rudolf steiner_a filosofia da liberdade

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  • 8/6/2019 Rudolf Steiner_A Filosofia Da Liberdade

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    Rudolf Steiner

    A Filosofia da Liberdade

    Fundamentos para uma filosofia moderna

    Resultados com base na observao pensante,segundo o mtodo das cincias naturais

    Traduo deMarcelo da Veiga

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    Sumrio

    Prefcio edico nova de 1918........................................... 2

    A cincia da liberdadeI. A aoconsciente..................................................

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    II. O impulso fundamental para a ciencia......................... 8III. O pensar a servio da compreenso do mundo................ 11IV. O mundo como percepo........................................ 17V. Cognio e realidade.............................................. 25VI. A individualidade humana........................................ 32VII. Existem limites da cognio? .................................... 34

    A realidade da liberdadeVIII. Os fatores da vida................................................. 41IX. A idia da liberdade............................................... 43X. Filosofia da liberdade e monismo............................... 51XI. Finalidade do mundo e da vida (Determinao do homem). 54XII. A fantasia moral (Darwinismo e tica)......................... 56XIII. O valor da vida (Pessimismo e otimismo)...................... 60XIV. Individualidade e espcie......................................... 69

    Questes finaisAs conseqncias do monismo......................................... 71Primeiro adendo.......................................................... 74Segundo adendo.......................................................... 77

    Posfcio do tradutor........................................................ 79

    Prefcio edio nova de 1918

    Tudo que pretendemos tratar neste livro est relacionado a duas perguntas fundamentais daexistncia humana. A primeira se refere possibilidade de encontrar no homem um firme ponto deapoio para tudo que chega ao seu conhecimento atravs de vivncias cotidianas e da cincia, masque pode ser abalado por dvidas e juzos crticos, levando-o, assim, incerteza e falta desegurana. A outra pergunta a seguinte: o homem, como ser dotado de vontade, pode atribuir-sea liberdade, ou ser que esta apenas uma iluso que nele surge, porque ele no considera oscondicionamentos e mecanismos dos quais dependem a sua vontade como um acontecimento

    natural qualquer? Essa pergunta, apesar de terica, no o resultado de meros raciocnios artifi-ciais, pois surge inevitavelmente na mente em determinado ponto de sua evoluo. E podemossentir que o homem deixaria de ser o que pode ser, caso nunca se defrontasse, com a maior sere-nidade, com estas duas possibilidades: liberdade ou determinismo da vontade.

    Neste texto, pretendemos mostrar que a resposta para a segunda pergunta depende do pontode vista que conseguimos adotar frente primeira. Tentaremos mostrar que existe, sim, umaconcepo, um mtodo de observao do ser humano, capaz de lhe dar segurana e firmeza emrelao aos seus conhecimentos; alm disso, defenderemos tambm que, atravs desse mtodo deobservao, ser possvel sustentar a idia da liberdade da vontade, porque ele leva descobertado mbito mental no qual o livre querer efetivamente desponta.

    O mtodo que usaremos para tratar das duas perguntas mencionadas to peculiar que, umavez conquistado, pode se tornar uma competncia real da vida interna. No nos contentaremos,pois, em fornecer apenas uma resposta terica e abstrata que, depois de ouvida, pode ser guardadana memria. Para o mtodo expresso neste livro, uma tal resposta seria apenas uma iluso. Comefeito, no nos interessa dar uma resposta definitiva e hermtica, queremos antes de mais nada

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    indicar um campo de atuao da mente humana no qual a pergunta se coloca e se resolve semprede novo por sua atividade prpria. Quem conseguir encontrar esse campo interno, no qual sedesenvolvem as perguntas citadas, elaborar, a partir de sua prpria observao, o que necessitapara chegar s respostas dessas duas questes to decisivas da vida humana. Continuar, ento,caminhando, com o que assim conquistou, pelas extenses e profundezas da vida, segundo amedida que sua prpria vontade e seu destino estabelecerem. Parece-me assim justificado um

    mtodo cognitivo validado atravs de sua vivacidade e de sua afinidade com toda a vida interior dohomem.

    Pensava assim sobre o contedo deste livro quando da sua redao h vinte e cinco anos. Etambm hoje tenho de redigir pensamentos desse gnero para assinalar as metas deste tratado.Limitei-me, na ocasio, a dizer somente o que est estritamente relacionado com as duasperguntas fundamentais acima descritas. Se algum se surpreender que neste livro ainda no seencontrem aluses ao mundo de experincias numnicas, expostas em minhas obras posteriores,cabe ressaltar que, na ocasio, no tinha a inteno de dar uma descrio de resultados de minhasinvestigaes noolgicas.1 Queria primeiro construir as bases filosficas capazes de apoiar ejustificar tais resultados. Esta Filosofia da liberdade no contm, pois, resultados desse gnero,como tampouco contm resultados especiais do mbito das cincias naturais; porm o que elacontm ser, a meu ver, imprescindvel para quem procura segurana para esse gnero de

    conhecimentos. O que foi dito neste livro pode, inclusive, ser admissvel para pessoas que, porrazes que consideram vlidas para si, no querem saber nada de investigaes noolgicas. Poroutro lado, pode ser importante para quem est procurando o conhecimento dos aspectos nomateriais da realidade o que aqui tentei: a saber, mostrar como uma investigao livre depreconceitos, que focaliza apenas as duas perguntas fundamentais acima descritas, pode de fatolevar concluso de que o ser humano membro de uma realidade essencialmente espiritual.Procuramos justificar neste livro, de modo geral, a possibilidade do conhecimento transcendenteantes mesmo de se entrar no campo da experincia espiritual em particular. E essa justificativa foirealizada de tal forma que, para achar aceitvel o que consta deste livro, no se faz necessrio, demaneira alguma, olhar para tais experincias descritas em minhas obras posteriores.

    Assim sendo, este livro me parece ter, por um lado, uma posio totalmente independentedos meus trabalhos noolgicos propriamente ditos e, por outro lado, possui uma estreita relaocom eles. Tudo isso me levou agora a publicar de novo, aps vinte e cinco anos, o contedo desse

    trabalho sem mudancas essenciais. Apenas acrescentei complementos, s vezes grandes, a umasrie de trechos do texto. As notcias que obtive da compreenso equivocada daquilo que escrevi,ensejaram tais ampliaes explicativas do texto original. Mudei o texto apenas onde me pareceupossvel aprimorar a forma de expressar o que quis dizer h vinte e cinco anos (diga-se de passagemque somente algum mal-intencionado poderia deduzir das mudanas feitas o abandono das minhasconvices originais).

    A obra j est esgotada h muitos anos. No obstante me parea, como se deduz do que foidito, que ainda hoje h de se dizer sobre as duas perguntas fundamentais o que j disse sobre elash vinte cinco anos, hesitei, por muito tempo, na concluso desta edio nova. Perguntava-mesempre de novo se no deveria me defrontar aqui ou ali com as vrias concepes filosficas quevieram tona desde a primeira edio. Isso no me foi possvel fazer de uma forma satisfatriapara mim prprio, devido ocupao com as minhas investigaes puramente noolgicas. De

    qualquer modo, porm, aps uma anlise minuciosa dos trabalhos filosficos da atualidade,convenci-me de que, por mais sedutor que fosse esse confronto, no seria necessrio inclu-lo nocontedo deste livro. O que, segundo o ponto de vista da Filosofia da liberdade, pareceu-me sernecessrio dizer sobre as mais novas direes filosficas, encontra-se no segundo volume do meulivro Enigmas da Filosofia.2

    Abril, 1918Rudolf Steiner

    A cincia da liberdade

    1 O autor descreveu, em seus livros posteriores, exemplos de um conhecimento que exige o desenvolvimento prvio dergos mentais especficos. Esse tipo de conhecimento uma continuao do mtodo cientfico aplicado na cincia natural,

    no mbito da realidade material. Quando ampliado para o campo das questes no-materiais (mundo espiritual), pode serchamado de noologia (Geisteswissenschaft). (N.T.)

    2 Die Rtsel der Philosophie.

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    1. A ao consciente

    Ser que o homem em seu pensar e em seu agir um ser espiritualmente livre ou est elesujeito a um inflexvel determinismo natural? A poucas perguntas aplicou-se tanta ateno como aessa. A idia da liberdade do querer humano encontrou, em grande nmero, tanto calorosos

    adeptos como persistentes adversrios. Existem pessoas que, em sua nfase moral, declarambitolado quem negue um fato to bvio como o da liberdade. A estes se opem outros, queconsideram o pice da falta de senso cientfico quando algum cr interrompida a ordem da na-tureza no domnio do agir e pensar humanos. A mesma coisa, pois, vem sendo declarada, com igualfreqncia, como o bem mais precioso da humanidade e igualmente como a pior das iluses.Imensa argcia foi dispensada a fim de explicar como possvel compatibilizar a liberdade humanacom os processos na natureza, da qual tambm o homem uma parte. No entanto, no foi menor oesforo pelo qual se tentou explicar como uma idia to infundada como a da liberdade pdesurgir. Sem dvida, estamos lidando aqui com uma das mais importantes questes da vida, dareligio, da prxis e da cincia. Isto sente qualquer pessoa com um mnimo de seriedade. Fazparte, contudo, dos tristes indcios de superficialidade do pensar da atualidade, o fato de um livroque se prope preconizar uma nova f, baseando-se nos mais recentes resultados da cincia danatureza3 (David Friedrich Strauss: A velha e a nova f) 4, no conter nada mais acerca dessaquesto do que as seguintes palavras:

    No nos envolveremos aqui com a questo da liberdade. A pretensa liberdade da livre escolhasempre foi desmascarada por toda filosofia digna deste nome como um fantasma vazio; aavaliao do valor tico das aes e atitudes humanas no depende de modo algum dessa questo.Cito esse trecho, no por acreditar que o livro no qual se encontra seja importante, mas porque meparece expressar a opinio de muitos contemporneos referente ao assunto em questo. Quemacredita ter superado os nveis elementares na cincia, assevera que a liberdade no pode consistirna livre escolha entre uma ou outra ao. Sempre existe, assim se afirma, uma causa bemdeterminada, em virtude da qual se escolhe justamente uma ao entre vrias outras possveis.

    Isso parece bvio. No obstante, os principais ataques dos adversrios da liberdade dirigem-se

    somente contra a liberdade da livre escolha. Diz, por exemplo, Herbert Spencer, defensor de idiascada vez mais comuns (in Os princpios da psicologia5):

    Tanto a anlise da conscincia quanto o contedo dos ltimos captulos (da psicologia) contestama afirmao contida no dogma da liberdade, ou seja, que uma pessoa possa, sem motivo, quererou no querer.

    O mesmo ponto de vista adotado tambm por outros para combater a idia da livre vontade.Em suma, toda argumentao contra a liberdade j se encontra em Spinoza. O que ele exps demaneira clara e simples para contestar a possibilidade da liberdade foi repetido, desde ento,inmeras vezes, porm sob o disfarce de argumentaes complicadas, que dificultam amide acompreenso do raciocnio simples e afinal importante. Spinoza escreve, numa carta de outubro ounovembro de 1674:

    Chamo de livre, pois, a coisa que existe e age apenas segundo uma causa ordenadora situadadentro dela, e de determinada chamo a que obrigada a existir e atuar de maneira precisa e fixapor uma causa fora de si. Assim, por exemplo, Deus livre, ainda que sua existncia obedea auma ordem pois deve sua existncia somente causa ordenadora situada em sua prpria natureza.Do mesmo modo, Deus conhece e compreende a si mesmo e todas as demais coisas por liberdade,visto que caracteriza justamente a ordem de sua natureza conhecer e compreender tudo. Vsvedes, portanto, que para mim a liberdade no uma escolha arbitrria e sem ordem, mas sim acapacidade de ter a causa ordenadora em si mesmo.

    3 Cincia da natureza = cincia natural. Esse conjunto de palavras, usual no Brasil, constitui uma contradioem si, visto que uma cincia nunca pode ser natural por ser sempre um produto artificial. Por conseguinte, mais exato dizer cincia da natureza, em vez de cincia natural. (N.T.)

    4 Der alte and der neue Glaube. [Livro severamente criticado por Nietzsche na primeira das Consideraesextemporneas. David Friedrich Strauss, o devoto e escritor. (N.T.)]5 Die Prinzipien der Psychologie, edio alem de Dr. B. Vetter (Stuttgart, 1882).

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    Mas desamos s coisas criadas, que, sem exceo, so determinadas por causas externas aexistir e atuar de maneira precisa e fixa. Para podermos compreender isso com mais nitidez,vamos imaginar uma coisa bem simples: uma pedra, por exemplo, que recebe de uma causaexterna um impulso, continua) mesmo aps o impacto, em movimento. O movimento da pedra ,pois, determinado e no livre, porque tem a sua origem no impacto externo. O que vale para a pe-dra vale para todas as demais coisas criadas, qualquer que seja a sua complexidade e utilidade, ouseja, todas as coisas so determinadas por uma causa externa a existir e agir de maneira fixa eprecisa.

    Ora, imaginai, eu vos peo, que a pedra, ao mover-se, desenvolva conscincia e passe a acharque esteja esforando-se a prosseguir no movimento. Essa pedra, ciente de seu esforo e por issono indiferente em relao ao seu movimento, acreditar que seja livre e esteja se movimentandoapenas porque quer. Esta justamente aquela liberdade humana que todos asseguram possuir,que apenas surge porque os homens so conscientes de seus clesejos, mas nada sabem dasverdadeiras causas pelas quais so movidos. Assim, a criana acredita querer o leite livremente, ojovem irado a vingana, e o temeroso a fuga. Ademais, o bbado acha que fala livremente tal ouqual coisa que mais tarde, quando de volta ao estado sbrio, preferiria no ter falado. Essepreconceito arraigado inato a todos os homens, e, por essa razo, no ser fcil se livrar dele. Emesmo que a experincia nos ensine suficientemente a dificuldade que tem o homem de moderar

    os seus apetites e que ele, movido por paixes antagnicas, reconhece o melhor e no obstante fazo pior, insistimos em atribuir-nos a liberdade apenas pelo fato de querermos algumas coisas menosque as outras e por alguns apetites poderem ser facilmente reprimidos pela lembrana de outros.

    Como encontramos a uma argumentao clara e ntida, ser-nos- fcil descobrir o seu errobsico. Com a mesma necessidade com que a pedra rola aps ter recebido um impulso externo,tambm o homem teria de executar uma ao, quando impelido por uma causa qualquer. Somentepor ter conscincia de seu ato, o homem julgaria ser o livre autor de sua ao, sem se dar conta,contudo, de que est sendo impelido por uma causa qual deve obedecer sem escolha. O erronesse raciocnio ser logo detectado. Spinoza e todos os que pensam como ele no levam emconsiderao que o homem no tem apenas conscincia de suas aes, mas sim tambm das causasque o impelem. Ningum duvidar de que a criana no livre quando exige o leite, e tampouco obbado ao pronunciar coisas das quais mais tarde se arrepende. Ambos no sabem nada das causasque atuam nas profundezas de seus organismos e da coero irresistvel que elas exercem sobreeles. Porm realmente lcito confundir aes desse gnero com outras nas quais o homem no somente consciente de seu agir, mas tambm sabe das causas que o movem? Ser que as aes doshomens so todas do mesmo gnero? Ser que vlido equiparar, cientificamente, as aes doguerreiro no campo de batalha s do pesquisador cientfico no laboratrio ou, enfim, as do polticoem complicados assuntos diplomticos, da criana que quer o leite? Com efeito, certo que sedeve procurar a soluo de um problema pelo caminho mais fcil. Mas muitas vezes a falta dediscernimentoj produziu confuses sem fim. E trata-se de uma diferena essencial se eu sei porque fao alguma coisa ou se no o sei. Isso parece ser bvio. Os adversrios da liberdade, porm,quase nunca perguntam se a causa de uma ao que reconheo e discrimino em sua origem,significa uma coao no mesmo sentido que o processo orgnico que leva a criana a desejar oleite.Eduard von Hartmann afirma, em sua Fenomenologia da conscincia moral 6,que o querer humano

    depende de dois fatores principais: das causas motoras e do carter. Se pressupomos que os sereshumanos so iguais ou, ao menos, que as diferenas entre eles so insignificantes, o querer humanoparece determinado por fatores externos, a saber, pelas circunstncias que o atingem. Se, poroutro lado, levamos em considerao que diferentes pessoas transformam uma representaomental em causa motora de seu agir, apenas quando seu carter se deixar mover por talrepresentao, ento o homem parece ser determinado em primeiro lugar por fatores internos eno externos. O homem acredita, assim, ser livre, isto , independente de causas motorasexternas, porque uma representao, imposta por fatores externos, precisa primeiro sertransformada, conforme o carter da pessoa, em causa motora de ao. Mas a verdade , segundoEduard von Hartmann, que:

    Ainda que sejamos ns que transformemos as representaes em motivos de ao, no o

    fazemos livremente, mas sim segundo as peculiaridades de nossas disposies caracte-6 Phnomenologie des sittlichen Bewu/tseins, p. 451.

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    rolgicas, por conseguinte, de modo no-livre.

    Tampouco nesse caso no levada devidamente em considerao a diferena existente entreas foras motrizes que me influenciam somente aps terem sido permeadas por minha conscinciae aquelas que me determinam sem que eu tenha uma noo clara delas.

    Esse argumento nos conduz diretamente ao ponto de vista a ser adotado neste trabalho. Ser

    que lcito levantar a questo da liberdade isoladamente, por si mesma? E se no, com que outrapergunta ela deveria ser vinculada?

    Se realmente existir uma diferena entre uma causa motora consciente e um impulsoinconsciente de meu agir, ento o primeiro caso acarretar uma ao que precisa ser avaliadadiferentemente do caso de uma ao perpetrada em virtude de um impulso cego. A investigaodessa diferena constituir, pois, o primeiro passo, e o resultado dela determinar o nossoposicionamento diante da questo da liberdade propriamente dita.

    Qual a importncia de ter o conhecimento das causas do nosso agir? No se respeitoudevidamente essa pergunta, porque, infelizmente, sempre se dividiu em duas partes o que nofundo forma um todo inseparvel: o homem. Distinguiu-se aquele que age daquele que sabe, e foiesquecido aquele que na verdade importa: o homem que age baseando-se em sua capacidaderacional.

    Alguns alegam: o homem livre quando est exclusivamente sob o governo de sua razo e nosob o dos instintos animalescos. Ou tambm: ser livre significa direcionar a sua vida e o seu agirconforme finalidades e decises racionais.

    Com afirmaes como essas, porm, no se resolve nada. Pois a que est o problema: nopoderia ser, porventura, que a razo ou finalidades e decises racionais obriguem e coajam o serhumano assim como os instintos animalescos? Se uma deciso racional se impuser igual fome e sede, ou seja, sem a minha participao ativa, ento s me resta segui-la coagidamente, e a minhaliberdade uma iluso.

    Um outro lugar-comum consiste em dizer: ser livre no significa poder querer o que queremos,mas sim poder fazer o que queremos. Esse pensamento foi nitidamente exposto pelo poeta efilsofo Robert Hamerling, em sua Atomstica da Vontade7:

    O homem pode, com efeito, fazer o que quer mas no pode querero que quer, porque sua

    vontade determinada por motivos! No pode querer o que quer? Investiguemos essas palavrasmais de perto. Encontra-se nelas, porventura, algum sentido? A liberdade da vontade consistiria,pois, em poder querer algo sem razo, sem motivo. Mas o que significa querer algo, seno teruma razo para fazer ou almejar isto ou aquilo em lugar de outra coisa? Querer algo sem razo,sem motivo, significaria, portanto, querer algo sem quer-lo. O conceito de motivo est tovinculado ao da vontade, que impossvel separ-los. Sem um motivo determinante, a vontadeseria uma faculdade vazia, ou seja, somente atravs do motivo ela se torna atuante e efetiva. E,por conseguinte, completamente certo dizer que o homem no livre, sendo que a direo de suaao sempre determinada pelo mais forte dentre os motivos. Por outro lado, absurdo quererfalar, em face desta falta de liberdade, de uma possvel liberdade da vontade, que nospossibilitaria querer o que no queremos.8

    Tambm aqui se fala de motivos somente de modo geral, sem se levar em considerao a

    diferena entre os motivos inconscientes e os conscientes. Se um motivo me influenciar a ponto deeu ser coagido a segui-lo porque o mais forte dentre os demais, ento o conceito da liberdadeperde o sentido. Como que poder ou no fazer algo poderia ter um significado para mim, se soucoagido a faz-lo pelo motivo mais forte? O que importa, em primeiro lugar, no se eu posso ouno executar algo aps ter sido coagido pelo motivo mais forte, mas sim, se existem apenas moti-vos que se me impem por fora. Se sou obrigado a querer algo, ento, pouco me importa se defato posso realiz-lo ou no. Se, em virtude de meu carter e das circunstncias do meu ambiente,-me imposto um motivo que se revela como insensato diante da minha reflexo, ento eu deveriaat ficar feliz se no puder fazer o que quero.

    O que importa no , pois, se posso ou no realizar uma deciso, mas unicamente como adeciso surge em mim.

    O que distingue o ser humano de todos os demais seres baseia-se na sua capacidade racional.

    7Atomistik des Willens.

    8Atomistik des Willens, pp. 213 ss.

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    II. O impulso fundamental para a cincia

    Zwei Seelen wohnen, ach! In meiner Brust,

    Die eine will sich von der andern trennen;

    Die cine hlt, is derber Liebeslust,

    Sich na die Welt mit klammernden Organen;Die andere hebt gewaltsam sich vom Dust

    Zu deis Gefilden hoher Ahnen.

    Duas almas residem, ai!, em meu peito:Uima quer separar-se da outra;Uma, mediante rgos tenazes,Aferra-se ao mundo num rude deleite amoroso;A outra se eleva com vigor das trevasAos campos de excelsos antepassados.

    (Gethe, Fausto, 1, 1112-1117)

    Com essas palavras, Gethe expressa um trao caracterstico profundamente arraigado nanatureza humana. O homem no um ser homogneo. Sempre deseja mais do que o mundo lheoferece. Por natureza, possui necessidades; dentre essas, existem algumas cuja satisfao dependedele. Abundante o que recebe da natureza; mais exuberantes ainda so, contudo, os seusdesejos. O ser humano parece ter nascido para o seu prprio descontentamento. A sua constantebusca pelo conhecimento pode ser vista apenas como um caso particular desse seu descontenta-mento geral. Olhamos, por exemplo, duas vezes para uma rvore. Na primeira vez, os galhos estoem repouso e noutra vez em movimento. Por que a rvore se apresenta uma vez em repouso eoutra vez em movimento? Cada olhar paira a natureza suscita inmeras perguntas em ns. Cadafenmeno observado ao mesmo tempo um problema. As coisas que vivenciamos se convertem

    assim em enigmas ou tarefas. Observamos como do ovo nasce um ente semelhante ao ser materno;podemos perguntar ento pela razo dessa semelhana. Observamos num organismo crescimento edesenvolvimento at um certo grau de perfeio; podemos ento analisar as condies quedeterminam esses fatos. Nunca , pois, suficiente o que a natureza apresenta aos sentidos.Precisamos avanar e procurar o excedente, que chamamos de explicao dos fatos.

    O excedente que procuramos nas coisas, em virtude de nosso descontentamento com o que oferecido imediatamente aos sentidos, divide o nosso ser em duas partes. Tornamo-nos conscientesda diferena entre ns e o mundo, posicionando-nos como um ente distinto diante do mundo. Ouniverso apresenta-se assim na contraposio Eu e Mundo.

    Esse muro divisrio entre o eu e o mundo surge to logo a conscincia desperta. Mas semprepermanece o sentimento de que o homem pertence ao mundo, de que existe um nexo que une o eue o mundo e de que no somos um entefora, mas sim integrados ao universo.

    Esse sentimento responsvel pela busca da superao da referida contraposio. Pode-sedizer que no fundo toda e qualquer aspirao cultural da humanidade se baseia na superao dessacontraposio. A histria cultural , pois, o resultado da incessante busca pela unidade entre o eu eo mundo. Religio, Arte e Cincia procuram, cada uma a seu modo, esse mesmo fim. O religioso,por exemplo, tenta solucionar a diferena entre si e o mundo, que seu prprio eu, descontente como mundo dos fenmenos, cria, entregando-se revelao que Deus lhe concede. O artista procuraincorporar matria as idias do seu eu, a fim de conciliar o contedo que vive em seu interiorcom o mundo externo. Tambm ele se sente insatisfeito com o mundo dos fenmenos e procuraacrescentar-lhe aquele excedente que o seu eu abarca em si. O pensador, por sua vez, buscapensar as leis dos fenmenos observados e se empenha em penetrar com o seu pensar no mbitodos fenmenos que experimenta por meio da observao. Somente quando consegue fazer docontedo do mundo o contedo do seu prprio pensarreencontra a unidade da qual ele mesmo sedesligou. Veremos ainda, mais tarde, que essa meta s ser atingida se compreendermos de

    maneira mais profunda a tarefa do pesquisador cientfico. O assunto aqui exposto se expressa tam-bm num fato histrico: na anttese entre a concepo unicista do mundo, ou seja, o monismo, e a

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    teoria dos dois mundos, ou seja, o dualismo. O dualismo se fixa na diviso entre o eu e o mundo,cuja causa se encontra, como vimos, na conscincia do homem. Todo o seu empenho uma lutaconstante, mas impotente, para conciliar os opostos, que ora denomina de esprito e matria, orasujeito e objeto, ora pensamento e fenmeno. Ele nutre o sentimento de que deve existir umaponte entre os dois mundos, mas no capaz de encontr-la. Visto que o homem se vivencia comoum eu, o dualismo no pode seno pensar esse eu como pertencente ao mbito do esprito; e

    como contrape a esse eu o mundo, ele tem de conceb-lo como o mundo das percepes, o mundomaterial. Assim, o prprio homem se coloca na oposio entre esprito e matria. No consegueevitar essa dicotomia, uma vez que o seu prprio corpo pertence ao mundo material. O Eu passa apertencer ao Esprito como uma parte deste; e as coisas e processos materiais, que so percebidosatravs dos sentidos, ao Mundo. O homem reencontra desse modo, forosamente, todos os enig-mas referentes ao esprito e matria no enigma fundamental de seu prprio ser. O monismo, porseu turno, dirige o olhar apenas para a unidade e procura negar ou apagar os opostos que, semdvida, existem. Nenhuma das duas concepes pode satisfazer, uma vez que elas no fazem jusaos fatos. O dualismo considera o esprito (eu) e a matria (mundo) como entidades fundamental-mente diferentes e no consegue, por conseguinte, entender como ambas esto interligadas: comoo esprito poderia saber o que acontece na matria, se a natureza peculiar desta lhe totalmenteestranha? E como poderia ele, nessas circunstncias, atuar sobre ela, de sorte que suas intenes se

    convertessem em aes? As hipteses mais perspicazes e mais contraditrias foram levantadas pararesolver essas questes. Mas tambm em relao ao monismo as coisas no andam melhor. Atagora ele procurou sustentar-se de trs diferentes maneiras: ou ele nega o esprito e torna-sematerialismo; ou ele nega a matria para se render ao espiritualismo ou, afinal, afirma que no entemais simples do mundo a matria e o esprito j esto intimamente unidos, razo pela qual no preciso se surpreender com o fato de essas duas instncias se manifestarem tambm no homem,haja vista que em nenhum lugar existem separadamente.

    O materialismo jamais pode oferecer uma explicao satisfatria do mundo, pois qualquertentativa de explicao tem que comear com a formao de pensamentos sobre os fenmenos. Omaterialismo comea, portanto, com o pensamento acerca da matria ou dos processos materiais.Assim, j de incio, tem dois diferentes fatos diante de si: o mundo material e os pensamentossobre ele. Procura compreender os ltimos, concebendo-os como processos puramente materiais.Acredita que o pensar surge no crebro, bem como o metabolismo nos rgos vitais. Assim como

    atribui matria efeitos mecnicos e orgnicos, confere-lhe tambm a capacidade de pensar sobcertas condies. Ele esquece, porm, que assim apenas deslocou o problema. Ao invs de atribuira si prprio a capacidade de pensar, ele a atribui matria. Destarte, voltou de novo ao seu pontode partida. Como que a matria consegue pensar sobre a sua prpria essncia? Por que esta noest contente consigo mesma e aceita a sua existncia tal qual ? O materialismo desviou o olhardo sujeito ntido, do nosso prprio eu, para admitir uma instncia indeterminada e nebulosa. E aquise defronta de novo com o mesmo enigma. A concepo materialista do mundo no conseguesolucionar o problema, visto que apenas o transfere.

    E como avaliar a concepo espiritualista?12 O espiritualista puro nega a matria em suaexistncia autnoma e a concebe como produto do esprito. Quando se utiliza dessa concepo parasolucionar o enigma da prpria entidade humana, incorre num dilema. O eu, que pertence aombito do esprito, defronta-se, subitamente, com o mundo dos sentidos. Para este no existe apa-

    rentemente um acesso espiritual direto, pois deve ser percebido pelo eu atravs de processosmateriais. Tais processos materiais, contudo, o eu no encontra em si, ao contemplar-se apenascomo entidade espiritual. No se encontra o contedo do mundo dos sentidos naquilo que o euelabora para si de forma espiritual. O eu , pois, obrigado a admitir que o mundo lhe seriainacessvel, se no se relacionasse com ele de uma maneira no espiritual. Ademais, precisamos,quando agimos, recorrer s foras materiais para converter nossas intenes em realidade.Dependemos, portanto, do mundo externo. O espiritualista mais extremado, ou, para quempreferir, o pensador que atravs do idealismo absoluto se articulou como espiritualista extremado Johann Gottlieb Fichte. Ele tenta deduzir o mundo, como um todo, do eu. O que, no entanto, elerealmente conseguiu fazer, foi construir uma imagem conceitual do mundo sem qualquer contedode experincia. Assim como o materialismo no consegue anular o esprito, tampouco oespiritualista consegue aniquilar o mundo externo da matria.

    12 Cabe ressaltar que espiritualista no tem, neste contexto, nada em comum com a doutrina espiritista deKardec, o espiritismo. O espiritualismo uma concepo filosfica que considera o esprito como nica eexclusiva realidade. (N.T.)

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    Existe, de fato, o perigo de o espiritualista identificar o esprito com o mundo das idias,porque o homem, ao analisar o eu, s observa, inicialmente, o eu empenhado no desdobramentodo mundo das idias. O espiritualismo torna-se, dessa maneira, idealismo extremado. No consegueolhar para alm das idias do eu e discernir um mundo espiritual, identificando, portanto, o mundodas idias com o mundo espiritual. Em conseqncia, ele obrigado a permanecer com a suacosmoviso no mbito restrito da atuao do prprio eu.

    Uma variante singular do idealismo a concepo de Friedrich Albert Lange, defendida emseu famoso livro A histria do materialismo.13Ele pressupe que o materialismo tem toda a razoquando declara os fenmenos, inclusive o nosso pensar, como sendo produtos de processospuramente materiais; s que a matria e seus processos seriam, por sua vez, tambm produtos denosso pensar.

    Os sentidos nos do efeitos das coisas e no fiis imagens ou as prprias coisas. Entretanto,pertencem aos meros efeitos tambm os sentidos, inclusive o crebro e os movimentosmoleculares nele admitidos.

    Isto significa: o nosso pensar produzido pelos processos materiais e estes pelo pensar doeu. A filosofia de Lange , portanto, apenas a verso filosfica da histria do aventureiroMnchhausen que, segurando-se nos seus prprios cabelos, mantm-se suspenso no ar.

    A terceira forma do monismo seria aquela que pressupe j no ente mais simples (tomo) umaunidade inseparvel de matria e esprito. No entanto, desse jeito, nada se soluciona, pois somentese transfere para um outro palco a pergunta que, em verdade, nasce em nossa conscincia. Por queo ente mais simples articula-se de uma maneira dupla, se ele no fundo uma unidade inseparvel?

    Diante de todos esses posicionamentos, preciso ressaltar que encontramos a contraposioprimordial e bsica primeiro em nossa prpria conscincia. Somos ns prprios que nos afastamosda terra-me, da natureza, e nos contrapomos como eu ao mundo. De forma clssica, Getheexpe tal fato em seu ensaio A Natureza, no obstante alguns possam considerar sua maneirapotica pouco cientfica: Vivemos dentro dela (da natureza) e lhe somos estranhos. Ela falaconstantemente conosco sem nos revelar o seu segredo. Mas Gethe conhece tambm o outrolado: Os homens esto todos nela e ela em todos.

    Com efeito, por mais verdadeiro que seja que nos afastamos da natureza, sentimos, todavia,

    que estamos dentro dela e a ela pertencemos. S pode ser a sua prpria atuao que vive tambmem ns.Temos de encontrar o caminho de volta a ela. Uma reflexo simples nos poder indicar o

    caminho: ns nos desligamos da natureza, mas devemos ter levado alguma coisa para o interior donosso prprio ser. Precisamos procurar esse vestgio da natureza em ns e ento encontraremos denovo o nexo entre o eu e o mundo. O dualismo se omite nesse ponto. Ele acha que o interior dohomem um ser totalmente alheio natureza e procura posteriormente acopl-lo a ela. Nosurpreende que ento no consiga encontrar o elo. Somente podemos achar a natureza externa, co-nhecendo-a em ns. O que igual a ela em nosso interior nos guiar. Assim est traada a nossatrajetria. No pretendemos especular sobre a atuao recproca entre a matria e o esprito. Masqueremos descer s profundezas de nosso prprio ser para l encontrarmos aqueles elementos quelevamos conosco quando nos separamos da natureza.

    A investigao do nosso prprio ser nos deve fornecer a soluo do enigma. Temos de chegar aum ponto onde podemos constatar: aqui no sou mais apenas eu; aqui existe algo que transcendeo eu.

    Estou contando com uma objeo que muitos que leram at aqui faro. Certamente noacham as minhas exposies de acordo com os resultados da cincia atual. A tais objees me restaapenas replicar que no estava interessado, por enquanto, em quaisquer resultados cientficos, massim na simples descrio daquilo que cada qual vivencia em sua prpria mente. O fato deaparecerem neste contexto algumas frases sobre tentativas de reconciliao da conscincia e domundo tem a nica finalidade de esclarecer os verdadeiros fatos. Por essa razo, no dei valor aempregar certos termos como eu, esprito, mundo, natureza na forma precisa, usual napsicologia e filosofia atuais. A conscincia quotidiana no conhece as diferenas rigorosas dacincia, e o que importava era um levantamento dos fatos como se manifestam no dia-a-dia. Nome interessa como a cincia interpretou a conscincia at hoje, mas como esta se expressa a cada

    momento.13 Die Geschichte des Materialismus.

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    recorre forosamente forma conceitual e, assim, utiliza-se do pensar. Ele admite, dessa forma,indiretamente, que a sua atuao pressupe o pensar. Se o pensar ou qualquer outro elemento oelemento principal da evoluo do universo no a nossa questo aqui. Por outro lado, ficouevidente que o filsofo no conseguir solucionar esse problema sem o pensar. Seria possvel que opensar no tivesse importncia nenhuma na evoluo do universo, porm, na formao de umparecer sobre essa questo, cabe-lhe, sem dvida, o papel principal.

    No que diz respeito observao, devido nossa organizao que dela precisamos. Nossopensar sobre o cavalo e o objeto cavalo so duas coisas que, para ns, se apresentam de maneiraseparada. O objeto s nos acessvel atravs de observao. Assim como somos incapazes deformar um conceito do cavalo apenas olhando para ele, tampouco somos capaz de produzir um ob-jeto correspondente pelo mero pensar.

    No que diz respeito sucesso temporal, a observao at precede o pensar. Precisamosconhecer tambm o pensar primeiro atravs da observao. Tratou-se essencialmente da descriode uma observao, quando, no incio deste captulo, expusemos como o pensar despertado nocontato com um processo observado e como vai alm do que lhe dado sem a sua participao.Tudo que entra no campo de nossas vivncias precisamos perceber primeiro atravs da observao.O contedo de sensaes, percepes, perceptos15, sentimentos, atos de vontade, imagens onricase fantsticas, representaes mentais, conceitos e idias, todas as iluses e alucinaes, nos so

    dados por meio da observao.O pensar como objeto de observao se distingue, contudo, essencialmente de todas asdemais coisas. A observao de uma mesa ou de uma rvore comea to logo esses objetosaparecem no horizonte de minhas vivncias, mas o pensar sobre esses objetos no consigo observarsincronicamente. Observo a mesa e elaboro o pensar sobre a mesa, mas no o observo no mesmomomento. Tenho que deslocar-me para um ponto de observao fora de minha atividade, se quiser,paralelamente observao da mesa, observar tambm o meu pensar sobre a mesa. Enquanto aobservao de objetos e de processos e o pensar sobre eles constituem estados normais de minhavida, a observao do pensar um estado de exceo. Esse fato tem de ser devidamente levado emconsiderao quando se trata de determinar a relao do pensar para com todos os outroscontedos da observao. preciso esclarecer-se que na observao do pensar aplicamos ummtodo que o normal na investigao do restante do mundo, mas que, dentro desse estadonormal, no ocorre em relao ao pensar. Ora, poder-se-ia objetar que essa peculiaridade dopensar tambm vale para o sentir e as demais faculdades mentais. Quando sentimos, por exemplo,prazer, esse sentimento despertado no contato com um determinado objeto e a observaoestaria voltada ao objeto, mas no ao sentimento. Essa objeo baseia-se, porm, num equvoco. Osentimento de prazer no se relaciona do mesmo modo com o seu objeto, como o conceito formadopelo pensar. Sei claramente que um conceito formado por minha atividade, ao passo que osentimento evocado em mim de maneira semelhante modificao que uma pedra produz numobjeto ao cair em cima dele. Para a observao, o sentimento algo dado assim como o processoque o evoca. Para o conceito, essa caracterstica no tem validade. justificado perguntar por queum determinado processo produz em mim um sentimento de prazer, mas no por que um processosuscita em mim uma determinada soma de conceitos? Isto no faria nenhum sentido. No caso dareflexo, no se trata de um efeito causado em mim. Ademais, no consigo descobrir algo sobreminhas caractersticas pessoais, conhecendo os conceitos das modificaes causadas por uma pedra

    que foi atirada numa vidraa. Mas ao perceber o sentimento despertado em mim por umdeterminado processo, entendo algo sobre o meu mundo interior. Ao dizer, em face de um objetoobservado, isto uma rosa, no estarei enunciando nada sobre mim; mas quando digo: esse objetome proporciona um sentimento de prazer, ento no terei apenas caracterizado a rosa, mastambm minha relao para com ela.

    Diante da observao, no lcito equiparar o pensar ao sentir. Seria, alis, possvel mostrar omesmo para as demais faculdades da mente humana. Elas pertencem mesma categoria que osdemais objetos e processos observados e diferem, nesse aspecto, do pensar. Faz parte, pois, danatureza peculiar do pensar ser uma atividade voltada ao objeto observado e no personalidadepensante. Isso se mostra tambm na diferena entre a maneira como expressamos lingisticamentepensamentos sobre objetos diferente de ns e como falamos sobre os nossos sentimentos e atosvolitivos. Quando vejo um objeto e o identifico como sendo uma mesa, digo sob condies normais:

    15 Perceptos =Anschauungen. Devido ao emprego especfico de Intuition, no possvel usar intuio paraAnschauung, no contexto deste livro. (N.T.)

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    isto uma mesa e no: eu penso sobre uma mesa. Quando se trata de um sentimento, digoprovavelmente: eu gosto desta mesa. No primeiro caso, no importa dizer que eu estou merelacionando com a mesa; no segundo caso, justamente esse relacionamento que interessa. Como enunciado eu penso sobre uma mesa, j estou no mencionado estado de exceo no qualtransformo em objeto de observao algo que sempre est includo em minhas atividades mentais,porm sem ser observado.

    Eis a natureza peculiar do pensar: o ser pensante se esquece do pensar enquanto pensa. No o pensar que o interessa, mas sim o objeto que est observando.

    A primeira observao, pois, que fazemos sobre o pensar que ele constitui o elementoinobservado de nossa vida mental comum.

    A razo pela qual no observamos o pensar na vida mental comum simplesmente que eletem a sua origem em nossa prpria atividade. O que no produzido por mim, surge como umobjeto dado em meu campo de observao. Tenho que consider-lo algo que surgiu sem a minhaparticipao e aceit-lo como premissa de meu processo pensante posterior. Enquanto penso sobreo objeto, ocupo-me com ele, meu olhar est voltado para ele. Essa ocupao , pois, acontemplao pensante. A minha atividade no se dirige minha ateno, mas sim ao objeto com oqual est ocupada. Em outras palavras: enquanto eu penso, no olho para o pensar que produzo,mas sim para o objeto que no produzo.

    Estou, alis, na mesma situao, quando entro no referido estado de exceo no qual passo arefletir sobre o meu pensar. Nunca me ser possvel observar o meu pensar atual; apenas possoconverter posteriormente em objeto do pensar as experincias obtidas durante o processopensante. Para observar o meu pensar atual, seria necessrio dividir-me em duas personalidades:uma que pensa e outra que se v pensando. Isso impossvel. S posso faz-lo em dois atosseparados. O pensar a ser observado nunca aquele que se encontra em atividade. Se, para essefim, usar minhas observaes referentes ao meu prprio pensar j efetuado, ou se acompanhar odesdobramento da reflexo de uma outra pessoa, ou se, enfim, como no caso acima mencionado domovimento das bolas de bilhar, partir de um processo fingido de pensamentos, isso no fazdiferena.

    De todo modo, a produo ativa e a contemplao passiva e simultnea do mesmo ato seexcluem reciprocamente. O Primeiro Livro de Moiss j diz isso. Nos primeiros seis dias, Deus cria omundo e, s quando este est pronto, pode contempl-lo: E Deus olhou tudo o que fizera e viu que

    era muito bom. O mesmo ocorre em relao ao nosso pensar. Se queremos observ-lo, eleprimeiro tem de existir.

    A razo que nos impossibilita observar o pensar em ao , contudo, a mesma que nos permiteconhec-lo com mais imediatez e intimidade que qualquer outro processo do mundo. Justamenteporque ns o engendramos, conhecemos precisamente as caractersticas do seu curso, a maneiracomo se efetua. O que nos restantes campos de observao apenas conhecido de forma mediata a conexo objetiva e a relao entre as coisas , no caso do pensar sabemos de maneiraimediata. Como observador, no sei de antemo por que o trovo vem depois do relmpago; mas,quando penso os conceitos trovo e relmpago, eles se relacionam imediatamente de determinadamaneira, apenas por seus prprios contedos. No importa, nesta altura, que os meus conceitos dotrovo e do relmpago sejam corretos. A conexo entre os conceitos que eu tenho me claraatravs deles mesmos.

    Essa completa transparncia em relao ao processo pensante independe do nossoconhecimento dos fundamentos fisiolgicos do pensar. Falo aqui do pensar apenas com base naobservao de nossa atividade mental. No interessa, neste contexto, como um processo materialde meu crebro suscita ou influencia um outro enquanto eu executo uma operao de pensamento.O que observo quando penso no o processo cerebral que relaciona o conceito do relmpago aodo trovo, mas apenas o contedo que me leva a relacionar os dois conceitos de determinadamaneira. A observao me mostra que nada me orienta na conexo dos conceitos alm do contedodos meus pensamentos; no so os processos materiais do meu crebro que me norteiam. Para umapoca menos materialista que a nossa, esses comentrios seriam completamente suprfluos. Comoexistem, porm, atualmente, pessoas convencidas de que, quando soubermos o que matriatambm saberemos como a matria pensa, necessrio frisar que bem possvel falar do pensarsem entrar em coliso com a fisiologia do crebro. Muitos tero hoje em dia grandes dificuldadesde entender o conceito do pensar em sua pureza. Quem logo objetar ao parecer que desenvolvi,concernente ao pensar, o enunciado de Cabanis: O crebro secreta pensamentos como o fgado ablis, as glndulas salivares saliva, etc., simplesmente no sabe do que estou falando. Procura

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    encontrar o pensar por um mero processo de observao igual observao dos outros objetos domundo. No pode, contudo, ach-lo, seguindo esse caminho, visto que, como acabei dedemonstrar, o pensar se subtrai observao normal. Quem no consegue superar o materialismo,carece da faculdade de realizar para si mesmo o estado de exceo, caracterizado acima, que lhetraz conscincia o que no caso de todas as outras atividades mentais permanece inconsciente. Aquem falta boa vontade de se colocar na perspectiva descrita to impossvel falar sobre o pensar

    como a um daltnico sobre as cores. Mas no queira essa pessoa acreditar que identificamos osprocessos fisiolgicos com o pensar. Ela no explica o pensar, porque no o v.

    Para qualquer pessoa que possui a faculdade de observar o pensar e com boa vontade cadahomem normalmente organizado a possui , essa a observao mais importante que ela podefazer, pois observa algo que ela mesmo engendra; no se v diante de um objeto que lhe estranho, mas sim diante de sua prpria atividade. Sabe, portanto, como acontece o que observa.Discerne com clareza as relaes e as conexes. Encontrou-se, assim, um firme ponto de apoio noqual se pode basear a compreenso e a explicao das outras coisas.

    O sentimento de ter achado um tal ponto firme levou o inaugurador da filosofia moderna,Renatus Cartesius, a fundamentar todo o saber humano na proposio: Penso, logo existo. Todas asoutras coisas e todos os outros acontecimentos existem sem mim; no sei se existem como verdadeou como fantasia enganosa, ou bem como sonho. S de uma coisa sei com segurana incondicional,

    visto que eu mesmo a levo sua existncia segura: meu pensar. Mesmo que sua existncia tenhaainda uma outra origem, que venha de Deus ou de outra instncia, tenho certeza de que ele existe,na medida em que eu mesmo o engendro. Cartesius no tinha inicialmente justificao alguma paraatribuir um outro sentido sua proposio. Ele no podia seno afirmar que, dentro do mundo emsua totalidade, eu, pensando, me apercebo como em minha atividade genuna e prpria. Muito sediscutiu sobre o significado do complemento: logo existo. Esse complemento s pode ter sentidosob uma nica condio. O enunciado mais simples que posso emitir sobre uma coisa que elaexiste. De imediato, no posso, porm, saber das determinaes especficas de nada que apareceno horizonte de minhas experincias. Ser preciso, pois, investigar cada objeto em sua relao comoutros, a fim de determinar em que sentido ele existe. Um processo vivenciado pode consistir deuma soma de percepes, ou de um sonho, mas tambm de uma alucinao, etc. Em suma, noposso dizer em que sentido essa coisa existe. No posso depreender esse sentido do prprioprocesso, mas sim apenas contemplando sua relao com outras coisas. Mesmo nesse caso no

    posso saber mais do que a relao que ele tem com outras coisas. Minha busca s encontraralicerces firmes quando achar algo que se baseia em si mesmo. Ora, esse algo sou eu como serpensante, visto que dou minha existncia o contedo concreto e fundamentado em si mesmo daatividade pensante. Agora posso partir desse ponto e perguntar se as outras coisas existem nomesmo ou noutro sentido.

    Quando se faz do pensar um objeto da observao, acrescenta-se ao contedo do mundo algoque normalmente escapa da atenco, mas no se altera a maneira como o homem se comportadiante das demais coisas. Aumenta-se o nmero dos objetos da observao, mas no o mtodo deobservar. Enquanto observamos as outras coisas, mistura-se ao processo do mundo no qual incluoagora tambm o observar um processo que passa despercebido. H algo que se distingue de todosos demais processos, que no levado em considerao. Porm, quando contemplo o meu pensar,ento no existe esse elemento despercebido. O que nesse caso paira no fundo nada mais seno o

    pensar. O objeto observado qualitativamente idntico atividade que a ele se dirige. E essa outra peculiaridade do pensar. Quando fazemos dele um objeto da observao, no somosobrigados a faz-lo por meio de algo qualitativamente diferente, mas podemos permanecer nomesmo elemento.

    Quando insiro no meu pensar um objeto dado sem minha participao, ento vou alm daminha observao e cabe perguntar: o que me autoriza a fazer isto? Por que no me contento coma mera impresso que recebo do objeto? De que maneira possvel que o meu pensar tenha umarelao com o objeto? Essas so perguntas que cada qual deve enfrentar quando pensa sobre osprocessos cognitivos. Elas desaparecem quando pensamos sobre o prprio pensar. Nesse caso, noadicionamos nada de estranho ao pensar e, portanto, no precisamos justificar um tal acrscimo.

    Schelling diz: Compreender a natureza significa criar a natureza. Quem tomar ao p daletra as palavras ousadas desse filsofo, ter de renunciar para sempre cognio da natureza. Anatureza j existe e para recri-la seria preciso conhecer os princpios segundo os quais ela foicriada. Para uma natureza a ser criada, dever-se-iam depreender da natureza j existente os prin-cpios de sua existncia. Essa imitao, que precederia o criar, seria a cognico, mesmo quando,

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    uma vez efetuada a cognio, no se prosseguisse a criao. Apenas uma natureza ainda noexistente poderia ser criada sem conhecimento prvio.

    O que com relao natureza no possvel o criar antes do conhecer , no pensar orealizamos. Se dssemos incio ao pensar apenas quando o tivssemos compreendido, ento nuncachegaramos a realiz-lo. Temos que produzir primeiro resolutamente os pensamentos para depois,mediante a observao do que ns produzimos, chegarmos compreenso do pensar. Para a

    observao do pensar ns mesmos criamos o objeto. A existncia dos demais objetos j foiprovidenciada sem a nossa participao.

    Facilmente opor-se- minha proposio temos de pensar antes de podermos contempl-loa seguinte: tambm no podemos esperar com a digesto at conseguirmos entend-la. Seria umaobjeo semelhante quela que Pascal levantou contra Descartes quando afirmou: Passeio, logoexisto. Com certeza tenho de digerir resolutamente antes de estudar o processo fisiolgico dadigesto. Todavia, poderamos equiparar esse fato ao que foi dito sobre o pensar apenas se eu nopretendesse depois analisar a digesto pensando sobre ela, mas sim digeri-la. Com efeito, trata-sede um dado significativo que a digesto no pode tornar-se objeto da digesto, porm o pensarpode tornar-se objeto do pensar.

    No resta dvida, no pensar temos uma ponta do devir do universo em nossas mos e estamospresentes quando este se realiza. E eis, justamente, o que importa. Pois a razo pela qual as coisas

    se apresentam diante de ns de maneira to enigmtica que no participamos de seu vir-a-ser.Simplesmente as encontramos. Quanto ao pensar, no entanto, sabemos de onde vem. Por isto, noexiste um ponto de partida mais fundamental para a compreenso do mundo que o pensar.

    Quero ainda mencionar um equvoco muito difundido em relao ao pensar. Diz-se: nosabemos como o pensar em si mesmo, visto que o pensar que tece as relaes entre os dados daexperincia, permeando-os com uma contextura de conceitos, no idntico quele queabstramos depois dos objetos observados a fim de torn-lo objeto de nossa investigao. O pensarque introduzimos inconscientemente s coisas seria diferente daquele pensar que delasdepreendemos depois com conscincia.

    Quem argumenta desse modo no compreende que no lhe possvel esquivar-se assim dopensar. No posso sair do pensar quando quero contempl-lo. Ao se distinguir o pensar pr-cons-ciente do pensar que depois se torna consciente, no se deveria esquecer que se trata de umadistino superficial que nada tem a ver com o assunto em si. Uma coisa no se torna algo diferentequando sujeita analise pensante. provvel que um ser com rgos sensoriais diferentes edotado de uma outra inteligncia chegue a uma imagem mental dum cavalo diferente da minha,mas no me concebvel que o meu prprio pensar se torne diferente pelo fato de eu observ-lo.Eu mesmo observo o que eu mesmo efetuo. Como o meu pensar se apresentaria a uma outra inte-ligncia no importa nesse contexto, mas unicamente como ele se manifesta para mim. De todomodo, a imagem do meu pensar no pode ser mais autntica numa outra inteligncia do que na queeu tenho. S se eu mesmo no fosse o sujeito que pensa, poder-se-ia alegar que, embora a minhaimagem mental do pensar se apresentasse de determinada maneira, no poderia saber como o pen-sar em si mesmo.

    No existe, por ora, razo alguma para observar o meu pensar de um ponto fora dele, poisobservo o mundo restante inteiro por meio do pensar; ento por que deveria fazer uma exceo noque diz respeito ao prprio pensar?

    Destarte, considero suficientemente justificada a adoo do pensar corno ponto de partidapara a minha empreitada de chegar cognio do mundo. Quando Arquimedes descobriu a ala-vanca, acreditou poder deslocar o cosmos inteiro, se encontrasse um ponto onde pudesse apoiar oseu instrumento. Precisava de algo que se apoiasse em si mesmo e prescindisse de outro funda-mento. No pensar, ns temos um princpio que subsiste por si s. A partir daqui tentaremoscompreender os outros aspectos do mundo. O pensar compreende-se por si mesmo. Resta indagarse por meio dele podemos compreender tambm o que est fora dele.

    Falei at agora sobre o pensar sem levar em considerao o seu suporte, a conscinciahumana. A maior parte dos filsofos atuais objetaro: antes de haver um pensar, deve haver umaconscincia. Assim sendo, deve-se partir da conscincia e no do pensar, ou seja, no existe pensarsem conscincia. Minha resposta : se eu quiser obter esclarecimento sobre a relao entre pensare conscincia terei de pensar. Pressuponho assim o pensar. Ora, pode-se responder a isso: quando ofilsofo quer compreender a conscincia, ento ele se utiliza do pensar e o pressupe, nestesentido. No curso normal da vida, porm, o pensar surge dentro da conscincia e, por conseguinte,a pressupe. Se se desse essa resposta ao criador do mundo, que pretendeu criar o pensar, ento,

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    sem dvida, ela seria legtima. No se pode trazer o pensar existncia sem antes se efetuar aconscincia. O filsofo, contudo, no cria o mundo, mas sim procura compreend-lo. Por isso noh de procurar os pontos de partida para a criao, mas sim para a compreenso. Acho muitoestranho quando se critica o filsofo dizendo que ele se ocupa, antes, da exatido de seusprincpios, mas no, ao mesmo tempo, dos objetos que ele pretende compreender. O criador domundo teve de saber, antes de mais nada, como realizar um suporte para o pensar, mas o filsofo

    deve procurar um fundamento seguro a partir do qual pode compreender o que existe. De que nosserviria partir da conscincia e sujeit-la depois a uma anlise pensante, sem antes noscertificarmos da possibilidade de se chegar a resultados seguros atravs do uso do pensar?

    preciso analisar primeiramente o pensar de maneira neutra e sem relao com um sujeitopensante ou um objeto pensado, pois sujeito e objeto j so conceitos formados pelo pensar. No possvel, pois, negar que antes de se poder compreender qualquer outra coisa, precisa-secompreender o pensar. Quem o negar, no se apercebe de que o homem no um elemento inicial,mas o elemento final da criao. Quem quer explicar o mundo atravs de conceitos no deve tentarpartir dos primeiros elementos, e sim dos que nos so mais prximos e ntimos. No podemos nostransladar com um salto ao comeo do mundo para l iniciar a nossa investigao. Temos, antes detudo, de partir do momento atual e ver se conseguimos remontar do presente ao passado. Enquantoa geologia falava de revolues fictcias para explicar o estado atual da terra, ela laborava nas

    trevas. S quando comeou a investigar os processos telricos presentes e, a partir deles,retroceder ao que j passou, encontrou solo firme. Se a filosofia continuar pressupondo quaisquerprincpios como tomo, movimento, matria, vontade, inconsciente, ela continuar pairando no ar.Somente quando o filsofo passar a considerar o absolutamente ltimo como o primeiro, alcanara sua meta. E esse absolutamente ltimo ao qual a evoluo chegou o pensar.

    Existem pessoas que dizem: no podemos ter a certeza se o nosso pensar correto em si ouno. Assim, ao menos, o ponto de partida permanece dbio. Isso to sensato como dizer: no seise uma rvore em si correta ou no. O pensar um fato e no faz sentido discutir sobre acertitude ou falsidade de um fato. Posso apenas duvidar se o pensar est sendo aplicado demaneira certa, assim como posso duvidar se uma rvore fornece a madeira adequada para umadeterminada ferramenta. E mostrar em que sentido certa ou errada a aplicao do pensar aomundo ser justamente a tarefa deste tratado. Posso entender se algum duvida da possibilidadede conhecer o mundo atravs do pensar, mas me totalmente inconcebvel como algum possa

    duvidar se o pensar correto em si.

    Complemento edio do nova de 1918

    As investigaes deste captulo ressaltam a importante diferena entre o pensar e todos osdemais fenmenos da vida interna do homem como o resultado de uma observao imparcial. Quemdeixar de realizar essa postura imparcial de observao argumentar talvez da seguinte maneira:quando penso sobre uma rosa, expressa-se tambm apenas a minha relao pessoal para com ela,bem como no caso em que sinto a beleza dela. Estabelece-se a mesma relao entre o eu e oobjeto como, por exemplo, no sentir e no perceber. Quem levanta essa objeo no percebe queapenas no pensar o eu est inteiramente unido em sua atividade com o contedo por ele produzido.Em nenhum outro caso isso acontece dessa maneira. Quando se tem um sentimento de prazer, urnaobservao mais atenta consegue diferenciar at que ponto o eu est identificado com umcontedo ativo ou se est lidando com algo que surge passivamente nele de modo que o prazer selhe apresenta como algo que simplesmente sucede interiormente. O mesmo se verifica em relaos outras atividades psquicas. importante no confundir vivenciar passivamente imagensconceituais e elaborar ativamente idias. Imagens conceituais podem se manifestar na mente comosonhos vagos. Essas imagens no so oriundas do pensar. Assim sendo, algum poderia dizer: sepensar o que foi dito, ento o querer est imbudo nele e, portanto, no estamos lidando apenascom o pensar, mas tambm com o querer. Esse argumento apenas nos autoriza a dizer que overdadeiro pensar sempre um ato de vontade. Porm essa caracterstica nada tem a ver com oque aqui se ressaltou sobre o pensar. Mesmo sendo verdade que a essncia do pensar exija um atode vontade, o decisivo, neste contexto, que nada dado ao eu que no se lhe apresente comoalgo inteiramente transparente. Cabe inclusive dizer que justamente em virtude das caractersticas

    realadas do pensar, ele se apresenta ao observador como permeado integralmente de vontade.Quem realmente se esfora em abarcar todos os aspectos relevantes para a compreensao do

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    pensar, no deixar de perceber que cabem a essa atividade mental justamente as caractersticasdescritas.

    Por uma pessoa muitssimo estimada pelo autor lhe foi objetado que no se pode falar dopensar como foi feito neste texto, uma vez que o que se acredita observar como pensar ativo apenas uma aparncia. Na verdade, o que se observa conscientemente somente o resultado deuma atividade inconsciente subjacente ao pensar consciente. Apenas porque no observamos a

    referida atividade inconsciente, surge a iluso do pensar como uma entidade que repousa em simesma, analogamente ao fenmeno de uma fasca que, ao se reproduzir rapidamente, evoca aimpresso de um movimento. Tambm essa opinio se baseia numa anlise pouco precisa doassunto. Quem a defende no se d conta de que o prprio eu que observa pensando a suaprpria atividade. O eu, para se iludir como no caso das fascas, teria que estar fora do pensar. Aocontrrio, at se poderia dizer que quem se utiliza da analogia citada erra profundamente assimcomo algum que dissesse de uma luz em movimento que ela acendida sempre de novo nosdiferentes lugares . No, quem achar que o pensar seja outra coisa que uma atividadeinteiramente transparente e produzida no eu, precisa antes se esforar em no ver os fatos dados observao imparcial para depois inventar uma atividade hipottica e inconsciente como fatorsubjacente. Quem no dificultar artificialmente a compreenso do assunto, ver que tudo queacrescentamos ao pensar nos alienar dele. A observao livre de preconceitos mostra que nada

    pertence ao pensar que no encontrado nele. No chegaremos ao que gera o pensar abandonandoo campo da atividade pensante.

    IV. O mundo como percepo

    Por meio do pensar nos so dados conceitos e idias. Palavras no dizem o que um conceito;elas apenas o indicam. Quando algum v uma rvore, seu pensar estimulado pela observao. Aoobjeto observado acrescenta-se, ento, um complemento conceitual. O observador considera oobjeto percebido e o complemento conceitual como correlatos. Quando o objeto desaparece docampo de percepo, s permanece o complemento conceitual dele. Este ltimo o conceito doobjeto. Quanto mais o nosso horizonte se amplia, tanto maior se torna a soma de nossos conceitos.Os conceitos, porm, no so isolados. Eles se associam entre si, formando, desse modo, um todoordenado. O conceito organismo, por exemplo, se relaciona com outros como: desenvolvimento,crescimento regular. Outros conceitos, que foram formados no contato com coisas particulares, sefundem e passam a constituir um s conceito. Todos os conceitos individuais que formei de dife-rentes lees acabam se reunindo no conceito universal do leo. Assim sendo, os conceitosparticulares se correlacionam, formando um sistema coerente no qual cada conceito particular temo seu determinado lugar. Idias no so qualitativamente diferentes dos conceitos. Elas so apenasmais ricas de contedo, mais saturadas e abrangentes. Preciso salientar aqui que adotei comoponto de partida opensare no conceitos e idias, que antes precisam ser produzidos pelopensar.Estes pressupem, por conseguinte, o pensar. No , portanto, possvel estender para os conceitoso que eu disse sobre a natureza do pensar baseado em si mesmo e independente de qualquer outrofator. (Friso esse fato, porque a reside minha diferena para com Hegel. Este considera o conceito

    como o elemento primordial.)O conceito no pode ser extrado do mundo observado. Isso j se v pelo fato de que o

    homem, no decorrer de sua vida, forma apenas paulatinamente os conceitos como complementosdos objetos a seu redor. Os conceitos precisam, pois, ser acrescentados ao mundo dado naobservao.

    Herbert Spencer, um filsofo contemporneo muito lido, descreve da seguinte maneira oprocesso mental que executamos no confronto com as percepes oriundas da observaco:

    Se, ao caminharmos num dia de setembro pelo campo, ouvirmos um rudo a pouca distncia anossa frente e se, em seguida, virmos em movimento a relva de onde o rudo parece ter vindo,provavelmente nos aproximaremos do local para ver o que produziu o rudo e o movimento. Se, aonos aproximarmos, virmos uma perdiz batendo as asas, nossa curiosidade estar satisfeita:

    obteremos a o que chamamos uma explicao de um fato observado. Essa explicao tem o se-guinte teor: em virtude de termos j experienciado inmeras vezes na vida que a perturbao de

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    corpos inertes pequenos acompanha o movimento de outros corpos que se encontram perto deles,e de termos generalizado a relao entre tais perturbaes e tais movimentos, consideraremosexplicada a perturbao da relva no caso citado, to logo julgarmos que se trata de um exemplodaquela relao geral.

    Se olharmos com mais preciso para a explicao oferecida por Spencer, a questo em apreo

    se apresentar, contudo, de maneira bem diferente. Quando ouo um rudo, procuro primeiro oconceito para essa observao. S esse conceito pode me levar alm do rudo. Quem no reflete,ouve o rudo e pronto. Atravs da reflexo, porm, sei que um rudo algo decorrente, ou seja, umefeito. Por conseguinte, somente quando acrescento o conceito efeito percepo do rudo, sinto-me obrigado a ir alm da observao isolada e procurar pela causa do acontecimento. O conceitoefeito me conduz ao conceito da causa e, s ento, passo a procurar na percepo o objetocausador do rudo, que identifico, no caso, como sendo uma perdiz. Os conceitos causa e efeito,no posso receb-los da observao, mesmo que ela se estenda a inmeros casos. A observaodesafia o pensar e s este mostra como associar uma determinada percepo a uma outra.

    Quem exige de uma cincia rigorosamente objetiva que ela permanea exclusivamente nombito da percepo, deve exigir tambm que ela renuncie ao pensar, uma vez que este, por suaprpria natureza, vai alm do contedo da percepo dos sentidos.

    preciso passarmos agora do pensar para o ente pensante, pois atravs deste o pensar

    associado observao. A conscincia humana o palco no qual conceito e observao seencontram e se associam, o que, alis, constitui a sua caracterstica bsica. A conscincia ,portanto, a mediadora entre pensar e observao. Enquanto o homem observa um objeto, este selhe apresenta como dado; enquanto pensa, apercebe-se a si prprio como atuante. Considera o queest diante dele como objeto e a si prprio como sujeito pensante. Pelo fato de dirigir o seu pensarpara a observao, ele tem conscincia dos objetos; quando dirige o seu pensar para si mesmo,obtm conscincia de si prprio, ou seja, autoconscincia. A conscincia humana tem de serforosamente tambm autoconscincia, porque conscincia pensante. Ora, quando o pensardirige a ateno para a sua prpria atividade, ele tem a si mesmo, ou seja, seu sujeito, comoobjeto diante de si.

    No se pode esquecer, no entanto, que apenas nos identificamos como sujeitos e nosdistinguimos dos objetos graas ao pensar. Por essa razo, no lcito classificar o pensar como

    atividade somente subjetiva. O pensar no pertence ao sujeito e tampouco ao objeto, porque ainstncia na qual esses dois conceitos tm, como todos os demais conceitos, a sua origem. Quandorelacionamos, enquanto sujeitos pensantes, o conceito ao objeto, no se trata de uma relaoapenas subjetiva. No o sujeito que estabelece a relao, mas sim o pensar. O sujeito no pensapor ser sujeito, mas se identifica como sujeito porque capaz de pensar. A atividade que o homemexecuta como entepensante no , portanto, meramente subjetiva; ela no nem subjetiva e nemobjetiva, mas uma atividade que abarca ambos os conceitos. Nunca devo, portanto, dizer que omeu sujeito individual pensa; na verdade, este s vive graas ao pensar. O pensar , porconseguinte, um fator que me leva alm do meu sujeito e me liga aos objetos, mas me separatambm, ao mesmo tempo, deles, porque me distingue, como sujeito, dos objetos.

    A reside justamente a natureza dual do homem: ele pensa e abrange assim a si mesmo e aorestante do mundo; porm, tem de se definir smultaneamente, atravs do pensar, como um indiv-duo que est em oposio s coisas.

    O prximo passo ser a pergunta: como entra na conscincia aquele outro elemento que atagora chamamos apenas de objeto de percepo e que se defronta, no momento da observao,com o pensar?

    Precisamos, para tal fim, eliminar do nosso campo de observao tudo o que nele foiintroduzido atravs do pensar. Ora, o contedo da Conscincia sempre j est permeado porconceitos das mais variadas maneiras.

    Temos de imaginar um ente, com inteligncia perfeitamente desenvolvida, surgindo do nada ese colocando repentinamente diante do mundo. O que esse ente ento perceberia, antes de re-correr ao pensar, seria o contedo puro da observao. O mundo mostraria, a esse ente, s oagregado desconexo dos objetos da percepo: percepes de cores, sons, presso, calor, paladar,olfato, depois sentimentos de prazer e desprazer. Esse agregado o contedo da observao pura elivre de conceitos. Diante dele est o pensar, pronto para comear a sua atividade to logo

    encontre um ponto de referncia. O pensar capaz de estabelecer ligaes, indo de um elementoda observao para um outro. Acrescenta a esses elementos determinados conceitos e, assim,

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    coloca-os em relao recproca. J vimos, no exemplo acima mencionado, como um rudo relacionado a uma outra percepo, quando reconhecemos o primeiro como sendo o efeito de outroacontecimento.

    Se no esquecermos agora que a atividade do pensar no subjetiva, ento tampoucointerpretaremos as relaes tecidas pelo pensar como algo com mera validade subjetiva.

    Trata-se agora de procurar, me diante observao pensante, a relao entre o j mencionado

    contedo da observao e o sujeito consciente de si mesmo.Devido s variaes no uso da linguagem, parece-me indicado primeiramente definir o uso de

    um termo a ser empregado com freqncia daqui em diante. Chamarei de percepo aos objetosimediatamente dados por observao ao sujeito consciente. Por conseguinte, uso esse termo nopara designar o processo de observao, mas sim o objeto dela.

    No estou optando pelo termo sensao, porque na Fisiologia atual ele possui um significadomais restrito que o do meu conceito depercepo. Posso, por exemplo, chamar um sentimento depercepo, porm no de sensao, no sentido fisiolgico. Sei dos meus sentimentos por meio da

    percepo. E, como sei do meu pensar por meio da observao, justifica-se tambm empregar otermopercepo para descrever a manifestao inicial deste no mbito da conscincia.

    O homem ingnuo considera as suas percepes como coisas existentes independentementedele. Ao ver uma rvore, acredita que ela existe de fato, assim como ele a v, com todas as suas

    partes e cores. no local para onde dirigiu o seu olhar. Quando o mesmo homem se depara de manhcom o sol, aparecendo no horizonte em forma de disco, e acompanha o curso desse disco durante odia, ele pressupe que o fenmeno exista e se desdobre exatamente assim como ele o observa. Eleconserva essa crena, at o momento em que se defronta com outras percepes que contradizemas primeiras. A criana, que ainda no possui experincia das distncias, tenta tocar na lua ecorrige o que, segundo a primeira vista, julgava como real, quando uma segunda percepo seencontra em contradio com a primeira. Cada ampliao do crculo das nossas percepes nosobriga a corrigir a imagem que antes havamos formado do mundo. Isso se evidencia em nossa vidacotidiana tanto quanto no desenvolvimento cultural geral da humanidade. A imagem que os antigostinham da relao entre a Terra e o Sol e os demais corpos celestes teve de ser substituda porCoprnico, porque no se harmonizava com percepes novas antigamente desconhecidas. Quandoo Dr. Franz operou um cego nato, este constatou que antes da operao tinha, atravs do tato,uma imagem diferente do tamanho dos objetos. Ele teve de corrigir as suas percepes tteis em

    virtude de suas novas impresses visuais.Por que razo somos constantemente forados a retificar as nossas observaes?Uma reflexo simples nos trar a resposta a essa pergunta. Se estou no incio de uma

    alameda, as rvores mais distantes parecem menores e com menos espao entre elas que aquelasprximas de onde estou. A imagem perceptual do objeto se modifica, quando mudo o meu local deobservao. A maneira de ela se me apresentar depende de um fator que no do objeto, masdeve ser atribudo a mim, o perceptor. O lugar em que estou no tem a mnima importncia para aalameda; a imagem, porem, que dela obtenho depende, sim, essencialmente, desse lugar. Igual-mente, indiferente para o sol e o sistema planetrio que os homens os observem justamente daterra. A percepo que estes recebem , no entanto, determinada por sua posio na terra. Essainterdependncia entre a percepo e o local de observao a que com maior facilidade sereconhece. A questo se torna mais difcil quando olhamos para a dependncia existente entre o

    nosso mundo de percepes e a nossa constituico fsica e mental. O fsico nos mostra que, quandoescutamos um rudo, constatam-se, na verdade, vibraes do ar, e que os corpos em que procura-mos a origem do rudo apresentam oscilaes de suas partes. S conseguimos perceber essesmovimentos como rudo, se temos um ouvido normalmente desenvolvido. Sem ouvido, o mundointeiro permaneceria mudo. A Fisiologia nos ensina, ademais, a existncia de homens que nadapercebem do maravilhoso mundo das cores que nos circundam. Suas percepes s contm nuanasde claro e escuro. Outros apenas no percebem uma determinada cor, por exemplo, o vermelho.Sua percepo do mundo, qual falta essa tonalidade, , portanto, efetivamente diferente da dohomem normal. Pretendo denominar de matemtica a dependncia da minha percepo do local deobservao e de qualitativa a da minha constituio. Atravs da primeira, so determinadas asrelaes de grandeza e tamanho; atravs das ltimas, a qualidade das percepes. O fato de eu veruma superfcie vermelha como vermelha, essa determinao qualitativa depende da constituio domeu olho.

    Minhas imagens perceptuais so, portanto, inicialmente subjetivas. A descoberta do cartersubjetivo de nossas percepes pode facilmente levar dvida generalizada de se haveria algo

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    objetivo subjacente a elas. Quando entendemos que uma percepo, por exemplo, da cor vermelhaou de um determinado tom, no possvel sem a participao do rgo perceptor, ento podemoschegar concluso de que esta no tem nenhuma forma de existncia sem o ato de percepo,cujo objeto ela . Essa concepo encontrou em George Berkeley um representante clssico, poiseste defendeu a opinio de que o homem, a partir do momento em que se torna consciente daimportncia do sujeito para a percepo, no pode mais acreditar num mundo existente inde-

    pendente do esprito consciente. Diz ele:

    Algumas verdades so to bvias e claras, que basta abrir os olhos para v-las. Uma delas meparece a importante afirmao de que todo o universo no cu e tudo que pertence Terra, emoutras palavras, todos os corpos que compem a formidvel construo do mundo, no tmnenhuma subsistncia fora do esprito, ou seja, que sua existncia consiste em serem percebidosou reconhecidos e que, por conseguinte, enquanto no forem de fato percebidos por algum ouexistirem quer na minha mente, quer na mente de um outro esprito criado, no tm existnciaalguma ou existem apenas na mente de um ente espiritual eterno.

    De acordo com essa viso, nada sobra quando se desconsidera o fato de algo ser percebido poralgum. No existe nenhuma cor, quando esta no vista, nenhum som quando este no ouvido.Tampouco existem extenso, forma e movimento fora do ato de percepo. No vemos em lugar

    algum extenso ou formas isoladas, mas apenas em combinao com cor e outras propriedades queincontestavelmente dependem de nossa subjetividade. Se as ltimas desaparecem com a nossapercepo, isso deve acontecer tambm em relao s primeiras, que dependem delas.

    A objeo de que devem existir coisas independentes da conscincia, que se assemelhariam simagens perceptuais conscientes, mesmo admitindo-se que figura, cor e som no tm outra exis-tncia alm daquela dentro do ato de percepo, refutada pela referida concepo da seguintemaneira: uma cor s pode se assemelhar a uma cor, uma figura a uma figura. Nossas percepes spodem ser semelhantes s nossas percepes e a nenhuma outra coisa. Tambm o que chamamosde objeto no passa de um conjunto de percepes inter-relacionadas de determinada maneira. Aose subtrair a uma mesa forma, extenso, cor, enfim, tudo que apenas dado por percepo, entono restar nada. Essa viso conduz, quando levada sua ltima conseqncia, seguinteafirmao: os objetos da minha percepo s existem atravs de mim e s na medida e enquanto

    eu os percebo; eles desaparecem com o ato de percepo e no fazem nenhum sentido sem este.Fora de minhas percepes, no sei de objeto nenhum e jamais poderei saber.Contra essa afirmao, no possvel objetar nada enquanto apenas se considerar o fato em

    geral de a percepo ser condicionada pela organizao do sujeito. A situao se modificariaessencialmente se fssemos capazes de descrever a funo do ato de perceber no vir-a-ser de umapercepo. Saberamos, ento, o que acontece com a percepo durante o ato de perceber e pode-ramos determinar, nesse caso, o que j deve existir nela antes de ser percebida.

    Desse modo, nossa investigao se desvia do objeto e se volta para o sujeito da percepo.No percebo apenas as coisas diferentes de mim, mas consigo tambm perceber a mim prprio. Apercepo de mim mesmo se caracteriza por ser constante perante as imagens perceptuais que vme vo. A percepo do eu pode surgir na conscincia mesmo quando tenho outras percepes.Quando estou submerso na percepo de um dado objeto, tenho, primeiramente, s conscinciadele. A essa percepo pode juntar-se a percepo de meu prprio sujeito. Tenho, da, no s

    conscincia do objeto, mas tambm da minha pessoa, que est diante do objeto e o observa. Novejo apenas uma rvore, mas sei tambm que sou eu que a vejo. Entendo tambm que algo semodifica em mim enquanto eu observo a rvore. Quando a rvore desaparece do horizonte daminha observao, permanece, no entanto, em minha mente, um resduo desse processo, umaimagem da rvore. Essa imagem se uniu durante o ato de observao a meu sujeito. Meu sujeito seenriqueceu; a seu contedo integrou-se um elemento novo. Chamo esse elemento derepresentao da rvore. Nunca poderia falar de representaes se no as vivenciasse no mbito domeu sujeito. Percepes viriam e iriam e eu simplesmente as deixaria passar. S pelo fato de euperceber meu sujeito e me dar conta de que a cada percepo o seu contedo tambm semodifica, vejo-me obrigado a relacionar a observao do objeto a uma modificao do meu prprioestado subjetivo e falar de minha representao.

    Eu percebo a representao no mbito do meu sujeito semelhana das percepes que

    tenho das cores, sons, etc., nos demais objetos. Posso agora tambm estabelecer uma diferena echamar os objetos que se me contrapem de mundo externo, enquanto designo por mundo interno

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    o contedo de minha autopercepao. A confuso sobre a relao entre representao e objetogerou os maiores equvocos na filosofia atual. A percepo da modificao que o meu sujeitoexperimenta foi colocada em primeiro plano e se perdeu de vista o objeto que ocasiona tal modifi-cao. Foi dito: no experimentamos os objetos, mas apenas nossas representaes. Da se concluiuque nada podemos saber de uma mesa em si, s da modificao que ela produz em ns enquanto apercebemos. Essa concepo no deve ser confundida com a de Berkeley, mencionada acima.

    Berkeley afirma a subjetividade do contedo da percepo, mas no que podemos apenas saber dasnossas representaes. Ele limita o conhecimento ao mbito das representaes porque defende aopinio de que no existem objetos fora do ato de representar. Uma mesa, percebida por ns, noexistiria mais, segundo Berkeley, to logo deixssemos de dirigir-lhe a nossa ateno. Por isso,Berkeley deixa surgir as percepes a partir do poder de Deus. Vejo uma mesa porque Deus suscitaem mim tais percepes. Por conseguinte, Berkeley desconhece qualquer outro ser real fora Deus eas mentes humanas, e, conseqentemente, o que nomeamos de mundo s existe dentro dasmentes. O que o senso comum chama de mundo externo ou de natureza corprea no existe paraBerkeley. A essa concepo se ope a de Kant, atualmente dominante. Esta no reduz oconhecimento do mundo real representao deste no por achar que no existam coisas alm dasrepresentaes, mas sim por acreditar que o homem, em virtude de sua organizao intelectual, spode saber das modificaes da sua organizao subjetiva e no das coisas em si, que so a causa

    dessas modificaes. A viso kantiana no conclui, portanto, do fato de somente conhecermos asrepresentaes das coisas e no elas prprias, que nada existe alm das representaes, mas simque o sujeito no tem acesso a elas e que s pode imagin-las, fingi-las, pens-las, reconhecer ouno reconhec-las atravs de seus pensamentos subjetivos (O. Liebmann, Sobre a anlises darealidade).16Essa concepo acredita constatar algo absolutamente certo, algo que convence demaneira imediata sem qualquer prova.

    A primeira proposio fundamental, da qual o filsofo deve tornar-se consciente, consiste emcompreender que o nosso conhecimento no se estende inicialrnente a nada alm das nossasrepresentaes. Nossas representaes so as nicas coisas que experienciamos e vivenciamosimediatamente; e, visto que as experienciamos de forma imediata, tampouco a dvida mais radicalconsegue privar-nos do conhecimento delas. Por outro lado, o conhecimento que vai alm das nos-sas representaes uso esse termo no sentido mais lato possvel, de sorte que todos os processos

    psquicos estejam includos no est salvo da dvida. Por isso, preciso considerar comoexplicitamente duvidoso todo e qualquer conhecimento alm das representaes no incio dofilosofar.

    Assim Volkelt comea seu livro A teoria do conhecimento de Immanuel Kant17O que aqui apresentado como se fosse uma verdade absoluta e incontestvel, , na realidade, o resultado deuma argumentao complexa que se desenvolve da seguinte maneira: O homem ingnuo acreditana existncia de objetos fora de sua conscincia e que eles so assim como ele os percebe. Porm aFsica, a Fisiologia e a Psicologia parecem ensinar que a percepo depende da nossa organizao eque, por conseguinte, no podemos saber de nada seno daquilo que a nossa organizao nostransmite das coisas. Nossas percepes so, portanto, modificaes de nossa organizao e no ascoisas em si. A referida argumentao levou Eduard von Hartmann de fato a aceit-la comojustificativa da proposio de que s temos conhecimento direto de nossas representaes

    (compare-se o seu livro: Questes bsicas da teoria do conhecimento18) Como, ao ouvirmos algo,encontramos fora do nosso organismo vibraes dos corpos e do ar, deduz-se que aquilo quechamamos de som nada mais seno a reao subjetiva de nosso organismo aos processos domundo externo. Da mesma maneira, cor e calor so tidos como meras modificaes do nossoorganismo. Professa-se a opinio de que esses dois modos de percepo so evocados no homem emdecorrncia de processos no mundo exterior essencialmente distintos daqueles que se apresentamcomo experincia efetiva de calor, de cor, etc. Quando os processos do mundo externo afetassemos nervos da epiderme, ento teramos a percepo subjetiva do calor; quando atingissem o nervotico, perceberamos luz e cor. Luz, cor e calor seriam as reaes dos meus nervos ticos safetaes externas. Tambm o sentido do tato no me transmitiria os objetos do mundo externo,mas sim os estados do meu prprio organismo. De acordo com a Fsica moderna, poder-se-ia pensar

    16Zur Analysis der Wirklichkeit, p. 28

    .

    17 Immanuel Kants Erkenntnistheorie.

    18 Grundproblem der Erkenntnistheorie, pp. 1640.

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    que os corpos se compem de elementos infinitamente pequenos, as molculas, e que essasmolculas no se tangem diretamente dado distncia existente entre elas. Existe, portanto, entreelas, um espao vazio e, assim, elas atuariam entre si mediante foras de atrao e de repulso.Quando aproximo minha mo de um corpo, as molculas de minha mo no tocam imediatamenteas molculas do corpo, pois sempre resta uma certa distncia entre o corpo e a mo, de sorte que oque eu sinto como resistncia do corpo, nada mais seno o efeito das foras repulsivas que as

    suas molculas exercem sobre as da minha mo. Estou simplesmente fora do corpo em questo epercebo apenas seu efeito (atuao) sobre meu organismo.

    De maneira complementar, acrescenta-se a essa concepo a doutrina das chamadas energiasespecficas dos sentidos, defendida por J. Mller (18011858). Ela consiste no fato de que todos osrgos dos sentidos possuem a peculiaridade de responderem a todos os estmulos externos apenasde uma determinada maneira. Quando algo atua sobre o nervo tico, surge uma percepoluminosa, independentemente se provocada por aquilo que chamamos de luz ou por uma pressomecnica ou por uma corrente eltrica. Por outro lado, o mesmo estmulo produz em diferentessentidos percepes distintas. Assim, conclui-se que nossos sentidos s podem transmitir o queneles prprios acontece e, por conseguinte, nada que pertena ao mundo externo. Os sentidos de-terminam as percepes conforme a sua natureza.

    A Fisiologia mostra que no se pode falar de um conhecimento direto daquilo que os objetos

    produzem em nossos sentidos. Ao acompanhar os processos em nosso corpo, o fisilogo acha que osmovimentos externos sofrem alteraes constantes em nossos sentidos. Percebemos isso com maiorclareza no olho e no ouvido. Ambos so rgos assaz complicados, que modificam substancalmenteo estmulo externo antes de lev-lo ao nervo correspondente. Da extremidade do nervo, o estmuloalterado transmitido para o crebro. Aqui devem ser estimulados os rgos centrais. Disso sededuz que o processo externo sofre uma srie de transformaes antes de se tornar consciente. Oque se processa no crebro o resultado de tantos passos intermedirios, que no se pode maisfalar em semelhana alguma com o processo real externo. O que o crebro transmite alma noso nem os processos externos e tampouco os processos nos rgos sensorios, mas sim os que seencontram no crebro. Mas nem estes so o que a alma percebe. O que dado afinal conscinciano so os processos cerebrais, mas sensaes. Minha sensao do vermelho no tem semelhanaalguma com o processo que se desenrola no meu crebro quando percebo o vermelho. Este ltimosurge apenas como efeito na alma, efetuado atravs do processo cerebral. Por isso Hartmann diz,

    em Problemas fundamentais da teoria do conhecimento19: O que o sujeito percebe so, porconseguinte, apenas as modificaes dos seus prprios estados psquicos. Porm as sensaespresentes na mente esto ainda longe da combinao que constitui o objeto percebido no mundo. Ocrebro s pode transmitir sensaes isoladas, sempre. As sensaes de dureza e maciez sotransmitidas pelo tato; as sensaes de cor e de luz, atravs da viso. Contudo, estas se encontramreunidas num nico objeto. Essa associaco tem de ser efetuada pela prpria mente. Isto quer dizerque a alma rene as diferentes sensaes que o crebro transmite, configurando os corpos. Meucrebro me transmite isoladamente, por caminhos bastante diversos, as sensaes visuais, tteis eauditivas que a mente afinal rene, por exemplo, na representao trombeta. Esse elemento final(representao da trombeta) do processo o que aparece na conscincia. Nele no se encontramais nada daquilo que se encontra fora de mim e que originalmente afetou os meus sentidos. Oobjeto se perdeu por completo no caminho ao crebro e do crebro para a mente.

    Ser difcil encontrar, na histria da filosofia, uma segunda construo terica elaborada comtanta perspiccia e que, no obstante, desmorona completamente quando submetida a um exameminucioso. Olhemos mais de perto como se constri essa concepo. Parte-se do que dado conscincia ingnua: o objeto percebido. Depois mostra-se que tudo o que se acha no objeto noexistiria para a mente se no tivssemos os sentidos. Sem olho, nenhuma cor. Portanto a cor aindano existe naquilo que atua sobre o olho. Ela surge apenas com a interao entre olho e objeto.Este , por conseguinte, incolor. Contudo tambm no olho no se encontra a cor, visto que a sexiste um processo qumico ou fisico que transportado atravs do nervo para o crebro, ondeevo