rs Índio – cartografias sobre a produção do conhecimento

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Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do SulChanceler:

Dom Dadeus Grings

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Conselho Editorial:Antônio Carlos Hohlfeldt

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PUCRS

Arquivo Histórico do Rio Grande do SulLuiz Carlos da Cunha Carneiro – Diretor

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Realização:

Governo do Estado do Rio Grande do SulSecretaria da Justiça e do Desenvolvimento Social

Departamento de Cidadania e Direitos HumanosCoordenadoria das Políticas de Igualdade Racial (Copir)

Secretaria de Estado da Cultura Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul

Porto Alegre 2009

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FichaCatalográficaelaboradapeloSetordeTratamentodaInformaçãodaBC-PUCRS.

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Caixa Postal 1429 CEP 90619-900 Porto Alegre, RS – BRASIL

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ediPUCRS w w w. p u c r s . b r / e d i p u c r s

© EDIPUCRS, 2009

Capa:Vinícius Xavier

preparação dos originais:Organizadores

revisão:Leônidas Taschetto

editoração:Supernova Editora

apoio téCniCo:Camila Provenzi

Vera Lúcia Mendonça(Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul)

Vivian Bertuol(Secretaria da Justiça e do Desenvolvimento Social)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

R893 RS índio : cartografias sobre a produção do conhecimento [recurso eletrônico] / org. Gilberto Ferreira da Silva, Rejane Penna, Luiz Carlos da Cunha Carneiro. – Porto Alegre : EDIPUCRS, 2009. 300 p. Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader Modo de Acesso: World Wide Web:

<http://www.pucrs.br/orgaos/edipucrs/> ISBN 978-85-7430-865-4 Realização Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, Departamento de

Cidadania e Direitos Humanos, Coordenadoria das Políticas de Igualdade Racial, Secretaria da Justiça e do Desenvolvimento Social, Secretaria de Estado da Cultura, Governo do Estado do Rio Grande do Sul.

1. Índios – Rio Grande do Sul - História. 2. Índios – Rio Grande do

Sul – Vida Social e Costumes. I. Silva, Gilberto Ferreira da. II. Penna, Rejane. III. Carneiro, Luiz Carlos da Cunha. IV. Título.

CDD 980.41

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GOVERNO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SULGovernadora: Yeda Rorato Crusius

www.estado.rs.gov.br

SECRETARIA DA JUSTIÇA E DO DESENVOLVIMENTO SOCIALSecretário de Estado: Fernando Luís Schuler

www.sjds.rs.gov.brDepartamento de Cidadania e Direitos Humanos

Diretor: Plinio ZalewskiCoordenadoria das Políticas de Igualdade Racial (Copir)

Coordenadora: Sátira [email protected]

CONSELHO ESTADUAL DOS POVOS INDÍGENAS (CEPI)

Coordenadora Executiva: Sônia SantosRepresentatividade das Etnias Guarani e Kaingang

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ARQUIVO HISTÓRICO DO RIO GRANDE DO SULDiretor: Luiz Carlos da Cunha Carneiro

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BANCO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SULPresidente: Fernando Guerreiro de LemosVice-Presidente: Rubens Salvador Bordini

www.banrisul.com.br

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APRESENTAÇãO

Iguais na diferença, o pioneirismo dos povos indígenas nesse estado é reconhecido historicamente, e seus direitos coletivos, protegidos. Na con- temporaneidade,novas luzessobreahistóriados indígenasesuadimensãopolíticasãofundamentaisparaarevisãodasinúmerasconcepçõessobreessatemática.

RS Índio, aqui apresentado, é uma ação concreta de valorizaçãodastransformaçõesepermanênciasdassociedadesindígenasdonossoEstado,noâmbito de igualdade. A partir do trabalho dos professores Gilberto Ferreira da Silva, Rejane Penna e Luiz Carlos da Cunha Carneiro, pesquisas de intelectuais gaúchos sobre questões indígenas foram reunidas neste volume, publicadoapós a obra RS Negro: cartografias sobre a produção do conhecimento. A nova obra também é destinada aos nossos educadores, aos comunicadores e a todos os leitores interessados na temática social gaúcha. Em especial, é um livro que pretendeseressencialparaaqualificaçãodosprofessoreseparaadivulgaçãoda história e da cultura indígenas na sala de aula.

ApreservaçãodamemóriadosíndiosnoEstadoéumdireito.Olevan- tamentosistemáticodadocumentação,aspesquisasempíricaseasdiferentesformasdeabordarahistóriaindígenasão,hoje,umarealidadenoRS.Estu- dos detalhados sobre as várias etnias nativas nas Américas; a espiritualidade indígena; as relações cosmológicas e territoriais; as formasdeorganizaçãosocialepolíticasdosgruposétnicos;alínguaeosmitosnascelebrações;asestratégias de ensino indígena; as influências da cultura indígena na tradi- çãogaúcha;osmovimentossociaisindígenas;osGuarani,osKaingangeosCharrua na atualidade; o mapeamento urbano e rural e seus desdobramentos nas políticas públicas de garantia de direitos humanos dos povos indígenas; e acompetênciadascomunidadesemconstruironovodesvendamamarcadacultura nas identidades nacionais.

Visandoapreservaçãododireitohumanoàcultura,legítimoatodasas etnias, a obra RS Índio: cartografias sobre a produção do conhecimento, atravésdesuasreflexões,geraapossibilidadederevermosacapacidadedeadaptaçãoearticulaçãodospovosindígenas.Olivroéumconviteàrenovaçãodo conhecimento sobre a história dos índios e do movimento indigenista no

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Brasil,somando-seaosresultadospositivosdagestãodaGovernadora,YedaRorato Crusius, através da Secretaria da Justiça e do Desenvolvimento Social e, na sua estrutura, da Coordenadoria Estadual de Políticas de Igualdade Racial. EssaeoutrasaçõesfazempartedocompromissodoGovernodoEstadocoma igualdade de direitos.

Fernando Luís Schüler

Secretário de Estado da Justiça e Desenvolvimento Social.

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SUMáRIO

Introdução .................................................................................................... 11

I – O DELINEAR DE IMAGENS1 SepéTiaraju.OÍndioqueosgaúchosqueremviver.Representações, identidadeseeducação ......................................................................... 15 Ceres Karam Brum2 Contornos do imaginário: imagens do índio do Rio Grande do Sul na literatura brasileira ............................................................................... 29 Cícero Galeno Lopes3 Estatuáriamissioneira:representaçõesdefronteira .............................. 39 Tau Golin Jacqueline Ahlert

II – DIMENSõES DA EDUCAÇãO4 Analfabetismo indígena segundo o Censo 2000: Brasil e Rio Grande do Sul .................................................................................................... 71 Alceu Ravanello Ferraro AbraãoNiloGivagoSchäfer5 Kãki karan fã:reflexõesacercadaeducaçãoescolarindígena ............. 91 Maria Aparecida Bergamaschi Fabiele Pacheco Dias6 IndígenasnoRS:educaçãoformaleetnicidade ................................... 104 Dulci Claudete Matte7 ATrilhadaminhaformação ................................................................. 115 AndilaNivygsãnh8 Proposiçõesparaodiálogointercultural:movimentosnecessários ..... 124 Gilberto Ferreira da Silva Marta Nornberg

III – NATUREZA E CULTURA9 A dinâmica alimentar nos grupos indígenas ........................................ 133 Mártin César Tempass

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10 O consumo de bebidas alcoólicas entre os Kaingang do Rio Grande do Sul .................................................................................................... 144 Ledson Kurtz de Almeida Flávio Braune Wiik Ricardo Cid Fernandes11 AemergênciadasboaspalavrasnaIReuniãodosKaraísobreouso abusivo de bebidas alcoólicas e alcoolismo no RS .............................. 154 Luciane Ouriques Ferreira

IV – ESPAÇOS CONSTRUÍDOS12 SobreformaçõesaldeãsGuaraninoRioGrandedoSul ...................... 169 Flavio Schardong Gobbi13 Aspectossimbólico-culturaisecontinuidadedasconstruçõesMbyá- Guarani ................................................................................................. 179 Nauíra Zanardo Zanin14 A casa de xaxim dos Mbyá-Guarani na mata atlântica do Rio Grande do Sul: Tekoá nhüu porã ....................................................................... 194 Letícia Thurmann Prudente

V – MEIO AMBIENTE15 Ser Guarani, ser ambiente ..................................................................... 211 Rosemary Modernel Madeira

VI – A REINVENÇãO DE SI MESMO16 Dança-identidade:osprocessosderecriaçãonapermanênciadoTekoá porã ....................................................................................................... 229 Ana Luisa Teixeira de Menezes

VII – LEI, DIGNIDADE E ESPAÇO NO MUNDO17 A luta contemporânea do Movimento Internacional Indígena por di- reitos:aDeclaraçãodasNaçõesUnidasde13desetembrode2007 ... 241 JoãoMitiaAntunhaBarbosa Marco Antonio Barbosa Pablo Antunha Barbosa 18 Um salto do passado para o futuro: as comunidades indígenas e os direitos originários no Rio Grande do Sul ............................................ 270 José Otávio Catafesto de Souza19 IndígenasdoBrasil:brevemanifestopelonãoocasodeumacultura ... 285 Leonidas Roberto Taschetto Rosimeri Aquino da Silva Sobre os autores ........................................................................................... 296

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INTRODUÇãO

Ao contrário de perspectivas ditas realistas, o índio, no Rio Grande do Sul, não se transformou embranco, nem foi totalmente exterminado,masiniciouumalentaecontínuarecuperaçãodemográfica.Suafiguraeseusgestoscarregampermanênciasemodificaçõesquesãotraduzidasnamentedosdemaiscidadãos para compor uma representaçãoum tanto confusa.É índio e nãoapenas rio-grandense ou, como popularmente nos reconhecemos, gaúcho. Está afastadodosdemaiscidadãosetemhábitosimutáveiseestranhos.Humano,mas muito distante para dialogar.

Eporpensaremcontribuirparaadesconstruçãodessaimagemsimplis- ta e irreal que ora organizamos, o presente volume, dividido em sete eixos, quepartemdediferentesvisõeserecortes,comapotencialidadedeampliar nossoolhar,auxiliandonaintegraçãodoíndioàcomplexasociedadedoconhe- cimento. Claro, para tanto, avanços consideráveis efetivaram-se, incluindo asnormasqueaConstituiçãode1988realizouvisandoaprotegerosdireitosdosíndiosnapreservaçãodeseususos,costumes,línguaetradições.Dessaforma,ostextosaquipresentesadquiremumadimensãopolíticanoseusentidomais amplo, quem sabe diluindo uma imagem cruel, ultrapassada e irreal do “selvagem” afastado da sociedade moderna, tutelado pelo Estado e voltado apenas para suas próprias necessidades e práticas culturais. Ao contrário, pela leitura dos artigos delineia-se a imagem de comunidades indígenas ativas, ainda frágeis, mas tentando compreender e agir no mundo junto aos demaisbrasileirosnasdecisõesquetenhamimpactosobreasociedadeeseumodo de vida. Nosso recorte espacial é o Rio Grande do Sul e nosso tempo dereflexãoomomentopresente.Mas,tantooespaçolocalizadoentrelaça-seaoglobal comoa contemporaneidadedos temas e discussões ancora-se noprocessohistórico, que é dinâmico e carregadodeuma força tãopoderosaquenãopermiteumavisãodefuturosemdesdobrarcontinuamenteoslaçospassados.

No CapítuloI–Odelineardeimagens–osautorestrabalhamaquestãoda identidade e as representações, tanto na literatura comona estatuária eeducação,remetendoàsrelaçõesqueosgaúchosestabelecementreosíndioseo passado histórico no Rio Grande do Sul e a diversidade de formas que esse passado alimenta o imaginário presente.

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Aseguir,noCapítuloII–DimensõesdaEducação–enfocam-seosdile- masdoanalfabetismoindígenaearelaçãoentreaeducaçãoformaleetnia.Aescolatorna-seumanecessidade,umaimposição,paraosindígenas,massemgarantiadequesetenhatransformadodeinstrumentodedominaçãoemmeiodeemancipação.Discute-seaconvivêncianumcontextoétnicoemulticultural,emqueaeducaçãoescolaréumaalternativaeestratégiadospovosindígenasdebuscaremasuaautonomiaemelhoriasnascondiçõesdevida

Prossegue-se no Capítulo III – Natureza e cultura – conhecendo um pouco mais a forma como os índios se relacionam com a natureza no ato de alimentar-seetambémcomooalcoolismoatuanadissoluçãodaspossibilidadesde construir auto-estima em um ambiente hostil. A cultura – entendida como umsistemasimbólico–apresentaumaculináriaespecífica.E,comoemtodosistema, a culinária está fortemente entrelaçada com os demais elementos que constituem o sistema.

NosartigosdoCapítuloIV–Espaçosconstruídos–, lê-se tantosobrecomo se formam os espaços das aldeias e a simbologia contida nas constru- ções.Oproblemadas formas, composição e dimensões dos agrupamentosindígenas sul-americanos está colocado desde os primórdios das reflexõesdaquelesquesededicamacompreenderaregião

NoCapítuloV–Meioambiente– otextotratadedizerquemsãoosGuarani com os quais convivemos pelas ruas das cidades deste estado da Federaçãoecomovivemnoencolhimentodasmatassecularesnasquaisseusantepassadosfaziamseuandar.Retrataaconvivência,asfestas,aorganizaçãotribal e os mitos que fundam uma ética especial de vida.

Discute-senoCapítuloVI–Areinvençãodesimesmo–queaartenãocumpre os requisitos da genialidade individual, nem é vista como fruto de uma criação individual absoluta,mas representa gestos e imagens de umaexperiênciacoletiva,totalmenteentrelaçadanaconstruçãocultural.Porfim,no último Capítulo, o VII, Lei, dignidade e espaço no mundo, abordam-se a problemática dos direitos indígenas nomundo atual e as consequênciaspolítico-jurídicasdasdisposiçõesdoartigo46pelofatodeteremrepercussõessobre o conteúdododireito de autodeterminação aplicável, doravante, aospovos autóctones.

Boa leitura.

Gilberto Ferreira da Silva Rejane Penna

Luiz Carlos da Cunha Carneiro

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I O DELINEAR DE IMAGENS

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1 Sepé Tiaraju.

O Índio que os gaúchos querem viver. Representações, identidades e educação

Ceres Karam Brum

Sobre as Missões e Sepé Tiaraju

Pensar sobre o índioSepéTiaraju remete às relações queos gaúchosestabelecem com o passado histórico no Rio Grande do Sul e a diversidade de formas que esse passado alimenta o imaginário presente, quando o vivemos comomito.OfascínioexercidoporSepéTiarajuestánopoderdesignificaro presente de quemoutiliza, transformando identificações comopassadointerpretadodasMissõesempertencimentosasuafiguralendária,presentifi- cadanosinteressesesentimentosdequemosaciona.Paraentendê-locomomito devemos nos reportar a esse passado colonial!

Durante os séculos XVII e XVIII, no noroeste do território onde atual- mente se localiza o Rio Grande do Sul, habitantes originários guaranis e os padres jesuítas da Companhia de Jesus, representantes da coroa espanhola naAmérica,protagonizaramaexperiênciamissioneiraplatina.AsMissões,conformeMeliá(1986),corresponderam,sobopontodevistadaintegraçãocolonial dos territórios e de seus habitantes, ao aproveitamento do modo de ser dos habitantes originários guaranis aos objetivos coloniais de catequiza- ção/cristianização,atravésdaconstruçãodasReduçõese,posteriormente,dasMissões.

OsTrinta Povos dasMissões foram fundados ao longo da ProvínciaJesuítica do Paraguai, abrangendo o correspondente aos territórios atuais do noroeste do Rio Grande do Sul e parte do Paraná, Argentina e Paraguai. No Rio GrandedoSul,aconstruçãodasMissõespodeserpensadaemdoismomentos:oprimeiroinicia-secomafundaçãodeSãoNicolaudoPiratinipeloPe.RoqueGonzáles,em1626,equeperduraaté1640comadestruiçãodospovoadosemvirtude da atuaçãodos bandeirantes portugueses.O segundomomento(1682-1756)correspondeàconstruçãodosSetePovosdasMissões:SãoBorja,SãoLuizGonzaga,SãoNicolau,SãoLourençoMartir,SãoMiguel,SãoJoãoBatista e Santo Ângelo.

Este segundo momento pode ser pensado, no contexto dos Trinta Povos, comomarcodaexpansãodas fronteirasdacoroaespanholaemoposiçãoàatuação lusitana.Tal contexto semodifica coma desestruturaçãodosSete

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Povos dasMissões emvirtude daGuerraGuaranítica (1754-1756).Nessaocasião,comonosmostraQuevedo(2000),osguaranismissioneiroslutaramcontraosexércitosunidosdasduascoroas,seopondoàtrocaacordadaentre as mesmas, no Tratado de Madri (1750), da Colônia do Santíssimo Sacra- mento,pertencenteaPortugal,pelosSetePovosdasMissões,possessãodaEspanha.

Nessa disputa, que culminou com a troca desses territórios entre as duas coroas eoprocessode integraçãodasMissões àspossessões lusas, ahistoriografia,aliteraturaregionalistaeamemóriapopulardestacamaatuaçãodeSepéTiaraju,comandantedastropasmissioneiras,mortoem07/02/1756pelos exércitos coloniais luso-hispânicos, nas escaramuças que antecede- ramàBatalhadeCaiboaté(10/02/1756).Essaculminoucomomassacredecerca de 1500 índios e a derrota dos guaranis missioneiros frente ao exército luso-hispânico.ASepéTiarajuseatribuiàexpressão“Estaterratemdono”,referênciaatávicaconhecidacomoogritodeSepé,frequentementepercebidaemrepresentaçõesqueremetemàbravuradosgaúchos,queserepresentamcomo seus descendentes.

AsmençõesaSepéTiarajuiniciaramnoséculoXVIII,comapublicação,em 1769, do poema O Uraguai, de autoria de Basílio da Gama. O escritor regionalistaJoãoSimõesLopesNetoapresentaaatuaçãodeSepéTiarajuesuasantificaçãopopularnopoemaO lunar de Sepé e em São Sepé. A importância antropológicadessasreferênciasaSepéTiarajuestánapopularizaçãodesuaimagem através de uma linguagem regionalista. Elementos de O lunar de Sepé e da Lenda de São Sepé permanecem sendo utilizados na atualidade. Podemosobservá-lasnaproduçãoderepresentaçõestendentesahomenagearoherói.Relaciono-asànecessidadedeperpetuaramemóriadesuaatuaçãoeastomadasdeposiçãosobreomomentoqueSepéprotagonizou,atravésdasrelaçõesqueindivíduosegruposestabelecemcomseumito.

Atualmente, no Rio Grande do Sul, Sepé Tiaraju se constitui em uma das figuras históricasmais aludidas,mesmo em zonas distantes da regiãomissioneira.É provável que tais referências, pela atualizaçãode seumito,sejammaisfrequentesdoqueasalusõesaogeneralBentoGonçalvesdaSilva,proclamador da República Rio-grandense, expoente maior da RevoluçãoFarroupilha (1835-1845). Efetuo a comparação, pois esses personagenssintetizamdoismomentoshistóricosacionadosnaelaboraçãodeidentidadespresentes a partir do passado, conforme menciona Oliven (2006).

ARevoluçãoFarroupilhaépercebidacomoummomentomarcantenahistória doRioGrande doSul.Constitui-se em referente para a exaltaçãodafigura do gaúcho ao ser representada comoumepisódio de bravura dequeresultouaseparação,mesmoquetemporária,doRioGrandedoSuldo

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RSÍndio–Cartografiassobreaproduçãodoconhecimento 17

restantedoBrasil.Nessaperspectiva,podeserentendidacomoumarevoluçãoreferendada como mito fundador do gauchismo.

O gauchismo inclui uma diversidade de pessoas e grupos que se identi- ficamdevariadas formascomaexaltaçãodoqueapresentamcomousosecostumes regionais do gaúcho e que acionam como critério de definição.SegundoMaciel (2001), a diferença do gauchismodas demais expressõesdo regionalismoestánoculto atravésda encarnaçãoeda representaçãodeautenticidade do verdadeiro gaúcho

Um desses movimentos é o Movimento Tradicionalista Gaúcho ou Tra- dicionalismo,cujoobjetivoérealizarasalvaguardadastradiçõesligadasaogaúchoemassociaçõestradicionalistas,comoosCTGs(CentrodeTradiçõesGaúchas), onde se realizam atividades que objetivam recriar seu modo de vida tradicional no presente, numa perspectiva de culto.

Amençãoaosheróisfarroupilhasécompreensívelapartirdessalógicadeconstruçãodafiguradogaúchocomotipocaracterísticoasercultuado.AsconstantesreferênciasaSepéTiarajupõememrelevooseuvalorsimbólicona construçãodas identidades regionais sulinas. Porém, se por um lado, ogauchismointegrasuafiguraaosseusdiscursos,designando-ocomo“primeirocaudilho rio-grandense”, “fundador de uma genealogia de bravos”, por outro lado,hádisputaspelopoderdenomeá-locomo“bandeira”detransformaçõessociais no estado.

Hátambémmonumentosquerepresentamsuafigura,narrativastradicio- naisqueosantificameoespetáculodeSom e Luz encenadoemSãoMigueldasMissões,queoapresentacomoherói.HáapropostadesuacanonizaçãoporalgunssetoresdaIgrejaCatólica,alémdesuareferência,em2003,nosconflitosdeterranaregiãodeSãoGabriel(SepéTiarajufoimortoem1756emterritóriodo atual município). Nesse episódio, Sepé foi mencionado e disputado como símbolo tanto pelo Movimento dos Sem Terra (MST), que batizou sua marcha com o nome de Marcha Sepé Tiaraju, conforme referido por Göergen (2004), quantopelosruralistasdaregiãoquedenominaramsuaatuaçãocomoslogan“Alerta: esta terra tem dono”.

Em2005,antecedendoàscomemoraçõesrelativasaos250anosdamortedeSepéTiaraju,realizadasem2006,emSãoGabriel,foiproposto,naCâmarados Deputados, o Projeto de Lei 5.516 que: “inscreve o nome de Sepé Tiaraju no Livro dos Heróis da Pátria”. A lei institui Sepé Tiaraju como herói brasileiro. Igualmente, na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, a Lei n° 12.366 foiaprovadaporunanimidadeesancionadanodia30/11/2005pelogovernadorGermano Rigotto. O texto da lei declara Sepé Tiaraju como “herói guarani-missioneirorio-grandense”,instituindoodia7defevereirocomodataoficialde eventos do estado.

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OsurgimentodasduasleisrelativasàinstituiçãodeSepéTiarajucomoheróinacionaleregionalremetemaprofundasmodificaçõesnasidentidadesliminares do índio guarani-missioneiro Sepé Tiaraju: nem índio guarani, nem português,nemespanhol,tampoucobrasileiro.AliminaridadedeSepépassaa receber um novo tratamento representacional. Sepé Tiaraju, por força de lei, adquireumcaráterdebrasilidadeetemsuagauchidadereforçada.Suafiguraindígenamitificadapassaaserintegradacomoetniaconcorrentenaconstruçãodasidentidadesregionaisenacionaisapartirdesuadefinitivacelebraçãocomoherói, num contexto “multicultural”.

Ao ser erigido como herói gaúcho e brasileiro, Sepé é exaltado como símbolo da luta pela terra. Suas identidades liminares de guarani missioneiro nãoestãomaissendoquestionadas,bemcomoocaráterdesualuta.ConformeLévi-Strauss(1996),omitoobjetivaresolverascontradiçõesentreopassadoeopresente.NocasodeSepéTiarajuedopassadomissioneiro,suasapropriações,nesse caleidoscópio de significações, comodisse igualmenteLévi-Strauss,(1997) “servem para pensar” sobre as relações que estabelecemos com opassado e sobre nossas identidades.

DopontodevistadainvisibilidadeedaopacidadedaquestãoindígenanoRio Grande do Sul, conforme destacam Souza (1998) e Oliven (2006), frente ao contingentesignificativodeíndiosreaisquepovoamnossosespaçosurbanos,a seguir apresento alguns dados etnográficos que considero significativosno processo da vivência domito de Sepé Tiaraju e de sua aproximação/distanciamentodasnações indígenasquehabitamoestado.Meuobjetivoéapresentar choques representacionais existentes entre o mito de Sepé Tiaraju e o índio hiper-real que povoa nosso imaginário.

Meuponto de partida será o conceito de representação social, pois omesmopermiteumareflexãosobreosprocessosdeinculcaçãoqueacreditamosarbitráriosequedeterminamnossasvisõessobreooutroeas relaçõesqueestabelecemoscomadiversidade.Para(JODELET,1993)asrepresentaçõessãosocialmentepartilhadaseconstituídasapartirdeexperiências,saberesemodelosdepensamentosrecebidosetransmitidospelatradição,educaçãoecomunicaçãosocial.Elasdirecionamdeformapráticaàorganizaçãosocial,concorrendo ao estabelecimento de uma linguagem comum e compartilhada por grupo, classe ou cultura.

Nessesentido,pensoqueapopularizaçãodedeterminadaspercepçõesacerca de SepéTiaraju, na sua vivência comomito, podem determinar ocomportamentoeastomadasdeposiçãofrenteàsnaçõesindígenascomquenosdeparamoscotidianamentenascidadesgaúchas.Ouseja,asrepresentaçõessobreSepéTiaraju dialogamcompercepções inculcadas acerca dos índiosreais.

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RSÍndio–Cartografiassobreaproduçãodoconhecimento 19

O Som e Luz de São Miguel

O Som e Luz é uma narrativa épica elaborada com o intuito de abordar o passadomissioneiro.Podesercaracterizadocomooteatrohistóricoquepropõeaopúblicodescobrirnãoapenasaspersonagens,mastambémocenáriodasMissõesduranteosséculosXVIIeXVIII.ÉassimqueestabeleceaidentificaçãoentreopassadoeopresenteatravésdesuaexaltaçãocomopropostaturísticaencarregadadepopularizarossujeitoshistóricoseoespaçodeSãoMigueleenaltecer o patrimônio missioneiro, ao produzir mitos a serem cultuados dentro eforadaregiãodasMissões.

Oespetáculoéencenadodiariamente,ànoite,nasruínasdeSãoMiguel1 (sítio arqueológico tombado pela UNESCO como patrimônio da humanidade), propiciandoumretornoaopassado.Configura-seemimportantedisseminadorda imagemdeSepéTiaraju, ao apresentar avisãodopassadomissioneiro,atravésdaproduçãodeumarepresentação teatralcalcadanaexpressãodoselementosnaturaisemateriaisquecompõemocenáriodaruína, reconhecida como patrimônio na atualidade, enquanto testemunho material surgido durante aexperiênciamissioneirapassada.

AnarrativadahistóriadasMissõeséelaboradaapartirdaapresentaçãode seus protagonistas principais: a terra e a igreja e alguns sujeitos relacionados ao passado dos Sete Povos chamados a dar seu depoimento, contando “o que realmentehouve”e“oporquê”de,naatualidade,apenasexistiremvestígios(as ruínas), testemunhos daqueles tempos.

ÉàmemóriadeSepéTiarajuqueoespetáculoédedicadoaoenfatizarsualutapelaterradasMissõeseasrazõesdesuamorteemproldajustiça,sendoapresentadocomoumcacique-corregedordaReduçãodeSãoMiguelcompoderdedecisãoe influênciasobreseusparesguaranis.Omodelodevirtudescristãsqueencerra,emrazãodesuaformaçãojesuítica,seinsurgecontraanotíciadadisposiçãodoTratadodeMadriddetrocarosSetePovosdasMissõespelaColôniadoSacramento.Énessaconjunturaqueocorresuacélebremanifestação:“Estaterratemdono.ElanosfoidadaporDeuseporSãoMiguel”.

Frenteàirredutibilidadedadecisãodatrocadasterrasmissioneiras,SepéTiaraju passa a ser representado como seu defensor primordial, se opondo àposiçãodosprópriospadres jesuítasdeentregarosSetePovos,passandoa lutar contra os exércitos unidos das duas coroas.A representaçãode sua 1 SãoMiguelfoideclaradoPatrimônioNacionalem1937, logoapósacriaçãodoSPHAN(Serviçodo

Patrimônio Histórico e Arquitetônico Nacional). Em 1983, foi declarado pela UNESCO Patrimônio CulturaldaHumanidade.Em1996,oCircuitoInternacionalIntegradodasMissõesJesuíticasdosGuaranisfoi também declarado pela UNESCO como uma das quatro rotas de turismo cultural internacional mais importantes do mundo (Brum: 2006, 106).

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figura abrange conjuntamenteoSepéguerreiro e o líder político, umesta- dista indígena que não se dobra aos caprichos dos comandantes “estran- geiros” ibéricos, representados como usurpadores, invasores, na sua ótica nativista.

Em contrapartida, Sepé é percebido pelos luso-hispânicos como um insolente, bárbaro e guerreiro experimentado no comando da resistênciaguarani.AsoposiçõesentreouniversonaturalatribuídoaSepéeasdistorçõesda percepçãodos interesses e da visão de justiça das partes envolvidas seconfiguramemmetáforasdopassadomissioneiroedoselementosescolhidospara representá-lo de forma evolutiva e maniqueísta: a passagem do universo naturalguaraniàconstruçãodeumacivilizaçãodobem,sacralizadaporDeus(asMissões) emoposiçãoaomal (os exércitosunidosdas coroas ibéricas)responsáveisporsuadesagregação.

O tratamento de “companheiro” atribuído a Sepé, no espetáculo, por seus paresguaranisdemonstraomomentodaproduçãodoSom e Luz (1985) e a utilização de textos historiográficos na sua elaboração.A intertextualidadena narrativa é demonstrada através de categorias que lhe são exteriores eextemporâneasenautilizaçãodos termos“burocracia”paracaracterizarosreinos ibéricos, bem como “democracia” e “comunismo”. Essa atribuiçãode significado ao passado missioneiro, através de analogias ao mundocontemporâneo,objetivaproduziravisãodasMissõescomoumacivilizaçãoperfeitaeigualitária.Porseuturno,osreinosibéricossãoapresentadoscomoaimagemdecobiça,hipocrisia,desuniãoedeslealdadeparacomos“vassalos”missioneiros,numaausênciadecritérioshistóricoseideológicosdeaplicaçãodos termos acima, que objetivam pedagogicamente construir um imaginário favorável àsMissões e da aceitação do passado como testemunho de ummassacre.

A morte de Sepé Tiaraju é apresentada pela recusa do índio de parar de lutar:“euqueroviver”,evitandoaceitaroseufim,sendoferidoporumalançade origem espanhola e um tiro “de misericórdia” alardeado pelo comandante do exército português.Essa duplamorte ilustra a superação dos inúmerosdesacordos que caracterizaram a atuação da comissão demarcatória delimites.

Oespetáculoéfinalizadocomatrocadecomandodastropasmissioneiras(que passam a ser dirigidas por Nicolau Languiru) após a morte de Sepé e a tomadadasMissõesapartirda invasãodeSãoMiguel.Nessemomento,oespetáculo adquire um tom de “acerto de contas com o passado missioneiro” eotrabalhaemtermosdememóriasocial,objetivandoconstruirumaliçãoapartirdessaexperiênciapassada,enaltecendoaterracomovalorsupremoealiberdade acima de todas as coisas:

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Terra que circula em nossos corpos,é teu o nosso trabalho.Ventos claros, rios prateados,independêncianatural,esposa comum. Liberdade.Éportianossaluta,etodaanossalealdade.(Texto do Espetáculo Som e Luz)

Ao ser representado como um bravo de ideias próprias, defensor dos valorescristãosde liberdade, igualdadee fraternidade,mescladaà ideiadedemocracia e de telurismo aguerrido na defesa do “pago”, da terra como um valor sagrado e preponderante, Sepé tem sua imagem de índio real subjugada porsuarepresentaçãoromântica–mistodeheróiiluministaesocialistautó- pico.OespetáculoaproveitaessamultiplicidadederepresentaçõesacercadasMissõesedeSepéTiaraju,acolhidasdotrabalhodeClóvisLugon(1977)–A república comunista cristã dos guaranis–comrelaçãoàconstruçãodomodelocomunitáriodasreduções–produzidopeloespetáculo.AssimcomoaprópriautilizaçãodopoemaO UraguaideBasíliodaGama(1769),nacomposiçãodafiguraheroicadoíndioromânticoSepéTiaraju.

A recepção dessas representações e sua reelaboração pelo espetáculo se inseremnumaperspectiva de circulação e (re)semantização de análises dopassadopara a produçãode um imaginário, através de uma linguagempopular que objetiva alcançar a maior parte do público – composto, sobretudo, pelas escolas de todo estado– quevêmassistir ao espetáculo, comopartede suas atividades paradidáticas.A construção desse imaginário favorável se plasmana elaboraçãodomito deSepéTiaraju comopedagogia da boahistória, liçãoaser introjetadaeentendidacomo“averdadeirahistóriadasMissões”.

Anteessaconstruçãoépica,arecepçãodoSom e Luz pelo público estampa ascontradiçõesentreopassadogloriosorepresentadonoespaçodasruínasdeSãoMigueleoseustatuspresenteatravésdaimpossibilidadedepercepçãodastransformaçõesocorridasnaregiãoedeseusatores,especialmentecomrelaçãoaos Mbyá-Guarani ali presentes. O Som e Luz, nesse sentido, ao construir e caracterizar de forma romântica Sepé Tiaraju, o distancia irremediavelmente dos índios reais que ali vendem seu artesanato.

Os turistas e os estudantes presentes não os reconhecem como“descendentes”deSepéTiarajuaosedepararemcomsuasfigurasfranzinasdeaparênciapobre,apósotérminodoespetáculo.Quandoosencontramemtornodomuseu,vendendoartesanato,raramenteparam,numademonstraçãodequearepresentaçãodoíndioforjadapeloespetáculo,inculcadanoimagináriodosturistas,nãocoincidecomapresençaMbyá-Guarani.

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AeficáciasimbólicadoSom e Luznaconstruçãoconcorrentedasiden- tidades no Rio Grande do Sul é relativa a Sepé como o primeiro gaúcho rio-grandense.É,pois,excludentedafiguradoíndioreal,presenteemSãoMiguel.Afiguradoíndioenquantoidentidadeconcorrenteapenaséaceitaeintegradacomosimulacro,paraelaboraçãodaimagemdogaúcho,nosvaloresdebravuraevalentia,sendonegadaemrelaçãoaosMbyá-Guaraniqueláestão.Ramos exemplificaaproduçãodosimulacro:

Criam-se estruturas quase-cartoriais destinadas a gerir os recursos muitas vezes vultosos que permitam produzir e manter esse simulacro que é o índio hiper-real, dependente, sofredor, vítima do sistema, inocente das mazelas burguesas,íntegroemsuasaçõeseintençõesedepreferênciaexótico.Osíndiosassimcriadossãocomoclonesdefantasia,feitosaimagemdequeos brancos gostariam de ser eles mesmos. Pairando acima e além do real o modelodeíndiopassaaexistircomoquenumaquartadimensão,instituindouma entidade ontológica de terceiro grau (RAMOS, 1998, p. 11).

Noentanto,opassadomissioneirovivificadonasapropriaçõesefetuadasdas narrativas já referidas, apesar de ocorrer no presente, dele se afasta em razãodesuaperspectivaperformáticaeapologética.AproduçãodoimagináriomissioneirocontrastacomapobrezadosMbyá-GuaranideSãoMiguel–umapobreza que é também representada como representacional pelos turistas e estudantes, em relação aopassadomissioneiro, cujo espaço continuamaocupar.Os guaranis ali presentes não são percebidos sequer como “índiosgenéricos”,sãovistoscomomerosexcluídos,conformeafaladeCarina,duranteoCaminhodasMissões,umprojetoturísticoquevemsedesenvolvendonaregiãodasMissõesdesde2003:

–Euachomuitotristeasituaçãodelesporqueelesnãotêmnoçãodoqueelesforam,porqueeleseramaquidessaterra.Elesnãotêmexpectativa.Elessãoumpovosemterras,semideaiseelesestãoperdidoseissofoiohomem que deixou porque eles tinham e o branco veio e deixou eles sem nada,elesestãoàmargemdacivilizaçãosemconheceresaberopoderquetinham.Achoelesdeslocadosali,agentevêqueelesestãoaliporumacircunstância,porqueelesficaramsemnadaéaúnicaalternativaqueelestêm,alguémdevetertrazidoelespraaliporqueeuachoqueelesnãotêmconhecimentodoqueelessão(FitaK72A,maiode2003).

No entanto, os próprios Mbyá, tentando capitalizar o Som e Luz a seus propósitos,passaramaincluirnoseuartesanatorepresentaçõesemmadeiradeSepéTiaraju,dasruínasdeSãoMigueledacruzmissioneiradedoisbraços.Desejo de serem reconhecidos como testemunhas legítimas da história das Missões, no que interpreto como estratégia de aceitaçãode seus produtos,conformemerelatouumadasartesãs,“osturistasgostam”(DiáriodeCampo5),

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utilizando a referência ao passado como justificação materialmente expressa dos seus interesses presentes.

O mascaramento das contradições nas representações da figura mítica de Sepé Tiaraju objetiva construir um herói com características aceitáveis ao imaginário de bravura e liberdade preponderante e, por isso, passível de ser cultuado. As atualizações do mito de Sepé Tiaraju instigam, sobretudo, porque permitem analisar a pluralidade de motivações estabelecidas no âmago da comemoração, enquanto modalidade de relação entre o passado e o presente, através da criação do herói a ser festejado e das disputas que essa criação encerra no plano simbólico e suas decorrências.

Coxilha de Caiboaté: um projeto de tombamento

No conjunto de referências a Sepé Tiaraju a mais recente refere-se a um projeto de tombamento da Coxilha de Caiboaté. Foi nesse local que ocorreu, em 10 de fevereiro de 1756, a Batalha de Caiboaté, em que foram mortos cerca de 1500 índios guaranis missioneiros que lutavam contra os exércitos unidos de Portugal e Espanha.

Este projeto de tombamento vem sendo implementado por um importante movimento social no Rio Grande do Sul. Trata-se de um texto produzido pela Via Campesina em julho de 2008 e entregue ao Ministério da Cultura. O que norteou a sua produção foi um boato de que a Coxilha de Caiboaté havia sido comprada pela Aracruz Celulose. Desmentido o boato, verificou-se que a área anterior de cinco hectares demarcada foi reduzida para um hectare. A área começaria a ser utilizada para o plantio de soja.

O objetivo da carta é suscitar a abertura de um processo de tombamento da Coxilha de Caiboaté, pelo IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. O motivo é claro: a busca de reconhecimento coletivo, sancionado juridicamente da Coxilha de Caiboaté como lugar de memória de Sepé Tiaraju e dos índios guaranis que lá morreram pela terra missioneira. O texto elucida as razões históricas e antropológicas que o embasam, salientando a importância simbólica da Coxilha de Caiboaté na atualidade, conforme o trecho a seguir:

Brasília, 02 de julho de 2008.

Ao Senhor Ministro da Cultura Gilberto Passos Gil Moreira Área da Coxilha do Caiboaté localizada no município de São Gabriel, no Estado do Rio Grande do Sul, é local de referência histórico cultural no que se refere à produção de um universo de significação simbólica dos indivíduos e grupos étnicos que nesta região identificam o marco a

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partirdoqualaexistênciadeumaproduçãodenarrativassobreopassadomissioneiropossibilitaapráticae reproduçãodeumaculturaparticular.Nessesentido,asrepresentaçõessociaiseculturaiscombasenahistóriadeSepéTiarajúedosSetePovosMissioneirossãoapreendidasenquantodocumentos que expressam o discurso sobre o passado e constituem umarelaçãocomopresenteparaaquelesquebuscamoreconhecimentoautorizado para incorporar legalmente esse local ao capital identitário A áreamencionadaconformaaregiãodosSetePovosdasMissões,sendodefundamental interesseasolicitaçãodeatençãoespecialnocuidadoepreservaçãodemonumentos,bemcomoamanutençãoepreservaçãodopatrimôniomaterialeimaterialcontidonestaregião.(...)Emseqüênciadesteevento,todososanosnodia07defevereiro,índiose movimentos sociais, deslocam-se para lá relembrar a memória do Massacre. Omês de fevereiro já é considerado pelo imaginário coletivo o mêsde celebração damemória deSepéTiaraju, e, portanto, daCoxilha doCaiboaté,comoreferencialmaterialdestacomemoração.Além desta conotação simbólica, a Coxilha do Caiboaté deve serconsiderada um sítio arqueológico indígena, pois, por séculos, este foi espaçodemigraçãodegruposindígenasemaistarde,nelaacorreuamaisimportante batalha da guerra guaranítica. Comestasreferênciashistóricaseculturaissefaznecessárioaproteçãodestepatrimônioculturalparaqueaspróximasgeraçõespossamreceberolegadodahistóriaatravésdocuidadoedaconservaçãodestepatrimôniomaterial e imaterial.

Até o presente momento, nenhum estudo arqueológico foi efetuado no local,eosmonumentosláconstruídossão,obviamente,muitoposterioresàBatalhadeCaiboaté (1756).Não cabequestionar a sua autenticidade,maslembraroobjetivodesuaconstrução:evitaroesquecimentodolocal.Soboponto de vista de sua historicidade, é urgente que se efetue um levantamento e umaprospecçãodaáreaparafinsdeestudo,evitandoquesetornelavouradesojaouplantaçãodeeucalipto.

Valelembrarqueem2006,nascomemoraçõesdos250anosdamortedeSepé Tiaraju, os monumentos lá existentes (um marco de limites e uma cruz) forampalcodateatralizaçãoedaproduçãodeumconjuntoderitostendentesa homenagear Sepé e os guaranis. Lá ocorreu o ponto alto das homenagens, as falas em guarani, as danças rituais em torno dos monumentos. E um momento de catarse coletiva: a terra para sempre manchada pelo sangue guarani foi coletadaparaserlevadaparanossascasas.Umpedaçodopassado,cujavocação

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pedagógica, como sugere Augé (2003, p.45), é o aprendizado do sentimento do tempoqueengendraconsciênciahistóricadeumaidentidadepresente.

Énesselugar,povoadodesímbolosmaisoumenosvisíveisedosrestosmortais dos guaranis que lá tombaram heroicamente, em 1756, que um importante movimento social como a Via Campesina deseja transformar em um lugardememória,enão,comoseriadeseesperar,osórgãosgovernamentais,oumesmoasnaçõesindígenas.Esseritodeinstituição,conformeBourdieu(1998),tendenteàsacralizaçãodopassadoemumpresentequeestáprestesaprofanarémuitosignificativo.

De um lado, trata-se de um passo importantíssimo no sentido do reconhecimento mútuo, conforme Ricoeur (2007), de Sepé Tiaraju, através dainstituiçãodeumlugardememóriacujasignificaçãoextrapolasuafiguracontroversa. De outro, atinge o tratamento representacional que vem sendo dadoàquestãoindígenanoestadodoRioGrandedoSul.Naverdade,aCoxilhade Caiboaté, ao ser representada e desejada como lugar de memória de Sepé Tiaraju,constituir-se-áemsímboloinstituídoereconhecidodacontribuiçãodoíndiorealnaconstruçãodasidentidadesgaúchasnaatualidade.

Signodeumaduplareversão?DaaproximaçãoinequívocadeSepédosíndiosreaisedosmovimentossociaiseadagestaçãodepolíticaspatrimoniaisbaseadasempolíticaspúblicasqueatentemainteressesmaispopulares?Oxaláarespostafossepositivaaessaduplaquestão.

Cuidado para não pisotear

Dopontodevistadaproduçãoderepresentações,asduassituaçõesquebrevementeapresenteiconvergemparaareflexãodarelaçãoentreSepéTiarajueosíndiosreais.Háumdiálogosubjacentenasduassituaçõesetnográficasque, ao focalizar Sepé Tiaraju, simboliza o simulacro da visibilidade dos índios reaisedascontradiçõesqueasperpassam.Creioqueabrevedescriçãodeumaterceirasituaçãoetnográficatornarámaisexplícitomeuargumento:

Manhãdeoutonodeumasegunda-feiraensolarada,emSantaMaria.Ocentro da cidade já conta com grande movimento. Vou caminhando em direçãoaocalçadãoquando,subitamente,vejoduasmulherespraguejandoe desviando seu rumo na calçada àminha frente.Olho para o chão eperceboomotivo:umbebêindígenaengatinhaesedistanciadesuamãe,atrapalhandoorumodostranseuntes.Parodirijo-meaobebêeoreconduzoasuaantigarota.Amãe,umajovemaparentandouns15anoslevantaosolhoseapanhacalmamenteobebêquehápoucosminutosatrásescapoude ser chutado. (Diário de Campo, abril de 2007)

Instintos,razõeserepresentações.QuerespostaapresentarcomoreflexãoàsituaçãopresenciadaacimaeoqueelatemavercomSepéTiaraju?

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Meuobjetivonãoéencontrarculpadosoujulgarcomodesumanaareaçãocom relação aobebê.Por certo foi uma situaçãode extremo impactoparamim, de desconforto para as mulheres que tiveram suas rotas alteradas naquele instantedeoutono,edeaceitaçãoresignadadaexclusãoporpartedajovemmãeindígena.Opontoemcomumentreossujeitosprotagonizadoresdessacenaserelacionacomadificuldadedeolharepodeserresumidoemtermosdeumaimpossibilidadedepercepçãodooutro,umalterquenãoconseguimosenxergarporquenãoestamoseducadosparaperceberevisibilizar.

Se há todo um esforço de reconhecimento jurídico dos direitos indígenas noBrasilemrelaçãoaosdireitoshumanos,aexplicaçãoaodesprezoedes- consideraçãoaosíndiosqueocupamespaçosurbanos(deextremacomplexida- de)podeestarplasmadaarepresentaçãoquesetemdoíndio(comoalguémqueestáalémdohorizonte,equeaindahabitanu,munidodearcoeflecha,asflorestastropicaisbrasileiras).

Afinalnãoéesseoíndioquevemsendomostradonoslivrosdidáticos?Ou ainda um índio heroico idealizado que cavalga indomado pelas Coxilhas do Rio Grande na pele de Sepé Tiaraju missioneiro. Talvez sejam esses os índios que queiramos viver, os diacríticos (sob medida) de que nos apropriamos para a construçãodenossasidentidadesregionaispresentes.Mitosquevivemoscomoobjetivodesuperarascontradiçõesdeumpassadodesconfortável.

Assim, pensoque a questãodas representações que temosdos índiosnoRioGrandedoSul nãopode ser reduzida a umautilizaçãounívocado“interesse” da construção do regional.Os interesses são difusos emesmoas identidades e as representações que as embasam são plurais, plenas designificadoeseencontramemdisputaemummundoquepodeserpensado,na perspectiva de Turner (2003), como uma selva de símbolos.

Oquedesejoafirmarparafinalizarestetextoéquenãoestamoseducadosparaperceberesseoutro–oíndioreal– tãodiametralmenteinversoedes- conexodanossapalavra-mundo.AeducaçãoéaquientendidanaperspectivaapresentadaporCarlosRodriguesBrandão,emA educação como cultura:

(...)Umadimensãoaomesmo tempocomume especialde tessituradeprocessosedeprodutos,depoderesedesentidos,deregrasedetransgressãoderegras,deformaçãodepessoascomosujeitosdeaçãoedeidentidadesedecrisesdeidentificados,deinvençãodereiteraçõesdepalavras,valores,idéias e de imaginários com que nos ensinamos e aprendemos a sermos quem somos (...) (BRANDÃO, 2002, p. 25)

Para o autor, a educação está inserida no âmbito da cultura, não serestringindo à escolarização, constituindo-se em processos de tessitura deimaginários e práticas que nos permitem viver e que nos preparam para entender o mundo em que vivemos.

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ComrelaçãoaSepéTiaraju,éprecisoultrapassarsuapercepçãoestáticade um índio celebrado como branco pelas virtudes que alguns grupos querem engendrar.ÉnecessárioperceberapluralidadesimbólicadeSepécomosignodereversãoqueinteressatambémasprópriasnaçõesindígenas.

Nãosetratadedenunciaromitoequererdenegri-lo,masdepensarsobreospercursossimbólicosdeSepéTiaraju,suasaproximaçõesedescaminhosdosíndiosreaisedastransformações(mesmoquelentas)destasrepresentaçõesinculcadas.Enfimde estarmos preparados ou não para perceber o outro eaceitá-lo em sua diferença.

Um duplo aporte educacional: uma educação para a percepção dosíndios reais para além das representações dos aborígines subjugados pelobranqueamento; o desejo de poder ver para além dos estereótipos e transformar avisãodesfocadaquepossuímosdesseoutro.

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2 Contornos do imaginário:

imagens do índio do Rio Grande do Sul na literatura brasileira

Cícero Galeno Lopes

AprimeirafocalizaçãoliteráriasobreosindígenasdoRioGrandedoSulfoi realizada na mais estudada das epopeias brasileiras, O Uraguai (1769), do árcade mineiro José Basílio da Gama. As temáticas que escolheu para suas obras narrativas, além da qualidade dos textos, impressionam pelo que Ivan Teixeira classificacomomodernidade,ouseja,atualidade.Teixeiratrataespecialmented’O Uraguai. O foco da narrativa épica de Gama é tema nacional, no sentido dequeaquestãoanalisadaéoTratadodeMadriesuasconsequências,comrelação aos aldeamentos guaranis damargemesquerdado rioUruguai.Asconsequênciasimediatasforamaguerra,adestruiçãodasaldeiaseaanexaçãoao Brasil do território que hoje pertence ao Rio Grande do Sul, por força da derrota dos índios aos exércitos enviados por Portugal e pela Espanha. Os heróis,apesardeaproposiçãoapontarachefesdaincursão,sãodefatoíndiosdanaçãoguarani.

São índios os personagens de fato enobrecidos. Chamam-seNicolauNhenguiru,Cepé,Cacambo,Caitutuesuairmã,Lindóia.Lindóia,noenredo,pretendia casar-se com Cacambo. Cacambo, entretanto, é envenenado e morre. Oassassinato se origina da ambiçãodo jesuítaBalda.Oobjetivo é forçaro casamento dela, de estirpe nobre (na sociedade guarani), com Baldeta, filhodo jesuíta. Isso asseguraria a aceitaçãodeBaldeta comonovo chefe,emsubstituiçãoaCacambo.Ela,noentanto,nãosesubmeteaovilipêndioesesuicida.Valoresindígenas,representadosporela,definemosíndioscomocomoventemente humanos. Em época em que ideologicamente se discutia se índioeramesmohumanoounão,elaarrebataacenanoepisódioconhecidona literatura como a morte de Lindóia.Aopçãopelosuicídioesclarecequeossentimentos, especialmente o amor, integralizam a personalidade cultural dos índios. Tratados em geral como brutos, nos textos informativos anteriores e até em textos literários, aparecem, através de Lindóia, como generosos, sensíveis, quepõemafidelidadeeo amoracimadequalqueroutrovalor.Épossívelencontrar-se hoje, em vários locais do país, o nome de Lindóia, em bairros, municípioseconstruçõesurbanas.

Cacamboéochefeassassinado.Pacifistaeclarividente,nãoqueraguerra.Argumenta acerca do erro, da injustiça e da infelicidade do avanço militar

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sobre o território e as aldeias indígenas. Na voz dele, os ameríndios do sul doBrasilmostramerudiçãoadmirável.Comoopoematemtraçoideológicopombalino,Cacambo representa o Iluminismo, em que a razão e os bonssentimentos caracterizam o Homem. O chefe índio, entre muitos argumentos bem elaborados, valoriza a natureza, que separou, com o mundo de águas do oceano, a cultura local da europeia, porque os europeus vieram escravizar e, então, destruí-los pela força.O poema temobjetivo temático declaradodecombateaojesuitismo.AexpulsãodosjesuítasdoterritóriodoBrasilfoiexecutada por Pombal. Assim, entre as ideias iluministas, dos ilustrados como Pombal, e a proposta introduzida e defendida pelos religiosos católicos, o poemaficacomanaturalidadeecomobomcaráterdosíndios,representados,empráticaeeloquência,preponderantemente,alémdeporCacamboeLindóia,também por Nhenguiru, Cepé e Caitutu (como a seguir ainda se verá).

Nhenguiruécaciquerespeitadonaregião.Sobaluzdasabedoriaqueodistingue, os outros chefes exibem também lucidez na liderança e princípios moraisalinhadosàideologiaquesustentouoArcadismo,escolaliteráriaemque se inscreve o poema O Uraguai.

Caitutuéoirmão,que,entreoutros,vaiàbuscadeLindóiano“bosque”,descrito como aconchegante e belo, no dia em que ela deveria casar-se, forçada, com Baldeta. Encontra-a já morta por serpente, meio que ela escolhera para deixar a vida.A figura deCaitutu, chefe guerreiro, cresce no episódio damortedairmã,especialmentepelosofrimentoqueexperimentadiantedofatoconsumado.Valedizer:nãoapenasamulheríndia,tambémohomemíndioédotado de tocante sensibilidade.

Propositadamenteficamporúltimo,nesteestudo,asreflexõessobreCepé.Cepé é o de todos os gaúchos conhecido Sepé Tiaraju. (A partir daqui, será usadaagrafiamaiscomumenteempregadaparaSepé, com esse inicial.) Sepé Tiarajuéfigurasimbólicadodesapego,dacoragem,dosvaloresligadosaotelurismo, marcantes na cultura do Rio Grande do Sul. No poema, Sepé mostra-secomtodasasqualidadesesperadasdochefenasuacondição,nasdecisõeseno campo de batalha. Na embaixada que excuta ao lado de Cacambo, ante os invasores,esperaqueocompanheiroilustretente,pelaargumentação,emumtempo racional e cordial, impedir a guerra, para salvar as vidas da comunidade e a cultura locais. Encontram, no chefe militar a serviço dos exércitos mobilizados contra asMissões, um homem com ideias preconcebidas, detendênciasapenaspré-iluministasnarepresentaçãodoseureiedosinteressesdacoroa.Ogeneralnãocede.Oobjetivodeleéaguerrapelaapropriaçãodasterras, em cumprimento do Tratado, em nome de seu rei. A irredutibilidade do chefe militar leva também Sepé ao diálogo (que vira confronto verbal) com ele. Sem conseguir melhor resultado, Sepé conclui sua fala com uma das frases

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que geraram outras, no imaginário dos gaúchos: “quereis a guerra e tereis a guerra”.

Sepé morre em combate, depois de muitas aljavas esvaziadas, das quaistodasasflechasforamlançadascomeficácia.Nopoema,éabatidopelogovernador de Montevidéu, comandante militar em nome do rei espanhol. Sepé erra o lançaço, e o espanhol corta-lhe as rédeas da montaria e o abate com tirodepistola.Éesseumdosmomentosemqueopoemamostraadiferençadefinidora da vitória dos exércitos a serviço das potências imperialistaseuropeias da época: as armas. Eles as tinham de aço e de fogo; os índios, lançaseflechasdemadeira.

Coletado (em 1902) e publicado graficamente pela primeira vezem Lendas do Sul (1913) de Lopes Neto, o rimance (ou romance velho) O lunar de Sepé(emseispáginas,da348à353)éesclarecedordapersistênciados sentimentosde indignaçãodapopulação local frenteàprepotênciadosinvasores-possessores.EssessentimentoslevaramàdivinizaçãodeSepé.ComoLindóia,Sepétambéménomedemunicípio,confirmandosuasantificaçãopelojuízopopular:omunicípiosechamaSãoSepé.HáigualmenteruaseavenidascomonomedelenoEstado.Cetegês(centrosdetradiçõesgaúchas)tambémohomenageiam no Rio Grande do Sul e fora do Rio Grande do Sul.

Estãotranscritasaseguiraprimeira(tambémestribilho)eaúltimaestrofes(p.348e353).Aúltimaestrofeapareceseguidadoestribilhofinal:

Eram armas de CastelaQuevinhamdomardealém;De Portugal também vinham,Dizendo, por nosso bem:Mas quem faz gemer a terra...Emnomedapaznãovem.E, subindo para as nuvens,Mandouaospovos–benção!QuemandavaoDeus-SenhorPormeiodoseuclarão...E o – lunar – da sua testa Tomounocéuposição...

O lunar a que se refere o penúltimo verso é sinal mítico-divinizador da figuradoíndioSepé.Segundonarrativasdeorigemmítico-lendária,emvida,o lunar fulgurava-lhe na testa. Transformou-se em símbolo de valores em que o herói é reconhecido. Assim, por exemplo, em Tema de marcação, poema de Luiz Coronel, o lunar é propositadamente confundido com “uma estrela”, para queoheróidaresistênciaguaranifosse(ouseja)dissimuladamenteidentificadocom Che Guevara. Em 1975, os textos de festivais sofriam censura prévia.

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Opoemaemquestãoconcorreu,musicadoporMarcoAurélioVasconcellos,na quinta edição do Califórnia da CançãoNativa do RioGrande do Sul,primeiro e maior festival de músicas nativistas do Estado. Esse foi o motivo daambiguidadetextualnaconstruçãodafigura.Noutraspalavras:opoemasepropõeequivalênciasentreosdoispersonagenshistóricos,mitificados,comose pode constatar na passagem abaixo transcrita:

Lembranças, amores e guerras tambémsãomarcasquedeixamasuaimpressão,oódio,umadeusetambémaopressão,afome,umsorrisoouumsimplesnão...Preferiu a liberdade,foimarcadodefujão,tinha uma estrela na testa,foiprabaixodessechão.

Essassão,pois,aspioneirasapariçõesdosíndiosdoterritóriohojesul-rio-grandensenaaltaliteraturabrasileiraenaexpressãopopulardointeriorgaúcho.

Dizimadasaspopulações,incendiadososcamposeasconstruções,aba- tidodefinitivamenteomoral, submetida a cultura, os ameríndiosda regiãocomeçamseuêxodo.Éadispersãototaldossobreviventes,queabominamaescravidão.Ensanguentados,nosdois sentidos,oscorações,ospoucosquerestamnão têmdestino.Assimnasce o índio-vago, o gaudério guarani.ÉprecisamentenessasituaçãoqueO Continente de Erico Verissimo apanha a imagem do que viria a ser o personagem Pedro Missioneiro.

Dilan Camargo, no poema Tema de Ana Terra e Pedro Missioneiro (p. 33), diz isso em versos:

Sou Pedro, pedra mestiça,Filho de Nossa Senhora,Sei falar língua de missa,Tocaraflautaquechora.

Pedro é pedra, o início, o alicerce, a permanência que se estabelece.Caminhantedaimensidãodoscampos,chegaàsterraseàscasasdafamíliaTerra.AíviveAnaTerra,recém-chegadaaoContinentedeSãoPedro.Anaéaprimeira, em analogia com Pedro. Deles nasceria o segundo Pedro, o Pedrinho Terra.Dessemodo,ficaregistradaasegundagrande(etalvezapior)derrotaindígena.ComoPedronãotemsobrenomee,porisso,éMissioneiro(porquevemdasMissões,porquedeláéoriginário),o(único)filhodeletemapenas osobrenomedamãe.Porsergentedo laborna terra,éosobrenomeTerra que identificaogurimestiço.Terrasugere tambémapermanênciana terra.

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PedroTerraéasegundapedramarcadanaalegoriadaconstruçãodagentegaúcha.

AfiguradePedroMissioneiroéimagemrepresentativadoíndiodoRioGrandedoSul,naliteratura.Delasegerouafiguradoíndio-vago.Afigurado índio-vago (andante, que vagueia) gerou as formas, bastante usadas, índio-velhoeíndio-veio(quesãoequivalentes).Sãoempregadasaindahojeetêmconotaçãoelogiosa,degaúchooriginal,livre,forte,bemaprumado,corajosoetc.Ostermoscorrelatosgaúchoegaudériotêmessamesmaacepção,emboraseencontremtambémaplicaçõessemânticascomalgumasdiferenças.

Assim,PedroMissioneiroéasegundafiguraliteráriamarcantenacon- solidaçãodaimagemdoíndio(esuadescendênciaétnico-cultural)noimagi- nário gaúcho. Na literatura subsequente ao aparecimento d’O Continente, encontram-sediversosolhares sobre aparticipação indígenanagênesedosgaúchosesobreaformaçãodoRioGrandedoSul.

Em Estrada nova,cujaprimeiraediçãoéde1953,porexemplo,otermoíndio-vago é empregado com significaçãogeneralizada.A citação a seguir (p.189)esclarececomprecisãoosentidoqueotextoatribuiaotermo:

Manuelnuncasaíradaquelasimediações.Eracriadeporlinomais.Nas- cera [...] atrás daquelecerro[...].Tinhadezenoveanos,nãoserviraaindanoexércitoetalveznemviesseaservir,porquenãoeraregistrado.Nãoconhecialetra,nãoconheciamulher,nãoconheciaoutrospagos.O índio-vago [...] acordara de repente. Manuel resolvera correr mundo... Praondeeporonde?Prabem longe,poressescafundósdodeus-dará!QuemsabesepelomunicípiodoAlegrete?!...

A imagem construída do índio-vago corresponde, pois, ao homem sem perspectivas.Qualquer gaúchopobre, semarrimonem local definidoparaviver, é um índio-vago. Essa imagem se origina da memória do abandono dos aborígines doRioGrande do Sul, depois da destruição das reduções,aldeamentos guaranis organizados pelos jesuítas no século 17.

Caiba talvez informar que “aquele cerro” é o mítico e lendário Jarau. Ali teve início a estirpe gaúcha, segundo nos conta Blau Nunes, em A salamanca do Jarau,naconcepçãodeLopesNeto.Blauéonarrador,quesetransformounumadasfigurasprototípicasdogaúcho.Paratornaraindamaisclaraanoçãodotermoíndio-vagocomoéusadonoromancedeCyroMartins, lembre-se queAlegrete divide a regiãodo cerro comQuaraí,local de fala no narrador de Estrada nova.Porconsequência,opeão,aoabandonar o ponto de origem, pratica o ritual da errância gaudéria, de índio-vago.

Caiuá, o poder da palavra, segundo o poema Ava-nheém (p. 16) de Luís Felipe Azevedo, é que mudou o destino dos aborígines ancestrais dos gaúchos.

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“Redução colonizadora” foi expressão desconhecida na cultura ameríndia.Elaveionavozdosjesuítas.Comela,Nhandeci,aMãeNatureza,começoua fenecer.

Sepé Tiaraju, romancedosSetePovosdasMissões, é aobracomqueAlcy Cheuiche dá novo relevo ao herói histórico e mítico-lendário que até hoje animaonativismo sul-rio-grandense.No romancedeCheuiche, afiguradeSepécomeçaanascerquandoumjovemholandêssefazjesuítaeparteparaaAméricadoSul.Ojesuítaoeduca,oprotegeeterminadecriá-lo,porqueficaraórfão.EmSepé Tiaraju,Sepétemdescendência.Aí,comon’O Uraguai, revela-sehábilpolítico,homemdeaçãoeguerreiro.Movem-noabuscadealternativasaseupovo,alutacontraaprepotênciaeainjustiçaeumprofundosentimentodeharmoniaparaaexistência.Comon’O Continente, é também habilidoso nas artes e igualmente domina os idiomas que os dirigentes missioneiros co- nheciam: o latim e o espanhol. Em Sepé Tiaraju, a imagem do índio se fortalece eseentroncacomaconstruçãodomito,noveioliteráriod’O Continente.

FidélisDalcimBarbosaparticipadessa construção imagética indígenapara o imaginário dos gaúchos sobre seus ancestrais aborígines. Luís Bugre é o título da novela.A carência da espécie literária novela em relação aoromancenãopermiteaoautoranáliseaprofundadadamalsinadahistóriadopersonagemprincipal,quedátítuloàobra.Aindamenino,Luísépilhadocomoutros(índioscoroados)emataqueàplantaçãodeumafamíliadeimigrantesalemães.Nafuga,fere-seenãoconseguemaisandar.Oscolonosalemãesnãoo acolhem. Ele acaba sendo recebido (e, daí em diante, criado) por uma família de imigrantes portugueses. Jovem ainda, abandona o local em que foi criado para nunca mais voltar. Já homem, em determinada oportunidade, em que um paideumafamíliaalemãsaiemviagem,eficamapenasamulhereocasaldefilhos,eleosvisitaparaconfirmaraausência.Apartirdisso,combinacomoutrosíndiosumassaltoacasa.Elenãoseencontraentreosassaltantes,quepilhamapropriedadeeincendeiamcasasegalpõeselevamprisioneirosostrês.A mulher acaba assassinada com crueldade. A menina é escravizada e depois enviada a outra tribo, como esposa de um chefe. Mais de um ano depois do assaltoacasa,ojovemconsegueevadir-sedatriboqueoaprisiona.Érecebidoe albergado por gaúchos, numa estância local. Algum tempo depois, consegue reencontraropai.Jádoente,ohomemfaleceemseguida.Damenina,nãosetem mais notícia. A novela termina assim.

Eisporque,portanto,épossívelfalaremcarênciasanalíticas.Anovelanãodeixamuitosindíciosparaquesecompreendamosmotivosdesseódio.Quemsabe bastasse lembrar que o protagonista é índio, e as pessoas, que sofrem as violênciasaparentementeincompreensíveisqueeletramou,sãobrancas.Luísas considerava orgulhosas. (A narrativa informa que o imigrante é descendente

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de linhagemaristocrática alemã, arruinada.Na introdução, informa-se quea narrativa se desenvolve a partir de fato que o autor conheceu, relatado oralmente.)Asherançasculturaiseossentimentosatávicossãomaisfortesnoíndioqueaeducaçãopostiçaqueselhepretendeudar.Porconseguinte,ficamum e outros injustiçados e incompreendidos.

Nãotivemos,noRioGrandedoSul,literaturaindianista.Porliteraturaindianista, entende-seaprodução literária românticaqueprocuroupenetrarnas culturas aborígines brasileiras e enaltecer-lhes valores e defender-lhes a dignidade. O índio é, nessa literatura, o modelo do homem local, brasileiro (americano, como se dizia então, com correta consciência), em alusão àsdiferenças entre as Américas e a Europa dominadora. No Rio Grande do Sul, o protótipo foi o gaúcho, como, de modo geral, ainda o é. Na literatura sul-rio-grandense, o gaúcho assumiu o lugar do índio.

Otrabalhodelevantamentodematerialsobreaexpressão(principalmenteoral), que Lopes Neto realizou, permite que se vislumbrem, na oralitura, algumasmanifestaçõesdaculturaameríndialocal.Alémd’O lunar de Sepé, que o autor pelotense tratou como lenda, é possível incluir o conto de base lendária A mboitatá, como integrante desse acervo.

Jánotítulo,atravésdoartigodefinido,sepercebequeosubstantivomboitatá é feminino. Trata-se de uma cobra: na língua original, mboitatá significacobradefogo.OestudodeAurélioBuarquedeHollanda,naediçãoaquiempregadadas Lendas do Sul,demonstramodificaçõesqueotrabalhodoautorprovocousobreformasanterioresdotexto.Valedizer:nãoépropriamente,nosentidorigoroso, uma lenda simplesmente levantada e montada. Esse procedimento, aliás,nãoéexcepcional.

Tornou-senecessáriaessaintroduçãosobreaconstituiçãodaslendasparadestacar o fato de que as (lendas) indígenas, pelo menos entre nós, sofreram, emgeral,algumtipodetransfiguração.Nocasod’A mboitatá (p. 281-286), o caráter oral da origem e o tempo se encarregaram de transformá-la em Boitatá. O próprio título (boitatá) é em geral concebido como masculino (a lenda do boitatá). De mboi, cobra, virou boi (animal bovino). Isso levou a narrativa a outrasvariantes.Apartirdessefato,ocorreramváriastransfigurações.Nolugardecobradefogo,apareceoboi,cujosolhossãodefogo,comoseconstataemalgumasversões.Asemelhançadossubstantivoseadescriçãodacobra(que comia olhos e por isso virou cobra de luz) permitiram transferênciasde significação e de formas.Dessemodo, a história de origemguarani foiabsorvida pela cultura geral do Estado. A língua empregada oralmente pelos gaúchos brasileiros e os que lhe deram escrituras transformadas retira- ram,nalgumasvezes,anoçãodaorigemdanarrativa.EmgeralaspessoassereferemàA mboitatá como lenda gaúcha, apenas.

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O conto de base lendária A salamanca do Jarau, outro texto fundamental doacervoquenoslegouLopesNeto,podeserlidocomooGênesedosgaúchos.No final da narrativa, saem libertos da furna que os aprisionara, duranteduzentos anos, a jovem de origem árabe, que nos chegou com os espanhóis, e o primeiro gaúcho.

Ainda uma vez, a velha carquincha transformou-se na teiniaguá... e a teiniaguá, na princesa moura... a moura, numa tapuia formosa;... e logo o vultodefacebrancaetristonhatornouàfiguradosacristãodeSantoTomé;osacristão,porsuavez,numguascadesempenado...(p.322).

Em Porto Alegre, talvez a mais marcante das lendas dos primeiros habi- tantes do local seja a de Obirici. A narrativa, como muitas de origem indígena, focalizaumahistóriadeamor.ObiricitemfimsemelhanteaodeLindóia.Ajovem Obirici, apaixonada, declara seu amor ao amado. Ele, porém, tinha já esposa.Emdúvidaentreambas,solicitadisputadehabilidadescomflechasentreelas.Obiriciperde.Magoadaesofrendo,pedeentãoaTupãquealevedo mundo, no calor do próximo sol ou sob a carícia do luar da primeira noite. Das lágrimas dela, nasce um curso de águas puras. Ao amanhecer, o corpo de Obiricinãoestámaisnolocal.Ibicuiretã,ouorioquecorresobreaareiaouágua que corre sobre pó, foi o que restou da jovem.

Há pouco mais de trinta anos, no entanto, o córrego, que aparece na lendacomoIbicuiretã,foisoterradoparaconstruçãodeumcentrocomercial(naturalmente, dito em língua inglesa), depois de ter-se transformado em esgoto a céu aberto.Apenasonomedobairro lembraonome Ibicuiretã–Passo da Areia. Mais uma vez, portanto, apagam-se os traços das culturas indígenas.Entreeles,apoéticanomeação,característicadasnomenclaturasaboríginesaoslocaiseacidentesgeográficos.(Aformaameríndiadeconstruiro discurso marca-se por linguagem imagética, caracterizada por metáforas e comparações,àsvezessutis.)

A lembrança deObirici ficouna lenda e na estátua de bronze, que arepresenta de braços erguidos na solicitação aTupã.Em tradução livre, oIbicuiretãfoitambémrenomeadocomoocórregodaslágrimas.

Em O tatu de Donaldo Schüler, uma das imagens do tatu, o homem da toca, o submetido, é a do índio (p. 13-14):

O tatu era o último representante de uma tribo tupinambá. Os tupinambás caçavam, pescavam, se banhavam em águas límpidas, brincavam, dormiam muito e sonhavam mais ainda. Então vieramosfilhos damandioca.Derrubaramas árvores, comeramas aves, estouraram o ventre dos peixes com dinamite, tacaram fogo nas aldeias, adubaram a terra com carne de índio, estupraram as índias.

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Issofoiemoutrostempos.Nãorestammuitosvestígios:algunsmachadosde pedra, urnas de barro com esqueletos e o Tatu.Tinham matado os seus parentes e o seu povo. [...] Tinham lhe roubado as crenças e a língua.

Antesdasconclusõesfinais,aceitemosquefaltaumolharquegeralmentese pretende mais aproximado ao mundo concreto-sensorial, quase sempre chamado de realidade. A literatura mesma vai além disso. Ela atinge o real, queCarlosFuentesentendecomoforjadodaconjugaçãodarealidadecomoimaginário social.

A guerra dos bugreséumanarrativaproduzidasobinfluxosdochamadode romance-reportagem, que vigorou, no Brasil, acentuadamente nos anos setenta e oitenta do século 20. É trabalho dos jornalistas Carlos Wagner, Humberto Andreatta e André Pereira. A obra pretende pôr um pouco de luz sobre a história do povo caingangue do Rio Grande do Sul. Segundo a obra, “alutadopovocaingangueéalutapelapossedaterra”(introdução).Talvezse pudessetambémdizerquesetratadabuscadereapropriaçãodaterraquelhes foi usurpada. Os capítulos da narrativa apontam ao anti-herói perdedor. Her- deiras de Sepé e de outros heróis aqui lembrados e doutros esquecidos para sempre, asnações indígenas, por todoo territóriodoBrasil, têmemPedroMissioneiro“umespelhoemqueseolhar”,comoselêsobreadescendênciados gaúchos(ouseja,dospobres).IssoselênopoemaMartín Fierro (estrofe 1167), noepisódioemqueogaúchoaconselhaosfilhosanãoseguiremseuexemplo.PedroMissioneiromorredegoladopelosirmãosdeAna.Pagacomavidaoamoreaaudáciadeter-seaproximadodeumabrancadeascendênciaaçoriana.

Como se pode observar, o ponto de chegada do itinerário dos personagens índios protagonistas é o isolamento ou a morte violenta, provocada e executada pelos brancos. Todos os casos apontam ao ocaso das vidas e das culturas originais. A literatura brasileira que focaliza o índio do Rio Grande do Sul tem demonstradoconstantepreocupaçãocomacondiçãodeleecomadefesadesuapermanênciacomoculturaememória.

Descendente dos primeiros habitantes da região, o gaúcho índio-vagoconsolidapermanentementeoêxodosemretorno.Refaz,emritualforçado,atrilha de quem se usurparam as terras e de quem se sepultam constantemente asreferênciasculturais.

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CAMARGO, Dilan. Tema de Ana Terra e Pedro Missioneiro. In: CCNRS. Programa, poemas, informações. [Libreto.] Uruguaiana: 12oCalifórniadaCançãoNativadoRioGrandedoSul,1982.CHEUICHE, Alcy. Sepé Tiaraju.OromancedosSetePovosdasMissões(1978).3.ed.PortoAlegre: Sulina, 1984.CORONEL,Luiz.Temademarcação.In:CCNRS.Livros de poemas e informações. [Libreto.] Uruguaiana:5ªCalifórniadaCançãoNativadoRioGrandedoSul,1975.DANNEMANN, Fernando K. Obirici, lenda de Porto Alegre. Disponível em: <http://recantodasletras.uol.com.br/resenhas/416785>.Acessoem:29ago.2008.FUENTES, Carlos. La nueva novela hispanoamericana. México: Joaquín Mortiz, 1969.GAMA, J. Basílio da. O Uraguai (1769). Obras poéticas de Basílio da Gama.Ensaioeediçãocrítica[por]IvanTeixeira.SãoPaulo:Edusp,1996.HERNÁNDEZ, José. El gaucho Martín Fierro y la vuelta de Martín Fierro (1872). Buenos Aires: Campano, 1968.HOLLANDA,AurélioB.de.Introdução,variantes,notaseglossário.In:LOPESNETO,J.S.Contos gauchescos e Lendas do Sul (1949). 2. ed. Porto Alegre: Globo, 1961.LOPESNETO,J.Simões.LendasdoSul(1913).Contos gauchescos (1912) e Lendas do Sul. 2. ed. Porto Alegre: Globo, 1961.MARTINS, Cyro. Estrada nova (1953). 2. ed. Porto Alegre: Movimento, 1975.SCHüLER, Donaldo. O tatu (1982). 4. ed. Porto Alegre: Movimento, 1986.TEIXEIRA, Ivan. Epopeia e modernidade em Basílio da Gama. Obras poéticas de Basílio da Gama.SãoPaulo:Edusp,1996.VERISSIMO, Erico [L.]. O Continente (1949). 2 v. 2. ed. Porto Alegre: Globo, 1962.WAGNER, C.; ANDREATTA, H.; PEREIRA, A. A guerra dos bugres.Asagadanaçãocain- ganguenoRioGrandedoSul.PortoAlegre:Tchê,1986.

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3 Estatuária missioneira:

representações de fronteira Tau Golin

Jacqueline Ahlert

Asimagensforamgrandesmediadorasdoprocessodeevangelizaçãodospovos indígenas na Província Jesuítica do Paraguai, que, além de territórios que correspondem atualmente a Paraguai, Argentina, Uruguai e Brasil, ocupou emtornodetrêsquintosdoestadodoRioGrandedoSul.Foiatravésdelasquesetraduziugrandepartedosdogmascristãos.Primeiramente,instrumentosde persuasão; depois, suportes de expressão damestiçagem.As imagens,construçõeshíbridas,inscreveramocatolicismonamitologiaguaraniapontodeestenderadevoçãoaossantos,aCristoeàVirgemparadentrodocotidianomissioneiro e, em particular, para o culto doméstico, individual, adentrando e recriando-se no espaço da subjetividade.

Com a experiência reducional, os índios guaranis2 ingressaram num processo de aculturação irreversível.A relação entre índios emissionáriosfoiconstruídanasucessãoenacombinaçãodeambosostemposhistóricos,definida pelo equilíbrio de competências, pelo exercício da autoridade epela negociação no domínio do cotidiano.Perpassada por aproximações edesconfianças, deu-se a partir desse amploprocessodenegociação, que seexpressoudiretamenteoupormeiodamanipulaçãosimbólica.

O projeto colonial explicava-se pelas normas culturais, políticas e educacionais monárquicas, e a Companhia de Jesus, nascida no ambiente da Contra-Reforma,3 catalisou as novas necessidades religiosas e sociais do período.A concepção de cristandade naAmérica ganhou conotação se- mântica,qualidadequedefiniaos limitesdepertencerounãopertencerao gênerohumano.Cristãocaracterizavaumconceitoétnico,maisquereligiosoeético,aindaquenãoexcluísseestasdefinições.“Cristão vinha a se contrapor 2 Apopulaçãodasreduçõescontavacomumamaioriadeíndiosguaranis,aindaquehouvesseoutrasetniasindígenasinseridasnoprocessomissional.Ocorria,alémdisso,umadiversificaçãodosguaraniscoloniaisentre si. No território onde atuaram os missionários encontravam-se, por exemplo, os Tayaobás, Guayaki, Tapes, entre outros que são classificados comoGuarani pela historiografia (SANTOS;BAPTISTA,2007, p. 241). Esses grupos compunham, minoritariamente, uma parcialidade da diversidade cultural no desenvolvimento e complexidade dos espaços reducionais.

3 AOrdemdosJesuítasnãofoiaúnicacriadanaprimeirametadedoséculoXVIcomointuitodecon- tribuircomoprocessoreformadordaIgreja.OsTeatinos(1524),osIrmãosMenoresCapuchinhos(1528),os Samascos (1537) e os Barnabistas (1539) constituem-se em outras ordens religiosas que podem ser consideradas nascidas reformadas.

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a índio, a natural,cristãoseramtodososeuropeus”(MELIÁ,1988,p.25).Consequentemente, a cultura indígena foi percebida enquanto contraste do ideal políticoehumano,eaintençãode“missão”vemcarregadadeuma“vontadederedução”totalizadora,quecingiuavidapolíticaehumana,condiçõesparaaadoçãodaféedavidacristã.

As principais implicações damissionalização foram a sedentarizaçãodoguarani,asubmissãoaosmonarcasespanhóiseàIgrejacatólica,anovaconcepçãodetempoedetrabalho,comregraspreestabelecidas,oabandonoà poligamia, à antropofagia e às práticas religiosas ancestrais; mutaçõesdecorridasdeassimilaçõesecircularidadescontínuasentreloyolistaseíndiosreduzidos,semquehouvesseasubstituiçãodoethosindígenapelocristão.

O espaço destinado à conversão do indígena era determinado pelogovernadordoParaguai,conjuntamentecomovice-reidoPerunaspossessõesdas Índias ocidentais. Conforme este espaço era vivenciado, comportando uma arena de evangelização, tambémpassou a comportar simbologias que nãopassavampelosdomíniosdasautoridadespolíticas.Areduçãoconverteu-seemespaçosagrado,alimentadopelajustificativateológicadeorigemjudaico-cristã,quepôdesercomparadacoma“TerradaPromissão”pelosjesuítaseidentificadocoma“Terrasemmal”dosguaranis.

Foram adotadas diferentes formas para transformar material, religiosa e socioculturalmente o imaginário e a cultura indígena, processo no qual os ícones religiosos tiveram papel preponderante.

Osjesuítasforamosprimeirosaformularemumaeducaçãopautadanaortodoxia pós-Reforma e os grandes incentivadores do Concílio de Trento. Como educadores, os discípulos de Santo Inácio sistematizaram o processo educacionaldospovosdaAmérica,passaramaospoucosdadesestruturaçãodo mundo indígena, de aldeamentos de clãs, para o universo simbólico,impondo uma prática religiosa assentada em imagens que não pertenciamao aparato indígena de compreensão domundo. Introduziram ornamentossacros, substituíram cultos, festas e ritos de passagem. Ao cabo, evoluíram paraumasociabilidadedecidadessincréticas,deincorporaçãoeredisposiçãodas famílias extensivas e nucleares, privilegiando a praça central, fusionando aespacialidadeeuropeiaeaaldeã.

A “conjugaçãode acervos”4 decorrida dessa conjuntura está além das interpretaçõescômodasprovindasdenoçõesdesincretismo,oudadescriçãodosprodutosdarelaçãoentrepovoscomplexosesociedadesmenoshierarquizadas.Osentidoqueesseelementopodeoferecerestánasdiferentesrepresentações 4 Conceito utilizado por Janice Theodoro, in: América barroca:temasevariações. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira-EDUSP, 1992.

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entre o material e o imaginário construído pelos níveis de relacionamento socioculturais que sefizerampresentes no contexto e que confluíramparaa concretização de um estilomissioneiro de arte. Suas características sãooriundasdeumaraizmestiça,emqueaintervençãodoguaraniintroduziuosíconescristãosnahistoricidadequedefineaformaçãodeumestilo,construídoapartirderessignificaçõeseinterpretaçõesfortementemarcadaspelaculturaancestral anímica guarani.

Ser índio – ser índio cristão

Harnish,naintroduçãoàobraViagem às Missões Jesuíticas e Trabalhos Apostólicos – narrativas realizadas pelo padre Sepp, em 1691 – delineia o drama queproveio coma “descoberta”:Quando a raça branca entrou emcontatocomospovosprimitivosdaAmérica,viu-sediantedasduasproposiçõesdeum dilema.O primeiro era: chacina emmassa! E o outro: cristianização!(HARNISH, in SEPP, 1943, p. 5).

Mas ao embate pode-se somar um dilema distinto, o de reconhecer o outro,pautarasdiferençasqueosseparavamdocristãoocidental;hierarquizaradisparidadeparaafirmarasuperioridade.FoioqueVainfaschamoude“oembate com a própria sombra” (VAINFAS, 1995, p. 23),5 um processo de natureza dupla, no qual o desvelamento de alteridade ameríndia parece ter implicadoa(re)construçãodaidentidadecristãocidental.6

O desconhecido foi animalizado e demonizado, seja nas narrativas dos rituais antropofágicos de Hans Staden, seja nas teses sobre a inferioridade e decadênciadoameríndioqueseperpetuaramnaEuropa.Aproduçãoimagináriafuncionouàmaneiradeumreferencial,cujosentidoestarianaconfirmaçãocríticaeaomesmotemponaconsciênciadafronteira,dooutro.

Os ameríndios ganharam feições e atributos há muito presentes noimagináriocristão.Se,deumlado,oscolonizadoresosconsideravambárbarosincapazes de receber a conversão, reforçando, assim, a necessidade deescravizá-los,ossacerdotesprocuravamrepresentá-loscomogentios,cristãosem potencial, pois, do contrário, a catequese estaria ameaçada. Seus relatos dificilmentedemonstramirreversibilidadedoscostumes indígenas,cabendo 5 Em seu livro A heresia dos índios, Ronaldo Vainfas sugere que foi Michel de Certeau, originalmente, queviunasrepresentaçõeseuropeiasdoNovoMundooesboçardeumsaberetnológico,ainvestigaçãoque reconheceu o Outro cultural: “Certeau denominou essa proto-etnologia quinhentista de heterologia, limiardeumsaberedeumolharantropológiconaculturaeuropéia,cientedasdificuldadescomquesedeparaohistoriadorcontemporâneoparaextrairdosescritoseuropeusainformaçãohistórico-etnográficadesejada” (VAINFAS, 1995, p.24).

6 Para Gambini, na nova terra os europeus encontraram materialmente projetadas todas as suas fantasias inconscientes. GAMBINI, Roberto. O espelho índio: osjesuítaseadestruiçãodaalmaindígena.RiodeJaneiro: Espaço e Tempo, 1988, p.76.

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aospadresatarefadetransformá-losemfiéisaliados.Veja-seodesígniodoqual se inoculou o padre Montoya: “pretendo explicar a força do Evangelho, cujaeficáciasevêemamansarleões,domesticar tigreseemfazerdeferasselváticas homens e até mesmo anjos” ([1639], 1985, p. 168).

OspadresdaCompanhiadeJesusnãodispensaramoarquétipoaristotélicopara descrever os nativos.7 O estereótipo do índio bárbaro carregava, porém, outros sentidos. A monstruosidade dos ameríndios valorizava o esforço dos padres e revelava ao mundo o empreendimento colonial dos espanhóis.

ApedagogiajesuíticadaconversãoestavabaseadanospreceitosdeInáciode Loyola, fundador da Companhia. Loyola deixava claro a importância da utilização de imagens como instrumento para a catequização. Os jesuítaschegaramàAmérica convencidosdopoder persuasivodos ícones cristãos.OestiloartísticoimplantadonasMissõesporessedirigismonãofoiapenasum reflexo ou um prolongamento do estilo artístico (barroco) europeuvigente à época, foramempregados todos os artifícios recomendados peloConcílio de Trento. Amparados por intelectuais e políticos, os religiosos eram os representantes – convidados inicialmente por Felipe II, rei da Espanha, parafazerotrabalhodeevangelização–datentativadesubmeteraojugoaspopulaçõesnativassembeligerância,apartirdaconquistaespiritual.

Aexperiênciamissionáriacomosguaranisocorreuatravésdeumlongoprocessohistórico,queduroude1609a1767,ligandoosindígenasàdefesadefronteiraseaumprocessodeliberadodetransformaçõesculturais,graduaiseconstantes,queprovocaramuma“adequação”históricaoriginadanasprópriascondiçõesdocontextohistóricolocal.Oprocessodeaculturaçãofoicingidopelos princípios de circularidade e hibridismo, quer em suas estruturações,quernaamplidãodeseusresultados.Destarte,“osfenômenosdeaculturaçãodependemnãoapenasdasestruturasondeestãoinseridos,eacujalógicaprópriase submetem, mas também da práxis que escolhe os elementos adotados e lhes dásentido,emrespostaaumasituaçãosempresingular”(WACHTEL,1987,p.126).

Comainstalaçãodasreduções,asociedadeguaranitevedeassumirumtempolinear,eumahistóriaconsideradaapartirdasintervençõespessoaiseindividuais,sobretudoparaentenderaspectosdareligiãocatólica,vistoqueCristonãoviveuemillo tempore–naexpressãoutilizadaporEliade–,comoseus Ancestrais Míticos, mas num tempo com datas e contemporaneidade com homenscomuns,num tempoqueera irreversível.Nessaconcepção,nãose 7 NaprimeirametadedoséculoXVI,ascrônicasportuguesasnãoconcebiamoíndiocomodemoníaco.

O tema tornou-se recorrente a partir dos escritos jesuíticos, sobretudo no teatro de Anchieta. Ver: RAMINELLI, Ronald. Imagens da colonização: arepresentaçãodoíndiodeCaminhaaVieira.RiodeJaneiro: Jorge Zahar, 1996.

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imagina “apenas a existência temporal dohomemcomouma repetiçãoad infinitum de certos arquétipos e gestos exemplares, mas também como um eterno recomeço” (ELIADE, 1996, p. 68). Com isso, o guarani encontrou dificuldadeparareproduzirseumodeloculturalatravésdarepetiçãodolegadodos seus Heróis Culturais. Assumindo o tempo linear, teve de substituir os modelos míticos pela fé.

Montoya, lido com a ressalva de seus preconceitos, fornece numerosas informaçõessobreoshábitosculturaisguaranis:

Viviam, e hoje ainda vivem, os gentios empovoaçõesmuito pequenas(...),masnãosemgoverno.Tinhamelesosseuscaciques,emquetodosreconhecem nobreza herdada dos seus maiores, com o fundamento de que haviam tido vassalos e governado o povo.Muitosseenobrecemcomaeloqüênciadofalar,poistantoestimamasualínguaeécomrazãoqueofazem,porquantoédignadelouvoremerececelebrar-se entre as de fama (...). Servem-nos seus plebeus, fazendo-lhes roça, semeando e colhendo as safras, construindo-lhes casas e dando-lhes suasfilhas.

Referindo-seàpoligamia,explica:Conhecemos a alguns caciques, que possuíam até 15, 20 e 30 mulheres. Asdoirmãofalecidotomava-asporvezesoirmãovivo(...).Nessesentidotiveramumrespeitomuitograndeasmãeseirmãs,poisnemempensamentotratam disso.

Avaliandosua religiosidadeeanoçãodeDeus, apartirdaconcepçãocristã:

Chegaram os guaranis ao conhecimento de que havia Deus e ainda, em certo modo, de nele haver unidade, ou que era um só Deus. Colige-se tal nome que lhe deram, que é “tupán” (...). Nunca tiveram eles ídolos, embora o demônio já lhes estava impondo a idéia de venerarem os ossos dealgunsíndios,queemvidahaviamsidomagosfamosos(MONTOYA,1985, p. 52-53).

Em seus relatos, assim como nos de outros padres e, também, nas CartasÂnuas,percebe-seaimportânciaatribuídaàpráticadapoligamia,docanibalismo – “ao cativo colhido em guerra, engordam-no e matam-no com muita solenidade” –, eaoxamãnismo–“ministrosdodemônio,osmagosefeiticeiros,eramapesteearuínadasalmas”(MONTOYA,1985,p.104).Emváriasdescriçõesque reproduzemaoposição indígena, os aspectos citadosconfundem-secomtradição.

Houve elos de identificação que passaram pela mitologia para con- cretizarem-secomaorganizaçãoimplantadapelosjesuítas.Acrençaancestral

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numheróiredentorcomoPayZumé–identificadopelosreligiososcomoSãoTomé –, por meio do qual chegariam ao paraíso, análoga com a busca guarani pela Terra sem Mal, “espaço e tempo sagrados, narrada nos cânticos, exprimia ocomeçoeofim,quesesucederiamapontodeseconverteremeternidade”.Chegaraessetriunfosignificaria,assim,paraosíndios,omomentoemquetodoshaveriamde“voaraocéu”,achegadaaumlugarondenãocareceriamde“mantimentos ou víveres”, “comeres e beberes” (VAINFAS, 1995, p. 106).

Para o guarani, a redução representou também um acordo político,após tantos anos de guerras desastrosas contra as bandeiras luso-brasileiras equipadas com armas de fogo e contra as encomiendas8 dos espanhóis. Asustentação de sua liberdade foi uma exigência aproveitada pelosjesuítas, ao explicarem aos índios que a vassalagem direta ao rei da Espanha9 era o único meio para se atingir esse objetivo.

Arno Kern se encontra entre aqueles autores que destacam que pela açãocatequizanterealizou-seumprocessodemudançaculturaldirigidapelosmissionários, apartirdamutaçãodoanimismoparaomonoteísmocristão.Entretanto,essatentativapodenãotersecircunscritonoseutotalalcance.Osentidodealgumaspráticaspodetersidomalinterpretado,comoacomunhão,aconfissãoeanoçãodepecadoindividual,ocastigo,aflagelação.Adevoçãoestavamediadaporcompreensõesestabelecidasatravésdeconcepçõespagãs,dificilmenteporumardorcristãoaindaimaculado.

O ritualismo dos guaranis e a força de seu misticismo não foramsuprimidos nas reduções,mas dirigidos para outrasmanifestações cristãs.Deu-se certo aproveitamento da realidade antropológica guarani, reassumida e potencializada como base na nova ordem reducional. Foram inseridos nessa organizaçãosocioculturalepolíticaosconhecimentosagrícolas,artesanaisea defesa militar. A estrutura social das aldeias foi incorporada ao Pueblo de Índiosdasreduções.Algumasconcepções,porém,mostravam-semutuamenteexclusivasentreocatolicismoeascrençasguaranis,entreelasadaligaçãoentre o destino da alma e a responsabilidade moral do indivíduo.

No catolicismo, o nande reko (modo de ser) passou a ser associado ao pecado.Asantigastradiçõesdeviamserabandonadas,sendoquepertenciamao

8 EncomiendaseraumsistematransplantadodaEspanhaeadaptadoàAmerica,noqualopatronotinhaaobrigaçãodedoutrinarosíndios,garantindo,emtroca,suaforçadetrabalho.Utilizada,sobretudo,naextraçãodeerva-mateenostrabalhosdemineração.

9 AsMissõesJesuíticas,segundoosestudosrealizadosporKern(1982),estavaminseridasjuridicamenteemumacomplexaestruturapolítico-administrativa,cujasinstituiçõesmaisimportanteseramoConselhodasÍndias,aCasadeContratação,aJuntadeGuerradasÍndias,osVice-Reis,asAudiênciasReaiseosGovernadores Provinciais. Agiam sobre os trinta povos através dos Governadores locais do Paraguai e doRiodaPrata,queestipulavamtributoseconvocavamastropasguaranisparaaprestaçãodeserviçosmilitares e de obras públicas (KERN, 1982, p. 260).

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tempoemquenãoseconheciaa“sabedoriadivinacristã”.Entretanto,houveumdesencontrodecategoriasrelativoaosignificadodasacralidadenareligião,e “extirpar idolatrías se hacía en muchos casos con la brutalidad y la crueldad con que se corta la oreja o se saca los ojos a un supuesto criminal” (MELIÁ, 1997, p. 130).

Os“feiticeiros”nãoencontraramadequaçãonanovaordemsociorreligiosa.Elesforamosexpoentesdaresistênciaguaraniàsreduções.Ameaçadospeladegradação de suas tradições sociais e principalmente religiosas, criavamrespostas proféticas e de expoente força anímica para os abusos coloniais, numa tentativademanutençãoidentitária.Passaramaorganizarcerimôniasemqueserealizavamos“batismosinvertidos”,banhando-lhesospés,nãoacabeça–como faziam os jesuítas –, ou ainda, raspando-lhes a língua ou lavando-os com águafervente.Osdesbatismosobjetivavamremoveracontaminaçãocristãdahóstia consagrada.

Práticaspagãsecristãsocorriamconcomitantemente,semquehouvessealgumtipodeconflitopsicológicoentreosguaranis.Especialmenteporque,ao lado da estruturamissioneira, continuaramexistindoos clãs.Os índioscristianizados continuaram se relacionando com os grupos tradicionais, nos quais tinham parentes e se reconheciam etnicamente. Em muitos casos, o guarani entrava e saía temporariamente dos dois espaços.

Ao traduzir o catolicismo em língua guarani, os jesuítas abriram espaço paraatraduçãoguaranidocatolicismo,daíresultandoumanovalinguagem,metáfora para todo o processo aculturativo. O maracá, igualmente, faz apolo- giaàconstruçãodeum terceiroelemento,nemeuropeu,nemguarani,masmissioneiro. Esse instrumento, dotado de uma santidade e força mágica que vemdesua“voz”,comojádefiniramalgunsjesuítas,símboloritualguarani,foiincorporado como instrumento musical na liturgia missioneira – como mostra o friso dos anjos músicos na igreja de Trindade (FURLONG, 1962, p. 482) –, mas nesse momento já havia perdido sua origem ritual e já se encontrava desligadodesuasvirtudesxamãnicas.

Em relação às assimilações e associações,Schadenobservouque aosdiferentesespíritosdareligiãotribalcorresponderiam,deumlado,osanjoseos santos e, de outro, os atributos de Deus apresentados pelo missionário, que seriamfacilmentepersonificados,umaum,levandoaumdesdobramentoemoutras tantas divindades independentes: o Criador, o Onisciente etc. (1974, p. 105).

Os guaranis tornaram-se culturalmente híbridos – expressavam um tipo deambivalênciaporvezesmaisdisjuntivaqueaprópriarealidade/cotidianoemqueviviam.Eramindivíduosdefronteira,emduplosentido:ogeográficoe o cultural. Homens e mulheres com identidade deteriorada, dúbios entre a

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cultura ameríndia e a católica-europeia. Hesitantes entre as forças de Deus e de seus Ancestrais Místicos.

Considerandoadesestruturaçãoculturalpelaqualpassouoguaraniparaaaceitaçãodocristianismo,oconceitodesituação de fronteira parece o mais propício para a compreensãode umprocessoque foi dinâmico emediadoentre seus protagonistas. Pensa-se o guarani como agente e colaborador do processoreducional,equalizadopelaassimilaçãodenovascosmovisões,comaimportanteobservaçãodequeateologiaortodoxacristãfoitraduzidaparaalínguaguaranie,dessaforma,modificadaparaquefossepossívelalgumtipodeinterpretaçãoecompreensãoancoradasemanalogiasdareligiãoancestralguarani. Nesse sentido, coloca-se o indígena em uma elipse intermediária entre aabstençãodesuascrençaseaaquisiçãoeacompreensãorealdosdogmascristãos.Aassimilaçãosefezcombasenoscódigossimbólicospreexistentes,oqueimplicavaaperdados“purismosconceituais”cristãoseresultavanumareligiãohíbrida,ocatolicismoguarani,quesepodeidentificarpelacategoriade “missioneiro”.

Trata-se de um fenômeno histórico, relacionado com elementos de im- posição,interpretação,assimilaçãoeresistência,numprocessoquecolocouo guarani no entre-lugar, no espaço culturalmente híbrido, na situação defronteira humana.

Além dos desencontros dos tempos históricos, houve o embate dos distintos projetoshistóricos, dasdistintas concepçõesdedestino, as contradiçõesnointeriordasprópriasrelaçõessociais,olimiardeumasociabilidadequandodestituídadeautomatismosdareproduçãosocial,entreomundodomitoeomundodahistória.Anovalógicaespacialdessaorientaçãoimpõeadistinçãode níveis da realidade.

Homi Bhabha destacou a necessidade de passar além das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos na articulação de diferenças culturais.O que o autor chama de “entre-lugares”permiteoentendimentodenovasestratégiasdesubjetivação–singularoucoletiva–quedãoinícioanovossignosdeidentidade:“Énaemergênciadosinterstícios–asobreposiçãoeodeslocamentodedomíniosdadiferença–queasexperiênciasintersubjetivasecoletivas(...),ointeressecomunitárioouovalorcultural sãonegociados”.Demodoquenos“entre-lugares” se formam sujeitos, “nos excedentes da soma das “partes” da dife- rença” (2003, p. 20).

Assim, a fronteira se torna o lugar a partir do qual algo passa a se fazer presentenummovimentonãodissimilaraodaarticulaçãodinâmicanormatizada.Esse “algo” que, elaborado nos interstícios, formou um terceiro elemento de captação,quenãofoinecessariamenteconflituoso,porserdúbio.Avivência

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fronteiriçaconstrói-seemsituaçãodedualidadeedefricção,10 se oculta e se revelanessadicotomia.Nas reduções,o ladoda fronteiraqueconservouoanimismo,odosindígenas, tambémdefiniuaconvivênciaeoestranhoqueaprotagonizou,mesmoemnítidadesvantagem,permeouasrepresentaçõesesimulações.

Aconstanteintegraçãodeelementosdacosmovisãoguaraninasreduçõesrepresentaque a conversãodo indígenanão sedeudemaneirauniformeehomogênea.Oprocessodedeslocamentoedisjunçãonãototalizouaexperiência;foiantesmeiodeconstruçõessocial,históricaesimbolicamenteproduzidas.Fronteiras são espaços de involucramentos, de contaminações mútuas dasreferênciasoriginais,derupturas,deconflitosederecriaçãoderealidades.

Aexpressãomaterialquedásubstânciaàpeculiaridadedasituaçãodefronteira é a estatuária; expressão nas quais se moveram a representaçãoda interioridade guarani e a interpenetração dos acervos contatados. Asintensidades com que se apresentam aspectos culturais guaranis assimilados às obras variam, contudo, o que sobreleva não são as obras em si,mas areincidência e a intervençãodasexpressões de fronteira, em que a estética barroco-europeia mescla-se com as sensibilidades da cultura guarani como expressõesintersticiais.

A arte cumpre funções distintas nos diferentes grupos e é definidaem cada um a partir de esquemas de significados específicos. Os signosartísticosguaranis,paraalémdadecoraçãoplumária,estavamfundamentadosno geometrismo e no esquematismo presentes em suas pinturas corporais, decorações–pinturaseincisões–emvasoscerâmicos.ConformetestemunhouMontoya, “nunca tiveram eles ídolos, embora o demônio já lhes estava impondo aidéiadeveneraremossosdealgunsíndios”(MONTOYA,1985,p.52).Nooutro extremo, transplantado, estava o estilo artístico europeu, o barroco, com suascaracterísticasdedinamismo,suntuosidadeeornamentação.Expressãomajestosa e triunfal do dogma e do poder das monarquias absolutistas em paralelismo com a naturalidade sintética de traços geométricos de uma sociedade totalizadora e clânica.

As representações artísticas, para além dos limites impostos pelodirigismo europeu vigente nas oficinas de escultores, manifestam umaaderênciaoriginaldenovasnecessidadesinternasdeexpressão,estavamlongeda brevidade artística de uma cultura deslocada e epigênica.Aindaqueosmodeloscontinuassemcorrespondendoaoseuropeus,aexpressãoartística–representação–dissimulavaimaginários,confrontos,conflitoseadesões.

10Anoçãode“fricçãointerénica”épropostaporRobertoCardosodeOliveiracomoanoçãoapropriadaparao estudo da situação de contato. Cf. OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. O índio e o mundo dos brancos (A SituaçãodosTukúnadoAltoSolimões).SãoPaulo:DifusãoEuropéiadoLivro,1964,p.13-30.

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Aintervençãodaestéticaautóctoneemobrasdecunhoreligiosocristãoestava, potencialmente, atrelada a uma tentativa de vontade sincrética por partedoartíficeguarani, como intençãodeatribuir sentidoaoseu trabalhoe, especialmente, à sua utilidade diária de culto.A imagemdotada dessescaracteres poderia ampliar seu pertencimento ao universo guarani mestiço, sentidoconferidoporumartistaeumasociedadeemsituaçãode fronteira.Essaseriaanuançapelaqualaexpressãocriativa,emergidanosinterstíciosculturais, teria sentido dentro da existência. Sua concretude nãopode serconsideradaapenascomomanifestaçãoracionaleintencional,mas,igualmen- te, como imanênciade ícones referenciadosna existênciahistórica e tradi- cional.

Na fronteira, a representação conseguiu fundir as duas vertentes damodelagem do objeto sagrado: reproduziu as formas do ethos católico da iconografiadesantos,anjosedasagradafamíliacomoentalheesquemáticoguarani. Talvez o resultado antropológico transcendental desse processo tenha sidoacriaçãoeaampliaçãodeumaestéticamissioneirafugidiadoespaçoda “abadia medieval”, que compunha a cidade reducional, sob controle e vigilânciadojesuíta,paraasociabilidadedosquarteirõesclânicosdasmoradiasdos índios, além dos postos de guaranis nas estâncias, sítios destinados àagricultura e a ervais.

A ambiência barroca

En vez de hablar a su entendimiento, hablavan a sus ojos.

PadreJoséManuelPeramàs,1793.

Asrepresentaçõesbarrocasnasmissõesoperaramamplamentenoâmbitodadidática,comoinstrumentocatequizadoredeforçapersuasiva.Acenografiabarrocadeintençãototalizanteapreendeuateatralidade,asartesplásticas,amúsica,aarquiteturaeaestetizaçãodaspráticasreligiosas.

OestilodeartebarrocachegouàAméricacomo instrumentodidáticomediador da compreensão dos símbolos da religião católica romana porparte dos indígenas e no âmbito litúrgico-cultural do colonizador. No caso dosguaranis,alémdesupriradificuldadedecomunicaçãooralnosprimeiroscontatos, veio introduzir imagens a um povo destituído de ídolos.

Aideologiacontrarreformistaintroduziuefixouasformasmultifáriasdobarroco.Alémdeteraestéticadaconquista,seucomponentedecelebraçãodialogoucomoscotidianosdaspopulaçõeseuropeiaseestabeleceuinterfacescom as culturas animistas.

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Os jesuítas criaram cenários envolventes e exploraram a força mitológica e alegóricada imagembarroca.Acenografia catequizadora abrangiadesdeo planourbanístico das reduções até ritos festivos e religiosos.Houveumaproveitamento,porpartedosmissionários,dasafinidadesmísticasdocanto,dadançaedapalavrarezada,reinterpretadasnaslongasorações,cerimôniasfaladasenasteatralizaçõesfestivas.Eranecessário“despertar-lhesegravar-lhescomoaparatolitúrgicoexteriorumainclinaçãointeriorparacomareligiãocristã”(SEPP,1943,p.141).

O espaço da igreja, como lugar de culto, era complementado por uma série de marcos urbanos, cruzes, capelas, ermidas, colunas, que potencializavam as referências religiosas. Este conjunto materializava parte da produçãoarquitetônicaeartísticada redução.A identificaçãodosguaraniscomestasedificações, principalmente a igreja, era significativa, e não sem motivo.JosefinaPláescreveuque“enlaiglesiadelamisióndeSanMiguel,honrayorgullo de Doctrinas, trabajaron mil indios durante diez años” (PLÁ, 1975, p.75).Alémdeconstrutores,estavamenvolvidasnessatarefainúmerasoficinas:de escultores, pintores, oleiros, ferreiros etc. Os guaranis eram promotores da cenografiaconstruída.

A praça era o elemento organizador do espaço urbano, onde se concentrava o conjunto de atividades da comunidade. Essa função vinculava a cidademissioneiraàespacialidadedaaldeiaguarani,elementoincorporadoeadaptadonaredução.Conformeomotivocelebrativo,asintervençõesformavamsobreoespaçocentraldopovoadoumanovaeefêmeracenografiadearcostriunfais,altares portáteis, capelas domésticas, fogos,flores, plumagens, chamasdasvelas,tochas,incensos,toquesdossinoseoutrosmecanismosdepersuasãoedeslumbramento compositivos da mecânica comunicativa barroca.

Aperspectivade“redução”eratotalizadora,abrangendooespaçofísicoe,emumaperspectivatranscendentalteleológica,opsicológico.Aparticipaçãodos elementos que envolviam a praça – igreja, cemitério, cabildo, colégio, oficinas,vivendas,capelas–orquestrando-semedianteesseespaço,faziacomqueasideiasfundamentaisdadidáticabarrocadeparticipaçãoedepersuasãofossem,assim,levadasàculminação.

Aartemissioneirautilizadanadecoraçãodeigrejasecapelas,emaltarese nichos (externos e internos) era fundamentalmente anônima.Não haviainteresse em destacar nomes ou enaltecer esforços individuais, o que poderia fomentar a vaidadepessoal e desviar a razão essencial da arte, que estavaemseupotencialdidáticoeilustrativo.Asrarasatribuiçõesdecriaçõesnosrelatos de cronistas, que informam obras do padre Sepp, como o retábulo da VirgemdeAltoetting,doirmãoBrasanelli,autordoretábulo-mordeSãoBorja,epinturasatribuídasaVerger.JosefinaPlá(1975)citadoisnomesdeindígenas

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assinados.11umemgravuras,JuanYaparí,eoutroempintura,JoséKabiyú.Sãoexceçõesepodemreferir-senãoaoartista,masaalgumcaciqueimportante.

Oartista,emespecialoescultoreopintor,eraisentodetributaçãoedignodeadmiração,poisdavaformaaossantos,queseriamveneradosnocotidianodaredução.Ochamadoartesano mayormanejavaosagradoe,porsuasmãos,rudes pedaços de madeira transformar-se-iam em belas imagens da Virgem, de Cristoedossantos.Era,assim,investidodeumcarismaedignidadeindefinidos,mas presentes, “o artesanato era considerado uma espécie de nobreza, dentro dessaelitesãoasaptidõespessoaisqueregemaespecialização”(HAUBERT,1990,p.262).JosefinaPláchamouametodologiajesuíticausadanaescolhadosartesõesde psicología de la vocación.

Estatuárias da liturgia e do cotidiano

Asimagens,empregadascomomeiodeexpressão,persuasãoeentendimentode “crenças que seria difícil ou perigoso verbalizar” (GRUZINSKI, 2006, p. 224), estavam presentes em todos os domínios missioneiros como suporte docultoreligioso,oficialedoméstico.Figuravamnadecoraçãodosaltaresdaigrejaoudapraçaemmomentosespeciais,nascapelasdentrodareduçãoefora dela (nas estâncias), nas casas dos guaranis e dos padres, carregadas em viagens,entreoutras funções.Tambémeramconduzidaspelopovoquandodasprocissões.

Tamanho era o encanto causado pelas imagens que, segundo Haubert, naigrejadeSanIgnaciohaviaumaimagemdeSãoFranciscoXavier,cujascabeçaemãoseramdeceraeohábitodetecidoadamascado.Alieram“muitos,principalmente pagãos, os que nãoousamentrar na igreja por causa destaestátua”.Noentanto,àmesma imagemeraconferidacrençaambivalentee“uma velha vem orar todos os dias aos pés do santo para obter milho e cabaças; diantedetantadevoção,omissionárioordenaquelhedêemcomidasemprequeelaapareceràigreja”(1990,p.175).

Outra narrativa que revela as faces da compreensão da imagem e desuassugestõesparaosindígenasestánumadascartasquepadreSeppremeteaos confrades europeus, contando “uma história bem típica da ‘parvoíce’ dos índios”:

Uma de suas paroquianas abre o peito com uma faca, está prestes a morrer esóésalvapeloscuidadosdomissionário.ElacontaentãocomoaVirgemlhe apareceu e disse: “Da mesma forma que feri a mim mesma trespassando meucoraçãovirginal,você,minhafilha,peguesuafaca,abraoseupeitoe

11 Sepp refere-se ao índio “Inácio Paica” como músico distinto e habilidoso construtor de instrumentos musicais e armas (SEPP [1691], 1943, p. 234).

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liberteassimsuaalmadaprisão”.QualopasmodopadreSeppaodescobrirque esse ato horrível foi provocado indiretamente por um quadro de sua igreja que representava a Pietà:amãedeDeusestásentadasobacruz,eseucoraçãoestátrespassadoporseteespadasquerepresentamassetedores!A conselho dos outros missionários arranca imediatamente o quadro, bem como todos aqueles que poderiam parecer um tanto tristes... (HAUBERT, 1990, p. 200)

Emseugesto,premidapelatradiçãoanimista,aíndiaestavademonstrandoatênuefronteiraentreorealeosobrenatural.

Aanálisedosdocumentosdaépocaindicaqueasrepresentaçõesdasfigurasde Cristo e dos santos possuem peculiaridades no barroquismo missioneiro. Trata-sedaexpressãodevaloresespecíficos.Osantoeraopersonagemquecondensava o tipo ideal, um dos aspectos dominantes da didática barroca. As estátuas de santos eram “douradas e pintadas, vestidas com os mais ricos tecidos, coroadas de ouro ou prata, engastadas de madre-pérola, cobre, pedras preciosas. Há estátuas por toda a parte, de alto a baixo do coro, na arquitrave do altar-mor, nos endentes da cúpula, entre as colunas, em geral em tamanho natural” (HAUBERT, 1990, p. 194).

Adimensãodaparticipaçãodasimagensnocotidianomissioneiropodeser medida pela cifra que indica o inventário realizado em 1768 – ano da expulsãodosjesuítasdaAméricacolonialespanhola–,quandodeveriamexistir,nos Trinta Povos, pelo menos duas mil imagens, sem contar os retábulos, os oratórios, as alfaias e as pinturas que decoravam as igrejas, “algunos templos contaban con más de un centenar de esculturas” (GUTIERREZ, 1987, p. 39).

Pode-seaplicaràsimagensquecompõemoacervomissioneiroadivisãoem duas categorias: as que cabiam à presença litúrgica oficial, ou seja,participavamdadecoraçãodasigrejas,dacomposiçãoderetábuloseoratórios,ermidas, altares móveis, pequenas capelas; no segundo conjunto, encontram-se as de culto pessoal e doméstico guarani, antropologicamente incorporadas ao cotidiano.

Imagens de maior porte, de tamanho semelhante aos europeus ou maiores, tinhamcomodestino a decoração da igreja e a participação emmomentoslitúrgicosoficiais,emfestaseprocissões.Alémdessas,esculturasdemédioe pequeno tamanho compartilhavam do cotidiano indígena, prestavam-se aocultodoméstico emoratórios, simbolizavamapresençada fé cristãnascapelasdechácaraseestâncias,ondenãoestavampresentesoscurase,ainda,acompanhavam os guaranis como amuletos em viagens e guerras.

Há, nos remanescentes da estatuáriamissioneira, representações queexpressamoqueeranormaesaberparaosjesuítas;essastêmcorrespondênciatotal com o cânone estabelecido pela Igreja, possuindo os atributos, a postura

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eaindumentáriaiconográficaoficial.Há,também,dentreosremanescentes,imagens emque sepercebemcertas escolhasporpartedo artesão, o sabertécnico ambientando-se em breves detalhes, mas ainda ligado aos cânones, semadesvinculaçãodaobrigaçãoteológicaepolítica.

A miniatura incorporada ao cotidiano

FoiondeaIgrejanãointerferiadeformatuteladaqueseemanciparamasabstrações teológicas,nas imagensdeusopessoal edoméstico, abstidasdo sentido persuasivo do estilo barroco de ilusionismo e movimento. Os artesõesconstruíramformaseobjetivosdistintosdeabordarummesmotema.Adestituiçãodealgunsdosatributosdaiconografiatradicionaldossantosécaracterística recorrente nas imagens de tamanho inferior a 50 centímetros de altura. A miniatura missioneira era composta por um tipo de “estética da destruição”, a destruiçãodos cânonesdeterminadospela Igreja.Houveumrompimentocomaiconografiaeuropeiaquandodaclassificaçãodosatributoserejeiçãoàquelesquenãoconferiamsignificaçãoparaacosmovisãoguarani.

Nasreduções,aIgrejanãoagiacomodefinidoraúnicadoespaçosagrado;esseestavapresentetambémnaconstruçãodeumimaginárioedeumalógicadetempoedevoçãoafastadosdoqueentendiameapreendiamdiretamenteospadres.

Assim, a mobilidade das imagens de porte menor dentro do espaço missioneirorepresentanãosomenteoalargamentodepráticasreligiosas,masareinterpretaçãoearessignificaçãodessaspráticasnocotidianoguarani.Apráxisdocultopessoal,materialidadeconstruída,reorganizouasrelaçõescomosagradoeespraiou-separaasrelaçõessocioculturaisdaredução,dasmissõese,porconsequência,aosgruposguaranisquesemantinhamorganizadosdeacordocomomododevidadoclãlideradopeloscaciquesemaldeias,foradatutela jesuítica.

Historicamente, conforma-se um modo de vida com a presença da cris- tandadeedoanimismo,dereorganizaçãooumodificaçõesparciaisnoespaçosocial,deampliaçãodoimaginárioepráticassimbólicas,delegitimaçãodospadresedemarginalizaçãodospajés,deconvivênciadasformasdeproduzircom técnicas introduzidaspelos inacianos.Emsuma,aessaexperiência sepode denominar conceitualmente de sociedade missioneira, um entre-lugar, umnovojeitodeestarnomundo,emqueascontradiçõesdeumasociedadedefronteiratensionavapermanentementeparaumaunidadesistêmica.

Em um de seus aspectos, depois das décadas de catequese e dos regramen- tos estabelecidos-vigiados pelos jesuítas no cotidiano da cidade missioneira, a configuração do espaçomarcava o diálogo entre a narrativa bíblica e amaterializaçãodafé.OsornamentoserepresentaçõesdeCristoedossantos

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formaramumanovadinâmicadeorientaçãodaexperiênciareligiosa.Alémdasimagensquecompunhamadecoraçãodasigrejas,ermidasecapelas,haviaesculturasmenoresqueestendiamsuaparticipaçãoaocotidianomissioneiro,representavam a presença dos santos na intimidade dos atos diários, no domínio daintrospecção,naexpressãodaféforadoolhardopadre,noespaçoemqueasimulaçãoperdiaosentidoeondeacrençapessoal,depositadaemimagenscarregadasdesimbologiaindividualmentesignificativa,manifestava-seàsuamaneira.

O mapeamento da funcionalidade dessas imagens para os índios reduzidos expõeumarelaçãodiferenciadadestesparacomossantosaquemconferiamdevoção.Essarelaçãonãosepautavapelasmesmaspráticaserituaisexercidospelo catolicismo tradicional. Para o guarani, a estatuária torna-se um rito incorporado;identificaçãomediadapeloanimismo.

Pierre Clastres, em seu livro A fala sagrada: mitos e cantos sagrados dos índios Guarani, escreveu que “a substância da sociedade guarani é seu mundo religioso”:

Divino espelho do saber das coisas, se anima.Vocêquefazcomqueseanimemaquelesquevocêproveudoarco,eis, de novo nos animamos.

(Canto sagrado guarani. In: CLASTRES, 1990, p. 7).

O corpus mitológico dos guaranis, presente ainda nos ritos atuais, compunha-se,essencialmente,dograndemitodosgêmeos,domitodaorigemdo fogo e do mito do dilúvio universal. Contudo, o desenvolvimento destes mitosestáalicerçadoemconcepçõesanímicasque,numerosas,atribuemaovento originário o sopro da morte; àfumaçadocachimbo,segundoClastres“o caminho que conduz o espírito para a morada dos deuses” (1990, p. 24); ao corpodeanimais,àmoradadeespíritoshumanos.Emumpassadofundante,os habitantes possuíam “formas animais que envolvem a beleza sagrada da Palavra” (CLASTRES, 1990, p. 57).

Os guaranis participavam das liturgias católicas prestando culto aos santos conformeprestavam,antes,àssuasprópriasdivindadesanímicas,deacordocomsuasconcepçõesdecrença,adoraçãoeinteraçãonaturalesobrenatural.Acrençaestavaintrinsecamenteligadaaoobjetoanímico,àestátuadosanto.Aimagem,nesseâmbito,fazpartedarealidade,eoimaginárioéumaextensãomental da realidade palpável.

O mito guarani da origem do fogo contém em si, no decorrer curto de umaconcepção,asimbologiaqueilustraasingelezadaidentificaçãoanímica.

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“A fricção [damadeira] não produz verdadeiramente o fogo,mas permitesimplesmente extraí-lo da madeira, onde já se encontra enclausurado” (CLASTRES, 1990, p. 103).

Damesmaforma,aterapiadafricçãodocorpopelospajésnãopromoviaa cura,mas expulsava a doença, não invariavelmente identificada emumaentidade maligna a ser removida do doente.

Nasmissões,entreodogmaeapraxe,muitasvezes,houvedistanciamento.Odogma, imposto pelos padres jesuítas, intitulou a “religiãooficial”,masapraxe,cotidianamentevivenciada,concebiapelaviadainterpretaçãoumareligiosidade viva, ativa, e que em determinados momentos – especialmente decrises–refluíaàreligiãoancestral.Odogmapodiadarrespostasaalgumasperguntas,maseraapraxequedavasoluçõesaosproblemasreais.

Montoya alude aos diferentes sinais de luto pela morte de um ente para destacar a excentricidadeda reaçãoguarani: “aqui acrescentavamodedes- nudar-seumamulhere,tomandoelaumarcoesetas,sairàsruas,paraatirá-las nadireçãodosol:oquevemaserumsinalderaivaquetêmàmorte,quecomodesejointentammatar”(1985,p.222).Omitoguaraniafirma:“Láemcima,Solvigiatudo.Éelequetomacontadenós”(CLASTRES,1990,p.78).

Uma práxis que cria o desejo de matar a Morte somente pode fazer parte de uma mitologia complexa.

É por essa razão que, ao contrário da prostração obediente, algumascategoriasdepoderesespirituaismantiveram-se,eemmomentosde tensãoe conflito12 manifestaram sua presença. Muitas vezes de formas inventivas e sincréticas, misturando elementos ancestrais com códigos entendidos ou temidos “pelos outros”. Na metade do século XVIII:

Durante a Guerra Guaranítica percebe-se o ressurgimento de rituais guaranis pré-catequesecristã.Oatoderetirarocoraçãodo inimigorepresentavauma crençamilenar.Os antropólogos aindanãoderamuma explicaçãoconvincenteparaoseusignificado.Algumashipótesesapontampararituaisdereenergização.Odilaceramentodoinimigoestavaconectadoaumlongoperíodo antropofágico (GOLIN, 1999, p. 430).

Alémdisso,ocorreram“ritualizações”de“ódio”,“vingança”e“deboche”comoinimigodeixadosemcoraçãoe“enfeitado”paraserobservadopelos 12 Naresistênciaàcatequização,asmanifestaçõesanímicastambémaparecem,Montoyaescreveu:“Neçu,

de sua parte e para mostrar-se sacerdote, conquanto falso, revestiu-se dos paramentos litúrgicos do padre e com eles se apresentou ao povo. E fez trazer em sua presença as crianças, nas quais tratou de apagar com cerimônias bárbaras o caráter indelével, que elas pelo batismo tinham impresso em suas almas. Raspou-lhes as pequenas línguas, com que haviam saboreado o sal do espírito sapiencial. O mesmo fez-lhes no peito e nas costas, para borrar os santos óleos, que tinham prevenido para luta espiritual” [sem grifo no original] (1985, p. 201 e 202).

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luso-espanhóis. No espaço da guerra também retornam as crenças de ressus- citamentoeenfatizam-seasapariçõesdesantos,queintervinhamafavordaluta indígena.

Munidas de forças e qualidades anímicas, as imagens dos anjos (em especial SãoMiguel), de santos e daVirgemconvertiam-se empequenos amuletoscatalisadores das forças do “demônio” (representado pelos portugueses), e principalmente estandartes legitimadores da guerra. O diabo, que sempre estevenosportuguesesduranteoprocessodeconstruçãodasmissõesdesdeasoperaçõesdestrutivaspelasbandeiras,ampliouseudomínioparaosespanhóiscomacoligaçãoluso-brasileira-castelhanaduranteaGuerraGuaranítica,efoiremovido dos portugueses quando Gomes Freire protegeu centenas de famílias missioneirasdepoisdasoperaçõesbélicaseformoualdeamentoscomelasnoterritório rio-grandense, dando origem inclusive a algumas de suas cidades.

Pelo animismo a estatuária tornou-se um rito incorporado, ganhou movimento, acompanhou os índios à roça, participou das festas, protegeuas casas, curou doenças, auxiliou partos – “tomar a imagem, e ter um parto tãosúbitoefeliz,foiumsóato”(MONTOYA,1985,p.215)–,interferiunocotidianomissioneiro emediou a conjugaçãodos acervos. Foi o princípioanímicoquedeusentidoàdidáticabarroca,àsimagens,aossantoscomoseresdotados de vida e poder.

Van como procesión a su trabajo de campo llevando consigo algún santo en sus andas, que por lo común es San Isidro Labrador, con quien los pobres indios tienen particular devoción en todos aquellos pueblos, y en llegando al sitio de trabajo, ponen a su santo en un sitio decente, y allí se les hace otra comida para medio día” [sem grifo no original] (MELIÁ, 1988, p. 212).

Narelaçãoentreosguaraniseossantos,haviaumasingularidadecaracte- rizada pela intimidade. Ter os santos em companhia nas atividades rotineiras como o preparo da “comida para medio día”, ou o trabalho na roça, constituía uma cumplicidade incomum aos católicos europeus “congênitos”. Torna- ram-se “católicos”, no entanto incorporaram ao catolicismo categorias da sua antigareligiosidade.Preservaramemgrandeparteasuacosmovisãoanimista,praticandoaindaantigosrituaisdecuraeinvocaçãodeespíritos.Algunsrituaisfestivosexpressamoamálgamadasconcepçõesreligiosas:

Para o Corpus Christi erguem-se inúmeros arcos de triunfo ao redor da praça, cada um dominado por uma estátua ou quadro. Nos arcos, nas ripas queosunem,osfieispenduram frutas e animaisda região;pedaçosdecaça e peixes, crus ou cozidos, pintinhos vivos em gaiolas, galinhas presas pelopescoço,pássarosdetodasascorespresosporumfioamarradonapata,macacos,raposas,ovosdeema,etc.Nabasedascolunas,dispõem-se

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animais empalhados, como jaguares ou serpentes (...), entre os arcos, pratos carregadosderosários,roupas,arcoseflechas,etc.Ochãoérecobertodeesteiras,flores,grãosdemilhoeváriassementes,depoiscuidadosamenterecolhidas pelos índios: “em sua devoção acreditam que, quando sãopisadas pelo padre que carrega o santo sacramento, qualquer semente rende muito mais que o normal” (HAUBERT, 1990, p. 278).

Amagia–capacidadedemodificaromundoatravésdeatosdecaráterritual,numconjuntodetécnicasdemanipulaçãodosobrenatural,orientadasaalcançarpropósitosespecíficos–,nocristianismoguaranifoisubstituídapelaoração, penitência, culto e oferendasmanifestados em festas e procissões.Permaneceramaí a utilizaçãode conjuros, fórmulasverbais e simbolismosmediadores.Haubertescreveuqueos índiosnãobeijamrealmenteasmãosdosjesuítas,tambémnãoofaziamcomobjetosconsagradoseestátuas,masas cheiram ou fungam sobre elas, “trata-se menos de um sinal de respeito do quedeumdesejodecomunicaçãocomaforçacontidanapessoaouobjeto?”(1990, p. 258).

Amodificaçãodaforma,aseleçãodeatributos,ouseja,aexpressãodoconteúdo era articuladapela emoção e estava intimamente ligada aoplanoemqueoriginalmenteserealizouaconversão,aospontosidentificatóriosqueconferiram sentido ao catolicismo.

Oguarani,emdeterminadomomentodacriaçãoartística,nãodesejavamaisoefeitogeraldobarroco,masaformaisolada;nãomaisoencantodeumaaparênciaconjunta,masaformatalcomoelapoderiaservivida,manipulada,pertencente ao seu cotidiano.A arte para o guarani voltava, assim, à suadinâmica animista, na qual a veracidade e a beleza da natureza repousavam naquilo que se pode medir e apreender.

Deummodogeral,aevoluçãodaformaparaoartesãoguaraniapenasse processou quando esta já havia sido bastante manipulada, a tempo de a imaginação já ter se ocupado tão intensamente das configurações, que lhefossepossívelexplorarpossibilidades.Possivelmente,orealismointrínsecoàsensibilidadeguaranisetenhainsinuadonosanospoucoanterioresàexpulsãodos jesuítas e se perpetuado em breve período posterior.

Reconhecer um estilo de arte missioneiro é assumir a complexidade da variedade dos estágios de desenvolvimento reais, históricos e contextualizados, resultadodereflexõesdecorrentesdeumasituaçãodefronteira–tomam-se,como exemplo, certas formas e a rejeição de outras, a alteração do ritmodasconvençõesdecadafatordaproduçãoartísticaeaheterogeneidadedascontradições.

Aabdicaçãodeumaforma–cânone–,quejánãoapresentavaconteúdo,e a buscada expressão adequada incitadas pela inquietação espontâneado

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sentimento autóctone, deu ao processo histórico da arte o seu cunho especial. Numasituaçãodemestiçagemanarrativaseexpressamediadapeloeco

deoutrasnarrativas.Consideradacomoaabrangênciainfluenciadoradeesferasmediadas do que se convencionou denominar de dominados e dominantes, sob aperspectivadafunçãocontroladorapolíticoeideológicadaimagem,algumasrepresentaçõesexpressamumavitalidade impositivadevariaçõessobreummesmo tema no desenvolvimento de um vocabulário já manipulado.

A estética da miniatura missioneira

Em imagens feitas, sobretudo para a devoção doméstica, a tradição– compreendida também como reminiscência – comparece como umelemento natural de expressividade autóctone nas composições dominadaspelo esquematismo, geometrização e ludicidade.Emmuitas imagens tem-seaimpressãodequeparecedifícilaoartesãosuspenderogestoquetendeacompactaroíconeemsimesmo,ogestodafinitudeindefinidaqueaderemembros e vestes, movimento e espaço.

A imagem de Santo Antônio de Pádua (Museu Monsenhor Estanislau Wolski – SantoAntônio dasMissões/RS – 9 centímetros), tomada comoexemplo, se posta como arquétipo das possibilidades de permutação dassoluçõesplásticas.Aobraencontra-setãoesquematizadaquesedistanciadoícone cristão aoqual remete.Parece sermais coerente enquadrá-la emumaspectoanimistarelativoàconcretudedeelementosdanatureza.Éimpossívelomitir a força autóctone da imagem, constante na sua atitude compacta, cúbica, estática, rígida e geométrica.

Observandoaimagem,percebe-sequeoartesãopreservoualgunsele- mentosiconográficosdosantoquepossibilitamidentificá-lo,comoacogula de mangas compridas cobrindo todo o seu corpo determinando o formato cônicoeocíngulopendenteatéochãonapartefrontal.Noentanto,percebe-seatentativadedesconstruçãodoíconecristão.Oartesãoparecebuscar,nacomposiçãodapeça,ocessardodiálogoambiental,dainteraçãodaesculturacom o espaço, voltando-se, assim, introvertidamente para o que é ancestralmen- teculturalparaoguarani:aalmatotêmicaquenãosolicitagestos,expressõesepersuasão.

Dessemodo,deveserquestionadaarealvaloraçãodosatributosquandoaimagemnãomaisserveparavisibilidadecomum,ouseja,parafunçãodidática,esimparaocultopessoal,quandoaféneladepositadapodeequivaler-seàalmaconferidaaobjetosinanimados,naconcepçãoancestralanimista.

Do significativo acervodeminiaturas, referimos a seguir apenas doismodelosdessaexpressivacondiçãomissioneira.AmbosdoMuseuMonsenhorEstanislau Wolski.

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NoSantoAntôniodePádua,háumagrandedesproporçãoentreotamanhodacabeçaeorestantedocorpo.Assimcomonorosto,osolhoseonarizsãopequenos,eaboca,bastantevolumosa.Ocapuzauxiliaa justaposiçãodaspartesatravésdecorteslinearesedaausênciadecurvas.Asformasorganizam-se num voltar-se para dentro de sua própria concretude. Trata-se de uma obra que deve ser questionada e projetada em sua força contundente, na ambiguidade dosseusenfoqueselinguagem,vistoquenelaoartesãosuperaasrestriçõesdapressãoculturalimposta.

Comcaracterísticassimilares,aimagemdeNossaSenhoradaConceição,de 13,3 centímetros, apresenta uma composição rigorosamente abstrato-geométrica,emqueosatributoseaindumentáriasãoreduzidosdemaneiraacompactaraiconografiaemsimesma.Todaaextensãodomantoedasaiaestádecoradacommotivosfitomorfos,deumacaligrafiadelicadaeregularquecontrastacomominimalismodaconformaçãogeraldasanta.

Dentro do espírito que levou E. P. Thompson a considerar os costumes como sui generis, ambiência,mentalité, “um vocabulário completo de discurso, de legitimação e de expectativa” (THOMPSON, 1998, p.14), o examedarelaçãoentreasefetivasinterferênciasautóctoneseautilizaçãodoméstica–

NossaSenhoradaConceição91.0001.0095

Santo Antônio de Pádua 91.0001.0091

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pessoal – mostra que essa funcionalidade era dialógica e capaz de iluminar o pontonodaldaabsorçãodasconcepçõescatólicasnoimaginárioindígena.

A possibilidade de mobilidade e intimidade proporcionada pelas mi- niaturas pode ser tomada como um símbolo do compartilhamento da crença em personagensmaravilhosos.AidentificaçãodeHeróisMíticoscomossantoscatólicoseaintroduçãodapresençamaterializadadadivindade,reorientandoaexperiência religiosa,estavapermeadaporconcepçõesanímicasquepro- moveramainterpretação,aceitação,reconhecimentoeutilizaçãodeobjetosatéentãodesconhecidosdaculturaindígenaemobjetoderelligare.

O barroco das Missões

Aformaçãodeumestiloartístico,inseridonoseucontextosociocultural,partedeumadinamicidadeinteriorqueimpulsionaeformaumanovaexpressão.Nessenexoháespaçoparavariaçõesdopróprioestiloemodosdiversosderepresentar omesmo tema,mediadospela vontade artística e por soluçõesoriginais formadoras de sentido.

Houvenaesculturamissioneiraa influênciadaEscoladeSevilha,queteve como um dos seus grandes artistas Juan Martinez Montañés, conhecido porsuascomposiçõesserenas,comedidasemeditativas.TambéminfluíramnasproduçõesAlonsoCanoeJosédeMoura.Alémdospreceitosespanhóis,énecessárioconsiderarqueessesíndiosartesãosreceberaminstruçõesprovindasdasescolasbarrocasitaliana,atravésdopadreBrasanelli;dasul-alemã,pelopadre Antônio Sepp; e da Flamenga.

Ainda que o estilo barroco assumisse características distintas de um paísparaooutro,seusprincípiosestéticosdeornamentação,dramaticidadeeemoção,perpetuavam.Aaspiraçãoàsantidadeerarepresentadanumdiálogoentre a figura sagrada, Deus, e o espectador. Essa corrente, ascendente edescendente, tendo a obra como mediadora, através de suas expressõescorporais,contorções,drapeados,olhosrevirados,cabeçainclinada,convidavaoespectadoraodeleite,aogozopossívelsomentenaentregaàfécatólica.

O acervo guarani-missioneiro possui exemplares dessa didática, com a ressalvadaalteraçãodaconotaçãosensualdadaàsimagens.Aexploraçãodasensualidadenasreduçõesganhouumapelomoralque,decertaforma,conteveessaexpressãoemsuasformasplásticas.

Noque se refere à influência dobarroco europeu, com interferênciasindígenas,aNossaSenhoradaConceição(MuseudasMissões–SãoMigueldasMissões/RS–2,10metros)seconverteuemreferênciaobrigatória.Suascaracterísticas poderiam ser comparadas às da escultura Santa Tereza de Bernini.Somenteseupéficaàmostra;abocaestáentreaberta;osolhosvoltadosparaocéu;noseucabeloasfloresdemaracujáfazemavezdomantooudas

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estrelas– iconografia tradicional–;seucorposecontorcenumamisturadeemoçãoeprazer,envolvendoearrebatandooespectador.SantoIsidro(MuseudasMissões–SãoMigueldasMissões/RS–1metro),produzidodentrodasmesmaspremissas, tem suas expressões submergindodo êxtase divino, osolhos quase se fechando, a boca semiaberta, os cabelos com um ondulado livre, os braços receptivos, como quem se encontra pronto para entrega celestial.

Santo Isidro 91.0001.0269

NossaSenhoradaConceição 91.0001.0319

Estasobrassãoexpressãodobarrococomoumestilodeproduçãoiconográfica e representações simbólicas, de uma arte didaticamentepensadacomointermédiofigurativo,noqualaféseapoiaparaascenderao dogma que ela reveste e representa, e onde o triunfalismo jesuítico encontrouosinstrumentosdeconversãoereproduçãodafé.

No barroco das Missões, somente nas obras reconhecidas como dejesuítas,principalmentedoirmãoBrassanelli,queesculpiuomajestosoSãoFrancisco de Borja, e nas esculturas indígenas copiadas de modelos europeus, encontram-seascaracterísticasestéticasbarrocasdemovimento,ornamentaçãoe suntuosidade. Entretanto, quanto mais o indígena se distancia do modelo, maisaparecemfeiçõesplácidassemoenlevodogozofrenteàagonia,nãoreproduzindooimaginárioartísticodaContrarreforma.Nareligiãocristã,osofrimentoeravalorizado,aopassoquenassociedadesindígenassignificavauma anormalidade que deveria ser reposta através de rituais. No primeiro processo,oscorposeasvestesvoluptuosasdobarrocoficavamporcontadosmissionários.No segundo, os artesãos guaranis, ao reafirmaremarquétiposindígenasinseriramoutrossignosnasrepresentações.

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As imagensmestiças e de cunho autóctone não correspondem a umideal estético adequado aos padrões europeus de arte barroca. Satisfazemas tendências da expressão nativa que aplica às suas obras traços formaisde esquematismo e geometrismo. Produtos dos plurifacetários contornos de umasociedadeemprocessodetransculturação,quetantorepresentousantoseuropeus como peças zoomorfas, ambos dentro de esferas diferentes de sacralidade.

Essa criatividade guarani, esteticamente insurgente, remete à origemantropológica.

Aspercepçõescompositivasdessenovoestilosãoadvindasdecosmovisõesdistintasque,entretanto,nessecontexto,nãosecontradizem;pelocontrário,interatuamnumasimbiosedecontribuiçõesdesequilibradasqueproporcionamo elemento da originalidade das obras. Esses elementos da imaginária guarani sãooquedestacamasobrasenquantoproduçãoculturaleartísticadoperíodocolonial, fornecendo a medida da peculiaridade desse estilo.

Pelaimanênciaculturalguarani,suaintenção,certamente,nãoeracomporumnovo estilo e, sim, fazer uma leitura domesmo; a ambiência religiosabarroquistanuncadeixoudeexistir.Oqueocorreufoiumatransposiçãoemqueoselementosformaisbarrocoscederamlugaràrigidez,aofrontalismo,geometrismo e esquematismo indígena. E, a partir dessas representações,nãosepodegeneralizaradenominaçãode“barroco jesuítico-guarani”paraasmanifestações artísticas,mais precisamente escultóricas, realizadas nasreduções,comoseobarrocojesuíticofosseexclusivodeumatotalidadedasMissões.

Emváriasimagens,principalmentedemenorporte,nãohácorrespondênciacomadefiniçãodaestéticabarrocaformuladaporHeinrichWölfflin:

O Barroco possui uma arte dessa natureza: uma escultura na qual os con- tornosforamdesvalorizadoseaexpressãojánãoganhaformanalinha.O Barroco desvaloriza a linha enquanto contorno, multiplica as bordas e, enquantoaformaemsisecomplicaeaordenaçãosetornamaisconfusa,ficamaisdifícilparaaspartes isoladas imporemseuvalorplástico:porsobre a soma das partes desencadeia-se um movimento (puramente óptico), independentemente do ângulo de um ângulo de observação particular(1996, p. 73-87).

Asignificaçãodas peças émuitomais ampla doque a tipologia e asteoriasquetentaramclassificá-las.Existeoqueépossívelchamarde“estilodearte missioneiro ou jesuítico-guarani”, que reside apenas nas imagens nas quais ocorreuainterferênciaguaraninosíconescristãos.Arespeitodaformaçãodeum estilo, Hauser escreveu:

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O tipo ideal é um conceito estrutural a-histórico, enquanto um estilo é, por siesemexceção,umfenômenohistórico.Notiponãohistóricoexprime-sea irrealidade de um; no caráter histórico, a realidade do outro. Um estilo mostra,neste sentido,epara sedistinguirdo todo ideal,uma tendênciaevolutivaeimplicaumconceitodedireção,aidéiaderealizaçãogradual,quandonãoforçosamentecontínuaesempreprogressiva,deumainten- ção,deumavontadeartística,deumaconcepçãoformal,quenadatemavercoma intensificaçãodovalorartístico.Esta forçadeveserpensadacomo uma força comum a outros sujeitos, mas transformando-se, em cada sujeito criador, numa dinâmica própria, interior e pessoal, apenas de acordo como incitamentoda influênciade tradições,convençõese instituições(1973, p. 71).

Nessesentido,aformaçãodeumestilodeartemissioneirosomentepodeserconsideradaapartirdaintervençãoindígena,poisimagenselaboradasporjesuítasereprodutivasdocânonenãopertencemàclassificação,vistoserem,naexpressãodeHauser,o“tipoideal”,portanto,a-histórico,aopassoqueoestiloéumfenômenohistóricoefrutodeumatendênciaevolutivadaforma.

Reveroscondicionantesdaesculturareligiosaguaraninãobastaparatentarencontrar uma nomenclatura mais condizente. Se “la mente del primitivo no reproduce las cosas tal como las ve, sino como las siente”, relevar as substâncias próprias dessa arte do ponto de vista visual considerando suas características peculiarespoderiadirecionarumadenominaçãoquenãoestivessecondicionadaa designações estilísticas europeias.Não se trata da reivindicação de umaautonomiadetendências,poiscadadesígnioclassificatóriotemdelevaremcontaasingularidadedascomposiçõescaracterizadaspelohibridismo,frutodeumamiscigenaçãoculturalautêntica.

A miniatura como expressão significativa de uma tendência estáequalizada na ampliação da autonomia guarani, identificáveis também emoutrasmanifestações.AGuerraGuaranítica desmentiu em grande parte aexcessivasubmissãodosíndiosàvontadedospadres.Em1750,oTratadodeMadri, estabelecido entre Espanha e Portugal, determinou que os Sete Povos dasreduçõespassassemparaodomínioportuguês,oquesignificava terdeabandoná-los. Foi nesse momento que os caciques guaranis divergiram e os rebeldesorganizaramaçõesporsuacontaerisco,mostrandoqueosanosquepassaramreduzidosnasMissõesnãohaviamdestruídotradiçõesancestrais.Oscabildos perderam a exclusividade da autoridade, e as alianças morubixabas ancoraramaresistência.Aderrotaguarani,consequentemente,comadestruiçãoda sociedade missioneira, também sustou os espaços que propiciavam as condiçõesdereproduçãodesuasestéticas.Seudilemahistóricoseestendeuigualmenteàarteexperimentadanasociabilidademissioneira.

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Os remanescentes

O vácuo na historiografia missioneira, no que tange à continuidadedas atividades nas oficinas artesanais após 1767, dificulta a formulaçãodeconceitos sobre o desenvolvimento da estatuária religiosa guarani, esbarrando emdeficiênciasinevitáveis.Pode-seestabeleceralgumassuposiçõesbaseadasnaanálisedosremanescentes,identificaracrescenteconsciênciadeliberdadecriativadoartesãonotranscorrerdotempo,afrequênciaeaintensidadedasintervençõesindígenas,osaspectosdúbiosdamestiçagem,entreoutrosdadoshistóricos.

As influências estéticas que chegaram às reduções são conhecidas, enãoépossívelperceberumaefetivasequênciaestilísticanosremanescentesmissioneiros.Aindiferenciaçãoporépocaeestilosfoinorma.Chegaramàsoficinasmissioneirasgravurasromânicas,góticas,barrocas,renascentistase,possivelmente,maneiristas.Entretanto,éduvidosaaatribuiçãodeaspectos,como o frontalismo e a tendência à verticalidade, a influências de ordemmedieval, como a românica, que possui estética similar. Características estéticas, que já foram chamadas de antiacadêmicas, como simetria, geometrismo,uniplanismo, estatismo, desproporção corporal, são, antes, produto dasensibilidade autóctone do que da cópia de gravuras de imagens medievais. Razõespara essa afirmação estãonaobservaçãodos signosquemarcaramesseprocesso,comointroduçãodobiótipoguarani,elementosdafloralocal,estilizaçãoda indumentária, tendendoaoaumentoda significaçãodo íconeparaoindígena,eliminaçãodeatributostradicionaisdaiconografiaetc.

Possivelmente, e como outros estudos já apontaram, é a estética da miniatura, correspondente aos aspectos autóctones de frontalismo, esquematismo erigidez,queperpetuouapósaexpulsãodosjesuítaseque,aomenosporumperíodo,continuousendopraticada.Énesseâmbitoqueseencontraaformaçãodoestilodeartemissioneiro,desenvolvidoemsuadimensãohistóricaelivreda explicação cristã-católica para omundodoqual estavamcarregadas asimagens que ornavam os espaços públicos. O desenvolvimento gradual faz partedaformaçãodeumestilo,pelaevoluçãodaformaepelaoriginalidadedascomposições,oquefazdoestiloalgohistórico.

Tudo indica que as imagens nas quais a presença guarani é mais efetiva tenhamsidoexecutadascommaior reproduçãonaúltima fasedeatividadedos povoados, passadas algumas gerações em redução e comos preceitoscristãos jábemassimilados.Os artesãos, jádominandoos instrumentosdetalhaepintura,gozandodecertaliberdadedeexpressão,passam,então,comespontaneidade a manifestar sua cultura artística sobre os ícones ocidentais. Supõe-se,também,queaindividuaçãodeinstrumentos,oumesmodeoficinasdomésticas,tenhamsidofundamentaisparaadifusãodasminiaturas.

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Haciaelfinal tambiéncomienzana incorporarsea la temáticamotivoslocalestomadosalafaunayalafloraterrígenas,enloscualesserefleja el viraje y fijación de la sensibilidad indígena en la realidad circun- dante.Estas tendencias, manifiestas, se organizarían en una actitud sensible (germen de estética) y la posibilidad de un estadio o fase creativa con- comitantes, cuyos rasgos pueden cifrarse en la indicada triada: estatismo – simetría – frontalismo. Ellas no dejarán de latir en la medida en que para ello encuentren oportunidad, buscando su fórmula, a través de nervio y mano local (PLÁ, 1975, p. 92).

A possibilidade da continuidade da atividade artesanal de confecçãode imagens após a expulsão dos jesuítas13 leva a pensar numa relativa independência compositiva e, consequentemente, no desenvolvimento dasensibilidade autóctone. Nesse momento, provavelmente, tenha melhor se adiantado a evolução da forma, que está condicionada, segundoWölfflin,por“tiposdepercepção”queservemdebaseàscomposiçõesoriginais.Essaevolução transcorreu através dos anos, moldando-se também dentro dasoficinaseespaçosmissioneirosadministradosporjesuítas.

AugustedeSaint-Hilaire,biólogo francês,emviagemaoRioGrandedoSulem1821–cincodécadasapósaexpulsãodosloyolistas–,visitouosremanescentesmissioneiroseobservouque“apopulação inteirada região,conhecidasobonomedeMissõesdoParaguai,estáreduzidaaodécimodoque era o tempo dos jesuítas (2002, p. 332).

Emmeioàsobservações relativas àdecadênciadosSetePovos sobodirigismo português, Saint-Hilaire descreveu: “se encontra ainda grandenúmerodeguaranisquesabemeensinamaseusfilhosocatecismo,emlínguavulgar,easoraçõesqueospadresdaCompanhiadeJesustinhamcomposto”.Juntamenteaosresquíciosdepráticasreligiosascristãs,oautorobservouque“osguaranisnãotêmnenhumasuperstiçãoparticular,masseurespeitopelasimagensvaiquaseàidolatria”(SAINT-HILAIRE,2002,p.340-341).

NasprimeirasdécadasdoséculoXIX,nointeriordaigrejadeSãoBorjaainda havia imagens. Deve-se considerar a possibilidade de que, após vários percalços,comoguerras,incêndiosetrocasadministrativas,asimagensque

13Opossívelperíododeproduçãodasimagensestende-sedafasereducionaladministradapelosjesuítasàposteriorexpulsãodaordem,quandoatutelaéconferidaaosdominicanos,franciscanosemercedáriosaté1801,quandoasreduçõesforamconquistadaspelastropasluso-brasileirasesãoincorporadasaodomínioportuguês.Àconquista sucedeua transferênciada terraparaparticulares, formando-seos latifúndiosatravésdaconcessãodesesmarias.Em1827,ademografiaguarani foinovamenteabaladanaGuerradaCisplatina,comaexpediçãodeFructuosoRiveraconduzindoparaaBandaOriental(atualUruguai)grandepartedapopulaçãomissioneira.

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ornavamasigrejasdasreduçõestenhamsidosubstituídasporoutras,14 e, nesse sentido,comoasgeraçõesquerecebiamdiretamenteasinstruçõesplásticasdospadresnasoficinasdeartesanatojánãoexistiam,osremanescentesdeguaranismissioneiros,semoincentivoeasorientaçõesdeoutrora,reproduzissemosíconesapartirdamemóriavisualedesuasaptidõesartísticas.15Issojustificariao julgamento, do ponto de vista qualitativo artístico europeu da época, das imagens como “muito mal-esculpidas”.

Adiantando-se no tempo, outro viajante, o belga Baguet, que esteve no RioGrandedoSulem1845,registrouadevoçãodomésticadosdescendentesde guaranis missioneiros:

Ainda encontra-se atualmente um resto deste luxo de imagens e estátuas, outroraostentadoemprofusãonostemplos.Todasessascasas,atéasmaishumildes,têmalgumaestátuagrosseiradesanto,vestidacomobonecadecriança e que cada visitante vai beijar com o mais profundo respeito. (...) um dos jesuítas que administrava os pueblos era padreoucura.Quandoeleaparecia no templo, vestido com os mais ricos hábitos sacerdotais e cercado porgrandenúmerodesacristãos,ossinostocavam,oincensoqueimavaetodos os assistentes prostavam-se com respeito diante dele (1997, p. 104).

Características similares também puderam ser observadas por Egon Schaden. Em pesquisa em meados de 1950, o antropólogo registrou que eram frequentes entre os Ñandéva16 os altares com muitas imagens de santos:

Nacasa dosÑandévanão são raras as imagens ou estampas de santos(...).Tudopareceindicar,enfim,queoaspectomaisoumenosmágicodoculto aos santos (...), é o único realmente assimilado pelos Guarani, e de preferênciapelasgeraçõesmaisnovas(1974,p.140,138).

Noestudo,oautorobservoutambémocarátersingulardapercepçãoeinteraçãocomasrepresentaçõesreligiosas:“parecequeo‘santo’nãoénadaalém da imagem; coisa alguma indica a crença num espírito ou ser sobrenatural quenãoestejainerenteaosubstratomaterialdaprópriaimagem”(1974,p.138).Essas indicações confluempara a compreensão dasmediações da religiãoanímicanabuscadesentidoparaanovareligiãoimposta.

Porém,ahipótesedeterhavidoumacontinuaçãodaatividadeartesanalapós a expulsãodos jesuítas levantaquestões referentes ànãoperpetuação 14 Saint-Hilaire referiu que havia “de cada lado da igreja, uma sacristia, estando a da esquerda repleta derestosdeumaporçãodeestátuasdesantos,detodosostamanhos,pintadoseemmadeira”(2002,p.330).

15Estaproposiçãonãovisaaafirmaraconfecçãodeimagensduranteesseperíodohistórico,antes,etalvez,anterioraele,vistoquenaadministraçãodosportuguesesaProvínciadasMissões“empobreciamaisacadaano,esuapopulaçãodiminuidemaneiraespantosa”(SAINT-HILAIRE,2002,p.331).

16 Ñandeva (Ava-Chiripa) é um subgrupo da família Guarani, como os Kaiowa (pa-tavyterã) e os Mbya.

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dessaatividadeatravésdosanos,àinexistênciadeumatradiçãoescultóricaindígena no Rio Grande do Sul, exceto a zoomorfa e a artesanal. Em especial, noParaguai semanteveuma tradiçãode escultores quepassaram, a partirdefins do séculoXIX, a ser denominados de santeros.Essa denominaçãotambémpassouaserdadaaosindígenaseaosmestiçosquesededicaramàproduçãodesantosemSãoPaulo,MinasGerais,entreoutrasregiõesdoBrasil.Talvezascausasdenãoseformarumatradiçãosanteira no Rio Grande do Sulcom talpujançaestejamvinculadasaosconstantesêxodoseao trágicoprocesso de extermínio étnico sofrido pelos guaranis no decorrer da história. Acontinuidadedasatividadesartísticasnocasomissioneironãocontoucomamanutençãodeespaçossociaiselugaresdereconhecimentoincorporadoaosindígenas nas sociedades colonial e nacional.

Referências

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II DIMENSõES DA EDUCAÇãO

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4 Analfabetismo indígena segundo o Censo 2000:

Brasil e Rio Grande do Sul17

Alceu Ravanello Ferraro AbraãoNiloGivagoSchäfer

Faz sentido falar em analfabetismo indígena?

Oprópriotítulodotrabalhotrazimplícitaumaquestãoquepoderiaserchamada de preliminar, porquanto precisa ser enfrentada antes que se proceda àanálisedoanalfabetismoindígena.Elapodeserformuladaassim:fazsentidofalar em analfabetismo indígena?Essa é umaquestão à qual não se poderesponder simplesmente com um sim ou um não. Tomado o termo no seu sentido etimológico, analfabeto é aquele que desconhece o alfabeto, que é desprovidodoalfabeto,quenãosabelereescrever.Jáotermoanalfabetismorefere-seaoestadooucondiçãodaquelequenãosaberlereescrever.18Éessebasicamenteosentidodotermoanalfabeto,poroposiçãoàdefiniçãocensitáriaque considera como alfabetizada a pessoa que é capaz de ler e escrever um bilhete simples no idioma que conheça (IBGE, 2001, p. 24). Assim, como quaisqueroutraspessoasnessacondição,osindígenasquenãosaibamlereescreversãoanalfabetos,designandootermoapenasofatodenãohaveremadquirido ainda o domínio da técnica de ler e escrever.

Aqui,noentanto,seimpõeumesclarecimentoimportante.AquestãodoanalfabetismoqueselevantaemrelaçãoàpopulaçãobrasileiraautodeclaradaindígenanosCensos 1991 e 2000 é umaquestão relativamente recente nopróprio Brasil como um todo. Como bem observa Vanilda Paiva (1990, p. 9), aolongodegrandepartedenossahistória(atéofinaldadécadade1870),aquestãodoanalfabetismosimplesmentenãofoilevantada.Naverdade,nãodevesurpreender que, num país agrário-exportador, latifundiário e escravocrata, o problemadoanalfabetismoaindanãosecolocasse.

Foi a partir principalmente dos debates travados na Câmara dos Depu- tados, nos anos de 1878 a 1880, a propósito dos projetos de reforma eleitoral dos ministérios Sinimbu e Saraiva, que o analfabetismo passou de repente a constituir-se em problema nacional:

17 Texto produzido a partir do projeto Gênero, raça e escolarização no Brasil: traçando a trajetória da relação,comapoiodoCNPq.

18Sobreosconceitosdeanalfabetismo,alfabetizaçãoeletramento,verolivroLetramento, de Magda Soares (1998).

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OfatoéquejánofinaldoImpériooanalfabetismoemergecomoumpro- blema nacional. Emerge, porém, como um problema eminentemente político, emvinculaçãocomaquestãoeleitoral,nãocomoumaquestãoeconômica,ligadaàprodução.Menosaindacomoumaquestãopedagógica,talodes- casoentãoreinanteemrelaçãoàeducaçãodopovo.Surgecomoumpro- blemavinculadoaumadasquatroquestõesqueagitaramofinaldoImpé- rio, sinalizando e aprofundando o seu declínio e apressando o advento da República:aquestãoreligiosa,amilitar,aescravistaeaeleitoral.Adimensãoeconômica do analfabetismo só seria levantada muito mais tarde, a partir do segundo pós-guerra mundial, com as teorias do desenvolvimento, que da- riamsustentaçãoteóricaeideológicaaopoucodeEstadokeynesianooudebem-estar que o Brasil chegou a conhecer. (FERRARO, 2004, p. 113-114)

Limitamo-nos a lembrar aqui as palavras do Sr. Lafayette, Ministro da JustiçadoGabinetedeCasansãoSinimbu,empronunciamentoemdefesadoprojetodeintroduçãodovotodiretocomapretendidaduplicaçãodocenso(darendacomprovada)eaexigênciadeoeleitorsaberlereescrever.Asfalas,tantodoministrocomodequantosapoiaramaexclusãodosanalfabetosdodireito de voto, evidenciama conotaçãonegativa quepassou a associar-seaos termos analfabetismo e analfabeto a partir de então. Para oministro,“inteligênciaquenãosabelereescrever,permanececomoquefechadaemumcírculodeferro,contrai-seenãotomadesenvolvimento”;ainteligênciaqueécondenadaatalobscurantismo“nãopodeformarjuízoclarosobreosinteressescoletivosdasociedade”.Masoquemaisinteressaéacitaçãoquesegue,naqual o ministro inaugura, por assim dizer, o rosário daquilo que muito mais tardelevariaonomede“concepçõesdistorcidas”(FREIRE,2001,p.15)oude “desconceitos” (FERRARO, 2004) a respeito de analfabetismo. Mas, o que disse,afinal,Lafayette? Quedarvotoaosanalfabetosequivaleriaaentregarogovernodanaçãoàignorânciaeàcegueira:

Mas,admita-se,senhores,queoitodécimosdapopulaçãodoImpériosecompõe de analfabetos, eu pergunto-vos? – a ignorância, a cegueira, porque se torna vasta e numerosa, porque se generaliza, adquire o direito degovernar?(Apoiados). Se há no Império oito décimos de analfabetos, eu vos direi, esses oito décimos devem ser governados pelos dois décimos que sabem ler e escrever. (CÂMARA, Anais,sessãode29/05/1979,p.453-461.Acessoem:29/06/2007)

Para o ministro, o pequeno grupo liberal que se opunha ao projeto liberal doGabineteSinimbunãorepresentavamaisdoque“omauhumordopartido”,eosdeputadosnãosedeviamdeixariludir(CÂMARA,ibidem).

Conforme se mostrou em trabalho ainda inédito (FERRARO, 2008, cap.3),nosdebatestravadosnosanosde1878a1880acondiçãodeanalfabe-

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tismofoifortementeassociadaaoestadonãosódeignorânciaecegueira,mastambém de incapacidade e até de periculosidade. Na realidade, o resultado de tudoissofoinãoumapolíticadealargamentoeuniversalizaçãodainstruçãopública,masantesapurae simplesexclusãodosanalfabetosdodireitodevoto,exclusãoquesemantevepormaisdeumséculo,atéaintroduçãodovotofacultativo dos mesmos em 1985.

Quaseumséculodepoisdosreferidosdebatessobreovotodosanalfabetos,Paulo Freire, em 1968, em seu exílio no Chile, reuniu num texto paradigmático oqueelechamoude“concepçõesdistorcidas”,aindahojecorrentes,sobreoanalfabetismo:

Aconcepção,namelhordashipóteses,ingênuadoanalfabetismooencaraoracomouma‘ervadaninha’–daíaexpressãocorrente:‘erradicaçãodoanalfabetismo’ –, ora como uma ‘enfermidade’ que passa de um a outro, quase por contágio, ora como uma ‘chaga’ deprimente a ser ‘curada’ e cujos índices, estampados nas estatísticas de organismos internacionais, dizemmaldosníveisde ‘civilização’decertas sociedades.Maisainda,oanalfabetismoaparecetambém,nestavisãoingênuaouastuta,comoamanifestaçãoda‘incapacidade’dopovo,desua‘poucainteligência’,desua ‘proverbial preguiça’. (FREIRE, 2001, p. 15)

Jáélongaalistadeconcepçõesdistorcidassobreoanalfabetismo:ervadaninha, enfermidade, chaga, incapacidade, preguiça. Além de cegueira e ignorância.Maselanão terminaaí.Freire refereaindaavisãomessiânica,segundo a qual o analfabeto seria um “homem perdido”, que precisaria ser salvoecuja“salvação”estaria“emque[ele]consintaemirsendo‘enchido’por estas palavras, meros sons milagrosos, que lhe são presenteadas ouimpostas pelo alfabetizador que, às vezes, é um agente inconsciente dosresponsáveis pela política da campanha [de alfabetização]” (ibidem,p.16).Freiredenunciaaindaavisãonutricionista,segundoaqualoanalfabetismoseriaumasituaçãodefomeoudesede,eosanalfabetos,seres“famintosdeletras”e“sedentosdepalavras”:“Palavraque,deacordocomaconcepção‘especializada’ emecânicada consciência, implícitanas cartilhas, deve ser‘depositada’ e nãonascidado esforço criador dos alfabetizandos” (ibidem,p. 54).O analfabetismo é visto tambémcomovergonha.Nãopara o país,masparaoanalfabeto:“Pedronãosabialer.Pedroviviaenvergonhado[...]Pedroagorasabeler.Pedroestásorrindo”(ibidem,p.55).Porfim,localiza-setambém,namesmaobra, referênciaàconcepçãoda“natural inferioridade”dosanalfabetos.Esses,segundoessaconcepção,“Submetidosaosmitosdaculturadominante,entreelesodesua‘naturalinferioridade’,nãopercebem,quasesempre,asignificaçãorealdesuaaçãotransformadorasobreomundo”(ibidem, p. 59).

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Essas concepções distorcidas têm, segundo Freire, um “caráterideológico”quemascaraa realidade (ibidem,p.54); são“mitosdaculturadominante”quedesempenhamumafunçãodedominaçãosobreosanalfabetos(ibidem,p.59).Épor issoqueoautornãosecontentaemdenunciaressasconcepções.Elelhescontrapõeumaconcepçãocríticadoanalfabetismo.Paraele,“[...]oanalfabetismonãoénemuma‘chaga’,nemuma‘ervadaninhaasererradicada’,tãopoucoumaenfermidade,masumadasexpressõesconcretasdeumasituaçãosocialinjusta”(ibidem,p.18).ÀépocadoescritodeFreire(1968), essa forma de injustiça social denominada analfabetismo atingia ainda, comcerteza,1/3dapopulaçãode10anosoumaisnoBrasil.Comefeito,ataxadeanalfabetismo,queerade39,7%em1960,nãobaixariamuitonadécadaseguinte, situando-se em 32,9% em 1970 (FERRARO, 2002, p. 34, Tabela 1), doisanosapósapublicaçãodareferidaobradeFreire.Ataxadeanalfabetismoentre as pessoas de 10 anos ou mais autodeclaradas indígenas no ano 2000 (25,2%,Gráfico1) praticamente se equivale à verificadapara a populaçãobrasileira como um todo no Censo 1980 (25,5%).

Para sepôrumfimaessa situaçãodedominação ideológica sobreosanalfabetos, que é legitimada e reforçada através dessa pletora de desconceitos, requer-semuitomaisdoqueaaçãopedagógicadealfabetização.Notextode1968,Freirenãodeixavadúvidasobreoalcancedastransformaçõesaserembuscadas.“Analfabetosounão”–diziaeleentão–“osoprimidos,enquantoclasse,nãosuperarãosuasituaçãodeexploradosanãosercomatransformaçãoradical, revolucionária, da sociedade de classes em que se encontram explorados”(2001,p.57).OqueFreiredissedasociedadeoudasrelaçõesdeclassespodeseraplicadotambém,noBrasil,àsrelaçõesétnico-raciais.

Mas,oquetudoissotemavercomosindígenas,jáquaseaofinaldaprimeiradécadadoséculoXXI?Omesmoquetemavercomqualquerpessoaquenãosaibalereescrever–preto,pardo,branco,amarelo,homemoumulher,dacidadeoudocampoetc.Comefeito,asconsequências,paraosindígenas,dacondiçãodenãosaberemlereescreverpodemseravaliadasdedoispontosde vista diferentes. De um lado, hoje, como todos os analfabetos, também os indígenassãoavaliadosnegativamenteediscriminadospelo fatodenãosaberem ler e escrever. De outro lado, cada vez mais os próprios indígenas avaliamnegativamenteasimesmoseaosoutrosindígenasquenãosaibamlereescrever,recorrendoadenominaçõescomo“bobos”e“burros”paraqualificaracondiçãodeanalfabetismo.Assim,aescolatorna-seumanecessidade,umaimposição,paraosindígenas,massemgarantiadequesetenhatransformadodeinstrumentodedominaçãoemmeiodeemancipação;semgarantiadequepossaseroutracoisaquenãoummeropassaporteparaacidade,ummeiodesangria das aldeias indígenas.

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Nessesentido,sãoesclarecedoresalgunsdepoimentos,comoodapro- fessoraSusanaGrilloGuimarães,contratadaem1976pelaFundaçãoNacionaldo Índio (FUNAI) para atuar em área indígena. Diz a professora:

Cheguei ao Parque Nacional do Xingu em 1976 com a perspectiva de desenvolver um trabalho na área educacional, sem conhecimento de qualquer tipo de trabalho feito na área de contato inter-étnico. Para orientar-me resolvi inicialmente ouvir das pessoas suas expectativas a respeito da escolaqueiriacomeçar,edaítirarumplanodeação.Na época o Posto Leonardo Villas-Boas reunia dez famílias dos grupos Trumai,Suiá,Aweti,KayabieTxukarramãe.Paraessaspessoas,a‘escola’eravistacomoumadassoluçõesparaequilibrarocontatocomobranco.‘Saber ler’ e ‘saber contar’ eram habilidades que homens brancos – que decidiam e tinhamo poder – possuíam, e ter acesso a isso significavasuperar essaposiçãode inferioridade frente aobranco. (GUIMARÃES.In:ComissãoPró-Índio,1981,p.51-52)

NamesmadireçãoodepoimentodaantropólogaVanessaLea:

CabeaquiespecificaranecessidadedealfabetizaçãodosTxukarramãe.NoParque Xingu os hábitos de leitura e escrita dos caraíbas19 (antropólogos, médicos,etc.)sãoobjetodefascinaçãodosíndios.Antesdequalquerumdeles ter sido alfabetizado, é provável que essa atividade representasse uma qualidadeinerenteaosbrancos,algoquesimbolizapoder.OsTxukarramãesãoconscientesdospreconceitosdoscaraíbasem relaçãoaeles e, semdúvida, a alfabetização constitui uma aspiração, na medida em que éconcebida como instrumental para o acesso ao poder dos ‘civilizados’. SegundoumTxukarramãe deKretire, osKayapó-Gorotire acusam-nosdeserbobosporqueaindanãosabemlereescrever.(LEA.In:ComissãoPró-Índio, 1981, p. 60)

Ocoautordestetextoviveusituaçãoparecida,comoestagiáriodoCursodeTeologiadasFaculdadesEST,deSãoLeopoldo,naáreaindígenaDeni,noMédioJuruá,em2006.Porocasiãodefestividade,asquatroaldeiasexistentesse encontraram.Quandoo visitante conversava como líder damenor dasaldeias, ouviu-o dizer que na sua aldeia os Deni eram todos “burros” e que o visitante precisava ir lá para ensiná-los a ler e escrever. Ele considerava sua aldeia“burra”,porqueeraaúnicaquenão tinhaumaescola indígena,nemprofessores indígenas.20

19 “O termo caraíbaétambémdenominaçãoqueosíndiosdavamaoseuropeus”(KOOGAN-HOUAISS,1999).

20EssediálogoaconteceuduranteestágiorealizadoporAbraãoN.G.SchäferentreosDenidoRioXeruã,no período de julho a dezembro de 2006.

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Fatos como os citados nos revelam que, além do domínio da leitura, da escritaedocálculo,aalfabetizaçãobuscadapelospovosindígenaspodeter,deumlado,umcaráterdedefesa,conscientização,revitalizaçãoeautoafirmação;e de outro, de libertação damarca negativa oudo estigmaque a condiçãode analfabetismo acarreta. Goffman (1988, p. 18-19), referindo-se a como as pessoasestigmatizadasrespondemasituaçõesdeestigmatização,dizque,assimcomo algumas pessoas recorrem a diferentes meios ou produtos “para corrigir a fala, para clarear a cor da pele, para esticar o corpo, para restaurar a juventude”, [...]“umanalfabetocorrigesuaeducação”.Assim,aoreivindicaremaescola,os indígenas teriam em vista, entre outras coisas, a libertação do estigma doanalfabetismo,oqualpareceestartãoatreladoaocorpoquealibertaçãotem que se evidenciar nele. Com efeito, no povo Deni, assim como em outros povos, é comum ver-se pessoas tatuadas com seus próprios nomes, de forma bem visível, em seus corpos, conforme observado pelo coautor deste texto.

SegundorelataMariaInêsLadeira,doCentrodeTrabalhoIndigenista,a construção da “escola da aldeia” – na realidade, de uma aldeia guarani,no final de 1977, “significou a realização de um desejo e necessidade hámuito tempo sentidos” (LADEIRA. In:ComissãoPró-Índio, 1981, p.112).Diz a autora que os Guarani queriam uma escola voltada aos seus interesses epreocupações,devidoao insucessonas repetidas tentativasdeaprenderaler e escrever na escola oficial (do branco) desde que se haviam radicadonaBarragem.Daíainsegurançadosadultosquantoàprópriacapacidadedeaprender. Mas, vencido esse ‘constrangimento’ inicial, “a escola da aldeia foi, pouco a pouco, se adaptando ao espaço físico e social e ao ritmo de vida e de trabalho da aldeia” (ibidem, p. 113). Isso, na segunda metade da década de 1970.Apartirdeentão,acentuou-seointeressepelaescolarizaçãoindígena.Seatéentãosepensarasempreemescolasparaíndios,apartirdadécadade1980,particularmente,assistiu-seaumatransformaçãodegrandeimportância,qual seja, a passagem da escola para índios para a escola indígena, bilíngue e intercultural.Nabasedessanovaconcepçãodeescolaestiveram,deumlado,osprópriosmovimentosindígenas,nãosónoBrasil,masemtodasasAméricas,edeoutro,aatençãocrescentequeospovosindígenaspassaramamerecernalegislação (Constituiçãode 1988), nasOrganizaçõesNãoGovernamentais,nasIgrejas(TeologiadaLibertação),emeventosinternacionaiscomoaEco92, na mídia etc.

Noentanto,emquepesemtaismudanças,ideiassemelhantesàsexpostasanteriormenteemrelaçãoàescolapodemserlocalizadasemtrabalhosmaisrecentes. Por exemplo, em estudo sobre Projeto Pedagógico Xavante, as autoras dizem que os Xavante

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têmsedestacado,maisrecentemente,porreivindicarem,comocidadãos,umcurrículodiferenciado,aorganizaçãoetáriadascriançassegundoastradiçõesdeseupovo,calendáriopróprio,aposentadoriaparaosprofessoresíndioseconstruçãodetextosdidáticosreferentesàculturamaterialquelhes dá identidade.Aofinal doProjeto, osXavante buscaramconstruircoletivamenteumaconcepçãodecurrículoquepudessecontribuirparaaelaboraçãodosProjetosPolítico-Pedagógicosdesuasescolascomaparti- cipaçãodacomunidade.(CAMARGO e ALBUQUERQUE, 2003, p. 340)

Por sua vez, referindo-se a comunidades indígenas colombianas, Andrea Lisset Pérez observa que muitos membros da comunidade Uwa “questionam e, inclusive, rejeitam as escolas porque consideram que ‘as crianças se tornam desobedientesquandofrequentamaescola,jánãoqueremtrabalharnemajudarospais’,‘depoisqueestudamjánãoqueremvoltarparaascomunidades,vãoparafora,paraascidades,por issonãomandoosfilhosparaaescola’, ‘naescolaesquecemaculturaeatéalíngua’”(PÉREZ,2007,p.235).

VainessamesmadireçãoaobservaçãodeMariaAparecidaBergamaschi(In: STEPHANOU e BASTOS, 2005, p. 413) quando, referindo-se aos índios Guarani,dizqueesses“tomaramemsuasmãosadiscussãosobreaescola,que a sabem estranha e, por isso, quando a querem, transformam-na, tornado-a também sua”.

Em síntese, a mesma escola que os indígenas passaram a buscar como soluçãoconstitui,elamesma,umproblema.Nofundo,aquestãoésaberseaescola pode ser diferente do que ela foi historicamente: produto e, ao mesmo tempo, elemento constitutivo da sociedade burguesa.

De como o IBGE descobriu os indígenas e de como os indígenas confundiram o IBGE

Até oCensoDemográfico 1980, inclusive, quando investigaram cor, nuncaoscensoscontemplaramqualquercategoriaquepermitisseidentificarouniversocompreendidosobasdenominações“índio”ou“indígena”.Aex- pectativaeraqueosíndiosouindígenassedeclarassemoufossemclassificadoscomo pardos.Emmeioaprofundastransformaçõesemcursonomundotodo(assucessivasdeclaraçõesdedireitoshumanos,inclusivedospovosindígenas;amudançanalegislaçãopermitindoaregularizaçãofundiária;osnumerosose fortes movimentos indígenas em toda a América Latina e, inclusive, o espaço crescente que passaram a ganhar na mídia e nos eventos nacionais e atéinternacionais;onovotipodeaçãodasigrejasinspiradonaTeologiadaLibertação;aaçãodenumerosasOrganizaçõesNãoGovernamentais(ONGs)deapoioàcausaindígenaetc.)oCensoDemográfico1991incluiupelaprimeiravez a categoria indígena no quesito sobre cor ou raça, o qual passou a incluir

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cinco categorias de resposta: branca, preta, amarela, parda, indígena. No que serefereàquestãoespecificamentefundiária,oIBGEéexplícito:

O processo administrativo de regularização fundiária, composto pelasetapasde identificaçãoedelimitação,homologaçãoeregistrodas terrasindígenas, está definido na Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973(EstatutodoÍndio),enoDecretonº1775,de8dejaneirode1996.As 604 terras indígenas reconhecidas compreendem 12,5% do território brasileiro(106359281ha),comsignificativaconcentraçãonaAmazôniaLegal.Esseprocessodedemarcaçãoencontra-seaindaemcurso,com70%das terras indígenas regularizadas (demarcadas e homologadas). (IBGE, 2005, p. 13)

Compreende-se, assim, de um lado, o novo interesse pela presença dos “indígenas”noscensosdemográficos.Mas,deoutro,parecequeosmesmosfatores que despertaram tal interesse produziram um efeito inesperado, qual seja, aexplosãodemográficaverificada,de1991paraoano2000,napopulaçãoquese autodeclarou indígena nos dois censos. Com efeito, esse número aumentou emmaisde100%nonovênio,passandode294.131em1991para734.127em2000 (ibidem, p. 19), o que representa uma taxa média geométrica anual de crescimentodaordemde10,8%paraoconjuntodapopulaçãoautodeclaradaindígenanoBrasil.Éóbvioqueumcrescimentodessaordem,noperíodode1991a2000,nãopodeserexplicadoapenasemtermosvegetativos.Umataxamédia geométrica de crescimento anual de 10,8% entre os autodeclarados indígenas representa “uma taxa muito elevada, uma vez que o total do País apresentou no mesmo período um ritmo de crescimento anual de 1,6%”, fato que,segundooIBGE,“apresentaumadificuldademetodológica,umavezquequalquer estudo comparativo entre os dois censos no tocante aos indígenas deverá necessariamente levar em conta essa diferença” (ibidem, p. 32). Deve terhavido,emalgumamedidanãodesprezível,migração da categoria parda para a categoria indígena.Acomparaçãodastaxasdecrescimentonoperíodosugere isso, uma vez que a taxa menor de crescimento se encontra precisamente entre os pardos e a maior, entre os indígenas: branca – 2,1%; preta – 4,2; amarela – 2,1%; parda – 0,5%; indígena – 10,8% (ibidem, p. 32).

AcomparaçãodosdadosdosCensos1991e2000ofereceoutrasurpresa:esse crescimento foi maior justamente no meio urbano, especialmente nas capitais, onde a referida taxa alcançou o patamar de 16,0% ao ano, contra 9,9% nointerior(ibidem,p.24).Emais:astaxasanuaismaiselevadasverificaram-senoSudeste(20,5%),Nordeste(13,3%)eSul(12,2%),asregiõesrelativamentemais urbanizadas (ibidem, p. 32).

Referindo-se especificamente ao estado educacional, o IBGE sintetizanosseguintestermosamudançaverificadanonovênio1991/2000:

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Constata-se que os indígenas apresentaram, a julgar pelos resultados cen- sitários, grandes avanços nos níveis educacionais na década de 1990. O níveldealfabetizaçãoestavaabaixode50%noCensoDemográfico1991,masataxadealfabetizaçãocalculadapara2000revelouumcrescimentode50,2%,enquantoapopulaçãobrasileirade15anosoumaisdeidadeapresentanoperíodo1991/2000umcrescimentonaproporçãodepessoasalfabetizadas de 8,1%, passando de 79,9% em 1991, para 86,4% em 2000. Entretanto,ascondiçõeseducacionais,emboratenhammelhoradomuito,aindarefletemumalto índice de analfabetismo. Embora a dicotomia exis- tente entre o urbano e o rural seja ainda muito grande, o avanço foi sensível naárearuralquantoàreduçãodosníveisdeanalfabetismo,principalmentenaRegiãoSudestedoPaís.OsníveisdealfabetizaçãomaiselevadosestãonasRegiõesSudesteeSul.(IBGE,2005,p.55.Sãonossososgrifos)

Vistaaquestãopeloladodoanalfabetismo,nãohá,noBrasil,desdeoprimeiro recenseamento realizado em 1872 até o Censo 2000, nenhum período intercensitário21 em que a taxa de analfabetismo tenha registrado uma quedatãoacentuadacomoaquelaapuradanoperíodo1991/2000entreapopulaçãoautodeclaradaindígena.Comefeito,tendocomoreferênciaapenasaspessoasde15anosoumais,noperíodo1991/2000ataxadeanalfabetismocaiude50,8%para26,1%entreapopulação indígenatotal; de24,8%para13,8%, entre a população indígenaurbana ede62,4%para45,5%entreapopulaçãorural totalepara51,6%entreapopulaçãorural específica, categoria criada no Censo 2000, que engloba apenas as pessoas residentes em terras indígenas (ibidem, p. 56).

O analfabetismo indígena no Brasil no ano 2000

Passa-se agora a comparar a taxa de analfabetismo para o conjunto das pessoas autodeclaradas indígenas, frente aos outros grupos étnico-raciais que compunhamapopulaçãobrasileiranoano2000,considerando-se,agora,aspessoasde10anosoumais.Osdadosconstantesnosgráficosaseguiranalisa- dossãoresultadodeprocessamento,realizadopelosautores,dosmicrodadosdo Censo 2000, obtidos do IBGE em DVD.

A taxa mais elevada de analfabetismo entre as diferentes categorias de cor ouraçaverifica-seentreaspessoasautodeclaradasindígenas(25,2%),seguidadastaxasverificadasentreaspessoasautodeclaradaspretas(20,3%)epardas(16,8%). No extremo inferior aparecem as taxas de analfabetismo apuradas nos grupos populacionais constituídos pelas pessoas autodeclaradas brancas (7,7%) e amarelas (4,8%). A taxa indígena de analfabetismo chega a ser 3,3 e 21Pode-seconsultararespeitootexto“AnalfabetismoealfabetizaçãonoBrasil:tendênciasecularequestões

metodológicas” (FERRARO. In: SANTOS; DAMIANI, 2005, p. 56, Tabela 1).

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5,25vezesmaiselevadadoqueastaxasverificadasentrebrancoseamarelos,respectivamente(Gráfico1).Emresumo,ograndecorteemtermosdetaxasde analfabetismo está entre pessoas amarelas e brancas, de um lado, com as taxas mais baixas, e pessoas pardas, pretas e indígenas, de outro lado, com as taxas mais altas.

Feitaessacomparação,pode-sepassar,agora,àanalisedoanalfabetismonapopulaçãoautodeclaradaindígena,introduzindoasvariáveissexo,regiãoe grupos de idade.

GRÁFICO 1 Taxadenãoalfabetizados(as)entreaspessoasde10anosoumais,

segundo a cor ou a raça. Brasil, 2000.

Fonte: IBGE. Censo demográfico 2000. Microdados.

OGráfico2permiteduasobservações.Deum lado, as taxasdeanal- fabetismosãoacentuadamentemaiselevadasnosgruposapartirdos50anosdeidade,emcomparaçãocomosgruposetáriosabaixode50anos.Issodeveestar sinalizando uma intensificação da alfabetização indígena na segundametadeou,talvezcommaisprecisão,noúltimoterçodoséculoXX.Deoutrolado, em todos os grupos de idade a partir dos 20 anos, as mulheres apresentam taxas de analfabetismo mais elevadas do que os homens, invertendo-se, porém, a situação a favor dasmulheres nogrupomais jovem, isto é, nogrupode10a19anos.Emrelaçãoaisso,osestudosvêmmostrandoque,noBrasil,as mulheres apresentam, em todos os grupos de idade abaixo de 50 anos,

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taxasdeanalfabetismoinferioresàsdoshomens(FERRARO,2007).Issofazprever que nas próximas décadas a vantagem das mulheres, no que se refere à alfabetização entre as pessoas autodeclaradas indígenas, irá estender-setambém para os grupos seguintes de idade (20 a 29, 30 a 39 anos etc.).

GRÁFICO 2 Taxadenãoalfabetizados(as)napopulaçãoindígenade10anosoumais,

por sexo, segundo grupos de idade. Brasil, 2000.

Fonte: IBGE. Censo demográfico 2000. Microdados.

OsdadosacusadospeloCenso2000fazemecoàobservaçãofeitaporMariaInêsLadeira,emtrabalhodofinaldadécadade1970,sobreaaldeiaguaranidaBarragem,emSãoPaulo.Dizaautoraque“asmulhereseoshomensmaisvelhos,apesardointeresseconstanteemrelaçãoàescola,nãoquiseramestudar”.Eesclarece:“Paraosíndiosaalfabetizaçãoévistadeummodomuitoprático,visandosempresuaaplicação(aalfabetizaçãonãosignifica‘acúmulode saber’). Nesse sentido, as mulheres e os mais velhos se sentem distantes dessa utilização” (LADEIRA. In:ComissãoPró-Índio/SP, 1981, p.113).OCenso 2000, porém, mostra que isso está mudando nos grupos de idade mais jovens.Osmaisvelhosprovavelmentenãoirãoalfabetizar-se.Mas,apartirdosgruposmaisjovens,asmulheresautodeclaradasindígenaspoderãobaixaras suas taxas de analfabetismopara níveis iguais ou, seguindo a tendênciaverificadaparaoconjuntodoPaís,paraníveisinferioresàstaxasmasculinasde analfabetismo entre os autodeclarados indígenas.

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Comparam-se agora as taxas de analfabetismo entre os autodeclarados indígenasporregião.OexamedoGráfico3permiteveraenormedesigualdaderegional existente na própria população autodeclarada indígena quanto aoanalfabetismo.Comefeito,ataxadeanalfabetismonaRegiãoNorte(41,8%)representa1,6e1,7vezes,respectivamente,astaxasdaRegiãoCentro-Oeste(25,4%)edaRegiãoNordeste(24,5%).Nooutroextremosituam-seasregiõesSul (18,4%) e Sudeste (12,1%), representando esta última uma taxa 3,5 vezes menorqueadaRegiãoNorte.Taisresultadosacompanham,demodogeral,asdesigualdadesregionaisapuradasparaoconjuntodapopulaçãobrasileira(FERRARO e KREIDLOW, 2004).

GRÁFICO 3 Taxadenãoalfabetizados(as)napopulaçãoindígenade10anosoumais,

segundoasregiões.Brasil,2000.

Fonte: IBGE. Censo demográfico 2000. Microdados.

OGráfico 4 permite relacionar as taxas de analfabetismo com sexonasdiferentesregiões.ExceçãofeitadaRegiãoNordeste,ondeastaxassãopraticamenteidênticas(emtornode24,5%),emtodasasdemaisregiõesastaxasdeanalfabetismosãoacentuadamentemaiselevadasentreasmulheresautodeclaradas indígenas do que entre os homens. Tais resultados indicam que entre os indígenas a “corrida” das mulheres para a escola está retar- dadaemrelaçãoaoqueseverificaparaoconjuntodapopulaçãobrasileira, onde as mulheres já superam os homens na maioria dos indicadores educa- cionais.

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GRÁFICO 4 Taxadenãoalfabetizados(as)napopulaçãoindígenade10anosoumais,

porsexo,segundoasregiões.Brasil,2000.

Fonte: IBGE. Censo demográfico 2000. Microdados.

GRÁFICO 5 Taxadenãoalfabetizados(as)napopulaçãoindígenaentre10e19anos,

porsexo,segundoasregiões.Brasil,2000.

Fonte: IBGE. Censo demográfico 2000. Microdados.

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Porfim,oGráfico5consideraapenasogrupoetáriode10a19anos.Nessegrupo,omaisjovemnapopulaçãode10anosemais,asmulheresjálevamvantagem(taxasmaisbaixasdeanalfabetismo)emduasregiões(Sudestee Nordeste), com diferenças mínimas em outras duas (Sul e Norte). Apenas na Região Centro-Oeste a diferença continua acentuada em desfavor dasmulheres.Issosignificaque,comalgumasdécadasdedefasagem,apopulaçãoautodeclaradaindígenacomeçaamanifestaramesmatendência,jáapuradahámais tempo em relação ao conjuntodapopulaçãobrasileira, à inversãonarelaçãoentresexoeeducação,comíndiceseducacionaiscrescentementefavoráveisàsmulheres.

O analfabetismo indígena no Rio Grande do Sul

Examinado o analfabetismo entre as pessoas autodeclaradas indígenas noBrasilcomoumtodoenasgrandesregiões,aatençãovolta-seagoraparaoestudodeumcasoparticulardentrodoconjuntodasUnidadesdaFederação– o Estado do Rio Grande do Sul. Esse Estado sempre se distinguiu, desde o primeiro recenseamento realizado no Brasil, em 1872, até o Censo 2000, por apresentar uma das mais baixas taxas de analfabetismo entre as diferentes Províncias do Império e, depois,Unidades da Federação.Com efeito, emcontraposiçãoaumataxanacionaldeanalfabetismodaordemde12,8%parao conjunto das pessoas de 10 anos ou mais, no ano 2000, o Estado do Rio Grande do Sul apresentava uma taxa de apenas 6,1%, situando-se abaixo desse nível apenas Santa Cataria (5,7%) e o Distrito Federal (5,2%). No extremo oposto,figuraoEstadodeAlagoas,comumataxadeanalfabetismo(31,8%)5a6vezesmaiselevadadoqueaquelasverificadasnoDistritoFederal,SantaCatarina e Rio Grande do Sul (IBGE, 2000).

NoEstadodoRioGrandedoSul,apopulaçãoautodeclaradaindígenacresceu,noperíodo1991/2000,aumritmoatéumpoucomaior(11,7%aoano) do que o verificado para o conjunto doPaís (10,8% ao ano) (IBGE,2005,p.32-33).ApopulaçãoautodeclaradaindígenaresidentenoEstadodoRioGrandedoSul,noano2000(39.500),representava5,3%dapopulaçãoautodeclarada indígena recenseada no Brasil naquele ano (734.127), e quase metadedarecenseadanaRegiãoSul(84.627).DessetotaldeautodeclaradosindígenasnoRioGrandedoSul,quase2/3(24.240)residiamnomeiourbano,epoucomaisde1/3(12.963)nomeioruralespecífico,istoé,emáreasindígenas(ibidem, p. 116).

AlgumastabulaçõesrealizadascombasenosmicrodadosdoCenso2000permitemanalisarcomparativamente,quantoaoanalfabetismo,asituaçãodosautodeclaradosindígenasresidentesnoRioGrandedoSul.Aquestãoquepodeser levantada é a de saber se o fato do Estado do Rio Grande do Sul ter andado

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nafrentenalutacontraoanalfabetismosignificou,porexemplo,superaçãoou,pelomenos,encurtamentodasdesigualdadesétnico-raciaisedegêneroquantoaoacessoàescolaeàalfabetização.

ComojáseobservounoGráfico1,astaxasdeanalfabetismonoBrasilse distribuem numa escala descendente, situando-se, respectivamente, nos extremos superior e inferior as categorias indígena e amarela: indígena – 25,2%; preta–20,3%;parda–16,8;branca–7,7%eamarela–4,8%.OGráfico6permiteidentificaralgumasdiferençasmarcantesnoRioGrandedoSulemrelaçãoaoBrasilcomoumtodo.Emprimeirolugar,noRioGrandedoSul,ataxadeanalfabetismodapopulaçãoautodeclaradaindígena(18,0%),emborasituada7pontospercentuaisabaixodataxaverificadanoBrasil(25,2%),aparecemais claramente isolada no topo da escala de analfabetismo. Em segundo lugar, desaparece a diferença que havia entre pretos e pardos no Brasil, igualando-se praticamente, no Estado do Rio Grande do Sul, as duas taxas (11,0% e 11,3%, respectivamente). Em terceiro lugar, as categorias branca e amarela trocam de posição, noRioGrande doSul, em termos de taxas de analfabetismo:amarela–8,0%ebranca–4,9%(Gráfico6).Aescalafica,assim,reduzidaa quatro níveis apenas, o que aumenta a distância (desigualdade) relativa que separaacategoria indígenaemrelaçãoàscategoriasdecorouraçapretae

GRÁFICO 6 Taxa de analfabetismo entre as pessoas de 10 anos ou mais,

por cor ou raça. Rio Grande do Sul, 2000.

Fonte: IBGE. Censo demográfico 2000. Microdados.

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parda.Nessascondições,emboracomtaxadeanalfabetismomenordoqueaverificadanoconjuntodapopulaçãobrasileira,asituaçãodedesigualdadedaspessoas autodeclaradas indígenas quanto ao analfabetismo é relativamente mais acentuada no Estado do Rio Grande do Sul do que no País como um todo. Os sete pontos percentuais que separam a taxa de analfabetismo indígena (18,0%) dastaxasapuradasentrepardos(11,3%)epretos(11,0%)põememrelevoadesigualdade em termos étnico-raciais no interior do Estado do Rio Grande do Sul.Assim, a taxamenor de analfabetismo noEstado em comparaçãocomoutrasUnidadesdaFederaçãonãosignificaporsisóadiminuiçãodasdesigualdades internas entre as diferentes categorias étnico-raciais.

NoRioGrandedoSul(Gráfico7),astaxasdeanalfabetismoporgruposdeidadesãomaisbaixasdoquenoBrasil(Gráfico2),sendoissoverdadetantopara homens quanto para mulheres autodeclarados(as) indígenas. Na faixa de idade mais jovem (10 a 19 anos), as taxas de analfabetismo no Rio Grande do Sul representam aproximadamente a terça parte das taxas apuradas para o Brasil.Noqueconcerneàdistribuiçãodapopulaçãoautodeclaradaindígenaanalfabeta por sexo, a desvantagemhistórica dasmulheres em relação aoshomens é mais acentuada no Rio Grande do Sul do que no Brasil, em que

GRÁFICO 7 Taxa de analfabetismo entre as pessoas de 10 anos ou mais,

por sexo, segundo os grupos de idade. Rio Grande do Sul, 2000.

Fonte: IBGE. Censo demográfico 2000. Microdados.

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pesem taxas menores de analfabetismo naquele do que neste. No grupo de 10a19anos,contrariamenteaoqueseverificanoBrasil,ondeasmulheresautodeclaradas indígenas já apresentam taxa de analfabetismo menor do que os homens (16,3% e 17,8%, respectivamente), estranhamente, no Rio Grande do Sul, as mulheres indígenas continuam apresentando, nesse mesmo grupode idade, taxade analfabetismosuperior àmasculina (7,5%e4,9%,respectivamente).

AjulgarpelosdadosdosGráficos6e7,parecequeasdesigualdadeshistóricasemdesfavordogrupoétnicoracialindígenaeespecificamentedasmulheresautodeclaradasindígenasoferecemmaiorresistênciaàsuperaçãonoEstado do Rio Grande do Sul do que no conjunto do País.

Conclusão

Agrandeexpansãodapopulaçãoautodeclaradaindígena,verificadanonovênio 1991 a 2000, tanto noBrasil comoum todoquanto noEstadodoRioGrandedoSul individualmente, leva a dirigir a atençãopara oCenso2010.Aquestãoéseadécada2000/2010iráreproduziraselevadíssimastaxasde crescimento da população apuradas no período 1991/2000. Junto comisso, coloca-se aquestãode saber seo ritmode crescimentodapopulaçãoautodeclarada indígena continuará a dar-se mais fortemente no meio urbano doquenomeiorural,particularmentedoquenomeioruralespecífico(nasáreas indígenas).

O fato de a categoria “indígena” ter sido introduzida pela primeira vez noCensoDemográfico1991,edepoismantidanoCenso2000,nãopermitetraçarastrajetóriasdastaxasdeanalfabetismo,alfabetizaçãoeescolarizaçãoindígena, em confronto com as trajetórias das mesmas taxas para as demais categorias étnico-raciais distinguidas nos censos (cor ou raça preta, parda, branca e amarela). O confronto entre os Censos 1991 e 2000 sugere que houve um acentuado declínio do analfabetismo indígena, no País em geral e no Rio GrandedoSulemparticular,nonovênio1991/2000,ou,comosemostrouemoutro texto (FERRARO e SCHÄFER, 2008), que houve um singular avanço daalfabetizaçãoeescolarizaçãodapopulaçãoautodeclaradaindígenanorefe- rido período.

Emquepeseoacentuadorecuodataxadeanalfabetismoentreapopulaçãoautodeclaradaindígenanoperíodo1991/2000,nãosepodeignorarofatodequeé entre os indígenas que se encontram as taxas mais elevadas de analfabetismo no Brasil. O Estado do Rio Grande do Sul, por sua vez, apresenta taxas de analfabetismomaisbaixasqueasdemais regiõesdoBrasil.Noentanto, asdesigualdadesinternas,relacionadassejaacorouraçasejaagênero,parecem

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afetar mais fortemente as pessoas autodeclaradas indígenas no Rio Grande do Sul do que no Brasil. Conclui-se daí que, junto com a perspectiva nacional e regional na análise dos fenômenos da alfabetização e escolarização, não se deve esquecer da perspectiva de análise no plano das diferentes Unidades daFederação consideradas individualmente.Tudo indica que as diferenças nãosãoapenasdenível.ContrariamenteaoquesepassanoBrasilcomoum todo, no Rio Grande do Sul a taxa indígena feminina de analfabetismo no grupo de idade de 10 a 19 anos continua sendo mais elevada do que a mascu- lina. Tal fato reforça a importância de se descer ao nível estadual no estudo daalfabetizaçãoeescolarização,afimdesepodercaptarasespecificidadesregionais.

O Estado do Rio Grande do Sul surpreende também por outros motivos. Primeiro,porque,contrariamenteaoqueocorrenoPaís,noreferidoEstadonãoéapopulaçãoamarela que apresenta a taxa mais baixa de analfabetismo, mas a branca. Segundo, porque as taxas de analfabetismo entre negros e pardos praticamente se equivalem. Terceiro, porque essa igualdade entre pretos e pardosacabaaumentandoadistânciadosindígenas,deumlado,emrelaçãoapretos e pardos, de outro, quanto ao analfabetismo.

Porfim,estimamosquepermanecedepéaquestãodosignificadoquepossavir a ter a escola indígena.Poderáelaser,paraaspopulaçõesautodeclaradasindígenas,outracoisaquenãoumpassaporteparaacidade?Conseguir-se-áfazerdelaummeiodepreservaçãoevalorizaçãodasdiferentessociedadeseculturasindígenas?

Para concluir, é preciso dizer que seria no mínimo anacrônica qualquer propostaque,atítulodepreservaçãodasculturasindígenas,quisesseimaginar,hoje,aldeiasindígenassemescolas.Asescolasestãoaí,emnúmerocrescente.O Censo Escolar registrou, em 1999, 1.392 escolas em terras indígenas no País. Em 2005, esse número já se havia elevado para 2.323 escolas, o que representa um aumento de 67% em seis anos, mobilizando 8.431 professores e atendendo a 163.773 estudantes indígenas (em terras indígenas), dos quais 128.984 no EnsinoFundamental,nãocomputadosaíestudantesautodeclaradosindígenas,masresidentesforadeterrasindígenas(MEC/INEP,2007,p.19-20e75).NoEstado do Rio Grande do Sul, por sua vez, o Censo Escolar 2005 registrou 4.888matrículasnoEnsinoFundamentalemEstabelecimentosdeEducaçãoEscolarIndígena,aínãocomputadasaspessoasautodeclaradasindígenas,masresidentes fora das áreas indígenas (ibidem, p. 75). Parece que também para aspopulaçõesresidentesnasaldeiasindígenas(emterrasindígenas),aescolaveioparaficar.Noplanodapolíticaeducacionalassimcomonodaspráticaspedagógicas,estápostoodesafiodefazerdelaumaescolaverdadeiramenteindígena.

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5 Kãki karan fã22: reflexões acerca da

educação escolar indígenaMaria Aparecida Bergamaschi

Fabiele Pacheco Dias

Asreflexõesaquiapresentadasdecorremdeinvestigaçõesquerealizamosacompanhando o movimento das escolas indígenas Guarani e Kaingang de Porto Alegre.23 Conquanto as escolas indígenas constituam uma realidade na maioria das aldeias Kaingang e Guarani do Rio Grande do Sul, ainda se mantém sob uma invisibilidade que quase as apaga no cenário educacional. Entretanto, dadosatuaisdaSecretariadeEstadodaEducaçãoapontamaexistênciade54 escolas estaduais de Ensino Fundamental em aldeias indígenas Kaingang e 13 em aldeiasGuarani. Instituídas pormeio de uma legislação própria,caracterizam-se como escolas específicas e diferenciadas, principalmentepor privilegiarem o ensino na língua materna de cada etnia, o que as faz “escolas bilíngues”. A presença de professores da comunidade constitui outra característica importante da escola, sendo que nos últimos anos o número de professoresnãoindígenasvemdecrescendoacentuadamente,dandolugaraosprofessores indígenas indicados pela comunidade de cada aldeia.

Nocenárionacional,conformedadosdoMinistériodaEducação(INEP/MEC, 2006), encontramos um total de 2.422 escolas em Terras Indígenas, onde trabalham aproximadamente 11.936 professores, 90% deles indígenas. Essas escolassãofrequentadasporumapopulaçãode174.255alunos,pertencentesàsmaisde240etniasquecompõemospovosindígenasbrasileiros.Ocensomostra que o número de estudantes matriculados nas escolas indígenas vem crescendoemrelaçãoa2002,principalmentenosegundosegmentodoEnsinoFundamental – 5ª a 8ª séries. Igualmente, a presença de estudantes indígenas no Ensino Superior cresceu nos últimos anos, uma amostra de que os povos origináriostambémqueremocuparespaçoshistoricamentereservadosaosnãoindígenas. Segundo Gersen Baniwa, diretor-presidente do Centro Indígena deEstudosePesquisas(CINEP),cercade5.000índiosjácursaramouestãocursando o Ensino Superior em todo o país.

22 Kãki Karan fãnoidiomaKaingangsignificaumlugardeaprendizagens.23SãotrêsasescolasindígenassituadasemPortoAlegre:E.E.I.Fag Nhin, da aldeia Kaingang; E. E. I.

Anhenteguá, da aldeia Guarani, ambas situadas na Lomba do Pinheiro, e a E. E. I. Topẽ Pãn, da aldeia Kaingang,situadanoMorrodoOsso.Osdadosetnográficosaquiapresentadosreferem-se,principalmente,àEscolaKaingangdoMorrodoOsso.

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Mesmo sendo a escola para os índios tão antiga no Brasil quanto àcolonizaçãoe,namaioriadasvezes,impostadesdeforadaaldeia,observa-senosúltimosanosumasubstancialmodificaçãonoquetangeàscaracterísticasdessaescola:deumaescolaparaosíndioséevidenteatransformaçãoemumaescola dos povos indígenas, em que cada aldeia e, no conjunto, cada povo, tomaparasiaresponsabilidadedeconduziraeducaçãoescolar.Percebe-setambém que a escola indígena vem se constituindo em um canal de diálogo com omundonãoindígena,aosistematizarconhecimentosacercadassociedadesocidentais.

Também é reconhecida como uma estratégia de afirmação étnica ede contato comos conhecimentos e saberes domundonão indígena.Uma“ferramenta de luta”, como costumam dizer as lideranças indígenas, pois, semabrirmãodossaberestradicionaisquesãoabasedaeducaçãodasaldeias, a escola possibilita o acesso a conhecimentos que tornama sociedadenãoindígena mais compreensível, como a escrita, a leitura, o sistema monetário, a língua portuguesa, possibilitando também um relacionamento mais equi- librado.

Bengoa (2000) argumenta que a unidade indígena na América Latina se constróinaafirmaçãoétnicadecadagrupo,atravésdeumaatitudepolíticaquebuscanaancestralidade,nosfiosdatradiçãoquetecemopresente,ainspiraçãoe as ferramentas para constituírem espaços de vida e ampliar seus direitos frente ao mundo ocidental. E, nesse sentido, um olhar mais alargado sobre o movimento e as lutas pelos direitos dos povos indígenas de toda a América mostra que o reconhecimento dos seus direitos no plano internacional deve muitoàeducaçãoescolar.“Laemergenciaindígenaqueatraviesaelcontinente(...) aboga por una educación intercultural y bilingüe que permita no sólo el conocimiento de la cultura occidental sino también la reproducción de su propia cultura” (BENGOA, 2000, p. 299).

A legislação que institui a Escola Indígena Específica e Diferenciada

ApoiadasemleisquefundamentamaEducaçãoEscolarIndígena,tantofederaisquantoestaduais,asliderançasdasaldeiastêmaprofundadoareflexãoacerca da escola diferenciada que querem instituir. O processo constituinte dos anos 80 marcou o início de um novo ordenamento jurídico para a edu- cação escolar indígena.AprópriaConstituiçãoFederal de1988 assegura apossibilidadedeumaescolaespecífica,diferenciada,interculturalebilíngue.ALeideDiretrizeseBasesdaEducaçãoNacional–LDBEM/1996–asseveralegalmente o uso das línguas maternas nas escolas indígenas, proporcionando a“recuperaçãodesuasmemóriashistóricas,areafirmaçãodesuasidentidadesétnicas,avalorizaçãodesuaslínguaseciência”(art.78).

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O detalhamento das proposições da LDBEM/1996 encontra-se nosParâmetrosCurricularesespecíficosparaasescolasindígenas,publicadosem1998,bemcomonoPlanoNacionaldeEducação/2001.Ambasapresentampossibilidadesparaaconstruçãodecurrículos,programas,materiaisdidáticose formação de professores de forma diferenciada. O parecer 14/99 e aResolução3/99,doConselhoFederaldeEducação,estabelecemasdiretrizescurriculares nacionais para as escolas indígenas, fundamentam conceitos importantesparadarcontadaeducaçãoescolardiferenciadaefixamdiretrizespara o funcionamento das escolas nas aldeias. Além desse importante conjunto de leis federais, a educação escolar indígena noRioGrande doSul contacomumaporte legalpróprioquegarantea suaespecificidade.OConselhoEstadualdeEducaçãoafirma,emsuasresoluções,queasescolas indígenasdeverãotransformar-senumespaçodepreservaçãodacultura,atravésdeumfuncionamentoespecífico,diferenciado,bilíngueoumultilíngue,interculturalecomunitário.Paratanto,sugerequeainstituiçãoescolardeveserorganizadaapartir da cosmologia indígena, assegurando que os professores que nela atuam pertençamaopovoemquestão(Parecernº383/2002–CEE).

Contudo,alei,porsisó,nãogaranteumapráticaescolardiferenciada.Professores e lideranças indígenas têm, reiteradas vezes, reclamado acercadadificuldadeeminstituirnasaldeiasaescolacomcaracterísticasprópriasepropostas didático-pedagógicas diferenciadas. Isso ocorre por conta de uma instituiçãoquetemcomopremissaahomogeneização,bemcomodegestoresdas políticas de educação escolar ainda não preparados para atuar comasdiferenças, acentuadopela incompreensãoque predominana relação entreosmundosindígenaenãoindígena.Observa-senasaldeias,principalmenteentre as pessoas mais velhas, uma ética do cuidado, no sentido de preservar o modo de vida indígena ante as possíveis mudanças provocadas pela escola, pois mesmo considerando a dinâmica cultural, própria dos grupos humanos que se recriam diante das vicissitudes, os povos indígenas sabem o potencial destruidordocontatocomassociedadesnão indígenas.Aéticadocuidadocaminhano sentidooposto à destruição– ummovimentoque agrega, queacolhe, que “gesta permanentemente a vida” (NÖRNBERG DA SILVA, 2000, p. 37).

Comoinstituiçãocriadanoseiodamodernidadeocidentalecompráticasque colaboram para constituir as pessoas de acordo com os modos de vida da sociedade que a implementou, a escola tem se inserido nas aldeias. Contudo, essa escola tem sido apropriada pelos indígenas, tanto Guarani como Kaingang, quearecriameressignificamcomasmarcasdesaberesefazeresdoseumododevida.Noseiodecadacosmologiasãocriadasestratégiasparaconformaressa escola diferenciada: instituem tempos e espaços próprios para as práticas

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escolares; ressignificamos conteúdos escolares; estabelecemprocessos de formaçãodeprofessoresapartirdaspráticasdeeducaçãotradicionaleimple- mentamoutrosmodosdeconvivêncianoespaçoescolar.

Mesmo amparadas pelas leis, ao constituírem modos próprios para o fazer escolar,asaldeiasnecessitamafirmareexpressarasuaorganizaçãoescolarparaqueoórgãoestatalgestordapolíticapúblicadeeducaçãoescolarcompreendae aceite as práticas pedagógicas diferenciadas. Tentam traduzir essa escola diferenciada para as instâncias institucionais de ensino na qual se insere a escola indígena, porém essa tentativa de diálogo é marcada, predominantemente, por incompreensões.Porsuavez,percebe-sequeaSecretariadeEstadodeEducaçãodoRioGrandedoSultemrealizadoummovimentoparaacolheras escolas indígenas, adequando as diferenças produzidas pela cosmologia indígenaKaingangeGuaraninoEspaçodeEducaçãoDiferenciada.Assim,as universidades também são convidadas a participar desse movimento que institui a escola indígenaespecíficaediferenciadanasaldeias,muitas vezes mediando diálogos, divulgando suas pesquisas ou se propondo a realizá-las.

Caminhos para construir a escola diferenciada: um olhar para as escolas Kaingang e Guarani

Nas pesquisas realizadas nas aldeias Guarani (BERGAMASCHI, 2005) e, mais recentemente junto aos Kaingang, percebemos que há, nas práticas de escolarização,umaapropriaçãodosmodosdefazerescolaapartirdainstituiçãonão indígena, que é o primeiro parâmetro observado. Muitas pessoas jáfrequentaramescolaforadaaldeiae,àsvezes,osprópriosprofessoresindígenassãomarcadosporprocessosepráticas educacionaisdas escolasocidentais.Sabem os riscos que representa a escola no cotidiano de suas crianças, mas apostamnaforçadaeducaçãotradicionalenacapacidadedetransformaressainstituição.“Antigamenteaescoladestruíaatradição,oidioma.Aspessoasiamparaacidadeestudarenãovoltavammais,desprezavamosparentes.Mashojeascoisasmudaram.Pensonosmeusfilhos,gostariaqueaprendessemaler, que aprendessem as leis” (Depoimento de uma liderança Guarani, Lomba do Pinheiro, 2004).

Observa-se nas escolas das aldeias o que Certeau (1994) explica como apropriação, que traduz omovimento de tornar algo próprio, adequado àsnecessidadesdequemseapropria,mesmoquenaorigemessebemnãolhepertença.Comodizoreferidoautor,oatodeconsumirnãocorrespondeaumaassimilaçãolineardetornar-sesemelhanteaobemconsumido.Oqueapráticada escola na aldeia sugere é que, no fazer, a torna semelhante a si, pois mostra apropriar-se dela, indianizando-a.

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Porém,nãoéfácilveressa“indianização”daescola,poisoolharquenos marca aponta para o já existente, o já olhado e criticado, o já estabele- cido. É necessário um olhar cuidadoso, que se atém em todos os gestos e que, principalmente, relacione o modo de vida da aldeia, as práticas educacionais da tradição com o que acontece na escola. Há também umcuidadodaspessoasda aldeia emmanter atitudesdiscretas em relação aoseumododevida,poisjáexperienciaraminúmerassituaçõesemqueforamadvertidosporseguiremsuatradição,sendojulgadosecategorizadoscomo“errados”porsetoresdasociedadenãoindígena.Tambémexternamaideiaque para preservar seus modos tradicionais de vida devem “guardar para si”, poissemprequeonãoindígenaaprende,divulgaetomaparasiossaberes,sem reconhecer a autoria. E, considerando a história de contato, sabemos comoestãocobertosde razão.Diantedisso,buscamos respeitaros limitescolocadospelaspessoasdaaldeia,nãoinsistindoparaalémdoquequeremmostrar.

Noentanto, paraver edescrever essa escola,muitasquestões advêm:quaisosatosquemostramumaescolaindígenaprópria?Quaisasestratégiasquepermitemconstituiressaescola?Quevaloresnãoindígenasaescolaveiculanaaldeia?Existeapossibilidadedeumefetivodiálogo,emqueasociedadenãoindígenatambémacolhasaberesefazeresdaeducaçãoindígena?Comose expressa a ética do cuidado para com o modo de vida indígena diante dos processosdeescolarização?

Apoiadosnumreferencialteóricoqueaproximaeducaçãoeantropologia,a pesquisa de campo que realizamos foi pautada preferencialmente pela etnografia, ancorada num estar-junto nas aldeias colocando contíguo àsatividadesescolaresoutrosmomentosdeconvivência,comofestas,caminhadas,rodas de chimarrão e visitas.Complementamos os dados comestudos emdocumentos e a realização de algumas entrevistas, registrando tambémosmomentos que a universidade recebeu representantes das aldeias em eventos, aulas e outras atividades.

As aldeias Kaingang e Guarani situadas no município de Porto Alegre que possuem escolas foram por nós visitadas com regularidade, especialmente a escolakaingangTopẽPãn,noMorrodoOsso,quenesseúltimoperíodomaissedispôsàpesquisa.Registrosnosdiáriosdecampo,advindosdasobservaçõesedoestar-juntonaescolaenaaldeia,configuraram,juntamentecomtranscriçãode entrevistas e palestras proferidas por professores e lideranças indígenas, o materialquepermitealgumasafirmaçõesereflexões.Transcrevemosaquiasfalas de nossos interlocutores, no sentido de respeitar seus dizeres e fazeres e, principalmente, para mostrar, também fora da aldeia, o que a sociedade indígenapensa,falaedizemrelaçãoasuaeducaçãoescolar.

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NoRioGrande do Sul, a educação escolar indígena está organizadaentre os Kaingang e os Guarani.24Em relação à localizaçãodesses povos,existemterrasindígenasemtodooestado,comumaconcentraçãomaiordaetniaKaingangaonorte,comumagrandepresençatambémnaregiãopróximaa Porto Alegre, reconhecida como territorialidade do Lago Guaíba. O povo Guaranivivenaregiãonorte,regiãometropolitanadePortoAlegreelitoraldoRio Grande do Sul. As mais de 60 escolas indígenas encontram-se nessas terras eestãovinculadasàSecretariadeEstadodeEducação,sendoqueapenasduasescolasestãoacargodemunicípios.

Umaparticularidadedamaioriadessasescolassãoosnomesdadosaelas,escolhidos pelas comunidades de acordo com suas histórias e sua cultura.25 ExemplossãoasescolasdePortoAlegre:EscolaEstadualIndígenadeEnsinoFundamental Fag Nhinque,segundooprofessor,significalombadopinheiro; Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental Anhenteguá, palavra que no idiomaguaranisignificaensinar/aprenderetambémpodesignificarverdade;Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental Topẽ Pãn que, segundo os moradoresdoMorrodoOsso,significaPédeDeusoutemplodeDeus.

A escola Topẽ Pãn – Morro do Osso

AEscolaEstadual IndígenadeEnsinoFundamentalTopẽPãn atende30 criançasKaingangdoMorrodoOsso, nos turnosdamanhãeda tarde,contando com um professor contratado pelo Estado, desde 2005. Esse é o segundo professor que atua na aldeia e começou aí seu trabalho em 2007, a convite da comunidade. Nasceu na Terra Indígena Votouro, RS, lá completou o Ensino Fundamental, onde seu pai também é professor bilíngue. Cursou o Ensino Médio fora da aldeia26 e, atendendo ao convite do cacique, veio para o Morro do Osso. No início de suas atividades recorreu muito ao professor Refej,daaldeiakaingangdeSãoLeopoldo,queéseutioe temumalongaexperiênciacomoprofessorbilíngue.Maisvelho,Refejconcluiuoprimeirocursodeformaçãodeprofessoresindígenas27 e hoje está cursando Pedagogia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

24Existem noRioGrande do Sul três etnias indígenas:Guarani (das parcialidadesMbyá eXiripá ou Nhandeva);KaingangeCharrua.Esteúltimopovoaindanãotemconstituídoescolaespecíficaedife- renciada,aguardandoparatalumaprimeirademarcaçãodeterras.

25UmmapadoRioGrandedoSulcomalocalizaçãodasTerrasIndígenaseumatabelacomosnomesdesuas escolas encontra-se em Bergamaschi, 2008.

26Éimportantesalientarque,mesmodiantedeumanecessidadeexplicitadapelosKaingangeGuarani,nãohá no Rio Grande do Sul escolas de Ensino Médio funcionando em aldeias indígenas, obrigando os jovens que desejam continuar os estudos a se afastar do convívio familiar e comunitário.

27ReferênciaaoMagistérioEspecífico,realizadopormeiodeumaparceriaentreaUniversidadeRegionaldoNoroestedoEstadodoRioGrandedoSul(Unijuí)eConselhodeMissõesentreÍndios(Comin),concluídoem 1996.

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AinserçãodoprofessornaescoladoMorrodoOssoevidenciaaformacomo,emgeral,sãoescolhidososprofessoresparaasescolas indígenas.Aprerrogativadeserconvidadopelaaldeiarevelaqueessapessoaédeconfiançadacomunidadeetemumasólidaformaçãonatradiçãoindígena,nessecasonatradiçãokaingang.Acompanhandooprocessodeescolhadoatualprofessor,observamos que algumas características foram fundamentais: falar e escrever o idiomado grupo, saber ouvir osmais velhos e seguir as orientações dacomunidade.Gãrfej faladarelaçãocomunidade-escola: “com a comunidade nosdamosbem,elesapóiammuito,éasegundavezqueelesestãotendoaconvivênciacomoprofessorquetátentandoexplicarpraelescomofazerparater o conhecimento do que a gente aprendeu. Isso tá sendo o mais importante eatéagoraelesestãoapoiando,issoqueéimportante,acomunidadesempreestar do teu lado” (Professor do Morro do Osso, depoimento registrado em 2008).

Porém, mesmo sendo a formação na tradição indígena o aspectomais importante, há uma expectativa entre os povos indígenas de que haja também cursos que formem professores na perspectiva escolar, conforme as recomendaçõesdoParecer14/1999doCFE,acercadaespecializaçãonecessáriaaoeducador indígena.Paraexemplificara formação inicialdiferenciadadeprofessores indígenas no Rio Grande do Sul, citamos o Projeto Vãfy, que, no ano de 2005, formou uma turma de professores Kaingang de nível médio, bem comooProgramadeFormaçãoparaaEducaçãoEscolarGuaraninaRegiãoSul e Sudeste do Brasil – Kuaa-Mbo’e (conhecer-ensinar) –, que formará, em 2008, pela primeira vez, um grupo de professores Guarani, também de nível médio.Além disso, os cursos de licenciatura são estrategicamenteescolhidos pelos estudantes indígenas que ingressam no Ensino Superior. O professor da escola kaingang do Morro do Osso já confessou sua vontade decursarMatemática,emborasuaatuaçãoprincipalhojenaaldeiaenvolva as letras.

Sob a orientação de Gãrfej, professor da aldeia na escola bilíngueTopẽPan,ascriançasaprendemalereescreveremKaingangePortuguês,simultaneamente. O ensino do idioma Kaingang, associado ao estudo de aspectosdaculturaindígena,fazdaescolaumforteinstrumentodeafirmaçãodaidentidade étnica. Para essa comunidade, ter uma escola que pratica diariamente o seu idioma é importante, pois o contato muito intenso com a cidade faz com quealgumasfamíliasfalemtambémoPortuguêsnoseudiaadia.Naescolaascriançastêmaoportunidadedeusaroidiomacomintensidade,respeitoevalorização.Acadavisitaquefazemosàaldeia,oprofessornosfaznotaroquanto a língua kaingang está mais fortalecida, pois além das crianças usarem a “linguagem” na escola, fomentam seu uso junto aos familiares.

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Podemosdizerqueoutrasmarcasdaescolasão:aconvivênciadecriançasde diferentes idades e níveis de aprendizagem; a adaptação das aulas aocalendáriodefestaserituais;ausênciadeumcontrolerígidodefrequência.Na sequência, expomos commaior detalhamento como observamos essascaracterísticas, discutindo-as teoricamente como constituintes de um modo próprio dos povos indígenas fazerem a sua escola nas aldeias, “indianizando” o tempo e o espaço escolar.

NaescolaTopẽPãnaturmanãoédivididaemséries:todosaprendemjuntos,osque“sabemmais”ajudamosqueaindanãosabemeécomumapre- sença na sala de aula de crianças de 3 ou 4 anos, que “já vai aprendendo alguma coisa”,comodizocacique.AdescriçãoqueregistramosdoDiáriodeCampomostraosdiferentesníveisdeapropriaçãodosconhecimentosescolares:

Dandoinícioàaula,oprofessorpassounoquadrocincovezesasvogais,cadavezcomumapalavraqueiniciavaporumadelas.Pudeverapenastrêsalunos copiarem. Outras duas faziam uma atividade diferente: uma copiava várias vezes somente as vogais e outra copiava as sílabas “ru” e depois “va” de exercícios que elas já tinham no caderno, provavelmente “temas” do dia anterior. Enquanto a turma trabalhava, o professor ajudava a aluna maisnovadaturma,queécanhotaenãoconseguefazero“a”minúsculo.Ele tentou por um tempo dizendo que era a cabeça de uma bonequinha e os cabelos, depois fez o tracejado para que ela passasse por cima (Diário de Campo, Fabiele Dias, Morro do Osso, 2008).

Acompanhando as aulas, vemos vários níveis de conhecimento e alunos de diferentes idades convivendo, o que remete, também, ao modo de vida fora da escola, em que as crianças maiores e menores andam juntas, estas aprendendocomasmaisvelhas,geralmente irmãoseprimos.Bergamaschi(2005) observa nas escolas das aldeias Guarani um mimetismo do que ocorre na aldeia, emqueummodode organizaçãodas crianças se prolongaparadentro do espaço escolar.

A maneira usual de aprenderem uns com os outros, especialmente através de umolharatentoecuriosodosmenoresparaofazerdosmaioressetranspõeparaaescola,conquantoapreocupaçãodosprofessoresemorganizarturmasdecriançasmaioresecriançasmenores,afinal,aclassificaçãoporidadeéuma marca forte da escola moderna e extrapola o costume de práticas locais. Nessesentido,sobressaemtambémosmomentosespecíficoseadequadosparaaaprendizagemdecadafaixaetária,práticaquecoexisteàconvivênciahabitualdepessoasdediferentesidades.Asescolasqueobserveisão,nonosso dizer, multisseriadas e, assim como convivem pessoas de diferentes idades,tambémconvivemdiferentesníveisdeconhecimento:algumaslêem comfluênciaeconhecemasletrasparaarticularaescritademuitaspalavras,enquantooutrasestãorealizandooprimeirocontatocomasletras(p.235).

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Nesse sentido, outros exemplos auxiliam a compreender como as aldeias indígenas organizam a escola de acordo com o seu modo de vida. Gomes (2003) relataumestudoetnográficoquerealizouemescolasfrequentadasporciganos,naItália,edestacasituaçõesescolaresemqueosirmãosmaisvelhostêmumafunçãode “modelo” para os irmãosmenores.Diz a referida autora quenainteraçãoentreosirmãos“nãohásuspensãodaaçãoindividual”,masumapoiodomenornafiguradoirmãomaisvelho,aquemobservaatentamente,situaçãoque ocorre na vida da comunidade de ciganos também em seu cotidiano fora da escola. Evidenciamos essa característica solidária do aprender, que também aparece na escola Kaingang, tentando dimensionar a importância da presença deidadesvariadasnasaladeaulaevalorizandoaexploraçãoqueascriançasfazem desse aspecto para sua aprendizagem.

A escola é também um ponto de contato com os conhecimentos e saberes domundo não indígena, sendo papel do professor cuidar dessa fronteira,fazendo frente a possíveis ações invasivas. Nesse sentido, retomemos aquestãodalíngua:naescola,apredominânciadoidiomaKaingangexemplificao cuidado com um modo de vida que querem preservar. O papel da escola paraenacomunidadeéumaquestãodelicada:emboraaalmejemevalorizemsuapresençanaaldeia,nãoprecisamdeescolaparaformarsuaslideranças,gerando uma ambiguidade.

Entãojávamosolhandoorapaz,amoça,setemàquelaideiaboa,orapazse é de respeito e mais tarde sabemos quem serve pra cacique, se é um rapaz inteligente vamos colocar ele de cacique, e hoje em dia no governo, naprefeituraétudonabasedoestudoenósnão;étudodeverapessoa,ainteligênciadapessoa.Nãoprecisaestudar,nãoprecisasaberlereescrever,mas se ele souber, se tiver respeito, se sabe a verdade, sabe conversar, ele podesernossolíder,nossocacique,entãonareuniãonósreunimostudo:moças, rapazes, mulheres, todo mundo é ouvido, depois fazemos perguntas, alguémtemdúvida,entãoagentevaifazendoatéficarnumaboapratodomundo (Depoimento de uma liderança registrado em 2008).

A partir dessa fala podemos ver que na comunidade Kaingang há uma valorizaçãodasaprendizagensedaformaçãodapessoa,porémnãonecessa- riamente atrelada ao estudo na escola, mas ao modo de vida kaingang. “A escola não é uma coisa nossa, nossa escola é a natureza”, declarouRefej(Depoimento registrado em 2007). Por outro lado, eles querem a escola para que possam dialogar de maneira mais equilibrada com a sociedade envolvente. Éfrequenteessafalaentreaslideranças:queremaprenderoPortuguêsparadefenderemseusdireitos,paralutaremporsuasterras,alémdisso,oPortuguêséalínguadecomunicaçãoentrediferentesetnias.GuaranieKaingang,quandoseencontram,conversamemPortuguês.

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Aescolatradicionaléanaturezaeoslivrossãoaspessoasvelhas.Vemosque essas premissas adentram na escola:

“Vou passar uma história que ouvi dos meus avós”. E assim fez, escreveu emtodooquadroumahistória,noidiomaKaingang,semtê-lacopiadodenenhum livro. Em conversa posterior, contou-me que se tratava de uma históriasobredoisbichos,ummacacoeumleãonocasamentodo leão(Diário de Campo, Fabiele Dias, Morro do Osso, 2007).Pranãomachucarosbichinhos,comofazerpraterumaamizadecomasplantas,quealgumasplantassãoremédio,entãotemqueteralguémpraexplicareopróprioFranciscofazisso,pranãoperderessecostumedetercontato sempre com a natureza, com a água como que é o espírito da água pra tu ver qual o horário (Depoimento do professor do Morro do Osso, registrado em 2008).

Na legislação escolar indígena não há obrigatoriedade de frequênciaescolar.Adecisãodasfamíliasemcolocarseusfilhosnaescoladependemuitodo funcionamento dessa escola, da qualidade que oferece. Isso faz com que o professor se esforce para atender as demandas da comunidade e realize um trabalho que evidencie as aprendizagens e mantenha as crianças interessadas nas atividades escolares. Porém, é comum os alunos se ausentarem das aulas para acompanharem suas famílias na venda de artesanato, ou para visitar algum parente,comoconstatamosemnossasobservações:

Oprofessorestánaescolacomalgumascrianças–4ou5.Estãousandouns joguinhos e ele logo explica que tem poucos alunos, pois uma parte da comunidade foi aSãoLeopoldo (devido amortedeumparente).Oprofessor tem uma postura explicativa como se estivéssemos “cobrando” dele um tipo de comportamento quanto à presença dos alunos,mas aomesmo tempomantém-se firme nas suas ações: a escola tem um jeitokaingang de ser (Diário de Campo, Maria Aparecida Bergamaschi, Morro do Osso, 2007).Segunda-feiranãoéumbomdiaparairaoMorrodoOsso:équaseumferiado! Em geral é o dia de colher cipó e as crianças acompanham seus pais. O professor até tentou explicar, em tom de desculpa, mas na conversa fomos pensando que é importante as crianças acompanharem suas famílias e aprenderem coisas que “os tornam índios”. Segundo o professor, pode ocorrerdealgumascriançassóaprenderemcoisasdosbrancosseficaremrestritos à escola.Outras criançasbrincamnopátio,noespaçoentre ascasas – adultos lavam roupa –, cena comum neste dia (Diário de Campo, Maria Aparecida Bergamaschi, Morro do Osso, 2008).

Seguindoumapráticarelacionalqueconfigurahistoricamenteasfron- teirasdosgruposétnicos,Barth(2000)explicaque“asdistinçõesétnicasnão

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dependemdaausênciadeinteraçãoeaceitaçãosociais,mas,aocontrário,sãofrequentementeaprópriabasesobreaqualossistemassociaisabrangentessãoconstruídos”(p.26).Segundooautor,a interaçãonãopodedescaracterizaresses grupos sociais: “as diferenças culturais podem persistir apesar do contatointerétnicoedainterdependênciaentreasetnias”.Concordandocomo autor, observamos nas aldeias Kaingang e Guarani de Porto Alegre um cuidado diário e incessante com suas fronteiras étnicas, pois o contato com associedadesnãoindígenasacionaanecessidadedeseafirmaremnassuasdiferenças.Tambémpartimosda ideiadequenãoháuma“pureza”étnica,mas entendemos que diferentes identidades se constituem na medida em que se cruzam, especialmente numa zona fronteiriça, sem, no entanto, apagarem-se as diferenças, como assevera Barth:

Osgruposétnicossósemantêmcomounidadessignificativasseacarre- tam diferenças marcantes no comportamento, ou seja, diferenças culturais persistentes.No entanto, havendo interação entre pessoas de diferentesculturas, seria esperado que essas diferenças se reduzissem (...). Assim, a persistênciadegruposétnicosemcontatoimplicanãoapenasaexistênciadecritériosesinaisde identificação,mas tambémumaestruturaçãodasinteraçõesquepermitaapersistênciadediferençasculturais.Consideroqueacaracterísticaorganizacionalquedevesergeralemtodasasreaçõesinterétnicas é um conjunto sistemático de regras que governam os encontros sociais interétnicos (2000, p. 35).

E a escola, mais uma vez aparece como um elemento organizacional para aafirmaçãodaidentidadeétnico-cultural.Aoresponderapergunta“aescolaéimportante?”,oprofessorassimexplica:

Sim, é muito importante, tem algumas crianças que pensam em ser alguém na vida, me falam o que elas querem ser e pra isso tem que ter uma escola. E tambémmesmoqueelesvão foraoqueeuacho importantepra elasaprenderem rapidamente é trabalhar muito com a leitura, é o que eu penso enós estamos fazendo aqui. (...)Euvejo se eles aprenderam, às vezesfaçoumaprova,masoqueémaisimportanteéverseaprenderam.São12alunosdemanhãquejálêem,algunsestãonaterceirasérieevãopassarpara a quarta. “Estão todosmais envolvidos coma cultura kaingang equasetodosestãofalandooidiomaeestãomuitointeressadosnacultura”.O professor diz: “importante passar a cultura e a história dos antepassados e é dever manter a língua além de ensinar o artesanato e as danças para as crianças”.(Depoimentodoprofessorregistradoem08/07/2008)

Uma questão que merece maior cuidado na escuta que fazemos naaldeia, quando o professor diz que é importante a escola para as crianças, “para ser alguém”. Talvez, nessa comunidade, a escola auxilie a manter a

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fronteiraétnico-culturale,aoreferir-seemseralguém,remeteà identidadekaingang, reforçada e valorizada na escola bilíngue da aldeia, pois percebemos que a escola vigora entre as práticas organizacionais da aldeia que atua na preservaçãodasdiferenças.É,aomesmotempo,consideradacomoumpontodeencontroentreculturasindígenasenãoindígenas.

Observando como o professor organiza os conhecimentos e como desenvolve suas aulas, podemos dizer que a repetição é a metodologiade ensino que predomina na escolaTopẽPãn, assim comopara amaioriados professores indígenas. Presumimos que essa prática da repetição estárelacionada à tradiçãooral, emque a repetição é um fator de apreensão econservaçãodosconhecimentos:

O professor continuou escrevendo nos cadernos das crianças, passando umaatividadeque,paraalgunseraarepetiçãodeumaletra–diversasvezes– para outros eram duas letras “ka”, “ke”, o que penso ser de palavras em kaingang, já que é comum o uso de palavras que iniciem por “k” (Diário de Campo, Fabiele Dias, Morro do Osso).Em um segundo momento, o professor deu uma aula parecida com o que nos é mais familiar. Na frente dos alunos, no quadro, escreveu “a” e perguntouumapalavraquecomeçacom“a”emPortuguêseKaingang,depois juntou “r” ao “a” e perguntou novamente e desenhou no quadro um rato,emkaingang:kãka.Depoisfezomesmocomaza=fénedesenhou.Pediu que cada um repetisse as letras que havia escrito no quadro depois que ele dizia cada uma e sozinhos. (Diário de Campo, Fabiele Dias, Morro do Osso, 2008)

Existemalgunsmomentosemquetodaaaldeiasepreparaesededicaàsfestas e aos rituais, e isso faz parte do calendário da escola. Durante o período da pesquisa, vivenciamos no Morro do Osso dois grandes acontecimentos: 1) o Encontro dos Kujã28 – esta comunidade indígena, desde 2006, organiza uma reunião de lideranças Kaingang de todo Estado, principalmente dasaldeias que constituem a territorialidades de origem das famílias que moram noMorrodoOsso.Éochamado“EncontrodosKujã”,ondesãorealizadosvários cerimoniais, próprios da cultura, bem como o batizado de crianças que nasceramnaqueleanoetambémadultosqueantesnãotiveramaoportunidadedeserbatizados.EmalgunsmomentosdesseencontrosãoconvidadaspessoasnãoindígenaserepresentantesdasetniasGuaranieCharrua;2)SemanadosPovos Indígenas – na época em que os fóg29 comemoram o “Dia do Índio”, os povos indígenas de todo o país se reúnem para confraternizar e também para organizarsuas lutas,encaminhandoreivindicaçõespormeiode umapauta 28 Kujã é o líder espiritual dos Kaingang. 29 FógécomoaspessoasnãoindígenassãochamadaspelosKaingang.

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unificada.Especialmentenesseano,denominaramomovimentoqueosuniunacionalmente como “Abril Indígena”. Os grupos de dança e as lideranças viajam, atendendo a convites diversos. Há festas nas aldeias, para as quais somosconvidados.Alémdaapresentaçãodedançasecantostradicionais,osanfitriõesseesmeramnapreparaçãodecomidastípicas.Tambémaproveitampara expor e vender artesanato.

O que vemos na escola indígena é uma dinâmica cultural, própria de todos ospovoseque,nocotidianodaaldeia,seapropriadainstituiçãoescolarearecria,considerandoomododeserKaingang,numtrançadoemqueosfiosdatradiçãosejuntamàsvicissitudes,muitasvezesimpostaspelocontatocomasociedadenãoindígena.O“estar-juntos”,queconstituiabasedotrabalhodecamponaelaboraçãodaetnografiaaquiapresentada,buscouuma“justavisãodaquiloqueéooutro”,comodizMaffesoli(2008,p.142),um“identificar-secom ele, ainda que seja de modo provisório, e examinar seus atos a partir do interior, sem a prioris judicativos ou normativos”. Buscamos, no diálogo com a educaçãoescolarindígena,aprendercomelaequiçáinspirarareflexãoacercadaspráticasescolaresnãoindígenas.

Referências

BART, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000.BENGOA. A emergência indígena na América Latina. Santiago: Fondo de Cultura Económica, 2000.BERGAMASCHI, Maria Aparecida. Nhembo’e. Enquanto o encanto permanece! Processos e práticas de escolarização nas aldeias Guarani.TesedeDoutorado.ProgramadePós-GraduaçãoemEducação,UniversidadeFederaldoRioGrandedoSul,2005.BERGAMASCHI, Maria Aparecida. Povos indígenas & educação.PortoAlegre:Mediação,2008.CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1994.GOMES, Ana Maria. Esperienze di scolarizzacione dei bambini sinti: confronto tra differenti mo- dalitàdigestionedelquotidianoscolastico.In.GOBBO,Francesca;GOMES,AnaMaria(Org.). Etnografia nei contesti educativi.QuadernidiEtnosistemi.Roma:CISU,2003,p.292-331.GOVERNOFEDERAL.MINISTÉRIODAEDUCAÇÃO. O Governo Brasileiro e a Educação Escolar Indígena 1995-2002 – Legislação. Brasília: 2002.MAFFESOLI, Michel. Elogio da razão sensível. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.NÖRNBERG DA SILVA, Marta. Cuidem bem do meu filho: a ética do cuidado numa instituição filantrópica.DissertaçãodeMestrado.ProgramadePós-GraduaçãoemEducação,UniversidadeFederal do Rio Grande do Sul, 2002.RIOGRANDEDOSUL.SECRETARIADEESTADODAEDUCAÇÃO.CONSELHOESTA- DUALDEEDUCAÇÃO.Parecernº383,deabrilde2002.Estabelece normas para o funcio- namento de escolas indígenas no sistema Estadual de ensino do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS, 2002.

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6 Indígenas no RS:

educação formal e etnicidadeDulci Claudete Matte

Pensar,proporerealizaraeducaçãoformaldequalquergrupohumano,em todos os tempos, já rendeumuita reflexão,muitas propostas emuitaspráticas,desdeosurgimentodaescolaedesdeaconstituiçãodaPedagogiacomoumaáreaespecíficadoconhecimento.Nacontemporaneidadeéumdosmaiorescamposdediscussão,estudo,pesquisa,produçãocientífica,legislação,proposiçõesepráticasmetodológicas.Felizmentechegamosareconhecer,cadavezcommaiorênfase,aimportânciadaeducaçãoeaperceberqueelaprecisaser diferenciada, adequada, específica para os diferentes grupos humanos,diversosemaspectosculturais,sociais,étnicos,deformaçãoprofissionalizantetécnicaecientífica.

AeducaçãoescolardosindígenasnoRStemumatrajetóriaqueinicianasMissões Jesuíticas, comosGuarani, para permanecer por quase doisséculossematençãonenhuma,apósadecadênciadaexperiênciamissioneira.No início do séculoXX foi instaladapeloServiçodeProteção ao Índio –SPI, no Posto Indígena Ligeiro, a primeira escola Kaingang. Nas décadas de 1920 e 1930 foram instaladas escolas em outras comunidades, sendo que no governo de Getúlio Vargas, de 1930-1945, foram construídas escolas nas reservasindígenas.Osindígenastambémpassaramateracessoàeducaçãoescolar em escolas públicas ou particulares, próximas das reservas indígenas. Como exemplo, citamos a escola denominada Internato Rural Pedro Maciel, na localidadedeItaí,municípiodeIjuí,que,nofinaldosanos1950enadécadade 1960, recebeu crianças Kaingang, principalmente das comunidades de InhacoráeVotouro.Em1961ocorreuainstalaçãodeumaescolanareservaindígena de Guarita, implantada pela comunidade da Igreja Evangélica de ConfissãoLuterananoBrasil–IECLBdeTenentePortela,que,paralelamente,desenvolviaoutrasaçõesnolocal.NasequênciadasatividadesdessaIgreja,emparceriacomaFundaçãoNacionaldoÍndio–FUNAI–eaSummerInstituteofLinguistics–SIL–,passouafuncionar,em1970,aprimeiraescoladeformaçãodeMonitoresBilíngues, aEscolaNormal IndígenaClaraCamarão, depoisdenominadaCentrodeTreinamentoProfissionalClaraCamarão,queformoutrêsturmasdemonitoresbilíngueseumaturmademonitoresagrícolas.

Aeducaçãoescolarnascomunidadesindígenas,apartirde1991,passouàcoordenaçãodoMinistériodaEducação,cabendoaosestadoseaosmunicípios

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asuaimplementação.AtravésdoParecerdoConselhoEstadualdeEducaçãodoRS,nº383/2002,sãoestabelecidasnormasparaofuncionamentodasescolasindígenas no sistema estadual de ensino. Atualmente as escolas indígenas no RSsãoemnúmerode50efuncionamtantoemTerrasIndígenasoficiaisquantoem acampamentos indígenas, atendendo a um número de 4.929 alunos no EnsinoFundamentalincompletoou,emalgumasescolas,atéo8ºano;turmasde pré-escola, com 148 alunos, e turmas de EJA, com 377 alunos (Secretaria deEducaçãodoRS,2006).Dasmencionadasescolas,46sãoestaduaise4sãomantidaspormunicípiosaosquaisasTerrasIndígenasestãoadscritas.

Como as escolas nas comunidades indígenas oferecem somente o en- sino fundamental, escolas de ensino médio das cidades vizinhas recebem estudantesindígenase,maisrecentemente,tambémasinstituiçõesde3ºgrausãofrequentadasporindígenas.AFundaçãodeIntegração,DesenvolvimentoeEducaçãodoNoroeste doEstado–FIDENE–, através daUniversidadeRegional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí –, foi precursora nainclusãodeestudantesindígenasno3ºgrau,comumprogramadebolsaspara indígenas que teve início em 1992. Desde então, dezenas de alunosindígenas, na sua quase totalidade Kaingang, frequentaram ou frequentam seus cursos.OscursosmaisprocuradospelosestudantesindígenasnaUnijuísãoaslicenciaturas:enfermagem,agronomia,direitoenutrição.Maisrecentemente,outrasinstituiçõesde3ºgraudaregiãodeentornodasTerrasIndígenas,comoa Universidade Regional Integrada – URI – e a Universidade de Passo Fundo – UPF –, também recebem estudantes indígenas. Em Porto Alegre, a Pontifícia Universidade Católica – PUCRS – e o Centro Universitário Metodista – IPA –, também oportunizam acesso ao ensino superior a universitários Kaingang. Damesmaforma,apósacriaçãoeimplementaçãodosistemadecotasparaindígenas no 3º grau, em 2008, aUniversidade Federal de SantaMaria –UFSM – e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS –, abriram espaços a universitários indígenas. Há também estudantes que saem do RS para frequentar cursos nos vizinhos estados de Santa Catarina e Paraná, havendo os que foram mais longe para se pós-graduar, ao Rio de Janeiro e a Brasília.

Legislação pertinente à educação escolar indígena

Alegislaçãobrasileiraevidencia importantesavançoscomrelaçãoaosdireitosindígenas,reconhecendo,comodizoart.231daConstituiçãoBrasileira,suaorganizaçãosocial,costumes,línguas,crençasetradições,eapontandoàscondições fundamentais para viver de acordo com suas especificidades: osdireitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, garantindo às comunidades os seus territórios, um direito inalienável, o espaço ondepoderão viver conforme suas escolhas culturais.No art. 210, § 2º, afirma

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direitosàeducação:“Oensinofundamentalregularseráministradoemlínguaportuguesa,asseguradaàscomunidadesindígenastambémautilizaçãodesuaslínguas maternas e processos próprios de aprendizagem”.

EmbasadosnaConstituiçãoBrasileira,inúmerasleis,decretoseoutrosdocumentos oficiais asseguramaos indígenas direitos especiais à educaçãoescolar:oDecretonº26,de1991,dispõesobreaeducaçãoescolarindígena,atribuindo sua coordenação aoMinistério daEducação, para execuçãodosestadosemunicípios;aLeideDiretrizeseBasesdaEducaçãoNacional,Lei9.394,de1996,estabelecenormasespecíficasparaaeducaçãoindígena;aLei10.172,de2001,estabeleceoPlanoNacionaldeEducação,emqueaeducaçãoindígena é devidamente contemplada. O Decreto 5.051, de 2004, promulga a ConvençãodaOIT,assegurandoaosindígenasdireitosespecíficosàeducação.Outrosdocumentosoficiaisdecorrentesdessalegislaçãofundamentalatribuemà educação indígena o caráter de diferenciada, específica, intercultural ebilíngue.30

Tambémo3º grau é contemplado comuma legislaçãoprópria: aLei10.558/2002 cria o Programa Diversidade na Universidade, em apoio aoingressono3ºgraudesegmentossocialmentedesfavorecidos,especialmenteos indígenas e afro-descendentes. A Lei 3.627, de 2004, institui o sistema de reserva de vagas, as cotas, para indígenas (também para negros e estudantes egressosdeescolaspúblicas),nasinstituiçõespúblicasfederaisdeEducaçãoSuperior. A Lei 11.096/2005 institucionaliza o ProUni, estabelecendo osistema de bolsas para indígenas (para afro-descendentes e grupos socialmente desfavorecidos)emuniversidadesparticulares.Oapoioàformaçãode3ºgrauespecíficadeprofessoresindígenasdemonstraoesforçodoGovernoFederaldequalificarquadrosdeprofissionaisparapromoveraeducaçãoescolarindígena,o quefica evidenciadona criação doProgramadeApoio à Implantação eDesenvolvimentodeCursosdeLicenciaturaparaFormaçãodeProfessoresIndígenas,oProLInd,em2005.AtravésdoProLInd,instituiçõesdeEnsinoSuperiorpúblicasfederaiseestaduaisdetodopaíssãoestimuladasaformarprofessores indígenas, para que possam atuar nas escolas das suas comunidades, proporcionandoeducaçãodiferenciadaeespecíficaparaoseupovo.ODecreto

30OReferencialCurricularNacionalpara aEducação Indígena, de1998, subsidia eorienta a proposta deumaescolaindígenaintercultural,bilíngueediferenciada,comsugestõesparaaconstruçãodeumcurrículoespecífico,apropriadoàrealidadedecadacomunidadeindígena,naperspectivadaintegraçãodeetno-conhecimentoscomconhecimentosuniversais.AResolução3de1999,doConselhoNacionaldeEducação,fixa asdiretrizespara a educação indígenade acordo comaLei deDiretrizes eBasesdaEducaçãoNacional.OParecerdoConselhoNacionaldeEducação,nº14de1999,dispõesobreasdiretrizes de funcionamento das escolas indígenas.OsReferenciais para aFormaçãodeProfessoresIndígenas, documentode2002, visa a contribuir para a criação e a implementaçãodeprogramasdeformaçãodeprofessoresindígenas,cursosdeMagistérioIntercultural.

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6.177/2007tratadodireitoàdiversidadedeexpressõesculturais,reforçandoopreceitodaeducaçãoindígenacomdireitoàdiferençaeàespecificidade.

Aplicação da legislação na educação escolar indígena no RS

Passados20anosdapromulgaçãodaConstituiçãoBrasileirade1988,editadaamplalegislaçãocomplementarespecífica,pareceres,normatizações,subsídios eorientações,paraa educaçãoescolar indígena, a suaefetivaçãotemobstáculosasuperar,carecendodecondiçõesàsuaimplementação.Entreas dificuldades enfrentadas, tanto noBrasil quanto noRS, está a falta dequadrosdeespecialistasnaslínguasindígenas,tradições,históriadocontato,culturas, costumes e realidades contemporâneas das comunidades indígenas; especialistas para propor e aplicar conteúdos e metodologias adequadas ao ensinodiferenciado,específico,bilíngueeintercultural,legalmentegarantidopara as escolas indígenas. Antropólogos, linguistas, pedagogos, professores, devidamente qualificados, atuando em setores-chave da rede de escolasindígenas, equipes que orientem e acompanhem o trabalho com presença nas escolas.

Se comparado a outros estados do Brasil, o RS tem um número reduzido de etnias indígenas. Contamos com três comunidades étnicas: Kaingang,Guarani e Charrua.31 As 50 escolas indígenas, com seus 5.454 alunos, en- frentamlimitaçõescomrelaçãoàformaçãobilíngueeespecíficasobreatradi- ção,história,culturaerealidadecontemporâneadospovosKaingang,GuaranieCharrua.NãohánoRScursodeMagistérioIndígena,nemCursosdeLi- cenciaturaEspecíficosde3ºGrau,conformejáfoiouestásendoimplementadoemmaisde10estadosnoBrasil.Aquestãoquesecolocaé:ondeaprenderalereescrevernaslínguasindígenas?Comoconhecerdemodosistemáticoamitologia, a religiosidade, os rituais, valores, os costumes tradicionais e atuais, ascondiçõesemquevivemascomunidades?Oensinoébilínguenassériesiniciaisdasescolasindígenasdoestado,ouseja,aalfabetizaçãoérealizadana língua materna, mas progressivamente ela passa a ser trabalhada como componente curricular. O material didático existente é muito restrito ou quase inexistente,nãopassandodealgumascartilhasealgunslivrosbilínguesounaslínguas indígenas.

Aprimeiraescoladeformaçãodeprofissionaisparaasescolasindíge- nas no RS, como mencionamos, ocorreu na década de 1970, em Guarita, a EscolaNormalClaraCamarão,depoisdenominadaCentrodeTreinamento

31 Os Charrua encontram-se em um processo de autoidentificação étnica, ressurgindo enquantocomunidades diferenciadas no RS, no Uruguai e na Argentina.

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ProfissionalClaraCamarão, que formou, durante os anos 70, 3 turmas demonitores bilíngues. Foram esses monitores que garantiram o bilinguismo nas séries iniciais das escolas indígenas no RS por mais de duas décadas. A FIDENE, através da Unijuí e Escola Francisco de Assis, em conjunto com a FundaçãoNacionaldo Índio–FUNAI–,a IgrejaEvangélicadeConfissãoLuterananoBrasil–IECLB/ConselhodeMissãoentreÍndios–COMIN,aAssociaçãodosProfessoresBilínguesKaingang eGuarani –APBKG–, aOrganizaçãodasNaçõesIndígenasdoSul–ONISUL–,realizaramumcurso,comumaturma,deMagistérioBilínguede2ºGrau,entre1993e1996,nomunicípio de Bom Progresso; e outro curso de Magistério Bilíngue, novamente formandoumaturma,emcooperaçãocomaUniversidadedePassoFundo–UPF – e a FUNAI, entre 2001 e 2005, em Guarita. Estes cursos garantem a sequênciadobilinguismoeaespecificidadedasescolasKaingangnoRS.Cominício no ano de 2004 e término em 2008, os Guarani Mbyá dos estados do sul (RS,SC,PR)epartedosudestebrasileiro(RJeES)estãosendocontempladoscom um curso de Magistério de Nível Médio. Proposto pelo MEC, o Protocolo GuaraniéoresultadodaparceriaentreoMinistériodaEducação,aFUNAIeasSecretariasdeEducaçãodessesestados.

O 3º grau indígena, estimulado pelo Governo Federal através doProLIndeminstituiçõespúblicasfederaiseestaduaiseoferecidoemcursosdelicenciaturaespecíficosemUniversidadesdediversosestados32, exceto no RS,apontaparaaprogressivaqualificaçãodoensinoescolarindígenanopaís.Ascomunidades indígenasnoRSaguardampor iniciativasdas instituiçõespúblicas federais ou da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul – UERGS –,amobilizar-seeimplementaresteespaçodeformação.

AimportanteatuaçãodemonitoreseprofessoresbilínguesnasescolasindígenasnoRSpormaisde trêsdécadasprosseguenoesforçoderealizarumaeducaçãoescolardiferenciada,específica,interculturalebilíngue,comos limites jáapontados.ASecretariadeEducaçãodoRS realizaconcursosespecíficosparaprofessoresbilínguesdesde2002,paraatuaremnasescolasindígenas.Aquestãoquequeremosreforçaré:ondeosprofessoresvãorealizarasuaformaçãobilíngueeintercultural?Ficaevidentequeénecessárioinvestirnaqualificaçãodepessoalparaasescolasindígenas,naformaçãodenovosquadrosprofissionaisemCursosEspecíficosdeMagistérioInterculturaleemLicenciaturasde3ºGrautambémespecíficos.ConformedadosdaSecretariadeEducação,nasescolasindígenasestaduaisdoRSlecionam321professores, 32Estadosemqueforamcriadoscursosdelicenciaturaespecíficosparaindígenas:Amazonas,Amapá,MatoGrosso,GoiáseRoraima.ExistemcursosemimplantaçãonosestadosdoCeará,MatoGrossodoSul,Paraíba,Pernambuco,AlagoaseBahia.EmSantaCatarina,aUFSCestáinscritaparaaelaboraçãodeprojeto.

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sendo210professores indígenas e111professoresnão indígenas.Entreosprofessores, especialmente entre os indígenas, há umnúmero significativosem a formação necessária para o desempenho da função. É fundamentalhavervontadepolíticade setoresque têmopoderde tomardecisõesedarencaminhamentosparaumaefetivaequalificadaeducaçãoescolar indígenanoRS,quegarantatambémaformaçãoespecífica,interculturalebilínguedosprofessores necessários para este trabalho. A expectativa das comunidades indígenas é a de que, progressivamente, os professores não índios sejamsubstituídos por professores indígenas. De parte dos professores indígenas, lideranças das comunidades e comunidades como um todo, é necessário que exijam condições para acessar um ensino específico como instrumento deafirmaçãoidentitária,derevitalizaçãoculturaledesustentabilidadedassuascomunidades.

Educação escolar indígena e etnicidade

A etnicidade tem fundamentalmente um sentido político ao se constituir nasrelaçõesentresujeitosegrupossociais.Resultaderelaçõesqueopõemumsujeitoaoutros,umgrupoaoutros,comosquaisestãoemcontato(BARTH,1998).Éproduzidanaconfrontaçãodediferenças,nacontraposiçãodecon- cepções,valores,crenças,costumes,intencionalidades,nadisputapelopoderdeimporcategorizaçõeseidentidades.

Para Cardoso de Oliveira (1976), etnicismo é ideologia étnica, capaz de fornecerbasedesustentaçãoamovimentossociaisdequalquertipo,orientandona defesa de direitos e interesses. Para Cuche (1999), a identidade étnica é estratégia para atingir objetivos, e nesse sentido não cabe questionar se élegítimaouverdadeiraumaidentidadeétnica,masoquesignificarecorreraessaidentificação.

Identidade étnica é reconhecer-se, pensando a si e aos outros, estabelecendo semelhançasediferençasdeespecificidadesdistintivasqueresultamnasuacaracterizaçãoeadscriçãoadeterminadosgruposcomessaspeculiaridadeseaexclusãodeoutros.Naidentificaçãoétnicaépossívelrecorreradiferentessinaisjulgadossignificativosparaestabeleceradiferenciaçãocomosoutros,como a cultura, a língua, o lugar de origem, o lugar onde vive, a família a quepertence,aaparênciafísica,masocritériofundamentaldeidentificaçãoétnica é a escolhaouaopção identitáriado sujeitoougrupo socialque seautorreferencia como pertencente a um grupo étnico, enquanto também é identificadopelosoutros(BARTH,1998).

Aidentidadeémultidimensional,mista,sincrética,oqueficaevidenciadonumcontextoderelaçõesinterétnicas.“Oindivíduoquefazpartedeváriasculturas fabrica a sua própria identidade fazendo uma síntese original a partir

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destes diferentes materiais”. Nessas circunstâncias “o indivíduo integra, de maneira sintética, a pluralidade das referências identificatórias que estãoligadasàsuahistória”(CUCHE,1999,p.193-195).

Numprocessopermanentedereconstruçãodaidentidade,quelembramos,ésituacionalerelacional,oindivíduoreinventacertostraçosculturais,afirma,ignora ou nega outros, como referenciais identitários. Segundo Cardoso de Oliveira(1976,p.24-25),épossívelamanipulaçãodaidentidade“emsituaçõesde ambiguidade, quando abrem-se diante do indivíduo ou do grupo alternativas para‘escolha’(daidentidadeétnica)àbasedocritériode‘ganhoseperdas’(critérios de valor e não comomecanismosde aculturação) na situaçãodecontato”.Paraomesmoautor,esseprocessode identificaçãode indivíduose grupos deve ser interpretado como um esforço, muitas vezes dramático, de buscaremasuasobrevivênciasocial.

Para a etno-sustentabilidade das comunidades indígenas, melhoria das condiçõesdevida,autonomiaparafazerescolhas,amotivaçãoeoreforçoàsuaidentificaçãoétnicasãofundamentais,eaescolaéoespaçoprivilegiadoparapromovê-la.Alémdequalificarparaaconvivênciaeainserçãonasociedade/culturaocidentalmodernaenvolvente,aescolaespecíficaeinterculturaldeveintegrarnoseucurrículoemetodologiaavisãodemundo,osvalores,ossaberestradicionais,ahistóriaeosconhecimentossobreaculturaeascondiçõesdevidaatuais,potencialidadeseperspectivasdacomunidadeétnicaàqualserve,estimulando o sentimento de pertença, ampliando o leque de referenciamentos identitários e instrumentalizando para a busca de alternativas e estratégias para concretizar objetivos.A escola indígena específica e intercultural, pensadae proposta desde o Ensino Fundamental até o 3º grau, deve, no entanto,fundamentalmente, fazer a crítica e elucidar representações, classificaçõese identificações, questionando estereótipos, estigmas, preconceitos,discri- minação,própriosda“culturadecontato”–entendendo“culturadecontato”comoo“conjuntoderepresentações(emqueseincluemtambémosvalores)queumgrupofazdasituaçãodecontatoemqueestáinseridoenostermosdaqualclassifica(identifica)asipróprioeaosoutros” (OLIVEIRA,1976,p. 33). A escola indígena deve situar relacionalmente os seus alunos para que seidentifiquemcomomembrosdeumasociedade/culturadiferenciada,comseusdireitos àdiversidade, aviverdignamente e estabelecer ebuscar suasprioridades de vida.

Vivemos um tempo em que a diversidade etno-cultural e os direitos dos povos indígenas são amplamente reconhecidos, ancorados em preceitos eacordosinternacionaiseamparadosnalegislaçãobrasileira,comojácitamos.Emtermosinternacionais,alémdaConvenção169,adotadapelaOrganizaçãoInternacionaldoTrabalho–OIT–,em27/06/1989,eratificadanoBrasilpor

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Decreto Presidencial de 19/04/2004, também foi aprovada pelaONU, em13/09/2007,aDeclaraçãosobreosDireitosdosPovosIndígenas,contemplandomilhõesdepessoasemtodoomundo,entreoutrasassertivas:

“Afirmandoqueospovosindígenassãoiguaisatodososdemaispovosereconhecendo ao mesmo tempo o direito de todos os povos a ser diferentes, a considerar-se a si mesmos diferentes e a ser respeitados como tais.”“Afirmando também que todos os povos contribuem na diversidade eriquezadascivilizaçõeseculturas,queconstituemopatrimôniocomumda humanidade”.

Etnicidade e diversidade etno-cultural

No seu referenciamento étnico, o sujeito e os grupos sociais dãovisibilidade à sua identidade através de sinais distintivos, entre os quais acultura.Aculturanãoécritériodeidentificaçãoétnica,esimreferencialoumarcador identitário. Por cultura entendemos, nos termos de Geertz (1989, p.24), “sistemas entrelaçados de signos interpretáveis”, um contexto no qual seexplicamosacontecimentos sociais,oscomportamentos, as instituições,não existindo em si, mas resultado de processo intersubjetivo. É códigode símbolos partilhados, socialmente estabelecidos. A cultura, “teia de significados”,éoeloquepermiteàspessoastornarem-seoquesãocapazesdeser,individualmente.Acultura,pois,nãoéfixa,“todaculturaéumprocessopermanentedeconstrução,desconstruçãoereconstrução”.“Todas,devidoaofatouniversaldoscontatosculturais,são,emdiferentesgraus,culturas‘mistas’ feitas de continuidades e de descontinuidades” (CUCHE, 1999, p. 137 e 140), sendorecriadas,fazendorearranjosdeelementos,comnovassignificaçõesenovasexpressões,deacordocomnovas situações,experiênciasvividas,ounovasrelaçõesqueseestabeleçam.

Uma reflexão sobrecultura, apartirda concepçãodeCliffordGeertz,e sobre identidade étnica, apoiada em Fredrik Barth, permite entender como membros de comunidades indígenas frequentam escolas nas suas aldeias, posteriormente cursam o ensino médio em localidades vizinhas, chegam ao 3ºgrau,seprofissionalizamemdiferentesáreas,acessamaconhecimentos,tecnologias e estabelecem relações com o mundo e a cultura ocidentalmoderna,enemporistodeixamdeseidentificarcomopertencentesàsuaetniadeorigem.Comumaidentificaçãoétnica,situacionalerelacional,dinâmica,flexível,resultadodeescolha,ecomumaculturaquemuda,comumadinâmicapermanente, se recria, inclui novos elementos, os estudantes indígenasnãodeixamdeseríndiossóporqueestudam,moramnacidade,seprofissionalizameassumemnovasfunçõesemdiferentesáreas.

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Um estudo realizado por Matte (2001, p. 129) sobre etnicidade, com universitários da Unijuí, apresenta diversos depoimentos que revelam indu- bitavelmenteoseuautorreferenciamentoàsuaetniadeorigem.Vivendonacidadeecursandoo3ºgrau,sereconhecemcomoKaingang.Mãg-noafirma:“cada vez que me discriminam, eu reforço a minha identidade de Kaingang. Sintoorgulho,apesardeenfrentar,muitasvezes,preconceito.Nãotenhoporquenegar”.Jófejcomasuaautoidentificação:“souKaingangepronto!(...)resultadodemisturaeoresultadodistosoueu”.Outrafala,deNivãn:“Tenhocomoherançaváriasculturas,masaquemaismeinfluencioufoiaculturadaminhamãe(Kaingang)”.JesiseconsideraKaingangdevidoasuaorigem,afamília, a cultura, a língua, porque mora numa área indígena e principalmente porque fez a “opção de pertencer a essa etnia”. Penin assim se expressa:“Desde que eu me reconheço por gente, me disseram que eu sou Kaingang. Cresci sabendo que eu era isso de origem”. C.L. se reconhece pelos traços físicos,pelasuaintegraçãocomacomunidadecomquemseidentifica.Fagtór:“VivonomeiodeumacomunidadeKaingangegostodemeidentificarcomoKaingang”. Fakój: desde pequena aprendeu que “... nunca deve negar ser índia (Kaingang)”.Matteconclui:“ExplicitamenteosentrevistadosseidentificamcomoKaingang, fazendo-o a partir da sua percepçãoda diferença e comoresultadodavontade,comouma“opção”,porque“gosto”,“sintoorgulho”,“sou Kaingang e pronto”.

Nãocabeaninguémquestionaralegitimidade,odireito,aautenticidadedos que se autorreferenciam indígenas, estudando, mesmo vivendo fora das suas comunidades, ocupando cargos, desempenhando funções nas cidades,àsvezesatémuitolongedassuascomunidades.Asexperiênciasdecontatointerétnicoeinterculturalnacontemporaneidadesãocadavezmaisconstanteseintensas,exigindoaconvivênciaentreosdiversos,constituindoculturasdecontato. A antropologia nos ensina que as identidades e as culturas se recriam, num processo que afeta a todos, em qualquer tempo e em qualquer comunidade étnica.Umanovaconcepção,expressatantopelaciênciaquantonalegislaçãoenoordenamentopropostoporconvençõesinternacionais,afirmadireitosàigualdadeeaomesmotempoàdiversidadehumana, tantonoaspectoetno-culturalquantoemoutrasexpressões.

Conclusão

Osindígenasbrasileiros,noRS,comoemtodoomundo,sãoiguaisatodos os povos e aomesmo tempo têmodireito, como todos os povos, aser diferentes. Esse é um reconhecimento inscrito na Carta sobre os Direitos dosPovosIndígenasdaONU,precedidanessadeterminaçãopelaConstitui- çãoBrasileiraeumconjuntode leiseoutrosdocumentos.Aeficáciadessa

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legislação,maisdoqueinstrumentalizarabuscapordireitos,éadepromoveraautoafirmação identitáriados indígenas.A identificaçãoétnicasituacionale relacional se orienta pela consciência e vontade depertencimento a umacomunidadeétnicaeserve-sedeindicadoresdediferenciaçãocomo:aorigem,a tradição,acultura,a língua,a religião,oscostumes,oscomportamentos. A cultura que muda permanentemente, seja no contato interétnico, seja peladinâmica internaprópria, não é necessariamente indicadordeperten- cimento a um grupo étnico. Da mesma forma, outros elementos podem mudar ou desaparecer, como a religião, a língua, os costumes, semque osujeitoouogruposocialpercaasuaidentidadedeadscriçãoaumacomuni- dade étnica.

Aescolatemumimportantepapelnaafirmaçãoidentitáriaerevitalizaçãodaqueles traços escolhidos para serem marcadores da identidade étnica, bem como o de contribuir para que sujeitos e suas comunidades situados relacionalmente tracem perspectivas de melhores condições de vida eautonomia.Emumacomunidadetradicionalqueviveemsituaçãodecontatopermanente com a sociedade/cultura ocidental, com uma economia demercado e tecnologias em ritmo acelerado de aperfeiçoamento, entendemos queàescola,específicaeintercultural,cabeatarefadecontribuirparasituarrelacionalmente, de maneira segura, consequente e enriquecedora, os sujeitos e grupos para serem os protagonistas da sua etno-sustentabilidade cultural e material.

Universitáriosindígenas,noscasoscitados,sãoexemplosdeindivíduosinseridos no sistema escolar, muitos dos quais vivendo na cidade, em permanente contato interétnico e intercultural, que recriam sua identidade e sua cultura, sem perderem a sua identidade indígena. Demonstram que, por conviver num contexto étnico emulticultural, a educação escolar é uma alternativa paraospovosindígenasbuscaremasuaautonomiaemelhoriasnascondiçõesdevida.Aeducaçãoescolarindígenaespecífica,interculturalebilínguedaráumadecisivacontribuiçãoparaquecontinuemsendoíndios:Kaingang,Guarani,Charrua.

Referências

BARTH, Fredrik. Grupos étnicos e suas fronteiras. In: POUTIGNAT, Philippe; STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade. SãoPaulo:FundaçãoEditora daUNESP, 1998. p. 187-227. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil.Brasília:CentroGráficodoEstadoFederal, 1988.CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: EDUSC, 1999.GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989.

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MATTE, Dulci Claudete. Etnicidade entre os universitários Kaingang na Unijuí. Disser- tação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências, Unijuí, Ijuí, 2001.OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Identidade, etnia e estrutura social. SãoPaulo:Pioneira,1976.ONU. Declaração sobre os direitos dos povos indígenas. Genebra: 2007.SECRETARIADEEDUCAÇÃODORS.Dados preliminares do Censo Escolar, 2006.

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7 A Trilha da minha formação

AndilaNivygsãnh

Eu penso que a educação escolar indígena específica e diferenciada é muito mais do que alfabetizar na língua materna, é principalmente estar alicerçada na forma tradicional de ensinar de cada povo.

AndilaNivygsãnh

Sou índia Kaingáng, nascida na Reserva Indígena de Carreteiro, no Município de Água Santa, Rio Grande do Sul. Meu nome em kaingáng é Nivygsãnh e emportuguês éAndila. Sou professora bilíngüe, formada naprimeira turma de professores indígenas bilíngües de um curso pioneiro no Brasil e na América Latina.

OpovoKaingángpertence ao tronco lingüístico “Jê”.É umdos trêsmaiores povos indígenas do Brasil, somando em torno de 30 mil pessoas, habitandoa regiãosulesudeste ,nosEstadosdeSãoPaulo,Paraná,SantaCatarina e Rio Grande do Sul.

Quandocompleteioitoanosdeidade,meupaichamou-mecertodiaemefalou:–“Filha,vocêjáestáumamocinhaeprecisacomeçarairparaaescola,pois precisa aprender a escrever”. Falava de uma escola que o Estado do RS havia construído para nós dentro da nossa aldeia, lá pelos anos 50, na Reserva IndígenaCarreteiro,MunicípioÁguaSanta/RS,aldeianataldaminhamãe,Joana Caetano, onde também nasci.

Namanhãseguinte,láfomosnós,euemeupai,parameapresentaraoprofessore,provavelmente,efetuarminhamatrícula.Agarradaàmãodemeupai,euiafeliz,commeuprimeirocaderninho,queminhamãecolocavadentrode um saco plástico, juntamente com um lápis, com uma borrachinha branca acopladaàpontadolápispreto.Nãopodiaimaginarqueaquelaalegrialogosetornariaomeuprimeiropesadeloacaminhodeminhaformação.

Meu pai cuidou de tudo, depois me deixou na escola e voltou para casa. Meuprofessor,quenãoeraindígena,melevouatéaclasse,comoerachamadapelos brancos. Nos bancos sentavam duas crianças cada, e o professor começou entãoafalarcomigo,maseunãoentendianada.Quantomaiseletentavasecomunicarcomigo,maisassustadaeuficava.Saícorrendodasala,chorandodesesperada, tomei o caminho de volta para minha casa.

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Nospróximosdoisanos,emvãomeupaitentoumefazervoltarparaaescola,masnãomeconvenceu.Nodecorrerdestetempo,eujáhaviaaprendidoa falar algumas palavras emportuguês, então aceitei voltar para a escola.Apesardeaindaenfrentarmuitasdificuldadesdecomunicação,com16anosterminei a 5ª Série, chamado de curso primário.

QuandoeumepreparavapararealizarochamadoExamedeAdmissão,para prosseguir meus estudos no ginásio, de 6ª a 8ª Série, o servidor da FUNAI, responsável pela nossa reserva, mandou chamar meu pai, que chegando lá recebeu a “ordem” para que me preparasse porque em poucos dias a FUNAI me levaria para um colégio interno, em outra reserva indígena, chamada Guarita, localizadanoMunicípiodeTenentePortela/RS.

Lá,aFunai,emconvêniocomaIECLB(IgrejadeConfissãoLuteranadoBrasil),tinhacriadoumaescolaparaformarmonitoresbilíngüesemnívelde1ºGrau,chamadoCTPCC(CentrodeTreinamentoProfissionalClaraCamarão),e era para lá que iriam me levar.

Quandomeupaivoltouecontouparamimeminhamãe,elenãoconse- guiu esconder sua tristeza e nem as lágrimas que molharam o seu rosto. Nós, kaingáng,nãonosseparamosassimdosnossosfilhos,principalmentedafilhamulher, que mesmo depois de casada pode continuar morando com os pais.

Fiqueitentadaanãoir,mascertamentemeupaiseriaresponsabilizadoepenalizado. Outros dois rapazes, que também já haviam terminado a 5ª Série, foram“convocados”,então jánão iriasozinha,agoraéramos trêskaingángdaquelaaldeia,fiqueimaisencorajada.

Assim, no começo do ano de 1970, tivemos a nossa aula inaugural, com muitas autoridades presentes e mais ou menos trinta jovens kaingáng, fardados eperfiladoscantaramoHinoNacional.Atéessemomentonãosabíamosporqueestávamosali.Ninguémnosdavanenhumaexplicação.Nãoseidequempartiu a iniciativa do Curso, mas hoje sei que ambos tinham interesse, ainda quebemdistintos:integraçãoeevangelização.Fielatalideologia,oregimedeinternato foi uma quebra brutal de nossos hábitos e costumes, o cumprimento dehoráriosparatodosostrabalhos,das6horasdamanhãàs22horas,eramrigorosamente cobrados; nos tornamos escravos do relógio.

Em menos de seis meses, nossos ânimos estavam sensivelmente altera- dos,nãoagüentávamosmaisarotina.Entãofazíamosgrevedefome,deficarcabisbaixo na sala-de-aula, de não fazer as tarefas diárias: era paralisaçãototal.Entãoconvocavamreuniãodeemergênciadacoordenaçãoconosco.Es- clareciam-nos que o projeto tinha normas, que precisavam ser cumpridas etc.

Ainda no primeiro semestre, levaram a maioria da moças embora, deixaramapenascinco,choreiporquenãomelevaramtambém.Nãoseiatéhojeporquefizeramisso.Sentimosmuitafaltadelas,eramasmaisvelhasecom

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elasnossentíamosmaisprotegidas.Naépocaentendemosserdiscriminação,mascomoanossaopiniãonãomudariaorumodoprojetoficamoscaladas.Eassimficamosemdezenoveestudanteskaingángemformação,que,depoisdeformados,fariamaalfabetizaçãonalínguamaterna.

Nossasgrevessenãoresolviamnossosproblemas,poroutroladoabriamasportasparaodiálogoentreadireçãoenós,eissojáconsiderávamosumavanço. Dessa forma, decidimos cooperar para facilitar a nossa estada ali, até porquenão tínhamosoutraalternativa, se fugíssemos,alguémnos trariadevolta,foientãoquenosconcentramosemnossosestudos.

O frio chegou, aumentando ainda mais a saudade de casa, do calor humano dasfamíliasedofogonochão,masnãopodíamosfazerfogoparanosaquecerporque diziam que a fumaça “fedia” nas nossas roupas e cabelos.

Escrevia para meu pai, dizendo que estava sofrendo muito e passando fome,queviessemebuscar,mastínhamosqueentregaranossacorrespondênciaparaadireçãolevaraocorreio.Nossascartaseramvioladaselidasenuncachegaram aos seus destinos.

Nãotínhamosocostumedecomerverduraselegumes,comorepolho,tomate,alfaceetc.,entãoadiretorasentava-seàmesaeserviaumapratadadeverduraparaeucomerprimeiro,depois,então,ganhavaarroz,feijãoecarne.Senãocomesseverduras,acabavaficandosemcomer.

Emumfimdesemana,fugimosparaamataparacolhernossasverduraselegumes.Navolta,nãonosdeixaramprepararanossacomidanaspanelasdacozinha,comosefossealgorepugnanteouprejudicialàsaúde,entãonostomaram para jogar fora. Passado algum tempo, descobrimos que tinham levado as nossas folhas de verduras para análise, e descobriram que suas propriedades nutritivas superavam as do espinafre, por isso mesmo queriam saber onde encontramosparatirarassementes.Respondemosquenãoeramaistempo,equenãotinhatodotempo,nemtempocerto.

Nãoqueríamosaprenderaescreverokaingáng,umalínguaqueonossopovoqueriaqueaesquecêssemos,eramaisfortedoquenós:eraumarejeiçãoquevinhadedentro,marcasdadiscriminaçãosofridapelopovokaingángnadécadade70,entãodebruçávamossobrenossascarteiras.

Aos poucos e a muito custo aprendemos a escrever a nossa língua. Foi um momento único e histórico para nós, era a primeira vez que víamos ela escrita. Percebemos então que ela tambémera uma língua boa e de valor, porquetambém podia ser escrita. Um misto de alegria e arrependimento tomou conta dagenteenãodeixamosdesentirorgulhodela.Paracompletarnossaalegriativemosauladedatilografiaedescobrimosqueamáquinatambémescreviaanossalíngua:ficamostodosmuitoorgulhososdela!Paracomemorarfizemosumjornaldecirculaçãointernananossalíngua.

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Como era proibido conversar com qualquer dos meus colegas, fre- qüentementeeuestavadecastigo,poiseuachavaissotãonatural.Meuscastigosnãoeramdeumdia,nemdois,eradeumasemana,ummês,eatémeses,euatéjá morava na casa da diretora, pois os meus castigos constituíam em limpar a suacasa,queficavaforadocentro,deondeeuvinhasóparaassistirasaulasefazerasrefeições.EufaziatambémgravaçõesnalínguakaingángcomelaeatraduçãodoNovoTestamentoemKaingáng.Euficavalá,isoladadosmeuscolegas, escrevendo. Por um lado, era bom, porque de vez em quando ela fazia bolos muito gostosos que me dava. Digo isso porque passávamos muita fome, por um bom tempo comíamos “triguinho”, uma espécie de canjica de trigo que acompanhava a merenda escolar, algumas vezes cheia de bichinho. Aos poucos retomávamos a nossa identidade cultural, porque estávamos trabalhando com anossalíngua,eelanãoévazia:éaexpressãomaiordanossacultura.

E assim o tempo foi passando e nós nos preparávamos para dar aulas, confeccionando jogos didáticos, muito caprichados, quebra-cabeças, jogos de memória e outros.

Final do ano de 1972, nos formamos. Foi um acontecimento nacional e internacional, amplamente divulgado.Não tínhamos clareza do que issorepresentava para nós, nem para os brancos, mas para eles era bem claro o que queriam: nos usar enquanto alfabetizadores da língua kaingáng e que fariam oprocessoda línguaKaingángparaoportuguêsempouco tempo, e entãoosprofessoresbrancosfariamoresto,abreviaraintegraçãodoskaingángàsociedade nacional, usando os índios e a sua própria língua para descaracteri- zá-loenquantopovo,masnãotínhamosessaclareza.

Foi uma festa de arromba. Estávamos impecáveis: as meninas de vestido longo, de um tecido fino com tonalidade azul bem claro, com estampadiscretamentefloridaemazulmaisforte,muitobonito.Euaindamelembro.Os rapazes estavam de social, com direito a gravata e tudo. Como eu gostaria deolharasfotosdanossaformatura,quenãoforampoucas,masnuncativemosacesso sequer para olhá-las!

Entre tantas outras coisas que a nossa diretora falou em seu discurso na solenidade da nossa formatura, umaficougravada naminhamente: “apartirdaquelemomentonãoexistiammaisalialunoseprofessores,mastodoscolegas de trabalho”. Estávamos nos sentindo muito importantes.

Após a solenidade, houve comes e bebes, foram servidos dois barris grandesdeumabebidachamadaponche.Chamou-nosatençãoporqueerafeitacom frutas picadas e como os Kaingáng apreciam de modo especial as frutas. Atacamos sem cerimônia, logo estávamos faceiros, falantes e prontos realmente paracomeçara festa.Não sabíamosqueaquelabebidacontinhaumacertaporcentagemderumeaguardente.Nãoseiatéhojeporqueserviramaquela

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bebida na nossa formatura, uma vez que era proibido aos índios consumirem bebidasalcoólicas.Quemsabenemtinhasidopreparadoparanós.

Quandotodosseforam,enóssóiríamosretornarparanossasaldeiasnodia seguinte, a diretora nos comunicou que iríamos ao cinema naquela noite, emTenentePortela,Municípiovizinho,assistiraumfilmequeestavasendoexibido, intitulado “Rosinha Minha Canoa”, de José Mauro de Vasconcelos, senãomefalhaamemória,comopresentedeformatura.

Corri para a casa da diretora, arrumar as minhas coisas para dormir pelo menos a última noite com as minhas colegas no nosso dormitório. Ao sair pela porta, deparei-me com a diretora que estava voltando para casa, e logo me perguntou:“Aondevocêpensaquevai?”.Respondi:“Aomeudormitório,umavezqueagorasomoscolegas,nãosomos?”.Fuisaindoapressadamenteantesqueelamefizessevoltar.

Alguns meses depois, a Funai, através de uma portaria coletiva, contratara todosnósparaentãocomeçarmosatrabalhar.Dividiram-nospelostrêsestadosdoSul(Paraná,SantaCatarinaeRioGrandedoSul).Anossaseparaçãofoiumsofrimento a mais, pois já estávamos acostumados a viver juntos como uma grande família.

Passado algum tempo, segundo o Setor de Educação da FUNAI deBrasília, que acompanhara os primeiros passos da nossa caminhada enquanto monitores, as coisasnão iambem.Por isso foi convocadauma reuniãonoCTPCC,Centroondenosformamos,comtodososprofessoresdaFunai(não-índios),emonitoresbilíngües,comoéramoschamados,paratentarsoluçõespacíficasentreosprofessores“fog”(emKaingángsignifica“não-indígena”)eos monitores bilíngües.

O encontro havia sido programado para uma semana, de maneira que tivéssemos tempo para realizar os acertos e encaminhar os trabalhos em conjunto com os professores “fog”. A Funai de Brasília estava representada por umprofessor,chefedoSetordeEducação,edoisantropólogos.Areuniãorecémcomeçavaeosprofessores“fog”nosalvejaramcomacusações infundadas,que estaríamos fazendo as crianças perderem tempo alfabetizando-as em Kaingáng,quenãotínhamosescolaridadesuficienteparaexerceromagistério,sendoassimoprojetonãotinharazãodeser,quetudopoderiaficarbemseosmonitores só auxiliassem os professores “fog” na limpeza, na merenda e no diálogo entre eles e as crianças.

Comopercebemosquenãohaveria diálogo, terminamos a reunião noprimeiro dia, comunicando que até ao anoitecer não queríamos nenhumprofessor “fog”nasdependênciasdoCTPCC.Foiumacorreria,mas todosforamemboraantesdoanoitecer.Entãopudemossentareavaliarareuniãoetrocarnovasmetasparaenfrentarasituação.

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Daquele dia emdiante a relação entre os professores e osmonitorescomeçaria a mudar, mesmo que só aparentemente, mas já era um avanço, porque aquela briga ainda daria “muito pano pra manga”.

Asnossasescolassempretiveramalgunslivrosdidáticos,entãoolhávamoseensinávamosaquelesconteúdosnanossalíngua.Osprofessores“fog”nãonos ajudavam, mesmo assim as crianças aprendiam mais com a gente do que com eles. Aos poucos os professores “fog” entenderam a importância do nosso trabalho.Então as barreiras começarama ruir e começamos a conviver nomesmo espaço, a escola.

Atéofimdos anos80, nossa luta foimais voltada a assegurar nossoespaçodentro das nossas escolas e o trabalho junto às famíliasKaingáng,deconvencimentoda importânciadanossa línguanapreservaçãodanossaculturae,principalmente,danossaidentificaçãoenquantopovo,paraagarantiados nossos direitos. Foi um trabalho lento para que compreendessem que escrevendo nossa língua, estávamos também trabalhando nossa cultura.

À medida que os monitores bilíngües trabalhavam, conquistávamosas nossas comunidades com os resultados do nosso trabalho. Aos poucos fomos avançando em outras áreas do conhecimento. Claro que tínhamos as limitaçõesdanossaformação,poisfomospreparadossomenteparaalfabetizarna nossa língua, somente isso, motivo que deu origem ao nome que nos deram: “monitoresbilíngües”.Nossoprogramadeformaçãonãotinhacontinuidade.

Foiprecisopassar10anosparapercebermosquenãoeraessaescoladequeprecisávamos,estavanosdespindodanossacultura,enãoeraissoquequeríamos.Em1985, a educação escolar ofertada para as nossas crianças,semdúvidanenhuma,nãoeraamelhor,estava incutindonelasvaloresquedesmereciam a nossa cultura, estava sendo danosa para as nossas comunidades. Onossotrabalhodealfabetizarascriançaseintroduziroportuguêsoralestavafacilitandoo trabalhode aculturaçãodas nossas crianças pelos professores“fog”. Foi preciso trabalharmos mais de 10 anos para percebermos que estávamosaserviçodadesintegraçãoculturaldonossopovo.

Precisavavoltar a estudar.Procurei umaescolade2ºGrauSupletivo,apresenteiadocumentaçãoexigidaeefetiveiaminhamatrícula,masantesquecomeçassem as aulas me chamaram na secretaria da escola, descobriram que oCertificadode1ºGrauquehaviarecebidodoCTPCCnãoerareconhecidopeloConselhoEstadualdeEducação,entãosubmeteram-meaumaprovaparaque meus estudos fossem reconhecidos e regularizados. Fui aprovada e pude finalmentecursaro2ºGrau.Emdoisanosdeaulasfreqüentadas,termineiem1989 o Ensino Médio, coroando meu sacrifício, pois trabalhava o dia inteiro na Funai,eànoitefreqüentavaasaula,semfalarque,nestaépoca,minhasfilhaseram todas pequenas.

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Contudo, continuamos, eu e meu povo, sendo tratados como quem estava condenado sempre a depender dos outros. Isso começou a me inquietar e, por conseqüência,em1992,cincoKaingángprestaramvestibularnaUniversidadedeIjuí/RS,emcincoáreasestrategicamenteescolhidas:direito,enfermagem,pedagogia,agronomiaehistória.Nãoconseguimosavagaparadireito,masingressamos nas outras quatro áreas. Eu me lembro de um artigo num jornal que dizia: “Índios invadem a universidade”.

Paranossadecepção,apenasumterminouocurso,odeenfermagem,quehoje trabalha em sua comunidade.

Ascausasdadesistênciadosoutrostrêsforamvárias.Nãoconseguiramseacostumaràcidade,eacondiçãofinanceiraeraprecáriaparapermanecerestudando.

Quantoamim,quecursavapedagogia, tiveparticularmenteasminhasrazões, desisti porquemeu curso nada tinha a ver comosmeus anseios eexpectativas enquanto professora indígena, alémdemuita dificuldadeparaacompanhar a turma, pois era tudo muito corrido, os professores falavam demais e me perdia em meio a tantas falas, e depois o professor saia e nem perguntavasealguémhaviaficadocomalgumadúvida,emseguidaaplicavaa prova. Era como se diz: “cada um por si e Deus para todos”. Era assim, um querendo ser melhor que o outro. Desanimei e larguei a faculdade. Me doeu muito, porque sabia o que representava para mim e para o meu povo a minha formaçãono3ºgrau,euestavaabrindomãodaúnicaformadeajudaramudarorumodaEducaçãoEscolarIndígenadoPovoKaingáng.

Minhapreocupaçãomaioreracomosprofessoresquealfabetizavamnanossa língua, pois desde que começamos a trabalhar nunca tivemos uma pessoa preparadaparanosajudarnasnossasdificuldadesnalínguakaingáng.Sentiamuitonãoterterminadomeucurso,mesmoquenãomeajudassemuito,masestariamaisaptaparafazerfrenteàsinvestidasdosprofessoresbrancos.

Queríamos as garantias do ensino diferenciado para conservar nossacultura,nãotínhamosquemnosajudassenasnossasdificuldadesnoensinobilíngüe propriamente dito. Eu via que os professores indígenas, pelas dificuldadesenfrentadasnaalfabetizaçãodalínguakaingáng,eporfaltadeorientaçãoematerialdidáticoapropriado,estavamdeixandoalínguamaternae alfabetizando emPortuguês, na verdade por termais recursos dos quaispodiamlançarmão.

Osanos foramsepassando.Nãopensavamaisquepudesseajudarosprofessores kaingáng, quem sabe algum dia alguém dos nossos chegue lá, para fazer esse trabalho, mas quem sabe tarde demais para um povo que gradativamente está deixando de falar sua língua, como é o caso do Povo Kaingáng.

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Na Funai existem servidores relapsos, mas temos a sorte de que existem algumaspoucaspessoasquetêmumavisãodiferente,enostêmajudadoemnossas limitações.Assim sendo, alguémda Funai teve acesso aomaterialinformativo sobre uma tal universidade indígena, e mandou-me pelo correio. Continhaosformuláriosparainscrições,corriatráseconseguiinscrevertrêsprofessoresdaminhaaldeia,tudonacorreria,poisasinscriçõesjáestavamseencerrando.

Quandoseaproximouodiadovestibular,aFunaideChapecó/SCpro- videnciou as nossas passagens e embarcamos rumo a Cuiabá/MT, maisprecisamente paraBarra doBugres/MT, num total de noveKaingangparapleitear vinte vagas ofertadas a outros estados da federação.Quando vi ocampus da UNEMAT repleto de índios das mais diferentes etnias, percebi que nãoiriaserfácil.

Passados alguns dias, já em minha aldeia, fui avisada que eu havia passado novestibular.Efetueiminhamatrículaporfax,efiquesabendoqueapenastrêsKaingángtinhamsidoclassificados,somenteeudaminhaaldeia.

Quandochegouodia, fomosos três fazeraprimeiraEtapa,outravezestava cheia de esperança, senti mais uma vez a importância de voltar a sonhar.

Começaram as aulas. De cara, começamos a estudar as nossas origens, nossos povos, culturas e línguas de 36 etnias diferentes. Os sons de cada línguaestãosendoestudadosaqui.Suasrepresentaçõesgráficasefonéticas.Cada etnia está descobrindo a estrutura de sua língua, etnomatemática etc. Aqui,nãoestamosbrigandocomamáquinadeescreverparafalarkaingáng,estamos numa verdadeira “guerra” de línguas cruzadas com o “computador”, porqueestamosquerendoqueelefalenãoapenaskaingáng,masas36línguasindígenasdiferentesfaladaspelosacadêmicosdo3ºGrauIndígena.

Nós, Kaingáng e outros povos indígenas mais aculturados de outras regiõesdoBrasil, sofremosmuitadiscriminaçãoporpartedealgunspovosindígenasdoMatoGrossono3ºGrauIndígena,principalmentedosXavante,que consideram-se mais índios do que os demais por terem suas culturas mais preservadas. Mas tudo isso teve seu ponto positivo, pois tivemos a oportunidade de socializar as diferentes histórias de contato destes povos indígenasquecompunhamo3ºGrauIndígena,possibilitandoentenderquetudoissoresultoudoprocessodecolonizaçãodoterritóriobrasileiro,emqueos povos indígenas mais afastados do litoral permaneceram mais preservados, e os povos indígenas mais próximos ao litoral foram contatados a “ferro e fogo”,ondenaçõesinteirasforamdizimadaspelasfrentescolonizadoras.Todaessa polêmica resultou na gratidão e reconhecimento dos povos indígenasmaisfavorecidosnesteprocessodecolonizaçãopelospovosmaisatingidose

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expropriados, tanto territorial como culturalmente. Desse modo, o restante do cursoprosseguiusemmaisdiscriminação.

Hoje somos três Kaingáng formados no 3º Grau Indígena, eu daComunidadedeSerinha(RondaAlta/RS),aMárciadaComunidadeIndígenadeNonoai(Nonoai/RS)eoSandrodaComunidadeIndígenadeXapecozinho(Xanxerê/SC).EstamosmuitogratosaosprofessoresindígenasdoMatoGrosso(nossos colegas), ao Coordenador do Projeto Elias Januário, pela sensibilidade dedividirconoscoaoportunidadedaformaçãoespecíficaemnívelsuperior.

Enfim,possodizerquerealizeiomeumaiorsonho,defazeromeu3ºGraue,principalmente,emEducaçãoEscolarIndígena,porqueseique,emum futuro bempróximo, poderei ajudar na formaçãodos jovens donossopovo. Posso ver jovens Kaingáng com orgulho de sua origem, com espírito crítico, imunes àmanipulaçãodosbrancos, comclarezadas artimanhasdapolítica indigenista, e de todos os nossos problemas, para que, numa tarefa conjunta,possamosconduzironossopovocomsegurançaemdireçãoatãosonhada“autonomiaintelectual”.Considerandoqueesteéofrutodaformaçãoespecíficaediferenciadadosprofessoresindígenas!

AssimficasempredentrodenósatristezadenãopodermosestarfazendoaformaçãodosprofessoresKaingángaquinaregiãosul,quetambémesperampor uma iniciativa desta. Hoje temos a Universidade Federal do Rio Grande doSulabrindoespaçoparaa formaçãode jovensKaingáng, inclusivecomacriaçãodeumaespecializaçãocompostapor trêsKaingángobjetivandoaconstruçãodeumprojetodeformaçãodejovenseadultosindígenas,noestadodoRS,chamadoPROEJAIndígena,projetoestedoMinistériodaEducação.Estamosotimistascomrelaçãoaesteprojeto,umavezqueoEstado,queéoresponsávellegalpelaofertadaformaçãoespecíficaaosprofessoresindígenas,nãoestáassumindoestepapel,eosprofessoresindígenasseencontramemprejuízo e, consequentemente, a qualidade de ensino nas nossas escolas.

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8 Proposições para o diálogo intercultural:

movimentos necessáriosGilberto Ferreira da Silva

Marta Nornberg

Se eu voltasse hoje à minha aldeia, ela já não seria mais a minha aldeia, a minha aldeia está na minha memória.

José Saramago

O objetivo deste trabalho centra-se em aportar elementos para se pensar as possibilidadesdeconstruçãododiálogonaperspectivainterculturalassociadoaosdesafiosimpostosaocampodaeducação.Paratanto,urgequefalemosdeculturasecruzamentosculturais.Partimosdopressupostodequeaconcepçãodeculturadevesercompreendidanasuaacepçãoplural.Portanto,culturas.Aindaquepersistaumdiscursomacroqueapontaparaaexistênciadeumacultura brasileira, uma cultura regional, uma cultura afro-brasileira ou uma cultura indígena, cabe, inicialmente, desconstruir esse ponto, aparentemente aceitos,paracolocaremevidênciaaexistênciadeexpressõesculturaisquesevinculam com maior ou menor intensidade a determinadas práticas culturais de pessoas, grupos ou comunidades. Se quisermos, podemos igualmente nos reportaraotermominorias,tãousualnasanálisessociológicas.

O debate que vem se instaurando com vigor nestas últimas décadas no contextolatino-americanoeeuropeusobreosprocessosdecirculaçãodebensculturais,sobaégidedaglobalizaçãodaeconomiaemundializaçãodacultura,recoloca no cenário a necessária discussão sobre as potencialidades destasexpressõesculturaisesuascontribuiçõesparaocrescimentoedesenvolvimentodas nações e de seus grupos e/ou comunidades internas.Por outro lado, onascimento de ações que privilegiam e valorizam as interfaces entre osdiferentes e pelas diferenças apontam para a riqueza que os cruzamentos culturais entre diferentes grupos humanos delegaram para o desenvolvimento da humanidade. Vide, por exemplo, a presença de ocidentais no continente asiático, africano, ou mesmo no território americano.

Se desse processo histórico sabemos que houve crescimento e enri- quecimento,tambémsabemosquehouveexploração,dominaçãoeaniquila- mentodepovos.Aquestãoqueseapresentahojeécomonãoreproduziros

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erros do passado, aprender com a história, continuando nossa odisseia rumo a processos civilizadores na sua compreensão mais radical que o termocarrega.

Nessesentido,estareflexãoestáimbuídadapretensãodecolocaremevidênciaaspectosquepermitampensarsobreosprocessosdeconstruçãodediálogos interculturais no contexto brasileiro, considerando-se as peculiaridades históricas, culturais e sociais.

Sobre o diálogo intercultural

O diálogo pode ser visto a partir da ideia de religação. No contexto mundial em que vivemos, o diálogo é o caminho possível a partir do qual podemos construir um presente aceitável para se conviver, onde caibam todos. Somos seres linguajantes (MATURANA, 1999), ou seja, nos tornamos humanos porque operamos na linguagem, e os processos linguajares surgem por meio dainteração,ouconformepropõeMaturana,sãoresultadodecoordenaçõesconsensuais. Segundo Panikkar (2001, p. 28) “el hombre no es un individuo, unamónada,sinomásbienunapersona,unhazderelaciones.Ylasrelacioneshumanas requieren el diálogo”.

Odiálogonãopodelimitar-seàtrocadeinformaçõesoudeideias.Porisso,éprecisodizerquenossaopçãosesustentanoquesetemnomeadodeeducação33intercultural.ConformeFleuri(2001,p.6),“arelaçãointerculturalindicaumasituaçãoemquepessoasdeculturasdiferentesinteragem,ouumaatividadeque requer tal interação”, afirmandoquea ênfaseestána relaçãointencional entre sujeitos de diferentes culturas. Na perspectiva intercultural, o diálogo deve permitir que cada um seja aceito como legítimo em sua forma deviver, o que implica reconhecer queo sujeito da relação temumcorpo(sôma), uma alma (psychê), uma comunidade (polis) e um mundo (aiôn) de experiência que, conjuntamente, permite a construção de um determinadoespírito, uma noologia,quesustentaráeorientaráaspercepções,ascrençaseasações. Reconhecerosujeitodarelaçãocomessascondiçõesimplicaafirmarque durante um ato dialógico um terceiro elemento aparece quando o diálogo empreendidorealmentepermiteatroca,ainteração,aampliaçãodesentidos.Emoutraspalavras,implicareconhecerqueduranteumarelaçãodediálogoautênticoteremosdepermitirainclusãodoterceirotermo,oqueimplicaaceitaralógicadoterceiroincluído,talqualnospropõeMorin(2002;2001),poisoquesequermedianteodiálogointerculturaléaconstruçãodenovasformasdepensar, de agir, de estar neste mundo, uns com os outros. O diálogo intercultural 33Àsvezes,tambémotermomediaçãoaparececomosubstitutivoaotermoeducaçãonamedidaemquealgumasaçõestêmumcarátermaisdemediaçãodoquepropriamentedeeducação.

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exige aceitar e reconhecer que um terceiro elemento ou o nós surge, emerge, nasceda relaçãodialogal, tornandoviávelaalteridade.Ebrincandocomaconjugaçãoverbal,teríamososer no tempo da alteridade:

EuSou tuÉsele/elaÉnósSomos vósSois elesSãoeu34...

Os diferentes povos vivem de suas memórias, de suas histórias. Por isso, fazendousodesserecurso,acontaçãoeaudiçãodehistórias,algoeminentementeantropológico, propomos uma história como elemento ilustrativo para esta reflexão:

Doisirmãosmoravamcomovizinhos.Suasterraseramdivididasporumrio. Nos últimos tempos, um desentendimento sobre as divisas que já vinha delongecomeçouaseavolumar.Brigaramtãofeioquenãoquiserammaisse ver, que dirá, se falar.Certo dia chegou um carpinteiro, pedindo trabalho. Vinha com suas ferra- mentaseasuavontade.Sólhefaltavaumatarefa.Oirmãoresolveudaruma utilidade ao monte de madeira e tábuas que estavam empilhadas no pátio. Pediu ao carpinteiro que construísse uma cerca bem alta na beira dorio,paraquenãoprecisassemaisvernenhumsinaldoseuirmão.Emseguida, viajou.Depois de algumas semanas voltou para casa. Ficou muito incomodado com o que viu. Em lugar de uma cerca, o carpinteiro tinha construído uma ponte.Enquantoxingavaocarpinteiroporessaalteraçãodaordemdeserviço,viuoseuirmãovindopelaponte,debraçoserguidos,pedindoperdão.Elenãoseagüentouefoiaoencontrodoirmão,fazeraspazes.Quandosederamconta,ocarpinteirojáialonge.Chamaram-nodevolta. Queriamcomemorare festejara reconciliação.Masocarpinteiropediulicença de continuar o seu caminho. “Ainda tenho muitas pontes a cons- truir”.

Paraproduzirrelaçõesdealteridade,emqueodiálogosejaaçãoevidente,é preciso atuar como um construtor de pontes. A história do construtor de pontes funciona para nós como uma imagem que permite visibilizar diferentes papéis 34 Edson Ponick (2005).

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queassumimosemnossaaçãocomosindígenas:àsvezes,somosoconstrutor;outras,aponte.Paraorganizareorientaracompreensão,construímosareflexãomostrando que a radicalidade do colocar-se em diálogo exige o reconhecimento erespeitoàdiversidadeeoaprenderaolhareescutarooutroparaalémdoetnocentrismo.

Comodecorrênciaestáofatodequenesseprocessodemediaçãopró-ativa,dentro da perspectiva do diálogo intercultural, muitas vezes somos impelidos arevernossaspráticase,acimadetudo,nossasconvicções.Aescutaeoestarjuntocomosindígenasprovoca-nosareflexãodequenossacultura(ocidental)tem muito a aprender com a sabedoria indígena. Um exemplo é o fato de que acontinuidadedenossaexistêncianesseplanetapassanecessariamentepelocompromisso conjunto de cuidar e proteger nossa casa comum, a Terra. E, nesseponto,nós,ocidentais,somosextremamentedeficitários.

Noprocessodereconciliaçãotambémestápresenteafunçãodeatuarcomoum tradutor de cosmologias e de lógicas explicativas, possibilitando a mútua compreensão.Tarefaessamuitasvezesempreendidapormeiodaconversa,daescritadeumacartilha,dadivulgaçãodeartefatosartesanais,daarticulaçãode encontros de grupos culturais distintos. O atuar como tradutor é aqui entendido no sentido proposto por Gadamer (2003): o de ser aquele que oferece símbolos,significadosoucondiçõesquepermitema(re)construçãodesentidos.Junqueira (1991), antropólogabrasileira, afirmaqueo desenvolvimentodacapacidadedeprestaratençãoaocomportamentodosoutros,tentandodecifrá-loecompreendê-loéumdossinaisdequenostornamosadultos.Nalógicadaantropóloga,afantasiadaonipotência(vejotudoapartirdemimmesmooudo meu grupo) é golpeada por meio do impacto do convívio social, processo às vezes doloroso,masnecessário para os primeiros passos emdireção aoconhecimentodooutro,domundoedasprópriasautolimitações.Assim,aoatuar como tradutor ou mediador, muitas vezes, ocupamos o lugar daquele que acabaabrindoaferidadosvaloresepráticasetnocêntricas.Nãoégratuitoofato de que sociólogos35contemporâneoscadavezmaistêmafirmadoqueosconflitosatuaisefuturosnãosedarãomaisemtornodasquestõesideológicas,massimemtornodasquestõesétnicas,ouseja,nossosconflitosnãosurgemsomenteporcausadenossasdivergênciasideológicas,mastambémporcausados diferentes fatores advindos da pluralidade de etnias, do jeito que o outro vive, come, se veste, fala, pensa, cheira.

Aqui chegamos a um segundo princípio, o reconhecimento e respeito à diversidade. OctávioPaz(apudBARCELOS,2001,p.88)afirmaquetodasas sociedades humanas acabam por descobrir que existem outros grupos 35 Citamos Bauman, Souza Santos, Touraine, Hobsbawm.

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que falam uma linguagem distinta da sua. Ele nos adverte que isso acontece paranoslembrarqueossonspodemtersignificadosmuitodiferentesconformenossa cultura, nossa história, nosso devir. Paz utiliza o relato de Babel para ilustrarsuaposição,emquehomensemulheresdeixaramdeserumsópovo.NavisãodePaz,Babeldemonstraqueossonspodemtersignificadosmuitodiferentes para os diferentes povos. Por isso, conforme Paz, é necessário tomar cuidado ao lidar com os mitos e as práticas de religiosidades das diferentes sociedades.Umexemplo que cita é o da relação comamorte, onde cadacultura temsignificados,mostrandoformasdiferenciadasde lidarcomesseevento; acrescentaríamosoda relação comanatureza estabelecida apartirdospreceitosdamodernidade,ondemantemosumarelaçãodeseparaçãoedeexplorador, pois a vemos como inesgotável, manipulável, domável.

Assim, é preciso admitir que somos sapiens/faber e demens/ludens, como nos sugere Morin (1997; 1999). Barcelos (2001, p. 90) também reforça essa ideia, embalado pelas ideias de Morin. Ele adverte que ver homens e mulheres apenasnasuadimensãodehomo sapiens e homo faber é reducionista. Para Barcelos,oaprisionamentoaapenasessasduasdefiniçõesdoseracabamporsufocar a complexidade do pensar e do agir humano. Por isso, conforme o próprioMorinsugere,énecessárioarticularnossasaçõesapartirdaaceitaçãode uma noologia que incorpore, congregue, alie sapiens, demens, faber, ludens de forma equilibrada e nãomantendoo paradigmadohomo sapiens/faber como controlador das outras formas de estar no mundo.

Nessesentido,éprecisorefletirumpoucosobreomovimentodesim- bolizaçãooudeconstruçãodesímbolos,algoeminentementeantropológico,equetambémreafirmaessasdimensões.Junqueira(1991)dizqueatribuímosvaloresignificadoatudoquenoscerca,sejamelascoisasmateriais,sensações,atitudes,desejos,poisnadaescapaaocrivodavalorização,quepodeserpositivoou negativo ou ambos. “A essa qualidade humana de atribuir significado,denominados ‘capacidade de simbolizar’, cujo produto é o símbolo. Nesse sentido, tudo que é criado socialmente pode ser entendido como símbolo” (JUNQUEIRA,1991,p.14).Nesseprocessoéprecisoafirmarquenecessitamosaprender a olhar e escutar para além do etnocentrismo.

O levantamento desses fundamentos remete-nos a um trecho escrito por FernandoPessoasobreahistóriadedoisirmãos:

Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus que se haviam zangado um com o outro. Cada um me contou a narrativa de por que se haviam zangado. Cada um disse a verdade. Cada um me contou suas razões.Ambostinhamrazão.Ambostinhamtodaarazão.Nãoeraqueumvia uma coisa e outro outra, ou que um via um lado das coisas e outro um ladodiferente.Não:cadaumviaascoisasexatamentecomosehaviam

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passado,cadaumasviacomumcritérioidênticoaodooutro,mascadaumviaumacoisadiferente,ecadaum,portanto,tinharazão.Fiqueiconfusodestaduplaexistênciadaverdade.

FernandoPessoachamaatençãoparaaradicalidadequeestáinclusanoprocessodereconhecimentoerespeitoàdiversidade.Arazão(sapiens) dirá quenãoépossível fazer isso;mas,nossodemens, seduzido e vinculado ao sonho,àpaixão,aomito,aojogo,essesimpoderánosdescobrir,nosrevelar.Ou seja, reduzir-se a pontos de vistas unilaterais é algo pouco inteligente. Sábio éreconhecereconvivernadiversidade,naconfusão,nadispersão,algoquesabemos estar muito presente no modo dos indígenas existirem.

Referências

BARCELOS,ValdoH.L.Religiosidade:paraobemouparaomal?In:GAUTHIER,Jacques;FLEURI, Reinaldo M.; GRANDO, Beleni S. (Org.). Uma pesquisa sociopoética: o índio, o negroeobranconoimagináriodepesquisadoresdaáreadaeducação.Florianópolis:UFSC/NUP/CED,2001.FLEURI, Reinaldo Matias. Multiculturalismo e interculturalismo nos processos educativos. In: Ensinar e aprender: sujeitos, saberes e pesquisa. Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino – ENDIPE – Rio de Janeiro: DP&A, 2000. p. 67-81.JUNQUEIRA,Carmem.Antropologia indígena: umaintrodução,históriadospovosindígenasnoBrasil.SãoPaulo:EDUC,1991.LUCKMANN, Sandro. Babel e Pentecostes. Mondaí, 2002, mimeo.MATURANA, Humberto. Ontologia da realidade. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1997.______. Emoções e linguagem na educação e na política.1. reimpressão.BeloHorizonte:Editora da UFMG, 1999.MORIN, Edgar. O método 1. A natureza da natureza. Porto Alegre: Sulina, 2002.______. O método 4.As ideias:habitat,vida,costumes,organização. Porto Alegre: Sulina, 2001.______. O método 5. A humanidade da humanidade: a identidade humana. Porto Alegre: Sulina, 2002.______. Meus demônios. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1997.______. O paradigma perdido.6.ed.Portugal:PublicaçõesEuropa-América,2000a.PANIKKAR, Raimon. El diálogo indispensable: paz entre las religiones. Barcelona: Ediciones Península, 2001.TREIN, Hans. A mulher que converteu Jesus. SãoLeopoldo,2003,mimeo.______. (Org.). Relatório Institucional do Conselho de Missão entre Indígenas (COMIN). SãoLeopoldo, 2005, mimeo.______. A missão do COMIN. Palmitos, 2005. mimeo.

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III NATUREZA E CULTURA

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9 A dinâmica alimentar nos grupos indígenas

Mártin César Tempass

Iniciocomumsimplesexercíciodemultiplicação.Estimo,modestamente,que os seres humanos ocupam cerca de uma hora e meia do seu tempo diário comoatodecomer.Issosignificaque,emumasemana,sãocercadedezhorasemeiadedicadosàingestãoalimentar.Emumano,sãoaproximadamente550horas.Emcinquentaanos,sãomaisde27milhoras(1125dias,ouseja,poucomaisdetrêsanos)quecadaserhumanoocupacomendo.Emoutrostermos,descontadas as horas de sono diário, cada ser humano dedica entre quinze e vinte por cento da sua vida para o ato de comer.

Se acrescentarmos a esse simples ato de levar os alimentos à boca otempogasto coma preparação dos alimentos, a produção, a estocagem, acomercialização,amanutençãoealimpezadosutensíliosculinários,enfim,todososrequisitosnecessáriosparaapreparaçãoeoconsumodosalimentos,teremos um percentual bem mais elevado de tempo diário despendido com a alimentação.Como em boa parte domundo atual a produção alimentarestá muito distanciada do consumo alimentar, grande parcela do trabalho remuneradodossereshumanosérevertidonacompradosalimentos.Nãoéà toaquenoEclesiastesseencontraaseguintesentença:“todotrabalhodohomem é para sua boca” (BÍBLIA, 1969, p. 682).

Nadamais elementar para o ser humanodoque a alimentação, afinaléatravésdelaquesãoingeridososnutrientesessenciaisàsobrevivênciadequalquer servivo.Aalimentaçãohumana, idemados animais, nutri.Mas,paranós,humanos,aalimentaçãovaimuitoalémdasimples,porémessencial,funçãonutricional.Nós,humanos,exclusivamente,possuímosafaculdadedesimbolizar.Nósatribuímossentidosatudo,inclusiveàcomida.Assim,comoafirmouClaudeFischler(1995),nosalimentamosdenutrientes,mastambémdeimaginário.Emfunçãodisso,aocomer,respeitamosumasériederegrasque nem sempre nos damos conta, posto que grande parte delas possui caráter inconsciente.

Essafunçãosimbólicadaalimentaçãoexplicaofatodeque,apesardesermosonívoros,nãocomemosdetudo.Temosumavastagamadecoisasquepoderiam ser comidas, mas, de fato, só nos valemos de uma mínima parcela emnossa alimentação.Emoutras palavras, não consumimos tudoo que ébiologicamentecomestível,porquetudooqueébiologicamentecomestívelnãoé culturalmente comestível (FISCHLER, 1995). A categoria “alimento” é uma

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construçãocultural,variandodesociedadeparasociedade.Oqueéalimentonumasociedadepodenãoseremoutra.Assim,oalimentoéculturalmentepensado antes de ser biologicamente ingerido.

Em termos antropológicos, é possível diferenciarmos o “alimento” da “comida”. O alimento, igual para homens e animais, contempla apenas a funçãonutricional,aopassoqueacomida,categoriaexclusivadoshumanos,envolve duplamente os aspectos nutricionais e simbólicos. Segundo Roberto DaMatta (1987, p. 22), “toda substância nutritiva é alimento, mas nem todo alimentoécomida”.Acomidaéaelaboraçãoculturaldoalimento.

“O homem é o único animal cozinheiro” (CASCUDO, 1972, p. 20). E todos os grupos humanos “cozinham”. Com a culinária os seres humanos realizaramatransiçãodaesferada“natureza”paraada“cultura”.QuantoaissoLévi-Straussclassificao“cru”eo“cozido”emvérticesopostosnotriânguloculinário (o terceiro vértice é o “podre”).O cru é o alimento natural, nãoelaborado.Ocozidoimplicaaelaboraçãoculturaldoalimento(éacomida).36 A culinária transforma o alimento cru, da natureza, em comida – cozida – culturalmente elaborada. Como todas as sociedades humanas desenvolveram formasdepreparaçãodeseusalimentos,pode-seafirmarqueacozinhaéumelemento universal. Contudo, cada grupo cultural apresenta maneiras distintas deprepararassuascomidas.“Acozinhaéuniversal;ascozinhassãodiversas”(MACIEL, 2001, p. 151).

Dessa forma, cada cultura – entendida como um sistema simbólico – apresentaumaculináriaespecífica.Aculináriaépartedessesistema.E,comoemtodo sistema, a culinária está fortemente entrelaçada com os demais elementos queconstituemosistema.Aculinária,conformeadefiniçãodeMarcelMauss(1974), pode ser considerada um Fato Social Total. Isto é, ela perpassa ou é perpassada por todos os elementos constituintes do sistema cultural. Para citaralgunsexemplos,aalimentaçãodeumgrupoestárelacionadacomasuacosmologia,comasaúde,comareprodução,comadivisãosexualdotrabalho,com o statussocial,comasdecisõespolíticas,comrelaçõesdeparentescoeamizade,comquestõeseconômicas,comaidentidadegrupaletc.Emoutraspalavras,ela–diretaouindiretamente–estárelacionadacomtudo.Édevidoa istoquequalquerpesquisa sobrealimentaçãoprecisa terumaabordagemholística (HERNÁNDEZ e ARNÁIZ, 2005). Para “aprender” as práticas alimentares de um determinado grupo é preciso “aprender” a cultura do grupo comoumtodo.Paratanto,nadamelhorqueométodoetnográfico.

36ÉinteressantedestacarqueLévi-Strauss(1979)afirmaqueo“cru”nãoexisteemestadopuro,osalimentossempretrazemalgumaconstruçãocultural.Porexemplo,mesmoosalimentosdassaladasnãocozidastêmqueserlavadas,cortadasetemperadas.Tambémaprópriaescolhadosalimentosqueserãocomidospassa pela esfera cultural.

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Contudo, essa interdependência entre os vários elementos do sistemafazcomqueumaalteraçãoemumdesseselementosprovoquemodificaçõestambém nos demais elementos. Em outras palavras, um elemento pode modificartodoosistema.Assimtambémocorrenaculinária,poisamudançadepráticasalimentaresmodificaaculturacomoumtodo.

Posto isso, pretendo neste artigo analisar a dinâmica alimentar nas sociedades indígenas e suas consequências para o sistema cultural nessassociedades.ParaexemplificarosargumentosqueserãoexpostosfareireferênciaàspráticasalimentaresdosMbyá-Guarani,grupoindígenacomsignificativapresença no Rio Grande do Sul37 e com os quais eu venho realizando pesquisas etnográficasdesdeoanode2004.Começareicomumbreve relatosobreacultura alimentar desse grupo.

Os Mbyá-Guarani obtêm os seus alimentos tradicionais através dahorticultura, da caça, da pesca e da coleta. O trabalho na horticultura e na coleta é desenvolvido, conjuntamente, por homens e mulheres. A caça e a pescasãoatividadesexclusivamentemasculinas.Jáapreparaçãodosalimentos–atransformaçãodosnutrientesemcomida–cabeàsmulheresdogrupo.Aobtençãode produtos alimentares representa a principal emais importanteocupaçãodogrupo.Eéapartirdelaqueasdemaisatividadeseasrelaçõessociaissãoorganizadas.

SãoalimentostradicionaisparaosMbyá-Guaraniaquelesqueforamcriadospelas divindades desse grupo para que eles possam se alimentar. O consumo desses alimentos, que envolvem espécies animais e vegetais, de acordo com acosmologiadosMbyá-Guarani,ospossibilitaalcançaraperfeiçãodosseuscorpos e espíritos (aguyje),ascendendoaomundosobrenaturalondeviverãocom e como os deuses (TEMPASS, 2005). Em outras palavras, consumindo seus alimentos tradicionais osMbyá-Guarani também se tornarão deuses.É por isso que, desde tempos imemoriais, eles se esforçamem reproduzir(preservando) as sementes das plantas tradicionais e os animais passíveis de caça.Nessegrupoindígena,consumirsignificaprimeiramentepreservar.

Contudo, o simples consumo desses alimentos pouco adianta para o alcance daperfeiçãoseessesnãoforemobtidosconformeospreceitoscosmológicos.Éque as divindades dos Mbyá-Guarani estabeleceram as formas (regras) corretas para a obtençãodos alimentos. Por exemplo, as sementes tradicionais queserãoplantadasprecisamprimeiramente“participar”dedeterminadosrituaisna Casa de Rezas (Opy). Depois podem ser plantadas sem a necessidade de adubos,defensivosagrícolase/ouirrigação.Seosritos,quecontinuamatéa 37 Além do Rio Grande do Sul, os Mbyá-Guarani também possuem aldeias nos Estados de Santa Catarina, Paraná,SãoPaulo,RiodeJaneiroeEspíritoSanto.TambémnaArgentina,ParaguaieUruguaiosMbyá-Guarani se fazem presentes.

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colheita,foremrealizadoscorretamente,asdivindadesseencarregarãodefazeras plantas crescerem. Além disso, as divindades também determinaram como devem ser distribuídos e armazenados os alimentos obtidos. A reciprocidade – dar, receber e retribuir – é um dos principais pilares da sociedade Mbyá-Guarani.No que tange às comidas propriamente ditas, os deuses tambémensinaramaosMbyá-Guarani asmaneiras corretas de preparaçãodos seusalimentos tradicionais, a fim de alcançar a perfeição. Tem-se, assim, quepor trás de cada prato de comida tradicional dos Mbyá-Guarani existe uma complexaestruturasimbólica,desdeaproduçãoatéoconsumo.

A culinária desses indígenas também é acionada como um sinal diacrítico, no sentido atribuído por Frederik Barth (1998). Isto é, a culinária é utilizada comoumíconequevisacontrastaraculturaMbyá-Guaranifrenteàsdemaisculturas. Ela é um “distintivo” grupal. A culinária Mbyá-Guarani também está relacionada com a saúde dos indivíduos, com o status social, com o controle de natalidade, entre muitos outros quesitos que poderiam ser elencados. O importanteaserressaltadoéocaráterholísticodaalimentaçãonasociedadeMbyá-Guarani,poiselaapresentaumainterdependênciacomtodososdemaiselementos constitutivos da sua cultura.

EissonãoéumprivilégiodosMbyá-Guarani.Talfatopodeserpercebidoemqualquerculturahumana.Inclusiveemnossasociedade.Édevidoaessecaráterholísticodaalimentaçãoqueváriosautoresadestacamcomosendoum dos mais importantes traços culturais. E um dos mais fortes também. Em contextos de migração, quando ocorrem inúmeras trocas culturais, aalimentaçãoéoelementoquepormaistempopermanece(HERNÁNDEZeARNÁIZ, 2005; FISCHLER, 1995). Grosso modo, poderíamos dizer que ela é aúltimaa“desaparecer”.TalinformaçãosetornapreocupanteaopassoqueosgruposindígenaspresentesnoRioGrandedoSulnãoestãomaisconseguindomanter as suas práticas alimentares tradicionais.

Issosedeveaumasériedefatores,masprincipalmenteàmorosidadenoprocessodedemarcaçãodasterrasindígenas.Enquantoaguardamademarcaçãodesuasterras,umaboaparceladapopulaçãoindígenanoRioGrandedoSulen- contra-se provisoriamente alocada em acampamentos provisórios nas margens de rodovias ou em loteamentos irregulares nas periferias das grandes cidades. Osindígenas“aldeados”tambémaguardampelaconclusãodosprocessosdede- marcaçãodeterras,postoqueamaioriadasaldeiasindígenasnoEstadopossuiumaáreaterritorialreduzidaesemcondiçõesecológicasadequadasparaamanu- tençãodo“mododeser”indígena.Asaldeiasnãopossuemmatasparaacaçaeacoleta,riosoulagosparaapescaeterrasuficienteefértilparaahorticultura.

Issosignificaqueosgrupos indígenasnãoestãoconseguindoobterosseus alimentos tradicionais, atingido a sua cultura como um todo. No caso dos

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Mbyá-Guarani, por exemplo, sem poder obter os seus alimentos tradicionais, elesnãoconseguematingiroobjetivodesetransformarememdivindades.Aprópriaorganizaçãosocialéafetada,vistoqueestaéfortementeestruturadapelaproduçãoalimentar.SeantesosMbyá-Guaranidedicavamamaiorpartedo seu tempopara a produçãode alimentos, agora, coma impossibilidadedessaprodução,comoqueosMbyá-Guaraniestãoseocupando?Comosedáadivisãosocialdotrabalho?Comoissoafetaoprincípiodareciprocidade?Sem poder produzir seus alimentos os indígenas necessitam obter recursos monetários para poder comprar os alimentos dos “brancos” no comércio. Para tanto,homensemulheres,jovensecrianças,caciques,xamãs,enfim,todososindivíduos precisam se ocupar com atividades remuneradas, principalmente comaproduçãoeocomérciodeartesanato.Talfatointroduzcommuitaforçaum novo elemento nessas sociedades: o dinheiro. Se antes o acesso a bens e serviços se dava de forma equitativa entre os indivíduos nas sociedades indígenas, regidas pelo princípio da reciprocidade, agora o dinheiro pertence a quem o obteve. Agora o dinheiro intermedeia as trocas de bens e serviços.

Masosrecursosmonetáriosobtidosatravésdotrabalhosãoinsuficientespara conseguir comprar a totalidade dos ingredientes necessários para a alimentação dos grupos indígenas. Dessa forma, os grupos indígenasdependemdedoaçõesdos“brancos”.Defato,enquantoas terras indígenasnãosãodemarcadas,órgãosgovernamentaiseONGsdistribuem–deformairregulareinsuficiente,diga-sedepassagem–cestasbásicasaessesindígenas.A cesta básica é muito importante para esses grupos, pois fornece os nutrientes necessários para a sobrevivência física.No entanto, ela nãoproporciona a“sobrevivência”cultural.Elacontemplaosaspectosnutricionaisdaalimentação,masnãopossuiosaspectossimbólicosdacomidadosgruposindígenas.NocasodosMbyá-Guarani,acestabásicanãocontémosalimentostradicionaisqueforamcriadospelosdeuses,nãoforamproduzidosdeacordocomasregrasestabelecidas para atingir a perfeição, sãoprejudiciais à saúde etc.A cestabásicanãoproporcionaqueaperfeiçãosejaatingida.

Se os grupos indígenas tiverem suas terras demarcadas, alémde nãonecessitarem mais de doações de cestas básicas, eles poderão produziros seus alimentos tradicionais. Produzindo seus alimentos tradicionais estarão “preservando” a sua cultura. Simples?Nem tanto!Existemmuitaspessoas, inclusiveautoridadescompetentes,que fazemquestãodemudaraalimentaçãodosgruposindígenas.Mesmonasrarasaldeiasondeosindígenasconseguemproduzirosseusprópriosalimentos.Absurdo?Não,normalentreos humanos.

Oetnocentrismo é a tendência que os indivíduos de umdeterminadogrupo possuem ao privilegiar os valores e as normas da sua própria sociedade

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aoanalisarasoutrassociedades.Seretnocêntricoévalorizaroseugrupoemdetrimento dos outros. A cultura pode ser comparada a uma lente, com a qual os seres humanos veem o mundo. Mas é uma lente “para perto”. Se tentarmos enxergar longe com esta lente, enxergar outras culturas, o mundo dos “outros”, nãovamosgostardoqueestamosvendo.Issoporqueessalente,queéanossacultura, faz com que os indivíduos considerem o seu modo de vida como o mais correto e o mais natural. Isso é o etnocentrismo. O nosso grupo é o certo, o melhor, enquanto que o outro sempre é o errado, o absurdo, o deprimente, o imoral. Tal sentimento é universal, pode ser encontrado em todos os seres humanos (LARAIA, 2001).

Esseetnocentrismoperpassafortementeasquestõesalimentares.Oquenóscomemoséqueésaudável,nutritivo,saboroso.Acomidadosoutrosnão!Asnossaspráticasculinárias sãoasmaishigiênicas, asmaiscientíficas, asmais“evoluídas”.Nessesentido,àssociedadesindígenas–ditasprimitivas–éconferido o rótulo de “estágio inicial” no processo de desenvolvimento. “Nós” estaríamosnotopodaevolução,enquantoqueos“primitivos”estariamnabase.Morgan (1978) diria que os indígenas estariam na etapa da “selvageria” ou da “barbárie”,enquantonósestaríamosna“civilização”.“Eles”,os“primitivos”,estariam parados no tempo, cozinhando ainda do modo que os “nossos” antepassadosfaziamhámilênios.

Étípicodosensocomumessetipodepensamento.Etambémétípicoque essas pessoas, com a maior “boa vontade” do mundo, queiram ensinar ouajudaros“primitivos”aseremcomonós.Elasnãopodemadmitirqueempleno século XXI ainda existam seres humanos cozinhando em fogueiras e comendocomasmãos.Oumais,praticandotécnicasdeplantiorudimentarese empregando sementes de baixa produtividade. Essas pessoas confundem a desigualdadesocialcomadiversidadecultural.Nãoéàtoaqueacadadiamaisemaispesquisadorestentam“enfiargoelaabaixo”dosgruposindígenasumnovotipodefarinha(“multimistura”–queosindígenaschamamde“ração”),“últimogrito”nosdescobrimentoscientíficosenutricionais.Outrosalimentos,alimentosdos“brancos”, sãodespejadosaos sacosnasaldeiasparaqueosindígenasnãoprecisemmaiscomerosseusalimentos“primitivos”.Adubosesementes também chegam aos montes. Governos anteriores tentaram ensinar os índios a cozinhar e a plantar. Fortunas foram destinadas a projetos que implantavam hortas comunitárias e cozinhas coletivas industriais nas aldeias. Tudoparamelhoraraalimentaçãodos“coitados”dosindígenas.

O etnocentrismo é interessante. “Coitados” foi justamente o termo empregado por um caciqueMbyá-Guarani ao comentar a alimentação dasociedadeenvolvente.Numainversãodepapéis,estariamaosíndiostentandonos livrar das nossas comidas sem gosto, extremamente calóricas, envenenadas

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deagrotóxicos,desenvolvidasapartirdefórmulasquímicase,parafinalizar,muito caras.

Voltando às tentativas dos pesquisadores e governantes de ensinar osgrupos indígenas a plantar e a cozinhar tal qual nossa sociedade “evoluída” faz, é preciso lembrar que, ao contrário, no passado fomos nós que aprendemos a plantar e a cozinhar com o índios. Explico: no período dos “descobrimentos” os colonizadoressóconseguiramseinstalardefinitivamentenoBrasilporquesevaleram das espécimes vegetais cultivadas pelos grupos indígenas, aprenderam com os indígenas as formas adequadas de plantar essas espécies e, mais, se valeram das mulheres indígenas – muitas delas desposadas por colonizadores – para cozinhar esses alimentos. Basta lembra que alimentos como o milho, ofeijão,abatata,abatata-doce,aabóbora,oamendoim,amandioca,entremuitos outros, hoje difundidos pelo mundo todo, só existiam no continente americanoejáeramcultivadospelosindígenas.Graçasaessesalimentoseàstécnicas indígenas o Brasil pôde ser colonizado (TEMPASS, 2008).

Há cinco séculos, os alimentos indígenas foram bem vistos. Bom – diriam certos nutrólogos e administradores públicos – os tempos mudaram, a alimentação humana evoluiu e atualmente precisamos passar os nossosconhecimentos científicos para os grupos “primitivos”.Quanto a isso, pri- meiramenteéprecisodesconstruiranoçãodeevolucionismo.Nãoexisteumaculturamais “evoluída”que as outras.Não existe uma culturamelhor queasoutras.As culturas são simplesmentediferentes,mas essadiferençanãosignificaqueumasejamelhorqueaoutra.Emoutraspalavras,todasasculturassãoboasparaquemvesteassuaslentes.

Ah,maseonossoconhecimentocientífico?–dirãoosetnocêntricos.Aessas pessoas é preciso informar que todos os grupos culturais desenvolveram, de forma lenta e gradual, um grande conhecimento sobre o seu mundo. Os indígenas possuem extrema familiaridade com o meio biológico. Possuem taxonomias complexas para as espécies que lhes rodeiam. E mais, todos os membrosdasociedadepossuemtalconhecimento.Enfim,movidospor“umacuriosidade assídua e sempre alerta, uma vontade de conhecer pelo prazer deconhecer” (LÉVI-STRAUSS,1989,p.30),osgruposditos“primitivos”desenvolveramsuastécnicasatravésdeatitudesverdadeiramentecientíficas.A“ciência”dos“primitivos”nãoémenoscientíficanemmenosrealqueasnossasCiênciasExatasouNaturais.Paraexemplificarisso,bastalembrarquemuitasdasinovaçõesnasáreasdamedicinaedaestéticaestãosendo“buscadas”apartir de plantas conhecidas e utilizadas pelos grupos indígenas amazônicos.

Outro exemplo: por que muitas sociedades ameríndias sobreviviam com uma dieta basicamente de milho, enquanto que a mesma dieta quando adotada pelaspopulaçõespobresnaEuropalevoumilharesdeindivíduosamorrerem

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desnutridos?Arespostaéque,aotransladaromilhoparaaEuropa,esqueceramdeacrescentarumpunhadodecinzasnapreparaçãodospratos.Essepunhadode cinzas acrescentadas durante a preparação de certos pratos tornamaiscompletaadigestãodomilho,fazendocomquetodososseusnutrientessejamabsorvidospeloorganismo(COE,2004).Foicommuitadedicaçãoaoestudoeobservaçãodassuaspráticasalimentaresqueosindígenasdesenvolveramtécnicas culinárias extremamente complexas como esta. Vide também as complexastécnicasdeextraçãodovenenodamandiocabravadesenvolvidapelos grupos indígenas.

Então,precisamosnosdarcontadequeportrásdecadacomidapreparadana fogueira por um grupo indígena existe uma ampla carga de conhecimento, transmitidadegeraçãoparageração.Maisdoqueisso,precisamoslembrarqueportrásdessespratospreparadosnafogueiraexisteumatradiçãoeumdesejo de conservá-la. Por trás desses pratos existe umagamade relaçõessociais e simbólicas. Existem lembranças, emoções e sentimentos. Existeumpatrimônio cultural imaterial.Essespratos estãodevidamente inseridosemum sistema cultural.Diante do exposto, não vejomotivo para alguémtentarmodificaraalimentaçãodosgruposindígenas.Aliás,ocontrárioéquedeveserrecomendado,vistoquepreservandoaalimentaçãoestamostambémpreservando a cultura do grupo como um todo.

Aindaéprecisocomplexificarumpoucomaisestanoção.“Nãomodificar”significa preservar. Mas “modificar” também significa preservar. Ocorrequeaculturaédinâmica.Elavaisemodificandocomopassardotempo.A“tradição”éconstantementeatualizada.Éjustamenteporquemudamqueasculturas podem ser preservadas. Em termos de cultura, também é possível afirmarque“nadaseperde, tudose transforma”.Aculturaéuma“matériaviva”,umprocesso,enãoumprodutoacabado.Éporissoqueumbemculturaldecaráterimaterialnãopodesertombado,ou“engessado”,mantendoamesmaforma e conteúdo ao longo do tempo e do espaço (MACIEL, 2002).

Complicadoisso!Preservarémudarenãomudaraomesmotempo.ParaMarshallSahlins(1990),aculturaéhistoricamentereproduzidanaação.Mas,aocontrário,aaçãotambémmodificaaculturaporqueossereshumanosestãoconstantementereproduzindoosseusesquemasconvencionais.Aaçãocolocaossignificadospreestabelecidosemrisco.Assim,acultura“funcionacomouma síntese de estabilidade e mudança, de passado e presente, de diacronia e sincronia” (SAHLINS, 1990, p. 180). Ao se reproduzir a cultura também sealteraatravésdaação,fazendocomquenovosconteúdosempíricossejamagregadosàscategoriasque“orquestram”omundo.Portanto,todamudançaé tambémuma reprodução, e toda reprodução é tambémumamudança.Oprincípio de toda mudança está baseado no princípio da continuidade. Por

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mais radical que seja a mudança, uma parcela de continuidade sempre é indispensável, pois “as coisas devem preservar alguma identidade através das mudanças ou o mundo seria um hospício” (SAHLINS, 1990, p. 190). Em suma, quanto mais algo permanece, mais ele se transforma.

Por exemplo, uma nova técnica para ser adotada em um sistema cultural precisasercompatívelcomoestoquederelaçõeslógicaspreexistentes.SegundoDescola(2002),éessaarazãoporqueacriaçãodeanimaisemcativeironãofoiadotadapelosgruposamazônicos,enquantoaadoçãodemachadosdeferroemotoresdebarcosfoipossível.Aprimeiranãoeracompatívelcomatotalidadelógica do sistema cultural, enquanto a segunda era.

Issoéválidoparaaalimentaçãoque,enquantoelementoconstitutivodosistemacultural,estáconstantementesendomodificadaenquantosereproduz.Porexemplo,novosingredientespodemseracrescidosàcomidadosgruposindígenas, porém esses precisam ser compatíveis com o sistema culinário destesgrupos.Anãocompatibilidadenão impedeaadoção,apenasa tornamais complexa. Muitas vezes para que um ingrediente seja adotado ele precisa ser ressignificado,para se tornarcompatívelcomo sistemade significadospreexistentes. Issoprecisaserenfatizado.Quemtrabalhacomcomunidadesindígenas já deve ter se deparado com expressões do tipo: “eles não sãomais índios, até comida de branco eles já comem!” Frases absurdas como essa geralmente são proferidas pormembros da sociedade envolvente queatribuem aos indígenas o estereótipo de selvagens, de despidos, de intocados. Mastemosqueterclaroquenãoéocontatocomo“branco”,ousoderoupasouaadoçãodecertascomidasqueretiraaidentidadeindígenadessesgrupos.As trocas culturais, pormais extensas que sejam, não significamperda deidentidade, pelo contrário, reforçam a identidade do grupo ao passo que novos sinais diacríticos precisam ser acionados.

Então, não é por comer comidade “branco”que eles deixarãode seríndios.Masosgruposindígenas,aomenososdoRioGrandedoSul,nãocomemcomidade“branco”.Elescomemassuascomidastradicionaisqueagorasãoelaboradas com alguns ingredientes oriundos da sociedade envolvente. No casodosMbyá-Guarani,ousodefarinhadetrigo,porexemplo,nãosignificaque eles estejam abandonando suas práticas alimentares tradicionais. Pelo contrário, a farinha de trigo apenas substitui a farinha de milho que atualmente elesencontramdificuldadeemobter.Ombojapé(pão/bolo),antesproduzidocom farinha de milho, agora é feito com farinha de trigo. Mas ele continua sendo um mbojapé. Sua forma de preparar, seu modo de consumo e seu significadonãoforamalterados.O“jeito”Mbyá-Guaranidecozinharcontinuaomesmo.Osistemaculináriodogrupopermaneceapesardaadoçãodenovosingredientes.

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Até agora pontuei a dinâmica nas práticas alimentares dos grupos indí- genasem funçãoda faltade terraspropíciasparaaobtenção/produçãodosalimentos tradicionais do grupo. Dessa forma, a dinâmica alimentar desses grupos tem um caráter impositivo, visto que a sociedade envolvente está demorando em reconhecer o seu direito a terras. Em outras palavras, os indígenasestãosendo“obrigados”amudaremasuaalimentaçãoemfunçãodocontatocomosbrancos.Éessainformaçãoqueprevalecenodiscursodosindígenas.Contudo, na prática, sabemos que a alimentação desses grupossofreriaalteraçõesmesmosemnenhumtipode“obrigação”.Aculturaalimentaré dinâmica. A mudança alimentar “espontânea” pode ser facilmente percebida seobservarmososalimentostidoscomo“supérfluos”.Notrabalhoetnográfico,entre os Mbyá-Guarani, percebe-se um grande consumo de salgadinhos industrializados, biscoitos recheados, refrigerantes, balas etc. Com certeza, nenhum “branco” está obrigando estes indígenas a comprarem e comerem estes produtos. Esse consumo, bem diferente das práticas tradicionais, é de iniciativa própria.O interessante é que estas adoções alimentares ocorremdentrodopadrãopeexistente.Ossalgadinhos,porexemplo,sempresãosabordemilho, principal gênero alimentício cultivadopelosMbyá-Guarani e degrande importância simbólica. Muda o alimento, mas o sabor característico do sistema culinário permanece.

Para concluir, os grupos indígenas possuem sistemas culinários que correspondem amplamente as suas características culturais. A comida dos grupos indígenas não émelhor nem pior que a da sociedade envolvente,apenas é diferente. Contudo, a cultura é dinâmica e as práticas alimentares enquantoelementosconstitutivosdosistemaculturaltambémsãodinâmicas.A alimentação semodifica.Nas comunidades indígenas doRioGrandedoSul, as mudanças alimentares decorrem de dois fatores distintos. O primeiro é a dinâmica normal das práticas alimentares, operada pelos próprios grupos emconsonânciacomoseusistemajáexistente.ComoafirmaSahlins(1990),quanto mais a coisa muda, mais ela permanece. Assim, mudando, a culinária dos grupos indígenas permanece. Como a culinária está intimamente relacionada com os demais componentes do sistema cultural, permanecendo a culinária, toda a cultura também permanece.

Já o segundo fator responsável pela dinâmica alimentar dos grupos indígenassãoas“mudanças”impostaspelasociedadeenvolvente.Éafaltade reconhecimento das terras indígenas e a decorrente impossibilidade de produção/obtenção dos alimentos tradicionais aliada ao etnocentrismo depesquisadores e governantes que, munidos de ideologias evolucionistas, querem levar a “modernidade” alimentar aos grupos indígenas. Tais atitudes sãolamentáveis.Asmudançasporelasoriginadasnãosãocompatíveiscom

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osdemaiselementosdosistemacultural.Eporsuainterdependênciaacabamafetando a cultura como um todo. Indivíduos “bem-intencionados”, na tentativa de ajudar, acabam prejudicando cada vez mais as culturas indígenas. Aessesindivíduoséprecisoavisarquecadaculturatemsuasespecificidadesalimentares.

Então, preservar significamudar e nãomudar aomesmo tempo.Masquemtemquegerenciarissosãoosprópriosgruposindígenas.

Referências

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10 O consumo de bebidas alcoólicas entre os

Kaingang do Rio Grande do Sul*Ledson Kurtz de Almeida

Flávio Braune Wiik Ricardo Cid Fernandes

A realidade acerca do consumo de bebidas alcoólicas entre os Kaingang doRioGrandedoSulrevelasituaçõesproblemáticasnoquetangeaosaspectossocioculturais que marcam a história de contato do grupo com a sociedade envolvente. Desde o século XVIII, o processo histórico vivenciado por esta sociedade foimarcadopela reduçãode seuamplo território,desmatamentodasimensasflorestasdearaucária–nasquaishabitavam,asseguravamasuasobrevivência,reproduçãofísicaesociocultural–,assimcomopelosimpactos de diversas naturezas, causados pela implementação de projetos civiliza- tórios e/ou desenvolvimentistas. Juntamente a esse processo, redefiniçõessociaisforamrealizadas,sejamelasatravésda incorporaçãodenovascate- goriasculturaise/ouconceitos,sejapelareestruturaçãodeaspectosinerentesà própria sociedade ou cultura, oumesmopela adequaçãode categorias econceitos novos aos já existentes na organização social e na cosmologiaKaingang.

Aetnografiaqueservedebasedoreferidoestudo,conformeexplicitadaa seguir, foi realizada em diferentes aldeias ocupadas pelos Kaingang naquele estado.Ela revela,deum lado, a justificativaparadeterminadas formasdedesarticulaçõessociais teremsidocausadaspeloconsumodescontroladodebebida e, por outro, coloca emcena a justificativa das causas do consumoatreladas à desarticulaçãode instituições fundamentais da sociedade.Nemsomentecausa,nemsomenteconsequênciadastransformaçõesindígenas,oconsumo abusivo de bebidas alcoólicas é um fenômeno social, histórico e simbólicoquesesituanoâmagodestastransformações.

Talasserçãoprovémdaprópriapesquisaetnográfica,poisamesmaforarealizadano intuito de identificar, de formamais detalhada e aprofundada,essa realidade. Ela serviu de base para o diagnóstico mais amplo acerca do consumo de bebidas alcoólicas entre os Kaingang do estado do Rio Grande do Sul (RS). Ao longo do ano de 2001, as atividades de pesquisa foram desenvolvidas nas seguintes Terras Indígenas: Cacique Doble, Carreteiro, Iraí, Ligeiro, Monte Caseros, Rio da Várzea e Votouro. Seus resultados, assim como os encaminhamentos sugeridos, foram entregues em 2001 à Coordenação

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RegionaldaFunasa(FundaçãoNacionaldeSaúde)localizadanomunicípiode Porto Alegre, capital daquele estado, que por sua vez os redirecionariam àcoordenaçãonacionaldaqueleórgãoemBrasília,afimdesubsidiaraçõesgovernamentais que visassem coibir o impacto causado pelo abuso de bebidas alcoólicas conforme revelado pela pesquisa.

Ametodologiautilizadapriorizouaexplicitaçãodopontodevistadospróprios indígenas. Para o levantamento dos dados, foram reunidas as técnicas de entrevistas semidirecionadas de forma aleatória em visitas domiciliares, assim como foram feitos a aplicação de questionários direcionados e osregistros de narrativas e reuniões coletivas commoradores das aldeias –inclusive lideranças e chefes de posto da Funai (Fundação Nacional doÍndio).Deformacomplementar,conduziram-seentrevistascomprofissionaisindígenasenãoindígenasdaáreadasaúdeedaeducação.Essametodologiapermitiucontextualizaraproblemática,nãosomenteemtermosindividuais,mas, principalmente, situando os indivíduos na realidade sociocultural em que vivem.Talprocedimentopossibilitouaelaboraçãodehipótesesbaseadasemuma diversidade de variáveis.

Osdadoseadiscussãoaquiapresentadosconsistememumfragmentoda referida pesquisa. Priorizamos uma narrativa descritiva e informativa; um retratoouestadodaartepreliminaresacercadaquestão,cujoobjetivofinaléirumpoucoalémdosensocomum–muitasvezesmarcadoporvisõeserespostassimplistase/ouetnocêntricas–sobreoqualatribuem-seascausasparaousoabusivo de bebidas alcoólicas entre os Kaingang e demais etnias. Somam-se aesseobjetivo,contextualizaçõeshistóricasecorrelaçõesentreusoabusivodebebidasalcoólicas,organizaçãosocialeelementosculturaiscomunsaosKaingang, suas continuidades, rupturas e reelaborações contemporâneas.Entretanto,nãoénossaintençãoaquisituaraquestãoàluzdeoutraspesquisase/ou discussões teóricas avançadas pela antropologia acerca dos impactossocioculturais atrelados ao uso abusivo de bebidas alcoólicas entre indígenas, outampoucooferecerrespostasdeliberadamenteestruturadasàimplementaçãodepolíticaspúblicasvoltadasparaoseucontroleecoibição.Nessesentido,optou-se tambémpor reproduzir sugestões e alternativas para a superaçãodeuma situaçãovista pelos própriosKaingang como“problemática” (parademaisexemplos,argumentaçõesediscussõesvere.g.: MENENDEZ, 1982; LANGDON, 2001; OLIVEIRA, 2003; SOUZA E GARNELO, 2007).

O consumo de bebidas alcoólicas enquanto um problema

As localidades com maior incidência de dependentes de bebidasalcoólicasestãosituadaspróximoaoscentrosurbanos,oquefacilitaoacessodos indígenas às bodegas onde acabampermanecendono intuito de beber

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ou onde simplesmente adquirem a bebida para consumir em casa. Nas terras indígenas com maior gravidade, os indivíduos bebem nas bodegas e se deslo- cam embriagados pelas estradas de volta para casa, sujeitos a atropelamentos ouconflitoscomconsequênciasfrequentementetrágicas.Aexemplo,nessaslocalidadesforamidentificadoscasosdemorteporqueimadurasapósgrandeconsumo de bebidas alcoólicas. Além dos acidentes, constatou-se uma situa- ção cotidiana de alunos frequentarem a escola em estado de embriaguez.Relacionadasaestasituação,destacam-seadesnutriçãoinfantil,aviolência,os acidentes de trânsito, sendo que as brigas ou bagunçassãoasconsequênciasmais recorrentes.

Dopontodevistadosentrevistados,aintensificaçãodoproblemasedeunosúltimos trintaanos, jáque,segundoafirmam,“antesnãochegavaaserumproblematãograve”porqueoconsumorestringia-seaouniversoadulto.Nos últimos anos, o uso abusivo de bebidas alcoólicas tem ocorrido entre indígenas cada vez mais jovens, com casos de crianças a partir dos sete anos de idade, sendo comum o seu uso a partir dos doze anos de idade. Dessa forma, tem-seobservado a ampliaçãodo contingente populacional nessa situação,incluindo jovens e idosos de ambos os sexos. Nessas aldeias, há diversos pontoscomunsenquantovariáveisrelacionadascomtalsituação.Aanálisedadescriçãoetnográficareferenteaelasevidencioucaracterísticasespecíficasnoâmbito da cosmologia, da economia, da política, assim como dos processos históricos vivenciado por estas (ALMEIDA & FERNANDES, 2001a, 2001b; FERNANDES & ALMEIDA, 2001a, 2001b).

Emtermoscosmológicosdestacam-setrêspontosfundamentais:acon- figuraçãoresidencialnasaldeiasmarcadapelaconcentraçãodascasasemespa- çoslimitados;adevastaçãoambiental,impedindorelaçõesdecomplementari- dade entre o espaço da casa, da roça e do mato virgem; e o sistema xamânico marcado pela pouca valorização dos kuiã, pela predominância das igrejas evangélicas pentecostais para o tratamento dos espíritos, bem como para o tratamento de doenças.

Segundo os entrevistados, “antigamente”, as casas eram dispersas ao longo doterritório–ocupadopelosdiferentesgruposlocais.Naconfiguraçãoespacialatualdasaldeiasemsituaçãodeintensoconsumodeálcool,aconcentraçãodascasasocorre,paradoxalmente,emconsequênciadosbenefíciosadvindosdepolíticaspúblicasrelativasaoacessoàenergiaelétrica,água,educaçãoeatendimentoà saúde.As famíliaspassama residirnasproximidadesdestasinfraestruturasinstaladas–queestãousualmentedispostasdeformaconcentra- da – visando, por exemplo, a facilitar os deslocamentos entre os domicílios e as escolas e unidades de saúde. Em tal realidade, a vizinhança entre famílias semlaçosdeafinidadefavoreceaexplicitaçãodeconflitoslatentes.

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Osistemaxamânicotradicionalkaingangtemcomofiguracentralokuiã, especialista em plantas medicinais oriundas do mato virgem e considerado guiaespiritualpeloskaingangtradicionais.Apartirdapresençaeaçãomis- sionária católica, essa categoria passou a ser articulada com o catolicismo popular através de categorias como de curandor ou curandora. Contudo, nas localidades referidas neste item, a prática do kuiãe/oudocurandor é incipiente ou inexistente. De certa forma, as igrejas evangélicas passaram a assumir funções simétricas àquelas dos kuiã no que tange às realizações de curasespirituais,domíniodosespíritosdosmortoseorientaçãodavidacotidiana.

AspectosespaciaissãocentraisparaosestudosdasociedadeKaingang,tanto para analisar amorfologia social quanto para explicar a relação comouniversoextrassocialeaconstruçãodapessoa.Asconcepçõesrelativasacasa, para os Kaingang, expressam aspectos importantes da cosmologia e da relaçãocomooutro,objetoessencialdavidaedapessoa.Parase terumaideia,nosmomentosdemaiorimpactonaexistênciadeumindivíduo,comonascimento emorte, atitudes rituais sãomarcadas em relação à residênciadoméstica,refletindoimportantesaspectossimbólicos.Comosprojetosgo- vernamentaisdeconstruçãodenovashabitações,ascasastradicionaisforamaos poucos sendo substituídas. Mesmo assim, ainda é comum serem construídas pelosindígenaspequenascasascomchãobatidopararealizaçãodefogodechão,denominadasde iñ-xin,comoanexoàquelas.Essespequenosespaçossignificamolocusdareproduçãodosvalorestradicionais,poiséemtornodofogoquefluemdeformamaisintensaasrelaçõesfamiliares,colocandoemcenaaaproximaçãoentrejovenseanciãosatravésdelocuçãodenarrativas.A casa, portanto, situada no espaço do limpo, transfere ao mato virgem todo ato tabu de ser realizado no primeiro. As casas, portanto, informam sobre noçõesdeespaçoe,consequentemente,expressamvaloresfundamentaisdacosmologia (ALMEIDA, 2004, p. 31).

Aconservaçãodomato virgem, por sua vez, também é fundamental na cosmologia tradicional dessa sociedade. Por um lado, através dele se perpetua osistemaxamânico:éfontedematerialvegetalnecessárioàsatividadesrituaise curativas do kuiã e é o espaço para onde se remetem os espíritos dos mortos antes de atingirem outros planos apreendidos pela escatologia kaingang, apresentando-seenquantolocalprioritáriodeatuaçãodokuiã para dominar os espíritosdosmortos.Portanto,aexistênciafundamentaldacomplementaridadeentre a casa, o limpo e o mato virgem é a base da cosmologia Kaingang; e a quebra dessa ordem pode gerar desequilíbrios emocionais e sociais.

Noplanoeconômicoconstatou-searecorrênciadesituaçõesdearrenda- mentodasterrasacolonosdaregiãoouentreosprópriosindígenas.Oscolonosque arrendam terras não se expõem devido à ilegalidade dessa prática, o

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contrato geralmente é assumido por um representante indígena que assume determinadastransaçõescomolaranja.Nessalinha,intensificam-seasprá- ticas de lavouras intensivas, muitas vezes caracterizadas como “lavoura coletiva”, que na realidade favorece a poucos grupos locais. Boa parte das lavourasindividuais,porsuavez,estáforadospadrõesdeproduçãodaagrícolatradicional.Esteúltimotipocorrespondealavourascomcercadedoisatrêshectares produzidos por uma unidade familiar, envolvendo em determinadas atividades pessoas da unidade residencial mais ampla.

Nas lavouras convencionais adotadas do sistema do branco segue-se o modelo cooperativo capitalista ou, em alguns casos, constituem-se em lavourasindividuaiscobrindode10a15hectarescomfinscomerciais.Nesteúltimocaso,écomumocorrerexploraçãodemãodeobraentreosprópriosindígenas.Aqueles que possuemmais condições para produzir contratamoutrosdesenvolvendorelaçõesdedesigualdadesocioeconômicadentrodeumamesma Terra Indígena. Consequentemente, o modelo de agricultura familiar é pouco expressivo.

Outros aspectos da economia como a venda da força de trabalho e comércio, levam à ausência dos indivíduos de suas residências.Nessas situações osadultosdosexomasculinotrabalham,geralmente,paraagricultoresdaregião,permanecendo pouco tempo na aldeia. Em acréscimo, nas Terras Indígenas em queaindaháproduçãoartesanal,asmulhereseascrianças,juntamentecomoshomens,seafastamdesuasresidênciasperiodicamenteparacomercializaremartesanato nos centros urbanos por longos períodos, deixando de lado as atividadesderoça,criaçãodeanimais,caçaepesca.

Com relação aos aspectos políticos, percebe-se nessas localidades apresençadechefiascompoucalegitimidadeparagarantirumaordemsocialestável.Geralmente,háintensasdisputasentregruposfamiliaresparaobtençãodo poder local. Em alguns locais, são lideranças jovens que assumem ocontrolepolíticodaTerraIndígenaporteremboaarticulaçãocomouniversonãoindígenaatravésdaatuaçãofrenteàspolíticaspúblicasoupelaimposiçãodas famílias dominantes sobre as demais.

No que tange ao processo histórico, as características comuns estãomaisrelacionadascomareduçãoterritorial,entradasdebrancos nas aldeias e implantaçãodepolíticasgovernamentais.DesdeofinalséculoXIXatémeadosdoséculoXX,oterritóriodosKaingangpassouaserredefinidoemtermosdealdeamentosoficiais. Essasituação intensificouosconfrontosentregruposrivaispredominandoàquelesqueforamsubmetidosaviveremaldeamentosrestritosdefinidospelogoverno.Entretanto,omomentomaismarcantenasáreas indígenas que apontaram o consumo de bebidas alcoólicas como um problema surgiu posteriormente.

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Apósadefiniçãodereservaslimitadasparaashabitaçõesindígenas,astentativas do governo federal postularam-se no sentido de implantar colônias agrícolas entre os grupos aldeados. Medidas autoritárias se impuseram ao sistema social indígena de forma dramática. Desenvolveu-se um sistema de poder formado por representantes do governo e de indígenas com base na hierarquia militar que se impunha aos grupos familiares, o que ocasionou umadesconfiguraçãodesuaorganizaçãoatravésdaretiradadoshomensdasatividades residenciais. Os indivíduos eram obrigados a trabalhar nas roças coletivas organizadas pelos chefes brancosemumsistemadesemiescravidão,conhecido como sistema do panelão.Nessecontexto,houveadesvalorizaçãodavida ritual,destruiçãodamatacoma instalaçãodeserrariasnasaldeiase desestruturaçãodas unidades residenciais (ALMEIDA&FERNANDES,2001a, 2001b; FERNANDES & ALMEIDA, 2001a, 2001b).

O consumo controlado de bebidas alcoólicas

Ondeoconsumodebebidasalcoólicasnãofoiconsideradoproblema,há uma maior capacidade dos indivíduos e da sociedade em determinar as estratégias de continuidade enquanto grupo, pois os entrevistados argumentam que “a bebida é controlada”. Segundo eles, há momentos de beber e locais onde beber de forma controlada. O local prioritário para o consumo da bebida foiapontadocomooambientedoméstico,comexceçãodeocasiõesdefestaquando a bebida pode ser consumida em público. Nesses casos, quando ocorre algum exagero, o sistema político local age de forma severa para controlar os “abusos”.

A seguir, falaremos a respeito dos principais aspectos socioculturais dessas aldeias, apontados como elementos que contribuem para um maior controle social e individual sobre o uso abusivo de bebidas alcoólicas.

Observou-se, inicialmente, um amplo e profundo domínio da língua Kaingang, tida como língua materna. As crianças aprendem a língua em suas residências através de uma série de outros valores emeios que esse processoimplica.Porisso,nessasituação,oensinoformallevadopelaSe- cretariaEstadual deEducação, que prioriza a escola como loccus privile- giadodeaprendizagemdalínguanativa,sedeparacomcertaresistência,jáque retira as crianças da rotina doméstica, fato que desagrada as crianças e os pais.

Percebe-se,portanto,umamaiorestruturaçãodasunidadesfamiliarescomatividadesdedicadasnesseespaço,alémderelaçõesdecomplementaridadeereciprocidade estendidas em unidades residenciais mais amplas, através da operacionalidade de categorias de afinidade. O maior distanciamento dascidades com difícil acesso inviabiliza a troca dessas atividades por idas e

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vindasnascidadesounasbodegaseasrelaçõesdeexploraçãooucompadriocom os brancos.

Comrelaçãoàrealidadeeconômica,predominamatividadesorganizadasem família ou em unidades residenciais, agricultura em seus moldes familiares, poucomecanizadaediversificada:roçasdemilho,feijão,mandioca,arrozeamendoim.Normalmente,asatividadesagrícolascolocamemcenarelaçõesdeafinidadeereciprocidade.Sãocomunslavourascomjuntadeboiearado,bemcomoaorganizaçãodemutirões(puxirões)paraotrabalhocoletivoerecí- proco. Em casos de serviços prestados pelos indígenas aos agricultores da região,ouemsituaçõesdevendadeartesanatonacidade,nãoháumafasta- mento da aldeia durante longos períodos. De forma complementar, as famílias garantemseusustentocomacriaçãodealgunsanimais,principalmenteporcose galinhas, bem como costumam caçar, pescar e coletar frutos silvestres.

No aspecto político, a liderança possui legitimidade para acompanhar eventuais casos de consumo abusivo ou indevido de bebidas alcoólicas, com aplicaçãodepenasourealizaçãodeaconselhamento.Osindivíduos,emgeral,atuam em consonância com a chefia no sentido de recorrerem a ela parasolucionarem os problemas que surgem no cotidiano da vida social. Nesse sentido,podehaverdenúnciasseguidasdesanção,deacordocomdeterminadoscódigosdeconduta,quepodemserescritosounão.

Comrelaçãoàcosmologia,aconfiguraçãoespacialapresentaalocalizaçãomaisdispersadasresidências.EmumadasTerrasIndígenastomadascomoexemplo dessa realidade, comuma população de cerca de 450 pessoas, oterritórioéamplo,incorporandoemseuslimitesumparqueflorestal.Suaáreatotal é de 16.518 hectares, dos quais a maior parte é coberta por mata nativa, sendo cerca de 200 hectares utilizados para as moradias e para o plantio. Nesse sentido, o mato virgeméabundanteepermiteumaaproximaçãodomodelocosmológico tradicional de complementaridade entre a casa, o limpo e o mato virgem (FERNANDES & ALMEIDA, 2001c).

Consequentemente, o sistema xamânico é marcado pela presença cons- tante do kuiã que atinge uma extensão ampla da sociedade através de suaatuaçãoemprocessosdecuracomplantasdomato virgemedeorientaçãodasfamíliascomvisitasnasresidências.Emcontrapartida,acomunidaderealizaa festa do kuiã anualmente, evento que mobiliza as famílias com o apoio da liderança local.

As religiões evangélicas, por sua vez, sãopouco significativas.Apre- sentam um nível incipiente de participação nas aldeias, predominando aspráticasreligiosascombasenocatolicismopopular.Opoderlocalnãoproíbeapresençadosevangélicos,porém,nessecontexto, tais igrejasnãooperamemtermosdemobilizaçãosocial,ainstâncialocalprivilegiadaparaestefim

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é identificadacomoaprópria liderança indígenaqueparticipae legitimaareligiãotradicional.

Comrelaçãoaoprocessohistórico,emqueoalcoolismo“nãoseapre- senta comoproblema”, ahistóriade constituição territorial ede efetivaçãodo indigenismo oficial ocorreram de forma muito particular.As políticasintegracionistas doSPI (Serviço deProteção aos Índios), criado em1911,substituídopelaFunaiem1968,nãoocorreramnosmoldesdedesarticulaçãodaorganizaçãosociallocal.Emumdoscasos,somentenadécadade1980,aFunaipassouaexercerumaatuaçãoefetivanointeriordaTerraIndígena.Atémeados do século XX, o referido grupo permanecia recluso na mata nativa sob o comando de um forte chefe indígena local. Chefes indígenas mais próximos dosistemacolonialprocuraramsubmetê-losaoregimedas“reservas”criadaspelo governo, porémnãoobtiveram sucesso.Apesar de enfrentaremmuitaviolência,permaneceramcomogrupoinsubmissoàpolíticadetomadadopoderlocal por chefes não indígenas e por medidas integracionistas do indigenismo oficial(ibidem).

Conclusões e sugestões

Apesquisa tomadacomobaseparaconstruçãodesteartigoidentificoumuitos casos crônicos de alcoolismo e altos índices de indígenas caracterizados comoaquelesque“bebemmuito”.Aevidênciadainexistênciadeprogramasespecíficosecontinuadosparaaprevençãoaoconsumoexcessivodebebidasalcoólicas nas aldeias doRS é uma questão para reflexão, principalmentequando casos decorrentes dessa realidade aumentam os índices de morbidade nosrelatóriosconsolidadosdesaúdeentreguespelacoordenaçãoestadualdaFunasaàinstânciafederal.

Diante desse fato, os Kaingang apontaram diferentes estratégias para mudar tal realidadeedemonstraramalgumas realizações.Dentreestas, sãorelativamente comuns indígenas realizarem tratamento em clínicas nos centros urbanos,as tentativasde instituiçõesgovernamentaisenãogovernamentaisparacombateroproblemaatravésdaindicaçãomedicamentosa,aspalestrasnos Postos de Saúde localizados nas Terras Indígenas, em conjunto com palestrantes dos Alcoólicos Anônimos, as palestras de psicólogos, assim como as palestras organizadas pelas igrejas presentes nas Terras Indígenas. Neste últimocaso,aconversãoàsigrejasevangélicasmuitasvezesseapresentacomouma tentativa de mudar de vida, contudo é comum os indígenas dependentes deálcool“entraremesaírem”novamente,porquenãoconseguem“largarabebida”,comoafirmaramosentrevistados.

O assunto “consumo de bebidas alcoólicas nas aldeias” se apresentou, deformageral,enquantotabu.Porumlado,atéomomento,estasituaçãotem

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sidotratadacomoopçãoindividual,cujaaltaincidênciatornaacomunidadefrágil,sujeitaàexacerbaçãodopreconceitoregional.Osefeitosdaperspectivadosregionaissobreosindígenas,principalmenteosrelativosàvergonhadeuma imagem negativa criada pelo uso abusivo de bebidas alcoólicas, é um dos temoresexpressosemafirmaçõescomo“podebeber,masnãoficarnabeiradaestrada para quem passa ver”.

Como alternativa complementar, os entrevistados defendem um trabalho intensivo com a coletividade. Para esses, o “alcoolismo” deve ser tratado como umaquestãocoletiva,naqualos indivíduoseacoletividadesãoafetados.Amaioriadosentrevistadosafirmouque“éprecisoatacaroproblemadetodososlados, realizando palestras, encontros, tratando os casos críticos e capacitando os profissionaisdesaúde”.Aindaacrescentamsobreaimportânciadeenvolverasli- deranças,incentivando“reuniõescoordenadaspelaLiderança”comooprimeiropassoaserdado.Paraeles,emvezdedefenderaproibiçãodoconsumodebebi- dasnasaldeias,ocaminhoapontadoestápautadoemreuniõesenodiálogo.

Com programas de médio elongoprazo,osindígenasacreditamqueirãodefinir“pontosdepartidaecompromissos”,especialmenteparaaquelesquecomeçamabebernoperíododetransiçãoparaaidadeadulta,comoafirmamos entrevistados de uma das Terras Indígenas pesquisadas:

Éprecisoumaperspectivadetrabalhoeproduçãodelongoprazo:primei- ro,buscarasdificuldadesentreaquelesqueestãosofrendocomoalcoolis- mo; segundo, começar com um planejamento; terceiro, gerar renda dentro dacomunidade;quarto,fazerreuniões(nãopodeimporparaacomunidade);quinto,qualificaropessoaldaprópriaáreaparaacompanharoalcoolismo.

Essassugestõesseguemnosentidodemotivaraprodutividadeinternaem termos de roça familiar e de outras atividades locais como: artesanato, conhecimento da “cultura tradicional”, escolaridade, saúde, política indigenista, recuperaçãodomeioambiente,todasdirecionadasparaoestímuloaumamaiorpermanêncianasaldeiaseresgatedaautoimagempositiva.Poroutrolado,asocializaçãointegradaentreosjovenseosanciãosdeveserincentivadanosdiferentessetoresinstitucionaisvisandoareproduçãodevalores,assimcomoparatrocadeexperiênciassobreoconsumodebebidasalcoólicasdentroeforadospadrõesestabelecidosdeformaideal.

Notadamente, os entrevistados reconhecem que a bebida em si é uma questão passível de consideração, sobretudo porque é “um problema dos brancos”, como foi ressaltado durante a pesquisa. Isso aponta para o poder desagregador atribuído à presença dos brancos na dinâmica sociocultural Kaingang. Não apenas a presença física de colonos plantando emTerrasIndígenas, como acontecera em décadas anteriores, mas também a presença contemporâneadeprojetosepolíticaspúblicasquenãoreflitamourespeitem

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as realidade e a dinâmica locais, uma vez que esses podem atuar como agentes atuais desagregadores.

Contra o poder desagregador identificado comomundo e o governodos brancos, os Kaingang apresentam uma alternativa bem-sucedida em locais onde o controle da bebida é eficiente: o valor atribuído à tradiçãoindígena.Aideiadetradiçãorelatadapodeserentendidacomooequilíbriodas unidades familiares; a inserção das famílias em unidades residenciaismaisamplas;aeficáciadeumsistemadecontrolesocialestabelecidoatravésda complementaridade dos grupos locais com a liderança legitimada pelos mesmos;oreforçodosparâmetrosqueregemascategoriasdeafinidade,bemcomodascategoriasdeconsanguinidade;eoequilíbriodasrelaçõessociaiscom o universo cosmológico – principalmente no controle sobre os espíritos dosmortosenaorganizaçãoespacialdasaldeias.

Referências

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11 A emergência das boas palavras na

I Reunião dos Karaí sobre o uso abusivo de bebidas alcoólicas e alcoolismo no RS38

Luciane Ouriques Ferreira

Opresente artigo tem como objetivo fazer uma narrativa etnográficada“IReuniãoGeraldosKaraí,39 Caciques e Representantes Mbyá sobre o uso abusivo de bebidas alcoólicas e alcoolismo no RS”, que ocorreu entre os dias 12 e 16 de dezembro de 2001, na Terra Indígena de Salto Grande de Jacuí,municípiodeSaltodoJacuí.Apartirdessaetnografia,então,realiza-seumareflexãosobrea importânciadessesnovoscontextosdialógicosparaofortalecimento da medicina tradicional Guarani, na medida em que propiciam a emergência de estratégias para a intervenção sobre os agravos de saúdeenfrentados, atualmente, pelos povos indígenas. No caso Mbyá-Guarani, esse evento constitui-se no contexto discursivo em que as “boas palavras” emergiram como a forma de abordar problemas associados ao uso abusivo de bebidas alcoólicas enfrentados por esse povo indígena.

Consideropertinenteapresentarumareflexãosobreestareuniãocomu- nitáriapordoismotivos:primeiro,porestaReuniãotersidooiníciodeumprocessodemobilizaçãodas liderançasMbyá,queaconteceuentreosanosde2000e2006,parafortalecerasinstituiçõesdasuamedicinatradicional–Karaí, casa de reza, rituais – com vistas a reduzir o uso abusivo de bebidas alcoólicas no âmbito dessas comunidades indígenas.40Poroutrolado,refletirsobreessaReuniãotambémsefazimportanteportersidoumdosprimeiroseventoscomunitáriosfinanciadospeloProjetoVigisus/Funasa,quepromoveuamedicinatradicionalcomoestratégiaparaintervirsobreosagravosàsaúdevivenciados pelos povos indígenas.41

38Dedico este texto aosKaraíAlexBenitez; e àmemória dosKaraí JoãodeOliveira eMarioAcosta,precursores deste trabalho entre os Mbyá-Guarani no RS.

39 Karaí éotermousadopelosMbyáparasereferiremaosseusxamãs(liderançasespirituaisecuradores).Nocasodemulheresxamãs,otermoutilizadoéCunhã-Karaí.Entretanto,noâmbitodesteartigo,usoapalavraKaraíparamereferirtantoaoshomensquantoàsmulheresquedesempenhamessafunção.

40HouvemaisquatroediçõesdasReuniõesdosKaraí,nosanosde2001,2003e2006.NaIIReuniãofoicriadoogrupodosXondaroMarãgatu(guardiõesdoespírito)paralevaremasmensagensdosKaraíàscomunidades Mbyá do RS.

41FoicriadaumalinhadefinanciamentonacionalnaÁreadeMedicinaTradicionalIndígena,doProjetoVigisusII/Funasa,paraasreuniõescomunitáriasindígenasfortaleceremeatualizaremosseussabereseas suas práticas tradicionais de cuidado com a saúde.

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Atualmente,existeumagrandediversidadedesituaçõesrelacionadasaouso de bebidas alcoólicas entre as comunidades Mbyá-Guarani no RS. Essa diversidade, por um lado, constitui-se num efeito do intenso processo histórico decontatointerétnico,queexerceumainfluênciadiretasobreaorganizaçãosocial e a cosmologia Mbyá transformando o seu modo de ser (nhandé rekó); poroutrolado,tambémdizrespeitoàformacomoessascomunidadescriaram,nodecorrerdotempo,mecanismosdeatualizaçãoemanutençãodaculturaedaorganizaçãosocial.42

ArealizaçãodaIReuniãoGeraldosKaraíatendeuàsolicitaçãofeitapelosKaraídediferentesaldeiasMbyá-GuaraniàequipedepesquisadoDiagnósticoParticipativoAntropológicosobreaManifestaçãodoAlcoolismoentreosPovosIndígenasnoRS,financiadopelaFundaçãoNacionaldeSaúde(Funasa).Esseeventoteveduraçãodecincodias,sendodivididoemduasetapas:aprimeiracomduraçãodetrêsdias,quandoosMbyáconversaramsobreousodebebidasalcoólicasecriaramestratégiasparaintervirnosproblemasidentificados;easegundacomduraçãodedoisdias,quandofoiapresentadaaosrepresentantesdosórgãosgovernamentaisasíntesedospontosabordadosnosdiasanteriores.Ao todo houve 73 participantes: 56Mbyá e 17 não indígenas vinculados,emsuamaioria,àsaúde indígena(Funasa,SecretariasEstadualdeSaúdeePrefeitura Municipal de Salto do Jacuí).

Nesse encontro, o debate realizado pelas lideranças Mbyá sobre o uso abusivo de bebidas alcoólicas girou em torno de dois eixos: ao de uma “sensibilidadejurídica”(GEERTZ,1998),voltadoàcriaçãode“leisinternas”àscomunidadesvisandoaocontroledoconsumoabusivodeálcooledesuasconsequênciaseainstituiçãodeumcaciquegeralparafazervalertaisleis;ea partir do ponto de vista do sistema médico tradicional, quando se discutiu sobreotratamentoterapêuticoadequadoparaobebedor(cau): o prestado pela medicinatradicionalGuaranie/ouobiomédico.43

Portanto, para que possamos compreender os sentidos acessados através das falas das lideranças durante esse evento, precisamos considerar alguns aspectos do sistema sociomédico Mbyá-Guarani, a partir de uma perspectiva cosmológica.

Alguns aspectos da organização sociocosmológica Mbyá-Guarani

AnoçãodepessoaMbyá-Guaraniconstitui-senumacategoriacentralparao entendimento do processo saúde-doença, pois ela articula e está articulada a 42Paraumamelhorcaracterizaçãodofenômenodeusoabusivodebebidasalcoólicas,verFerreira,2002;

2002a; 2004. 43Paraumadiscussãosobreoalcoolismoentreaspopulaçõesindígenaseasdiferençasexistentesentreaabordagembiomédicaeacompreensãoindígenasobreofenômeno,verLangdon,1999.

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umasériederelaçõescosmológicasesociaisquepodemserfontedeboasaúdeou causa de doenças. Os Mbyá creem que a pessoa é composta por duas almas: uma de natureza divina, o nhe’ë proveniente dos deuses cosmogônicos; a outra, de natureza telúrica – princípio terrestre adquirido junto ao corpo quando o nhe’ë encarna na terra, desenvolvendo-se no decorrer da vida da pessoa (SCHADEN, 1962; NIMUENDAJÚ, 1987; CLASTRES, 1978; CADOGAN, 1952).

Aboa saúdeda pessoaMbyádependedamanutençãode sua ligaçãocom o nhe’ë. E para que isso aconteça é fundamental o trabalho dos Karaí e aexistênciadacasadereza(Opy)nasaldeias.OsKaraísão,porexcelência,os mediadores entre o mundo dos humanos e o dos espíritos, desempenhando diferentesatribuições,taiscomo“curarosdoentes,predizerofuturo,mandarnachuvaenobomtempo.Opapeldosgrandesxamãs–osKaraí–,semamenor dúvida curandeiros, é o de liderança religiosa e, muitas vezes, liderança política das aldeias” (Clastres, 1978, p. 37).

Não é qualquer pessoa que pode serKaraí.Os deuses já enviaramoespírito dessa pessoa para desempenhar tal atribuição. Segundo FelipeBrizuela,“KaraíéaquelequetemcontatocomDeus,comNhanderu”.São eles “hombres carismáticos, cuyo saber e capacidad non les viene por enseñanza ni aprendizaje, sino por inspiración, por naturaleza” (MELIÀ,1988, p. 59-60).

Há diferentes tipos de Karaí, mas um dos principais é o Karaí Opygua, responsável pela casa de reza (Opy) e pelos rituais ali realizados. Pela sua capacidade de comunicar-se com Nhanderu, o Karaí também é o conhecedor das“boaspalavras”,alinguagemdivinadeixadapelosdeusesaseusfilhos.Asboas palavras, palavras do espírito, se expressam através dos cânticos, das rezas e dos conselhos. “Asbelaspalavrassãoaspalavrassagradaseverdadeiras(...);sãoalinguagemcomumahomensedeuses;palavrasqueoprofetadizaosdeuses ou, o que dá no mesmo, que os deuses dirigem a quem sabe ouvi-los” (CLASTRES, 1978, p. 86-87). Elas ensinam os Mbyá a como andar no mundo com alegria e saúde e a se protegerem dos perigos das doenças. Sendo assim, o Karaítambémdesempenhaumpapelimportante,tantonapromoçãodasaúdequantonaprevençãoenotratamentodasdoenças.

Entretanto,semOpynãoháKaraí.Énacasadereza

que se cumprem todas as atividades religiosas: danças cantos, relatos e comentáriosdetradiçõessagradas.Éaliqueoxamãvemfumarquandolhepedem que descubra o nome de uma criança ou quando deve curar alguma pessoaemqueseencarnouumaalmamalvada.É tambémnaOpy que, aoalvorecer,sãoproferidasasñe’ë porã, as belas palavras, diante do sol nascente. (CLASTRES, 1978, p. 86)

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OsMbyáconsideramaOpycomouma“igreja”delicada,quenãopodeserconstruídaemqualquerlugaredevesermantidadistantedoolhardonãoíndio.Quandoumacomunidadeficasemcasaderezaécomoseelaestivessedesprotegida, tornando-semaisdifícilamanutençãodaligaçãodaspessoascom os seus nhe’ë e, consequentemente, com Nhanderu.SemaproteçãoeaorientaçãorecebidapelosKaraínacasadereza,ascomunidadesficamàmercêdedoençaseinfortúniosdiversos,entreelesestãoaquelespropiciadospelousoabusivo de bebidas alcoólicas.

A Reunião dos Karaí e a emergência das boas palavras

AaberturadaIReuniãodosKaraíocorreunacasaderezadeSaltodoJacuínanoitede12dedezembrode2000.Alémdosmoradoresdaaldeiaanfitriã,oritualcontoucomaparticipaçãodosKaraíquevieramdeoutrascomunidadesdo RS. Nos demais dias, o debate iniciava por volta das 9h e terminava em torno das 19h, quando os Karaí se reuniam na Opy para realizarem suas cerimônias e pedirem aos deuses que mostrassem o caminho adequado para abordarem os problemas decorrentes do uso de bebidas alcoólicas enfrentados pelas comunidades Mbyá-Guarani no RS.

Pelamanhãdodia13dedezembro,achegadadosvisitantesnaaldeiadeSalto do Jacuí foi realizada conforme as regras tradicionais que organizam os eventosdefalaMbyá-Guarani.Aodesceremdoônibus,osMbyáfizeramumafila,oshomensnafrenteeasmulheresatrás,parasaudaremoKaraí Opygua anfitrião44. Ele estava aguardando as demais lideranças, juntamente a uma comissão,naportadopátiodasuacasadereza.UmdecadavezcumprimentavaoKaraí,levantandoasmãosedizendoaguijevete.Essasaudaçãosóéfeitaemmomentos especiais, em que se demonstra alegria e respeito em estar frente a um Karaí.

Após essa conversa, os Mbyá se sentaram em uma grande roda dando início à Reunião.No primeiromomento, todos os visitantesmantiveram-se calados demonstrando respeito para com o dono da casa e também para como evento.Enquanto isso, o chimarrão começava a ser distribuído aosparticipantes, e os Karaí já fumavam o seu petynguá (cachimbo). Durante todo otranscorrerdaReunião,haviaumxondaro(guardião)responsávelpormantero bom andamento das conversas.

DuranteessaReuniãoforamutilizadospelasliderançasMbyádiferentesgênerosdefala(BAKHTIN,1980).Noprimeirodia,acreditoquedevidoà 44Procuropreservaronomedaspessoasquederamosdepoimentosidentificando-asapenasporseusrespecti-voscargosporocasiãodoevento.Atualmente,amaioriadessasliderançasestámorandoemoutrasaldeiase assumiram outras responsabilidades perante as suas comunidades. Algumas delas, inclusive, já “deixaram seu corpo como terra” (yvyramo, boa palavra através da qual os Mbyá se referem aos que morreram).

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naturezadotemaqueestavasendodiscutido–aquestãodaleiinterna,comoveremosadiante–adiscussãoganhouumtompolítico,sendodirigidapeloscaciquesquealiestavampresentes.Jánosegundodia,devidoàorientação/atuaçãodosKaraí, as falasadquiriamo tomdas“belaspalavras”,palavrasinspiradas, concentradas no espírito.

Em outra oportunidade, uma liderança Mbyá me explicou que o que caracteriza a “boapalavra” não é necessariamente o conteúdodoque estásendodito,massimaformadafalaeaentonaçãodavoz.SegundoosMbyá,asboaspalavras,porseremverdadeiras,têmopoderdetocarocoraçãodaspessoas,sendoaemoçãoqueeladespertanaaudiênciaoquevaidemonstrarseooradorestátomadopela“boapalavra”ounão.Dequalquerforma,existeumasériedepalavrasespecíficasquesãoutilizadasapenasnoâmbitodessegênerodefala,nãosendoacessadasnasconversascorriqueirasdocotidianocomunicativo Mbyá-Guarani.

DuranteaReunião,nosmomentosdemanifestaçãodas“boaspalavras”,cada liderança que estava com a palavra direcionava-se até o centro do círculo; enquantodiscursavam,caminhavamdeumladoaooutrocomasmãospostasparatrás.Écomoseasboaspalavraspercorressemumcaminho:ocaminhodasboas palavras. Enquanto isso, aqueles que ouviam o palestrante permaneciam comacabeçabaixaemdemonstraçãoderespeito.Quandoconcordavamcomo que estava sendo dito, diziam: anheté!(Éverdade!).

Osdiscursosqueutilizamasboaspalavrasassumemumaformaespecíficademanifestaçãoperformática.Nessesentido,elesseconstituememumgênerode fala próprio que integra o repertório discursivo da oralidade Mbyá-Guarani. Foiesteogênerode falapredominanteduranteaReunião,ondeaoratóriaencontrouumlugarprivilegiadonaordenaçãodomundoedasexperiênciaspessoais relacionadas ao consumo de álcool. Nesse espaço, a fala possuiu umaformaespecíficademanifestação,organizadaporregrassociolinguísticaspróprias,sendoodiscursoacessadocarregadodesignificaçõescosmológicasimplícitas, tanto ao nível do conteúdo quanto da performance encenada.

Da lei interna à terapêutica tradicional: o que dizem as boas palavras?

As conversas sobre a situação do uso de bebidas alcoólicas nas co- munidadesMbyádoRSforaminiciadascomaapresentaçãodasliderançasque ali se faziam presentes. Foi neste momento que cada um colocou o seu pontodevistasobreoconsumodeálcoolefezumrelatodasituaçãoalcoólicada sua comunidade.

O Karaí Opygua de Salto do Jacuí iniciou sua fala saudando a todos os participantes com as palavras sagradas e, enquanto caminhava pelo centro da roda acompanhado pelo Xondaro,fezaseguintecolocação:

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Tenho preocupação com aqueles que estão bebendo, assim também opaieamãedaquelesquebebem.Estesdevemorientarosfilhosparaquenãobebam...Vouficaratentoparasaberqualpessoavailevarnafrenteotrabalho para o bem do povo. Agora estamos aqui e aquele que quiser falar pode falar, mas tem que ter uma pessoa para falar na frente do branco. Decadaumquefala,daspalavrasqueeleusaapenasumavalerá,entãovamos juntar as palavras. Essa é minha palavra hoje, para mim está tudo bem, a gente precisa muito este encontro, há muitos anos eu tenho essa preocupação e agora já estouvelho.Nãovou falarmuito, atémeiodiapode falar alguém...

Logo depois, o Karaí de Água Grande lembrou que pela primeira vez os Mbyá estavam conversando sobre o uso de bebidas alcoólicas e que, por isso, seria necessário ouvir todas as lideranças ali presentes. O cacique da Aldeia do CampoMolhado,então,assumeapalavraepassaaaconselharosdemais:

OsKaraí liberaramparadiscutirmos sobre cachaça.Entãocadaumvaifalar e apresentar o problema de cada comunidade... O que o Karaí ta percebendoéqueosjovensestãofazendocoisasquenãosãoboas.EagoravamosouvircomoosKaraítãovendo,percebendoaquestãodacachaça...Agora vamos todos prestar atençãona palavra doKaraí.E depois queterminarareuniãotodosdevemlevarparacomunidadedireitinhooqueaquifoifalado,porissoéprecisoficaratentoatéquetermine.Agoraparacontinuarareunião,seguramentenossoespíritoestánosacompanhandopara que continue bem este trabalho.

Quando a discussão foi retomada à tarde, a conversa girou em tornodaorganizaçãointernadascomunidadesMbyá-Guaraniedanecessidadedecriaçãodeumaleiinternacomoobjetivodecontrolaroconsumoabusivodebebidasalcoólicas,deformaaevitarosacidentesnasestradaseaviolênciadoméstica.ParaosMbyá,osproblemasmaisgravesassociadosàpráticadebeber é a violência gerada entre parentes. Por isso a importância, por umlado, de cada comunidade se organizar internamente para poder solucionar as situaçõesdeviolênciadomésticae,poroutrolado,dequehajaumaarticulaçãoentre as lideranças das diferentes comunidades, para se apoiarem mutuamente naresoluçãodetaisproblemas.

Para que tal lei fosse implantada nas comunidades, seria necessário elegerumcaciquegeralMbyá-Guaraniparafazervalerasorientaçõesdadaspelos Karaí no que se refere ao consumo de bebidas alcoólicas. Para tanto, as liderançasidentificaramseisliderançasqueestariamaptasaassumirtalcargo.Entre elas havia cinco Karaí concorrendo ao cargo de cacique geral.

Nesse momento do debate, visando à construção de planos de açãoparainterviremrelaçãoaosproblemasassociadosaousoabusivodebebidas

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alcoólicas,asliderançasdebateramosseguintespontos:1)propostadeeleiçãodeumcaciquegeralMbyá-GuaraniparaoRS;2)criaçãodeumaleiinternaàscomunidades, mantida pelo Cacique Geral e Xondaro;3)criaçãodeumacadeiaemcadacomunidadeparapunirosresponsáveisporsituaçõesdeviolência;4) buscar apoio de instâncias governamentais para proibir a venda de bebidas alcoólicasparaosMbyá(efetivaçãodaLei6.001,de1973–EstatutodoÍndio);5)necessidadeda intervençãodaPolíciaEstatalparacontrolaraquelesquebebem fora das aldeias; 6) sobre a possibilidade de acabar com as fábricas de bebidasalcoólicas;7)necessidadedeapoio,políticoefinanceiro,dasinstânciasgovernamentaisàsdecisõesinternastomadaspelasliderançasdestegrupo.

Entretanto, nessa ocasião as lideranças não chegarama umconsensosobreacriaçãoeaaplicaçãodessaleiinternaetampoucosobreafunçãodeum cacique geral no âmbito das comunidades Mbyá. Foram levantados muitos pontosdevistadivergentese,porquaseterementradoemconflitoaberto,osKaraídecidiramsuspenderadiscussãoetomaroutrocaminho:ocaminhodasboas palavras.

Namanhã seguinte, se retomoua reuniãoapartir daperspectiva cos- mológica do sistema médico tradicional Mbyá-Guarani, com a conversa girando emtornodotratamentoterapêuticoadequadoparaobebedor(cau): a medicina tradicionale/ouabiomedicina.OKaraíOpygua da aldeia de Varzinha abre a reuniãodiscorrendosobreostemposdeantigamenteesobreaformaadequadado Mbyá andar neste mundo. De cabeça baixa, os Mbyá escutaram as “boas palavras” que o Karaí proferia enquanto caminhava de um lado ao outro da roda:

Agoraagenteestávivendoassim.NãotemosmaisnossosXondaroqueacompanhaaverdadenomeiodaOpy.Jánãoécomoantepassadoquetinhaque ouvir a palavra dos velhinhos. Isso nós temos que fazer hoje, para que sempre tenhamos força. Porque quem da força pra nós mais velho é Nosso Deus,éespírito.Senão fosseespírito,nósnão teríamosavida.Vamosouvir todo mundo e orar todo mundo junto pra bem do nosso corpo. O Karaídeondeeletinhaforça?Aforçavemdoespírito,daconcentraçãoquenós conseguimos dentro da Opy. O Karaí quando entra na Opy ele conta o corpo de cada um de nós pra Deus, pra que o espírito continuasse com o corpoparapoderviver,meufilho,minhafilha.Adoençanóspegamosnãoé de todo tipo. Tem vários tipos de doença. Pra trabalhar aquela doença que nós pegamos é na casa de reza. Nós temos que acreditar, pra poder se curar e pra poder cuidar a nossa vida. Aquela água (cachaça) é uso do branco, traz doença aquele. A doença da cabeça esquece nosso espírito, parece que nãotemmaisespírito,nãolembramosmaisdosdeuses.Seécasado,seomaridotomacachaçaprejudicaasaúdedobebêquetemnabarriga,aificadoentetambém.Agoratodomundoficacomatenção,esseéomomento

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dereceberapalavraboa.Algumaspessoasestãorecebendoapalavraboa.Todomundo tem que cuidar para não perder essa palavra. Para podercurar aquele que ta bebendo nós temos sempre que ta na Opy. (...) Isso nós temosquesabertodomundo,semprerezando,nãotomarcachaça,setomarcachaçaperdemosavida.Nósnãoqueremosperderavida,ninguémaquiquerperder.Quandoperdeumapessoa,ninguémpoderecuperar.Temossemprequeescutarpranãocorrerperigo.Quandobebe temaquelequeperdeavidanocaminhão,numacidente.Agoraomundomudou!Agoraeu to falando isso porque tinha espaço para poder falar. Nós temos que pensar nosso futuro, pra ter todo mundo Opy, pra poder fazer fogo e sentar junto,fazerroda,orientandoaspessoas,afilhaofilho,praquecontinuadançando e cantando na Opy. O médico sabe todo o remédio, antibiótico quetemquetomar,aíreceitapraGuaranienãoexplica,aíoremédioquetemquetomaremtrêsdiasoíndiotomanumdiasó.Entãoobrancochamao índio de analfabeto, de ‘louco’. Eu quase morri, ele trouxe um remédio pequeninhoquetemquerepartiretoma,demanhãumaedetardeuma,mas como vi pequeninho tomei tudo de uma vez, quase me matou. Tem dez comprimidos pequeninho, já tomo tudo sem repartir e depois de cinco diasfiqueidebarrigainchada.Éassimoremédiodobranco!Ocomprimidocontra do álcool se o branco receitou é muito perigoso. Se toma o remédio dobranco contra álcool a pessoa temqueparar de beber senão jáficamorrendo. Por isso que é importante ta dentro de uma casinha de reza para resolveronossoproblemadoálcool.Éaiqueonossoespíritovaitrabalharpro corpo, pra poder tirar tudo do corpo o álcool, através da reza. Agora eupeçopravocêspassarprobrancoessapalavra.EtambémeuachoquetodomundovaipensarqueoKaraívaicurartudo,nãodevepensartambémassim. Cada um de nós tem que pensar nossa vida, como é que nós temos que viver pra continuar.

AspalavrasdoKaraípercorreramamanhãdessedia.Quandoterminoua sua explanação, os demais participantes encontravam-se emocionados econcordavam em consenso com o que havia sido dito. Nesse momento, todos recordaramaimportânciadoKaraíparaamanutençãodaformadeserGuarani,principalmente por orientarem as famílias a cuidarem bem de suas crianças, poissãoelasofuturodopovo.

Àtarderetomou-seadiscussãosobreanecessidadededarcontinuidadeàsReuniõesdosKaraíatravésdaelaboraçãodepropostasparaseremapresentadasàFunasaeaoutrossetoresgovernamentaisquetrabalhavamcomosMbyá-Guarani. “Temmuitobrancoe índioquenãosabedireitoainda,por issoéimportantequeagentecontinuefazendoReuniãoGeraldosKaraí.Sóumareuniãonãovairesolver,temquetermaisreuniãoparapoderresolver”.

Apartirdaí,iniciou-seodebatesobreotratamentoterapêuticoadequadoao bebedor (cau)–odamedicinatradicionalGuaranie/ouodamedicinado

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“branco”,levantando-seosaspectospositivoseasdificuldadesrelacionadasàatuaçãodecadaumdeles,bemcomodapossibilidadedesuaatuaçãoconjuntapara o tratamento do cau. Cada liderança apresentou o seu ponto de vista sobre esse assunto.

No que diz respeito ao tratamento biomédico do alcoolismo, a grande preocupaçãodosMbyásevoltouaosefeitosqueosmedicamentosdosbrancospodemviratersobreosbebedoresMbyá.“Nãoéfáciltratarcomoremédiodo branco, é difícil tratar. Porque se índio vai tratar com remédio do branco, elenãovaisaberseoremédioébomounão,elenãosabesevaifazermal,elevai continuar tomando cachaça, aí vai fazer mal”.

Enquantoisso,outrasliderançaschamaramatençãoparaofatodequeamedicinadobranconão era a única alternativa: os recursosdamedicinatradicionalGuaranitambémpoderiamsereficazesnacuradobebedor.Paratanto, sugeriram que, por meio dos rituais realizados na Opy, os deuses podem revelar ao Karaí os remédios e o tratamento terapêutico adequado para o cau.

Porfim,sechegouaoconsensodequeambosossistemasmédicossãonecessários para tratar o bebedor, devendo atuar de forma conjunta e articulada, jáqueabebidafazmalnãosóaocorpo,mastambémnarelaçãodapessoacom o seu espírito divino. De forma resumida, a proposta das lideranças Mbyá foi a de que, primeiramente, o cau será tratado na Opy pelo Karaí, por meio das rezas e do uso do petynguá; seoKaraínãoconseguir resultado, entãoo cau deverá ser encaminhado para o tratamento do branco. Mesmo nesses casos, o bebedor deve continuar a ser acompanhado pelo Karaí, para que seu espírito seja fortalecido e ele nãovolte a beber. “Nós temosque caminharjunto, guarani e branco. O médico branco tem que ajudar o médico Guarani prapoderacompanharbemobebedor.SóomédicoGuaraninãoadianta,sóomédicobranconãoadianta”(CaciquedePassodaEstância).

AsdiscussõesdodiaencerramcomasboaspalavrasdoKaraídaaldeiado Canta Galo, fortalecendo e encorajando (mbaraeté e pyaguaçu) os Mbyá a seguirememfrentecomalegrianocaminhodatradição:

Euvoufalarporquemeobrigouacolocaçãodosmeusparentes,porqueemocionouetalvezsejaomomentodeaproveitarporquenãoétodoodiaessareuniãoeessaemoçãoquenóstemos.Naverdadeéissomesmoqueestamosbuscando,umapalavraboa.Nóstemosqueterpaciênciaeachoque isso é um grande caminho e eu posso continuar na frente a minha vidaprasecuidarmais.Nósnãoestamossozinhos,nossoDeusestácomnós. Porque pra nosso Deus é fácil pra solucionar isso ai, só que pra nós é difícil. Só que nós temos que nos preparar pra receber a palavra de Deus pralevarsoluçãopronossopovo:nãoédifícil!Euqueroquevamosjuntoscadaumdenósvamosrezarnossocorpo,contandonossadificuldadepros

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Deuses pra ele poder trabalhar pro nosso corpo. Tem que cuidar de nós, porque ele mandou nós na terra para estudar. (...) Hoje momento especial para mim, o Sol acompanhando todos nossos parentes. Pra mim muito bom, seguramente hoje um dia especial pra nós, isso minha palavra, nós temos que trabalhar (...), pra poder conseguir nossa necessidade que mais difícil pra nós, pelo menos sobre o álcool.

Depois disso, as lideranças elaboraram um documento contendo as conclusões aqueeles chegaramapartirdasdiscussões realizadasnosdiasanteriores,paraapresentaremaosnãoindígenasqueestavamchegandoparaparticipar do evento. O documento foi lido, aprovado e assinado por todos os participantes Mbyá do evento.

Notas sobre o encontro entre os Mbyá-Guarani e os não índios

Nodia 15dedezembro, as liderançasMbyá se reuniramcomos nãoíndiosnoSalãoParoquialda IgrejadeSaltodoJacuíparaapresentaremasconclusõesaquechegaram,comasdiscussõesrealizadasnaprimeiraetapadeReunião,eacordaremosencaminhamentosrelativosàcontinuidadedasaçõesparaaintervençãosobreosproblemasassociadosaousoabusivodebebidasalcoólicas.

Os Karaí estiveram presentes no início dessa etapa para saudar os que estavam chegando e enfatizar a importância desse encontro, desejando a todos um bom trabalho. Entretanto, também expressaram seu descontentamento com o fato de essa etapa do evento acontecer na cidade, informando que eles retornariamàaldeiaparacontinuaremostrabalhosconcentradosnacasadereza.Assim,foidecididoqueoencerramentodaReuniãosedarianacomunidadejuntoaosKaraí.Depoisdisso,seprocedeuàleituradodocumentofinal:

Primeiro conversamos sobre a forma de diminuir o uso das bebidas alcoólicasedaquelesquebebem.Paradiminuirexistesolução!Guaranisabequetemremédio,sóqueesseremédionãoésóquesetoma,tambémpode curar através de conselho e de reza. Para tratar o bebedor pode ser o remédioGuaranietambémodobranco.Sobreaviolênciageradaporquembebe,aindanãoestádefinido.Éprecisodarcontinuidadeaestetrabalho.Precisamosqueestasreuniõestenhamcontinuação,umareuniãosónãovai resolver. As outras devem ser em outras Aldeias Mbyá-Guarani, com oobjetivodeorganizarinternamenteascomunidades.ApróximaReuniãodeve ser na TI de Barra do Ouro, Aldeia Campo Molhado. A partir de agora, todas as comunidades devem ter Opy, para que nossos Karaí continuem. AOpy émuito importante! Outra parte é a da alimentação: algumascomunidadesnãotêmalimentos,entãoapessoavaiparaoacampamentona beira da estrada e ali ela bebe. É preciso garantir alimento para ascomunidades, também para protegermos as crianças. Se falta alimento a

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pessoa sai para trabalhar fora e ganhar dinheiro, só que com R$ 2,00 só secompracachaça.OKaraíaconselhaaspessoasparaficaremnaaldeia,nãosairmaisparaacolônia,massenãotemalimentoapessoanãoficanaaldeia.Éprecisogarantiralimento!

As propostas elaboradas pelos Mbyá foram aprovadas por unanimidade pelos não índios ali presentes.Aproveitando a oportunidade, as liderançasMbyáexpressarama suapreocupação coma faltade condições territoriaiseambientaissuficientesparaamanutençãodamedicinatradicionalGuaranie,emparticular,paraaatuaçãoterapêuticadosKaraí.Sendoassim,osMbyáapontam como causa primeira do fenômeno do uso abusivo de bebidas alcoólicasareduçãodoseuterritórioeadepredaçãoambientaldassuasmatas,demonstrando que deve haver um esforço conjunto por parte dos diferentes setoresgovernamentaisqueatuamcomaquestãoindígena,visandoamelhoriada qualidade de vida e da saúde Mbyá-Guarani no RS.

O encerramento da I Reunião dos Karaí, Caciques e RepresentantesMbyá-Guarani sobre o uso abusivo de bebidas alcoólicas e alcoolismo no RS aconteceu no pátio da casa de reza da Aldeia de Salto do Jacuí, quando os Mbyá dançaram o tangará – dança dos xondaro, para fortalecimento do corpo e do espírito.

Considerações Finais

AIReuniãoGeraldosKaraí,CaciqueseRepresentantesMbyá-Guaranisobre o uso abusivo de bebidas alcoólicas e alcoolismo no RS foi o primeiro evento que congregou lideranças espirituais e políticas desse povo, promovendo umespaçodediscussãosobreproblemadesaúdepúblicaàluzdamedicinatradicional indígena.Com isso, se possibilitou a construção de estratégiasinterculturais para abordar e intervir sobre os agravos de saúde associados ao uso abusivo de bebidas alcoólicas nas comunidades Mbyá do Estado.

Paratanto,foifundamentalqueaorganizaçãodaReuniãodosKaraítenhase constituído em um evento de fala organizado de acordo com as normas sociolinguísticastradicionaisqueestruturamacomunicaçãonomundodavidaMbyá-Guarani.Comoumcontextodiscursivo,aReuniãodosKaraípropiciouaemergênciadas“boaspalavras”,gênerodefalatradicionalMbyá-Guarani,comoaformaadequadadeabordarasquestõesrelativasaoconsumodeálcool,jáqueessassãoaspalavrasdoespíritoe,portanto,possuemopoderdecurar:“não é só remédio que pode curar, tambématravés de conselho e de rezapodemos curar o cau”.

Por ser um evento que possibilitou aos Karaí se reunirem para juntos rezarem na Opy e aconselharem as demais lideranças e aos “bebedores” (cau) sobre a forma adequada para se viver nesse mundo com saúde e alegria e permitiu

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atrocadeexperiênciasentreasliderançassobreassituaçõesrelacionadasaousoabusivodebebidasalcoólicas,essareuniãotambémpossuiuumcaráterterapêutico.Issoporqueapalavra,emumasociedadedetradiçãooral,possuiopoderdecurarjáqueelapoderestabeleceraligaçãodapessoacomoespíritodeorigemdivina,ligaçãoessafontedeboasaúde.

Poroutrolado,aoconversaremsobreasituaçãodassuascomunidadesnoquetangeaousodebebidasalcoólicasvisandoconstruirsoluçõesparaenfrentaresse problema a partir do seu próprio conhecimento, os Mbyá fortaleceram o seu sistema médico tradicional e a sua identidade étnico-cultural, aumentando assim a sua “autoestima”. Esse evento também se constitui em um local de transmissão de conhecimentos entre as diferentes gerações de liderançasMbyá.Adiscussãosobreosproblemascausadospeloconsumodeálcoolseconfigurou emumprocessode negociaçãoquepropiciou a emergência denovos saberes, de saberes híbridos, a saber: o uso da boa palavra para abordar um problema desencadeado pelo contato interétnico.

OreconhecimentoeavalorizaçãodosistemamédicotradicionalMbyá-Guaranieofortalecimentodesuasinstituiçõestradicionais,comooKaraíeaOpy,assimcomooreconhecimentodacapacidadeMbyádecriarsoluçõespara enfrentar os problemas de saúde que os assolam, contando com o apoio dasinstânciasgovernamentaisresponsáveispelaquestãoindígena,apartirdossaberes e das práticas da sua medicina tradicional, é fundamental para que as açõesemsaúdesejamefetivasnareduçãodosdanoscausadospelousoabusivode bebidas alcoólicas e alcoolismo.

Para tanto, os gestores e os profissionais da saúde indígena precisamdesenvolver uma competência específica para o diálogo intercultural comaspopulações indígenasvisandoconstruirplanosdeaçãoquearticulemosrecursos do modelo médico hegemônico aos da medicina tradicional indígena, não só o tratamento das doenças que assolam osMbyá,mas também– eprincipalmente – promover a saúde e prevenir doenças a partir dos saberes e das práticas tradicionais de cuidados com a saúde desse povo indígena.

Porfim, importante pontuar queo usode bebidas alcoólicas entre osMbyá-Guaraniéumfenômenodealtacomplexidade,envolvendodimensõesbiológicas, psicológicas, socioculturais e históricas. Sendo assim, para termos alguma resolutividade no que diz respeito ao controle do uso de bebidas alcoólicas e alcoolismo, é necessário construirmos estratégias interinstitucionais para que seatuesobreosmúltiplosdeterminantesqueconfiguramofenômenodousode bebidas alcoólicas entre os Mbyá-Guarani. Por exemplo, precisamos ter em mentequegarantirterrasdemarcadascomambientepropícioàsustentabilidadesocioculturaldessepovoindígenaécondiçãofundamentalàreproduçãodoseumododesertradicionalparaapromoçãodasaúdeeprevençãodedoenças.

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IV ESPAÇOS CONSTRUÍDOS

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12 Sobre formações aldeãs Guarani no

Rio Grande do SulFlávio Schardong Gobbi

Pensaraquestãoindígenaatravésdecategoriasestreitamenterelacionadascom o Estado-Nação, com destaque para a fronteira e a identidade, podeconduzir-nosaalgunsconstrangimentos.Nãoéaintençãoaprofundá-losnesteartigo, bem como utilizar-se de tais categorias, mas essa ressalva inicial tem de serfeitaemvirtudedascaracterísticasdopovoemquestão.

Os Guarani espalham-se por uma vasta extensão territorial. Um dosmaiores contingentes populacionais indígenas no continente sul-americano, a categoriaamplaGuaranienglobamúltiplasdistinçõesinternas,algumasmaiseoutrasmenosmarcantes.Arespeitodaquelesqueestãoemterritóriobrasileiro,convencionou-sedividi-losemtrêsparcialidadesétnicas:Kaiová,Nhandeva(Chiripá)eMbyá.Háoutrasdistinçõesquenãovêmaocasoabordaraqui.Contudo,areferênciaaosGuaraninoRioGrandedoSulnãocorrenenhumrisco de equívoco referencial. As parcialidades existentes nesse estado, Mbyá e Nhandeva,nãoseexcluememabsoluto,sendoqueoriscodeequívocoémaiorao se buscar estabelecer uma fronteira precisa entre elas, pois compartilham avidaemdiversasaldeias.Paraosinteressados,Mello(2006)refletesobreetnônimoseautodenominaçõesGuaraninosuldoBrasil.

Nesse vasto espaço de dispersão dos Guarani, as fronteiras e asidentidades nacionais interceptam o contínuo-descontínuo de seus lugares de formações aldeãs. Contínuo, pois aqueles que são reconhecidos comoparentes (-etará kuery) atravessamas fronteiraseas identidadesnacionais/regionais.Descontínuo,poissuasaldeiassãofeitasnaspequenasáreasentre“aqueles que são muitos”/eta va’e kuery, os “brancos” /juruá kuery, que construíramsuasinstituiçõesdefinidorasdelimiteseidentidades,comasquaisospovosindígenasestãoemrelação,emboranãosedefinamintegralmenteporelas.Apresentarumquadroamplo,ealgoimpreciso,sobreaconstituiçãocontemporânea das aldeias Guarani no Rio Grande do Sul é o objetivo deste artigo.Antes,caberefletirarespeitodasimagensprojetadassobreosmodosdeorganizaçãoindígenanocontinentesul-americano.

O problema das formas, composição e dimensões dos agrupamentosindígenas sul-americanos está colocado desde os primórdios das reflexõesdaquelesquesededicamacompreenderaregião.Sãodesignadosdeváriasmaneiras,deacordocomoperíodohistóricoeaposiçãodaquelequedenomina:

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nações,províncias,povos, tribos,bandos,hordas,entreoutrasdesignações.Cadaumdessestermoscontémconcepçõesarespeitodosmodospelosquaisosíndiosorganizamseusgrupos,esãoproblemáticosnamedidaemqueelesdizemrespeitoàsexpectativasqueo“ocidente”temporidealdeorganizaçãohumana. Da horda à nação, por exemplo, teríamos uma escala crescentena evolução da organização humana, conforme uma antropologia vulgar,ainda corrente, que alimenta os temores de que os índios necessariamente organizar-se-ãoemnações,àmedidaqueevoluam(mesmoquetalevoluçãoocorrapeloestímulodeagentesnãoindígenas).Talorganizaçãoteriadeserevitadaemnomedasoberanianacional,atravésdonãoreconhecimentodosdireitosàsterrasqueelesocupamdesdeantesdainvençãodanaçãobrasileira.Nomeá-losnações,oumesmopovos,colocariaemriscoasmodernasnaçõesexistentessobreterritóriosjádelimitados.Mas,afinal,possuemosíndiossuasnações, potenciais ou reais?Para responder, teríamosquevisitar as teoriassobreaformaçãodosestadosnacionaismodernos,oqueescapatotalmentedo objetivo deste texto. Todavia, tomando por mote essas preocupaçõescontemporâneasquepermeiamasdiscussões(disputas)sobre(por)terrasnoBrasil,éinteressantedetermosaatençãonosmodospelosquaisdescrevemosessescoletivosindígenas,àsnoçõesquesubjazemessasdescrições.

A respeito disso é útil a distinção entre as ocupações das terras altaseterrasbaixasdocontinentesul-americano.Asprimeirasdizemrespeitoàsformaçõesandinas,quemaisatençãorecebemnoslivrosdehistória,emvirtudedasrealizaçõesdoimpérioinca.Motivodeestupefaçãonoimaginárioeuro-centrado–tambémporservistocomoumimpério,àsemelhançadoadmirador–,asfigurasincaicasaparecemcomoantagônicasdoqueseencontroualestedo continente.

Opoderdeseduçãodosíndioshabitantesdasflorestasdasterrasbaixassul-americanasnãosevinculouaoqueatradiçãoocidentalconcebecorrentementepor sociedade.Tradicionalmentemiradospor esseviés “andes-cêntrico”–atualizaçãodoevolucionismoeuropeunopanoramaindígenasul-americano,o qual encontrou no ponto de vista incaico um poderoso aliado – os povos da florestaforamclassificadospelaóticada“ausência”emcomparaçãocomasformaçõesque,decertomodo,aproximavam-sedoidealeuropeudesociedade/cultura/civilização.Povosditossemfé,semleiesemrei,poisnessasmatériasos parâmetros eram as “presenças” andinas e europeias (FAUSTO, 2000).

Assim, aoposiçãonatureza/cultura teveumpapel fundamental para aconstruçãodeummodelogeraldospovosindígenasnocontinente.Umaobrade grande impacto na metade do séc. XX, organizada por Julian Steward, o Hanbook of South American Indians, forneceu uma tipologia de áreas culturais ancoradanodeterminismoambiental.Classificaram-seasdiferentesformações

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através de variáveis econômicas e sociopolíticas, as quais poderiam ser situadas nagradesimples-complexo.Asterrasbaixaserampreenchidasporpopulaçõesrepresentantesdosmaisbaixosníveisdeespecializaçãotecnológica,econômicae política, em virtude do ambiente inóspito. Assim, as imagens da cultura (ou sociedade) das terras baixas eram derivadas das imagens da natureza, uma vez queasprimeirasresultavamdeprocessosadaptativosàsegunda.Dessemodo,avaliações negativas sobre o ambiente informavam expectativas negativasquantoàsformaçõessociaisdaregião.

Esse modelo influenciou boa parte das pesquisas arqueológicas nasegundametadedo séculoXX.Os fatores limitantesdasflorestas tropicaisseriam o impeditivo para a expansão demográfica e, por consequência,complexidade social (leia-se centralização e hierarquização sociopolítica,agriculturadesenvolvida,domesticaçãodeanimaiseinovaçãocultural).Esseprincípiofoicolocadoemxequeexatamenteatravésdeumaavaliaçãopositivadomesmomeioambiente,oqual, revisado, causaria as consequênciasnãoprevistas pelo modelo anterior. Alguns daqueles aspectos que distinguiam os supostos avanços das terras altas passaram a ser projetados, a partir dos registros arqueológicos, para as terras baixas, tais como, por exemplo, grandes povoamentos organizados em cacicados e centros de inovação e difusãocultural (cf. ROOSEVELT, 1992; FAUSTO, 2000; VIVEIROS DE CASTRO, 2002b).

Estassão,grosso modo,algumasquestõesqueenvolvemasdisciplinasde arqueologia, história e antropologia, referentes às continuidades e às descontinuidadesdas formações sociaispré-históricas,históricas e contem- porâneas. Aí está em jogo a (im)possibilidade de projeção da situaçãoencontrada pelos antropólogos do século XX, bem como aquela vislumbrada nosrelatosdoscronistas-viajantesdosprimeirosséculosdecolonização,paraoperíodo pré-conquista.45 Impossibilidade, pois, truísmo dizer, nesse jogo entre asimagensdopassadoedopresentenãosepodedesconsiderarosimpactosprovocadospelaviolênciacolonial–naformadeepidemias,aprisionamentos,escravismo,reduçõeseoutras–queocasionaramperdaspopulacionaisdifíceisaté mesmo de serem mensuradas. A possibilidade, por sua vez, reside no fato dequeasformasculturaispreexistentesnãosãopassivasfrenteàsmudanças,mas engajam-se no processo histórico segundo suas próprias particularidades. Ou seja, continuidade e descontinuidade entre o passado e o presente sãoduas facesdamesmamoeda.Porum lado, afirmara continuidadeentreassociedades indígenas atuais e aquelas existentes antes da chegada dos europeus 45ArespeitodessasquestõesparaocasodosGuarani,desdeperspectivasarqueológicas,cf.Noelli(1993)

e Soares (1996).

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nãosignificadizerqueelaspermaneceramimunesaodesenrolardahistória.Poroutro,asdescontinuidades,semdúvidaexistentes,nãopodemserconsideradaspeloviésdadesintegração,poisassimprocedendoestaríamosconferindoaospovosindígenasumlugardefinidonalinhadotempo:suaassimilaçãopelasociedade nacional – aposta feita, e perdida, por alguns antropólogos.46

Voltando às imagens projetadas sobre os agrupamentos indígenas, osencontros com os índios das terras baixas sul-americanas no século XX de certo modo corroboravam aquele modelo ancorado no determinismo ambiental: pequenos povoamentos vivendo em relativo isolamento, propícios ao registro deausênciasdediversasordens.Somadaa isso, a entrada tardiada regiãonos interesses antropológicos fez com que as pesquisas fossem orientadas por categorias provenientes de outros contextos, como os africanos, o que tinha porefeitoaconstataçãodequeospovosdaflorestanãopossuíamasesperadasinstituiçõesregulatóriasnasdimensõesdoparentesco(linhagens),dapolítica(gruposcorporadosdetransmissãodebensedireitos)edareligião.

Contudo, nas últimas décadas do mesmo século XX, a antropologia americanista promoveu um salto qualitativo que teve como um de seus focos aalteraçãodospróprioscritériosdeavaliaçãodecomplexidade.Formulaçõesparadigmáticas, como as de Lévi-Strauss e Pierre Clastres, bem como o estudo intensivo de povos particulares através de procedimentos equivalentes aosutilizadosemoutrassearasantropológicas,conduziramàcriaçãodeuminstrumental conceitual próprio para as sociedades ameríndias, tanto nos aspectosreferentesaopensamentonativoquantonadimensãopropriamentesociológica(DESCOLAeTAYLOR,1993).Umdosresultadosfoiaconstataçãodequenãoéatravésdaprojeçãodequaisquerpadrõesdecomplexidadequealcançaremosumaimagemapropriadadosmúltiplosmodosdeocupaçãodoterritórioamericano–queocomplexodooutronãoseránecessariamenteocomplexo do ocidente.

A imagem contemporânea dos povos indígenas das terras baixas sul-americanas apresenta um quadro distante da determinação da vida pelanatureza.Aaferiçãodecomplexidadenãoestá,necessariamente,nadistânciaenocontrolequeosdiferentespovosconstruíramemrelaçãoànatureza.Atéporqueaideiadeumanaturezaincultaqueaguardaaaçãodomesticadoradahumanidadenão corresponde aoque comeles se temaprendido.Umadasprincipais construções antropológicas das últimas décadas indica que, nocontexto ameríndio, a natureza, antes de ser algo regido pela lei da necessidade sobre o que a cultura impõe suas regras, é um espaço de relações sociaispensadas e vividas sob o prisma da cultura. Espécies de animais e plantas, 46Sobreasrelaçõesentreculturaehistória,verSahlins,1997a,1997b,2003,2004.

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por exemplo, em vez de coisas, compartilham com os homens atributos que a tradiçãomodernadesignoucomoexclusivosdahumanidade, taiscomoasubjetividadeeacapacidadedeagência(VIVEIROSDECASTRO,2002c;LIMA, 2005). Exemplificando, quando uma liderança indígena reclama adefesa das matas, tendemos a ver como motivador desse ato um interesse em recursos (riquezas) naturais. Contudo, é perfeitamente plausível que, da perspectivaindígena,oqueestáemjogoéumconjuntoderelaçõessociaisextra-humanas, as quais, para aquelas pessoas, é o que “interessa”, no sentido de “fazer a diferença”, como destaca Sahlins (2003, p. 187) a respeito do conceito de interesse. Simplificando, a cultura que para certa vertente datradiçãoocidentalencontra-senascidades(museus,teatros,cinemas,prédioshistóricosetc.)–“alimentosparaoespírito/alma”–paraosíndiospodeestarnafloresta(ondevemosapenasnatureza)–aíincluídos“alimentoscomespíritos/almas”.

Esse preâmbulo estendido tem, também, o objetivo de salientar uma das características principais dos lugares que os Guarani, quando possível, escolhem para formar suas aldeias: as matas (ka’aguy). Representantes das populaçõesquepossuemamaislongaexperiênciadecontatocomasforçascoloniais, habitantes do litoral leste do continente no momento da chegada dos europeus,osGuaranidehoje–queguardamrelaçõescomaquelesquecomos jesuítas ergueramasmissõesnos atuaispaísesdocone sul-americano–seguem em busca das matas para ali construírem suas aldeias, em pleno século XXI, como se diz. O desaparecimento paulatino das matas nestes 500 anos, acentuadonoúltimoséculocomascolonizaçõesalemãeitaliana,éosignodoavançodeumprocessodeocupaçãoespacialqueseopõeradicalmenteaomodode vida indígena. Como muitos pesquisadores registraram junto aos Guarani, suas narrativas mitológicas contam que Nhanderú Tenondeguá (demiurgo) ao fazer esta terra destinou as matas aos Guarani, os campos aos brancos. Estesúltimosnãosecontentaramcomseuquinhão,avançaram,econtinuamavançando, sobre os lugares em que os Guarani desde tempos imemoriais vivem a seu modo.

ÉintensaaocupaçãoGuaranicontemporâneanoestadodoRioGrandedo Sul. No leste, no sentido sul-norte, localizam-se as seguintes aldeias: Kapi’i Ovy (Canguçú – Pelotas), Pacheca (Yyguá Porá/Camaquã), ÁguaGrande(Ka’a Mirïdy/Camaquã),Velhaco (Tapes),CoxilhadaCruz (Porã/BarradoRibeiro), Petim (Araçaty/Barra doRibeiro), Passo da Estância (Barra doRibeiro), Passo Grande (Nhü’ndy Poty/BarradoRibeiro),LombadoPinheiro(Anhetengüá/PortoAlegre),Cantagalo(Jataity/Viamão–PortoAlegre),Lami(PortoAlegre), Itapuã (Pindó Mirim –Viamão),Estiva (Nhü’ndy/Viamão),Capivari (Porã Mirim/CapivaridoSul),GranjaVargas(Yyryapú – Capivari do

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Sul), Interlagos (Osório), Varzinha (Ka’agüy Pa’ü – Caraá), Riozinho (Itá Poty – Riozinho), Campo Molhado (Nhu’ü Porã/Maquiné,Caraá,BarradoOuro),Linha Pinheiro (Maquiné), Torres (Guapo’y Porã).47 Assim, numa lista que podenãocobrirtodasasáreasdeocupaçãonaregião,48 temos aproximadamente 20aldeiasqueestãogeograficamentepróximasumasdasoutras.

Asrelaçõesentreasaldeiasextrapolamesseconjuntonolitoralgaúcho.Envolvem ainda as aldeias no centro-norte-oeste do Rio Grande do Sul (Irapuá, EstrelaVelha,SaltodoJacuí,SãoMigueldasMissões,Guarita,MatoPreto49), nosestadosdeSantaCatarina,Paraná,SãoPaulo,RiodeJaneiroeEspíritoSanto, bem como as aldeias na Argentina e no Paraguai.

Diz-se com frequência das sociedades tradicionais que elas sãoorganizadaspeloparentesco.Talafirmação,emboranãosejaincorreta,limita-se pela simplicidade. Como referido, via-se uma incapacidade, por assim dizer, nofatodeaspopulaçõesindígenasnãoapresentareminstituições“superiores”aoparentesco (protoestados,por exemplo)para regular as relações sociais.Dissodecorreavisãocorrentedequeosíndiossão“desorganizados”,poisseconsideraquetaisinstituiçõesseriamnecessáriasparaa“ordem”.

Avancemosna reflexão acerca dos aspectos positivos doparentesco arespeitodasformaçõesaldeãs,sobrealgunsmotivosdeeleserconsideradoumadimensãoimportantenasrelaçõessociaisindígenas,emgeral,eGuarani,em particular. Por exemplo, ao visitar uma aldeia Guarani e questionar o interlocutor quem ali é seu parente, muito possivelmente a resposta será “todos aqui são parentes”.Nessa ocasião, ele não estará tomandoo não indígenapor ignorante (vale mencionar que nas relações entre brancos e índios adesqualificaçãointelectualdooutropodeserrecíproca,pordiferentesmotivos).Emreuniõesemqueumgrandenúmerodepessoasdediversasaldeiasestãopresentes,asaudaçãodealguémquedirigeafalaparatodoséporvezesfeitacomaexpressão“javúpa juxeretarákuery”,cuja traduçãopodeser“bomdia, meus parentes”. Xeretará kuerysignificaocoletivo(kuery) dos meus (xe) parentes (-etará).

Essa classificação (-etará), que engloba todos aqueles considerados semelhantes,operanumnível,sendoqueemoutroocorreadistinçãoentreconsanguíneoseafins,entreaquelescomquemomatrimônioépermitidoounão,entreaquelesque(nocasoderelaçõesmasculinasdemesmageração)sãoprimos-irmãosousãocunhados.Dentrealgunspovosindígenasamazônicos, 47Estaúltimaaldeiafoiextintarecentementeedesdobradaemduas,emvirtudedaduplicaçãodaBR101.48Algumasocupaçõesescapamdesse registro.NapublicaçãodoCentrodeTrabalho Indigenista–CTI(LADEIRAEMATTA,2004),encontramos,alémdasáreascitadas,indicaçõesdelocaisdeparadaeáreasdesocupadas no leste do RS.

49 Há outras aldeias Guarani, principalmente no norte do RS.

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essa distinção entre consanguíneos e afins é feita através do parentescocruzado.Oqueissosignifica?Grosso modo, se um homem ou uma mulher tem de encontrar, nesse universo de semelhantes, alguém com quem possa casar, noconjuntodaquelaspessoasqueonosso sistemaclassificatórioposicionaos ‘tios’ e ‘tias’, semdistinção terminológica entre consanguíneos e afins,essessistemasindígenasinseremumadiferença:osirmãosdamãeeasirmãsdopaiserãoconsideradosafins,enãoconsanguíneos.Osfilhosdessesafinsda geração ascendente serão igualmente considerados afins, logo cônjugespotenciais, com quem se pode casar.50 Ou seja, num universo de “semelhantes” (aquelesconsideradosparentesnonívelmaisabrangente),algunssãomaiseoutros menos ‘parentes’, estes últimos sendo, na linguagem antropológica, afinspotenciaisoureais(VIVEIROSDECASTRO,1995,2002a;FAUSTO,1995).

NoquedizrespeitoaosGuarani,encontramosumadistinçãoterminológicanageraçãodospais.Contudo, taldistinção,aparentemente,nãofazdos(as)tios(as)cruzadosafins;logo,osprimoscruzadossãoclassificadosnamesmacategoriados(as)irmãos(ãs)eprimos(as).Aspessoascomquemsedevecasarencontram-se fora da parentela bilateral, mas dentre aqueles considerados semelhantes (os casamentos com não indígenas, ou pertencentes a outrospovos,sãobastanteraros).

Os Guarani, por dinâmicas próprias, mas também por efeitos do avanço colonial sobre seus espaços anteriormente ocupados (cf. GARLET, 1997), vivem em pequenas aldeias, sob a liderança de um casal com idade avançada. Em virtude dessa necessidade de se buscar cônjuges fora da parentela bilateral, eporconsequênciaemoutrasaldeias,oscasamentossempreassociamgruposdiferentes. O regime matrimonial Guarani, de modo semelhante aos de outros povosamazônicos,temnauxorilocalidadeumdeseusaspectos.Issosignificaque quando dois jovens unem-se em matrimônio, o homem vai residir na aldeia da mulher, próximo aos seus sogros.51Deve-seressaltarquetalmovimentonãoéumaregrarígida(osameríndios,emgeral,sãopoucoafeitosaregrasrígidas),mas o que pode ser chamado de um atrator. Em virtude dele, pode-se visualizar umatendênciadeasfilhaspermanecerempróximasdeseuspais,eoshomensdispersarem-se.Contudo,outrosfatores,comoascondiçõesdaaldeiaemqueo homem vive, podem contribuir para que a mulher vá residir com ele.

As diversas aldeias Guarani, portanto, se articulam em uma intrincada rede de parentes. Uma pessoa que reside em uma aldeia no município de PortoAlegre,porexemplo,possuirelaçõescomdiversasoutrasaldeias,uma 50 Para aprofundamentos sobre o parentesco entre os Guarani contemporâneos, ver Assis (2006), Mello

(2006), Pissolato (2007) e Gobbi (2008). 51Soares(1996)apresentaummodeloparaaorganizaçãosocialdosGuaranipré-históricos.

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vezquenelasestão seusparentes, consanguíneoseafins.Se,porum lado,a proximidade geográfica proporciona condições favoráveis aos encontrosentre as aldeias, isso não significa que os agrupamentos localizados numamesmaregiãoconstituamumconjuntoemoposiçãoaoutros.Seemumnívelmacroscópico, principalmente em virtude das políticas públicas, se possa falar em aldeias Guarani no Rio Grande do Sul, ou no litoral gaúcho, em outrasdimensões,comênfaseparaasdinâmicasassociadasaoxamanismoeparentesco, as pessoas, ou grupos de parentes, de aldeias distintas estabelecem relaçõesqueextrapolamasdiferençasregionais.

Alémdisso,asformaçõesaldeãsGuarani têmdeserpensadasapartirde suas historicidades particulares. O que indiquei como “grupo de parentes” forma-seemtempos-espaçosespecíficos,nummovimentoquepodeserdescritocomode“condensação”depessoasemtornodehomense/oumulheresquedesempenhamuma função, por assim dizer, agregativa.Manter umgruporeunidonãoéumatarefasimples.OsGuarani,demodosemelhanteaoutrospovos indígenas, valorizam e respeitam as vontades pessoais. Assim, fazer um grupoenvolvediversosfatores,osquaispodemsersintetizadosnaproduçãode condições para a alegria e a saúde nesses tempos-espaços particulares,as aldeias (cf. PISSOLATO, 2007). Conforme já registrado por inúmeras pesquisascomosGuarani,estemundoépensadosobosignodaimperfeição,lugar em que se encontram múltiplas ameaças aos humanos e onde as coisas sãofinitas, emcontraposição aos lugares cósmicos habitados pelos deuses (cf. CADOGAN, 1997; CLASTRES, H., 1978; FERREIRA, 2001; PISSOLATO, idem).A condensação e a agregação de pessoas se vinculam, portanto, àscondiçõesparaum“ficarbem”nessaterraimperfeita.

Os estudos Guarani de boa parte do século XX enfatizaram a busca pela superaçãodessaterraimperfeita(cf.NIMUENDAJÚ,1987;CLASTRES,H.,1978), através do acesso a esses lugares em que vivem os deuses. Na última década, acompanhando, talvez, transformações próprias aosGuarani,mastambémemvirtudederenovaçõesteóricas,passou-seaenfatizarosmovimentosdos humanos que objetivam permanecer nessa terra (PISSOLATO, 2007). Visualiza-se aí a passagem de uma imagem dos Guarani como profundamente pessimistas para outra em que projetos de futuro tornam-se elementos importantesdocenário.Asaldeias,portanto,nãomaissesituamcomoespaçostransitóriosdeesperapeladestruiçãodomundoepassagemaoutroemqueosmalessãoinexistentes,mascomolugaresemqueasrelaçõesintra-humanastomamcorpo,naproduçãosimultâneadealegria,tranquilidadeeparentesco.Grosso modo,énessaintersecçãoentrecosmologiaesociologiaqueocorrea“condensação”depessoasemaldeiasparticulares.Pessoasquepersistemnabusca por tranquilidade e alegria nas áreas de matas, naquelas que sobraram.

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Finalizandocomcertootimismo,urgequeesseoutrotãoviolento,nósjuruá kuery, atenuemos a ferocidade, e que nossas façanhas no Rio Grande do Sulnãosirvamapenasparaglorificaropassado,mastambémparaaconstruçãodeprojetosdefuturoquecontemplem,defatoenãoapenascomodeclaraçõesdeintenções,odiálogocomaalteridadeindígena,comdisposiçõesreaisparaaescutaeorespeitoàdiferença.

Referências

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13 Aspectos simbólico-culturais e continuidade

das construções Mbyá-GuaraniNauíra Zanardo Zanin

Asrespostasencontradasparasolucionaraquestãohabitacionalpodemvariardeacordocomaregião,oclima,adisponibilidadedemateriaisecomacultura local, entre outros fatores. Ao pesquisar tipologias autóctones existentes em diferentes comunidades Mbyá-Guarani do Rio Grande do Sul, foram iden- tificadosaspectossimbólico-culturaispresentesnessasconstruções,quepossi- bilitamacompreensãodopapeldahabitaçãotradicionalnamanutençãodeummododevidaespecífico.ApreferênciadosMbyá-Guaranipelas suascons- truçõestradicionaisdeve-se,emgrandeparte,atradições,mitosecrençasqueenvolvemocotidiano.Portanto,acontinuidadedessasconstruçõespossibilitaamanutençãodeumhabitatadequado.Contudo,aviabilidadedemanutençãoda cultura dependede fatores nãodeterminados unicamente pelas decisõesinternas da comunidade, mas influenciados pela realidade do entorno em queseinserem,quenemsempreéadequadoàmanutençãodeseuspadrões deocupação.

Aconstruçãoemcomunidadestradicionaisocorredeacordocomseussistemasdeorganizaçãosocial, respeitandoascondicionantesdomeioeosaspectos simbólico-culturaisque indicamomodocomoasaçõesdevemserealizar. Portanto, uma construção nessas condições é a expressão de ummododevidaespecífico,atendendoàssuascrençasenecessidadesdiárias.Oconhecimentodasformasdematerializaçãodaconstruçãoautóctoneedacomplexidadedefatoresnecessáriosparasuaviabilizaçãopossibilitaquesedesenvolvamorespeitoeavalorizaçãodessastecnologiasancestrais,nativasdestecontinente.Seahabitaçãoéumresultadodaculturaqueadesenvolveu,ela também representa e viabiliza esse modo de vida. Assim sendo, as construçõestradicionaisdevemservalorizadaseincentivadas,porresponderemàsreaisnecessidadesculturais.Portanto,anecessidadedeconheceratradiçãoconstrutivaeseusignificadoculturalsejustificanomomentoemquesepretendeauxiliarumacomunidadeamelhorarsuascondiçõesdevida, respeitandoaquestãocultural.

Etnia Mbyá-Guarani

No Rio Grande do Sul, existem cerca de 30 pequenas comunidades Mbyá-Guarani,contandocomumapopulaçãoaproximadade1.500pessoas,

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segundo relatório da situação das comunidades indígenas no Estado(CAMPREGHER, 2003). O número de indivíduos em cada comunidade é variável, pois frequentemente ocorrem deslocamentos de famílias entre comunidadescomafinalidadedevisitarparentes, sendoqueasvisitas sãode tempo indeterminado. Porém, existem outros fatores, internos e externos, que motivam esses deslocamentos. Entre eles está a busca pela “Terra sem Mal” (CLASTRES, 1978). Devido a esse mito, percorrem o território seguindo sonhos e se estabelecem temporariamente em locais especiais – tekoa.

Os Guarani valorizam o seu modo de vida – o nhande rekó – e quando percebemqueestãosendotratadoscomosenãotivessemmaiscultura,nemtradição,reagemafirmandoqueexistemeexistirãosempre(CHAMORRO,1999). Os Mbyá sempre procuraram preservar sua liberdade e autonomia, ficandopormuito tempoàmargemdaspolíticaspúblicas–e, literalmente,nabeiradasestradas.Aliberdadeéagarantiadepoderemseroquesãoedeviver sua cultura. A força que os guia neste caminho – o caminho das belas palavras – é espiritual. Seus rituais religiosos lhes fortalecem o espírito para vencerasdificuldades,pormeiodaspalavrassagradas,quesãoofundamentodo ser humano (CADOGAN, 1997).

AspalavrasdosGuarani“vêmdocoração”,nãosão“criadaspelamenteeexpulsasbocaafora”,massãoprovenientesdocoração,eparacompreendê-las é necessário “engoli-las” – assim falam os Guarani, explicando por que, muitasvezes,asverdadessão“difíceisdedigerir”.Éimpossívelàquelequetemocoraçãoabertodeixá-lasentrarporumouvidoesairpelooutro.Sendoa palavra considerada sagrada, existe certa economia desse recurso no modo de ser Guarani.

Para compreender a forma de moradia existente nas comunidades Mbyá-Guarani, deve-se conhecer o significado de suas construções e seu papelfrenteàsustentabilidadedoseumododevida.Aseguirserãoapresentadosediscutidos os tópicos desenvolvidos em entrevistas junto aos Mbyá. Também foramadicionadasalgumasobservaçõesdecampocomocomplementaçãoeaprofundamentodasinformaçõesobtidasnasentrevistas(apartirdeZANIN,2006).

Aspectos simbólico-culturais das construções Guarani

DuranteasconversascomosMbyá,percebeu-sequeapreferênciapelacasatradicionalsedeve,emgrandeparte,afatoresquedizemrespeitoàcultura,ao nhande rekó,às tradições,mitosecrençasqueenvolvemocotidiano.OprimeiropontoaserconsideradonestetópicoéarelaçãoentreomododevidaGuaranieahabitação.Namanutençãodonhande rekó,ahabitaçãotradicionalsecoloca como um instrumento fortalecedor desse modo de ser. Isso é apreendido

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em uma entrevista a um Mbyá do Tekoa Koenjuqueidentificaqueaoviverna casa tradicional de taquara, pensa na cultura Guarani, no sistema Guarani, nessa forma de viver. Assim, a casa faz parte desse sistema, desse modo de vida,mantendoelementosqueemoutraformahabitacionalsãoinviabilizadosou alterados. Esse é um dos fortes motivadores que levam os Mbyá a seguirem construindosuashabitaçõestradicionais.

Aseguir,sãoapresentadasalgumascaracterísticasdashabitaçõesMbyá-Guaraniesuarelaçãocomoentorno.Comoaspectossimbólico-culturaisrele- vantesobtiveram-se:alocalizaçãodashabitações,aorientaçãosolar,suasdimen- sõeseforma,oscostumes,aproteçãoespiritualoferecidaeapresençadofogo.

Localização

Ascasasforamobservadasgeralmentepróximasàsbordasdomatoedeal- gumcursod’água.Nãoháumaregrafixa,masaescolhadaimplantaçãopodese relacionaràproteçãocontraosventosdeinverno,oferecidapelamata(Fig.1).

Figura 1 – (a) vista de satélite:proteçãodamataaoeste com casa tradicional voltada para leste e Casa do Índio para noroeste; (b) casas com porta voltada paralesteeproteçãoda mata a sul.

Fonte: Digital Globe/Google Earth (2006).

(a)

(b)

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Algumas famílias mais reservadas preferem as clareiras na mata, que podem ser configuradas pelamata ciliar de umpequeno riacho.A área deuso de cada família fica configurada pelo pátio, que é limpo diariamente.Nasproximidadesdopátioestãoasroçaseasárvoresfrutíferas.Cadacasaéconectadaàsdemaiseaosespaçosdeusodogrupopormeiodeumarededecaminhos, criados e mantidos pelo seu trilhar.

Observa-sequeaorganizaçãosocialMbyáconduzadistribuiçãodascasaspelosítio,deacordocomasrelaçõesdeparentescoeafinidade.Alocalizaçãoéumfatormuitoimportante,tantoporseusaspectosfísicosquantopelarelaçãoentreasfamílias,porisso“cadafamíliaescolheondevaiserasuacasa”.Écomumjovenscasaislocalizaremsuascasasjuntoàcasadospais:“orecém-casado faz a casa do lado do sogro, para ele ver se é bom. Depois que tem filhojápodemudar”,dizumMbyá-GuaranidoTekoá Anhetenguá. Os jovens solteirostambémconstroemsuascasaspróximoàscasasdospais. Os locais escolhidos podem determinar a harmonia das atividades diárias, permitindo que elas sejam realizadas conjuntamente, entre parentes próximos.

A localizaçãodaCasadeRezas (Opy)fica a cargodo líder espiritual(Opyguá).Alémdalocalização,existemelementossimbólicos,relacionadoscomacosmologia,queconfiguramoambienteondeestáaCasadeRezas,como um pátio que geralmente possui uma palmeira Jerivá (pindó ete).

Nos Tekoá,osespaçosabertosestãoconectadosatravésdehierarquias,ondeos espaços mais íntimos se conectam a espaços mais públicos, gradativamente. Cadacasapossuiumpátioemcujoentornoestãoasroçaseoscaminhosqueseconectam a espaços mais amplos, de uso do grupo. Esses caminhos, conectados a outros, conduzem a espaços menos privativos, de uso dos visitantes, e que se interligam,porfim,àsviaspúblicasexternasaosTekoá.Essagradaçãonaprivaci- dadedosambientesaparecenoPadrão66deAlexander(1977),sobrelugaressagrados.Nessepadrão,olocalmaisinacessívelseriaomaissagradoeseobser- va que, na maioria dos locais visitados, a Opyficaemlocaldeacessorestrito.

Orientação Solar

Aorientaçãosolardahabitaçãoédefinidasegundoarelaçãocosmológicacomasdivindades.Deacordocomesseprincípio,aportadacasadeveficarparao lado em que nasce o sol, morada de Karaí, divindade que supre as necessidades diárias,provendoo“pãonossodecadadia”.Alémdisso,aportadacasanuncapodeservoltadaparaosul,porquedelávêmosventoseachuva.

Com relaçãoàCasadeRezas (Opy), osMbyádoTekoa Yryapu con- sideramqueaorientaçãosolarédefinidacomaportavoltadaparaopoente.Essaéaorientaçãoobservadanamaioriadascomunidades.Porém,segundooutroMbyá,existemvariações,poisoOpyguápodeescolheraorientaçãode

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suapreferência.OOpyguá(líderespiritual)deverezarvoltadoparao leste no amanhecer, para que Karaí (divindade) proteja o dia que está por vir: “sempre a porta da casa tem que estar voltada para o sol nascente, para que o sol acompanhe todo o dia.Então oKaraí52 levanta e já pede para o sol acompanharaspessoas”.Então,sefordaescolhadolíderespiritual,aportaévoltada para o leste.

Dimensões e forma

Acasa tradicional temdimensões reduzidas, e a forma é configuradapor paredes cobertas por um telhado de duas águas, em que o beiral quase tocaosolo.Algunscondicionantesdadimensãodacasasão:ouso(noturno);o hábito de a família dormir reunida (ambiente único); o condicionamento térmico(ousodofogoeoprópriocalorhumano,maiseficientesemambientesmenores). SegundoosMbyá entrevistados, as dimensões das casas podemvariar,ocorrendoalgumasmedidas-padrão:3×4m(12m²),abrigandopequenasfamílias,e4×5m(20m²)ou4×6m(24m²),ideaisparaabrigarfamíliasmaiores.

52Karaíéumadivindade,mastambémpodesernomedepessoae,nessecaso,oentrevistadosereferiaàlíder espiritual, rezador.

Figura 2 – (a) casa no Tekoá Porã; (b) pátio da Opy e outras casas no Tekoá Koenju.

(a)

(b)

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ACasadeRezasfogedessespadrões,sendomaiorqueascasasdemorar,poisdeve abrigar toda a comunidade em seu interior.

A casa tradicional possui apenas um ambiente interno, que serve de abrigo noturno e proteção contra intempéries, quando pode ser utilizadopara as atividades diárias, como cozinhar e conversar junto ao fogo. A forma dacasaéconfiguradapelo telhadodeduaságuas,quepossuipé-direitode2,00m,aproximadamente,nacumeeira,devendoficar“umpoucomaisaltoque o guarani”, segundo conta um construtor Mbyá. Compreende-se que essa condiçãoestárelacionadacomoprocessoconstrutivo,quenãoprevêousode andaimes ou outras formas de apoio. Em sua parte mais baixa, o pé-direito lateral da casa pode atingir 1,00 m do solo, conformando um telhado de duas águas bastante inclinado que, somado ao beiral de quase 1,00 m, se aproxima dosolo.Comessasoluçãoformal,asparedeslateraisficamprotegidascontraintempéries.

Figura 3 – Casa no Tekoá Koenju (Foto: Maurício Magro).

Quandoacasadepauapiqueérebocadacomtaipademãoounocasodas casas de xaxim, a única abertura para o exterior é a porta de acesso. A portadessashabitaçõesnãorespeitaoscódigosdeedificaçõesvigentesnasprefeiturasmunicipais,porématendearestriçõesculturaisedecomportamento

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dosocupantes.Segundodadosobtidosnasentrevistas,adimensãoreduzidado acessodeve-se a uma exigência cultural: a porta deve sermenor que apessoa,quedevesecurvaraoentrarnaedificação.OPadrão224deAlexander(1977) explica que portas de acesso demenores dimensões são passagensquereforçamatransiçãoaambientesprivados.SegundoumMbyá-Guaranido Tekoá Anhetenguá, a porta da casa é pequena para impedir a entrada de elementos indesejáveis e antigamente auxiliava na proteção ao ataque deonças. No caso da Opy, a porta, além de mais baixa, deve ser também mais estreita, e os Mbyá devem entrar de lado, abaixados e vagarosamente, em sinal derespeito:“apessoajáentranaCasadeRezasrezando,nãopodeentrardesupetão,temqueentrardecabeçabaixa,rezando”.Pode-seconsiderarqueofato de entrar na Opy seja parte de um ritual.

EssarelaçãoderespeitocondicionadapeladimensãodaportapodeseridentificadanoPadrão66,deChristopherAlexander (1977),queconsiderao gradativo ingresso através de acessos cada vez menores, onde o ambiente internoàhabitaçãopoderia ser considerado sagrado,por ter acesso restritoàfamília.Aportadahabitaçãoseriaopontodeacessomaisrestritodentroda comunidade, potencializado ainda mais no caso da Opy. Esse gradativo e restritoacessoaopátiodaOpy,eàprópriaedificação,confere-lheumsentidode respeito ao sagrado.

Um Mbyá-Guarani contou que antigamente as casas eram maiores (oga), podendoabrigarmuitaspessoasedemonstroucomasmãosoformatoemarcoda cobertura. Ao ser indagado sobre o domínio da técnica construtiva desse tipodehabitação,umavezquenãoexistenenhumacasagrandeconstruídaatualmente,eleriuedissequeosGuaranisabemcomosefaz,mesmoquenãoconstruam.Elesnãoconstroemporquenãoqueremeporquenãohámuitomaterial.

Costumes

Emrelaçãoaoscostumes,buscou-secompreenderousodahabitaçãotra- dicional,assimcomooshábitosquefazempartedaculturae,decertaforma,sãoviabilizadosporessaedificação.Amaioriadosentrevistadosmoraoujámorouem casa tradicional, de taquara ou de lona, como no caso dos acampamentos. Um Mbyá-Guarani do Tekoa Koenju disse que é bom morar na casa de taquara, “porque faz parte da cultura”. Nesse tekoa, desde o início da pesquisa, foram observadas famílias que tinham dois tipos de casa, uma tradicional e outra construídapeloProgramadeInclusãoIndígenadogovernodoRioGrandedoSul. Algumas famílias, porém, tinham somente casas de taquara.

A respeito da presença dos dois tipos de casa, um integrante daquela comunidadeexplicouquemantinhaumacasadepauapiquecomafinalidade

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de hospedar parentes que viessem visitá-lo. Outro Mbyá disse que as casas de taquara foram feitas antes das de madeira, mas continuam sendo usadas, principalmente quando chove.

A maioria dos entrevistados diz que prefere dormir na casa tradicional. O Opyguá (líder espiritual) diz que continua morando em casa tradicional porque nãoquerqueseusnetosseacostumemadormiremcasadejuruá(nãoíndio).Aspessoasidosas,quandotêmessafunçãodelíderespiritualourezadordentrodas comunidades, acabam sendo um exemplo para todos. Por isso a relevância de manter o costume de dormir na casa tradicional.

Figura 4 – Casas no Tekoá Koenju.

Relativamente aos hábitos que envolvem a casa tradicional, os entrevistados ressaltamqueafunçãodeabrigonoturnoéaquejustificaamaiorpermanênciaemseuinterior.Diariamente,asatividadessãorealizadasnopátioenosdemaisambientes do tekoa.Ascasasnãopossuembanheiro,eomatoéoambienteutilizadotradicionalmenteparaasnecessidadesfisiológicasdiárias.Dentrodacasa,amaioriadaspessoasdormenochão,maspodemserconstruídascamasutilizando, inclusive, a própria estrutura da casa. Segundo um Mbyá-Guarani que foi entrevistado junto com seu pai, um senhor de idade avançada, “os velhoséquedormemmelhornochão,paraesquentaropé,paranãoterfrio”.

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Alémdo fatode aspessoas se sentiremmelhorquandoestão abrigadasnacasa tradicional, os entrevistados colocaram que a melhor maneira de guardar as sementes de avaxi (milho tradicional) é conservando-as no interior dessa edificação,penduradasnotelhado,acimadofogo.

Um costume que faz parte da tradição cultural, que está relacionadoinclusiveàdemarcaçãoterritorialdecadafamília,éalimpezadiáriadopátioque circunda a casa. O pátio é configurado inicialmente, nomomento daconstruçãodacasa,massuadelimitaçãoéreafirmadadiariamente,quandoopátio é limpo com uma vassoura tradicional (typyxaũ), feita com galhos de um arbusto (nherumi).SobreasrazõesquelevamosMbyá-Guaraniamanteropátiolimpo,esclarecem:“minhamãesempredizquequandoagentelevanta,temos que varrer para o sol nos abençoar porque os Nhamandunãogostamdepátiosujo,porissoagentetemquelimpartodamanhã”.Schaden(1954)já mencionava o hábito de manterem a casa limpa, varrendo-a várias vezes ao dia com o tapyixá.

Existe uma constante vivência dos hábitos e tradições, mesmo comas mudanças decorrentes do contato interétnico. Observa-se, também, apreocupação emmanter os costumes através das novas gerações, que semostrammaisabertasàadaptaçãoeàapropriaçãodasnovidades.Issotambémpode ser observado nas mudanças ocorridas nas formas de morar. Um Mbyá coloca que, antigamente, o homem tinha mais responsabilidade e, quando jovem e ainda solteiro, já construía sua casa para quando fosse casar. Atualmente, porém,algunsfilhosadultosaindapermanecemvivendonamesmacasaqueospais,principalmenteasmulheres.Issosedevemuitoàdificuldadedeacessoàmatéria-primaparaconstruirnovascasas.

Em alguns casos, são construídas várias casas em ummesmo pátiofamiliar.Oprincípiodaocupação,geralmente,sedácomainstalaçãodeumacasa,e,comotempo,principalmentequandoosfilhossetornamindependentese têm suas próprias famílias,mais casas podem ser construídas nomesmopátio.

Proteção espiritual

Embora a proteção espiritual seja fundamental, não foi mencionadapelos entrevistados em geral, mas apenas por um deles, que é uma liderança reconhecida.Entende-sequeesseprocedimentotrazoresguardodasquestõesmaisprofundasdacultura,comoarelaçãocomosagrado.

De certa forma, a preocupação de que cada família tenha sua casatradicional é decorrente de diversos acontecimentos, como as mudanças climáticas, as intempéries e, atémesmo, as incompreensões entre pessoas.Ao conversar sobre as notícias atuais como guerras, furações,maremotos

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e toda espécie de infortúnios, mesmo que situadas em pontos longínquos do globo, surge a preocupação de ter um abrigo onde os deuses possam protegê-los.Ressaltamqueacasatradicionalécompostaporelementosquetêmapropriedadedeprotegeroespírito,comoocernedaguajuvira:“amadeirada casa tradicional é o cerne da guajuvira, porque protege o espírito. Alguns já nãotêmmato,entãofazemdeeucalipto,masdaínãoprotegeoespírito,nãoé a mesma coisa”.

AlgunsdosmateriaisutilizadospelosMbyá-Guaraninassuasconstruçõespossuemsignificadossimbólicosesãoencontradosemfragmentosdemitossignificativos, como oMito deCriação daTerra.Considera-se importanteidentificá-los, assim como ressaltar as dificuldades que existemno acessoa essesmateriais, poisdissodepende aviabilidadeda tradição construtiva.Devido ao difícil acesso aos materiais tradicionais, ocorrem mudanças, com apropriaçãodenovosmateriais(geralmenteindustrializados)eadaptaçãodastécnicas construtivas.

SegundooMitodeCriaçãodaTerra (compiladoporCadogan,1997),Nhande Ru (nosso pai, o criador) fez surgir da escuridão uma coluna demadeira indestrutível (yvyra ju’y), para apoiar nela a terra que estava criando. A imagem imperfeita dessa coluna que existe hoje na terra é aju’y mirĩ, o louro. Essa é considerada uma árvore especial que, assim como o cedro (ygary), deve serempregadapelosMbyánaconstruçãodesuascasas.Algumasárvoressãoconsideradasinadequadasparaaconstruçãoenãodevemserutilizadaspeloshomens.Umadessasárvoreséoipê(Tabebuia sp.).

A palmeira é um espécime vegetal especial para os Guarani, aparecendo nosmitoscomoumaequivalênciaàCasadeRezas(edificaçãocerimonial),queéumveículoparaatingiraperfeição(COSTA,1993).CostaeLadeira(1997)apresentam as folhas de pindó (coqueiro jerivá – Syagrus romanzoffiana) como o melhor material a ser utilizado na cobertura e o tronco para ser utilizado como madeira, mas por existirem poucos exemplares os Mbyá preferem manter essa árvore simbólica no Tekoá. As palmeiras também aparecem nos mitosreunidosporCadogan(1997)comoelementosdafundaçãodaprimeiraterra (Yvy Tenondé), isto é, como os apoios que seguram a morada terrena. Oautoresclarecequeasdireçõesemqueforamcriadasaspalmeiraseternascorrespondem aos pontos cardeais: a oriente, a morada de Karaí; a poente, a moradadeTupã;anorteenordeste,aorigemdosbonsventos;easul,aorigemdotempo-espaçooriginal.ArelaçãoentreamoradadosdeuseseotrajetodosolindicaaorientaçãoidealdashabitaçõesedaCasasdeRezas.

Um Mbyá-Guarani colocaqueacasatradicionaléumaproteçãoespi- ritual, por isso é importante que cada família tenha uma. Quando chovemuito,oucaigranizo,asfamíliasvãoparasuacasatradicionalesesentem

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protegidas.Quandoumacriançaficadoente,devesercuradanaCasadeRezaspelo Karaí.NaCasadeRezas sãocuradas todasasdoençasdoespírito.Aproteçãoespiritualexplica,emgrandeparte,apreferênciadosMbyápelacasatradicional, construída com os materiais orientados pelas divindades.

Morada de Tupã

Moradade Karaí

Bons ventos

Tempo-espaço originalSímbolo na cestaria representa “o começo do Universo”

(segundo Mbyá-Guarani do Tekoá Koenju)

ApartirdascolocaçõesdosMbyá-Guarani,compreende-sequeasáreasonde vivem precisa ter mata nativa, onde se desenvolvam naturalmente as espéciesutilizadas,tradicionalmente,naconstruçãoenosdemaissetoresquecompõeonhande rekó. Algumas comunidades possuem terras ambientalmen- te degradadas, outras possuem área muito reduzida. A proximidade com os centros urbanos é um agravante, pois é apreensível, pelas palavras dos Mbyá, que nessas áreas a presença dos recursos naturais é aquém do desejável.

O Fogo

A presença do fogo na cultura Guarani é imprescindível. Ainda que alguns Mbyá mais adaptados aos hábitos dos juruá (não índios) e àscasasdealvenariaoudemadeirapossamargumentarqueatualmenteofogojánãoestátãopresente,aobuscarinformaçõesnasraízesdacultura,juntoaosmaisvelhos, torna-se compreensível a importância subjetiva desse elemento no dia a dia das famílias. Um entrevistado coloca que o fogo estimula os diálogos: “esquentandoocoração”ofogoaproximaaspessoaseajudaapensar.

Essapresençaépermanenteepodeocasionarincompreensõesporpartedepessoasqueprestamassistênciaàscomunidades.Geralmenteessesjuruá

Figura5–AsquatrodireçõessegundooMitodeCriação.

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demonstrampreocupaçõesrelativasàsaúdedascrianças,poisestãoexpostasàfumaça e podem desenvolver problemas pulmonares. Realmente, no caso das barracas de lona, essa possibilidade parece mais próxima da realidade, porém, no casodashabitações construídas comosmateriais naturais e as técnicasadequadas, desenvolvidas e adaptadas ao uso do fogo através de um longo período (pode-se considerar séculos), essa possibilidade já é mais remota. Os próprios Mbyá reconhecem que em casas fechadas, com telhado inadequado comodelona,detelhasfrancesas,oudefibrocimento,nãoéaconselhávelousodofogo.Nessassituações,preservamasaúdedascriançasfazendoofogoem outro ambiente mais ventilado.

Ousodo fogoéumdoscondicionantesda formadahabitaçãoMbyátradicional,easuapresençaéconstante,especialmentenahabitaçãodoOpyguá(líder espiritual), que esclarece que o fogo permanece aceso, tanto no inverno quantonoverão.Masnãosãosomenteosmaisvelhosreconhecemovalordesseelemento dentro da casa tradicional. Os jovens também ressaltam as vantagens de a casa tradicional ser desenvolvida para uso do fogo, especialmente pelo aquecimento proporcionado no inverno: “na casa de taquara dá para fazer fogo dentro”,“dáparaficarpertodofogoesquentandotodanoite”.

O fogo também desempenha diversas funções, como o preparo dealimentoseaconfecçãodoartesanato.Mas,dentrodahabitação,osprincipaissãooaquecimentodoambienteeadiminuiçãodaumidadedoarnoinverno.Inclusive,considera-seque,assimcomoafuligem(picumã)ajudaaconservarassementesquedeverãosersemeadasnapróximaépocadecultivo,tambémfunciona comoumconservante natural dasfibras da cobertura, impedindoou retardando o desenvolvimento de micro-organismos decompositores da matéria orgânica.

Figura 6 – Lenha em brasa disposta radialmente, reanimada para cozinhar avaxi (milho).

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Contudo,oprincipalmotivopeloqualosMbyámantêmofogocomopartícipe dos acontecimentos diários é explicado pela fala de uma Mbyá-Guarani:“minhamãedissequeofogoécomonossamãe.Senãotemfogo,ficamostristes”.EssacolocaçãoéreforçadapeloOpyguá,queteceumdiscursosobre a importância do fogo:

Tatá nhande Guarani rekó – Deus fez o fogo para nós e o fogo é como a nossa mãe e nós temos que ficar perto do fogo sempre. Por exemplo, um Karaí pode rezar para Deus perto do fogo, pode queimar petyguá (cachimbo ritual) dentro de casa. Os brancos acham que para nós ficar perto do fogo faz mal, mas não é. A gente faz comida com o fogo, faz petyguá, a gente não pode viver sem o fogo. A fumaça não faz mal para o pulmão, porque sai da casa. O fogo é para toda vida – tatá nhande rekó re. (Opyguá do Tekoa Koenju).

Um Juruá (não índio, que trabalha com assistência às comunidades)entrevistadoconsideraqueosMbyátêmvergonhadocheirodefumaça,pelopreconceito que sofrem ao andar de ônibus e conviver com os “brancos”. Poressemotivo,certavezpediramumacasaondenãofariamfogo.Porém,acabaram percebendo que não conseguiam viver assim e arrancaram oassoalho de madeira, para poder fazer fogo dentro de casa. Considera-se que essasinformaçõessãodegrandevaliaparaacompreensãodarelaçãoentreo fogo e a cultura, podendo auxiliar no diálogo com os juruá que prestam assistênciaàscomunidades.Tambémpodemesclareceranecessidadedesseelementonoconvíviodiário,representadanãoapenasporsuafunção,masporseusignificadoafetivo.

* * *

Osignificadosimbólicodahabitaçãosóéatingidoquandoaconstruçãoseviabilizacomaparticipaçãodousuário,segundosuasrelaçõesdeparentescoeafinidade.Acoletadomaterialtambémtemsignificadosimbólicoeestabelecerelaçõesde trocae reciprocidade interna.Alémdisso,a técnicaconstrutivavariadeacordocomaregiãoemqueselocalizaacomunidadeeoacessoaosmateriais construtivos.

Visão de sustentabilidade Mbyá-Guarani e continuidade da tradição construtiva

Por meio das manifestações dos Mbyá durante as entrevistas, com- preende-sequesuacosmologiaorientaocomportamento,definindooqueésustentabilidadeeospadrõesderespeitoeconvíviocomoplanetaecomosseres quedele fazemparte.OsMbyá-Guarani possuemuma forte tradição

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espiritual,queguiasuasações,seucomportamento.SenacomunidadeexisteaCasa de Rezas e o Karaí ou Opyguá (rezador, curador, líder espiritual), existe a força para viver do modo Guarani (nhande rekó).

Outra importante colocação é a necessidadede liberdade e respeito atodos os seres vivos. Para os Mbyá essa liberdade é tolhida, no momento emqueserestringemaspossibilidadesdecirculaçãoeacessoànatureza.Oconvívio com os juruá e apressãoespacialos conduzànecessidadede semanifestarem a favor do reconhecimento de locais onde possam viver com tranquilidade, que lhes permitam uma sustentabilidade integral.

A tradição cultural dosMbyá-Guarani ensina, pela sua relação comanatureza, um caminho para a sustentabilidade vivenciado nas práticas religiosas. Elespossuemaconsciênciadeintegraçãoeunicidadecomoplaneta,princípioquegaranteacontinuidadedavida.Énecessárioorespeitoaosvaloresculturaisqueorientamaculturacomoumtodo.Éimportantequeosnãoíndiossejamcapazesdecompreenderessarelaçãotãoíntima,cuidadosaeintegralqueosMbyámantêmcomoplaneta,poisépormeiodesserespeito,vividodiariamente,que eles demonstram como é possível caminhar macio sobre a Terra.

Asconstruçõestradicionaisrepresentamumabrigodosdeuses,ondeexistegrandeproteção,representando,dessaforma,melhorqualidadedevida.Acasaéresultantedoambienteemqueseinsere,atravésdatraduçãoculturaldomododeestarnesteambiente:suamaterializaçãoédecorrentedosmateriaislocais,trabalhados segundo as técnicas que dominam os construtores, que unem forças paraviabilizá-la,atendendopreceitosculturaisquefortalecemastradições.

Se a sustentabilidade, segundo as falas dos Mbyá, está apoiada na cultura, na cosmologia, na força espiritual que os orienta, conclui-se que a casa também tem seu papel na continuidade do modo de vida Mbyá-Guarani (nhande rekó). Acasarepresentaabrigoeproteção,nãosomenteparaosMbyá-Guarani,maspara os demais seres humanos. Contudo, o papel da casa tradicional é muito significativo,porrepresentaraexpressãoconcretadeseusmitosecrenças.

Indaga-sesobreaspossibilidadesdecontinuidadedessepadrãoconstrutivo,umavezque,atualmente,váriosaspectosdaculturavêmsetornandofrágeispelafaltadeacessoaomeioquelhesviabilizem.Amaiordificuldadeparaacontinuidadedasconstruçõesautóctoneséoacessoaosmateriaisconstrutivostradicionais e simbólicos,devidoàdegradaçãoambientaldas áreas, ao seutamanho reduzido e a suas características ambientais inadequadas.

Pode-seconsiderarqueumaalternativaparaasdificuldadesrelacionadasàcontinuidadedasconstruçõesautóctoneséabuscapelaetno-sustentabilidade,em que a comunidade direciona esforços ao desenvolvimento dos fatores que possibilitemaindependênciadasintervençõesexternas,sendocapazdegerirseus próprios recursos.

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Foramidentificadasalgumasmedidasorientadasnessesentido,relacio- nadasàcontinuidadedasconstruçõesautóctonesemmédioelongoprazo:

a) fomentodaautonomiadosGuaranipormeiodereuniõesinternasdarede de comunidades;

b) reconhecimento e valorização do saber construtivo (melhoria da autoestima), fortalecendo as comunidades e incentivando a conti- nuidadeatravésdasgerações;

c) identificaçãoedemarcação,ouaquisiçãodeáreascommatanativa;d) recuperação ambiental (regeneração) de áreas ambientalmente de-

gradadas;e) mudanças legislativas que permitam o acesso e a coleta em matas

nativas particulares e públicas.Portanto, ressalta-se a necessidade de reconhecimento, valorização e

respeito à diversidade cultural. Sob esse enfoque, destaca-se a necessidadede ações que fomentem a etno-sustentabilidade, por meio da autonomia,valorizaçãodosaberconstrutivo,viabilizaçãodoacessoàsmatas,recuperaçãoambientaldasterrasemquevivemelegislaçãoadequadaàsespecificidadesculturais.Orespeitoàdiversidadeculturalseapresentacomoocaminhoparaamanutençãodacasa tradicional,assimcomodonhande rekó Guarani, do qual faz parte.

Referências

ALEXANDER, C. A pattern language: towns, buildings, construction. Oxford: Oxford University Press, 1977. CADOGAN, L. Ayvu Rapyta: textos míticos de los Mbyá-Guaraní del Guairá. Asunción: BibliotecaParaguayadeAntropología/FundaciónLeónCadogan/CEADUC-CEPAG,1997.CAMPREGHER, I. Situação das comunidades indígenas no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: CEPI/DECID/STCAS,ago.2003.CHAMORRO, G. Os Guarani: sua trajetória e seu modo de ser. Cadernos Comin,SãoLeopol- do: Comin, n. 8, 30 p., ago. 1999. CLASTRES, H. Terra sem mal:oprofetismotupi-guarani.SãoPaulo:Brasiliense,1978.COSTA, C. R. Z. O desenho cultural da arquitetura guarani. In: Pós – Revista do Programa de Pós-GraduaçãoemArquiteturaeUrbanismodaFAUUSP,SãoPaulo,n.4,p.113-130,dez.1993.COSTA, C. R. Z.; LADEIRA, M. I. Guarani (Argentina; Bolívia; Brazil; Paraguay; Uruguay). In: OLIVER, P. Encyclopedia of Vernacular Architecture of the World. Cambridge: University Press, 1997. v. 3. p. 1692-1693. . SCHADEN, E. Aspectos fundamentais da cultura Guarani.SãoPaulo:DifusãoEuropéiadoLivro, 1954.ZANIN, N. Z. Abrigo na natureza:construçãoMbyá-Guarani,sustentabilidadeeintervençõesexternas. Dissertação deMestrado. Escola de Engenharia. PortoAlegre: PPGEC/UFRGS,2006.

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14 A casa de xaxim dos Mbyá-Guarani na mata atlântica do Rio Grande do Sul:

Tekoá nhüu porãLetícia Thurmann Prudente

AcasadexaximdosMbyá-GuaraninaMataAtlânticaéumaconstruçãoautóctone existente no Rio Grande do Sul, no Tekoá Nhüu Porã, que na Língua Guarani significa“aldeiadocampobonito”.EssaéamaiorTerra Indígena(categoria jurídica) do Estado, entre as trinta comunidades existentes atualmente, conquistada e homologada em abril de 2001, com um total de 2.266,52 hectares. Está localizada no litoral norte, entre os municípios de Maquiné, Riozinho e Caraá, possuindo uma riqueza de recursos naturais devido ao fato de pertencer ao zoneamento da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica – bioma natural que seencontracomapenas7,3%desuacoberturaflorestaloriginaleaindasofreas pressões dosmodelos de desenvolvimentos atuais (FREITAS, 2004).AregiãodeabrangênciadaMataAtlânticaéjustamenteondeosMbyá-Guaraniencontram ecossistemas adequados para a continuidade cultural e corresponde àmesmadoterritóriogeográficoreferidoporelescomo“TerritórioGuarani”ou Mbyá Reta. Esse amplo território abrange partes da Argentina, Paraguai, Uruguai e Brasil. Atualmente, buscam fundar suas aldeias – chamadas de Tekoá – comopontosestratégicosevitaisdesuaorganizaçãosociocultural,formandoredes de alianças geográficas caracterizadas pelamobilização e itinerânciapermanentedepessoas,trocadesementes,fluxodeanimaiseintercâmbiodetécnicas, objetos e conhecimentos (FREITAS, 2008; LADEIRA e MATTA, 2004).

Nesse contexto, no Tekoá Nhüu Porã, foram construídas diversas casas com o uso do xaxim como material de fechamento das paredes, diferentemente dasoutrascasasconstruídasporelesnasdemaiscomunidadesdoRS,quesãofeitascommadeiracobertasdebarro(técnicasdepauapiqueetaipademão).Ohistóricoconstrutivodatipologiaarquitetônicadacasadexaximvemdaregiãofronteiriça de Missiones/Argentina,ondetambémháessetipodecasaedeondevieramalgunsMbyá-Guarani, trazendoinformaçõeseexperiênciastécnicaspara esse Tekoá. Este trabalho visa descrever essa tipologia construtiva, a partir de características arquitetônicas técnicas e simbólicas, dentro de um ambiente propícioparaacontinuidadedessesaberautóctone.Serãodescritosaspectosarquitetônicos da casa de xaxim, bem como algumas características sobre o contextodesuainserçãoreferentesàarquiteturadaaldeia,considerando-se

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tantocomponentesfísico-espaciaiscomosocioculturais.Essaéumasituaçãosingular no Estado, pois a maioria das comunidades Mbyá-Guarani carece de recursos naturais adequados para a reproduçãode sua culturamaterial.Cabecitarqueessasinformaçõesfazempartedapesquisademestradofeitaentreosanosde2005e2007,noProgramadePós-GraduaçãoemEngenhariaCivil da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na linha de pesquisa em EdificaçõeseComunidadesSustentáveis.

A arquitetura da aldeia

A arquitetura da aldeia representa a expressão física da organizaçãosociocultural dos Mbyá-Guarani no espaço da comunidade. A sua forma de organizaçãonoespaçomostraumpadrãodedesenhodesenvolvidosegundopreceitos culturais importantes, no sentido de possibilitar a continuidade do seu “modo de ser”, chamado nhande rekó. A paisagem existente na aldeia é refletidanacasa,poisosmateriaisconstrutivossãotodosespéciesvegetaisdosecossistemas onde buscam viver, como representado na Figura 1.

Figura 1 – Tekoá Nhüu Porã por José Verá Rodrigues (ASSECAN, 2007).

A casa desenhada no centro representa a própria aldeia, segundo a perspectiva do líder espiritual (Karaí ) do Tekoá Nhüu Porá, autor do desenho. Na Figura 1, há elementos simbólicos fundamentais na cosmologia dos Mbyá-

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Guarani, tal como o cedro (espécie arbórea) que sai de dentro da casa, sendo associadoaosmitosdecriaçãodomundoepreferidoparaousonasestruturasdasconstruções(CADOGAN,2003).Aaraucária,àesquerda,eoxaxim,àdireita,simbolizamaabundânciadessasespéciesnosecossistemasflorestaisda Mata Atlântica. Além disso, o desenho também mostra a diversidade de águas (banhados, áreas alagadiças, cachoeiras etc.) que é a característica desse ambiente.

A aldeia é organizada segundo núcleos familiares que reúnem, nor- malmente, uma família nuclear (pai,mãe, filhos e parentes diretos – avósenetos) eosfilhoscasados.Háa liderançapolíticadocacique,que temopapelderepresentanteexternoàcomunidade,ealiderançareligiosadoKaraí, que temo papel de conexão entre omundo espiritual e omundo físico.Espacialmente,aaldeiaécomposta,basicamente,portrêsgrandesáreas:áreasde casas (oga), áreas de roça (kocuë), que formam os núcleos familiares, e áreas de mata (ka-aguy),quesãooslugaressagradosdaflorestaondecoletamas espécies utilizadas com vários conhecimentos de manejo ambiental apropriados (FREITAS, 2004). Buscam localizar esses núcleos em pequenas clareiras dentro das áreas de mata, onde há solos férteis e clima apropria- do ao plantio de espécies importantes culturalmente, como o milho sagrado (avaxí ete).

A Figura 2 apresenta um desenho esquemático de uma aldeia Mbyá-GuaraniemcomparaçãoaumaaldeiaBororo–povoindígenadeoutrotroncolinguístico(TroncoJê),aopassoqueosMbyá-GuaranisãodoTroncoTupi-Guarani.

Figura2–PadrõesdedesenhodeumaaldeiaMbyá-GuaraniedeumaaldeiaBororo.

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Segundo aFigura 2, a distribuição dos núcleos familiares dosMbyá-Guarani forma umdesenho orgânico e flexível, interligados por pequenoscaminhosmarcadosnasáreasdemata(espaçonegro),oquegeraumpadrãocelular.Assim,mesmoque umadas “células” não existamais, o desenhogeraldacomunidadenãosedesconfigura,diferentementedooutrodesenhoapresentadoque representaumpadrão circular.Esse é compostopor casasigualmentelocalizadasemrelaçãoaummesmocentro,criando,assim,umaconfiguraçãomaisrígidaemrelaçãoàperdadeumaououtracasa.Ocentroda aldeia dos Bororo é a casa dos homens, que cria uma centralidade espacial bemdefinida,aopassoqueacentralidadeparaosMbyá-Guaraniestávinculadaàcasadereza.Essacasapodeestaremqualquerumdosnúcleosfamiliares,adequando-seàmobilidadetradicionaldosMbyá-Guarani.

No caso do Tekoá Nhüu Porã, o desenho da aldeia é um pouco diferente, pois já era um local com estruturas preexistentes que foram incorporadas, de certa forma, na distribuição dos núcleos familiares. Foi utilizada umaestradaexistente,ondeestãolocalizadoslinearmenteosseisnúcleosexistentesatualmente. Porém, seguem sendo espaços independentes, voltados para si e com pequenos caminhos que os interligam. A Figura 3 apresenta um recorte da área habitacional que corresponde a 10% da área total.

Figura3–Distribuiçãodosnúcleosfamiliares.Fonte: Desenho sobre Google Earth (2007).

Onúcleodenúmero“1”marcadonaFigura3pertenceàfamíliadocacique,eodenúmero“6”,àfamíliadoKaraí(líderespiritual).Emcadanúcleo,há

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cerca de três casas que são utilizadas ou estão semuso, temporariamente,segundoamobilidadefamiliar.Alémdisso,oacessoàaldeiaocorredecarropelonúcleodocacique,nocasopelosnãoíndios,epelonúcleodoKaraí,poronde os indígenas chegam de trilhas das encostas de morros a pé.

A arquitetura da casa

A casa para as culturas indígenas é considerada um elemento vivo que possui ciclosdevidaemorte, associadosàs suasnecessidadesculturais.Aarquitetura da casa expressa essas necessidades através da forma, tecnologia, materiais e processos construtivos, dentro dos contextos em que está inserida, que nem sempre é o preferido pelos Mbyá-Guarani.

Ascasasconstruídastradicionalmenteporelessãochamadasde“casastradicionais” e representam uma arquitetura contemporânea, atualmente possíveldesermaterializadaemalgumasáreasindígenas.Essascasassãooresultado de um momento histórico que incorpora elementos estratégicos para a continuidade da memória viva sobre a cultura material desse povo no RS. A Figura 4 apresenta uma das casas de xaxim do Tekoá Nhüu Porã e uma das casas de barro do Tekoá Pindoty, emCamaquã/RS.

Figura4–CasasnosTekoáNhüuPorãeTekoáPindoty(Fotos: Daniele Pires).

A casa de xaxim se diferencia em parte das casas encontradas nas demais aldeiasdoEstado.Alémdousodoxaxim,suaformaedimensãosãoumpoucodistintas,mas os demais aspectos são basicamente osmesmos, tais comoimplantação,orientaçãosolar,conforto,usos,durabilidade,conforto,espaços,materiais, tecnologia e processo construtivo. Segundo um olhar histórico, a trajetória da casa dos Mbyá-Guarani vem da “casa grande” dos Tupi-Guarani, queeraumaúnicahabitaçãoconstruídaparaabrigardezenasdefamíliasou

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centenas de pessoas, pois todos da comunidade viviam nela (WEIMER, 2005; RAPOPORT, 1974; SOUZA, 2002). A Figura 5 apresenta croquis esquemáticos dosperfisconstrutivosdessacasaedasconstruídashojepelosMbyá-Guarani,mostrando algumas mudanças formais.

Figura5–PerfisdacasaTupi-GuaraniedascasasMbyá-Guaranihoje.

As casas grandes, chamadas de maloca ou maioca, podiam chegar a aproximadamente200por12metros,enquantoascasasconstruídashojesãocercade4por5metros.Atualmente,ascasasconstruídassãochamadasdeogapelosMbyá-Guarani,queeraamesmadenominaçãodadaacadaespaçohabitado por uma família. Além disso, algumas mudanças formais ocorreram, comoadiferenciaçãoentreoselementosdecoberturaedeparede,queantescompreendiam um mesmo componente e passaram a ser diferenciados após o contato interétnico, em meados do século XX (PORTOCARRERO, 2001). A exemplo, como se pode ver na Figura 5, a casa grande possuía amplos ângulos de envergamento que formavam um único componente de cobertura-parede, eissoerapossíveldevidoaoacessoàsespéciesarbóreasmaioresutilizadasna época. Apesar dessas mudanças, as tecnologias e os materiais construtivos seguemosmesmos:umagamadeespéciesvegetaiseumainfinidadedetramascomfibrasnaturais.

A tipologia da casa de xaxim do Tekoá Nhûu Porã é um exemplo de uma casatradicionalmenteconstruída,nocasopelosMbyá-Guarani.Écaracterizadaporaspectosdeumatipologiaarquiteturaespecífica,segundoosconhecimentostécnicos associados a valores simbólico-culturais desse povo indígena, que serãodescritosaseguir.

Implantação e orientação solar

A implantação depende do tipo de solo propício para os cultivostradicionais, principalmente o milho sagrado (avaxi eté), pois antes de

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escolheremalocalizaçãodacasa,elesescolhemalocalizaçãodaroça.Depoisdisso,aorientaçãosolaréfundamental,poisosol–chamadoNhamandú – é a divindade cosmológica principal. O percurso do sol ocorre a partir das moradas deoutrastrêsdivindades,asquaisestãorelacionadasatrêsorientaçõessolares,como mostra a Figura 6.

Na perspectiva dos Mbyá-Guarani, a casa é alimentada e protegida pelo sol. Essa divindade se relaciona com a casa a partir de uma pequena porta de acesso,queéaúnicaaberturaparaoexterior.Aportatemdimensõesmínimas(cerca de 1,60 de altura por 0,60 m de largura), para que a pessoa se abaixe ao entrar, reverenciando o espaço interno da casa, considerado sagrado, o que gera uma postura humilde e respeitosa para com o local.

Conforto ambiental

Oconfortoambientalestádiretamenteassociadoàstécnicasdesenvolvidasparaacasa,segundoasnecessidadeseospadrõesdeseususuários,considerando-seasomadeaspectossobreiluminaçãoeventilação.ParaosMbyá-Guarani,hánecessidades imateriais que produzem um conforto subjetivo, como o caso da importânciadofogoacesoduranteodiaeanoite,sendorelacionadoàproteçãoespiritual da casa e das pessoas. Além disso, o fogo tem um papel funcional fundamentalnoconjuntodecondicionamentotérmico.Asorientaçõessolaresdescritas anteriormente contribuem também para o condicionamento térmico eparaaproteçãodosmateriaisconstrutivos,poisaposiçãolesteouoestedaporta (moradas das divindades), faz com que a cobertura tenha suas faces protegidasanorte–direçãodemaiorincidênciadosol–easul–direçãodosventos frios.

Figura 6 – Percurso do sol passandopelasorientações leste(Karaí),zênite(Jakairá) eoeste(Tupã).

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Aventilaçãointernadacasaocorreemfunçãodatecnologiaedosmateriaisconstrutivos da cobertura de taquara, conjuntamente com a porta de acesso e fogo. O ar entra pela porta, se aquece com o fogo, sobe por diferença de pressãoesaiatravésdasfibrasdacoberturaquesãotaquarasbatidas.SegundoosMbyá-Guarani,atemperaturadacasaéconstantenoinvernoenoverão,principalmentedevidoàlargaespessuradasparedesdexaxim–emtornode25 cm – associada ao fogo sempre acesso, bem como ao uso constante da casa pelaspessoasque também influenciamnoprocessodegeraçãodecalor.Ocalordofogotambémpropiciaareduçãodaumidadedoarinternoe,ainda,repele insetos e micro-organismos decompositores de matéria orgânica.

Ailuminaçãonaturalaconteceatravésdaportae, indiretamente,pelasfrestasdacoberturadetaquaraduranteodia.Ailuminaçãonoturnaémínima,proveniente apenas do fogo no centro dentro da casa, mas essa quantidade de luz é satisfatória para as necessidades dos Mbyá-Guarani, pois eles consideram a penumbra importante para atenuar seus sentidos perceptivos e possibilitar o contato com o mundo dos espíritos.

Espaços interno e externo

Oespaço internoeoexternoacasa sãosuficientesparaasatividadesdiárias dosMbyá-Guarani, pois um é basicamente a extensão do outro.Amaioria das atividades ocorre fora de casa, no espaço externo imediato do seu entorno, que muitas vezes compreende um pátio coletivo entre familiares. Usam a casa para dormir, como chamam a porta: okê (dormir), ou seja, a casa é basicamente um dormitório. Assim, utilizam-na para descansar, cozinhar alguns alimentos e se proteger no inverno.

O espaço interno é pequeno, há poucos mobiliários, sendo estruturas altas do solo que servem como camas (nhimbé),armáriose/ouassentos,osquais se situam em torno do elemento principal: o fogo (tatá). Esse é parte do mobiliário da casa, por assim dizer, dada a sua importância. Próximos ao fogo ficampequenosbancos tradicionais (apyká),quemuitasvezes têmformatozoomórfico,comsimbologiasmíticas(COSTA,1989).Ospoucospertencesealimentossãopenduradosemcestosartesanais.Oforrodacasaénegrodevidoàconstantefumaçadofogo.Opisodacasaéoprópriosololocalcompactado,sendo mais elevado que a área externa, a qual é separada da casa por uma drenagem pluvial de escoamento da água da chuva. O contato direto com a terra é fundamental para esse povo, que anda com os pés descalços no inverno enoverão.Noespaçoexternosãotambémconstruídasestruturasaltas(yguaté) que têmpapeldemesaearmáriodeapoioparaoresguardodealimentosemrelaçãoaanimais(verFigura7).Tambémfazemfogoexternoparaopreparoe cozimentodealimentos.Entreasatividadesdiáriasforadacasa,estãoacriação

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de pequenos animais domesticados, o cultivo de alimentos em roças e a con- fecçãodeartesanato–atividadefundamentalàmemóriaculturaldessepovo.

Forma e proporções

Aformaeasproporçõesdacasaestãorepresentadasatravésdedesenhosarquitetônicos de plantas, cortes e fachadas, apresentados na Figura 7, com denominaçõesemGuaranidestacadasemparênteses.

Figura 7 – Plantas, cortes e fachadas da casa de xaxim.

Como se pode ver na Figura 7, a área da base é retangular e pequena, variando de acordo com o número de pessoas que irá morar, tendo em torno de20m²(4m×5m).Oespaçointernoébaixo,adequadoàpequenaestatura

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dos Mbyá-Guarani, com alturas aproximadas de 3,0 m no centro e 1,5 m nas laterais.Essasdiferençasdealturasproporcionamumainclinaçãoacentuadada cobertura (cerca de 40%), gerando um desenho que protege os materiais construtivosdacoberturaedasparedes,emfunçãodorápidoescoamentodaágua da chuva e de seu prolongamento quase até o solo.

Materiais construtivos

OsmateriaisconstrutivossãoespéciesvegetaistípicasdoBiomaMataAtlântica,especialmentedaFlorestaOmbrófilaDensa(MataAtlântica,stricto senso) e algumas sãoconsideradas sagradas, sendo tambémutilizadasparadiversosfins,comoartesanato,medicina,xamanismoealimentação(FREITAS,2004).Asespécies significativas encontradasnascasasdexaximdoTekoá Nhüu Porã foram as seguintes espécies:

a) cedro ou yary (Cedrela fissilis): espécie arbórea preferida como elemento estrutural de pilares e vigas da construção, que estáassociadaaosmitosdecriaçãoe sustentaçãodomundo,deacordocom a cosmologia desse povo;

b) samambaiaçu ou xaxim (Dicksonia selowiana): espécie de samambaia utilizada como paredes, sendo seu tronco cortado;

c) taquara-mansa ou takua eteí (Merostachys clausenii): espécie de taquara utilizada como cobertura, na forma de feixes de taquara macerados, relacionada a um mito Guarani sobre uma heroína divinizada chamada Takuá Vera Chy Ete (CADOGAN, 2003);

d) cipó ou yxypó:denominaçãogenéricaparaumagamadeespéciesdecipósutilizadosnasamarraçõesdetodososelementosconstrutivos.

Há espécies proibidas de serem coletadas, atualmente, por estarem em fasedeextinção,assimcomooxaximealgumasespéciesdecipós,masosindígenastêmodireitodousodessasespécies,atravésdoEstatutodoÍndio,o qual permite o uso exclusivo por eles dos recursos naturais existentes em suasterras,segundocostumesetradiçõesculturais,desdequeutilizadosparaseubenefícioenãoparafinseconômicosecomerciais(BRASIL,2006).Alémdisso,osMbyá-Guaranitêmosconhecimentossobreomanejoambientaldasespécies que utilizam (LADEIRA e MATTA, 2004).

Tecnologia construtiva

A tecnologia construtiva compreende técnicas apropriadas aos ambientes naturais e sociais dos Tekoá. Além de serem aplicadas com os materiais naturais existentesnosambientesemquevivem,sãotécnicasquedemandamprocessoscoletivosdeconstruçãoe,assim,reforçamosritossociaisdosistemacultural

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dos Mbyá-Guarani. Eles dominam os sistemas construtivos de estrutura, paredes,cobertura,amarraçõesepiso,queestãodenominadosdeacordocomalgumas informações técnicasdecampoepesquisasanteriores.AFigura8mostraalgunsdessessistemas,osquaisserãodescritosaseguir:

Figura 8 – Cobertura de taquara e paredes de xaxim.

a) Estrutura de madeira ou Oó ita:significa“estruturadacasacomoum todo” e consiste em um sistema independente de vigas e pilares em madeira roliça. Utilizam espécies arbóreas como elementos principais, criando ou aproveitando as forquilhas naturais (ver Figura 8). Também empregam algumas espécies de taquaras como elementos secundários de vigas de apoio e ripas de cobertura;

b) Cobertura de taquara batida ou Takuá oje kava´ekue: traduzida como “telhas de taquara”, são folhas de taquara batidas, as quaissãocolhidas,cortadas,abertasemaceradaspararompersuasfibras,tornando-se semelhante a um feixe de palha (ZANIN, 2006). Colocam essas folhas, ou telhas, sobrepostas em diversas camadas, criando uma espessura adequada a uma maior durabilidade da cobertura;

c) Parede de feto a pique ou Oó korá:denominaçãoparaasparedesda casa, que são de xaximou samambaiaçu, o qual é classificadocomo um “feto arborescente” (FERREIRA, 2004, p. 2083). Essa denominação faz referência à técnicadopau apique, que consisteemtroncosougalhosdemadeirafincadosouapoiadosnochão,mascomooxaximnãoéumpau,atécnicafoidenominadafetoapique(WEIMER, 2005). Cortam os xaxins ao meio, no sentido longitudinal, e os colocam no sentido vertical, um ao lado do outro, intercalando suas bases inversamente para cima e para baixo (ver Figura 8);

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d) Amarração em cipó ou Ojo kuaá: técnica fundamental que tem a funçãodeestabilidadeefixação,comduasformasdeamarração:porenlaçamento e por encaixe (COSTA & MALHANO apud ZANIN, 2006).Algumaspeçassãotalhadasparaseremencaixadasedepoisamarradas, gerando, assim, uma maior segurança e durabilidade. Costumam usar um mesmo cipó, formando uma espécie de trama entre os elementos construtivos da estrutura, da cobertura e das pa- redes;

e) Piso de chão batido ou yvyñapyroã:significa“ochãoquenóspisamos”,tantoopiso internodacasacomooexterno.Éo solocompactadoe limpo diariamente com uma vassoura tradicional (typyxaú). Esse manejoconsisteemempurraraterraemdireçãoàsparedesexternaseinternasdacasa,aumentando,dessaforma,aeficiênciadavedaçãonapartedabasedacasa.Opisointernoédefinidoduranteaexecuçãodacasa,sendoaterraescavadadosburacosdefundaçãojogadaparao espaço interior da obra e devidamente apiloada, sendo contido pelas paredes de xaxim.

Assim, as técnicas construtivas empregadas pelos Mbyá-Guarani se caracterizam pela criatividade no uso e no emprego das espécies vegetais comomateriaisconstrutivos,poissãosoluçõestecnológicasqueprimampelasimplicidade e adaptabilidade aos ambientes em que vivem, bem como pelo usodosrecursosdequedispõem.

Processo construtivo

O processo construtivo dos Mbyá-Guarani é um método coletivo de trabalho, denominado em Guarani como potirõ e traduzido para a Língua Portuguesacomomutirãoouaçãomútua.Esseéumprocessofundamentalpara esse povo, pois a maioria de suas atividades ocorre de forma coletiva. Segundo a perspectiva Mbyá-Guarani, o potirõ está relacionado a um evento celebrativo, sendo um ritual coletivo tradicional para certa atividade. No caso de um potirõparaaconstrução,éafamíliaqueiráhabitaracasaquepromove,organizandoalimentaçãoeestadiaparaaspessoasque,eventualmente,chegamdeoutrasaldeias.Éumprocessocentralizadonas relaçõesdeparentescoereciprocidadeentrefamíliase,assim,sãooportunidadesdeencontrosetrocadeinformações,não,necessariamente,sobreaconstruçãoemsi.

As divisões de gênero ocorrem da seguinte forma: as mulheres sãoresponsáveispelaalimentação,enquantooshomenstrabalhamnaobraeascriançasajudamcomoformadebrincadeiraeaprendizado.Háaorientaçãodeespecialistasemconstruçãoparaguiaremoprocesso,chamadosdeoga requa

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oi kua a pava´e,queseriaoarquiteto,poisatraduçãoé“quemsabetudosobrea casa”, e também o ogapuá, ou oó poá, que é quem tem o dom para construir. Normalmente,duranteummutirãodeconstrução,oespecialistaéumapessoademaioridadequejátemprática,poisosmaisvelhossãoconsideradossábios.No caso do Tekoá Nhüu Porã, osespecialistassãoocaciqueAvelinoKuarayeoKaraíJoséVerá,sendoqueamboscontamsuasexperiênciascomconstruçãode casa usando o xaxim.

As etapas desse processo construtivo compreendem passos prévios de localização, preparação do terreno e preparação dosmateriais a seremutilizados. Posteriormente, são desenvolvidas as etapas de obra: fundação,estrutura, paredes, cobertura e piso. A cobertura pode ser feita antes ou depois das paredes, por se tratar de um sistema independente de vigas e pilares. Na Figura 9, pode-se visualizar essa estrutura, bem como a cobertura de taquara batidaeacolocaçãodosxaxinscomoparedes.

Figura9–Montagemdacoberturaedasvedaçõeslaterais. Fotos: Paulo Roberto de Fernandes (1999) e Lauren Rochell (2008).

Oritmoeotempodoprocessoconstrutivocoletivosãorelativos,poisdependem do número de pessoas envolvidas e dos ritos durante o potirõ (mutirão).Aqualidadeda construção está associada à sincronicidade entreos envolvidos e pelo chamado às divindades, que, na perspectivaMbyá-Guarani, também participam. O encerramento desse processo ocorre com a comemoraçãoentretodososenvolvidos,comrituaisdeinícionanovamorada,sendomomentosde celebraçõesdentro da casa para que todas as espéciesvegetais utilizadas somem energia e “criem um único espírito”. Assim, a nova morada pode seguir alimentada diariamente com o fogo no seu interior que nunca pode apagar.

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Durabilidade

A durabilidade da casas depende do tempo que a família necessita para sefixaremummesmolocal,vistoqueosMbyá-Guaranisãocaracterizadospela constante mobilidade cultural. Utilizam a casa até o momento do novo deslocamento, seja para outro local dentro da aldeia ou para outra aldeia. Assim, algumas casasficam semusopor determinado tempo, podendo serreutilizadasporoutrasfamíliase,nessesentido,essatipologiaéadequadaàsua frequente reconstrução.Aestruturadacasacostumadurarmaisqueosdemais materiais de parede e de cobertura, o que gera a necessidade de ciclos dereparos,osquaisinduzemosprocessosconstrutivoscoletivos(mutirãooupotirõ) que fazem parte dos ritos culturais.

OtempodepermanêncianosTekoá está associado ao uso dos espaços externos, principalmente ao tipo de solo e período produtivo do cultivo do milho tradicional (avaxí eteí).Os espaços necessários a esses cultivos sãorotativos, sendo aproveitadas ao máximo as áreas próximas a casa, em um período que varia entre 5 a 6 anos, dependendo do solo e do clima (FELIPIM, 2001). Nesse sentido, o aspecto temporal e cíclico de cultivo condiciona a durabilidade da casa e, por conseguinte, a qualidade dos materiais construtivos. Assim, a qualidade e o acabamento das casas é melhor se as características doambientesãoadequadasàproduçãodeseuscultivos,adequando-seacasaaosperíodoseritmosemquesedãoosdeslocamentostradicionaisdosMbyá-Guarani.

O papel dessa arquitetura

A casa de xaxim é compatível com a dinâmica de itinerância dos Mbyá-Guarani, respondendo às suas necessidades socioculturais, em relação àmobilidadenos locais onde a constroeme ao temponecessário defixaçãoem um mesmo espaço. Durante o processo construtivo da casa, seja na coleta demateriaisespecíficos,nossistemasconstrutivos,naforma,nalocalização,no seu uso e desuso, entre outros, os Mbyá-Guarani seguem apropriados de todososaspectosqueenglobamareproduçãodesuashabitações.Assim,omodo de construir fortalece e é extremamente importante para o modo de ser Mbyá-Guarani, denominados por eles como nhande rekó. A continuidade da arquitetura tradicionalmente desenvolvida por esse povo é necessária para o fortalecimento, o respeito e o reconhecimento tecnológico desse povo indígena perante a sociedade envolvente.

Essa arquitetura contribui para a construção e a reconstrução dosTekoá, segundo uma visão demundo que compreende “transitorialidade”e “imperfeição”. Tais conceitos vêm sendo parte de discussões sobre

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sustentabilidade,poisorespeitodemonstradopelosMbyá-Guaraniemrelaçãoaos ambientes em que vivem, bem como aos recursos existentes e processos desenvolvidos em suas construções, pode servir de referência a questõesecológicas, sociais, econômicas, culturais, entre outras. Ainda há muito para se pesquisar e aprender com esse povo, que se encontra cada vez mais receptivo à troca de informações técnicas sobre sua cultura material, fomentandodiscussõesinterdisciplinares.

Referências

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V MEIO AMBIENTE

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15 Ser Guarani, ser ambiente

Rosemary Modernel Madeira

Este artigo é resultante da pesquisa realizada durante os anos de 2003 a 2005 e do convívio com a etnia Mbya-Guarani das aldeias Jata’y ty (localizada nomunicípiodeViamão,nalocalidadedoCantagalo),daaldeiaGuapoyPorã(nomunicípiodeTorres)edevisitasocasionaisàsaldeiasdaCoxilhaBonitaem Guaíba, Tekoá Pindó MirĩdeItapuãemViamão,edaLombadoPinheiroem Porto Alegre.

Para melhor organizar o texto, dividi-o em quatro tópicos. O primeiro delestratadedizerquemsãoosGuaranicomosquaisconvivemospelasruasdascidadesdesteestadodaFederaçãoecomovivemnoencolhimentodasmatas seculares nas quais seus antepassados faziam seu andar. O segundo tratadoconviver,dasfestas,daorganizaçãotribal.Oterceiro,dosmitosquefundam uma ética especial de vida. E, por último, da saúde do povo Guarani edosafetosrelacionadosàconvivênciacomaculturaocidentalrepresentadanoagirsocialdocidadão.

Há que esclarecer que, para um Guarani, branco ou juruá é todo o indivíduo quenãoviveasuacultura–omododeserGuarani–oNhanderekó. Desse modo, nãoháumaligaçãocometniaouraçae,aolongodotexto,estapalavrabranco expressaessemododepensar.Éimportanteobservarqueagrafiadaspalavrasemguarani obedece ao ditar do informante: se alfabetizado emportuguês,escrevepelosditamesgráficosdessalínguaedeformadiferentedosqueforamalfabetizadosemespanhol.Nãomepropusafazerumahomogeneizaçãodaescrita, conservando o estilo que os informantes compuseram.

Alguns autores citados ao longodo texto têm suas obras editadas emespanhol,esuatraduçãofoifeitapormimparaquealeituradotextosetornassemaisfluida.Algumaspalavrasetodosostextosemguaraniqueseexpõemao longo da leitura foram traduzidos pelos professores Verha Poty e Marcos MoreiradaAldeiaJata’yty.OutraspalavrasemGuaranitiveramsuatraduçãofeita por colaboradores ao longo da pesquisa.

Do viver e da organização

O povo Guarani da atualidade, segundo Melià (1988), é compostopelas etnias Paĩ tavyterã (ou Kayová), Avá-katúeté (ou Chiripá), Mbyá e Chiriguanos da Bolívia. A pesquisa esteve centrada no povo Mbyá, embora eu tenha convivido com chiripás nas aldeias que visitei. Segundo Garlet (1997),

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sãoelesosdescendentesdosKayguáouos“domato”que,àmedidaqueacolonizaçãoavançava sobreas suas terras, embrenhavam-senafloresta emfuga dos encomendierosedapropostadecivilizaçãoocidental.

Os Mbyá organizam-se em aldeias que recebem o nome de Tekoá. Para uma Tekoá existir, é necessário que o espaço onde ela se localiza per- mita o Tekó,ouseja,omododeserGuarani.NaspalavrasdeMelià(2004,p. 70):

A Tekoánãopodereduzir-seàpropriedadeprivadadeumpedaçodeterra;a Tekoá é a terra manejada segundo o tekó. O fundamental evidentemente é o tekó,ouseja,oscostumes,osvalores,asreferênciaséticaseobrigaçõessociais de um conjunto de famílias unidas pela mesma linguagem.

Descrevendoa configuraçãoecológicada terraGuarani,Melià (2004)apresenta-a comvegetaçãoflorestal, úmida, perto (até 300m)dasmargensde rios, lagoas ou oceanos, altitudes abaixo dos 400 m do nível do mar e com temperaturasmédiasentre18-22ºC.

Asaldeiassão,normalmente,constituídasdeumafamíliaextensaoudauniãodeduasoumaisfamílias.Aestruturasocial,segundoGarlet(1997),faz-sesobdireçãodeumlíderreligioso(oKaraí)queconduzedirigeosrituais,estabelece o vínculo com mundo sobrenatural, profere as palavras inspiradas e orienta o grupo nas normas de conduta Mbyá-Guarani. Ao líder político (ocacique)cabe tratarproblemas ligadosàesferadocotidiano,àsrelaçõesdeconflitos (tanto internasquantoexternas)entreoutrasaldeiasouentreasociedade envolvente. Porém, pode acontecer de um só Mbyá acumular os doiscargos.Nãoconhecimulherescaciques,maspudeobservaraexistênciademulhereslíderesespirituais,asCunhã-Karaí.

Écomumverosacampamentosindígenasàbeiradeestradas,ondeas“casas”sãobarracasdeplásticopretonormalmenteutilizadasparaavendade artesanato. Esses acampamentos ficamperto de umaTekoá, como, por exemplo,aquelepróximoàCoxilhadaCruz.AscasasGuaranievitamousodepregoe,namaioriadasaldeiasqueconheço,sãofeitasdemadeira.

Asmatasqueascercam,poucoapouco,cedemespaçoàslavouras,feitasaindasoboregimedemutirão,que,segundoFerreira(1948,p.856),é“auxíliogratuito a que se prestam os lavradores, reunindo-se todos os da redondeza erealizandootrabalhoemproveitodeumsó,queéogratificado,masque,nessedia,fazosgastosdeumafestaoufunção”.Temsuaorigemnomodode ser Guarani desde o potirõou,segundoMelià(2004,p.48),pôrasmãosàobra, derivado de po cujosignificadoseriatodas as mãos. Quandoocorreummutirãoemumaaldeiaparaasearasazonal,todososhomenssecolocamemuma linha e, com enxadas, capinam o terreno que anteriormente havia sido livrado do mato por sua queimada gradual.

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Omutirão da seara obedece a uma regulação temporal relacionada àestaçãoprópriaque,segundoMelià(2004),citandoMontoya,erasensorialparaosantigosGuarani,percebidaatravésdaobservaçãoastronômica(apresençadasPlêiades53nocéu),dofriooudocalordoverão,porém,paraoiníciodostrabalhos agrícolas, tanto eles quanto os Guarani modernos guiam-se pelo florescimentodoipê(tajy poty).Adivisãodastarefasentrehomensemulheresobedecia ao seguinte critério: aos homens cabia a derrubada, a queimada das árvores e a primeira limpeza do terreno; a semeadura e o plantio eram divididos entrehomensemulheres:aoshomens,aplantaçãodetabaco(pety) e mandioca (mandio); àsmulheres,milho (avati), batatas (jety) e porongos (yakua). O feijão(kumandá) era trabalho para ambos. O milho Guarani caracteriza-se pelas cores variadas e, entre eles, um de pequeno tamanho, o avaxi mitã/milhocriança, coisa com a qual eles brincam dizendo que, sendo pequenos, os pés de milhodevemtambémserpequenosenãograndescomoosdosjuruá, a forma como chamam a nós, os ocidentais. Além dessa espécie, pode-se observar também o avaxi para, de espigas coloridas, comgrãos azuis, vermelhos eamarelos ou, ainda, o avaxi ovy de cor preto-azulada.

Observei nas Tekoás o cultivo do amendoim (manduvi) e da melancia (xanjau), o cuidado e a colheita do milho (na Tekoá Pindo Mirĩ, emItapuã,municípiodeViamão),comotrabalhofeminino,eocuidadocomotabaco,uma tarefa especialmente zelosa, realizada pelo Seu Horácio, cacique, Karaí da Tekoá Guapoy Porã.Algumasorganizaçõeshumanitáriaspreocupam-seemensinar aos Guarani o plantio de hortas onde tentam fazer vicejar hortaliças, taiscomoalface,agrião,repolhosetomates;porém,atéondemefoipossívelobservar (na Tekoá Jata’i ty, em Guapoy Porã e Pindo Mirĩ ),ahortaficouacargodeumdosseusmembrosmasculinos.Nãoviasmulheresnocuidadodesse espaço.

Mais do que nomadismo, Garlet (1997) discute o andar Guarani nas terras de sua ancestralidade como uma necessidade de recomposição doespaçoondesefezusodaterraparaproduçãoagrícola.Aformadepreparaçãodá-sepelocortardasárvores(queserãousadasparaofogo)epelaqueimasuperficialelentadoespaçodesmatado.Mesesdepoiséquesefazacapinacomenxadaseaplantaçãodassementes.Apósaprodução,nãosecolocamfertilizantesevenenosnaconcepçãoaborígine,massedáotemponecessárioà recomposição do espaço, saindo embusca de novos lugares, namaioria das vezes, já usados anteriormente na seara. Isso faz o movimento constante desses povos, escapando do danoso e do nefasto mb’a e meguã que, segundo 53AsPlêiadessãoumaglomeradoestelardeaproximadamente500estrelas,emqueseisdelassãovisíveisaolhonu,classificadascomoM45,nocatálogodeMessier.

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Melià (1991), sãopossibilidades iminentes no tempodobemviver naboaterra.Essedanosoenefastopodeserrepresentado,apartirdavisãomítica,pelodilúvio,pelaterraquesedesmoronaecai,pelosincêndios,pelaguerra;o natural seria representado pela seca, pelo esgotamento do solo, pelas pragas, eclipses,inundaçõeseguerras.Háainda,entreosGuaraniatuais,oapontaraviolência,especialmenteohomicídioeasfaltascometidascontraaordemmoral, como ponto de apoio ao mal quando este invade a terra. A época colonial, no entanto, vai ser o protótipo do apocalipse, segundo esse autor, em que os quatrocavaleirosseriamaPeste,aEscravidão,oCativeiroeasPerseguições.

A caça é precedida por um ritual, conforme o relato de Mário Moreira, professor da Escola Estadual Indígena Karaí Arandu:

Para os animais grandes tem que ser feita uma cerimônia, né, aí tantas pessoas fazem suas armadilhas, pra pegar esses animais. Por exemplo, se tunãofazcerimônia,paradizerporquequeprecisa, tunãopega,podelevarmesesporexemplo,vaiseperdendo,vaificarsónahistória,hojeoimportante é a história, sabendo com a história e sabendo que tem, quer dizer,seficasónahistória:“seráquefoirealmenteisso?

Quando os animais rareiam, especialmente nasTekoá das franjas da cidade,obomsensoavisaquenãoémomentoparaacaça,porémconhecê-loséfundamentalparaqueahistórianãoseperca.OdepoimentodeMarcosTupã,caciquedaaldeiaKrukutu,encravadanoquerestoudemataAtlânticanaperiferiadeSãoPaulo,exemplificaofato:Hoje na minha região, minha aldeia, eu nem faço questão, eu procuro não incentivar fazer laços, fazer mondéu... já tem pouquinho, ainda vai matar o pouquinho que tem?

EmboraosGuaranidasfranjasdacidadetenhamsuasprópriascriaçõesde animais, como os galináceos de Jata’i ty e os suínos de Guapoy Porã, eles caçam, segundo Garlet (1997), o tatuete/tatu verdadeiro (Dasypus novencinctus), tatupoju/tatu peludo (Eufractus sexcinctus gilvipes), chi’y/quati (Nasua narica), jaicha/paca(Coelogenys paca), akuti/cutia(Desiprocta agytu azarae), ka’api’iva/capivara(Hydrochaeris hidrochaeris), apere’a/preá(Cavia porcellus aperea), mbycure/gambá (Didelphys marcupialis) e kui’y/porco-espinho (Coendu villosus), jacu guachu/jacu(Penélope obscura), jacu charatã/araquã(Ortalis conicollis), araku/saracura(Aramides saracura), tükã/tucano (Ramphastos toco albogularis), entre outros.

Das festas e do “com-viver”

A reciprocidade, o dar e o receber, faz parte daquilo que se diz Nhanderekó, omododeserGuarani.Melià(2004,p.49)explicaareciprocidadedesdeojopoi, que é etimologicamente mãos abertas em reciprocidade, isto é, abrir as

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mãos dando uns aos outros.Amãoqueseabreparadaréamãoqueseabrepara receber. Nas festas guaranis de que fui permitida a participar, presenciei as danças, a comida feita em fogueira na rua, os mbodjapé (pãofeitocomfarinhae água) assados nas cinzas. As danças ocorreram no terreiro, comandadas por dois homens que saiam de uma casa de taquaras, com o peito nu e pintado. Um deles sentava-se num banquinho e tocava o instrumento musical, e o outro colocava-senocentrodocírculoformadopelosmeninosemeninasaldeãos.O que se colocou no círculo formado pelos dançarinos portava uma varinha com a qual provocava os meninos como se fosse uma luta, ou colocava-a para que fosse pulada pelos dançarinos em diversas alturas, ou fazia movimentos serpenteantes para que as crianças pulassem sobre ela, sem serem tocadas. A dança é sincopada, com arrastar de pés no ritmo do canto, como um caminhar, mais aberto para os meninos, que jogam os pés levemente para os lados, e um caminhar curto e cadenciado para as meninas.

OquechamaaatençãonessadançaéarepresentaçãoexplícitadosatosqueaTradição(Nhanderekó) ensina. Entenda-se aqui o Nhanderekó como o modo de ser Guarani, a chave, o segredo para manter-se Guarani. Desse modo, o dançar caminhando-dançando, o movimentar-se como se estivesse na mata pulando sobre cipós ou evitando o confronto com os animais rastejantes ou, ainda,defendendo-sedeataquemaisdoqueatacandosãorepresentadosdeforma lúdica. Para Menezes (2004, p. 98), trata-se de “uma ginástica, uma brincadeira, uma forma de suar e livrar-se das doenças”.

Adança,comoformadeexpressão,énormalmenterealizadasobfundoreligioso,cujaembriaguezmusical,cadenciadapelosinstrumentosdepercussãoe de corda, embalada pelo fumo do pentenguá (cachimbo cerimonial em que se queima o tabaco), leva ao sonho e ao contato mais próximo com os deuses.

OsMbyáquetenhoacompanhadoatualmentedançamaosomdeviolãodecincocordas,violinocomtrêscordas,queelesdenominamravé, e um tambor demarcaçãoquesubstituiasvaretasdebambu,manuseadaspelasmulheresnaOpy.MasChamorro(2004),citandoMontoya,afirmaqueosinstrumentosoriginárioseramosdepercussão:tamboroupandeiro,angu’a; os de sopro, concha de caracol, guatapy e cornos mimby e diversos tipos de chocalhos, mbaraka. A autora descreve alguns tipos de danças e cantos: o Nembo’e ou prédica,queconsistenumasinfoniateológica,emqueestãorelacionadososgrandes temas religiosos dos Kaiovás e dos Chiripás; o Porahéi, Mboarahéi oucanção,queéogêneromusicalquemaisseaproximadotipodemúsicaocidentalpela repetição regulardasfiguras rítmicas;Ñe’ẽngarai, ñemoñe’ẽ ou relato, discurso, presente nas assembleias dos grupos de maneira informal; Guahu ou lamento, que é a palavra dirigida ao animal antes da caça ou da pesca, interpretado como uma conversa Ñemongeta ou um namoro Mymba

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Mongetacomapresa;podetambémteraintençãoexplícitadelivraroanimaldaarmadilhadeumcaçadorindesejado;finalmente,oXondaro ou defesa, que foiadançaapresentadaaomeugruponaprimeiraidaàaldeia Jata’i ty.

Penso ser interessante transcrever uma das danças descritas por Chamorro, o Porahéi:

Entreosmbyá,Porahéiéumadaspoucasexpressõesmusicaisemqueasmulheresnãoselimitamarepetiraspartesfinaisdasoraçõesditaspeloshomens, a murmurar as melodias com a boca fechada e a vocalizar em uma sílaba.Ascançõesnãotãosomentecantadas,mastambémdançadaspelasmulheres.Postasemfilacomoshomens,demãosdadasousegurandoseusbastõesderitmo,elasdançassemsoltaropesodeseuscorpos.Avançampara os lados e para a frente e voltam ao seu lugar, marcando com seus passostodasaspulsações.(CHAMORRO,2004,p.261-2)

Porém, talvez seja o Ñe’ẽnagarai que melhor explique a forma como os Guaranisecolocamfrenteaumaassembleia,desdeasminhasobservações.SegundoadescriçãodeChamorro(2004),opúblicoposiciona-seemcírculosilencioso até que o cantador/declamador comece seu canto ao violão, oque faz o círculo mover-se no sentido anti-horário. Nas assembleias de que participei,oouviréfeitonumcírculo.Emboranãohajadançadosouvintes,o orador destaca-se e dirige-se a uma pessoa, movimentando-se pelo centro docírculo;suafalaéquasechorada,apelandoaopassadoeàtradiçãocomoforma de superar as ameaças proporcionadas pelo modo de ser do juruá. O discurso também fala da valentia de seu povo, da falta do cuidado ambiental e da ganância do juruá/branco,dasituaçãodeexclusãodos indígenasedoincitamentoàlutapelapreservaçãodaTradição,daLíngua,daCulturaedasTerras guaranis.

Dos mitos de origem e da orientação do viver

O Nhanderekó,omododeserGuarani,éfundadonatradiçãooralenosmitosquelhesestabelecemosparâmetrosdevidaeconvivência,ditandoasregraspelasquaisosGuaranisepautamparaestabelecerumaéticanarelaçãocomoutroecomoambientequeocircunda.ÉinteressanteobservarqueosGuarani veem a Terra como um ser vivo, fato esse explicitado na resposta àperguntadeondeosGuaranisurgemnoseiodaTerra.Vejamosahistóriacontada por Seu Alexandre, Karaí da aldeia Jatay’ty:

QuandoÑanderu transformou omundo, trouxe três pessoas ajudantesenviados. Falou para o primeiro se ele queria ser este mundo, a Terra, onde estamos.Arespostafoiqueelenãoqueria.Perguntouaosegundo,seelequeriaseraTerra,quetambémnãoquis.Perguntouaoterceiroseelequeria

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serestemundo.Eletambémnãoqueriaser,“masseeutambémpediroqueeu quero e tu também cumprir o que eu quero, eu aceito. Eu farei o que tu mandar, já que tu é meu Deus, eu farei o que tu mandar”. Por isso esta terra temíndio.“Eunãoqueriaserestaterra,masvouficarporqueétunossoDeusmaior”,porissoqueoterceiroficouefoiassimqueDeusdeterminoueste mundo e transformou este mundo neste Karaí xondaro, “mas daqui em diante, quando eu precisar tem que ser feito”. E foi assim que até hoje tem este mundo. O pedido do xondaro é que se devolva a ele tudo que foi retirado. O que xondaro pede também é respeito pois, ele também já foi um Karaí. A terra é a carne, a água é o sangue e a mata é tudo que oferece. Esta terratemvidaquenãoéhumanaequenãoépercebida.Éumapessoaqueestáaquicomalmaepensamento.Seoxondaronãotivessefeitoopedido,nós seríamos imortais. Esta terra é nosso parente. Por isso falamos para as criançasnãobrincaremcomaterraporqueestejáfoiumKaraí.Atéhojeeleaindasemovimenta,sóquenósnãopercebemos.Quandoosparentesmorrem, a carne do corpo se mistura com a terra. A nossa carne é formada de terra. Nós temos que respeitar esta terra e este mundo que nós vivemos. Foi assim que aprendi o que sei, como o mundo é feito.

ApósatransformaçãodoKaraíXondaronaTerraéqueosGuaranivãoocupá-lae,nessemomento,oSoléafigurafundamentalnainstituiçãodaspráticasdesobrevivênciaqueessepovopassaaadotar.SegundoSeuAlexandre,a história se dá da seguinte maneira:

Depois que o mundo foi transformado já havia pessoas nele. Era o Sol –Nãnderumirin.Foielequempisounestaterra,aprimeirapessoa.Estapessoa,aprimeiraquetrouxeocostume,aculturaquetemhoje.Quandoo Sol veio nesta terra, neste mundo, ele transformou muitas coisas as taquaras, os vimes tudo que foi transformado para a cultura Guarani. O povoGuaranisurgeatravésdoSol.OSolquenosiluminaéfilhodeDeuse veio a este mundo para deixar a cultura Guarani.

A localização geográfica dos Guarani no planeta é um dos assuntosabordados nessa conversa com Seu Alexandre, que, ao ser questionado, faz dois círculos concêntricos, sendoqueo interno ele denominaParaguai e oexterno Argentina. No ponto mais central do círculo interno, ele indica ser aOpy.Pornãofalarguaranienãoquererinterromperopensamento,caleiadúvidasobreoquesetratavaaqueledesenho.Aoportunidadedeesclarecê-lasurgiunumaconversa comSeuHorácio,Karaí e caciquedeGuapoyPorã.Quandopropusaeleoassunto,desenhouosmesmosdoiscírculoseexplicouda seguinte forma:

Brasil é mais grande, porque tem o tal Rio Grande, Santa Catarina, Paraná eSãoPauloeRiodeJaneiroeestadodeBrasília.Então,muitoestado,eArgentina émuitofininho,BuenosAires tá lá na ponta e pra cá que

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vimmuitolonge,éfininho,nãoécomooBrasil,éfininho,eaParaguaium pouco mais grande. Na limite tem Paraná que o nome é rio Paraná. Passando de Paraná já estado de Paraguai. E Assunción del Paraguai tá lá. EaquitemquenomeéMbyveraguaçudomeiodocoraçãodolaterradoParaguai.

QuandocitaoParaguai,afirmaqueénelequenasceojesuítaque,sendoinicialmente católico, ouve Deus dizer-lhe para conhecer o mundo e outros países. Imediatamente se pôs a caminho, deixando sua mulher para trás. Durante o percurso, descobre como fazer casas de pedra e deixa as ruínas para os juruá aprenderem o método. Ao finaldesuajornadavaiparaRoma,onde está até hoje. Permanecia, entretanto, o círculo e, no centro do mundo, o Paraguai.Garlet(1997,p.56)propõeaseguinteexplicação:

Os Mbyá contemporâneos descrevem o mundo “redondo como um prato”, no centro doqual está localizadoo território de origem,oYvyMbyte/CentrodoMundo.Várioscírculosconcêntricosestariamdispostosapartirdestecentro,ondeacidentesgeográficosseriamidentificadoscomoseuslimites. Assim, o Rio Paraná é o limite do primeiro círculo (horizontalmente o espaço é disposto em círculos, enquanto que verticalmente é descrito como que organizado em camadas superpostas) e o Rio Uruguai sendo considerado como limite do outro círculo.Na seqüência e citado ParaGuachu/mar,comsendomaioremaisdesafiadordetodososlimites,alémdoqualamaioria(...)dosdirigentesreligiososafirmamexistirumailhaparadisíaca.VáriosdelesmantêmaconvicçãodequeconseguirãodescobrirolocalexatoemqueoKechuítaatravessouomare,então,tambémpoderãocruzá-loechegaràilha.

O personagem histórico KechuítaéidentificadoporGarlet(1997,p.59)como o herói mítico Pa’i Rete Kuaray:

Um homem-deus essencialmente caminhante e, ao caminhar por este mundo,enfrentouumasériededesafios;mastambémnominouplantaseanimais, ou seja, através do movimento e de sua palavra, criou o mundo paradepoisafastar-sedeleedirigir-seàmoradadeseupai.

Da mesma forma, o Kechuíta, descrito pelos Mbyá atuais, caracteriza-se como um homem-deus que caminhou pelo mundo e, por onde passou, denominou os lugares; depois, também se retira do mundo, mas, na ótica especial do seu Horácio, o Jesuíta nasceu numa ilha no Paraguai e, inicialmente católico, conversa com Deus e sai em busca de novas terras. Esse conversar comDeuséumaconstantenossonhosdosMbyá.SegundoMelià(1992),oGuarani realiza no sonho atividades que faria em vigília. Os sonhos aparecem como uma estrutura completa correspondente ao mito. Nos sonhos é que se

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sabe que a alma vai tomar assento no útero de uma mulher e, portanto, que nome ela deverá ter; nos sonhos Deus lhe fala quando é o momento de partir parabuscarnovasterrasou,então,aterramítica,aTerra-sem-malesqueseencontra do outro lado do Para Guachu/grande mar. Complementando este entendimento,naspalavrasdeMarcosTupã:

O pajé era o grande mediador, o grande condutor. As famílias seguiam eleondeeleia,paracadaregião,conformeosonho,arevelaçãoqueelerecebia,elevaiparaumlugar,comasfamílias,comtodos.Nãoprecisavatercacique,eleéoprincipal.Hoje,nasituaçãoatual,ainfluênciadeváriascoisaséqueacabatendocacique,entãoocaciquehoje,éumaliderançapolítica,masàsvezesnogrupo,naaldeia,temumnúcleodefamíliasenestenúcleodefamíliastemopajé.Asfamíliasdaquelenúcleovãodarmaisatençãoparaopajé.

Oviveroambientedesdeoêxtase,acapacidadedeseroanimalouovegetalnessepróprioêxtaseoudeabandonarocorponaformadaalma,osoprodavidae,dessaforma,perceberarealidadedesdeaalteraçãodaconsciênciaéaquilodequeseconstituioxamanismo.Eliade(1998)defineoxamãcomoaquelequeécapazdesecolocaremêxtase,depraticaracura,depreverofuturo, de proporcionar a boa caçada e pescaria, de facilitar o parto, de sonhar e,nosonho,colocaracriançanoventredamãe(tomar assento), de conversar comosdeuseseserseumensageiro,entreoutrasatribuições.QuandoserefereespecificamenteaosGuarani,afirmaqueesseslevavamlongeasuaveneraçãopelos pajés que cultuavam seus ossos, guardados em ocas e consultados, sendo quenessasocasiõesrecebiamoferendas.

ÉapartirdodiscursoedapráticadavidaquesepodeperceberqueoGuarani,enquantoserhumano,nãosedistinguedosdemaisseres,vivosounão,quecompõemocenáriodoviver,a talpontodeperceberesseprópriocenário – a Terra – como um corpo vivo de um Karaí Xondaro. Porém, há que se estabelecer o local onde se dá a conversa com o sobrenatural, com os deuses,ondeosrituaisdecurasãosacralizados.EsselocaléaOpy.Descobriros segredos que a casa de barro e palha encerra foi-me proporcionado nas conversas sob as árvores, partindo do discurso de Seu Alexandre, Karaí da aldeiaJata’yty(AldeiadoCantagalo),comatraduçãosimultâneadeMarcosMoreira:

A Opy é para proteger da doença e também para dar nome guarani e também para fazer o Karaí tratar os doente. A Opy serve de tratamento de saúdeparaaspessoasguarani,paracurarasdoenças.ÉparaissoqueaOpyserve.NósnãoprecisaconstruirumaOpysóparaenfeite.AOpytambémjáeraconstruídapelonossoDeuslogoapósatransformaçãodomundo.Écomonaculturadobranco,levamosodoentenoKaraí,naOpy.AOpy

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éparaissotambém.QuandonóstemosOpynãoésómoraredormir.Senãofosseassimdesdeocomeçodomundo,hojenósnãoteriaOpy,paraoKaraífazeroraçãopraDeus.NãoésóhojequeprecisamosdaOpy,édesdeo começo quando surgiu o povo Guarani. Os nossos avós tinham Opy desde osurgimentodopovoGuaraniparafazeroraçãoparaascriançasquenemhojequandoficamosdoenteirmosaOpy.OsvelhoseadultosqueestãodoentesélevadoàOpy.ÉparaissoqueaOpyfunciona.HojeemdiaeuvejoqueamaioriadosKaraíjánãorezamaisnaOpy.Amaioriasórezaemcasa,masmesmoassimtemosmuitaféemDeus.HojejánãovejoquasenadadeumaOpy.Quandoeuerajovem,muitosanosatrás,eufuimuitona Opy. Eu participava, orava, reverenciava junto do Karaí. Os Karaí que rezamhoje são amesmaoração e asmesmaspalavras de antigamente,porqueaquelecantocantadopelosKaraínãomorreeficavivodurantea vida toda na memória e é sendo cantado pelos Karaí porque este canto eoraçãoédeDeus.Por issoquequandoocantodoKaraíquemorreévalorizado. Mesmo morto, seu canto está vivo para sempre. Antigamente quando as pessoas guarani entravam numa Opy entravam com suas roupas tradicionais, feitas de uma casca de uma árvore medicinal. Hoje usamos roupa de juruá e isso que a diferença das cerimônias de antigamente das outras.As cerimônias são feitas como antigamente e a diferença é quehojeentramosnaOpycomroupadejuruá.Antigamentenãoeraassim.Seusava nossa roupa, nossos colares e também as diferenças de hoje é quando entramosnaOpysãomuitaspessoasqueparticipam.Antigamentenão;eratodas as famílias, velhos, adultos e crianças que participavam. Esta é uma diferença. Antigamente todos valorizavam a casa de reza.

A prédica de Seu Alexandre aponta para o fato de a Opy ser o lugar onde se dá o nome Guarani, e isso aponta para o fato de o nome ser um elemento sagradonacosmologiadessepovo.Melià(1991,p.29)afirmaque,“paraoGuarani, a palavra é o todo. E todo para ele é palavra”, o que acarreta que a vidadoGuarani,desdeaconcepção,onascimento,atéamorte;eapósmortedá-se em torno de uma palavra, ayvú ou ñe’e – a palavra alma, aquela que toma assentonoúteromaternoquandodaconcepção.

Segundo Chamorro (2004, p. 58), pode-se traduzir “‘palavra’ ou a ‘alma’ comomesmosignificadode‘minhapalavrasoueu’ou‘minhaalmasoueu’”, e cada uma delas provém de um paraíso, cujo Pai da palavra ou o Pai Primeiro comunica ao pai terreno, através de sonhos, que uma delas será concebida, tomandoassentonoúteromaterno,talcomooxamãseassentanobanquinhoritual.

Porém,nãoé somenteaporçãodivina,ayvú ou ñe’e, aquela que está destinada a voltar ao Pai Primeiro de onde procede, que atua na pessoa-guarani; há, para além desta, pelo menos mais uma asyguáouogênioanimalencarnado

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que manifesta o tekó axý, modo de ser imperfeito, relacionado ao mau caráter ouàsimplescondiçãotelúricaecorporal.Adescobertadonomedonascituroou que palavra-alma encarnou será um trabalho extenuante do pajé que entrará emcontatocomosserescelestesatravésdosonhoedoêxtase.

Emminhas conversas comoprofessorHugodaTekoáGuapoyPorã,aprendi um pouco sobre os Paraísos54deondeprovémayvú/aporçãodivina.Questioneioporquêdonomequeascrianças(eele)daescolaGuapoyPorãresolveram batizar-me: Kerechu. Contou-me o professor que os Pais Primeiros, Nhanderu,Karaí,TupãeJakaira,têm,cadaumdeles,suascasasaleste,oeste,norteesul,ondemoramasalmasantesdeserempessoas.TupãéodeusdascoisasdaNatureza,oraioeotrovão.Asalmasquemoramnasuacasasãoos Vherá, pessoas comunicativas que contam coisas, gostam de estar com asoutraspessoas.AsmulheressãochamadasPará.OsKaraínãosãomuitoconversadores,masmuitoestudiosos, sãocapazesdesecomunicarcomosdeusese,depoisdevelhos,ficampajés.OsKaraísãoosmaissábiosdetodos.Fazemaprevisãodofuturoesabemsevaichoverounão,sealguémvaichegare como é a pessoa que vai chegar.

Cadaparaísotemumalocalizaçãogeográfica;aoLesteficamasalmasdoparaíso Ñamandu Ru Ete e Ñamandu Chy Ete, e as palavras-nomes encarnadas adquiremaconfiguraçãodepessoassolares,muitosábiaseintuitivas.Aoeste,KaraíRuEteeKaraíChyEtetomarãoassentoempessoascaracterizadaspelaobservação,seriedade,sapiênciaeestudo.Aosul,JakairaRuEteeJakairaChyEte,cujacaracterizaçãonãocomentamosmuito,e,aonorte,olugardeondevêmosVherá,osfalantes,aquelesquecontamascoisasquandoperguntamos,característica dos professores. Argumentei com ele, na época, que meu nome deveria ser Pará, o feminino de Vherá, já que era professora, mas ele me respondeu que eu me parecia mais com Kerechu.

Chamorro (2004) afirma que os nomes tradicionais ou sagrados sãorelativamente escassos. Dessa forma, há um coletivo que responde pelo mesmo nome ou, pelo menos, pelos nomes compostos derivados dos nomes sagrados. Como exemplo, cita-nos os nomes femininos Takua(BastãodeRitmo),Cunhã (Mulher), Kerechu (Filha do Sol), Ára (Tempo-Espaço), Poty (Flor), e os masculinos de Karaí (Líder Religioso, Senhor), Kuaray (Sol), Vherá (Brilho), Tupã(Trovão),Tataendy (Fulgor, Brilho do Fogo) e Ava (Homem).

Énotávelqueosnomese,posteriormente,seusderivados,constituem-seem elementos do seu derredor. Se o indivíduo é seu nome, se um Guarani é um nome-alma,essaalmaeessenomenãosedistanciamounãoseapartamdasua 54 Cadogan (1992, p.81) faz um inventário dos Paraísos e das palavras-almas advindos de cada um deles.

Reproduzo esse inventário nos Anexos, na forma de uma tabela, por mim organizada.

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imersãoambiental.RelacionadasaosmistériosdosParaísos,essasalmasquetomamassentomantêmsuaprofundarelaçãoaindacomsuaorigemmateriale natural.

Da cura ou do permanecer

AdoençaéumaocupaçãodoKaraíedaCunha-KaraínaOpy.ÉparaláquevãoosdoentesparaseremtratadoseéláquesefalacomDeus.Eliade(1998),no seu inventário sobre o Xamanismo, aponta para o fato de que doença, para osxamãsdaAméricadoSul,significaperder a alma que tanto pode ter sido roubada pelos mortos ou pela Lua ou, simplesmente, perder-se do corpo. Entre osGuarani,oadoeceréaseparaçãodasalmas,avindadoparaísocelestedaalma telúrica, a que se cansa e se suja nos andares sobre a Terra. O processo dacura,então,utilizaráotabacoqueimadonopetenguá/cachimbo, o transe proporcionado pela dança embalada pelos chocalhos e o sono, que tanto dá o diagnóstico da cura, quanto diz de que paraíso virá a alma que tomará assento no útero de uma mulher, tornando-se um futuro Guarani.

Sobre a cura na Opy, Seu Alexandre diz:Para curar, em primeiro lugar eu penso em Deus. Só ele que sabe a palavra. Nãoouço,maseusintonomeucoração.Porissoqueeuseiacuradaspessoas. Por isso que eu sei valorizar os Karaí e ajudo eles porque mais tarde,quandoeuficarvelhosóeuparasabermuitascoisasqueeuaprendi,as coisas dos mais velho e também se esforçando para curar as pessoas. Por issoqueeuseieaprendiacurar.Mesmacoisacomocachimbo.Quandopego ele, me lembro de nosso Deus pai.

Umdosgravesproblemasqueafligemasaldeiaséoalcoolismo.Tiveaoportunidade de conversar sobre o assunto com Seu Dário, morador e amigo da aldeia Jatay’y ty quando uma comitiva da Prefeitura Municipal de Porto Alegre tentava organizar a venda de artesanato na cidade, numa tentativa de afastar as mulheres-índiasdocentrodacidade,jáqueissoéumasituaçãoqueincomodaostranseuntesqueasveemcomomendigaspedindopelavida.Questionadosobrecomoviaessasituação,SeuDáriocomentouqueasmulheresiamvenderartesanatoe,comoos“brancos”davamdinheiroenãocompravam,nãosevianada demais em receber, mas esse fato gerava problemas na aldeia: os homens, assim sustentados, voltavam-se para a bebida alcoólica, já que lhes suprimiam a luta pelo viver.

O alcoolismo na Tekoá Jata’i ty atinge tanto os homens quanto as mulheres, porém observa-se a possibilidade iminente de afastamento dos laços tradicionais daqueles que se deixam embalar nos vapores alcoólicos. Há um desprezo mal disfarçado pelos usuários, um discurso, especialmente entre os jovens,quecondenaousoe,emalgunscasos,aexclusãodoreincidentedo

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âmbitofamiliaredaconvivêncianaquelegrupo,levando-oaprocurarumoutroespaço em que possa viver.

Conversei, certa vez, com um índio alcoolizado, num inesperado encontro. EstavaindodeônibusàTekoáPindóMirĩ,emItapuã,numasegundavisitae,comoaprimeirafoidecarro,eunãotinhamuitoclaroemqueparadadeveriadescer. Como normalmente acontece nesses casos, desci na parada de ônibus incorreta.Apósumabuscainfrutíferapelaestradaquelevavaàaldeia,questioneiumrarotranseuntesobresualocalizaçãoe,baseadanasindicações,subiporuma estrada cortada por uma cerca. A partir daí, tornava-se uma trilha no mato. Estranhei, mas como vi algumas casas indígenas, achei que havia entrado na Tekoá pelo lado errado e segui em frente. Bem mais adiante, já pensando em voltar sobre meus próprios passos, vi um vulto que passou entre as árvores. Chamei-o. Era um indígena da etnia Kaingang,55 o Seu Saturno, num estado de lamentável bebedeira. Apresentei-me como professora e pesquisadora e perguntei-lhesobreaaldeiaGuarani.Àmedidaqueandávamos,asobriedadeparecia voltar e comentou que havia abandonado sua aldeia natal por causa da bebida e que trabalhava na venda, onde conseguia dinheiro para beber. Pediu-mequenãolhedissesseparapararporqueoúltimoquemedisseisso,eubatiaté sangrar e vou beber até morrer. Durante a conversa, notei uma nostalgia da convivênciacomoseupovo,porémhaviaumaespéciedeorgulhomórbidonasuaafirmativadenãoabandonaroálcool,comoseissofosseseuúltimorefúgio de índio perdido.

Umoutrotestemunhodosmalefícioscausadospeloacessoàformadetroca monetária usada pelos “brancos” nos é dada por Seu Horácio, cacique da TekoáGuapoyPorã/FigueiraBonita,quandomefaloudosíndiosquebuscamtrabalhonaspropriedadesrurais,trabalhandoparapatrões,semsefixaremalugar algum e perderem-se nesse ir e vir:

Francisco (funcionário da Funai), visse, procura muito años para documen- tar,paraaposentar índia, índio,peromuito índioquenonvêestacoisa.Parece que non enxerga. Hoje aprontou pra cinco documentos, botou nel bolsoeamanhãvainumbancorecebedinheirinhoetomacachaça,andacaindoporaí,perdeutudodocumento,nãosabeondeéquetá,apróximanãopodemaisreceber.

Éoreceberdinheiro,mesmodaaposentadoria,umfatordesagregadorparaoSeuHorácio.Aajudarecebidaébem-vinda,masquandonãobaseadanosprincípiosdojopoí,perdeosignificadoedesagregadeformaimpiedosao 55PovoIndígenaGêMeridional,cujosterritóriosincluemparcelasdosestadosdeSãoPaulo,Paraná,Santa

Catarina, Rio Grande do Sul e província de Missiones na Argentina. Os Kaingang compartilham territórios e áreas indígenas com os Guarani no sul do Brasil.

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Nhaderekó.Odinheirorecebidonãoédetodos,édaquelequeoconseguiue,por isso, pode fazer com ele o que bem entende, inclusive beber.

Aquestãodaalimentaçãotambéméfatordepreocupaçãoparaasliderançasquenãoveemcombonsolhososalimentosproduzidospelosbrancos.Emseusdiscursos,sempreremetemaofatodaalteraçãoalimentaredecomoeraantigamente.Dizemqueo remédioeacomidado“branco”estão trazendoa doença para o seu povo, já que eles os retiram do modo de ser tradicional. Antigamenteoalimentoeratrazidonoajaca/cestodesdearoça;oremédio,damata; a medicina, da prática da Opy.

Conclusão

Conhecer o povo Guarani foi um presente inesperado que aconteceu no meu viver e angustiar-me por este povo é um sucedâneo desse conhecer. Partindo da premissa de que conhecer um povo é um modo de aceitá-lo, pois“aaceitaçãodooutrosemexigênciaséoinimigodatiraniaedoabuso”(MATURANA, 2001, p. 186), tento, nesse breve artigo, abrir ao leitor os portais pelo qual o olhar possa apreciar a beleza da cultura Guarani, muitas vezespornós,osJuruá,ignorada.Éestaignorânciaofatordaminhaangústia.Destrói-seoquenãoseconheceenãoseaprendecomoquesedestrói.Aoabrirumpequenovãoporondeoolharpossaguiar-se,tenhoapretensãodeajudar a contribuir para que esse povo e seu conhecimento ancestral possam ser aceitos enquanto legítimos. Conhecer a sabedoria desse povo pode nos ajudar a superarasdificuldadespelasquaispassamosnestemomentohistóricoemqueo ambiente planetário coloca sob nossos olhos a dívida enorme que contraímos com o nosso juruárekó, isto é, o modo de viver do branco frente a ele.

Referências

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ANExOS

Terras Guarani no Litoral Brasileiro, conforme Terras Guarani no Litoral, 2004, p. 7.

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Paraísos e as palavras-nomes56

Alma proveniente do paraíso de: Ñamandu Ru Ete Ñamandu Chy Ete

Mas

culin

os: Kuaray Mimby Jachuka

Fem

inin

os:

Kuaray Mirĩ Jachuka RataaKuaray Endyju Ara iKuaray Jeju Ara MirĩKuaray Rataa Ara Jera, Ara Poty

Alma proveniente do paraíso de: Karai Ru Ete Karai Chy Ete

Mas

culin

os: Karai Rataa; Karai Ñe’ẽry Kerechu; Kerechu Rataa

Fem

inin

os:

Karai Ñe’ẽngija Kerechu PotyKarai Tataendy Kerechu YvaKarai Atachĩ

Alma proveniente do paraíso de: Jakaira Ru Ete Jakaira Chy Ete

Mas

culin

os: Atachĩ Tatachĩ; Yva

Fem

inin

os:

Alma proveniente do paraíso de: Tupã Ru Ete Tupã Chy Ete

Mas

culin

os: Vera; Vera Mirĩ; Vera Chunua Para; Para Rete; Para Mirĩ

Fem

inin

os:

Tupã Kuchuvi Veve Para PotyTupã Guyra Para Jachuka

56Segundo Cadogan (1992, p. 81).

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VI A REINVENÇãO DE SI MESMO

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16 Dança-identidade: os processos de recriação

na permanência do Tekoá porã57

Ana Luisa Teixeira de Menezes

A dança Guarani denominada Tangará/Xondaro, realizada fora da Opy, lugar onde são realizados os rituais Guarani, é um exercício corporal devitalidade,dedescontração,de“amolecimentodocorpo”edeconfirmaçãodorito coletivo, bem como a Jerojy, ritual que atualiza o pertencimento emocional eculturalnumaperspectivapessoalecoletiva.Asdançaspossuemvariaçõesentresi,masfrequentementesãodenominadaspelosGuaranicomosendoamesma.EntreosGuaraniexistemtrêsetnias:mbyá,chiripáenhandeva.Otermo Tangará é o mais usado entre os Mbyá-Guarani. Os Chiripá caracterizam como a dança de guerra, o Xondaro servia como um ensinamento para a pesca, a caça, o plantio, para a defesa e contra o ataque de animais como a cobra e outros. Para alguns, Xondaro é o termo usado para designar aquele que dança a Tangará, ou ainda, o policial que cuida do Tekoá. Atualmente, a Tangará é dançada ao lado da Opy como uma ginástica, uma brincadeira, uma forma de suar e livrar-se das doenças.

SegundoSeuSebastião, líder da aldeiaCantaGalo, o termoTangará designadoàdançaéonomedeumpássaro.Segundoele:

Tangará é aquele passarinho que sempre voa bem baixinho, daquele azulzinho, da cabeça bem vermelhinha, começa a cantar dali, depois vem diretoparaláedepoisvemdenovo,semprevaifazendoassim.Éonomedaquele passarinho que nós estamos falando Tangará. Por isso chama dança Tangará, é por causa daquele passarinho. Ele cantava aqui depois ia voando noutro galho, senta ali, depois para um pouquinho, depois canta de lá e senta no mesmo lugar.

A dança Guarani Tangará caracteriza-se por imitar os passos de um pássaro também chamado Tangará, que vai de um lado para o outro, sempre dançandonomesmolugarenamesmaépoca.Éumpássaroqueaparecenoverãoeque soltaumassobioaliadoao seumovimento.OXondaro é uma dança comparada a uma forma de defesa contra os animais, “contra as garras dotigre”,umaantigapreparaçãoparaaguerraetambémumabrincadeiraquepossibilita esquentar os corpos.

57Espaçodeplenitudeeperfeição.Édefinidocomolugarbonito:Tekoásignificaaldeia,eporã, bonito(a).

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Escobar (1993)comentaqueessasdanças,quandosãodirigidaspelosjovens, possuem um caráter lúdico que bordeia o profano, no sentido de, por exemplo, acelerar a marcha para os outros perderem o ritmo, o que gera risos e brincadeiras. Esse comportamento eu pude ver e participei bastante na aldeia do CantaGalo.Observam-seumacriaçãoeumarecriaçãoconstantesnostermosque designam as danças, variando de um Tekoá para outro, e também de uma pessoaparaoutra,oquenãoacontececomospassosdadançaeasequêncianosrituais,revelandoapermanênciadaeducação,datradiçãodentrodeumfluxodinâmicodeautonomia.

Escobar (1993) situa a dançaGuarani como arte indígena, definindoestetipodesociedadecomoa-moderna.Dessaforma,essaartenãocumpreos requisitos da genialidade individual, tão pouco é vista como fruto deuma criação individual absoluta,mas representa gestos e imagens de umaexperiênciacoletiva,totalmenteentrelaçadanaconstruçãocultural.UmdosmomentosemqueissoficoubastanteevidentefoiquandoArlindo,ex-professordo grupo de danças, doou suas letras de cantos para Adriano, professor atual, e nãomanifestouqualquertipodepreocupaçãoquantoàquestãodaautoriadasmesmas,naépocaemqueestávamosrealizandoagravaçãodoCDdogrupode dança.

Aperspectivadadançaindígenaéinversaàconcepçãomodernaecon- temporânea da dança ocidental. Esse também foi um dos processos de trans- formação que fui realizando sobre os sentidos da dança indígena e nãoindígena,compreendendoadificuldadedeentenderadançaGuaranidentroda perspectiva da dança contemporânea. Após uma leitura sobre a história da dança ocidental, fui abandonando algumas ideias sobre as danças denomina- das“primitivas”,quedistorcemacompreensãodadançacontextualizadanacosmologia indígena.

MinhaprimeiraimpressãosobreadançaGuaranifoiadeserumadançacontida,compoucaintensidadeeexpressão,naqualomovimentoéapenasdemarcadopelopé.Quandoolhavaadança,logoolhavaparaospés,comose esses fossemdescrevê-la e decifrá-la.Osmeninosmexemos pés, numcompasso ritmado, entre o direito e o esquerdo; as meninas mexem os pés ininterruptamente,comosenãoexistisseparada.Ospésarrastam-seedeslizamaomesmo tempo causandouma sensaçãode umcaminhar constante,masquenãosaidolugar.Quandopudeparticipardadança,asensaçãofoibemdiferente:oqueparecianãosairdolugar,dandoumasensaçãodemonotonia,transformou-senumasensaçãodeestarmosindojuntosparaalgumlugar.Nãodavavontadedeparar, comoumembalo, um ir e vir sem início nemfim.Asmeninasdançavamdemãosdadasaoladodosmeninos.Adiferençadospassos demarca claramente a diferença de ser homem e mulher na cultura

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Guarani.Quandoindagueisobreofatodeosmeninosestaremnafrenteeasmulheresatrás,foi-merespondidoqueeraumaatitudederespeitoeproteçãoàsmulheres.

Conforme Laban (1978), pode-se perceber o quanto o ritmo de movimentos reflete o ritmodevalores e de situações.Ospassos dadançaGuarani nãomudamcomopassardotempo,têmresistidoàsvariações,tãoestimuladasnanossa sociedade.

Os passos descritos traduzem a necessidade de espaço – dançam para conseguirmaisespaço–poissemespaçonãoháTekoá Guarani. Conhecer a dança,emsuaestruturaedefiniçãodepassos,significaconheceromododeser Guarani, o seu movimentar-se.

Ospassosdadançasãocontínuoserítmicos.Existeumaconcentraçãode energia que sugere que as pessoas podem dançar e dançar sem parar. Há umaeducaçãoparaoequilíbrioeumaconstâncianoatodecaminharenaexistênciacoletiva.

Para os Guarani, a busca é de leveza, das alturas. No entanto, pode-se perceber um movimento voltado para a terra, o que sugere uma cosmologia quebuscaaintegraçãoentreocéueaterra.DestacoquenadançaMatipú,conforme Veras (2000), os movimentos corporais dos indígenas Xinguanos sãovoltadosparaaterra,rendendo-seàgravidade,oqueprovavelmenteestárelacionadocomaconstruçãocosmológicadessepovo.

Meliá (1991) refere-se à imagem circular das danças Guarani comoumaexpressãodaparticipação,dauniãoedaeuforiadeestarjunto.Segundorelatosorais,coletadosnasaldeias,adançaGuaranisurgecomacriaçãodomundo. Seu Adolfo destaca que a dança veio do mboraí, ou seja, do canto. Asimbolizaçãoda origemdadança é que esta é divina, portanto surgiu apartir de Nhanderú e estrutura-se nas estórias mitológicas. Os instrumentos utilizados inicialmente pelos Guarani eram o tambor e o chocalho. A partir do contatodessepovocomosjesuítas,foramintroduzidosoviolãoeorabeca,instrumentos de origem europeia.

Podemos destacar dois aspectos da dança Guarani: seu caráter religioso, xamânico,ritualístico,eodeapresentaçãoededivulgaçãodesuacultura.Acriaçãodadançadeapresentaçãosurgecomoumanecessidadedefortalecimentoe visibilidade para a cultura Guarani. Além do aspecto artístico, saliento a dimensãopolítica, na qual a dança e o canto tornam-se ummovimentodeorganizaçãoedeidentidadeétnica.Sobreahistóriadaformaçãodogrupodedança da aldeia do Canta Galo, Marcos descreve que, a partir de 1998, a aldeia, influenciadapelomovimentodegrupoededançanasaldeiasGuaranideSãoPaulo, começa a processar e a participar de uma organização comunitáriaatravés dos cantos e das danças. Naquela época, segundo Marcos, professor

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Guarani,asaldeiasdeSãoPaulojátinhamproduzidooprimeiroCDGuarani.Em 1999, formou-se um grupo de dança na aldeia Canta Galo. Segundo Marcos,aorganizaçãodogrupodedançanãofoifácil:

Naqueletempo,osjovensbebiammuito,agentesereuniaeascoisasnãosedecidiam,nós tínhamosqueconvenceros jovens, explicaroporquê,o que ia trazer de bom para ele, para as crianças, para a família e para a comunidade.

Aformaçãodogrupodedança,portanto,representouapossibilidadedeserem vistos e reconhecidos em sua cultura.

Todos tinham expectativas para apresentar o canto e a dança. Naquele tempo, não existiampessoasde foraque trabalhavamaqui comoagora[...] Conhecemos a Isabel e ela disse: tem a Semana do Meio Ambiente e no programa da Prefeitura tem espaço para culturas diferentes... (Marcos, aldeia do Canta Galo – RS)

ÉdessaformaqueosGuaranitêmconseguidopassarsuamensagemedemarcarsuaexistência.SegundoMarcos,“foitambématravésdogrupoquea escola começou a funcionar”.

Melucci(2004)colocaumaquestãocentralnoprocessodeidentidade:aprender sobre o que somos e sobre o que queremos, uma descoberta, uma compreensãodequeestarembuscascoletivaséestarentrepessoas,conviverconstruindo metas, objetivos e projetos. Dessa forma, podemos caracterizar os grupos de canto e dança comomovimentos que se afirmamatravés daidentidadeétnica,aomesmotempoquetrabalhamamobilizaçãoderecursos.Melucci (2001) utiliza o termo pertencimento étnico, considerando-o como umdoscritériosdedefiniçãode identidadenassociedadescomplexas. Issosignifica também assumir que omovimento étnico se estrutura como umprincípiodeorganizaçãodosinteressesepelasolidariedadecoletiva.

Adançanasituaçãovividanasaldeiastransforma-setambémemumaexpressãoderesistêncianalutapelodireitoàvida.NaspalavrasdeSeuTeófilo,líder Guarani: “o nosso grupo é nossa defesa”.

Na aldeia da Lomba do Pinheiro, o grupo de dança surgiu também a partirdaexperiênciadaformaçãodegrupossemelhantesàsaldeiasGuaranideSãoPaulo,comoobjetivodedivulgaraculturaedebuscarrecursosparaa comunidade. Segundo Ferreira (2001)58, o grupo de dança, nestes contextos, assume quatro papéis básicos: como um espaço educativo nas aldeias que reaviva amemóriamusical; comoumaprevenção, evitandoo aumento deconsumo de bebidas alcoólicas; como uma alternativa de sustentabilidade 58 Projeto de tiragem CD Mbae’pu Ñendu’í – Som Sagrado – Grupo de canto e dança Tekoá Guarani da

aldeia Mbyá-Guarani da Lomba do Pinheiro, Porto Alegre, RS.

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econômica;ecomoummeiodedivulgaçãoedeeducaçãodaculturaindígena,juntoàsescolas,àsuniversidadeseàsociedadecivil.

O professor de dança nessa aldeia é o Cirilo, que também ocupa o lugar de Cacique, sendo uma importante liderança entre os Guarani do Rio Grande do Sul. Conversando com o Cirilo, este disse que pretendia dedicar-se mais aos trabalhosdentrodaOpy,poistêmmaisvalorparaaaldeia.Sãomovimentosquemostramqueogrupodedançasefortaleceàmedidaqueodiálogocoma cultura esteja realmente existindo, ou seja, que as crianças, os jovens, os adultos e os velhos estejam participando dos rituais. O grupo, sem sua base religiosa e espiritual, pode gerar mais desorganização interna do que umfortalecimento cultural. Passa a ser, para os próprios Guarani, uma imagem falsa,virtualeenganosa,causandoconflitos,tantodeordemfinanceiraquantodedescréditoemrelaçãoàslideranças.Certavez,Marcos,quebuscavaummaioraprofundamentoespiritual,desabafoucomigo,dizendo:“achoquenãoadiantaficarsódançandoassim,nogrupo”.

Melucci(2001),nateorizaçãodosmovimentossociais,refletesobrecomoa identidade se revela num mundo social como o nosso e quais as necessidades profundasdo serhumanonesseestar junto, aparecendonossascontradições entreoquebuscamosedesejamos,entreoritmointernoeoexterno.Questiona- mentosessespresentesnaconstruçãodosmovimentosdedançasGuaranique,longe de assumirem posturas enrijecidas, aproveitam o movimento para inda- gar-se sobre a sua história e a sua identidade. Portanto, ao falar de movimentos sociais, estamos falando de um estar coletivo em movimento, que se utiliza da crise para construir e criar possibilidades de estar junto.

QuandoosGuaraniseapresentam,trazemparaocenárioseumododemovimentar-se, de ser dança, revelando a riqueza de sua cultura e provocando umareflexãosobreosentidoeosignificadodadançanocontextointercultural.Observoque,entreosGuarani,aapresentaçãoéumestímuloeumaafirmaçãocultural, na qual eles fazem vibrar um corpo próprio. Trazem a dança como um movimento no qual qualquer pessoa pode inserir-se. Em diversas oportunida- desdesuasapresentações,verifiqueique,quandosentiamumpúblicomaisreceptivo, faziam convites para que as pessoas entrassem também na dança. O corpodançantetemopoderdereconstruirmemóriasatravésdasimbolização,atuandocomolinguagemecomocomunicaçãodessas.

Na apresentação descrita, uma mulher relatou que, depois de vê-la,entendeuaculturaGuarani,entendimentoesteadvindodessarelaçãoquetocapeladimensãoafetiva.NaspalavrasdosGuarani:“adançaeocantotêmopoderdeemocionar”.Paraesses,aemoçãoéumaperspectivadeintegraçãoeaceitaçãodesuacultura.Amúsicadionisíacagrega,conformeNietzsche(1992),tambémteveestafunção:adefazercomqueosmitosfossemrevividos,pela

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intuição,pelacapacidadedeemocionar,poderessequeoespíritocientíficoaniquilou, excluindo a poesia de sua própria natureza.

Ogrupodedançaeasapresentaçõesrepresentamumaintegração,umretornoàparticipação,quesignificouparaosjovens:

[...] um espaço para valorizar a cultura que tem, vendo, praticando, se apresentando.Senãomostramos,nãovamosvalorizar.Ascriançassentemvontadedeestarnogrupo.Époraíqueagentevaibuscandoo jovem.PorquequequandooAdrianodiz:“vamoscantar”,evêmmuitos?Masépreciso apresentar (Marcos – Canta Galo).

Podemosfalarqueaorganizaçãodosgruposdedançaéummovimentodos jovens, os quais passama ser referênciapara as crianças.Esse espaçotorna-seumareelaboraçãodomododeserjovemGuaranie,porconsequência,cria um novo diálogo com os mais velhos. Estes, quando conseguem manter suacondiçãodemestreseconselheiros,sãosempreenaltecidosevalorizados.ÉumapulsaçãonecessáriaevitalentreaJerojy,adança-oraçãoeosgruposdedança,adança-política,ambasconstituindoespaçosdeeducaçãoeaçãocoletiva. Marcos relata que:

Ocantonãoéformaçãodacabeça.Omaestrosededicaparasonharevira música. Ele tem que participar das cerimônias. Toda vez que o Guarani vaifazerumaapresentação,agenteestáemcontatocomNhanderú.Nãocantamsóporcantar.SeelenãoestánaOpyeestácantando,éumaoraçãoqueeleestáfazendo.Asmúsicaseaspalavrasestãoligadasaoguardiãodo espírito, de Nhanderú. A música, a dança é inexplicável. Para entender o que quer dizer Jerojy,ésópraticando.Antes,eunãoentendiaoqueéJerojy. Depois que eu pratiquei, eu entendi: o canto cantado para a nossa mãeTerraedançadoparaNhanderú [...] Futuramente, um deles vai ser o maestro. Este tem que se dedicar muito para isso, até para ele entender e contarparaogrupodedança.TodasasmúsicascantadassãoindicadaspeloKaraí[...]TodososcantossãooscantosqueosKaraícantam.

PensandosobreoscaminhosdeconstruçãodoGuaranijovemedovelho,AlbertodefineadançaJerojy e problematiza os saberes dos antigos, indagando para si mesmo como podem acreditar que numa terra vizinha existem cidades e deuses:

Adança é como implorar aDeus para queDeus tenha piedade.É umesforço que o Guarani faz para alcançar a Terra sem mal, porque quando sua, o corpo está tirando fora o pecado do mundo, quando sente cansaço, estecansaçotemdedesaparecer,fazerforçaparaqueocorpofiqueleve[...]OvelhoacreditaquenessaTerra,oDeusexiste,equeagentenãoenxerga,porqueépecador.Quandooanciãodança,sentequeestánaTerraSagrada.

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Ascriançasestãoemcontatopermanentecomosprofessoresjovens,oquepossibilitaqueseconstituamcomoreferência,poismuitasdestascriançasperderam os referenciais de sua própria cultura. Pude acompanhar alguns jovens emsuasbuscaspeloconhecimentojuntoàsliderançasantigas,dentrodeumaconstantereflexãonocontatointerétnico.Parasesentiremmaisintegrados,ascrianças necessitam aprender com os mais velhos. O reencontro com o valor própriosedáàmedidaqueháumaconstruçãocomunitária,naqualosKaraíeconselheirossãosujeitosfundamentais.AdrianosemprefaziareferênciaaDonaPauliciana,Cunhã-KaraídaaldeiadoCantaGalo:“APaulicianaestámeensinando os cantos. Eu estou cantando na Opy”. Ele também levava o grupo para cantar dentro da Opy.

Há também o aprendizado entre os jovens. Nessa aldeia, fui observando queexisteumacontinuidadepulsante,quefazcomqueosprojetosnãomorram,que as sementes sejam cuidadas. O Arlindo deu algumas de suas letras de cantos,eoAdrianocomeçouafazeroutras,buscandoaprendercomoirmãooscaminhosaseguir.Perceboqueogrupodedançaconseguemanter-seàmedidaqueosprofessoreseoscoordenadoresmantêmumenraizamentocomaculturae uma certa maleabilidade para tratar com as lideranças mais antigas.

AsapresentaçõesdasdançasGuarani,osrelatosdosjovens,asituaçãodos velhos nos fazempensar sobre ummovimento e discussão recorrentessobrecultura,tradiçãoetransformaçãonassociedades.Asdançasnãoestãoforadessemovimento.Aocontrário,podemosperceberoquantoelasrefletemou anunciam esses movimentos.A contextualização desses fatos torna-seum conhecimento necessário para os Guarani como fonte de análise para os caminhos que desejam realizar em sua história.

PerceboqueexistemalgumasalteraçõesentreasetniasChiripáeMbyá.Porexemplo,naaldeiadoCantaGalo,ondeviveumnúmerosignificativodeindivíduos da etnia Chiripá, os integrantes do grupo de dança ocasionalmente colocampenasecocares,permitindo-semaioresvariaçõesnasdanças.Arlindoafirmouque,comotempo,ostermosdadançavãomudando.Elesereferiaaos termos Tangará e Xondaro,conformeexpliquei.JáosMbyáafirmamnãousarem penas.

Adança é uma lembrançada consciência de ser umGuarani, é a re- presentaçãodamemóriainstauradanocorpoenomovimento.Éumamemóriaidentitária que, ao contrário de diluir-se, necessita ser diferenciada como resistênciapolítica,comoalteridade,diferentementedaperspectivareligiosa,que exercita o dissolver-se, o transe, o ir além, a espiritualidade que traduz outradimensãodaidentidadeGuarani.Paradoxalmente,afluidezdocorpoéum instrumento de defesa, como diz Arlindo: “dançamos para manter o corpo macio e para saber lidar com a dureza de alguns corpos”.

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Bauman(2003)refereumatensãopermanenteentresegurançaeliberdade,entrecomunidadeeindividualidade.Suadefiniçãodecomunidaderemete-meao sentido da Jerojy, realizada no espaço ritual da Opy:

Umlugarcálidoeaconchegante.Écomoumtetosoboqualnosabrigamosdachuvapesada,comoumalareiradiantedaqualesquentamosasmãosnumdiagelado.Láfora,narua,todasortedeperigoestáàespreita;temosqueestaralertasquandosaímos,prestaratençãocomquemfalamoseaquemnos fala, estar de prontidão a cadaminuto.Aqui na comunidadepodemos relaxar – estamos seguros, não há perigos ocultos em cantosescuros.Numacomunidade,todosnosentendemosbem,podemosconfiarno que ouvimos, estamos seguros a maior parte do tempo e raramente ficamosdesconcertadosousomossurpreendidos.Nuncasomosestranhosentrenós.Podemosdiscutir–massãodiscussõesamigáveis,poistodosestamos tentando tornar nosso estar juntos ainda melhor e mais agradável do que até aqui e, embora levados pela mesma vontade de melhorar nossa vida em comum, podemos discordar sobre como fazê-lo. Mas nuncadesejamos má sorte uns aos outros, e podemos estar certos de que os outros ànossavoltanosquerembem.(BAUMAN,2003,p.7)

Em conversa com o Vítor, jovem de nacionalidade argentina, xondaro da LombadoPinheiro,indaguei-oquemhavialheensinadoadançar.“Quenembailedevocês,agentecopiadosoutros”. Sobre o que sentia quando dançava, este falou:

Eu, dançando assim na nossa dança, eu me sinto [...] para limpar o corpo, paramelhoraranossavida,nósGuaraniéoutrotipodedança,nãoéquenemvocês,édiferente.Seeuestoumesentindodoente,eudançoadançadosGuarani.Quandoeudancei,eulevantava,paramelhoraravida.Sintoo corpo mais suado, mais quente.

LembrodequandoSeuAdãozinho,umsenhordemaisidaderesidentena aldeia do Canta Galo, faleceu, e Dona Pauliciana pediu para que ninguém saísse da aldeia e que todos deveriam concentrar-se para abrir os caminhos. Eu e meu marido íamos viajar com o Marcos para a aldeia de M´biguaçú e só ofizemosumdiadepoisdesuamorte.Nessemesmodia,tambémfuiavisadanofinaldatardedequenãoseriabomeudormirnaaldeia,comohavíamoscombinado. A ideia do “nunca somos estranhos entre nós” é continuamente ressaltada nos aspectos mais sutis.

Assim fui conhecendo os detalhes dessa vida comunitária, através das relaçõescotidianas.Esseeoutrosexemplospermitiram-medescobriraexistênciadeumaconsciênciasingularcoletiva,atravésdaqualaprendemosque uma atitude pessoal reflete-se numadimensãode estar coletivamente.Portanto,aindividualidadenascedesseexercícioedasopçõesqueotempovai

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ensinando, como um mestre que orienta os caminhos nos passos da autonomia, já iniciados nos movimentos das crianças, que aprendem desde cedo que a dança é um movimento de “ir juntos”, no sentido de estar exercitando per- manentemente um jeito de ser e estar coletivo.

Referências

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VII LEI, DIGNIDADE E ESPAÇO NO MUNDO

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17 A luta contemporânea do Movimento Internacional Indígena por direitos: a Declaração das Nações Unidas de

13 de setembro de 2007JoãoMitiaAntunhaBarbosa

Marco Antonio Barbosa Pablo Antunha Barbosa

A mídia brasileira passou a divulgar nos últimos meses do primeiro semestrede2008umgrandenúmerodedebateseopiniõesrelativosàquestãoindígenacomoháanosnãosetinhaaoportunidadedeassistir.Adiscussãosobreessetemaaumentou,fundamentalmente,porduasrazões.Emprimeirolugar,depoisdadecisãodoSupremoTribunalFederaldereavaliarahomologaçãoda Terra Indígena Raposo Serra do Sol, em Roraima, e em segundo lugar, depois da adoção, em13de setembrode2007, daDeclaraçãodasNaçõesUnidasdeterminandoumanovarelaçãoentreospovosindígenaseosEstadoseestabelecendoosdireitosindígenasnoplanointernacional.Acoincidênciatemporal desses dois fatos históricos é interessante de ser analisada. Ela permitiuquetransparecessemosconflitosideológicos,políticoseeconômicosligadosàsquestõesdeterra,soberanianacionaleautodeterminação.

Em seminário organizado pelo Clube da Aeronáutica do Rio de Janeiro, em 29 de maio de 2008, para discutir o tema “A Amazônia e a Realidade Brasileira”, estiveram reunidas personagens ilustres. O Governador do Estado de Roraima, José de Anchieta Júnior, o sociólogo e membro da Academia Brasileira de Letras,Dr.HélioJaguaribe,eoProf.Dr.JoãoRicardoModerno,presidentedaAcademiaBrasileiradeFilosofia,entreoutras.OgovernadordeRoraima,JosédeAnchietaJúnior,reiterousuaposiçãosobreainconstitucionalidadedahomologaçãodaterraindígenaRaposaSerradoSol.OpresidentedaAcademiaBrasileiradeFilosofia,JoãoRicardoModerno,porsuavez,afirmouqueaspopulaçõesindígenassãoa-históricasepermanecememestadodenatureza(enãodecivilização).

O Dr. Moderno acrescentou que, desconhecendo categorias tais como desenvolvimento,governoenação,osíndiossãoincapazesdereivindicá-lasporsimesmos,comosevênaDeclaraçãodaONUde2007.Afirmouaindaqueseofazem,éporincitaçãodosantropólogos,que,nasuavisão,deixaramde fazer ciência para desempenhar o papel político de “corruptoresmoraisdasociedade”.Modernodefendeaindaaposiçãosegundoaqual“ogoverno

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brasileirodeuumgolpenoBrasilaoassinaraDeclaraçãodasNaçõesUnidassobre os Direitos dos Povos Indígenas, em setembro de 2007” (2007, p. 24). Segundo ele, as ONG’s internacionais orientam as “tribos” quanto as suas prioridades e estratégias a serem adotadas.A aceitação dessa Declaraçãosignificaria para ele “a institucionalização da regressão ao primitivismo”(idem).

Pode-se observar que nesse evento, mas também em outros espaços públicos, a análise sobre a “problemática indígena” ofertada por políticos e intelectuaisdeconhecidareputaçãonãoestásendoanalisadaemsuadevidacomplexidade histórica, jurídica e social. Nesse sentido, vale questionar o quanto cabe de verdade nesses discursos que estarrecem pelo tom preconceituoso, quando tratam, cada um ao seu modo, da “problemática indígena”.

Nãoénecessárioelaboraraquiumacríticacontundentedessesdiscursos.Apenas vale ressaltar que eles se constituem em uma das diversas facetas da profundaincompreensãosobreaspopulaçõesindígenasdoBrasiledomundo.Recorrendo-se aos dados históricos, é possível demonstrar que o argumento sobreintegridadeterritorial,soberanianacionalesecessãonãosóéinadequado,como também antigo e deslocado no contexto brasileiro.

Mais que isso, por trás desses argumentos, que se sustentam numa falsa teoriainventadapelosideólogosdoneocolonialismodofimdoséculoXVIIIeinício do XIX, segundo a qual as diferentes sociedades humanas poderiam ser classificadasdeacordocomgrausdedesenvolvimentosocial,correspondendoomaisaltoàssociedadeseuropeiaschamadas,porseusprópriosintegrantes,de “civilização”, escondem-se aqueles que se mobilizam para combatera política de demarcaçãode terras indígenas e os direitos de autonomia eautodeterminação, agora previstos naDeclaração daONUde setembro de2007.

Nesse sentido, os argumentos de intelectuais e políticos, como os citados, demonstram com toda a clareza os efeitos perversos do evolucionismo social no qual se baseiam. Esse tipo de argumento, utilizado por personalidades de destaquenasociedadebrasileira,apenasconfirmaosefeitosdocolonialismointelectualnaperiferia.Taisdiscursossãomiméticos,cientificamentefalsosehistoricamenteanacrônicos.Dizemtemer,comademarcaçãodeáreasindígenasnasfronteiras,aingerênciadeinteressesestrangeiros.Porém,aodizeremoquedizem, tornam-se eles próprios a voz dos seus inimigos imaginários.

Por esse e outros motivos, é importante ressaltar nessas linhas como evoluiu o movimento internacional indígena, que culminou no último dia 13 desetembrode2007,naDeclaraçãodasNaçõesUnidassobreosDireitosdosPovos Indígenas. Ou seja, restituir a historicidade do movimento internacional indígenaeassimafastarcertasimagenserrôneas,mostrandoqueadiscussão

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sobrerepresentação internacionaleautodeterminaçãojávemsendotravadahá décadas no espaço internacional e nacional. Além disso, o movimento internacional indígena por direitos é e sempre foi de iniciativa e protagonismo dos próprios povos indígenas.

Assim, o presente trabalho parte da primeira iniciativa internacional indígenapordireitos,ocorridanosanos20,doséculoXX,frenteàLigadasNações,queprovocoufortereaçãocontráriadosgovernosdoCanadáedosEstados Unidos, com graves efeitos para as comunidades indígenas desses países emesmo, na sequência, para todos os povos indígenas domundo.Essareaçãogovernamentalinternadosórgãosindigenistasoficiaistratoudesubstituir os sistemas tradicionais de autoridade e poder desses povos pelo ocidental eletivo, sob a alegaçãodequeos sistemas tradicionais não eramdemocráticos. Além disso, concomitantemente, foi desenvolvida, nos Estados Unidos,apolíticadeurbanizaçãoindígena.Essesdoismodosdeinterferênciativeram impacto muito negativo sobre as sociedades indígenas, levando muitos indígenas a se depararem com o sistema penal e prisional. Essa dupla interferência provocou a reação organizativa domovimento indígena parareivindicar direitos. Esse movimento indígena norte-americano e o seu duro enfrentamentocomogovernoeosórgãosrepressivosdoEstadoprovocaram,porsuavez,aampliaçãodasestratégiasde lutaparaoplano internacional,juntoàONU,apartirdaúltimametadedosanos70doséculoXX.

Inicialmente, um movimento norte-americano, quando ganha a cena internacionalem1977,expande-se,nasequência,paraummovimentoindígenadastrêsAméricasedepois,poucoapouco,ganhaadimensãodemovimentodetodosospovosautóctonesdomundo.Dessaforma,aampliaçãodomovimento,asreivindicaçõesquelhevãodandounidade,asdificuldadesdetodaordem, tendoemvistaadiversidadedepovosedeEstados são, também,objetodeatençãonapresenteanálise.Opontomaisdelicadodetodaaaçãoediscussãofrente àONU, até chegar àDeclaração de 2007, diz respeito ao direito deautodeterminaçãodospovos.Esse,portanto,seráoprincipalfocodeanálise,nopresenteestudo.Paraaboacompreensãodo tema,analisar-se-á também,comofoitratado,discutidoeaplicado,odireitodeautodeterminaçãodospovosnosanos50e60,duranteoprocessodedescolonização,sobretudodaÁfricaedaÁsia.Igualmente,serãoapontadasasdificuldadesenfrentadaspelospovosindígenasparaqueomesmodireitofosse,finalmente,reconhecidoaelestambém,pelaDeclaraçãode2007,comasressalvasenuancesconstantesdotexto.

Ao tempo da Liga das Nações

Nosanos20doséculopassado,teminíciooprocessodereivindicaçãodedireitos indígenasnoplano internacional juntoàLigadasNações.Levi

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General, mais conhecido pelo título de Deskaheh, representante do povo Iroqui, de Ontário, Canadá, foi o primeiro, de que se tem notícia, a levantar a bandeira delutapelaautodeterminaçãodospovosindígenasnoplanointernacionalereivindicouoreconhecimentodaindependênciadeseupovo(ROSTKOWSKI,1985, p. 151).

AaçãodeDeskahehparaqueoseupovofosseaceitonaLigadasNaçõesacabou frustrada. Prevaleceu a posição contrária dosEstados constituídos.Paratalresultado,foidecisivaaaçãodadiplomaciacanadense,quenãosódissuadiu os Estados que tinham inicialmente se mostrado receptivos ao pleito de Deskaheh como também atuou intensamente junto aos demais Estados integrantes da Liga das Nações a fim de isolar e abortar a sua iniciativa(idem).

No início dos anos 20, desentendimentos cada vez maiores ocorriam entre oConselhodosChefeshereditáriosdoGrande-Rio,ConselhodasSeisNações,e o Canadá. Esses desentendimentos decorriam de certas emendas que vinham sendo adotadas pelo governo canadense ao Indian Act, consideradas pelos chefesIroquiumatentadoàsuasoberania.Esseschefeslutavamparamantersualiberdadedeaçãoeoseusistematradicionaldegovernoconsensualesesentiam ameaçados no exercício do seu poder. Contestavam a validade dos princípiosdeum textoquenãodeveria, emsuaopinião, ser impostoaumgoverno autônomo (idem).

Esse antagonismo foi reforçado no decorrer da Primeira Guerra Mundial, quandooConselhodosChefesdeclarou-secontrárioàparticipaçãodasSeisNaçõesnoconflitoarmado,mesmonão tendo impedidoosseus indivíduosde participar a título pessoal. Imediatamente, no ano seguinte à guerra, oCanadáadotouradicalmudançanapolíticaindigenista:denãoingerênciaparaassimilação.OsChefesdasSeisNaçõesreagiramfortementereivindicandomais do que nunca o reconhecimento de sua soberania (idem).

Amelhorformaderesolveressesconflitos,paraDeskaheh,erasedirigiraumorganismointernacionalafimdeobterarbitragemsobreospontosobjetodelitígio. Ele se considerava o representante de um Estado soberano, reconhecido comoNaçãoindependentepeloTratadoHaldimandde1784,firmadocomoReiJorgeIIIdaInglaterra.OTratadoreconheceuaosIroquileaisàcoroabritânicaduranteaguerradeindependêncianorte-americanaodireitoaoterritóriodoGrande-Rio,situadonoladocanadensedolagoErié,emsubstituiçãoàsterrasque perderam no solo dos Estados Unidos (idem).

ÉfatoqueDeskahehconseguiumobilizarumapartedaopiniãoeuropeiaemfavordesuacausa,noperíodoemqueatuoujuntoàLigadasNações.Porém,parece ter precipitado as reformas canadenses contra as quais justamente se posicionava,poisnoseiodaSociedadedasNações–SDN,o“casoDeskaheh”

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determinouaorientaçãodasnegociaçõesqueoutrosgruposindígenastentaramestabelecercomosorganismosinternacionais.Depoisdesuaação,osgruposindígenas passam a ser recebidos pelas organizações internacionais nãomaisenquantoNaçõesouPovos,mascomo“gruposétnicos”ou“minorias”.Finalmente,noiníciodosanos70,passamaserdesignadospor“populaçõesautóctones”, de modo que, segundo Rostkowski (1985, p. 154), “sob muitos aspectos,amissãodeDeskahehaomesmotempoúnicaeexemplarmarcaofimdeumaépoca”.

Ogovernocanadense,emrespostaàpetiçãodesoberaniaencaminhadaporDeskahehàSDNnaquelesanos20,contestouessasreivindicações.Afirmou(oCanadá)queasSeisNaçõesnãoseconstituíamemEstado,nostermosdoartigo17daCartadaSDN,enãopreenchiamascondiçõesparasetornaremmembros da organização. Eram, segundo esse Estado, “sujeitos daCoroaBritânica”, residentes no Domínio do Canadá e, ainda, as Emendas recentes feitas ao Indian Act, bem como o Enfranchisement Act, de 1919, tinham por finalidadeconduzirosíndiosà“plenacidadania”,inclusivecomoeleitores,afimdeestimularasforçasdo“progresso”emsuacomunidade(idem).

Ogovernopersa, que semostrara sensível aopleitodasSeisNações,em10deabrilde1924,comunicouaoseurepresentantenaLigadasNações“quenãodesejavaintervirnessecasoequedeveriapôrtermonasnegociaçõessobreaquestão” (ROSTKOWSKI, idem,p.161).AGrã-Bretanha,por suavez,convenceutambémosoutrosEstadosdefensoresiniciaisdasSeisNaçõesaseretiraremdocaso,assimtodasasaçõesinicialmentefavoráveisàcausadeDeskahehsedissiparam.OCanadá,emsuacontestação,acaboutambémporatacarosistematradicionaldepoderdasSeisNaçõesdizendoqueeleeraincapazde assumir a gerênciadeumacomunidade emmutação, propondosubstituí-lo pelo sistema eletivo. De fato, em 21 de outubro de 1924, uma eleiçãotevelugareseconstituiuumnovoconselhoeletivo,emsubstituiçãoao conselho hereditário (idem).

Nofinalde1924,DeskahehpartedeGenebrajámuitodoente.Terminousua vida nos Estados-Unidos, junto aos Iroqui desse país, exilado que foi do Canadá e do território pelo qual tanto lutou, morrendo em junho de 1925 (idem).

Esse episódio da luta internacional por direitos, desencadeada por DeskahehfrenteàLigadasNações,naprimeirametadedoséculoXX,éumamostra da situação dos povos indígenas no universo dos Estados-Nações.Manipulandoprincípiosdemocráticosedevalorizaçãodedireitosindividuais,imiscuíram-se no sistema de poder dos Iroqui do Canadá, ferindo-o brutalmente ao substituí-lo por eleições “livres e democráticas”.Esses fatosmostraramtambémquea“SociedadedasNações”nãoera,defato,sociedadedenações,

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mas “Sociedade dos Estados”, os quais, acautelados, rebaixaram os autóctones depovosparapopulações,oqueperdurouatéoadventodaDeclaraçãodasNaçõesUnidasde2007(idem).

Osdemaislíderesindígenasqueretomaramalutanofinaldosanos70nunca deixaram de se referir a Deskaheh como o pioneiro e visionário.

Dos Estados Unidos da América às Nações Unidas – ONU

O movimento internacional indígena se inicia nos Estados Unidos, nos anos70,pelaaçãodoInternational Indien Treaty Council (IITC),organizaçãoindígena norte-americana que, em 1974, promoveu a ocupação do localconhecido como Wounded knee, onde, em 1890, houve o último massacre coletivo praticado pelo exército norte-americano, no qual morreram homens, mulheresecriançasindígenas,osLakota(Sioux),equecorrespondeàúltimaetapa da conquista do oeste americano (BARBOSA, 2001(2), p. 248).

Nos anos 30 do século XX, é criado o Departamento de Assuntos Indígenas dos Estados Unidos. Por ocasião de sua instalação, esse órgãocomeçaatrabalharnosentidodeinduziraadoçãodegovernoseleitospelascomunidades indígenas, sob inspiração domodelo democrático ocidental,comojáhaviaocorridonoCanadá,(entreasSeisNações,emrepresáliaàaçãodeDeskahehemGenebra),frenteàLigadasNações(idem).

Essa prática dividiu as comunidades indígenas pela quebra de seus sistemas tradicionais de poder e de representação política.Atualmente ospovosindígenasnorte-americanosfazemdetudopararecuperarseuspadrõestradicionaisdeorganizaçãosocialepolítica(idem,p.247eROULAND,1996,p. 373).

Alémdisso,oDepartamentodeAssuntosIndígenasdesencadeouaçõesvisandoàurbanizaçãoindígena.Nosanos50,criouprogramadeassistênciaaoemprego incentivando os indígenas a deixarem as reservas e a se integrarem na vidaurbana.Issotambémcontribuiuparaadivisãoeoenfraquecimentodascomunidades (BARBOSA; 2001(2) e ROULAND, 1996, idem).

Em consequência, inicia-se um movimento de resistência entre osindígenasdenunciandoasviolaçõesdeseusdireitosgarantidospelosTratadosestabelecidosnoiníciodasrelaçõescoloniaisenoperíodoseguinte(idem).

Emrazãodessesedeoutrosfatores,muitosindígenasnorte-americanosacabaram tendo que se deparar com o sistema penal e prisional, de tal sorte queatéhojeexistemmuitosnasprisões.Muitosjovensforamparaasprisões,inclusive para Alcatrazes, onde iniciaram o American Indiem Movement (AIM) e,apartirdasprisões,começaramaestabelecerligaçõescomosanciãosdasaldeias. Foi assim que, em 1974, esse movimento ocupou o local denominado Wounded-knee, o mesmo do massacre de 1890, antes citado (idem).

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Nessa ocasião, o exército norte-americano estevepronto a intervir denovo.JimmyDurham,indígenaCheroki,afirmouqueoexércitoestavaprontoatestarnovasarmascontraeles,eissosónãoteriaocorridopeloapoioquereceberamde associações pró-indígenas, sobretudo europeias. Porém, seuslíderes foram presos e acusados inclusive de matar agentes do FBI. Um deles, LeonardPeltier,encontra-seatéhojenaprisão(idem).

Foi o Movimento Indígena Americano (AIM) que criou o IITC – Conselho Internacional dosTratados Indígenas, sendo que, a partir da ocupação deWounded-knee, Jimmy Durham refugiou-se em Genebra, onde fez os contatos com o meio internacional e com a comunidade de Genebra e provocou a realizaçãoda IConferência,de1977,nasNaçõesUnidas. Issopossibilitouqueem1982aONUcriasseoGrupodeTrabalhosobrequestõesindígenas–GTPI (BARBOSA, ibidem).

Assim, oGrupo deTrabalho sobre Populações Indígenas (GTPI) foi instituído na ONU em 1982, depois da I Conferência Internacional dasOrganizaçõesNãoGovernamentais,realizadaem1977naprópriaONU,emGenebra.

Essa I Conferência foi dedicada ao tema da “discriminação racialcontraospovosindígenasdasAméricas”eteveapresençadeíndiosdastrêsAméricas.

Em1981,realiza-seaIIConferência,agorajáespecificamentededicadaaos povos indígenas, a terra e ao controle do desenvolvimento de seus territórios.EssaConferência insistiusobrea internacionalizaçãodaquestãoindígena,ampliando-adeamericanaparamundialesolicitouàONUacriaçãodeumGrupodeTrabalhoencarregadodaquestão.

Constituição, dinâmica e ampliação do movimento

O movimento internacional indígena, como se pode perceber das resumidas informações anteriormente, inicia-se nasAméricas e se expan- de em seguida para o norte da Europa, com a adesão dos povos Sami e Inuit, depois atinge também o Pacífico, sobretudo o Havaí (BARBOSA,2001(2)).

Estende-se,nasequência,aoutrospaísesdopacífico.Primeirocomosaborígines da Austrália e com os Maori da Nova Zelândia, Papua da Nova-Guiné, com os indígenas de Bouganville e depois com os indígenas asiáticos (idem).

Desde o início, houve também a presença dos indígenas das Filipinas e,finalmente, daÁfrica.NaÁfrica, ospigmeus talvez tenhamsidoospri- meiros a participar, depois osMassai, doQuênia e osTuaregue, doSaara(idem).

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Na África, até muito recentemente o movimento era muito fraco e a postura dos governos dos Estados africanos, como também de muitos governos da Ásia foi simplesmente de dizer: somos todos indígenas (BARBOSA, 2001(2), p. 264-5).

NocasodaRússia,jáantesdaquedadomurodeBerlim,houverelaçõesentre os Sami e os Inuit dos países nórdicos com os mesmos povos situados na Sibéria, bem como com outros povos indígenas da Sibéria. Com a queda domuro, essas relações se ampliaram.NaRússia, ou dentro do que foi aURSS,aquestãoeraconfusaporque,entreoutrasrazões,haviaformalmenteoreconhecimentoderepúblicasindígenas,sendoqueasprimeirasdelegaçõesindígenas presentes no GTPI da ONU tinham como participantes parlamentares daURSSedeindígenasnãoparlamentares,sendoqueestesnãoaceitavamosprimeiros como indígenas.

As primeiras reivindicações e suas razões

Apartirdosanos70,asprimeirasreivindicaçõesindígenasnocenáriointernacional dirigiram-se contra a discriminação racial. Foram à cenainternacionalparadizeraomundo:“nósexistimos,temosodireitoàvidaeànossa própria vida cultural” (BARBOSA, 2001(2), p. 250).

Assim,alutapordireitoscomeçouemrazãodadiscriminaçãoracialdequesãovítimas.ApósadescolonizaçãodaÁfricaedaÁsia,nosanos50e60,otemadadiscriminaçãoracialpassouasermuitovalorizadonomundoocidental, e os indígenas perceberam que eles eram colonizados internos e que todososinstrumentosinternacionaisrelativosàdescolonizaçãopoderiamseraplicados a eles (idem).

Éprecisotambémlembrarque,comasdescolonizaçõesdosanos50e60,novospaísesassimformadospassamaintegraraONUe,nasequência,setornarammajoritáriosdentrodessaorganizaçãointernacional.

Esseprocessoparaosindígenasfoimaisummotivodedecepção,poisosantigospaísescolonizados,nomomentodesuasindependências,nãoquiseramreconheceraospovosindígenasodireitodeautodeterminaçãoqueelesprópriosobtiveram.

Aoafirmaremodireitoàexistêncianessasreivindicaçõesapresentadasnoanode1977,imediatamenteafirmaramoseudireitoaterra,poisdomesmomodoquelhesénegadoodireitoàexistênciaétambémnegadoodireitoasterras. ÉporissoqueaIIConferência,realizadaem1981,versousobreaterra.Na lógicaindígenaissoeraabsolutamentenormalporqueosindígenasnãopodem viversema terra.Essadireçãodasreivindicaçõesexpressadaseconduzidas naONUconfirmaque se tratoudesdeo iníciodeummovimento indígenaautêntico,independentementedasdiversasinterferênciasvindasdefora.

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Povos indígenas e Estados: posições assumidas no plano internacional

Asposições, seja dos próprios povos indígenas, seja dosEstados nosquaisvivem, sãomuitas emuitodiferentes entre si a respeitode inúmerostemasenvolvidoseobjetodediscussãoaolongodaexistênciadoGrupodeTrabalhosobrePopulaçõesIndígenasdaONU.

Nocasoindígena,existemuitadiferençanãoapenasentreassituaçõesdos povos autóctones dos diferentes hemisférios, mas também dentro deles e ainda dentro dos quadros regionais. Nunca se deve esquecer de que os povos autóctones domundo são em grande número, cada qual com sua cultura,organização social e história específica.Porém, omovimento internacionalindígenapordireitostevequebuscarpontosdecomunhãoparaseestruturare se desenvolver. Uma forma, portanto, de apresentar aproximadamente a situaçãoparaefeitosdecompreensãoéenxergarasgrandesregiõesdomundoonde certo número de povos indígenas se localiza e nelas ressaltar os fatores maisevidentesdeunidaderegional.Assim,aapresentaçãoqueseseguepartede tal perspectiva.

Épossível,nesseslimites,representaroquadrocomosendoformadoporgrandes regiões domundo.Emprimeiro lugar, despontamos indígenasdoCanadá, dos Estados Unidos, da Austrália e do Havaí, que vivem uma realidade parecida,ondemuitossãourbanizados,sofremdealcoolismo,fazemusodedrogas,muitasvezes sãopresos, e apresentam taxademortalidade infantilelevada, comparativamente àmortalidade infantil não indígena damesmaregião. É preciso saber que as diferenças entre indígenas e não indígenasnessespaísessãomuitograndes.Hátambémmuitamortalidadeinfantilentreos indígenas da América do Sul, por exemplo, porém, ela existe também na populaçãonãoindígena.Nessesentido,adiferençanaAméricadoSulentreindígenasenãoindígenasnãoétãogrande.Essespovosautóctonesdospaísesricossãoosintegrantesdo“quartomundo”,sãoospobres,osmarginalizadosdentre os povos ricos. Nesse grupo dos povos indígenas vivendo em países ricos,devemserlembradosaindaosSamieosInuit.OpovoSamioulapãovivenasregiõessetentrionaisdaNoruega,Suécia,Finlândiaenapenínsulade Kola, na Rússia. Trata-se de um dos maiores grupos indígenas da Europa, totalizando cerca de 70.000 pessoas, é o povo criador de renas. Inuit é um termo genérico que designa um grupo culturalmente similar que habita o ÁrticoeregiõesdoAlaska,GroenlândiaedoCanadá,tambémconhecidosporesquimós (BARBOSA, 2001(2), p. 264).

Como integrantes da segunda grande região, podem ser referidos osindígenas do centro e do sul das Américas, que formam outro bloco regional que se tornou bastante forte no processo da luta internacional por direitos frenteaoGrupodeTrabalhosobrePopulaçõesIndígenas(GTPI)daONU.Os

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indígenasquevivemnoBrasilsãoosmenosintegradosaessegruporegional,tantoporcausadalínguaquantopelofatodequenãocompareceramaolongodesse tempo com regularidade nos foros da ONU (idem).

AterceiragranderegiãoéconstituídapelosSiberianoseédiversadasdemais. Ao longo do processo de consolidação do movimento indígenainternacional, iniciado nos anos 70, e frente ao GTPI-ONU instituído em 1982, foram bastante ajudados em seu processo integrativo pelos Sami e pelos Inuit dos países europeus. Esses dois povos desempenharam papel fundamental paraaintegraçãodosprópriosSamiedosInuitdaSibériaedosoutrospovosautóctonesdessaregião(idem).

É necessário fazer referência ainda aos índios do Pacífico que têmrelacionamento entre si: os Maori da Nova Zelândia, os Maori da Polinésia francesa e os Maori do Havaí. Constituem um mesmo povo, mas, ao mesmo tempo, foram divididos, porque uns foram colonizados pelos ingleses, outros pelosamericanoseoutrosaindapelosfranceses.Issonãofacilitasuasrelações.Porém,têmseorganizadoevêmtrabalhandojuntosmaisemaisaolongodotempo (idem, p. 265).

Existem também os povos autóctones da Ásia, havendo similaridades entreindígenasdaChina,daÍndiaedoJapão.Noentanto,oJapãoéumcasoàpartenaÁsia,tantoporquejáéumpaísbemdesenvolvidoquantopelofatodequefoiumpaísmuitoisolado,frenteaosoutrospaísesdaÁsia.OJapãoesteveaoladodosalemãesnaSegundaGuerra,enquantoqueosoutrospaíseseramdominadospelosinglesesoupelosfranceses.IssotambémnãofacilitaasrelaçõesentreosindígenasdoJapãoedosdemaispaísesdaÁsia(idem).

Finalmente,temososautóctonesdaÁfrica.Sãopovosmuitodiferentesentre si, apesar de experimentarem uma solidariedade regional. Em geral, querem também falar em nome da África e não somente dos indígenas;como se disse, foram os mais tardios a integrarem o movimento autóctone internacional.

Concluindo, pode-se dizer que dentro desses blocos regionais gros- seiramenteapresentadospode-seperceberumamaiorsolidariedadeemrazãotantodaproximidadequantodosprocessoshistóricosvividosnasregiõesondeestãolocalizados.

No plano mais amplo do conjunto internacional ainda há muitas dificuldades, tanto em razão da grande diversidade linguística, culturale histórica quanto pelo fato de que se trata de um movimento ainda muito jovem.Pode-se,noentanto,afirmarqueexisteumasolidariedadenascenteeseconsolidando de modo muito promissor. Existe um sentimento generalizado de semelhança que une todos esses povos a despeito de suas grandes diferenças. O sentimentodesemelhança,entreoutrosfatoresdecorre:a)darelaçãoprofunda

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e sagrada com suas terras e territórios; b) dos direitos reivindicados no plano internacional; c) da experiência histórica comum de discriminação dentrodos Estados em que vivem; d) da fragilidade ou da falta de garantia de suas terras e territórios. Existe, de um modo geral, uma solidariedade profunda, comtodasaslimitaçõesdecorrentesdosinúmerosfatoresimplicadoseexistetambémdesconhecimentodasrealidadesespecíficasdecadapovoquantodecada bloco regional, o que impede, muitas vezes, um consenso: gostariam de terumconsenso,masasrealidadessãomuitodiferentes(idem,p.266).

A despeito disso tudo, as reivindicações no plano internacional sãobasicamentequaseasmesmas, independentementedaregião.Pareceexistirumaênfasemaiorpelaautodeterminaçãonohemisférionorte.NaAméricadoSul,quasetodosvãodizer“nãoqueremosfalardeindependência,queremosasoberaniadentrodenossospaíses”.Issoporquenessaregiãoospovosautóctonesmuitas vezes constituemamaioria da populaçãodentro dopróprioEstadonacionalquejáexiste.ÉocasodaBolívia,Guatemala,Equador,entreoutrosEstadosamericanos.NocasodoBrasil,tambémnãoqueremindependênciaporquesimplesmenteelanãotemsentidopelarazãoóbviadequesãoapenasessas duas centenas de povos, em alguns casos até com menos de uma centena depessoas,cadaumconstituindo-seemparcela,numericamenteinsignificantenoconjuntodapopulaçãobrasileira(idem,p.267).

Já na Ásia existem povos que querem os antigos limites que tinham antes dacolonização,porexemplo,osChinnãoestavamdivididosentreaBirmânia(Miamar), Índia e Bangala Desh, entre outros casos semelhantes (idem).

AposiçãodosEstados,porsuavez,frenteàtemáticatambémémuitodiversaporinúmerasrazões.Assim,damesmaformaquesefezantes,agrupandoospovosautóctonesporregiões,sefarátambémcomosEstadosondeexisteapresençadepovosautóctonesafimdepropiciarcertacompreensãodadinâmicaqueseestabeleceunoGTPIdesdeoseuinícioatéaadoçãodaDeclaraçãodosDireitos dos Povos Indígenas em 2007.

ComeçandopelosEstadosquesemostrammaisabertosàcausaindígena,encontram-se os escandinavos, onde vivem os Inuit e os Sami, embora exista nesses países também bastante racismo contra os indígenas. Em segundo lugar, temososEstadosquePierretteBirraux-Ziegler,DiretoraCientíficadoCip,organização sediadaemGenebraeque,desde1977, temsido fundamentalpara a participação indígena no GTPI, denomina de hipócritas: Canadá,NovaZelândiaeAustrália.Assimosqualificounaentrevistaconcedida (inBARBOSA, 2001(2), p. 252 e seguintes) porque, segundo ela, apresentam uma fachadamuitodemocráticaexternamente,masque,dentrodopaís,nãosãonada democráticos. O caso de Deskaheh ilustra bem o papel desempenhado peloCanadánasrelaçõescomospovosautóctonesquevivemdentrodesuas

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fronteiras. Segundo Birraux-Ziegler, o Canadá reprime com dólares, quando pode,comprandolíderes,dividindocomunidades,ouquandonãopodecom- prar submete os indígenas e os seus assuntos a processos judiciais, a julgamentos em geral muito longos e caros (BARBOSA, 2001(2), p. 270).

Em outro bloco podem ser agrupados muitos governos da América do Sulquevêmmudandodemasiadamentenosúltimosanosemrazãodeseusprocessosdedemocratização:ArgentinaeChilesustentamumdiscursomuitoaberto,mudançastambémvêmocorrendonoParaguai.PerueBolíviaforamsempre vistos no ambiente da ONU como muito ambíguos. O México sempre agiudemodomuitohipócrita,navisãodeBirraux-Ziegler.Segundoela,ogoverno discursa sobre direitos humanos, e os índios de Chiapas informam ameaças cotidianas, assassinatos etc.EssesEstados até agora referidos sãotradicionalmente os mais ou menos favoráveis aos indígenas (BARBOSA, idem, p. 269-270).

Os Estados Unidos, na ONU, pouco se manifestam a respeito dos direitos reivindicados pelos povos autóctones, especialmente no GTPI e no fórum permanente sobre os direitos dos povos autóctones, que se reúne em Nova Iorque,estabelecidoapartirdoanode2002,emdecorrênciadalutadentrodoGTPI.Quandosemanifestamgeralmenteofazemcontraasreivindicaçõesinternacionais indígenas.Nãoaceitamasreivindicaçõesdosprópriospovosautóctones. IssoficoubemclaronavotaçãodaAssembleiaGeralde13desetembro de 2007 que adotou a Declaração sobre os Direitos dos PovosAutóctones, tendo obtido o voto contrário dos Estados Unidos.

NaAmérica do Sul o grupo claramente contrário às reivindicaçõesindígenasnaONUsemprefoilideradopeloBrasil.OBrasilsemprefoitãocontrárioàsreivindicaçõesinternacionaisindígenasquantoaÍndiaeaMalásia.OBrasilsemprereconheceuqueháindígenasemseuterritório,oquenãoésempreocasonaÁsia,massempreafirmouqueissoéassuntonacionalequeodireitointernacionaldeveriaadaptar-seàslegislaçõesnacionais.

Ora,nocontextodessadiscussãocabeamaisingênuapergunta:porquee como criar instrumentos internacionais se os mesmos tiverem que se adaptar àslegislaçõesnacionais?

No entanto, como sedisse, a posiçãodosEstadosdaAméricadoSulvem sofrendo mudanças com o passar dos anos e, sobretudo, a partir das redemocratizações.OBrasil, embora ambíguo, como sepodeperceber, em13desetembrode2007,votoufavoravelmenteàadoçãodaDeclaraçãosobreos Direitos dos Povos Autóctones. Como se verá na análise dos artigos da Declaração,épossívelqueoBrasiltenhasefiado,paradaroseuvotofavorávelàadoção,noqueestabeleceuoartigo46,naexpectativadequeoaídispostosejagarantiacontraadimensãoexternadaautodeterminaçãodospovos indígenas.

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No entanto, sobretudo a partir de 2008, setores conservadores da socie- dade brasileira e outros, como a Ordem dos Advogados do Brasil, manifesta- ram-se publicamente, como noticiou a grande imprensa, de forma contrária ou aomenosquestionandoofatodeogovernobrasileiroterfirmadoaDeclaraçãode13desetembrode2007.AmotivaçãoprincipaldetaloposiçãoéotemordequeaDeclaraçãoameaceasoberanianacional,aintegridadeterritorialdoEstado brasileiro.

Quem são os Povos Indígenas ou Autóctones no plano internacional?

Acondiçãoindígena,pelofatodeapareceremdiferentespontosdaTerra,encontraumasériedefatoresquedificultaaprecisãodoconceitodemodounívoco.Emrazãodisso,oGrupodeTrabalhosobrePopulaçõesIndígenasdasNaçõesUnidas(GTPI),desdeoiníciodesuasatividades,absteve-sededefiniroconceitodeíndio.Essaposiçãoconstituiu-seemprovadamaturidade dos seus integrantes para lidar com tão especial assunto.Ele adotou comoprincípiodecondutanãoutilizarnenhumoutrocritérioparaaceitaraparti- cipaçãodequemquerquefosse,nosseustrabalhos,anãoseradaautoiden- tificação.

Tãosomenteaquestãodo“s”no termo inglês“people” foi suficientepara um longo debate conceitual e que esteve na ordem do dia do GTPI por muitos anos. O termo “people”, no singular, para designar o conjunto, ou umgrandenúmerodegrupos autóctones, corresponde ao termopopulaçãoemportuguês, já o termo “peoples”, no plural, corresponderia a povo emportuguês.Evidentemente,portudooquejáfoianalisadonestetrabalho,éfácilperceberqueamaioriadosEstadosprefeririaqueaDeclaraçãoempregasseotermo “people” no lugar de “peoples”, e os autóctones também, pelo motivo contrário, prefeririam “peoples” a “people”. O GTPI da ONU foi intitulado “WorkingGrouponIndigenousPopulations”.AResolução45/164relativaaoanointernacionalutilizou“people”.Odecênio1995-2004instituídopelaONUtambémutilizouadesignação“IndigenousPeople”.

O projeto de declaração, cuja discussão iniciou-se no ano de 1984,passoupordiversasreformulações,eem1988inicia-seotrabalhoderedaçãopropriamente dito. Segundo Schulte-Tenckhoff (1997, p. 103), desde o início, osindígenasforamcríticosemrelaçãoaotextoproduzidopeloGTPI,queteriarefletidoimperfeitamenteosvinteedoisprincípiosporelesoferecidosem1987.Nessaaltura,asgrandespreocupaçõeseram:asterraseosrecursosnaturais,inclusiveáguaear,oempregodotermo“people”eminglêse“peuples”emfrancês, a questão do subsolo, cuja propriedade é geralmente atribuída aoEstado,todasasquestõesterritoriaisindígenas,adimensãocoletivadosseusdireitoseaquestãodoconsentimentoindígenaparadiversasquestões.

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Em1994, apósmuitos debates, finalmente oProjeto deDeclaração éadotado pelo GTPI. Muito embora havendo críticas por parte dos indígenas e seusapoiadoresacertospontosdaredaçãodoProjeto,comofoiadotado,deummodogeral,atendeuàssuasexpectativas;noentanto,amaioriadosEstadosreagiumalporcausadainsistênciasobreoempregodaterminologia“povosautóctones”nolugarde“populaçõesautóctones”esobreaprevisãododireitodeautodeterminação.

Enfim,finalmente, aDeclaraçãoadotadaem13de setembrode2007,sem qualquer dúvida, trata os autóctones como povos e declara o seu direito deformainsofismávelàautodeterminação,direitoessejáantesgarantidopelaCartadasNaçõesUnidasatodosospovosdaTerra.

Consideradasessasobservações,épossívelafirmar,comofazaprópriaONU,que povos indígenas são os descendentes dos povos que habitavamumpaísouregiãogeográficanaépocaemquepovosdeculturaouorigensétnicasdiferenteschegaramesetornaram,nasequência,predominantes,pelaconquista,ocupação,colonizaçãoououtrosmeios.

Esses povos, denominados indígenas ou autóctones, vivem em vastas re- giõesdasuperfíciedaTerra.Elesestãodisseminadosnoconjuntodomundo,do ÁrticoaoPacíficoSul,esão,segundoumaestimativa,maisde370milhõesdepes- soas. Existem numerosos povos indígenas, notadamente os ameríndios, os Inuit e osAléoutesdaregiãocircumpolar,osSamidaEuropasetentrional,osaboríginese os insulares de Torres da Austrália, os Maori da Nova Zelândia e outros.

Trata-se todos de povos que conservam características sociais, culturais, econômicas, políticas e jurídicas que facilmente os distinguem dos outros gruposquecompõemaspopulaçõesnacionais.Sãopovosqueforamcolocadosem perigo cada vez que povos vizinhos dominantes estenderam seus territórios ou que colonos vindos de pontos distantes adquiriram novas terras pela força. As ameaças e as ofensas pesam sobre as suas culturas e terras, sobre seu status eosoutrosdireitos,enquantogruposdistintosecidadãos.Éfatoquecertospovos indígenas, graças sobretudo aos seus próprios esforços, conseguiram algumas garantias dentro dos Estados onde se localizam, como é de certa formaocasonoBrasil,cujaConstituiçãoFederalprevêumasériededireitosespecíficos.Porém,nagrandemaioriadoscasos,continuamlutandoparafazerconhecidos e respeitados seus modos de vida, sua identidade e terras.

Evolução do direito de autodeterminação dos povos no direito internacional e os direitos indígenas fixados pela Declaração das Nações Unidas de 13 de setembro de 2007

AAssembleiaGeraldasNaçõesUnidas,nodia13desetembrode2007,após três décadasde luta indígena e denegociações,finalmente aprovou a

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Declaração dos Direitos dos PovosAutóctones, que irá proteger mais de 370milhõesdeindígenasdomundo.

Trata-se de um marco histórico para os povos autóctones e para o movi- mentointernacionalindígenaqueaolongodessasdécadaslutoupelaaprovaçãodo texto praticamente tal como foi aprovado.

ADeclaraçãopropõeaospaíses,entreoutrascoisas,acriaçãodeme- canismos para discutir os impactos decorrentes da instalação de grandesempreendimentosedeexploraçãoderecursosnaturais,sejaemterrasindígenasseja em áreas que possam afetar as terras e a vida de povos indígenas.

OtextodaDeclaraçãoreconheceosautóctones,ouindígenas,enquantopovos,comtodasasconsequênciasdaídecorrentes,sendoaprimeiraeprin- cipal delas o seu direito de autodeterminação, interrompendo a tendênciainiciadalogoapósainvestidadeDeskaheh,juntoàLigadasNações,detratá-losenquantominorias,ougruposétnicos,ededenominá-losporpopulaçõese nãopovos.Assim, seduranteoperíodoquevai dofinal dos anos30doséculo passado, até os anos 2000, tiveram os povos autóctones que suportar o tratamentoqueosdesqualificoudacondiçãointernacionaldepovos,pode-sedizerquealutadeDeskaheh,aofimeaocabo,nãofoivã.Em2007,comaDeclaraçãodasNaçõesUnidas,passamasertratadosenquantopovos.

NocasodoBrasil,porexemplo,pormaisqueseelogieaConstituiçãode1988 quanto aos direitos ali consagrados aos indígenas, em nenhum de seus artigososmesmossãoreferidoscomopovosemuitomenoslheséclaramentereconhecidoodireitodeautodeterminação.

Como era de se esperar, os Estados Unidos, Canadá, Austrália e a Nova Zelândia, ou seja, países desenvolvidos com presença indígena em seus terri- tórios,votaramcontraaadoçãodaDeclaração.Essespaísesnãoconcordaramcomosdireitosatribuídosaospovosindígenas.Afirmaramque tais direitos entramemconflitocomodireitodorestantedapopulaçãoecomsuasnormasconstitucionais. Esses países desenvolvidos, com a presença de povos indígenas nosseusterritórios,seopuseramveementementeàaprovaçãodaDeclaração,sobretudocontraautilizaçãodotermoautodeterminação.

AntesdeseadentrarnaanálisedoqueestáestabelecidonaDeclaraçãode2007,paraaboacompreensãodaevoluçãopolítico-jurídicadodireitodeautodeterminaçãodospovos,énecessárioanalisaremqualcontextohistórico-políticoodireito foifixadoeas razõespelasquais,atéoanode2007,eranegado aos povos autóctones.

Emboraconstenoartigo1ºdaCartadaONUde1945quesetratadeumdosfinsdessaorganizaçãoaelaboraçãoderelaçõesinternacionaisfundadasnorespeitoaoprincípiodaautodeterminaçãodospovos,aautodeterminaçãoapenaspassouàcondiçãodedireitonoanode1960,comaadoçãodaResolução

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1514daAssembleiaGeral.EssaResoluçãoaprovoua“Declaraçãosobreaconcessãode independência aos países e aos povos coloniais”, afirmando:“Todosospovostêmodireitodelivredeterminação;emvirtudedessedireito,eles determinam livremente seu status político e continuam livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural”.

Naescalapolíticahouvedesdeentãoatendênciaafavorecer,naaplicaçãododireitoàautodeterminação,ospovoscominstituiçõeseorganizaçãopolíticaasmaispróximasdospaísesocidentaisdominantes.Aconcessãorecentedeindependência aos países bálticos, cujo reconhecimento pela comunidadeinternacional foi extremamente fácil, os quais se inscrevem no mesmo modelo de Estado ocidental, confirma isso. Contrariamente, os países do terceiromundo,apósaSegundaGuerraMundial,confiscaramaautodeterminaçãodepovosquecomoelessofriamopressãocolonial,estrangeiraeracista,poucoimportando se esses povos tinham no seu passado político um Estado enquanto tal (LÂM apud BARBOSA, 2001(2), p. 319).

TendoemvistaofatodeamesmaResolução1514afirmartambémque“asujeiçãodospovosaumasubjugaçãoeaumaexploraçãoestrangeira,constituiumdesrespeitoaosdireitosfundamentaisdohomem,écontráriaàCartadasNaçõesUnidasecomprometeacausadapazedacooperaçãomundial”,apráticapolítica internacionalprendeu-seàspalavras:“estrangeira”,“subjugação”e“exploração”,parainsistirqueelaseramfundamentaisparaacompreensãododireitoàautodeterminação.Alémdisso,emrazãodaafirmativaseguinte,quediz: “toda tentativa visando destruir parcial ou totalmente a unidade nacional e integridade territorial de um país é incompatível com a mesma Carta” – e quesetratadareafirmaçãodoprincípiogeraladotadopelaorganizaçãodenãoingerênciaemassuntosinternosdosEstados–,osopositoresaoreconhecimentododireitodeautodeterminaçãoaospovosindígenassustentaramqueodireitodos povos à autodeterminação estaria também estritamente limitado pelodireitodosEstadosàsuaintegridadeterritorial(idem,p.320).

Assim,estribadosnessestermoscontidosnaResolução1514,osEstadosrefratáriosàabrangênciadoconceitodeautodeterminaçãoaospovosindígenassustentaramao longodosanosseguintesquenocasodos indígenasnãosepoderia falar nem em subjugação, nem em exploração estrangeira.Alémdisso,afirmaramquequereraplicaroconceitodeautodeterminaçãoaospovosindígenas que vivem dentro dos Estados seria o mesmo que destruir a unidade nacional e a integridade territorial do país. E, por conseguinte, se estaria agindo contraaCartadasNaçõesUnidas,acrescidodequequalquerumqueviesseporventuraadarapoioaumareivindicaçãodepovoindígenanessesentidoestariapraticandoingerênciaemassuntosinternosdoEstado,tambémvedadapelamesmaResoluçãoepelaprópriaCarta(idem).

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Denis Marantz (1996, p. 55), antigo funcionário do governo canadense e conselheiroespecialistaemassuntosindígenas,afirmava:

Oreconhecimentoemdireitointernacionaldeseudireitoàautodeterminaçãoé primordial aos povos autóctones. No entanto, os Estados membros da ONUnãoestãoprontosareconhecertaldireitoealgunsprefeririamexcluiressestermosmesmoseelesfigurassemnumadeclaraçãonãoexecutória.

Agora,comaaprovaçãopelaAssembleiaGeraldasNaçõesUnidasdaDeclaraçãodosDireitosdosPovosAutóctones,em2007,oempregodotermoautodeterminaçãoganhanovadimensão,abrangendo tambémasituaçãodecolonizaçãointerna,que,naverdade,éocasodamaioriadospovosindígenasda Terra.

Adoutrinajurídicaeapolíticainternacional,emrazãodoqueestácontidona Declaração sobre os direitos dos povos autóctones, adotada em 2007,ganham campo de análise e de estudo ampliado.

Da mesma forma, o movimento político internacional indígena, vencida essaimportanteetapa,alcançadacomaadoçãodapresenteDeclaração,deverá,certamente, orientar a luta para a adoção de novos instrumentos jurídicosinternacionais,agorajácomforçaexecutória,oquenãoéocasodasDeclaraçõesInternacionais de Direitos, que ampliem e garantam a recente conquista.

O temordos países contrários àDeclaração, no casoEstadosUnidos,Canadá, Austrália e Nova Zelândia, abertamente declarado, refere-se a sua integridade territorial. Ou seja, à dimensão externa inerente ao direito deautodeterminação.

Com46 artigos, aDeclaração apenas estabelece os padrõesmínimosde respeito aos direitos dos povos indígenas do mundo todo, que inclui apropriedade e a proteçãode suas terras e territórios, acesso aos recursosnaturais,preservaçãodosseusconhecimentostradicionaiseoprincipaldetodososdireitos,odireitodeautodeterminação,assimdispostonoartigoterceiro:“Ospovos autóctones têmodireito à autodeterminação.Emvirtudedessedireito, eles determinam livremente o status político e asseguram livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural”.

Aredação,comosepodeperceber,emnadadiferedaquelaadotadapelaResolução1.514,antesmencionada,excetopelofatodequeagoraserefereespecífica e exclusivamente aos povos autóctones. Não hámais qualquerdúvidadequeessespovos,comoquaisqueroutrospovosdaTerra,detêmodireitodeautodeterminação.

O artigo4º, em seguida, dispõequeos povos indígenas, no exercíciode seudireito à autodeterminação, têmodireito de ser autônomos e de se autoadministrar no que se refere aos seus assuntos internos e locais, bem como dedispordemeiosparafinanciarsuasatividadesautônomas.

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Autonomia e autoadministração são direitos que os índios brasileirosnãotêmgozadoplenamenteeelesnãoestãocontempladosnaConstituiçãoFederal.Assim,serãonecessáriasmudançasprofundas,senãoconstitucionaiselegais,certamentenasrelaçõespolíticas,práticas,entreoEstadobrasileiroeospovosindígenas,poisautonomiaédireitopolíticodeautoadministraçãoeexigerecursosfinanceirosparaoseuplenoexercício.Elaexigeadotaçãoderecursospróprioseorespeitodaindependênciadoenteautônomonadecisãodecomoalocaressesrecursos,ouseja,oEstadonãopodeinterferirnaaplicaçãodosrecursos destinados ao ente autônomo.

Alémdisso,ospovosautóctones têmgarantidopelaDeclaração inter- nacionalodireitodedispordemeiosparafinanciarsuasatividadesautônomas.Afaltademeiosfinanceirosequivale,puraesimplesmente,anegaçãodapró- pria autonomia enunciada.

Seria necessário espaço maior do que o presente para a discussãosobre as dimensões política e jurídica da autodeterminação, autonomia eautoadministração,agorareconhecidascomodireitosinternacionaisdospovosindígenas.Apenasparasituaradiscussão,deve-selembrarqueamaiorpartedos especialistas no assunto sustenta que quanto mais adequada e maior a parceladeautonomiaeautoadministraçãogarantidasdeboa-fépelosEstadosaos povos autóctones, menor será sempre a possibilidade ou a necessidade de que osmesmos venham impor sua autodeterminação externa.Ou seja,reclamarasuaseparaçãopolíticaeterritorialdoEstadonoqualseencontramterritorialmente localizados. Isso deve servir de alerta para todos, no sentido de que respeitar a autonomia dos povos indígenas é o único remédio contra o temordasecessão.

Em seguida, ainda dentro do mesmo princípio da autodeterminaçãoreconhecida, o artigo 5º dispõe que os povos indígenas têm o direito demanteredereforçarsuasinstituiçõespolíticas,jurídicas,econômicas,sociaise culturais distintas e de conservar ao mesmo tempo o direito, se essa for a sua escolha, de participar plenamente da vida política, econômica, social e cultural do Estado.

O que está estabelecido é o reconhecimento dos povos indígenas enquan- to sociedades políticas, dotadas de sistemas jurídicos próprios, economia específica,comorganizaçãosocialeculturaldistintaeautônomadasociedadequecompõeoEstadoondevivem.Issoéoquecaracterizaaautoctoniaagoraclaramenteestabelecidaedefinidanodireitointernacional.Compõeaindaoseudireitodeautodeterminaçãoparticiparounãodavidapolítica,econômica,socialeculturaldoEstado,segundosuaprópriadecisãoautônoma.

OfatodeaConstituiçãobrasileiragarantirodireitoorigináriodosíndiossobreasterras,osusos,oscostumeseastradições,nãoésuficientefrenteà

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nova realidade internacional. OmaisimportantequeaCFnãotratae,tudoindica, que tentou evitar é o reconhecimento da autoctonia, a condiçãodepovo dos povos indígenas, de entes políticos, como agora, claramente, está estabelecidonaDeclaraçãodaONU.OBrasil,nemnenhumoutroEstadoondehápresença indígena, poderá evitar doravante as consequências políticas ejurídicas decorrentes de tal status.

Emrazãodessefato,oudessedispositivodaDeclaraçãoemcomentário,muitasmudançasterãoqueocorrernoBrasil,pois,sendoosindígenaspovos,nasrelaçõesqueoEstadocomelesestabeleceredesenvolveresseéoprimeiroponto que deverá ser considerado. Resulta na necessidade de revisão daspráticas legislativas, judiciárias e administrativas brasileiras.

Com a clareza e sem tergiversar, o poder estatal brasileiro só poderá agir, desenvolverpolíticaspúblicasdestinadasaessespovos,entreoutrasaçõesqueosafetem,tendoemcontaqueaparticipaçãodessespovosnavidapolítica,econômica, social e cultural do Estado é um direito de cada um desses povos indígenas, especificamente considerados.Direito, tanto no aspectopositivoquantononegativo.Querdizer,elespodemounãoparticipar.Sãoelesquedecidem.Aliás,odireitodeautodeterminaçãodospovostemcomosuamaisimportantecaracterísticaoimplícitodireitodeescolha.Autodeterminaçãoéodireito de um povo escolher seu particular status político.

Emsegundolugar,deve-seconsiderarqueasinstituiçõespolíticas,jurí- dicas, econômicas, sociais e culturais de cadapovo autóctone têmque serrespeitadas, com todas as consequências daí derivadas. Isso se impõe aoEstado,consequentementeaostrêspoderes:legislativo,executivoejudiciárioetambémàsociedadenacionalcomoumtodo.

O artigo 8º, com toda a clareza, estabelece que os povos indígenas têmodireito,enquantopovoseindivíduos,anãoseremsubmetidosàassi- milação forçada ou à destruição de sua cultura. Dispõe que os Estadosdevemestabelecermecanismosdeprevençãoedereparaçãoeficazesvisandoprevenir:

a) todoequalqueratoquetenhaporfinalidadeprivarospovosindígenasde sua integridade enquanto povos diferentes, ou seus valores culturais ou sua identidade étnica;

b) todoequalqueratotendoporfinalidadeouporefeitodesapossá-losde suas terras, territórios ou recursos;

c) todaformadetransferênciaforçadadepopulaçãotendoporfinalidadeou por efeito violar ou erodir qualquer um de seus direitos;

d) todaformadeassimilaçãooudeintegraçãoforçada;e) toda forma de propaganda dirigida contra eles com o objetivo de

encorajarouincitaradiscriminaçãoracialouétnica.

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Os artigos 9º, 10 e 11 contemplam: a proteção dos povos autóctonesenquantonações,odireitodenãoseremdeslocadosdesuasterras,odireitode conservar e praticar suas tradições culturais e a obrigação dosEstadosde reparação pelos prejuízos que tenham sofrido nos aspectos culturais,intelectuais, religiosos e espirituais. Relativamente a esses aspectos, o direito constitucionalbrasileirojáamparaosindígenas.OquenãoestavaprevistonoBrasilequeaDeclaraçãoInternacionalgaranteéodireitoàreparaçãopelosprejuízos sofridos.

Oartigo 12 prevê o direito àsmanifestações de práticas tradicionais,o direito aos sítios religiosos e culturais e de acesso privado aos mesmos, o direitoaosobjetosrituaisededevoluçãodeseusrestoshumanos,impondoaosEstadosaobrigaçãodegarantiressesdireitos.

Tambémnessecasoaprevisãointernacionalémaisamplaeexplícitadoqueodireitointernobrasileiro.EssenãogarantesítiosreligiososeculturaisnemacessoprivadoaosmesmosquandotaissítiosnãoselocalizememáreasdemarcadasouidentificadaspeloEstadocomoindígenas.Significadizerquedemarcação,garantiadeterras,nãopodeserinterpretadacomoexclusãodeacesso aoutros sítios forade tais limites.Aquestãododireito aosobjetosrituaiseadevoluçãoderestoshumanosnãoconstamda legislaçãointerna.Significa,pois,queaDeclaraçãoampliaodireitoindígenanessesaspectosnoBrasil.

Oartigo13tratadodireitodedesenvolveretransmitiràsgeraçõesfuturassuahistória,língua,tradiçõesorais,filosofia,escrita,literatura,deescolhereconservarosnomesdesuascomunidades,doslugaresedaspessoas.ImpõeaosEstadosaobrigaçãodeprotegeressedireitoefazercomqueospovosindígenascompreendam os procedimentos políticos, jurídicos e administrativos e neles possam ser compreendidos.

Omais importante nessa disposição relativamente ao que ocorre nodireitointernobrasileiroéaênfasesobreanecessidadedequeoEstadocriemecanismos aptos a que os povos indígenas compreendam os procedimentos políticos, jurídicos e administrativos e que neles possam ser compreendidos. Sabe-sequeissonãoocorrenomaisdasvezes,demodoquehánecessidadedoestabelecimentodeumaeducaçãointerculturalprofundaquepermita talcompreensão.

Oartigo14 tratadaeducação;o15eo16,dodireitode informação,mídiaindígena.o17,dotrabalho.Entretanto,nãoserãoaquianalisadospelalimitaçãodesteestudoaosefeitosdodireitodeautodeterminação.

O artigo 18 trata do direito político de participarem da tomada de decisão sobre as questões que possam afetar seus direitos, por intermédiode representantes por eles próprios escolhidos, segundo seus específicos

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procedimentos, bem como o direito de conservar e desenvolver suas próprias instituiçõesdecisórias.

Essedireitotemcorrelaçãocomodeautodeterminaçãoequenãotemprevisãonodireitointernobrasileiro.Significadizer:todavezquedecisõesque possam afetar direitos indígenas forem ser adotadas será necessário que os indígenas participem, por intermédio de representantes que escolherem, segundoprocedimentospróprios.Éclaraamençãodequetêmodireitotambémdeconservaredesenvolversuaspróprias instituiçõesdecisórias.Emoutraspalavras, aDeclaração afirma com toda a clarezaqueos povos autóctonessãoentespolíticosautodeterminadosecomotaisdevemserreconhecidosetratados pelos Estados submetidos aos seus próprios códigos (deles autóctones) derepresentaçãoedecisão.

Oartigo19impõeaosEstadosquetrabalhemdeboa-fécomospovosindígenas por meio dos intermediários por eles escolhidos, antes de adotarem qualquer medida legislativa ou administrativa suscetível de afetá-los, com a finalidadedeobteroseuconsentimentoprévio,expressadolivrementeecomconhecimento de causa.

Nesse ponto, o que se disse se aplica igualmente ao direito interno brasileiro, com acréscimo da necessidade do consentimento prévio. O tema do consentimento prévio, livre e com conhecimento de causa é delicado e caro à literatura especializada sobre os direitos indígenas. Essa exigênciajáconstadaConvençãodaBiodiversidade–CDB,de1992,que temforçaexecutória. Porém, parece que os interessados em obter tal consentimento, exigidopelaCDBeagoratambémpelaDeclaraçãoemestudo,preferemnãoseaprofundarnocumprimentodasexigências,ouseja:obterconsentimentocom real conhecimento de causa pelos indígenas.

Oque será então um consentimento prévio, livremente expressado ecomrealconhecimentodecausa?Oconsentimentoprévioapenasserádefatoexpressado livremente e com conhecimento de causa, no caso, por exemplo, de exploração de um determinado recurso natural com impacto sobre umpovo indígena se esse povo tiver todos os meios de conhecer outros casos semelhantes ocorridos com outros povos indígenas e os seus reais efeitos. Todos os efeitos.Dificilmente, umpovo indígena outorgará o seu consentimentoparaarealização,porexemplo,dedeterminadaobracomimpactoambientalsobre suas terras ou territórios se tiver a oportunidade de conhecer plenamente o que se passou com as terras, os territórios e o próprio povo indígena, de qualquer outra parte do planeta onde isso já tenha ocorrido antes. Os exemplos acumulados nesse campo têm revelado, sobretudo, prejuízo aos povosindígenasafetados.Assim,nãoconheceremahistóriaamaiscompletapossível,sem qualquer disfarce, de todos os chamados projetos de desenvolvimento

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realizadosnomundocomimpactosobreospovosautóctones,equivaleanãohaver,efetivamente,apossibilidadedeexpressãolivreecomconhecimentodecausa.ÉexatamenteporissoqueaDeclaraçãosereferecomtantaclarezaànecessidadedoconsentimentoprévio,livrementemanifestadoecomintegralconhecimento de causa.

O artigo 20 garante o direito de conservar e desenvolver os sistemas e instituiçõespolíticos,econômicosesociaispróprios,bemcomoodireitodedisporemcom total segurança de seusprópriosmeios de subsistência e dedesenvolvimento e de se dedicarem livremente a toda e qualquer atividade econômica, tradicional ou não.Acrescenta ainda que os povos que foramprivadosdeseusmeiosdesubsistênciaededesenvolvimentotêmodireitoaumaindenizaçãojustaeequitativa.

O direito constitucional e as leis ordinárias internas brasileiras nesse aspecto atendememparte ao disposto naDeclaração.Como já se disse, aConstituiçãoFederal não trata de instituições políticas indígenas próprias,muitoemboragarantaseususos,costumesetradições,oqueimplicitamenteremeteàgarantiadeseussistemaseinstituiçõespolíticas.Inovaçãoexplícitaéodireitodeindenizaçãojustaeequitativa,nocasodeteremsidoprivadosdeseusmeiosdesubsistênciaededesenvolvimento,oqueéocasodemuitospovos indígenas no Brasil.

Oartigo21tratadodireitodemelhoriadesituaçãoeconômicaesocial,nos campos de educação, emprego, formação e reconversão profissional,moradia,saneamento,saúdeeprevidênciasocial;o22tratadodireitoespecialedasnecessidadesespecíficasdevelhos,mulheres,jovens,criançasepessoasdeficientesedasobrigaçõesdosEstadosnagarantiaeefetivaçãodessedireito;o23tratadodireitoaodesenvolvimento,afirmandoqueospovosindígenastêmodireitodedefinireelaborarasprioridadeseasestratégiascomvistaa exercerem seu direito ao desenvolvimento; o 24 trata do direito sobre a farmacologia tradicional e de conservação pelos povos indígenas de suaspráticas médicas, plantas medicinais, animais e minerais de interesse vital, bem como o direito de acesso a todos os serviços sociais e de saúde, com a consequenteobrigaçãoparaosEstadosdetornarissorealidade.

Esses quatro artigos, analisados na perspectiva do direito de autode- terminação, são a explicitação de garantias nesses aspectos específicos,merecendo destaque, para o objeto da presente análise, o direito ao desen- volvimento que deve ser entendido na perspectiva própria e particular de cada povo autóctone.

Os artigos 25 até o 30 tratam dos direitos a terra, aos territórios e a outros recursos que possuam e do reconhecimento pelos Estados desse direito e da proteção jurídica necessária, afirmandoqueosEstados devemenvolver os

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própriospovosindígenasnesseprocesso.Tratamaindadodireitodereparaçãoederestituição,indenização,preservaçãoeproteçãodoseumeioambiente,capacidadedeproduçãodesuasterras,territórioserecursos,devendonessecaso osEstados criaremprogramas de assistência. Fica proibido qualquermaterial perigoso estocado ou descarregado em terras ou territórios indígenas, sem o consentimento prévio, manifestado livremente e com total conhecimento decausa.Éinterditadaatividademilitar,salvoporrazãodeinteressepúblicoe com o consentimento dos povos indígenas ou ao seu pedido.

O objeto de tutela jurídica no caso desses artigos pode ser considerado na sua parte essencial já previsto na CF brasileira. Inovadora é a necessidade de envolvimento dos próprios povos indígenas no processo, bem como o direito àreparação,restituiçãoeindenização,aproibiçãodeestocagemedescargadematerialperigosoemterrasindígenaseainterdiçãodeatividademilitar,comas ressalvas mencionadas.

Oartigo31tratadodireitodeproteçãoedesenvolvimentodopatrimôniocultural, conhecimento tradicional, expressões culturais, ciências, técnicase cultura. Compreendidos os recursos humanos e genéticos, sementes, farmacopeia,conhecimentosdaspropriedadesdafaunaedaflora,tradiçõesorais, literatura, estética, esportes, jogos tradicionais, artes visuais e de espetáculo, com o respectivo direito de preservar, controlar, proteger e desenvolver a propriedade intelectual coletiva de tal patrimônio cultural, conhecimentotradicionaleexpressõesculturaistradicionais.

FicaimpostoaosEstadosadotarmedidaseficazesparaoreconhecimentoeaproteçãodoexercíciodessesdireitos,semprecomaparticipação,aatividadee o acordo dos próprios povos autóctones.

Esses direitos estãogarantidos emoutros instrumentos internacionais,com força executória nos países signatários, como é o caso do Brasil, tais como aConvençãodeBiodiversidadede1992, aConvençãopara aSalvaguardadoPatrimônioCultural Imaterial, de 2003, e aConvençãodeProteção daDiversidade Cultural, de 2005, as duas últimas adotadas pela UNESCO. Neste trabalhonãosetratarádotemadadaasuaamplitude.ApenassedevelembrarqueporseremjáobjetodeConvençõesInternacionaisaobrigatoriedadedeseu respeito é manifesta.

O32dispõequeospovosautóctonestêmodireitodedefinireestabelecerasprioridadeseestratégiasparaavalorizaçãoeautilizaçãodesuas terras,territórios e recursos. Dispõe ainda que, antes da aprovação de qualquerprojeto que afete as terras, territórios e recursos indígenas, notadamente no quese refereàexploraçãoouutilizaçãodos recursosminerais,hídricosououtros, os Estados devem consultar os povos autóctones concernidos e atuar emcooperaçãocomeles.Agirdeboa-féepor intermédiodesuaspróprias

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instituições representativas com vista a obter o seu consentimento, dadolivremente e com conhecimento de causa. No caso de qualquer atividade dessa natureza ser levada a efeito, os Estados devem pôr em prática mecanismos eficazesvisandoatenuarosefeitosnefastosnoplanoambiental,econômico,social, cultural e espiritual.

Omesmoartigodispõetambémqueospovosindígenastêmodireitodedeterminaraestruturadesuasinstituiçõesedeescolherosseusmembrosdeacordo com seus próprios procedimentos.

O artigo 34 trata do direito dos povos autóctones de promover, desenvolver econservarsuasestruturasinstitucionaiseseuscostumes,espirituais,tradições,procedimentos ou práticas particulares e seus sistemas e costumes jurídicos, de acordo com as normas internacionais relativas aos direitos humanos; o 35 dispõequeospovosindígenastêmodireitodedeterminarasresponsabilidadesdos indivíduos para com a sua comunidade; o 36 garante o direito dos povos autóctones que vivem entre fronteiras internacionais de manter e desenvolver contatos,relaçõeseliamesdecooperaçãocomseusprópriosmembrosbemcomo com outros povos. Sobretudo em atividades espirituais, culturais, políticas,econômicasesociais,devendoosEstadostomarmedidaseficazes,consultandoecomacooperaçãodessespovosparafacilitaroexercíciodessedireitoeassegurarasuaaplicação.

O artigo 37 garante todos os direitos originários de Tratados, acordos e outros instrumentos construtivos estabelecidos pelos povos autóctones com os Estados atuais ou com seus antecessores, devendo ser reconhecidos e aplicados.OsEstadosestãoobrigadosahonrarearespeitaressesinstrumentosdeproteçãodedireitosanteriormenteestabelecidos.Dispõeaindaquenenhumdispositivo da Declaração possa ser interpretado de maneira a diminuirou negar direitos garantidos por tratados, acordos e outros instrumentos, anteriormente estabelecidos.Osartigos38e39dispõemsobremedidasquedevemseradotadaspelosEstadosparaatingirosobjetivosdaDeclaração,inclusive assistência financeira e técnica.O 40 dispõe sobre o direito deacessoamedidas justaseequitativasparaa resoluçãodeconflitoscomosEstadoseoutraspartesvisandoumadecisãorápida,bemcomomeioseficazesdereparaçãoemcasodeviolaçãodosdireitosindividuaisecoletivos,devendotodaequalquerdecisãorespeitaratradição,asregraseossistemasjurídicosdos povos concernidos e as normas internacionais relativas aos direitos humanos.

Os artigos 41e 42 estabelecemo dever daONUe de seus órgãos decontribuirparaaplenaconsecuçãodosobjetivosdaDeclaração,inclusivecommeiosfinanceirosetécnicos.Osartigos43,44e45dispõemquesetratamosdireitos estabelecidos apenas de normas mínimas, ou seja, que outros direitos

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podem e devem ser garantidos, bem como que direitos além dessas normas mínimas por algum modo estabelecidos e garantidos em outros instrumen- tos nacionais ou internacionais são plenamente válidos. Dispõe também quehomensemulheressãoiguaisequenenhumadisposiçãodaDeclaraçãopode ser interpretada para diminuir ou extinguir direitos já adquiridos ou futuros.

Note-se que todos esses artigos (36 a 45) remetem claramente a cami- nhos necessários a serem trilhados seja pelos próprios povos autóctones, seja pelos Estados onde hoje estão territorialmente localizados, seja pela comunidade e instâncias internacionais que fortalecem o direito de autodeter- minação.

Em grande parte, o que se comentou na análise de artigos anteriores se aplica e esclarece quanto aos efeitos sobre o direito interno brasileiro e dos demais Estados com presença de povos autóctones. O fulcro de toda a discussãoestánadimensãopolíticadaidentidadedecadapovoindígenaquedeve ser reconhecida e apoiada pelos Estados. Os Estados devem se relacionar com os povos indígenas como povos e não como outras comunidadesdestituídasdodireitodeautodeterminação.Porfaltademaiorespaço,cingem-se os comentários a esses aspectos mais evidentes decorrentes do princípio da autodeterminaçãoimplícitonessesartigos.

Oúltimoartigo,o46,édivididoemtrêspartes,afirmando:1ªNenhumdispositivodapresenteDeclaraçãopodeserinterpretadocomoimplicando para um Estado, um povo, um grupo ou um indivíduo um direito qualquerdesededicaraumaatividadeoudepraticarumatocontrárioàCartadasNaçõesUnidas,nempodeserconsideradocomoautorizandoouencorajando qualquer ato tendo por efeito destruir ou diminuir, total ou parcialmente, a integridade territorial ou a unidade política de um Estado soberano e independente.2ª No exercício dos direitos enunciados na presente declaração, os di- reitosdohomemeasliberdadesfundamentaisdetodossãorespeitados.OexercíciodosdireitosenunciadosnapresenteDeclaraçãoésubmetidounicamente às restrições previstas pela lei e conforme as obrigaçõesinternacionais relativas aos direitos do homem. Toda restrição dessanaturezaseránãodiscriminatóriaeestritamentenecessáriaunicamentecomofimdeasseguraroreconhecimentoeorespeitodosdireitoseliberdadesdeoutremedesatisfazeràsjustasexigênciasqueseimpõemnasociedadedemocrática.3ªAsdisposiçõesenunciadasnapresenteDeclaraçãoserãointerpretadasconforme aos princípios de justiça, de democracia, de respeito aos direitos do homem, de igualdade, de não discriminação, de bomgoverno e de boa-fé.

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Conclusão

Finalmente serão aqui abordadas as consequências político-jurídicas das disposições do artigo 46 pelo fato de terem repercussões sobre o conteúdo do direito de autodeterminação aplicável, doravante, aos povos autóctones.

O primeiro item do último artigo revela claramente que se visou atender aos interesses dos Estados constituídos. Trata-se, certamente, da condição imposta pelos Estados para que a Declaração fosse adotada. Ele pode ser interpretado como uma regra restritiva ao exercício do direito de autodeterminação enunciado nos artigos anteriores. A inclusão de povo, grupo e indivíduo, constante do texto da primeira parte do artigo 46, dentre aqueles proibidos de praticar ato contrário à Carta da ONU ou de praticar ato que tenha por efeito destruir ou diminuir a integridade territorial ou a unidade política de um Estado soberano e independente, constitui-se em ampliação dos sujeitos visados pela legislação internacional. Essa obrigação de abstenção já constava em outros diplomas, porém, em geral, os sujeitos visados eram apenas outros Estados. Muitos movimentos e personalidades indígenas se opuseram à redação adotada. Porém, ela foi aquela politicamente possível no momento.

Em manifestações divulgadas em momentos anteriores à data da aprovação da Declaração pela Assembleia Geral das Nações Unidas, nota-se a preocupação e o repúdio da maioria das organizações indígenas de todo o mundo, sobretudo relativamente à redação adotada para o artigo 46.

As Organizações dos Povos Indígenas do Centro e Sul da América, por exemplo, posicionaram-se a favor da adoção do texto conforme a redação que fora aprovada em junho de 2006 pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (http://www.docip.org//declaration_last/position_orgpa_centrosuramer.pdf). Segundo essa organização, a grande maioria das organizações dos povos indígenas do mundo apoiou aquele texto e exortou os governos a adotarem a Declaração sem nenhum tipo de modificação. Tal posição foi reafirmada por todos os participantes do Conclave Indígena da VI sessão do Fórum Permanente sobre Questões Indígenas, também da ONU, no mês de maio de 2007. Nesse documento criticaram as propostas de emenda apresentadas pelo Grupo Africano afirmando que todas elas tinham o objetivo de debilitar e restringir o alcance da Declaração. Afirmaram ainda que essas emendas estavam sendo negociadas unicamente entre representantes de Estados, sem a participação de representantes indígenas. Concluem sua manifestação afirmando que não apoiavam nenhuma das emendas que afetassem o texto e reiteraram aos governos a firme posição de apoio ao texto adotado em 2006 pelo Conselho de Direitos Humanos.

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Outraorganização,aAILA–AliançaLegalÍndiaAmericana–denunciouainclusãonoartigo46dodeverdospovosderespeitaraintegridadedosEstadospela primeira vez em um instrumento de direito internacional. “Até o momento esse dever havia sido imposto unicamente aos Estados, desde a Carta da ONU de1945”.Veja-seigualmenteaDeclaraçãode1970sobreRelaçõesAmistosas(http://www.docip.org/declaration_last/RevAILA_analysis_SPA.pdf).

AAILAconcluisuaanálisedoartigo46afirmandoquearedaçãocolocariaverdadeiros problemas para os povos indígenas, deformando o equilíbrio mantido ao longo do tempo em direito internacional, entre os princípios de autodeterminaçãodos povos e a integridade territorial dosEstados, emfavordosEstados.Parasustentarsuaposição,evocaaDeclaraçãode1970sobreRelaçõesAmistosaseaDeclaraçãodeVienade1993,asquaisteriamconservado tal equilíbrio.

ADeclaração de 1970 afirma: “Não se interpretará nada nos artigosanteriores como autorizando ou animando qualquer ação no sentido dedesmembrar ou deteriorar totalmente ou em parte a integridade territorial ou a unidade política dos Estados soberanos e independentes”. Logo adiante, a Declaraçãode1970afirmaque“...quetodoEstadoseabsterádequalqueraçãoquetenhacomoobjetivoainterrupçãoparcialoutotaldaunidadenacionaleaintegridade territorial de outro Estado ou país”.

Noentanto,adespeitodessaampliaçãodossujeitosproibidosdeaçãocontra a integridade territorial dos Estados, vozes abalizadas dentro do próprio movimentoindígenainternacionalsustentamquetodooprevistonaDeclaraçãocomo direito dos povos autóctones, em sendo praticado e respeitado pelos Estados onde esses povos vivem, implicará, na verdade, concretamente, no exercício pleno do seu direito de autodeterminação. É o que muitosespecialistaschamamdeexercíciodaautodeterminaçãointerna.Porém,casooEstadonãovenhaarespeitartodososdireitosgarantidospelaDeclaraçãoaos Povos Autóctones, esses, por sua vez, estariam desobrigados de respeitar aintegridadedessemesmoEstado.Nessecaso,essaaçãonãopoderiamaisserentãoconsideradacomoumatocontrárioàCartadaONU,nemàsoberaniaeàintegridadedoEstado.Issoéoquesepodeconcluir,tambémdoqueconstados itens 2 e 3 do mesmo artigo 46, que exigem respeito aos direitos do homem eàdemocracia,comobalizasparaasuaaplicação.

MaivânClechLâm(1996,p.100)afirmaque,emtermosgerais,oconceitodeautodeterminaçãoemdireitointernacionalpodetomarasseguintesformas:“um princípio jurídico largo que assegura a paz entre os Estados; um direito que põefimàcolonizaçãoeainjustiçassemelhantes;maisrecentemente,umdireitoa um regime democrático no seio do Estado. Cada etapa deste desenvolvimento semânticoseacresceàsprecedentes,maisdoqueassubstitui”.

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Erica-Irene A. Daes, Presidente do GTPI da ONU por mais de duas décadas,eumadasprincipaisartíficesdoProjetoquese tornoufinalmenteaDeclaraçãodosDireitosdosPovosAutóctones, já afirmavaqueodireitointernacionaldeveriavislumbraruma“novacategoria”deautodeterminaçãopara os povos indígenas, visandopromover uma reconstruçãopositiva dosEstados.Segundoela,osEstadosdevemassimilarasreivindicaçõesdospovosautóctones e estes agirem de boa-fé para se chegar a um entendimento. Seria assimumaformadeautodeterminaçãosensívelàscircunstânciasparticularesdenumerosasrelaçõesentreindígenaseEstado(DAES,1995).

Tudo indica que prevaleceu esse desenvolvimento semântico de autodeterminação na redação da Declaração, do qual Lâm e Daes já fa- lavam.

Oregimedemocrático,nahoraatual,éacondiçãonecessáriaaessanovacategoriade autodeterminaçãodospovos autóctones.Regimedemocrático,nesse contexto, significa o dever de o Estado assimilar as reivindicaçõesindígenaserespeitar todososseusdireitosconsagradosnaDeclaração.Emoutraspalavras:ospovosindígenastêmodireitoàautodeterminaçãointerna,àautoctonia.QuandooEstadolhesrecusaessedireito,entramnacategoriamaisrestritadospovoscomodireitoàautodeterminaçãoexternatambém.

A interpretação sistêmica dos artigos da Declaração, sobretudo dosartigos3ºe46,emconsonânciacomosprincípiosinternacionaisdodireitodeautodeterminaçãoesuaevoluçãosemântica,impõeaosEstados,compresençadepovosautóctones,assimilaremasreivindicaçõesindígenaserespeitaremtodososseusdireitos.Tantoosprevistosnaslegislaçõesinternas,nosTrata- dosououtros tiposdeacordofirmadosao longodahistóriacomo também os agora constantes naDeclaraçãodasNaçõesUnidas de2007.E tudonoâmbitodemocrático.Issonãoocorrendo,odireitodeautodeterminaçãoestarásendoviolado, o que autoriza ao povo, no exercício da autodeterminação,escolheroregimepolíticoquemelhor lheconvier, inclusivecomrecursoàsecessão.

ReferênciasBARBOSA, Marco Antonio. Direito antropológico e terras indígenas no Brasil.SãoPaulo:Fapesp/Plêaide,2001a.______. Autodeterminação.Direitoàdiferença.SãoPaulo:Fapesp/Plêaide,2001b.CLECH LÂM. La portée juridique de l’autodetermination. In: Essais sur les droits humains et lê développement démocratique. Montreal: Centre International des Droits de la Personne et du Développement Democratique. 1996. n. 5, p.73-123.DAES, Érica Irene Activités normatives: evolution des normes concernant les droits des autochtones–Faitsnouveauxetdebatgeneralsurlesmesuresaprendreal’avenir.E/CN.4/Sub.2/AC.4/1995/3(21juin1995).

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DENISMARANTZ,B.Questionstouchantlesdroitsdespeuplesautochtonesdanslesinstancesinternationales. In: Essais sur les droits humains et le développement démocratique (Peuples ou populations; égalité, autonomie et autodétermination: les enjeux de la Décennie internationale des populations autochtones). Montreal: Centre International des Droits de la Personne et du Développement Démocratique, 1996. n. 5. p. 2-72.MODERNO,JoãoRicardo.ONU:BrasilcontraoBrasil.In:Revista de Aeronáutica, n. 263, 2007. ROSTKOWSKI, Joëlle. Deskaheh et la Société des Nations. In: Le visage multiplié du monde. Quatre siècle d’ethnographie àGenève.Genève:Musée d’Ethnographie deGenève, 1985. p. 151-57.ROULAND, Norbert; PIERRE-CAPS, S.; POUMERÈDE, J. Droits des minorités et des peuples autochtones. Paris: Puf, 1996.SCULTE-TENCKHOFF, Isabelle. La question des peuples autochtones. Bruxelas: Bruylant, 1997.

Outros documentos:Nations Unies.A/61/L.67 (07-49831). 12/09/07.Assemblée générale. Soixante et unièmesession.Point68del’ordredujour.RapportduConseildêsDroitsdel’Homme.Déclaration dês Nations Unies sur les droits dês peuples autochtones. doCip – <www.docip.org/francais/bienvenu.html>.Informe del Comité Directivo del Conclave Mundial de los Pueblos Indígenas. Documento de 1sep2007.In:<http://www.docip.org/declaration_last/AILA_emailesp.pdf>. Posición de las organizaciones de los pueblos indígenas de centro y sur américa sobre la declaration de los derechos de los pueblos indígenas. In: <http://www.docip.org//declaration_last/position_orgpa_centrosuramer.pdf>.

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18 Um salto do passado para o futuro:

as comunidades indígenas e os direitos originários no Rio Grande do Sul

José Otávio Catafesto de Souza

Índios no Rio Grande do Sul de hoje

AmaiorpartedoshabitantesdesteEstadonãoconheceounãoreconheceque as comunidades indígenas façam parte da sociedade regional. Há uma ideia distorcida de que os índios verdadeiros habitam apenas o norte do país ouasflorestasdointeriordaAméricadoSul.Quandoalguémencontraumíndioporaqui,imediatamentesupõequeelesejaestrangeiroouamazônico;quandodescobrequeelevivenoRioGrandedoSul,passaadizerqueelenãoémaisíndio.OsíndiosdoRioGrandedoSulsãorotuladoscomomiseráveis,como se suas aldeias fossem apenas restos degradados de um capítulo de nosso glorioso passado regional. A presença de indígenas circulando por cidades (comoPortoAlegre,Caxias doSul, SãoLeopoldo,SantaMaria,Pelotas eem outras tantas) ou acampando na beira das rodovias é percebida como algo recente e oportunista, como se os índios estivessem chegando agora no Rio GrandedoSul, como se saídosdeflorestasdistantes apenas atraídospelosbenefíciosassistenciaisepelaproteçãotutelardoindigenismopromovidopeloEstado Nacional brasileiro.

Essas distorções ideológicas traduzem os preconceitos culturais en- raizados na nossa estrutura de classes sociais, estereótipos incorporados nas instituiçõesgaúchasaolongodosséculosdenossahistória.Oprojetonacionalidealizado pelas elites políticas do Império brasileiro foi executado através de açõesafirmativasdirigidasaos imigranteseuropeus,que foramfavorecidosnaobtençãododireitoprivadosobrelotesdeterra,quereceberamincentivos(equipamentosefinanciamentos)dogovernoparaseestabeleceremnoNovoMundo. Imigrantes europeus foram privilegiados por sua suposta maior capacidadede trabalho epor sua iniciativa individual.Açorianos, alemães,italianos e outros europeus foram considerados como “gente de melhor qualidade”, trazidos para substituir índios e negros africanos considerados inaptosparapromoverumprojetodenação.Opreconceitodosnossospolíticoscristalizou-senaestruturadenossasinstituições,facilitandoaosdescendentesde colonos o acesso privilegiado aos melhores cargos públicos, facilitando o acúmulo de capital executado por (poucos) empreendedores privados, em

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detrimento dos direitos consuetudinários e coletivos herdados de índios e negros libertos, ocupantes originários dos mesmos espaços usurpados por estrangeiros que deixaram descendentes na terra; os mesmos que, de forma paradoxal,levaramà“construçãonacional”.

Essa ideologia é ainda mais marcada para o caso do Rio Grande do Sul, ondeoprojetode imigração realizou-sedemaneirapioneira e contínuaaolongodequaseumséculo(1824-1910).Elaéaindaalimentadaoficialmente,porque existe uma propaganda externa que incentiva a imagem desse Estado enquanto sendo “naturalmente europeu” (slogan da cidade de Gramado na décadade1990),oqueéreforçadopelomovimentodeexpansãopopulacionaldos descendentes teuto-brasileiros e ítalo-brasileiros que colonizam outros estados no norte do Brasil. Por outro lado, essa ideologia tem sua maior vigênciadentrodoEstado,servindocomoreferência implícitadas relaçõessociaisquedesqualificamíndios,negrosemestiçoscolocando-osnopatamargenérico demão de obra desqualificada (chamados pejorativamente comopelo-duro, bugres ou brasileiros). Isso dá origem a um dilema insuperável na construção da identidade regional, porque as pessoas buscammascararqualquerligaçãocomaancestralidadenativa(indígena,negraououtra)parareivindicarapenassuaascendência“deorigem”,buscandocomissocapitalizarbenefícios simbólicos que justifiquem suaposiçãomenosdesfavorecidanaescala social.

NãoéaausênciadegruposindígenasoquesurpreendenoRioGrandedo Sul,mas sim a falta de reconhecimento sobre sua existênciamarcante até a atualidade. Esse despreparo intelectual para reconhecer os índios enquanto legítimos agentes contemporâneos (lúcidos quanto aos propó- sitos de seu próprio destino), é fruto daquilo que se aprende nas escolas, onde se educamas crianças e jovens a partir da versão da historiografia oficial gaúcha–marcadamente positivista – que sefixa apenas na reproduçãode uma lista de nomes de famílias ilustres, de militares ou de políticos impor- tantes.

No entanto, o processo histórico é muito mais complexo do que a simples assinaturadedocumentosoficiaisoudoqueadescriçãodevitóriasembatalhasmilitares. Se ainda hoje nossos administradores, políticos, juízes e empresários agem em completo desrespeito aos direitos indígenas, é porque eles assimilaram falsasnoçõesescolares,dequeosíndiosGuaraniforamextintosdepoisdasMissõesJesuíticas;dequeCharruaseMinuanosdesapareceramnosmassacrese nas guerras de fronteira com os países platinos; de que os Xokleng foram exterminadosporassassinosprofissionais(osbugreiros);edequeosKaingangrestamdecadentesdentrodereservasàesperadesuacompletaassimilaçãoenquanto brasileiros genéricos.

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Éprecisoreformulartãoerrôneasinterpretações,porquenossahistóriaregionalébemmaiscomplexadoqueumamerasubstituiçãodepopulações.Houve uma intensa mestiçagem genética e cultural, mesmo que os membros das elites menosprezem e escondam qualquer vínculo com essa origem autóctone. Por outro lado, diversas comunidades indígenas existem até hoje se utilizando de estratégias eficazes de resistência cultural,mesmo enfrentandograndesdificuldadesparasobreviver.Osgruposfamiliaresindígenasvagamdispersospelos pequenos espaços vagos (geralmente públicos) entre as propriedades, fugindodaintimidaçãodecapatazesecapangaspararesguardarasegurançade suas crianças, camuflando sua diversidade cultural fazendo-se passarporcamponêspobreesem-terra.Osindígenascontinuamsendofiéisàsuastradições,mesmoquehojemendiguemoganhodesuasubsistência.

Tanto no passado quanto no presente, os indígenas são protagonistasde seu próprio destino, embora reduzidos à condição deminorias étnicasna atualidade. Os estudos científicos conseguem reconhecê-los capazesde reagir às adversidades dahistória e aos preconceitos que criaram sobreeles os estrangeiros que aqui se erradicaram para se tornarem “gaúchos”. O reconhecimento constitucional das demandas diferenciadas das comunidades indígenaspelaCartaMagnade1988nãoéresultadoapenasdabenevolênciadospolíticosesclarecidosoudaaçãodeintelectuaisereligiosos,masé,antesdequalquercoisa,o resultadodamobilizaçãocoletivaedaarticulaçãodasliderançasindígenasnalutaporseusdireitosoriginários,nareivindicaçãopeloreconhecimentoplenodesuaautodeterminaçãocoletiva.

OsíndiosatuaisquehabitamoRioGrandedoSultêmbasicamenteduasformas de assentamento no espaço, comunidades organizadas enquanto aldeias ouenquantoacampamentos.AsaldeiasestãoquaseexclusivamentelocalizadasdentrodeTerrasIndígenas(TIs.)emprocessoderegularizaçãofundiáriaporpartedaFundaçãoNacionaldoÍndio(FUNAI,órgãodoMinistériodaJustiça),e quase todas elas remontam sua origem nas primeiras aldeias reconhecidas como reservas indígenas – principalmente no norte do Estado (como sãoCacique Doble, Ligeiro, Carreteiro, Votouro, Nonoai, Rio da Várzea, Guarita, Inhacorá etc.), ao longo do período do Império e da República do Brasil. Outras TIs.foramcriadasnasúltimasdécadassobreglebasdeterrasquenãotiveramapropriaçãomuitoantiga,por seremáreasmenos férteisou localizadasemterreno íngreme (Pacheca, Barra do Ouro etc.).

Apenas depois de 1988 é que os indígenas do Rio Grande do Sul con- seguiram recuperar algumas das terras que lhes pertenciam originalmente, atravésdemovimentosdereocupaçãodeáreas(atravésdenovosacampamentos)antes ilegalmente loteadas por iniciativa dos governos municipais ou estaduais (Ventarra, Monte Caseiros, Serrinha, Iraí, Vicente Dutra etc.), comprometendo

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o Poder Público com o processo de anulação dos títulos de propriedadefraudulentos,comaremoçãodosintrusosecomaindenizaçãodasfamíliasnãoindígenasretiradasdasáreasrecuperadasàposseexclusivadascomunidadesindígenas.

Hátambémocasodeáreasdoadasàscomunidadesindígenasporiniciativadeassociaçõesedeprefeituras(Estiva,Cantagalo,LombadoPinheiro,VilaParaísoetc.),alémdetrêsáreasdesapropriadasparafinssociaispeloGovernodoEstado,naGestãoOlívioDutra,em2001,ondehojeexistemasaldeiasMbyá-Guarani de Água Grande, da Coxilha da Cruz e do Inhacapetum. Processosdeindenizaçãoporimpactodegrandesobrastambémtêmgeradoadestinaçãodeáreasparaalgumascomunidadesindígenas(Interlagos,Capivari,Estrela Velha, Estrela etc.). Raras áreas públicas foram convertidas em Terras Indígenas(GranjaVargas,Itapuã).

Asaldeiasfazempartedeumcircuitodeintegraçãoterritorial,porqueasfamílias indígenas vivem em constante mobilidade entre elas, constituindo uma rededelaçossociaisquepermitemaarticulaçãointeraldeãe,porconsequência,a mobilização étnica.Amobilidade dos grupos indígenas desdobra-se noespaçopela criaçãode acampamentos – provisórios oumais permanentes,na beira de estradas (Petim, Passo Grande, Campo Bonito, Capivari, Irapuá etc.), em espaços públicos urbanos (Morro do Osso, Lami, Dolores Duran, SãoLeopoldoetc.)ousobreterrenosprivadosalugadosoucomprados(MorroSantana,VilaSafiraetc.).Osacampamentos fazempartedeumaestratégiatradicional e milenar das famílias indígenas, que circulavam no espaço segundo amaturaçãoeadisponibilidadedosrecursosnaturais(caça,pescaecoleta)eemfunçãodasestaçõesdoano.

Os acampamentos transformaram-se numa das mais importantes for- masde sobrevivência depois doPeríodoColonial, porque as comunidadesindígenas tornaram-se mais móveis para escapar ao cerco civilizado e fugir do processooficialdeconfinamentoemáreasreduzidas,ondeeramaglutinadasarbitrariamente todas as comunidades indígenas outrora dispersas no território quesefezocuparporimigrantes.Hoje,oacampamentoaindaéumaeficazformadesobrevivência, servindo tambémcomomeiode reivindicaçãodascomunidades indígenas pela retomada de seus direitos originários sobre a terra (Candoia, Borboleta [no Salto do Jacuí], Arroio do Conde etc.). O direito de ir e vir foi reprimido pela polícia e pelo exército brasileiro e só tornou-se legítimo também aos indígenas depois de 1988.

Assim, as comunidades indígenas conseguem seu sustento e reproduzem suas tradições fazendopequenas expedições e criando acampamentosmaisprovisórios,buscandofrutos,fibrasvegetaisesementesnaspoucasáreasdematas ainda existentes ou vendendo sua força de trabalho como boia-fria,

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segundoasdemandasdaagendadeproduçãoagropecuária.Omercadourbanotornou-se fonte semanal de renda pela venda de artesanato, provocando um trânsito das famílias entre as áreas que são fontes dematéria-prima, suasmoradas e a de parentes que residem próximo ao comprador.

Considerando todas essas situações referidas, sinteticamente podemosdizer que existem duas línguas indígenas ainda amplamente faladas no Rio Grande do Sul (Guarani e Kaingang), além de outras praticadas por poucos indivíduos (Charruas,Xokleng etc.).Os falantesGuarani sãodivididos emparcialidades étnicas, sendo os Mbyá-Guarani os mais numericamente representados (em torno de dois mil e duzentos indivíduos), ao lado de poucos Xiripá e Nhandeva que vivem próximo de áreas Kaingang (ocupantes de Votouro, NonoaieMatoPreto,porexemplo).OsMbyá-Guaraniestãodistribuídosemtorno de 24 aldeias (tekoa) no Estado, apenas duas delas maiores (em torno de dois mil hectares cada – Riozinho e Pacheca), uma outra média (Varzinha, com quase 800 hectares.) e todas as demais com menos de 300 hectares. Boa parte das aldeias Mbyá-Guarani sobrevive na forma de acampamentos em beira de estrada ou em terrenos com menos de 10 hectares para seu uso exclusivo.

AsaldeiasKaingangsãomaioresedistribuídasprincipalmentenonortedo Estado, poucas delas com dezenas de milhares de hectares (Guarita com 23.406; Nonoai com quase 15.000; Rio da Várzea com 16.400; Serrinha com quase 12.000), as demais com muito menos (Ligeiro e Cacique Doble com 4.500; Votouro com 3.700; Inhacorá com 2.900; Monte Caseiros com 1.112; Ventarra com 772). Ao todo, existem dezesseis diferentes áreas Kaingang, sendo as maiores compostas internamente por diversas aldeias. Os recursos naturais dentro dasTerras Indígenas são cobiçados por não indígenas e setransformam em objeto de disputa econômica e política dentro dos municípios ondeelasestãosituadas,criandoformasilegaisdeexploraçãodasmatas,dearrendamentodas terrasedeendividamentoqueprovocamconflitosdentrodas aldeias e acabam por instituir um regime de desigualdades sociais entre osíndios.Emmuitasáreas,asjovensindígenassãoprostituídaspelaseliteslocais.Muitasaldeiassãomanipuladasporpartidospolíticos,transformadasem currais eleitorais onde se acirram disputas internas que chegam inclusive ao confronto físico.

Horizonte histórico-cultural dos Povos Originários do RS

A realidade atual enfrentada pelos grupos indígenas resulta mais ime- diatamentedoprocessohistóricodesuainevitávelintegraçãoaonossomodelode civilização, ondeficaram impossibilitados para exercer plenamente suaautodeterminação, mesmo no caso de terem suas terras demarcadas. Noentanto, a realidade contemporânea das comunidades indígenas só pode ser

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compreendida melhor quando consideramos os fatores estruturais e de grande antiguidade surgidos durante a adaptação de suas tradições culturais aosdiversosambientesquecompõemessapartedaAméricadoSul.

Cada uma, de milhares de sociedades indígenas existentes neste continente antes deCabral, teve sua própria história de formação cultural, compondocomasdemaisumhorizontemuitodiversode tradições,decostumesedelínguas.AregiãodoRioGrandedoSul impôsquemuitasdessas tradiçõestivessem contato e disso surgissem misturas e alianças, porque o território do Estado é o encontro de diversas paisagens de amplitude continental, incluindo as bacias dos rios formadores do Lago Guaíba (Jacuí, Taquari, Caí, Sinos e Gravataí) e do rio Uruguai, a Serra do Mar e seu prolongamento na Serra do Sudeste, o Planalto Meridional e suas encostas íngremes (Serra Geral), a planícielitorâneacomsuacomposiçãolacustreeasplanurasdaPampa.Emcadaumadessasunidadesambientaisexistemcondiçõesprópriasdegeologia,declimaededistribuiçãodafloraedafauna,condiçõesquevariaramatravésdos últimos milhares de anos e nas quais estiveram adaptadas as comunidades originárias.

A ocupação da região por grupos humanos começou hámilhares deanos antes de Cristo (a.C.), frequentada por hordas de caçadores e coletores praticantesdetecnologiadapedralascadaepolida.AantiguidadedeocupaçãodaregiãorecuaaospadrõescronológicosjápesquisadospelaarqueologianasmargensdosafluentesdomédiorioUruguai,comdataçõessuperioresàcifradezmil anos. Esses grupos mais antigos deixaram poucos registros e a descoberta eventual de um de seus acampamentos é de valor inestimável para desvendar aspectossobreessescapítulosdesconhecidosemnossahistoriografiaoficial.Ahistória mais antiga do Rio Grande do Sul ainda está por ser contada.

Embora muito ainda precise ser descoberto e estudado, a pesquisa arqueológica já disponibiliza conhecimento relativamente detalhado sobre opassado“pré-histórico”daregião.Ossítiosmaisantigossãoaquelesquepossuem material lítico lascado com pontas de projétil feitas em rochas de estruturacristalina(sílica).Sãosítiosquetambémpossuembolasdeboleadeira,mós, bigornas, raspadores, furadores e também implementos feitos em osso (arpões, anzóis etc.). Esses vestígios possuem muita semelhança com osmateriaisencontradosemsítiosdistribuídosnaregiãodaPampaenaPatagônia,indicandoqueosgruposindígenasdessaregiãotinhamumafiliaçãoculturalsemelhante.

Eram bandos de caçadores e coletores de paisagens abertas, ancestrais dos grupos que os documentos coloniais registraram como Minuanos, Charruas, YaróseGuenoas.Nolitoralsul(emcontinuidadeaoqueocorrenaRepúblicadoUruguai)enaDepressãoCentral(valedosriosJacuíeIbicuí),taisgrupos

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tambémexecutaramgrandesaterrosartificiaischamados“cerritos”,nosquaisenterravam seus mortos, faziam fogueiras, construíam cabanas e deixaram restos de seus artefatos. No litoral norte do Estado surgiram aldeias de grupos praticantes da coleta de recursos marinhos, principalmente moluscos, mas também praticantes de pesca e de caça, criadores dos grandes sambaquis (amontoadosdeconchasedeossos)queexistiamnaregiãodeTorresequeainda existem distribuídos no litoral dos estados de Santa Catarina e Paraná.

Outraspopulaçõesindígenasintensificaramacirculaçãohumananessaregião ao longodos últimosmilênios.Os antigos caçadores, pescadores ecoletoresreceberaminfluênciadegruposamazônicoseandinos,passandoapraticaro incipientecultivodeplantaseaproduçãodevasilhascerâmicas.Aassimilaçãodapráticada cerâmicaestá registradanas camadasde sítiosdemaior extensão, como é o caso de centenas de estruturas subterrâneasconstruídaspelosocupantesorigináriosdaregiãodoplanalto.Taisestruturasforam antigas habitações, geralmente distribuídas em conjuntos (aldeias),dentro das quais surgiram fogões, bancadas para assento e instrumentosfeitos em pedra, madeira, osso e cerâmica. Já foram descobertas estruturas subterrâneas com até vinte metros de diâmetro e conjuntos com até quarenta casas, evidenciando grandes aldeias compostas por centenas de pessoas. Os criadoresdascasassubterrâneasviviamnoplanalto,namesmaregiãoondenoperíodocolonialestavampresentesgruposqueficaramconhecidoscomoGuananases, Caáguas, Coroados, Botocudos, Tapejaras e Ibiraiaras.

A cerâmica também é encontrada nas camadas mais superficial doscerritos,demonstrandoqueosantigoscaçadoresecoletoresdaporçãosuldoEstadosofreramiguaisinfluênciasadvindasdepovoscultivadores.Maisoumenos na época de Cristo, o território da bacia do rio da Prata foi invadido por gruposcomtraçosculturais típicosdoscultivadoresdefloresta,artíficesdacerâmica que passou a ser chamada Guarani, que ocuparam todas as várzeas e planícies férteis das margens dos rios, lagos, lagoas e do mar. Através da coivara introduziramoplantiodomilho,damandioca,dosfeijões,dasabóboraseoutrasplantas. Os Guarani criaram aldeias compostas por grandes casas comunais que abrigavam até seiscentas pessoas. Nos locais onde habitaram, surgem marcas de estacasemanchasrelativasàssuasantigascasas,instrumentosfeitosempedralascadaepolida(lâminasdemachados,mãosdepilão,pesosderede,bigornasetc.),enterroshumanosdentrodeurnasfunerárias,cerâmicacomdecoraçãoplástica e com pintura na superfície. Tornaram-se dominantes, expulsaram ou assimilaramosoutrosgruposqueviviamantesnasáreasdeflorestaporelesocupadas. Essas sociedades foram encontradas pelos primeiros colonizadores que chegaram pelo litoral, descritos pelos antigos cronistas como Arachanes, Carijós, Anjos, Guarani e Tapes.

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Em termos gerais, todos esses grupos autóctones caracterizavam-se por baixadensidadepopulacionalecomsuaeconomiadiversificadaemcoleta,caça,pesca; também complementada, entre quase todos os grupos e em diferentes proporções, pelo cultivo de plantas autóctones americanas domesticadas.Por isso falar-se do cultivo itinerante como marca de boa parte dos povos originários platinos. Viviam em regime de frequentes deslocamentos dentro de amplos territórios tradicionais, constrangidos apenas pela territorialidade devizinhosdeoutrasascendênciasculturais.

Tanto hoje como no passado, o comportamento territorial dos autóctones platinostemsidomalcompreendido,porqueaspré-compreensõesdoespaçogeométrico e euclidiano introduzidas desde a Europa moderna fundamentaram apenasa“consolidação”daconquistapelapossedaterraenquantopropriedadeprivativa e individual. Os diretos originários coletivos foram anulados, os territórios indígenas transformados em “terra arrasada”. Falta de perspectiva antropológicaeoperaçõesdevelamentosãorazõesquefizeramconquistadorese colonizadores subestimarem o fenômeno sumariamente descrito como “nomadismo” dos povos originários. Os povos autóctones platinos viviam, assim como quase todos os nativos das Terras Baixas sul-americanas, em regime decirculaçãosazonalentrealdeiaseacampamentos.Conformeaépocadoano,haviaodeslocamentodosnúcleosdomésticosdeproduçãoportodoovastoterritóriotribal,independentementedaexistênciadealdeiaseassentamentos“mais” permanentes ao estilo do que passaram a praticar os colonizadores.

Mesmo porque é sabido que as populações de ascendência Guarani(Tupiguarani arqueológico) haviam criado grandes aldeias mais estáveis ao longodasvárzeas férteisdosriosParaná,Paraguai,Uruguaieafluentes,asprimeirasaserematingidasedissipadaspelacolonizaçãoespanholadoRiodaPrata.Essesautóctoneseramsofisticadoscultivadorespelosistemaderoças,possibilitando que a força econômica centrífuga – autarquia que move os núcleos deproduçãodoméstica–fossecontrabalançadapelasustentaçãoderelaçõesderedistribuiçãoeconômicacentralizadasporgrandeschefes(mburuvichá). AcidadedeAssunção(Paraguai)é,talvez,oexemplomaismarcantedeumassentamentocolonialrealizadosobrelocaldeforteconcentraçãopopulacionalGuarani pré-hispânica.

A consideração sobre os padrões de territorialidade das sociedadesoriginárias é importante para entender a situação atual das comunidadesindígenasdaregião,parademonstrarquetaispadrõessãoincompatíveiscomoscritérios geopolíticos modernos incorporados pelos nacionalismos instaurados na Região Platina a partir do século XIX. Esses critérios produzem umsubstancial velamento sobre a territorialidade das alteridades autóctones, que foram arbitrariamente consideradas extintas mesmo quando ainda existentes.

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As diversas populações originárias possuíam uma distribuição territorialfundadaemfatoresambientais,ecológicos,históricosedeascendênciacultural,ultrapassando e trespassando qualquer um dos limites político-administrativos oficialmenteadotadospelosnossospaíses.Porexemplo,osriosquehojefazemadivisainternacionalnãoeramfronteiras,mascentrosdavidadosGuarani,59 umavezqueeramcultivadorestradicionalmenteadaptadosàsvárzeasfluviaisem toda aRegiãoPlatina.Seus descendentes transitampelamesma regiãoaté a atualidade, embora reduzidos a pequenas e poucas áreas onde criam suasaldeiaseacampamentosgeralmenteàmargemdolatifúndioedeoutraspropriedades privadas.

A regiãodoRioGrandedoSul presenciouo contato entre diferentesgruposindígenasaolongodemilênios,incluindoacirculaçãodehordasquevinham do norte e eram adaptadas ao planalto e aos pinhais. Ao início da épocacolonial,haviagruposnativosdistribuídostambémnasporçõesmaistemperadas e altas do Planalto Meridional Brasileiro, incluindo o norte da Argentina a oeste. Faziam fronteira com os grupos Guarani, esses ocupando a porçãoinferiordosvalesdosrioscujasbaciascortamoplanalto.Osnativosdotopodoplanaltoforametnograficamenteidentificados,depois,comoancestraisdosfalantesdeduaslínguasdafamíliaJêMeridional,correspondentesaduasdiferentes culturas. Uma delas estava adaptada melhor aos Campos de Cima daSerraeàencostaorientaldoPlanalto,chegandoatéo litoral (ancestraisdosatuaisXokleng);aoutraeramaisflorescentejuntoàsflorestasmistascomnúcleos de pinheirais (ancestrais dos Kaingang).

O suposto “nomadismo” autóctone também foi colonialmente estimulado, no colapso social trazido pela conquista bélica e religiosa a partir do século XVI, interferindoagudamentenoequilíbriodasrelaçõesinterétnicasestabelecidasentre os povos originários platinos. Há muitas pistas arqueológicas a demonstrar inúmeras formasde relação interétnicanasáreasde fronteiraculturalentregrupos autóctones, incluindo a reciprocidade negativa pelo canibalismo e o rapto de mulheres ou por intercasamentos, estes evidenciados pela descoberta detrocasemcertospadrõesdeconfecçãonacerâmicapré-colonial.Considera-se plausível a hipótese de que os sistemas sociais da pré-história platina estavam fundados em amplas redes de parentesco e aliança, que poderiam se estender, talvez, para além das fronteiras tribais e linguísticas.

Aexpansãodos impérios coloniais ibéricos na regiãoproduziu a gra- dativa ruptura de quaisquer tipos de alianças políticas de maior amplitude 59Paraoscultivadoresquerealizamsuaproduçãoaoestilodosistemadeflorestatropical,canoeiroscomoeramosGuarani,orioéeixodasrelaçõesprodutivastantoquantoprincípioestruturantedacosmologia.Veja-se o estudo de Phellippe Descola sobre os Achuar (Jivaro) da fronteira entre Equador e Peru (DESCOLA, 1986).

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que as tribais, ao ponto de se reduzirem, na maior parte das vezes, a vínculos domésticos unindo poucas famílias nucleares. Isso significou a ampliaçãodasforçasdedispersão,independênciaeautonomiadosnúcleosdomésticosautóctones, salientando a mobilidade como estratégia de fuga frente aos agentes dedominação colonial.Criou-se umquadrode pressãopopulacional entretodososgruposnativosdaRegiãoPlatina,espremidosentreosportuguesesvindos de norte e leste e os espanhóis vindos de sul e oeste. Isso também foi enfatizado pela estratégia colonial de cooptar uns e outros como aliados aos impérios coloniais, ampliando ainda mais as rivalidades intertribais e intercomunitárias.

AhistóriacolonialdaRegiãoPlatinaérepletadeepisódiosdebarbarismoe violência, praticados emnomedeDeus e daCoroa sobre as populaçõesoriginárias.Noentanto,asvitóriascivilizadasnãodevemsersuperestimadas,sejaporqueerareduzidoonúmerodeeuropeuschegadosemrelaçãoaotamanhodaregião,sejaporque,depoisdasprimeirasderrotasguerreirassofridasedasprimeirasmortalidadesepidêmicas,emameaça,osgruposdispersavameasfamíliasfugirampararefúgiosnaturaisdistantesdosnúcleosdecolonização.Éfundamentalreconhecerousodessaestratégia,observadaaindaemusopormuitosautóctonescontemporâneos,principalmenteentreosdeascendênciaGuarani(osMbyáexemplificamoprimordessacapacidadeadaptativapelafugadoconflito).

Osdadosetnográficospermitem,assim,demonstrarquea“conquista”nãoseefetuounemrápida,nemcompletamente,eapresençahojedeíndioscirculandopeloRioGrandedoSuldemonstraisso.NaRegiãoPlatina,muitospovos originários conseguiram sobreviver em enclaves territoriais e em refúgios naturais ou destribalizados vagando invisíveis em meio ao domínio colonial, mas capazes de sobreviver pelo estabelecimento de alianças sociais assimétricas com os agentes da conquista europeia e seus herdeiros. Ainda hoje, os dados etnográficos mostram que destribalização e dispersãopopulacional não são omesmoque extinção ou desaparecimento cultural,nem significamperda de uma consciência sobre a territorialidade tradicio- nal, mesmo que essa territorialidade tenha se feito completamente fraturada, pelas “cercas embandeiradas que separam quintais” daqueles que chegaram depois,vindosdeoutrocontinente“geo-gráfico”e“cosmo-lógico”eosex- pulsaram.

Entretanto, indivíduos e grupos indígenas continuam habitando e cir- culandopróximosdenós,eelesnãosãoestrangeirosnemestãoforadeseusterritórios tradicionais. Isso precisa obter o mais imediato reconhecimento e trabalhado em nosso sistema escolar, isso precisa ser assimilado por todo cidadãogaúchoeportodasasinstânciasdoPoderPúblico.

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Os direitos originários e o futuro das sociedades indígenas no RS

Os dados publicados de pesquisas etnográficas recentes feitas emcomunidadesindígenaseaexperiênciaemtrabalhosdecamporealizadosnoRio Grande do Sul na atualidade, no convívio direto com indígenas nas terras demarcadas, nos acampamentos e na periferia das cidades permitem constatar amisériaeasdificuldadesdesustentaçãoeconômicaeecológicaexistentesemquasetodasascomunidadesorigináriasnosuldoBrasil.Issonãoéomesmoquedizerqueelastenhamperdidoadireçãodoseuprópriodestino,porqueelas fazem alianças e parcerias com diversos segmentos da sociedade para o reconhecimento de seus direitos diferenciados. Seu desempenho político e sua resistênciaculturaldemonstramqueelasnãosãosociedadesdopassado,massimsociedadesdofuturoporquesãocapazesdesecontraporaomodelodeassimilaçãoquenossacivilizaçãoinsisteemlhesimpor.

Desde a abertura política brasileira na década de 1980, após a Ditadura Militar, a recuperação da posse exclusiva das terras tradicionais ocupadaspor intrusos tem sido a tarefamais urgente ativada pelamobilização dosmovimentos indígenas emescalanacional.AConstituiçãoFederal (CF)de1988estabeleceuoprazodecincoanosparaademarcaçãodefinitivadasTerrasIndígenas em território nacional, tarefa apenas parcialmente concluída depois de vinte anos. No Rio Grande do Sul, a luta é mais árdua por causa dessa ideologia que pretende destituir de legitimidade os direitos originários em nível estadual.Assim, pequenos avanços sãopercebidos comotimismo, comooforam:arecuperaçãodealgumasterrasindígenasesuaregularizaçãofundiáriapelo Governo Federal brasileiro para os Kaingang nas duas últimas décadas; eaaquisiçãodeterrasparaosGuaraninoiníciodadécadaatual.Aretomadarecente dessas áreas é um indicativo para os representantes indígenas de que ainda existe a possibilidade de um melhor reconhecimento de seus direitos diferenciados por parte do Estado brasileiro e da sociedade gaúcha, fazendo osvelhossonharemcomaampliaçãodenovosespaçosquepossamgarantir oassentamentoeosustentodasnovasgeraçõesdecrianças,emcomunidadesque passam por um rápido crescimento vegetativo, numa taxa acima da na- cional.

A CF de 1988 redefiniu a relação do Poder Público para com ascomunidades indígenas, legitimando a precedência dos direitos origináriossobre a posse das terras e na atençãodiferenciada aos serviços básicos desaneamento, habitação, sustento produtivo, saúde, educação e valorizaçãocultural. Nos últimos anos, tem ocorrido uma adequação das instituiçõespúblicas e das entidades que prestam serviços públicos destinados aos índios, havendoapromoçãodepolíticascompensatóriaseaexecuçãodeprogramasdeassistênciadiferenciada,partindodoplenoreconhecimentodasdemandas

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específicasorganizadasapartirdaamplaparticipaçãoindígenanoprocessodeelaboraçãoeexecuçãodetaisserviços.

A procura pela recuperação da autonomia tem motivado muitas co- munidadesaparticiparemdeprojetosvoltadosàproduçãoeconômica,contandocom recursos advindos definanciamento internacional à promoçãode suasustentabilidade étnica. Os mediadores indígenas manifestam sua vontade pela criaçãode alternativas para a produçãode recursos e suadistribuiçãointeraldeã,afimdesustentarnecessidadespresentesedemandasdeconsumoparasuascomunidadesemcrescimentodemográfico.

Há que se considerar a existência de diversos fatores estruturais quedificultam a plena realização da autodeterminação dos povos indígenasno Estado, a começar pela impossibilidade material deles superarem sua submissãoàsformasdeexploraçãocapitalista,poisseencontramalienadosemseu potencial de trabalho, privados de seus conhecimentos e de seu patrimônio cosmoecológico. Há que se considerarem as dificuldades geradas pelaconstriçãoterritorialimpostapelacivilizaçãobrasileirasobreascomunidadesindígenas.Háquesecontabilizartambémaampladegradaçãoambientalgeradapelaexploraçãopúblicaeprivada(deigualforma,capitalista)doPatrimônioIndígena e PatrimônioAmbiental brasileiro. Todos esses são fatores queimpedemareproduçãoplenadasestratégiaseconômicastradicionaisnativas,outrorabaseadasnumregimedesazonalidade, itinerância,ampladispersãopopulacional, num cosmos ainda cheio de espíritos e de deuses.

Ao longo dos últimos 500 anos, praticamente todas as experiênciascivilizadasforamnefastasàspopulaçõesaboríginesdasAméricas.Noentanto,as sociedades ameríndias souberam participar e se apropriar de muitas das inovações tecnológicas trazidas da Europa e dos Estados Unidos, usadasmuitasvezesemfavordesuacontinuidadecultural.Sãomuitososexemploshistóricos em que os índios demonstraram plenas capacidades para o trabalho cooperativo em escala comunal, dedicados ao fornecimento de produtos aos comércios local, nacional e internacional; ou apenas integrados ao estilo de vidacamponês.

QuasetodasascomunidadesindígenasatuaisnosuldoBrasilapresentamfamíliasqueaderiramamuitasdasestratégiasdesobrevivênciacompartilhadaspelos pequenos colonos circunvizinhos. Disso conclui-se que as comunidades indígenassãoplenamentecapazesdeincorporarinovaçõestecnológicas,semperderem suas respectivas matrizes culturais milenares ou suas respectivas identidadesétnicas.Sãorazõesdeoutraordemasqueexplicamasituaçãodemiserabilidade atual das comunidades indígenas do Brasil Meridional.

Écientificamentenecessáriopartirdasuspeiçãopréviaaqualquerinicia- tivagovernamentalrealizadanoBrasil,emsupostoproveitoàscomunidades

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indígenas. A história das políticas indigenistas brasileiras durante os períodos doImpérioe,deformamaisintensa,daRepública,sãogeralmentemarcadaspelo fracasso, como evidenciam os sucessivos projetos de desenvolvimento realizados “em prol” dos índios, embora muitos desses projetos fossem planejadosàluzdasmelhoresintençõeshumanitárias.OServiçodeProteçãoaoÍndio,criadoem1911,eaFundaçãoNacionaldoÍndio(Funai),suasucessoracriadaem1967,realizaraminúmerosprojetosde“desenvolvimento”,“geraçãoderenda”,“capacitaçãoprodutiva”,levandoàexaustãoosrecursosnaturaisdas terras indígenas por eles administradas, participando também ativamente noprocessodesubordinaçãodaspopulaçõesindígenasaosinteressespúblicose privados sobre os territórios originários e sobre o potencial de trabalho dos autóctones – menosprezando as práticas tradicionais milenares, rituais de culto aos mortos, de fertilidade, práticas xamânicas, cosmológicas, todas ainda fortemente ancoradas no ambiente, embora já exaurido.

Não é fácil reverter os vícios históricos, ainda mais porque eles seoriginaram de relações interétnicas locais e regionais muito conflituosas,havendoaparticipaçãodefuncionáriospúblicos,políticos,juízes,empresários,administradores, técnicos, e tantos outros, namanutenção do preconceito,da discriminação e da exploração econômica dos indígenas.Não é rápidorecomporosrecursosnaturaisdosquaisdependeasobrevivênciadosvaloresculturais,simbólicos,mitológicos,ritualísticosefilosóficosdascomunidadesindígenas.

Faz-senecessáriorefletirsobreasexperiênciaspretéritas,mapeandoosequívocos para evitar os mesmos e antigos erros sociais. Historicamente, os índios foram tratados como seres inferiores, suas terras administradas como sefossempropriedadedoschefesdepostos(nãoindígenas)esuamãodeobraexploradacomaconivênciadaadministraçãotutelardaFunai.Foramtantosprojetos,programaseações implementadasporpráticas intervencionistaseassistenciais; ou seja, iniciativas que partiram de uma lógica exógena, imposta aosindígenas,desconhecedoradaslógicasnativasedesuasrelaçõescomoambiente em que elas tradicionalmente existem.

Os objetivos dessas intervenções fracassaram basicamente pela inca- pacidade metodológica de acessar essas lógicas locais que pretendiam suprimir e,consequentemente,pordesconsiderarsuasreferênciasculturaisespecíficaseseus direitos especiais sobre a terra, além de anular suas demandas étnicas na execuçãodepolíticasenaprestaçãodeserviçosessenciais.Aodesconheceraformalocaldacultura,impõe-seumalógicaexternaepautadaemmodelosestranhos,porissofadadaaofracasso.Nãosecolocaemdúvidaosucessoquecertas propostas de desenvolvimento social tiveram em outros países, em outras situaçõesecasos.Oquepesaéterclaroque,emsetratandodecomunidades

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indígenas,nãohánenhumapolíticaquepossatersucessosegundomodelosde desenvolvimento administrados desde fora do contexto indígena, nem é possívelpensaremmerasadaptaçõesdeprogramasdegeraçãoderendaededesenvolvimento econômico, pois isso sempre acarreta profundos danos ao ambienteeàspopulaçõesquenelevivem.

Embora a CF de 1988 tenha consolidado o reconhecimento de dívida histórica do Estado brasileiro para com as populações indígenas, aindanão existe realização satisfatória de políticas compensatórias dirigidas àscomunidades originárias. Muitos políticos e representantes do Poder Público continuam a tratar os representantes indígenas como se fossem relativamente incapazes, desconsiderando o reconhecimento de seus direitos fundamentais de ireviredaposseplenadascondiçõesdeinfraestrutura(terra,recursosnaturaispreservados,respeitoaosseusrituaisetc.)necessáriasàreproduçãodesuastradiçõesculturais,deseususosecostumes.

Poroutrolado,noçõescomocidadania(conceitotrazidopelamodernidade,baseadonaRevoluçãoFrancesadecaráterburguês,de1789),representação,participação,direitosedeveres,qualidadedevidaecombateàpobrezanãoconseguemsuperarosentraveshistóricoseculturaisimpostosàscomunidadesindígenas no Brasil, impedindo de fato qualquer possibilidade de autonomia dessaspopulações.Vivemosnuma“ditaduradofinanceiro”,queimpõeumaúnica lógica temporal e espacial dos calendários e cronogramas orçamentários, dos relógios, assembleias, microfones, atas, imposta pelos diferentes agentes desse Estado e que, assim, aliena as matrizes indígenas ao desenvolver projetos pautados apenas no “desenvolvimento”.

Referências

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19 Indígenas do Brasil:

breve manifesto pelo não ocaso de uma cultura Leonidas Roberto Taschetto

Rosimeri Aquino da Silva

Nãosãopoucos,tampoucodefácilresolução,osproblemasqueafetammilhares de índios que vivem em centenas de aldeias, tribos, comunidades e acampamentos em beira de estradas de norte a sul no Brasil. Aliás, fundamentados numa memória metropolitana imediata, o próprio uso da expressão“milharesdeíndios”podecausar-noscertasurpresa,pois,aosnossosolhos, eles parecem poucos. Eles formariam pequenos grupos constituídos por mulheres, muitas crianças e alguns homens vendedores de artesanato, por vezesmaltrapilhos,semidesnutridosetc.Ouseja,jogadosnamesmasituaçãode precariedade social na qual vivem muitas outras hordas urbanas. Os índios sul-rio-grandensesnãosãoexceção.Enfrentamproblemassecularesgeradospelalógicadaculturabrancaeuropeiaqueosmanteveàmargem,negando-lhesdireitos e o devido reconhecimento. Hoje, as notícias que chegam a nós por meio da mídia impressionam tanto pelo seu volume quanto pela forma. Todos os meiosmidiáticos,semexceção,dainternetàtelevisãoouàsmídiasimpressas,diariamenteveiculamalgumtipodenotíciarelacionadaàquestãoindígena.Emgeral,nãosetratamdenotíciaspropriamentesobreseusmodosdevida,suacultura,suareligiosidade.Oquemaisseouve,sevêousecomentasãoosprocessosjurídicosdedemarcaçãodeTerrasIndígenas(TIs)quetramitamnasesferasdoSupremoTribunalFederal,questõesrelacionadas,portanto,àluta pela terra.

Vale lembrar também algumas notícias veiculadas sobre processos de dis- criminaçãoexplícitamovidoscontraospovosindígenas,manifestadasemco- mentáriospreconceituososque reafirmamvelhos imaginários, caracterizan- do-os como indolentes, incapazes, fracassados, miseráveis, inúteis. Como exem- plo, temos o caso do jornalista Nélson Antônio Lanzini Pereira, de Chapecó (SC). Sob o título “Chapecoense deve mudar símbolo”, o jornalista declarava queoíndioéumafiguramelancólicaederrotada.“Osúltimosdescendentesdas tribos indígenas vivem esmolando nas ruas, tentando trocar dinheiro por artesanato”, escreveu Pereira, sugerindo que o símbolo do clube poderia ser até mesmoumanimal,comoveado,galinhaouporco,masnãoumíndio.

Nãoénossaintençãoaquienumerarediscutirosprincipaisproblemasque assolam a vida dos indígenas. Gostaríamos de contribuir para o debate

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trazendoumtemaquepermeiasenãoquaseatotalidadedessesproblemas,ao menos boa parte deles: o preconceito. O preconceito que foi construído ao longo dos séculos contra seus modos de vida, seus costumes, hábitos, crenças, suaformadeorganizaçãoedeexercíciopolítico.

Vivemos num país com dimensões territoriais continentais, com osmaisvariadosclimas,característicasregionais,formaçõesvegetais,conflitospela posse de terras das mais diversas naturezas, o que acaba revelando as diferenças, os contrastes, as nuances entre as diversas etnias indígenas existentes no Brasil. Como temos uma diversidade de climas, ecossistemas, culturas,“geografias”,entãoédeseesperarquetenhamos,emconsequênciadisso,etniasquefalamlínguasdiferentes,quetêmculturas,hábitosevaloresdiferentes.IndígenasdoAcre,oudeGoiás,doMaranhãooudoRioGrandedoSulserãoreconhecidoscomosendotodosíndios,apesardenãofalaremamesma língua,deconstituíremmitologiaspróprias,denãocompartilharemda mesma vida social e religiosa, de terem o sistema de metades diferentes, comprincípiossociocosmológicosespecíficosehábitosalimentaresosmaisvariados. Entretanto, não é exatamente assim que as coisas funcionamnaprática,nopensamento,namaneiracomoosnãoindígenasvêmosíndios.

Por desconhecimento, ignorância, preguiça, falta de interesse, ou mesmo porpreconceito, amaioria dosbrancos terá umaconcepçãogeneralizada emassificadaacercada riquezaquemarcaasdiferençase as especificidadesentre as etnias indígenas. Esse fato se torna ainda mais curioso, e estranho, ao constatarmos que um imigrante italiano do RS, do ponto de vista de um não imigrante, jamaisseráconfundidoou igualadoaumimigrantealemão,mesmo que ambos tenham as cores de suas peles e de seus olhos iguais, e mesmoquenão se saiba dizer comprecisão que diferenças os distinguemumdooutro.Saber-se-áqueumdelesédeascendência italiana,eooutro,alemã,comodoisedoissãoquatro.Oquefazcomqueascoisasfuncionemdessamaneira,quesejam“lidas”poressaótica?Oquefazcomquenossasespeculaçõesacercadasorigens–edesuasdiferenças–seconectemaideiastãosimplistasegeneralizantes?Pororaegrosso modo, poderíamos entender esseestranhomovimentodopensamentocomoalgorelacionadoàquiloqueo psicanalista Otávio de Souza chamou de “fantasias de origem”, ou melhor: “fantasiasdeBrasil”.Masseriasimplistademaissituaraquestãoapartirdoprisma psicanalítico. Há problemas pontuais, reais, concretos que precisam ser esclarecidos histórica e antropologicamente, pois do contrário assumiremos uma posição demasiada abstrata. É preciso que se situe minimamente ocontextoemquetais“fantasias”estãoinscritas.

Nãoiremostãolongecomnossasindagaçõesapontodetermoscondiçõesde responder satisfatoriamente à pergunta. Por outro lado, não a deixare-

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mos solta no ar, sem que antes nos autorizemos a esboçar algumas especu- lações.

Ahistóriaoficialestabeleceadatade1500comomarcodo“nascimento”do Brasil, e sua “descoberta” atribuída a Cabral. Embora aqui já vivessem aproximadamente cincomilhões de índios, estatística que varia conformea perspectiva adotada.Não importa a exatidão numérica, se paramais ouparamenos, eles erammilhões de índios que habitavam todas as regiõesdo continente.Estudos sobre a pré-história da atual região doRioGrandedoSulatestamasuaexistênciabemantesdaocupaçãopelosbrancos,bemantes de qualquer processo colonizador.Eles sãoos habitantes originários,os verdadeiros “senhores” dessas terras, mesmo que lhes sejam negado a possede fato e dedireito.Quandopredominao forte desejodenegar-lhesuma existência na história, delegando-lhes o papel demerosfigurantes oupersonagens coadjuvantes, a reboque da bravura do colonizador branco, a história a contrapelo vai possibilitar outras leituras do passado, em geral bem diferentesouatémesmodivergentesdasversõesoficiais,diferentesdoetno- centrismo cultural do pensamento ocidental (europeu) que estabeleceu a medi- dadetodasascoisas.Afinal,ahistóriaoficialpodesersemprecontestada,mo- dificada,transformada.Apartirdeseureviramentodesentidosmostrar-se-ãoosapagamentos,asausências,aslacunas,osanonimatos,osvestígios de barbárie imputadosàspopulaçõesindígenas.Essaoutraleitura,esseprocedimentoa contrapelo proposto por Benjamin potencializa os fragmentos, os cacos, as ruínas da história. A partir dessa perspectiva, vejamos o que nos diz Moura:

Ahistóriaacontrapelodenunciaoquefoiescondidopelanarrativadarazãodominante, porque rememora o passado, criando a diferença no próprio presente – o “tempo-presente”. Nesse outro presente, o passado ressoa dassuasruínasque,comotal,carregamaindavestígiosdadestruiçãoquesofreram,comomarcasquepermaneceramaolongodotempo.Comonãosãoapenasmarcasdo tempoque transcorreu,mas simefeitosdeaçõesdestrutivas e violentas, ficaram como sinais de responsabilidades nãoassumidasnahistória,permanecendotambémcomorepetiçãodomesmo.(MOURA, 2002, p. 93)

OqueMouraquernosdizer comos“sinaisde responsabilidadesnãoassumidas na história”?No caso dos índios brasileiros, como esses sinaispodemservisibilizados?Ora,desdeosprimeiroscontatoscomosíndios,oscolonizadores se esforçaram para demonstrar-lhes que estavam aqui em paz. A ingenuidade, junto com uma boa dose de curiosidade, transformou os índios em alvos relativamente fáceis de serem conquistados. As trocas de presentes facilitaramenormementeaaproximação.Asprimeirastrêsouquatrodécadasdo séculoXVI transcorreram semmaiores conflitos.Em troca de algumas

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ferramentas,comopás,enxadas,machadosefacões–enãosomenteoscolaresde contas que se tornaram um lugar-comum em muitos livros de história –, os índios ajudavam os brancos a localizar as árvores de pau-brasil, derrubando-as e transportando-as para os navios para depois serem comercializadas na Europa. ÉsomenteapartirdasegundametadedoséculoXVIqueseacirramosconflitosentreoseuropeuseosíndios,ocasionadosprincipalmentepelaintensificaçãodaculturadacana-de-açúcaredaextraçãodosmetaispreciososparaabastecera metrópole, assim como para incrementar o comércio entre Portugal e o restante da Europa. Para isso era preciso prosseguir o processo colonizatório propriamente dito, ou seja, tomar a posse das terras. A quantidade de brancos no território americano passa a aumentar substancialmente acirrando-se as divergênciasculturaisedeinteressesentreosdoisgrupos.Oclimaamistosovivido nos primeiros contatos dá lugar a combates sangrentos, obrigando os índiosdasregiõescosteirasasedeslocaremparaasregiõesmaisremotas,nointeriordasmatas.Àprimeiravista,osíndiospareciamser“ingênuos”,maslogo que se sentiram ameaçados partiram para o confronto. Foram vencidos nãopelafaltadecoragem,maspelasuperioridadebélicadosbrancos.

Talvez nunca antes na história do Brasil tenha-se produzido uma quantidade tãogrande e variadadediscursos, debates, pesquisas e estudosacadêmicossobreouniversoindígenacomonosúltimosanostemosassistido.Àprimeiravista,umaprodutividadesaudável,noentanto,sãoproduçõesque,infelizmente,costumamficarrestritasaosmesmoscírculosacadêmicosondeelassãofomentadasedesenvolvidas,emboraalgunspesquisadoresegruposnãomeçamesforçosparatorná-laspúblicas,fazendocomquesurtamefeitosno mundo da vida, que produzam sentido na vida das pessoas, que provoquem astãoalardeadas,masdifíceis,mudançasetransformações.Especialmenteasmudanças no campo educacional.

Sabemos também o quanto esses esforços precisam se atualizar, se renovar constantemente, pois vivemos numa época em que prevalece o imediatismo das relações, emque a informação precisa circular em ritmo acelerado, oconhecimentoproduzidoacaba sendocompactado, simplificado, abreviado,fazendo comqueperca amelhor parte de sua vitalidade e potência: a suaverdadeira dimensão humana, solidária, afetiva.As pessoas já não sabemexatamenteporquesefalatantoemprocessosjurídicospolêmicosdedemarcaçãodeterrasindígenas.AmaiorianãoentendeoverdadeirosignificadodeumaaçãojurídicacomoaRaposaSerradoSolquepodedeterminarademarcaçãodeformacontínuade1,76milhõesdehectaresdeterras,beneficiando18milíndiosde5diferentesetnias.Emalgummomentosequestionaqueadecisãofavorável pode reparar uma parte da dívida social e histórica que temos com osíndios?Não!Afinal,comodissemos,omodoespetacularizadocomqueo

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temaéveiculadoacabaenfraquecendo,quandomuitodesqualificando,oseuverdadeirosentidohistóricoehumano.Ganha-seabatalha,masnãoaguerra.Comademarcaçãodesuasterras,osíndiostêmaoportunidadederecuperaremparcialmentealgunsdosmuitosprejuízosqueodomínioeaexploraçãodosbrancos lhes causaram. Mas poucos conseguem entender o verdadeiro sentido dessaação,queétambémumsentidohumano,solidário,dereconhecimentode nossa dívida para com eles.

De um modo ou de outro, mesmo tendo sido considerados inferiores, primitivos,osíndiossempre“fizeramparte”docenáriodenossoPaís,comoforça de trabalho, como escravos, como informantes sobre a diversidade das riquezasnaturais,comoastutosguias,comocobaiasdeexperiênciasmissionáriase religiosas. Mesmo catequizados, domesticados, escravizados, continuariam potencialmente“perigosos”.Sãoopiniõescontraditóriasespraiadasatéosdiasatuais, emque os índios por vezes são tidos comovítimas, por vezes sãoculpabilizadospelasituaçãoemqueseencontram.

Quantoàsriquezas,ahistóriaoficialtambémnosdizoquãointeressadosestavam nelas os navegadores, os colonizadores portugueses. Prova desse interesse encontramos em alguns trechos da carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei Don Manuel, escrita logo que as frotas de Cabral descobrem o novo continente e estabelecem as primeiras aproximações com seus exóticoshabitantes: “Um deles [os dois primeiros índios que foram “convidados” a subirnaembarcaçãodoCapitão]fitouocolardoCapitão[Cabral]ecomeçouafazeracenoscomamãoemdireçãoàterra,edepoisparaocolar,comosequisessedizer-nosquehaviaouronaterra”.Eaoquetudopareciaindicar,nãohaveria somente ouro, os índios dariam indícios de haver outras riquezas:

E também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal, como se lá também houvesse prata! Viu um deles umas contas de rosário, brancas; fez sinal que lhas dessem, e folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço; e depois tirou-as e meteu-as em volta do braço, e acenava para a terra e novamente para as contas e paraocolardoCapitão,comosedariamouroporaquilo.Issotomávamosnós nesse sentido, por assim o desejarmos!

A frasefinal dispensamaiores comentários.Apesar dodesejode aquiencontrarem ouro e prata, foi o extrativismo do pau-brasil a primeira atividade econômica intensamente explorada na Colônia nas primeiras décadas do século XVI,depoisdesenvolveu-seaculturadacana-de-açúcar.Aextraçãodoouroveio depois.

Logo nos primeiros contatos que se estabeleceram entre os índios, que se permitiram a uma aproximação e os descobridores colocava-se o forteimperativo dos interesses da corte de Portugal: encontrar riquezas! Desde o

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início era preciso observar atentamente o comportamento desses “homens de peles pardas, avermelhadas e com as vergonhas totalmente nuas”, analisar suas reações,avaliarsuaspotencialidades.ACarta do Achamento60 revela detalhes sobre o continente e de seus habitantes com uma objetividade como convém a quemescreveumrelatório,afinalacartaserviaparainformaraoreisobreassuasmaisnovasaquisições:

Parece-megentedetalinocênciaque,senósentendêssemosasuafalaeelesanossa,seriamlogocristãos,vistoquenãotêmnementendemcrençaalguma,segundoasaparências.E,portantoseosdegredadosqueaquihãodeficaraprenderembemasuafalaeosentenderem,nãoduvidoqueeles,segundoasantatençãodeVossaAlteza,sefarãocristãosehãodecrernanossasantafé,àqualprazaaNossoSenhorqueostraga,porquecertamenteesta gente é boa e de bela simplicidade. E imprimir-se-á facilmente neles qualquer cunho que lhe quiserem dar, uma vez que Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos, como a homens bons. E o Ele nos para aqui trazer creioquenão foi semcausa.EportantoVossaAlteza,pois tantodeseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da salvaçãodeles.Eprazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim!

Frente a essas narrativas históricas, argumentos trazidos por Hall sobre diferentesprocessosdeformaçãodeidentidadesculturaissãoespecialmenteelucidativosparaoimagináriocontemporâneoquesetemacercadaspopulaçõesindígenas.Esseautorapontaparaautilizaçãodalinguagem,dosrecursosdahistóriaedaculturaparaaproduçãodaquiloqueasidentidadesculturaissetornaram e como elas tem sido representadas. Nas palavras de Hall:

Éprecisamenteporqueasidentidadessãoconstruídasdentroenãoforadodiscursoquenósprecisamoscompreendê-lascomoproduzidasemlocaishistóricoseinstitucionaisespecíficos,nointeriordeformaçõesepráticasdis- cursivasespecíficas,porestratégiaseiniciativasespecíficas.Alémdisso,elasemergemnointeriordojogodemodalidadesespecíficasdepoderesão(...)oprodutodamarcaçãodadiferençaedaexclusão(...)(HALL,2000,p.109)

Por outro lado, é possível dizer que, ocasionadas por múltiplos fatores, as origensparaasprincipaismazelasvividaspornossosíndioshojeremontamàépocado“descobrimento”.Desdeapercepçãoinicialentrebrancoseíndiosque levou os futuros colonizadores a estabelecerem estratégias cautelosas de aproximaçãoparaamansar,domesticarospossíveisinstintosselvagens,torná-losdóceis eganhar-lhes confiança, afinal estavamali em“missãodepaz”.Mascolocaraquestãonesses termostrazcertosriscos:seseafirmaqueosproblemas são seculares, então estariamde tal forma enraizados emnossa 60 O termo descobrimento é bem mais recente.

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sociedadequenãonosrestariamuitooquefazersenãoaaceitaçãodasituaçãode fragilidade absoluta na qual os índios se encontram; ou pior: os índios já estariam suficientemente integrados à cultura dos brancos, à sociedadeenvolvente,portanto,nãohaveriaespaçoparasaudosismo,ouparaoretornodeuma cultura que já “morreu”. O museu, como diz Certeau, é o lugar adequado para guardarem-se coisas mortas. Existem várias maneiras de nos eximirmos das responsabilidades históricas, ou, quem sabe, ao reservarmos para essas culturas e grupos momentos especiais, datas festivas estaríamos nos redimindo da impossibilidade e da incapacidade de lidar concretamente com esses outros. Dessa forma,nãoénecessário refletir sobreos feitos indígenas, sobreseusritos, suas formas de lidar com nascimento, morte, casamento, doenças. Seriam elescomofósseisquepodemservistos,masnãodeumpontodevistaqueoscoloquenopresentedasrelaçõessociais.Vistoscomopartedeummuseuarqueológico,nãorepresentariamosperigosqueaconsciêncianacionaltratade cuidar desde que o mito de democracia racial se instaurou no Brasil. Mito funcionalporquediluiasdiferençasderaça,declasse,degênero.Funcionalporquemantémosgruposdepoderemseuslugares,comoafirmaBourdieu(1998),“produzindoadominaçãosimbólica”quenoBrasilsefazàcustadenossas raízes históricas.Essa suposta integração acaba sustentando a falsaideia de que vivemos num país com democracia étnica, racial, uma suposta democracia étnica ampla e irrestrita no contexto brasileiro.

Tomemos o problema da corrupção no Brasil de hoje. HistoriadoressustentamqueacorrupçãobrasileiratemsuasorigensdesdeaépocadoBrasilImpério, passando pelo Brasil Colônia. O velho “jeitinho brasileiro” de driblar normas e convenções sociais, do exercício dopoder político embenefíciopróprio ou de pequenos grupos tem sua matriz muito remotamente no tempo. Entãosetornoucomumouvirmos:“Éassimmesmo,seeunãofizer,outroofará,entãoquesejaeu!”;“semprefoiassim,nãotemjeito,entãoagentetemque se virar como pode”; “cada um por si e Deus por todos”.

Agora tomemos outro exemplo. O que a princípio deveria ser regra transforma-se em exceção: a atitude do pai, ao entregar o próprio filho àpolíciapordirigirbêbadoeatropelaroutraspessoas,viranotícianosmeiosdecomunicação.Transforma-seemespetáculopúblicojustamenteporqueoesperadoseriaessepaiencobriracontravençãodofilho,darum“jeitinho”parasalvarofilho,maseledecideentregá-loàjustiçaparaquepaguepelocrimecometido,configurando-seessecomportamentopaternoemumaexceçãopeloseu caráter de raridade no contexto brasileiro.

Afinalquerelaçõestêmessesdoisexemploscomaquestãoquetrazíamosanteriormente?Pensemosnaclássicasaídaadotadapormuitosbrasileirosparadriblaremnormas,convençõessociaisoumesmoasleis.Seosujeitotemmais

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podereseconsideraimuneàsregras,leiseconvençõessociais,eleapelarárecorrendoàclássicafrase,estudadapeloantropólogoDaMatta:“–Vocêsabecomquemestáfalando?”.Umjuizoupromotorpúblicoquecometeumainfraçãonotrânsito,éflagradoporumguardadetrânsito,masnãosesentenaobrigaçãoounodireitodelevaramulta,vairecorreràsua“autoridadejurídica”,afinalelenãoéum“cidadãocomum”,poisseconsiderahierarquicamentesuperioràautoridade do guarda de trânsito! Esse comportamento se reproduz em cadeia nas relações sociais brasileiras.Exemplodisso sãoos reflexos no setor dasegurança pública, em que o policial militar abusa de seu poder de polícia, humilhando,desqualificando,desrespeitando,agredindoquemeleconsiderapotencialmente suspeito (negro, pobre, travesti, favelado etc.) Daí se tornar lugar-comum o emprego por sociólogos e antropólogos da frase “primeiro mataredepoisperguntar!”paratrataremdoproblemadaviolênciapolicial.

Asociedadebrasileirafoiestruturadanessestermos,abasedeinstituiçõesdisciplinares, coercitivas, reforçadas ainda mais pelos vinte anos de chumbo de ditadura militar. Nesse sentido, as sociedades indígenas da América do Sul tropicalrevelaram-secomoumgrandeparadoxo,umavezquesuasinstituiçõespolíticas se baseiam nos seguintes termos: “o chefe indígena é a um só tempo chefeehomemdestituídodepoderdecoerção”(CLASTRES,2003,p.10).Os colonizadores perceberam isso bem cedo. E talvez essa qualidade da democracia indígena tenha os tornado mais vulneráveis ao domínio branco. Agrandemaioriadassociedadesindígenastropicais,senãodesconhecem,aomenos fazem de tudo para evitar o exercício do poder político coercitivo.

Também é preciso lembrar que sempre predominou o pensamento que creditava aos povos sem escrita o estatuto de povos menos desenvolvidos, menos adultos, em todos os sentidos: política, cultural, economicamente. A partir dessa lógica etnocêntrica, os índios estariam hierarquicamente numpatamarinferiorpornãoteremsidocapazesdecriarumsistemaprópriodeescrita. Foram necessários muitos estudos, especialmente pesquisas de campo deantropólogoseindigenistasparaprovarocontrário.OantropólogofrancêsPierreClastreséumdentreessespesquisadoresqueajudouadesmitificaressafalsa crença:

Ospovossemescritanãosãoentãomenosadultosqueassociedadesletradas.Suahistóriaétãoprofundaquantoanossae,anãoserporracismo,nãoháporquejulgá-losincapazesderefletirsobreasuaprópriaexperiênciaededaraseusproblemasassoluçõesapropriadas(CLASTRES,2003,p.35).

Considerações finais

Vimos que os primeiros cronistas que aqui desembarcaram trataram logo deregistrarsuasimpressõessobreosexóticoshabitantesquesepermitirama

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aproximaçãocomosbrancos.Seusrelatossãoosmaisantigoseimportantesescritos de que dispomos sobre como os índios e seus modos de vida eram descritos.Essascrônicasaindahojesão importantes fontesdocumentaisdeestudos e pesquisas antropológicas e históricas. Encontramos nesses escritos descriçõessobreaaparênciafísica,oshábitosculturaisealimentares,aformadeorganizaçãopolíticaesocial,areligiosidadeeascrençasdosíndiosquehabitavam o “recém-descoberto” continente. Escritos marcados pelo pensamento etnocêntricoeuropeudaépoca,masquetrazemdadosvaliosíssimossobreademografiadaspopulaçõesindígenas,muitasdelasposteriormentecontestadaseretificadasporhistoriadores,antropólogosesociólogos.Sãodocumentosquefazem parte do nosso patrimônio imaginário e cultural, em que atestam como os índios foram vistos, descritos, interpretados, tratados, catequizados, sobre osmodosdeconstituiçãodoimaginárioeuropeue,especialmente,sobreascondiçõesdepossibilidadedeseverasdiferenças.NaspalavrasdeWoodward,constituíram-seatravésdessesdispositivossistemasclassificatóriosentre,pelomenos, dois grupos: “nós e eles” (WOODWARD, 2000, p. 14), fundamentais paraaorganizaçãoeadivisãosocial,deumaforma,nãorarasvezes,excludenteeconflitiva.

Se queremos verdadeiramente descobrir as causas fundantes de nossos preconceitos contra os índios, temos que necessariamente considerar essas crônicas e as marcas por elas deixadas no imaginário social sobre essas populações.

AredemocratizaçãonoPaísnofinaldadécadade1980,a instauraçãodaAssembleia Constituinte e a consequente promulgação daCF de 1988recolocaram na agenda contemporânea brasileira antigos problemas, entre eles osqueassolavameaindaassolamaspopulaçõesindígenas,especialmenteosaspectosjurídicosepolíticosqueenvolvemademarcaçãodeterras.Odireitoa terra,osucessivograudepauperizaçãoqueseabateusobalgumasetniasindígenasemnossoterritório,acosmologia,areligiosidade/espiritualidade,acultura,aeconomia,ademografiaeaeducaçãotambémcompuseramessaagenda.

Deumlado,hápesquisasdehistoriadoreseantropólogosquetêmdadosuascontribuiçõesnosentidodeesclarecerimportanteselementosdouniversodenossosíndios,desmitificandoalgumasideiasequivocadasqueconstituíram– e ainda constituem– o nosso imaginário social sobre essas populações,ideiasdistorcidasdequeseriam,porexemplo,“primitivos”,“ingênuos”,comumacultura“pobre”,“frágil”, “permeável”,ouentão“selvagens”,portantopotencialmente perigosos. Vale acentuar que para acelerar o processo de colonização, de ocupação “produtiva” da terra, era preciso vê-los comoseres diferentes, diferentes num sentidobastante específico: inferiores, não

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evoluídos, portanto incapazes de fazerem parte do novo projeto nacional de desenvolvimento.

Diantedesse traçadohistórico e à luzda contemporaneidade, é pos- sível afirmar que há uma espécie de dívida “impagável” com a cultura indígena.Nessesentido,promovem-sepolíticasafirmativasedereparação,instituem-se cotas para o ingresso de indígenas em algumas universi- dades, promovem-se discussões internacionais sobre a defesa de seusterritórios etc. Por outro lado, mais recentemente, tem-se discutido estratégias de busca a uma maior visibilidade, pesquisa e debate no campo educacional sobre a questão indígena. De que forma isso éfeito? Como afirma Louro (2003), movimentos culturais, étnicos eraciais, assim como movimentos das chamadas minorias sexuais, têmdenunciadoaausênciadesuashistórias,suasquestõesesuaspráticasnoscurrículosescolares.Aescolaéumlugarprivilegiadoparaaformaçãoderepresentações,deimagináriosacercadasculturaseprocessossocietários. No entanto, diz a autora, a resposta às denúncias da ausência de suashistóriasfeitaspelosgruposminoritáriosnãopassa,namaioriadasvezes,“do reconhecimento retórico da ausência” (LOURO, 2003, p. 45). Épreciso que nesse espaço educacional se reconheça através de conteúdos, currículos e outros tantos saberes a diversidade étnica e racial de que somos feitos – histórias que foram legalmente constituídas e aquelas que foram “esquecidas”.O currículo escolar tende a apresentar uma visão, uma dasformasdecomoviver,estabelecersentidos,organizaçãoemetasnomundosocial. “Culturas menores” poderiam contribuir para se pensar diferente, ou seja,dequeexistemoutrasformasquenãoabranca,europeiaedeclassemédia de se viver e estar no mundo.

Referências

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SOBRE OS AUTORES

AbrAão Nilo GivAGo Schäfer. Aluno do Bacharelado em Teologia das Faculdades EST, bolsistadeIniciaçãoCientíficadoCNPq,comatuaçãonoprojeto Gênero, raça e escolarização no Brasil: traçando a trajetória da relação, em desenvolvimento com apoio do CNPq.

Alceu ferrAro.DoutoremSociologia.ProfessordoProgramadePós-GraduaçãoemEducaçãoedoCursodePedagogiadoCentroUniversitárioLaSalle(Unilasalle),Canoas/RS.ProfessortitularaposentadodaUFRGS.PesquisadordoCNPq.Combaseemdeterminaçãojudicial,em1992osobrenomedoautorfoiretificado,passandodeFerrariparaFerraro.

ANA luiSA TeixeirA de MeNezeS.DoutoraemEducaçãonoProgramadePós-GraduaçãoemEducaçãonaUFRGS.ProfessoradePsicologianaUniversidadedeSantaCruzdoSul.

ANdilA NivyGSãNh. Professora bilíngue Kaingang.

cereS KArAM bruM. Doutora. ProfessoradoDepartamentodeFundamentosdaEducaçãoedoProgramadePós-GraduaçãoemCiênciasSociaisdaUniversidadeFederaldeSantaMaria–UFSM.ÉautoradolivroEsta terra tem dono: representações sobre o passado missioneiro no Rio Grande do Sul (Santa Maria: EDUFSM, 2006).

cícero GAleNo lopeS. Doutor em Letras. Professor titular no Unilasalle, Canoas. Autor de ficção,teoriaecríticaemobrasindividuaisecoletivas.Colaboradoremperiódicosespecializa- dos e outros. Pesquisa literatura brasileira, culturas gaúchas de línguas portuguesa e espanhola, dialogismo,hibridaçãocultural.

dulci clAudeTe MATTe.MestreemEducaçãonasCiências(Unijuí)eindigenista.

fAbiele pAcheco diAS:Acadêmicado cursodePedagogia naFaculdadedeEducaçãodaUFRGS,bolsistaIC/FAPERGS.

flávio brAuNe WiiK. Ph.D. em Antropologia pela Universidade de Chicago. Pesquisador do ISEReNESSI-PPGAS/UFSC

flávio SchArdoNG Gobbi. Mestre em Antropologia Social pela UFRGS. Pesquisador associa- do ao Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais da Universidade Federal doRioGrandedoSul–NIT/UFRGS.Áreadepesquisa:etnologiaindígenadasterrasbaixassul-americanas. Investiga acerca dos regimes sociocosmológicos ameríndios, considerando suas dinâmicasinternaserelaçõescomasalteridadesindígenasenãoindígenas.

GilberTo ferreirA dA SilvA.DoutoremEducaçãopelaUFRGS,ProfessorepesquisadordoProgramadeMestradoemEducaçãoedoCursodePedagogiadoUnilasalle/Canoas.

JAcqueliNe AhlerT. Graduada em Artes Plásticas e Mestre em História pela Universidade dePassoFundo.PesquisadoradoNúcleodeDocumentaçãoHistórica(NDH)doPPGH-UPFeprofessora da rede particular de ensino.

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João MiTiA ANTuNhA bArboSA. Advogado. Doutorando em Direito pela Universidade de Angers,França,emcotutelacomaUniversidadedeSãoPaulo.MembrodoCAI–CapacitaçãoIndígena.

JoSé oTávio cATAfeSTo de SouzA. Doutor, Pesquisador do Laboratório de Arqueologia e Etnologia – LAE – Departamento de Antropologia da UFRGS.

ledSoN KurTz de AlMeidA. Doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina(UFSC).PesquisadordoCNPq.IntegrantedoNúcleodeTransformaçõesIndígenas(NUTI–UFSC/MuseuNacional/UFF).PesquisadordoNúcleodeEstudosdosSabereseSaúdeIndígena(NESSI/UFSC).AssessordaAssociaçãoRondonBrasil/Funasa.

leoNidAS roberTo TAScheTTo. Doutor em Educação pelo Programa de Pós-GraduaçãoemEducação daUniversidade Federal doRioGrande do Sul.Atualmente pesquisa temasrelacionadosaocampodapsicologiasocialepolítica:cuidadodesi,resistência.

leTíciA ThurMANN prudeNTe. Arquiteta e urbanista, com Pós-Graduação emEngenhariaCivil(PPGEC)/UFRGS,NúcleodeEstudosemAssentamentosHumanos(NUC),FaculdadedeArquitetura/UFRGS.Áreasdeatuação:edificaçõesecomunidadessustentáveis,habitaçãoruralem assentamentos da reforma agrária (MST-RS)

MArco ANToNio bArboSA. Doutor em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da UniversidadedeSãoPaulo,pesquisadoreProfessordoProgramadeMestradoemDireitodaSociedadedaInformaçãodoCentroUniversitáriodasFaculdadesMetropolitanasUnidas(FMU)deSãoPaulo.

MAriA ApArecidA berGAMASchi. Doutora em Educação e Professora na Faculdade deEducaçãodaUFRGS.

MArTA NorNberG.DoutoraemEducaçãopelaUFRGS,ProfessoradoCursodePedagogiadoUnilasalle/Canoas.

MárTiN céSAr TeMpASS. Mestre e doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pesquisador do Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais.

NAuírA zANArdo zANiN. Arquiteta Urbana. Departamento de Arquitetura – Universidade FederaldoRioGrandedoSul.Áreadeatuação:ensinoepesquisaemarquiteturasustentávele autóctone.

pAblo ANTuNhA bArboSA. Antropólogo. Mestre em Antropologia pela Universidade de Paris X, Nanterre, França. Doutorando em Antropologia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales – EHESS, de Paris, em cotutela com a Universidade Federal do Rio de Janeiro – Museu Nacional.MembrodoCAI–CapacitaçãoIndígena.

reJANe peNNA. Doutora em História. Historiógrafa do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul.

ricArdo cid ferNANdeS.DoutoremAntropologiaSocialpelaUniversidadedeSãoPaulo(USP). Professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

roSeMAry ModerNel MAdeirA. Professora deCiências daVida na FASEV-ISES, cursodePedagogiaeNormalSuperioreProfessoradeCiênciasdaRedeMunicipalnoCentrode

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EducaçãodeTrabalhadoresPauloFreire.MestreemEducaçãopeloProgramadePós-graduaçãoemEducação da Faculdade de Educação daUniversidade Federal doRioGrande do Sul.Pesquisa:QuestõesfilosóficasdarelaçãoambientalequestõesdaEducaçãoEscolarIndígena,centrada na etnia Mbyá-Guarani.

roSiMeri AquiNo dA SilvA. Doutora pelo Programa de Pós-graduação em Educação daUniversidade Federal doRioGrande do Sul. Professora na FACOS/Osório,ministrando adisciplinadeCiênciasSociaisemdiversasgraduações.Seusinteressesdepesquisasãovoltadosparaosestudosdegênero,sexualidadeedireitoshumanos.

TAu GoliN.Doutor emHistória e jornalista. Professor do Instituto deFilosofia eCiênciasHumanasdaFaculdadedeArteseComunicaçãoedoMestradoemHistórianaUniversidadedePassoFundo.CoordenadordoNúcleodeDocumentaçãoHistóricadoPPGH-UPF.

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ediPUCRSwww.pucrs.br/edipucrs

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