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Um Homem sem Compaixão Anne Hamson

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Um Homem sem CompaixãoAnne Hamson

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Uma viagem a Chipre para rever velhos amigos e deixar-se envolver pela paisagem do mar Mediterrâneo talvez fosse a solução para Helen esquecer o casamento desfeito de modo tão brutal. Ainda estava muito vivo em sua memória aquele trágico acidente em que seu marido morrera... nos braços de outra mulher. Mas embora Helen não quisesse mais amar, o destino lhe preparava uma cilada colocando em seu caminho Leon Petrou, um homem de alma de gelo e coração de pedra, para quem as mulheres não passavam de empreendimentos comerciais de que se deveria tirar todo o lucro possível!

CAPÍTULO I

A proposta era agradável, admitiu Helen,observando sua amiga com interesse. Voltaria mais uma vez à bonita ilha de Chipre, com despesas pagas e uma remuneração por seu trabalho. Aliás, não se tratava propriamente de trabalho, mas apenas de acompanhar duas crianças numa viagem, entregando-as, depois, aos cuidados do tio, Leon Petrou, um grego cipriota que vivia na encantadora aldeia de Lapithos, nas montanhas, a oito milhas de Kyrenia, na costa norte da ilha.

— Foi bom você ter se lembrado de mim — disse ela, com uma súbita vivacidade que lhe apagou a tristeza do rosto, devolvendo-lhe a suave e delicada beleza. — Como você sabe, eu não tenho férias há quase três anos.

— Por isso mesmo eu pensei em você, logo que meus amigos me falaram sobre esse trabalho. Será uma mudança maravilhosa, depois de sua doença. Novembro é um mês excelente para férias; não é muito quente, e você ainda pode tomar banhos de mar e se bronzear na praia. Além disso, você tem uma amiga na ilha, que poderá hospedá-la por uma ou duas semanas.

— Ela gostará de minha visita — respondeu Helen, segurando o bule e oferecendo a Brenda um pouco mais de chá. — Trudy é casada com um cipriota, já lhe contei? Eles têm um apartamento bem perto de Nicósia.

Trudy era uma velha amiga de escola e Helen Stewart não a encontrava desde que a outra se casara com Tasos, seis anos atrás. Ele era um rapaz elegante, e Trudy o conhecera durante um de seus períodos de férias, em Chipre.

Apesar da distância e da longa separação, elas continuavam boas amigas e se correspondiam regularmente. Trudy convidara Helen diversas vezes para ir à ilha, passar férias com eles. Esta seria uma ótima oportunidade e Helen sentiu um interesse crescente enquanto Brenda lhe dava mais detalhes sobre o novo trabalho.

— Como eu já lhe disse, Bill e Jean, esses meus amigos, são vizinhos do pai das crianças. Quando ele foi para o hospital, meus amigos pensaram que ele voltaria logo para casa e se ofereceram para cuidar das crianças. Mas o pobre homem vai ficar no hospital por vários meses e Bill e Jean não podem cuidar das crianças indefinidamente. A casa é pequena e eles têm filhos. O pai achou melhor que elas fossem para a casa do tio, em Chipre.

Brenda tomou seu chá e ambas estiveram pensativas por um momento.— É bom que você saiba também — disse Brenda, preocupada — que esse tio relutou

muito em aceitar as crianças. Parece que ele não se interessa muito por elas. Aparentemente ele odeia as mulheres — acrescentou Brenda, com uma pequena risada. — Não deve ser uma pessoa muito agradável.

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— Acho que você tem razão — concordou Helen, reprovando a idéia de duas criancinhas terem de viver com um homem desse tipo. — E uma pena que esses seus amigos não possam continuar com elas.

— É impossível — disse Brenda, tomando outro gole de chá. Helen ficou um instante em silêncio e depois murmurou, quase que para si mesma: — E além de tudo, ele não gosta de mulheres! — Helen pensou em sua própria atitude em relação aos homens e perguntou a si mesma: — Será que alguma mulher o desiludiu? — Brenda ouviu a pergunta e respondeu:

— Aparentemente ele odeia as mulheres pelo que a esposa de seu irmão fez. Ela o abandonou por outro homem, deixando o marido com dois bebês. Chippy tinha dois anos e Fiona apenas um ano de idade.

Alguns homens também eram egoístas, pensou Helen em silêncio, recordando os três anos que vivera com Gregory.

Um casamento normal e feliz, ou pelo menos ela havia acreditado nisso. Mas quando seu marido foi encontrado morto, em meio aos destroços de seu carro, uma jovem do escritório estava com ele. Uma amiga, para confortá-la, lhe dissera a tradicional frase, aplicável à circunstância: "A esposa é sempre a última a saber". Forçada a aceitar o fato de que o romance já durava um ano, Helen foi tomada de uma grande mágoa. Aquilo era o pior que ela poderia ter imaginado. Sua fé nos homens acabou-se para sempre e ela jurou nunca mais confiar neles, e muito menos dar oportunidade para que isto ocorresse novamente. Em decorrência do choque, Helen adoecera e se esgotara, física e financeiramente. Depois de dois anos, sua saúde se restabelecera e ela agora tinha esperanças de conseguir um cargo no es-critório em que trabalhara antes de seu casamento. Mas o lugar só ficaria vago depois do Natal e, por esta razão Helen estava livre para aproveitar a oportunidade de visitar Chipre.

— Que idade têm as crianças agora? — perguntou subitamente, como se despertasse de seus devaneios.

— Chippy está com oito anos e Fiona com sete. Eles são muito levados e você pode ter certeza que merecerá o dinheiro ganho.

— Claro, uma proposta como essa nunca é feita a troco de nada — retrucou Helen, Seus lindos olhos azuis pareciam mais tristes e ela pensava em seu próprio filho, que estaria agora com quatro anos. Mas ela e Gregory o tiveram por menos de seis meses. — Em todo caso, gosto de crianças peraltas — disse ela.

— Tenho medo de que esses dois malandrinhos sejam peraltas demais — advertiu Brenda. — Provavelmente eles se tornarão cansativos antes do fim da viagem. O pai deles, certa vez, sofreu um acidente numa aterrissagem e por esta razão não os mandaria de avião. Mas você poderia voltar de avião, se quisesse... e, é claro, se estiver interessada na proposta...

— Lógico que estou — respondeu Helen.Depois de visitar o pai das crianças e lhe causar uma impressão favorável, Helen foi

com Brenda ver Chippy e Fiona. Uma semana mais tarde, após viajar até Atenas, de trem, Helen e as crianças estavam a bordo do Knossos, seguindo para Chipre.

As crianças estavam em pé, junto à amurada do navio, fascinadas pelo maravilhoso pôr-do-sol, e Helen, de sua cadeira no convés, a pouca distância, não as perdia de vista. Por volta das dez horas da manhã seguinte, Helen deveria deixá-las para sempre. Esse pensamento lhe trouxe um sentimento de melancolia e ela não pôde deixar de pensar em como as crianças haviam se tornado rapidamente tão queridas para ela. Diante dessa constatação, sentiu-se ansiosa quanto ao futuro de Chippy e Fiona e ao seu relacionamento com o tio, que não gostava nem de mulheres nem de crianças. O que aconteceria a eles? Censurando-se por se preocupar em demasia com esses assuntos, Helen resolveu deixá-los de lado, pois sua única obrigação era entregar as crianças ao tio. Depois disso, estaria livre para desfrutar suas férias na ilha. O que eventualmente acontecesse a Chippy e a Fiona não era problema seu.

— Venha ver, senhora Stewart — gritou Fiona, voltando-se para Helen e estendendo sua mão — Olhe a luz brilhando na água!

Levantando-se, Helen colocou seu livro sobre a cadeira e caminhou até a amurada, segurando a mão que lhe era estendida. A mãozinha era pequena e morna; os dedos en-

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rolaram-se procurando proteção e Helen sentiu um peso no coração, ao compreender que aquela pobre criança talvez nunca tivesse sentido o amor de uma mãe.

— Não é bonito? — perguntou Chippy, voltando-se para ela e lhe segurando a outra mão, para não ser "vencido" pela irmã. — Parece que o mar está pegando fogo.

— Sim... é muito bonito — concordou Helen, observando o rápido declínio do sol. Enquanto este submergia, cada vez mais a linha de fogo sobre o mar se afastava do navio, em direção à ilha.

— Está escurecendo. Por que está ficando escuro tão rápido? — quis saber Fiona, virando-se, admirada e confusa, para Helen. Esta então lhe explicou que naquela parte do mundo o sol se punha muito depressa e por isso a noite caía com maior rapidez.

— Então não poderemos brincar na rua ao anoitecer? — perguntou Fiona, com uma expressão de desapontamento. — Acho que não vou gostar daqui.

— Claro que vai gostar — disse Chippy. — Sinta como o clima é agradável. Onde morávamos faz muito frio e, de qualquer maneira, você não podia brincar fora de casa!

— Chippy está certo — concordou Helen, divertida com a expressão de Fiona —, você vai usar novamente suas roupas de verão... poderá usá-las durante o ano todo.

— O ano todo? — Fiona abriu ainda mais os seus já imensos olhos castanhos. — Não existe inverno aqui?

Helen negou com a cabeça e achou que não era necessário explicar que havia um período de inverno muito curto, mesmo porque o clima ainda estava bastante quente.

Eles assistiram em silêncio ao anoitecer e então Fiona deu um triste suspiro.— Eu gostaria que ficasse conosco, senhora Stewart. Não gosto de pensar que a

senhora vai embora, deixando-nos com tio Leon.— Eu também não — acrescentou Chippy. — Tio Leon é ruim, ele não deixa você fazer

nada. Faz você ficar quieto. E se você não fica quieto, ele olha para você assim... — E Chippy contorceu tanto seu rosto que Helen não pôde deixar de rir, apesar de ter voltado toda sua preocupação para a felicidade das crianças.

— Tenho quase certeza de que ele não olha assim — respondeu Helen. E acrescentou, curiosa: — Então vocês conhecem seu tio?

— Sim, ele nos visitou algumas vezes.— Somente duas vezes, Chippy — corrigiu com rigor Fiona, mas Chippy negou:— Três vezes. Você não se lembra da primeira porque era muito pequena.— Sou apenas um ano mais nova que você!— Bem, você era apenas um bebê quando ele nos visitou pela primeira vez, mas eu me

lembro porque ele disse ao papai que eu devia apanhar.— Por quê? O que você fez?— Não sei, mas papai sempre disse que o tio Leon não entende as crianças.— Mas a senhora entende — disse Fiona, apertando a mão de Helen. — A senhora

pode ficar conosco?— Receio que isto não seja possível, querida Fiona.— É por que a senhora não quer?— Não é isso. Mas seu tio não iria me querer. — A senhora ficará se nós pedirmos a ele?Rindo da solução que Chippy encontrara, Helen disse ter certeza de que o tio Leon já

havia arrumado uma pessoa que tomasse conta deles.— Mas nós queremos a senhora — insistiu Fiona, com voz meiga. — Porque tem de

voltar? A senhora tem filhos?— Não, não tenho — respondeu Helen. Fiona lhe deu um aperto na mão e Helen sentiu

que a menina, com sua sensibilidade infantil, havia percebido a tristeza no tom de sua voz. Emocionada, Helen também apertou carinhosamente os dedos da menina.

— Olhem, estão vendo a silhueta de um castelo? — Helen apontou para a ilha, tentando distrair as crianças; mas não conseguiu interessá-las. Pareciam desanimadas por perceberem que a viagem chegava ao fim.

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O desânimo continuou durante o jantar e Helen se lembrou de como lhe haviam descrito Chippy e Fiona como duas crianças travessas.

Mais tarde, na cabina, Helen tentou tirá-las da melancolia dizendo-lhes que, se não se sentissem felizes com o tio, isto seria somente por uma temporada, pois iriam voltar para o pai depois de poucos meses.

— A senhora volta direto para sua casa, quando nos deixar de manhã? — perguntou Chippy, negando-se a ser consolado.

— Antes disso passarei férias com uma amiga minha que mora em Chipre — respondeu Helen, inclinando-se para endireitar a coberta de Chippy. — Depois voltarei para casa, na Inglaterra.

— Quanto tempo a senhora vai ficar aqui?— Provavelmente duas semanas — disse Helen. Havia uma incerteza em sua voz, pois

embora tivesse telegrafado, avisando Trudy, sabia que a resposta só chegaria depois do embarque, pensou, esperando que sua visita não atrapalhasse Trudy e seu marido.

A ilha já estava à vista quando, às sete horas da manhã seguinte, Helen deixou as crianças dormindo e foi para o convés. O navio dirigia-se para o leste, percorrendo a costa sul da ilha, a uma certa distância.

— Paphos — disse alguém atrás de Helen, e ela se voltou, curiosa. Ali estava Robert Storey, que viajava sozinho, voltando da Inglaterra, onde fora visitar seus pais. Durante a viagem ficara bastante tempo com Helen e as crianças, ocupando a mesma mesa durante as refeições e sentando-se com elas no convés. Tiveram o navio praticamente para eles, porque novembro era um mês pouco escolhido para viagens, e havia somente umas poucas pessoas a bordo. — Em mais ou menos três horas estaremos desembarcando — disse Robert, com uma certa ansiedade.

— Três horas?! — exclamou Helen, surpreendida, olhando novamente para a ilha. — Parece tão perto.

— É quase a distância de Paphos até Limassol. Paphos, como você pode ver, fica logo no lado oeste da ilha. — Ele se aproximou de Helen, que não saiu do canto em que estava. Embora não se interessasse mais pelos homens, não pôde deixar de gostar de Robert, com sua expressão sincera e seus claros olhos azuis. Ele era um solteirão e havia lhe contado que, depois de ter passado longas férias na ilha, apaixonara-se tanto por ela que comprara uma pequena casa ao lado de uma colina e se mudara para lá. Ele era um artista e morava em Lapithos. Conhecia Leon Petrou, o tio das crianças, mas somente de vista.

— Ele tem um temperamento terrível — contou Robert, quando Helen mencionou a razão de sua viagem. — É um solteirão inveterado, mas, logicamente, deve ter seus divertimentos.

Helen corou levemente, mas Robert apenas riu e, para seu total embaraço, completou dizendo que nenhum cipriota podia viver sem uma mulher.

— Eles irão contar-lhe isso. O clima é a desculpa deles, ou talvez a "explicação", que é uma palavra melhor, pois um cipriota nunca sonha em desculpar sua conduta.

— Como é a casa dele? — perguntou Helen, curiosa.— Ah... é uma maravilha! — replicou Robert, admirado.— Foi construída sobre colunas, no sopé da montanha; um bangalô grande, branco,

com varandas em todos os cômodos. Do lado das varandas você tem a vista panorâmica de ambos: montanha e mar. E realmente muito bonito, romântico demais; e parece uma casa de contos de fadas para um velho rabugento como Leon Petrou.

— Velho? Pensei que fosse bastante jovem.— Talvez esteja com mais de trinta e cinco anos. Mas tem um ar de arrogância que ihe

dá uma aparência carrancuda...— Espero que as crianças fiquem bem com ele — murmurou Helen, quase certa de não

existir essa possibilidade. — O que ele faz?— Bem, em primeiro lugar, possui diversos depósitos em Famagusta, o lugar onde toda

a fruta da área é empacotada para exportação. Ele negocia com terras, pois tem muitas

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propriedades, em várias partes da ilha. E todos que têm propriedades aqui, hoje em dia, podem se tornar milionários da noite para o dia.

Robert falou de outros detalhes sobre o tio das crianças, deixando Helen ainda mais preocupada. Fiona e Chippy já tinham sofrido o suficiente para serem infelizes também com esse tio de atitudes severas, que certamente não apreciava a idéia de tê-los em casa.

— Olhe só este sol e este céu — dizia Robert, despertando Helen de seu devaneio. — É uma ilha maravilhosa! E uma lástima que você não viva aqui. — Após uma pequena pausa, Robert acrescentou: — Mas você disse que ficará algumas semanas, não? Posso levá-la a passear algumas vezes?

— Estarei com amigos meus — sorriu Helen —, mas obrigada da mesma maneira. — Ela não queria a companhia de Robert nem a de qualquer outro homem, mas não lhe diria isso. — Além disso — completou —, eu estarei em Nicósia. Acho que passearemos por aquelas redondezas, isto é, se minha amiga e o marido tiverem tempo de me levar.

Robert encolheu os ombros, mas disse que lhe daria o número do telefone e que ela deveria chamá-lo, caso se encontrasse desocupada em alguma ocasião.

— Obrigada — respondeu Helen, sem a mínima intenção de aceitar a oferta.O Knossos aportou em Limassoi às dez horas e um carro os esperava. Mesmo antes

que Chippy dissesse qualquer coisa, Helen sabia que o homem que se aproximava não era Leon Petrou.

— Esse não é tio Leon.— É a senhora Stewart? — O homem era baixo e moreno, com um sorriso espontâneo e

amigo. Ele sorriu para as crianças e passou a mão nos escuros cabelos de Fiona. — O senhor Petrou mandou-me aqui — continuou o recém-chegado, assim que Helen meneou a cabeça como resposta. — Ele não pôde vir porque um cliente telefonou inesperadamente para o escritório. Mas eu a levo até ele.

— Eu? Ele disse que eu tenho de acompanhar as crianças? Eu entendi que as deixava aqui, em Limassol.

Nisto, uma pequena mão se agarrou a ela, fazendo-a olhar para baixo e ver um olhar de súplica no rosto de Fiona.

— Foi o que ele disse. — Por um momento o homem pareceu incerto. — A senhora acha que eu cometi um engano? — Mas imediatamente negou com a cabeça: — Não! Não cometi engano, porque ele disse à secretária que telefonasse ao hotel e reservasse uma mesa com quatro lugares para o almoço.

Helen sentiu que Fiona relaxava seu tenso aperto de mão e lhe sorriu carinhosamente.— Vamos então — disse ela alegremente, enquanto o homem abria a porta do carro. —

Para onde estamos indo? — Virou-se para o motorista: — Para Lapithos?— Não, para Nicósia, é onde o senhor Petrou tem seu escritório.Essa carona viera bem a calhar, pois Helen pensara que precisaria de um táxi que a

levasse até a casa de Trudy.

O escritório de Leon ficava no centro da cidade. Um edifício novo, com varandas espaçosas, parecia mais uma moderna casa de campo do que um escritório e Helen soltou uma exclamação de surpresa quando o motorista, depois de parar o carro, desceu e abriu a porta.

Momentos mais tarde, Helen estava no suntuoso escritório, em pé, ao lado da escrivaninha, olhando Leon, que, à sua entrada, havia-se levantado e agora lhe estendia a mão. Ela chegou até a escrivaninha e sentiu a firmeza do aperto de mão, enquanto Leon lhe dizia, num tom entrecortado e calmo:

— Bom dia, senhora Stewart. Espero que sua viagem não tenha sido cansativa demais. — Ele falava de uma maneira tão leve e tão vazia de entusiasmo que sua voz era quase imperceptível.

— Desfrutei-a imensamente, obrigada, senhor Petrou. — Ela não sorriu, enquanto retirava a mão, e, por um momento, ele esteve observando-a em silêncio. Então seus olhos desviaram-se para as crianças. Helen as havia repreendido, dizendo que o tio não podia ser

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tão severo quanto queriam fazê-la acreditar. Mas agora ela entendera que as crianças haviam acertado na descrição. Observou a dureza e a rigidez de seus traços: era de uma beleza desconcertante, mas, como Robert havia insinuado, essa grande beleza parecia quase que apagada pela sua expressão áspera e arrogante. Não era difícil acreditar que ele não gostava de mulheres e de crianças.

— Fico aliviado ouvindo isso — disse Leon, dando-lhe sua atenção mais uma vez. — Conhecendo meus sobrinhos como os conheço, estava certo de que lhe causariam algum problema. — Olhava-os severamente, enquanto falava, e completou: — Devo agradecer-lhe por trazê-los ilesos até aqui.

Helen sentiu sua temperatura subir, às primeiras palavras, e disse, mais asperamente do que pretendia:

— Não tive qualquer problema com eles, senhor Petrou. Como disse, realmente aproveitei muito bem a viagem até aqui.

A arrogância e a contrariedade demonstradas pelo baixo tom de voz com que ele falava fizeram com que Helen sentisse suas faces ficarem vermelhas. Aquele homem era descon-certante! Sentiu que poderia chegar a odiá-lo sem muito esforço. Suas perguntas sobre a viagem e seus agradecimentos soaram superficiais, parecendo surgir simplesmente da ne-cessidade de mostrar cortesia e boas maneiras. Helen sentiu novamente uma profunda ansiedade, ao pensar na vida das crianças com ele. Curioso, refletiu, há apenas uma semana eram estranhas, e agora sentia-se triste, pois dentro em breve se despediria delas para sempre. Porque, na verdade, não tinha intenção alguma de aceitar qualquer convite de Leon Petrou para almoçar. Uma semana... parecia impossível. Mas crianças eram assim mesmo; podiam mostrar-se amáveis para um adulto compreensivo, especialmente crianças como Chippy e Fiona.

Determinada a controlar a perturbação que rapidamente se apoderava dela, Helen perguntou ao senhor Petrou como poderia chamar um táxi.

— A senhora já vai embora? Eu tinha planejado levar todos vocês para almoçar.— Muito obrigada, mas... — A pequena mão de Fiona procurou a sua mão. Helen sentiu

um nó na garganta. Aquele homem ainda não havia dirigido uma palavra sequer às crianças. — Terei muito prazer em almoçar com o senhor — respondeu, para seu próprio espanto.

— Há também a questão do pagamento — acrescentou ele, aprovando a resolução de Helen com nada mais do que uma leve inclinação da cabeça. — Meu irmão adiantou-lhe uma parte do dinheiro para a viagem, certo?

— Correto. Esta viagem possibilitou-me passar férias aqui, em Nicósia, com amigos. Estou bastante satisfeita — completou apressadamente, enquanto ele começou a tirar algumas notas da carteira de couro que tirara do bolso.

— Este é nosso dinheiro, naturalmente, mas a senhora achará fácil lidar com ele. Nossa libra é equivalente à libra inglesa e a senhora verá que os preços das mercadorias nas lojas daqui são dados tanto em libra esterlina quanto em moeda corrente na ilha — Ele estendeu-lhe as notas; Helen abriu a boca para recusar, mas alguma coisa lhe bloqueou as palavras.

— Acho que esta quantia é suficiente para cobrir as despesas ocorridas durante a viagem — disse Petrou. Embora contra sua vontade, pois estava certa de que recebia muito mais do que havia gastado, Helen viu-se aceitando o dinheiro,

— Obrigada — murmurou, colocando o dinheiro na bolsa. As crianças a olhavam, esperando para pegar em suas mãos novamente. Percebendo a atitude delas, o tio, afinal, lhes deu atenção. Por algum milagre, seus lábios, agora, entreabriram-se num sorriso.

— Gostaram da viagem? Não se cansaram demais no navio? — Não se dirigia a nenhum deles em particular, e foi Chippy que respondeu:

— A noite, dormíamos em beliches, foi muito engraçado. A minha cama era a de cima. Fiona a queria também, mas tinha medo da escada.

— Não tinha, não. Queria dormir com a senhora Stewart, por isto não quis a cama de cima.

— E de dia, não se sentiam cansados pela longa viagem?

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— Algumas vezes sim, mas a senhora Stewart nos contava histórias. E brincávamos também.

— Parece muito eficiente, senhora Stewart. — Depois de uma pausa, ele perguntou: — A senhora é casada? — Havia curiosidade em seu tom de voz e em seus olhos.

— Sou viúva — respondeu Helen, muito calma, e ele murmurou uma condolência. E completou:

— A senhora é muito jovem para ser viúva.— Tenho vinte e seis anos. Meu marido morreu num acidente, dois anos atrás. — Leon

transmitiu-lhe novamente suas condolências e então perguntou se tinha filhos. — Nosso bebê morreu com seis meses de idade — disse ela, e um súbito tremor transpareceu em sua voz. Não deixaria nunca de pensar que, se a criança fosse viva, Gregory estaria a seu lado até então.

— Peço-lhe desculpas, senhora Stewart — disse ele, e sua voz pareceu ter perdido um pouco da aspereza inicial, enquanto completava: — Sua vida é muito triste para uma pessoa tão jovem.

As crianças prestavam atenção com interesse e, obviamente, ambas haviam entendido, pois Fiona perguntou:

— Seu marido morreu, senhora Stewart?— Sim, Fiona.— E seu bebezinho também? — interveio Chippy, comprimindo sua mão em volta dos

dedos dela.— Sim, meu bebê também.— Não perguntem coisas assim. — Leon olhou severo para as crianças. — A senhora

não deve responder-lhes, senhora Stewart.— Está tudo bem — sorriu ela. — Não me importo com isso.Pareceu-lhe que Leon ainda queria acrescentar um último comentário, mas algo o fez

mudar de idéia. Ele mandou buscar refrescos e uma hora mais tarde estavam almoçando no restaurante. Quando terminaram e já estavam ao lado do carro, Leon perguntou a Helen sobre o endereço de sua amiga.

— Eu a levarei até lá — disse ele, examinando o papel que ela lhe dera. — Sim... não é muito longe daqui.

— É muita gentileza sua levar-me — agradeceu Helen, graciosa, enquanto se sentava no carro, ao lado dele.

— Seria difícil para a senhora achar o caminho — admitiu ele —, mas um táxi a levaria à porta certa. — As crianças tagarelavam com Helen, mas havia tristeza velada em cada palavra. Ela própria se sentia muito mal e começava a ficar com medo de que as férias que tanto esperava transcorressem de maneira enfadonha.

— Esta é a rua... — Leon virava a esquina e ia, agora, bastante devagar, observando os edifícios. — Deve ser desse lado... Ah! É aqui.

— Vou pegar minha bagagem — disse Helen, ao descer do carro. Esperou que Leon abrisse o porta-malas, mas ele lhe disse que era melhor que se certificasse de que seus amigos estavam em casa. — Sim, claro.

— Podemos ir com a senhora? — perguntou Chippy, deprimido, determinado a tê-la até o último momento.

— Lógico. — Heien consultou Leon com os olhos e este, para sua surpresa, não fez objeção alguma. As crianças a seguiram na escada, até o primeiro andar do prédio em que Trudy e Tasos moravam.

— A senhora procura a madame Pavlos? — perguntou uma mulher que aparecera à porta do apartamento ao lado, quando Helen se preparava para tocar a campainha pela terceira vez.

— Sim... a senhora sabe onde posso encontrá-la?— Ela e o marido foram para o Egito, na segunda-feira passada. Ele foi tratar de

negócios.— A senhora sabe quando estarão de volta?

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— Vão ficar fora dois meses, mais ou menos. A senhora vem de longe para vê-los?— Sim... sim, venho da Inglaterra. — Foi tomada por um amargo desapontamento.

Depois de toda a distância percorrida para chegar até ali e não poder ver Trudy. Tentou sorrir para a mulher, enquanto agradecia, e virou-se para sair.

— A amiga da senhora Stewart foi viajar — informou Chippy ao tio.— E estará de volta só daqui dois meses — completou Fiona — Helen fitou-os. As

crianças estavam radiantes!— Ela pode ficar conosco até que a amiga volte? — perguntou Chippy.— Não, Chippy. Não posso ficar aqui dois meses — começou Helen, olhando com

tristeza para Leon. — Se o senhor puder me levar para um hotel, serei eternamente grata.— Sinto muito, mas não posso — respondeu ele com firmeza. — A senhora ficará em

minha casa.— Oh, não! Não quero incomodá-lo tanto.— A senhora não ouviu nada sobre a hospitalidade cipriota? A senhora fez um favor ao

meu irmão e isto é suficiente para que eu não a deixe sozinha em um hotel. — Ele estava segurando, aberta, a porta do carro. — Receio que tenhamos de voltar ao escritório, mas terminarei meu serviço em uma hora. E então a levarei para minha casa, em Lapithos.

CAPÍTULO II

As três horas estavam a caminho. Felizes pela inesperada mudança dos acontecimentos, as crianças tagarelavam sem cessar, até que seu tio lhes disse que ficassem quietas. Elas pararam, mas quando Helen se virou para ver a reação delas, surpreendeu Fiona mostrando a língua para Leon, que se encontrava de costas para ela. Helen reprovou-a, franzindo as sobrancelhas.

— Receio que tenhamos perdido o comboio — estava dizendo Leon, enquanto passavam pelo subúrbio norte de Nicósia. — Nossa viagem levará uma hora. — Os turcos tinham o controle do atalho através das montanhas e somente estrangeiros tinham permissão de transitar nessa pequena estrada, sem acompanhamento. Todos os gregos necessitavam de escolta das Nações Unidas ou tinham que usar a estrada mais longa. Isto, obviamente, causava grandes inconvenientes aos gregos, mas Leon falava sobre o assunto sem qualquer sinal de animosidade e, mais tarde, Helen soube, com grande espanto, que Leon Petrou era a favor dos turcos, como, aliás, muitos outros gregos.

Por alguns momentos, todos se calaram, no carro, e Helen, sentada no banco de trás, sentiu-se estranhamente relaxada, embevecida com a beleza dos lugares pelos quais estavam passando. A primeira reação de Helen, ao saber que Trudy e Tasos estavam viajando, foi a de querer voltar para a Inglaterra imediatamente, mas Leon lhe disse que poderia ficar em sua casa por quanto tempo quisesse, e assim ela decidiu aceitar a oferta e ficar por duas semanas. Poderia então visitar os lugares de seu interesse e, se Leon permitisse, levaria as crianças com ela nos passeios que pretendia fazer, tornando assim sua estada ainda mais agradável.

— Atravessaremos a montanha agora — disse Leon, enquanto, fora do carro, começava a ventar. — O cenário aqui é ainda mais interessante.

A casa de Leon era exatamente como Robert descrevera, e, ao chegar, Helen ficou alguns momentos perto do carro, apreciando os arredores. As montanhas atrás, a grande ex-tensão de mar azul na frente. Como pode uma casa estar rodeada de tão linda paisagem?

Mais tarde, quando estava se preparando para o jantar, Helen ficou um instante pensando nas pessoas que havia encontrado; pessoas que compunham a família de Leon. Ha-via sua irmã, Koula, muito educada e que se casaria no fim de janeiro. Tinha apenas vinte e dois anos e trabalhava num escritório em Nicósia. Seu noivo, Theodore, que todos chamavam de Teddy, era quatro anos mais velho que ela e também trabalhava em Nicósia. Helen não havia ainda conhecido o rapaz, mas Koula tinha lhe mostrado sua fotografia. Era moreno e bonito, e a garota estava perdidamente apaixonada por ele.

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— Fui forçada a acreditar que a maior parte dos cipriotas se casam por conveniência — disse Helen, notando um lampejo nos lindos olhos de Koula. — Mas, obviamente, o seu é um casamento por amor.

— Sim — respondeu Koula. Um rubor tomou conta de seu rosto e ela ficou séria de repente. — Oitenta por cento dos casamentos cipriotas são por conveniência — disse ela fatalmente. — Não são muitos os que se amam. — Depois de uma pausa, completou: — Se meu irmão casasse, seria por conveniência, pois ele não é o tipo de homem que ama. — Sua voz baixa e rouca sugeria um sentimento de pesar. Era fácil perceber que nutria uma profunda afeição por Leon, embora os sentimentos deste para com a irmã não fossem evidentes. Ele havia sido frio e quase bruto, quando a apresentara a Helen.

Os outros membros da família de Leon aos quais Helen tinha sido apresentada eram Asmena, tia de Leon, e seu marido Vasilios. Asmena interessou-se por Helen, perguntando-lhe sobre sua vida e sua casa na Inglaterra; enquanto que Vasilios apenas a fitava, impassível, e brincava com um rosário. Na verdade, a única impressão que Helen teve dele foi a de um ininterrupto chocalhar daquelas contas.

A mãe de Leon, uma mulher corpulenta, mas muito elegante, aparentando ser mais velha do que era na realidade, estava só de visita. Vivia em Paphos com a filha casada, mas vinha duas vezes por ano ver os filhos.

— Tive que deixar mamãe e vir morar com Leon — disse Koula, como se a explicação fosse necessária. — Trabalho em Nicósia. Não era possível viajar de Nicósia para Paphos todos os dias.

Helen soube, mais tarde, que Asmena e Vasilio ficariam com Leon somente até janeiro. Estavam construindo uma casa e, embora sabendo que esta demoraria a ficar pronta, tinham vendido a antiga residência ao receberem uma boa oferta por ela.

O tocar de um sino no andar inferior trouxe a atenção de Helen de volta para suas roupas e seus cabelos. Leon havia lhe dito que o sino seria ouvido dez minutos antes de a refeição ser colocada à mesa. Tinha tomado um banho e de fato estava quase pronta. Mas que roupa usaria? Não que isso preocupasse Helen, que não se preocupava mais em se vestir bem desde que resolvera não se interessar pelos homens. Acabou escolhendo um vestido bem sóbrio, de cor cinza, e desceu para o jantar.

Koula estava bem diferente de Helen. Usava um vestido de algodão florido; num dos pulsos, um lindo bracelete, no outro um elegante relógio, presente de Teddy pelo noivado. Estava adorável! "O amor fez isto por você", pensou Helen tristemente, recordando o período de idílio do seu próprio noivado.

O seu lugar à mesa era ao lado direito de Leon; as crianças estavam no lado oposto, ambas um tanto envergonhadas mas sorridentes, ao verem Helen se sentar. Com a típica cortesia cipriota, Leon afastou a cadeira de Helen e agora lhe oferecia sopa. A sopeira era muito pesada, e como Helen não tivesse certeza de gostar da sopa, serviu-se de uma pequena quantidade. A concha foi tirada de sua mão.

— A senhora gostará — disse Leon, adivinhando seus pensamentos e vertendo mais sopa no prato de Helen. Embora, a princípio, achasse que não conseguiria tomar tudo aquilo, Helen acabou conseguindo e, como Leon havia dito, gostou muito. Mas as crianças detestaram. A sopa era feita de leite de cabra e tinha um sabor ligeiramente picante. Helen entendeu a aversão das crianças pela sopa, mas o tio fez com que elas continuassem a tomá-la. Somente quando Chippy começou a sentir náuseas é que ele consentiu que colocassem a colher sobre a mesa. Apesar do sofrimento do menino, Helen não pôde deixar de sorrir. O irmão de Leon havia dito que ele nada entendia de crianças. E como estava certo! Pois a primeira coisa que se sabe sobre crianças ê que nunca devem ser forçadas a comer.

A mesa estava abarrotada de pratos diferentes e ela própria teve de se cuidar, pois, de outra maneira, sentiria o mesmo que Chippy. Nunca havia visto tamanha variedade numa só refeição. A travessa com frutas era frequentemente passada entre os presentes. Laranjas e tangerinas, tâmaras e figos e até mesmo bananas, todas as frutas do pomar de Leon.

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Acabada a refeição, deixaram a sala e foram até a varanda para tomar café, preparado à maneira turca, e servido em pequenas xícaras. Fiona tomou apenas um pequeno gole e fez uma careta.

— Ah! — exclamou ela, deixando que a xícara lhe escapasse das mãos. O líquido negro e espesso se espalhou pelo seu vestido ricamente bordado. Leon olhou furioso para a sobrinha.

— É hora de vocês dois irem para a cama — disse ele de maneira ríspida; e voltando-se para Helen: — A senhora se importaria em levá-los? Araté cuidará deles depois, mas, enquanto a senhora estiver aqui, poderá fazê-lo? — Araté era a criada que lhes servira o café; parecia inflexível, e ante a idéia de aquela mulher tomar conta das crianças, Helen sentiu um baque no coração.

— Certamente que sim — respondeu Helen, sorvendo jogo em seguida seu café.O quarto de Fiona tinha uma varanda com vista para o mar, enquanto o de Chippy, para

as montanhas. Isto agradara bastante às crianças, mas agora, sentadas sobre a cama de Fiona, enquanto Helen fechava as janelas, seus semblantes estavam carregados.

— Agora que a senhora o conhece, não acha que ele é terrível?— Vocês se acostumarão com ele — respondeu Helen. — Vá para o seu quarto,

Chippy, e você Fiona, tire a roupa.— Está bem. — O menino desceu da cama e obedientemente saiu do quarto.— Quanto tempo a senhora ficará aqui? — perguntou Fiona momentos depois.— Duas semanas, caso seu tio não se importe. — Puxou o lençol e prendeu-o sob os

ombros de Fiona.— Gostaria que a senhora ficasse conosco por bastante tempo. Isso agradaria a todos.— Isso é impossível, meu anjo. — Num impulso, Helen inclinou-se e beijou o rosto de

Fiona. — Boa noite, querida, durma bem.Estavam sentados sob um guarda-sol colorido e alegre, na enseada de Kyrenia. Diante

deles havia inúmeros navios de pequeno porte, atracados. Quando as crianças acabaram de tomar seus refrigerantes, saíram da mesa correndo para olhá-los melhor.

— Tomem cuidado — preveniu Helen, quando elas se aproximaram perigosamente da beira do cais. — Chippy, saia já daí!

— São crianças ótimas — disse Koula, quando Chippy obedeceu imediatamente ao chamado de Helen. A moça havia dito a frase com alguma surpresa, e Helen se lembrou de que Koula sempre se admirava quando, depois de alguma ordem, as crianças obedeciam sem argumentar.

— Você fala como se esperasse que elas fossem crianças malcriadas. — Helen pegou seu copo e segurou-o junto aos lábios, observando com atenção sua companheira, que parecia um tanto agitada. Afinal Koula falou:

— Leon visitou-os na Inglaterra uma ou duas vezes. Bem, ele não os achou particularmente bem educados.

— Tem horas em que eles são travessos — admitiu Helen, recordando-se de uma ou duas ocasiões durante a viagem em que fora forçada a refrear um ou outro. — Mas se uma criança é muito dócil — acrescentou —, mais tarde pode se tornar um adulto estúpido.

— Estou vendo que você gosta de crianças. — Koula sorveu sua bebida e, como Helen não tivesse replicado, continuou: — Também adoro crianças. Teddy e eu queremos quatro, no mínimo.

Uma tristeza muito forte desceu sobre Helen. Caso sua única criança estivesse viva e se tivesse mantido Gregory com ela, poderia estar com mais um filho agora... ou, quem sabe, dois. Olhou para Koula; não, não sentia inveja pela sorte da companheira, e ainda... Helen franziu as sobrancelhas e olhou para o infinito. Não, definitivamente não invejava Koula, que estava prestes a se casar. Oh! A pobre moça pensava que conhecia Teddy, mas a mulher nunca conhece o homem totalmente até se casar com ele. Então, todos os seus defeitos se revelam — e daí é tarde demais para se fazer alguma coisa. Não, ela não invejava Koula; pelo contrário, sentia pena da moça. Mas, no presente, Koula estava cheia de felicidade, radiante, e Helen disse gentilmente:

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— Onde vocês passarão a lua-de-mel? Pretendem viajar logo depois das núpcias?— Queria ir a Paris, mas Teddy já esteve lá várias vezes. Ele quer ir a Londres.— E para onde resolveram viajar, então?— Para Londres. — E como se houvesse lido o pensamento de Helen, Koula

imediatamente acrescentou: — Mas eu projetei a casa, planejei cada cantinho. Na cozinha terei todo o conforto, pois temos a aparelhagem mais moderna. Garanto a você que gostarei de ficar lá dentro.

— Então Teddy permitiu que você escolhesse tudo ao seu gosto?— É lógico. — Levantou o queixo por urna fração de segundo. — A casa é minha. — Sua? — Helen pestanejou. — Sua propriedade, você quer dizer, você é que está

construindo?— Claro!— Mas... — Koula tinha apenas vinte e dois anos e casas eram muito caras. — Você

deve ser rica! — disse, percebendo que Koula esperava algum comentário.— Meu pai deixou-me algum dinheiro para meu prika, e Leon colocou o restante que

faltava.— Prika? Você quer dizer um dote?— Isso! As garotas gregas levam a casa como dote. Este é o costume. Na Inglaterra

vocês não fazem isso porque sempre se casam por amor, não é?— Mas, Koula, você havia me dito que estava se casando por amor...— É verdade, mas ainda levo a casa porque meu pai me deixou o dinheiro. Leon

somente o completou porque os preços subiram muito. Veja, meu pai foi previdente e pensou na possibilidade de eu me casar com um homem que insistisse no dote.

— Que aconteceria se... Bem, eu sei que não são frequentes, por aqui, os casamentos que se acabam, mas suponha que isto aconteça. A casa ficaria com o marido?

— Não. — Koula a olhou pasmada. — Se meu casamento acabar, e espero que isso nunca aconteça, é claro, a casa fica comigo e Teddy é que terá de ir embora.

— Sei. — Estava sendo cínica em não fazer comentário, pois não pôde deixar de pensar que esta era a razão pela qual tão poucos casamentos se acabavam. Aparentemente, o homem estava na posição mais precária. Caso se portasse mal, podia ficar sem um teto sobre a cabeça. Ela percebeu que devia dizer qualquer coisa sobre essa tradição.

— Você disse que oitenta por cento dos casamentos, aqui, são arranjados. Casamentos por conveniência. A proporção me parece muito alta. — Koula não prestava atenção a ela. Seus lábios abriram-se num sorriso, e Helen se voltou instintivamente. Leon estava atrás de sua cadeira.

— É verdade, senhora Stewart. Mas os costumes na ilha não mudam de maneira rápida — comentou ele calmamente, sentando-se em uma das cadeiras vagas, enquanto procurava as crianças com os olhos. — Não se preocupe: esses casamentos por conveniência em geral são bem-sucedidos. — Olhou para ela de maneira estranha e Helen notou algo mais do que um simples olhar.

Suas férias estavam no fim, pensou Helen com um suspiro. Ficara uma semana a mais do que havia anteriormente determinado, mas quando mencionara sua partida, Leon e Koula lhe pediram que ficasse por mais algum tempo. Helen e Koula tornaram-se boas amigas e, sempre que a moça tinha algum tempo livre, vinham à enseada conversar e aproveitar o sol. Koula levou Helen, algumas vezes, para conhecer as redondezas.

Começou a escurecer e a brasa incandescente sobre o mar se tornou purpúrea, enquanto ainda estavam lá. Helen, Koula e as crianças tinham vindo de Lapithos de ônibus, mas, como Leon chegara de carro, voltariam para casa con-fortavelmente. Sentada na frente, ao lado dele, Helen ficou curiosa por saber por que ele tinha ido à enseada, já que, ao saírem de casa, ele ficara trabalhando na biblioteca. Koula disse algo e Leon replicou que tinha ido especialmente para buscá-los, pois sua mãe lhe havia dito onde eles se encontravam. Quanta consideração!

Parecia realmente um homem muito estranho. Sua atitude para com as crianças era, às vezes, muito severa. Em duas ocasiões Chippy recebeu algumas palmadas nas pernas e

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Helen ficara enfurecida com essa atitude de Leon, mas quando o menino certa vez caíra e arranhara o braço, fora o próprio Leon quem fizera o curativo. Jamais esqueceria seu espanto nem a sensação estranha que tivera ao ver Leon com o menino, nessa ocasião. Seus dedos pareciam bastante delicados e ele mesmo enxugava as lágrimas de Chippy. A atitude de Leon para com ela era cortês, mas de uma frieza e indiferença tão grandes que provava, sem dú-vida, a afirmação de Brenda sobre a sua falta de interesse pelas mulheres. A cortesia com que ele a tratava fazia parte das tradições cipriotas; seria dispensada a qualquer pessoa que ele conhecesse. No entanto, o convite para que ficasse um pouco mais com eles havia sido sincero e, na verdade, ele parecia ansioso por tê-la como hóspede por um período mais longo. Esforçando-se por descobrir qual a razão disso, Helen só pôde concluir que Leon estava agradecido pelos seus cuidados para com Chippy e Fiona.

Uma parte da estrada de Kyrenia para Lapithos era paralela ao mar e outra afastava-se em direção às colinas. A pista tornava-se mais estreita e cheia de pedregulhos à medida que subiam rumo à encantadora casa branca. Viajaram em silêncio até a entrada da casa. Fiona saltou e dirigindo-se a Helen exclamou:

— A senhora está triste por ter que voltar? — perguntou Fiona, e, sem esperar uma resposta, acrescentou: — Eu estou triste porque a senhora vai embora. — Havia um pouco de esperança em sua voz quando completou: — A senhora não poderia ficar mais um pouco conosco?

— Fiquei uma semana a mais do que havia planejado, querida. E eu tenho minha casa, você sabe...

— Mas a senhora é sozinha — disse Chippy, chegando-se a elas. — Não é bom viver só. Eu acharia muito ruim não ter ninguém.

— Você está certo — concordou Helen, sorrindo —-, mas eu já estou acostumada a viver sozinha.

— A senhora não parece ter muita certeza disso — comentou Leon, incrédulo, vindo do outro lado do carro. Depois de um eletrizante silêncio entre ambos, ele disse: — Quero conversar com a senhora em particular, depois do jantar, quando a senhora já tiver colocado as crianças na cama.

— Em particular? — Por que esse tremor dentro dela?— Devo encontrá-lo na biblioteca?— Se me fizer este favor, não seremos incomodados lá.— O tom de sua voz era baixo e em seus olhos permanecia o olhar gélido de sempre. A

linha de sua boca estava dura e inflexível como sempre. Ele esperou por um momento alguma pergunta e, como Helen tivesse continuado em silêncio, entrou na casa. Helen seguiu-o em estado de torpor, apenas consciente de que as crianças estavam agarradas às suas mãos.

Embora cheia de curiosidade, com o coração batendo mais depressa do que o normal, Helen estava totalmente despreparada para o que Leon tinha a lhe dizer, quando, mais tarde, entrou na biblioteca. Depois de aproximar uma cadeira e convidá-la a sentar-se, Leon iniciou a conversa com a voz tão fria e ríspida que Helen ficou estonteada.

— Senhora Stewart, estava falando sério, hoje, quando lhe disse que a maior parte de nossos casamentos por conveniência são bem-sucedidos, — Pegou uma cadeira para si e acomodou-se diante dela. — Durante nossas conversas concluí que a senhora não deseja um segundo casamento baseado no amor. Acha que interpretei de maneira correta?

— S-sim — gaguejou Helen, sentindo-se incapaz de se lembrar da conversa que ele mencionara. Se ela realmente lhe dissera tal coisa, devia ter sido incidentalmente, pois esta não era a espécie de assunto sobre a qual conversaria com qualquer pessoa, exceto, talvez, com alguma amiga. De qualquer forma, não queria outro casamento, e isto era tudo.

— Assim pensei eu. E como não existe qualquer possibilidade de eu me apaixonar profundamente por uma mulher, quero lhe fazer uma proposta. Na semana passada chegou-me a notícia de que meu irmão não ficará curado de sua doença; na realidade, tem, no máximo, um mês de vida.

— As crianças ficarão órfãs! Oh, mas que coisa horrível!

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— As crianças têm mãe — lembrou ele secamente, admitindo com isso que ela soubesse dos detalhes da história de Chippy e Fiona. — Mas isso não importa, pois a mãe não se preocupa com elas. Terão de ficar comigo, não há outra alternativa. Tenho observado vocês durante estes dias, com bastante atenção, e é evidente que as crianças sentem uma grande afeição pela senhora, como a senhora em relação a elas. Por isso, desejo persuadi-la a cuidar delas.

— Oh... — deixou escapar Helen, com um suspiro. — Isso é tudo? Eu certamente pensarei na proposta. — Helen calou-se, ao sentir o olhar irritado que ele lhe dirigiu.

— Peço-lhe que não me interrompa — disse ele, e um rubor surgiu na face de Helen. Leon esperou um momento, e então continuou: — Como a senhora sabe, minha irmã se casa no próximo mês e meus tios irão embora na mesma época. Na Inglaterra é comum que uma mulher entre na casa de um homem e se torne pajem de suas crianças, mesmo que ele não tenha uma esposa. Aqui, infelizmente, isto não é visto com bons olhos; nos preocupamos muito mais com as convenções sociais do que em seu país. Como vê, é indispensável, para a felicidade das crianças, que eu lhe peça que se case comigo.

Mesmo tendo pressentido o que Leon acabara de dizer, Helen permaneceu em silêncio. Como podia um pedido de casamento ser feito com tão fria deliberação... e com apenas três semanas de convivência?! Ele não disse mais nada e lhe deu tempo para se recompor. Ainda que entorpecida pela proposta, Helen sentiu que estava gradualmente aceitando o fato de que o casamento seria a única forma de resolver as dificuldades de Leon, pois, como ele havia dito, ali uma mulher não poderia viver sozinha na casa de um homem sem ser esposa dele. Os empregados, Araté e o marido tinham sua própria casa ao pé da colina, mas, mesmo que eles dormissem na casa de Leon, não faria diferença. Nesta parte do mundo, mulher sozinha que vivesse na casa de um homem, não importava por que motivo, era sempre vista com extrema suspeita e desfavor, como também o homem que a acolhesse.

— Não posso casar-me com o senhor — respondeu afinal.— Consideraria a proposta de vir cuidar de Chippy e Fiona, mas casar... — Sentia-se

indecisa, pois, na verdade, nutria um carinho profundo pelas crianças. Sabia que elas ficariam terrivelmente infelizes quando ela fosse embora. Já haviam sofrido o suficiente durante suas vidas e agora... agora sofreriam muito mais, quando soubessem a verdade sobre o pai...

— Não sei o que lhe dizer, senhor Petrou — murmurou, fixando-o com olhar brilhante. — Não posso nem mesmo pensar.

Helen concluiu que Leon era um homem inteligente e astuto, quando, num tom suave e até mesmo gentil, lhe disse que entendia o conflito que ela deveria estar experimentando. Ele não esperava uma decisão imediata; Helen deveria pensar no assunto, deveria medir muito bem as vantagens e possíveis desvantagens que ela e as crianças teriam. Quanto ao casamento, da parte dele, ela não tinha nada a temer. Tudo o que lhe pediria era que fosse reservada e que nunca o submetesse a qualquer humilhação por uma conduta que pudesse, mesmo remotamente, ser descrita como indiscreta.

— Não se preocupe quanto a isso. — Helen ficou atônita, por ter transmitido seus pensamentos em voz alta.

Leon sorriu, diante de sua confusão, e Helen se surpreendeu com a transformação ocorrida no rosto dele, sempre tão sério. Sim, ele era muito bonito! Gregory também era muito bonito, e, consequentemente, as mulheres corriam atrás dele... mas se as mulheres corressem atrás de Leon, ela não poderia ficar magoada e nem mesmo se importar com isto. Mas que pensamentos eram aqueles? Estava fora de cogitação casar-se com ele. Não, nem mesmo pela segurança que isso lhe proporcionaria, nem mesmo pelas crianças, por nada ela se casaria pela segunda vez. Além disso, Leon sentia um grande desprezo pelas mulheres, da mesma forma que ela detestava e desconfiava de todos os homens. A idéia de um casamento entre duas pessoas assim lhe parecia ridícula.

CAPITULO III

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Casaram-se dois meses depois, quando a primavera chegara à ilha. Em todo lugar brilhavam verdes brotos que surgiam aqui e ali, vestindo as planícies, e as encostas das montanhas transformavam-se com o colorido das flores silvestres que cresciam rapidamente.

Da varanda de seu quarto, Helen olhava sonhadoramente através da estreita costa, para a grande extensão de mar.

Entretanto no quarto, viu sua imagem refletida no espelho. Estava fora de moda, dissera-lhe asperamente Trudy, quando Helen a visitara na semana anterior.

— Por que essa maneira de se vestir, agora que é casada? Desse jeito você não vai segurá-lo, estou lhe avisando. Não é preciso muito para que esses cipriotas se desviem do bom caminho. Um rostinho bonito, e eles estão perdidos... a menos que tenham alguma coisa melhor em casa.

— Você está falando por experiência própria?— Lógico que não. Meu Tasos é diferente. Oh, sim, ele é, não precisa rir. Mas a regra

geral... bem, como eu disse, eu a estou prevenindo porque você é minha amiga. Você é linda, Helen, por que então esse ar tão sério? E o comprimento de sua saia?

— Tia Helen... onde a senhora está? — gritou Fiona ao chegar em casa, tirando Helen daqueles momentos de devaneios.

— Já vou, querida — respondeu Helen, dirigindo-se para a cozinha onde se encontrava a criança.

— Largue essa mochila. Não, pendure-a no lugar certo, por favor.Sorrindo travessa, Fiona foi pendurar sua mochila no armário do corredor. Voltou e

sentou-se à mesa; e enquanto aguardava com expectativa o que Helen lhe arranjava para comer, balançava suas pernas no banquinho, alto demais para ela. Por um momento Helen ficou a olhar a menina, lembrando-se da reação que ela tivera quando Leon contara às duas crianças sobre seu pai, depois que este morrera. Primeiro seu terno rostinho se crispara, e então, sobre o peito de Helen, ela soluçara de maneira comovente, durante bastante tempo. Chippy, segurando as lágrimas, tentara ser forte e corajoso, mas não o conseguira por muito tempo. Esta cena tão triste e a expressão de ansiedade nos olhos de Leon provaram muita coisa a Helen.

Sua decisão fora impulsiva, admitiu ela, resultante de uma forte emoção, porém passageira. Haveria de se arrepender, por certo, daquele casamento, pois morar com aquele estrangeiro moreno e austero, cujos costumes e a própria maneira de viver eram tão diferentes dos seus, não poderia dar certo por muito tempo, Robert lhe assegurara categoricamente que nenhum cipriota poderia viver sem uma mulher e, embora este aspecto da vida particular de Leon não lhe dissesse respeito, a consciência de que essas mulheres existiam nunca a deixaria em paz. Conseguia dominar suas inquietações e ainda não se arrependera do ato que praticara. No seu íntimo sabia que esse tipo de casamento combinava com ela. Não havia um envolvimento emocional profundo nem o despertar de emoções; portanto, não existiam os riscos de uma segunda desilusão.

— Tia Helen, oh, ande logo!Rindo, Helen foi até o armário e trouxe os pedaços de bolo; depois colocou um copo de

leite na frente de Fiona.— Por onde anda Chippy? — perguntou Helen, enquanto a menina estava com a boca

cheia de bolo. — Por que ele sempre chega mais tarde que você?— Ele está com uns meninos. Chippy consegue conversar com eles, mas eu não. É

difícil aprender o grego, embora a professora seja boa; ela me ensina todas as palavras.— E você as esquece na hora.— Mas a senhora disse ao tio Leon que nunca aprenderá.— É que sou mais velha, e a aprendizagem de línguas se torna mais difícil conforme as

pessoas vão ficando mais velhas. Espero que consiga aprender o suficiente para minhas necessidades. — Helen olhou para a janela quando Chippy apareceu na varanda. Passou pela porta de vidro e um momento mais tarde sua mochila rolou pelo chão polido.

— Guarde sua mochila — disse Helen, ríspida.— Fiona. — Gesticulando, Chippy indicou a mochila.

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— Eu não vou guardar sua sacola feia e velha! Guarde-a você! Ele mandou que eu limpasse seus sapatos, hoje de manhã.

— Limpar seus sapatos! — Helen fitou-o, incrédula. — Você mandou sua irmã limpar seus sapatos?

— Mandei sim — replicou Chippy calmamente. — Aqui as irmãs sempre servem seus irmãos. Os meninos é que são importantes; as meninas só servem para trabalhar e... e tudo — finalizou de maneira vaga.

— E quem, me diga, quem lhe ensinou tudo isso?— Os meninos — respondeu ele, de maneira afetada. — Todas as irmãs cuidam deles.

Eu me senti um bobo, quando lhes contei que não pedia que minha irmã fizesse algo por mim, porque todos riram e disseram que eu era um afeminado.

— Não acredito que eles tenham usado esta palavra.— Usaram outra, em grego, mas é a mesma coisa.— Bem, afeminado ou não, é você quem vai limpar seus próprios sapatos. Agora guarde

sua mochila.— Mas a senhora não entendeu, tia Helen.— O que tia Helen não entende? — Leon estava na porta. Embora falasse com Chippy,

seus olhos estavam fixos nela, examinando-a dos pés à cabeça. Pela primeira vez, Helen sentiu-se mal pela sua aparência deselegante. A atenção dele voltou-se para Chippy. — Bem... — Sua voz era áspera e Helen desconfiou de que ele talvez tivesse ouvido a conversa antes de entrar. — Você perdeu a língua?

O ar superior e convencido de Chippy havia se evaporado. Disse, quase com humildade.— Nada, tio Leon.Leon voltou-se para Helen, que se viu forçada a responder pela criança. Falou

despreocupada e de maneira brincalhona:— Chippy está se tornando um verdadeiro cipriota, muito depressa. Imagine que ele

considera o sexo feminino inferior.— É mesmo?— Ele quer mandar em mim e me obriga a limpar seus sapatos — disse Fiona.— Não é bem verdade — contemporizou Helen. — Ele somente pediu para você limpá-

los.Como Leon não demonstrasse surpresa, Helen concluiu que ele ouvira mesmo a

conversa. Leon virou-se muito suave para o sobrinho.— Desça do banco e guarde sua mochila — mandou ele, tocando-a com a ponta do

sapato.— Sim, tio Leon. — Chippy obedeceu prontamente, mas ficou furioso com a irmã, que,

por sua vez, o olhava triunfante. — Todos os garotos, na escola, têm suas irmãs fazendo serviços para eles — disse Chippy quando voltou, não se dirigindo a ninguém em especial. E completou, quase num desafio: — Tia Koula faz serviços para o senhor. O senhor manda que ela faça e pegue coisas.

Seguiu-se um silêncio a essa pequena explosão e então Leon mandou que o menino fosse para seu quarto.

— Oh, não! — protestou Helen. — Chippy não teve intenção de ser rude. Os meninos lhe contaram muitas coisas e agora ele já sabe que aqui, é costume as garotas servirem seus irmãos.

— Chippy, faça o que eu disse. — A voz de Leon era baixa e ameaçadora; até mesmo Helen estremeceu, ao ouvi-la.

— O que o fez pensar que, em Chipre, as mulheres são inferiores? — perguntou Leon, indo em direção à porta da varanda, no momento que as crianças deixavam a cozinha.

— É um fato, não é?— Depende de como você interpreta a atitude dos homens para com as mulheres —

disse ele, observando-a mais uma vez, com curiosidade, e manifestando um total interesse por seu rosto. Helen teve a impressão de que ele examinava cada linha, cada curva, e, constrangida, tirou os pratos e os copos que estavam sobre a mesa, carregando-os para a pia.

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— No seu país, a mulher “é" igual ao homem, mas me parece que, ao ganhar essa igualdade, ela perdeu algo ainda mais precioso.

— O que foi que ela perdeu?— Frequentemente não é tratada com respeito ou cortesia. Mas, mais do que isto, não é

observada como uma mulher; quero dizer, não é tratada com atenção pelo sexo masculino, não é mimada como deveria ser.

— Mimada? — Seus grandes olhos azuis mostravam estupefação. Estas não eram palavras de um inimigo das mulheres. — Não me tem sido dado a entender que os cipriotas mimam suas esposas.

— Então você está desinformada. Nós mimamos todas as nossas mulheres. Refiro-me à regra geral, pois é claro que sempre existem exceções. Alguns homens aqui não são gentis para com suas mulheres, mas posso lhe garantir que eles são minoria.

— Não sei como você pode dizer isso. Pelo que tenho visto, as mulheres aqui são tratadas como criadas, quase mesmo como escravas.

— Isso é um absurdo! — Ele estava zangado e sua voz era mordaz. — As mulheres trabalham em casa porque é natural que façam isto. O homem traz o dinheiro.

— As mulheres trabalham no campo — disse ela, enxaguando os copos — Vejo-as com frequência.

— É verdade, mas os homens trabalham ao lado delas. As mulheres gostam de trabalhar nos campos; elas gostam de estar fora de casa.

Leon virou a cabeça e observou Helen, que guardava os copos numa prateleira alta. O vestido da moça subira e, quando ela se voltou, ele olhava suas pernas, cuja beleza estava oculta por meias marrons muito grossas. Subitamente, Leon mudou de assunto:

— Helen, você está com pouco dinheiro?— Não, não, eu tenho bastante. — Um rubor coloriu suas faces e em seus olhos

transpareceu uma tímida surpresa. Sua mesada era generosa. Ele devia saber que ela não estava com pouco dinheiro.

— Eu só estava pensando e por isso falei, você não precisa esperar que eu lhe dê dinheiro. Quando precisar, basta pedir.

Helen arregalou os olhos. Ele estaria insinuando que ela deveria comprar algumas roupas? Bem, não tinha intenção alguma de fazer isto. Helen andava notando como Leon, nos últimos tempos, a olhava de maneira tão intensa que a deixava quase sem ação. Esses olhares insinuantes faziam com que a moça não se esquecesse do que Robert dissera sobre o fato de os cipriotas não viverem sem mulheres. Leon normalmente chegava muito tarde, e Helen tinha suas próprias idéias sobre o que ele ficava fazendo. Mas havia épocas em que ia diretamente do escritório para casa. Ainda que não sentisse atração por Leon, gostaria de saber como sua mente funcionava. Concluiu que tanto uma mulher como outra eram a mesma coisa para esse cipriota impetuoso... Mas logo a seguir Helen resolveu não pensar mais sobre o assunto. Viver era agradável; tinha as crianças e uma casa bonita. Era absurdo querer complicar sua vida e correr o risco de despertar algum desejo no seu marido. Não, ela não era atraente para ele — e pretendia continuar assim.

— Você não vai deixar Chippy de castigo por muito tempo, não é? — perguntou, num tímido tom de súplica. — Ele é muito criança ainda e apenas deu ouvidos aos garotos. E, além do mais, está na idade em que precisa sentir-se importante. — Caminhou em direção a Leon, que se virou para o lado, num mudo convite para que ela viesse à varanda. Ela sorriu e acelerou o passo; ele estava ao seu lado e Helen percebeu que sua cabeça tocava, levemente, o ombro dele.

— Você é muito branda com Chippy e Fiona — disse ele. E embora a sua voz fosse áspera, Helen teve a impressão de que, de fato, ele não censurava sua maneira de lidar com as crianças.

— Eles são muito pequenos, e têm seus problemas.— Mas se adaptaram muito bem e rapidamente à nova vida. — Seus lábios abriram-se

num sorriso e o constante brilho metálico abandonou seus olhos enquanto completava: — Você é boa para eles, Helen. Não, não quero deixá-lo de castigo por muito tempo, mas Chippy

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tem de aprender que não pode tratar sua irmã como pessoa inferior. Ele deve entender que nós esperamos que ele tome conta dela.

Ela olhou-o estarrecida. Que homem estranho! Sentiria realmente desprezo pelas mulheres? De certo, a experiência de seu irmão o afetara, pois, por menos que quisesse de-monstrá-lo, Helen o percebera, quando lhe propusera o casamento. "Será que ele realmente nunca se apaixonou perdidamente por uma mulher?", pensou ela.

Helen refletiu em sua atitude para com ela desde o casamento. Era cortês e amigo, embora frio algumas vezes. Mas nenhuma vez lhe falara com dureza; nunca lhe havia dado alguma ordem ou adotado um ar de superioridade perante ela. Não haveria desculpas, caso fizesse tal coisa, é lógico. Leon pedira-lhe que se casasse com ele e, ao aceitar, ela o favorecera. Portanto, isso lhe dava o direito de ser tratada como uma igual. No entanto, estava sempre presente aquela arrogância que era um traço permanente de sua personalidade. Em certas ocasiões, essa presença podia ser sentida profundamente e em outras era apenas dissimulada.

Ela o fitou mais uma vez, percebendo a linha firme de seu queixo e o rápido movimento de um músculo. Seu sorriso se apagara e sua boca estava fixa, firme naquela linha tensa, tão familiar, que o deixava com um aspecto bastante rude e desfigurava sobremaneira suas feições tão belas. Como ficaria ele quando estivesse fora de si? Desviando os olhos para sua boca mais uma vez, Helen sentiu um estranho tremor e desejou com muito ardor que nunca entrasse em conflito com ele. De repente convenceu-se de que ele poderia tornar-se cruel.

Sim, pensou Helen novamente, ele era um homem estranho em muitas coisas, um enigma nos traços constantes de seu caráter. As vezes firme e inflexível, em especial com as crianças. Sua atitude para com as mulheres era também muito estranha. Embora interessado por apenas um motivo, não deixava que nem mesmo uma alusão de menosprezo transparecesse em sua voz quando falava nelas. Com sua mãe era gentil, com sua irmã, generoso. Mas numa ocasião em que se referira à mãe das crianças, sua voz fora tão implacável que Helen imaginara que ele seria capaz de matá-la. Leon, agora, estava de perfil, e ela o fitou, desejando uma vez mais que em nenhuma ocasião ocorresse um conflito entre eles. Tempos depois, à noite, entretanto, haveria um choque de opiniões e, pela primeira vez, Helen sentiria o impacto da força da personalidade de Leon. Helen combinara visitar Trudy uma vez por semana; estaria fora na tarde seguinte, quando as crianças chegassem da escola e achou que deveria mencionar o fato.

— Eles ficarão bem com Araté, por mais ou menos uma hora? Estarei de volta logo depois das três.

— Lógico que sim. — Leon chegara cedo do trabalho e estavam tomando café e conversando na varanda. — A que horas você vai?

— Por volta de nove horas. — No dia anterior encontrara Robert na aldeia, e este lhe dissera que iria a Nicósia comprar telas e tintas. Ao saber que Helen também desejava ir, oferecera-se para levá-la e ela tinha aceitado.

— Nove horas?! — Uma pequena ruga apareceu na fronte de Leon. — Se você fosse mais cedo, eu a levaria.

— Não se preocupe, Leon — sorriu. — Aquele rapaz que eu conheci durante a viagem, e de quem lhe falei, vai para a cidade, e eu irei com ele.

— Prefiro que não aceite a condução. Eu vou junto com a escolta porque amanhã preciso chegar bem cedo ao escritório, mas não vejo razão para que você não vá comigo.

— Mas o comboio parte às sete e meia. Chegarei lá muito cedo.— Você pode ficar no escritório por uma hora ou mais. — Havia uma nota de

inflexibilidade em sua voz; Helen estava indignada pela calma com que ele falava. Ele é que lhe dizia o que devia ou não fazer.

— Eu vou aproveitar a condução, se você não se importar. Resolverei tudo da maneira mais simples.

— Eu me importo, Helen. — Sua voz, embora ainda fosse tranquila, começara a tornar-se áspera. —Araté estará aqui e poderá mandar as crianças para a escola.

— Mas eu não quero ir tão cedo.

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— Então receio que você tenha de ir de ônibus, ou, se preferir, eu chamo um táxi.— Eu vou com Robert — disse Helen, com voz calma. — Como disse, é muito simples.

Acho ridículo até mesmo pensar em um táxi, quando tenho uma condução ao meu dispor.— Helen — disse suavemente —, ou você vai à cidade por algum dos meios que eu

mencionei, ou não vai. de maneira nenhuma.Por um momento ela conseguiu apenas arregalar os olhos, mas sentia sua temperatura

subindo. E respondeu, um pouco mais brusca do que havia desejado:— Eu aceitei que Robert me levasse. Sinto muito ir contra seus desejos, Leon, mas não

vou aceitar ser dominada por você. Lembre-se de que eu sou inglesa.— Você é minha esposa e fará o que eu disser.— Já combinei com Robert. Ele virá me buscar.— Ele virá aqui? — Parecia zangado. — Você lhe disse que viesse buscá-la em minha

casa?— E por que não? — Para Helen não havia nada de errado em que Robert viesse a sua

casa buscá-la, mas, pela expressão de Leon, esse tipo de coisa definitivamente não deveria ser feito. Era de se admirar que Robert não lhe tivesse explicado isso, pois ele parecia ter conhecimento considerável sobre os costumes locais.

— Se você preferir, eu telefono a ele dizendo que me espere na aldeia.— Você telefonará, sim, mas para cancelar o que foi combinado. Eu lhe expus de

maneira bastante clara, logo no começo, que esperava que você agisse com discrição em todos os sentidos e que não me sujeitasse a qualquer forma de humilhação. Você está agora diante de uma atitude que pode me levar ao ridículo.

— Isso é estúpido! Por que uma simples viagem com Robert até a cidade pode expor você ao ridículo?

— Estamos numa aldeia muito pequena, e, de qualquer maneira, em Chipre cada um cuida de sua vida pensando na dos vizinhos. E não estou querendo ter o nome de minha esposa ligado ao desse inglês. — Agora, era impossível enganar-se quanto à inflexibilidade de sua voz, e sua expressão era dura e arrogante. Ao mesmo tempo que relutava em aceitar a decisão dele, Helen convencia-se de que aquele argumento não tinha sido usado em vão, pois podia resultar na sua própria humilhação. Leon agia daquela maneira sempre... e não somente numa situação como aquela. Olhou-o, sentindo mais uma vez aquela inquietação que já experi-mentara em diversas ocasiões. Essa inquietação lhe trouxe prudência; não persistiria na oposição à vontade dele.

— Se para você isso é tão grave, farei como manda e cancelarei o compromisso.— Você irá comigo? — perguntou, e ela assentiu. — Teremos de levantar bem cedo.

Desculpe-me por isso, mas não posso fazer nada. Amanhã terei um dia atarefado e será bom começar cedo.

A manhã estava clara e radiante, com o sol brilhando num céu sem nuvens. O carro era grande e confortável. Helen relaxou-se no banco e estava surpresa por sentir que desfrutaria da viagem. Depois de Kyrenia, uniram-se à escolta. Havia inúmeros veículos — caminhões, ônibus e carros particulares. A chapa de cada um deles era anotada e só depois de uma parada rápida é que seguiam, acompanhados pelas tropas das Nações Unidas, que usavam uniformes azuis e dirigiam jipes. Um enorme cartaz dizia aos viajantes que os turcos lhes desejavam liberdade, segurança, e justiça. Tudo em ordem; além dos ocasionais postos de guardas e da advertência de que era proibido tirar fotografias, não havia indicação de que a estrada estivesse sendo controlada. Lançando alguns olhares para o lado, Helen viu que o rosto de seu marido estava tranquilo. Não mostrava qualquer sinal de preocupação por se encontrar naquela situação insólita para um cipriota.

Ao chegar à beira da estrada, que dizia: "Bem-vindo ao Setor Livre", o comboio se dividiu e cada veículo seguiu seu próprio caminho. Leon aumentou a velocidade de seu carro, passando por jumentos carregados, por camponesas com grandes cestas amarradas às costas e por extravagantes motocicletas que corriam muito, algumas vezes com garotas no assento traseiro, e que pareciam excessivamente inseguras.

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— O que você vai fazer agora? — perguntou Leon, assim que chegaram ao escritório. Parou o carro e se virou. — É muito cedo para você ir à casa de sua amiga?

— Acho que sim. Ficarei aqui por algum tempo, se não lhe causar inconveniente.— Eu lhe disse que poderia ficar — lembrou ele, manobrando o carro. Para surpresa de

Helen, ele lhe abriu a porta do veículo. — Vamos tomar um café.— Não faço questão de tomar café. Sei que você tem pressa de começar a trabalhar.Mas ele insistiu. O homem que trouxera Helen e as crianças de Limassol até ali já

chegara. Chamava-se Theophilos; sorriu quando Leon disse a Helen que o chamasse de Theo. Após algumas instruções de Leon, Theo saiu e voltou quase em seguida, com a bandeja de café, duas pequenas xícaras e os inevitáveis copos de água gelada. Helen sentou-se ao lado da escrivaninha de Leon. Ele a fitava de maneira estranha enquanto ela bebia seu café.

— Você vai fazer compras aqui? — E mais uma vez Helen perguntou a si mesma se ele estava insinuando que ela deveria comprar roupas,

— Não preciso de nada — respondeu de imediato. Quando Helen estava saindo do escritório, ele lhe dissera que Theo iria levá-la ao apartamento de Trudy e, às quatro e meia, voltaria pára apanhá-la.

— E as crianças? — protestou Helen. — Posso ir embora mais cedo, de ônibus.— Elas não terão problemas — disse ele. — Tenha um bom dia e divirta-se.Mais tarde, na casa da amiga, Helen aceitava uma bebida logo após instalar-se numa

poltrona e observou quando Trudy trouxera a bandeja notando como estava magra e bonita. "Eu era assim", refletiu Helen, levando seu pensamento de volta aos dias em que as duas eram adolescentes. Todos os rapazes tinham atração por elas; as duas podiam escolher. Com Helen foi amor à primeira vista, quando encontrou Gregory. Ambos começaram a juntar dinheiro avidamente e se casaram dois anos depois. E tudo acontecera muito rápido entre o conhecimento, namoro e casamento. Houvera neste período um bom relacionamento e Helen fora feliz, embora não exultasse de alegria. O primeiro período de deleite não continuara, ela bem o sabia, e embora a tristeza por essa perda a perturbasse um pouco, acabara se adap-tando. Quando seu filho nascera, experimentara a realização maravilhosa que a maioria das mulheres experimenta com a maternidade.

Quando o bebê morrera, Helen esperara que seu marido a consolasse e que, ao menos nos primeiros meses, se aproximasse dela novamente. Mas seu relacionamento continuara o mesmo: vazio e distante.

Trudy fora mais afortunada, pois ela e Tasos amavam-se tanto agora quanto no início do casamento. Devotado à esposa, Tasos nunca ia a lugar algum sem ela. Não era visto na companhia de amigos, sentado nos bares ou jogando cartas. Tudo o que ele queria fazer era chegar em casa e ficar com sua esposa.

— Fale-me sobre Leon — pediu Trudy, sentando-se no lado oposto à janela. Seus olhos agitaram-se, enquanto completava, meio hesitante: — Você me falou tão pouco sobre seu casamento! Aliás, não contou praticamente nada.

— Qualquer hora eu lhe conto — começou ela, bastante embaraçada. — Ou pode ser agora mesmo. Leon e eu nos casamos por causa das crianças.

— Crianças? — Trudy pestanejou. — Chippy e Fiona?— Já lhe contei que o pai das crianças morreu e que Leon teve de ficar com elas. Bem,

pediu-me que mudasse para cá para cuidar delas. Parece que não seria bem visto o fato de eu viver na casa dele sem... sem sermos casados, e assim... -— Desviou os olhos para a rua mais uma vez. Trudy esperava e Helen foi forçada a continuar: — Esta é a razão pela qual não tinha lhe contado muita coisa. É só uma espécie de casamento.

— Que espécie?— Quero dizer... não é normal. — A esta resposta, os olhos de Trudy se abriram tanto

quanto podiam.— Do que você está falando?Ainda experimentando dificuldades, Helen afinal explicou o acordo e como sua amiga

continuasse a fixá-la incrédula, uma nota de desafio transpareceu em sua voz.

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— Você sabe que eu nunca me casaria novamente por amor. Já lhe disse isso muitas vezes.

— Você sempre me disse que nunca se casaria — corrigiu Trudy. — Assim, acho que mereço ser desculpada por ter concluído que, se você casou, foi por amor. Mas admito que notei algo estranho nisso tudo, pois você está muito fechada e taciturna. É por isso que você não liga para sua aparência? Oh, tenho sido muito áspera, até mesmo rude, se quiser, mas você costumava se cuidar tanto! Não quer que Leon se apaixone?

— É claro que não — replicou Helen, um pouco magoada. — Ainda penso da mesma maneira como pensava quando Gregory morreu. Nunca deixarei meu coração se envolver de novo. Esse casamento foi conveniente para mim, é a isso que me refiro quando digo que não quero nem mesmo que Leon me note.

— Não, não pode ser. Podemos ler histórias sobre casamentos assim, mas é impossível que aconteçam na vida real.

— Este é um deles. — Helen se sentia menos embaraçada e viu sua amiga observá-la com desconfiança. — Leon e eu somos menos do que estranhos um para o outro.

— Você nunca...? Não, não posso acreditar. Não um cipriota! Um cipriota não consegue viver assim. Nenhum deles consegue.

— Sei tudo sobre como vivem. Têm seus passatempos. — disse Helen.— E você não se importa?— E por que deveria? Como lhe disse, esse casamento é exclusivamente um contrato

de negócios. A única razão para que tenha acontecido foi não dar motivos para que outras pessoas falassem mal de nós. Não, não me importo com o que Leon faz. Sua vida particular não me diz respeito.

— Mas... — A expressão de Trudy ainda era de incredulidade. — Você realmente acredita, Helen, que continue assim a vida inteira?

— E por que não?— Não é possível — disse Trudy, com firme convicção. — Não com um cipriota. Ele não

pode!— O que você quer dizer com "não pode"?— Não pode viver na mesma casa que você e não ser... não ser normal.— Já lhe disse, ele tem seus passatempos.— Como você sabe? — Ele sai toda noite.— A maioria dos homens, aqui, sai a noite. Vão para bares, clubes e restaurantes. Você

não pode dizer que ele esteja com uma mulher.— Não creio que ele passe o tempo só conversando com amigos.Trudy balançou a cabeça, confusa ante a indiferença calma de Helen.— Você não se importa mesmo?!— Já lhe disse, não há motivo para que eu me importe. Não sinto nada por ele. — Helen

mostrou uma ligeira impaciência: — Você sabe exatamente como me sinto com relação aos homens, Trudy. Não tenho qualquer intenção de me envolver emocionalmente com um homem, seja ele esse meu marido ou não.

— Bem, vou lhe dizer uma coisa: se você pretende ou não se envolver emocionalmente com alguém, é outro problema; o que você não pode fazer é viver o resto de seus dias numa situação como essa.

— Não vejo razão para você dizer isso — respondeu Helen, mas sua amiga negou com um gesto de cabeça.

— Leon com certeza vai... vai...— Ele prometeu. E, além disso, me acha completamente sem atrativos.Trudy observou-a por um instante, detendo-se no traje de Helen, na palidez de sua face

e de seus lábios, na seriedade de seu penteado.— Como sabe que ele não sente atração por você?

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— Dificilmente ele olha para mim. — Enquanto dizia isto, franziu as sobrancelhas, lembrando-se das ocasiões em que Leon a observava. — Ele prometeu — repetiu Helen, e perguntou a si própria se não estava querendo se convencer disto.

— Prometeu! — Trudy deu uma risada. — Honestamente, você acredita que ele vai manter sua palavra?

— Acho que posso confiar nele — respondeu Helen, e uma expressão de pena atravessou as feições de sua amiga.

— Como você sabe pouco! Eu não daria tanto valor à promessa dele quanto você. Esses orientais são o que são, ou o que a cultura do lugar faz com que eles sejam. Casei-me com um deles e sei disto. Sinto desiludi-la, mas você cometeu o maior erro de sua vida, se pensa que vai manter seu marido de braços cruzados indefinidamente. Os homens não são assim, e isto não é natural para nenhum de vocês. Oh, Helen, pode confiar na minha palavra. Quando Leon decidir quebrar sua promessa, a quebrará,

sem nenhuma cerimônia.— Mas... e meus sentimentos? Ele deve considerá-los!— Oh, por Deus, Helen! Você não é tão inocente. Quando o homem se dispõe a... a... —

Trudy, encolheu os ombros, impaciente, mas completou depois de um momento: — Com o passar do tempo, nem mesmo ele se lembrará de ter feito alguma promessa; portanto, você deve se resignar,

— Leon tem seus divertimentos. Ele nunca vai me querer.— Você não tem provas de que ele tenha... divertimentos, como você os chama — disse

Trudy, rindo da maneira como Helen colocara isso. — Em todo caso, é muito mais conveniente aproveitar o que você possui ao alcance da mão. Não será para sempre que ele sairá de casa para buscar seu entretenimento...

— Por favor, Trudy! — Helen corou. — Acho que deveríamos mudar de assunto.O resto do dia foi agradável para as duas. Depois do almoço, servido na varanda, foram

para o centro da cidade fazer compras.Tudo o que Helen comprou foram meias para as crianças. Trudy estava interessada

principalmente em comida. Quando acabaram as compras, entraram em um bar para tomar refrescos.

Quando voltaram ao apartamento, faltava ainda meia hora para que Theo viesse buscar Helen, e Trudy levou-a ao seu quarto para mostrar as roupas novas que tinha comprado em sua recente viagem ao Egito.

— Ainda acho que as roupas inglesas são as melhores que já vi, mas o que pensa destas? — Comprara diversos vestidos e terninhos. Helen apreciou-os, comentando o bom gosto de Trudy.

— Obrigada... mas acho que me enganei com este aqui — disse Trudy, pegando um vestido de linho azul. Seu decote era um tanto largo. — Não ficou bem para mim. Eu o vi na vitrine, sabia que era meu número e comprei-o sem experimentar. Tasos detestou-o.

— Mas é tão bonito — protestou Helen, pegando-o. — Tenho certeza de que lhe fica bem. — Segurou-o na frente de Trudy e teve de admitir que a amiga estava certa. — É a cor; não é o tom certo de azul.

— Mas é a sua cor — disse Trudy. — Coloque-o na sua frente.— Sim, é minha cor — admitiu, e colocou o vestido sobre a cama.— Fique com ele — tornou Trudy. — Não fica bem para mim.— Oh, mas você pode usá-lo de vez em quando. Não é pelo fato de não ficar muito bom

em você que eu sonharia em levá-lo. É quase novo.— Não lhe ofereceria se pensasse em usá-lo. — Trudy pegou o vestido e colocou mais

uma vez na frente de Helen. — É você... sim, é você quem deve usá-lo. — Dobrou-o e o entregou a Helen.

CAPITULO IV

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Leon estava inclinado no vão da porta da varanda, olhando o mar, com a cabeça atiradapara trás. Helen uniu-se a ele, depois de colocar as crianças na cama. Moveu-se para o

lado e, embora a face dele estivesse nas sombras, sentiu-lhe o sorriso quando chegou à varanda. Ficaram assim por instantes e então Leon estendeu a mão e acendeu a luz.

— O que quer beber?— Nada, obrigada.Ele entrou na casa e voltou trazendo uma garrafa de cristal, com licor, e dois copos.

Helen não disse nada quando ele lhe deu a bebida, mas assim que Leon se sentou, ela lhe perguntou:

— Não vai sair?— Esta noite não. — Ele olhava diretamente para Helen, que sentiu as batidas de seu

coração mais rápidas. Por que ele ia ficar em casa? Leon já não saía havia quase uma semana. Ela sabia por que seu coração batia depressa, por que estava apreensiva. Desde a dura afirmação de Trudy de que Leon quebraria sua promessa, Helen observava-o, tentando sondar cada olhar, desejando, ao fim de cada dia, que ele saísse.

— Está uma noite bonita — murmurou ela, inconscientemente calma e delicada. — É uma pena ficar trancado em casa.

— Não estamos trancados em casa.— Não disse por mim... pensei... Bem, você ficou no escritório durante o dia todo...— Você tem razão, estava quente e abafado, devido a algum problema no ar

condicionado. — Uma pausa e então: — Beba seu licor e sairemos para caminhar.O copo estava tocando os lábios dela; de súbito, todo o seu corpo estremeceu. Isso não

estava em seus planos.— Estou certa de que você preferiria sair com seus... seus amigos.— Eu não estaria aqui, se não quisesse.— Estou com dor de cabeça. — E com um gesto mecânico levou a mão à testa.— Sinto muito. — Seu tom de voz era frio e cortês como sempre, mas deixava

transparecer uma nota de ansiedade. Leon levantou-se da cadeira. — O ar fresco vai curá-la. Vou lhe dizer o que faremos: vamos de carro até a praia e então caminharemos perto da água. Logo a brisa afastará sua dor de cabeça.

— As crianças... não posso deixá-las sozinhas.— Direi a Araté que fique aqui até voltarmos.— Acho que seria melhor ir deitar-me — disse ela, quase com desespero. — Você deve

ir... — Não, ela não queria ir deitar-se! — Talvez você esteja certo, a brisa do mar vai me fazer bem.

— Está se sentindo mal? — perguntou ele, examinando-lhe intensamente a face tão pálida. — Há alguma coisa além da dor de cabeça?

— Não, Leon, não há nada comigo. É minha cabeça... acho que tomei o licor muito depressa.

— Decerto foi isso. Como você não está acostumada a beber, deveria ter mais cuidado.Já no carro, Helen se sentiu mais sossegada. Estava segura, pelo menos por enquanto.

Leon estacionou no flanco da montanha, deixando o carro aberto.— Não seria melhor fechá-lo? — perguntou Helen, enquanto caminhavam em direção à

beira do mar.— Aqui, as pessoas não roubam — foi a resposta calma. — E além do mais, não há

ninguém nas imediações. — Era verdade; não havia uma pessoa sequer em toda a praia.A lua saiu de trás das nuvens e isto fez com que uma grande faixa prateada

atravessasse o mar. Nenhum som, além do leve murmúrio das ondas, desmanchando-se sua-vemente sobre a areia. Helen nunca vira um mar tão calmo como o Mediterrâneo. Esqueceu seu temor enquanto caminhavam, Leon tão alto ao lado dela, algumas vezes conversando em voz baixa, outras caindo no silêncio.

— Sua dor de cabeça melhorou? — disse Leon.— Sim, obrigada, Leon. — Suas palavras soaram formais. Estava começando a

experimentar embaraço quando se encontrava na presença dele. Lamentava ter conversado

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sobre isso com Trudy. Até então, seus temores haviam sido somente murmúrios; tentava dissimulá-los, mas eles persistiam. Agora, Helen se perguntava quanto tempo passaria até que ela voltasse a confiar na promessa de Leon. No entanto, naquele momento, estava em paz e com sua mente livre de receios. Era agradável caminhar pela praia silenciosa e estar com Leon... contanto que ele também permanecesse em silêncio. Era somente quando ele pronunciava algo que Helen se sentia insegura. Por mais que ele fosse suave, Helen se sentia inquieta, não sabendo o que poderia ocorrer no momento seguinte.

Chegaram ao banco e, com uma das atitudes que sempre a surpreendiam, Leon pegou seu lenço e limpou o lugar em que ela ia se sentar. Sem dúvida alguma, a cortesia era quase uma arte para o cipriota. E para Helen isso parecia animador, pois nunca recebera tais atenções de Gregory, nem mesmo durante os primeiros meses de seu casamento. Sorriu ao perceber a atitude de Leon e lhe agradeceu com outro sorriso.

— Eu vou para Famagusta na próxima semana e ficarei lá alguns dias. Meus empregados farão algumas modificações no serviço e quero estar por perto para supervisionar. Você não gostaria de ir comigo? — disse Leon, sentando-se.

— Não sei... — Teriam de se hospedar num hotel... — As crianças não podem ficar sozinhas — disse asperamente. — Araté gosta de dormir em sua própria casa, já me disse isso diversas vezes.

— Isso porque o marido dela dorme lá — sorriu ele. — Enquanto estivermos fora, seu marido ficará no bangalô... e Araté estará satisfeita. Não, não precisamos nos preocupar com as crianças, não terão problema algum por poucos dias. E eu sinto que precisa mudar um pouco. Ultimamente ando preocupado com você.

— Não sei, Leon — começou Helen novamente; mas ele bruscamente interrompeu.— Do que você tem medo, Helen? — Sua voz era baixa mas insistente. Ela quis saber

se ele percebera seu embaraço e esperou um momento para responder.— Medo? — Agitou-se e então deu uma risada insegura. — Do que eu teria medo?— É o que lhe perguntei — replicou Leon suavemente. — E você não me respondeu.Negou com a cabeça, olhando para o mar, enquanto se "esforçava para achar alguma

razão convincente que lhe assegurasse que ele não descobriria a verdade.— Não estou com medo de nada — mentiu, desviando o olhar. — Não há nada de que

eu possa ter medo.— Neste caso... — a resposta veio tranquila — não há razão para que você não me

acompanhe a Famagusta. Vou lhe dar algum dinheiro e você comprará umas roupas.— Oh, não! — A exclamação lhe escapou antes que tivesse tempo de pensar, e ela

completou, mais calma: — Tenho roupa de sobra Leon.— Tem? Então elas devem estar guardadas em seu guarda-roupa.Sua aspereza chocou-a, mas ela se lembrou de que, afinal de contas, ele era seu

marido. Estranho, nunca pensara nela mesma como esposa e, por isso, não estava preparada para ouvi-lo falar daquele modo, o que era natural em tal circunstância.

— Ora, eu devo vestir o que eu gosto — protestou.— Você usará roupas que agradem a seu marido. — Ele parou e, sentindo a sua

angústia, procurou suavizar a voz, completando: — Levarei você ao hotel Rei George; é o melhor de Famagusta... e gostaria de sentir orgulho de você. Lá encontraremos alguns comerciantes.

Então era essa a razão! Todo seu corpo cedeu, enquanto um longo suspiro de alívio lhe escapou. Censurou-se pelos seus temores e por permitir que sua imaginação cometesse excessos. Não havia nenhuma alusão ao desejo, em sua voz. Como era estúpida! E tudo isso acontecera por influência das palavras que Trudy dissera tão seriamente. Sua mente começou a divagar, ante a expectativa desses poucos dias em Famagusta. Como Leon dissera, seria uma mudança. Por mais que adorasse as crianças, elas eram peraltas demais, chegando mesmo a deixá-la meio tonta com tantas diabruras. O trabalho a envolvera, e a responsabilidade de cuidar delas mudara por completo sua vida, que era tão calma desde que ficara só. Por isso, Helen se sentia tão cansada, em certas ocasiões. Talvez seu cansaço contribuísse para sua aparência deselegante, refletiu, apesar dessa idéia

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não a perturbar.— Você acha que Chippy e Fiona ficarão bem? — murmurou, ansiosa.— Lógico que ficarão bem. E não sofrerão qualquer dano com Araté e Nikos por perto. E

terão de se acostumar, pois, mais tarde, levarei você comigo para Paphos. Estou pensando em comprar terras por lá.

— Talvez possamos levá-los conosco — sugeriu Helen.— Algum dia os levaremos — concordou Leon, para sua surpresa. — Logo todos nós

sairemos em férias, como uma família.Como uma família... Uma sombra passou momentaneamente pelo rosto de Helen.

Sempre que via uma família fazendo piqueniques, ou em férias, ou mesmo fazendo compras, ela experimentava o terrível vazio de sua perda. Viajar com Leon e as crianças, como uma família... seria maravilhoso. Num impulso, ela disse:

— Não podemos levá-los desta vez? — Havia um apelo inconsciente em sua voz, mas Leon passou por cima disso e respondeu em tom firme e decidido:

— Não desta vez, minha cara. Disse-lhe que seria uma mudança para você. Não será nem mesmo um descanso, se levarmos esses dois peraltas conosco.

No caminho de volta para casa, ele virou na estrada e parou em um bar, pequeno e branco. Era bastante iluminado por luzes coloridas e havia um espaçoso terraço de frente para o mar. Para surpresa e agrado de Helen, havia diversos ingleses sentados à mesa para a qual Leon a conduziu. Instantaneamente eles sorriram, dando boas-vindas, e um rapaz foi logo buscar mais duas cadeiras.

— Leon, que bom ver você! Nós todos achávamos que estava... ahn... hibernando desde seu casamento. — O homem que disse estas palavras tinha a barba crescida e a pele tostada pelo sol. Outro artista, pensou Helen, antes mesmo que Leon a apresentasse.

— Phil ainda não foi aclamado, mas logo o será — disse Leon, rindo, ante o olhar de protesto dos amigos. — Ele é bom, Helen, e um dia colocará Lapithos no mapa.

— Lapithos já está no mapa — protestou outro rapaz, indignado. E virando-se para Helen: — Temos uma pequena comunidade de artistas aqui, mas é provável que você já saiba.

— Tenho ouvido falar deles — respondeu ela, sorrindo. — Conheci um deles durante a viagem para cá,

— Robert... sim, ele fala muito sobre você! Ele vai muito bem agora, tem quadros em todas as lojas da ilha que vendem lembranças. Sim, ele falou de você... gosta de você um bocado!

Um sorriso de satisfação transformou o rosto de Helen; virou-se impulsivamente para o marido... e o sorriso congelou-se em seus lábios. O que fizera? Ele tinha a expressão carregada e zangada. Rapidamente ela baixou seus olhos e, com grande alívio, ouviu Phil perguntar a Leon o que beberia. Helen, uma vez mais, perguntou-se o que havia feito. Foi apresentada a outras pessoas e logo todos, inclusive Leon, estavam de bom humor, divertidos e amigáveis. As mulheres presentes lançavam olhares dissimulados para Helen, pois estavam curiosas por saber o que o belo Leon Petrou vira nela. Sua escolha devia parecer enigmática, já que ele tinha a reputação de desprezar as mulheres. Se tal homem se apaixonasse, seria por alguma mulher muito linda, alguém a quem não pudesse resistir. E ali estava Leon, casado com uma mulher tão deselegante... Helen pôde adivinhar todos esses pensamentos sem qualquer esforço, e quando viu seu marido observando-a criticamente, sentiu que ele devia estar muito envergonhado por sua causa. Mas por que a trouxera para conhecer seus amigos?

Não havia necessidade de fazer isso. De repente, Helen reparou que ele sorriu, e, por alguma razão incompreensível, ela exultou; um pouco depois, ela também estava tão alegre quanto qualquer outra pessoa, esquecendo, inclusive, sua aparência desarrumada. Conversava desinteressadamente com Phil sobre seu trabalho.

— Robert contou-me que você pinta — disse ele, após ter falado sobre seu trabalho.— Minhas pinturas não são muito boas. Nunca frequentei nenhuma escola de arte nem

tive qualquer orientação — disse Helen.— Os verdadeiros artistas pintam de coração — declarou Jerry.

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Ele também morava em Lapithos mas trabalhava em Nicósia. Sua situação na ilha era precária; a cada seis meses, seu patrão tinha que requerer nova permissão de trabalho para ele. Um dia ela seria recusada, tinha certeza disso.

— Você deve deixar-nos ver alguns de seus trabalhos, Helen; todos temos interesse em outros tipos de pintura, você sabe.

— Ainda não vi nenhum deles — comentou Leon, levando seu copo aos lábios. — Minha esposa é uma artista modesta, acho.

— Não pintei nenhum quadro desde que cheguei aqui — explicou ela, e com uma ligeira risada, acrescentou: — Não tenho tido muitas oportunidades.

— Ele faz você trabalhar o tempo todo? — Phil fez um sinal de advertência com o dedo e continuou prevenindo. — Esses cipriotas são ótimas pessoas, mas insistem em manter suas mulheres ali. — Virou o indicador para baixo e apontou o chão. Leon abriu a boca para protestar mas acabou rindo. — Não ligue, Helen, seu marido é muito diferente de nós, os pobres; ele pode dar-lhe muitos empregados.

— Mas então, eu não teria nada para fazer e logo me tornaria entediada. — Percebendo a expressão de uma das mulheres, Helen novamente adivinhou seus pensamentos. Entediada? Com um marido como Leon, por perto! Pegando seu copo, Helen observou a expressão da mulher, percebendo que o olhar dela, agora, estava fixo no perfil moreno de Leon. A mulher a invejava! Quem seria? Helen sentira uma animosidade secreta sob seu sorriso, ao serem apresentadas, mas havia de imediato rejeitado essa idéia, e mesmo quando, mais tarde, surpreendera uma expressão quase maligna nos olhos da mulher, não lhe dera importância, dizendo para si mesma que ela devia estar preocupada com problemas seus. Mas agora... Quem seria ela? Helen perguntou-se novamente, desejando ter prestado mais atenção nas apresentações. Ficou em silêncio, afastando-se da conversa somente para ouvir e tentar descobrir algo sobre a desconhecida. Tudo o que conseguiu saber foi que ela negociava terras para o governo. Mais tarde, no entanto, Helen saberia um pouco mais e, com isso, descobriria a razão óbvia para que Paula a detestasse.

Todos se despediram e os carros já saíam do estacionamento. Leon dirigiu-se ao seu carro, esperando que Helen o seguisse, mas foi Paula quem o fez. Enquanto Helen hesitava nos degraus, olhando-os e querendo saber se tratavam de negócios àquela hora, Phil segurou-a pelo braço, para que o esperasse.

— Sei que não é delicado, de minha parte, dizer isto — segredou ele —, mas não confie nela. Ela e Leon foram... bem, amigos, por assim dizer, e apesar de todos os rumores de que ele não pensava em casamento, ela desejava um dia tornar-se a senhora Petrou. Não é necessário entrar nos detalhes de como ela reagiu, ao saber que ele se casara com outra pessoa. Não é da minha conta, eu sei, e é provável que você esteja pensando que falo por maldade, mas você é uma boa pessoa, e ela, uma mulher sem escrúpulos. Além disso, tem atração por homens... quero dizer, por alguns homens. É melhor você ir... Leon está esperando... mas cuidado com Paula Maxwell!

Sim, certamente o vestido a modificara. Helen afastou-se do espelho para se observar à distância. Seus braços estavam nus e o decote do vestido revelava a bonita curva do pescoço. O vestido tinha um corte muito elegante, pensou Helen, franzindo as sobrancelhas e baixando os olhos para examiná-lo melhor; suas pernas estavam bem delineadas.

Seu agasalho estava sobre a cadeira; jogou-o em seus ombros e, pegando sua bolsa, saiu e caminhou pela colina, em direção à aldeia. Não chegara muito longe, quando um carro parou e ela entrou nele.

— Pontual, hein? Não sou mesmo um bom menino? — Robert tirou o pé da embreagem e o carro se moveu aos trancos sobre as pedras do atalho, até que alcançaram a rua.

— Qual a distância até esse lugar? — perguntou Helen, encostando-se no banco,— Não é muito longe. Você ainda não foi até lá? Pensei que Leon tivesse levado você a

Monte Maré. Todos vão. Todos os ingleses se reúnem lá... e, é lógico, em alguns outros lugares. Mas esse lugar em particular é popular entre os ingleses, e lá as noites de sábado são ótimas. Estou feliz por você poder conhecê-lo.

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— Terei que estar de volta às onze horas, no máximo — disse ela, com uma inconsciente nota de ansiedade transparecendo em sua voz. — Leon disse que estaria em casa por volta das onze e meia.

— Chegaremos na hora certa, não tenha medo. O que fez você me telefonar? Pensei que não quisesse programar mais nada comigo, depois da recusa de minha condução na outra semana.

— Já lhe expliquei... é que Leon não gostou da idéia — respondeu, corando.— E agora? Por que telefonou? — perguntou mais uma vez. Naquela manhã Helen

visitara Trudy e juntas foramao centro de Nicósia para que pudesse comprar roupas para o passeio em Famagusta.

Foram de ônibus, ao descerem do veículo, caminharam um pouco e, passando pela calçada do hotel Hilton, Helen vira Paula no carro de Leon. Isso acontecera em frente ao saguão. Paula e Leon entraram no hotel...

Por que se importava? Foi a reação imediata de Helen, ao pequeno ressentimento que sentira ao vê-los. Não sabia que seu marido tinha outras mulheres? Não queria que fosse assim? Não preferia que ele se satisfizesse dessa maneira?

Mas era diferente: enquanto as mulheres na vida dele eram desconhecidas para Helen, vagas figuras sem substância. E agora, encontrar uma delas e depois vê-la com Leon... ver o carro passando e ter que continuar em silêncio, não mostrar nenhuma inquietação, caso Trudy a questionasse sobre o incidente... Durante toda a tarde, esteve encerrada numa tristeza sem justificativa; e quando, afinal, seu marido a chamou para jantar, foi forçada a sorrir e fingir ignorar o fato de que, somente poucas horas antes, Paula estava em seu carro, ao seu lado, e eles haviam entrado no hotel.

"Que direito tenho eu de me queixar?", pensava Helen.— Só senti vontade de sair um pouco — disse, afinal, em resposta à pergunta de

Robert. — Estava aborrecida por ficar sem fazer nada.— Leon nunca fica em casa? Esse é o problema dos homens daqui. Todos eles saem,

toda noite, vão para os bares e ficam conversando com os amigos. Mas vocês são assim; vocês mulheres sempre se apaixonam pelos homens morenos e amorosos. Por que? Oh, por que nasci com um cabelo como este? — disse Robert.

Helen teve de rir, apesar de sua tristeza, e continuou rindo durante toda a noite, forçando-se para continuar alegre, embora estivesse ciente, todo o tempo, das ferroadas que não deixavam seu coração em paz. Havia um estranho vazio dentro dela, um vazio que já conhecera antes, mas que experimentava pela primeira vez desde que chegara a Chipre.

Na hora de irem embora, sentiu-se feliz; enquanto viajavam,' ao longo da estrada costeira, desejou não ter vindo. Estavam a meio caminho de casa quando ela sentiu um impacto.

— O que foi isso?— Maldição! Ou furou um pneu ou meu nome não é Robert.— Furou o pneu? Levará muito tempo para remendar?— Não vou remendar; vou trocá-lo.Desceram do carro e examinaram o pneu furado, Robert com impaciência e Helen com

angustia. Se Leon chegasse em casa antes dela... Por que tinha medo? Araté estava com as crianças.

Trabalhando no escuro, Robert devia ter toda sorte de dificuldades, pois de vez em quando Helen ouvia alguma praga, dita em voz baixa. Parada à beira da estrada, ela sentia seus nervos perturbados e as batidas de seu coração mais rápidas, a cada momento que passava. Foi até o carro e olhou o relógio. Onze horas e vinte e cinco minutos. Bem, não havia possibilidade de chegar em casa antes de Leon, a menos que, por algum milagre, ele também se atrasasse.

— Vou descer aqui — disse Helen, quando, finalmente, subiam a alameda pedregosa em direção à casa. — Pare, Robert.

— Não vou deixar você aqui no escuro, a esta hora da noite.— Robert, por favor...

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— O erro já está feito... se houver uma discussão, não fará diferença se eu levar você ou não até sua casa. Embora eu não veja qualquer razão de queixa por parte de Leon, nenhuma mesmo, já que ele sai sempre.

Apesar de seus insistentes pedidos, Helen foi levada até a porta de casa. Leon estava no topo da escada.

— Até logo, Helen — disse Robert, quando ela chegou junto à escada. Ela se virou para gritar "até logo", mas sua voz estava tão rouca que sentiu não ter possibilidade de ser ouvida.

Sem uma palavra, Leon se moveu para o lado e a deixou passar. Já no corredor de entrada, ela se virou, abrindo a boca para falar, para explicar sobre o pneu furado, mas as palavras não vieram. Pararam em sua garganta, pois estava chocada pelo temor. Por que estaria tão atemorizada? E que direito tinha ele de ficar parado, olhando-a como se estivesse pronto para matá-la? Isso não estava certo, embora ela fosse sua esposa. Afinal, Leon falou, com voz muito suave, perguntando aonde tinha ido.

— Fomos ao... ao Monte Maré... você conhece, e fu... furou um pneu... — Segurava seu agasalho contra o corpo. Isso fez com que percebesse que seus dedos tremiam, e ela se lembrou de que usava o vestido que Trudy lhe dera. Leon estava para dizer algo em resposta à sua explicação, mas parou, inspecionando-a com seu olhar áspero, apreendendo cada detalhe de sua aparência. Seus braços nus, o largo decote do vestido, seu cabelo... Sua face estava corada, seus lábios, abertos numa curva suave e delicada. Os olhos de Leon desceram até a bainha do vestido... mas não foram além. E quando, finalmente, ele os subiu de novo, até o rosto de Helen, tinham algo que a atemorizou ainda mais do que a expressão ameaçadora que encontrara logo ao chegar. Procurou descontrair-se e tentou falar. Ao invés disso, ergueu o agasalho, com a intenção de colocá-lo sobre os ombros. Mas o agasalho foi tirado de suas mãos e arremessado para uma cadeira.

— Leon... — disse, roucamente, querendo saber se o terror em seus olhos estava tão aparente quanto em sua voz. — Leon, eu... eu tenho o di... direito de sair.

— E de deixar as crianças sozinhas em casa?— Não ficaram... eu disse a Araté... deixei-a aqui, O que aconteceu? Ela devia ter

ficado...— Araté foi para casa na hora em que vai sempre. Ela pensou que você estivesse aqui.— Não podia imaginar... eu lhe pedi que ficasse. Nunca os deixaria sós, você sabe que

não.— Então o recado que você deu a Araté foi mal entendido, Você sabe muito bem da

dificuldade que ela tem para entender o inglês.— Ela pareceu entender... Como sabe que ela foi para casa na hora de costume?— Cheguei às nove horas. A luz da casa dos empregados estava acesa, notei isso

quando passei por lá. — Como não a encontrei aqui, naturalmente percebi que havia algo de errado. As crianças estavam acordadas, mas não souberam me dizer onde você estava. Fui até a casa de Araté, que também não fazia idéia de onde você tinha ido.

— Leon, se soubesse que voltaria tão cedo, não teria saído. Por que você fez isso?— É lógico que não sairia. Com que frequência faz isso? — perguntou.— Foi a primeira vez.— Não minta. Não se atreva a mentir para mim. Quantas vezes você saiu com esse

homem?— Foi a primeira vez... E, em todo caso, te... tenho o direito de sair.— Tem o direito de sair com homens?— Homens? Eu saí com Robert porque... porque... — Mas ela não conseguiu achar as

palavras para lhe dizer que pensou que ele estaria com Paula. — Não é agradável ficar aqui sozinha sem fazer nada... você está fora quase todas as noites, Leon. — Por que essa humilhação? Por que não lhe dizia que estava satisfeita com o que fizera? Não era nenhuma criança para ser questionada em suas idas e vindas. Por que então não conseguia enfrentá-lo? — Sairei sempre que tiver vontade, e você não pode me impedir. — Oh, Deus, o que dissera?! Por que não tivera prudência?

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— Sairá com homens sempre que quiser, não é? E se vestirá especialmente para eles, se fará atraente... Mas para mim... para mim você aparece como uma dessas bruxas da aldeia, não é assim?

— Leon, por favor! Você não entendeu, tentei mostrar-me atraente pela simples razão de...

— De despertar o desejo no seu amigo, não é? — Sua face estava próxima à dela, sinistra, e a brasa em seus olhos não deixava dúvidas quanto às suas intenções. — Bem, você conseguiu acender o desejo do seu marido e agora deve aguentar as consequências. — Sua boca estava perto da de Helen, que tentou defender-se contra Leon com todas as suas forças. Mas, depois de pouco tempo, jazia passiva, chorando suavemente, enquanto os lábios de Leon se moviam de sua boca para seu pescoço e depois para a curva de seus ombros, de onde tinha puxado as alças do vestido. Ele se afastou um pouco de Helen e percebeu suas lágrimas. Ela estava chocada, temerosa, com os nervos agitados. Sentia o corpo dolorido, devido ao forte abraço, e seus lábios lhe pareciam demasiadamente inchados; lembrou-se de que ele lhe dissera que os cipriotas cuidavam de suas mulheres, mimavam-nas, e seus olhos se encheram de lágrimas novamente. Leon a olhava fixamente, vendo as lágrimas brilhando em seus cílios; e então tomou o rosto de Helen entre as mãos.

— Helen, não chore. — Colocou seus lábios sobre os dela mais uma vez, beijando-a gentilmente, suavemente, como que suprindo para sempre sua crueldade de um momento atrás.

— Leon, você não vai quebrar sua promessa, não é?— Você é minha esposa, Helen — replicou ele, depois de um curto silêncio.Era verdade; um cipriota não podia viver sem uma mulher... e qualquer mulher serviria.

CAPÍTULO V

As duas crianças olhavam mal-humoradas, enquanto Helen fechava a tampa de sua mala e trancava uma das fechaduras.

— Quanto tempo a senhora vai ficar fora? — perguntouChippy, pesaroso.— No máximo três dias. Alegre-se, pequeno bobo, outra pessoa pensaria que estamos

indo para passar um mês todo.— Três dias é muito tempo. Não é justo. Por que não podemos ir com vocês? —

indagou Fiona.— Porque tia Helen quer descansar. Agora vão brincar e deixem-na com seus pacotes.

— Leon estava na porta, mas, ao ver a dificuldade de Helen, aproximou-se da cama.— Algum problema?— Tio Leon — começou Fiona, persuasiva —, podemos ir com vocês? Seremos

bonzinhos.— Eu disse para irem brincar.— Mas...— Levaremos vocês em outra oportunidade — prometeu Helen, apressada. As crianças

saíram do quarto e Leon se inclinou para examinar o que havia com a fechadura da mala. Seus dedos morenos tocaram os de Helen, que rapidamente puxou a mão. Os lábios de Helen se comprimiram e Leon se levantou. E, então, deliberadamente, ele tomou as mãos de Helen e as segurou num aperto firme e possessivo,

— Sem dúvida, você prefere os ingleses. Mas, infelizmente, você se casou comigo.— Infelizmente... — repetiu ela, vagamente, enfatizando a palavra. Fez um esforço para

livrar suas mãos, mas a pressão aumentou e ela estava cansada de resistir a ele. — Leon, tenho de ir com você a Famagusta? As... as crianças estão desnorteadas.

— Já lhe disse, as crianças estarão bem. — Ele inclinou sua cabeça e a beijou nos lábios.

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— Por Deus! Você não pode ficar sem uma mulher nem mesmo por três dias? Que espécie de homem é você?

— Penso que tenho o direito de esperar que minha esposa me acompanhe quando viajo. Obviamente, acredita que sabe a razão pela qual desejo ter você comigo, e eu não me daria ao trabalho de contra dizê-la.

Helen tentou novamente retirar suas mãos, e desta vez foi bem-sucedida. Mas os dedos de Leon subiram pelos seus braços e apertaram seus ombros.

— Tome cuidado, Helen. Tome cuidado. Para seu próprio bem, não me faça perder a cabeça. — Estavam muito próximos e Helen, assustada, sentia o nervosismo tomar conta de Leon. A réplica morrera nos lábios dela. Ele não tinha nenhum escrúpulo em exibir sua fúria, como ela vira poucas noites atrás. Leon beijou-a novamente e soltou seus braços.

Agora, Helen estava tumultuada, por quanto tempo resistiria? Havia confiado plenamente em Leon quando, ao lhe propor o casamento, dissera que não a perturbaria; não pensou por um momento sequer que ele quebraria sua palavra. Mas o fizera, e sem lhe apresentar qualquer desculpa. Leon não possuía outros sentimentos que não o desejo, não havia profundidade em suas emoções. Sua ligação com aquele homem não havia sido mais do que um cumprimento de contrato, de regras. Só que agora ele resolvera quebrar talvez a mais importante. Pois, como Trudy havia dito, egoísta como a maioria dos homens, ele não deixaria de usá-la para seus prazeres, desde que ela estivesse ali, ao alcance de suas mãos. Para Leon, aquele casamento era uma grande conveniência. Ela vivia naquela casa, e não precisava se esforçar para satisfazer seus desejos em outro lugar.

Por um instante, não houve resposta, nenhum som. Leon virou-se para sair do quarto, mas voltou. Sua boca aproximou-se do ouvido de Helen e sua voz era quase suave e ameaçadora como o rosnar de um animal prestes a agarrar sua presa:

— Preveni para que tomasse cuidado. Pagará caro se não levar em conta o aviso.Saíram para a viagem logo depois que as crianças foram para a escola, Leon teve que

seguir a rota mais longa, até Nicósia, pois era tarde demais para que se unissem ao comboio.— Primeiro iremos direto ao hotel, depois a levarei à cidade velha. — Os olhos de Leon

estavam fixos na estrada; Helen examinou-lhe o perfil quando ele voltou a falar. — Você disse que nunca foi à cidade velha, não é?

— Não.— Você me odeia, Helen? — perguntou ele. inesperadamente, desviando novamente os

olhos para a estrada. — No começo você não me odiava, éramos razoavelmente felizes, antes de... antes de...

— Antes que fizesse de mim uma bela conveniência? Sim, Leon, entendíamo-nos razoavelmente bem. E poderíamos ter continuado assim para sempre.

— Você acha? E você, Helen... você se satisfaz com esse tipo de vida?— Você sabe que não tenho intenção de me deixar envolver emocionalmente. Dei-lhe a

entender isso no dia em que lhe falei sobre Gregory e de como o meu relacionamento com ele não foi bom para mim.

— Você não respondeu à minha pergunta. Os homens são humanos, mas as mulheres também o são.

— As mulheres são diferentes, especialmente as inglesas.— Isso você nem precisava me dizer — respondeu Leon, e completou: — Mas, frias ou

não, ainda acho que são humanas. Não vai me responder?— Nunca sonharia em tolerar fazer... fazer amor somente por conveniência.— Continua fugindo? Oponho-me à palavra "conveniência," Helen. Por favor, não torne

a usá-la.— Você está querendo insinuar que eu errei em minhas deduções? Que você não está

me usando por pura conveniência? — Helen apreciara sua resposta.— Já lhe disse para não usar essa palavra!— Você é cheio de surpresas, Leon. Não pensaria que você pudesse ter objeções

quanto à indelicadeza dessa palavra.

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— Sinto-me aliviado por ouvi-la admitir que a palavra é indelicada. Estava começando a me preocupar com sua grosseria; isto não combina com você, Helen.

— Sua lisonja me oprime.— O sarcasmo não lhe cai bem, igualmente. Você me obriga a anular o que disse.— Não tenho nem mesmo liberdade de falar da maneira que desejo? — gritou ela, com

o sangue subindo ao rosto.— Lógico que tem... desde que isso não signifique um insulto para mim.Helen silenciou e nenhuma palavra foi dita até que chegaram ao hotel. O carro foi

estacionado e a bagagem levada para o quarto.— Por que vocês cipriotas são assim? — disse ela, dentro do quarto do hotel.— É o costume — disse ele. — Você ainda não se habituou aos nossos costumes.Costumes... também era costumeiro os homens tratarem suas esposas como se fossem

propriedades suas. Virou a cabeça. Havia uma cama de casal no quarto. Teria ele pedido um quarto com cama de casal? Talvez isso fosse a norma em todos os melhores hotéis.

— Esta poderia ser nossa lua-de-mel, Helen — disse Leon, bem junto ao corpo de Helen.

— Lua-de-mel foi feita para aqueles que amam.— Eu também penso assim. — Havia cinismo na voz dele? Helen não teve certeza. Os

braços de Leon comprimiram-na um pouco mais, os lábios acariciaram os cabelos dela e desceram para sua nuca. Puxando seus cabelos para o lado, ele pousou um beijo em sua pele branca e macia. Por um instante, Helen esteve em humilde resignação, mas se virou, com as faces ruborizadas, refletindo a ira e a aversão que subiam dentro dela.

— Você não pode me deixar em paz? Tenho que aturar seus abraços dia e noite? — respondeu afastando-se.

— Helen! Se é assim que você se refere as minhas carícias... como algo que faz você sofrer... então a resposta é sim. Eu faço o que quero exatamente na hora em que tenho vontade.

— Você prometeu. — Ele estava novamente perto demais. A voz de Helen deixava transparecer raiva. Se ela pudesse escapar daquele homem... — Não tem problemas com sua consciência por ter faltado com sua palavra?

— Não devo ter consciência nem consideração em nosso relacionamento. Você é minha esposa e não estou quebrando regra nenhuma, quando quero ter o que é meu.

— Não há necessidade de me lembrar de que, aqui, o fato de ser casada significa ser propriedade do marido. Mas você não vai me prender para sempre — disse ela, em voz alta. — Logo que as crianças tiverem idade suficiente para se cuidarem, eu abandono você.

— É provável que você tenha um filho antes que isso aconteça — disse ele calmamente, caminhando em direção à mesa.

— Então você pretende me prender dessa maneira?— Sim... prenderei você dessa maneira — respondeu Leon, em voz baixa, enquanto ela

o fitava, alarmada. Havia um estranho temor na voz dele; como se às palavras fossem forçadas a sair, como se experimentasse uma grande dificuldade ao dizê-las. Seus olhares se encontraram e, por nenhuma razão explicável, trouxeram à memória de Helen aquela dolorosa fisgada no coração que sentira ao vê-lo com Paula Maxwell, no Hilton. Para sua própria perplexidade, essa lembrança apagou-lhe da mente o que acabara de ocorrer, e como que arrastada por algum poder superior ao seu controle, ela se moveu em direção a Leon, estendendo sua mão, num gesto inconciente de súplica.

— Leon...— Sim, Helen? — Mas ela não pôde falar, não conseguiu esboçar palavras para lhe

contar seus pensamentos, para descrever esse tumulto nascido do medo. — O que é? — Seu tom era gentil e quase suplicante. Tão distante de seu caráter, pensou, e algo nela respondeu contra sua vontade;

— Nestas férias tão curtas... podemos ser felizes?— Helen... Sim, minha querida; sim, podemos ser felizes.

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Segurou-a um pouco mais, não tentando beijá-la e parecendo receoso de segurá-la muito apertada contra si. Uma sensação inexplicável de culpa invadiu-a.

Depois de almoçarem no hotel, dirigiram-se à cidade velha de Famagusta. Leon dissera que a visita era estritamente para tratar de negócios, mas embora tivesse ido até os depósitos de sua propriedade, ficou lá poucos minutos, retornando logo para o carro.

Percorreram as plantações, onde Leon tinha interesse comercial e dirigiram-se para a cidade velha. Leon estacionou o carro e foram a um bar tomar um refrigerante, Como era normal, só havia homens, e cada olho se virou, quando Leon e Helen entraram. Depois de examinar Hclen e lançar um olhar casual a Leon, os homens retornaram aos seus jornais e seu jogo de cartas.

— Eles jogam por dinheiro? — quis saber Helen.— Somente por bebidas.— E não trabalham? — Helen estava com um olhar enigmático, e Leon riu.— Ainda preocupando sua bela cabeça com as pobres mulheres que trabalham

enquanto os homens ficam perdendo tempo?— Mas é verdade! Como mulher, odiaria ser esposa num lugar desse — respondeu com

um lampejo.— Odiaria, Helen? — perguntou ele com mordacidade, fazendo-a sentir-se

envergonhada.— Não quis dizer isso. Eu não gostaria de ter nascido aqui e ser pobre... — Deu uma

pequena risada: — Você sabe o que quero dizer.— Sim, eu sei. — Leon olhou ao redor, assim que o proprietário do bar apareceu,

trazendo uma bandeja com duas xícaras pequenas de café e dois grandes copos de água, — Mas as mulheres aqui realmente não se preocupam — continuou ele, quando o homem saiu. — Estão habituadas e, quando eventualmente arranjam um marido, ficam bastante contentes.

— Esses casamentos por... esses casamentos que não são baseados no amor... como são arranjados? — perguntou Helen.

— Muito simples. Por exemplo, um primo meu, Pavlos, casou-se há pouco tempo com uma garota de uma pequena aldeia nas montanhas. Ele procurou o irmão da moça, que lhe falou sobre as virtudes dela e disse que ela poderia levar a casa como dote. O irmão combinou com Pavlos um encontro para ver se a menina lhe agradava. Isso realmente ocorreu e ele aceitou casar-se com ela. — Ante a expressão chocada de Helen, seus olhos se iluminaram, divertidos. — Isso é tudo.

— Tudo?— Sim... tudo.— O irmão... arranjando para... para examiná-la, como você acabou de dizer. É terrível.— É o procedimento normal.— Mas... e a moça? Não tem nada a dizer?— Não tem muito — admitiu ele. — Atrevo-me a afirmar que, se ela recusasse o rapaz

escolhido, o pai e os irmãos lhe dariam atenção, mas isso raramente acontece. Veja, o homem faz um favor, casando-se com a moça; ela fica agradecida e não pensa em recusas.

— Isso é uma espécie odiosa de arranjos — declarou Helen, com algum ardor. — Deve ser muitíssimo embaraçoso para a garota.

— Nem tanto. É o costume, minha cara.A afirmação de Leon ficou ressoando no interior de Helen. O casal acabou de sorver as

bebidas e saíram para conhecera cidade.— Esta é a mesquita. Como você sabe, a cidade velha é o quarteirão turco de

Famagusta. Gostaria de entrar na mesquita? — disse Leon, tentando ser gentil. Helen assentiu e, tirando os sapatos, entraram no belo edifício que havia sido a catedral de São Nicolau, construído muitos séculos atrás pelos reis Lusignan. Helen ficou admirada com a beleza do templo, depois saíram para conhecer outros lugares pitorescos. Dirigiram-se para ver as muralhas venezianas e a fortaleza, com a famosa torre onde a história de Otelo foi terminada.

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Passeando pelos arredores da cidade, pareceu a Helen que havia visto centenas de igrejas, todas em ruínas.

Mais tarde, foram até a Porta do Mar, através da qual Ricardo Coração de Leão havia entrado na cidade. Caminharam pelas ruas e praças, Helen não se sentia tão feliz assim há muito tempo. Leon pegou sua mão, quando, ao subir numa pedra, He!en escorregou. Reteve sua mão pelo resto da caminhada e voltaram ao hotel.

Leon convidara alguns homens de negócios para o jantar, e eles logo mais chegariam ao hotel.

— Qual deles devo usar? — Helen havia trazido três vestidos de noite e os colocara sobre a cama. Sua pergunta surpreendeu-a tanto quanto ao seu marido. Antes, não teria nem sonhado em consultá-lo. Pegando um dos vestidos, ele o colocou na frente dela.

— Humm... — Acenou negativamente com a cabeça e escolheu outro. — Deixe-me ver este... — Era um vestido curto, todo debruado, em algodão, que lhe assentava muito bem. — É este — disse ele, e o colocou de volta na cama. Então, gentilmente, Leon a tomou em seus braços e a beijou. Pela primeira vez, Helen não opôs resistência.

Pela primeira vez, havia harmonia entre Leon e Helen. Com esta alegria estampada em suas faces, foram encontrar os negociantes. Um deles era cipriota e chamava-se Yannis, que tão logo foi apresentado a Helen, cobriu de elogios a esposa do amigo.

Os demais eram ingleses: Eric e Stephen, que demonstraram-se radiantes em conhecer a compatriota.

Depois do jantar, todos eles foram a uma boate. Na volta ao hotel, às três horas da manhã, Helen sentia-se com muito sono e deixou que seu marido a carregasse até o quarto.

Depois do café da manhã, saíram e foram direto para a praia. O sol estava intenso e Leon sugeriu um banho de mar.

— Você sabe nadar? — perguntou Leon, meneando a cabeça levemente, admirado de como sabia pouco sobre sua esposa.

— Sim, adoro nadar, especialmente no mar. — Para sua surpresa, não se sentia indisposta por ter ido dormir tarde na noite anterior. Nadaram durante alguns minutos e foram secar-se ao sol.

— Terei que deixá-la só por algumas horas — disse ele, depois do almoço. — Tenho alguns negócios a tratar e você ficará melhor na praia do que esperando dentro do carro.

Leon ficou ausente apenas uma hora e meia, e Helen arregalou os olhos, quando ao abri-los, o viu diante dela, vestido somente com um calção de banho. Há quanto tempo estaria ali observando-a, por trás daqueles óculos escuros?

— Você voltou cedo. — Uma súbita timidez tomou conta dela e Helen começou a desenhar na areia.

— Se eu pudesse acreditar na evidência do que tenho diante dos olhos, diria que você está feliz. — Deitou-se junto dela e esticou suas longas pernas. Então, virando-se de lado, apoiou-se num cotovelo e olhou-a fixamente. — Você está feliz, Helen? Não é muita ousadia perguntar isso? — Não parecia esperar resposta, e ela continuou a fazer seu desenho na areia. Agora ele a tratava de maneira carinhosa e Helen gostaria de saber se isso acontecia por consideração ou somente para que ela se tornasse uma dócil escrava. Era evidente que ele estava querendo um relacionamento diferente daquele que tiveram até o dia anterior, quando Leon a carregara no colo. Agora ele agia com gentileza, por sentir que assim seria melhor para ambos, embora Helen nada fizesse para encorajá-lo. Amoroso como estava, a frieza da moça não poderia satisfazê-lo. Como também iria ferir seu orgulho, caso ele conseguisse quebrar o gelo que a envolvia. Helen aprendera com Trudy que, para todos os gregos, ci-priotas ou não, o amor era uma arte que sabiam praticar muito bem, e da qual se orgulhavam muito.

"Se Leon quebrar sua promessa, você não colocará oposição, pois se sentirá no paraíso." — dissera Trudy.

Ao lembrar-se dessas palavras, Helen percebeu que seu rosto se ruborizava. Leon escolheu esse momento para tocá-la. Seus dedos eram suaves, sob o queixo de Helen. Estra-nhamente, não ficou ressentida com o gesto, que, de alguma forma, tinha uma certa dose de autoridade.

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— Por que o rubor, minha querida Helen?— Eu... eu estava pensando — murmurou ela.— O que você estava pensando, que a fez corar assim? — Havia insistência em sua

voz, mas Helen nada respondeu. As mãos de Leon baixaram e seguraram as dela com firmeza, impedindo que seus nervos a impelissem a rabiscar a areia.

— Está quente — disse ele. — Vamos para a água? Aliviada, Helen se levantou e Leon acompanhou-lhe o movimento, retendo suas mãos. Caminharam como namorados, em direção à beira da praia, e então entraram no mar azul e agradável.

Ela saiu da água e se sentou nas areias quentes, seus olhos fixos na cabeça morena de Leon, distante, no mar. Ele acenou e Helen respondeu.

Helen estava desenhando na areia de novo, quando Leon se uniu a ela. Ela argumentou que deveria ter trazido uma toalha.

— Logo estarei seco. — Ele piscou para ela, observando cada detalhe de seu corpo bem-feito, e a abraçou carinhosamente mas com ímpeto. Helen retribuiu cheia de felicidade, enquanto ele a estreitava ainda mais em seus braços.

— Quanto a seus quadros devo julgar se são bons ou não, quando chegarmos em casa.Por que ele iria querer um quadro seu onde pudesse vê-lo todo o tempo? Seria para se

lembrar de sua posse sobre ela? Helen afastou essa idéia da cabeça, pois ele não chegaria a tal ponto. Embora Leon tivesse muitas falhas, era sincero, uma qualidade que ela admirava. Sua natureza emocional era algo à parte. E fora exatamente essa característica da personalidade de Leon que fizera com que ele deixasse de Sado todas as boas intenções e as regras que haviam estabelecido entre si antes de se casarem. Ela sabia que, basicamente, seu marido era um bom homem, um homem em quem se podia confiar, embora ainda estivesse magoada por ter quebrado as promessas feitas, não respeitando seus sentimentos, não dando importância às suas aflições. Mas, apesar dessa arrogância e superioridade, de sua postura quase sempre dominadora e cruel, Helen havia encontrado uma certa característica infantil na complexa personalidade de Leon que se tornava adorável nas horas de calma.

CAPITULO VI

Era tempo de primavera, com isso aumentava a circulação de turistas pela ilha. Em sua casa, na colina, Helen, sentada numa espreguiçadeira, no jardim, não pôde deixar de admitir que, sob muitos aspectos, era uma pessoa de sorte. Poucos meses antes, sua vida era solitária e melancólica, com a única perspectiva de trabalhar para se manter. O destino traça armadilhas muito estranhas, refletiu, pois, se Brenda, ao ser informada sobre o plano de mandar Chippy e Fiona para o tio, não houvesse pensado nela, nunca teria colocado seus pés naquela ilha fascinante e muito menos teria a oportunidade de vir morar ali. Lentamente Helen pegou o livro que estava em seu colo, mas não chegou a abri-lo, pois seus olhos viram, ansiosos, surgir de repente o carro de Leon, subindo o caminho para a colina. Sua vida ainda não estava totalmente resolvida, seu casamento, realizado naquelas circunstâncias, ainda a deixava preocupada quanto ao futuro.

Aqueles poucos dias em Famagusta haviam relaxado um pouco a tensão de seu relacionamento com Leon, mas Helen não se esquecia de que, para o marido, ela não passava de um objeto de prazer, já que ele fazia amor com ela sem a amar. Além disso, não conseguia se esquecer de que Leon quebrara a promessa que lhe fizera no início. Suspirou, lembrando-se de que seu marido concordara com ela, dizendo que nada era perfeito. Ela e Leon haviam descoberto uma forma de viver tolerável, e ela presumiu que deveria ser agradecida por isto. Sentia-se melhor com a delicadeza atual de Leon. Chegava a tremer só em pensar que ele poderia ter continuado a ser brutal e possessivo como naquela primeira vez que a tocara.

Levantou a cabeça assim que ele entrou na parte ladrilhada do jardim e lhe sorriu.— Teve um dia muito ocupado? — perguntou ela polidamente. Ele puxou uma cadeira e

se sentou ao lado oposto a ela.

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— Vamos visitar uma tia minha esta noite. Ela me telefonou, queixando-se de que ainda não a conhece.

— Outra tia? Você nunca a mencionou.— Há ainda muitas coisas que ainda não sabemos um do outro, não é? — E quando ela

assentiu, ele acrescentou: — Será por isso que as conversas espontâneas são tão difíceis entre nós, Helen? — E as palavras a surpreenderam. Ele parecia terno e de excelente humor, o que sempre tinha o. efeito de produzir nela um sentimento inexplicável de culpa.

— Não acho difícil a conversa entre nós.— Eu disse conversa espontânea. Talvez devesse ter dito que as confidências são

difíceis entre nós.— Isso é compreensível, suponho... considerando-se as circunstâncias.— Por que você continua a nutrir esse ressentimento por mim? — As palavras saíram

com dificuldade, ditas com uma terrível amargura. O que está feito, está feito.— Talvez não devêssemos conversar sobre isso, Leon. Você sabe que já tentamos

antes e o resultado foi sempre desastroso. Devemos passar nossas vidas juntos de uma maneira calma, evitando qualquer tipo de problemas..

— Você pode se resignar a isso.... para sempre?— O que podemos esperar?— Nós não temos tentado mudar, Helen. — Virando-se para ela, completou

suavemente: — Não acha que deveríamos tentar ser... ser...— Você está esperando que eu chegue a amá-lo?— Não, Helen, não espero amor... mas seria bom sentir seus abraços, algumas vezes.

— Ele parou por um instante, ao perceber que Helen se enrijecera visivelmente, e então continuou a falar, com uma certa precipitação, como se tivesse esquecido que estava a ponto de se humilhar. — Não, nunca esperarei amor de você. Você não está disposta a dá-lo, você me disse, no começo, que nunca permitiria se envolver emocionalmente, depois da experiência sofrida com seu marido. Estou certo, não estou?

— Sim, sim, é isso mesmo. Disse que nunca me apaixonaria novamente.— E você acha que essa atitude é racional?— Nunca darei a outro homem uma oportunidade de me machucar. Esta é a razão de

não querer me apaixonar mais uma vez.— E você ainda espera que eu a ame?— Nunca esperei amor de você, Leon.— Então do que me acusa? — seus olhos se tornaram duros e toda a áspera arrogância

voltou à sua face. — Se você não espera que eu a ame, por que o ressentimento?— Você sabe o porquê — respondeu ela. — Não é porque você... você fez amor comigo

sem me amar, e sim, porque você fez amor comigo.— Você chega a ser irracional, Helen.— É irracional esperar que você mantivesse sua promessa? Você fez a proposta...

pediu-me que casasse para cuidar das crianças, eu concordei, acreditando que você fosse um homem de palavra. — Leon permaneceu em silêncio, e ela continuou: — Você não disse que a manteria... quer dizer, no começo?

— Acho que sim.— E por que mudou de opinião?— Vou ser muito franco, Helen, e você não vai gostar de ouvir. Quando você chegou

aqui, era deselegante, completamente sem atrativos; não tinha nada que despertasse a atenção de um homem. A idéia de querer você nunca passara pela minha cabeça. — Parou, observando o rubor aumentando na face de Helen, e continuou, inflexível: — Embora você fosse minha esposa, no que dizia respeito aos meus sentimentos nada mais era do que uma criada, uma pajem para as crianças. Mas logo percebi que tudo isso era uma atitude deliberada, que sua aparência era intencional, e aos poucos vi que você poderia ser...

— Desejável? — disse ela de repente. E os olhos de Leon cintilaram perigosamente.— Se é essa a palavra que você quer usar, sim. Estava muito curioso para saber como

era na realidade e lhe disse que comprasse roupas.

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— Assim eu pude me enfeitar e satisfazer sua curiosidade? Então, na verdade, me transformei num brinquedo bonito! — interrompeu-se e engoliu em seco, ao ver a expressão dele. Era estúpido continuar com aquilo, Helen conhecia a fúria dele hã muito tempo.

— Você, com muita boa vontade, enfeitou-se toda para outra pessoa! Para aquele maldito inglês.

— Eu não...— Enfeitou-se, sim, senhora.— Está bem, enfeitei-me. Você me viu e me achou desejável. Qual é a desculpa por ter

quebrado sua promessa?— Esqueça essa promessa! Transformou-se numa obsessão para você.— Esquecer... por que deveria? Você a fez e eu esperei que a mantivesse.— Já lhe disse, você está sendo irracional. Pensa que poderemos viver assim durante

quarenta anos ou mais? Use seu bom senso... você não é uma criança, deveria saber disso.— E você também deveria!— Eu compreendo que agora...— Tio Leon... tia Helen!... — As crianças se aproximavam gritando e Fiona corria pelo

jardim, ofegante e pronta para romper em lágrimas. — Não deixem que eles me peguem!— Meu Deus... o que aconteceu com você, menina? — A mudança em Leon foi

miraculosa. Colocando a menina trêmula sobre seus joelhos, encostou a cabeça dela em seu peito e a acariciou para acalmá-la. Fiona começou a soluçar e ele tirou um lenço do bolso. — Aqui está, vamos... — Começou a enxugar os olhos dela. — O que foi isso?

— Eles... eles... —Fiona ainda era sacudida pelos soluços e se encostou mais em Leon, assim que viu Chippy, que chegava correndo, seguido de perto por dois garotos, Alex e André. Todos eles brandiam galhos e gritavam alegremente, mas silenciaram ao verem Fiona no colo de Leon.

— Oh! — exclamou Chippy, ficando pálido.Leon olhou-os, passando de seu sobrinho para seus dois companheiros e voltando a

olhar para o galho na mão de Chippy.— O que vocês pensam que estão fazendo? — Ate mesmo Helen ficara trêmula e com o

coração batendo mais rápido, pois estava certa de que Chippy se metera numa grande encrenca.

— Estávamos brincando de prisões — replicou Chippy, relutante.— Prisões?— Eles me fecharam... na velha casa turca no bosque — soluçou Fiona —, e disseram

que me deixariam lá para sempre.— Nós não dissemos isso! — gritou Chippy apressado.— Você sabe que não.— Dissemos sim! — André lançou um olhar irônico na direção de Fiona. — Ela é

apenas uma menina.— Não dissemos isto... — confirmou Alex, mais observador que seu amigo. —

Honestamente, senhor Petrou, não a deixaríamos lá.Leon desviou seu olhar para os dois garotos.— Vão embora — disse calmo. — Verei o pai de vocês amanhã.— Oh, senhor Petrou...— Eu disse para irem para casa!André obedeceu zangado, mas Alex ficou onde estava, com a face transtornada.— Meu pai vai me bater...— Pode ficar certo disso. Devemos proteger as garotas pequenas, e não persegui-las

com agressividade. Estou admirado com você, Alex, e espero que a surra lhe faça bem. Agora, como já disse, vá para casa.

— Sim, senhor Petrou. — Ele deu alguns passos em direção ao atalho e se virou para trás. — Desculpe-me, Fiona. Nunca mais vou perseguir você. — Engoliu em seco, lançou um triste olhar para Helen e saiu com passos lentos e desanimados. Helen decidiu ter uma boa

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conversa com Alex, mais tarde, quando seu marido estivesse com melhor humor. Fiona ainda estava chorando e Helen disse:

— Deixe-me levá-la, Leon. — Ele a colocou no chão e Helen pegou-a, ainda tremendo. Leon estava áspero e furioso e acenou para que Chippy se aproximasse.

— Agora, rapaz, quero uma explicação completa. Por que prendeu sua irmã naquela casa?

— Como eles puderam prendê-la? — perguntou Helen, intrigada A velha casa turca praticamente estava em ruínas. Estava vazia há mais de trinta anos. Não há janelas na casa.

— É por isso que foi difícil conseguir sair — soluçou Fiona. — Tive de subir e... rasguei meu vestido. E então corri e eles me perseguiram.

Não havia dúvida de que ela passara um grande susto, e Helen não se surpreendeu quando Leon agarrou Chippy pelos ombros e o sacudiu duramente.

— Responda! — ordenou impassível, ante o rápido brilho dos olhos do seu sobrinho. — Responda de uma vez!

— Estávamos somente brincando, tio Leon, sério. André sugeriu que brincássemos de prisões e não havia ninguém para ser preso... bem, os meninos não querem ser presos.

— E assim vocês capturaram sua irmã, certo? — Sua voz soava como um trovão, Chippy acenou com a cabeça e lançou um olhar de súplica para Helen.

— Ainda não consegui entender como os meninos a prenderam naquele lugar — insistiu ela, franzindo as sobrancelhas. — Não há porta naquela casa.

— Existe uma na par... parte que eles usavam para guar... guardar vacas e outras coisas.

— Estou esperando, Chippy — Leon falou com rapidez, ignorando a observação de Helen e a explicação de Fiona. — Quero saber exatamente o que aconteceu!

— Nós a colocamos lá dentro — começou Chippy, com voz trêmula. — Então, fechamos aqueles portões de saída...

— Portões?— Oh, sim — disse Helen, apertando Fiona, que estremecera sob a lembrança. — Há

alguns portões pesados... mas estão cheios de ferrugem e acho que não são fechados há anos.

— Você colocou sua irmã iá dentro e fechou os portões? — Leon sacudiu-o novamente e Chippy começou a chorar.

— Leon, não...— Eu é que vou acertar isto! Como você conseguiu fechar aqueles portões?— Alex e eu fechamos... com um outro garoto. Ele saiu correndo quando Fiona

começou a gritar.— O que André estava fazendo?— Estava me guardando. — Fiona se sentou e lançou um olhar maligno para seu irmão.

— Queria que Chippy me ajudasse, mas ele nem ligou e deixou André parado lá. Se caso eu fugisse...

— Você era a prisioneira, Fiona, e você tinha dito que não se importava. — Olhou para a irmã. — A vara não era para bater em você. Fazíamos de conta que era uma espingarda. Você sabia disto. Você disse que não se importava — repetiu, com uma nota de indignação em sua voz.

— Eu não sabia que você fecharia os portões. André disse que os portões eram mágicos e que, se fossem fechados, ninguém poderia abri-los de novo e então nunca mais poderia sair dali.

— Mas, Chippy...? — Helen olhou suplicante para o marido, mesmo admitindo que Chippy merecia ser punido. — O que você vai fazer com ele?

— Eu acho... — replicou Leon, abaixando-se para pegar a vara da mão de Chippy — que um teste com isto nas pernas dele não fará mal nenhum.

— Oh não! — Helen parou, com a face muito pálida, Fiona ainda estava abraçada a ela, mas olhava para seu tio. — Não faça isso, Leon — pediu Helen, meneando a cabeça. — Ele se lembrará disso pelo resto da vida... e nunca o perdoará.

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Suas palavras tiveram um estranho efeito sobre Leon. Olhou-a como se estivesse um pouco envergonhado, enquanto dizia, quase esquecendo a presença das crianças:

— Você fala como se estivesse mais preocupada comigo do que com o garoto.— E estou — confessou ela, sem tirar os olhos do rosto dele. — Não faça isso, Leon,

por favor!— A idéia de que Chippy possa nutrir um ressentimento contra mim incomoda você?— Sim, Leon, me incomoda. Chippy tem grande admiração e respeito por você. Não

gostaria que mudasse de opinião.— Você é uma pessoa muito estranha, Helen. Simplesmente não consigo entendê-la.— Chippy? — perguntou ela mais uma vez, tentando escapar ao olhar penetrante de

seu marido.— Não precisa ter medo, não baterei nele.Mais tarde, sentada ao lado da cama de Fiona, Helen rememorou a cena mais uma vez.

O modo como Leon colocara Fiona sobre seus joelhos, acalmando-a e enxugando suas lágrimas; o modo como dissera a Alex que meninas deviam ser protegidas. Como um lampejo de memória, Helen lembrou-se de que logo ao perceber o caráter de Leon, concluíra que era um homem de personalidade dupla.

Áspero e terno, arrogante e humilde, suplicante e exigente... já o havia visto em tantas mudanças de humor. Qual seria o verdadeiro Leon?, perguntou-se. Como poderia saber? Por que se importava em querer descobrir o verdadeiro Leon?

Fiona ficou em silêncio e acabou caindo no sono. Sem fazer barulho, Helen saiu do quarto. Leon estava sozinho na varanda e ela foi encontrar-se com ele.

— Onde está Chippy?— No quarto dele. E vai ficar lá todos os dias, quando chegar da escola; quanto a isso,

quero que você o vigie.— Por quanto tempo?— Até que eu sinta que ele aprendeu a lição. Sua mesada, também estará suspensa.

Não entendo esse menino. Onde arranjou essas ideias?— Os meninos da aldeia aparentemente não respeitam as mulheres. Sem dúvida,

seguem o exemplo de seus pais.— Era necessário dizer isso? — perguntou Leon friamente, e ela abaixou a cabeça.— Vou ajudar Araté a preparar a refeição — disse Helen, levantando-se. — A que horas

sairemos?— Logo que tivermos jantado. A refeição poderá ser servida um pouco mais cedo?— Sim... espero que sim... — Entrou na sala de estar, mas ele a chamou:— Helen...— Sim?— O quadro. Já começou?— Só comecei a pintá-lo, não posso mostrar até...— Vá buscá-lo.— Você não vai gostar... não até que eu pinte mais.— Deixe-me vê-lo.Resignada, ela encolheu os ombros e, poucos momentos depois, voltou com a tela.

Enrubesceu enquanto a entregava a ele.— O que a fez pintar o moinho velho? — Ele tinha a tela nas mãos e a observava de

maneira crítica.— Exerce uma atração estranha sobre mim — confessou ela. — Tem uma atmosfera

encantadora, com a água jorrando com tanta força... Foi muito bom, para mim, ter conhecido aquele lugar. Na Inglaterra existem muitos, mas aqui não vi nenhum além deste.

— O velho moinho... — Os pensamentos de Leon não estavam longe dos dela; em seus olhos escuros surgiu uma expressão meio sonhadora e meio triste. Ele parecia terrivelmente só. Por alguma razão inexplicável, Helen percebeu isto. Ali estava seu marido e uma de suas facetas infantis. Era ridículo, mas sentiu um desejo quase irresistível de passar seus braços em volta dele... Teve uma sensação estranha no coração. Curioso que, poucos momentos antes,

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com um inegável tom de tristeza na voz, ele dissera que gostaria de ser abraçado por ela algumas vezes. E ela se contraiu, tentando ocultar seus sentimentos. Qual a razão de toda aquela tensão?

Leon estava perdido em pensamentos analisando o quadro e Helen ficou à espera observando a sua expressão.

— Era a casa do meu avô — disse Leon, sorrindo, apontando a pintura com o dedo. — Havia muitos netos naquela época, mas agora nos dispersamos, pois vários deles aban-donaram a ilha para procurar trabalho em outros lugares. — Parou e então completou: — Este moinho me pertence...

— É seu? Eu não sabia, Leon. Você nunca me disse.— Não podia imaginar que você o encontraria. Obviamente, você tem passeado em

suas horas de folga.— Eu o descobri quase por acaso, um dia em que saí com as crianças. Percorremos

esse terreno acidentado e rochoso "explorando", como elas disseram, e, de repente, lá estava ele...

— Você o retratou muito bem — comentou ele com um sorriso divertido.— É tão triste que esteja em ruínas e todo coberto pela vegetação. Há algo que possa

ser feito?— Na realidade, estou vendendo o moinho. E é estranho que você o tenha escolhido

para seu tema. Há pouco tempo, PM disse que devíamos ter uma recordação dele como está, antes que suas características mudem com as futuras reformas.

— Vai ser reformado?— A pessoa que o está comprando é um inglês muito rico. Acredito que ele pretenda

conservar o máximo possível, mas é lógico que terá de fazer grandes alterações no lugar.Entregou-lhe o quadro; ao pegá-lo, Helen foi tomada por uma deliciosa sensação de

prazer por ele não estar decepcionado com seu trabalho.

A tia de Leon, Chrisoula, vivia sozinha numa grande casa em estilo grego. A casa tinha sido construída por seu pai, sessenta anos atrás, quando Chrisoula tinha quinze irmãos. Alguns haviam morrido, outros se casaram ou moravam em outros lugares.

— Em tempo — resmungou ela, ao abrir a porta. Examinou Helen dos pés à cabeça, antes de virar-se para que ela e Leon pudessem entrar. — Estava começando a achar que vocês tinham alguma doença contagiosa; demoraram tanto para aparecer!

Leon riu e, já dentro da casa, apresentou sua esposa.— Inglesa, hein? — A velha tia encolheu os ombros. — Oh, bem espero que saiba o

que está fazendo.— Já está feito, tia Chrisoula. — O tom cínico de Leon aparentemente escapara à velha

senhora, mas Helen corou de leve ao ouvir isto. — Somos um velho casa! agora. — Pegando no braço de Helen, impeliu-a gentilmente para a sala de estar, seguindo de perto sua tia. — Já é tempo de fazer algo para se livrar desta velha casa.

— Não, eu quero morar aqui. Sente-se no divã... tire os gatos, Helen, eles pensam que são donos do lugar.

— Sente-se aqui. —Leon sorriu, malicioso, e lhe deu uma cadeira que parecia estar limpa. — Para que a senhora quer todos esses gatos? — gritou Leon, pois sua tia havia ido até à cozinha.

— Todos perdidos... você os encontra em qualquer canto. Cachorros também, mas não posso viver a pegá-los. Além disso, eles latem e sou muito velha para esse tipo de barulho. — Seu inglês estava longe de ser perfeito, mas Helen não teve dificuldades para entendê-lo.

— Isto não é nada — cochichou Leon. — Espere até que ela lhe mostre o resto da casa.A sala era mais como um imenso celeiro, com chão de laje. As paredes e o teto eram

suportados por vigas carcomidas. Havia pássaros empalhados, empoleirados em gaiolas ou em galhos finos. Outros estavam em cúpulas de vidro, e, por seu aspecto, Helen teve a impressão de que as traças deviam se alimentar de suas penas há anos. Sob as cúpulas de vidro também havia ornamentos de bolos de casamento e de aniversário; e nas paredes de

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madeira alinhavam-se dúzias de fotografias, obviamente de membros da família de tia Chrisoula.

Agora, tia Chrisoula retornava com uma bandeja, com três copos de água e três pratos de vidro lapidado. Em cada prato havia alguma coisa estranha, preta, mais ou menos do tamanho de um ovo pequeno. Cada uma daquelas "coisas" estava espetada num garfo de prata e delas escorria um melado preto, que formava pequenas poças nos pratos. Helen olhou aquilo com suspeita e se sentiu um pouco enjoada. O leve movimento de sua cabeça indicou a Leon que ela não desejava provar tal coisa, mas seu marido, inclinando-se, aconselhou-a a experimentar aquela estranha iguaria.

Depois de aprender o ritual para comer aquela iguaria desconhecida, Helen acabou gostando.

Depois das guloseimas, vieram as bebidas; desta vez, Helen pôde escolher e, como sempre, bebeu suco de laranja.

— Vou levá-la para conhecer a casa — disse tia Chrisoula, quando terminaram. Leon fitou sua esposa e sorriu maldoso.

— Você não vai acreditar que está numa casa — advertiu ele. — É imensa.Não era só imensa, como estava também em chocante mau estado. Entravam em um

cômodo depois do outro, cada um parecendo mais negligenciado que o anterior. Havia mais pássaros e também pequenos animais empalhados, todos cheios de poeira. Em um estojo de vidro grosso Helen viu um exótico quadro vivo: aves de rapina, segurando suas vítimas com garras afiadas e dilacerando a carne com seus bicos. Em todo lugar havia imagens sacras raríssimas, muitas delas iluminadas por pequenas luzes vermelhas produzidas por minúsculos abajures elétricos. Os fios de conexão desses abajures, algumas vezes surgiam espalhados pelo chão, outras em uma massa entrelaçada, que vinha da tomada presa à parede.

— Não há falsificações aqui — disse Chrisoula, referindo-se às imagens sacras, parando e colocando uma das lâmpadas em frente a uma delas. — São muito antigas... sim, muito antigas. — Parou novamente, acertando um quadro de São Nicolau que escorregara e estava inclinado sobre outras imagens. — Eu as beijo todas as noites — faiou, e Helen pestanejou.

— A senhora as beija, uma por uma?— Uma por uma. — A velha senhora caminhava diante delas, ao longo do amplo

corredor, até o próximo quarto. Helen já perdera a conta dos quadros e perguntou-se como uma pessoa daquela idade suportava viver em tal lugar.

— Eu ficaria apavorada aqui — murmurou para Leon. — Não conseguiria morar numa casa como esta.

— Tia Chrisoula viveu aqui toda a sua vida, lembre-se. Ela está habituada a este lugar.— Mas mora sozinha! E você disse que essas imagens são valiosas. Ela pode ser

roubada.— Roubada? — Olhou-a divertido. — Aqui nunca tivemos essa espécie de violência.— Nunca? — Agora foi a vez de Helen olhar divertida. — Não existem ladrões?— É muito, muito raro que apareçam. Não, Helen, esta é a diferença entre a satisfação e

a avareza. Aqui, as pessoas estão satisfeitas. Acho que isso tem algo a ver com o ambiente. — Sorriu para ela e, embora parecesse quase satisfeito, havia ainda um traço de ansiedade em seu comportamento, o que lhe causou, outra vez, aquele sentimento de remorso. Porém, mais forte que isto foi a sensação de desassossego; havia um vazio dentro dela que não podia avaliar. A mão de Leon pousou em seu ombro, enquanto a guiava para o quarto onde sua tia os esperava. Helen não pôde evitar um estremecimento, ao entrar em contato com o frio do quarto, e sentiu que os dedos de Leon se moviam carinhosamente, puxando-a para perto dele. Seu toque era gentil... poderia isso significar que ele se importava um pouco com ela? Nutria por ela um pouco de afeição? Ou somente a tocara? Helen aceitou a última hipótese, livrando-se da emoção que apertava sua garganta. Supondo que ele a amasse um pouco... poderia também amá-lo? Pensou em Gregory e na maneira como ele a magoara. Não suspeitara dele, fora tão confiante. Não, nunca permitiria a si mesma amar outra vez. Fizera uma promessa de nunca confiar em outro homem, nunca se deixar aberta para ser ferida e enganada pela segunda vez.

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— Era uma casa muito bonita, quando papai a construiu — dizia tia Chrisoula —, mas agora está desleixada, pois não posso arrumá-la todos os dias como fazia antes. Suponho que deveria vendê-la, como você diz, Leon, mas acho que estou velha demais para começar a tratar de negócios.

— Não se preocupe, tia, deixe que eu vendo a casa para a senhora.— Você conseguiria um bom preço?— A senhora pensará sobre isso? — perguntou Leon, enquanto desciam de volta à sala

de estar.— Pensar sobre o quê? — perguntou a tia, olhando-o, ausente.— Em vender a casa.— Mas para onde eu iria?— Eu encontro algo pequeno e de fácil acesso, pode deixar.— Barato?— A senhora é como todo mundo — riu ele. — Quer um preço alto por sua casa mas

deseja comprar outra o mais barato possível.— O que você disse?Leon repetiu, amável, e ela concordou em que era aquilo mesmo o que queria.— Vou ver o que posso fazer.— Bem... não... ahn. talvez seja melhor esperar um pouco mais.— Sempre acontece isso — contou para Helen. — Cada vez que visito tia Chrisoula ela

resolve vender a casa, mas logo depois muda de idéia.— São os gatos. O que faria com eles?— Já lhe disse muitas vezes o que fazer com os gatos.— Você é insensível e cruel! Você também não acha, Helen? Um forte rubor espalhou-

se pelo rosto de Helen, mas ela continuou em silêncio. Leon observou o vermelho semblante da moça com uma espécie de deleite sarcástico.

— Bem, querida, não vai responder à tia Chrisoula?— Não é necessário. Tenho certeza de que você intimida a pobre moça de maneira

escandalosa. — Pegou um dos gatos e o colocou sobre seus joelhos e continuou: — Talvez eu pense em vender este lugar. Sim, você pode procurar um bangalô para mim.

— A senhora quer, realmente?— Sim, quero sim. Posso arrumar um quarto para os gatos. Conversaram um pouco

mais e então Leon disse que estava na hora de irem embora.— Araté não gosta de ficar em casa até muito tarde — explicou ele. — Portanto,

devemos voltar. Quando nos retribuirá a visita? — completou, levantando-se.— Seria bom... eu não vi essas crianças ainda. Mas você terá de vir buscar-me, minhas

velhas pernas não me levam muito longe.— Virei buscá-la. — Ficou combinado que ela iria almoçar com eles no domingo

seguinte. E então Leon a traria de volta à tarde.— Não se esqueça de procurar o bangalô — relembrou a tia, quando já estavam para

partir.— Acho que conheço alguém que possui exatamente o que tia Chrisoula precisa —

disse Leon, enquanto se dirigiam para casa, ao longo da estrada litorânea. — Estou satisfeito por ela finalmente ter resolvido vender a casa.

— De fato, é muito grande para ela — completou Helen. — Imagine só ocupar dois ou três cômodos e estar cercada por todos aqueles outros... tão vazios e frios. Não deve ser muito agradável para ela.

— Concordo. Bem, veremos o que podemos fazer. Como havia dito, conheço alguém que deve ter o que ela precisa.

CAPITULO VII

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Helen estava tão distraída, concentrada na .pintura do velho moinho, e não percebeu que alguém a observava, até ouvir a voz de seu marido atrás dela:

— O quadro está quase pronto. Você tem trabalhado rápido!— Foi o estímulo — sorriu ela, movendo-se para trás, a fim de examinar seu quadro à

distância. — Como sabia que eu estava aqui?— Araté me contou.— Você chegou cedo hoje.— Estava ficando muito quente no escritório.Não, a tarde não estava particularmente quente. Esse era o terceiro dia seguido em que

ele voltava cedo para casa. Seria possível que ele quisesse estar com ela? Precipitadamente, rejeitando tal idéia, Helen voltou toda sua atenção para a tela. O sorriso da moça se apagou e uma profunda ruga se formou em sua testa.

— Não coloquei sombra suficiente abaixo deste arco.— O estímulo — disse Leon, referindo-se à observação de Helen. — Você fala como se

nunca tivesse sido incentivada. — Ela não respondeu e ele pegou seu rosto e o virou, com suavidade. — É por isso que não pintou nenhum quadro antes? Você não tinha trabalhos prontos, quando pedi para vê-los.

Embora tivesse acenado com a cabeça, Helen ainda não falara. Gregory havia depreciado seu trabalho e ela perdera a confiança em si mesma. Mas isso tudo fazia parte do passado, Helen não desejava contar nada a Leon. Mas como ele insistisse, Helen disse:

— Gregory não gostava de meu estilo. .. achava que ninguém compraria minhas pinturas.

— Você gostaria de vendê-las?— Não pelo dinheiro, mas seria agradável pensar que alguém os compraria. Phil estava

dizendo que para os artistas o que importa não é o dinheiro, mas a satisfação que o trabalho proporciona. E a satisfação só vem quando o trabalho é apreciado.

— É verdade... — Leon ficou pensativo por uns instantes.— Nossos artistas locais estão expondo seus trabalhos em Nicósia. Incluirei o seu.— Oh, você faria isso? Este não é suficientemente bom.— Meneou a cabeça, rigorosamente. — Não, este realmente não é muito bom, Leon.— Disse-lhe antes que eu seria o juiz. O quadro vai para a exposição. — Suas palavras,

embora um tanto duras, foram diretas ao coração de Helen.— É gentil, de sua parte, querer me estimular — disse ela, num impulso. — Aprecio

muito essa sua atitude. — Poderiam as palavras exprimir tudo o que ia dentro de sua alma? Helen sempre tivera um forte desejo de pintar e considerava seu trabalho, pelo menos, razoável; mas Gregory a convencera de que não era uma artista e ela se sentira desencorajada. Agora poderia recomeçar, entregar-se ao seu passatempo, sentir algum prazer com ele... e com qualquer elogio que seu marido lhe dirigisse.

— Considero bom o seu trabalho, portanto devo encorajá-la. — A voz de Leon era carinhosa e suave, e ele não queria apenas ser gentil. O que estava acontecendo? Poucos dias antes, Helen se perguntara se ele realmente se importava com ela. Agora, teria que se esforçar para não ficar apaixonada. Mas sabia que qualquer esforço seria vão. Aquela promessa quebrada, a indelicadeza de Leon na noite em que saíra com Robert, a desunião entre eles... tudo isso estava gradualmente desaparecendo, nesses poucos dias passados; sim estava mudando... O que realmente importava era que Leon a olhasse como agora, que lhe falasse com suavidade em sua voz, que a tocasse com carinho.

Helen sugeriu que voltassem para casa e Leon concordou.Leon estacionara o carro no final de uma alameda e dentro de minutos estavam em

casa. O castigo de Chippy ainda não terminara; por isso, encontraram Fiona sem o irmão, brincando no jardim, com o pequeno cachorro. Ouvindo o carro chegar, ela correu em sua direção, A criança parecia longe de estar feliz, e Helen acreditou que Fiona sofrera o castigo tanto quanto seu irmão.

— Chippy já pode sair do quarto? — suplicou poucos momentos mais tarde, quando estavam sentados sob as árvores. — Passaram-se três dias, Leon, é um longo tempo.

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— Você acredita que ele tenha aprendido a lição?— Agora ele sabe o quanto estava errado. Acho que ele cuidará bem de Fiona, daqui

por diante.Para surpresa de Helen, Leon sentiu piedade, embora repreendesse o garoto

firmemente quando ele saiu do quarto e veio para o jardim.— Acho que você está certa — disse Leon, observando Chippy e Fiona, enquanto

brincavam juntos na tarde agradável. — Nunca mais fará algo como aquilo.Logo depois as crianças deixaram o jardim e foram a pé para a ladeira da colina. Helen

encostou-se em sua cadeira e fitou, de lado, o marido. Ele estava com os olhos fechados e parecia envolvido numa profunda sensação de paz. Mas, de instante em instante, movia os lábios levemente e a impressão de que ele estava calmo logo se dissipava. Em que pensaria? Quais seriam seus sentimentos? No início, Helen concluíra que não havia lugar em seu íntimo para emoções, mas agora começava a ter suas dúvidas. Helen procurou esquecer aquele semblante, fechando os olhos e tentando visualizar o futuro, agora que aceitara o fato de que seu coração havia sido tocado. Se houvesse a possibilidade de que Leon chegasse a amá-la, um dia, então ela poderia ver a felicidade que iria superar qualquer coisa acontecida no passado... Mas, se Leon não a amasse... então não haveria nada, exceto desilusão pela segunda vez. Se tudo o que ouvira sobre o temperamento dos cipriotas fosse verdadeiro, sua posição devia ser muito desagradável, pois certamente chegaria o tempo em que Leon se cansaria dela.

O silêncio foi quebrado pelas risadas de diversas crianças brincando no bosque mais abaixo; Leon abriu os olhos, e um quê de desaprovação lhe tocou a fronte.

— Eles estão com aqueles meninos da aldeia. Pelo barulho, parece que estão na velha casa turca novamente. Vamos descer e dar uma olhada no que está acontecendo. Conforme ele suspeitara, Fiona e Chippy estavam com Alex e André, todos brincando na casa turca, Chippy os viu primeiro e correu para eles.

— Não estamos brincando de prisões — informou rapidamente a Leon. — Estamos brincando de índios.

— Eu sou uma índia também — gritou-lhes Fiona. — Vou atirar em vocês com minha flecha.

Leon olhava para o rostinho animado de sua sobrinha com uma expressão doce e terna, e então levantou seus olhos para a mulher. Helen ouviu-o dizer: "Seria bom que você me abraçasse algumas vezes."

As palavras ecoaram fortes, parecia que Leon sentia realmente algo de muito forte por Helen, e nunca a magoaria. — Acho que mandarei demolir isto aqui — decidiu ele, um pouco mais tarde, quando examinavam as profundas rachaduras do alicerce. — Esta casa não oferece segurança e também não chega a ser bonita. Herdei esta casa. Suponho que uma atitude sensata seria vendê-la também, mas a vista que temos lá de casa ficaria prejudicada, caso a pessoa que a comprasse resolvesse construir sobre esses pilares de sustentação, o que é muito provável. Não, mandarei demolir.

— Os portões ainda estavam fechados e ele os abriu, Helen não quis entrar, como se escutasse os apelos de Fiona que aqueles portões não se abririam mais se alguém estivesse lá dentro.

Por sugestão de Leon, todos voltaram para casa. Caminharam juntos de volta à casa e, mais tarde, quando as crianças já estavam na cama e Leon e Helen jantaram, ele lhe falou novamente sobre as férias.

— Se formos até Paphos, poderemos aproveitar para visitar mamãe. Infelizmente não poderemos ficar em sua casa, porque ela não tem lugar para nós. Mas eu aproveitaria para dar uma olhada naquela terra que estou tencionando comprar. Sentindo-se excitada com a perspectiva de uma nova viagem, Helen entrou logo na discussão dos planos para as férias. Decidiram que iriam por três semanas, quando as crianças não estivessem em aulas.

— Terei que fazer algumas compras — disse ela. — As crianças estão precisando de algumas roupas novas. Farei isso na próxima vez que visitar Trudy.

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Nesse meio tempo, chegara o dia da visita de tia Chrisoula. Helen colocou um vestido que Leon comprara; foi do quarto para a sala de estar sentindo que uma inexplicável timidez descia sobre ela, enquanto examinava a expressão de seu marido que a observava sem cessar. Ele permaneceu nessa muda adoração, durante alguns instantes, e depois disse:

— Minha linda esposa... Não acha que eu seria um louco, em deixar que você escapasse de mim?

Sem lhe responder, ela caminhou em sua direção. Passou seus braços em volta dele, levantando a face para receber um beijo.

Dez minutos mais tarde, ele disse:— Vou buscar tia Chrisoula. Não demorarei muito. Ele acabara de chegar com a velha

senhora, quando outro carro parou no jardim. Asmena e Vasilios desceram e foram cordialmente cumprimentar o sobrinho.

— Ficarão para o almoço? — olhou para Helen, um tanto preocupado. Ela assentiu.— Não, Leon, não incomodaremos vocês. — Asmena sorriu para Fiona assim que a

menina veio correndo para ela, — Saímos só para dar uma volta.— Lógico que vocês ficarão — protestou Helen. — Tia Chrisoula está aqui.— Aqui? Como conseguiram trazê-la? Congratulo-me com vocês; ela sempre recusa

nossos convites. — Olhou para seu marido; Vasilios estava encostado no carro, girando ocio-samente o cordão de seu rosário. — Ficaremos? — perguntou Asmena, e seu marido concordou.

No começo, as crianças ficaram assustadas com tia Chrisoula. Na verdade, estavam um pouco em pânico com ela, pois a velha senhora parecia quase assustadora, vestida de preto dos pés à cabeça. Seu rosto moreno era enrugado, e suas mãos, magras e sulcadas. Ela nunca se casara, e Helen pensou que tivesse pouca paciência com crianças, mas aconteceu o oposto. Perdendo logo o temor, Chippy e Fiona estavam tagarelando com ela, e ficou claro que tia Chrisoula realmente desfrutava a mudança que seu passeio estava lhe proporcionando. Asmena e Vasilios pareciam felizes por vê-la e, quando Leon os informou de que a velha tia tencionava vender sua casa, concordaram totalmente com a decisão tomada de maneira tão inesperada.

— O que a senhora precisa é de um bangalô bonito e pequeno — declarou Asmena. — Um bangalô como o nosso seria bom para a senhora.

— E muito caro. Quero uma propriedade menor do que a de vocês. Leon encontrará uma que me sirva.

Vasilios olhou para o sobrinho, um tanto admirado.— Mas você não negocia pequenas propriedades, não é? — perguntou ele, e Leon

negou com a cabeça.— Mas conheço uma pessoa que negocia — completou ele. — Tenho certeza de que

acharemos exatamente o que tia Chrisoula precisa.Trudy percebeu a mudança de Helen na vez seguinte em que esta visitou o apartamento

da amiga.— Conte-me, o que aconteceu com você? — Trudy observou-a com ar incrédulo. —

Parece que você recebeu uma imensa fortuna!— Talvez... quem sabe? — E depois de uma pequena pausa: — Estarei tão diferente

assim?— Mal a reconheci, quando abri a porta. — Trudy riu e completou, estudando-a: —

Depois de todo aquele seu palavrório de não querer se apaixonar de novo... Como aconteceu isso? — Ambas riram, pois não havia como fugir à evidência.

— Leon me pediu que os convidasse para irem à nossa casa — disse Helen, enquanto se sentavam na cozinha branca e azul para comerem alguma coisa antes de saírem para as compras. — Queremos que vocês jantem conosco. Sairemos logo de viagem, mas poderemos marcar o dia assim que chegarmos.

— Vão em lua-de-mel?Helen fitou a rua ladeada de árvores e pensou nos dias em que ficara com Leon em

Famagusta. Fora lá, pensou ela, que tudo realmente havia começado.

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— Não, as crianças irão conosco.— Oh... — Trudy parecia desapontada. — Você sofre um bocado com essas duas

crianças. Você não se incomoda?— Eu as amo — respondeu suavemente. — Aliás, nós dois as amamos. Elas já

sofreram muito, mas nós estamos fazendo o possível para que suas vidas sejam mais felizes, agora.

— Tenho sempre tantas compras a fazer — desculpou-se Helen, quando chegaram à cidade, de ônibus —, sobretudo para as crianças, mas preciso ver alguns vestidos para mim também.

Terminadas as compras, as amigas se dirigiram ao barzinho predileto e, depois de suportarem o usual olhar de cada um dos homens presentes, conseguiram uma mesa em que pudessem tomar seus refrescos.

Eram quatro horas quando elas saíram do bar. Helen decidiu não voltar para o apartamento de Trudy e nem esperar que Theo a fosse buscar, indo direto para o escritório de seu marido.

— Como você preferir — disse Trudy. — Mostro-lhe onde você deverá pegar o ônibus.No caminho, passaram por uma ruela cheia de lojas e, ao olhar uma das vitrinas, Helen

deixou escapar uma pequena exclamação e parou.— Um dos quadros de Robert! — apontou para sua amiga. — E bom, não acha?— Humm... é bom, sim, gosto dele... Oh, que falha a minha — completou contrariada

—, ainda não lhe perguntei se sua pintura está sendo bem aceita.Corando, Helen respondeu que havia sido muito bem recebida. Disse que fora

convidada a pintar algumas cenas em duas das paredes de uma grande casa, construída por um inglês que fixaria residência em Chipre.

— Ele também gostou do trabalho de Robert e o convidou para fazer algumas pinturas na sala de jantar.

— Na mesma casa? — Helen disse que sim e Trudy quis saber: — Onde fica ela? Peto que você fala, parece que vai ser fabulosa.

— Em Kyrenia... não muito longe de Palipthos.— Como vai fazer para chegar até lá?— De ônibus; não haverá qualquer problema.— O que Leon acha de tudo isso? — perguntou Trudy, e houve uma pequena pausa

antes de Helen responder.— Leon ficou muito feliz. — Na verdade, ele não gostara de saber que Robert também

trabalharia na casa, mas para não estragar o prazer da esposa resolvera não dizer nada, o que fora um grande alívio para Helen.

— E onde está o seu quadro?— Leon levou-o para seu escritório... Bem, espero que a esta hora já esteja pendurado.

— Trudy sorriu, ante o prazer que havia nos olhos e na voz da amiga.— Ele deve estar muito apaixonado... querendo seu quadro com ele durante o dia todo!Tinham caminhado e estavam agora no ponto do ônibus que não tardou a chegar. Trudy

acenou, despedindo-se, enquanto Helen subia no coletivo com os braços cheios de pacotes.— Divirta-se durante a viagem — gritou Trudy. — Verei você quando voltar!Assim que Helen entrou no escritório, seu marido olhou para o relógio, um tanto

preocupado.— Aconteceu alguma coisa? Theo iria buscá-la daqui a meia hora.— Pensei em vir direto para cá, depois que acabamos de fazer as compras. — Colocou

os pacotes sobre uma cadeira e se sentou em outra. Leon sorriu e tocou um sino que tinha sobre a escrivaninha.

— Pedirei uma bebida para você, parece estar com muito calor. Por que carregou todos esses pacotes? Poderia ter pedido que fossem entregues no escritório.

— Não estão muito pesados. — Helen olhou discretamente ao redor e viu que Leon ainda não havia pendurado o quadro. Deveria estar muito ocupado. Onde estaria a pintura?,

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perguntou-se. Não caberia em nenhuma gaveta e não estava em nenhum lugar em que pudesse ser vista.

Theo entrou, trazendo café para Leon e suco de laranja para Helen.— Acho que posso encerrar o expediente agora — disse Leon, olhando rapidamente

para os papéis que tinha diante de si. — Beba seu suco e iremos para casa.Devia mencionar o quadro? Não, ela sentiu que não era uma coisa certa a fazer. Em

seguida perguntou se ele tinha certeza de que não havia inconveniente em ir embora tão cedo.— Não há necessidade de você largar seu serviço — completou, fixando-o ansiosa. —

Não me importo em esperar.— Não, querida, nós já vamos. — Ele pegou os pacotes e carregou-os para o carro. —

Comprou tudo o que queria?— Sim e comprei roupas de banho para as crianças. Tomaremos banho de mar, não é?— Lógico. Há uma praia muito bonita ao lado de Paphos. Nós vamos até lá.As crianças estavam radiantes, excitadas, e a própria Helen se sentia assim também.

Ela nunca havia esperado nada, em sua vida, com tanta ansiedade, e mesmo que a preparação para a viagem, naturalmente, significasse trabalho extra, cada tarefa era um prazer.

— Quando iremos? — Fiona mal podia conter sua impaciência. — Receio que você tenha de esperar — foi a resposta de seu tio. — Vocês ainda têm dois dias de aula na escola.

— Quanto tempo ficaremos lá?— Uma semana, mais ou menos.— Uma semana inteira?— Se vocês se comportarem, sim.— Ficaremos bonzinhos — retrucou Fiona.Helen sorriu ao ouvir isto e seus olhos afetuosos pousaram no rostinho de Fiona. Mais

tarde, Leon lhe disse:— Você cuida muito bem deles, Helen.— Eu os amo — respondeu. — Estou tão feliz por não ter ido embora, Leon!— Somente por amá-los? — Parecia tenso, enquanto esperava a resposta; ela sorriu

com ternura.— Não, Leon, por outra razão... uma razão muito mais importante... Estou feliz por ter

ficado.Na quinta-feira, Helen foi ao cabeleireiro da aldeia.— Vai lavar e prender? — perguntou Eleni, sorrindo. — Ou vai cortá-lo um pouco?— Não, não vou cortar o cabelo, Eleni. Lave-o e prenda-o.— Você é pintora, não é? — disse Eleni, mais tarde, enquanto penteava os cabelos de

Helen.— Eu tento ser uma pintora — Helen fitou sua imagem e pensou se não deveria tentar

um outro penteado. Mas talvez Leon não aprovasse, pensou. Ele gostava de seus cabelos como estavam.

— Você pinta muito bem, ouvi dizer. — Helen não fez nenhum comentário e Eleni continuou: — Uma amiga de minha tia tem um de seus quadros, mas é lógico que você deve saber. Segundo minha tia, é muito bonito.

— Um de meus quadros? — Ela fitou Eleni através do espelho. — Ela não pode tê-lo. — Havia pintado somente um quadro desde que chegara à ilha, e ele estava com seu marido. — Deve haver algum engano.

— Tenho certeza de que não há engano algum. — Agora Eleni parecia inquieta. — É um moinho velho... um daqui de Lapithos. Pelo menos acho que foi isso que me contaram.

— Mas... mas... — Seu coração ficou paralisado e sua face aos poucos perdeu a cor. Que boba ela era! Leon tinha encorajado tanto sua pintura... E não havia desejado o quadro para seu escritório? Sim, havia algum engano; Leon nunca se separaria de sua pintura. — Quem é a pessoa que diz ter um quadro meu?

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— Ela mora em Nicósia. Paula Maxwell. Ela é amiga de minha tia. — Eleni interrompeu-se e o pente parou sobre a cabeça de Helen. — Não está se sentindo bem, senhora Petrou? Quer que eu lhe traga um pouco de água?

Helen negou com a cabeça. O resto de cor havia se escoado de sua face, sentia-se como se seu coração estivesse cercado de gelo. Leon dera seu quadro para... para aquela mulher. E ainda devia continuar se encontrando com ela. Mas quando? Agora, ele nunca saía à noite, não fazia isso há semanas. Por essa razão Helen pensara que a amizade dele com Paula terminara, acreditando que seu marido começara a amá-la... Por isso Helen se permitira amá-lo sem problemas.

— Por favor, continue, Eleni, estou bem. Acabe... acabe de arrumar meu cabelo, por favor, Eleni.

Como conseguiu passar pela provação de ter seu cabelo preso e seco Helen nunca soube. Diversas vezes quase se levantou, mas, com uma tremenda força de vontade, per-maneceu até que seu cabelo estivesse pronto. E, além do mais, não tinha desejo de ir para casa, nenhuma vontade de ver seu marido.

"É minha culpa, inteiramente minha culpa", pensava ela, procurando conter as lágrimas que despontavam. Depois de todas as promessas que fizera de não correr o risco de ser desiludida pela segunda vez; depois de jurar que não se apaixonaria novamente, permitira a si mesma sucumbir às persuasões sutis de seu marido, à sua fascinação, acreditando intimamente que era amada, que, embora ele não a amasse quando se casaram, se apaixonara por ela desde então. E agora descobrira que nunca existira amor no re-lacionamento deles! Suspeitara disso durante algum tempo. Tudo o que e!e desejava era tê-la como um mero objeto de prazer. Sua frieza machucara-o em seu orgulho de macho, e então ele resolvera dar-lhe o troco, não se importando com os métodos que tivesse de usar. Por isso, ele fora ines-crupuloso, completamente cruel e insensível a qualquer dor que pudesse lhe causar. Helen sentiu que o odiava... mas odiou ainda mais a si mesma por se ter entregado tão fa-cílmente. Lembrou-se da maneira como ele quase suplicara seu abraço, a maneira como a fazia sentir-se culpada, como se fosse ela quem o estivesse prejudicando. Pensou na maneira como a persuadira... e como ganhara seu amor. Mas, agora, não mais o amava, disse para si mesma. Não! Odiava-o e continuaria odiando Leon pelo resto de sua vida.

Subiu a colina quase desfalecendo. Não queria voltar para casa, mas para onde iria? As crianças... sempre as crianças. Elas perderam mãe e pai; precisavam dela. "O que posso fazer?" As lágrimas rolaram e ela as enxugou. Leon não podia ficar sabendo o quanto estava ferida.

— Querida, aconteceu alguma coisa? — Quando ela chegou, ele estava na porta da garagem, polindo o carro para a viagem na manhã seguinte. — Helen, meu amor, o que foi?

Como era hipócrita! Era inacreditável. Seu coração estava como uma pedra coberta de gelo. Poderia sentir algo novamente? Seu instinto era atirar nele tudo o que sabia, seu único desejo era dizer-lhe que nunca mais sentiria os braços dela em volta de seu corpo. Mas criar uma situação embaraçosa agora, a poucas horas das férias... Estas, naturalmente, seriam canceladas. E como as crianças reagiriam? Não, não podia desapontá-las.

— Não aconteceu nada comigo, Leon. — Sem dizer mais nada, entrou na casa e ele a seguiu.

— Meu anjo, há algo errado, sim. Você está doente? De que modo deveria agir para que fosse convincente?

E teria que fazer isto até que voltassem da viagem.— Estou com dor de cabeça — confessou. E isso era verdade, pois o secador de

cabelos sempre lhe dava dor de cabeça. — Estarei bem daqui a pouco. Não se preocupe comigo, Leon. Vou descansar e logo me sentirei melhor.

Quando se viu sozinha no seu quarto, Helen não pôde controlar as lágrimas por muito tempo. Como Leon podia ter feito aquilo com ela? A maneira como elogiara o seu trabalho, como insistira em que participasse da exposição... O modo como dissera que queria o quadro em seu escritório... E como tinha conseguido parecer sincero! Este era o resultado de vasta experiência e, lógico, parte da manobra para levá-la à rendição. Como ele devia estar

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exultante, congra-tulando-se pela sua astúcia! "Bem, deixarei que tire o máximo proveito disso, que desfrute sua vitória enquanto pode, pois o despertar está bastante próximo", pensou ela.

E então poderia ir ver Paula Maxwell, pois ela, Helen, não suportaria mais sua presença.Para sua surpresa, Helen sentiu que adormecia. Quando acordou, o crepúsculo já

estava no fim. Ao abrir os olhos viu que Leon estava sentado na cama e ela pediu que abrisse as venezianas.

— Está quase escuro querida. Você dormiu por um tempo razoável. — Como ele sabia fingir que se preocupava com ela! E pensar que, somente poucas horas atrás, ela seria ludibriada por isso! Leon acendeu a luz. — Está se sentindo melhor?

— Sim, muito obrigada, Leon. — Sentou-se, auxiliada! por ele. — As crianças já jantaram?

— Araté serviu-lhes o jantar, Helen querida, nós não vamos se você não melhorar.— Oh, estou bem. Foi apenas uma dor de cabeça.— Tem certeza?— Sim. Agora vou me levantar.Mas não havia dúvidas de que o choque provocara alguma reação em seu corpo, pois

Helen continuou pálida e no jantar teve que se esforçar para comer um pouco. A preocupação de Leon era tão evidente quanto ele poderia demonstrá-la, E Helen sentiu uma amargura terrível ante a idéia de que, se ele tivesse sido sincero, ela poderia alojar-se em seus braços e sentir o conforto de seu peito. Mas, se ele tivesse sido sincero, ela nunca teria recebido aquele choque.

Na manhã seguinte as crianças já corriam pela casa; Leon estava longe de se sentir feliz e lhes disse que vol-tassem para o quarto e ficassem quietas.

— Sente-se capaz de enfrentar a viagem? — perguntou, percebendo que Helen estava acordada. — Se você não estiver se sentindo melhor do que ontem, não iremos. — Segurou-a junto de si, com aquela gentileza familiar. Como conseguiria ser tão hipócrita? Haveria alguma explicação? Mesmo que Leon estivesse tendo um romance com Paula, por que lhe dera o quadro? E por que ela o iria querer? De repente, isso não fez sentido. Nenhuma mulher iria querer um quadro da esposa do homem que amasse. Mas de que maneira Paula teria conseguido a pintura, se não lhe tivesse sido dada por Leon? Helen sentiu a mão dele que lhe acariciava o rosto. Tão terno, tão gentil... Deveria perguntar-lhe sobre o quadro? Poderia o mistério ser esclarecido por uma simples explicação? Supondo, pensou, que ele fosse culpa-do... Então haveria uma discussão, uma grande briga, e foi isso o que Helen se empenhou em evitar, por causa das crianças. Suas vozes se fizeram ouvir outra vez, apesar da advertência severa do tio. Vozes excitadas, impacientes...

Passaram o primeira dia com a mãe de Leon, depois voltaram para o hotel no centro de Paphos. Permitiram às crianças que ficassem acordadas até um pouco mais tarde, mas logo que estavam dormindo, Leon sugeriu um passeio.

Saíram e foram passear pela praia, caminharam em silêncio, e Helen estava em dúvida se Leon sentira sua mudança. Pois, embora se esforçasse, não conseguia agir como se nada houvesse acontecido, não conseguia olhá-lo ou mesmo falar com ele de maneira tão terna quanto o havia sido até pouco tempo. Caso ele houvesse sentido a mudança, não fizera nenhum comentário a respeito. Talvez ele pensasse que Helen ainda estivesse sem ânimo, embora ela afirmasse que se sentia melhor.

Leon segurou a mão de Helen e !he deu um ligeiro aperto e disse:— Você sabe que não é só pelas crianças que organizamos esse passeio. Pela manhã,

elas se deliciarão com o banho de mar, e se à tarde os outros divertimentos não as agradarem totalmente, não há nada que se possa fazer.

Helen fitou-o tentando ler sua expressão, mas era impossível. Ele estava seco. Como ele poderia ter esse tipo de atitude? Helen começou a pensar que não era possível ele estar sendo cínico, quando, de repente, tudo o que Gregory lhe fizera desabou rapidamente sobre ela. Durante um ano inteiro ele a enganara, e conduzira aquela farsa de maneira tão hábil que nem mesmo uma débil suspeita passara por sua cabeça. Seu comportamento para com ela continuara o mesmo de sempre; não houvera palavras ríspidas, nem indelicadezas, nem dis-

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cussões. E seu caso amoroso não era o único. Essa espécie de coisa acontecia todo o tempo. Não, ela não se enganara: Leon também era perito na arte da hipocrisia.

As férias representavam uma grande aventura para as crianças. Desfrutaram cada momento e, embora para Helen fosse uma provação viajar, sentindo tudo o que se passava em sua mente, não estava arrependida. As crianças precisavam de uma mudança, pois não tinham férias há alguns anos, e se ela as desapontasse, nunca mais se perdoaria. Mas, algumas vezes, sua tristeza era quase maior do que poderia suportar, pois ela própria esperara aquelas férias, tão ansiosa quanto uma criança. Eles viajariam como uma família — Leon prometera isso e Helen visualizara a felicidade, a alegria no novo relacionamento com seu marido.

E não aproveitara sequer um momento daquilo tudo.Passaram a última manhã nas dunas, numa pequena baía muito bonita, no lado oeste

de Paphos. Chippy pôde nadar e Leon ensinara Fiona com muito cuidado e dedicação.— Queria que não fôssemos embora. Precisamos ir, tio Leon? Podemos ficar mais um

dia? — perguntou Fiona.— Receio que não Fiona. Mas nós voltaremos, talvez dentro de poucas semanas. —

Virou-se para Helen. — O que acha disso? Gostaria de voltar?— Sim... — Helen abaixou a cabeça, para esconder a reação de seu rosto às palavras

de Leon. Não poderia suportar outra provação como aquela. No entanto, quando retornassem para casa, ela diria a Leon tudo o que sabia e, de qualquer modo, não haveria mais férias ou passeios depois disto.

— Você não parece muito segura disso Helen. Gostou da viagem? — Leon voltou a perguntar, como se soubesse que alguma coisa não ia bem.

— Sim, desfrutei bastante — mentiu Helen, ciente da ansiedade nos olhos de Fiona. — Acho que nós todos passamos dias maravilhosos. Concorda comigo, Chippy?

Suas palavras eram forçadas assim como sua expressão. Naturalmente, isto não foi notado pelas crianças, mas, sem dúvida, Leon o percebera.

— Sim, foi maravilhoso. E não me importo de ir embora para casa se voltarmos logo. Promete, tio Leon?

— Prometo Chippy — respondeu Leon, olhando fixamente para sua esposa. Ele estava dizendo claramente que voltariam de férias dentro em breve, despreocupado, por ignorar a opinião da esposa. Helen tinha quase certeza que tão logo conversasse com Leon o seu relacionamento voltaria a ser tão desagradável quanto algum tempo antes. Leon se tornaria novamente bruto e cruel, não admitindo qualquer diálogo, qualquer contestação a suas atitudes, muitas vezes bastante violentas. Nunca pudera imaginar, mesmo que por um momento, que viria a manter um relacionamento normal e gratificante com esse homem austero que era seu marido.

CAPÍTULO VIII

Embora estivesse firmemente resolvida a informar Leon de sua descoberta sobre o qua-dro, Helen acabava sempre deixando a questão de lado. A causa desse adiamento era pura covardia, pois temia qualquer atitude que seu marido pudesse tomar. Ele já dera um exemplo de sua fúria e da crueldade de que era capaz, e agora ela tremia só em pensar que isso poderia ocorrer novamente. Ele não ficaria arrependido por isso, pois obviamente não sabia o que era sentir vergonha de seus atos. Robert não afirmava também que um cipriota nunca des-culpava sua conduta? Não, ela não deveria se arriscar.

E assim desistiu da idéia de lhe dizer que sabia onde sua pintura estava, pois não parecia fazer sentido criar uma situação na qual ela seria a única a sofrer. Mas, naturalmente, sua reserva criou outra espécie de situação, pois Leon não encontrou justificativa para a mudança completa de comportamento de Helen para com ele. Por um curto espaço de tempo, ele tolerou isso e Helen teve a estranha impressão de que o orgulho o impedia de lhe perguntar a razão da mudança. Finalmente, ele trouxe o assunto à baila, de forma bastante controlada, embora inegavelmente áspera. Tinham terminado de almoçar. As crianças, que estavam agora

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no período de longas férias de verão, haviam ido passar uns poucos dias com Vasilios e Asmena. Assim, ela estava sozinha na sala de estar quando Leon aproximou-se. Helen folheava um livro e, sem qualquer advertência, Leon lhe tirou o livro das mãos e o jogou sobre a mesa.

— Quero uma explicação, Helen. Tenho direito, você não acha?— Explicação? — Por que tinha de tremer? Ele não po- deria feri-la. — Não sei do que

está falando, Leon.— Não? — Ficou parado na frente dela, seus olhos es- eu recendo com a raiva que aos

poucos se apoderava dele. — Você pode negar que mudou muito de algum tempo para cá? Pode negar que há pouco tempo você me queria?

— Queria? — Helen levantou o queixo. — Jamais quis você.— Não minta! Por pouco tempo, nós fomos felizes. O que aconteceu? É isto o que quero

saber! Eu exijo saber! Mudanças como essa não ocorrem sem um bom motivo. Diga-me qual é e poderemos discuti-lo e resolver o que está errado.

Suas palavras tiveram o efeito de aumentar o desprezo que Helen estava sentindo por ele. Resolver o que estava errado? A austeridade de Leon, exigindo uma explicação quando, na verdade, estava acintosamente mantendo um romance com sua antiga namorada, era insuportável. Helen teria que lhe dizer isto e se arriscar às consequências. De repente reprimiu seus pensamentos. Não, não diria nada. Era isso o que Leon queria. Era isso que estava esperando que acontecesse. Caso ela explodisse, falando- lhe sobre o que sabia a respeito do quadro, ele teria certeza de que Helen realmente o amava e que só estava se comportando daquela maneira por se sentir ferida. Leon então ficaria satisfeito, vingado, pois teria conseguido que ela se curvasse à sua forte personalidade. Mas não, não lhe daria essa alegria, pelo contrário. Se ela o fizesse, Leon se tornaria ainda mais arrogante e pretensioso, e procuraria lhe causar novos sofrimentos.

— Ainda não consigo entendê-lo — começou ela, despreocupada. — Nosso casamento é um contrato, sem amor de ambos os lados. Nós temos vivido de maneira tolerável, Leon, não sei do que você se queixa.

— Você não respondeu à minha questão. O que causou essa súbita mudança em você?— Que mudança? — perguntou. Sua voz era tão calma e fria, mas... oh, como seu

coração batia forte!— Não brinque comigo! Responda-me ou a sacudirei até que diga algo sensato. —

Leon estava tão perto; e suas mãos tão fortes se agitavam como se estivessem prestes a cumprir aquela ameaça. — Você me amou por pouco tempo, mas amou.

— Amei você? — A despeito de seu medo, ela não pôde deixar que essas fossem suas únicas palavras, Leon tinha que acreditar que ela nunca o amara, mas como? Tremeu, enquanto dizia: — Como você chegou a uma conclusão dessas? Ora, Leon, acabei de lhe dizer que nunca houve amor entre nós.

— Quando nos casamos, sim, concordo. Mas você apren deu a me amar. Não sou bobo, Helen, sei que você me amou. Se você não me amasse, nunca poderia ter... ter... — Ele não parecia capaz de expressar seus pensamentos em voz alta, e Helen completou, com uma calma que a surpreenderia, mais tarde:

— Correspondido à sua corte? — Estava dominada por um desejo de machucá-lo, de fazê-!o sofrer, não só pelo que ele lhe fizera, mas também pelo que Gregory lhe havia causado. E aquelas palavras expressas com tanta calma, lhe indicaram o caminho. — Mas o quê? Certamente você não deu importância nenhuma a isso, Leon, Não é necessário que haja amor... é muito mais agradável que tudo aconteça dessa forma, você não concorda? — A cólera aos poucos tomava conta da fisionomia de Leon, cada vez mais carregada; a brusca compressão de sua boca e o brilho de seus olhos deviam tê-la advertido, mas, por um breve momento, ela estava insensível ao perigo, insensível a qualquer coisa, exceto ao desejo de magoá-lo, ou até mesmo de ferir o seu orgulho. Estava convencida de que um homem tão cruel como aquele só poderia ser ferido se alguém o atingisse em seu orgulho, — No que diz respeito a essa mudança que você diz ter percebido... bem, ninguém consegue representar sempre o mesmo papel. E, além do mais, eu me canso muito facilmente... — concluiu Helen.

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Por alguns instantes não se ouviu nenhum som. Mas o silêncio era tão amedrontador que Helen se levantou e tentou caminhar até a porta. Leon agarrou-a pelo pulso e a trouxe de volta, com toda sua força.

— Então era só isso? Uma representação... é isso que está me dizendo?— Leon, você está me machucando.— Responda à minha pergunta, ou eu... — Parecia que ele não conseguiria se controlar

mais e começou a sacudi-sem piedade. — Uma representação, você diz! Bem, marque minhas palavras, você viverá para se arrepender disso, Ne-nhuma mulher me faz assim de bobo, e se orgulha disso. — Ele a segurava pelos pulsos, e a pressão de seus dedos era cada vez maior. Helen estava pálida e todo seu corpo começou a tremer. Ele não era equilibrado, refletiu, lem-brando-se de que já chegara antes a essa conclusão. Mas, apesar do medo que a envolvia, teve certeza de que atingira seu objetivo. Ele honestamente acreditara ter sido ludibria-do; acreditara que ela representara um papel e que se abor-recia realmente com o carinho que lhe fazia. Deveria sen-tir-se ferido em seu orgulho! Deixou-o sacudi-la, deixou que derramasse toda sua fúria sobre ela. Era esse o preço que Helen pagava pela revanche.

Olhou-o e vagarosamente abaixou a cabeça. Os lábios de Leon estavam retesados e, por um terrível momento, ela pensou que seria subjugada à sua crueldade primitiva no-vamente; mas, para sua surpresa e alívio, Leon de súbita a largou e saiu da sala com passos largos. Poucos instantes depois ouviu o estrondo da porta da garagem e o barulho do motor do carro desaparecendo.

Onde teria ido? Não havia necessidade de perguntar isso. Helen sentou-se numa cadeira e segurou o rosto. Ainda estava trêmula e seu coração batia tão alto que podia ouvi-lo. A casa estava em silêncio; Araté e Nikos nunca trabalhavam nas tardes de domingo, e de repente Helen sentiu um ímpeto de sair de casa, sentiu que não suportaria ficar ali sozinha. Mas aonde ir? Se pelo menos soubesse o que aconteceria, teria mantido as crianças em casa. Pela primeira vez, teve consciência de quanto se afastara de seus amigos, daquelas poucas pessoas que alegremente lhe abriram suas portas, sinceros em suas boas vindas. Agora, não havia nenhum, com exceção dos que se relacionavam com seu marido, além de Trudy. Mas não podia ir ao apartamento de Trudy, pois instantaneamente a amiga saberia que alguma coisa não ia bem. E não havia nenhum outro lugar... lembrou-se de Robert. Robert demorou um pouco para atender ao telefone, e quando lhe contou que demorara por estar no estúdio, pintando, Helen lhe pediu desculpas.

— Não tem importância — disse Robert. — Eu pretendia lhe telefonar mais tarde. Aquele inglês, o senhor Crawley, mandou-me a chave da casa e pediu que entrasse em contato com você. Ele quer que façamos o trabalho o mais rápido possível, pois deseja se mudar no outono. — E acrescentou, depois de uma ligeira pausa: — Você está livre agora? Se estiver; posso ir até aí. O trabalho que estou fazendo não é importante, apenas algumas coisas para uma loja de arte.

— Estou livre, sim, Robert, e gostaria de ver você e discutir o trabalho para o senhor Crawley. Você disse que pode vir aqui agora?

— Sim... mas, e seu marido? Eu tenho a impressão de que não sou muito simpático a ele.

— Leon saiu — respondeu. — Não o espero até tarde da noite.Um curto silêncio seguiu suas palavras e então Robert disse casualmente:— Estarei aí dentro de meia hora mais ou menos. Levarei a chave comigo e vamos até

lá ver o que temos de fazer.Fiel à sua palavra, Robert chegou exatamente meia hora mais tarde. Helen saiu para ir

buscar refrescos e estava na cozinha quando ouviu o telefone tocar. Voltou para atender e ficou surpresa ao ver Robert com o receptor na mão. Ficou mais surpresa ainda quando, em vez de lhe estender o aparelho, Robert continuou com ele contra o ouvido. A voz do outro lado era alta e aguda. Helen ouviu cada palavra claramente:

— ...Leon, iremos em seu carro, é mais confortável que o meu. Traga alguns sanduíches também e um cantil, pois às vezes passaremos por lugares desertos e você sabe

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como é difícil arranjar qualquer coisa. — A voz parou de falar. Fitando Helen com a mais estranha expressão de seu rosto, Robert cobriu o receptor e sussurrou:

— Uma velha namorada de seu marido, Paula Maxwell. Pensa que está falando com Leon. O que devo fazer?

Pálida, mas composta, Helen pegou o receptor e disse polidamente:— Quem fala é a senhora Petrou. Meu marido não está em casa. Posso anotar o

recado? — Esperou, olhando para Robert e querendo saber se ela cortara a ligação. Mas Paula, afinal, num tom bem mais baixo do que antes:

— Você disse que Leon não está? Tem alguma idéia de quando voltará?— Sinto muito, mas não sei. — Helen olhou para o relógio; seu coração teve um

pequeno sobressalto ao perceber que seu marido tivera tempo de sobra para chegar a Nicósia, caso tivesse ido para lá. — Não sei dizer quando estará de volta. Quer deixar algum recado? — perguntou mais uma vez.

— Não, obrigada. Vou entrar em contato com ele. Oh, ele acaba de chegar! — Depois de uma pausa, perguntou: — Quem é o homem que atendeu, senhora Petrou? — A voz estava baixa e amável; Helen sentiu medo e indignação. Superou o temor e disse rapidamente: — Isso é apenas de minha conta, senhorita Maxwell.

— Estou certa de que sim — foi a resposta. — Mas não tenha medo, não direi uma palavra a Leon.

Recolocando o receptor no lugar com a mão visivelmente trêmula, Helen virou-se para Robert. Antes que ela pudesse falar, ele se desculpou por ter atendido ao telefone.

— Eu estava saindo para ir até o carro buscar meus cigarros; o telefone começou a tocar e eu peguei o receptor num gesto automático. Tentei dizer a ela que não era Leon, mas ela foi falando... eu realmente não pude fazer nada. Logo que ela disse seu nome, eu me lembrei de que Paula Maxwell saía muito com seu marido antes de vocês se casarem.

— Todos sabem sobre ela e Leon? — As palavras vieram com dificuldade, sentiu sua garganta seca, mas teve que dizer isso, mesmo sabendo muito bem qual seria a resposta de Robert.

— Eles eram muito amigos — disse ele relutante. — Sim, Helen, receio que todo mundo sabia disso. Eu sei que não é da minha conta, mas, em nome dos céus, o que está acontecendo? Se ele não a queria, então por que se casou com você?

Por fim Helen engoliu em seco e lhe contou, com simplicidade, por que ela e Leon tinham se casado. Robert deixou escapar um assovio de perplexidade e a olhou fixamente, com ar incrédulo.

Foram para a varanda, com a bandeja de refrescos. Robert aproximou uma cadeira e ela se sentou.

— Suponho que não exista amor de ambos os lados! — disse o rapaz.— É isso mesmo, amor de nenhum lado. — Olhou-o e levou seu copo aos lábios. Ele

era bonito, pensou mecanicamente. Que estranho, ele parece feliz com sua posição de solteiro. Helen desviou os olhos para o mar. Onde estariam eles agora? A caminho de algum recanto romântico nas montanhas? Talvez não fosse nas montanhas, pois havia lugares bonitos em toda a ilha... Esses pensamentos lhe deram vontade de chorar e teve de fazer grande esforço para conter as lágrimas.

— Vou arrumar os cabelos e pegar minha bolsa.— A que horas as crianças voltarão? — perguntou Robert.— Elas não voltarão — gritou ela do quarto. — Ficarão por alguns dias com os tios de

Leon.— Oh então que tal fazermos um bom programa para a tarde e a noite? Poderíamos

olhar a casa, ver o que há para ser feito; depois tomar um banho de mar e, para terminar, jantar por aí em algum lugar. — Ele estava em pé, do lado de fora do quarto, esperando que ela saísse. Helen usava o vestido que Leon lhe comprara e um assovio soou dos lábios de Robert, enquanto, admirado, a examinava da cabeça aos pés. Pegou a sacola de praia das mãos dela e continuou admirando sua beleza.

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— Alguns homens são mesmo tolos — foi seu único comentário, enquanto se movia para que ela passasse, e indo atrás dela até a porta de saída.

Era uma bela casa de campo branca, que ficava num declive, acima de Kyrenia. Obviamente, o proprietário não poupara dinheiro, e, quando Helen entrou no vestíbulo, não pôde conter um pequeno suspiro de admiração:

— Vai ficar muito bonita depois de pronta — murmurou ela, esquecendo-se até de sua tristeza, enquanto examinava a construção. — Onde ficarão nossas pinturas?

Robert tinha todas as instruções e caminharam por ali, achando os lugares em que seus painéis seriam colocados.

— Será divertido fazer este tipo de trabalho — disse Robert com entusiasmo. — E podemos fazê-lo juntos. Pegarei você de carro todos os dias e a deixarei em casa, na volta.

Helen perguntou a si mesma o que Leon diria de um acordo desses. Ele certamente não o aprovaria, mas como suas aprovações ou desaprovações não a estavam interessando, isto não importava.

— Os murais vão ficar esplêndidos aqui. Estou terrivelmente ansioso para trabalhar. Quando podemos começar, Helen?

— A qualquer hora... mas ainda não sei como farei com as crianças em casa. Mas assim que voltarem para a escola, poderei vir todas as manhãs, menos nos fins de semana, é lógico.

— Então podemos começar logo?— Sim, não vejo por que não.Ficou acertado que Robert a pegaria às nove horas da manhã seguinte e iriam para a

cidade comprar todo o material de que necessitavam. Então começariam o trabalho em seguida.

— Há um barzinho gostoso, na colina, onde podemos comer. Vai ser divertido, Helen.Divertido? Poderia algo ser divertido de novo? Certo, agora ela possuía a perspectiva de

começar as pinturas, mas perdeu seu entusiasmo inicial ao pensar que seu trabalho agora seria apenas distração, algo que a ajudasse a esquecer a tristeza que havia em seu coração.

Robert e ela foram a uma parte isolada da praia, e ficaram algumas horas no mar, tomando sol nas agradáveis areias douradas. Mas o tempo todo seus pensamentos estavam com Leon e Paula. Onde andariam e o que estariam fazendo?

Supôs que ficariam fora até tarde... ou voltariam para a casa de Paula.— Vamos para a água de novo? — disse, suavemente, pois estava certa de que

começaria a chorar.— Vamos... — Robert segurou a mão de Helen e caminharam em direção ao mar. Isso

trouxe à memória de Helen uma outra ocasião, quando, numa praia de Famagusta, Leon pegara sua mão da mesma maneira, segurando-a com ternura enquanto caminhavam para a beira-mar. Foram dias que ela nunca iria esquecer, por mais que vivesse. Dias em que sentira que poderia realizar todos os seus sonhos. Mas essa felicidade logo se dissipara e agora ela se sentia como se acabasse de acordar de um sonho.

— Não sei o que você acha — disse Robert, um pouco mais tarde: — Para mim, chega de praia e de mar. Que tal tomarmos um chá, darmos um belo passeio pela zona rural e então jantarmos?

— Sim, gosto da idéia.Revezaram-se, para que pudessem se vestir no carro. Helen embrulhou sua roupa de

banho na toalha e a colocou em sua bolsa. Então penteou os cabelos e Robert segurou o espelho enquanto ela fazia uma rápida maquilagem.

— Vamos tomar o chá na enseada? Ou você prefere algum lugar mais isolado?— Algum lugar mais isolado — replicou ela sem hesitação. Havia muita gente na

enseada, nas tardes de domingo. Tinha certeza de que seria vista por pessoas de Lapithos e, embora não se importasse com a opinião de seu marido, não desejava ter seu nome falado pelas pessoas da aldeia.

Depois do chá, foram de carro para as colinas. Quando anoiteceu, Robert sugeriu um restaurante bem conhecido para o jantar. Helen hesitou e Robert disse:

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— Em qualquer lugar a que formos poderemos ser vistos, Helen. O que você acha de irmos para a minha casa e arranjarmos uma refeição por nossa conta?

— É uma boa idéia, Robert. Sim, gostaria de fazer isso. E estou muito interessada em ver o que você fez em sua casinha.

— É mesmo muito pequena — confessou ele —, mas gosto dela. Não tive dinheiro e, na verdade, ainda estou. fazendo pequenas reformas. Mas é bastante confortável.

— Acho que você fez um trabalho maravilhoso, aqui — exclamou ela, ao entrar na casa. Estava na cozinha; via-se uma salinha de jantar, depois de uma arcada alta e branca.

— Este é o banheiro, e aqui, uma pequena despensa. — Robert mostrava e Helen seguia-o curiosa por saber onde ficava a sala de estar, pois não havia mais portas. — E agora vamos ao andar de cima. — O caminho para o andar superior era uma estreita escada em espira!. Lá havia somente um cômodo. Estava mobiliado como sala de estar e quarto.

— Isto é tudo? — pestanejou ela, e Robert riu ao ver sua expressão.— Originalmente havia um cômodo em cima e outro embaixo. Fiz três pequenos no

andar inferior e mantive este grande, como uma sala e um quarto. Realmente não havia outra maneira de arrumar isto.

— É uma idéia excelente — concordou Helen, caminhando peio quarto e olhando para o teto.

— Sinto-me como se tivesse preservado um monumento antigo — riu ele. — Esta casa tem centenas de anos.

— Bem, você a tornou muito confortável. — Encontrou o olhar de Robert e se perguntou mais uma vez como ele podia se sentir tão satisfeito em viver sozinho. Ele gastara bastante tempo e dinheiro com a casa, e esta não comportava mais que uma pessoa. Também não seria possível aumentá-la, pois não havia espaço suficiente ao redor.

— Venha ver meu estúdio — convidou ele. — Você tem que sair por esta janela e subir uma espécie de escada, mas é absolutamente segura.

— Não é de estranhar que você pinte aqui — disse ela, ofegante, olhando das janelas baixas e largas para as montanhas e o mar. — E o silêncio é tão grande...

— Disto é que eu gosto. Preciso de silêncio, às vezes, não só quando estou pintando. Algumas pessoas têm necessidade de ficar a sós, e eu sou uma delas. Esta é a razão pela qual não me incomodo com o casamento; seria egoísta de minha parte esperar que uma mulher se acostumasse com minhas manias estranhas.

Que sensibilidade e que consideração! Existiam poucos homens como Robert, refletiu, lembrando-se com amargura do egoísmo dos homens que conhecera; Gregory e Leon.

Voltaram para o térreo e Robert lhe mostrou o refrigerador.— Pegue o que quiser — disse ele, afável — enquanto eu arrumo a mesa.— Vamos cozinhar alguma coisa? — Havia diversos tipos de carne na geladeira, mas

também saladas em abundância e alguns tomates enormes e frutas.— Não, não vá cozinhar com esse vestido tão bonito — advertiu Robert. — Vamos

comer carnes frias e salada.Helen achou a refeição deliciosa. Robert era urna boa companhia e, ao mesmo tempo,

dava a impressão de ser, basicamente, um observador sagaz. Helen apreciara o fato de ele não lhe perguntar mais nada sobre Leon ou as circunstâncias peculiares de seu casamento. De fato, ele a tratava como uma amiga, gostando dela por sua maneira de ser e permitindo-lhe que mantivesse sua vida particular como algo à parte. Seriam muito bons colegas no trabalho que realizariam juntos, concluiu ela e, para sua surpresa, estava ansiosa por ter sua companhia.

Embora sua atitude em sair com Robert constituísse um desafio, Helen não desejava aguentar outra cena com Leon, logo depois daquela que acontecera durante o começo da tarde. Às nove horas, pediu que Robert a levasse para casa.

Ele a deixou no portão e Helen constatou, com alívio, que o bangalô estava completamente escuro. Entrou e foi direto para a cama.

Na manhã seguinte, Leon saiu cedo para se unir ao comboio. Depois de ajudar Araté com o trabalho doméstico, Helen se aprontou e ficou esperando até as nove horas, quando Robert chegou para apanhá-la.

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— Teremos que pegar o caminho mais longo? — perguntou, sentando-se ao lado dele no carro.

— Acho que sim. Eu tenho permissão para atravessar a pequena estrada, por ser inglês, mas não sei como é sua situação por estar casada com um grego.

E assim foram pelo caminho longo; já passava das dez horas quando chegaram à capital. Demoraram-se nas compras mais tempo do que haviam imaginado e Robert sugeriu que ficassem em Nicósia para almoçar:

— Será bom almoçar em um lugar diferente — completou ela. — E foram para o Hilton.A primeira pessoa que Helen viu foi Paula Maxwell. Ela estava sentada a uma mesa

para dois, num canto do salão. O coração de Helen parecia querer sair de seu corpo. Lembrou-se da outra ocasião em que vira seu marido com Paula ali, na hora do almoço, mas em nenhum momento tivera a idéia de que uma coincidência como essa ocorresse.

— Robert — gaguejou, certa de que Paula a vira e observava com interesse seu companheiro —, você se importaria se fôssemos para outro lugar? Paula está aqui, com... com meu marido.

— Paula e Leon? — Robert franziu as sobrancelhas e olhou ao redor. — Aqui?— Naquele canto. — Helen sentiu que a cor fugira de seu rosto. Onde estaria seu

marido? Chegaria de um momento para outro, tinha certeza disso.— Por favor, Robert, não quero me encontrar com Leon. — Como você sabe que ela

está com Leon? Não vejo qualquer sinal dele. Oh, eles que vão para o inferno! Sente-se aqui... — Não, Robert...

— Se ele pode almoçar com ela, então você pode almoçar comigo. — Robert quase a empurrou para a cadeira e ela não esboçou qualquer protesto, pois, embora estivesse a al-guma distância de Paula, podia ver o sorriso em sua face e sentiu o divertimento da moça devido à sua expressão.

— Oh, como sou tola! — Helen ficou olhando para a mesa à espera de que Leon aparecesse de um momento para o outro. Mas o homem que se sentou ao lado oposto de Paula era um homem idoso. Tirou alguns papéis do bolso e Paula se inclinou sobre eles, para examiná-los. — Mas... não é Leon, afinal de contas!

— Não? — Robert virou a cabeça. — Está vendo? Todo esse pânico por nada. Acho que é apenas algum comprador.

— O que ela vende?— Ela negocia terras e pequenas propriedades, não sabia?— Sim, sabia, lembrei-me agora. — Seus olhos estavam novamente em Paula. Ela era

atraente, mas tinha um certo porte que lhe dava um ar de arrogância. Combinava com um homem como Leon... e negociava terras. Eles deviam ter muito em comum.

— Provavelmente ela traz todos seus clientes aqui — disse Robert, estendendo o cardápio para Helen. — Atmosfera, você sabe. Um almoço ou um jantar de primeira é uma boa maneira de derreter um comprador. Suponho que seu marido faça o mesmo, quero dizer, traga seus clientes aqui. Certamente que sim.

Sim, seu marido vinha ao Hilton, mas nem sempre com clientes. No caminho de volta, foram até à casa, deixando lá suas tintas e um pequeno fogareiro a álcool, que Leon dera a Helen dizendo que poderiam fazer café enquanto estivessem trabalhando. Ficara um longo tempo medindo e fazendo o trabalho preliminar de preparação, para que começassem na manhã seguinte.

Leon estava em casa quando Helen chegou; olhou-a por cima do jornal e lhe perguntou onde estivera.

— Em Nicósia, para comprar minhas tintas. Começo amanhã.— E acabou de chegar? Por que não foi até o escritório e não voltou comigo?Perguntou por que ela não fora ao escritório com tanta frieza, quando devia saber muito

bem que ela ficaria curiosa por saber o que acontecera com seu quadro. Que desculpa daria ele quando ela lhe perguntasse sobre a pintura? Sem dúvida, ele teria alguma resposta pronta, uma explicação plausível, embora ela não conseguisse imaginar o que poderia ser.

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— Robert me levou para a cidade. Ele também tinha que comprar material. Deixamos tudo na casa. — Estava em pé ao lado do sofá, olhando-o, e então se lembrou de que não se falavam desde que ele saíra e a deixara sozinha depois da briga do dia anterior.

A boca de Leon estava comprimida, e Helen se enrijeceu, ao pensar no que estava por vir. Teria que viver sempre assim? Ele seria capaz de deixar seu coração batendo com medo toda vez que ela fizesse algo que ele não aprovasse?

— A que horas você foi à cidade?— Robert me apanhou às nove horas. — Caminhou até uma cadeira, do outro lado da

sala, tão longe de Leon quanto possível.— Nove horas... — Ele olhou quase que imperceptível-mente para o relógio de pulso.

Helen engoliu em seco e consultou o relógio de parede. — Vocês estiveram juntos o dia inteiro?

— Bem, não... não...— Agora já são cinco e meia — informou Leon, como se ela não soubesse.— Tivemos de ir até a casa, para deixar as tintas.— Você já me disse isso. — Vagarosa e deliberadamente, ele dobrou o jornal e o

colocou numa mesinha que tinha ao seu alcance.As palavras e gestos dele a desconsertaram, e Helen começou a beliscar o pano da

poltrona.— Tivemos que fazer um trabalho preliminar — explicou ela. — Vamos começar pela

manhã. — Ele devia saber tudo agora, decidiu. Evitaria outra cena como a anterior. — Acho que ficarei fora o dia todo.

— Com o inglês?— Com Robert, sim, Leon. Ambos temos trabalho na casa; assim, é natural que

fiquemos juntos.— E você acha que ficará fora o dia todo?— Sim, é isso mesmo.Leon se levantou e andou pela sala em sua direção.— Mudei de idéia, quanto a consentir que você faça esse trabalho — disse calmamente.

— Você pode escrever ao senhor Crawley e dizer-lhe que agora não está em liberdade para servi-lo.

— Escrever? Você espera que eu faça isto? Que abandone tudo, depois de ter prometido. Não posso, Leon. Quando ele me pediu que fizesse o trabalho, discuti com você e não fez qualquer objeçao a isto.

— As circunstâncias eram diferentes.— No que eram diferentes? — Quis ela saber, e um brilho de aço passou pelos olhos

dele.— Acho que não preciso responder a essa pergunta — disse ele brevemente, e depois

de uma pausa: — Você não vai fazer esse trabalho. Entendeu?— Não, Leon, não entendo. — Sua voz era baixa e segura. Percebeu o olhar inflexível

dele. — Recuso-me a receber ordens como essa de você. Tenho direito a certa liberdade. Ficarei satisfeita com o trabalho; a promessa foi feita ao senhor Crawley e será mantida. — Os olhos de seu marido pareciam arder em chamas, porém ela estava determinada a não se intimidar. Afinal, o trabalho era importante para ela; ajudá-la-ia a esquecer, pelo menos durante algum tempo, a dor e a desilusão pelas quais ele era responsável. Mesmo correndo o risco de outra cena violenta, completou, com uma distinta nota de desafio: — Robert virá me buscar pela manhã... e fará isso todos os dias, enquanto as crianças não estiverem aqui. Eu irei com ele. Sinto muito se não gostou da idéia de trabalharmos juntos, mas não há nada que você possa fazer.

Um silêncio de consternação caiu sobre a sala, e por um instante foi como se o desafio de Helen tivesse provocado em demasia o controle de Leon. Havia ameaça em seus olhos; ele moveu suas mãos como se estas estivessem desejosas de bater nela, e, apesar de sua coragem, Helen experimentou uma renovada palpitação em seus nervos. Então a raiva dele esmoreceu e deu lugar a uma inflexibilidade que era, na verdade, mais intransigente. Sua

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atitude implacável e a firme linha de sua boca convenceram-na da futilidade de seus esforços para desafiá-lo. Ele pretendia que tudo acontecesse como desejava, e ela imaginava que plano ele estaria elaborando para forçá-la a obedecer a sua vontade. Mas como poderia ele forçá-la a obedecer? Ela estava deixando que o medo dominasse seu bom senso. Além de trancá-la em casa, haveria outra maneira de impedi-la de sair com Robert pela manhã?

— Essa é sua última palavra? — perguntou ele por fim. Helen concordou tristemente. Como estava tudo tão diferente do que ela previra, quando o senhor Crawley a convidara a pintar para ele! Helen ficara tão feliz e Leon parecia tão orgulhoso dela! Mesmo o rápido mau humor dele ante a idéia de Robert trabalhar com Helen lhe aumentara a felicidade, pois ela tomara isso por ciúme.

Um pequeno nó apertou-lhe a garganta e lhe dificultou a fala, mas finalmente ela conseguiu dizer:

— Devo fazer o trabalho, Leon. Não só porque prometi, mas também porque me dará prazer.

— Prazer? — Seus dentes estavam apertados, seus gestos tornaram-se ainda mais inflexíveis, enquanto ele a fixou por instantes, com olhos escuros e atentos. — Você vai gostar de ficar o dia inteiro naquela casa, com seu amigo da Inglaterra... é isso o que você quer dizer, não é?

— Você sabe que não é isso. Gosto muito de pintar e... e tenho esperado ansiosa por este trabalho. — Olhou-o, mas ele estava completamente indiferente à insinuação de lágrimas nos olhos dela.

— Acho que avisei você em outra oportunidade. Já lhe disse que não quero ter o nome de minha esposa ligado ao desse tal Robert. Disse isso naquela ocasião e repito agora-Ou você atende de boa vontade o meu pedido, ou tomarei medidas para que você o faça. A escolha é inteiramente sua.

— Não vou aceitar suas ordens humildemente! — disse ela de maneira brusca. — E quanto às medidas para me obrigar a desistir do trabalho... bem, a idéia é ridícula! Você não pode me trancar em casa.

— Não, minha querida — completou suavemente Leon. — Não é isso o que tenho em mente, — Sem outra palavra, saiu da sala e, como numa ocasião recente, ela ouviu o carro saindo.

Helen estava na cozinha, ajudando Araté a preparar o jantar, quando ouviu novamente o barulho do carro. Quase imediatamente, as crianças irromperam no cómodo.

— Tia Helen! — Fiona correu e lhe deu um abraço apertado. — Nós gostamos de visitar a tia Asmena... mas ficamos tão contentes quando o tio Leon foi nos buscar!

— Nunca mais vou sair... não sem vocês — declarou Chippy, com ênfase. — Não nos faça ficar fora, tio Leon. — Chippy virou-se para seu tio e Leon lhe sorriu.

— Não, Chippy, nunca mais faço vocês ficarem fora de casa. — E acrescentou, zombeteiro: — Pensei que estivessem aproveitando o passeio.

— Oh, aproveitamos mesmo! — respondeu Fiona com vivacidade, como se Leon achasse que não tinham ficado muito reconhecidos pela hospitalidade de Asmena. — Mas gostamos de vocês dois mais do que de tudo e, por isso, queríamos voltar para casa.

CAPITULO IX

Os dias se arrastavam; as crianças ficavam brincando a maior parte do tempo e a in-dignação de Helen contra o seu marido fora gradualmente aumentando, até que atingiu proporções gigantescas. Com que direito ele a dominava assim? Era uma inglesa, e não uma dessas mulheres servis que não tinham outro interesse a não ser cuidar do marido e dos filhos. Por mais que amasse Fiona e Chippy, ainda se sentia no direito de ter um pequeno tempo livre para desfrutar seu passatempo predileto. Além disso, por que Leon ficava fora o tempo todo, deixando-a com as crianças? Desde a briga que haviam tido, ele nunca mais chegara cedo em

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casa. Aos domingos também ficava fora... com Paula Maxwell — tinha certeza disso. Quando Helen se queixou de que ele a deixava muito sozinha, Leon, friamente, lembrou que ela estava naquela casa para cuidar das crianças.

Com a intenção de forçá-lo a permanecer em casa pelo menos por uma noite, Helen convidou Trudy e Tasos para jantar. Eles já haviam visitado o bangalô antes. Tasos e Leon tinham se entendido bem e, pensando nisso, Helen não imaginou por um instante sequer que seu marido se recusasse a ficar em casa.

— Amanhã à noite? — Sua voz era fria e seu olhar indiferente. — Tenho um compromisso. Estarei em casa depois das dez horas.

— Um compromisso? — indagou nervosa. — À noite?— À noite. — Ele estava parado, com as mãos nos bolsos, o rosto desfigurado pela

aspereza que ultimamente já não o abandonava. — Existem pessoas que não estão livres du-rante o dia e que só podem contar comigo à noite.

Tal como Paula Maxwell, a quem os negócios ocupavam o dia todo.— Convidei Trudy e Tasos; você poderia ficar em casa?— Se você tivesse marcado para outra noite, poderia ver se conseguia ficar livre, mas

amanhã... lamento muito, mas não posso.Ele não lamentava nada. Se lamentasse, poderia simplesmente dizer à sua amiga que

tinha outro compromisso, lhe contar a verdade. Mas ele nunca faria isso, Helen concluiu, pois Paula não ficaria satisfeita ao saber que Leon preferiria ficar em casa. E estava absolutamente certa de que ele mentira, ao dizer que, se fosse outra noite, poderia ficar em casa. Era uma desculpa.

— Tasos e Trudy se sentirão desprezados — insistiu Helen, a despeito de sua convicção de que perdia tempo. — E eu... eu ficarei tremendamente embaraçada. O que vou dizer?

— Por que você não me consultou antes de convidá-los?— Pensei que pudesse fazer isso — admitiu ela. Embora contra sua vontade, olhou-o

suplicante. — Vai ser difícil, Leon.— Muito bem — disse ele. — Dispensarei meu cliente, mas no futuro, por favor,

consulte-me. Não é certo marcar um compromisso e então cancelá-lo com pouca antecedência.

Helen ficou espantada. Ele parecia tão sincero. Isso poderia significar que Leon não estava encontrando Paula todas as noites? Ela encolheu os ombros e todo seu rancor voltou. Leon era muito astuto; já não tivera provas suficientes contra ele?

Trudy e Tasos chegaram cedo e, durante a primeira parte da noite, ficaram todos no jardim. As crianças, entusiasmadas com a idéia de terem visitas, recusaram-se a ir muito longe, suas vozes e risadas eram ouvidas o tempo todo.

— Esses dois têm muita sorte — comentou Tasos, olhando para Chippy, que empurrava o balanço no qual Fiona estava sentada. — Perderam uma mãe e um pai, mas acharam outros. — Suas palavras fizeram com que Helen desviasse o olhar das crianças para seu marido. Havia uma curva de ironia na boca de Helen e seus olhos estavam ligeiramente zombeteiros. Ocorrera uma mudança completa no comportamento dele em relação a ela, desde aquele dia, por cerca de duas semanas, quando Leon trouxera as crianças da casa de Asmena. Seu interesse se desvanecera, assim como seu desejo, ambos voltaram ao relacionamento que existia no começo do casamento. Na primeira análise que havia feito deste modo de viver, Helen acreditara que estava feliz assim. Afinal, não fora esse tipo de vida que ela quisera ter ao aceitar a proposta de casamento? Procurava se convencer agora de que só estava ressentida com as atitudes autoritárias e as maneiras ditatoriais com que Leon falava com ela. Acreditou que, se tivesse uma certa liberdade, viveria razoavelmente bem. Mas, com o passar dos dias, Helen se tornou mais e mais consciente da inquietação e do vazio que se apoderavam dela, agora que o marido perdera todo o interesse por sua companhia. E, embora sofresse ao admitir isso, havia momentos em que achava melhor receber parte de sua atenção do que não ser nem mesmo percebida. Se pelo menos não tivesse se deixado apaixonar, se houvesse

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resistido às persuasões sutis de seu marido, então esse desinteresse poderia ser aceito com mais facilidade. Mas, infelizmente, aprendera a amar outra vez.

Ciente de que o olhar de Trudy estava fixo nela, Helen virou-se e sorriu. Trudy desviou o rosto. Teria percebido algo? Talvez não. Helen não suportaria se alguém adivinhasse que ela não conseguira, por muito tempo, ser atraente para seu marido.

— Tio Leon... — A voz doce de Fiona chegou até ele. — Poderia vir comigo aqui e empurrar-me? Chippy não quer mais fazer isto.

— Porque é minha vez, por isto não quero — queixou-se ele, enquanto Leon se levantava de sua espreguiçadeira e caminhava para eles. — Ela quer se balançar o tempo todo.

— Certo. Fiona, desça.— Não. Eu quero...— Não?— Me dê um empurrão. — Olhou para seu tio através dos longos cílios. — Por favor —

completou, manhosa.— Desça! — Fiona obedeceu e ele lhe deu uma palmada.— O... ooh, doeu! — Os olhos dela se arregalaram de espanto e a garota lançou a Leon

um olhar melancólico. Esfregou a parte afetada e correu para sua tia. — Ele é ruim... não gosto dele!

— Pobre Fiona! — Helen abriu os braços. — Venha sentar-se no meu colo.— Nenezinho! — gritou Chippy do balanço. Seu tio o empurrava. A brisa acariciava os

cabelos de Leon, deixando-os em uma desordem atraente. Helen observara-o por cima da cabeça de Fiona e ele se virou, sentindo seu olhar. Rapidamente ela abaixou os olhos, dedicando toda sua atenção à criança.

— Ele me machucou terrivelmente — queixou-se Fiona. — Ele é horrível!— Não exagere; você não está machucada. — Helen sentou-a melhor em seu colo.— Estou dizendo a verdade. — Fiona passou os braços em redor do pescoço de Helen.

— Eu gosto só de você; não gosto mais dele.— Tenho certeza de que você lhe quer muito — interveio Trudy, com uma espécie de

anseio aumentando em sua voz.— Decerto, ele também gosta de você.— Não gosta, não! — Fiona observou o tio empurrando o balanço. — Se gostasse não

teria me machucado.Verdade, refletiu Helen. Ninguém machuca aquele a quem ama. Não como ele

machucara sua sobrinha. Mas não era em Fiona que Helen estava pensando.Deixando o balanço, Leon voltou e parou ao lado da cadeira de Helen; seus olhos se

moveram, indiferentes, do rosto de sua esposa para os olhos da sobrinha.— O que aconteceu com você?— O senhor me machucou e agora não gosto mais do senhor.— Sério? — Havia um tom levemente zombeteiro em sua voz, mas seus olhos estavam

sérios.— Sim, é sério. Só gosto de tia Helen, ela nunca machuca ninguém.Um breve silêncio. Por alguma razão, Helen se sentiu corar, ao encontrar o olhar

inescrutável de seu marido.— Ela não machuca, Fiona? — Sua voz era suave; seus olhos fitavam o rosto

ruborizado de Helen.— Não, não machuca — confirmou Fiona, apertando mais seus braços em torno do

pescoço de Helen. — Ela é sempre bondosa, é por isso que gosto dela.Leon suspirou, e sentando-se ao lado de Tasos, começou a conversar com ele.— Vou ver o jantar — disse Helen, pouco depois. — Araté não está muito bem e não

veio trabalhar hoje.— Posso ajudar? — Trudy levantou-se ao mesmo tempo, mas Helen negou com a

cabeça.— Tenho tudo pronto, e a refeição está no forno. É só arrumar a mesa.

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— Farei isso — ofereceu-se Trudy, seguindo Helen, enquanto ela subia os degraus para a casa.

Trudy punha a mesa enquanto Helen se ocupava da cozinha. Então Helen chamou Chippy e Fiona. Lavou o rosto e as mãos deles e voltou para a cozinha com ambos. As crianças protestaram, dizendo que ainda era muito cedo para irem dormir.

— É a hora em que vocês vão dormir todos os dias — lembrou-lhes Helen.— Mas nós temos visitas, e não gostamos de dormir quando temos visitas.— Isso acontece porque vocês gostam de ouvir conversa de gente grande — caçoou

Trudy, e Helen percebeu que a amiga estava ansiosa. Confidenciara-lhe que ela e Tasos queriam filhos e que, se não ficasse grávida logo, adotaria uma criança.

— Você vai ver como conseguirá amar uma criança, mesmo que ela não seja sua — disse-lhe Helen, imaginando o que faria se Chippy e Fiona fossem tirados dela. Eles não eram adotados legalmente pelo tio e algumas vezes Helen pensava na mãe das crianças. E, quando isso acontecia, sempre demorava muito tempo até que conseguisse superar o medo e a depressão que tais pensamentos lhe traziam.

Leon entrou na cozinha e abriu a porta da geladeira, olhou em seu interior e franziu as sobrancelhas.

— Não tem nenhuma lata de cerveja?— Estão logo aí atrás — disse Helen, aproximando-se dele. — Quer que eu pegue?— Eu mesmo poderia pegá-las, se soubesse onde estão.— Tem que tirar isso da frente. — Helen começou a mexer nas coisas e afinal as latas

apareceram. Ambos pegaram-nas ao mesmo tempo e suas mãos se tocaram. De imediato, Leon tirou a dele, deixando que ela o servisse. Sem uma palavra de agradecimento, recebeu as latas, pegou os copos no armário ao lado e voltou ao jardim.

Helen ficou ao lado da geladeira, esfregando a mão que Leon tocara, seu coração palpitava. Teriam passado somente algumas semanas desde o tempo em que ele a acariciava de maneira tão terna? E agora Leon não conseguia suportar nem mesmo o toque de seus dedos em suas mãos...

— Já arrumei a mesa para o jantar. — Trudy voltou à cozinha e olhou em volta: — Há mais alguma coisa que eu possa fazer?

— Nada, Trudy, obrigada. Está tudo pronto.Afinal, as crianças estavam na cama. O jantar foi servido e a noite passou

agradavelmente, sem que nenhum dos dois convidados percebesse a situação que existia entre Helen e Leon. Helen ficou mais aliviada quando Leon relaxou as atitudes austeras que já lhe eram familiares. Durante o jantar, ele se mostrou cortês e falava com Helen de maneira carinhosa, sorrindo com uma certa dose de ternura.

— Vocês devem ir nos visitar. — Convidou Tasos, quando estava se despedindo. Ele e Trudy estavam no carro, e Helen e Leon, parados ao seu lado. — Quando poderão ir?

— Não tenho certeza — respondeu Leon.Isto significaria que ele não os visitaria?, imaginou Helen, sombria. Esperava que Leon

não fizesse nada que estragasse sua amizade com Trudy, como acontecera com Robert. Ro-bert perdera a paciência com ela desde que se deixara dominar por Leon e desistira de trabalhar na casa de campo.

— Adoraria se as crianças fossem algum dia — disse Trudy a Helen. — Vou lhe dar uma idéia: por que não os leva ao apartamento quando for lá, na sexta-feira?

— Não sei — hesitou Helen. — Eles são terríveis, Trudy, e você possui objetos bonitos e delicados.

— Você também — interveio Tasos. Não consideramos nossa casa como um lugar para ser mostrado, gostamos de pessoas lá dentro, inclusive para mexer nos objetos.

— Mesmo assim, eu detestaria que eles quebrassem alguma coisa — desculpou-se Helen, quando Leon a interrompeu:

— Não acredito que eles se portem mal, Helen — negou com a cabeça. — Não, não acho que você precise se preocupar._ Vamos todos juntos para Nicósia na sexta-feira.

— Ótimo. Então vejo vocês no fim de semana. Boa noite.

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— Boa noite, Trudy. Boa noite, Tasos. — Só depois que o carro desapareceu de vista numa curva, na parte baixa da colina, é que Helen e Leon entraram na casa novamente.

Parecia a Helen que, por alguma razão, o encontro de amigos relaxara um pouco a tensão existente entre ambos. Ela comentou sobre a noite, querendo saber se ele gostara de ficar em casa.

— Gostei de eles terem vindo. E você, Leon?— Foi uma noite muito agradável — concordou ele, bocejando. — Seu jantar estava

excelente.— Obrigada. — Helen sorriu para ele e se sentou, quase querendo que ele fizesse o

mesmo. O que estava acontecendo com ela? Levar tudo aquilo adiante resultaria em sua própria humilhação. Leon agora já estava acostumado a ficar sem ela... O orgulho de Helen era grande e ela jamais permitiria implorar pelos favores dele. Mas se pelo menos ele fosse sincero!

— Já é tarde — disse Leon, parado ao lado de uma estante, com as mãos nos bolsos. Olhava-a. — Acho que vou me deitar. Boa noite, Helen.

Sentiu-se triste. Mas o que queria realmente? Helen não tinha resposta para isso.— Boa noite, Leon — respondeu agitada. Você está certo... Vou... eu também já vou me

deitar.— Você parece cansada. — Ela caminhou para a porta. — Boa noite — disse mais uma

vez, e entrou no quarto.Tia Chrisoula telefonou no dia seguinte. Perguntou por Leon e, quando Helen lhe disse

que estava no escritório, ela mostrou-se irritada:— Não, não está! Aliás, nunca está lá quando telefono. O que ele anda fazendo com

meu bangalô? É isto o que eu gostaria de saber!— Seu bangalô? Ele conseguiu achar algum para a senhora?— É isto o que quero saber, já lhe disse! Há mais ou menos uma semana, ele me disse

que achara um ótimo, mas o preço era alto demais. Espero que consiga reduzi-lo para que eu possa comprá-lo.

— E desde esse dia ele não entrou mais em contato comna senhora?— Não me encontrei com ele e nem ao menos me telefonou — replicou irritada. — Onde

ele fica, afinal? Por que não está no escritório?— Não sei, tia Chrisoula. Talvez esteja fora, tratando dennegócios.— O quê? Todos os dias? Diga-lhe que quero vê-lo esta noite!— Ele normalmente chega tarde em casa, mas, de qualquer maneira, direi quando ele

chegar. Se não for muito tarde, é provável que ele apareça por aí. Caso contrario, irá em outra oportunidade.

— Outra oportunidade? Quando? Olhe aqui, Helen, o que está acontecendo? Por que ele não chega cedo em casa? Aonde ele vai?

Helen hesitou. Estava claro que tia Chrisoula ficara intrigada com o comportamento de seu sobrinho e Helen pensou se deveria ou não arranjar uma justificativa para a atitude de Leon. Mas o que poderia dizer? Parecia haver somente uma salda para ela: franqueza.

— Não tenho idéia de aonde Leon vai — admitiu ela. — Ele não discute seus negócios comigo.

— Negócios... Negócios! Você está querendo me dizer que ele trata de negócios à noite? — Incapaz de responder, Helen permaneceu em silêncio e a velha senhora continuou, com uma clara suspeita em sua voz: — Ele nunca foi um frequentador assíduo dos bares e restaurantes; portanto deve estar em outro lugar. O que eu gostaria de saber é que lugar é este!

— Receio que não possa esclarecê-la, tia Chrisoula. Quando Leon chegar, darei o recado e acho que ele entrará em contato com a senhora, logo que possa.

A mão trémula de Helen desligou o telefone. Leon nunca estava no escritório e nunca estava em casa até tarde da noite. Ele devia ir de uma vez por todas viver com Paula Maxwell! Lágrimas de raiva umedeciam seus olhos e, embora tentasse detê-las, estas teimaram em rolar

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por seu rosto. Fiona, que vinha do jardim, escolheu este momento para entrar; olhou fixamente para Helen, com espanto, e lhe abraçou a cintura.

— Por que está chorando? Oh, por favor, não chore. A senhora está triste, tia Helen?— Não... estou bem, agora... — Helen continuava aflita com a inquietação da garota e

tentou convencê-la de que tudo estava bem. — Já passou, querida. Vamos para o jardim? Vamos, eu empurro você no balanço. — Para seu alívio, Fiona sorriu, e em poucos minutos a pobre criança dava sonoras gargalhadas, pedindo à tia que a empurrasse mais e mais alto.

Para perplexidade de Helen, os olhos de Leon brilharam de raiva, quando, ao chegar em casa muito mais cedo do que de costume, Helen lhe deu o recado de tia Chrisoula.

— Ela pensa que a única coisa que tenho na cabeça é seu maldito bangalô? — disse áspero, — Terá que esperar. Por enquanto existem assuntos muito mais importantes a serem tratados.

Helen olhou-o fixamente. Por que essa mostra de mau humor? E o que significariam suas palavras? Haveria algo errado entre ele e Paula? Ou o romance estaria se tornando envolvente demais? Sentiu-se impelida a perguntar.

— Quais são esses assuntos tão importantes, Leon? — Com um movimento da cabeça, ele se negou a lhe dar esclarecimentos.

Leon parecia completamente atormentado e deprimido, seus olhos estavam cansados e sua têmporas haviam embranquecido quase que totalmente. O que não poderia estar bem? Era óbvio que algo bastante grave acontecia, e, por um breve momento, as únicas emoções de Helen foram amor e ternura; desejou abraçá-lo, pressionar a cabeça em seu peito e confortá-lo. Porém, no momento seguinte, conteve seus sentimentos. Qualquer que fosse o seu problema, somente diria respeito a Paula. E se havia preferido se abandonar a um romance como aquele, agora ele próprio deveria assumir quaisquer problemas ou ansiedades que resultassem disso. Por que desperdiçaria com ele sua compaixão? Em outras ocasiões, Leon não tivera consideração alguma por ela.

Nas duas horas seguintes, seu marido lhe dirigiu apenas algumas palavras, mas quando Chippy entrou na sala e começou a jogar sua bola para cima, vociferou para que o menino continuasse no jardim.

— Leon! — A exclamação saiu involuntariamente dos lábios de Helen. — Não há necessidade de falar dessa maneira com Chippy.

— Ele tem que jogar futebol aqui dentro?— Não é futebol, Leon.— Já disse que não quero que ele jogue bola dentro de casa!— Não precisa gritar — replicou ela. — Não sou surda. Leon olhou-a de modo

penetrante. Ia replicar, mas mudou de idéia e se deixou cair, uma vez mais, num silêncio pen-sativo. Helen estava furiosa. Já fazia duas semanas que passava as noites sozinha. E tudo o que ele sabia fazer, quando chegava em casa mais cedo, era descarregar sua raiva sobre ela e as crianças. Helen saiu e se uniu às crianças, no jardim, deixando-o sozinho na sala de estar. Mas pouco depois ele veio lhe dizer que ia visitar sua tia.

— E melhor que eu a informe dos progressos que fiz — disse ele. Sua voz perdera o tom áspero, mas seu mau humor permanecia. Helen sentiu isso em todas suas atitudes.

— Então você conseguiu alguma coisa? Achou uma casa menor? — Uma ótima casa, mas o preço é mais alto do que ela se dispõe a pagar. No entanto,

como sua velha residência conseguiu um preço excelente, ainda restará boa quantia para ela. — Passou a mão pelos cabelos e foi para a garagem, pegou o carro e saiu.

Seu humor afetou-a de maneira estranha e, sentindo-se incapaz de passar outra noite sozinha, ela ficou ao lado das crianças na sala, que não dormiram na hora certa aquela noite, até que, para surpresa de Helen, Leon chegou pouco antes das nove horas.

— Quis que elas me fizessem companhia — respondeu, à muda interrogação dos olhos do marido. — Eles vão para a cama agora. — As crianças já haviam tomado banho e brincavam sobre um pequeno tapete, montando um quebra-cabeça. — Deixem isso de lado — disse ela, e, com um olhar de desculpa, acrescentou: — Vou preparar o jantar das crianças. Logo estarão na cama.

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— Não tem importância. Deixe-os um pouco mais. — E completou, hesitante: — Traga o jantar deles para cá.

Deixá-los na sala, àquela hora? Leon fora sempre tão rígido com o horário das crianças...

Encolhendo os ombros, Helen foi para a cozinha e colocou o jantar numa bandeja. Ela parou com a bandeja na mão, vendo, através da porta entreaberta, a cena que se passava na sala. Fiona estava sobre os joelhos do seu tio, com o braço direito ao redor de seu pescoço, tagarelando alegremente. Chippy continuava no tapete, guardando as peças do brinquedo, e parecia não estar muito contente. Leon fitou-o e disse:

— O que aconteceu, Chippy?O menino balançou a cabeça e, pousando os olhos em Fiona por um momento,

começou a piscar rapidamente. Helen franziu as sobrancelhas, percebendo que o garoto estava prestes a chorar. Chippy voltou sua atenção para o quebra-cabeça, jogando as últimas peças na caixa. Leon perguntou mais uma vez o que ele tinha.

— O senhor não gosta de mim tanto quanto da Fiona.— Por que está dizendo isso?— O senhor gritou comigo quando estava brincando com minha bola.Leon estendeu a mão para o menino:— Desculpe-me, Chippy. Venha sentar-se no meu colo também.Chippy olhou-o com tanta surpresa quanto seus olhinhos podiam expressar. Leon

desculpando-se! Chippy correu para ele e as duas crianças ficaram ali, gozando de sua proteção. Helen sentiu a profunda tristeza de Leon, embora não pudesse ver seu rosto. Se ao menos ele lhe contasse o que o preocupava tanto... mas ele nunca faria isso, pois seus problemas estavam ligados àquela mulher.

— O senhor quer bem a Chippy tanto quanto a mim? — Fiona distanciou-se, examinando o rosto do tio.

— Amo igualmente vocês dois.Helen sabia que Leon falara a verdade, pois, embora, no começo, não estivesse

particularmente entusiasmado por tê-los em sua casa, não havia dúvidas de que agora os amava com muito carinho.

— Ele quer dizer que gosta da gente do mesmo jeito— informou Chippy, seriamente, à irmã. — Está certo, tio Leon?— E isso mesmo, Chippy.Helen não conseguiu continuar olhando a cena. Era incapaz de não se emocionar com o

tom da voz de Leon. E seus braços... como apertavam Chippy e Fiona! Parecia que Leon nunca os deixaria livres daquele abraço.

— Acertou tudo com tia Chrisoula? — Helen esforçou-se por dizer algo, numa tentativa de afastar suas preocupações.

— Ela comprará o bangalô que você achou?— Tia Chrisoula concordou com tudo o que lhe falei. — As crianças deixaram seu colo e

sentaram-se no tapete. — Um problema a menos para me preocupar.Quando as crianças já estavam dormindo, Helen lavou e guardou as louças que havia

usado. Qual seria o grande problema que preocupava seu marido? Poderia ser algo não ligado ao seu relacionamento com Paula? Ou seria dinheiro a causa do problema?

Quando voltou para a sala de estar, Leon estava sentado no divã com a cabeça entre as mãos. Seu coração bateu mais forte, e caminhou em direção ao marido, esquecendo Paula, esquecendo todas as desavenças, todas as palavras rudes trocadas entre eles, esquecendo tudo pela certeza de que ainda o amava. Por mais que houvesse sofrido por ele, e por mais que viesse a sofrer algum dia, nunca deixaria de amá-lo.

— Leon... — Timidamente ela tocou-lhe o braço. — Leon, não pode me dizer o que está acontecendo? O que foi? — Apertou a mão, que apertara o seu braço. — É dinheiro? Teve algum grande prejuízo ou coisa assim?

— Não, Helen, não foi dinheiro o que perdi.

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O modo como dissera essas palavras... Aquele estranho tom de sua voz... Ele perdera algo, isso era claro.

— Então o que foi? — Para que perguntar? Paula certamente o abandonar a... Inconscientemente, Helen acenou negativamente com a cabeça. Paula nunca faria isso. — Leon, não pode me dizer o que está acontecendo?

— Não, Helen, não posso dizer a você o que está acontecendo.Retirando sua mão, Helen afastou-se devagar, com dor e amargura em seu coração.

Não havia dúvida quanto à ênfase dada à palavra "você". E isto só podia significar uma coisa: a tristeza dele dizia respeito a Paula, pois, se existia qualquer outra razão, não havia motivo para que não lhe contasse.

Levantaram-se logo cedo, na sexta-feira, pois Leon queria se unir ao comboio. Estariam em Nicósia às oito horas da manhã, e Helen disse que era melhor que ficasse um pouco no escritório, pois não iria para casa de Trudy àquela hora do dia, ainda mais estando com as crianças.

— Estarei ocupado — disse Leon, e Helen percebeu que estava um pouco embaraçado enquanto completava: — Eu os levarei diretamente ao apartamento. Estou certo de que Trudy não se importará. Ela já deve estar acordada, pois sabe que você chegará cedo.

— Mas às oito horas... Não, Leon, se você não quer que fiquemos no escritório, vamos passear um pouco.

— Eu não disse que não queria vocês por lá, mas sim, que estarei ocupado. — Não havia afinal desculpas em sua voz. Mas estava clara a razão pela qual não a queria no escritório. Ele não precisava se preocupar, pensou Helen, pois nunca perguntaria pelo quadro.

— Não se preocupe, Leon — disse ela firmemente — nós podemos ir a qualquer lugar tomar um café.

— Mas eu quero ir ao escritório — interveio a sobrinha. — Só fui lá uma vez.— Ficaremos bem-comportados — disse Chippy, tentando persuadi-lo. — Deixe-nos ir

ao escritório, tio Leon.— Muito bem. — Embora sua voz soasse impaciente, era resignada, como se o ato de

argumentar fosse um esforço muito grande para Leon.Estavam na ante-sala do escritório, Leon ia abrir a porta para entrarem em sua sala de

trabalho, quando o telefone tocou. Pegou o aparelho e, de imediato, sua expressão se tornou cautelosa. Um rápido olhar na direção de Helen deixou-a certa de que ele preferia que ela estivesse em qualquer lugar, menos ali. Suas palavras também eram cuidadosas. De repente colocou a mão sobre o fone e disse a Helen;

— Não se importa de levar as crianças para fora, Helen? Desculpe-me, mas é um assunto particular. Vocês podem entrar na minha sala.

A face da jovem senhora empalideceu, ao ouvir as palavras do marido mas, sem nada replicar, empurrou gentilmente as crianças na sua frente, em direção à sala contígua.

— O que vamos fazer? — Chippy começou a se aborrecer e, em pouco tempo, estava mexendo nos papéis que se encontravam sobre a escrivaninha.

— Sente-se e fique quieto, Chippy. Quando seu tio acabar seu telefonema, nós lhe diremos que vamos embora. Tomaremos refresco em algum bar, e depois já estará na hora de irmos para o apartamento de tia Trudy.

Chippy obedeceu, escolhendo a cadeira de Leon para se sentar, sem dúvida sentindo-se muito mais importante e imaginando ser o tio.

Quem poderia estar no outro lado da linha? Sem dúvida era uma mulher; alguém que por certo sabia que Leon chegaria cedo ao escritório naquele dia. O que havia dito para que Leon assumisse aquela expressão cautelosa? Tudo o que Helen escutara fora:

"Eu o aprontei ontem, mas quando você me telefonou dizendo que não era o suficiente eu o segurei, você disse que telefonaria outra vez esta manhã... Sim, claro que você o terá... "

Helen encontrava-se ao lado da escrivaninha, mas seus olhos estavam pousados em Theo, que, do outro lado da imensa janela, agora regava as plantas da varanda. Poucos minutos depois desapareceu, em resposta a uma chamada de Leon. Minutos depois, enquanto

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o empregado entrava na sala em que Helen e as crianças se encontravam, alguns documentos, entre eles o talão de cheques de Leon, foram derrubados por Chippy.

— Chippy, cuidado! — Abaixando-se, Helen fez menção de pegá-los, mas Theo foi mais rápido.

— E isto o que o senhor Petrou me pediu que levasse. — Pegou o talão de cheques, sentindo que lhe devia alguma explicação. — É o cheque daquela senhora. Eu o entregarei a ela. — Sorriu e, destacando o cheque que viera buscar, recolocou o talão sobre a escrivaninha. Saiu e Helen o ouviu gritar: — Estarei de volta em dois minutos, senhor Petrou.

Aquela senhora... Os olhos azuis de Helen tornaram-se sombrios. O talão de cheques abrira-se na queda, e Helen tinha visto a quantia, embora não tivesse sido possível ler o nome da pessoa... Mas a quantia era de cinco mil libras esterlinas... cinco mil libras! E a senhora a quem Theo se referira não podia estar muito longe, já que ouvira o empregado gritar que estaria de volta em dois minutos. Seu olhar se dirigiu para o talão de cheques em cima da mesa, para Chippy sentado na cadeira do tio e depois para a sobrinha, que se encontrava distraída, a contar as bolinhas do estampado de sua saia.

O ato que estava prestes a praticar fazia com que seu coração batesse mais rápido. Era errado mas ela tinha que saber. Não devia ser Paula... "Oh, por favor, não deixe que seja Paula...", pediu a Deus, em silêncio.

— Chippy, por que não ajuda Fiona a contar as bolinhas de sua saia? — Não parecia ser sua voz que falara, tão fina e estridente. Embora Chippy tivesse gostado da idéia, e já se encontrasse junto à irmã, Helen sentia-se incapaz de se mover. Mas não conseguia tirar os olhos do talão.

Tudo o que estava escrito eram a data e "P"... além da quantia. Tremendo, Helen recolocou o talão de cheques no lugar. Sua pequena prece fora em vão, como ela havia imaginado.

Por que motivo Leon lhe dera dinheiro? Paula estaria passando por dificuldades? Esta parecia a única explicação plausível. Ali estava a razão peia qual Leon ficara tão ansioso e angustiado. Ele entrou na sala, e Helen o observou. Seu rosto estava menos ansioso, mas ele ainda parecia perturbado. Mas isto era compreensível, pois nenhuma pessoa daria uma quantia daquelas sem algum pesar.

— Já vamos — começou ela, quando Fiona a interrompeu.— Tio Leon, não estou me sentindo bem! — abraçou-o e começou a chorar. — E

horrível!— Onde está doendo? — Leon pegou a garota no colo. — É sua barriguinha?— Não, não sei o que foi. Agora já passou.— Bem, foi bastante rápido. — Olhou-a zombeteiro. — E as lágrimas... — Pegou seu

lenço e enxugou os olhinhos dela. — Meninas crescidas não podem chorar só porque não se sentem bem.

— Tia Helen é crescida e, mesmo assim, chora quando não se sente bem.— Chora? — Seus olhos procuraram os de Helen; ela corou e desviou seu olhar. —

Quando tia Helen esteve doente?— Outro dia... e ela chorou muito, não foi, tia Helen? — Chippy chamou a garota, que,

sem esperar resposta, pulou do colo de seu tio, obviamente curada.— Por que você estava chorando, Helen? — Pouco antes, a voz de seu marido era

suave e gentil, mas agora estava tão áspera que Helen chegou a ficar chocada.— Como Fiona disse, não me sentia muito bem.— Não minta. Não há necessidade. Deve ter acontecido algo mais importante do que

isso para que você tenha se descuidado a ponto de Fiona a ver em lágrimas. Presumo que seja algo relacionado com a minha proibição de você encontrar seu amigo inglês.

Fitou-o espantada.— Acho que não entendi o que você quis dizer, Leon.— O que mais poderia fazer com que você se descontrolasse a tal ponto?— Desculpe-me, Leon, mas não o entendi. Por que você mencionou Robert? Você fala

de uma maneira como se ele e eu não fossemos apenas amigos.

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— Amigos! Vocês são mais do que simples amigos, muito mais! Portanto, não precisa ficar aí, tentando me fazer de bobo!

O espanto dela aumentou. Por que esta explosão de ciúmes?— Como se atreve a dizer-me isso? Eu mal o conheço! — Helen repentinamente ficou

preocupada com as crianças, elas não poderiam assistir a essa cena horrível. Mas, aliviada, lembrou-se de que elas haviam saído há pouco para brincar no jardim... Mas que direito ele tinha de proferir acusações quando acabava de enviar cinco mil libras esterlinas para Paula Maxwell? Deveria dizer-lhe que sabia disso? Não, pois Leon tinha o direito de fazer o que quisesse com o seu dinheiro, e ele não hesitaria em lhe dizer isto.

— Você deve conhecê-lo muito bem, para tê-lo levado à minha casa.— O quê? Como você sabe disso?— Contaram-me. Estas coisas, minha cara, se espalham de uma maneira incrivelmente

rápida.— Mas quem... — Sua face incendiou-se quando compreendeu. — Então ela lhe

contou?!— Ela?— Você sabe muito bem, Paula Maxwell!— Você está certa. Foi ela quem me contou.— Mas... — Helen o olhava desconcertada. Ele sabia disso todo o tempo e só agora

mencionava a fato. Não era de Leon calar sobre coisas como essa. Por que não aproveitara a oportunidade de subjugá-la novamente numa cena violenta? Saber que Robert fora à sua casa e nem mesmo mencionar o fato... Era inacreditável. — Por que não falou nada sobre isto, antes?

— Tive minhas razões.— Que razões? — perguntou Helen, irritada.— Agora não são mais importantes. O que, para mim, é muito mais importante é que

não quero saber que minha mulher viva andando com os homens da aldeia...— O que foi que você disse? — gritou ela. — Você disse homens? Oh, que direito tem

de me jogar isso na cara, sendo que você anda com aquela mulher?— Mas que mulher? — Leon parecia pasmado, e sua raiva aumentou. Helen então

resolveu lhe dizer tudo o que sabia:— Paula Maxwell! Ela lhe falou sobre Robert, não é? Bem, vou lhe contar uma coisa:

quando Robert atendeu ao telefone, ela pensou que fosse você, e falou sobre o piquenique que vocês dois estavam planejando...

— Piquenique? — Leon levantou-se da cadeira, com ar de espanto no rosto. Essa atitude enfureceu ainda mais a mulher, e ela continuou;

— Sim, meu caro, um piquenique... E você não precisa ficar assim, você sabe tudo sobre isso! Ela dizia para que você levasse comida e bebida... porque estavam indo para um lugar deserto. — A última sentença foi pronunciada lentamente e, assim, cada palavra pôde ser sentida com clareza. Mas então ela parou, desnorteada com a atitude de seu marido, que se encontrava agora inclinado no encosto da cadeira, com as mãos nos bolsos. A expressão de seu rosto era uma mistura de espanto e alívio! E para completar o embaraço de Helen, sua voz estava calma, enquanto dizia, suavemente:

— Helen, você acredita nisso tudo que acabou de me dizer? Esta é a razão para... para... Esta é a razão de todo o seu sofrimento?

— Lógico que sim. Todos sabem a respeito de você e de Paula. Robert me contou quando estive com ele. Está querendo negar?

— Paula e eu fomos amigos no passado, mas...— Vocês ainda o são! E quanto a isso me perturbar, me fazer sofrer, você está muito

enganado. Não me importa que você saia com ela, nem com outra qualquer! Não me importa que fique com ela todas as noites, ou mesmo que tenha tido a coragem de lhe dar meu quadro, depois de ter dito que gostara muito dele. — Para seu desgosto, lágrimas quentes lhe encheram os olhos. Mas conseguiu segurá-las enquanto continuava, de maneira selvagem: — Não me importa também que tenha dado cinco mil libras esterlinas!

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— Você... como sabe disso?Ela explicou como isso acontecera, completando, quase desafiadora:— Robert é meu amigo e não me importo com o que você pode estar pensando de mim.

Eu não me importo com coisa alguma. — Virando-se, saiu da sala, esforçando-se para se acalmar enquanto chamava as crianças. Ouviu a voz de seu marido chamando-a, mas ela saiu correndo, chegando quase a colidir com o senhor alto e de cabelos grisalhos que estava entrando no edifício. Ouviu a voz de Leon, mais perto:

— Helen, sua boba...— Leon, muito bom dia... Sobre aquele pedaço de terra que você me preveniu para

comprar...

CAPITULO X

Era de se esperar que Trudy percebesse que algo não ia bem. Logo depois de chegarem ao apartamento, as crianças foram explorá-lo, e a moça se virou ansiosamente para Helen e lhe perguntou o que acontecera.

— Não é nada, Trudy — replicou Helen. Sentia que as lágrimas estavam muito próximas; não devia chorar, refletiu. Devia esconder sua infelicidade a todo custo. Mas Trudy não se deixava enganar facilmente e, antes que Helen percebesse o que estava fazendo, contou tudo à sua amiga. Trudy estava horrorizada; no começo, apenas ficara incrédula, mas gradualmente aceitara a veracidade da história de Helen.

— Ele deu cinco mil libras esterlinas a ela?— Para você ver, ele deve estar loucamente apaixonado.— Então por que não se casou com ela? Você não disse que ele a conheceu antes que

você?— Ela sempre quis se casar com Leon, mas ele não era da espécie de homens que se

casam. É provável que nunca tivesse feito isso se não fosse pelas crianças.— Cinco mil libras esterlinas... — Trudy suspirou. — Não há dúvida de que ela

conseguiu fisgá-lo. — Piscou para a amiga: — E você quis pagar-lhe na mesma moeda, dizendo que tinha um namorado. — Interrompeu-se e ficou pensativa por momentos. — Mas não é isso o que vai melhorar a situação.

— Nada pode melhorar nossa situação. Oh, se pelo menos eu pudesse abandoná-lo, Trudy! Mas nunca deixaria Chippy e Fiona.

— Eles lhe darão felicidade Helen, tenha certeza disso.— Passou um braço sobre os ombros de Helen e sua voz se acentuou levemente,

enquanto dizia: — Com todas as pessoas que existem no mundo, isso tinha que acontecer logo com você! Como se uma vez não fosse suficiente. É inacreditável que isso tenha ocorrido!

— Mas a culpa toda é minha, Trudy. Eu prometi nunca mais amar alguém, nunca mais deixar que outro homem me fizesse sofrer. Sou a única culpada — repetiu, com as lágrimas rolando pelo rosto.

— O que não consigo entender é por que só hoje ele falou sobre Robert. Ele devia estar sabendo há mais tempo.

— Lógico que sabia. Também estou intrigada com isto. Pensando bem, nos últimos tempos ele agia de forma diferente da normal, era cauteloso. Por que ele teria agido assim?

— Não sei do que você está falando.Helen não conseguiu explicar. Mas, rememorando os acontecimentos, convenceu-se de

que Leon fora mais cuidadoso nas últimas semanas. O tempo todo estivera frio para com ela e evitara discussões e até mesmo palavras ásperas entre eles. E não a procurara tampouco... Por isto pensava que ele não mais sentia desejo por ela e que, por essa razão, se mantinha distante. Mas agora não estava tão certa disso. Haveria algum motivo mais grave para ter agido daquela forma, não querendo entrar em conflitos com ela? Embora não tivesse resposta, uma convicção de que um motivo existia cresceu dentro dela. Mas então por que mudara seu

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comportamento tão bruscamente? Pois era certo que, se nesse dia pela manhã ela não tivesse respondido à altura, Leon a teria subjugado, naquela discussão violenta, fazendo-a sentir o peso de sua dominação.

— Ainda estou muito intrigada com a história toda — disse Trudy, mais tarde, quando estavam almoçando. — Leon não me parece um homem que deliberadamente magoaria você dessa maneira.

Uma expressão de amargura surgiu nos lábios de Helen. Dor? Isso era muito pouco para expressar todo o sofrimento que Leon lhe causava. Mas houvera outras ocasiões... Fe-chou os olhos e suas recordações assaltaram-na. Eles tinham sido felizes, e parecia que Leon não queria nada mais, além dela e das crianças. Relembrou seus próprios sentimentos para com o marido, desenvolvendo-se tão lentamente e até contra a sua vontade. Mas com esforço deixara seus temores de lado e lhe dera todo seu amor. Haviam-se unido numa grande paixão, e esse amor a fizera até mesmo duvidar de todos os receios que tinha dos homens; transformara-se em outra mulher. Conhecera a felicidade que jamais havia sonhado existir. E então descobrira que Leon dera seu quadro a Paula Maxwell. Isso fora o começo de tudo...

— Tia Helen, depois do almoço, vamos dar um passeio? — A voz de Chippy penetrou-lhe os pensamentos e ela sorriu para ele.

— Você pode ir, Trudy? — perguntou à amiga. — Sim, adoro passear.E assim, eles saíram a caminhar até a praça da cidade. Pararam para tomar

refrigerantes e sentaram-ae sob um belo caramanchão, coberto de trepadeiras para se protegerem do sol quente.

— Já faz bastante tempo que estamos caminhando — disse Fiona, começando a se desanimar. — Oh, estou tão cansada!

Leon estava sentado no carro, em frente ao apartamento, quando, às quatro horas, eles chegaram. Helen sentiu seu coração bater mais forte, mas conseguiu manter sua voz estável:

— Chegou cedo, Leon. — Ele saíra do carro e estava em pé, olhando-a com uma expressão muito estranha.

— Estou esperando-a há mais ou menos duas horas.— Esperou todo esse tempo, tio Leon? — Fiona pegou a mão dele a colocou de

encontro ao seu rosto.— O senhor veio para nos buscar? — perguntou Chippy. Leon concordou e o garoto

acrescentou: — Tia Helen disse que nós íamos de ônibus.— O que eu e tia Helen dizemos são coisas muito diferentes — murmurou Leon, ainda

observando-a com aquela expressão estranha. — Às vezes, ela tem as idéias mais peculiares, Chippy, as idéias mais peculiares. — Não havia enganos sobre o significado profundo daquelas palavras. Helen fitou seu marido. Sabia que Trudy estava muito interessada em tudo o que acontecera e que prestava muita atenção à cena. Sentia-se embaraçada com tudo aquilo.

— Vamos entrar? — disse Trudy afinal, apontando para as escadas. — Estou morrendo de sede e não sei como vocês se sentem. — Ela foi para a cozinha buscar as bebidas. Os outros ficaram na sala de estar.

— Vocês dois — disse Leon — vão brincar lá fora.— Brincar? — protestou Fiona, relaxando-se numa cadeira. — Estou muito cansada!— Eu também... — Chippy achou outra cadeira e se sentou.— Eles de fato estão cansados — interveio Helen, áspera diante da inflexibilidade que

se insinuava nos lábios de Leon. Lembrou-se do comportamento que tivera pela manhã e um repentino tremor sacudiu-a. Não desejava ficar sozinha com seu marido.

— Quem lhe disse que eu dei seu quadro de presente a alguém? — perguntou ele, permitindo que as crianças ficassem presentes.

— A cabeleireira da aldeia. Não pude acreditar — completou Helen, com os lábios trêmulos.

— Já lhe disse que não deveria dar crédito aos mexericos da aldeia — disse ele, como numa espécie de repreensão. — Você acredita mesmo que eu o daria a alguém, depois de dizer que o queria em meu escritório?

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Helen sacudiu os ombros. Havia algo errado, pois embora a censura continuasse nos olhos de Leon, havia também um inegável brilho de ternura neles.

— Ele não está em seu escritório.— Você se engana, minha querida. Está lá sim.— Mas... mas não estava... — Deu um passo na direção dele. — Se você não o deu de

presente àquela mulher, onde o quadro estava? Pensei que o tivesse dado porque... porque... — Interrompeu-se, consciente de que as crianças ouviam com interesse o que diziam.

— A explicação é muito simples, minha querida — disse ele, ignorando as últimas palavras dela. — E se você tivesse me perguntado logo que ouviu falar sobre isto, teríamos sido poupados de toda esta situação desagradável. — Contou-lhe que Paula havia lhe indicado o homem que se interessara em comprar o moinho velho. Quando ele vira o quadro em seu escritório, quisera comprá-lo, mas Leon se recusara a vendê-lo. — Então o comprador perguntou se eu deixaria que você pintasse outro para ele. Mas sou muito egoísta; quero ter o único feito por minha esposa. No entanto, emprestei-o para que mandasse fazer uma cópia. Paula conhece um artista que faz isso, e foi assim que ela ficou com seu quadro. Agora já está comigo e ocupando um lugar de destaque em meu escritório. — Meneou a cabeça um pouco triste. — Como pôde pensar isso de mim Helen?

— Não sei. — Distraída, ela torcia as màos. — Quando disseram-me que Paula tinha meu quadro, conclui que você lhe dera de presente, pois no dia anterior eu havia visitado seu escritório e ele não estava lá, — Olhou-o um tanto incerta, ainda. —- Você tem uma explicação para isso — suspirou —, mas todas as outras coisas... — Interrompeu-se, movendo a cabeça. Haveria desculpa para as cinco mil libras esterlinas que dera a Paula? Ou seria apenas um empréstimo? Sem saber que uma luz de esperança brilhava em seus olhos, completou, impulsiva: — Você tem explicações para elas?

— Tenho explicação para tudo — respondeu-lhe.— Tudo...? — Fitou-o com os olhos bem abertos. — Tudo, Leon?— Você é uma pequena idiota, Helen — murmurou, terno. — O que devo fazer com

você?— Leon, qual é a explicação? Tenho vivido tão infeliz. Por instantes, Leon não disse

nada; observava Fiona, que, sentada, balançava suas pernas e estava atenta a tudo o que eles diziam. Chippy também prestava muita atenção, e afinal Leon disse: — Vocês dois, vão para o carro.

— Vai nos levar para casa, tio Leon? — Fiona desceu da cadeira e levantou a cabeça. Leon tinha uma expressão singular nos olhos quando respondeu: — Sim, Fiona, vou levá-los para casa. Chippy, vá para o carro. — Observou as duas crianças saindo, e então disse: — Venha, meu amor, é hora de irmos embora.

— Mas, Leon, você não disse que explicaria?— Não aqui, meu bem. — Sorriu-lhe, carinhoso. — Quando chegarmos em casa... e as

crianças estiverem na cama.— Não consigo entender isso! — exclamou Trudy, um momento mais tarde, quando

eles se desculpavam por irem embora tão de repente. — Leon, o que está acontecendo? Vocês não podem ir embora assim e me abandonar aqui sem saber de nada!

— Sem saber de nada? — Ele parecia ausente, seus olhos ainda estavam carinhosamente pousados no rosto de sua esposa.

— Helen estava muito deprimida quando chegou aqui.— Trudy, não... — Helen corou e tentou deter sua amiga.— E agora vocês vão embora sem me contar nada. Leon, tenha pena da curiosidade

feminina!— Vamos para casa desfazer alguns mal-entendidos — confessou ele. — E quanto ao

jantar que estava combinado... bem, você pode nos convidar quando quiser. Estaremos livres todas as noites.

Trudy observou o casal, e sorriu satisfeita.— Farei isso, e iremos comemorar.

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Por um longo tempo, a conversa das crianças era a única coisa ouvida no carro. E foi Helen quem quebrou o siíêncio com o marido:

— Você saiu cedo do escritório. — Era apenas algo a dizer e suas palavras soaram desinteressadas e frias. Leon pareceu não perceber isso.

— Saí muito mais cedo, mas tive negócios muito importantes a tratar.Outro silêncio, e então, timidamente, Helen insistiu:— Leon, você disse que explicaria...— Chippy e Fiona não podem ouvir o que tenho a dizer. — Uma repentina amargura

penetrou sua voz e, surpresa, Helen virou a cabeça. Ao ver a expressão do rosto dele, reclinou-se no banco e não perguntou mais nada.

Estavam na varanda quando Leon lhe contou o que acontecera desde o dia em que a mãe das crianças aparecera, ameaçando tirá-las dele.

— De imediato, percebi que ela não tinha verdadeiro interesse pelos filhos, mesmo mantendo o nome Petrou, o que queria mesmo era dinheiro. Acho que me abri demais e, quando ela percebeu o quanto Chippy e Fiona significam para mim, ficou negociando a quantia; mudava de idéia e queria sempre mais dinheiro. Contudo, decidiu fixá-la em cinco mil libras esterlinas. Mas se ela tivesse persistido, com habilidade, eu teria dado mais. — Estavam encostados no gradil quando Leon parou de falar; ouviu-se apenas o leve murmúrio da brisa acariciando as palmeiras do jardim. Helen perguntou com voz amedrontada:

— Ela não pode tirá-los, Leon, de nenhuma maneira?— Este era meu principal temor, mas eu me recusei a lhe dar qualquer dinheiro se não

concordasse em que fizéssemos uma adoção legal. Acertamos isso hoje. Não, querida, ninguém vai tirá-los de nós. — Puxou-a para perto de si e ela sentiu sua ternura e sua força.

— Se pelo menos você me deixasse partilhar seus problemas... — Helen parou, sentindo-se culpada, e completou, com sincero pesar: — Tenho sido muito boba, Leon, não sei como pode me perdoar.

— Você me perdoou uma vez, lembra-se? — E como Helen não desse resposta, ele continuou: — Não era nada do que você estava pensando, querida. Não lhe falei sobre as crianças porque a amo e não queria fazê-la sofrer. Você acredita nisto, Helen? Tem que acreditar!

— Acredito... Oh, Leon, por que agi de maneira tão tola?— Foi por causa da outra desilusão que você sofreu. Acreditava que todos os homens

fossem iguais; e isso é natural. — Inclinou-se para beijá-la e, depois de algum tempo, disse:— Há apenas mais um ponto a ser esclarecido, bobinha. Você me acusou de fazer

piqueniques com Paula. Mas, como você sabe, ela vende pequenas propriedades e esteve pro-curando uma para tia Chrisoula. Tinha uma lista imensa, e lhe garanto, meu amor, que não foi um piquenique agradável para mim, tentando conseguir alguma coisa pelo preço que minha tia quisesse pagar.

Helen estava com a cabeça baixa, em silêncio. Pouco depois, Leon colocou um dedo sob seu queixo e forçou-a a encontrar seu olhar.

— Não sei como pode me perdoar — repetiu ela, em voz baixa e rouca. — Eu fiquei imaginando coisas o tempo todo.

— Bem, quanto a isto, eu também — admitiu ele. — E estava morrendo de ciúme do seu inglês.

— Ele não é meu inglês... e não precisa ter ciúme.— Você foi nadar com ele e fiquei louco com...— Nadar? Como sabe disso?— Você deixou a sacola de banho no alpendre e Araté recolheu-a na manhã seguinte.

— Ele parou e Helen sentiu-se envergonhada, ao lembrar que desconfiara de tudo e de todos. — Logo que vi a roupa molhada, concluí que você fora tomar banho de mar com Robert, pois você não conhece mais ninguém.

Ela pensou sobre isto e perguntou, intrigada:— Leon, por que não me falou disso quando soube? Quero dizer, por que você só tocou

no assunto hoje de manhã?

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— Reconheço que queria discutir a respeito da tarde que passou com ele, mas não me atrevi a fazer isso. Veja, querida, sabia que a minha cunhada poderia tirar as crianças de mim, e assim você estaria livre para me abandonar, já que eram a única coisa que a prendia aqui.

— Não... não eram, Leon! — ela lhe assegurou. — Nunca o abandonaria, querido; portanto, não precisava ficar preocupado.

— Mas eu acreditava que você o fizesse e estava tomando cuidado, não me atrevendo a contradizê-la nem a fazer você ficar insatisfeita com sua vida, pois tinha muito medo de perdê-la. — Puxou-a para perto de si e ela sentiu o sabor suave dos lábios dele sobre os seus.

A brisa trouxe o aroma dos pinhos que floresciam na colina. Tudo era silêncio e Helen suspirou:

— Você nunca me perderá, Leon; serei sua para sempre.

F I M