérgio adorno memorial

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    SRGIO ADORNO

    MEMORIAL

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    SRGIO ADORNOSrgio Frana Adorno de Abreu

    MEMORIAL

    APRESENTADO COMO EXIGNCIA PARCIAL PARA O CONCURSO DE

    TTULOS E PROVAS VISANDO PROVIMENTO DE UM CARGO DE

    PROFESSOR TITULAR, NO DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA, REA DE

    SOCIOLOGIA DA VIOLNCIA.

    (D.O.E. V.113, NO. 123, 03/07/2003)

    SO PAULO, DEZEMBRO 2003

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    PRIMEIRA PARTE

    Os anos de formao (1952-1984)

    asci em So Paulo, no bairro da Bela Vista, no ano de 1952.

    Meu pai provinha de uma famlia numerosa, doze irmos.

    Famlia de origem espanhola, meus avs tinham sido

    trabalhadores do campo. Pobres, haviam migrado por inmeras cidades do

    interior do estado de So Paulo, como apanhadores de algodo e de caf. Em

    algumas cidades interioranas, fixavam-se por algum tempo. Tendo meu av

    morrido muito cedo, todos os filhos desde a pr-adolescncia tiveram que

    cooperar com o sustento da famlia numerosa. Posteriormente, foram, pouco

    a pouco, migrando em direo capital do estado de So Paulo. Meu pai foi o

    primeiro a vir. Como havia concludo o curso primrio, coisa rara entre os

    cidados de sua classe social, conseguiu emprego em um cartrio. No servio

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    burocrtico, em cartrios de registros e em tabelionatos de notas fez sua

    carreira profissional como escrevente, at aposentar-se, diga-se contra sua

    vontade, por motivo de sade. Por volta de meados da dcada de 1940,

    conheceu minha me, no crculo de amizades comuns. Curiosamente, minha

    av materna e minha tia, irm de minha me, tambm eram escreventes em

    cartrio, aspecto que foi marcante em minha formao familiar.

    As origens sociais de minha me eram diferentes. Minha av materna

    era filha de imigrantes italianos cujo pai, engenheiro civil, havia deserdado do

    exrcito italiano, o qual poca, ltimo quartel do sculo XIX, estava

    envolvido com as lutas pela unificao do territrio italiano. No Brasil, meu

    bisav paterno conheceu sua esposa, italiana de Triestre, que chegara ao

    Brasil muito jovem. Casados, tiveram nove filhas, a maior parte nascida em

    Itu, no interior do Estado de So Paulo. Algumas delas inclusive chegaram a

    completar sua educao no famoso Colgio Nossa Sra. do Patrocnio,

    poca importante instituto de formao escolar de jovens procedentes das

    famlias de grandes proprietrios rurais. Mais tarde emigraram para So

    Paulo. Minha av materna, a penltima das nove filhas, teve uma educao

    esmerada, na escola da praa, como era conhecido nas primeiras dcadas

    do sculo passado o Instituto Caetano de Campos, uma das escolas pblicas

    mais prestigiadas da capital. No chegou a se formar professora primria.

    Desistiu para casar-se com meu av materno, jovem proprietrio de uma

    auto-escola, que morreu com trinta anos de idade, aps oito anos de

    matrimnio. Viva, com trs filhos - minha me, a filha mais velha, tinha

    poca sete anos -, foi trabalhar em um escritrio no bairro do Bom Retiro.

    Posteriormente, empregou-se como escrevente de cartrio, em um

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    tabelionato de notas da capital, onde permaneceu at aposentar-se. Minha

    me concluiu o curso primrio e prosseguiu sua formao profissional na

    rea de comrcio. Ainda adolescente, empregou-se em um escritrio, de onde

    se desligou por ocasio de seu matrimnio, em 1948. Meus pais tiveram seis

    filhos, apenas quatro vivos. Na ordem sucessria, sou o segundo; porm o

    primeiro do sexo masculino. Esta , como se sabe, uma circunstncia muito

    marcante em famlias extensas, com algumas heranas patriarcais perdidas

    no tempo.

    Conclui o antigo curso primrio em uma escola da rede particular de

    ensino, Externato Jardim So Paulo, situado no bairro onde morvamos,

    pertencente ao distrito de Santana, zona Norte da capital. No perodo de 1964

    a 1970, realizei meus estudos secundrios em escolas da rede pblica.

    Realizei o antigo ginsio (5aa 8asries) no Colgio Estadual Padre Antnio

    Vieira. Graduei-me no extinto curso Clssico, no Instituto de Educao Dr.

    Octvio Mendes que, em fins da dcada de sessenta, gozava de prestgio nos

    crculos estudantis e pedaggicos.

    A passagem para a escola pblica deveu-se fundamentalmente a duas

    razes. Como famlia, gozvamos do bem-estar prprio da classe mdia

    expandida durante o desenvolvimentismo dos anos 50 do sculo passado.

    Passamos a enfrentar enormes dificuldades para garantir o mesmo padro de

    bem-estar quando sobreveio a crise econmico-social e poltica que resultou

    no golpe de 1964. Entre outros, os negcios imobilirios estavam como que

    parados. O dinheiro rareava, os juros eram altos e, de modo geral, a incerteza

    fazia com que as pessoas evitassem se desfazer de seu patrimnio imobilirio;

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    poca, considerado, entre as modalidades patrimoniais, o mais seguro,

    menos sujeito s intempries do mercado, a despeito das enormes

    desconfianas de que o eventual advento do comunismo no Brasil pudesse

    liquidar com a propriedade privada. Como no havia negcios imobilirios,

    no havia escrituras e, conseqentemente, os rendimentos de meu pai, o

    nico provedor familiar, estavam se tornando cada vez mais escassos. O

    caminho para a escola pblica, pelo menos para os meninos mais tarde

    para as meninas tambm foi necessrio e natural. Mas, no insuportvel.

    Pelo contrrio, grande parte da escola pblica secundria gozava de imenso

    prestgio e o acesso s vagas disponveis exigia que o candidato se submetesse

    a um rigoroso e concorrido exame de admisso. Desta forma, aquilo que hoje

    possa parecer a muitos jovens um sinal de decadncia na hierarquia social,

    em minha adolescncia foi vivido como sinal de ascenso e de orgulho

    pessoal.

    O ambiente intelectual na escola pblica secundria, em especial no

    curso clssico, era estimulante: professores competentes, debates em salas de

    aula, incentivo pesquisa bibliogrfica, leituras de textos em ingls e/ou

    francs, trabalho em grupo, seminrios. Foi nesse clima intelectual que tomei

    contato com Caio Prado Jr., Nelson Werneck Sodr e Celso Furtado, quando

    se cuidava de interpretar nosso passado colonial e os rumos que assumira a

    sociedade brasileira em sua etapa moderna e contempornea. Os nomes e

    obras de Florestan Fernandes, de Fernando Henrique Cardoso e de Octavio

    Ianni tambm no eram estranhos. No plano da histria universal, lia-se

    Pirrene, Pierre Mantoux e Hobsbawn. No mbito da literatura, recordo-me

    com prazer de haver lido Doroty Parker e mesmo LEtranger, de Albert

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    Camus, lado a lado dos grandes clssicos da literatura brasileira, em especial

    Alencar, Machado de Assis, os modernistas paulistas e os romancistas

    regionalistas. Aprendia-se muito sobre o pas debruando-se sobre seus

    literatos.

    Nunca demais lembrar, essa foi uma poca de intensa efervescncia

    poltica e cultural a que no estiveram imunes os estudantes secundrios. O

    apelo participao era grande. Havia o desejo de contribuir para a

    mudana, para a construo de um mundo melhor, mais justo, onde as

    diferenas no acentuassem to profusamente as desigualdades sociais e

    onde reinassem paz e felicidade. Esse desejo estava do lado da juventude,

    concebida quela poca como uma fora mpar capaz de levar frente esses

    propsitos. No tinha medo das mudanas, no firmara compromissos com o

    passado e com o status quo, via com desconfiana e suspeita tudo o que

    sugerisse continuidade e conservao. Ademais, era movida pelo mpeto

    revolucionrio de derrubar pilastras para construir novos e modernos

    edifcios sociais.

    Julgo que as influncias familiares os interesses humanistas

    provenientes da herana paterna e o cultivo da sociabilidade ldica e

    igualmente responsvel, legado materno aliado ao contexto social, poltico

    e cultural da poca que incitava ao encontro com as utopias respondem por

    minha inclinao para o curso de cincias sociais. Ingressei nesse curso,

    proporcionado pela Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da

    Universidade de So Paulo, em 1971, tendo me submetido a concorrido

    vestibular. No prestei outro vestibular o da PUC, por exemplo pois no

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    teria como pagar faculdade. Hesitei entre direito e cincias sociais. Por um

    lado, as influncias burocrticas normativas e a busca de um futuro

    profissional seguro (como assim esperava minha me, alis, como todas

    esperam!) inclinavam-me para o campo do direito. Todavia, a vontade de

    compreender o mundo e o que se passava no pas, de experimentar algo novo,

    no convencional numa famlia pequeno-burguesa, alm de uma vontade

    imensa de poder ensinar foram decisivos para minha escolha pelas cincias

    sociais. Bacharelei-me no ano de 1974. No ano seguinte, obtive licenciatura

    pela Faculdade de Educao da USP.

    O curso de Cincias Sociais, no incio da dcada de setenta,

    comportava uma estrutura curricular algo distinta da estrutura atual. Havia

    como disciplinas bsicas: Sociologia I e II, Cincia Poltica I e II,

    Antropologia I e II, Estatstica I e II, Mtodos e Tcnicas de Pesquisa I e II,

    Economia I e II, e Geografia. As disciplinas das reas de Sociologia,

    Antropologia e Cincia Poltica ocupavam a maior carga horria semanal. As

    disciplinas de Sociologia eram ministradas, via de regra, segundo um modelo

    pedaggico no qual eram dedicadas duas horas semanais de aulas

    expositivas, oportunidade em que o docente responsvel pela disciplina

    dissertava sobre tema determinado, com base em bibliografia bsica e

    complementar. As exposies eram verdadeiras conferncias, nas quais se

    deixavam entrever, entre outras qualidades, a reflexo crtica refinada, o

    modo como o docente articulava proposies, idias, teses e argumentos, a

    par dos rigores conceitual e metodolgico. Eram aulas ministradas para

    grande auditrio, em anfiteatros. Como carga didtica complementar,

    despendiam-se quatro horas com seminrios, com base em textos

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    previamente indicados, sob a orientao de um docente e um pblico de

    alunos que no excedia a vinte e cinco. O aproveitamento era bastante

    satisfatrio, limitado apenas pela capacidade dos discentes em cumprir um

    volume aprecivel de leituras bem como de assimilar, em curto espao de

    tempo, contedos diversificados e formas argumentativas complexas.

    Lembro-me, com satisfao, das dificuldades que enfrentei ao ler o primeiro

    captulo de Les Aventures de la Dialectique, de Merleau-Ponty [Paris,

    Gallimard, 1977 (1955)], onde h belssima crtica do mtodo de tipos ideais de

    Weber; ou um complicadssimo texto de Adorno, Sobre esttica e dinmica

    como categorias sociolgicas, captulo da coletnea de ensaios Sociolgica

    [Barcelona, Ed. Taurus], no qual o autor explora as dimenses a-histricas do

    positivismo.

    Por essa poca, aprendi a diferena entre ler e estudar um texto.

    Aprendi a gostar de revisitar o texto, apreender-lhe o contexto, seu tecido e

    tessitura, a olhar nas entrelinhas como se, tal como na msica, a escritura

    comportasse diferentes compassos, distintos andamentos e diversos ritmos,

    sugerindo mltiplos coloridos sonoros e imaginrios.

    Os demais crditos eram preenchidos com disciplinas optativas

    oferecidas pelas reas, ou por outros cursos de responsabilidade de outros

    Departamentos ou Unidades da USP. Compus meu currculo escolar,

    privilegiando as disciplinas optativas de sociologia e secundariamente as de

    cincia poltica. Creio haver freqentado quase todas as especialidades

    sociolgicas oferecidas pelo Departamento de Cincias Sociais quela poca:

    teoria e metodologia, sociologia urbana, sociologia rural, sociologia do

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    desenvolvimento, sociologia da cultura, sociologia poltica. Esta opo

    inclinou-me, dentre as cincias sociais, para a sociologia. Minha formao

    acadmica, a despeito de slida, comportou lacunas, sobretudo, no mbito da

    histria, da antropologia e da teoria do conhecimento. A primeira delas

    procurei superar no curso de ps-graduao, onde tambm reforcei meus

    conhecimentos em teoria poltica clssica e contempornea. Posteriormente,

    busquei suprimir lacunas no terreno da antropologia, seja estudando algumas

    contribuies tericas contemporneas, como as de Lvi-Strauss e de Geertz,

    por exemplo, mas tambm acompanhando, ainda que de modo parcial e

    espordico, algumas contribuies no domnio da antropologia urbana, em

    especial dos problemas culturais em sociedades complexas. No posso, sob

    qualquer hiptese, considerar-me antroplogo, mesmo porque no domino o

    trabalho etnolgicocomme il faut. Penso, contudo, que os antroplogos me

    sensibilizaram para a complexa problemtica da cultura, dos universos

    simblicos e da produo do sentido em suas articulaes e conexes com o

    mundo das instituies e com os processos de dominao e de sujeio

    prprios da sociedade moderna.

    Durante o curso de cincias sociais, participei de algumas experincias

    de pesquisa que foram decisivas em minha formao. Em algumas disciplinas

    optativas, era exigido, como avaliao, um pequeno trabalho de campo o que

    nos levava a exercitar nossa sensibilidade sociolgica para alm das leituras e

    das discusses de sala de aula. Lembro-me de haver realizado um

    levantamento de dados sociais, para a disciplina de metodologia de pesquisa

    quantitativa, junto a famlias de trabalhadores de baixa renda, moradoras em

    bairros operrios. Foi uma experincia inesquecvel. Lembro-me tambm de

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    haver realizado, com um grupo de colegas, um enorme levantamento de

    dados sobre a questo agrria nas Assemblias Constituintes de 1934 e 1946,

    que resultou posteriormente em publicao [Cf. Adorno, S. e outros. A questo

    agrria nas Assemblias Constituintes de 1934 e 1946. Cadernos de Poltica Comparada. So

    Paulo: Programa de Ps-Graduao em Cincia Poltica, FFLCH/USP, v.3, no. 1, pp. 10-34,

    1987].

    Mas, sem dvida, a experincia mais significativa e que, em grande

    parte, influenciou minhas opes temticas no interior da sociologia poltica,

    foi ter participado de um projeto coletivo de pesquisa sobre egressos

    penitencirios, sob a orientao da Profa. Dra. Maria Clia Paoli, com apoio

    da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo FAPESP (1973-

    1974). Durante dois anos, uma equipe de quatro estudantes de cincias

    sociais desenvolveu um programa de leituras, realizou levantamentos

    documentais bem como entrevistas com egressos que participavam de

    programas de reinsero social, patrocinados, por exemplo, pelo Rotary Club.

    O envolvimento em projeto coletivo de pesquisa fez com que o aprendizado

    em sala de aula adquirisse um sentido novo, para alm da aquisio de

    informaes especializadas ou do conhecimento dos modelos e escolas de

    pensamento sociolgico. Essa foi uma experincia mpar que fincou razes

    definitivas em minha formao. Mais propriamente encaminhou-me para o

    aprendizado de um segredo cientfico (e por que no, profissional?) qual

    seja o modo sociolgico de pensar. Foi um privilgio ter participado desse

    projeto e de ter desfrutado da generosidade e da inteligncia da Profa. Maria

    Clia Paoli. A pesquisa resultou no relatrioPlos de Agresso na sociedade

    urbana: anlise sociolgica da criminalidade e de suas formas de

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    conteno [Relatrio de Pesquisa, FAPESP, 1976]. Resultou ainda em artigo

    publicado [Adorno, S. e outros: Preso um dia, preso toda a vida: a condio de

    estigmatizado do egresso penitencirio. TEMAS IMESC. Soc.Dir.Sade. So Paulo, 1(2): 101-

    07, 1984]. Considero esse um dos estudos pioneiros sobre a questo da

    violncia urbana no Brasil, mais particularmente em So Paulo, ao lado dos

    estudos igualmente pioneiros de Antonio Luiz Paixo (UFMG) e Edmundo

    Campos Coelho (IUPERJ), na esteira dos quais foram realizados e publicados

    estudos certamente mais amadurecidos de Alba Zaluar, Teresa Caldeira,

    Vinicius Caldeira Brant, Rosa Fischer, Maria Victria Benevides e PauloSrgio Pinheiro.

    Uma vez Bacharel em Cincias Sociais, fui trabalhar em um rgo

    estatal: Instituto de Medicina Social e de Criminologia de So Paulo (IMESC).

    Trata-se de uma autarquia vinculada Secretaria de Estado dos Negcios da

    Justia, que realiza percias mdicas para o Poder Judicirio, bem comopromove pesquisas e congressos. No perodo de 1976 a 1980, produzi

    pequenos estudos nesse terreno controvertido e pouco assptico da

    criminologia. Dirigi um grande projeto de investigao sobre o uso de drogas

    na populao escolar no municpio de So Paulo do qual conservo alguma

    frustrao. O trabalho de campo foi adequadamente planejado em seus

    mnimos detalhes, assim como executado segundo convenes cientficas

    rgidas. O levantamento de dados compreendeu uma amostra

    estatisticamente representativa de cerca de seis mil escolares, tanto na rede

    privada quanto na pblica, treinamento de quinze coletores de informaes,

    elaborao de manual de instrues, superviso de qualidade etc. Por razes

    alheias minha vontade, no foi possvel acompanhar o processamento

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    eletrnico de dados, que me pareceu conter vcios insanveis. Produzi o

    primeiro e nico relatrio de pesquisa [Investigao sobre farmacodependncia na

    populao escolar de So Paulo. 1. Relatrio. Aspectos Epidemiolgicos. IMESC Ilustrado.

    So Paulo: IMESC, Secretaria de Justia do Estado de So Paulo, ano II, v. II, no. 3, 1979],

    cujos resultados foram divulgados de modo equivocado e com interesses

    escusos. Esse fato, conjugado ausncia de horizontes futuros no IMESC no

    incio dos anos oitenta, estimulou-me a pleitear uma licena sem

    vencimentos por dois anos.

    Desde 1978, havia ingressado no Programa de Ps-Graduao em

    Sociologia sob orientao do Prof. Dr. Gabriel Cohn. Entre 1978 e 1981,

    freqentei disciplinas e participei de seminrios. No incio de 1980, meu

    orientador sugeriu-me que preparasse projeto para candidatar-me a uma

    bolsa de mestrado ofertada pela FAPESP. Elaborei o projeto O Liberalismo

    na Formao da Ordem Social Competitiva que, aprovado, me permitiuconcentrar, durante dois anos, na pesquisa que, afinal, acabou resultando em

    uma tese de doutorado em Sociologia, sob o ttulo A Arte da Prudncia e da

    Moderao O Liberalismo e a Profissionalizao dos Bacharis na

    Academia de Direito de So Paulo (1827-1883). [cf. Diploma registrado sob no.

    006337, no Livro Ps-Graduao, fls. 23, processo no. 30.026/85]. Ao final de dois

    anos, retornei ao IMESC e passei a dar aulas, no perodo noturno, em uma

    instituio de ensino superior da rede privada Faculdades Integradas

    Alcntara Machado FIAM, no curso de Comunicaes. Neste nterim,

    escrevi, a convite da Editora Global, um pequeno ensaio intitulado O que

    todo cidado deve saber sobre Constituio [So Paulo: Global, 1983], que

    alcanou at quarta edio.

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    A pesquisa que fundamentou a tese de doutorado em sociologia teve

    por objeto a ideologia liberal no Brasil ps-independncia, baseado em

    estudo de caso sobre a formao dos bacharis na Faculdade de Direito de

    So Paulo, no perodo compreendido entre 1827 e 1883. Defendi a tese em

    dezembro de 1984 perante banca constituda pelos Profs. Drs. Gabriel Cohn

    (presidente da banca e orientador), Maria Victria Benevides, Dalmo de

    Abreu Dallari, Clia G. Quirino dos Santos e Regis S. de Castro Andrade,

    tendo obtido a nota 10,0 (dez) com distino. Com essa mesma tese, obtive,

    em 1985, o primeiro prmio no concurso de teses universitrias, rea de

    sociologia, promovido pela Secretaria de Estado da Cultura, fazendo jus

    publicao do texto. A Secretaria de Cultura no honrou seu compromisso e o

    texto no chegou a ser publicado. Felizmente, no ano de 1987, acolhendo

    simptica sugesto de Paulo Srgio Pinheiro e de Michel Hall, a Editora Paz e

    Terra props sua publicao, concretizando-a no ano seguinte, sob o

    sugestivo ttulo Os Aprendizes do Poder (O Bacharelismo Liberal na Poltica

    Brasileira)[Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988], que mereceu referncias e resenhas

    em jornais de So Paulo, do Rio de Janeiro e Braslia.

    Em junho de 1996, submeti-me ao concurso de Livre-Docncia, em

    Sociologia, rea de Sociologia Poltica, da Faculdade de Filosofia, Letras e

    Cincias Humanas FFLCH/USP, perante comisso julgadora constituda

    pelos Profs. Drs. Paulo Srgio Pinheiro (Presidente, DCP-USP), Helosa

    Fernandes (DS-USP), Maria Victria Benevides (Faculdade de Educao

    USP), Jos Eduardo Faria (Faculdade de Direito USP) e Sylvia Leser de Mello

    (Instituto de Psicologia USP). Alm de provas convencionais (didtica, escrita

    e de argio de memorial), apresentei a tese A gesto urbana do medo e da

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    insegurana (violncia, crime e Justia Penal na sociedade brasileira

    contempornea), baseada no conjunto de pesquisas que vim desenvolvendo

    at dezembro de 1995, reunindo alguns textos anteriormente publicados e

    revisados e captulos novos. A tese nunca foi publicada sob a forma de livro,

    em grande parte devido a hesitaes pessoais e ao desejo, sempre renovado,

    de atualizar os dados empricos, j que se tratava de uma tese concentrada na

    anlise da conjuntura ps-transio e consolidao democrticas. No

    entanto, sob a forma de captulos e de artigos em revistas especializadas, o

    texto foi quase integralmente publicado. Sobre a natureza deste texto, falarei

    mais adiante, no item dedicado pesquisa. [Vide documento em anexo].

    Esses anos de formao deixaram um lastro do qual no consigo mais

    me desvencilhar e que continuam influenciando minha vida acadmica,

    cientfica e profissional. Em primeiro lugar, persisto acreditando no primado

    das cincias sociais sobre as disciplinas especializadas. Acho que a boa

    formao sociolgica no pode prescindir, sobretudo, de uma formao,

    mnima que seja porm slida, em antropologia e cincia poltica.

    Certamente, no pode prescindir tambm dos conhecimentos

    proporcionados pela filosofia, pela psicologia social, pela psicanlise, pela

    histria, pela economia poltica, pelo urbanismo, pelo estudo das artes, em

    especial da literatura. Embora eu me reconhea como socilogo cujas

    razes espero sustentar ao longo deste memorial , no me sinto

    completamente desconfortvel ao transitar por terrenos mais propriamente

    antropolgicos ou mais afinados com a cincia poltica. Gosto

    particularmente de ler etnografias bem conduzidas, de acompanhar o olhar

    antropolgico em sua inquirio pelo aparente non-sensede nossos universos

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    simblicos, das descobertas inusitadas e do exerccio rigoroso do princpio da

    alteridade como fundamento epistemolgico do conhecimento. Os temas do

    poder, do estado e suas instituies, da formao das ideologias polticas e,

    em especial, da governabilidade (no sentido mais propriamente foucaultiano)

    continuam a suscitar meu interesse. Gosto de reler os clssicos da filosofia e

    da cincia poltica. Acho que esse foi um perfil favorvel para que eu fosse

    convidado a me candidatar ao cargo de secretrio executivo da Associao

    Nacional de Ps-Graduao em Cincias Sociais ANPOCS.

    Uma outra marca em minha formao foi a indissolubilidade entre

    teoria e fundamentao emprica, um legado da tradio europia das

    cincias sociais fundadas e desenvolvidas na USP e que encontrou em

    Florestan Fernandes um de seus mais ardorosos defensores. Aprendi que no

    h boa sociologia sem slida fundamentao terica, assim como sem

    rigoroso trabalho de investigao emprica. Da porque o estudo

    parcimonioso das obras de referncia, a anlise crtica da bibliografia

    especializada, o exame minudente de modelos e escolas de pensamento

    impem-se como requisitos indispensveis construo dos objetos de

    investigao e, em particular, traduo de problemas sociais em problemas

    de investigao sociolgica. justamente a solidez da fundamentao

    terico-metodolgica que agua uma sorte de sensibilidade intelectual a que

    o socilogo americano C. Wright Mills nomeou de imaginao sociolgica.

    A teoria institui um alcance, um olhar, uma perspectiva; institui um campo

    de visibilidade e de luminosidade; torna dizvel o aparentemente indizvel.

    Nada disso, porm, resulta em avanos sem a experimentao sensvel. No

    h como decodificar nossa contemporaneidade, sem a possibilidade de

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    observar sujeitos concretos em suas relaes concretas, em suas dimenses

    de trabalho, vida e linguagem o que torna possvel articular as palavras s

    coisas [Cf. Foucault, M.Les mots et les choses. Paris: Gallimard, 1966].

    H igualmente outras marcas. Entre elas, o peso da crtica terico-

    metodolgica. Durante o perodo de minha formao na graduao um

    perodo, como j mencionado, de intensos conflitos estimulados pelas

    arbitrariedades cometidas pela ditadura militar, eu testemunhei uma sorte de

    crtica terica que, em parte, parecia se confundir com crtica poltico-

    ideolgica, no sentido dos clssicos debates entre capitalismo versus

    socialismo, reforma versus revoluo, modernizao versus

    desenvolvimento. Esse tratamento da questo poderia ser resumido na

    indagao, presente em inmeros autores, em especial em Reich, Benjamin e

    Brecht:para qu e para quem servem suas idias? Sob este prisma, a crtica

    terica estava como que subsumida na crtica aos compromissos das idias

    com interesses de classe e com dominao poltica. medida que o processo

    de transio democrtica avanava, a crtica terica foi se distanciando pouco

    a pouco desta ordem de questo; todavia, passou a ser atravessada pelo

    debate poltico em torno da reconstruo da vida democrtica. Certamente,

    foi um momento muito criativo de que resultaram importantes estudos e

    pesquisas sobre sociedade civil, movimentos sociais, cultura poltica,

    participao e mobilizao social que introduziam uma espcie de novo

    movimento terico, para lembrar aqui um dos ensaios mais lidos no incio

    dos anos 80 [Cf. J. Alexander, O novo movimento terico.Revista Brasileira de Cincias

    Sociais, 4 (2), junho de 1987].

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    Penso que presentemente estamos diante de um novo movimento da

    crtica terica, no tanto atravessada pelo debate poltico-ideolgico, como no

    passado recente, todavia nem por isso uma crtica cientificamente neutra.

    certo que o debate entre neoliberalismo, comunitarismo, ps-modernidade,

    ps-sociedade industrial e globalizao, para lembrar algumas das

    nomeaes mais recorrentes, esto presentes ora com maior ora com menor

    peso. Mas, seguramente, ocupam um lugar menos central do que o esforo de

    crtica imanente, de exame criterioso dos fundamentos conceituais,

    epistemolgicos, axiolgicos dos modelos de explicao cientfica, inclusive e

    mais precisamente os modelos sociolgicos. Acho que este novo estatuto da

    crtica terica vem conduzindo a um debate de outra natureza: no mais a

    disputa pela verdade no sentido dos valores polticos intrnsecos s teorias

    (afinal, aps Foucault, o que a verdade?), contudo o esforo por fazer da

    crtica terica um instrumento para decifrao do tempo presente. Mais do

    que isto, um esforo para novas aberturas, para a instituio de novas

    luminosidades e novas formas para recompor sob caminhos diversos e sob

    eixos distintos da tradio e dos hbitos herdados da experincia intelectual

    do sculo XVIII o trabalho, a vida e a linguagem daqueles que aparecem

    como os sujeitos de nossa contemporaneidade. Seja o que forem essas

    digresses em torno desse objeto, a fundamentao terica slida constitui

    um objetivo sempre perfilado.

    Ao lado dessa questo, outro legado diz respeito ao mtodo. Meus

    professores insistiram sempre na indissocivel relao entre teoria e mtodo.

    Em primeiro lugar, aprendi que a questo do mtodo no se resumia, sob

    qualquer hiptese, aplicao de tcnicas especficas ao levantamento de

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    dados empricos. A questo do mtodo, antes de tudo, compreende as

    relaes entre sujeito e objeto do conhecimento. Sem enfrentar esse

    espinhoso problema, ao menos em suas formulaes clssicas na teoria

    sociolgica, a investigao cientfica fica como que ausente de seus alicerces

    fundamentais. Como se sabe, o modo como se constroem essas relaes

    determina, em grande parte, o foco que o investigador dirige aos problemas

    sociais e a traduo desses problemas em objetos de conhecimento

    sociolgico. em torno desta questo que se coloca, para as cincias sociais,

    o problema da validade do conhecimento. Em torno dela esto atrelados

    outros tantos problemas relacionados construo dos conceitos, escolha

    das tcnicas de levantamento de dados, ao emprego ou no de tipologias, s

    mltiplas formas de tratamento qualitativo de distintas fontes de informao,

    inclusive emprego de tcnicas projetivas, s formas de administrao da

    prova cientfica e as relaes entre mtodo de investigao e mtodo de

    exposio dos resultados. No sem razo, aprendi ainda que a formulao de

    um projeto de pesquisa requer a observncia de uma lgica imanente ao

    processo de produo de conhecimento: a relao de adequao lgica entre

    construo do objeto sociolgico, fundamentao terico-metodolgica,

    formulao de hipteses, escolha dos mtodos e tcnicas de levantamento de

    dados, plano de anlise e sntese de resultados. Tudo isso secundado pela

    observncia, o mais rigorosa possvel, da linguagem prpria comunicao

    cientfica, o que igualmente compreende o respeito s formalidades e

    convenes vigentes em nossa comunidade acadmica de origem. Ao final,

    entendi por que motivos, desde os clssicos da formao do pensamento

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    sociolgico, o momento privilegiado neste processo de conhecimento a

    passagem, por vezes sutil, da descrio explicao sociolgica.

    Meus professores ensinaram-me tambm afinar o ouvido isto , terpacincia para escutar as diferentes vozes sociais. Mas, no somente. Parar

    para ver, ou como nos ensinava uma velha professora de antropologia, sentar

    e esperar acontecer. Estar com o ouvido atento e esperar acontecer so

    meios necessrios para a abertura da imaginao, para captar e experimentar

    os sinais do novo e da novidade, que cotidianamente desfilam nos jornais,

    nas conversas comuns, nas ruas, nas filas, no comrcio, nos momentos de

    sociabilidade, nas caminhadas silenciosas pela cidade, nas reunies

    acadmicas (inclusive at burocrticas!), na circulao nervosa do trfico, e

    mesmo nos momentos de tenso diante de um conflito, da iminncia de ser

    vtima de uma agresso ou de um mau trato por quem quer que seja, na

    indignao para com nossa poltica e nossos polticos. Todo esse universo

    sonoro, tico e imaginrio o que encoraja a renovao, ora a substituio de

    velhas questes por novas, ora a retraduo de velhas questes sob novas

    configuraes, ora a descoberta de recortes temticos antes impensveis. Dito

    de outro modo, fazer sociologia o esforo por decifrar o curso das mutaes

    sociais, no importa de onde provenham ou em que lugar privilegiado se

    instalem. Por isso, a histria para o socilogo uma espcie de tear cuja

    fiao est no tempo (ou nas distintas temporalidades) e cujo acabamento

    cunhado nos mais distintos espaos sociais e impresso em tecidos tambm

    sociais com cor sombrias, sbrias ou quentes; com tessitura ora spera ou

    macia; e com flexibilidade, vez ou outra to acentuada que arrisca romper-se.

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    No h boa sociologia que no esteja fundada em fatos histricos; nem boa

    histria que no seja, em alguma medida, sociolgica.

    Sem esses requisitos, no h imaginao sociolgica, no h comofazer sociologia.

    Essas marcas influenciaram profundamente minhas atividades de

    pesquisa, docncia e formao, divulgao de conhecimento, extenso e as

    atividades de direo acadmica, que sero descritas na segunda parte deste

    memorial.

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    SEGUNDA PARTE

    Uma gerao em transio e o

    mal-estar de sua poca

    inha gerao conheceu o fim da ditadura militar e o processo

    de transio democrtica. Foi uma gerao espremida entre

    dois cenrios opostos: a herana do passado autoritrio, das

    feridas deixadas pelas lutas contra o regime militar entre as quais, astorturas, a clandestinidade, a suspeita de delao, o medo, a insegurana, a

    incerteza, o exlio, as mortes; e as expectativas de um futuro cujo horizonte de

    abertura poltica pareciam estreitos, sobretudo, porque apelavam para a

    velha frmula da conciliao.

    M

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    Como aluno de graduao, experimentei o peso das cassaes e a

    responsabilidade que caa sobre os ombros de jovens doutores. Por um lado,

    a ausncia do pai fundador, o Professor Florestan Fernandes; por outro, para

    aqueles que ficaram, o compromisso de prosseguir as tarefas do mestre, de

    no trair seus princpios polticos, de manter a universidade pblica,

    militante, crtica.

    Quando ingressei no quadro do Departamento de Cincias Sociais

    tomei conhecimento das agruras a que muitos estavam submersos. Ao

    mesmo tempo em que se mantinha, a ferro e fogo, a qualidade dos cursos, a

    excelncia da pesquisa, o mesmo padro de reconhecimento externo, a

    desorientao interna era acentuada e os conflitos inter-reas muito

    flagrantes. Era uma poca de profundas hesitaes e de mal-estar;

    pressentia-se um futuro sombrio face s incertezas dos rumos que a

    democracia tomaria. Na universidade, os dissensos poltico-partidrios

    ganhavam novos coloridos, inclusive com a rapidez com que muitos docentes

    e pesquisadores estavam engrossando as fileiras das novas agremiaes

    partidrias e passavam a integrar quadros governamentais ou se

    candidatavam aos cargos polticos. Se, como afirmam alguns analistas, a crise

    da universidade data da reforma de 1968, o processo de transio

    democrtica acelerou processos em curso, entre os quais o declnio das

    lideranas acadmicas e a ascenso das lideranas executivas e burocrticas.

    Minha gerao enfrentou inmeros dilemas quanto aos novos

    desgnios da universidade pblica. Fortes presses externas foram

    impulsionando reformas atrs de reformas, introduzindo muito rapidamente

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    novas formas de organizao do trabalho acadmico e cientfico, com

    repercusses nas agendas de ensino tanto em nvel de graduao quanto de

    ps, nas agendas de pesquisa e no fortalecimento de novos quadros diretivos,

    convencidos de que mudanas na gesto acadmica, administrativa e

    financeira da universidade deveriam coloc-la em compasso com os novos

    tempos.

    Talvez o resultado mais dramtico desse quadro tenha sido a

    constituio de grupos, dentro da universidade, com perfis muito distintos e

    com muita dificuldade de negociao. Por um lado, o apego resoluto ao

    passado e tradio. Toda mudana vista com muita suspeio. Da o peso

    das resistncias e a recusa a qualquer outro projeto de universidade e tudo

    o que isso possa significar que no fosse o herdado da tradio crtico-

    reflexiva. Por outro, aqueles ciosos para passar por cima do passado, demolir

    sem grandes esforos tudo o que parecia slido, inaugurando uma nova

    universidade, adequada aos novos ventos modernizantes, capazes de fazer

    valer o peso desta USP no cenrio nacional e internacional. Durante muito

    tempo, o dilogo entre essas duas tendncias esteve bloqueado, gerando uma

    vida departamental tediosa e puramente administrativa.

    Foi neste contexto que ingressei no quadro docente do Departamento

    de Sociologia e passei a exercer minhas atividades de pesquisa, docncia e

    formao, divulgao de conhecimentos, inovao, extenso universitria e

    funes diretivas, que passo a seguir a repertoriar.

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    Pesquisa

    procura de uma identidadeacadmica e profissional (1982-1991)

    IMESC (1982-1985):Permaneci ainda, no perodo de 1982 a 1985, no

    IMESC. Em 1983, fui indicado, pela nova superintendncia daquele Instituto,

    diretor tcnico do centro de estudos. Nesse cargo, iniciei um programa de

    investigao cientfica sobre a problemtica da reincidncia criminal e

    penitenciria. Esse projeto constituiu-se, em verdade, um programa

    continuado de pesquisa. Inicialmente, junto com outros pesquisadores,

    consultamos o cadastro criminal da Secretaria de Segurana Pblica de 1920

    a 1982, com base em amostra estatisticamente representativa. O estudo

    revelou que, considerado o perodo como um todo, a taxa de reincidncia

    criminal era da ordem de 29% no Estado de So Paulo. Confirmamos, porm,

    que as taxas eram significativamente mais altas (em torno de 45%) para os

    reincidentes que haviam sido condenados a penas supressivas da liberdade

    (recluso ou deteno). Em outras palavras, como j largamente apontado

    pela literatura especializada e sublinhado por Foucault em seu clssico Vigiar

    e Punir (1975), a priso agrava a reincidncia. Os resultados foram

    publicados [Adorno, S. e outros. Estimativa da reincidncia criminal. Temas IMESC. Soc.

    Dir. Sade. So Paulo, 1(1): 49-69,1984; Adorno e Bordini. Estimativa da reincidncia

    criminal: variaes segundo estratos ocupacionais e categorias criminais. Temas IMESC.

    Soc. Dir. Sade. So Paulo, 2(1): 11-29, 1985].

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    O passo seguinte consistiu, por conseguinte, no estudo da reincidncia

    penitenciria, conforme projeto de pesquisa publicado [Adorno e Bordini.

    Homens persistentes, instituies obstinadas: a reincidncia na penitenciria de So Paulo.

    Temas IMESC. Soc.Dir.Sade. So Paulo, 3(1): 87-109, 1986]. Aprovado pela

    Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo FAPESP, este

    projeto representou o primeiro de uma srie contnua de apoio que vim

    recebendo desta agncia de fomento h quase vinte anos. Este estudo foi

    realizado em duas etapas. Na primeira etapa, identificamos, dentre o

    movimento de entradas e sadas de presos, na Penitenciria de So Paulo, noperodo de 1974-1985, 116 reincidentes de um total de 252 egressos. Uma

    rigorosa comparao entre o perfil jurdico-social de ambas categorias de

    presos permitiu verificar que as nicas diferenas significativas residiam na

    submisso tecnologia punitiva, no interior da priso aquela sorte de

    tcnicas que Foucault denominou mini-tribunal interno capaz de modular a

    sentena judiciria. De fato, os reincidentes penitencirios eram justamente

    aqueles mais submetidos punio prevista no regimento da Penitenciria,

    cuja execuo se fundava (ou ainda se funda) na mais resoluta arbitrariedade

    na distribuio de sanes. Os reincidentes penitencirios eram aqueles que

    proporcionalmente aos no-reincidentes recebiam maior volume de

    advertncias, bem como cumpriam, em mdia, mais dias de cela comum e de

    cela disciplinar. Com esse estudo, tive, pela primeira vez, a oportunidade de

    publicar resultados de pesquisa em um dos veculos nacionais de maior

    prestgio nas cincias sociais brasileiras: A Revista Brasileira de Cincias

    Sociais RBCS [Adorno e Bordini. Reincidncia e reincidentes penitencirios em So

    Paulo, 1974-1985. RBCS, 9(3): 70-94, fev. 1989].Igualmente, resultou em publicao

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    na qual contestamos a hiptese, corrente no senso comum, de que so as

    correntes de migraes do Norte e do Nordeste para o Sudeste que

    inflacionam a violncia e o crime nas regies metropolitanas mais ricas e

    desenvolvidas [Cf. Adorno e Bordini. Migrao e criminalidade. So Paulo em

    Perspectiva. Revista da Fundao SEADE, 1(2): 36-38, 1987].

    Finalmente, encaminhei a pesquisa para um estudo qualitativo dos

    reincidentes na Penitenciria de So Paulo. Infelizmente, logramos localizar,

    na Penitenciria do Estado, apenas oito reincidentes remanescentes dos 136

    anteriormente identificados. Embora entre a segunda e a terceira etapa da

    pesquisa no tivesse havido um extenso lapso de tempo, fui surpreendido

    com uma das caractersticas do sistema penitencirio paulista: a excessiva

    mobilidade dos presos pelas Cadeias Pblicas e Penitencirias quer da

    capital, quer do interior. Como meus recursos de pesquisa no possibilitavam

    ir atrs de cada um dos 136 reincidentes, optei por concentrar a investigao

    nas histrias de vida dos oito remanescentes, ao invs de aplicar entrevistas

    dirigidas. Foi por volta desta poca que aprendi a distinguir estudos baseados

    em perfis de carreirade histrias de vida, estes fundados em procedimento

    metodolgico que torna a pesquisa mais complexa e mais densa. As

    concluses desta etapa foram apresentadas em Encontro Anual do Centro de

    Estudos Rurais e Urbanos CERU, cuja direo ainda estava quela poca

    sob responsabilidade da Profa. Maria Isaura Pereira de Queiroz [Adorno e

    Bordini. A socializao na delinqncia: reincidentes penitencirios em So Paulo. Cadernos

    CERU, 3: 113-147, 1991]. Com a concluso do programa de estudos, tive ainda a

    oportunidade de realizar uma reflexo de ordem metodolgica que percorreu

    toda a trajetria do programa de pesquisa, deteve-se em suas dificuldades

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    bem como nas solues metodolgicas e tcnicas adotadas, alm de haver

    proporcionado uma excelente ocasio para refletir sobre as relaes sujeito e

    objeto do conhecimento, sob situaes no to convencionais, como so

    aquelas que envolvem triangulao entre pesquisador, presos e agentes

    penitencirios.

    Sustentei, neste artigo, uma sorte de terceira via nesta ordem de

    relaes. Como se sabe, para algumas tendncias terico-metodolgicas no

    h como fazer cincia se a radical separao entre observador e observado

    no esteja assegurada. Na poca em que realizei esse programa de estudos,

    havia um intenso debate, sobretudo no interior da antropologia, que

    questionava os rigores daquele procedimento em nome de uma outra ordem

    de relacionamento, a partir do qual o pesquisador, de algum modo, se coloca

    na posio do outro (o observado), escuta-o e procura decifrar a originalidade

    do seu modo de ser, sentir e expressar. Lembro-me que a referncia

    bibliogrfica que suscitou acirrados debates foi um ensaio de Sidney Mintz

    [Encontrando Taso, me descobrindo inDados Revista de Cincias Sociais, 27(1): 45-58,

    1984], autor que considerava a proximidade entre observador e observado um

    requisito de objetividade do conhecimento cientfico e no o contrrio.

    Considerando as especificidades do objeto a que eu estava me dedicando,

    pareceu-me que ambas perspectivas continham limitaes. Uma radical

    separao entre observador e observado certamente acentuaria as

    desconfianas em um mundo social e institucional caracterizado pela

    suspeio de todos contra todos, estimulando a existncia de silncios e

    barreiras na reconstruo das histrias de vida. Por outro lado, uma

    proximidade do tipo daquela descrita por Mintz, em seu ensaio, certamente

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    faria com que o observador se tornasse submisso ao observado, sujeitando-se

    inclusive a possveis pequenas chantagens morais, do tipo leva e traz

    informaes de dentro para fora da priso ou vice-versa, em troca da fala. Foi

    necessrio chegar terceira via. E o fiz em parte inspirado no trabalho

    psicanaltico, mais propriamente nas relaes entre analista e analisado. Por

    um lado, preciso penetrar na interioridade (seja l o que isso signifique)

    do analisado, tornando-se familiar a seus problemas e angstias; contudo, ao

    mesmo tempo, preciso transcender essa ordem de relaes, para que um

    olhar externo possa consumar a relao psicanaltica. Inspirado nesse

    modelo, cuidei de fazer com que o observado compreendesse que eu, na

    qualidade de observador externo, no fazia parte nem do mundo da

    delinqncia, nem pertencia aos dirigentes do sistema penitencirio ou

    policial. Com isso, acho que fui ganhando pouco a pouco confiana e

    simultaneamente estabelecendo uma sorte de barreiras morais imaginrias.

    Assim, pude estar dentro da priso e de seu universo sem ter que ficar; pude

    sair, sem ter que cortar amarras [Cf. Adorno. A priso sob a tica de seus

    protagonistas. Itinerrio de uma pesquisa. Tempo Social. Rev. de Sociologia da USP, 3(1-2),

    7-40, 1991].

    No final de 1988, a convite do Prof. Dr. Jos de Souza Martins

    coordenador do Projeto Crianas sem Infncia no Brasil, financiado pela

    Fundao Internacional Llio Basso pelo Direito e pela Libertao dos Povos

    colaborei desenvolvendo estudo sobre crianas e adolescentes envolvidos

    no mundo do crime urbano. A proposta do Prof. Martins era no sentido de

    que eu aprofundasse as pesquisas que vinha realizando no domnio da

    reincidncia penitenciria, concentrando ateno sobre a construo social

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    da delinqncia juvenil. Retornei ento Penitenciria do Estado e aos

    reincidentes penitencirios. Em especial, explorei a memria da socializao

    juvenil no mundo do crime e da violncia. Este estudo revelou no poucas

    descobertas. Questionou o argumento, presente com muita fora no senso

    comum e em alguns segmentos da opinio pblica, segundo o qual a

    desorganizao familiar, caracterstica freqente entre classes trabalhadoras

    urbanas pauperizadas, causa da derivao de crianas e adolescentes para o

    mundo do crime. Os jovens adultos cumprindo pena na Penitenciria do

    Estado provinham de famlias muito heterogneas, inclusive famlias

    evanglicas, com numerosos filhos educados sob rgida disciplina moral.

    Identifiquei tambm que os laos familiares no necessariamente se

    desfazem. Quando se desfazem, esses adolescentes o logram aps sucessivos

    ensaios de sada e retorno, at o abandono definitivo dos laos familiares.

    Observei tambm uma sorte de socializao incompleta (um conceito

    certamente no explorado com maior densidade). Refiro-me a uma sorte de

    inveno do clssico processo de socializao em que as geraes mais velhas

    transmitem a herana cultural s geraes mais novas. Constituindo famlias

    cada vez mais precocemente, os pais muito jovens tendem a constranger suas

    crianas e pr-adolescentes a experimentarem vivncias na rua, inclusive a

    obteno de renda para sustento de irmos, pais e parentes. Deste modo,

    crianas e adolescncias acabam socializando seus pais. Mas, experimentam

    esse processo de modo perverso. Por um lado, essas crianas e adolescentes

    acabam precocemente assumindo responsabilidades adultas. Por outro lado,

    so infantilizados no mundo adulto. Dessa incompatibilidade, resultam

    corpos indceis, incapazes de serem crianas e pr-adolescentes. Finalmente,

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    observei que a deriva para a delinqncia no uma espcie de destino ao

    qual esto inexoravelmente condenadas crianas e adolescentes pobres,

    habitantes dos bairros carentes de infra-estrutura urbana e qualidade de

    vida. A socializao da delinqncia juvenil , antes de tudo, um processo,

    inicialmente espordico, cada vez mais freqente, de contato entre crianas e

    adolescentes com problemas de desvio de conduta e autores de infrao penal

    com as agncias encarregadas do controle social. Vale dizer, no h como

    explicar a produo de delinqncia juvenil sem examinar o modo como se

    cruzam a histria pessoal de alguns jovens e a histria da punio e do

    controle social exercidos pelos agentes e agncias incumbidas de assegurar lei

    e ordem. Este estudo resultou em trs publicaes [Adorno, S. La precoce

    esperienza della punizione. In: Martins, J. de S. (org). LInfanzia negata. Omicidi,

    protituzione, malattia e famine del bambini brasiliani. Chieti Scalo: Vecchio Faggio, 1991, pp.

    201-33; b) Adorno, S. A experincia precoce da punio. In: Martins, J. de. S. O massacre

    dos inocentes. A criana sem infncia no Brasil. So Paulo: Hucitec, 1991; c) Adorno, S. A

    socializao incompleta: os jovens delinqentes expulsos da escola. Cadernos de Pesquisa.

    Revista de Estudo e Pesquisas em Educao. So Paulo, Fundao Carlos Chagas, 79: 76-80,

    nov. 1991].

    Esse programa de pesquisas ensinou-me muito sobre o universo

    penitencirio. Descobri a importncia do silncio, da reticncia, da

    desconfiana, da mentira, da suspeio permanente contra tudo e contra

    todos, os mecanismos de manipulao interna de amplas massas carcerrias

    entre os quais a mobilidade interna que, j na dcada de 1980, representava

    um instrumento de controle da ordem no interior do sistema penitencirio.

    Descobri mais, o quanto a vida de cada preso objeto de negociao subjetiva

    a cada momento e em cada espao da priso. Se viver perigoso, como dizia

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    Guimares Rosa, mais ainda o em situao sociais onde predominam

    absoluta incerteza, ameaas de morte, punio arbitrria, despotismos de

    toda espcie, violncia e crueldade, alm do pior de todos os vcios a

    corrupo que degrada a autoridade, mina a disciplina e promove as mais

    graves violaes de direitos humanos. Foi deste modo que fui, pouco a pouco,

    me acercando mais e mais do estudo das relaes entre direitos humanos,

    controle da violncia e consolidao da democracia.

    Prises e Justia Penal

    CEDEC (1985-1988): No incio de 1985, convidado pelo Centro de

    Estudos de Cultura Contempornea (CEDEC), passei a coordenar, junto com

    Rosa Maria Fischer, atualmente professora associada da Faculdade de

    Economia e Administrao da USP, uma pesquisa que teve por objeto a

    expanso do sistema penitencirio paulista no perodo de 1950 a 1985. O

    contato com Rosa Fischer permitiu-me experimentar e reforar um certo

    ethos e estilo profissionais, que ampliaram meus horizontes acadmicos. No

    CEDEC, encontrei um ambiente intelectual acolhedor, tendo desfrutado e

    testemunhado importantes discusses cientficas em seminrios com

    Francisco Weffort, Lcio Kowarick, Gabriel e Amlia Cohn, Jos lvaro

    Moiss, Regis de Castro e sobretudo com Maria Victria Benevides, cuja

    presena intelectual era e cada vez mais ainda to incandescente que

    impossvel no se deixar tocar pela sua inteligncia, pelo seu brilhantismo e

    por sua tica profissional, acadmica e poltica.

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    Minha passagem pelo Centro de Estudos de Cultura Contempornea -

    CEDEC (1985-1988) e o posterior ingresso no quadro docente do

    Departamento de Sociologia da USP redirecionaram os rumos da pesquisa no

    domnio da violncia urbana. No segundo semestre de 1985, recebi chamado

    da direo do CEDEC. Convidavam-me para substituir Boris Fausto e Rosa

    Maria Fischer, impossibilitados por razes pessoais de manterem-se frente

    da coordenao de um projeto de pesquisa sobre polticas pblicas penais.

    quela poca, o CEDEC desenvolvia linha de pesquisa na rea de violncia e

    direitos civis, a qual tambm contava com a participao de Maria Victria

    Benevides. Aceitei o convite, no sem antes convencer a Profa. Rosa Fischer

    de dedicar algumas horas coordenao do projeto. Decidimos ento co-

    coordenar o Projeto Anlise do Sistema Penitencirio do Estado de So

    Paulo: o Gerenciamento da Marginalidade Social. Durante dois anos,

    fizemos uma anlise das polticas pblicas penitencirias, formuladas e

    implementadas pelo poder Executivo, no perodo de 1950 a 1985. Com base

    em farto e rico acervo documental estatsticas oficiais, relatrios tcnicos,

    mensagens governamentais, debates parlamentares, notcias extradas da

    imprensa, legislao -, a pesquisa teve por objetivos: a) analisar o discurso

    poltico que, no curso do perodo observado, se props a reformar e

    racionalizar o sistema penitencirio do Estado; b) examinar as diretrizes

    polticas formuladas e implementadas por sucessivos governos estaduais

    identificando as foras sociais e polticas capazes de influenci-las; c)

    conhecer as condies sociais e polticas que tornaram possvel a expanso do

    sistema penitencirio; d) identificar e analisar as prticas de gerenciamento

    da massa carcerria.

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    Os principais resultados da pesquisa revelaram que, ao longo do

    perodo observado, a tnica dominante das polticas pblicas penitencirias

    tem sido a de promover a segregao e o isolamento dos presos, mediante um

    programa deliberado de aumento progressivo da oferta de novas vagas no

    sistema penitencirio, poltica de mo-nica porque no acompanhada de

    outras iniciativas e que no ataca pontos tradicionais de estrangulamento.

    Essa atualidade deixa entrever um projeto deliberado de controle da massa

    carcerria que ignora as regras mnimas de tratamento do preso,

    preconizadas pelos organismos especializados da ONU desde a dcada de

    1950, o que, na prtica, significa reconhecer o absoluto desprezo das polticas

    pblicas penitencirias adotadas nesta sociedade pelo respeito aos direitos do

    cidado condenado pela justia penal a penas privativas de liberdade.

    Seus efeitos podem ser repertoriados: ampliao da rede de coero;

    superpopulao carcerria; administrao inoperante; enrijecimento da

    disciplina e da segurana sem quaisquer conseqncias no sentido de deter a

    escalada da violncia e a sucesso de rebelies a que o sistema penitencirio

    veio assistindo at meados da dcada de 1980; timidez das medidas de

    alcance tcnico, incompatveis com o programa de expanso fsica elaborado

    independentemente de avaliaes e projees dotadas de confiabilidade; falta

    de explicitao de objetivos, o que se manifesta, sobretudo na ausncia de um

    programa articulado, integrado e sistemtico de interveno, seja no mbito

    das polticas organizacionais administrativas ou de ressocializao;

    confrontos entre grupos que disputam poder e influncia sobre o poder

    institucional, expressos na eficcia da ideologia da ordem e da segurana, da

    vigilncia e da disciplina. Todos esses aspectos confluem para um mesmo

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    ponto: a reconhecida incapacidade e incompetncia do poder pblico em

    gerenciar amplas massas carcerrias, bem assim de lograr uma poltica

    efetivamente coordenadora da execuo penal.

    o que se procurou demonstrar em dois grossos volumes de relatrio

    de pesquisa [Adorno e Fischer. Anlise do sistema penitencirio do Estado de So Paulo:

    o gerenciamento da marginalidade social. Relatrio final de pesquisa. So Paulo: CEDEC,

    1987. mimeo. 2v. 299p]. At o momento, esta pesquisa indita. Embora se

    possa dizer que ela seja contempornea de outros importantes estudos sobre

    prises no Brasil, como o promovido pela Fundao Joo Pinheiro

    [Caracterizao da populao prisional de Minas Gerais e do Rio de Janeiro. Belo

    Horizonte: Fundao Joo Pinheiro, 1984, mimeo] e o promovido pelo Centro

    Brasileiro para Anlise e Planejamento - CEBRAP [Brant, V.C. e col. O

    trabalhador preso no Estado de So Paulo. So Paulo: Cebrap, 1986, mimeo], nenhum

    deles se deteve na anlise de volumoso acervo documental nem cogitou uma

    imerso nas polticas pblicas penitencirias como a que fizemos. Convm

    ressaltar que a estratgia de investigao adotada permitiu percorrer todas as

    foras sociais e polticas capazes de influenciar a formulao e

    implementao de polticas penitencirias, como: a opinio pblica manifesta

    atravs da imprensa cotidiana, alm de delegados de polcia, promotores de

    justia e promotores pblicos, magistrados, polticos profissionais,

    planejadores e administradores pblicos, governantes. Desse modo, foi

    possvel observar as foras de conservao e resistncia s polticas pblicas

    de gesto de massas penitencirias minimamente compatveis com o modelo

    democrtico de exerccio do poder poltico.

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    Embora o relatrio seja bastante requisitado por pesquisadores,

    lamentavelmente, no foi possvel public-lo na ntegra, como teria sido

    desejado. Presentemente, estamos desenvolvendo eu, Rosa Fischer e

    Fernando Salla projeto de atualizao da pesquisa, bem como reviso

    crtica do texto para sua definitiva publicao. Alm do relatrio, o projeto

    resultou em pequenas publicaes [Adorno e Fischer. Polticas penitencirias, um

    fracasso? Lua Nova. Cultura e Poltica. So Paulo, 34; 70-9. abr./jun. 1987; Adorno e

    Fischer. Sistema penitencirio de So Paulo: o gerenciamento da marginalidade social.

    Informaes. S. Paulo: Centro de Estudos de Cultura Contempornea CEDEC, no. 1, out.

    1989. pp. 1-2; Adorno, S. O sistema penitencirio no Brasil (problemas e desafios). Revista

    USP. So Paulo: Universidade de So Paulo, 9: 65-78, mar/mai, 1991.; Adorno, S. Sistema

    Penitencirio no Brasil. Problemas e Desafios. Revista do Conselho Nacional de Poltica

    Criminal e Penitenciria. Braslia, Ministrio da Justia, 1(2): 63-87, 1993, jul./dez. (Re-

    publicao); Adorno, S. Impasses e desafios administrao carcerria. In: Machado, M.L. e

    Azevedo Marques, J.B.Histria de um massacre. Casa de Deteno de So Paulo. So Paulo:

    Cortez; Braslia: OAB, 1993. pp. 99-106].

    Concluda a investigao, fui convidado a permanecer e apresentar um

    novo projeto de investigao. Por volta dessa poca, julgava oportuno iniciar

    um estudo sobre a justia penal, pois que as agncias policiais e o sistema

    penitencirio j estavam merecendo estudos. Elaborei o projeto Justia

    Penal e Violncia Urbana. Minha primeira incurso no domnio do PoderJudicirio, mais propriamente a justia penal.

    Parti de uma constatao emprica: a despeito das aceleradas

    mudanas, de toda ordem, que incidiram na sociedade brasileira a partir do

    processo de transio democrtica, por que as instituies de controle social

    resistiam aos novos tempos, ao Estado de direito e ao respeito aos direitos

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    humanos? Por que o legado autoritrio permanecia forte, no obstante o fim

    do regime autoritrio e a abolio progressiva de todos os rgos para-

    militares que haviam sido atuantes durante a ditadura? Algo a respeito j

    vinha sendo deslindado nos domnios das agncias policiais, das prises e

    mesmo das instituies de bem-estar do menor. Pouco se conhecia o

    comportamento do Poder Judicirio, seguramente um dos mais

    conservadores do pas. Se havia resistncias, como identific-las? Enfim, qual

    o modelo de justia penal compatvel com a democracia e com uma poltica

    de respeito aos direitos humanos?

    A pesquisa procurou responder a este elenco de questes com base em

    estudo de caso sobre o Tribunal do Jri. Esta instncia judiciria foi escolhida

    como objeto de observao emprica por, ao menos, duas razes: por um

    lado, por se tratar de uma instncia tradicionalmente reconhecida como uma

    esfera de interveno leiga na justia penal, aspecto considerado um exemplo

    de democratizao no mbito do direito de punir; por outro, em virtude de

    estar sob acirrado debate, atravs do qual havia vozes dissonantes que

    pretendiam a extino deste instituto sob a alegao de que o direito penal e

    sua justia haviam se tornado excessivamente tcnicos e complexos, muito

    alm da capacidade dos cidados leigos de compreend-los. Portanto, o

    Tribunal do Jri parecia uma boa porta de entrada para responder s

    questes propostas.

    Do ponto de vista sociolgico, a pesquisa residiu na anlise de prticas

    de produo da verdade jurdica [Cf. Foucault, M. (1980). La verdad y las formas

    juridicas. Barcelona: Gedisa] tendentes a promover a condenao ou absolvio

    de sujeitos sobre os quais recai a imputao de crimes contra a vida, que

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    configuram matria dos tribunais do jri. A pesquisa teve por universo

    emprico de investigao 297 processos penais, instaurados para apurao de

    responsabilidade nos crimes dolosos contra a vida (artigos 121 a 128 do

    Cdigo Penal), julgados por um Tribunal do Jri da capital, no perodo de

    janeiro de 1984 a junho de 1988. Foram coletados dados a respeito do perfil

    social de vtimas, de agressores, de testemunhas e do corpo de jurados bem

    como dados a propsito da dinmica dos acontecimentos, desde a deteco

    do fato passvel de confisco punitivo at proclamao de deciso pelo

    tribunal.

    A pesquisa privilegiou a comparao entre o perfil social dos

    condenados e o dos absolvidos, com vistas a verificar: os mveis extralegais

    que interferem nas decises judicirias; o contraste entre a formalidade dos

    cdigos bem assim da organizao burocrtica e as prticas orientadas pela

    cultura institucional; o entrecruzamento entre os pequenos acontecimentos

    que regem a vida cotidiana e os grandes acontecimentos que regem a

    concentrao de poderes no sistema de justia criminal; a interseo entre o

    funcionamento dos aparelhos de conteno da criminalidade; a construo de

    trajetrias biogrficas e as operaes de controle social.

    Promoveu-se uma primeira incurso nesse universo emprico

    buscando identificar alguns dos dilemas e desafios que se colocam justia

    criminal em uma ordem democrtica. Nesse momento, observou-se que o

    desfecho processual resulta da conexo de duas ordens de motivao da

    conduta institucional: por um lado, motivaes de ordem burocrtica, presas

    aos cdigos e aos procedimentos formais e que se atinham s posies

    previamente demarcadas de vtimas, agressores ou acusadores. Sob esta

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    tica, o objeto do litgio gravitava em torno do crime, das informaes

    processuais, dos documentos anexados aos autos, do estrito cumprimento

    dos dispositivos legais. Deficincias certamente poderiam ser detectadas,

    porm se deviam s imprecises tcnicas e s divergncias nas interpretaes

    dos estatutos legais.

    Quando, todavia, se dirigiu a ateno para os mveis subjetivos, o

    interesse processual se deslocou do mbito do crime para o comportamento

    criminoso. Nesse deslocamento, iluminou-se objeto distinto: o mundo dos

    homens com seus comportamentos, seus desejos, suas virtudes e vcios, suas

    grandezas e fraquezas, os pequenos dramas da vida cotidiana, a violncia

    endmica entre iguais, a pobreza de direitos que caracteriza a vida dos

    protagonistas, alguns dos quais incidentalmente convertidos em agressores,

    enfim a trama que enreda homens comuns e agentes da ordem em uma

    esquizofrnica busca de obedincia a modelos de comportamento

    considerados dignos, justos, normais, naturais, universais e desejveis. Sob

    este prisma, os embates do tribunal concentravam-se menos na proteo da

    vida enquanto um dos valores capitais de nossa cultura ocidental, porm

    gravitavam em torno de dilemas entre moralidade privada e pblica, cujo

    desfecho podia convergir arbitrariamente para a condenao ou absolvio.

    Neste terreno, estavam criadas as condies para promover a injustia. Esta

    etapa resultou em duas publicaes [Adorno, S. Violncia urbana, justia criminal e

    organizao social do crime. RevistaCrtica de Cincias Sociais. Coimbra: Centro de Estudos

    Sociais, 33: 145-156, out. 1991; Adorno, S. Urban Violence, criminal justice and social

    organization of crime. Current Legal Sociology. A periodical publication of abstracts and

    bibliography in law and society by the Documentation Centre and The Library of The

    International Institute for the Sociology of Law. Oati, Espanha, 1992, no.6, p. 21].

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    Um segundo momento da investigao procurou justamente examinar

    o sentido e o alcance dessa injustia. Tratou-se de explorar as relaes entre

    justia, igualdade jurdica e juzo, mediante exame das sentenas

    condenatrias ou absolutrias decretadas naqueles processos penais

    anteriormente observados. Um propsito dessa ordem insere-se grosso modo

    no horizonte dos estudos que se convencionou chamar de sentencing. As

    principais concluses desta etapa sugerem arbitrariedade na distribuio das

    sentenas, identificam grupos preferencialmente discriminados (pobres,

    negros, nordestinos, cidados incorporados ao mercado informal de

    trabalho) e apontam algumas evidncias de desigualdade no acesso justia

    penal.

    No entanto, segundo sugere Foucault, evidente que a justia penal

    no foi concebida para neutralizar as diferenas de classe. Longe do que

    sonhavam, no final do sculo XVIII e ao longo do sculo XIX, os

    reformadores europeus da justia penal, a universalidade do tratamento

    legal, dispensada a quem quer que fosse, permaneceu apologia do discurso

    jurdico-poltico liberal. No h mesmo quaisquer evidncias que o princpio

    tenha efetivamente se consolidado sequer nas tradicionais democracias

    ocidentais. Ao contrrio, em distintas sociedades, o funcionamento

    normativo do aparelho penal tem tido, por efeito, a objetivao das diferenas

    e das desigualdades, a manuteno das assimetrias, a preservao das

    distncias e das hierarquias. Assim, no h por que falar na existncia de

    contradies entre justia penal e desigualdade jurdica. O mais relevante no

    parece ser o carter de classe das sentenas judicirias. Sequer as operaes

    normativas da justia penal que promovem diferenas e as hierarquizam.

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    Tudo releva de outra origem: a de uma justia penal incapaz de traduzir

    diferenas e desigualdades em direitos, incapazes de fazer da norma uma

    medida comum, isto , incapaz de fundar o consentimento punitivo em meio

    s diferenas e desigualdades e, por essa via, construir uma sociabilidade

    fundada em solidariedades. Razes dessa ordem concorrem para que o

    privilgio da sano punitiva sobre determinados grupos se transforme de

    drama pessoal em drama social.

    O projeto permitiu-me substantivo avano e aperfeioamento

    metodolgicos. Como se sabe, no havia tradio de pesquisa, na rea de

    cincias sociais, sobre a justia penal, menos ainda no que concerne s

    prticas judicirias, na dcada de 1980. Salvo o pioneiro estudo de Mariza

    Correa [Morte em famlia. Representaes jurdicas de papis sexuais. Rio de Janeiro:

    Graal, 1983], na esteira do qual vieram alguns outros estudos sobre prticas

    judicirias, inexistia experincia metodolgica acumulada na observao de

    um espao institucional to peculiar como so os tribunais de justia, em

    particular os de jri, sequer quanto ao tratamento de uma fonte igualmente

    peculiar como so os processos penais. Esse cenrio mudou recentemente

    com os estudos de Sadek, Werneck Viana, Joana Vargas, Andrei Koerner,

    Wnia Izumino. Mas, h ainda muito que fazer nesta seara.

    De incio, foi preciso uma imerso nos rituais institucionais, em seus

    cdigos secretos, em sua diviso nem sempre explcita de trabalho, em uma

    linguagem cujo excessivo hermetismo convida desistncia. Penetrar nos

    meandros do tribunal tambm penetrar na intimidade dos processos

    penais. Neste terreno, h requisitos que no podem ser ignorados. No se

    pode dispensar um conhecimento prvio, at certo ponto minudente, dos

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    cdigos penais (Cdigo Penal e do Processo Penal), sem o que impossvel

    compreender o andamento das investigaes e dos procedimentos judiciais.

    De igual modo, impe-se antecipado estudo exploratrio da estrutura e

    funcionamento do sistema de justia criminal para saber algo a respeito de

    seus principais protagonistas, em especial de suas estratgias formais de

    ao. Como os processos buscam descobrir verdades, recomendam-se

    sucessivas leituras para que se possa perfilar o recontar infinito de verses

    sobre um mesmo fato. Alis, foi justamente esta ltima circunstncia

    responsvel por um dos desfechos de anlise, aquele que sugeriu uma linha

    de interpretao dos processos que transita do fato- a morte de uma pessoa -

    para o acontecimento- o complexo jogo de operaes institucionais reunidos

    em torno do direito de punir. Foi justamente por ter podido desfrutar desta

    aventura metodolgica que adquiri maior confiana e segurana face aos

    projetos que posteriormente empreendi neste campo institucional. Esta

    segunda etapa deste projeto ofereceu-me a oportunidade de organizar, para a

    Revista USP, um dossi sobre o judicirio, reunindo contribuies de vrios

    autores, entre os quais Trcio Sampaio Ferraz, Maria Teresa Sadek, Mariza

    Correa, Andrei Koerner, Oscar Vilhena, Eduardo Faria, Celso Campilongo.

    Aproveitei a oportunidade para publicar os resultados finais deste estudo.

    Este trabalho, que me conferiu satisfao pessoal, ainda bastante

    referenciado e acabou inclusive sendo re-publicado [Adorno, S. Crime, justia

    penal e desigualdade jurdica. Os crimes que se contam no tribunal do jri. Revista USP. So

    Paulo, 21: 132-51, 1994, mar./mai.; Adorno, S. Crime, justia penal e desigualdade jurdica.

    In. Falco, J. e Souto, C.Sociologia e direito: textos bsicos para a disciplina de sociologia

    jurdica. 2.ed. So Paulo: Pioneira, 1999].

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    Meus vnculos com o CEDEC encerraram-se com o final desta

    pesquisa, embora eu tivesse convite para permanecer e mesmo houvesse

    apresentado projeto para continuidade. No entanto, desde 1987, meus

    compromissos com a Universidade de So Paulo USP, na qual eu havia

    ingressado, por concurso no ano anterior, se tornaram mais intensos,

    ganharam uma amplitude e diversidade antes desconhecidas em minha

    carreira de pesquisador. sabido que as incumbncias burocrticas

    constituem fardo doloroso e enfadonho o qual nos rouba horas que melhor

    poderiam ser dedicadas em outras atividades produtivas como preparar

    cursos, ministrar cursos, atender alunos, orientar trabalhos acadmicos, a par

    da pesquisa cientfica tudo compondo uma agenda de atribuies bastante

    exaustiva. Concili-la com as atribuies em outra instituio pareceu-me

    temeroso, porquanto no conseguiria desempenh-las bem em qualquer

    delas. Optei por concentrar-me na universidade com a qual guardo profunda

    identidade.

    Departamento de Sociologia USP (1986): Ingressei no

    Departamento de Cincias Sociais em virtude de processo seletivo, em maro

    de 1986. [PROFESSOR ASSISTENTE DOUTOR, rea de Sociologia, do Departamento de

    Cincias Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de

    So Paulo. Admisso a partir de 01/03/86, conforme ato publicado no D.O.E. - Executivo, de

    08/03/86.]

    O ingresso nos quadros do prestigiado Departamento de Cincias

    Sociais abriu-me novos horizontes de investigao, docncia e extenso

    universitria. Na USP, desejei retomar minhas inclinaes para o

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    desenvolvimento da sociologia histrica, que haviam sido seladas com a tese

    de doutoramento. Mas, ao mesmo tempo, no queria me distanciar desse

    objeto emprico que vinha me seduzindo: a violncia, o crime, o controle

    social. Em particular, estava interessado em compreender o modo pelo qual

    foi possvel, em uma cidade como So Paulo, transitar para uma ordem social

    contratual em direo ao capitalismo enfrentando problemas de desordem

    urbana, em parte associados transio do trabalho escravo ao trabalho livre.

    Certamente, o livro de Boris Fausto [Crime e cotidiano, a criminalidade em So

    Paulo, 1880-1924. So Paulo: Brasiliense, 1984] deixou-me profundas impresses e

    me estimulou a propor um projeto de pesquisa no qual, embora no

    explorasse diretamente o mesmo objeto emprico, trabalhava com temas que

    lhe eram muito caros como o funcionamento das agncias de controle social.

    Ademais, o tema da desordem urbana e das formas de disciplina social me

    levava de encontro ao estudo da obra de Michel Foucault que se tornou um

    objeto de interesse terico e de prazer intelectual.

    Desordem urbana, Controle Social

    e Filantropia (1986-1991)

    A pesquisa A Cruzada Filantrpica: A Assistncia Social

    Institucionalizada em So Paulo, 1880-1920 foi realizada com apoio do

    CNPq [processos nos. 303889/86-1, 804014/86-4 e 824009/88-6] e da FAPESP [proc.

    90/2451-6]. A pesquisa teve por objeto o processo de transformao da

    filantropia, na cidade de So Paulo, no ltimo quartel do sculo passado e

    incio do sculo XX. Buscou-se explicitar a mutao nas regras de ao

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    prtico-normativa das instituies de assistncia social, processo pelo qual a

    filantropia caritativa se converteu em filantropia higinica, orientada por

    princpios procedentes da medicina social. Pretendeu-se abordar o objeto

    mediante o cumprimento de objetivos especficos. Primeiro, verificar quais as

    relaes existentes entre a diversificao do perfil urbano e a conseqente

    emergncia da estrutura de classes na cidade de So Paulo e as alteraes que

    se operam nas instituies de assistncia social. Segundo, identificar as

    instncias de produo discursiva, de produo de poder e de produo de

    saber [Cf. Foucault, M. (1979). Histria da sexualidade I. A vontade de saber. Rio de

    Janeiro: Graal] sobre os desamparados sociais, verificando os efeitos do

    funcionamento dessas instncias nas prticas institucionais. Terceiro,

    identificar os servios de assistncia social, nos setores pblico e privado,

    destinados s diversas categorias de desamparados: enfermos, invlidos,

    mendigos, crianas abandonadas, alienados mentais, leprosos, presos etc.,

    mapeando a rede de relaes sociais entre as diversas modalidades de

    assistncia prestada. Quarto, explicitar as relaes entre a filantropia pblica

    e a privada. Por fim, caracterizar as prticas discursivas e no-discursivas,

    promotoras da eficcia da interveno tcnica nas instituies de

    assistncia social.

    Esse recorte emprico requereu problematizar as interpretaes

    correntes, na sociologia urbana, a respeito da cidade e de seus modos de

    controle social. Pensar a vida social na cidade significa pensar uma certa

    modalidade de relao de seus habitantes entre si e com os objetos -

    territrios, casas, servios, mercadorias - constitudos s suas voltas. Sob esta

    perspectiva, tratava-se de apreender no somente as mudanas estruturais

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    que se expressam na acumulao da riqueza, na concentrao dos meios de

    produo, na hierarquizao das relaes sociais, na constituio da moderna

    sociedade de classes; mas tambm - e sobretudo - os novos tipos humanos

    emergentes, as formas de sociabilidade, a apropriao e uso do espao, o

    exerccio da sexualidade, a privacidade das famlias, a vida nos interiores das

    instituies de controle e de reparao social, o mundo cotidiano das fbricas

    e da reproduo da fora de trabalho.

    Em sua formulao original, a pesquisa foi pensada no interior de um

    quadro terico determinado: o da genealogia do poder. [Cf. Foucault, M. Vigiar e

    punir. Histria da violncia nas prises. Rio de Janeiro: Petrpolis, 1977]. O universo

    emprico de investigao compreendeu as instituies de assistncia social

    existentes em So Paulo, no perodo considerado, de natureza pblica e

    privada. O perodo escolhido justifica-se por ser aquele no qual se verificaram

    substanciais alteraes no espao urbano, representadas pelo crescimento

    populacional, pela diversificao de sua composio social, pela

    transformao desta cidade no mais importante mercado de meios de

    produo e de fora de trabalho, pela instaurao da acumulao capitalista.

    A pesquisa valeu-se de fontes de informaes primrias e secundrias, entre

    as quais: atas de instituies, documentos sobre a histria e costumes de So

    Paulo, correspondncia oficial, coletnea de leis, relatrios do governo

    provincial e das secretarias de Estado, almanach do Estado, memrias e

    biografias de filantropos e imigrantes, alm de obras especializadas sobre

    assistncia social e sobre a cidade de So Paulo, bem assim bibliografia

    terica.

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    Os resultados da investigao revelaram que o modo pelo qual a cidade

    enfrentou os desafios que diante dela se colocavam criou srios obstculos

    formao do social- mais propriamente de uma esfera pblica burguesa - e

    consolidao do contrato. A cidade converteu-se simultaneamente no locus

    privilegiado de realizao plebia, em cuja origem esto associadas as

    imagens de perdio e de degradao que a elite ilustrada e culta soube

    cunhar cuidadosamente, nos anos que se seguiram instaurao do regime

    republicano, atravs das instncias em que se encontrava autorizada a falar:

    na imprensa, na tribuna, nos crculos intelectuais de produo e de

    disseminao de idias. Locus privilegiado de realizao plebia, a cidade

    mostrava sua face escura: a pobreza que se espelhava na ocupao

    desordenada dos espaos, em suas mltiplas dimenses; na diversidade dos

    tipos humanos, dificilmente redutveis a um padro nico de contraente - o

    trabalhador fabril - que se pretendia forjar; na heterogeneidade dos

    costumes, que fazia da cidade um nicho de culturas muito pouco compatvel

    com a cogitada universalidade da moral burguesa; na contrariedade dos

    ambientes que depunha contra os propsitos reformadores urbanos de fazer

    da cidade o lugar por excelncia da civilizao e do progresso.

    Impunha-se, por conseguinte, o imperativo de costurar a ordem social

    fraturada e fragmentada em mltiplos recortes. Era indispensvel operar o

    contrato, ainda que para faz-lo se devesse recorrer a mecanismos paralelos e

    subsidirios. Evidentemente, a sociedade brasileira, mais particularmente o

    cenrio social concentrado em So Paulo, no se encontrava, na conjuntura

    de 1880-1920, preparada para a fundao de um verdadeiro Estado de bem-

    estar social - inveno recente - que protegesse a populao urbana,

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    trabalhadora, das adversidades da pobreza e incorporasse o modelo

    contratual de organizao societria. Outra no foi a alternativa seno colocar

    em cena a filantropia. Tratava-se, em verdade, de uma operao delicada:

    prestar socorro e assistncia aos pobres sem que isso se convertesse em

    direito pobreza. A emergncia da filantropia higinica, na cidade de So

    Paulo, no perodo enfocado, buscou fixar modalidades sui generisde relaes

    hierrquicas entre micropoderes, constituindo a trama do complexo tutelar,

    introduzindo uma nova arte de administrar a cidade e fazendo com que o

    Estado se governamentalizasse [Adorno, S. A gesto filantrpica da pobreza urbana.

    So Paulo em Perspectiva. Revista da Fundao SEADE. So Paulo, 4(2): 8-17, 1991,

    abr./jun. Adorno, S. e col. A cruzada filantrpica: a assistncia social institucionalizada em

    So Paulo, 1880-1920. Banco de referncias bibliogrficas. Dossi NEV. So Paulo:

    NEV/USP, no. 1, 1991. 157p. Adorno, S. Educao e patrimonialismo. In: O pblico e o

    privado na educao brasileira contempornea. Cadernos CEAS. Campinas: Centro de

    Estudos de Educao e Sociedade: Ed. Papirus, 1991, no. 25. pp. 9-26. Adorno, S. e col.A

    cruzada filantrpica. A assistncia social institucionalizada em So Paulo. 1880-1920.

    Relatrio de Pesquisa. CNPq e FAPESP. So Paulo: NEV/USP, 1992. mimeo. 133p. e anexos].

    Do controle social

    ao obsessivo direito de punir (1991-1996)

    NEV (1987): Minha carreira de pesquisador comeou a ganhar uma

    dimenso diferente a partir da criao do Ncleo de Estudos da Violncia

    NEV/USP, informalmente a partir de 1987 e oficialmente como um Ncleo de

    Apoio Pesquisa NAP, desde setembro de 1990, ligado Pr-Reitoria de

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    Pesquisa. As particularidades desta histria constituem captulo a ser

    rememorado mais frente. Por ora, vou me ater ao significado do NEV em

    minha carreira de pesquisador.

    Desde j, convm sublinhar, o NEV foi uma escola de aprendizado do

    trabalho cientfico sob modalidades no habituais nas cincias sociais.

    Refiro-me ao trabalho realizado coletivamente sob a coordenao de um

    pesquisador titulado e mediante uma diviso de tarefas segundo graus

    distintos de complexidade confiados a pesquisadores em distintas fases de

    formao. certo que no se trata de nenhuma novidade. Em vrias capitais

    do Brasil, em especial So Paulo e Rio de Janeiro, grupos de excelncia foram

    se constituindo desde os anos 60 do sculo passado, consolidando sua misso

    em torno das formas organizadas do trabalho intelectual. Sem querer ser

    exaustivo e desculpando-me, desde j, por eventuais injustias e

    esquecimentos, no h como desconhecer a importncia de centros como o

    CEBRAP, o CEDEC, o IDESP, a Fundao Carlos Chagas, em So Paulo; o

    ISER, o IUPERJ e a Fundao Getlio Vargas, no Rio de Janeiro. Todos eles

    fizeram escola. Porm, a criao de ncleos nas universidades pblicas, em

    especial na UNICAMP e na USP veio introduzir algo novo nesse cenrio. Mais

    propriamente fez com que uma nova diviso de trabalho intelectual passasse

    a competir com as tradicionais formas artesanais de produo nas cincias

    sociais e nas humanidades, formas que foram responsveis por uma

    criatividade quase sem limites e que resultaram em obras e autores de

    referncia para todos ns.

    O NEV foi criado no contexto desse segundo momento da histria da

    diviso social do trabalho intelectual nas universidades pblicas brasileiras,

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    ao menos no que se refere s humanidades. No domnio da pesquisa, o NEV

    guarda suas particularidades. Em primeiro lugar, um esforo sempre

    renovado de realizao de um trabalho de pesquisa internamente articulado,

    em torno de duas ou trs linhas de investigao, a despeito das

    especificidades dos distintos projetos de pesquisa em andamento. As linhas

    conversam entre si, os projetos alimentam o conjunto da produo cientfica,

    o solo terico-metodolgico comum. Deste modo, preciso estar sempre

    disponvel para ouvir o outro, compreender seus argumentos, ler bibliografia

    nem sempre prpria de seu campo disciplinar de formao. A pesquisa acaba

    resultando de um efetivo intercmbio. Os programas no refletem interesses

    exclusivamente pessoais, porm lacunas que precisam ser preenchidas e

    tarefas que necessitam ser enfrentadas.

    Mas, para alm desse esforo, o maior aprendizado tem a ver com a

    prpria natureza dos objetos com que lidamos. Estudos no campo da

    violncia e dos direitos humanos no podem ficar encerrados nos limites dos

    gabinetes e dos laboratrios cientficos. A dinmica dos conflitos sociais, os

    acontecimentos da vida cotidiana que agridem direitos humanos

    fundamentais, a profuso de modalidades violentas de superao das tenses

    sociais, nos seus mais distintos aspectos e dimenses tudo isso faz que com

    a dialtica entre movimento social e produo de conhecimento seja muito

    estreita. Para alguns, esse trao pode soar como uma espcie de militncia

    poltica que se esconde sob a capa de pesquisa cientfica, j que dois dos

    requisitos necessrios produo do conhecimento no estariam

    efetivamente garantidos, quais sejam: a neutralidade cientfica e a distncia

    face s presses da sociedade. De fato, uma pesquisa como a desenvolvida

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    pelo NEV no consegue, por mais que o queira, virar as costas s presses

    sociais e s demandas por maior segurana e maior proteo de seus direitos

    fundamentais. No entanto, nossos instrumentos de investigao continuam a

    ser aqueles prprios da comunidade cientfica: rigor terico-metodolgico,

    atualizao bibliogrfica, crtica ao senso comum, aplicao de meios e

    instrumentos, quer de levantamento de dados empricos quer de anlise

    segundo os procedimentos legtimos no interior das cincias sociais e das

    humanidades. Por isso, o timing da investigao cientfica no coincide

    necessariamente com a urgncia de interveno no debate pblico e na

    formulao de polticas pblicas. No raro, oferecer uma resposta

    convincente sociedade e s suas lideranas civis e polticas demanda um

    percurso longo e muitas vezes pleno de sinuosidades, quase sempre

    escondido sob a aparente simplicidade da comunicao pblica atravs dos

    meios proporcionados pela mdia impressa e eletrnica.

    Esta dialtica entre eventos e investigao no tarefa fcil de ser

    alcanada com xito. Por um lado, requer do pesquisador pacincia para

    escutar minudentemente as diferentes falas sociais, por mais que lhe paream

    bizarras, sofridas, emocionadas, srdidas, cnicas enfim seja l o que for.

    Por outro, se esta escuta indispensvel para aguar a imaginao

    sociolgica, ela no pode ser o norte do pesquisador. Da a necessidade

    permanente de adensar a reflexo crtica, de inovar na capacidade de oferecer

    respostas aos problemas sociais e dar um salto de qualidade no conhecimento