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Instituto Diocesano de Estudos Pastorais (IDEP) ESPIRITUALIDADE SÉC. XV - XVI Pe. José Carlos A.A. Martins

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Instituto Diocesano de Estudos Pastorais (IDEP)

ESPIRITUALIDADE SÉC. XV - XVI

Pe. José Carlos A.A. Martins

Instituto Diocesano de Estudos Pastorais (IDEP)

GERARDO GROOTE (1340-1384) E A DEVOTIO

MODERNA

Em sentido cristão “devoção” é uma palavra quase exclusivamente

usada pela vida de fé. Com S. Bernardo e com a Cartuxa de S. Bruno, vem

usada para exprimir o fervor interior da caridade, da qual nasce a

contemplação, isto é a devoção entre aderir e repousar em Deus. Segundo S.

Tomás de Aquino, “devoção é o acto interior de cada religião, por meio do qual

o crente se doa, alegremente ao serviço de Deus”. Esta doutrina reencontramo-

la em S. Boaventura, com a acentuação sobre Cristo e os seus mistérios.

“Moderna” é o adjectivo diferencial que, etimologicamente equivale a

“novo”, “actual”. A “Devoção Moderna”, quer propor um modo de piedade

actualizado, “aggiornato” ao seu tempo. O acento é posto na interioridade

afectiva.

Nascido em Deventer ( Países Baixos), Gerardo Groote é o iniciador

principal deste movimento; estudou em Paris. Uma doença, quase que o levou

à morte, e fê-lo mudar de vida(conversão); renuncia às prebendas eclesiásticas

e inicia um retiro nos Cartuxos (Munnikshuizen, Arnhem), onde permanece

cerca de três anos e onde sente a exigência de uma vida cristã mais autêntica,

mais apostólica, sobretudo. Torna-se um ardente reformador do clero de Utrcht.

Entre os diversos livros, que encontrou na Cartuxa, estavam os de beato

Johannes Ruusbroeck (1283-1381) grande místico, prior do convento agostinho

de Groenendael perto de Bruxelas. Entre os seus escritos encontra-se o

“Ornamento das núpcias espirituais”, uma mística esponsal da qual Sta. Teresa

e S. João da Cruz, darão, como veremos mais tarde, um profundo

ensinamento.

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Groote, concebe a mística esponsal e especulativa, mas dessa toma

acima de tudo os conselhos ascéticos e práticos. As razões são várias e

diversas; uma é certamente a situação originada pelas epidemias, como a

peste e as calamidades físicas. Diante da dor, das doenças, das guerras, e.t.c.,

a espiritualidade inspirada na metafísica neoplatónica, parecia muito

complicada para a gente comum. Ponto de referência para a reforma espiritual,

é a Sagrada Escritura e, unida com ela, a pessoa de Jesus, a sua vida e a sua

mensagem; descobre-se como “mestre interior”, do qual já tinha falado Sto.

Agostinho. Propõe-se a configuração a Cristo que implica o baptismo: despojar-

se do homem velho para se revestir do homem novo, Cristo. Neste sentido a

meditação da paixão, morte e ressurreição de Cristo, tem um papel central para

a Devotio Moderna.

O livro de Groote “De quattor generibus meditabilium” (quattro géneros

de argumentos ou razões para meditar) propõe isto:

1) O que a escritura diz sobre a vida de Cristo;

2) O que é revelado privadamente aos santos sobre os mistérios da vida de

Cristo;

3) O que sobre isto dizem os teólogos;

4) O que construímos com a nossa imaginação, as imagens que possamos

fazer-nos sobre a vida de Cristo;

Os argumentos dignos de meditação são para ele dados pela Sagrada

Escritura, mas o quarto é reconduzível à Sagrada Escritura, pois como ele

argumenta, também a Sagrada Escritura usa imagens e figurações para

transmitir a Palavra de Deus. Assim é legítimo servir-se da imaginação para a

oração, mas sem nos determos em demasia no sensível que esqueceria o

supra sensível transcendente, o divino. Por outras palavras: na vida de fé deve

ter-se um equilíbrio justo entre as forças da imaginação e as da razão, evitando

tanto o racionalismo abstracto (mística especulativa) quanto a ingenuidade de

uma religiosidade demasiado antropomórfica.

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A Devotio Moderna mostra-nos uma espiritualidade que sabe ser fiel à

humanidade de Jesus, à sua vida, morte e ressurreição, unida à sua divindade,

evitando todo o espiritualismo de uma piedade desencarnada, neoplatónica,

ascética própria da mística especulativa que atravessa o Jesus histórico,

quanto o é objectivismo ingénuo de uma fé grosseira.

A estrutura central da Devotio Moderna é iniciada por Groote, não só

com os seus ensinamentos, mas também de modo concreto; fundou “As irmãs

da vida comum”. “Comum” significa não só vida em comum, juntos, mas uma

forma de vida “ordinária”, comum a todos, que gera comunhão, um estilo de

vida “íntimo” com Deus (contemplativo), fundamento da vida comum com os

outros. Esta é a única comunidade nascida sob a orientação de Groote, pois

sob os seus sucessores, em particular F. Radewijns(1350-1400), desenvolveu-

se uma forma de comunidade mais organizada mas ainda sem votos solenes,

contudo vivendo em pobreza, castidade e obediência. Renunciavam aos bens

patrimoniais, e dedicavam-se à cura dos doentes e ensinavam às raparigas os

trabalhos domésticos.

Os “Irmãos de vida comum”, fundados por Radewijns, estavam

organizados de forma semelhante às “Irmãs”, sem votos solenes e sem regras

monásticas. Alem da oração, trabalhavam nas transcrições e nas miniaturas de

livros, trabalho considerado importante para a propagação da fé. Ocupavam-se

também no ensino, aos jovens nos colégios, nos quais encontravam um

espaço amplo para as práticas espirituais, próprias da Devotio. Um destes foi o

colégio de Montaigu em Paris, onde estudaram Erasmus, Calvino e Sto. Inácio.

Também Lutero frequentou as escolas destes “Irmãos” que não têm regras

mas “consuetudines”. Trata-se essencialmente de organização da vida interna

da casa: horário e demais ocupações do dia. A sua casa não tem nada de

Mosteiro ou de Convento: é uma casa de dia a dia comum, “ordinária” sob a

orientação dum sacerdote, que fazia de superior e seguia o dia da casa, a

oração e o trabalho, a mesa comum, e praticavam a correcção fraterna e outros

exercícios de caridade. Sobretudo cultivavam a leitura da Sagrada Escritura.

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Os grupos de irmãos da vida comum aumentaram rapidamente, porque

os próprios jovens dos seus colégios lhes pediam a admissão. Assim, por

exemplo, o jovem Tomás de Kempes fez parte de uma destas comunidades em

Deventer (de 1392 a 1397). A experiência feita pelos jovens que frequentavam

as escolas dos Irmãos, mostrou a Radewijns que entre eles marcavam aqueles

que buscavam uma forma de vida mais monástica, capaz de unir a vida

contemplativa com a vida activa. Portanto a partir desta ideia ele fundou a

comunidade dos Cónegos regulares de Sto Agostinho em Windesheim(1387),

terceira forma de vida comum da Devotio.