anne mather -_prisioneira_da_desonra
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Beth era uma garota quieta e simples e educada quando saiu da Inglaterra e
foi para as ilhas do Caribe acompanhando Willard, seu noivo, um riquíssimo
fazendeiro. Mas bastou um olhar de Raul, jovem e orgulhoso empregado da
fazenda, para que Beth sentisse pela primeira vez em sua vida a estonteante
atração que uma mulher sente por um homem forte e viril. E, quando Raul a
convidou para tomar banho de mar á luz da lua, Beth sabia que esse
encontro lhe traria prazeres proibidos e traçoeiros... Mas, para uma mulher
apaixonada, o amor é mais forte do que tudo!
Prisioneira da desonra
“Rooted in dishounour”
Anne Mather
CAPITULO I
Uma suave rampa estendia-se desde a varanda da casa, até a praia. Tufos de
capim demar cavam a linha divisória com a branca
areia que formava um belo contraste com a luxuriante vegetação, de um
verde bri lhante, que em certos trechos avançava até o mar. Palmeiras
abriam suas folhagens generosas formando um verdadeiro oásis quando o sol
a pino tornava a temperatura insuportável, en quanto os carvalhos do
pântano projetavam sua própria sombra sobre a laguna. Na enseada, o mar
era mais calmo, refreado pelos recifes escarpados, visíveis ao longe, onde as
águas batiam com tal violência que seu fragor era ouvido na casa.
Era de manhã e o ar ainda estava fresco, pois na véspera tinha chovido ao
anoitecer. Mas já o calor do dia começava a manifestar-se através de
espirais de bruma que se levantavam ao redor das árvores. Logo o sol teria
se erguido completamente por trás das montanhas que formavam uma
cordilheira no interior da ilha, banindo com seus raios abrasadores as
tartarugas e os caranguejos para esconderijos mais úmidos e frescos.
A mulher veio descendo a ladeira da casa, impaciente por não ter encontrado
seu morador, e esquadrilhou a laguna para ver se via alguém. Logo divisou
aquela cabeça morena, que tanto procurara, a poucos metros da praia. Ficou
espiando o corpo do homem surgindo das ondas e encaminhando-se para a
areia. Ele estava a certa distância, mas suficientemente perto para que ela
pudesse ver que estava completamente nu, com a água do mar escorrendo
pelo corpo bronzeado e musculoso. Um corpo que demonstrava não ser de
um homem que passava seus dias indolentemente em seu paraíso particular,
mas que trabalhava duramente, tanto quanto os outros, para tornar as
plantações rentáveis. Era alto, moreno e com cabelos castanhos queimados
de sol.
Ela desviou rapidamente o olhar e deu meia-volta quando percebeu que ele a
tinha visto. O homem apressou o passo em sua direção, enrolando
displicentemente uma toalha à volta da cintura. Contornou sua frágil figura
para fitá-la com aqueles olhos verdes e trocistas que caçoavam de seu
embaraço.
— Não devia vir procurar-me sem ser anunciada, irmã Bar bara — observou
impiedosamente. — E não venha me dizer que nunca me viu nadando nu por
aí, pois não vou acreditar.
— Antes de mais nada, não sou sua irmã! — declarou, com aspereza. — Pedi
que viesse até a casa grande ontem à tarde, e você não apareceu, nem deu
satisfação.
Ele levantou os ombros com indiferença. Começou a subir a rampa em
direção a casa e ela foi obrigada a segui-lo.
— Ontem tive um compromisso — disse ele, finalmente. Ao ouvir isso, ela
contraiu os lábios.
— No mínimo, andou visitando aquela mulher... Louise — acusou, e ele
ergueu as negras sobrancelhas.
— Por acaso, esteve me seguindo? — perguntou, docemente, e as faces
pálidas dela pegaram fogo.
— Claro que não — negou Barbara, mas a expressão dele era de quem não
estava acreditando.
Alcançaram a casa, uma espécie de bangalô, com a varanda suspensa por
pilares e sombreada por um telhado de madeira. As acomodações eram boas
e funcionais: uma sala de estar com algumas cadeiras de braço e estantes
para livros, a copa-cozinha, surpreendentemente bem equipada com os mais
mo dernos eletrodomésticos, e o dormitório com uma cama turca e um
guarda-roupa. Havia também um escritório, mas como Barbara pouco visitara
o lugar, nunca o usara.
Largos degraus levavam até a varanda, onde duas poltronas de cana-da-índia
e uma pequena mesa com tampo de vidro formavam uma segunda sala de
estar. Nesse momento, via-se sobre a mesa uma jarra com suco de laranja
gelado, uma fatia de melão, alguns pãezinhos, manteiga e um bule cheio de
café que exalava um delicioso aroma.
Providências de Tomas, supôs Barbara, mentalizando o criado negro que
vivia numa cabana, por trás do bangalô. Dedicara a vida ao patrão desde que
ele o salvara de uma quadrilha de jovens bêbados e desordeiros na
Martinica, há oito anos, e desde então morava na ilha, cuidando de seu
salvador. Barbara tinha considerado aquela história um tanto piegas e de
mau gosto e a presença de Tomas a irritava imensamente.
— Raul... — começou a dizer dando uma parada na varanda, mas o homem à
sua frente fez um gesto de recusa.
— Pelo menos, deixe que eu me vista antes.
Pouco depois Raul apareceu de volta, tendo como único traje um par de
calças jeans. Era uma exibição de masculinidade e ela sentiu-se impelida a
olhar para o medalhão de bronze que pendia sobre seu peito nu, seguro por
um cordão de couro.
— Você chama a isso vestir-se?
— Tenho certeza de que você não veio até aqui para discutir sobre minha
indumentária — respondeu ele secamente, en quanto despejava suco de
laranja no copo.
— Papai está voltando para casa! — ela informou, por fim, querendo mudar de
assunto.
— Essa é uma boa nova. Quando? Hoje? — perguntou Impaciente.
Barbara ficou desconfiada de que ele não estava mais prestando atenção à
sua pessoa. E tinha razão. Ele tinha destruído aquelas emoções a que se
referira e ela sofria a intensa agonia do ciúme, sabendo que Raul preferia
passar suas noites com Louise Pecares, do que em sua companhia. Não que
ele suspeitasse de seus sen timentos... Nunca suspeitara. A não ser que...
Seus pensamentos recolheram-se novamente aos meandros de seu cérebro.
Um dia, talvez, quando ela fosse dona absoluta da ilha... Mas isso levaria
tempo para acontecer. Seu pai era ainda um homem jovem. Apesar do ataque
de coração que sofrera e que o obrigara a passar uma longa temporada na
Inglaterra, estava ainda bem longe da morte. Tanto assim que planejava
casar-se novamente...
Suas mãos tremeram quando ela lembrou-se dos termos do telegrama que
recebera na tarde anterior, em que seu pai con tava -lhe que durante o tempo
que estivera internado num hos pital de Londres, conhecera uma enfermeira
mais jovem do que a própria filha, com a qual envolvera-se
sentimentalmente.
Era incrível, inaceitável. Tinha ficado viúvo por quase vinte anos e agora
estava pensando em casar-se com uma jovem trinta anos mais nova que ele.
Percebeu que Raul estava observando-a e anunciou, sem mais rodeios:
— Papai está pensando em casar-se novamente.
Com essa frase, conseguiu finalmente chamar a atenção sobre sua pessoa.
Os olhos verdes, curiosos, voltaram-se para ela.
— Casar-se? —. Ele fez eco. — E com quem?
— Uma moça — disse Barbara — com menos idade do que eu. A enfermeira
que cuidou dele!
— Deus do céu! — exclamou meio assustado, meio admirado.
— Isso é tudo o que tem a dizer? — retrucou Barbara, com raiva. — Ele deve
estar ficando louco, e você sabe disso. Qual a moça de vinte e quatro anos
que se casaria com ele a não ser pelo dinheiro?
Raul pegou no bule e despejou um pouco de café na xícara.
— Você acha que seu pai não tem nada mais a oferecer a uma mulher, a não
ser dinheiro?
— E o que mais poderia ser? Uma... uma pessoa dessa espécie!
— Por acaso, você a conhece?
— Lógico que não. Como poderia? Ele sacudiu os ombros, enfastiado.
— É que você fala com tanta segurança. Como pode saber se ela não está
apaixonada por seu pai?
— Eles se conhecem há apenas um mês!
— E dai? O tempo não quer dizer nada em matéria de amor. Pode ter havido
uma atração mútua fulminante.
— Não poderia esperar outra coisa de você! — Sua boca fez um trejeito de
desgosto. — Mas não se esqueça que se papai decidir casar-se, toda a
situação aqui poderá mudar, princi palmente se ele tiver um filho.
— Ah, agora estou entendendo! — Sua expressão era maldosa.
— Se quisermos ser realistas, é isso mesmo. — Barbara estava quase
suplicando, quando acrescentou: — Raul, o que nós vamos fazer?
— O que nós vamos fazer? — Terminou de saborear seu café e esticou-se na
poltrona preguiçosamente. — É favor não me envolver em seus projetos. Se o
velho Willie resolver que quer que uma vampira lhe sugue o sangue, não
tenho nada com isso.
— Você se sente superseguro, não é mesmo? E é tão con vencido! Você
cogitou na possibilidade de papai resolver vender a ilha caso... caso a mulher
não queira morar aqui? Sabe bem que no ano passado ele teve uma oferta
tentadora daquela companhia americana. Não se desprezam milhões de
dólares assim tão facilmente.
A boca de Raul contraiu-se mediante aquela hipótese. Era evi dente que ele
nunca levara em consideração essa eventualidade, e Barbara sentiu-se
satisfeita de ter encontrado seu ponto fraco.
— Por que seu pai iria vender agora, se ele sempre condenou esses
consórcios que vivem comprando ilhas para transformá-las no paraíso dos
turistas?
— Já lhe disse, essa mulher deve ter uma maneira de pensar e de viver
tipicamente inglesa. O que lhe importaria esta ilha? E se estiver casando
com papai pelo dinheiro, onde iria gastá-lo neste lugar onde o Judas perdeu
as botas?
Barbara aproximou-se um pouco mais, de forma que seu braço nu roçou-lhe
os pêlos do peito. Ele não reagiu àquele contato e perguntou formalmente:
— Quando eles chegam?
— No começo da semana que vem. Embarcam em Londres na segunda-feira e
fazem um vôo direto para Santa Lúcia. Planejam passar a noite lá, para
chegarem aqui na terça-feira pela manhã.
— Terça de manhã — ele repetiu. — E como está seu pai? Disse-lhe se estava
melhor?
Barbara despejou a notícia com impaciência.
— Ele disse que nunca se sentiu melhor em toda a sua vida. Pode acreditar
nisso? Um homem daquela idade! E depois de somente quatro semanas do
ataque que sofreu?
Raul virou-se de frente para a janela e apoiou os cotovelos no parapeito.
— O amor faz milagres, como dizem por aí — disse ironicamente. Barbara
sentiu-se frustrada.
— Então? O que você acha disso tudo? Raul levantou os ombros, resignado.
— Deixe isso comigo. Vou pensar no assunto com carinho.
Ela olhou-o ansiosamente.
— Verdade?
— Já lhe disse que vou, não disse?
Barbara mordiscou o lábio superior e falou com ar insinuante:
— Você vai jantar lá em casa hoje ã noite?
— Acho que não.
— E por que não? — perguntou, entre furiosa e desapontada. Pelo menos
desta vez, ela esperou que ele aceitasse.
— Penso que seu pai não aprovaria — respondeu brincalhão. — Você jantando
com um simples empregado!
Os lábios de Barbara tremeram incontroladamente.
— Essa é uma desculpa muito esfarrapada e você sabe bem disso.
Os olhos verdes tornaram-se brandos.
— Não fique forçando, irmãzinha. Agora você vai tomar seu rumo, enquanto
eu vou tratar de ganhar dinheiro para comprar o pão de cada dia da rica
donzela.
Ela precipitou-se pelos degraus da escada abaixo, depois virou à direita,
passando por entre as árvores que formavam uma barreira entre a casa
grande e o refúgio de Raul, sacudindo a saia estampada de vermelho.
O sol já estava bem quente quando Raul subiu no empoeirado jipe que era
seu único meio de transporte. A ilha, conhecida pelo pitoresco nome de Sans
Souci, tinha poucos carros, pois a maioria dos habitantes contentava-se com
o lombo das mulas, as charretes, bicicletas ou simplesmente com os pés.
Mas havia quinze milhas diárias a percorrer e Raul precisava de um veí culo
motorizado para supervisionar os canaviais. Ligou o motor e dirigiu-se para a
estrada de terra que levava até o centro.
As plantações de Willie Petrie estendiam-se de um lado ao outro da ilha.
Desde o princípio, as terras foram destinadas ao cultivo de cana-de-açúcar, e
para cada homem adulto que trabalhasse como lavrador, era doado meio
acre de terreno para que fizesse sua própria lavoura. Apesar de Raul saber
que a maior parte dessas terras doadas eram malbaratadas e deixadas
improdutivas, dava prazer a Petrie considerar-se um patrão generoso e
magnânimo.
As condições de vida na ilha não eram das melhores, mas pelo menos
contavam com um bom hospital e uma escola pri mária para as crianças.
Excetuando-se os Petrie e o próprio Raul, só havia outra família de brancos
que morava na ilha: Jacques Marin, que administrava o hospital, e sua
mulher Susi, que fazia o papel de assistente do marido. Tinham dois filhos:
um menino, Claude, com catorze anos, que estudava num colégio interno da
Martinica; e uma menina, Anette, com apenas seis anos, que era cuidada por
uma moça americana chamada Diane Fawcett. O restante da população era
consti tuída de uma mistura de mulatos, negros, alguns chineses e indianos,
com exceção de Isabelle Signy, diretora da escola, e que ninguém se atrevia
a classificar etnologicamente.
O engenho dos Petrie ficava nas cercanias da vila. Raul esta cionou o jipe
perto dos armazéns onde se processava o corte da cana, e caminhou até o
pequeno escritório, onde seu segundo homem, André Pecares, estava
atarefado até os olhos, às voltas com uma pilha de faturas. Este levantou a
cabeça e sorriu quando percebeu a presença de Raul, que retribuiu sua
saudação e foi sentar-se numa poltrona de couro, por trás da escrivaninha.
André terminou de conferir as faturas e levantou-se, indo em direção a um
fogareiro a gás onde havia um bule de café. Era um homem de trinta e
poucos anos, apenas cinco anos mais velho que Raul. Tal qual seu
empregador, tinha a pele bem queimada. Apesar disso, podia passar por um
homem branco e Raul já tinha pesquisado várias vezes qual seria o ancestral
dos Petrie, res ponsável por esse ramo tão peculiar da família.
— Algo de errado? — André fez a pergunta enquanto trazia até a mesa do
chefe um copinho de plástico com café, que Raul agradeceu.
— Barbara veio ver-me esta manhã, André.
Os olhos negros de André abaixaram-se compreensivamente.
— Ah... — disse ele. — Ela não está nada satisfeita com sua ligação com
Louise.
— Não diga! — exclamou Raul, irritado. — E você acha que estou ligando
muito para o que Barbara pensa? Se eu decidir passar todo meu tempo em
companhia de Louise, ela não tem nada com isso!
André olhou-o contrafeito.
— É que eu pensei...
— Eu sei. — A boca de Raul apertou-se numa linha dura e reta. — Desculpe
ter caído em cima de você desse jeito, mas a história não tem nada a ver
com Louise. É o Willard que está voltando para casa.
— Entendo. Ele já sarou?
— Pode-se até dizer que sarou bem demais.
— Que quer dizer com isso?
— Ele vem trazendo sua enfermeira, nem mais nem menos. Pelo que me
contou Barbara, eles pretendem casar-se.
— Não me diga! — André estava chocado. — Mas o sr. Petrie, ele deve estar
com... com...
— Cinquenta e seis anos, pelo que me consta. E essa moça, parece que só
tem vinte e quatro.
André até engasgou.
— Mas...
Interrompeu-se, mas Raul sabia bem o que ele queria dizer.
— Eu sei. Por que é que uma jovem de vinte e quatro anos desejaria casar-se
com um coroa de cinquenta e seis? A teoria de Barbara é que, na verdadeira
acepção da palavra, a moça só está atrás do dinheiro dele. Se assim for, será
que essa moça se sentiria feliz aqui em Sans Souci, sem nenhum dos
divertimentos e distrações da alta sociedade, que por certo ela ambiciona?
— Você quer dizer que talvez eles fossem morar noutro lugar? — aventurou-
se a dizer André precavidamente. — Até que seria uma boa solução, Raul.
Nós não precisamos de Petrie para dirigir a ilha. Você saiu-se muito bem
enquanto ele estava doente e sabe, tanto quanto eu, que a participação do
patrão nesses últimos anos tem deixado muito a desejar.
Raul deu um meio-sorriso.
— Bem, pode até ser. Mas a questão agora não é se eu ou ele vai dirigir a
ilha. Barbara está aflita por outro motivo. Ela teme que Willard possa ser
persuadido a vender a ilha.
— Vender? — André empalideceu. — Mas no ano passado...
— No ano passado ele não estava pensando em casar-se. Quem pode garantir
que a noiva não venha a persuadi-lo?
André tornou a voltar para a sua mesa e deixou-se cair na cadeira derreado.
— Você acha que ele seria capaz disso?
— Não sei. — Raul tomou mais um gole de café. — Não sei mesmo.
— Mas, casar-se! Na idade dele! — André voltou ao assunto inicial. — Quem é
ela? Qual é seu nome?
— Sei tanto quanto você. A única coisa que posso dizer-lhe é que a moça
tratou de Willard no hospital de Londres. Isso é tudo.
André soltou um suspiro.
— Não vamos sonhar com quimeras, André. Você sabe tanto quanto eu que,
presentemente, o cultivo da cana-de-açúcar é um negócio precário. Além do
mais, os homens jovens de agora estão propensos a arrumar empregos em
Trinidad e Martinica. O fato de haver uma onda de desemprego por lá, como
aliás no restante do mundo, pouco pesa. Eles vão em busca de maior
sofisticação e dentro em breve não teremos mais braços para as colheitas.
O subconsciente de Raul começou a enveredar pelo labirinto das
consequências que o casamento de Willard poderia trazer para suas próprias
vidas. Que Barbara vá para o inferno, pen sou com selvageria. Por que ela
colocou tantas dúvidas em sua cabeça? Queria, talvez, obrigá-lo a abandonar
o emprego? Wil lard logo arranjaria um substituto. Talvez o próprio André. Ou
Samuel, o gigantesco capataz negro que era capaz de fazer sozinho o
trabalho de doze homens. Ou ela pretendia que ele, Raul, seduzisse a moça,
entregando-a de volta ao noivo, cons purcada e ultrajada, para a destruição
de ambos?
Abriu a gaveta da escrivaninha e tirou um maço de charutos. Acendeu um e
deu uma longa tragada. O fumo aromático relaxou seus nervos tensos.
Talvez eles estivessem sendo inutilmente pes simistas, colocando a carroça
adiante dos bois. Barbara tinha ciúme de qualquer pessoa que pudesse
balançar sua posição. Ha via sido a dona da casa grande por tanto tempo!
Ninguém que chegasse para usurpar sua autoridade seria bem-vindo.
CAPITULO II
O piloto anunciara que estava chovendo em Castries e o avião começou a
descer furando as pesadas nuvens negras até Beth poder divisar uma praia
de areia tão branca e imaculada que mal podia acreditar em seus olhos. Pelo
restante da tarde, ficaram sobrevoando um oceano cor turquesa, bordado por
um arquipélago de ilhas tão pequenas, que custava convencer-se de que ali
morava gente. Pouco depois, eles se viram voando sobre Santa Lúcia e,
apesar das nuvens, a cor e a beleza da ilha eram visíveis e eston teantes. A
praia estava coberta por uma ressaca de espuma e ao longe, mais para a
esquerda, via-se a pista de aterrissagem do Aeroporto Internacional de Vigie.
— Essa é a praia de Vigie — disse Willard, debruçando-se sobre Beth e
apontando uma fileira de hotéis luxuosos que beiravam o mar. — E lá adiante
são os picos gêmeos: Gros Piton e Petit Piton, que constituem os limites da
ilha.
— Piton — repetiu Beth, fazendo um esforço de memória. — Isso quer dizer
"pico", não é? Temo que meu francês não esteja tão bom quanto
antigamente.
Willard passou o braço ao redor de seus ombros.
— Grande pico e pequeno pico — confirmou, sorrindo-lhe, e ela desviou o
olhar, fixando-o novamente na paisagem que se via da janela do avião.
O vôo fora demorado, mas Beth não estava cansada. Todavia, achou que
Willard estava começando a mostrar sinais de aba timento, mas isso não era
de estranhar, diante das circuns tâncias. Era o dia mais tumultuado e
cansativo que tinha en frentado, desde sua saída do hospital, e a excitação
do retorno ao lar estava começando a minar-lhe as energias.
Felizmente a preocupação com Willard tinha afastado de Beth sua própria
ansiedade por ter aceitado acompanhá-lo nes sa viagem incrível e até estava
contente por passar a noite num hotel em Castries, antes de chegarem em
Sans Souci.
Sans Souci, o nome a intrigava e, apesar de suas inibições, não pôde refrear
um frémito pela expectativa de passar o resto de sua vida nessa região do
mundo que sempre a atraíra e fascinara.
Olhou para a mão de Willard que repousava em seu ombro e suspirou. Faria
tudo para torná-lo feliz, propôs a si mesma, com determinação, ignorando os
olhares de curiosidade que o comis sário de bordo da primeira classe vinha
lançando sobre ela, du rante todo o vôo. Se estranhara o relacionamento
entre um homem evidentemente maduro e uma mulher tão jovem, problema
dele!
As formalidades do desembarque logo terminaram e um mo torista levou-os
numa limusine até a capital da ilha. Passaram pela praia e Beth se deliciou
com a vista esplêndida das águas mutantes que a cada momento variava de
tonalidade, passando desde o verde-escuro até o opalino translúcido. Era
tudo tão diferente e exótico! Desviou o olhar para as verdes colinas cobertas
de coqueiros. Willard esparramou-se sobre o assento indolentemente,
contentando-se em testemunhar o efeito que tudo aquilo exercia sobre ela.
Para ele, era suficiente saber que Beth estava ali, a seu lado, e os olhares de
admiração que ela atraía, quando o carro diminuía a velocidade, faziam com
que sentisse orgulho por estar acompanhado da mais bela mu lher das
redondezas.
Para Beth, essa inesperada companhia trazia um senso de confiança e
tranquilidade, e era um verdadeiro alívio sentir-se livre do assédio dos
homens de sua própria idade. Não era do tipo de encorajar ninguém com
flertes e olhares provocantes. Apenas aceitara o fato de que mulheres loiras
platinadas, de seu porte e altura, atraíam inevitavelmente a atenção de
todos os jovens disponíveis, e às vezes não disponíveis, ao seu redor. Só que
já estava começando a ficar enojada com tantas ten tativas de avanços e
consequentes repúdios. Pensava até estar ficando frígida, quando Willard
apareceu em cena. Seu charme e maneiras experientes e desenvoltas a
tinham desarmado e, pela primeira vez na vida, sentiu-se deveras mimada e
querida, e, mais do que isso, respeitada.
Naturalmente, a direção do hospital não aprovara sua atitude. As
enfermeiras, principalmente as mais categorizadas, eram acon selhadas a
não se deixarem envolver pelos pacientes e seus pri meiros entendimentos
com Wiliard foram supervisionados pelo olho clínico do médico que tratava
dele. De nada adiantara que o dr. Mike Compton tivesse sido um dos
apaixonados de Beth, pois Willard tornou-se mais do que um desafio para a
direção do hospital. Tão logo pôde, transferiu-se do hospital para uma clínica
particular, levando Beth consigo, na qualidade de enfermeira par ticular.
Todos os colegas a tinham condenado, dizendo-lhe que era uma tola
inconsequente e que se arrependeria de ter deixado seu posto. E que quando
ele voltasse para sua casa, nas índias Ocidentais, ela ia encontrar
dificuldades para arrumar outro cargo semelhante. Mas alguma coisa de
mais forte a tinha impelido, e agora ela sabia que era amor o que sentia por
aquele homem que estava a seu lado, prestes a tornar-se seu marido.
Quando chegaram ao hotel que dava de frente para a baía, Beth insistiu para
que Willard fosse direto para a cama.
— Foi um dia muito longo e exaustivo — afirmou, quando ele começou a
protestar. — Pela diferença de fusos horários, pode ser que aqui ainda seja
cedo para dormir, mas na Ingla terra já seria muito tarde e você precisa
poupar suas forças.
Willard olhou-a contrariado.
— Não sou nenhuma criança, Beth.
Apesar do protesto, começou a despir-se, enquanto Beth des fazia as malas
no quarto ao lado e separava os remédios que deveria ministrar-lhe.
Quando ela voltou, Willard já estava de pijama, coberto com os lençóis até o
queixo. Era um homem de constituição forte e grande, mas os sofrimentos
das últimas semanas tinham acabado com suas carnes e Beth considerou
que ele parecia bem mais magro do que quando chegara ao hospital. Apesar
disso, era ainda um belo homem, com sua pele morena e cabelos
abundantes, começando a ficar grisalhos.
Willard olhou-a com ar resignado.
— Nossa vida vai ser sempre assim, Beth? Você me pondo na cama, em vez
de ser ao contrário?
Beth sorriu, tirando duas drágeas de um vidrinho e pas sando-lhe um copo
com água.
— Você sabe que só o tempo e o repouso podem curá-lo definitivamente —
disse-lhe com objetividade, enquanto ele en golia as drágeas. — Bem, vai
precisar de algo mais?
— Só de você — respondeu afetuosamente, erguendo-se um pouco e
puxando-a para junto dele na cama. — Hummmm... que cheirinho gostoso!
— É o perfume que você comprou para mim, na loja Harrods — murmurou ela,
sentindo a pressão de seus dedos possessivos.
Não havia dúvidas de que suas forças estavam voltando, ela observou, muito
admirada de que aquela constatação a fizesse sentir tão vulnerável.
A lagosta dourada na manteiga, servida em seu ninho de alface era
realmente apetitosa. Mas ela estava elétrica demais, por causa da novidade
do vôo, das paisagens inéditas e dos sons que chegavam até o terraço da
suíte, e resolveu, em lugar de jantar bem, explorar um pouco o lugar. Depois
de comer uma porção mínima da refeição, preferiu ficar debruçada no
terraço, protegida pelas trevas de veludo, ouvindo apenas os sons
desencontrados dos arredores.
Já era tarde quando Beth recolheu-se ao leito, mas assim mesmo não pôde
conciliar o sono. Apesar dos sons externos já terem emudecido, sua cabeça
continuava a vibrar com a re cordação das últimas semanas febris que
passara. Era quase inacreditável pensar que há apenas oito semanas tinha
conhe cido Willard. Parecia-lhe que o conhecia há séculos e talvez isso
fizesse parte de seu charme. Desde o começo, sentira-se completamente à
vontade com ele, mas mesmo assim tivera dúvidas pela instantânea atração
que demonstrara sentir por ela. É comum que os pacientes se apaixonem por
suas enfer meiras, principalmente quando estão seriamente doentes e, a
princípio, ela não o levara a sério. Após ter passado dois dias na Unidade de
Terapia Intensiva do hospital, Willard havia sido entregue aos seus cuidados.
Contara-lhe quem era, onde vivia, enfim, tudo sobre a ilha, e ela ouvira, com
a fascinação que as pessoas que levam uma vida metódica e comum tem por
tudo o que é desconhecido e exótico. O fato de Beth já se ter sentido atraída
por aquela região, de longa data, só serviu para aumentar seu entusiasmo e
ela desconfiou de que Willard valeu-se de sua reação para despertar-lhe
ainda mais interesse. Aos poucos, começaram a conversar sobre outras
coisas e outros lugares. Beth explicou-lhe que sempre tivera vocação para
enfermeira e contou-lhe o quanto ela e a mãe tinham batalhado para pagar
seus estudos, após a morte do pai, vítima de um acidente de barco, quando
ela tinha apenas quatro anos de idade. Mas se lembrava dele, e após a morte
da mãe, ocorrida há dois anos, não tinha mais ninguém no mundo.
— E quanto a casamento? — perguntou-lhe Willard. — Não acredito que não
tenham aparecido muitos pretendentes.
— Nunca pensei seriamente em casamento — respondera com sinceridade.
— Gosto de meu trabalho e já presenciei o fracasso de muitos casais amigos
meus para ter coragem de enfrentar o risco de cair no mesmo erro.
— Você acredita que hoje em dia os casamentos não possam dar certo? Com
todas as pressões a que vocês, os jovens, estão sujeitos? — fez a pergunta e
deu um sorrisinho quase paternal.
— Acho que pode, mas, depende das circunstâncias.
— E que circunstâncias são essas? Beth hesitou.
— Bem... desde que o casamento não se limite a uma simples legalização do
sexo. — Ela começou a emitir sua opinião e enrubesceu. — Desculpe, mas eu
penso assim.
Naquele dia Beth percebeu que o relacionamento dos dois tinha entrado
numa nova fase. Willard estava tentando conhe cer-lhe o íntimo, procurava
testá-la. Mas sempre asseguran do-se de que, de certa forma, ambos
poderiam estar no mesmo barco. Só depois disso é que o fazendeiro
perguntou-lhe que tal a idéia de trabalhar para ele como enfermeira
particular e se ela aceitaria acompanhá-lo de volta a Sans Souci.
De início, ela recusou. Tinha conquistado uma posição invejável no St.
Edmunds Hospital e não queria abrir mão de seu emprego. Mas, em seguida,
aconteceram problemas com Mike Compton e quando ela deu por si já tinha
pedido a demissão.
A partir daí sua vida mudou de forma bem mais drástica do que tinha
imaginado. Uma semana após a demissão, Willard a pediu em casamento.
A mútua atração que existia entre eles não era uma coisa passageira, Willard
sugeriu que só oficializassem o noivado quando chegassem a Sans Souci,
claro, desde que ela fosse junto. Assim teria mais tempo para pensar, mais
tempo para conhecê-lo melhor e para verificar se conseguiria adaptar-se a
viver num lugar tão diferente do que estava acostumada. Foi nesse ponto dos
acontecimentos que Beth teve certeza de que o amava, que não havia sido
um erro sair do St. Edmunds e que, após um curto noivado, estaria disposta a
casar-se, pois ele demonstrara preocupar-se mais com ela do que com ele
próprio.
Rolou na cama e abraçou-se ao travesseiro. Qual seria sua reação, quando
descobrisse que ela ainda era virgem? A enfer midade de Willard tinha
impedido, até o momento, qualquer in timidade maior, mas por certo ele
deveria estar pensando que ela já tivera algum caso no passado. Mike
Compton, por exemplo, tinha se comportado como se fosse seu dono e
proprietário. Além disso, hoje em dia, supunha-se que mulheres com sua
aparência fossem experientes e vividas. Mas ela não era.
Suspirou, e tornou a rolar na cama, sentindo que seus ca belos estavam
molhados de suor. Se não dormisse logo, no dia seguinte estaria cansada e
com olheiras e precisaria estar apre sentável para enfrentar a filha de
Willard.
A filha dele!
Fez uma careta no escuro. Barbara! Como reagiria ela perante a idéia de seu
pai casar-se com alguém quatro anos mais moça do que ela própria?
Duvidava muito de que fosse gostar disso. Tentando ser justa, Beth admitiu
que, se estivesse no lugar dela, também não iria gostar muito da idéia. No
fundo, não era nada agradável alguém pensar que o próprio pai sente
vontade de se casar de novo, principalmente com uma moça que poderia ser
sua filha. Mas por outro lado, argumentou com equidade, só por que um
homem ficou viúvo, isso não quer dizer que seja obrigado a ficar sozinho pelo
resto da vida. Possivelmente, podia até querer ter mais filhos e Beth não via
nada de mais nisso. Claro que não imediatamente. Talvez mais tarde.
Deu um novo suspiro. Haveria um monte de problemas a enfrentar, alguns
imprevistos, pois ela não conhecia bem toda a situação. Sabia alguma coisa
sobre a ilha, sobre as plantações de cana, que eram a principal fonte de
renda, e sobre as culturas de bananas que não necessitavam de muito trato.
Sabia tam bém que Wiliard tinha dificuldade em contratar mão-de-obra em
virtude da inflação galopante que, aliás, atingia o mundo inteiro. Mas Willard
tinha lhe dito que havia doado boa parte das terras aos trabalhadores para
estimulá-los a ficarem, e Beth pensou com carinho que esta atitude, tão
generosa, era bem típica dele. Com exceção desses detalhes impessoais,
pouco tinha contado sobre sua vida, como por exemplo, sobre o seu
relacionamento com a filha. Aparentemente, viviam numa casa grande, com
muito terreno à volta, mas, pela carência de empregados, Barbara era
obrigada a fazer serviços domésticos. Isso fez Beth pensar como ficaria a
situação caso eles se casassem. Será que a filha admitiria que uma estranha
dirigisse a casa?
Afastou os lençóis e puxou a camisola para baixo, ajeitando-a melhor. Estava
sendo pessimista sem necessidade. Nem sequer conhecia a moça e já
estava supondo que ela lhe seria hostil. Ridículo! Barbara poderia muito bem
aceitar outra mulher na casa. Mas esta última suposição não a convenceu
muito.
Sans Souci apareceu no meio do mar, com suas graciosas curvas brancas e
seu interior muito verde, colorido pela densa vegetação. Só as vertentes das
colinas, que se viam ao longe, apresentavam um sombreado cor de púrpura,
sob a intensa luz do meio-dia. O restante da ilha parecia submerso numa
bruma de calor úmido. Em alguns lugares, as palmeiras che gavam até a
beira do mar. A areia cor de coral era banhada por constantes ondas de
espuma.
Quando se aproximaram do cais, a atenção de Beth foi des pertada pelo
colorido porto de Ste. Germaine, onde iates e barcos de pesca se
atravancavam ao longo do porto. No cais havia um grande movimento de
gente que perambulava pelas barracas do mercado, além do qual divisavam-
se ruelas, com suas casinhas de estuque, pintadas em todas as nuances de
tons pastel. Primaveras, rosas e violetas pendiam por todas as partes,
enquanto que os hibiscos eram cultivados em potes e vasos de terracota
alinhados nos balcões.
A lancha a motor que os trouxera de Santa Lúcia acostou ao cais, e Willard
segurou o braço de Beth.
— Que tal? Aprovado? — perguntou, como se fosse um desafio.
— Se aprovo? Não só aprovo, querido, como já estou amando este lugar.
— Querido... — ele repetiu, satisfeito, escorregando a mão para a delgada
cintura de Beth.
O piloto da lancha sorriu-lhes e avisou-os que já podiam desembarcar.
Beth resolvera viajar de calças compridas. Era bem mais prático para pular
dentro e fora de lanchas, naquele tipo de viagem. Vestia também uma blusa
de malha de algodão à ma rinheira e protegera sua longa cabeleira platinada
com um lenço de seda.
O desembarque do casal foi tumultuado pois suscitou o in teresse de uma
porção de gente que veio cumprimentar Willard, perguntando-lhe pela sua
saúde. Parecia que todos sabiam de sua doença e Beth sentiu-se até
comovida por aquelas demons trações de interesse. Por sua vez, Beth foi
alvo da curiosidade geral e sentiu-se examinada dos pés à cabeça.
Percebendo que Willard começava a mostrar sinais de can saço, procurou
uma forma de sair dali o mais rápido possível, antes que ele começasse com
as apresentações. Viu um carro estacionado junto ao cais, com um homem
encostado que ace nava com o boné. Era alto, bem proporcionado e muito
moreno, vestindo calças de algodão rústico e quase nada mais. A pri meira
vista, pensou que se tratasse de um mulato, mas quando ele se moveu e
enfiou o boné novamente na cabeça, pôde ave riguar que era apenas um
moreno fortemente bronzeado. Es tava olhando para ela com uma
curiosidade insolente e Beth pensou que em todas as partes do mundo se
encontram homens como aquele, que encaram as pessoas atrevidamente.
Possi velmente, estaria pensando que ela se interessara por ele, con cluiu,
irritada, e resolveu desviar o olhar daquela figura deci didamente arrogante.
Pareceu-lhe ser um homem cruel e ficou aborrecida por ele ter estragado a
boa impressão que tivera da recepção espontânea e calorosa do pessoal da
ilha.
Onde estaria Barbara? Com toda a certeza não deixaria de vir ao encontro do
pai, após dois meses de ausência e tendo estado tão gravemente doente. Se
não estivesse por ali, já era um mau sinal para o futuro relacionamento.
— Desculpe-me...
Era o homem do carro quem falava. Parara defronte a Beth, numa atitude
displicente, com os dois polegares enfiados ao cinto e com todo o peso
apoiado num dos pés calçados com botas. Assim de perto, ela pôde ver a
barba cerrada que lhe sombreava o queixo, os maxilares de linhas fortes, e o
cabelo negro e reluzente que apontava por baixo do boné. Os olhos
semicerrados eram de um verde pouco comum em pessoas tão morenas,
encimados por espessas pestanas. Tudo nele era agressivamente masculino.
Beth olhou para Willard hesitante, mas este parecia não ter se apercebido da
presença do homem e então resolveu que caberia a ela fazê-lo entender que
estava perdendo seu tempo. Já tinha encontrado tipos semelhantes que
pensam que, ao primeiro olhar, todas as mulheres caem de quatro a seus
pés.
— Acho que está cometendo um engano — disse ela calma mente. — Se não
se importa... — E ia virando-lhe as costas.
— Importo-me, sim — retrucou ele enfastiado, e Beth ava liou-lhe a largura do
peito e a altura, desta vez contente por ela medir um metro e setenta e cinco
de altura.
— Deixe-me em paz — falou ela de forma pouco delicada, com um sorrisinho
de mofa.
Um ar de zombaria substituiu a expressão insolente do homem.
— Se prefere assim — concordou ele, girando sobre os cal canhares e
voltando para o carro empoeirado.
— Raul! —Um grito de Willard o fez parar no meio do caminho. Beth olhou
para o noivo embasbacada e ele desculpou-se
por ter se distraído com a recepção dos amigos, e em seguida acenou para o
homem, repetindo:
— Raul!
Para consternação de Beth, os dois homens se abraçaram efusivamente.
Por sobre o ombro de Willard, dois olhos verdes encontraram os dela e Beth
sentiu vontade de revidar a provocação que aqueles olhos exprimiam. Teve
que esperar pacientemente até que o noivo fizesse as apresentações.
Depois que o homem assegurou-se que Willard estava na mais perfeita forma,
o que não era bem verdade, este dirigiu-se a Beth:
— Minha querida, deixe que lhe apresente Raul Valerian, meu braço direito.
Raul, esta é a srta. Elizabeth Rivers, minha noiva.
Beth forçou um sorriso e estendeu a mão.
— Como vai sr. Valerian? — disse polidamente, e uns dedos longos e firmes
apertaram os dela por um breve momento.
Suas mãos eram fortes e calosas, mas as unhas eram limpas e bem
aparadas.
— Muito prazer, srta. Rivers — ele retrucou, com uma ligeira entonação de
ironia, só perceptível para ela.
Em seguida, indicou o carro empoeirado.
Willard entrou no veículo com evidente alívio, mas Beth ficou tolhida quando
Raul Valerian passou por ela para começar a acomodar a bagagem. Dois
homens negros, que tinham vindo desejar as boas-vindas, estavam
batalhando para carregar to das as malas para perto do carro, e Raul correu
em seu auxílio, pegando uma mala de cada um, e falando-lhes
amistosamente.
Beth esperou mais um pouco para certificar-se de que não necessitavam de
sua ajuda e também foi proteger-se sob a sombra acolhedora do carro.
Willard estava acomodado no banco de trás do veículo que, apesar de
empoeirado, era muito bem conservado interiormen te. Quando ela entrou,
percebeu que o noivo estava extrema mente pálido e com a fisionomia
desfeita.
— Foi cansativo demais para as suas condições — ela de clarou quase
profissionalmente. — Quando chegar em casa, vai ter que repousar um
pouco. Tem que me prometer.
Willard espichou-se para trás.
— Só espero que não se transforme numa dessas mulheres rabugentas, Beth
— exclamou e quando viu que ela se res sentira da observação, acrescentou,
justificando-se: — Descul pe, querida, mas é que eles são minha gente, meu
povo. Vieram cumprimentar-me e eu não podia ignorá-los.
— Não era minha intenção que o fizesse.
— Eu sei, eu sei... Você só estava pensando no meu bem-estar. — Sorriu-lhe
com ternura. — Só detesto que me faça sentir um inútil.
Beth olhou para fora da janela e depois para a bagagem que tinha sido
empilhada no porta-malas traseiro da perua. Raul agradeceu aos dois
homens pela ajuda, fechou o porta-malas e foi postar-se junto ao volante.
Ele era forte, mas não era magro, e os olhos treinados de Beth notaram que a
musculatura de suas costas se evidenciava por entre as omoplatas, a cada
movimento que fazia.
Bem que poderia ter vestido uma camisa, pensou critica mente, apesar de a
blusa que ela própria vestia ser tão aderente que teria exigido um sutiã para
disfarçar as formas do busto.
A perua foi se afastando do cais sob os acenos de adeus dos que ficaram, e
Raul informou:
— Barbara pediu-me para vir buscá-lo. Ela não estava se sentindo bem e eu
precisava vir mesmo até o centro...
— Então você se ofereceu como voluntário — completou Willard
jocosamente.
— Acertou.
— E Barbara, o que é que ela tem? Fez-se um breve silêncio e Raul
esclareceu:
— Uma de suas famosas enxaquecas, penso eu. Não sei bem. Ela mandou o
recado pela Maria.
Willard não pareceu estranhar, mas os nervos de Beth fi caram tensos.
Barbara poderia estar com dor de cabeça e até com uma enxaqueca de
verdade, mas nada justificava aquele descaso. Afinal de contas o pai
estivera ausente por dois meses. Se estivesse no lugar dela, precisaria
sentir-se seriamente mal para deixar de vir ao seu encontro.
Willard debruçou-se sobre o assento da frente.
— E como vai o trabalho, Raul? Conseguiu a nova lâmina para o trator? E a
roda dentada, foi substituída? E como vai o braço do Philippe?
— Não acha melhor maneirar um pouco? Em vez de começar a se preocupar
com coisas que já foram resolvidas há semanas? — interrompeu Raul, com
tolerância, olhando em torno até encontrar os olhos de Beth. — O que é que
sua... bem... sua enfermeira diz disso? Será que aprova você entrar nesse
ritmo logo no primeiro minuto de sua chegada?
Beth imaginou que ele ouvira as recomendações que fizera a Willard
enquanto esperavam pela bagagem, e seus lábios tremeram de raiva.
Willard pareceu não perceber sua indignação e enviando-lhe um olhar que
era um pedido de desculpas, respondeu:
— Beth é, antes de mais nada, minha noiva, e em segundo lugar, minha
enfermeira. Ela está bem a par do que sinto, não é, querida?
Ela deu um sorriso forçado.
— E você também sabe o que eu sinto, querido — contestou Beth,
provocando um gostoso carinho em Willard.
Apesar disso, ele continuou a fazer pergunta sobre pergunta e ela desviou a
atenção pelos lugares por onde estavam pas sando, tentando disfarçar o que
estava realmente sentindo.
Subiram por ladeiras e vielas da cidade, buzinando estri dentemente.
Crianças corriam descuidadas à frente do carro, mas saíam miraculosamente
ilesas, graças à habilidade do mo torista, teve que reconhecer Beth.
Ao longe, já fora do centro, divisavam-se os lindos campos cobertos de cana.
Willard fez uma pausa na conversação com Raul, para apon tar-lhe as
lavouras, mas ela achou mais atraente a vista da orla marítima que aparecia
na janela oposta.
A estradinha começou a descer, ladeada por ciprestes e acácias que se
entremeavam com palmeiras, tão abundantes na ilha. O cheiro dos pântanos
não era lá muito agradável e nem os trancos que dava a perua pela estrada
pavimentada de cascalhos. Ainda bem que os amortecedores pareciam ser
resistentes.
Agora estavam chegando perto do mar. Beth respirou fundo, inalando o
aroma salino que invadia o ar. Iria ser feliz ali, pensou com determinação, e
como que para confirmar sua con vicção, Willard voltou à sua posição no
assento, tomou-lhe a mão e disse carinhosamente:
— Estamos quase chegando ern casa, querida.
CAPITULO III
Beth não sabia seja tinham chegado ao destino, pois as árvores
atrapalhavam a visão. Só quando o carro entrou por entre dois pilares de
pedra que ladeavam um amplo portão e fez uma curva, por uma alameda de
pedregulhos, é que ela viu a casa. Ficou perplexa. A "casa grande", como era
conhecida a propriedade, era uma construção remanescente de eras
passadas, toda branca, com a fachada exibindo imponentes colunas dóricas
que sustentavam uma lon ga sacada. A parte central tinha portas altas de
duas folhas que, no momento, estavam escancaradas, e janelas de linhas
graciosas, simetricamente distribuídas de cada lado da porta. No primeiro
andar repetia-se a mesma linha arquitetônica. Havia ainda um segundo
andar, com janelas menores, envi draçadas. Além do corpo central, abriam-
se lateralmente mais duas alas, possivelmente construídas posteriormente.
Apesar de os canteiros estarem invadidos por ervas daninhas e as alamedas
um tanto esburacadas, Beth ficou maravilhada.
Willard exultava com sua reação.
— Bem-vinda ao seu novo lar, querida.
Sem se importar que Raul pudesse vê-los pelo espelho re trovisor, ele
inclinou-se para junto dela e deu-lhe um caloroso beijo na boca. Raul levou o
carro até a escadaria de largos e baixos degraus que levava ao pórtico, e
Beth apressou-se em abrir a porta do carro para sair. Quando saltou, viu uma
nesga do oceano por entre as árvores, e um arrepio de excitação percorreu
todo seu corpo. Sua vontade era descer imediata mente até a praia de areia
coralina, afundar nela seus pés descalços e entrar por aquele mar adentro,
refrescando o corpo suado. Mas, por enquanto, este prazer tinha que esperar,
pois Willard estava precisando de sua atenção e cuidados.
Raul ajudou o patrão a descer do carro e deu a volta para junto do porta-
malas traseiro para começar a descarregar a bagagem, quando um preto
velho começou a descer os degraus da escada com a fisionomia radiante.
— Sr. Willard! — exclamou efusivamente. — Sr. Willard, meu senhor, seja
bem-vindo!
Beth virou-se para ele com uma certa timidez quando Wil lard foi
cumprimentá-lo, muito emocionado.
— Jonas! Jonas! Meu velho amigão! Não via a hora de rever essa cara feia!
Beth manteve-se de lado, testemunhando todas aquelas ex pansões de
camaradagem e percebeu que Raul também os es tava observando. Havia
uma estranha expressão de cinismo em seu rosto quando ele descarregou as
malas. Por instantes olhou para Beth que desviou o olhar imediatamente
para que ele não pensasse que estava interessada em suas reações.
— Beth, este é Jonas — anunciou Willard, sem necessidade. — Acredite se
puder, mas nós crescemos juntos por estas ban das. A mãe dele trabalhava
para a minha, e até perdi a conta das travessuras que aprontamos juntos.
Terminados os cumprimentos, uma jovem criada, muito aca nhada, apareceu
por detrás de Jonas e desceu a escada para ajudar Raul a carregar as malas.
— Maria — disse Willard, distraidamente.
Beth notou que a moça não merecera a mesma atenção que Willard dera a
Jonas e notou também que todo o interesse de Maria estava concentrado em
Raul Valerian. Enquanto seguia o noivo e o velho criado escadas acima,
surpreendeu-se fazendo uma acerba crítica íntima ao comportamento da
jovem. O que tinha ela a ver se Maria se fizesse de engraçadinha com todo o
homem que encontrasse pela frente? Só esperava não ficar como aquelas
mulheres ranzinzas e carolas, sempre prontas a colocar em evidência as
falhas alheias. Quando Maria deu uma gargalhada debochada, todas as suas
boas intenções de tole rância foram por água abaixo, e ela sentiu pela
criadinha uma antipatia e um ressentimento pouco caridosos.
— Onde está minha filha?
Willard estava falando com Jonas e Beth prestou atenção à resposta do
velho criado.
— Está deitada — informou Jonas, meio sem jeito. — Hoje pela manhã não
estava se sentindo bem e mandou avisar o sr. Raul pela Maria...
— Isso eu estou sabendo — disse Willard com voz tensa. Beth viu que Willard
estava começando a parecer novamente
esgotado.
— Willard... — ela começou a falar, mas como se estivesse se antecipando às
suas palavras, o noivo perguntou impacien temente a Jonas:
— Prepararam os quartos? O meu e o da srta. Rivers?
— Sim, senhor — confirmou o criado.
Raul e Maria chegaram ao hall carregando as malas.
— Onde quer que sejam colocadas? — perguntou ele, e Beth apressou-se em
dizer:
— Pode deixar que me arranjo sozinha. Pode pô-las no chão que mais tarde
me encarrego delas.
— Maria poderá fazer isso por você — determinou Willard, e os olhos de Raul
cintilaram zombeteiramente.
— Queira me seguir — pediu Maria com polidez.
Beth estava abaixando-se para pegar a frasqueira, quando Willard interferiu.
— Deixe isso aí. A criada voltará para apanhá-la. Agora vá com Maria. Ela vai
mostrar-lhe seu quarto. Qual é mesmo? — perguntou, dirigindo-se para a
moça. — A suíte azul?
Maria confirmou com um gesto de cabeça e Willard pareceu satisfeito,
— Ótimo, vou subir em seguida.
Beth mordeu o lábio inferior, como se estivesse indecisa, olhando antes para
a escadaria onde Raul já alcançara o pri meiro lance e depois, para o noivo.
— Willard...
— Já lhe disse, subo logo — ele insistiu.
Seguindo Maria pelo corredor, passou por uma porta aberta e viu Raul
Valerian espreguiçando-se após ter depositado as malas de Willard aos pés
de uma grande cama quadrada com dossel. Sem saber por que, sentiu-se
estranhamente desconcertada.
Suas acomodações eram pegadas ao quarto de Willard. Eram arejadas,
luminosas e amplas, com paredes pintadas de creme e painéis de cetim azul.
Havia uma espreguiçadeira forrada do mesmo tecido, cujas franjas
acompanhavam o desenho e as cores do mosaico do pavimento. A cama era
semelhante à de Willard, porém um pouco menor. O quarto era mobiliado
também com um grande armário e duas cómodas com gavetões. Não viu ne
nhuma penteadeira, mas apenas um espelho redondo pendurado acima de
uma das cómodas. Tudo no quarto era antigo, mas funcional, e com exceção
da poeira sobre os móveis, que eviden ciava o desleixo nos cuidados
domésticos, era muito agradável.
— Obrigada, Maria — agradeceu, quando a jovem colocou as malas no chão.
— O quarto é muito bonito.
— O banheiro é por aqui, senhorita — indicou Maria, re servando seus
sorrisos para alguém mais importante do que ela. — Vou buscar o restante
de suas coisas.
— Espere um minuto. — E Beth não pôde deixar de perguntar: — Por acaso,
este quarto pertenceu à primeira senhora Petrie?
Maria sacudiu os ombros.
— Trabalho aqui há somente dois anos. E foi-se.
Beth olhou para as venezianas enfeitadas por longas cortinas de chifon.
Puxou-as para os lados e saiu para a sacada. Con forme previsto, os quartos
davam de frente para o mar. Uma areia fina e branca atapetava a praia e a
maré parecia estar subindo. Beth pensou em mergulhar naquela água tépida
e azul e deixar-se boiar, à mercê da maré.
— Está tudo a seu gosto?
O som da voz de Willard fez com que Beth voltasse para o quarto. Ele estava
apoiado pesadamente ao batente da porta. Beth precipitou-se angustiada
junto dele.
— Querido, é tudo perfeito, mas tenho que dizer-lhe que você parece exausto.
Não quer repousar um pouco? Tenho cer teza de que ninguém vai levar a
mal.
Willard respirou fundo.
— Quero — admitiu com um sorriso apagado. — Você tem razão. Sinto-me
arrasado. Mas Clarrie está preparando o almoço.
— Clarrie? — Beth perguntou, sem compreender, mas depois sacudiu a
cabeça. — Deixe para lá. Você poderá comer alguma coisa na cama se tiver
fome. Eu mesma posso servi-lo.
— Você é tão bondosa e... tão linda! — Respirou com difi culdade e afrouxou
o nó da gravata. — Então gostou do quarto? Era de Agnes, você sabe.
Barbara deve ter pensado que eu gostaria de ter você perto de mim.
Beth sentiu um choque. Era a primeira vez que Willard pronunciava o nome
de batismo da falecida esposa. E não se convenceu muito dos motivos
nobres que tinham levado Bar bara a designar-lhe aquele quarto. Achou
difícil engolir que aquilo tinha sido feito com boas intenções.
— Venha. Deixe que o ajude a deitar-se. Você me dirá depois quem é Clarrie.
Willard a seguiu de boa vontade e foi com alívio que Beth constatou que Raul
já tinha ido embora. Com muita eficiência, ajudou Willard a despir-se.
— Onde você guarda os pijamas? — perguntou, olhando em torno, e ele
indicou uma camiseira, a um canto.
— Estão ali — falou com voz fatigada, e Beth ficou contente em não ter que
remexer suas malas em busca de um pijama.
Beth ajudou-o a deitar-se. Depois fechou as venezianas e o quarto ficou na
penumbra.
— E agora — disse ela, reaproximando-se da cama. — Quer que lhe traga o
almoço ou prefere descansar um pouco antes?
— Prefiro descansar — confessou Willard, com relutância. Segurou-lhe a mão.
— Beth, sinto muito por causa de Barbara. Ela vai aparecer por aí, tenho
certeza.
Foi sua primeira menção ao fato de que alguma coisa não estava certa em
relação à filha, mas Beth não teve coragem de prolongar o assunto. Em vez
disso, debruçou-se sobre ele, beijou-lhe a testa, e disse suavemente:
— Procure dormir. Tudo vai correr bem, não se preocupe. Mas quando voltou
a seu quarto, Beth teve que reconhecer que
tinha dito aquilo com uma segurança que estava longe de sentir. Foi com
irritação que ponderou que Barbara chegara às raias do desaforo, deixando
de receber e cumprimentar o pai doente.
Maria já tinha trazido o restante de sua bagagem e ela colocou a mala maior
em cima da cama e abriu-a. Já tinha guardado metade de suas coisas
quando bateram à porta.
— Quem é? — Virou-se automaticamente e viu o rosto de Maria enfiado pela
fresta da porta.
— Clarrie mandou dizer que o almoço já está pronto — anun ciou, olhando
com indisfarçável curiosidade para as roupas e per tences de Beth que ainda
estavam espalhados sobre a cama.
— Obrigada, Maria. Vou descer já.
Desceram pelas majestosas escadas, e para maior segurança, Beth
escorregou a mão pelo requintado corrimão, não podendo furtar-se a uma
certa sensação de realização. Estava prestes a ser dona daquilo tudo,
pensou, incrédula, e um arrepio de excitação percorreu-lhe a espinha.
Maria cruzou o hall e dirigiu-se para uma das numerosas portas em arco, a
qual se abria para uma enorme sala de estar. Sofás estilo regência, com a
forração um pouco desbotada, espalhavam-se pelo ambiente onde também
se viam cadeiras de alto espaldar, trabalhadas em madeira de lei, com
assentos de veludo e uma escrivaninha francesa, marchetada. Havia também
uma profusão de mesas, mesinhas, estantes, e algumas prateleiras e
cantoneiras mais modernas. Por sobre uma im ponente lareira estava
pendurado um retrato a óleo de Willard, envergando uma toga universitária
que Beth suspeitou ter sido pintado há muitos anos.
Atravessaram a sala de estar e saíram por uma porta dupla que dava para um
pátio sombreado por toldos. O almoço era servido ali, numa grande mesa
quadrada com tampo de vidro, ladeada por lindas cadeiras de ferro batido
laqueadas de branco, com assentos almofadados. A mesa estava posta para
duas pessoas e Beth logo advertiu que o noivo não lhe faria com panhia no
almoço.
— Vou avisar Clarrie — disse Maria, e afastou-se rapidamente. Voltou
acompanhada de uma mulher obesa e carrancuda.
— Então quer dizer que é a noiva do sr. Willard? — per guntou, fitando-a com
olho crítico. — Hummmm, um pouco jovem, talvez, mas suficientemente
mulher, penso eu.
As faces de Beth afoguearam-se.
— Você é Clarrie?
— Sou eu mesma. Já fui babá da srta. Barbara, mas agora sou cozinheira.
— Maria já lhe disse que o sr. Willard não vai querer almoçar agora?
— Já disse, sim senhora — confirmou Clarrie. — Encontrei com o patrão hoje
cedo, quando chegaram. — Fez uma pausa. — A srta. Barbara disse que a
senhora é enfermeira dele. Como vai ele? Está mesmo melhor?
Notava-se que também ela, tal como Jonas, tinha por Wil lard uma grande
afeição, e Beth resolveu dar uma satisfação à cozinheira.
— Ainda está um pouco fraco — admitiu. — Seu coração está se recuperando
aos poucos. Ele precisa cuidar-se por mais uns seis meses. Só o tempo
resolverá.
— Sim, senhora.
Clarrie ainda estava assimilando as explicações, quando Beth, num impulso,
inquiriu:
— E Barbara? Quando irei conhecê-la?
As comissuras da boca de Clarrie descaíram.
— A srta. Bárbara descerá quando lhe der na veneta — declarou
inexpressivamente, girando os calcanhares em direção a casa. — Vou trazer
a comida.
A refeição estava apetitosa: fatias de melão com presunto cru, uma salada
de mariscos ao vinagrete e frutas frescas. Mas Beth não fez jus à arte
culinária de Clarrie. Tentou convencer-se de que sua falta de apetite se devia
ao fato de estar comendo sozinha, sem ter com quem conversar, mas não era
só isso. Sentiu-se curiosamente vulnerável e não gostou da sensação.
Quando terminou o almoço, esperou que Clarrie ou Maria viessem tirar a
mesa para que pudesse perguntar-lhes se não haveria problema em conhecer
melhor a casa e os arredores. Mas passada mais de meia hora depois que
terminou o café, e não tendo aparecido ninguém, decidiu levantar-se e
atraves sou de volta o salão de estar, rumo ao hall de entrada. Na parte
oposta do salão havia outra ala que dava para uma sala de jantar formal,
com uma longa mesa e cadeiras estofadas de couro. Ali, viam-se outros
retratos de Willard e de seus cavalos, mas ela sentiu-se relutante em ir
adiante, sem per missão. Ainda não era sua esposa, e além disso, preferia
que ele mesmo fosse seu cicerone. Mesmo sem ter visto tudo, passou pela
sua cabeça que dificilmente alguém poderia viver em tan tos ambientes
daquela casa portentosa, e a sensação de todo aquele espaço chegou a
intimidá-la.
Suspirando, subiu as escadas e foi em direção a seu quarto, passando pela
porta de Willard na ponta dos pés. Ouviu-o ressonar e sorriu à constatação
de que estava dormindo. Fi nalmente ele estava em seu lar, tranquilo e em
paz. O restante viria por si só.
Como se fosse atraída por um imã, voltou novamente à sa cada para admirar
o oceano com volúpia. Certamente Willard não se incomodaria se ela fosse
dar uma caminhada pela praia, pensou indolentemente, mas suas roupas,
empapadas de suor, a detiveram. Se descesse até a praia, não resistiria à
tentação de entrar na água para refrescar-se, e isso era algo que não queria
fazer, no momento.
Deu uma olhada no banheiro e chegou a uma decisão. Pegou roupas limpas e
levou tudo para o banheiro, abrindo, em se guida, a torneira do chuveiro.
Quando terminou, estava tiritando de frio, e o mar, já longe, não lhe pareceu
tão convidativo. Mas o calor lá fora o era, e após ter escovado os cabelos até
deixar o couro cabeludo for migando, vestiu-se e saiu novamente do quarto.
A casa parecia vazia. Não viu ninguém e começou a andar lá fora, com uma
deprimente sensação de solidão. Quando pegou o caminho de seixos,
agradeceu a Deus por ter calçado um par de tênis, em vez de sandálias
abertas. Percorreu o relvado fronteiriço da sala de jantar, e andou por entre
as árvores, de onde se via uma nesga das águas brilhantes do mar. O ar
marítimo era picante e ela aspirou fundo, enchendo os pulmões, enquanto ad
mirava a curva da baía que se dobrava à sua direita.
Não resistindo ao apelo, descalçou-se e afundou os dedos na areia que
estava incrivelmente quente. Sentiu-se tão liberta e feliz, que começou a
ensaiar alguns passos de dança.
Em seguida, deu uma corrida até a beira do mar e deixou que pequenas
ondas acariciassem seus pés que iam deixando marcas na areia molhada.
Virou de frente para a fachada da casa e tentou localizar as janelas de seu
quarto e as do de Willard. Será que ele já teria acordado e estaria
imaginando onde ela se metera? Acreditava que não. Por certo, dormiria até
mais tarde e não pretenderia que ela ficasse sentada em seu quarto, à
espera de que ele despertasse.
Decidiu dar uma caminhada à beira-mar. O sol estava ar dendo, mas ela não
era do tipo de pessoa que se queima facilmente. Apesar de sua origem
escandinava, tinha facilidade para bronzear-se uniformemente. Um pequeno
passeio não iria fazer-lhe mal, resolveu, e pelo menos, a água do mar
refrescaria seus pés.
Quando percebeu o quanto havia percorrido, viu que se afas tara mais do que
o previsto. Dali, só se via o promontório, pois a casa estava encoberta pelas
árvores. Em compensação podia ver outra moradia que parecia suspensa
sobre estacas, no alto de uma rampa de grama. Parecia um refúgio, e Beth
matutou se também pertenceria à Willard. Talvez fosse uma pequena casa de
veraneio ou uma espécie de estaleiro, apesar de não se verem trilhos
deslizantes.
Propulsionada por uma curiosidade crescente, pôs-se a ca minho da casa,
levando os tênis pendurados na mão. Parou a poucos passos da varanda.
Agora ela podia ver que só a frente da casa era apoiada sobre pilares, mas o
restante da construção, levantada em terra firme, parecia um rancho
desconjuntado. Enquanto estava ali parada, viu um negro aparecer na
varanda e ficar olhando para ela. Ficou encabulada, sentindo-se uma grande
intrometida. Virou-se rapidamente e foi ao encontro de algo rijo, molhado e
quente que, indubitavelmente, era um corpo humano.
— Oh... des... desculpe! — exclamou, dando um pulo para trás, como se Raul
Valerian fosse uma cobra venenosa.
Beth não sabia para onde olhar e para disfarçar seu embaraço, ergueu uma
mecha de cabelo que lhe caía sobre a testa, enquanto suspendia pelos laços
os tênis que levava pendurados na mão.
— Eu... eu não sabia que você estava aí atrás. Uma curva cínica e divertida
envergou sua boca.
— É que estava muito ocupada, examinando minha casa — comentou com
sarcasmo.
— Essa... essa é... é sua casa? — interrogou, sentindo-se desconcertada sob
aquele olhar avaliador.
— Isso mesmo. — Puxou para trás os cabelos molhados. — Gostaria de
conhecê-la?
— Quem? Eu? — Sacudiu a cabeça veementemente, como que para repelir
uma tentação. — Oh, não, não! Quero dizer, eu só estava passando por aqui...
— Eu sei. Eu a vi.
— Viu? — Transferiu nervosamente os tênis de uma mão para a outra,
sabendo que estava numa posição desvantajosa. — Oh, você estava
nadando?
Ele fez uma cara de quem não gostou que ela se fizesse de desentendida.
— Claro. Não costumo andar por aí de calças molhadas — disse secamente.
— Mas pelo visto, estou condenado a receber visitas femininas quando não
estou em condições.
— Não entendi direito.
Beth preferiu não entender, e ele levantou os ombros. Ele era uns bons
centímetros mais alto do que ela. Os músculos do pescoço de Beth
chegaram a doer na tentativa de desviar o olhar daquele corpo atlético e
musculoso.
— Esqueça. Permite que lhe ofereça uma bebida?
— Sinceramente, — disse Beth, dando um passo atrás — preciso voltar.
— Por quê? — Franziu o sobrolho. — Por acaso seu... seu noivo está
esperando?
Até então a conversação tinha sido um tanto cerimoniosa e impessoal, mas
agora ele tinha enveredado para um tom diferente. Havia algo de insultuoso
na forma como dissera a palavra "noivo" e Beth sentiu-se quase contente por
ele ter lhe dado um motivo para uma recusa.
— Sim, ele está me esperando — disse, sem tentar disfarçar seu desagrado.
Raul sorriu.
— Em poucos meses, vai poder usar e abusar dele — declarou
ofensivamente.
Beth ficou vermelha de raiva e vergonha.
— Acho que você está profundamente enganado — retorquiu com frieza,
virando-se ostensivamente para ir embora.
Mas uma mão de ferro segurou-a pelo antebraço, puxando-a de volta. Sem
querer, ela encostou-se em sua coxa.
— Por que vai casar-se com ele?
Ela olhou para o homem negro que ainda estava debruçado na varanda, como
que reclamando por aquele tratamento e Pedindo ajuda.
— Se não me soltar imediatamente, direi ao sr. Petrie de Que forma fui
tratada aqui! — ela ameaçou, e ele soltou uma risada curta.
— Sr. Petrie! — ele imitou, caçoando. — E o que pensa que ele iria fazer
comigo?
— Despedi-lo, é o que merece — retrucou, olhando para o braço preso.
Ele seguiu seu olhar, até a curva do cotovelo de Beth, que tentava livrar-se
do aperto.
— Que pele tão macia!
Os seios de Beth arfaram e ela foi tomada por um pânico repentino.
— Largue-me. — Quase gritou, e dois olhos verdes apertados a encararam.
— Se insiste! — E afrouxou a mão, deixando-a cair pendente junto ao corpo.
Ela afastou-se dele o mais que pôde, tentando recompor-se. Mas na
confusão, um dos pés do ténis caiu na areia e ela teve que abaixar-se para
pegá-lo. Raul ficou observando-a, com os po legares enfiados nas
passadeiras do cinto das calças e seus olhos percorreram seus quadris e
coxas, antes que ela se levantasse.
— Então, não quer mesmo conhecer minha casa? — convidou
zombeteiramente.
Ela nem sequer lhe respondeu, e dando meia-volta, começou a se afastar,
sem olhar para trás.
Como a distância entre os dois aumentava sem que ele fi zesse o mínimo
esforço para segui-la, Beth recomeçou a respirar e tomou dois prolongados
sorvos de ar para acalmar-se.
Mal podia acreditar no que tinha acontecido, e suas sobran celhas estavam
quase unidas por uma ruga de ressentimento. Também estava tremendo e
para alguém tão segura como ela, capaz de controlar qualquer situação,
aquilo não tinha cabi mento. Não era a primeira vez que a insultavam.
Normalmente, as enfermeiras estão sujeitas a ser agredidas pelos pacientes,
mas até agora nenhum homem tinha se atrevido a tocá-la com tanto abuso.
Olhou novamente para o braço e viu, consternada, que as marcas vermelhas
dos dedos daquele bruto ainda lá estavam. O porco!, pensou furiosa. Como
pôde atrever-se a tratá-la daquele modo? Se Willard visse aquelas marcas...
A sequência de seus pensamentos foi interrompida.
Se! Claro que Willard as veria. E por que não? Ela não tinha nada do que se
envergonhar. Tudo o que tinha a fazer era contar-lhe que aquilo fora
provocado pelas mãos grosseiras de Raul Valerian, o qual, no caso, só tinha
uma saída: arrumar as malas e dar o fora.
Pressionou a mão nervosa sobre o pescoço, cuja jugular pal pitava
doidamente. Fazia poucas horas que estava naquele lugar e já criara uma
situação tão desagradável. O que diria Willard disso tudo? Afinal de contas,
ele mostrara uma evidente amizade por aquele homem e, sem dúvida, Raul
lhe falara com familia ridade. O que diriam os outros empregados se ela
causasse trans tornos ao patrão? Pensariam que ela já estava pondo as man-
guinhas de fora. Que eles também teriam que cuidar-se para não se verem
sujeitos a serem despedidos. Suspirou com tristeza. Era um beco sem saída.
E era óbvio que Raul Valerian não morria de amores pelos outros
empregados. Mas como ela poderia con vencer disso a Jonas, Maria, ou
mesmo Clarrie?
Chegou aos pés da rampa rochosa e olhou para cima. A casa grande lá
estava, com toda a sua majestade. E se Willard pensasse que ela estava se
comportando como uma mulher caprichosa e neurastênica? Como poderia
relatar-lhe o que Raul comentara sobre o relacionamento de ambos?
Duvidava de que pudesse repetir aquilo a quem quer que fosse. Além disso,
Raul sempre poderia negar tudo. O que lhe restava dizer? O que tinha ele
feito a mais? Agarrado seu braço e dito que ela tinha uma pele macia... Não
era uma coisa tão terrível assim. Encolheu uma perna e começou a calçar os
tênis distraida-mente, sabendo que agora não podia demorar-se nem mais um
minuto. Não havia meios de traduzir em palavras os senti mentos que a
dominaram durante o diálogo e nem a sensação de ameaça contida na
pressão daqueles dedos de aço. Seu maior desejo seria chegar junto a
Willard e poder contar-lhe toda a história. Não queria compartilhar de um
segredo com um ho mem do quilate de Raul Valerian que ela julgava um
inescru-puloso e imprevisível. Alguma coisa nele a repelia, e Beth fez o firme
propósito de nunca mais permitir que Raul tomasse aquele tipo de liberdade
com ela.
CAPITULO IV
Beth subiu pelo aclive rochoso e atravessou o gra dado em direção ao
pórtico. Sentia-se acalorada e com uma comichão por trás do pescoço,
causada, sem dúvida, pelo roçar dos longos cabelos. Willard preferia que ela
os prendesse, mas eram tão lisos e finos que não havia penteado que
durasse. Estava entrando no hall, suspendendo a longa cabeleira com a mão,
para refrescar-se, quando deparou com uma jovem des cendo o último
degrau da escadaria. Era morena clara, do tipo "mignon", como Beth sempre
sonhara ser, e seus traços, mar-cadamente arrogantes e orgulhosos. Não
teve dificuldade em reconhecer nela a filha de Willard.
— Barbara? — arriscou-se a perguntar, deixando cair os cabelos sobre os
ombros e movimentando-se em sua direção.
A moça já tinha dado quase meia-volta, para subir de novo, mas não teve
outra alternativa senão parar, e foi com relutância que desceu o degrau
restante, deslizando seu longo roupão pelo piso de mármore estriado.
— É a srta. Rivers, pois não? — inquiriu, com gelada polidez.
— Beth — respondeu, tentando não demonstrar seu desa pontamento. — Na
verdade, Elizabeth, mas ninguém me chama pelo nome, só pelo diminutivo.
— Como vai, srta. Rivers? — Barbara esticou a mão, evi tando qualquer
familiaridade.
— Está se sentindo melhor? — perguntou Beth, na convicção de que a outra
nunca se daria ao trabalho de puxar assunto.
Barbara a fuzilou com um olhar de superioridade.
— É a força do hábito, na qualidade de enfermeira, que a faz interessar-se
tanto por minha saúde?
Beth recusou sentir-se ofendida ou intimidada.
— Ainda não foi descoberta a cura para a enxaqueca, mas, se quiser, tenho
uns comprimidos que podem lhe dar algum alívio.
— Duvido. — O tom de Barbara era maligno. — Meu mal não tem causas
físicas e sim emocionais.
Beth mordeu os lábios.
— Sinto muito.
— Sente mesmo, srta. Rivers? Realmente sente muito? Beth começou a
perder a paciência. Positivamente, Barbara
não tinha qualquer intenção de ser cordial e não fosse o fato de ela estar
plantada bem no meio da escadaria, Beth já teria subido diretamente para o
quarto. Impossibilitada de seguir seu impulso, encaminhou-se para a sala de
estar que tinha visto pela manhã.
— Espero que limpe seus ténis antes de entrar na sala de visitas.
A detestável voz de Barbara a deteve.
— O que foi que disse?
— Seus tênis — repetiu Barbara, apontando para aquele calçado tão
ofensivamente informal. — Estão cheios de areia.
Beth molhou os lábios com a língua. Era uma verdade. Tinha calçado os ténis
rápido demais e agora o solado estava soltando uma areia fina sobre o
mármore do hall.
— Esteve andando na praia? — quis saber Barbara, estrei tando os olhos.
— Só uma breve caminhada — declarou, um tanto encabu lada, por notar a
cor traiçoeira que o sol lhe tinha deixado no pescoço e nas faces.
Barbara fechou o cenho.
— Encontrou com alguém nessa sua breve caminhada?
— Não.
Tinha respondido rapidamente demais, mas agora era tarde para correções,
portanto, resolveu aguentar a parada.
— Por quê? Deveria ter encontrado?
— Machucou o braço?
Barbara tinha notado as marcas vermelhas.
— Levei um escorregão numa rocha — Beth esperou ter sido convincente.
— Que azar!
Era evidente que Barbara não tinha acreditado nela, mas não ia se atrever a
chamá-la de mentirosa.
O som das vozes deve ter chamado a atenção de Clarrie. Ela veio carregando
uma grande bandeja, com a réplica de seu almoço, portanto sua presença
não era só motivada pela curiosidade. Pareceu duvidar de ver as duas juntas.
Barbara parecia ter ficado furiosa,
— Quer que leve isso para seu quarto, srta. Barbara? — perguntou Clarrie
com sua voz arrastada.
Beth começou a raciocinar. Agora estava entendendo. No mínimo, quando
vira a casa em silêncio, Barbara tinha se es gueirado até o térreo para
ordenar que o almoço fosse servido no quarto. Beth duvidava, e muito, que
ela estivesse com dor de cabeça e a maneira como expressou-se, em
seguida, tornou bem claro seu fingimento.
— Agora não tem mais cabimento, não é, Clarrie? — disse com pouco caso. —
Oh, ponha isso na mesa do pátio. Vou comer lá mesmo.
Clarrie saiu sacolejando o enorme quadril, levando a bandeja através do
salão de estar, e Barbara foi deixada para trás, enfrentando um indisfarçável
olhar de censura de Beth.
— Pois bem! Eu não sou obrigada a sentar na mesa com a amante de meu
pai! — agrediu, para defender-se.
— Acontece que não sou amante de seu pai — Beth olhou para a outra com
desprezo, de cima de sua altura, feliz de ter, pelo menos, quinze centímetros
a mais do que a adversária.
— E mesmo que fosse, sentiria mais respeito por mim mesmo do que por
alguém que parece estar pouco se importando se ele está morto ou vivo!
— Eu me importo e muito! — retorquiu Barbara, indignada.
— Então, você tem uma maneira muito engraçada de demons trar isso —
retrucou Beth, e ironizou: — Escondendo-se no quarto e fingindo que está
doente! Se tem alguma coisa contra o nosso casamento, então manifeste-se
e diga logo o que sente.
— Se tenho alguma coisa contra... — Barbara levou um lencinho branco aos
lábios. — Oh, recuso-me a ficar aqui dis cutindo isso com você. Nunca
entenderia.
— Gostaria que tentasse.
Barbara sacudiu a cabeça, teimosamente.
— Conheço mulheres como você — enunciou friamente. — Mulheres que
abusam da fraqueza dos homens para que lhes façam certas vontades que,
em outras circunstâncias, nem co gitariam fazer. — Deu uma parada brusca e
mudou de tom.
— Desculpe-me, srta. Rivers, mas temo que meu café esteja esfriando.
Beth entendeu que se perdesse as estribeiras, entraria no jogo de Barbara, e
encolhendo os ombros, ela subiu ao primeiro pavimento.
Parou em frente à porta de Willard, decidindo que mesmo se ele estivesse
dormindo, o acordaria, e girou a maçaneta.
A cama estava vazia e ela ficou olhando para os lençóis desfeitos quando ele
chegou, vindo do banheiro. Vestia calça esporte e uma camisa de seda
branca. Depois de ter tirado uma soneca reparadora, sua aparência era bem
melhor.
— Beth! — exclamou com terna alegria. — Onde esteve? Já ia sair por aí à
sua procura.
Beth desconversou e quando ele aproximou-se, enlaçando-a pela cintura,
colocou suas mãos sobre os ombros de Willard e perguntou:
— Dormiu bem? Como se sente?
Willard sorriu-lhe, conformado em ser alvo de tanto cuidado.
— Dormi bem e me sinto ótimo — assegurou, chegando mais perto. — E agora
responda-me: por onde andou?
— Oh, fui só dar uma voltinha. — Beth sentia-se tolhida.
— Fui lá embaixo na pra... oh!
Olhou repentinamente para os pés, e Willard, dando um passo atrás, fez o
mesmo,
— O que há?
— Meus tênis — gemeu, consternada. — Estão cheios de areia, Barbara
disse...
Parou de súbito, quando percebeu o que estava por dizer, e as comissuras
dos lábios de Willard fizeram uma curva de tristeza.
— Você falou com Barbara?
— Sim, falei.
— Eu também — declarou soturnamente. — Ela veio aqui no quarto há pouco
e me acordou. Conversamos por alguns minutos.
— Ela o acordou? — Egoisticamente, Beth sentiu-se revoltada, esquecendo-
se de que há pouco pretendera fazer o mesmo.
— O que... digo, como estava ela?
Willard aconchegou-se e aninhou a cabeça na curva de seu pescoço.
— Não vamos falar de Barbara agora. — E aspirando fundo, mudou de
conversa. — Hummm, seus cabelos estão suados. Esteve correndo? Com
esse calorão, não devia abusar, logo no primeiro dia, minha querida.
— Eu estava sufocando. — Justificou-se Beth, de forma vaga, tentando
esquecer a cena deprimente com Raul, cuja lembrança ainda tinha o poder
de fazer com que suasse frio.
— Se é isso, sugiro que tome um banho frio e depois vamos tomar chá juntos
— convidou Willard, segurando-a por ambas as faces e esticando os lábios,
em busca de um beijo. — Querida
— sussurrou emocionado. — Você é tão meiga e doce. Não sei o que seria de
mim sem você.
— Bem, não vai ser preciso ficar sem mim, ou vai? — pon derou Beth,
ajustando seu corpo ao dele, e Willard apertou-a mais ainda, antes de
permitir que ela se fosse.
— Ande logo — pediu. — Esperarei por você aqui para descermos juntos,
querida.
Graças a Deus, Barbara já tinha desocupado a mesa do pátio. Certamente,
voltara para o refúgio de seu quarto de onde sairia novamente quando não
houvesse ninguém à vista. Na verdade, Beth não estava ligando muito se ela
saísse ou ficasse, embora soubesse que aquela era uma atitude derrotista.
Cedo ou tarde, ela e Barbara seriam obrigadas a se enfrentar.
Contudo, era extremamente agradável ficar sentada ali no pátio, gozando o
frescor do entardecer e ouvindo Clarrie reco mendar ao patrão para que se
cuidasse. A gorda cozinheira o tratava com evidente carinho. Ela, como
Jonas, convivera com ele desde a infância.
O lanche consistia de bolinhos, sanduíches e um bule de chá da índia. Willard
gostava dele bem espesso, mas ultima mente contentava-se com um chá
mais fraco.
Apôs o lanche, ele propôs que fossem dar um passeio, e Beth concordou,
desde que ele prometesse não abusar.
— Vamos só até a piscina e voltamos — sugeriu, e Beth não pôde
argumentar, pois não sabia de que piscina se tratava.
Mas, a tal piscina era um tanque com açucenas, aberto entre uma vegetação
que crescia por trás das treliças do pátio.
— Quando era garoto, costumava criar peixinhos dourados aqui — comentou
Willard saudoso, e Beth tomou-lhe o braço, afastando-o.
— Prefiro o mar — disse ela, franzindo o nariz.
— Com certeza, amanhã você vai querer nadar. Se ao menos eu estivesse
bem para acompanhá-la! Essa droga de coração!
— Se seu coração não tivesse feito das suas, nunca nos teríamos conhecido
— considerou Beth gentilmente, e ele deu-lhe um ligeiro beijo no rosto.
— E verdade... não teria. Preciso não me esquecer disso. Foi a coisa mais
importante de minha vida.
— Oh, Willard! Não deve falar assim.
— Mas... é a pura verdade!
— E sua mulher, Agnes...
— Casei-me com Agnes porque, na ocasião, era conve niente. Mesmo
naquele tempo o dinheiro tinha o seu valor. Você tem uma idéia de quanto
custa levar adiante uma plan tação desse porte?
Beth não digeriu bem aquele comentário.
— Você está querendo dizer que se casou pela primeira vez por... por
dinheiro?
— Bem, não foi só por isso. Não posso negar que ela era uma mulher muito
atraente. Mas era bem mais velha do que eu e... bem... ora, não tem muita
importância porque nos casamos. Só sei que acabamos casando. E fomos
felizes à nossa moda.
Beth retirou a mão de seu braço, A frieza daquelas palavras parecia não
afetá-lo, mas ela achou difícil aceitar aquela nova imagem de Willard.
Sempre pensara que ele tinha amado a primeira esposa e que essa fora a
razão de ter ficado tantos anos viúvo. Mas parecia que as coisas não eram
bem assim.
— Beth! — Ele a alcançou e passou-lhe o braço pela cintura. — O que está
havendo? Eu a choquei?
E que eu pensei que você tivesse amado sua mulher, — murmurou, fazendo
força para se sentir à vontade junto dele.
— Oh, Beth. — Ele suspirou. — Aqui nas ilhas, a conve niência pesa mais do
que qualquer ideal romântico.
— Isso quer dizer que eu apenas lhe convenho? — ela per guntou, encarando-
o.
— Não é isso. — Segurou-lhe o queixo. — Você devia saber que o que sinto
por você não tem nada a ver com conveniências.
— Mas isso não contradiz o que você disse há pouco?
— E... pode ser.
Beth hesitou por um instante, mas vendo sua expressão abatida, apiedou-se.
— E quanto a Barbara? — solicitou gentilmente. — É por essa razão que ela
desaprova nosso casamento?
Willard passou o braço por cima do seu ombro, e eles foram andando
lentamente em direção à casa.
— Você chegou a essa conclusão? Estava com receio disso. Beth absteve-se
de contar exatamente o que se passara entre
ela e a filha de Willard, mas era evidente que Barbara lhe tinha dito quase a
mesma coisa.
— Ela está ressentida comigo — disse.
— É... — Willard concordou, penalizado. — Bem, era de se esperar...
Estavam já próximos da casa, e Beth, olhando para aquela fileira de janelas
fechadas, teve uma sensação de impotência e frustração. Desejara tanto
estar ali, e agora parecia que tudo estava dando errado.
Apesar dos receios de Beth de que Willard iria logo entre gar-se de corpo e
alma aos negócios do engenho, ele foi ma neirando por alguns dias,
parecendo conscientizar-se de que esforços inúteis iriam retardar sua
recuperação. Sarar era o que ele mais desejava na vida, porque estava
ciente de que ela não consentiria em se casar enquanto ele não estivesse
em forma. E desde que tinha chegado à ilha, o desejo de torná-la sua mulher
crescia dia a dia.
A situação na casa tinha melhorado em parte. Beth mal via Barbara e, às
vezes, ficava imaginando como a moça pas saria seu tempo. Quanto a ela,
costumava tomar o café da manhã no quarto de Willard e enquanto ele se
banhava, ia para seu próprio dormitório se arrumar. Depois desciam juntos.
Mais tarde, ainda pela manhã, andavam um pouco a pé pelas redondezas ou
então, Beth servia de motorista, dirigindo o carro pelas estradas da ilha, em
busca de novos panoramas.
Porém, as tardes eram intermináveis. Willard sempre se deitava por umas
duas horas depois do almoço, e ela ficava entregue a si mesma. Apesar de
ter planejado ir nadar na primeira oportunidade que se apresentasse, essa
oportunidade nunca chegava. Não que Willard a tivesse proibido de nadar.
Ele só a prevenira que seria perigoso entrar no mar sozinha pois, mesmo que
as águas da enseada fossem calmas, os recifes tinham brechas por onde
poderiam passar tubarões e barra-cudas. Não querendo preocupá-lo
inutilmente, Beth assegurou-lhe que não iria nadar sozinha e com isso,
acabou não indo.
As noites eram um pouco mais movimentadas. Algumas vezes, após o jantar,
iam de carro até San Germaine e, certa vez, foram convidados para um
drinque na casa do médico francês.
Beth gostara de Jacques Marin e da esposa. Susi era apenas oito anos mais
velha do que ela e apesar de Jacques já ser um quarentão, ainda era
bastante jovem e bem apessoado. Beth conheceu também Diane Fawcett,
uma professora ame ricana, mas veio a saber que era amiga de Barbara e,
como consequência, ela mostrou-se hostil com a visitante.
Numa manhã de sol, Willard falou para Beth:
— Precisamos oferecer um jantar. Que tal a idéia?
Beth, que estivera observando com satisfação o progressivo bronzeado de
suas pernas, olhou-o, em dúvida.
— Você acha que seria bom? Não seria melhor esperar um pouco mais?
— Até que eu esteja mais forte? Estou me sentindo mais vigoroso a cada dia
que passa e não vejo como um jantar possa me cansar tanto. Ontem eu
estava dizendo a Raul que...
Ele interrompeu-se bruscamente e Beth olhou-o admirada.
— Você viu Ra... o sr. Valerian ontem?
— A tarde — assentiu Willard descuidada mente. — Ele veio ver-me. Eu
estava descansando, mas estava acordado.
Beth baixou a cabeça, olhando para a barra de seu short.
— Acho que ele não deveria vir aqui na hora de sua sesta — admoestou,
muito tensa e apreensiva de que seu nome pu desse ter vindo à baila durante
a conversa.
Ela procurou-lhe uma censura no olhar, mas era ele quem estava com cara
de culpado.
— Se quer saber, fui eu quem o mandou chamar. — E acrescentou, na
defensiva: — Precisava falar-lhe. Sinto-me tão apartado de tudo. Aliás,
deveria ter dado um pulo no escritório há mais tempo.
Beth respirou melhor, mas não pôde evitar de se sentir aborrecida por Willard
ter conversado com Raul à sua revelia,
— Você sabe que o dr. Isherwood recomendou-lhe repouso absoluto por três
semanas, pelo menos — começou a dizer, mas foi interrompida.
— O dr. Isherwood não tem um canavial!
— Parece-me que... que o sr. Valerian soube tocar muito bem seus negócios
enquanto você esteve ausente.
— Aí é que está o dilema — exclamou Willard com impa ciência. — Tocou
mesmo, e se eu não tomar cuidado, daqui a pouco não consigo nem um
emprego de carregador no engenho.
— O que está me dizendo? Qne esse tal de Valerian pode criar uma situação
embaraçosa para você?
— Ora, não estou afirmando que ele vá fazer uma traição dessas. É ótimo
administrador. Mas os homens o consideram e o respeitam demais!
— Espero que também respeitem você!
— O quê? Um velho acabado como eu?
— Você não é um velho acabado!
— Vamos ver. Deixe que Raul tente fazer alguma coisa — balbuciou Willard
ressentido. — Sou dono deste lugar. Prefiro vender tudo do que deixar-me
vencer!
— Como é? Já está se aborrecendo, srta. Rivers?
A voz gélida de Barbara introduziu-se na conversação. Parecia que estivera
cavalgando pois vestia elegantes culotes, uma blusa de seda creme e tinha
um chicote enfiado no cano de uma das botas. Sua postura era arrogante e
dominadora, como se se sen tisse a dona do universo. Beth olhou-a, sem
entender.
— Eu, me aborrecendo? — Fez eco. — Não, de forma alguma.
— Não devia meter-se na conversa alheia. — Wiliard cha mou-lhe a atenção
com severidade. — Por onde andou? Não acha que já é tempo de deixar de
lado esse antagonismo absurdo e fazer um esforço para conhecer melhor sua
futura madrasta?
— Ela ainda não é minha madrasta — respondeu rude mente. — E mesmo que
você se case com ela, o que duvido muito, nunca vou considerar alguém
mais jovem do que eu como minha madrasta.
Willard esticou-se na cadeira, como se estivesse farto da filha.
— Francamente, Barbara. Quanta criancice!
— Pois que seja! Sempre fui sua criança, não fui? Ou já se esqueceu disso?
— O que não admito é que você insulte minha noiva! Se for preciso, sou até
capaz de construir outra casa na ilha ou em qualquer outra parte que você
prefira, e lá você poderá desabafar seus ressentimentos e abusar de seu mau
humor!
Barbara retorquiu, cheia de autoconfiança:
— Você nunca faria uma coisa dessas!
— Não faria? Não queira desafiar-me!
Barbara lançou um olhar maligno em direção a Beth.
— Você não pode exigir que eu seja amiga... dela!
— E por que não? Vocês duas são praticamente da mesma idade. Tenho
certeza de que Beth tem se aborrecido por aqui sozinha, como você
evidenciou tão educadamente. E eu gostaria que você a entretivesse.
— Ora, por favor — interferiu Beth. — Eu não preciso de entretenimentos...
— Você sabe andar a cavalo, não sabe?
Willard olhou para ela esperando uma resposta urgente e ela assentiu a
contragosto.
— Costumava cavalgar quando era menina. Por quê? Há cavalos por aqui?
— Papai os exilou nas cocheiras da fazenda depois que sofreu uma queda
grave — disse Barbara, malévola e indiscreta. — Não é mesmo, papai?
— É que não tinha quem cuidasse deles por aqui — explicou Willard
concisamente, e dirigindo-se a Beth, em especial: — Você já viu como é. Não
é fácil conseguir serviçais.
— Preferiria que não forçasse Barbara a fazer-me companhia — insistiu Beth,
mas Willard estava irredutível.
— Amanhã vocês vão cavalgar juntas — ordenou, encarando a filha. — Está
certo assim?
— A srta. Rivers tem algum traje de montaria? — perguntou Barbara
secamente. — Duvido de que minhas roupas sirvam nela — completou com
escárnio.
Era um insulto sutil, mas Willard fingiu não perceber. — Beth tem calças
compridas. Ela não vai participar da caça à raposa, só vai dar um galope com
você.
Beth abaixou a cabeça. Aquilo era horrível. Como poderia sair por aí a
passear, com alguém que a detestava tanto? Mas a nenhuma das duas foi
dada qualquer chance de escolha e Beth ficou imaginando que jeito daria, na
manhã seguinte, para simular também ela uma enxaqueca.
A sugestão de Willard de oferecer um jantar também era um problema a ser
considerado e aquela perspectiva a fez ca pacitar-se das dificuldades que
teria que enfrentar no futuro, quando se tornasse a dona da casa. Por
enquanto, era Barbara quem organizava os serviços de casa, escolhia os
cardápios e administrava as despesas.
Deslizando da cama, aproximou-se da sacada, incapaz de resistir ao
chamado do oceano. Trouxera vários maiôs, mas até agora, só tinham
servido para tomar banho de sol no ter raço. Nos lugares de veraneio da
Inglaterra tinha visto usarem biquinis junto com short ou saias, no lugar de
saídas de banho. Poderia fazer o mesmo e ir para a praia. Não havia ninguém
pelas redondezas e ela sabia que Barbara nunca se ofereceria para
acompanhá-la, a não ser obrigada. Nem imaginava que ela soubesse nadar.
Nunca a tinha visto no mar. Talvez pas sasse suas horas de lazer em outros
lugares.
Vestiu um provocante biquini marrom franjado de dourado. A cor combinava
com o bronzeado incipiente de sua pele, mas infelizmente, seu ventre branco
estava destoando do corpo quei mado. Deveria ter usado o sutiã do biquini,
em vez da frente única, em suas andanças, mas não sabia se Willard
aprovaria semelhantes trajes.
O sol estava quente e ofuscante, e ela colocou os óculos escuros.
Atravessou o gramado quase correndo, um tanto re ceosa de que alguém a
visse, e começou a descer pela rampa rochosa até a praia.
Liberdade! Deu um suspiro de felicidade, sentindo-se, todavia, meio culpada
quando olhou para os andares superiores da casa, visíveis entre a folhagem.
Ora, justificou-se, fazia dez dias que
estava ali. Tinha direito de experimentar aquele mar. Assim mes mo, ainda a
perseguia um senso de traição por violar a confiança de Willard, e
praticamente esgueirou-se, como uma criminosa para os lados de onde não
podia ser vista das janelas. Largou as san dálias na areia e foi para a beira
do mar. Iria dar só uma mo-lhadinha. Só entraria com água até a cintura e
boiaria um pouco.
Depois do primeiro impacto, a água pareceu-lhe incrivel mente morna. O sol
batia em cheio em suas costas e ela afundou até o pescoço. Que mal havia
nisso? Nenhum. A saia e os óculos escuros estavam lá na areia, ao lado das
sandálias. Foi com um sentimento de culpa, completamente desproporcional
ao "crime" que estava cometendo, que ela deu um profundo mergulho,
furando uma onda.
Era maravilhoso! Nunca havia nadado em águas tão densas. Bastava uma
leve braçada para manter-se à tona, e ela começou a nadar para mais longe,
sentindo um prazer sensual ao contato daquela água tépida. Virou-se de
costas e deixou-se boiar, ad mirando o céu e um azul límpido, sem nuvens.
Pouco depois, começou a nadar de volta para a praia, com a vista ofuscada
pela intensa claridade.
Foi nesse momento que vislumbrou pelo rabo dos olhos aquela forma negra e
luzidia, deslizando ao nível da água. Jamais tinha visto um tubarão, mas lera
o bastante sobre seus hábitos para saber que a pouca profundidade da água
não constituía um obs táculo para detê-lo. Sua prática de enfermagem
aconselhou-a a não entrar em pânico, mas mesmo assim, seu coração
começou a bater como uma bigorna. Enquanto a cabeça dizia-lhe uma coisa,
o estômago dizia-lhe outra. A praia não estava assim tão distante. Seria fácil
alcançá-la a nado, mas o medo desorganizou-lhe os reflexos e parecia-lhe
que apesar dos esforços, não conseguia saú do lugar. Um soluço subiu-lhe à
garganta quando sentiu aquele corpo escuro e brilhante avançar
sinuosamente por baixo da água e foi com os olhos arregalados de pavor que
viu uma cabeça coberta Por uma máscara emergir da água, a seu lado.
Seu alívio foi tão grande, que parou de nadar e logo sentiu-se afundar entre
as ondas. A água penetrou pela boca aberta e pelas narinas, queimando-lhe
os olhos e impelindo-a a debater-se até voltar à superfície. Ficou sufocada
por um momento, até que um braço firme a agarrou por baixo do busto e a
arrastou até a praia.
Tossiu, cuspiu e esfregou os olhos e toda a gratidão de Beth transformou-se
em irritação. Começou a nadar pela praia aos tropeções, torcendo os
cabelos ensopados e notando, com raiva, que suas pernas tremiam como
gelatina.
Raul Valerian, e não podia ser outro, pensou amargamente. Ele tirou a
máscara, o tubo de oxigênio e todo o equipamento de pesca submarina e
atirando-o na areia, veio para perto dela que, a esta altura, caíra estatelada
na areia.
— Assustei você? — perguntou, sem parecer estar se im portando muito se
de fato a assustara.
Beth nem se dignou a responder. Estava mais preocupada com o fato de ter
esquecido a toalha para cobrir-se e não de sejava molhar a saia. O problema
de como voltar para casa naquelas condições tinha que esperar um pouco
mais para ser resolvido, e ela decidiu colocar os óculos escuros à guisa de
escudo que a protegesse do olhar apreciativo de Raul.
— Poderia ter acontecido que, em vez de ser eu, fosse mesmo um tubarão.
De vez em quando eles aparecem por aqui.
Beth olhou-o de soslaio.
— E não se deu conta de que estava me deixando apavorada? — perguntou
com maus modos.
Ele encolheu os ombros e olhou para o mar.
— Claro que sim. Mas que diabos queria que eu fizesse? Achei que desde que
me visse ficaria mais tranquila do que se eu tivesse sumido.
— Duvido que tenha ficado todo aquele tempo debaixo da água, de lá para
cá, a troco de nada.
Com uma risadinha caçoísta, estendeu-se perto dela, bai xando mais o zíper
do negro macacão de borracha, de forma a expor o musculoso tórax.
— Certo — ele concordou, sem tentar uma negativa. — Quer dizer que
continuo sendo um ignorante, um cretino, etc. etc.
Beth olhou-o inconformada.
— Nunca disse isso de você.
— Não? — Os estranhos olhos verdes estavam sombreados pelas negras
pestanas quando ele a olhou fixamente. — E o que diria então a meu
respeito? Pelo menos a vez em que nos encon tramos, parecia que queria
fugir de mim como o diabo da cruz.
— Aquela vez você foi muito grosseiro — disse Beth, enla çando as pernas
com os braços.
— Talvez queira dizer realista. — Rolou na areia e apoiou-se sobre os
cotovelos. — Seu noivo a preveniu sobre o perigo de nadar na enseada?
A última coisa que Beth desejava naquele momento era lem brar-se de
Willard. Tinha até proposto castigar-se, ficando na praia até que o biquini
secasse para poder vestir a saia. De qualquer forma, as pernas bambas não
lhe teriam permitido uma saída honrosa.
— Ele avisou-me para que não nadasse sozinha — con cedeu dizer.
— Mas você não o levou a sério, não é?
— Não... sim! Quer dizer, não tinha intenções de ir nadar — explicou
atabalhoadamente.
— Não ia nadar, mas veio de maiô!
— Como você é observador! As pessoas costumam tomar banho de sol de
maiô, ora essa.
— Ah... Mas você não vai bronzear-se como se deve, sentada nessa posição.
Beth cerrou os dentes.
— No momento, não estou pretendendo bronzear-me.
— Não está... O que está é desperdiçando seu tempo tentando esconder que
minha presença a perturba.
— Que homem mais presunçoso — disse ofegante, e dando uma risadinha de
desdém, continuou: — Pois saiba que fui embora da Inglaterra justamente
para fugir de tipos assim.
— Ora! — Ele torceu a cabeça para o lado. — Pois eu tinha a ilusão de que
você tinha deixado a Inglaterra porque ia ca sar-se com Willie.
Ela corou violentamente.
— Quer saber? Não tenho nenhuma obrigação de ficar aqui sentada, falando
com você. Agradeceria se fosse embora e me deixasse em paz.
— Por quê? Porque eu desmascarei suas intenções mercenárias?
— Mercen... Não sou nenhuma mercenária! — contestou energicamente,
dando um chute para o ar.
— Não é? — Ele imitou seu gesto. — Então por que ,vai casar-se com Willard?
— Porque vou... Essa é boa! Talvez lhe interesse saber que eu amo Willard!
Eu o amo, dá para entender? — gritou.
— Estou ouvindo muito bem o que você diz — concordou com cinismo,
baixando os olhos atrevidamente por todo o corpo de Beth.
— Belas pernas! — acrescentou, provocador.
Não havia como cobrir o corpo, e usar as mãos não teria sido muito
sugestivo, portanto, ela ficou na mesma posição, odiando aquele homem por
fazer com que ela se sentisse tão vulgar. Quis até pagar-lhe com a mesma
moeda, examinando-o de alto a baixo, mas o macacão de borracha marcava-
lhe as formas tão escandalosamente que ela desviou o olhar.
Ela apressou-se em levantar da areia e em vestir a saia. Mas suspendeu o
zíper com tanta afobação que os dentes pren deram-se ao tecido do biquini.
Por mais que tentasse, não con seguia fechá-lo. Ao ouvir suas imprecações
de exasperação, ele aproximou-se para ver o que estava acontecendo.
— Deixe que eu ajudo. — Ofereceu-se, mas foi fulminado com um olhar
furioso.
— Obrigada, eu mesma faço — retorquiu, e incomodada com seu olhar
observador, acrescentou: — Empregaria melhor seu tempo tirando esse
macacão do que ficando aí, olhando para mim!
— Não creio que aprovaria se o tirasse agora. Ora, já ia esquecendo que você
é enfermeira e deve estar acostumada a ver homens nus.
— Não nessas circunstâncias — exclamou, escandalizada. — Eu... eu não
sabia que... não pensei que... oh, você é desprezível!
— Só porque estou aqui na sua frente, lembrando-lhe as coisas boas que vai
perder na vida?
Ela arquejou.
— Como você se supervaloriza!
— Julga assim?
Subitamente, seus dedos abriram uma trilha de fogo, desde os macios
ombros de Beth até a extremidade do decote do sutiã.
Ela pulou para trás, segurando a saia com uma mão, e com a outra,
esfregando a pele nos lugares por onde tinham passado aqueles dedos
ardentes.
— Não me toque! — gritou, e então, não conseguindo mais esconder a chama
do desejo que iluminava seus olhos, saiu correndo cambaleante, pela praia
afora...
CAPITULO V
Barbara tinha um DKW que usava para per correr a ilha, e estava encostada
ao pára-lama, quando Beth apareceu no pórtico da casa. Maria a tinha in
formado que Barbara iria para as cocheiras às nove horas da manhã. Beth
vestira calças de brim muito justas e um blusão. Depois descera para a sala,
dera um beijo em Willard, e o deixara terminando o desjejum sozinho.
Tudo levava a crer que seu entusiasmo para que Beth fosse cavalgar se
devia, em grande parte, à liberdade que teria para tratar dos negócios do
engenho durante sua ausência. E ela não tinha como impedir que Willard
entrasse em contato com seus empregados. Só estava nervosa pela
possibilidade de ele encontrar-se com Raul durante a manhã e que este lhe
relatasse
O que a noiva andara fazendo no dia anterior.
No dia anterior, depois que alcançara seu quarto, sem maiores percalços,
Beth decidira totalmente não contar nada a Willard sobre onde estivera e o
que fizera. Apesar de ter afirmado para si mesma que a razão de sua omissão
era não dar aborrecimentos ao noivo, na verdade, ela não queria era
mencionar seu encontro com Raul. Agora percebia como fora leviana. Se
Raul a denun ciasse, e por que não o faria?, Willard poderia imaginar que
havia motivos condenáveis para ela esconder aquele encontro.
Suspirou, conformada. Agora era tarde demais para chorar sobre o leite
derramado e, resignadamente, desceu os degraus da escada para ir ao
encontro de Barbara.
Como sempre, a moça estava vestida impecavelmente, em trajes de
montaria. Seu boné de equitação estava jogado no assento traseiro do DKW.
Perto dela, Beth sentiu-se granda1hona e mal-arrumada.
— Já está pronta? — ela perguntou, lançando um olhar crítico para a outra.
— Já. Vamos indo? — propôs Beth.
Barbara deixava muito a desejar na direção do carro. Fazia cantar os pneu
em todas as curvas, corria demais e brecava muito bruscamente, o que
deixou Beth meio enjoada do estômago.
Nunca tinha ido até a fazenda, por conseguinte, não tinha idéia dos lugares
por onde passavam nem das distâncias per corridas. Entraram a todo vapor
por picadas abertas entre os canaviais, sacolejando de tal forma que Beth
estava prestes a pedir para parar o carro, tão enjoada estava quando, à
frente delas, abriu-se uma estradinha de cascalho que levava a um conjunto
de construções em forma de meia-lua. Não viu ne nhuma cocheira, mas como
Barbara, nesse instante, puxou o breque de mão, presumiu que tinha
chegado ao seu destino.
Sem pedir licença à outra, abriu a porta do carro e saltou para fora,
encostando-se, derreada, ao capô. Mas tão logo sentiu os dois pés em terra
firme, o enjôo diminuiu.
Um homem tinha saído de uma das construções para cumpri mentá-las. Era
de porte médio, com finos bigodes pretos e cabelos crespos cortados rente.
Podia ser considerado um rapaz bem-apessoado e estava vestido
formalmente, com calças pretas, colete e uma camisa branca social, trajes
pouco comuns na ilha. Sorria polidamente para Barbara, mas quando viu
Beth, seus olhos es curos dilataram-se de admiração. Barbara não pôde
deixar de notar a mudança operada em sua fisionomia e, improvisadamente,
fez um gesto para que Beth se aproximasse.
— Este é André Pecares. Trabalha aqui no escritório. Beth encaminhou-se
para eles, com um sorriso tímido.
— Como vai? — perguntou Beth, sorrindo. Apertaram-se as mãos e Barbara
apresentou Beth desta forma:
— A srta. Rivers, enfermeira de meu pai.
— Muito prazer em conhecê-la, srta. Rivers. — O cumpri mento de André foi
caloroso. — Veio conhecer as plantações?
— Não. Ela veio para andar a cavalo comigo — interferiu Barbara, de forma
seca e breve.
Depois, olhando por sobre o ombro de Beth, perguntou:
— Raul está aí?
Beth estremeceu, mas felizmente eles estavam entretidos com o diálogo que
não perceberam sua perturbação.
— Não — estava dizendo André, para alívio de Beth. — Nem sequer o vi esta
manhã.
Barbara cerrou os punhos de encontro aos quadris.
— Você o viu ontem à noite? Telefonei-lhe, mas ele não estava em casa.
As sobrancelhas de André formaram um ângulo agudo.
— Raul não me mantém informado de seus passos, srta. Petrie. A resposta
tinha sido dada de forma educada, mas Beth
pôde notar que naquela frase escondiam-se segundas intenções. Por alguma
razão oculta, André não simpatizava com Barbara e a recíproca era
verdadeira. Barbara fez uma cara de quem ia dizer algo, mas refreou-se e
olhou impacientemente para Beth, fazendo um feio trejeito com a boca.
Fosse o que fosse que se passava entre eles, tinha alguma coisa a ver com
Raul, calculou Beth, mas não conseguiu adi vinhar qual era a correlação.
Barbara voltou para o carro a fim de apanhar o chicote e o boné. Nesse
ínterim, André perguntou a Beth pela saúde do patrão.
— Creio que já seria hora de ele estar voltando para o escritório. — E
acrescentou, lisonjeiro: — Mas desconfio de que está sem vontade de deixar
sua linda noiva sozinha.
Beth passou a sentir-se um tanto incomodada.
— O senhor... o senhor sabe qual é meu relacionamento com o sr. Petrie?
— A ilha é como a uva, srta. Rivers. O que se injeta num bago, logo se
espalha por todo o cacho.
Beth enfiou as mãos nos bolsos do blusão. Claro que não devia ser bem
assim. Mas se fosse, logo Willard iria saber de seu indesejável
relacionamento com Raul Valerian.
— Vamos andando.
Não havia percebido que Barbara voltara e agora a moça falava num tom
autoritário, lançando olhares de desaprovação em direção a André.
Beth acompanhou-o por uma calçada que contornava os edi fícios e que
corria paralela ao esgoto. Um cheiro fétido exalava daquela água poluída.
Um barracão construído atrás do celeiro fora dividido em vários boxes que
serviam de cavalariças. Um ou dois cavalos esticavam as cabeças por sobre
as meias-portas, mas a maioria dos boxes estavam vazios. Um velho varria
um dos boxes quan do ouviu os passos de Barbara, saiu ao seu encontro,
tirando da cabeça um gorro miserável e reto.
— Bom dia, Abel. As montarias já estão prontas?
O tom de voz de Barbara era imperioso, e o velho, coçando a carapinha,
confirmou:
— Prontas e esperando pela senhorita.
Barbara encaminhou-se a passos firmes para o pátio onde dois cavalos
estavam amarrados pelo cabresto a uma figueira brava.
A montaria de Barbara era um possante cavalo normando cinza, bem mais
pomposo do que a égua baia destinada a Beth. Era mais uma clara tentativa
de fazer com que ela se sentisse marginalizada. Mas, uma vez sobre a sela, a
diferença entre os dois cavalos era mínima. A égua era bem mais jovem do
que o cavalo e, consequentemente, mais vivaz, e para compen sar seu menor
tamanho, era bem mais veloz e ágil.
Fazia anos que Beth não montava e estava morta de medo de cair e fazer um
papelão perante Barbara. Mas percebeu que montar e andar de bicicleta são
coisas que a gente nunca esquece. E pouco depois já estava emparelhada
com Barbara.
Cavalgaram através dos canaviais, cozinhando-se sob um sol abrasador, e
foram parar no alto de uma colina, da qual se divisava o porto de San
Germaine.
Um pequeno platô serviu para um providencial descanso e ambas
desmontaram.
Beth estava acariciando o pescoço da égua quando percebeu que a outra
estava falando com ela.
— Entende que o que meu pai sente por você é entusiasmo passageiro? Ele
não vai casar com você, sabe bem disso. Houve outras mulheres antes, e ele
não casou com nenhuma delas.
Beth sorveu um pouco de ar fresco.
— Vamos esperar para ver no que dá, sim? — murmurou, com a firme
intenção de não se aborrecer.
Barbara pegou um cigarro e acendeu-o sem oferecer a Beth.
— Antes de mais nada, gostaria de saber como você conse guiu que ele a
pedisse em casamento — persistiu, voltando ao ataque. — Suponho que sua
enfermidade tenha tido alguma coisa a ver com isso. Sem dúvida, deve tê-lo
tornado consciente de que é um ser mortal.
Beth soltou um suspiro de desanimação.
— Por que você se autoflagela com todas essas suposições? por que não
aceita simplesmente que seu pai ficou viúvo por muitos anos e que se sente
solitário?
— Ele não está sozinho para sentir-se solitário! — Os lábios de Barbara
retorceram-se. — Ele tem a mim. — Fez uma pausa proposital. — Acontece
que eu não estava por perto quando ele teve o enfarte,
— Oh, Barbara...
Beth meneou a cabeça e virou-a para o lado oposto, sem coragem de voltar à
posição normal. Espalmou a mão sobre os olhos e ficou admirando o
panorama da ilha que se espraiava lá embaixo. Com o ânimo mais calmo,
diante daquela beleza toda, fez uma nova tentativa conciliatória.
— E quando você casar? Quem cuidará de seu pai?
— Nunca me casarei — declarou Barbara, peremptoriamente.
— Como pode dizer uma coisa dessas? Talvez um dia en contre alguém...
— Nunca! — insistiu Barbara.
Beth enrugou a testa. Há poucos instantes atrás, lá no en genho, suspeitara
de que Barbara estava interessada em Raul Valerian. Sua ansiedade em
querer saber por onde ele andara e seu antagonismo com André Pecares
pareciam demonstrar que ali havia algo.
De certa forma, aquilo preocupava Beth pois mesmo não simpatizando com
Barbara, no final de contas, ela era filha de Willard e não desejava que a
garota saísse machucada com um tipo como Raul. Mas poderia estar
enganada e, indolente mente, deixou-se cair sentada sobre a grama.
Pensou que Barbara fosse seguir seu gesto, já que estava ainda entretida em
fumar, mas em vez disso ela jogou fora o cigarro pela metade e,
inesperadamente, tornou a pular na sela. Beth mal teve tempo de levantar-se
e viu que a outra se afastava a todo galope deixando-a entregue a si mesma.
Seu primeiro impulso foi sair correndo atrás dela. A ilha era desconhecida, e
suas calças, manchadas de limo, eram uma prova de que ela estava sujeita a
erros. Mas o orgulho falou mais alto e, deliberadamente, voltou a sentar-se,
esperando que o som dos cascos do cavalo normando se diluísse ao longe.
Olhou o relógio de relance e viu que já eram quase onze horas. Sem maiores
pressas, tomou as rédeas da égua e aco-modou-se em seu dorso. Calculou
que levara aproximadamente uma hora para chegar até ali, portanto, deveria
levar outro, tanto para voltar. Não só estava preocupada para chegar em
casa em tempo, como também pela hipótese de Barbara estar esperando por
ela nas cocheiras.
Levou mais de vinte minutos para capacitar-se de que tinha enveredado pelo
caminho errado. Seguramente estava descen do, mas não rumo às
plantações. Em vez dos canaviais, viu um vilarejo com casas cobertas de
sapé. Quando chegou mais perto, verificou que o que tomara por um matagal,
era, na realidade, um bananal.
Quando chegou ao vilarejo, desmontou e ficou em busca de alguém que lhe
indicasse o caminho certo. Um bando de crian ças brincava por perto e,
quando decidiu perguntar-lhes sobre a direção a tomar, percebeu que eram
alunos de uma escola, na hora de recreio. Aquele lugar era obviamente o
pátio de recreação, e o edifício avarandado, logo adiante, o grupo escolar.
Instigou a égua até o portão de entrada. A sua volta, as crianças a olhavam
cheias de curiosidade. Ouviu-se uma sineta e os alunos ficaram em silêncio.
Beth levou a égua para perto da varanda. Um homem e uma mulher
apareceram, vindos do edifício cen tral da escola. A mulher era quase tão
alta quanto Beth. Magra e morena, tinha os longos cabelos negros presos.
Era uma mulher atraente, sem dúvida. O homem que a seguia, vestido mais
for malmente do que a própria Beth, era Raul Valerian. A mulher trocou
poucas palavras com Raul e aproximou-se de Beth.
— Em que posso servi-la?
Beth pôde observar que ela estava na casa dos quarenta anos; mas sua pele
era ainda muito viçosa.
— É que... Eu estava andando a cavalo e... me perdi. Poderia indicar-me o
caminho de volta para as cocheiras?
— Ah, entendo. Quando a vi fiquei pensando de onde teria surgido. — Lançou
um olhar perscrutador em direção a Raul Valerian e convidou: — Gostaria de
entrar um pouco, srta. Rivers? Talvez queira tomar algo refrescante. Está
fazendo muito calor e a senhorita deve estar com sede.
— Não se preocupe, por favor.
Beth imaginou que Raul lhe dissera quem ela era. Os olhos do homem a
vigiavam com expressão trocista e ela sentiu uma espécie de vertigem ao
pensar no tipo de relacionamento que ele deveria ter com a professora. Pela
maneira como os dois pareciam se entender, não deveria ser nada platónico.
— Bom dia — ele cumprimentou. — Perdeu o caminho
de casa?
— Pois é... — Beth concentrou sua atenção na mulher. — Se, pelo menos, a
senhora pudesse indicar-me como se vai até a estrebaria.
— Esteve cavalgando sozinha?
A pergunta de Raul tirou da professora qualquer chance de responder, e Beth
cravou as unhas na palma da mão.
— Não — respondeu cautelosamente, sabendo que não podia fingir ignorá-lo
na presença da outra, mas insistiu em dirigir-se a ela: — Devo seguir por
aquela trilha lá adiante?
— Não vai oferecer uma bebida gelada a srta. Rivers, Isabelle? — perguntou
Raul irritado, e a mulher respondeu no mesmo tom:
— Já ofereci, Raul, mas ela não quis nada.
Raul passou o braço pelo ombro da professora, num gesto
de intimidade.
— Bem, acho que Willard não gostaria que a mandássemos de volta sem ao
menos dar-lhe um refresco, não acha? Venha, srta. Rivers, Isabelle tem uma
limonada no refrigerador.
Beth olhou para a mulher e ela contentou-se em levantar os ombros. Quase
chegou a sentir pena dela. Devia ser mor tificante ser obrigada a servir outra
mulher.
— Sinto muito, senhorita... senhora...
— Signy — completou Raul, quase empurrando a outra. —
Sra. Isabelle Signy.
Beth quis sair dali, mas pensou que seria uma ofensa para Isabelle Signy se
recusasse sua hospitalidade. Resolveu subir os degraus que levavam até a
mulher e aproveitou para per guntar quantos alunos tinha a escola.
Pelo visto, só havia duas classes. Os menores aprendiam com algum ex-
aluno, cuja única credencial era tempo livre. As crianças maiores tomavam
aula com a sra. Signy, os mais toteligentes e capazes eram enviados para
outros centros mais importantes do arquipélago.
Contra sua vontade, Beth deu-se conta de que estava gos tando de Isabelle.
Quando já estavam instalados na sala dos professores, a mulher começou a
falar com mais espontanei dade, e Raul não teve muitas oportunidades de
manifestar seu espírito mordaz.
As duas ocuparam as únicas poltronas da sala e pelo calor que emanava do
assento onde Beth acomodou-se, percebeu que as poltronas tinham sido
usadas até há pouco. O que deveriam estar fazendo ali, ela e Raul?, pensou
com curiosidade. Sentados e conversando? Raul foi buscar uma cadeira e
ficou ouvindo as duas falando, com fingida distração.
— Já conhecia as ilhas do Caribe, srta. Rivers?
— Eu... bem, não. Para a maioria das pessoas é uma viagem muito longa e
muito dispendiosa — disse, quando pôde falar.
— O negócio é arrumar algum trouxa para pagar a passagem. Raul deu
aquele aparte malcriado e Beth começou a procurar
um revide à altura. Surpreendentemente, foi Isabelle quem tomou suas dores
e admoestou Raul com entonação de profes sora que chama a atenção dos
alunos.
— Você não se corrige, Raul!
Esperando uma resposta agressiva, Beth ficou assombrada quando ele disse,
sem qualquer traço de rancor:
— Não sou mais seu aluno, Isabelle.
— É uma lástima. Raul olhou para Beth.
— Sem dúvida, concorda com ela.
Beth refugiou-se mais uma vez no copo de limonada pen sando como Isabelle
atrevera-se a dar a entender que ele já tinha estudado com ela.
— Será que vai gostar de viver aqui? — persistiu a profes sora, forçando Beth
a manifestar-se.
— É uma ilha encantadora — disse, apesar de aquele co mentário não
constituir uma resposta.
— Talvez seja melhor perguntar-lhe o que ela acha dos ha bitantes —
intrometeu-se Raul, e Isabelle lançou-lhe outro olhar de censura.
— Não lhe faça caso, srta. Rivers — pediu, levantando-se para pegar mais
gelo. — Por onde esteve passeando?
Antes que Beth pudesse responder, Raul esticou uma perna, impedindo que
Isabelle chegasse até o refrigerador. Ele mesmo levantou-se e foi apanhar o
gelo. Na volta, olhou pela porta aberta da varanda,
— A propósito, onde está sua acompanhante? Disse-nos que não estava
sozinha.
— Nós... Nós nos separamos — admitiu a contragosto, e sentiu aqueles olhos
verdes analisando-a.
— Estava com Barbara, não é? — perguntou, muito sério. — Essa Barbara! —
E dirigiu-se para Isabelle. — O que é que ela ganha com isso? A ilha é muito
pequena para que alguém
se perca.
— Raul! Não tire conclusões precipitadas! Você não sabe o que aconteceu —
repreendeu Isabelle.
Beth pigarreou e levantou-se da poltrona.
— Agora preciso realmente ir — afirmou, olhando para Isa belle com
determinação. — Muito obrigada pela limonada. Es tava deliciosa. E se puder
me dizer que caminho...
— Eu a levo de volta — disse Raul, dando um último gole na cerveja que
estivera bebendo.
Era a última coisa que Beth teria desejado.
— Sou perfeitamente capaz...
— Tenho plena certeza — concordou e, aproximando-se da outra mulher, deu-
lhe um beijo na face. — Vejo você amanhã. Certo?
Isabelle fez que sim e ergueu-se, mas Beth não saiu do lugar.
— Veio até aqui a cavalo, sr. Valerian? — perguntou tibia-mente, e ele olhou-a
resignado.
— Não. Vim no jipe, como sempre. Mas não se preocupe, mandarei alguém vir
buscar sua montaria.
— Preferiria voltar a cavalo — disse obstinadamente, ciente de que Isabelle
os estava observando, mas ele não se deixou vencer.
— Está muito calor lá fora e a senhorita nem sequer trouxe um chapéu.
Vamos. Sei o que estou dizendo.
Beth quis replicar, afirmando que ela também sabia o que estava dizendo,
mas a presença de Isabelle a tolheu. Se não se acautelasse, dentro em
pouco a outra mulher iria pensar que ela tinha razões inconfessáveis para
não querer acompanhá-lo.
Seguiu-o com uma sensação de derrota. Acenaram um adeus a Isabelle, que
ficou na varanda, e se dirigiram para o jipe que estava abrigado à sombra de
um carvalho, por trás da escola. Só quando chegaram perto do carro é que
Beth deu vazão ao que estava sentindo.
— Por favor, diga-me como faço para voltar à cocheira e pare de tratar-me
como uma criança!
Raul deu a volta pelo veículo, abriu a porta e sentou-se ao volante.
— Entre — ordenou, e Beth teve que obedecer.
— Você faz isso sempre... — resmungou ela, a meia-voz. O motor do carro que
já estava ligado morreu subitamente e Raul pôde ouvir a reclamação.
— Faço o quê? — perguntou, e deu uma nova volta na chave de ignição.
— Tratar-me como... como...
— Como uma mulher? Beth mordeu os lábios.
— Ora, você sabe perfeitamente o que faria Willard se sou besse das coisas
que você andou me dizendo.
— Mas você não contou nada a ele, não foi? — inquiriu, com a segurança de
quem já sabe a resposta, e enquanto ele engatava a primeira, repetiu: —
Contou?
— Você bem que gostaria que tivesse contado. Gostaria que brigássemos. É
isso que você gostaria...
— Verdade? — falou cinicamente, e Beth segurou a língua para não
continuar. — Assim como Barbara? — Ele provocou, quando entraram por
uma estrada de terra esburacada.
Beth apressou-se em travar a porta, antes que fosse cuspida para fora.
— Não estou entendendo — replicou, obstinando-se a não levar o assunto
adiante.
— Pois bem, continue a esconder a cabeça na areia, como as avestruzes.
Ela continuou quieta.
Em poucos minutos estavam de volta às cocheiras. Beth olhou em torno, à
procura de Barbara, e Raul foi direto para os escritórios. Os boxes estavam
vazios e ela não viu nem sombra do cavalo normando.
Voltou para o lado dos escritórios no momento em que Raul estava tornando
a sair, à sua procura.
— Então? — perguntou, olhando por sobre a cabeça de Beth.
— Barbara não está.
— E você esperava que ela estivesse?
— Talvez tenha saído ao meu encalço.
Raul olhou-a descrente e apontou para o carro.
— Venha, eu a levo para casa. André avisará Barbara, caso ela apareça.
Beth não tinha outra alternativa senão ir com ele. Sentou-se obedientemente
a seu lado, e Raul deu novamente a partida.
Raul acelerou e eles venceram os poucos metros que faltavam para chegar
nos fundos da casa, com incrível velocidade.
— Venha. Vou dar-lhe um café e uns biscoitos para assentar o estômago. Não
posso levá-la de volta a Willie no estado em que está.
Beth sustou o passo e ele ficou irritado.
— Ora, deixe disso. Tomas este em casa, se é que você precisa de um
guarda-costas.
— Já passa do meio-dia. — Ela tentou persuadi-lo.
— E daí? Willie nunca almoça antes das treze, não é? Além disso, ele pensa
que você está com Barbara.
— Barbara já pode ter chegado. Não vi o carro dela no engenho.
— André o guardou num dos barracões para que ficasse na sombra. Relaxe!
Ele me garantiu que o carro ainda estava lá.
— E onde estará ela?
— Na casa dos Marin, presumo. Ela é amiga da professora da caçula.
— Diane Fawcett — pronunciou Beth pausadamente, en quanto Raul premia o
polegar sobre as veias de seu pulso, que por certo, estavam batendo
aceleradamente.
— Chegou a conhecê-la?
— Sim — e, num repuxão, libertou o pulso. — Sr. Valerian!
— Raul — ele emendou. — Venha logo. Não me faça forçá-la a aceitar minha
hospitalidade.
O criado negro não estava por ali quando eles entraram na sala de estar do
pavimento inferior e mesmo quando Raul o chamou, em altos brados, não
apareceu.
— Vai ver que foi até o centro — esclareceu Raul. — Não me diga que por
causa disso vai recusar-se a ficar.
Beth estava olhando para os títulos dos livros enfileirados na estante e,
virando-se para ele, disse calmamente:
— Se quiser, posso preparar o café — ofereceu-se, sem mesmo j saber por
que, e um sorriso cansado apareceu nos lábios de Raul.
— Pois aí festa uma coisa que eu também sei fazer. — E em seguida,
atravessou a sala e dirigiu-se para a porta da cozinha. — Fique à vontade.
Voltarei em cinco minutos.
A sala era simples, mas mobiliada com bom gosto. Beth ficou examinando a
estante e achou a predominância de livros técnicos um tanto maçante.
Depois de quinze minutos, tomou a iniciativa de ir buscar seu anfitrião.
A cozinha estava vazia, mas havia evidências de que alguém andara
mexendo por ali. Viu uma bandeja preparada com duas xícaras e um vidro de
café solúvel, uma chaleira com água quente. Mas onde estaria Raul?
Uma porta entreaberta convidava à intrusão, e fazendo ouvido mouco à
vozinha interna que a alertava para voltar à sala e esperar sossegada, olhou
pela fresta da porta. Era o quarto de dormir de Raul, um dormitório realmente
espartano. Ouviu o som de água corrente e presumiu que aquele ruído vinha
da torneira do banheiro. Mas onde estava o banheiro? Seguindo a direção do
som, foi dar nos fundos da casa e estacou à porta do que seria uma sala de
banho primitiva. Havia um lavatório, um chuveiro improvisado e uma bacia
para água, em frente à qual Raul estava parado, de costas para ela. Um
espelhinho pendia por sobre a bacia e ele a viu ali refletida. A fisionomia dele
alterou-se e ambos ficaram indecisos de como agir. Foi então que ela
percebeu aquelas horríveis bolhas na mão e no pulso de Raul.
— O que você fez? — ela exclamou, adiantando-se.
— Não foi nada, queimei-me com água fervendo — declarou com indiferença,
mas ela notou que ele devia estar sentindo muita dor.
Sem pensar, segurou-lhe a mão para examinar as queima duras. A pele
estava começando a dilacerar-se. Ele estivera tentando aliviar a dor com
água fria.
— A chaleira — ela murmurou, e ele deu um suspiro de assentimento.
— Demasiada impetuosidade — quis brincar, mas ela não achou graça.
— Há pouco que eu possa fazer — disse Beth pensativa-
mente, tentando não sentir o cheiro viril que emanava de seu corpo. — No
hospital, o dr. Marin...
— Ei! Eu não vou para hospital algum!
Apesar de ter dado uma risadinha, seus olhos estavam es tranhamente
circunspectos. Beth largou-lhe a mão e afastou-se em direção à porta.
— Eu farei o café — disse, debatendo-se contra as emoções que tentavam
dominá-la, e saiu rapidamente para os lados da cozinha.
Estava levantando a bandeja, quando Raul apareceu na por ta, com as
queimaduras cobertas de pomada. Afastou-se para o lado para que ela
pudesse passar com a bandeja e seguiu-a, carregando um pacote de
bolachas.
— Acho que é tudo o que tenho para oferecer-lhe.
Ela serviu-se de uma bolacha, antes de acomodar-se numa das poltronas.
Raul sentou-se no sofá e tomou o café, segurando a xícara com a mão ferida.
Ela impacientou-se com aquele descuido. Se ele não tratasse da queimadura,
à parte a dor que iria sentir, estaria sujeito a uma infecção, ainda mais num
clima daqueles. Mas não podia forçá-lo a ir ao hospital e, pensando bem,.por
que deveria preocupar-se tanto?
— Pare de me olhar com esse ar de censura! — ele disse finalmente, e ela
sacudiu os ombros, com indiferença.
— Não estou olhando coisa alguma!
— Está sim. Você está pensando que sou um relaxado em não querer ir ao
médico, não é mesmo?
— Não tenho nada a ver com isso — retrucou friamente, mas ele não se
abalou.
— O que o Marin poderia fazer? Dar-me um comprimido contra a dor?
— E antibióticos — ela sugeriu e apertou os lábios quando ele deu um sorriso
de mofa. — Bem... é que afinal sou uma enfermeira — justificou-se.
— Sei disso.
Levantou-se e deu a volta por trás da poltrona onde Beth estava sentada. Ela
usou toda sua força de vontade para não olhar para trás e levou um susto
quando sentiu os dedos dele debaixo de seu queixo, desamarrando o lenço
de seda que lhe protegia os cabelos. Impertigou-se imediatamente e
depositou a xícara na bandeja a seu lado, enquanto protestava:
— Não faça isso!
— Qual é o problema?
Agora seus cabelos estavam soltos pelas costas e ele passou os dedos pelos
fios sedosos para desembaraçá-los.
— Você tem cabelos lindos. Não deveria escondê-los. Beth levantou-se, mas
ele postou-se à sua frente, e seus
seios roçaram o peito de Raul.
Ele fez um movimento sensual com a boca, olhando-a bem dentro dos olhos,
e o coração de Beth disparou à toda, quando sentiu as mãos de Raul
apalparem seus quadris, puxando-a deliberadamente para junto dele.
— Raul! — gritou, chocada. Mas o contato com aquele corpo rijo tirou-lhe as
energias e seu protesto não teve a veemência desejada.
Como era diferente de Willard! Não tentava disfarçar nem um pouco sua
excitação. Baixou o rosto e mergulhou-o entre os cabelos de Beth, com os
lábios entreabertos, e ela sentiu seu hálito quente beijando-lhe as orelhas e
o pescoço. Apelou para um restinho de equilíbrio mental e observou
descabidamente:
— E sua mão? A pomada vai manchar minha roupa.
— Tomarei cuidado — disse roucamente. Ela jogou a cabeça para trás e
suplicou:
— Deixe-me ir, Raul.
Como única resposta, sentiu o zíper de seu blusão sendo
puxado para baixo.
— Não seja tola — sussurrou-lhe ao ouvido, mordiscando-lhe os lóbulos
rosados, enquanto ela debatia-se inutilmente. — Você quer ir embora tanto
quanto eu...
— Quero, sim... — ela insistiu, sem muita convicção, e numa tentativa de pôr
água na fervura, balbuciou: — Pensei que você... que você preferisse
mulheres morenas e... e mais magras.
— Eu disse tal coisa? — ele murmurou, entreabrindo-lhe a boca com os dedos
e dando-lhe um beijo profundo e sensual que a deixou fraca e de pernas
bambas.
Mas, assim mesmo, tentou reagir.
— Eu... eu vou contar a Willard — ameaçou.
Era o último recurso, mas ele nem se abalou. Ao contrário, olhou para as
alças do sutiã que agora estavam expostas, e bai xando a cabeça beijou-lhe
os ombros, sussurrando docemente:
— Isso sai pela frente, ou tenho que desabotoar por trás? Beth fitou-o,
desesperada, mas não havia compaixão nos olhos de Raul, só desejo, e ela
começou a tremer.
— Não pode fazer isso comigo — arquejou, quando os dedos dele alcançaram
o fecho do sutiã.
— O que me impede? — ele perguntou, já ofegante, espia-nando as mãos
sobre seus seios rosados.
Beth abriu a boca para protestar novamente, mas não saiu nenhum som. Os
lábios de Raul comprimiram os seus, silencian do-lhe os protestos e a
consciência. Com a língua, ele explorou todos os recantos mais recônditos e
sensíveis de sua boca entrea berta, e os sentidos de Beth explodiram
perigosamente. Fez-se uma escuridão em seu cérebro. Ela não viu mais nada,
só sentia aquele corpo colado ao seu, e ela arqueou-se instintivamente para
ajustar-se àquelas formas viris. A razão estava apagada e em seu lugar
surgiu um traiçoeiro ímpeto de sentir mais e mais aquele corpo, livre do
obstáculo das roupas.
Quase que por instinto, seus dedos encontraram os botões da camisa, e ela
estremeceu de gozo quando sentiu aquele peito peludo roçar seus seios.
Suas mãos pararam indecisas quando chegaram à fivela do cinto, e ela
apenas enlaçou timi damente sua cintura.
— Oh, Beth! — Ele gemeu, capturando seus dedos e pres sionando-os de
encontro à sua cintura, por um breve momento.
E então, num esforço sobre-humano, ele a empurrou e dis tanciou-se
impetuosamente.
A correnteza fria que vinha da porta arrefeceu o corpo ardente de Beth. E a
friagem fez com que ela conseguisse pensar nova mente. O horror substituiu
a doce letargia que a apoderara. Mal conseguindo entender o que tinha
acontecido, ergueu as alças do sutiã com os dedos trêmulos e soluçou
desesperadamente quando suas mãos inseguras recusaram-se a obedecê-la.
Ao ouvir aquele soluço de angústia, Raul, que estava de frente para a janela,
olhando perdidamente para o mar, vol tou-se subitamente. Aproximou-se e
obrigou-a a olhar para ele através das lágrimas que agora escorriam sem
pudor.
— Deixe-me ajudá-la.
Apesar dos protestos, ele conseguiu abotoar o sutiã com mãos | experientes.
Depois, recolocou-lhe o blusão e suspendeu o zíper suavemente.
— Pronto! Tudo nos seus devidos lugares!
— Você tem muita prática — disse amargamente, e ele sacudiu os ombros,
enfiando displicentemente as mãos nos bol sos das calças.
— Mas você não tem — foi o veredicto lacônico.
O rosto de Beth pegou fogo.
— Você consegue fazer com que isso soe como uma ofensa — ela disse
friamente, e os olhos de Raul pousaram sobre os lábios dela de uma forma
quase tangível.
— E é. — Ele confirmou, e acrescentou aborrecido: — Eu a queria...
Poderíamos ter passado uns bons momentos. — Er- gueu os ombros,
conformado. — Mas eu não iria fazer uma
ursada dessas ao Willie.
— Não? Como não? — Beth estava aturdida. — Você fez
tudo o que quis.
— Fiz o quê? — Admirou-se, e um débil sorriso assomou-lhe aos lábios. —
Você não tem idéia do que eu pretendia fazer.
— Não sou tão ignorante em matéria de sexo. Você não
está falando com uma colegial.
— E eu não estou falando sobre sexo — ele contestou cal mamente. — Estou
falando sobre fazer amor. Há uma grande diferença entre as duas coisas e
isso você vai descobrir quando casar com seu noivo milionário.
— Tenho certeza de que sim. Willard me ama. Ele me tem respeito. E dessas
coisas você não entende nada.
— Respeito! — Deu uma gargalhada insultuosa, — Isso é tudo o que Willard
tem por você? Posso imaginar quanto prazer você vai sentir com o respeito
dele!
Beth susteve a respiração.
— O que você está dizendo é uma infâmia!
— Ainda não consegui atinar qual é a sua. Ou você é uma atriz muito
talentosa, ou é uma pobre inocente. Seja qual for o seu caso, me dá muita
pena.
— Não preciso de sua piedade...
— Talvez você venha a precisar. É bom adverti-la para não deixar que
Barbara perceba quão ingênua você é.
— Pelo menos Barbara é honesta. Não esconde seus verdadeiros
sentimentos.
— Preferiria que eu fosse honesto? Que chegasse até Willard e lhe dissesse
que sua noiva esteve se esfregando em mim, como uma gata no cio?
Beth estava olhando para ele estupefata, quando ouviram um assobio vindo
da porta dos fundos.
— Tomas — ele disse, indiferente. — Que sorte você teve de já estar vestida.
Beth gostaria de encontrar uma resposta à altura, mas o negro que tinha
visto uma vez na varanda apareceu na soleira da porta.
— Oh, vão me desculpar... Não sabia que...
Estacou quando viu que Raul estava com visitas, mas ele aproximou-se do
criado, tranquilizando-o.
— Tudo bem, Tomas. A srta. Rivers está de saída. Vou acompanhá-la até sua
casa.
— Sim, senhor. — Tomas inclinou-se polidamente na direção de Beth, e ela
forçou um sorriso.
Foi então que ele viu a mão de Raul e suas pupilas negras dilataram-se.
— O que foi isso, patrão?
Raul lançou um olhar de zombaria para os lados de Beth.
— Andei pondo minha mão no fogo. — Só ela conseguiu entender a metáfora.
Raul fez uma pausa, e convidou: — Já está pronta, srta. Rivers?
CAPITULO VI
Beth vestiu-se para o almoço, tremendamente apreensiva. Não conseguia
acalmar-se, apesar de ninguém ter presenciado seu retorno em companhia
de Raul. Nem sequer Willard a vira quando chegou, mas sabia que mais cedo
ou mais tarde, ele deveria tomar conhecimento, nem que fosse para justificar
por que ela já estava em casa, antes de Barbara. Não sabia ao certo se a
moça estava ou não. Podia até ser que estivesse arrependida de ter largado
a noiva de seu pai a milhas de distância, e que, a esta hora, estivesse
procurando-a ansiosamente. Mas Beth reconheceu que essas suposições
eram muito improváveis.
O que lhe causava maiores problemas, no entanto, era sua própria situação.
A visita ao bangalô de Raul, a pouca distância dali, tinha sido acobertada por
um silêncio funesto, e sua mente debatia-se entre a revolta que sentia pela
audácia calculada de Raul e o reconhecimento de sua própria e perigosa
sensualidade.
Desde o primeiro momento em que ele a tomara nos braços, em que
externara a virilidade agressiva de seu corpo, ela sen tira uma pronta
resposta de seus sentidos, e apesar de não querer reconhecer esta
realidade, sentira um desejo irrefreável de entregar-se à sua masculinidade.
Estranhos e terríveis pensamentos invadiram sua imagina ção. Pensou no
corpo magro e flácido de Willard, pensou nos lábios úmidos e nas mãos
quentes e suadas de Mike Compton. Raul era esbelto, mas de carnes rijas e
musculosas, e seus lábios eram quentes, enquanto que suas mãos pareciam
frias quando tocavam sua pele escaldante. Certamente era um ho mem
experiente, e ela não fora a única mulher com a qual desejara fazer amor.
Mas talvez tivesse sido a única que ele poupara por vontade própria. Graças
a Deus a poupara, pensou com fervor. Como poderia enfrentar Willard se não
fosse assim?
Ele nunca teria sabido, sussurrou-lhe intimamente uma vo-zinba maliciosa.
"Mas eu sim", respondeu a si mesma, silenciosamente.
"O que havia de errado comigo?", perguntou-se. O que estava acontecendo
que se permitia até pensar numa coisa dessas?
Já ouvira falar no contágio das febres tropicais que grassam nas ilhas do
Caribe. Seria a esse tipo de febre que as pessoas se referiam? A esse
enfraquecimento do senso moral? Um des pertar da sensualidade latente, tal
como tinha acontecido com ela? Para sua tranquilidade, o espelho refletia o
mesmo rosto de sempre, mas por baixo da máscara, alguma coisa havia
mudado... Dando um último retoque nos cabelos platinados que, desta vez,
havia propositadamente amarrado num coque severo, saiu do quarto.
Andou rapidamente os poucos metros que a separavam do quarto de Willard
e, após um segundo de hesitação, abriu a porta e entrou.
Ele estava sentado à escrivaninha, junto a janela aberta, e parecia estar
escrevendo quando ela entrou. Levantou-se e veio ao seu encontro, mas,
pela primeira vez, sua fisionomia não brilhou de satisfação ao vê-la.
Sem conseguir sustentar seu olhar, Beth falou rapidamente:
— Só espero que não esteja trabalhando. Então? Aprovei tando-se da minha
ausência, hein?
O tom brincalhão com que disse aquilo restituiu-lhe uma certa confiança,
mas quando olhou para Willard, notou que ele não tinha achado graça.
— Por onde andou?
O tom sério e circunspecto como fez a pergunta deu-lhe a certeza de que ele
estava zangado.
— Onde andei? Eu... ora, você sabe por onde andei! — ela protestou.
— Sei que saiu em companhia de Barbara, mas não voltou com ela.
Beth olhou a janela aberta. Claro! Willard a vira chegar de carro com Raul.
— Eu... não... — Para seu desespero, sentiu que estava corando fortemente.
— Fomos andar a cavalo e eu me perdi.
— Perdeu-se com Raul Valerian?
— Não. — Beth não podia entender por que ele estava tão furioso. — Eu...
nós, isto é, Barbara e eu, galopamos pelas colinas. Nós... nós paramos para
descansar. Quando tornamos a montar, eu... Barbara deve ter pensado que
eu a estava seguindo, mas na verdade, me perdi.
— E isso aconteceu quando você, convenientemente, encon trou-se com meu
gerente? — ele esbravejou, e ela começou a soluçar convulsiva mente.
— Convenientemente, não! — Ela negou, percebendo que a raiva de Willard
era de puro ciúme. — Acabei encontrando um vilarejo. Na verdade, era uma
escola. O sr. Valerian estava lá, visitando a professora.
— Na escola! — Os lábios de Willard afinaram-se e as na rinas palpitaram.
Beth notou que aquelas emoções estavam prejudicando as condições físicas
do noivo, que continuou o interrogatório. — Você entrou na escola?
— Sim, entrei. Mas, Willard, não fique nervoso desse jeito. O que é que há?
Espero que não esteja pensando que marquei algum encontro com Raul
Valerian.
— Oh, Beth! — Ele gemeu, com voz abafada. — Perdoe-me, oh, perdoe-me!
Sou um velho idiota e egoísta que não merece nem sua afeição, nem seu
amor. Mas quando a vi, saltando do carro de Raul... — Ele fungou e ergueu os
olhos suplicantes.
— Desculpe, minha querida.
— Está tudo bem. — Beth nunca se sentira tão igual a Judas em toda a sua
vida. — Por favor, Willard, não se angustie dessa forma. Foi culpa minha.
Deveria ter vindo aqui logo que cheguei para contar-lhe o que aconteceu.
Wiilard não a contradisse. Tomou-lhe as mãos, pigarreou e fez mais uma
pergunta:
— Quer dizer que estava na escola? Por acaso, encontrou a... a diretora?
— A sra. Signy? Sim, encontrei. — Beth mordeu o lábio inferior.
— Ela... ela, e o sr. Valerian parece que se dão muito bem.
— Sim, realmente. — A voz de Willard tornou-se repenti namente brusca. — O
que foi que Raul lhe contou sobre ela?
— O que me contou? — Beth estava confusa. — Eu... o que quer dizer com
isso?
Wiilard ficou impaciente.
— Não tem importância. — E voltou ao assunto principal. — Então ele a
trouxe para casa de jipe?
— Sim. Ele disse que iria providenciar para que a égua fosse devolvida às
cocheiras.
— E Barbara? O que aconteceu com ela? Esta parte era mais difícil de
responder.
— Eu... eu não sei onde ela está.
— Você quer dizer que também ela se perdeu?
Wiilard estava readquirindo o autocontrole rapidamente e havia uma ponta
de ironia em sua pergunta.
— Acho que não. Ela conhece a ilha bem melhor do que eu.
— É... conhece — disse Willard. — Bem demais para per der-se. A não ser que
o desejasse.
— Wiilard! Barbara está com quase trinta anos! Não pode esperar que ela
faça tudo o que você quer. Deixe-a em paz. Aos poucos, ela vai ceder,
querendo ou não, quando nos casarmos.
A fisionomia de Willard suavizou-se.
— Sim — disse mansamente. — Quando nos casarmos. Foi bom falarmos
nisso. Quando marcaremos a data?
Beth procurou não dar importância ao súbito pânico que se apoderou dela.
Santo Deus, agora era tarde demais para desejar ser mais experiente e
vivida, e por incrível que parecesse, era justamente isso que desejara depois
de seu encontro com Raul. Ele estava mais certo do que presumia, quando
caçoou de sua inocência. Até então, sua vida tinha sido acolchoada contra o
embate das emoções. As carícias atrevidas de Raul a tinham despertado
para a realidade e para a crueza das relações ín timas que, depois de
casada, ia ter com Wiilard. Intimidades que até agora adornara com a
auréola do respeito. Mas que respeito teria Wiilard quando estivesse com ela
numa cama?
— Beth...
Ela notou que estava sendo observada e forçou um débil sorriso.
— Desculpe... estava pensando no nosso casamento.
— E então?
— Eu... eu pensei que deveríamos esperar. Só um pouco mais... Eu estou aqui
na ilha há muito pouco tempo. Mal co nheço as pessoas.
— Bem, isso pode ser remediado logo.
Felizmente, Willard não havia feito associações de idéias perigosas com sua
hesitação. Aproximou-se da escrivaninha.
— Estive fazendo uma lista de convidados para o jantar que pretendo
oferecer a fim de apresentá-la à sociedade local. Sugiro que a recepção
venha a ter lugar dentro de quinze dias. Que acha disso?
— Quinze dias... — Beth meditou por um instante. — Se até lá você se sentir
bem, estou de acordo.
Sentiu-se envergonhada em reconhecer que usava sempre a enfermidade de
Willard como um freio para as suas atividades.
— Um jantar não vai ser algo assim tão desgastante para mim. E você poderá
cuidar dos detalhes. Assim terá uma chance de praticar um pouco para
futura dona de casa.
— Mas... e Barbara?
— Perante mim, Barbara perdeu todos os direitos — decla rou friamente. —
Desde que cheguei não me teve a mínima consideração.
Havia um fundo de verdade no que ele estava dizendo, mas Beth ficou
apreensiva, porque fazer de Barbara uma inimiga não ia melhorar a situação
em nada.
Barbara voltou lá pelo fim da tarde. Beth estava lendo no quarto quando
escutou o ruído do motor do DKW. Sentiu-se logo tensa e, ao ouvir a porta do
quarto de Willard abrir-se, fechou o livro e vestiu-se.
Encontrou o corredor já vazio e imaginou que Willard tivesse descido para
chamar a atenção da filha. Talvez fosse melhor não interferir, mas sua
consciência profissional foi mais forte. Não podia permitir que ele se
exaltasse a ponto de ter outro enfarte, só porque ela era covarde demais
para enfrentar a situação.
Mesmo antes de atingir o patamar da escadaria pôde ouvir suas vozes.
Quando chegou perto da porta, conseguiu ouvir o que Barbara estava
dizendo.
— Honestamente, você não vai querer acreditar que eu a levei a passear e
depois a abandonei por lá? Ora, papai, não sou nenhuma irresponsável! Se foi
isso o que ela disse, bem, só espero que saiba o que está fazendo. Confesso
que não estava morrendo de vontade de levá-la comigo. Mas depois do que
você andou me ameaçando... — Ouviu-se um soluço convin cente. — Sobre...
sobre a questão de não morar mais aqui. — Fez-se outra pausa. — Você bem
sabe que isso me despedaçaria o coração. Você não seria capaz, não é
mesmo?
Beth esperou pela resposta de Willard com a respiração em suspenso, e as
batidas de seu coração ficaram um pouco mais lentas quando ele retrucou:
— Nunca disse que Beth a acusou de tê-la abandonado. Foi uma idéia de
minha cabeça. E saiba que lágrimas não me comovem, Barbara.
Um profundo silêncio pairou no ar por alguns instantes. Beth apoiou-se ao
batente da porta, com as pernas trémulas, quando ouviu as palavras
seguintes de Barbara.
— Você está sabendo que Raul a trouxe para casa? Só Deus é testemunha do
quanto ela o andou perseguindo e, nesse caso, talvez ele saiba de coisas que
nós não sabemos.
— O que está insinuando, Barbara? — A voz era gélida.
— Insinuando? — Barbara fungou. — Não estou insinuando coisa alguma.
Encontrando Raul, sem mais nem menos! Você mesmo deve ter suspeitado
que ela fingiu ter se perdido!
— O que está dizendo?
Beth levou a mão à boca. Barbara conhecia o pai tão bem ou melhor do que
ele mesmo. Intuitivamente, tinha abordado um aspecto da questão que sabia
que ele encararia menos objetivamente.
— Bem... — Percebia-se em sua voz que se sentia vitoriosa
— Raul é um homem atraente, não é?
— Beth mal o conhece — cortou o pai secamente. — Só o viu duas vezes.
— Isso é o que você pensa — soltou Barbara maliciosamente, e Beth
imaginou como aquelas palavras estariam abalando Wiliard. — Onde foi que o
encontrou hoje? Ela lhe contou?
— Sim, contou-me. — A voz de Willard parecia estrangulada.
— Ele estava na escola, com Isabelle Signy.
— Isabelle?
— Sim, Isabelle! — Ele confirmou, e Beth podia até ver a expressão de
felicidade no rosto do noivo! — Beth encontrou-o na escola e Raul ofereceu-
se para trazê-la de volta, Isso satisfaz sua mente mesquinha?
— Então era lá que ele estava...
Barbara parecia estar falando sozinha, mas o tom sibilante das palavras
penetrou nos ouvidos de Beth. Sem poder mais continuar a sentir-se como
uma espiã Beth abriu a porta sem bater, e encarou pai e filha.
—Beth! Estávamos justamente falando de você — disse Willard.
— Eu sei. — Beth não fez caso do olhar maligno que Barbara lhe lançou. — Eu
ouvi tudo.
— O que você ouviu?
— O suficiente — disse calmamente, — E aproveito para assegurar-lhe que
nunca marquei encontros com quem quer que seja, conforme Barbara está
pensando.
O rosto de Willard resplandeceu de satisfação e passando-lhe o braço por
sobre o ombro, fitou a filha severamente. Beth fez o mesmo, travando uma
batalha íntima com sua consciência para agir daquela forma. Afinal de
contas, tinha afirmado uma verdade e, quando se tem pela frente um
adversário do calibre de Barbara, usa-se qualquer arma ao alcance da mão.
Chegaria o momento de enfrentar aquela intriga amorosa em que se tinha
metido, mas não seria agora. Por enquanto, estava lutando peio futuro que
Willard tanto almejara, o futuro que ela também queria, tentou convencer-se.
Como esperava que Barbara revidasse de alguma forma, seu silêncio tornou-
se perturbador. Quem falou primeiro foi Willard.
— Bem... — disse desafiadora mente. — Que tal abandonar mos esse assunto,
assim como você abandonou Beth no alto do Monte Fall?
— Acho que ela esperava que eu a seguisse. — Beth começou a desculpá-la
com cautela, mas a outra caiu sobre ela como um raio:
— Não procure defender-me, srta. Rivers! — E foi saindo da biblioteca,
pisando duro. Seus olhos lançavam chispas. — Se um dia eu decidir
abandoná-la, pode crer que não será num lugar tão acessível quanto o Monte
Fall! — E bateu a porta com estrondo.
Willard fez um movimento automático para ir atrás dela, mas Beth segurou-o
pelo braço.
— Deixe-a ir — pediu. — Por favor, Willard. Nós... bem... isso vai passar. Não
quero que se aborreça mais.
Olhou-a indeciso por um momento, depois fechou os olhos com força como
se aquele esforço fosse demais para ele. — Está certo. Vou deixar, mas se
acontecer outra vez...
— Não vai.
Beth fez essa observação com uma confiança que não sentia, mas, de
alguma forma, precisava dar um tempo para respirar um pouco, para ambos
respirarem.
Passaram-se dois dias antes de tornar a ver Barbara. Nesses dois dias
Willard tinha tomado a iniciativa de falar com Clarrie e agora Beth era
consultada sobre cardápios e também fazia valer sua opinião sobre a
arrumação da casa. Este último ar ranjo veio a calhar pois agora era com
satisfação que acom panhava a velha cozinheira num giro pelos cômodos da
casa que estavam em uso, tendo oportunidade também de entrar naqueles
quartos empoeirados que não eram ocupados há anos,
A quantidade de pó, de sujeira e a podridão desses cômodos era de
assombrar. Formigas e carunchos assolavam os móveis, e os colchões eram
verdadeiros ninhos de baratas e outros insetos repugnantes.
— Nunca ninguém faz arejar esses quartos? — perguntou Beth, abaixando-se
para evitar uma teia de aranha.
Clarrie só sacudiu a cabeça.
— Falta de tempo e de empregados — explicou, sem cons trangimento. —
Barbara disse para cuidar dos quartos ocupa dos e deixar os outros
fechados.
— Mas ela não tem medo de que esses insetos invadam o restante dos
cômodos?
O queixo duplo de Clarrie tremeu de indignação.
— Não sou adivinha, srta. Rivers. A srta. Barbara disse que era para cuidar
só...
— Dos quartos em uso, já entendi. — Beth fechou a porta sobre a cena
devastadora. — Está bem, falarei com o sr. Willard sobre isso. Agora vamos
tratar das roupas de cama.
Foi com surpresa que ela constatou que Willard não estava ligando muito
para a conservação da casa.
— Você não conhece bem Sans Souci, minha querida. Aqui não se dá um
passo sem a ajuda de empregados. E por isso que os escravos fazem tanta
falta. Você já viu o que aconteceu aos jardins. Mesmo no meu tempo de
menino, as coisas já não eram mais as mesmas. Talvez, por isso, deixe as
coisas como estão.
— Williard, você não tem idéia em que condições estão esses quartos!
— Tenho sim!
Com um suspiro conformado, ela se afastou tentando não pensar que mais
uma vez Willard a tinha desapontado.
Pelo menos, providenciaria para que os cômodos em uso fossem melhor
cuidados.
Com esse propósito, no dia seguinte, ela e Maria começaram a arrumação da
sala de visitas. A empregadinha não estava gostando muito que sua
capacidade profissional estivesse sendo posta em dúvida. Mas Beth ignorou
seu mau humor. Em de terminado momento, Beth estava parada, de pé sobre
uma banqueta, olhando o retrato de Willard vestido de toga, quando se deu
conta de que alguém a observava. Olhou em volta an siosamente. Maria tinha
ido limpar a prataria fazia um bom tempo. Beth pensou que pudesse ser
Clarrie e já estava para dar ordens para que se apressassem, quando
deparou com a figura esguia de um homem, apoiado na lareira. Era a última
pessoa que esperava ver naquela hora. Retraiu-se tão rápida a
estouvadamente que perdeu o equilíbrio e foi ao chão.
As mãos calosas de Raul ajudaram-na a erguer-se, mas ela subtraiu-se
rapidamente ao seu toque.
— Estou bem. Não sei como isso foi acontecer.
Raul olhou-a fixamente percorrendo os olhos por todo seu corpo de forma
quase palpável, e ela puxou para trás uma mecha de cabelos, esperando que
ele dissesse algo. Mas ele a penetrou com seu olhar silencioso e tão intenso,
que Beth che gou a sentir um nó na garganta.
— Oh, aqui não! — rebelou-se intimamente, em desespero. Mas aquela
lassidão que tinha sentido junto daquele homem apoderou-se dela mais uma
vez, e seu maior desejo, naquele instante, era tê-lo novamente colado a si.
Foi então, que viu a atadura em seu pu!so e encontrou uma boa desculpa
para quebrar aquele silêncio envolvente e comprometedor.
— Como... como vão suas queimaduras?
— Oh... — Ele levantou o braço e olhou para o curativo, indiferente. — Willie
não lhe contou? Fiz uma bobagem. Quei mei-me desse jeito com água
fervendo, imagine só!
Beth olhou-o sem compreender.
— O que sei é... — Estava começando a falar, quando Bar bara irrompeu na
sala e foi postar-se ao lado de Raul.
Era a Barbara, frágil e elegante como sempre, em seus bem talhados trajes
de montaria, com o olhar brilhando maliciosa mente em direção a Beth,
quando encostou-se ao homem que estava a seu lado em uma atitude de
posse.
— Alguém levou um tombo por aqui? — perguntou, zom beteira, encurvando
os lábios, enquanto analisava a figura des grenhada de Beth. — Oh, sim, bem
que eu ouvi. Como é, srta. Rivers? Trabalhando duro?
Beth não teve resposta. O aparecimento súbito da outra a tinha conturbado e
ela deu graças a Deus que sua palidez pudesse ser atribuída à queda.
Mas o que a estava preocupando era sua reação ao ver novamente Raul e a
constatação de como seria fácil cair de novo sob seu fascínio. Não tinha
ilusões sobre os sentimentos dele. Sabia que só o respeito pelo patrão o
tinha impedido de possuí-la. Mas por quanto tempo perduraria esse respeito
de pois que casasse com Willard?
Barbara estava firmemente empenhada em agredi-la:
— Acha que é muito espertinha, hein? Mas não pense que porque foi fácil
fazer meu pai de trouxa possa repetir a dose conosco.
— Com vocês?
Os olhos de Beth foram de Raul para Barbara e de Barbara para Raul.
— É isso mesmo. Conosco! — confirmou Barbara triunfal-mente. — Não pense
que Raul deixou-se enganar pelo propa lado amor que diz sentir por papai.
Ele sabe tanto quanto eu que você considera meu pai como uma boa fonte de
renda.
Beth estava mais chocada do que devia estar. Não devia ser surpresa para
ela que Raul discutisse suas opiniões particulares com a filha de Willard.
Mas ouvir aquilo dos lábios de Barbara soava-lhe como algo obsceno. Mas a
moça não parara por aí.
— E não pense que pode sair correndo atrás de Raul a qualquer dificuldade.
Ele contou-me como você suplicou para que a trouxesse para casa quando
fingiu ter se perdido.
O gemido de Beth foi audível.
— Ele disse isso? — Beth começou a tremer de nervosismo.
O que eles estavam tentando fazer com ela? Pressioná-la a confessar o que
havia se passado no bangalô de Raul? Será que Barbara estava a par disso?
Será que tinham combinado tudo entre eles, sabendo de antemão como
Willard era ciumento?
Raul parecia pedir com os olhos para que ela olhasse para ele, mas Beth
recusou-se a dar-lhe a satisfação de constatar o quanto se sentia ferida e
massacrada.
— O que há, Barbara? Não me diga que você está com ciúmes? — perguntou
Raul.
Beth virou-se de súbito e arrancando o avental, deu-lhes as costas, incapaz
de suportar mais tempo toda aquela baixeza.
— Você está perdendo seu tempo à toa — ouviu Raul dizer secamente para
Barbara.
Fazia parte da conspiração, isso mesmo, da conspiração de ambos para
obrigá-la a entregar os pontos e dar o fora. Mas eles iam ver que ela era feita
de outro estofo. Pelo menos, a revelação servira para abrir-lhe os olhos sobre
os motivos por que fora atraída sexualmente por aquele homem
inescrupuloso.
Foi com alívio que ouviu os passos de ambos cruzando o pavimento de
mármore do hall, e quando aventurou-se a olhar novamente em torno,
percebeu que estava sozinha.
CAPITULO VII
Naquela mesma manhã, Willard mandou um recado por Jonas, convidando
Beth para to mar café com seus convidados, mas ela recusou. Deu como
desculpa estar ocupada com a faxina, e quando Willard a en controu, antes
do almoço, estava irritado por ela ter se metido a fazer esse tipo de trabalho.
— Aqui na ilha não fazemos essas coisas — alertou, mos trando pouco
interesse pelas iniciativas de Beth. — Já é bem difícil conseguirmos
criadagem. Não vá querer que eu perca os poucos empregados que me
restam.
Beth ergueu os ombros sem compreender e ele esclareceu:
— Maria esteve se queixando com Jonas que a nova patroa acha que o
serviço dela não presta. Se não tomo cuidado, daqui a pouco Clarrie vai fazer
coro com ela e, então, como vamos nos arrumar?
— Está bem, está bem. Não vou fazer mais nada. Mas quan do nos casarmos,
não vá se queixar que a casa não está limpa.
As mãos ossudas de Willard baixaram em seus ombros e um sorriso escapou
de seus lábios.
— Quando nos casarmos... — Fez eco, com uma ponta de satisfação.
— Pois é. Essa era uma das razões pelas quais eu queria que você
participasse da hora do café. Estive combinando com Barbara os arranjos
para o nosso jantar.
— Ah, é? — Beth acautelou-se, mas Willard, obviamente, não sabia nada
sobre a briga.
— E ela concordou comigo. Vamos convidar todos os nossos amigos,
inclusive os que moram em Santa Lúcia e na Martinica.
— Oh, Wiilard! Acha que deveríamos? — Beth estava pouco entusiasmada. —
Isso não significa que alguns deles terão que pernoitar aqui?
— E por que não? — Willard estava na defensiva. — Você não vai querer vir de
novo com essa lengalenga de que é muita canseira para mim. Quero preveni-
la, Beth: estou ficando farto dessas restrições todas.
Beth segurou a língua e levantou os ombros, num gesto de derrota. Ele deu-
lhe uma paneadinha nas costas, contemporizador.
— Assim é que se faz, minha menina. Em seguida, enrugou o nariz.
— Hummm... Você está cheirando a poeira. Seria melhor tomar um banho
antes do almoço e, depois, pare de fazer esses serviços inúteis. Não quero
que meu amor se canse antes mes mo de colocar-lhe uma aliança no dedo.
O banho de chuveiro refrescou-lhe o corpo e relaxou-lhe os nervos. Quando
reencontrou Willard para o almoço estava com ótima aparência, muito
cheirosa e bronzeada, num vestido de algodão sem mangas, cuja barra ia até
abaixo dos joelhos. Era todo branco, enfeitado apenas por uma tira de ponto
russo em cores, para dar mais vida ao modelo. Sendo muito rodado, apenas
sugeria as curvas de seu corpo.
Willard segurou-a pelas duas mãos, afastou-a um pouco e examinou-a com
um sorriso de aprovação e posse.
— Muito bonita. É assim que gosto de vê-la. Toda limpinha e perfumada.
Willard disse aquilo rindo, como se fosse uma brincadeira, mas ela sabia que,
no fundo, estava falando sério.
Como que para marcar sua posição de independência, teimou em comer um
lauto almoço, com pêssegos e creme chantilly por sobremesa. Era o tipo de
refeição proibida, e mesmo cons ciente das palavras de proibição, ele serviu-
se de uma segunda porção de creme chantilly.
Quando acabou de comer, estava sonolento e não ofereceu re sistência à
sugestão de Beth para que fosse tirar sua sesta. Logo que o acomodou no
quarto, desceu novamente, incapaz de encontrar para si mesma aquele
relaxamento que tinha proporcionado a ele.
Lá fora, o sol e a praia eram tentadores, mas a imagem do bangalô de Raul
Valerian e o uso arbitrário que ele fazia daquelas paragens a impediram de
aventurar-se num passeio à bei-ra-mar. Mas sentia-se muito inquieta, por isso
foi em direção às garagens, que guardavam a camioneta que ela e Willard
usavam. Um negro, a quem ouvira Willard chamar de Nathan, ocu pava as
funções de garagista e lavador de carros. Mostrou os dentes, num sorriso
simpático, quando ela lhe perguntou se podia usar a camioneta.
— A camioneta está com o pneu furado — avisou, para desapontamento de
Beth que quase lhe perguntou que diabos estava fazendo ali sentado em vez
de trocar o pneu.
Mas guardou o aparte para si, e como se ele tivesse adivi nhado sua
disposição tolerante, sugeriu:
— Se quiser, pode usar o carro da srta. Barbara. O sr. Raul levou-a até o
centro de jipe.
Beth estreitou os lábios e olhou desconfiada para o imundo DKW vermelho,
imaginando o que diria Barbara se soubesse que Nathan estava oferecendo
seu carro à moça que tanto detestava.
— Não sei, não...
— Por quanto tempo pretende ficar fora?
— Mais ou menos por uma hora.
— Então, tudo bem. Ninguém precisa saber — decidiu Nat han com animação,
mas Beth não estava convencida.
— Acha que não? Ouvi dizer que tudo o que acontece por aqui, logo se sabe,
de um jeito ou de outro.
O sorriso de Nathan ficou ainda mais amplo.
— Então, não demore muito, combinado?
Beth sabia que não ia aguentar o tédio de voltar para casa e ficar sentada
em seu quarto por duas horas, à espera de que Willard acordasse... O DKW
era mais fácil de dirigir do que a camioneta. Mesmo assim Beth passou uns
maus momentos de hesitação, imaginando o que aconteceria se sofresse um
acidente ou se o carro, por azar, quebrasse. Willard por certo a protegeria
dos ataques de Barbara. Nesse ponto, estava confiante.
Tomou a estrada que ela e Willard costumavam usar para ir a San Germaine.
Estava tão absorvida, que não se deu conta de que, numa encruzilhada,
enveredara pela trilha e, só quando viu os telhados do engenho, é que
percebeu o engano.
Quis brecar e voltar dali mesmo, mas a estrada era muito estreita e
precisaria alcançar o pátio em frente aos escritórios, para poder manobrar.
Estava matutando de que jeito faria a manobra quando sur-giu um homem,
vindo do escritório. Logo ficou tensa, mas era apenas André Pecares que,
quando viu o carro, veio direto em sua direção. Beth percebeu que ele
pensara tratar-se de Bar bara e desejou sair dali o mais rápido possível.
Ninguém deveria saber que ela estava usando o carro de Barbara. Mas era
tarde demais. André já tinha alcançado o carro e abaixou-se, olhando para
dentro pelo vidro aberto.
— Em que posso ser útil? — começou a dizer. A sua sobrie dade diminuiu
quando viu que era Beth. — Srta. Rivers! Pensei que fosse...
— Barbara. Sim, eu sei. — Beth completou a frase, nervosa. — Receio que
tenha tomado o caminho errado novamente. Eu... eu estava querendo subir a
montanha.
André enrugou a testa.
— Não a aconselho. Não com um carro desses. As estradas são péssimas e
só o jipe do sr. Valerian pode arriscar-se. — Fez uma pausa. — O sr. Petrie
está sabendo de suas intenções?
Beth impacientou-se.
— Não. Saí de casa sem avisar. O sr. Petrie está repousando e eu... estava
entediada — confessou.
— Então por que não vem tomar um cafezinho comigo? — sugeriu,
educadamente.
— Oh, eu... não, não creio que seja o caso. André hesitou.
— Estou sozinho no escritório e ficaria encantado se me fizesse companhia.
Por que diabos teria dito aquilo? Será que ele também sabia das suspeitas de
Raul a seu respeito? Seria de conhecimento geral a suspeita de que ela ia
casar com Willard por dinheiro? Existia somente um meio para descobrir.
— Está bem. Muito obrigada.
E para surpresa de André, tanto quanto dela mesma, Beth abriu a porta do
carro e saltou.
Beth aceitou o café que lhe foi oferecido com extrema gen tileza e
perguntou:
— Frequentou a escola da ilha?
— Sim. Fui aluno da sra. Signy até os onze anos. Eu e minha irmã.
— Tem irmãs?
— Sim, Louise. Ela é cinco anos mais nova do que eu. Ela e Raul... bem... ele
gosta muito dela.
Beth olhou para o fundo do copinho. Será que não havia meios de escapar
àquele nome odioso? E o que estava dizendo esse André? Que sua irmã
Louise era mais uma mulher na vida de Raul? Quantas mulheres, afinal, ele
tinha? Barbara, Isabelle Sig ny, Louise Pecares. Será que se importava com
alguma delas?
Como se adivinhasse que algo estava errado no ar, André terminou de tomar
seu café e sugeriu:
— Gostaria de visitar o engenho? No momento, não está funcionando, mas
posso explicar-lhe os processos de extração do açúcar.
— Oh, sim. Gostaria muito.
— Ótimo. Quando acabar de tomar seu café, então... André explicou que logo
estaria em funcionamento e, então,
os pesados cilindros esmagariam os rolos de cana. extraindo a garapa que
se transformaria em cristais de açúcar.
— Nós exportamos o açúcar mascavo, pois aqui não temos refinarias. Mas
pelo tamanho da ilha, até que nossa produção não é má.
— Está querendo vender a indústria para a moça? — Ou viu-se uma voz
zombeteira, vinda da porta aberta, e ambos viraram-se e viram Raul parado,
observando-os.
— Raul! — Ao contrário de Beth, André parecia contente de ver seu
supervisor. — Temos uma visitante.
— Estou vendo.
Raul olhou-a com insolência e antes que ele interpretasse mal as razões de
sua presença naquele local, justificou-se:
— Eu me perdi no caminho e o sr. Pecares teve a gentileza de oferecer-me
um café.
— Você faz disso um hábito? — Raul comentou cinicamente e Beth olhou
desajeitada para André.
— Já estava de saida — apressou-se em dizer. — Obrigada pelo cafezinho e
por ter me mostrado o engenho. Apreciei muito.
Ela saiu correndo antes que ele tivesse chance de responder, mas, no meio
do caminho, sentiu seus passos seguidos e um apertão no braço. Raul
continuava a se comportar da mesma maneira.
— Espere! — ele grunhiu selvagem ente. — Preciso falar-lhe e é melhor que
me escute.
— Largue-me!
— Se eu largar seu braço, tem que prometer que me dará uma chance para
uma explicação.
— Explicação? — Beth soltou uma risada irônica. — O que há tanto para
explicar? Que você é um mentiroso? Que Barbara é uma mentirosa? Que
vocês se completam às mil maravilhas?
Ele parou abruptamente e Beth, aproveitando-se do momen to de
perplexidade, deu-lhe um safanão e correu para o carro.
Viu um semicírculo proeminente de pedra britada, ao lado da estrada,
cercando a vala que a tinha impedido de voltar direta-mente. Se acelerasse
bastante, para que as rodas saltassem o obstáculo, poderia depois engatar
uma primeira e sair de frente. Calculou a distância e meteu o pé no
acelerador. O motor guinchou em sinal de protesto. Virando a direção, foi
direto para cima das pedras e gemeu de desgosto quando ouviu o pneu
traseiro der rapando e levantando uma nuvem de poeira. Tinha calculado mal
o impulso e por alguns centímetros teria caído na vala. Pôs a cabeça para
fora da janela para olhar o pneu, pouco se impor tando com o que Raul
Valerian iria fazer com ela agora.
— Tente virar para o lado direito!
As instruções foram dadas em tom de comando e ela ergueu a cabeça para
fitar seu perseguidor. Desanimada e derrotada, tirou os pés dos pedais e foi
deslizando para o assento dos passageiros. Raul abriu a porta e sentou-se ao
volante. Engatou a primeira e pisou o pedal com força. O carro balançou peri
gosamente, mas as rodas continuaram no vácuo.
— Não adianta. Esse carro tem tração nas rodas dianteiras — observou Raul
impassível. — Bem, agora podemos conversar?
— Não tenho muita escolha, não é?
— Tem. — A voz dele era gelada. — Posso sair e empurrar o carro e você
poderá ir direto para casa.
— Então faça isso — ela balbuciou.
— Tem certeza de que é isso mesmo que quer?
— Claro que tenho certeza.
— Certo. — Ele tornou a abrir a porta, mas antes de sair, esclareceu: — Não
fui eu quem disse a Barbara que você suplicou para que a levasse para casa
naquele dia. Contei-lhe apenas a verdade. O que ela resolveu dizer-lhe é da
conta dela.
Ele pós o pé para fora do carro, pronto para sair, mas Beth o deteve,
segurando-lhe o braço.
— Como posso acreditar em você? Chegou a contar-lhe tudo o que
aconteceu?
— Você quer dizer, na minha casa? Não.
— Diz isso agora, mas...
Ela olhou-o bem perto e daquela curta distância Beth podia ver todos os
poros da pele.
— Por que eu haveria de mentir? Ela titubeou.
— Para proteger-se. Para tentar fazer algo mais comigo numa próxima vez.
Para... para criar uma situação vantajosa para você.
— Ora, deixe disso. — Sua voz era séria. — Quem você pensa que sou? —
Seus olhos verdes pareciam cubos de gelo.
— Não percebe que se eu não acatasse a história de Barbara, a essa hora ela
teria Willie amarrado pela coleira, e você estaria comendo o pão que o diabo
amassou?
— Acha que ele acredita mais em você do que em mim?
— Acho, não. Tenho certeza! — E acrescentou empolgado:
— São Cristóvão! Você não sabe como ele é desconfiado? Na noite seguinte
à que eu a levei para casa, veio pessoalmente até o bangalô. Queria saber a
todo custo o que tinha acontecido. Queria saber o que eu tinha a dizer!
Beth fitou-o, incrédula.
— O que você tinha a dizer? — repetiu. Raul olhou para o curativo do pulso.
— Vamos lá! — Contemporizou, e fez nova tentativa de tirar o carro, desta
vez bem-sucedida. — Você bem que podia dar-me uma carona. E sem esperar
resposta, tomou a direção do carro.
Quando chegaram, Beth ficou na expectativa de que ele descesse, mas ele
lançou-lhe uma pergunta inesperada que a desconcertou:
— Foi nadar nesses dias novamente?
— Você deve saber que não.
— Como poderia saber?
— Ora, Barbara não o mantém informado de tudo? Ele torceu a boca.
— Você ainda não acredita em mim, não é mesmo?
— A única coisa em que acredito é que você não contou a Willard o que... o
que andou fazendo comigo.
— Acertou em cheio.
Os olhos verdes de Raul abaixaram-se para os lábios rubros de Beth.
— O que você esta tentando fazer? Provocar-me?
— Eu não! — Ela esticou-se no assento. — Como é? Vai ou não vai descer?
Ele fez um ar de indiferença.
— Antes, venha pegar seus óculos escuros e suas sandálias. Achei-os na
praia, naquele famoso dia em que você foi nadar. Esqueci de entregá-los da
última vez que esteve aqui.
Beth titubeou e ele fez uma cara de gozação.
— Quer que chame Tomas para ir buscá-los para você?
— Eu espero você aqui — disse ela.
Raul subiu as escadas, desaparecendo dentro de casa.
Sem poder refrear-se, Beth desceu a rampa gramada e foi até a beira-mar.
Tirou as sandálias e entrou na água até os tornozelos. O sol começava a
declinar e todo o horizonte era uma só mancha, em todos os tons de
vermelho. O ar estava parado, preparando-se para esfriar, logo que
anoitecesse.
Beth deu uma olhada para o lado do bangalô e viu Raul descendo as escadas,
com as sandálias na mão e os óculos escuros aparecendo no bolso do jeans.
Veio até ela e entregou-lhe os objetos.
— Obrigada — disse num murmúrio. — Pensei que a maré tivesse levado tudo.
— E não teve idéia de vir até aqui para averiguar?
— E que eu... bem, eu não pensei que...
— Ficou com medo de me encontrar, não é? Seja sincera. Beth ergueu a
cabeça orgulhosamente.
— Já é tarde e eu... eu preciso ir.
— Antes que Willie acorde da soneca? Ah, sim... — E diante da estupefação
de Beth, disse: — Conheço bem a rotina.
— Maria deve ter-lhe contado. — Beth sentiu-se indignada com aquela
fofoqueira. — Você tem uma rede de espionagem, não é mesmo, sr. Valerian?
E ela é mais uma das mulheres seduzidas pelos seus belos olhos!
Os belos olhos piscaram.
— Isso está me cheirando a ciúmes.
— Eu? Com ciúmes? — Deu uma gargalhada exagerada.
— Você mesma. — Raul olhou-a de cima a baixo. E ela, instintivamente, deu
um passo atrás.
Sentiu uma violenta pontada no pé e soltou um grito. Raul deixou a raiva de
lado e apressou-se em perguntar, muito pressuroso:
— O que foi?
Beth levantou o pé dolorido e ele ajoelhou-se na areia perto dela. Suas mãos
calosas pareciam suaves quando seguraram seu calcanhar. Os olhos de Raul
estreitaram-se quando viram um ouriço do mar grudado na planta do pé.
— Você pisou num ouriço — disse, sem preâmbulos. — Posso tirar os
espinhos?
Beth mordeu os lábios com força.
— Sim, sim. Vai doer muito?
— Um pouco, seria melhor sentar-se.
Ela sentou-se obedientemente na areia. Raul arrancou alguns espinhos com
muito cuidado, mas ela não pôde evitar de gemer.
— Desculpe, mas doeu bastante.
Raul não disse nada, apenas segurou novamente o pé e examinou o lugar
machucado.
— Um dos espinhos fez um belo furo e vou ter que chupar d sangue, pois
esses ouriços são venenosos.
— Então, vamos lá! — exclamou, muito tensa, e fechou os olhos para não ver
aquela boca sugando seu pé.
Para distrair a mente, começou a pensar em Willard. Mas a imagem dele foi
sobreposta por outra imagem, bem mais morena, de olhos verdes. Estava tão
concentrada quando aquela boca morna chupou-lhe a ferida que até levou
um choque quan do se deu conta de que não estava tão imune quanto
pensava.
— Já está limpo — declarou ele, ajudando-a a levantar-se. — Mas seria bom
passar um anti-séptico quando chegar em casa. Ora, estou querendo ensinar
o padre-nosso ao vigário! Esqueci que você é enfermeira.
— Obrigada. Você foi muito gentil. — Agradeceu, enquanto ajustava a saia
novamente no lugar.
— Acho que fui mesmo — ele concordou, sem maiores ce rimônias e
acrescentou: — A água salgada não vai causar dano. Vamos dar uma
nadadinha?
— Nadar? — Beth olhou-o surpreendida. — Mas... eu... eu não trouxe maiô.
— Calcinha e sutiã substituem perfeitamente o biquini — res pondeu
sorrindo. — E não se preocupe que não vou ficar olhando.
— Bem, acontece que não estou usando sutiã.
— Não? — Raul arregalou os olhos, fitando o busto de Beth.
— É, acho que não está mesmo.
— Eu não minto — disse ela, já com a respiração alterada e os lábios
entreabertos.
— Bem, isso não vem ao caso- — A voz dele enrouqueceu.
— Beth...
Ela teve o pressentimento de que ele ia tocá-la e entrou em pânico.
— Não! — gritou, e, simultaneamente, tentou calçar a san dália, mas quase
perdeu o equilíbrio e Raul amparou-a. — É... é muito tarde — ela balbuciou. —
Willard já deve estar pen sando onde terei me metido.
— Onde ele pensa que você poderia estar? — perguntou-lhe casualmente,
enquanto desprendia a fivela que lhe sustentava o coque. Uma cascata de
cabelos platinados despencou sobre seus ombros.
— Ele não sabe — ela gaguejou, tentando sacudir para longe a sensação de
delírio que já estava se apossando dela. — Raul, alguém pode nos ver...
— E você se importa?
— Claro! Você não?
— Nesse momento não estou me importando com mais nada.
— E deslizou suavemente os dedos por sobre o tecido que lhe encobria o bico
dos seios.
Beth tentou impedi-lo, segurando-lhe a mão, mas ele apenas desviou o curso
dos dedos e começou a acariciar-lhe o pescoço e as orelhas, enquanto a
queimava de beijos. Quando seus lábios chegaram ao decote do vestido, ela
tocou-lhe os cabelos, numa débil tentativa de afastar-lhe a cabeça.
— Você não está querendo que eu pare, está? — murmurou roucamente, e
Beth soube que, dali por diante, toda a respon sabilidade seria dela.
— Quero sim — afirmou, afastando-se, para proteger-se.
A expressão de Raul foi de intensa frustração. Ficou olhan do-a, sem dizer
nada, e quando ela pensou que ele tinha con seguido controlar-se, sentiu
seus braços cruzarem-lhe as costas, e ela foi puxada com frenesi para junto
daqueles músculos palpitantes. Entreabriu a boca, num gesto de protesto,
mas os lábios sequiosos de Raul praticamente a devoraram.
Desesperada, ela enterrou as unhas nas costas de Raul e levantou o joelho,
tentando empurrá-lo. Mas ele era por demais forte. Sem muito esforço,
conseguiu derrubá-la na areia, co brindo-a com todo o peso de seu corpo,
numa intimidade que destruiu suas defesas. Sentiu que todo seu ser pedia
por aquele apelo, quando ouviu Raul soltar um gemido doloroso, antes de
arrastar-se para longe dela.
Beth ficou ali estendida, arfante, levando as mãos ao pescoço, como que
querendo aliviar a tensão, e viu horrorizada que suas unhas estavam cheias
de sangue de Raul, e quando ele levantou-se, viu que suas costas estavam
unhadas.
— Meu Deus! — murmurou, trêmula, levantando-se tam bém. — Suas... suas
costas!
Sem se perturbar, ele passou a mão pelos arranhões e olhou a mão
ensanguentada.
— Desta vez você me pegou feio, hein? — disse friamente. — Seria melhor
deixar de lado esse tipo de anomalia.
— O que quer dizer com isso?
— Muitas mulheres são como você, ficam violentas quando estão excitadas.
— Excitadas! — Beth o encarou valentemente. — Eu estava era lutando
contra você!
— Estava? O tempo todo? Beth corou violentamente.
— O... o tempo todo — insistiu.
— Você disse que nunca mente — lembrou-lhe secamente, e começou a abrir
o zíper das calças.
Beth olhou horrorizada para aquele gesto.
— O que pensa que vai fazer?
— Não se apavore — retorquiu, azedo, enquanto terminava de puxar o zíper,
cuja abertura revelava um short azul. — Agua do mar... Conhece uma maneira
melhor de tratar de arranhões e de limpar o sangue?
Quando ele começou a andar em direção ao mar, Beth o seguiu com o olhar e
disse suplicante:
— Raul, o que você... o que vai fazer?
— Volte para seu noivo! —ele gritou, e mergulhou na água, de cabeça.
CAPÍTULO VIII
Willard foi ao quarto de Beth enquanto ela se vestia para o jantar. Estava de
dinner-jacket e parecia mais velho, mais formal. Talvez essa impressão se
devesse ao fato de ela tê-lo visto sempre com roupa esporte. Viu que ele
trazia uma caixinha de veludo que não abriu ime diatamente. Em vez disso,
ficou admirando a noiva.
— Deveria usar roupa sofisticada mais frequentemente — observou,
embevecido, e Beth teve que admitir que aquelas nuvens de chifon negro
realmente realçavam a cor de sua pele e evidenciavam o intenso brilho de
seus cabelos platinados. Naquela noite era importante apresentar-se da
melhor forma possível, e ela tinha caprichado no penteado, levantando as
partes laterais em dois grandes caracóis e prendendo as sobras junto ao
pescoço, com uma presilha de pérolas. Tinha escolhido um estilo proposital
mente clássico para dar-lhe um aspecto mais maduro, e a aprovação de
Willard confirmou sua opinião. Os convidados que já tinham chegado eram
quase todos contemporâneos de Willard e ela não queria chocá-los. Pare
cendo mais velha, seria também mais fácil lidar com Barbara que, sem
dúvida, estaria cercada de gente de sua própria idade. Tinham sido
convidadas dezessete pessoas, um número que parecia exorbitante para
alguém não habituado a entreteni mentos em grande escala, mas ela sabia
de antemão que a presença de Raul Valerian seria mais perturbadora do que
a soma de todos os outros participantes. Beth tinha ficado ater rada quando
Willard contara-lhe que o tinha convidado. Na verdade, nunca esperava que
um simples gerente fosse convi dado para uma reunião daquele género.
Tinham se passado dez dias desde que o vira pela última vez, desde que o
deixara mergulhado no mar para desinfetar com água salgada os arranhões
provocados por suas unhas, dez dias em que ela tinha vivido sob um terror
constante, temerosa de que ele chegasse de uma hora para outra naquela
casa para denunciá-la, exibindo as unhadas para Willard, e provocando sua
ira e desprezo. Mas Raul não aparecera. De outro lado, tinha certeza de que
não dissera nada ao noivo, pois Willard estivera várias vezes no engenho, e
em todas as ocasiões, seus comentários restringiam-se às próximas
colheitas.
De qualquer forma era impossível deixar de constatar que Willard estava se
recuperando e, paralelamente, readquiria o interesse físico em seu
relacionamento com Beth. Ultimamente, quando a apertava, suas mãos
tinham um vigor insuspeitado e seus beijos eram cada vez mais apaixonados
e frequentes. Beth sabia que ele esperava ansiosamente por uma intimidade
completa e total.
Willard estava agora oferecendo-lhe a caixinha que trouxera. Quando ela
abriu o estojo, gaguejou de espanto ao ver dentro dele um anel com um
enorme solitário.
— Gostou? — perguntou, com ansiedade, e ela só foi capaz de ficar ali, muda,
admirando a jóia.
— É todo seu — acrescentou, tirando o anel de seu ninho e segurando-lhe a
mão direita. — Até que não mude de idéia.
— Você... você comprou-o para mim? Quando?
— Isso é problema meu. Serve direitinho. Sabia que ia servir. Beth engoliu em
seco e ergueu a mão, admirando o brilhante.
— Todos vão reparar. .
— Pois é para que reparem mesmo — retorquiu Willard.
— E então? — Tocou os lábios de Beth com um dedo. Não mereço nem um
pouquinho de gratidão?
— O quê? Oh... sim! — Segurou-o pelo pescoço e deu-lhe um beijo na face. —
Obrigada, obrigada, querido.
— Que agradecimento mais sem graça! — exclamou, segu rando-a
firmemente pela cintura e colando-a junto a seu corpo.
— Você é capaz de fazer bem melhor do que isso! — E procurou seus lábios
com avidez.
Beth sentiu um extravagante impulso de resistir-lhe, mas conseguiu se
dominar. Mesmo assim, achou que ele estava se comportando de maneira
inusitada e foi com certa repulsa que recebeu a pressão daqueles lábios
duros e molhados sobre sua boca. Quando ele começou a percorrer a curva
de seu pescoço, sentiu que seu hálito cheirava a álcool. Com certeza,
estivera bebendo, mas nada justificava a maneira brutal como as mãos dele
apertaram-lhe o corpo, amarfanhando-lhe as carnes e as vestes de tal forma
que ela foi obrigada a empurrá-lo.
— Por Deus, perdoe-me, Beth — balbuciou, e quando ela começou a ajustar o
vestido e a suspender as mechas de cabelo que tinham desprendido,
soltando pequenas exclamações de consternação, ele acrescentou: — Não
sei o que aconteceu co migo. Sinto muito.
— Tudo bem. — Beth começou a tirar os grampos da cabeça, com dedos
trémulos. — Você pode descer sem mim? Vou ter que prender tudo de novo.
— E pensar que você estava tão linda! — exclamou, colo cando as mãos
sobre seus ombros.
— Está bem — disse, como se só então tivesse tomado uma decisão. — Eu
vou descer. Você não vai demorar muito, não é?
— O tempo necessário. — E enviou-lhe um sorriso desbotado. Quando a porta
fechou, Beth tirou o anel do dedo e recomeçou
a pentear-se. Era bem mais difícil consertar os estragos do que fazer o
penteado original e depois de muitas tentativas infrutíferas deixou-se cair
sentada sobre a banqueta em frente ao espelho, quase chorando. O problema
maior é que sua mente não estava concentrada naquilo que estava fazendo.
Seu pensamento des viara-se para a figura de Willard e para o
comportamento irra cional que ele tivera. E ao lembrar-se de suas mãos
quentes , tocando sua pele, sentiu um frêmito de repulsa. Seria assim tão
estranho aquele comportamento? O que sabia ela sobre essa faceta de seu
temperamento? Teria errado em pensar que ele era dife rente dos outros
homens? Mas aquela "apalpação" toda era claro exemplo do que seria sua
futura vida de casada.
Beth estremeceu. Não. Ele estivera bebendo. Em geral os homens
comportam-se de maneira inconveniente quando estão com algumas doses
de álcool a mais na cabeça. Como enfer meira do setor de emergência do
hospital, ela devia saber disso.
Passados dez minutos, quando já desistira de tornar a co locar a presilha de
pérolas, e contentara-se em prender o cabelo com grampos, alguém bateu à
porta. Recolocou rapidamente o anel no dedo, antes de perguntar:
— Quem é?
Era Maria, com um recado de Willard que mandava dizer-lhe que os
convidados estavam à sua espera. Beth agradeceu a criadinha, mais
tranquilizada com a própria aparência graças aos olhares invejosos que ela
lhe lançou. Fazendo a última consulta ao espelho, acompanhou-a para fora
do quarto.
Seis pessoas iriam pernoitar na casa. Eram amigos de Wil lard vindos de
Santa Lúcia da Martinica e Beth já tinha co nhecido quatro deles. Gilbert de
Vries era representante de Willard na ilha vizinha, e Charles Templeton, seu
advogado em Fort France. Ambos estavam acompanhados das esposas.
Quando Beth desceu as escadarias, encontrou Wilíard rece bendo um grupo
de pessoas recém-chegadas no hall. Da sala de visitas vinha o som de
música, risadas e tilintar de copos. O noivo a viu imediatamente. Devia ter
estado o tempo todo vigiando as escadas com o rabo dos olhos, pois foi logo
ao seu encontro, atraindo todos os olhares em sua direção.
— Linda como sempre! — sussurrou ao seu ouvido, quando a levou pelo braço
junto aos outros.
Todos estavam se mostrando encantadores, pensou Beth, pouco depois, já
na sala de visitas, empunhando uma taça de champanhe e aceitando um
brinde dos amigos de Willard. De início, ela sentira uma certa manifestação
de desagrado e antipatia da parte dos amigos mais velhos- Só quando sua
timidez sincera foi notada e quando constataram que ela não era a loira
burra e vulgar que tinham imaginado é que se acercaram dela, com simpatia.
Marta de Vries chegou ao extremo de convidá-la a passar uns tempos com o
casai, a qualquer tempo que ela quisesse, e Esther Tem pleton também tinha
sugerido que ela e Willard fossem ficar com eles em Fort France durante as
férias.
Agora, todos os convidados tinham chegado, com exceção dos Marin e de
Raul Valerian.
A cada cara nova que aparecia, Beth sofria as agonias da apreensão, só para
constatar, em seguida, que todos os seus temores eram infundados.
Naturalmente, Barbara também estava presente, espalhan do um charme
inesperado toda a vez que falava com o filho dos Dupois, Arnaud, que Beth
calculou mentalmente ter a mes ma idade que ela.
Fez-se uma agitação no hall quando chegou a família Marin, e Beth pediu
licença aos Hammond, com quem estava conver-sando, para ir cumprimentá-
los. Era tão bom ver rostos já meio conhecidos, mesmo que o conhecimento
fosse relativamente cente, Diane Fawcett estava junto, muito esbelta e
atraente, ves-tida de vermelho, e logo atrás surgiu a figura morena de Raul
muito elegante num smoking de veludo cor de vinho.
Parecia tão diferente e tão perturbador naqueles trajes, que Beth ficou
olhando para ele como que hipnotizada, sentindo-se empalidecer quando
percebeu que outras pessoas estavam in terceptando seu olhar. Desviou a
atenção para Susi, elogian do-lhe a toiliete e agradecendo a Jacques pelos
elogios que, por sua vez, fizera a seu traje de chifon negro.
Felizmente, naquele instante, Willard chegou, vindo da sala de visitas, para
cumprimentar os recém-chegados,
— Jacques! — gritou, expansivo, e sacudiu a mão do outro com caloroso
entusiasmo. — Você é um fanático por aquele hospital!
Depois, ele deu um beijo no rosto de Susi e de Diane e finalmente
cumprimentou o gerente:
— Bem-vindo — saudou um tanto falsamente e, em seguida, convidou a todos
para que fossem tomar um aperitivo na sala de visitas.
Clarrie estava demorando para anunciar o jantar e, enquan to Willard abria
mais uma garrafa de champanhe, Beth notou que Diane passava o braço
pelos ombros de Raul corn dema siada familiaridade. As unhas da moça
estavam pintadas com um esmalte da cor do smoking dele e escorregavam
pelo veludo com sensualidade. Beth surpreendeu-se quando Susi expressou
sua admiração pelo anel de noivado com os dentes cerrados.
— Você é uma moça de sorte! Willard acha que a lua é pouco para você.
Outro dia estava conversando a seu respeito : com Jacques e tornou-se
evidente que ele está apaixonado!
Beth forçou um sorriso.
— É... creio que vamos nos dar bem. Susi deu uma gargalhada.
— Chérie, como você é modesta! Nunca vimos Willard tão eufórico.
Naturalmente, não chegamos a conhecer sua primeira mulher, mas sempre
achamos que ele era, como dizer, um tanto fleugmático, um homem difícil de
empolgar-se. Mas desde que a conheceu... — espalmou as mãos num gesto
significativo. — Você deve saber o que quero dizer.
— Sim, sei.
A rolha da garrafa de champanhe estourou longe e todos explodiram também
numa gargalhada borbulhante ao ver Wil lard atrapalhado, com um copo na
mão, tentando aparar o liquido que se espalhava por todos os lados.
Beth fez força para readquirir a empolgação que tinha sen tido quando fora
pedida em casamento, mas aquela emoção diluíra-se para sempre. Tentou
livrar-se da profunda depressão de que estava tomada. Afinal, o anel de
noivado não era uma aliança de casamento...
Uma taça de champanhe colocada em sua mão a trouxe de volta à realidade.
Sentiu a mão de Willard segurando-a pos sessivamente pelos ombros.
— Um brinde! — alguém sugeriu, e todos aderiram.
Os convidados levantaram as taças em homenagem ao casal, e Willard
passou seus lábios quentes e úmidos sobre a fronte de Beth.
— Meus amigos! — ele exclamou, e o pânico de Beth re crudesceu. — Meus
amigos! — repetiu. — Quero aproveitar esta oportunidade para convidar a
todos para nosso casamento. — Antes que Beth tivesse tempo de assimilar
aquela chocante participação, acrescentou: — Não sou favorável a noivados
lon gos e agora que estou completamente restabelecido, não vejo por que
esperar mais, não é querida?
— Eu... eu... — ela começou a dizer, sem saber como ir adiante, e, quando a
voz de Jonas anunciou que o jantar estava servido, ela abençoou o momento
de sua aparição.
Logo, todos os olhares desviaram-se para o lado do preto velho e nesse
ínterim Beth teve tempo de se recuperar. Mesmo assim, a comunicação de
Willard continuava a estarrecê-la pois não podia imaginar que uma
declaração dessas, feita em público, não tivesse sido discutida antes com
ela. Por sorte, como eles tinham que abrir alas a caminho da sala de jantar,
Willard não teve muito tampo para recriminações, mas, mesmo assim, Beth
sentiu que a mão que a segurava pelo braço parecia forjada em ferro.
Willard começou a designar os lugares à mesa, colocando Beth à sua
esquerda e Barbara à direita. Beth ficou sobre espinhos quando viu que Raul
sentara-se ao lado de Barbara. Isso significou que ele estava frente a frente
com ela. Seu vizinho era Charles Templeton com o qual tinha pouca coisa a
dizer. Consequentemente, sentiu-se assustadoramente cons-ciente daqueles
dois olhos verdes postos sobre ela, toda a vez que Barbara ou Diane
deixavam de monopolizá-lo.
O jantar foi uma consagração à arte culinária de Clarrie. Wil lard fez questão
de explicar que ela mesma preparara o patê, muito leve e cremoso; o
consomê frio fora condimentado com um pouco de sherry; e o rosbife foi
servido com um molho de vinho e champignons que dava água na boca. O
cardápio era rico e substancioso e Beth começou a notar que Willard
tornava-se cada vez mais roxo a cada copo de vinho que tomava. Desde seu
retorno à ilha, seu apetite vinha aumentando assustadoramente.
— Você está bebendo demais — murmurou ela apreensiva.
— É tudo o que tem a dizer? Este é meu jantar de noivado, o jantar de
comemoração de meu noivado, entendeu? O resto que se dane! Por que não
posso beber? Comportei-me como um bom menino por tempo demasiado.
— Só estou falando isso para seu bem — replicou Beth, em voz baixa,
puxando para a beira do prato um pedaço de cogumelo.
Depois do jantar, o café foi servido no salão de estar, cujas cadeiras e
mesinhas tinham sido afastadas para fazer espaço para as danças. Barbara e
Diane estavam perto do aparelho de som, escolhendo discos, quando Beth
percebeu Raul a seu lado, segurando a xícara de café com seus longos
dedos.
— Então... quer dizer que os parabéns estão na ordem do dia?
— Não, se não estiver disposto a dá-los — ela respondeu, olhando em volta
para ver se não estavam sendo observados.
— Relaxe. Ninguém está prestando atenção em nós. Não, por enquanto. —
Ele abaixou-se e colocou a xícara vazia numa mesinha. — Você parece
nervosa. Qual é o problema? O sonho dourado já está começando a virar
pesadelo?
Beth susteve o fôlego pois não podia externar a raiva que estava sentindo.
— Notei que já tirou as ataduras do pulso. — Disfarçou, e lançou-lhe um olhar
cínico.
— Como pode ver, estou totalmente recuperado. E... nos outros lugares? Não
quer saber?
— Que quer dizer com isso?
— Ora, Beth, não se faça de tonta! Não se lembra das unhadas?
— Não é hora nem lugar adequado para esse tipo de dis cussão, não acha?
— Certo. Mas não queira fingir que não sabe o que se passou entre nós dois,
pois não vou acreditar.
— Eu... eu... — Beth levou a mão à garganta. — Não sei do que está falando.
— Não? — Os olhos de Raul a percorreram de alto a baixo.
— Vamos dar uma demonstração do que disse?
— Você... você não vai fazer uma coisa dessas!
— Não, não vou. Mas não por sua causa!
— Por causa de Willard, não é mesmo? Raul concordou e logo se afastou
dela.
Willard veio ao seu encontro quando Barbara colocou uma valsa na vitrola e
Beth vestiu a máscara do contentamento. Raul tinha conseguido acabar com
sua paz de espírito e ela desejou ardentemente que aquela noite acabasse
logo.
— Jacques acabou de passar-me um pito — disse Willard enquanto a
apertava em seus braços com tanta ânsia que os botões de seu dinner-jacket
formavam duas marcas redondas na pele de seu busto.
Beth estava determinada a não reclamar, nem intrometer-se em mais nada,
mas disse com certa ênfase:
— Ótimo!
Curiosamente, sua exclamação pareceu aborrecê-lo.
— Suponho que você não esteja mais se importando comigo.
— E largou-a com tal ímpeto que a deixou meio tonta.
— Não é assim... — negou cuidadosamente. — Ele é médico e deve saber...
— Ele não é cardiologista — retrucou Willard, agressivo.
— O que pode saber sobre meu caso? Beth suspirou.
— Bem, não vamos discutir. Como é? Está se divertindo?
— Mais ou menos. — Fitou-a nos olhos. — Do que estavam falando, você e
Raul Valerian? Pareciam muito entretidos.
Do que estavam falando... ? Por uma fração de segundo, Beth só conseguiu
pensar na inegável atração que existia entre ambos e o sangue afluiu às
suas faces.
— Ele... ele... eu estava perguntando se estava melhor das queimaduras da
mão.
— Como sabia que ele tinha queimado a mão?
Beth engasgou.
— Você... você me contou.
— Eu não!
— Então deve ter sido Barbara. Ou talvez ele mesmo. É... é isso. Foi naquela
manha que ele veio aqui, quando eu estava fazendo faxina.
Willard torceu o nariz.
— Uhmmm! Faxina! — Felizmente, ele parecia divertir-se àquela lembrança.
— Não vou querer mais minha mulher fazendo faxinas. — Olhou com avidez
para a curva branca de seu pescoço. — Você é uma mulher muito atraente,
Beth! Não vejo a hora de esses idiotas darem o fora para ficar a sós com
você!
O estômago de Beth contraiu-se.
— Willard! Ainda não somos casados! Além disso, temos convidados que vão
dormir aqui!
— Clarrie vai acomodá-los na outra ala. Pedi que limpasse e arrumasse
alguns daqueles quartos sobre os quais você andou resmungando. Uma
cortina lavada e unias roupas de cama limpas vão torná-los habitáveis.
Beth sentiu-se horrorizada só de pensar que aqueles dois casais tão
simpáticos iriam dormir naquele museu. Mas, suas próprias preocupações
fizeram-na esquecer os problemas alheios.
O que Willard estava tramando? Será que o fato de ter lhe colocado um
solitário no dedo já lhe dava direitos de posse sobre ela? E por que tal
perspectiva a chocava tanto?
A sequência da conversação foi interrompida pelo apareci mento de Jacques
Marin que insistiu em valsar com a noiva. Willard cedeu, sem maiores
protestos, e o coração de Beth deu um salto quando o viu dirigir-se para o
aparador onde estavam as bebidas. Mas ela não podia proibi-lo, e Jacques,
sua única tábua de salvação, já não estava muito firme das pernas. 0
champanhe era distribuído a rodo e depois de experimentar um pouco do
ponche de rum, Beth surpreendeu-se com o efeito que aquela bebida, típica
da ilha, fazia sobre o ânimo alheio.
Raul não a procurou mais. Ela o viu dançando durante o restante da noite, às
vezes com Diane, outras com Susi, e até mesmo com as esposas dos amigos
de Willard. Mas a parceira mais constante foi Barbara.
Já passava das duas da madrugada quando a festa começou ta arrefecer. E
foi só quando os Marin estavam indo embora que Beth se deu conta de que
Raul tinha sumido sem ser pressentido. Angustiada, constatou que também
Willard e Bar bara não estavam mais ali. Quando acabou de despedir-se de
Jacques, Susi e Diane junto ao carro e voltou para o hall, viu reaparecer pai e
filha. Pela expressão de Willard, percebeu que, caso viessem a falar-se, o
que seria dito não agradaria a nenhum dos dois. E Barbara estava novamente
com aquele olhar maldoso que tão bem ocultara nos últimos dias. f Os
hóspedes que iriam dormir na casa disseram boa-noite e retiraram-se aos
seus aposentos. Beth, incomodada pelo olhar rancoroso de Barbara, resolveu
também recolher-se. Willard não lhe tinha dirigido a palavra desde seu
reaparecimento ao lado da filha e ela só esperava que a brisa noturna o
tivesse tornado sóbrio para saber se comportar dali por diante. — Bem...
então, boa noite — saudou Beth, quando todos se juntaram ao pé da
escadaria. — Vejo você amanhã cedo, Willard. Willard deu uma olhada para a
filha, antes de anunciar:
— Também vou subir agora.
Os dedos de Beth apertaram o corrimão com força. Quais seriam as
intenções dele? Tentando afastar seus receios, virou-se para Barbara mas
esta não lhe deu a mínima, e passou por ela, sem uma palavra, subindo pelas
escadas e deixando os dois sozinhos.
Beth e Willard subiram os degraus, lado a lado, e ela não pôde deixar de
notar como as extravagâncias daquela noite o tinham afetado. Quando
chegaram ao patamar, ele parou ofe gante, e fez um esforço visível para
continuar a andar pelo corredor. Ao alcançarem a porta do quarto dele,
Willard a re teve, segurando-a pelo ombro. Beth teve um tremor incontido,
Was quando o viu encostar-se à parede, como se estivesse no fim de suas
forças, deu-lhe atenção.
— Acho que não vou conseguir arranjar-me sozinho — disse, aparentemente
recalcitrante. — Você poderia dar-me uma ajudazinha?
Beth pensou duas vezes. A última coisa que desejava fazer daquela noite era
entrar no quarto de Willard. Mas ela era uma enfermeira... a enfermeira dele,
e qualquer outro paciente ter merecido sua atenção naquelas
circunstâncias.
— Claro — disse finalmente. — Vamos lá que eu o ajudarei a despir-se.
Abriu a porta e Willard entrou cambaleante e foi andando com passos
incertos até perto da cama. Beth parou e capaci-tou-se que não poderia tirar-
lhe a roupa com a porta aberta. Voltou para fechá-la.
Willard sentou-se na beira da cama, enquanto ela lhe afrou- xava o nó da
gravata. Depois tirou-ihe o paletó. Ajudou-o com tal solicitude que uma parte
do gelo que havia se levantado entre ambos chegou a derreter-se.
— Como soube que Valerian queimou a mão? — Willard tornou a perguntar
subitamente, e ela sentiu-se apreensiva,
— Já lhe disse. Você mesmo me contou.
— Não, eu não contei coisa alguma — Willard retrucou. — Barbara contou que
você sabia muito antes de ele ter vindo aqui em casa.
Beth continuou desabotoando-lhe a camisa, procurando de- sesperadamente
alguma coisa para dizer. Mas o que poderia dizer senão a verdade? Talvez
fosse até melhor que ele soubesse de tudo por seu intermédio e não através
da história deturpada de ou trem.
— Pois bem... — disse cautelosa. — Eu sabia pela simples razão de que eu
estava lá quando aquilo aconteceu.
Willard agarrou-a pelo pulso.
— Você... o quê?
— Eu estava lá. Pensei que soubesse.
— Não! Vá em frente. Quando foi isso?
— Naquele mesmo dia em que fui cavalgar com Barbara.
— Quando ele a trouxe para casa? Você está dizendo que, de fato, tinha
combinado encontrar-se com ele?
— Nada disso! — Beth estava estarrecida pela forma como ele tinha chegado
às piores conclusões.
— Como você mesmo disse, Raul me trouxe para casa. Bem... ele tinha
encontrado meus óculos escuros e minhas sandálias na praia. — Beth teve
uma súbita inspiração e concluiu: — E sugeriu que fôssemos antes apanhar
minhas coisas.
— Você está mentindo!
— Não estou! — O rosto de Beth estava escarlate. — Ele... ele achou meus
óculos na praia.
— Mas não foi por isso que você foi até a casa dele!
— Foi. Ele... bem... eu me senti mal e ele ofereceu-me café.
Willard torceu-lhe o braço dolorosamente.
— O que você está pensando? Que sou algum imbecil? Acha que vou engolir
uma história dessas!
— Willard, ele queimou a mão com água fervendo quando foi fazer um café.
— Talvez... mas o que aconteceu antes desse bendito café é o que me
interessa!
— Não aconteceu nada antes do café! — afirmou, desespe rada. — Willard,
você está me magoando.
— Gostaria de magoá-la bem mais do que isso. — E com uma energia, sem o
menor traço de exaustão anterior: — Não sou trouxa, Beth. Já é tempo de
você saber disso. Agora estou entendendo por que vinha com aquelas
fábulas a respeito de minha saúde. Você estava a fim do melhor, do mais
conveniente: meu dinheiro e o corpo dele!
— Não! — Beth estava horrorizada. — Willard, você está louco!
— Tenho que concordar que estive louco. Mas agora posso ver claro. Cheguei
a pensar que você se importava um pouco comigo. Sabia que o dinheiro era
uma forte motivação. Mas tive a ilusão de que você tinha uma certa afeição
por mim.
— E tenho. Tenho mesmo! Oh! Willard, concordo que deveria ter-lhe contado
sobre Raul.
— Raul! Raul, não é mesmo? — Seus lábios se estreitaram.
— É evidente. Eu deveria ter pensado que uma mulher como você não
passaria muito tempo sem...
— Uma mulher como eu?
— Isso mesmo! — Seus olhos se fixaram em seu seio arfante.
— Prontinha para o que der e vier, não é mesmo? Pois você nunca poderá
dizer que Willard Petrie é homem que desaponte uma mulher! — E, com um
gesto brusco, a derrubou na cama.
Beth forçou um movimento de defesa. Mas o gesto só facilitou para que ele a
subjugasse e isso era a última coisa no inundo que ela desejava. Willard não
era mais aquele pobre inválido. As últimas semanas o tinham fortalecido e
sob o peso daquele corpo revigorado, ela não teria chance.
Foi então, quando não tinha mais esperanças de detê-lo, que ouviu alguém
bater à porta freneticamente, aos gritos, e nem Willard pôde ignorar aquela
interrupção. Praguejando, Willard levantou-se.
Beth estava por demais atônita para mover-se, mas quando ele abriu a porta,
a correnteza de ar fresco deu-lhe nova vida.
Pulou da cama e foi atrás dele, sem compreender a balburdia que se passava
no corredor.
Os Templeton estavam lá, junto com os Hammond, mas e Marta de Vries
quem estava fazendo mais algazarra. Chorava histericamente e o marido
esforçava-se para acalmá-la. Foi Char-les Templeton que, por fim, elucidou o
que estava acontecendo. — O colchão, homem de Deus! — exclamou raivoso
— Está infestado de baratas e percevejos! Que raio de criados você tem?
Não cumprem suas obrigações? Nenhuma daquelas camas está em
condições para alguém dormir nela!
Beth encostou-se timidamente ao batente, enquanto Willard pregava suas
mentiras. Pagava excelentes salários, afirmou ele, e se os quartos não eram
habitáveis a culpa não era dele. Beth olhou-o com assombrada descrença.
Ele sabia muito bem que aqueles cômodos estavam em petição de miséria.
Ela tinha inclusive avisado, mas Willard fizera-se de surdo.
Agora estavam todos descendo as escadas, com Willard a frente, chamando
Jonas em altos brados, sem se importar que os criados já tivessem se
recolhido há horas e não ouviram seus berros. Mas nesse ponto, Beth
enganou-se. Quando en veredou, estonteada, pela galeria ao lado da escada,
viu Jonas aparecer estremunhado, tentando enfiar o paletó por sobre a
camisa desabotoada.
Ela desceu as escadas, pé ante pé, sem saber nem o que estava fazendo.
Podia ouvir Willard arrasando o velho criado, aos gritos, e as respostas
incoerentes de Jonas, acrescentadas a alguns co mentários dos hóspedes.
Aquele caos pareceu-lhe insignificante, comparado com o que lhe ia na alma-
Não poderia suportar que Wiliard a tocasse novamente e isso significava que
não poderia continuar naquela casa nem por um segundo a mais,
Quem poderia ajudá-la? Barbara? Talvez. Se sentisse que iria livrar-se dela
para todo o sempre. Os Marin? Mas eles já estavam em San Germaine, a
milhas de distância! Raul!
Respirou fundo para tomar coragem. Teria outra alternati-va? Ou estava
procurando uma desculpa para procurá-lo?
Com o coração batendo loucamente cobriu apressadamente o espaço que a
separava da saída. A porta estava com o ferrolho passado e grunhiu um
pouco quando Beth tentou abri-la. O ar noturno nunca lhe parecera tão
convidativo e ela saiu de casa, emitindo um arrepio nervoso de alívio.
CAPITULO IX
Beth deu a volta na casa, de pernas bambas, esperando ser surpreendida a
todo o instante.
Estava difícil localizar o bangalô de Raul. Mas conseguiu vê-lo à luz do luar,
uma mancha escura de encontro à colina. Não havia luzes acesas que
indicassem se ele ainda estava acordado.
Quando chegou embaixo da varanda parou, indecisa. Garantida pela
distância que agora a separava de Willard, aquela fuga pa receu-lhe vã e
desnecessária. Afinal, o que diria Raul? O que poderia ela contar-lhe?
Somente que decidira ir embora daquela ilha... Subiu um degrau e parou
quando a madeira rangeu sob seus pés. Provavelmente a sacada fazia o
mesmo barulho durante o dia, mas ã noite era assustador. Estava ali,
hesitante, não que rendo mais subir, nem querendo voltar, quando a porta
que dava para a varanda abriu-se e uma voz dura e severa fez-se ouvir:
— Pelo amor de Deus, Barbara, vá para casa! Não aprendeu o suficiente esta
noite para manter-se afastada de mim?
Não havia luz bastante para que ele pudesse ver quem es tava na escada,
mas de alguma forma Raul deve ter pressentido que não era com Barbara
que ele estava falando. Com uma imprecação, precipitou-se pelos degraus
abaixo.
— Beth! — balbuciou incrédulo. — Por todos os santos, o que você está
fazendo aqui?
Beth sentiu-lhe o hálito na nuca e, através da tênue claridade, pôde verificar
que ele ainda estava vestido com a calça do smoking e a camisa branca.
Mas a camisa estava desabotoada e a emanação do calor de seu corpo viril
chegou-lhe às narinas.
— Eu... eu... — Não conseguia encontrar as palavras. — Willard...
— Posso imaginar — murmurou e a impeliu escadas acima, entrando em casa
e fechando a porta e as cortinas, antes de apertar o interruptor de luz.
Beth pestanejou àquela súbita iluminação e olhou para baixo,
semiconsciente do estado de seu vestido, A barra estava cheia de areia que
se espalhou pelo assoalho quando ela sacudiu a saia.
— Oh... desculpe — murmurou, encabulada, mas Raul nem lhe prestou
atenção, ocupado que estava em encher um copo com uma bebida dourada.
— Tome — ofereceu, passando-lhe o copo. — É conhaque.
Raul não tinha se servido. Ficou só olhando para Beth, com ar pensativo.
Quando ela sentiu-se suficientemente reconfor tada para encará-lo, ele
perguntou:
— O que pretende fazer? Beth sacudiu a cabeça e disse:
— Eu quero ir embora da ilha. O mais cedo possível.
— Vamos com calma — advertiu ele categórico. — Não de- vemos tomar
decisões precipitadas, não é mesmo? São exata- mente... — Consultou o
relógio de pulso. — Três horas da manhã. Talvez fosse melhor esperar
amanhecer antes de...
— Não! — Beth estava transtornada. — Não quero ficar naquela casa nem
mais um minuto!
Raul começou a passar seus longos dedos pelos cabelos quei- mados de sol.
— Presumo o que tenha acontecido esta noite: Willard, por certo, decidiu não
esperar mais para fazer valer seus direitos.
— Ele não tem direito algum. Não, por enquanto. Raul estacou e olhou para
Beth.
— Você tentou dizer-lhe isso?
— Sim, mas foi inútil.
— E, contudo, ele permitiu que viesse para cá.
— Ele não permitiu coisa alguma! Nós... eu estava em seu quarto... ajudando-
o a despir-se... — E vendo o olhar assom- brado de Raul, acrescentou
rapidamente: — Sou uma enfer- meira. Costumava ajudá-lo a despir-se
quando estava conva lescendo. Ele... ele me disse que não estava podendo
trocar-se sozinho e eu tive que ajudar.
Raul Ficou muito atento.
— E daí?
— Bem, tivemos um desentendimento e então... então, a sra. De Vries
começou a gritar...
— Marta?
— Sim. — Beth fez uma pausa. — Wiilard hospedou-os naquela ala
desocupada. Eu tinha visto aqueles quartos antes e já o avisara que estavam
caindo aos pedaços. Mas ele não quis me ouvir. Parece que encontraram...
baratas e percevejos!
— Barbaridade! — Raul arregalou os olhos. — Quer dizer que os bichinhos
acabaram com a festa?
— Willard teve que ir falar com eles. Enquanto ia resolver o problema de seus
hóspedes, aproveitei para fugir!
Raul escutou o que ela contara e perguntou suavemente:
— E por que você veio até aqui? Por que me procurou? Beth corou.
— Não havia mais ninguém a quem recorrer. Ninguém que não tomasse o
partido de Willard.
— E o que a fez pensar que eu não tomaria? Ela fez um gesto desconsolado.
— Eu... eu não estou pedindo muito. Só... um lugar onde ficar esta noite.
Amanhã cedo vou embora.
— Para onde?
— Para onde? Voltar para a Inglaterra, é lógico!
— Como pensa alcançar Castries? Beth ergueu os ombros.
— Existem lanchas que vão para lá, não existem?
— Não percebe que Willard estará controlando todo o mo vimento de carga e
descarga?
— Não sou nenhuma carga! — ela gritou, exaltada.
— Não é — concordou. — Mas ainda é sua noiva. Pelo menos, continua
usando o anel de Agnes.
Beth olhou petrificada para o solitário que rebrilhava em seu dedo. Durante o
pânico que a assaltara, esquecera com-pletamente do anel, mas agora
arrancou-o do anular e jogou-o em cima de uma mesinha. Seus lábios
tremeram ao ver o dia mante rolar várias vezes antes de parar no lugar.
Raul tinha dito "o anel de Agnes". Teria realmente pertencido à falecida
esposa? Olhou-o interrogativamente e ele confirmou:
— Era dela, você não sabia?
— Como iria saber? Nunca o tinha visto antes.
Raul soltou a respiração ruidosamente.
— Quer dizer que terminou com o noivado e com o casa mento? Barbara vai
ficar feliz da vida.
Beth ressentiu-se.
— Você ainda acredita que eu ia casar com Willard por dinheiro, não é
verdade?
— E pode negar? O fato de você estar aqui esta noite não prova isso? Quando
você teve que provar que o amava de fato, deu o fora!
— Não era minha intenção. Na Inglaterra ele era diferente.
— Menos exigente, suponho.
— Ele me tratava como... como uma dama.
— Como sua filha, você quer dizer? — sugeriu Raul seca mente. — Por Deus,
Beth! Honestamente, você não vai querer sair dessa com louvor, vai?
— Não acredita em mim, não é?
— Willard foi apenas uma fuga para você. Você tinha le vantado uma barreira
contra o contato físico. Se ele fosse um simples operário, não creio que o
tivesse olhado duas vezes.
Beth soltou um soluço sentido.
— Eu devia ter sabido. — Começou a chorar, dirigindo-se para a porta de
saída. — Deveria ter pensado melhor antes de apelar para um homem como
você. Um homem que só vê as mulheres como... como um objeto. Objetos
para serem usados ou descartados, a seu bel-prazer. Você não faz idéia de
que possam existir outras coisas na vida... que as mulheres possam ter
sentimentos...
Quando girou a maçaneta, ele a alcançou, puxando-a ao seu encontro. Seus
braços a envolveram inteira e ela sentiu os seios duros serem esmagados
pelo seu peito másculo. Com um soluço de vergonha, sentiu que estava se
rendendo novamente, ansiando por ter aquele corpo por completo. Ficaram
assim colados um ao outro, por segundos intermináveis. Ele obrigou-a a olhá-
lo e viu seus lábios trêmulos entreabertos.
— Ele fazia isto com você? — Exigiu, enquanto a beijava sofregamente,
tornando-lhe os sentidos de assalto.
Beth moveu a cabeça de um lado para outro, espasmodica-mente, incapaz de
responder-lhe. Ele tornou a tentá-la.
— Você sabe o que quero fazer, não sabe? — sussurrou com voz alterada
pelo desejo, começando a baixar-lhe o vestido pelos ombros. — Você deixa?
Beth estremeceu.
— Vamos... vamos parar?
— Você quer parar? — perguntou roucamente, aprisionan do-lhe as mãos nas
costas.
— Não — sussurrou, envergonhada- — Não mesmo!
A boca de Raul cobriu seus lábios novamente, com força renovada, exigindo
uma entrega total. Ela aderiu seu corpo ao dele, sem se preocupar que
Willard poderia estar à sua procura e que de um momento para outro poderia
chegar a surpreender aquela cena.
Mas Raul não estava tão fora de si. Pouco depois, levantou a cabeça e olhou-
a novamente. Desta vez, a emoção tinha desapa recido de seus olhos verdes.
Impassível, ele voltou a puxar-lhe o vestido no lugar, fechou o zíper, e deu
um passo atrás.
De repente, Beth deu-se conta da desordem de seus cabelos e de suas
vestes. Mas não fez nenhum gesto para recompor-se. Ficou ali, parada e
confusa. Sem entender aquela contestação inesperada.
— Acho que é tempo de ir para a cama — disse ele, por fim.
— Para a cama?
— Sim. — Ele virou-se de costas quando percebeu que Beth estava olhando
indiscretamente para seu baixo ventre. — Ex pediente encerrado. Você
poderá dormir peio tempo que resta da noite.
— Com você? — insinuou ela muito meiga. Mas ele replicou:
— Vou lhe mostrar onde.
— Por que não com você? — Teimou, quase suplicando. — Raul...
— Por Deus, Beth, não torne as coisas mais difíceis do que já são. Venha
aqui.
Entraram naquele quarto espartano, mas muito limpo e are jado. Raul afastou
as cobertas da cama turca e indicou uma jarra com água e um copo que
estavam sobre a mesinha-de-cabeceira, e saiu.
— Raul... Raul o que eu fiz de errado?
— Você não fez nada de errado — falou entre os dentes.
— Então... então por que você não... — Tomou coragem e declarou: — Eu
preferia que fosse você, mais do que qualquer outro.
— Pensa que não sei disso? — Ele irrompeu, enquanto ela encolhia-se,
esmagada pela própria audácia. —Você acha que eu iria tornar as coisas
mais fáceis para você e Willard?
— Vou deixar Willard.
— Isso é o que você diz agora. Mas amanhã, com a cabeça fria, vai pensar
diferente, principalmente se começar a se con-siderar uma mulher e não uma
inexperiente aluna de colégio de freiras!
Beth sentiu-se como se ele a tivesse esbofeteado.
— Você diz coisas muito ofensivas!
— Mas reais, não acha? No final, eu não sirvo para você. Não sou o dono da
ilha, e posso até arriscar a perder meu emprego.
Ela ficou chocada.
— Seu emprego é tudo o que lhe importa? Uma sombra cobriu as pupilas de
Raul.
— E existe algo mais importante do que isso? Beth ficou descontrolada.
— Quer dizer que... você... que nós... — Sentiu uma pressão no peito e a
respiração tornou-se difícil. — Oh, meu Deus! Como odeio esta maldita ilha!
Odeio você, ouviu bem? Há alguma coisa j neste lugar, alguma coisa no ar
que se respira, que faz as pessoas 1 agirem em contradição com a própria
natureza!
— Você está redondamente enganada. Ao contrário, a ilha revela o que
realmente somos.
— Não! — Beth o contradisse com veemência.
O amor, essa sensação tão mal definida, tinha chegado a ela naquela ilha e
agora sentia que esse amor tinha sido de turpado e rejeitado.
— Você está com pena de si mesma — ele disse cruelmente quando viu as
lágrimas que lhe banhavam as faces.
Beth enxugou-as com o dorso da mão.
— Acho que é de você que eu deveria sentir pena. Sabe que é péssimo não
amar ninguém senão a si mesmo?
— É isso o que pensa de mim? O que sabe você do amor que não tenha
aprendido comigo?
— Nada — disse como que enfeitiçada, levando um dedo aos lábios de Raul,
que respondeu com um beijo longo e convincente.
— Agora vá dormir — ordenou por fim.
A mão de Beth acariciou amorosamente sua coxa, num apelo mudo, e não
disse mais nada que pudesse quebrar o tênue vínculo que se esvoaçava
entre eles.
Surpreendentemente, conseguiu dormir, e, quando acordou, o sol penetrava
pelas frestas da cortina. Por alguns segundos saboreou a deliciosa sensação
de estar deitada na cama de Raul. Languidamente, afundou o rosto no
travesseiro onde ele repousava a cabeça. Mas não naquela noite. Naquela
noite ele dormira no sofá da sala. Ninguém acreditaria nisso. Mas o que lhe
importavam os outros? Na verdade, agora não se im portava com mais nada,
nem com ninguém. Espreguiçou-se e ficou olhando para o vestido de chifon
que estava dobrado no espaldar da cadeira. Era a única coisa que tinha para
vestir, pois não poderia aparecer perante Willard enrolada num lençol.
Sentiu um calafrio, e afastando a imagem do ex-noivo da mente, escorregou
para fora da cama, carregando junto o lençol que amarrou sobre o busto, à
guisa de sarong. Abriu a porta do quarto e saiu pé ante pé pelo corredor. A
primeira pessoa que encontrou foi Tomas e ficou vermelha de vergonha pelo
que ele pudesse estar pensando.
— Onde está o sr, Valerian? — perguntou, encabulada. Antes de responder, o
criado fez uma pequena reverência.
— O sr. Raul saiu há mais de duas horas, senhorita. Quer tomar o café da
manhã?
Beth suspirou, conformada. Devia já saber que Raul não iria negligenciar seu
tão adorado trabalho só por sua causa. Sentiu um sobressalto quando
pensou que teria que enfrentar Willard sozinha. Contudo, era inevitável.
Dizendo a Tomas que iria tomar somente um cafezinho puro, voltou para o
quar to. Fez uma vistoria nas gavetas de Raul e separou uma ca miseta e um
jeans que, amarrados por um cinto, não iam pa recer tão grandes. Em
seguida foi para o banheiro e arrepiou-se toda ao descobrir que só havia
água fria para se lavar. Lim pando os dentes com sabonete e os dedos, ficou
imaginando o que diria a Willard quando o visse. Não tinha a menor dúvida de
que ele deveria estar possesso. Seus pensamentos começa ram a correr
velozes. Se Willard descobrira que ela tinha deixado a casa na noite anterior,
teria sido mais próprio de seu temperamento ter saído ao seu encalço. E por
que não fora? Era fácil presumir onde ela estava, principalmente depois das
acusações que lhe fizera. Estava saindo do banheiro a fim de vestir-se
quando ouviu vozes, uma delas feminina e desgraça damente conhecida. Era
Barbara, e Beth sentiu-se arrasada. O que estaria fazendo ela ali?
Na afobação de voltar ao refúgio do quarto, tropeçou na barra do lençol e só
evitou cair estatelada no chão porque conseguiu agarrar-se ao trinco da
porta. Mas seu grito involuntário foi ouvido com clareza e enquanto lutava
para arrepanhar o lençol junto ao corpo, Barbara apareceu subitamente na
sala.
— Então aqui está ela! — disse com voz lânguida e desdenhosa. — Raul bem
que disse que eu haveria de encontrá-la por aqui.
— Raul! — Beth olhou para a outra, incrédula. — Você o viu?
— Claro que sim.
Barbara dispensou Tomas que a acompanhara com os olhos dilatados pela
ansiedade, e convidou:
— Poderia vir até a sala? Tenho algo para dizer-lhe.
— Se não se importa, gostaria de vestir-me antes. Mas Barbara não parecia
disposta a esperar.
— Poderá vestir-se depois — declarou decisivamente, já a caminho da sala.
— Trouxe uma muda de roupa comigo pois Raul disse que você só tinha o
vestido da festa.
Aquela nova menção a Raul, Beth cravou as unhas na palma da mão, mas
acompanhou a outra, de mansinho, tomada de uma angústia crescente.
Estava tentando desesperadamente não acreditar nas palavras de Barbara,
mas por quem mais poderia ter sabido que ela estava no bangalô?
Ao chegarem à sala, Barbara olhou-a friamente por um ins tante, e depois
anunciou sem rodeios:
— Meu pai está morto.
Beth mal podia acreditar em seus ouvidos. — O que... o que você disse?
— Você ouviu muito bem — retorquiu a outra, sem emoção. — Meu pai está
morto. Jonas tinha acabado de encontrá-lo já sem vida no estúdio, quando
Raul chegou em casa. Deve ter tido outro enfarte.
— Oh, Barbara! Sinto muito!
Beth estava abalada até o fundo da alma.
— Não diga isso! Você só sente pelas coisas que podia tirar dele. Como isso
aqui, por exemplo. — Abaixou-se e pegou o anel de brilhante que estava
esquecido na mesinha. — O anel de minha mãe! Ele me pertence.
— Pois leve-o — gritou Beth. — Ia mesmo devolvê-lo!
— Ia? Por quê?
Barbara fitou o anel no dedo.
— Por quê? — Beth olhou-a admirada. — Não é óbvio?
— Só porque passou a noite aqui? Oh, minha cara, você não é a primeira
mulher que passa a noite aqui e nem será a última!
Aquelas palavras foram soltas de uma forma maldosa, ter rivelmente
enervante, e Beth, que esperara por uma cena de ciúme, só viu zombaria e
desprezo no olhar da outra.
— Não tenho intenções de discutir esse assunto com você. Mas Barbara não
estava disposta a ceder tão facilmente.
— Raul contou-me que você veio para cá ontem à noite, mas não mencionou
nada sobre o rompimento do noivado.
Beth aspirou fundo antes de falar.
— Imagino que tenha tido outras coisas mais importantes em que pensar. —
Olhou em torno e viu a frasqueira junto à porta. — Acho que vou aprontar-me.
— Espere! — Barbara a deteve a caminho da frasqueira. — Há algo que você
precisa saber.
— Ora, Barbara! — Beth ficou apoiando-se ora numa perna ora noutra,
impaciente. — Acho que não temos mais nada a nos dizer.
— Discordo. Você não gostaria de saber por que Raul andou brincando com
você desde que chegou à ilha? Nunca se per guntou por que logo você?
Quando há um monte de mulheres doidinhas por ele?
— Pelo amor de Deus! Este não é o lugar e nem a hora para...
— O que é que há? Por que não quer discutir isso comigo? É assim tão
penoso para você?
Beth deu um suspiro de resignação.
— O que está tentando dizer, Barbara? E o que quer que lhe diga? Sei muito
bem o que sente por Raul, apesar de você tentar esconder a verdade. Mas o
ciúme é um sentimento mesquinho e...
— Ciúme? Eu? — Barbara deu uma risada de mofa. — De meu próprio irmão?
— Seu irmão! — Beth não podia nem queria acreditar.
— Meu irmão, sim. — As sobrancelhas de Barbara ergue ram-se numa
expressão de maldade. — Na verdade, ele é meu meio-irmão. Não sabia que
papai tinha um filho? Pois é. Mas Raul sabia, e estava tão empenhado quanto
eu em impedir que você se casasse com papai. Só que usou métodos
diferentes para alcançar seus objetivos.
— Não! — Beth estava tremendo desconsoladamente.
— Pois é a pura verdade — insistiu Barbara impiedosa-mente. — E por que
não? Não foi justamente isso que ele andou fazendo? Oh, srta. Rivers, não
percebeu que entrou no jogo dele como um patinho?
CAPITULO X
As peças do quebra-cabeça pareceram encaixar-se nos devidos lugares. Até
detalhes sem im portância tinham sua explicação. Por exemplo, a demasiada
familiaridade de Raul com o patrão e até com ela própria.
Imagine só, pensou ela, quando começou a vestir-se: se ti vesse casado com
Willard seria madrasta de Raul. Madrasta! Seria inacreditável e imperdoável.
Mas quem teria sido sua mãe? Com toda a certeza, não fora Agnes. Barbara
dissera-lhe claramente que ele era seu meio-ir mão, o que significava que era
bastardo. Não era de admirar que sentisse tanto desprezo pelo pai! Tinha
poucas razões para ser-lhe grato. Raul era mais velho que Barbara, o que
provava que o relacionamento de Willard com a mãe dele ocorrera antes do
casamento com Agnes ou, então, antes de a filha ser concebida.
Barbara estava a par de tudo, e por que somente agora contara a verdade? A
resposta lógica era também chocante. Não teria valido a pena fazer essa
revelação antes pois poderia tê-la deixado de sobreaviso e em guarda contra
a traição que pretendiam fazer ao pai. As coisas poderiam ter sido bem
diferentes se Willard fosse avisado das intenções do filho. Teriam sido
mesmo?
Beth escovou o cabelo com energia, vendo sua pálida figura refletida no
espelhinho da parede. Estava terrivelmente abatida, e não era para menos,
pois a notícia da morte súbita de Willard tinha sido perturbada quando da
revelação de traição de Raul.
Barbara dissera-lhe para voltar para casa tão logo estivesse pronta. O
enterro seria naquela mesma tarde. A explicação, dada por Barbara com
tanta calma e objetividade, enojou Beth, que se sentiu como se estivesse
tendo um pesadelo.
Alguém fechara todas as janelas e a casa tinha um aspecto lúgubre de
clausura. Podia-se até sentir o cheiro da decadência e podridão, e Beth
sentiu um calafrio. Imaginou onde teriam colocado o corpo de Willard.
Certamente, no quarto de dormir, e sentiu a boca seca só de pensar em
encontrá-lo lá, em cir-cunstância tão diferente.
O hall estava deserto, mas podia ouvir vozes abafadas, vin das da sala de
visitas. Enquanto estava ali parada e indecisa sobre o que fazer, Charles
Templeton apareceu e parou abruptamente ao vê-la.
— Beth! — exclamou ele num tom de censura. — Finalmente você voltou.
Será que todos sabiam que ela passara a noite na casa de Raul?
— Olá, sr. Templetom — respondeu timidamente, agora sem coragem de
chamá-lo simplesmente de Charles. — Eu estava... Onde está ele?
— Willard? — Templeton fitou-a com frieza. — No quarto dele, mas os outros
estão aqui embaixo. Penso que seria melhor
que se juntasse a nós.
Por um momento, Beth titubeou, mas depois ergueu os om- bros e resolveu
segui-lo.
Esperara encontrar Raul e Barbara na sala, mas não havia nem sinal deles.
Em compensação, teve que enfrentar os con vidados de Willard que tinham
pernoitado na casa, mais Jacques Marin e, surpreendentemente, Isabelle
Signy. A atmosfera do ambiente era declaradamente hostil, com exceção de
Isabelle que parecia querer transmitir-lhe um certo calor humano.
O pesado silêncio que se fez diante de sua aparição foi que- brado quando
Charles Templeton dirigiu-se a Jacques:
— Talvez fosse melhor repetir para a srta. Rivers o resultado do exame. Por
certo ela quer saber como seu... seu noivo faleceu
Beth entrelaçou os dedos e pediu, quase num sussurro:
— Por favor, dr. Marin.
— A festa de noivado foi muito desgastante para ele. Jun tando isso aos
acontecimentos que se seguiram, foi demais para um coração enfraquecido
pelo primeiro enfarte.
Se aquilo representava uma acusação, Beth resolveu igno rá-la. Agora era
inútil explicar a todos que ela não desejara dar aquele jantar, que o prevenira
que estava bebendo demais e que ele se irritara quando ela tentou trazê-lo à
razão. Po deriam imaginar que estava tentando justificar-se.
Só uma coisa era certa: ela nunca deveria ter deixado a casa daquele jeito
intempestivo.
Aprumando-se, Beth perguntou a Marta de Vries:
— Ele foi para o quarto depois de... depois de falar com Jonas? Foi Gilbert
quem respondeu pela esposa:
— Ele nos cedeu o próprio quarto. — E acrescentou, muito solene: — Aliás,
como teria feito um cavalheiro. Marta e Esther dormiram lá. Charles e eu nos
acomodamos nos sofás da sala.
— Entendo e posso imaginar...
— Também não dormiu em seu quarto, não é, srta. Rivers? — observou Laura
Hammond maldosamente.
Beth ficou grata a Isabelle Signy por ter escolhido justo aquele momento
para informar-se a que horas sairia o enterro.
— Às quatro horas — disse Raul, irrompendo pela sala aden tro, e o ar
pareceu encher-se de eletricidade.
Beth olhou vagamente em torno, evitando encará-lo, mas cada fibra de seu
ser vibrava com aquela presença. Em seu terno escuro, pouca semelhança
tinha com o homem descontraído que conhecera na praia. Agora parecia-se
mais com o pai.
Pelo visto, Charles Templeton auto-elegera-se o arauto de família, pois logo
interveio:
— O testamento deverá ser lido logo após o sepultamento. Por coincidência,
tenho uma cópia aqui comigo. Willard havia me pedido que trouxesse os
documentos. Creio que tinha in tenção de fazer algumas modificações, mas,
infelizmente, nunca saberemos quais foram suas últimas vontades,
A essas palavras, um olhar geral de triunfo foi lançado em direção a Beth e
ela pensou que ele talvez tivesse decidido, à última hora, transformá-la em
sua herdeira.
Graças a Deus não dera tempo, pois ela não queria nada a que não tivesse
direito.
Sentiu que Raul estava olhando acintosamente e desviou seu olhar. Não
queria dar-lhe o prazer de saber o quanto ele a tinha ferido. Tão logo
terminasse a cerimónia do funeral, ela partiria e nunca mais voltaria a vê-los.
— Poderia combinar isso com Barbara. Ela deverá descer logo — estava
dizendo Raul.
— Barbara está muito abalada — disse Esther Templeton, meneando a
cabeça. — Também não é para menos. Uma tra-gédia dessas justo na noite
em que deveria ser a mais feliz na vida do pai!
Beth ficou tensa ao notar uma nova avalanche de olhares sig nificativos, mas
Isabelle foi para seu lado e falou-lhe com brandura:
— E você? Está bem? Parece-me muito abatida. Beth sentiu-se grata.
— Estou bem, obrigada. Mas foi um grande choque para mim.
— Estou certa disso.
Isabelle a olhou com simpatia e compaixão e Beth admirou-se de como ela
poderia ser tão compreensiva, sendo, entre todos, a que teria mais razão
para odiá-la.
Mal percebeu que Raul atravessara a sala em sua direção, até que sentiu
seus dedos segurando-lhe o cotovelo. Puxou o braço instintivamente,
olhando preocupada para Isabelle, mas esta estava concentrada no rosto
sombrio de Raul.
— Já foram tomadas todas as providências? — perguntou ela, e Raul, após
lançar um olhar hostil a Beth, retrucou:
— O caixão deverá chegar lá pelas duas horas. Se quiser vê-lo agora, este é o
melhor momento.
Isabelle deu um profundo suspiro...
— Sim, sim. Você vem comigo? Raul concordou.
— Está bem. Dê-me só um minuto para falar com Beth.
— Claro. — Isabelle sorriu e foi se encaminhando vagaro samente para a
porta.
Raul agarrou de novo o braço de Beth, desta vez com firmeza.
— O que está acontecendo com você? Há pouco, quase pulou quando a
peguei pelo braço. Não vá me dizer que está se in comodando com o que
essa gente toda pode pensar de nós.
— E evidente que você não está.
— Não, não estou mesmo. Eles não significam nada para mim.
— Por acaso alguém significa? Pois bem, preferia não falar sobre isso. Estão
todos nos olhando e posso imaginar o que estão pensando.
— Eu também posso. Estão pensando que dormimos juntos na noite passada
e não quero desiludi-los.
— Aposto que não...
A expressão de Raul demonstrava uma intensa frustração.
— Beth, quero falar com você urgentemente. Agora preciso subir com
Isabelle. Quando descermos, vamos até a biblioteca. Vai ter que me dizer por
que diabos está agindo dessa maneira!
— Não consegue adivinhar, sr. Valerian? Ou seria melhor dizer, sr. Petrie?
— Foi Barbara? Eu devia ter previsto.
— Então é verdade? Ele largou-lhe o braço. — Sim, é verdade. Beth
estremeceu.
— Eu sabia que era.
— Devia ter lhe contado antes.
— Devia mesmo. A sra. Signy está esperando. Você vai ou não?
— Beth! — Os olhos verdes procuraram os dela ansiosa mente. — Beth, isso
faz alguma diferença?
Ela sentiu uma enorme dificuldade em responder àquela pergunta e engoliu
em seco.
— Explique-se melhor.
Raul olhou em volta, desafiando os olhares de curiosidade que se
centralizavam sobre eles e, sem medir consequências, segurou-lhe ambas as
mãos e suplicou:
— Beth, você me ama?
Uma onda de rubor invadiu-lhe o rosto.
— Amar você... Oh, Raul...
— Raul! A sra. Signy está esperando que você a acompanhe! A intrusão da
voz prepotente e gelada de Barbara fez com
que ele imediatamente desprendesse as mãos. Raul ainda ficou olhando-a, à
espera de uma resposta, durante um longo minuto silencioso. Mas a meia-
irmã repetiu impacientemente:
— A sra. Signy, Raul. Ela está esperando por você!
— Obrigada, Barbara. Estou sabendo. — E saiu apressadamente. Logo a
atmosfera pareceu ficar mais leve e, acobertada pelo
zunzum da conversação reiniciada, Barbara pode falar, sern medo de ser
ouvida pelos outros.
— Então, srta. Rivers? Fazendo suas despedidas? Já contou a Raul que vai
partir hoje mesmo?
— Como? Isto é... — Beth fez força para manter a compos tura. — Vou ter que
partir hoje?
Barbara pareceu confusa, mas escondeu suas emoções.
— Oh, sim, vai! — afirmou categoricamente, com um meio-sorriso nos lábios.
— Quero que saiba que a ilha é minha, com todos os canaviais e o engenho.
Por conseguinte, sou a atual patroa de Raul. Está começando a entender?
Beth franziu o sobrolho.
— Mas, naturalmente, se o que me disse hoje é verdade, Raul deve estar tão
ansioso quanto você para me ver pelas costas, e não há com o que se
preocupar.
Os lábios de Barbara se estreitaram.
— Raul apenas obedece a ordens, caso contrário...
— Quer dizer que ele se arrisca a perder o emprego caso eu ficar?
— Em resumo, é isso.
— E o que a faz pensar que Raul se revoltaria contra você? — Porque tenho o
último trunfo escondido na manga. Eu sempre poderia vender a ilha.
Beth prendia a respiração. Já tinha ouvido o suficiente. Mor dendo o dorso da
mão, saiu pela sala afora, sob os olhares admirados dos presentes. Subiu as
escadarias como um furacão e quase chocou-se com Raul e Isabelle, que
estavam descendo.
— Onde vai com essa pressa?
— Para o meu quarto. Preciso trocar-me.
— Espere por mim — pediu Raul.
Quando Beth abriu a porta do quarto, Raul entrou com ela e encostou-se ao
batente, resoluto.
— Bem, agora pode dizer-me o que está acontecendo? Beth começou a
suspeitar de que ele se importava um pouco
com ela.
— Venha aqui — ordenou ele, afrouxando o nó da gravata.
— Não temos mais nada para nos dizer — ela insistiu, evitando aqueles olhos
verdes que brilhavam perigosamente.
— Acha que não temos?
— Claro que não — pigarreou. — Saia, Raul, tenho que trocar de roupa. Não
posso ir de jeans ao... Oh!
Suas palavras foram silenciadas por um beijo avassalador que enfraqueceu
suas pernas e sua vontade,
— Deixe-me, Raul! — implorou ela, quando a boca sequiosa e trêmula
começou a percorrer-lhe o pescoço e o colo, numa ânsia louca.
— Não precisa lembrar-me que agora não é a hora nem o lugar para fazer
uma coisa dessa — disse asperamente, en quanto continuava com suas
carícias sensuais. Seus lábios vol taram a unir-se apaixonadamente. — Mas,
por favor, Beth, ajude-me! Preciso tanto de você.
Uma onda de desejo apossou-se de ambos quando os dedos de Raul
desabotoaram-lhe a blusa e aninharam os seios rijos de Beth.
— Oh, minha querida! Eu a amo. Deixe que a ame!
— Não, Raul!
— Não digo agora, neste minuto. Apesar de que Deus sabe que eu até
poderia.
— Eu também sei. Mas quando tudo isso terminar... Ele a abraçou com fúria.
— O que está tentando me dizer?
Aquele era o momento decisivo de sua vida. Beth molhou os lábios, em busca
das palavras.
— Quero dizer que depois do funeral vou embora.
— Vá para o inferno, isso sim! — ele estourou, raivoso. E Beth sentiu na
própria carne a dor que estava lhe infligindo.
— Você não vai conseguir fazer com que eu mude de idéia — persistiu,
sentindo-se morrer por dentro.
Ele a sacudiu tão violentamente que Beth pensou que iria deslocar-lhe o
pescoço.
— Por quê? Agora que... que meu pai está morto, para que continuar fugindo?
— Não estou fugindo, Raul. — E concluiu, sem piedade: — Agora sei que
nunca amei Willard, mas descobri que também não amo você.
Os olhos de Raul estreitaram-se sinistramente.
— Estou entendendo — disse finalmente, e Beth presumiu o que estaria se
passando por sua cabeça. — Tinha até me esquecido. Afinal, tenho pouco a
oferecer a uma moça como você, não é? E, ainda por cima, sou um bastardo!
— Oh, Raul!
Beth não pôde evitar aquela exclamação dolorosa, mas qual quer outra coisa
que pudesse ter sido dita entre eles foi sustada pelas batidas que alguém
deu na porta.
Era Maria, anunciando que o almoço estava na mesa.
Não houve uma cerimônia religiosa propriamente dita. O en terro foi
presidido por um padre negro da igreja católica de San Germaine e o caixão
foi carregado até o túmulo da família pelo filho e mais cinco amigos do
morto. Até então, Beth não tinha prestado atenção ao mausoléu de pedra,
escondido entre as árvores no terreno dos fundos e sentiu-se aliviada quando
o caixão baixou, após uma breve oração, e todos puderam voltar para a casa.
Isabelle parecia ter se tornado sua protetora e ambas senta ram-se juntas na
sala de visitas, enquanto Raul foi ouvir o que Charles Templeton tinha a
dizer-lhes a respeito do testamento.
— Raul disse-me que você vai embora hoje à tarde — Isabelle atreveu-se a
dizer e Beth assentiu. — Você deseja mesmo ir?
Beth hesitou. Não podia fazer daquela mulher sua confidente, mas também
não resistiu à tentação de pedir-lhe um conselho.
Isabelle ainda estava olhando para Beth, meditativamente, quando Barbara
surgiu. Vinha apoiada no braço de Charles Tem pleton, ladeada por Raul e
Esther. Pela expressão da moça, Beth pôde notar que havia algum problema
grave. Isabelle levantou-se e foi falar com Raul. Barbara deixou-se cair
languidamente numa poltrona e Charles foi buscar uma bebida estimulante,
enquanto Raul, Isabelle e Esther falavam a meia-voz.
O que estaria acontecendo? O testamento já fora lido? Será que alguém iria
se dar ao trabalho de explicar-lhe o que se passava?
Barbara tomou um gole da bebida e a cor voltou parcialmente às suas faces.
Charles começou a falar com Raul e Isabelle aproveitou a oportunidade para
voltar ao lado de Beth.
— Williard deixou a ilha para Raul. Havia um segundo testamento. Tudo o que
Barbara obteve foi uma renda anual sobre os imóveis — declarou
objetivamente.
Beth mal podia acreditar no que acabara de ouvir. A ilha pertencia a Raul e
não a Barbara! Ela não poderia mais perturbá-los! A posição de Raul estava
salva. Salva! Isabelle observou:
— Você ficou tão corada! Está se sentindo bem?
— Oh, sim. — Beth mordeu o lábio inferior, procurando desesperadamente o
olhar de Raul. Mas quando finalmente ele a fitou, Beth sentiu-se como se
tivesse tomado uma ducha de água gelada.
— Willard ainda estava vivo quando Raul chegou esta ma nhã. — Isabelle
continuava a esclarecer em voz baixa.
— Vivo?
— Justamente. Barbara não foi avisada porque, na verdade, ele estava
agonizando e não daria tempo de ir buscá-la. — Fez uma pausa e acrescentou
significativamente: — Além do mais, ele não desejava vê-la.
Beth estava assombrada.
— O que está me dizendo? Willard recusou-se ver a filha? Isabelle deu uma
olhada ao redor para assegurar-se de que
ninguém estava ouvindo aquela conversa.
— Parece que ele e Barbara tiveram uma conversa antes que você saísse da
casa. Não sei o que disseram um ao outro, mas o resultado foi que Willard
decidiu mudar o texto do tes tamento às primeiras horas da manhã. Jonas e
Clarrie foram as testemunhas. Tudo dentro da mais perfeita legalidade. Char
les acabou de informar a Barbara que ela não tem a mínima chance de
contestar o testamento. Raul é o herdeiro de tudo, como aliás deveria ter
sido sempre.
As últimas palavras foram pronunciadas com um certo res sentimento, mas
Beth mal o notou. Estava demasiadamente en volvida com sua própria
desgraça. Raul já estava sabendo de tudo quando falara com ela no quarto,
mas não quis revelar-lhe nada, temeroso de que ela pudesse mudar de idéia
só pelo fato de saber que agora ele era o dono da ilha. E isso, ele não
aceitaria. De agora em diante, não teria meios de convencê-lo de que o
amava. A não ser que Barbara lhe contasse sobre aquela mes quinha
chantagem... Mas ela não faria isso nunca!
Bastou um olhar para a filha de Willard e Beth pôde cons tatar que um forte
antagonismo ainda as separava e ela nunca teria chance de persuadir
Barbara a contar a verdade.
CAPITULO XI
A lancha balançou no ancoradouro, e Beth, que estava sentada lá embaixo
na cabine, sentiu uma náusea. Devia ter se alimentado antes de iniciar a
travessia, mas não podia nem ouvir falar em comida. O casal De Vries estava
no cais, falando com Manuel, o piloto do barco a motor que os levaria até
Santa Lúcia. Ela tinha amontoado a bagagem embaixo do banco e esperava
ansiosamente que eles embarcassem antes que ela cedesse ao desejo de
voltar para os braços de Raul.
Após aquela revelação devastadora de Isabelle, não via meios de poder
provar o quanto o amava. Afinal, ele sempre acreditara que ela ia casar-se
com Willard por motivos mercenários. Por que haveria de ser diferente no
caso dele? Ainda mais depois de tudo o que ela lhe dissera antes do
funeral...
Se ela tivesse sabido em tempo que Barbara estava blefan do... Como podia
imaginar que Willard ia deixar a ilha ao filho bastardo? Até há pouco não
soubera do parentesco que existia entre eles. Raul tinha sido ensinado pelo
pai para o trabalho no engenho da mesma forma que qualquer outro
empregado.
Os Templeton e os Hammond tinham ido embora logo após a leitura do
testamento, seguidos pelos Marin. Outras pessoas que tinham assistido ao
enterro haviam se retirado em seguida, e somente Beth, Isabelle e o casal De
Vries permaneceram na soturna sala de visitas. Barbara seguira os Marin,
sem dúvida para visitar Diane e ser consolada pela amiga. Melhor assim, pois
não estaria presente na hora de sua partida. André Pecares chegara meia
hora depois e trancara-se na biblioteca com Raul, naturalmente para fazerem
uma revisão de todas as proprie dades deixadas por Willard.
Em seu torpor, Beth aceitara o fato de ele não ter insistido para que ela
ficasse. As últimas palavras trocadas com ele foram aquelas pronunciadas
no seu quarto e nada podia alterá-las.
Por uma ou duas vezes, Isabelle tentara falar-lhe, mas Beth considerou que
não tinha mais nada a dizer.
Agora sentia-se como uma condenada à morte, esperando na cela pelo
carrasco que a levaria à guilhotina, e desejou ardentemente que os De Vries
se apressassem em partir, para terminar logo com aquele martírio.
Estremeceu e ficou olhando para as ondas que se batiam contra a murada do
cais, O que faria Raul agora? Talvez che gasse a casar-se sendo dono da
propriedade. Para que Sans Souci sobrevivesse era necessário que ele, tal
como o pai, tivesse herdeiros. Por certo escolheria Isabelle. Apesar de ela
ser mais velha, parecia que os dois se entendiam muito bem.
O barulho de uma brecada violenta fez com que Beth le vantasse os olhos
para o caís. Alguém saltou de um carro e começou a falar apressadamente
com o casal De Vries. Quando Beth reconheceu o jipe, a figura de Raul deu
um salto acrobático do cais até a lancha. Depois de verificar que não havia
ninguém por ali, começou a descer as escadas que levavam à cabine. A lua
que iluminava o recinto era fraca e Beth estava semi-oculta pela sombra.
Mas ele estava bem sob o foco e Beth pôde ver seus maxilares contraírem-se
quando finalmente a avistou.
— Que diabo você está fazendo aqui? — perguntou ele, num evidente esforço
para controlar-se. — Por que saiu, sem ao menos despedir-se?
Beth levantou e ficou equilibrando-se sob o balanço do barco.
— Você não estava por perto... bem, pensei que não quisesse mais me ver.
Raul deu um passo à frente. Tinha os cabelos revoltos, a camisa
desabotoada, e um medalhão de bronze. Olhou em volta e perguntou:
— Onde está sua bagagem?
Beth fez um gesto amedrontado em direção ao barco.
— Coloquei tudo ali embaixo.
Seus olhos se arregalaram de surpresa quando ele começou a puxar
freneticamente as malas para fora.
— Raul! O que está fazendo?
— Você vai voltar comigo, portanto, não há razão para que as malas fiquem
aqui, ora essa!
— Voltar... com você? — repetiu Beth, insegura.
— Você não quer? — ele perguntou, com a voz emocionada. Ela encarou-o,
suplicante, com o olhar transtornado pela
surpresa e pela esperança. Com um gemido, Raul a abraçou fortemente.
— Por que você tem sempre que me provocar nos lugares mais impróprios? —
murmurou, afundando a cabeça naquela auréola de cabelos platinados. —
Mas agora só há algo de que necessito urgentemente. — E uniu seus lábios
aos dela com inesperada doçura.
Os beijos se sucederam um após o outro e, quando finalmente se separaram,
ambos estavam pálidos e sem fôlego.
— E pensar que você queria me deixar! — Ele a censurou, ressentido. E antes
que ela pudesse mudar de idéia, galgou os degraus da escadinha e estendeu-
lhe a mão. — Venha!
Gilbert e Marta tinham se virado para olhá-los.
— Você a está levando de volta! — perguntou Gilbert, sem necessidade, tão
evidentes eram suas intenções. — Não o condeno — acrescentou, olhando a
mulher pelo rabo dos olhos. — Venha ver-me na próxima semana para
discutirmos os novos planos.
— Obrigado, Gilbert.
Beth sentiu que, de alguma forma, eles estavam sendo acei tos pelo casal.
Manuel ajudou a acomodar a bagagem no carro, tentando esconder
discretamente suas próprias opiniões. Raul sentou-se na direção, com Beth
ao lado, e o jipe deu uma ré. Raul saudou os De Vries com um aceno de mão
e saiu rapidamente.
Beth estava quieta, muito nervosa, esperando que Raul dis sesse algo. Mas
ele estava concentrado em dirigir e os minutos se passaram como se fossem
intermináveis. Finalmente, sem poder mais se conter ela tomou a iniciativa:
— Você me fez pensar que queria que eu fosse. Raul olhou-a de soslaio.
— Pois comigo você foi bem clara e drástica quando disse que pretendia
deixar a ilha — ele lembrou-lhe.
— Isso... isso foi antes...
— Antes que eu herdasse Sans Souci? — perguntou rispidamente. — Sim, sei
disso.
— Não era isso que eu ia dizer — protestou, indignada. — Pelo menos, não da
forma como você está colocando as coisas.
— E existe outra forma?
— Você está querendo me dizer que veio buscar-me mesmo acreditando que
eu voltaria só por causa da herança?
— Espere até chegarmos em casa.
— Não! — Ela ficou inquieta no assento, como se tivesse sentado em cima de
um formigueiro. — Não vou esperar coisa alguma! Quero saber já e agora! Se
o que eu disse for verdade, pode levar-me imediatamente de volta para a
lancha.
— Não seja melodramática, Beth.
Mas ela já estava olhando em torno, procurando um jeito de sair do jipe.
— Pare o carro! — Beth ordenou aos soluços. — Pare já, Raul! Estou avisando:
pare, senão eu pulo assim mesmo!
Soltando uma imprecação, ele freou bruscamente, mas antes que ela
pudesse recuperar-se do impacto da brecada, Raul pas sou-lhe o braço pelos
ombros e a puxou firmemente contra si.
— Perdoe-me! — disse ele, enfiando o rosto na curva de seu pescoço e
aspirando ruidosamente seu perfume. — Per doe-me, Beth.
— Não adianta vir com desculpas — ela protestou, lutando inutilmente para
livrar-se daqueíe abraço com uma fúria cres cente, até que o ouviu explodir
numa sonora gargalhada.
— Que significa isso?
— Aqui não é o lugar apropriado. Venha comigo, seja boa-zinha e eu lhe
prometo que explicarei tudo.
Beth ergueu um braço para tornar a empurrá-lo, mas ele segurou sua mão no
ar, firme e delicadamente.
— Por acaso, você está querendo me dizer que não pensa que estou voltando
com você só por causa da ilha?
Ele a afastou gentilmente, e olhou-a bem dentro dos olhos.
— Estou querendo lhe dizer que a traria de volta de qualquer maneira. Isso
não significa que esteja pensando que você veio só porque herdei Sans
Souci. Está mais claro?
Beth relaxou sobre o assento do carro, agora impaciente para chegar logo
em casa e ouvir o que ele tinha para contar.
Será que Isabelle estava lá? E Barbara, teria voltado? Logo saberia tudo.
Mas Raul não a levou à casa grande que pertencera aos Petrie por várias
gerações. Levou-a para sua própria casa. O bangalô da praia, onde, pela
primeira vez, Beth deu-se conta de que nunca poderia casar-se com Willard.
Ao passar pela varanda, Beth olhou para o mar, ouvindo o estrondo das
ondas contra os recifes. Será que ouviria esse som pelo resto da vida?
Estremeceu. Seria pedir muito?
Raul acendeu as luzes da sala de estar e ela o seguiu, fechando a porta para
evitar as mariposas. Puxou as cortinas e, inespe radamente, ela sentiu uma
sensação de insegurança. Amava-o o suficiente para se entregar
incondicionalmente? Ele sabia que ela era inexperiente. E rezou para que ele
fosse gentil e delicado...
Mas depois que conseguira trazê-la ao bangalô, parecia que Raul não tinha
mais pressa de chegar ao esperado desenlace. Deixou-se afundar
comodamente no sofá, com uma perna in dolentemente apoiada num dos
braços, e fitou Beth que ainda se mantinha junto à porta, com ar de ovelha
resignada.
— Quer um drinque?
Beth, que ainda estava de estômago vazio, recusou.
— Onde... onde está Isabelle? — perguntou nervosamente. Depois que fez a
pergunta, pensou que aquela era uma coisa
estúpida para se dizer num momento como aquele. Surpreen dentemente,
Raul não pareceu aborrecer-se.
— Suponho que tenha ido para a casa dela — respondeu tranquilamente.
— E... e Barbara?
A menção do nome da meia-irmã, as feições de Raul se encrisparam.
— Vai ficar uns tempos com os Marin. Diane vai tirar umas férias e acho que
as duas estão planejando uma viagem aos Estados Unidos.
Beth ouviu aquilo com certo alívio. Se as coisas não tivessem um final feliz,
pelo menos ela não estaria presente para testemu nhar seu.fracasso. Raul
tirou a perna do braço do sofá e levantou-se.
— Posso fazer-lhe algumas perguntas? Parece que você não está disposta a
fazer as suas.
— É que você disse que ia explicar...
— E vou. Mas antes, quero saber exatamente o que lhe disse Barbara. Ela
andou lhe dizendo coisas, não foi?
— Bem... sim. Mas como você sabe? — O rosto de Beth começou a iluminar-
se. — Ela falou com você?
— Ela não disse nada — ele interrompeu. — Pelo menos, não por sua vontade.
Mas continue, quero saber o que ela lhe disse.
Beth baixou a cabeça. Aquilo era mais difícil e penoso do que imaginara.
— Oh, Raul! Precisamos mesmo falar de Barbara?
— Penso que sim. Desta vez é necessário. Depois, evitaremos falar nela.
Beth suspirou.
— Não. Mas é que... bem... isso tudo pertence ao passado.
— Mas é muito importante para o presente. Beth, ela quase acabou conosco.
Isso não significa nada para você?
A expressão do olhar de Beth já era um discurso completo, mas ele não se
deu por vencido. Então, ela começou a falar vagarosamente.
— Antes... antes do funeral, ela me disse que tinha herdado a ilha... que era
sua patroa... e que poderia despedi-lo se quisesse.
— E por que haveria de despedir-me?
Beth ergueu os ombros, sentindo-se uma pobre infeliz.
— Ela faria isso se... se você... se nós... — Olhou-o suplicante.
— Ora! Você sabe muito bem o que ela disse! Ele anuiu:
— Está certo. Eu sei o que ela disse. E daí? Por que você não a mandou para
o inferno?
— Porque ela ameaçou vender a ilha. Eu sabia que você não ia querer isso
e... bem, não podia correr o risco, mesmo que aquilo fosse um blefe.
— Por que não?
— Oh... Barbara garantiu-me que você se sentiria infeliz vivendo em outro
lugar... que eu não compensaria seu desgosto por ter deixado a ilha... que
você iria odiar-me por tê-lo feito perder o auto-respeito.
— Oh, Beth! — Ele a puxou para perto, ergueu-lhe o queixo e passou-lhe os
dedos amorosamente pelos lábios. — Beth, Beth
— gemeu. — Você não sabia que sem você eu me sentiria perdido?
Irremediavelmente perdido!
— Você nunca deixaria a ilha — ela protestou, mas ele sacudiu a cabeça
negativamente.
— Deixaria a ilha a qualquer hora que você quisesse. Se tivesse que escolher
entre as duas, você sempre ganharia.
Beth pestanejou.
— Mas isto não está certo... você adora esta ilha.
— Mas adoro muito mais você — disse ele. — Admito que preferiria não sair
daqui. Mas se for isso que você quiser...
— Eu não quero! — ela exclamou, rodeando a cintura de Raul com os braços.
— Eu só quero aquilo que você quer.
— Beth!
Os lábios de Raul foram à procura dos dela. Ambos estavam famintos um do
outro. Misturaram sabores, sensações, amores e gemidos. Ele a dirigiu para
o sofá e Beth deixou-se levar, sem protestos. Quando aquele corpo másculo
cobriu o dela, pôde sentir . cada músculo, cada nervo, vibrando, distendendo-
se, enrijecendo. Ele a beijou muitas e muitas vezes, de todas as formas
possíveis, apenas roçando os lábios em suas partes mais sen- síveis, ou a
profundando-se até o âmago de sua carne, como se quisesse absorvê-la
inteira.
Mas, pouco a pouco, foi diminuindo o ritmo e a audácia das carícias e,
quando ela reclamou, ele disse roucamente:
— Não pretendo fazer amor com você num sofá, quando há uma cama tão
confortável lá dentro no quarto.
— Vai deixar que eu fique com você esta noite?
— Tente impedir-me, se for capaz! — Mas levantou-se do sofá e continuou
falando:
— Sabe, Beth, ainda existem muitas coisas a serem escla recidas. Assim
como o porquê de não lhe ter dito que eu era filho de Willard.
Beth sentou-se, e ele, relutantemente, fechou-lhe a blusa que tinha
desabotoado há momentos atrás.
— Muita tentação por pouca resistência. — Sorriu-lhe, e entrou no assunto: —
Eu não sabia quem era até os sete ou oito anos. Pensava que meu pai tivesse
morrido. Então, quando descobri a verdade, cheguei a preferir que ele
estivesse mesmo morto. Você não pode calcular o que seja saber que se é
filho de um Petrie e nunca ter sido reconhecido como tal.
— Naquela época ele estava casado com Agnes? Ela era mãe de Barbara,
não era? — Beth aventurou-se a perguntar.
— Sim, mas isso não fez nenhuma diferença para ele. Já estava casado com
Agnes quando eu nasci. Como ela era bem mais velha do que ele, parecia
que não ia ter filhos e Willie tinha que provar sua virilidade.
— Oh, Raul!
Ele respirou fundo, tentando apagar o tom amargo de sua voz.
— Barbara e eu brincamos juntos quando éramos crianças. Ela não sabia que
éramos irmãos. Era muito pequena para compreender.
— Mas depois veio a descobrir?
— Não. Não, até a noite passada.
— A noite passada!
— Tentei contar-lhe antes de todas as maneiras. Ela... bem, ela começou a
interessar-se por mim como homem e eu preci sava acabar com aquilo. De
início, dei como desculpa que eu era apenas um empregado, um mero
supervisor, e que Willard nunca permitira que sua filha casasse com um
subordinado. Mas esse argumento perdia a força quando ele se ausentava.
Costumava até chamá-la de "irmã Barbara", mas ela pensava que era porque
tínhamos sido criados juntos.
— Compreendo. Deve ter sido um choque muito grande saber que tinha um
irmão, à parte o restante das circunstâncias. E o que aconteceu na noite
passada?
— Na noite passada, na festa, ela não largou do meu pé o tempo todo. Não
me atrevi a fazer ou dizer nada, pois se ela descobrisse que havia algo entre
nós dois, poderia convencer o pai a mandar-me embora. E eu sabia que, se
deixasse a ilha, você acabaria casando-se com Willard! Tudo levava a crer.
Você estava usando o anel que ele lhe deu.
— Deixe-me explicar sobre isso. Eu... bem, depois que nós dois estivemos
juntos na praia, as coisas começaram a mudar, você sabe o que quero dizer!
E na noite do jantar, eu queria dizer-lhe que estava tudo acabado, mas ele
procurou-me no quarto com aquele anel de noivado e eu... eu simplesmente
não tive coragem de dizer mais nada. Depois que me deu o anel, ele... ele
tentou... bem, ele me beijou e... e... — Beth olhou para Raul profundamente
abalada. — Eu odiei aquilo. Queria que parasse, mas ele não parava mais.
Quando consegui livrar-me dele, mostrou-se arre pendido pelo que fizera,
mas não era verdade!
— Oh, Beth! — Os olhos de Raul estavam sombrios e pe nalizados. — Não
precisava dar-me tantas explicações.
— Mas acho melhor assim!
— E então... — Ele continuou suas explicações. — Eu saí da festa mais cedo,
mas Barbara me seguiu. Willard deve ter visto quando ela saiu, pois foi ao
seu encalço, e foi daí que contou-lhe, de uma forma brutal, que nós éramos
do mesmo sangue. Ela ficou arrasada. Ficou deveras arrasada. Mas soube
esconder muito bem seu desapontamento e sua revolta. Até que depois...
— Depois? — Beth estava intrigada. — Quer dizer, depois que eu deixei a
casa?
— Sim. Isabelle chegou a contar-lhe que Willard ainda es tava vivo quando
cheguei na casa esta manhã — Beth assentiu e ele continuou: — Ele estava
praticamente nas últimas. — Raul limpou a garganta, naturalmente
preparando-se para re latar a parte pior. — Bem, ele estava segurando o
testamento e insistiu para que eu o guardasse comigo e não deixasse que
Barbara o visse. Tive que concordar, pois estava desesperado. Contou-me
que Barbara lhe dissera coisas imperdoáveis e que ele a informara que tinha
chegado a Charles Templeton só porque queria fazer alterações no
testamento. Acredito que ele desejava nomear você como sua herdeira.
— Graças a Deus ele não fez isso — murmurou Beth com sinceridade.
Ele enrugou a testa.
— Não sei, não, talvez até tivesse sido melhor. Mas, de qualquer forma, sua
fuga fez com que ele mudasse de idéia novamente.
— Mas Barbara deveria saber que ele poderia...
— Não. Willard confidenciou-me que ela escarneceu dele, dizendo-lhe que
não estava em condições de fazer mais nada. Ameaçou vender a ilha,
humilhou-o, ridicularizou-o, enfim, comportou-se de uma forma deplorável. E
ele tirou sua herança.
— Que horror!
— Foi nojento. Fiquei até com ânsias no estômago. Tive vontade de rasgar
aquele maldito testamento. Mas Jonas im pediu-me e fez-me jurar pela minha
mãe que eu não faria isso.
Beth estava compadecida.
— Pobre Raul! Que situação a sua!
— Situação que não melhorou em nada quando você me disse que ia embora
para sempre.
— Você sabe o porquê?
— Sei, graças a Isabelle.
— Isabelle? — Beth enrijeceu.
Por que aquela mulher devia sempre entrar em cena para recolher os cacos
de seus desentendimentos?
— Sim, Isabelle. Você falou com ela, não falou? Fez-lhe al gumas perguntas
hipotéticas sobre o fato de eu deixar a ilha?
— Bem, sim, fiz.
— Ela contou-me. Isso fez com que eu começasse a suspeitar. Beth estava
surpresa. Se estivesse no lugar de Isabelle não
teria feito tanto por ela.
— Você chegou a falar com Barbara?
— Sim, mas não quero falar sobre isso agora.
— Mas ela contou-lhe sobre as coisas que falou comigo?
— De passagem... em meio a desabafos de raiva contra as injustiças do
mundo! Ora, vamos esquecer de Barbara por en quanto. Depois pensaremos
no que fazer com ela. Tenho um pressentimento de que ela vai preferir morar
nos Estados Uni dos depois que nos casarmos.
— Depois... do quê? — Beth estava aturdida.
— Você vai casar comigo, não vai? — perguntou, com os olhos ainda
atormentados pela dúvida..
— Se... se você quiser — ela sussurrou e sentiu intimamente uma imensa
gratidão por Isabelle.
— Se quiser! Deus do céu! O que você achava que eu queria?
— Eu... eu não sabia. Parecia-me que você... bem, que você tinha outras
mulheres.
— Que outras mulheres?
— Bem... Diane...
— Nunca tive nada a ver com ela!
— Então... a irmã de André Pecares, Louise! — Como sabe sobre ela?
— André me contou.
— Não posso negar que gostei de Louise. Sempre fui muito bem recebido em
sua casa. Mas depois que você chegou à ilha... — Ele sorriu. — Cheguei até a
maldizer-me, a considerar-me um perfeito idiota, mas não pude ter mais
outra mulher.
— E Isabelle?
— Isabelle? — Ele olhou-a perplexo. — Ela não lhe disse? Isabelle é minha
mãe!
— Sua mãe?
Beth mal podia acreditar, e a risada de Raul ajudou a relaxar a tensão.
— Minha Nossa Senhora! O que você deve ter andado imaginando!
Beth espalmou a mão sobre a testa, muito confusa.
— Então é por isso que ela tanto queria ver seu pai. Mas... ela devia ser muito
jovem quando você nasceu.
— Tinha só quinze anos. O pai dela era o diretor da escola, tal como ela é
hoje. Acho que era mestiço — Esperou pela reação de Beth àquela revelação,
mas, como ela não reagiu, continuou. — Ela era bem mais atraente do que
Agnes. Bem, só sei que acabei sendo concebido. Willard subornou meu avô
para que não contasse a ninguém que ele era o pai da criança.
— Oh, Raul!
Ele meneou a cabeça, com a fisionomia amargurada por aquelas
reminiscências tão dolorosas.
— Bem ou mal, cresci aqui na ilha, como você sabe. Quando tive idade
suficiente, Willie pagou-me os estudos na Inglaterra. Odiei o colégio mas
sabia que aquele seria o único meio de conseguir uma educação decente.
Quando voltei, ele avaliou meu potencial e empregou-me como seu
supervisor. Eu não era obrigado a aceitar, mas resolvi concordar para dar
uma alegria à minha mãe, a quem amo muito. Além disso, eu era um ser
humano, com todos os seus defeitos, e quis, a princípio, fazer com que
Willard padecesse um pouco, apesar de ter es quecido minhas intenções
quando amadureci. — Fez uma pau sa. — E foi então que você chegou.
Beth mordeu os lábios.
— Barbara me disse que tanto ela como você não queriam que eu ficasse.
— E não queria mesmo. Pelas razões que você sabe. Não queria que você
casasse com Willard para não usurpar o lugar que até hoje, penso, deveria
ter sido de minha mãe.
— Raul!
— Isso foi antes que você começasse a fazer parte de minha própria pele.
— E depois?
— Depois, não queria que você casasse com Willard porque a queria para
mim.
— Willard comportou-se de maneira estranha na primeira vez que encontrei
Isabelle, Lembra-se? Foi naquele dia que você me acompanhou até em casa.
De início, ele estava uma fera, mas quando eu disse que tinha visitado a
escola ele mu dou. Recordo-me de ele ter perguntado se você tinha me
contado alguma coisa. Na hora, não entendi.
— Acho que ele estava num sufoco. Talvez por isso tenha vindo
pessoalmente aqui em casa. Queria certificar-se de que não tinha sido
ventilado nada a respeito de minha mãe.
— Mas... Como é que seu sobrenome é Valerian, se Isabelle é Signy? — ela
exclamou repentinamente.
— Minha mãe chegou a casar-se com um missionário. In felizmente, ele foi
morto na América do Sul, poucos meses depois do casamento. Eu recebi seu
sobrenome.
— Entendo e sinto muito.
— Não precisa sentir. Não creio que Isabelle tivesse mesmo desejado casar-
se. Minha opinião é que o único homem que ela amou na vida foi meu pai.
— É estranho que ela não se tenha tornado minha inimiga, assim como
Barbara.
— É que ela não a culpava pelos erros alheios. Isabelle conhecia as
fraquezas de Willie, assim como você conhece as minhas...
— Suas fraquezas?
— Sim. Minha bobinha. Você é a minha fraqueza.
— Oh, Raul!
— Você nem imagina o que tive vontade de fazer depois daquele encontro na
praia. Deus do céu! Eu quis ir até a casa grande, denunciar você a Willard,
fazer com que ele a expul sasse! Mas fiquei quieto porque não tive coragem
de magoá-la.
Ela passou os braços ao redor do pescoço de Raul.
— Pois eu estava com medo de que você fizesse justamente isso — ela
confessou. — Mas pensei que fosse por ódio e não por amor.
— Eu, odiá-la? Bem, pode até ser. Houve momento em que cheguei bem
próximo do ódio.
— Você ainda pensa que eu ia casar com Willard por dinheiro? Raul meditou
seriamente sobre aquela questão.
— Acho que você pensava que não. E também acho que o aspecto romântico
de passar a viver numa ilha do Caribe influiu muito.
Beth suspirou.
— Talvez tenha razão. Mas, se por um acaso, você não qui sesse mais viver
aqui, eu iria morar com você em qualquer parte. Até numa caverna, se fosse
necessário.
— É assim que deve ser. Oh, Beth! Vamos nos casar logo. Quero que tudo
acabe desta vez.
— Quando quiser. Estou à sua disposição. Um beijo apaixonado calou aquela
promessa.
— Veja como são as coisas! Nunca pensei que eu viesse um dia a agradecer
meu pai. E pensar que se não fosse por ele nunca a teria conhecido. Por bem
ou por mal, ele iria aprovar a nossa união.
— Você acha que ele poderia opor-se?
— Ele deve ter sabido que você passou a noite comigo e, assim mesmo,
nomeou-me seu herdeiro. Ele não era nada bobo.
— Acredita que eu tive culpa pelo ataque do coração? — Beth perguntou,
hesitante, e ele aconchegou-a mais perto de si.
— Beth, ninguém teve culpa. Ele era um homem doente. Muitas coisas
contribuíram: a festa, as extravagâncias, o caso dos percevejos, e
finalmente Barbara! Seu coração não pôde aguentar tanto. Você ouviu o que
disse Marin.
— Sim, ouvi. Mas o povo vai falar do mesmo jeito.
— E você liga para isso?
— E você?
— Conheço bem esta ilha e conheço ainda melhor seu povo. Eles
respeitavam Wiliard, mas só aparentemente. Sei bem disso.
— Mas ele doou-lhe terras.
— Que eles permutavam entre si — retorquiu laconicamente — Quer dizer...
— Quer dizer que eles esquecerão Wiliard assim como um dia esquecerão de
mim?
— Não diga isso!
— Chega dessa conversa. Bem, onde você vai querer morar? Na casa
grande?
Beth titubeou.
— É obrigatório?
— Não, aliás, eu estava pensando em oferecê-la a Jacques para montar um
hospital. Poderíamos construir uma casa me nor, mais fácil de administrar.
Beth piscou de felicidade.
— Isso seria formidável! E Clarrie? E Jonas?
— Naturalmente, ficarão conosco.
— E Maria?
— Sobre ela... a decisão é sua.
— Ela pode ficar — disse Beth, com um tique nervoso nos lábios muito
significativo.
Raul pôs-se a rir,
— Oh, Beth! Nós vamos ser tão felizes!
E colocou-a no colo, sem que ela reclamasse...
F I M