romantismo na amazônia?

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Romantismo na Amazônia? Gunter Karl Pressler (UFPA) Nos séculos XVIII e XIX constam, a primeira vista, poucas obras literárias na região da Amazônia 1 [01]: A Muhuraida (1785/1819), Sima. Romance Histórico do Alto Amazonas (1857) e os romances de Inglês de Sousa, o mais conhecido, O Missionário (1891). O poema épico de Henrique João Wilkens ficou despercebido diante das obras de Basílio da Gama e Santa Rita Durão. Lourenço da Silva Araújo Amazonas publicou Sima “no mesmo ano [...] de O Guarani, de José de Alencar, que oficialmente foi o romance a criar essa vereda romântica no Brasil” 2 . Não há circulação nacional destas obras. Despercebida também a obra do maranhense Sousândrade (Joaquim de Sousa Andrade) 3 . A primeira publicação ocorreu no Rio de Janeiro, também em 1857, depois em Nova York, em 1874; o canto amazônico “Tatuturema” foi publicado em Londres, em 1888. Enquanto os maranhenses Gonçalves Dias e Aluísio Azevedo, desde o início da sua produção literária, foram incluídos na literatura brasileira. Nomes de paraenses e amazonenses como Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha (1769-1811), Dom Romualdo Antonio de Seixas (1787-1860), Felipe Patroni (1794-1865), Frederico José de Santa-Anna Nery (1848-1901) e José Eustachio de Azevedo (1867-1943) não ultrapassam o limite local (Belém/Pará) e do conhecimento de especialistas — ou são desvinculados da região amazônica como José Veríssimo (1857- 1916) 4 . 1 Entende-se por região amazônica a Amazônia brasileira nas fronteiras do antigo Estado do Maranhão, Estado do Maranhão e Grão Pará e o Estado do Grão Pará (1621-1774), sem os Estados de Piauí e Ceará que pertencem o Noroeste, e das fronteiras da Amazônia Legal. Cf. Walcyr Monteiro, História Econômica e Administrativa do Brasil. Belém: Editora do Autor 1974, pp. 79-84. “Segundo alguns autores, o Estado do Maranhão teria sido extinto em 1774 e o do Pará e Rio Negro em 1782. Para Mário M.Meireles, historiador maranhense, somente com a elevação do Brasil a reino unido de Portugal e Algarves é que os dois Estados foram extintos./De uma forma ou de outra, o fato é que tivemos uma vida político-administrativa autônoma e independente do resto do País até quase a proclamação da Independência. O Estado do Brasil teve o seu primeiro vice-rei em 1640 e foi elevado a vice-reino em 1763, enquanto que os Estados do Maranhão e Grão- Pará apenas tiveram governadores-gerais ” (1974: 80). 2 Marcos F.Krüger, Amazônia: Mito e Literatura. Manaus: Valer/Governo do Estado do Amazonas 2003: 225. 3 A revalorização deste autor, com toda razão intitulado “resgate”, deve-se ao trabalho crítico dos concretistas paulistas Augusto e Haroldo de Campos e do jovem crítico Luiz Costa Lima que apresentaram estudos no III Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária, em João Pessoa, em 1962,. Cf. A. e H.de Campos (orgs.), Re Visão de Sousândrade. São Paulo: Perspectiva, 3ª ed. Revista e ampliada 2002 (Signos 34) (1ª ed. de 1964). Depois desta publicação dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos, o Departamento de Cultura do Estado de Maranhão publicou o Memorandum (São Luis: 1967) com Notícias Bibliográficas, uma Bibliografia de e sobre Sousândrade, um Aparato Crítico e uma Antologia de Poemas impressos em Maranhão entre 1861 e 1868. 4 Os seis autores representam não só a importância da produção literária, mas também tipos de autores do século XVIII e XIX: Bento de Figueiredo T.Aranha, contemporâneo da declaração da Independência Norte- Americana (1776) e da Revolução Francesa (1789) teve sua obra fragmentada somente publicada em 1850; Dom Romualdo de Seixas, sacerdote e autor de sermões e discursos; F.Patroni, fundador da primeira tipografia no Pará, publicista político e poeta; F.J. de Santa-Anna Nery, completou os estudos na Europa, publicou livros e dezenas de trabalhos críticos e de folclore; José Veríssimo iniciou sua carreira de crítico

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Page 1: Romantismo na Amazônia?

Romantismo na Amazônia?

Gunter Karl Pressler (UFPA)

Nos séculos XVIII e XIX constam, a primeira vista, poucas obras literárias na região da

Amazônia1[01]: A Muhuraida (1785/1819), Sima. Romance Histórico do Alto Amazonas (1857) e

os romances de Inglês de Sousa, o mais conhecido, O Missionário (1891). O poema épico de

Henrique João Wilkens ficou despercebido diante das obras de Basílio da Gama e Santa

Rita Durão. Lourenço da Silva Araújo Amazonas publicou Sima “no mesmo ano [...] de O

Guarani, de José de Alencar, que oficialmente foi o romance a criar essa vereda romântica

no Brasil”2. Não há circulação nacional destas obras. Despercebida também a obra do

maranhense Sousândrade (Joaquim de Sousa Andrade)3. A primeira publicação ocorreu no

Rio de Janeiro, também em 1857, depois em Nova York, em 1874; o canto amazônico

“Tatuturema” foi publicado em Londres, em 1888. Enquanto os maranhenses Gonçalves

Dias e Aluísio Azevedo, desde o início da sua produção literária, foram incluídos na

literatura brasileira. Nomes de paraenses e amazonenses como Bento de Figueiredo

Tenreiro Aranha (1769-1811), Dom Romualdo Antonio de Seixas (1787-1860), Felipe

Patroni (1794-1865), Frederico José de Santa-Anna Nery (1848-1901) e José Eustachio de

Azevedo (1867-1943) não ultrapassam o limite local (Belém/Pará) e do conhecimento de

especialistas — ou são desvinculados da região amazônica como José Veríssimo (1857-

1916) 4.

1 Entende-se por região amazônica a Amazônia brasileira nas fronteiras do antigo Estado do Maranhão, Estado do Maranhão e Grão Pará e o Estado do Grão Pará (1621-1774), sem os Estados de Piauí e Ceará que pertencem o Noroeste, e das fronteiras da Amazônia Legal. Cf. Walcyr Monteiro, História Econômica e Administrativa do Brasil. Belém: Editora do Autor 1974, pp. 79-84. “Segundo alguns autores, o Estado do Maranhão teria sido extinto em 1774 e o do Pará e Rio Negro em 1782. Para Mário M.Meireles, historiador maranhense, somente com a elevação do Brasil a reino unido de Portugal e Algarves é que os dois Estados foram extintos./De uma forma ou de outra, o fato é que tivemos uma vida político-administrativa autônoma e independente do resto do País até quase a proclamação da Independência. O Estado do Brasil teve o seu primeiro vice-rei em 1640 e foi elevado a vice-reino em 1763, enquanto que os Estados do Maranhão e Grão-Pará apenas tiveram governadores-gerais ” (1974: 80). 2 Marcos F.Krüger, Amazônia: Mito e Literatura. Manaus: Valer/Governo do Estado do Amazonas 2003: 225. 3 A revalorização deste autor, com toda razão intitulado “resgate”, deve-se ao trabalho crítico dos concretistas paulistas Augusto e Haroldo de Campos e do jovem crítico Luiz Costa Lima que apresentaram estudos no III Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária, em João Pessoa, em 1962,. Cf. A. e H.de Campos (orgs.), Re Visão de Sousândrade. São Paulo: Perspectiva, 3ª ed. Revista e ampliada 2002 (Signos 34) (1ª ed. de 1964). Depois desta publicação dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos, o Departamento de Cultura do Estado de Maranhão publicou o Memorandum (São Luis: 1967) com Notícias Bibliográficas, uma Bibliografia de e sobre Sousândrade, um Aparato Crítico e uma Antologia de Poemas impressos em Maranhão entre 1861 e 1868. 4 Os seis autores representam não só a importância da produção literária, mas também tipos de autores do século XVIII e XIX: Bento de Figueiredo T.Aranha, contemporâneo da declaração da Independência Norte-Americana (1776) e da Revolução Francesa (1789) teve sua obra fragmentada somente publicada em 1850; Dom Romualdo de Seixas, sacerdote e autor de sermões e discursos; F.Patroni, fundador da primeira tipografia no Pará, publicista político e poeta; F.J. de Santa-Anna Nery, completou os estudos na Europa, publicou livros e dezenas de trabalhos críticos e de folclore; José Veríssimo iniciou sua carreira de crítico

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A obra prima do único autor do Norte reconhecido na História da Literatura Brasileira,

Herculano Inglês de Sousa, O Missionário (1891), é canonizada romance naturalista, mas os

demais romances do autor, O Caucalista (1876) e O Coronel Sangrado (1877), e a antologia

Contos Amazônicos de 1893 não ultrapassam a circulação regional e não são valorizados pela

crítica, mesmo que A História de um Pescador (1876) expressa as características do

Romantismo. Ele é na região Norte para a crítica, ausente. Ressalta-se a importância da

literatura do Naturalismo considerado somente a partir do romance O Mulato (1881), do

maranhense Aluísio Azevedo. Somente o Ciclo de Borracha (1880-1912) permitiu um salto

enorme da região em relação ao crescimento econômico e cultural. A crítica reconhece uma

representação literária inicial, mas – ao mesmo tempo – se encerrou definitivamente não só

a escola romântica como também a parnasiana e a simbolista existentes na Amazônia, de

pouca importância para o olhar nacional. Na pauta do dia estava o Modernismo e, não por

acaso, Macunaíma que nasceu na região amazônica.

* * *

É possível responder a pergunta do título de várias formas e a partir de vários enfoques:

Quais são os parâmetros históricos, geográficos, sóciopolíticos, culturais e literários? Em

geral, pode-se falar da literatura da Amazônia nos séculos XVIII e XIX até o início do

século XX? Literatura no sentido stricto sensu, i.e., das Belas Letras e da literatura ficcional?

Pode-se falar de estilos de época existentes diante de uma produção literária tão escassa? O

que significa Literatura Amazônica ou Literatura da Amazônia em termos regionais e

nacionais? Quem conhece o poema épico A Muhuraída, de Henrique João Wilkens; o

romance histórico Simá, de Lourenço da Silva Araújo Amazonas; quem conhece o poema

O Guesa, de Sousândarde? Quem conhece os autores João Marques de Carvalho, Abguar

Bastos e Bruno de Meneses? Inglês de Sousa — sim! Naturalismo. E se houver literatura

amazônica, ela fará parte da literatura brasileira? Como relacionar Amazônia e Brasil no

sentido de produção e recepção da literatura antes e agora, nos séculos XX e XXI? A

literatura dos viajantes é muito conhecida e, muitas vezes, considerada como a Literatura

Amazônica, ou identificada com a Literatura Amazônica. O imaginário substitui a

literário e cultural, realizando muitas atividades de ensino e formação, mas deixou Pará definitivamente no auge da sua produtividade e, finalmente, J.E. de Azevedo, o primeiro historiador e crítico da literatura brasileira que se manifestou contra a exclusão da produção paraense-amazônico.

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ficcionalidade? A diferença entre análise científica e a “fusão do científico com o

imaginário” que permanece, ressalta Neide Gondim em seus estudos5.

A fim de traçar um quadro adequado, precisa-se reparar muitas diferenças históricas e

geográficas durante séculos até a segunda metade do século 20. Somente agora se pode

falar de um país unido pelas vias de trânsito mais fácil (rodovias) e pela comunicação de TV

que implantou um só país pelo Jornal Nacional, em 1969, e pelo satélite Intelsat que alcança

98% dos municípios brasileiros6. Desta forma, o estudo abre mão da abordagem

historiográfica tradicional e canonizada7; o estudo deve aplicar e desenvolver

concretamente a reflexão construtivista-recepcional com visão interdisciplinar,

considerando história e evolução própria da região e não só uma parte do Brasil

regionalizada em termos de uma visão da geografia litoral [02].

A fim de iniciar a abordagem sobre a literatura na Amazônia, valoriza-se o ponto histórico-

geográfico e a conditio sine qua non de qualquer literatura no sentido moderno: a existência da

cidade com vida política e cultural divulgada em jornais, pressupondo imprensa, tipografias

e círculos literários. Para Antonio Candido essa condição é base da formação da literatura

brasileira como nacional e moderna. As “obras não podem aparecer em si, na autonomia

que manifestam”8. O novo argumento organizador de Candido é o público e a

institucionalização da literatura. “Em fases iniciais, é freqüente não encontramos esta

organização, dada a imaturidade do meio, que dificulta a formação dos grupos, a elaboração

de uma linguagem própria e o interesse pelas obras”9. Mesmo para o século XX, Gonzalo

Aguilar constata o fator da urbanização como importantíssimo, é a terceira razão da origem

e desenvolvimento do movimento brasileiro que juntamente com poetas europeus funda

uma nova poesia. Os leitores cosmopolitas, constata Aguilar, “na cidade de São Paulo e

5 N.Gondim, “O Nacional e o Regional na Prosa de Ficção do Amazonas”. In: Leituras da Amazônia (Manaus) No. 2/2002: 123. Cf. os livros da autora: Simá, Beiradão e Galvez, Imperador do Acre. Manaus: EDUFAM 1996 e A Invenção da Amazônia. São Paulo: Marco Zero 1994. 6 Cf. Sandra Reimão, in: M.Abreu (org.), Leitura, História e História da Leitura. Campinas: Mercado de Letras; São Paulo: FAPESP 2000: 505-525 (Coleção História de Leitura) e, por exemplo, Geraldo A.Melo, Muito além do Cidadão Kane. São Paulo: Página Aberta TT Scritta 1994. 7 Cf. a posição radical de Márcio Souza, “Estado e Cultura no Brasil”. In: Leituras da Amazônia (Manaus), no. 1/1998/99: 149-165 e “A Literatura na Amazônia: as Letras na Pátria dos Mitos” (www.marciosouza.com.br); e a “desconstrução alegórica” de Flávio R.Kothe do discurso da historiografia literária brasileira: O Cânone Colonial (1997), O Cânone Imperial (2000) e O Cânone Republicano (Vol.1: 2003 e Vol. II: 2004); todos Brasília: EDUNB. 8 A.Candido. A Formação da Literatura Brasileira (Momentos Decisivos). (2ª ed.). São Paulo: Martins 1963: 26. 9 1963: 26. Entende-se o argumento do público, no sentido moderno, como suposição da abordagem sistêmica e construtivista. Sobre esta questão, Alfredo do Vale Cabral escreveu em 1881 o seguinte: “Assim três séculos permaneceu o Brasil sem a arte de Gutemberg. Só Gregório de Matos, pelos fins do século XVII, fez uma espécie de revolução no ânimo destes povos com as suas sátiras mordentes e picantes, cujas cópias eram disputadas por todos, incluindo os próprios governadores, e pode muito bem considerar-se que o poeta era a imprensa viva daquele tempo, prestando tão bons serviços ao Estado que o famoso Padre Antônio Vieira não se excusou de dizer ‘que maior fruto faziam as sátiras de Matos, que as missões de Vieira’” (Cadernos do Centro de Pesquisas Literárias da PUCRS (Porto Alegre) Vol. 4, No. 3/1998: 10).

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outras urbes brasileiras”, encontraram no trabalho dos concretistas “um espaço de

atualização e contato com as culturas das outras línguas, em um país lingüisticamente

isolado”10. Isto pressupõe uma “relativa estabilidade das instituições culturais” e, apoiando-

se em Benedito Nunes e Charles Perrone, a grande sensibilidade do gênero lírico como

“catalisador das reflexões estéticas” (2005: 17). Até o final do século XIX, Amazônia é uma

região sem urbanização significativa, sem qualquer sistema de produção e divulgação de

literatura qualquer, mas há suas obras “catalisadoras” — perdidas no espaço entre Europa e

o Estado do Brasil.

Sabe-se, então, da importância da esfera pública burguesa, da cultura escrita presente nas

bibliotecas e na imprensa. Jürgen Habermas marcou as pesquisas nesta área com seu estudo

Mudança Estrutural da Esfera Pública11. Quarenta e dois anos depois ele confessa: “A tríade

conceitual esfera pública, discurso e razão dominou de fato meu trabalho científico e minha

vida política”12.

As conseqüências da relação entre as esferas privada e pública causadas pelas mudanças

sociais e políticas, Habermas define como mudança estrutural da sociedade burguesa que já

nasceu “no outono da Idade Média européia” (1984: 9). Uma forma particular da

representatividade pública articula-se na Alemanha, o que interessa para abordagem sobre

Amazônia. No início do século XIX, na esfera da educação e da literatura, articula-se o

desejo à formação humanista como “romance de formação”. Na obra Wilhelm Meister

(Guilherme Mestre), Johann Wolfgang von Goethe configura o conflito do tempo de

transição da época da aristocracia à época da classe burguesa nos moldes da formação

completa de personalidade: o Humanismo. O personagem central, Guilherme, quer ser

uma “pessoa pública”, mas não é aristocrata que represente o poder tradicional, também

não quer ser burguês, aquele que representa o novo poder econômico sem poder político.

Ele quer ser artista e adquirir a formação humanista. Goethe cria sua obra na transição

econômica e política da sociedade, acreditando na questão da formação clássica e na idéia

de harmonizar as contradições sociais. Ele cria uma forma particular de romance, em que o

palco da ação é o teatro. “No palco, o homem culto aparece tão bem pessoalmente em seu

10 G. Aguilar, Poesia Concreta Brasileira. As Vanguardas na Encruzilhada Modernista. São Paulo: EDUSP 2005: 17, 81-84, 247-268. O autor cita a canção “Sampa”, de Gaetano Veloso, que expressa na “poesia catalisador” aquela sensação da vida moderna brasileira a partir da década de 1950: “Eu nada entendi/Da dura poesia concreta de tuas esquinas [...] Da feia fumaça que sobe/Apagando as estrelas/Eu vejo surgir teus poetas/De campos e espaços”. 11

Mudança Estrutural da Esfera Pública. Investigações quanto a uma Categoria da Sociedade Burguesa. Trad. Flávio R.Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileira 1984 (Biblioteca Tempo Universitário, no. 76; Estudos Alemães). O original em alemão é de 1962. 12 “Öffentlicher Raum und politische Öffentlichkeit. Lebensgeschichtliche Wurzeln zweier Gedankenmotive“ (Esfera Pública e Política. Raízes de dois Motives de Pensar na História Pessoal). Conferência proferida por causa do Prêmio Kyoto, da Fundação Inamori, 11 de novembro de 2004, em Kyoto/Japão. Publicado in: Neue Zürcher Zeitung (Zurigo) no. 290, 11-12/12/2004, p. 67).

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brilho quanto nas classes altas”, diz Goethe (apud Habermas, 1984: 27). Mas o palco é pura

representação – alerta Habermas criticamente –, lugar e espaço de “jogo”. Goethe escrevia

contra a tendência visível “da decadência da representatividade pública na sociedade

burguesa”, querendo salvar seu ideal, mas o personagem Guilherme fracassa, pois se torna

burguês. O “modelo liberal” da esfera pública salva a questão da educação e da formação

como discurso em vista das mudanças históricas que se impõem entre os poderes federais,

da Igreja Católica, da Corte e nobreza diante do aumento do Direito Público e suas

instituições, o parlamento, a burocracia, o exército, as corporações profissionais e a justiça:

“Os poderes feudais [...] decompõe-se ao longo do processo de polarização; por fim, cindem-se em, de um lado, elementos privados e, de outro, em elementos públicos. A posição da Igreja modifica-se com a Reforma; a ligação que ela representa com a autoridade divina, religião, torna-se coisa privada. A assim chamada liberdade de crença assegura historicamente a primeira esfera da autonomia privada; a própria Igreja continua a existir como uma corporação de Direto Público entre outras [...] Com a burocracia e o exército (em parte também com a Justiça), objetivam-se as instituições do poder público perante a esfera cada vez mais privativa da corte. — Finalmente, dos estamentos desenvolve-se os elementos de denominação corporativa a órgãos do poder público, o Parlamento (e, por outro lado, um Poder Judiciário); os elementos das corporações profissionais, à medida que são vigentes nas corporações urbanas e servem para operar certas distinções nos estamentos rurais, evoluem para a esfera da ‘sociedade burguesa’, que há de se contrapor ao Estado como genuíno setor da autonomia privada” (1984: 24s).

Habermas contrapõe, na esfera pública, a representatividade da Corte e a representatividade

burguesa que se localiza na cidade. “A ‘cidade’ não é apenas economicamente o centro vital

da sociedade burguesa; em antítese política e cultural à ‘corte’, ela caracteriza, antes de mais

nada, uma primeira esfera pública literária que encontra as suas instituições nos coffee-houses,

nos salons e nas comunidades de comensais [...] À medida que ‘a cidade’ assume suas

funções culturais, modifica-se não só o sustentáculo da esfera pública, mas ela mesma se

modifica” (1984: 45 e 47).

Diante da situação da colônia Brasil, particularmente da Amazônia, como se articula a

representatividade pública do projeto pombalino e, posteriormente, a do movimento de

independência? Quando o Padre Antônio Vieira chegou em Belém do Grão Pará, em 1655,

o vilarejo era mais indígena do que luso. De 1616, quando a cidade foi fundada, a fim de

tomar posse da vasta região prometida como El Dourado, ela mudou de um “ajuntamento

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de construções de pau a pique e de enchimento cobertas de palha”13, em torno do forte e

das construções das ordens religiosos para uma “grande cidade, ruas bem alinhadas, casas

alegres. A parte maior construída há 30 anos, em pedra e alvenaria, além das igrejas

magníficas. O Comercio direto do Pará com Lisboa”, nas palavras eufóricas de Charles-

Marie de La Condamine, na visita entre 1735 e 1745 (2006: 16). Com a Comissão de

Demarcação de Limites chegou o italiano Antônio (Guiseppe) Landi (1713-1791) que

mudou definitivamente a arquitetura urbana no contexto da política pombalina a respeito

do papel político-administrativo da cidade. E o primeiro Intendente, “como então se

chamava o Prefeito”, Antônio Lemos, dono do jornal A Província do Pará, que passa a

“governá-la urbanisticamente, atendendo àquele momento da vida da cidade [...] Belém

reproduzira os esplendores da belle époque [...] Imitou a metrópole por excelência da época, a

capital do séc. XIX, Paris” (B.Nunes, 2006: 27 e 32). A Praça da República com o Teatro

da Paz, Praça Batista Campos, o Jardim Botânico Rodrigues Alves, o Grande Hotel, o

antigo Bom Marche chamado “Paris n’América”, no centro comercial, signos de uma cidade

moderna.

O Brasil mudou com a vinda da família real, em 1818. O primeiro jornal na Amazônia

aparece em 1822 que tinha como redator-chefe Felipe Patroni, o segundo que circulou

entre 1824 e 1827, dirigido por Dom Romualdo de Seixas e, depois muitos outros jornais

de notícia e literário (Cf. 1990: 64-74). Amazônia passou pela grande revolta da

“Cabanagem” (1834-40) que marcou a relação da região Norte com o novo Estado do

Brasil. Com a abertura da navegação livre do Rio Amazonas, em 1867, chegaram viajantes

naturalistas à Amazônia. Desta forma, o

“Pará, pela sua posição geográfica, pelo clima e pelo permanente intercâmbio com a Europa, sofreu muito dessa influência quanto aos habitantes, a língua e o modo de viver do outro lado do Atlântico. Para os paraenses de outros tempos era bem mais fácil ir à Europa do que ao sul do país [...] As manifestações literárias envolvendo questões sociais e políticas, faziam germinar os ideais separatistas, a análise fria da situação imposta aos índios, a posição vexatória da escravatura, além dos sentimentos republicanos”14.

De outro lado, a cidade tinha ainda em sua maioria habitantes nativos e escravos e uma

forte vivência de cultura popular15. Também no interior dos Estados da Amazônia, foi

13 Eidorfe Moreira apud Benedito Nunes/Milton Hatoum, Crônica de Duas Cidades: Belém e Manaus. Belém: SECULT 2006: 12. 14 Clóvis Meira/José Ildone/Acyr Castro. Introdução à Literatura no Pará. Belém: CEJUP 2ª ed. 1990: 19 e 61. 15 Vicente Salles apresenta uma estatística da população para o ano de 1798: 45,2 % de brancos e 45,9 de escravos, “que somados a índios, negros e mestiços libertos, elevava-se para 54,8%” (C.Meira, 1990: 49). Salles ressalta a significação da oralidade, constata Meira: “Com a expulsão dos jesuítas [...] a mudança na denominação indígena das aldeias e vilas para nomes portugueses, certamente que terão influído para a

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importante a evolução da imprensa: Muaná e Cachoeira do Arari, na Ilha do Marajó; em

Santarém, na entrada do Tapajós no Rio Amazonas, “aparecem e desaparecem [...] mais de

vinte jornais, geralmente de fundo político” (1990: 74).

No último quartel do século XIX desenvolveram-se intensas atividades jornalísticas e

culturais com redatores e colaboradores o que “havia de melhor na elite cultural da terra,

nomes que chegaram a alcançar grande projeção na vida política, científica e nas letras do

Pará e do Brasil, na primeira metade do século XX”16. A política do governo imperial

seguindo a política de Portugal pombalina, que tinha implantado a escolarização, por

exemplo, em 1841, “funcionava em Belém um Liceu e mais tarde, em 1871, abria-se uma

Escola Normal [em Manaus] o Liceu só chegou em 1869 e a Escola Normal em 1881 [...] O

ensino superior, este só na República teve ocasião de surgir. Primeiro, uma Faculdade

Livre, de Direito, em Belém. Farias Brito foi professor nela, de Filosofia de Direito.

Depois, outra, em Manaus”17. O Positivismo impulsionou mais ainda as atividades

científicas (“Museu de História Natural”, posteriormente, o “Museu Goeldi”, 1871/1894) e

de ensino com a chegada de Carlos Gomes, as atividades culturais. José Veríssimo foi

importante na sua vivência em Belém, fundou “além da Revista Amazônica, uma Sociedade

Promotora da Instrução, organizou o Clube Republicano ao lado de Lauro Sodré e

participou, em Paris, de um Congresso de Antropologia [...] abriu o Colégio Americano,

com a inovação do jardim de infância. Depois emigrou para o Rio e nunca mais voltou a

Belém”18.

No século XVIII não se falava ainda de Manaus. Como concretização do projeto de

fortificações da região, foi fundado, em 1669, na bifurcação dos rios Solimões e Negro, o

Forte de São José do Rio Negro. “A presença militar portuguesa nesse ponto estratégico da

Amazônia pretendia deter o avanço espanhol pelo Solimões e o holandês pelo Orinoco.

Durante mais de dois séculos, o pequeno povoado chamado Lugar da Barra ‘não dependeu

de nenhuma rota terrestre, mas tão somente dos rios de planície e de uma história

lentidão desse desenvolvimento cultural. A igreja, os religiosos, jesuítas ou não, tomaram papel saliente nessa modelagem da cultura, desde os tempos de Bettendorf e Vieira. A memória oral transmitindo às gerações que surgiam os usos, costumes, crenças, muitas delas passando a ser incorporadas à cultura e ao desenvolvimento da língua portuguesa” (1990: 50). 16 C.Meira/J.Ildone/A.Castro, 1990: 72 e cf. também os capítulos sobre o início do século XX, de J.Ildone, pp. 173 -205. 17 Carlos Rocque (org.), Grande Enciclopédia da Amazônia. Antologia da Cultura Amazônica. Vol. I. Belém: Amada 1970: 31. Cf. os capítulos 8 e 9. Livros de Farias Brito (1862-1917) constam no programa da editora do Senado Federal (Brasília) e o professor-educador continua na memória literária: “Recordava Farias Brito, o filósofo, que freqüentava a casa, na Vinte e Dois, ao tempo do lemismo. Molhava no prato de tucupi ou na sopa de tartaruga as mangas do fraque a dizer: ‘comei, bebei, minhas mangas, que as homenagens são todas para vós e não a quem vos vestiu’” (Dalcídio Jurandir, Belém do Grão Pará. Belém: EDUFPA/Rio de Janeiro: Casa Rui Barbosa 2004: 47s (Coleção Ciclo do Extermo Norte)). 18 B.Nunes, 2006: 38. A última frase de Nunes indica algo acontecido que afastou o aparente progressista Veríssimo de Belém e dos paraenses, o que reclama depois J.E.de Azevedo (mais adiante). Cf. R.Zilberman, “O Positivismo e a História da Literatura Brasileira”. In: M.E.Moreira (org.), Histórias da Literatura.: Teorias, Temas e Autores. Porto Alegre: Mercado Aberto 2003: 115-156.

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econômica ligada intimamente à navegação fluvial’” Ainda, em 1865, Manaus era “uma

cidade índia” (A.Ab’Saber apud M.Hatoum, in: 2006: 50s). Somente com a economia da

borracha, no final do século XIX, Manaus cresceu e tornou-se cidade; na época, tinha o

mesmo tamanho de São Paulo, enquanto Belém já possuía o dobro de habitantes

(62.000)[03]. A partir daí, pode-se falar de um “projeto urbano”. O projeto de 1893 –

segundo Hatoum – “é pelo menos cinco vezes maior do que a planta de 1852 [...] incluía

um anel de praças arborizadas, com seus coretos de ferro e estátuas de divindades gregas,

importados de Liverpool e Paris respectivamente” (2006: 62). O Teatro Amazonas foi

inaugurado em 1896. Em 1899, a Academia Amazonense de Belas Artes e, em 1910, foi

fundada a Escola Universitária Livre de Manaus.

* * *

Na década de 1990, iniciam-se na área de Letras as primeiras publicações de trabalhos

coletivos sobre a produção, a circulação e a recepção de impressos no Brasil19,

completando os estudos sobre a história da literatura brasileira na PUC de Rio Grande do

Sul, desde 1992, quando foi fundado o Grupo de Trabalho (GT) “História e Literatura” da

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação (ANPOLL). Os Cadernos do Centro

de Pesquisas Literárias da PUCRS, desde 1995, sob a cura de Maria Eunice Moreira e Regina

Zilberman apresentam questões temáticas e o debate sobre a historiografia da literatura.

Resultado de mais uma década de levantamentos e análises historiográficas desde as

primeiras reflexões sobre a Estética de Constança (R.Zilberman, 1989) e a tradução do

livro-chave de Hans Robert Jauss (A História da Literatura como Provocação à Teoria Literária,

1994), as pesquisas passaram do enfoque interpretativo — sobre os primeiros

pesquisadores e historiadores estrangeiros e brasileiros: Friederich Bouterwek (1765-1828),

Ferdinand Wolf (1796-1866), Ferdinand Denis (1798-1890), Almeida Garrett (1799-1854),

Joaquim Norberto de Souza Silva (1820-1891), Sílvio Romero (1851-1914) e José

Veríssimo (1857-1916) 20 — à materialidade das teorias: os impressos e as leituras realizadas

e comprovadas.

19 Márcia Abreu (org.), Leituras no Brasil. Campinas: Mercado de Letras 1995 e Leitura, História e História da Leitura, 2000. Marisa Lajolo/Regina Zilberman, A Formação da Leitura no Brasil. São Paulo: Ática 1996. Infelizmente, nenhum estudo sobre a região amazônica está incluído nas antologias. Uma única referência a Pará” encontra-se a respeito dos colégios jesuítas, em 1718, a biblioteca contêm 1263 volumes; na Bahia, 3000 e no Rio de Janeiro, 5000 volumes (Luiz Carlos Villalta, 2000: 187). 20 Cf. Guilherme César, Historiadores e críticos do Romantismo. São Paulo: EDUSP 1978, M.E.Moreira (org.), Histórias da Literatura (2003) e As Pedras e o Arco (2005); a respeito de Joaquim Norberto de Sousa Silva, cf. a reeditado em 1997 pela editora da UFMG do livro de 1840: Bosquejo da História da Poesia Brasileira; a respeito do papel da Escola de Recife no desenvolvimento das novas idéias: Vamireh Chacon, A Luz do Norte. O Nordeste na História das Idéias do Brasil. Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Massangana 1989.

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9

João Adolfo Hansen diferencia as “Leituras Coloniais” (In: M.Abreu, 2000: 169-182) em

dois termos periodológicos que mostram a importância do impresso à constituição da

literatura brasileira como identidade cultural e nacional: o século XVIII luso-brasileiro que

“nomeia uma duração de quase 200 anos entre 1580-1750, específica da política católica

absolutista” (2000: 169) e a época oitocentista sob critérios iluministas que desembocou na

Independência do Brasil. A Imprensa Régia tornou-se Imprensa Nacional, acompanhando

a constituição do Estado Brasil na época do Romantismo. Importante ressaltar que sob o

enfoque de Hansen é que a transmissão da política católica também se entende como

“leitura”, as imagens e as “formas espaciais que hoje classificamos como artes plásticas [das

igrejas] eram plenamente inteligíveis”; cujo objetivo era transmitir “signos, em que forma

retórica, posição hierárquica e valor simbólica se relacionavam intimamente” (2000: 170). O

projeto iluminista do Marques de Pombal implantou uma outra transmissão, mesmo

absolutista, mas sob outras condições históricas-políticas: o discurso racional e letrado. As

leituras dependeram a partir daí, em tamanho maior e na esfera pública de

“condicionamentos literais, lingüísticos, bibliográficos e retóricos, e não literais,

condicionamentos materiais, contextuais, sociais” (2000: 171). Pode-se dizer que as três

epopéias brasileiras: A Muhraída, de Henrique João Wilkens (~1755-1802), Caramuru, Padre

José de Santa Rita Durão (1722-1784), O Uraguai, de Basílio de Gama (1740-1795)

pertencem àquela cultura luso-brasileira na perspectiva de uma nova nação. Os autores

românticos Gonçalves de Magalhães (1836), Gonçalves Dias (1847)21, Castro Alves

(1870)22, já fazem uso do discurso nacional, ou em outros termos, pelas obras passa-se da

“história normativa” à “história descritiva” (2000: 171) e, completando o raciocínio de

Hansen, à história discursiva: a busca da identidade brasileira como projeto nacional (com e

sem Portugal). Esta busca de uma “outra nação”, no contexto brasileiro, mas localizada na

Amazônia, Neide Gondim encontra no romance histórico Simá, em que o autor de origem

baiano questiona e busca uma identidade ou um caráter nacional. “A proposta do autor [...]

está muito mais próxima dos anseios dos brasileiros da época, preocupados em criar uma

tradição, que se defrontassem com a cultura importada via Império, quando aponta o

21 Interessante, neste contexto, é a solicitação de G.Dias à Biblioteca Nacional do livro O Thesouro do Amazonas (2000: 290). Com muita certeza, trata-se dos dois volumes do Padre João Daniel (1722-1776), Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas. 22 O levantamento na Biblioteca Nacional pela época de 1843 a 1856 mostra que “as obras poéticas mais consultadas pelo público denotam uma dupla tendência: por um lado, um esforço de atualização, tendo em vista a presença de obras românticas de poetas brasileiros (Gonçalves Dias e Álvares de Azevedo) e de poetas estrangeiros (Lamartine e Byron), sendo o último em francês” (Nelson Schapochnik, 2000: 307). Levando em consideração a atividade da Censura (Real Mesa Censoria, implantada pelo Marques de Pombal, em 1768), por exemplo, José de Alencar somente “pôde ler Balzac completo por empréstimo de amigos de república” (Ana Luiza Martins, 2000: 399; cf. também o posfácio de Lílian M.Lacerda, 2000: 611-623); nem pensar em Madame Bovary ou nos romances de E.Zola (Aparecida Paiva, 2000: 425).

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processo de descaracterização do indígena no contato com o português colonizador”

(2002: 89).

Sem uma produção gráfica, sem uma tipografia23, sem uma imprensa, sem uma livraria24,

sem círculos de apresentação e de divulgação, a criação artística e, especificamente, a

criação literária não pode nascer ou depender da oralidade (a cultura popular não precisa da

escrita25, somente o registro dessa cultura; mas com o registro perde gradativamente sua

função social e cultural-viva, torna-se folclore — ato de rememoração de origens26). A

Formação da Literatura Brasileira aborda a questão historiográfica de forma sistemático-

construtiva, mas o Norte ficou fora, fora até hoje... Ou melhor, Amazônia é vista sob o

enfoque do mito27 e como “terra misteriosa”:

“A Amazônia não tem constituído simplesmente uma atração turística e hoje sobretudo econômica, mas também uma atração literária. O espírito de aventura sempre foi seduzido pelos seus segredos e mistérios e esse espírito também existe na literatura./Existe mesmo uma Amazônia de nossos sonhos, uma Amazônia fabulosa, a das mulheres guerreiras e a das pedras verdes, dos pássaros vampiros e dos peixes fálicos, como também existe uma Amazônia real, talvez mais maravilhosa que a da lenda, como a das tribos ainda sem contacto com o que chamamos de civilização, verdadeiro fenômeno dos dias presentes [...]

23 “A tipografia – não há quem o ignore – estabeleceu-se no Brasil muito tarde, no momento da trasladação da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro” (G.César, Historiadores e críticos do Romantismo. 1978: XXIX). 24 No Rio de Janeiro fundam-se as livrarias Laemmert (1828) e Garnier (1844). A primeira livraria brasileira instalou-se no Rio de Janeiro, em 1883, quando o português naturalizado Francisco Alves assumia a empresa do tio (Aníbal Bragança, 2000: 452s). O famoso Almanaque Garnier relaciona, no início do século XX, “os pontos onde ele cultiva leitores e clientes, para além do Rio de Janeiro: Maranhão sim, Pará não (Eliana R. de Freitas Dutra, 2000: 489). 25

No início do século XX consta um índice de analfabetismo na faixa de 90% (E.Dutra, 2000: 477). Cf. registra-se um fato curioso sobre a questão da língua: Larry Rother, “Língua Nascida do Colonialismo prospera novamente na Amazônia”. In: Somanlu (Manaus), nr. 2/2005: 231-234. Trad. Georg El Khauti Andolfato (publicado na New York Times e na Folha on-line, em 28/08/2005). 26 O termo “folklore” é central no estudo de Frederic José de Santa-Anna Nery (Fol-Lore Brésilien. Paris: Perrin 1889; ed. bras. Folclore Brasileiro. Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Massangana 1992). O subtítulo reúne: “Poesia Popular, Contos e Lendas, Fábulas e Mitos, Poesia, Música, Danças e Crenças dos Índios. Acompanhado de doze peças de Musica”. A apresentação de Vicente Salles que também assina pela tradução, cronologia e notas adicionais esclarece: “Até o final do século XIX, os estudos de Folclore no Brasil obedeciam à orientação etnográfica. Sílvio Romero, crítico literário, ainda trabalhou como etnógrafo. O uso do termo folclorista, para indicar os que se dedicavam a esses estudos, já vigorava no seu tempo e alguns pesquisadores são tal designados” (1992: 11). O paraense Barão Santa-Anna Nery, “representante típico do velho regime [...] apresenta em língua francesa um mosaico do folclore brasileiro” (1992: 11) e alcança uma grande repercussão na Europa, mas ficou quase desconhecido no Brasil. A tradução só se realiza com a edição de 1992, mais de 100 anos depois. Cf. no prefácio de V.Salles a polemica entre Santa-Anna Nery e Sílvio Romeiro (p. 12: “com seu prestígio de crítico, contribuiu para formar opinião desairosa a respeito do ‘singular barão’”), último que negou dar qualquer referência ao Barão na História da Literatura Brasileira. Ainda mais um fato como autores e obras são canonizados e exigem pesquisadores posteriores, a fim de desvendar as particularidades da recepção. Cf. também a bio-bibliografia do ‘singular barão’, apresentado pelo ‘singular historiador e pesquisador’ Vicente Salles (1992: 19-23). Cf. V.Salles, “Classificação Decimal do Folclore”. In: Américo Pellegrini Filho (org.), Antologia de Folclore Brasileiro. São Paulo: EDART/Belém: UFPA/João Pessoa: UFPb 1992: 35-59. 27 Cf., por exemplo, os títulos de Márcio Souza, “A Literatura na Amazônia: as Letras na Pátria dos Mitos” e Marcos F.Krüger, Amazônia: Mito e Literatura.

Page 11: Romantismo na Amazônia?

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Para a ficção literária ela constituía e ainda constitui amplo foco de interesse. Muitos foram os escritores que, aborígenes ou estranhos, se ocuparam desse paraíso, ou seja, desse inferno verde e aquático, aplicando-lhe um tratamento de que era reflexo esse epíteto de ‘inferno’, mas um inferno cheio de seduções, como, alias, à puridade, não deixava de interessar tudo que tomasse o cheiro de pecado”28.

A leitura expressa sempre um determinado “horizonte da recepção” que abre com

cada leitura configurações repensadas e novas. A dialética hermenêutica pergunta-resposta

é a única certeza da possibilidade de significado das interpretações no contexto eterno e

arquétipo de constelações simbólicas da literatura (tanto ficcional quanto de viagem). A

proposta de abordar a questão do Romantismo, tanto como período histórico quanto

como estilo de época artística e literária, deve encarar a tradição e a recepção do espaço

geográfico e mítico: o imaginário (mitológico) e o fictício da literatura da e sobre

Amazônia. Não se trata de um golpe na relação entre obra e médium, trata-se de diferenciar

a esfera medial em que o texto, a obra e a realidade, suas potencialidades provocadas pela

recepção e pela infinidade do ato de ler se encontram. “A recepção da literatura por um

determinado público”, constata Wolfgang Iser, “ganha então a primazia. Ao mesmo tempo

[...] as avaliações das obras refletem certas atitudes e normas do público contemporâneo, de

modo que à luz da literatura se manifesta o código cultural que orienta tais juízos. Isso vale

também para os casos em que a história da recepção se interessa pelos testemunhos de

leitores que, em épocas diferentes, responderam à obra em causa”29, ou a literatura em

causa, no caso da literatura as Amazônia. Transferido para o campo da questão, pode-se

dizer que a “história da recepção revela as normas da avaliação dos leitores” (1996: 64) que

são críticos e historiadores da literatura. Assim, modificando a seqüência da frase, a história

da recepção da literatura da e sobre Amazônia parte à interrogação principal desse ensaio:

como diferenciar e teorizar o imaginário e o fictício na avaliação dos leitores? Embora a

oposição entre realidade e ficção que “faz parte do repertório elementar de nosso ‘saber

tácito’”30, como ressalta Iser, precisa de atenção especial,. quando se trata de uma região

sobrecarregada de imaginário.

Ainda muito marcado pelo imaginário tradicional, mas com mudanças na percepção e na

análise crítica a respeito de romances ficcionais, Linhares relaciona os poucos romances,

28 Temístocles Linhares, História Crítica do Romance Brasileiro (1728-1981). Vol. II. Belo Horizonte: Itaitiaia; São Paulo: EDUSP 1987 (Coleção Reconquista do Brasil, 2ª. Série, vol. 117): 371. 29 Wolfgang Iser. O Ato da Leitura – Uma Teoria do Estético. Vol.1. Trad. Johannes Kretschmer. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora 34 1996: 64 (Coleção Teoria). 30 W.Iser, O Fictício e o Imaginário – Perspectivas de uma Antropologia Literária. Trad. Johannes Kretschmer. Rio de Janeiro: UERJ 1996: 13. Mais adiante (p. 24), Iser anota sobre a relação entre ficcionalidade e recepção, a respeito de um drama de Shakespeare: “A ilusão não corre por conta da ficcionalidade do texto, mas sim da ingenuidade de um modo de pensar que não é capaz de registrar os sinais do ficcional”. O leitor da literatura da e sobre Amazônia não é capaz registrar os sinais do imaginário (do texto e dele mesmo).

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por exemplo, La Vorágine, do colombiano José Eustasio Riveira, A Selva, de Ferreira de

Castro, refere Alberto Angel, Euclides da Cunha, Inglês de Cunha e Mario de Andrade

(Macunaíma), Carlos de Vasconcelos e, no final, Dalcídio Jurandir que é apreciado no

capítulo próprio. “O romancista Dalcídio Jurandir [...] diferia bastante dos tratados [...] não

seguindo mesmo os caminhos oferecidos pelo mundo amazônico nos seus três andares de

vegetação que se sobrepunham, indo da terra até atingir o céu ou mesmo esses três estágios

de animais [...] em todos as quais se desenrolava, um depois do outro, o mesmo drama do

amor e da morte. O seu mundo era um só: o do homem[...] voltado mais para seus

problemas, os seus sofrimentos, as suas dores, as suas disputas” (1987: 401). Literatura

Amazônica começa para Linhares na segunda metade do século XIX.

Pedro Maligo parte como T.Linhares, da atenção que a região recebe pela biodiversidade e

pelo significado de ser “a pulmão do mundo”, quando enfoca a questão cultural e literária.

Ele lembra de Raul Bopp que escreveu que a “floresta é inimigo do homem”31, uma

imagem que Euclides da Cunha tinha usado. A “circulação de imagens” demonstra como o

discurso sobre Amazônia, aproveita-se do inventario metafórico. Num percurso

introdutório, Maligo refere-se a estudiosos como Carlos Rocque, Benedito Nunes, Péricles

Morales, Márcio Souza e Mário Ypiranga Monteiro e, em seguida, fala dos viajantes. A

abordagem da literatura ficcional começa somente com H.Inglês de Sousa.

Muito antes, em 1922, José Eustachio de Azevedo levantou a bandeira da literatura

paraense (pode ser num vulto de uma certa “nacionalidade regional”) e critica,

particularmente, seu conterrâneo e historiador da literatura, José Veríssimo que

“esquecendo-se sempre dos intelectuais paraenses”32. Mas constata auto-criticamente e na

visão do seu tempo que o

“Pará [...] levou muito tempo cuidando do desbravamento de seu sólo, em luta constante com o aborigene desconfiado e rebelde. E se o seu estacionamento e decadência eram devidos ao arrocho de governos antagônicos e à rude aspereza do clima equatorial, contribuíam poderosamente para o seu retardamento etnológico, a influência de fatores vários de imigração, a convivência e a união com o índio, o português tarado e o negro imbecil [...] em troca do ouro e dos produtos naturais, como o anil, o cacáu, a salsa, o arroz, a baunilha, etc. que recebiam a grosso, só nos enviavam a barregan, o criminoso e o africano” (1990: 15s).

31 P.Maligo, Land of Metaphorical Desires. The Representation of Amazonia in Brazilian Literature. New York/Washington, DC.: Peter Lang 1998 (Wor(l)ds of Change. Latin American and Iberian Literature, 21). 32 J.E. de Azevedo, Literatura Paraense. Belém: FCPTV/SECULT 1990: 25. Com toda razão, por exemplo, respondendo as perguntas do Almanaque Brasileiro Garnier sobre leitura e livros, J.Veríssimo relaciona autores “como Alvarenga, Gonzaga, Gonçalves Dias, Varela, Casimiro de Abreu, Álvares de Azevedo, Castro Alves [...] os romances de Macedo, Alencar, Bernardo Guimarães” (E.Dutra, 200: 494) — nem pensar em H.Inglês de Souza. Cf. nota de rodapé 10.

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As referências literárias destas épocas são Padre Antônio Viera, História do Futuro (Lisboa:

1718), Henrique João Wilkens, A Muhuraida (1785; publicado em Lisboa: 1819) e Bento de

Figueiredo Tenreiro Aranha cuja obra somente foi publicada póstuma Obras Poéticas

(1850)33.

Sabe-se que a Amazônia foi e é uma região de difícil acesso, dependeu dos aventureiros e

bandeirantes [04]. Uma região desconhecida, o objeto vivo de estudo de padres – Padre

Antônio Vieira (viagem nas terras amazônicas de 1653 a 1661), João Felipe Bettendorf

(1661 a 1698) e Padre João Daniel (1722-1776), Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas,

Vol. I e II – e dos viajantes naturalistas e pesquisadores até o início do século XX: Charles-

Marie de La Condamine (1735 a 1745, na Amazônia), Alexandre Rodrigues Ferreira (1783 a

1792), Alexander von Humboldt (1799-1804), Johann Baptist von Spix e Karl Friedrich

Martius (1817-1820), Henry Walter Bates (1848 a 1859) e Alfred Russel Wallace (1848 a

1850), Robert Ave-Lallemant (1859), Luiz e Elizabeth C. Agassiz (1865-1866), Ermanno

Stradelli (1879 a 1926), Theodor Koch-Grünberg (1898 a 1899, 1903 a 1905 e 1911 a 1913)

Euclides da Cunha (1905) e Curt Nimandaju Unkel (1903-1945).

É necessário um esboço histórico a fim de perceber as condições sociais e culturais na

Amazônia na altura do Romantismo brasileiro. Dois anos depois da viagem de Cristóvão

Colombo, os dois impérios da península ibérica trataram a questão do território que o

contrato de Tordesilhas dividiu[05]. Focando o continente América, percebe-se que

Portugal estava aparentemente perdendo muito: a maior parte estava na mão da coroa de

Castela. Espanha estava mais direcionada em direção à América (ocidental), enquanto

Portugal engajou-se na direção oriental (África e o Oriente). Mas, de repente, a região

amazônica estava muito presente na cartografia portuguesa [06]. O segundo contrato

importante – de Madri, em 1750 – regularizava tanto uma realidade colonial de 300 anos

quanto uma experiência e expectativa da coroa de Castela [07]. A coroa portuguesa

mandou, então, em 1753 a Comissão de Demarcação de Limites com especialistas

internacionais. Esta Comissão chegou em Belém em julho de 1753 e, a partir daí, pode-se

falar da nova história da região amazônica, chamada capitania Maranhão-Grão Pará34;

pode-se falar do Barroco Amazônico e referir o nome do arquiteto Antônio Landi. O que

aconteceu até o século XVIII? [08] Nada ou quase nada que pudesse chamar atenção de

um pesquisador de literatura como ilustra J.Azevedo: “o desbravamento de seu sólo, em

33 M.Moisés, História da Literatura Brasileira, Vol. 1: Das Origens ao Romantismo. São Paulo: Cultrix 2001. Ele escreve sobre a obra de Aranha, no subcapítulo “Outros Poetas”: “em que, a par de poemas encomiásticos, procura aclimatar a utopia arcádica à paisagem amazonense” (p. 279). 34 Cf. Marcos Carneiro de Mendonça, A Amazônia na Era Pombalina. Brasília: Sendo Federal 2005; Luís Balkar Sá P.Pinheiro, “De Vice-Reino à Província: Tensões Regionalistas no Grão Pará” e Ricardo J.B.Nogueira, “Amazônia e Questão Regional: um Regionalismo Sufucado”. In: Somanlu (Manaus), no. 1/2000: 83- 126.

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luta constante com o aborigene desconfiado e rebelde”, então, a expansão católica[09], as

missões dos jesuítas[10], a política das fortificações [11]35. Notável é ainda a viagem de Pe.

Antônio Vieira e o contrato de paz na beira rio dos Mapuá (1659): “quando numa igreja

indígena padres jesuítas, Antônio Vieira e seu confrade da missão de paz aos Nheengaíbas;

pajés tupis e aruaques; caciques e guerreiros; e soldados portugueses e mamelucos selaram

uma paz impossível; com único objetivo de evitar uma “guerra justa” impossível de ganhar”36.

* * *

O livro de A.Candido, A Formação da Literatura Brasileira (1959), provocou uma reação

surpreendente; de um lado se vê uma proposta teórica substancial de sair do nível

descritivo da historiografia brasileira da literatura (o grande exemplo é Afrânio Coutinho37

com os raios de reflexões excelentes) para o nível da sistemática teoricamente aprofundada.

De outro lado, causou uma revolta a respeito da exclusão de autores e do período pré-

republicado, considerado não brasileiro. Particularmente, Haroldo de Campos levantou a

questão do barroco brasileiro38. A intervenção fazia parte, na “fase participante” ou

militante, quando a do grupo publicou “a revista Invenção, entre 1962 e 1966” (G. Aguilar,

2005: 23), que os concretistas críticos, na busca de poetas antepassados, “descobriram”

autores não canonizados não só no exterior, mas exatamente no Brasil: Pedro Kilkerry

(1885-1917), autor baiano, e Joaquim de Sousa Andrade (Sousândrade) (1832-1902). Nas

páginas do Correiro Paulistano (entre 18 de fevereiro de 1960 e 26 de fevereiro de 1961), os

irmãos Campos deram notícias do poeta Sousândrade. Depois, a pesquisa foi reunida com

a obra fragmentada do poeta na publicação Re Visão de Sousândrade (1964). O poeta estava

incluído no volume Panorama da Poesia Brasileira (1959), de Edgard Cavalheiro, mas “o

crítico Antônio Candido [...] não mostrou maior interesse [...] tratando-o como romântico

menor, convencionalmente”39. “No Brasil, Sousândrade – justamente um desses

românticos projetados para além da compreensão de sua época – espera a revisão de seu

35 Cf. Mírcia Ribeiro Fortes, “A Rede de Fortificações na Amazônia Brasileira: uma Abordagem sobre a Militarização (Séculos XVII e XVIII)”. In: Somanlu (Manaus), no. 1/2000: 159-168. 36 José Varela, “Jurupari”. Belém: Ed. do Autor: 2004: 13. 37 A.Coutinho. Introdução à Literatura Brasileira (1959), A Literatura no Brasil. Vol. I a VI (1955, 1978-1981) e A Tradição Afortunada (1968). 38 H.de Campos, O Seqüestro do Barroco na Formação da Literatura Brasileira: O Caso Gregório de Mattos. Salvador: Fundação da Casa de Jorge Amado 1989. Cf. G.K.Pressler, “A Teoria da Recepção da Obra Literária — uma Proposta à Revisão da Historiografia Literária (Brasileira)”. In: José Niraldo de Farias/Sheila D. Maluf (orgs.), Literatura, Cultura e Sociedade. Maceió: UFAL 2001: 121-162. Já no segundo prefácio, Candido rebateu as críticas: “jamais afirmei a inexistência de literatura no Brasil antes dos períodos estudados [...] houve literatura entre nós desde o século XVI [...] escritores de porte” (1963: 15s). 39 2002: 27s. Cf. no mesmo livro o artigo de H. de Campos, pp. 530-564, e os de Augusto de Campos, pp. 565-581; e, particularmente, a “Recepção Crítica de Sousândrade (MA 1832-1902)”, de Erthos Albino de Sousa e Diléa Zanotto Maneio, pp. 625-647.

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processo de olvido” (2002: 30) — até hoje. No III Congresso Brasileiro de Crítica e

História Literária, em João Pessoa, na Paraíba, em 1962, os concretistas encontram o jovem

crítico Luiz Costa Lima que apresenta um trabalho sobre Sousândrade40. O trabalho será

incluído, posteriormente, no livro Re Visão de Sousândrade.

Ponto de partida da reflexão crítica de Luiz Costa Lima é a “investigação de tipo estilístico”

da obra como fundo interpretativo. Ele anota que a análise desse tipo parte “de um

produto certo e formulado: o texto, com suas leis internas a descobrir” (2002: 463), mas

entra em conflito com a característica da obra de Sousândrades. A diferença é discutida

tematicamente e o crítico procura uma forma de análise que não deve ser considerada

“antiestilística, mas originada de uma angulação diversa”. O novo veio para a análise da

obra, Costa Lima encontra no “campo visual da realidade”. “Para isso partimos da idéia de

que toda visão da realidade é histórica e internamente articulada”. E explica: “Quando

dizemos ser histórica a visão da realidade entendemos que fatores comunitários se

combinam a fatores temperamentais, singulares ao indivíduo, para que componham o grau

de abertura emocional perante o mundo” (2002: 463; cursivo no original). Desta forma, Costa

Lima abre um caminho surpreendente à interpretação de Sousândrade e com a visão

fenomenológica, ele identifica-se como um pré-pensador da teoria da recepção. O que

Costa Lima chama “o grau de abertura emocional perante o mundo” expressa a dialética entre o

sujeito (autor, poeta) e o objeto (obra, texto) em direção ao leitor e crítico. “O grau da

abertura emocional” significa a ruptura do cânone. A constatação teórica da recepção é

articulada em seguido: “Isso equivale a dizer que uma mesma comunidade de cultura encara

diferentemente o legado das suas gerações passadas desde que a totalidade concreta

envolvente modifique o condicionamento da abertura emocional dos seus membros”41.

Em relação aos românticos brasileiros, Lima ressalta a diferencia: “Já tem sido notado que a

maior recorrência de clichês, de tom eloqüente e exclamativo, aparece nos poemas

inspirados em experiências amorosas verdadeiras (seria a exceção o ‘Ainda uma vez,

Adeus!’ de Gonçalves Dias). Esse encontro com a linguagem menos transfiguradora deriva

do fechamento emocional, do comprazimento com o eu e com o sentimento da amargura.

Em Sousândrade, é outra a dimensão” (2002: 473).

40 L.C.Lima, “O Campo Visual de uma Experiência Antecipadora: Sousândrade”, 2002: 461-503. O texto já constava na primeira edição. Trata-se da apresentação ampliada e revisada do III Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária, na Universidade de Paraíba, em 1962. A primeira publicação: Estudos Universitários (no. 2, Okt.- Dez 1962) da Universidade de Pernambuco. 41 2002: 463s; chama atenção a metáfora de visão, „encarar“ significa ver. Ressalta-se que o artigo de Costa Lima foi apresentado em 1962 (publicado em 1963/1964). No ano de 1979, Lima organiza uma antologia sobre a Escola de Constança.

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Os primeiros cantos do Guesa são de 1858 e vale a “revalorização de períodos e figuras do

passado” (2002: 464). O poema “Tatuturema” faz parte do segundo Canto, publicado no

Seminário Maranhense, de 1867:

“(Velha umáua) Graciosas potiras, Fujam Jurupari Tão malino! Suas festas

São estas E preside ao hurari (Vate D’Egas) Pae Humboldt o bebe Com piedoso sorrir; Mas, se herdava taguara Dispara, Cáe tremendo o tapir. (Políticos) (Fora) Viva, povo, a republica De Colombo feliz! (Dentro) Cadellinha querida, Rendida, Sou monarcha-juiz!...”42

A versão posterior publicada em Londres, no final da década de 80, mudou várias estrofes,

por exemplo, a última, de seguinte maneira:

(Políticos fora e dentro:) — Viva, povo, a república, Ó Cabrália feliz! = Cadelinha querida, Rendida, Sou monarco-jui...i...iz. (Risadas)” (2002: 53 e 307, no contexto da obra).

O canto como um todo, o Guesa, é estruturado como uma viagem em torno do continente

América do Sul:

“É um périplo transcontinental, com o prolongamento pela África e Europa, obedecendo ao seguinte esquema: Cantos I a III – descida dos Andes até a foz do Amazonas; Cantos IV e V – interlúdios no Maranhão; Canto VI – viagem ao Rio de Janeiro (à Corte); Canto VII –viagem de formação à Europa; África (este Canto ficou apenas iniciado); Canto

42 Trecho do fragmento “Tatuturema”, 2ª Versão, de 1868 apud A. e H. de Campos (orgs.), 2002: 289. As fontes dessas estrofes são indicadas como o estudo de Ferdinand Denis, L’Univers. Histoire et Description de Tous Leus Peuples. Brésil, de 1837, e a obra de A. von Humboldt, Vue des Cordillières, de (2002: 47). Até o Fausto, de Goethe, em que uma estrofe aparece como um guia espiritual: “Românticos vos vi, noite bailando/Do Brocken no Amazona, antigamente./Eis clássica Farsália em dia algente/No Hudson. Pára o Guesa peflustrando”. Brocken é o monte de bruxas na Alemanha do Norte (2002: 55). Cf. J.W.v.Goethe, Fausto. Uma Tragédia. Trad. Jenny Klabin Segall. São Paulo: Ed. 34, 2004 (Edição Bilíngüe), pp. 433-470.

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VIII –novo interlúdio no Maranhão; Canto IX – Antilhas, América Central, Golfo do México — viagem para os EUA.; Canto X – Nova Iorque; viagens pelos EUA;. Canto XI – Oceano Pacífico, Panamá; Colômbia, Venezuela, Peru; Canto XII – ao longo do Oceano Pacífico para o sul, até as águas argentinas; cordilheira andina; incursões pela Bolívia e pelo Chile; Canto XIII – retorno ao Maranhão” (2002: 49).

Uma viagem tematizada como busca de identidade americana, não somente nacional?

Sousândrade que nasceu no contexto da situação política do Norte que não aderiu

facilmente ao novo Estado do Brasil[12](Cf. 2002: 71-84). No outro momento do poema,

Sousândrade refere-se ao Pará e ao ciclo de borracha: “OLD-PARÁ-POND zeloso da sua

sapucaia; (a Voz)/ — Borracha ... tanto! alma-cachaça ... /Tanto! tanto ... cada mulher”.

J.Azevedo escreveu décadas depois: “Pará [...] levou muito tempo cuidando do

desbravamento de seu sólo”. Com a parte intitulada “O Inferno de Wall Street”,

Sousândrade já passou da capital do século XIX, Paris, à capital do século XX, Nova

Iorque. “Com efeito, Sousândrade é o único poeta brasileiro que, antes do modernismo,

antecipou formas que só depois se desenvolveriam dentro do acervo poético internacional.

Só ele não foi mero reflexo de correntes européias. Por isso mesmo ele se tornou o mais

incompreendido dos poetas pré-modernistas”43.

“Numa perspectiva internacional”, os irmãos Campos ressaltam, “a obra sousandrina recua

bruscamente o marco de independência da literatura brasileira para a nossa segunda

geração romântica (1857), marco este que estaria nominalmente com os modernistas de 22

[...] Sousândrade foi contemporâneo síncrono de Baudelaire” (2002: 123). E, além do mais,

tematiza a questão nacional/internacional, ou melhor, a “americanidade” no contexto

amazônico. “Não se compreende [...] a marginalidade de um poeta como Sousândrade”

(2002: 124). Enquanto esse maranhense canta a americanidade – lugar da publicação: Nova

Iorque –, o outro maranhense canta o seu país que “não é isso nem aquilo, o Brasil é sempre

mais”44 – lugar da publicação: Lípsia/Alemanha, prefácio do poeta e historiador português

Alexandre Herculano – e recebe o título de “hino brasileiro”. O Romantismo na sua

expressão nacional.

43 2002: 477. L.Costa Lima acrescenta um dado biográfico: “O poeta, que se desloca aos Estados Unidos para acompanhar a educação da sua filha, Maria Bárbara, encontra a nação americana no início da sua arrancada capitalista [...] Esse é o momento de modificações profundas na vida americana [...] Sousândrade encontraria então na bolsa de valores de Nova Iorque o quadro de um novo inferno. A sua antecipação ultrapassa os limites nacionais e o converte em um dos primeiros poetas ocidentais que intuíram a significação do desenvolvimento capitalista quanto aos valores humanos” (2002: 498). 44 J.G.Merquior, Crítica 1964-1989, 1990: 17. Merquior publica no seu primeiro livro, Razão do Poema (1965) uma interpretação da famosa “Canção de Exílio” de Gonçalves Dias. A melancolia da “Canção” “exprime algo entranhadamente brasileiro. Profundamente brasileira é a saudade da terra natal, na forma de um desprezo cego pela realidade objetiva do país”. Cf. Walnice N.Galvão, “Poetas e Cronistas: em Torno do Retrato do Brasil”. In: M.E.Moreira (org.), Cadernos do Centro de Pesquisas Literárias da PUCRS (Porto Alegre) Vol. 4, No. 2/1998: 48ss.

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1857 é também o ano da publicação do livro Simá. Romance Histórico do Alto Amazonas, de

Lourenço da Silva Araújo Amazonas. O baiano Lourenço Araújo adotou pela longa

vivência na região amazônica o sobrenome Amazonas e escreveu um romance histórico na

trilha de Walter Scott. Observa-se as informações históricas dadas pelo narrador ou

apresentado pelo discurso direto dos personagens; de um lado, o jesuíta Loiola e o

português regatão Régis, de outro lado, o indígena Domingos e o indígena cristianizado

Marco/Severo.

O primeiro capítulo intitulado “Introdução” apresenta ao leitor a natureza e a história da

Amazônia, contexto do romance, tipo “literatura dos viajantes”. O segundo capítulo

hospeda a pré-história da Simá, que é uma história própria, pois o terceiro capítulo,

intitulado “Simá”, mostra aparentemente uma outra história, sem nenhum personagem

(pelo nome) anterior. Os personagens centrais são enfatizados e descritos de forma

romântico-idealizada. A casa descrita, a mesa servia a ceia, e um “enorme candeeiro de

bronze espargia suficiente luz” (2003: 19). O personagem central chama-se Marcos, mas

somente pelo discurso do narrador, o leitor sabe que são indígenas. A introdução do vilão

da história é tecida de forma suspensa, típica do romance do Romantismo, quando os

ressentimentos e previsões permitem adivinhar a catástrofe: “Mais crescendo o rumor, três

pancadas se fizeram ouvir na porta, e uma voz pronunciou. – Um negociante. – A esta voz

um estremecimento inopinado, se diria produzido em Marcos por efeito elétrico [...] Todos

conviram em que Delfina [a filha] se portasse bem pelo contrário: que, como mulher (o que

dispensa dizer – curiosa-), com os olhos fitos na porta [...] ele na sala, medindo-a com

rapidez elétrica, e apercebendo-se de que havia uma bela” (2003: 27). E fácil imaginar a

continuação do episódio. No próximo capítulo, o narrador identifica-se como o próprio

autor, faz referência ao livro de sua autoria sobre assuntos científicos, publicado cinco anos

antes (2003: 55), por isso sublinhando a veracidade dos fatos como um contador-de-

estórias. Pela continuação da história, passando pelos metadiscursos narrativos, pelas

informações geográficas e históricas, o leitor junta os fatos da trama, de novo tecido pelos

ressentimentos e adivinhações trágicas. A felicidade, em termos “românticos”, não dura, é

pontual. O capítulo XVIII é intitulado “Adeus Remanso!!!”. Conseqüentemente, um

capítulo mais adiante é intitulado “Catástrofe”. Os nomes dos lugares, “Remanso”, e dos

personagens (“Severo” e “Domingos”, os indígenas, “Régis”; o regatão português;

“Loiola”, o padre jesuíta e as devidas descrições físicas e psicológicas) são significativas

demais. O penúltimo capítulo, o final da própria história comprova “a infalível fatalidade”

(2003: 352) do futuro dos personagens centrais e o “Epílogo” trata a história não ficcional:

a rebelião de Caboquena e Lamalonga, em 1767.

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19

* * *

Pode-se identificar em geral dois topoi da literatura da Amazônia: o mito e a mitificação da

Amazônia. Seria a parte do Imaginário mítico (El Dourado, Inferno Verde) e do Imaginário

Popular (causas, estórias). O estudo chama atenção para um outro topos que se encontra nos

romances de Inglês de Sousa e Dalcídio Jurandir: o da formação. A formação educacional e

cultural como tema principal, a fim de contribuir à questão da identidade humana,

amazônica e brasileira — de um lado como projeto humano e, de outro lado, como projeto

literário. Identificamos na obra dos dois escritores o projeto do “ciclo”: “Cenas da Vida do

Amazonas” (Século XIX) e “Ciclo do Extremo Norte” (Século XX). Os dois projetos

tratam a história de formação dos personagens principais, mas de forma romanesca

diferente entre si e diferente do romance do Romantismo e do Realismo europeu.

Certamente há uma coincidência entre o projeto nacional e o projeto de subjetivação (Pré-

Romantismo: Tempestade e Vontade; Iluminismo e Romantismo): a saída do homem da

imaturidade (Kant). E isso interessa em vista à situação histórica e política particular da

Amazônia, refletida na obra dos dois autores amazônicos como questão da formação

educacional e humanista, no melhor sentido da palavra. A história do pescador José e do

“matuto” Miguel nos primeiros romances de Inglês de Sousa e a do Alfredo no “Ciclo do

Extremo Norte” permitem uma comparação com o Romance de Formação dos séculos

XVIII e XIX da Alemanha e na Suíça (Moritz, Bräker e Goethe). Nos romances de Inglês

de Sousa apresenta-se a relação entre Brasil e Amazônia e entre “matutice e civilidade”45.

Os pobres proprietários de terra na região amazônica, o pescador José e Miguel, o

cacaulista de futuro, foram obrigados à formação e abandonaram-na. Esta aprendizagem

observa-se no Coronel Sangrado. O “matuto” Miguel volta para a cidade do interior e é

introduzido como moço da capital, Miguel Fernandes e o seu novo estado com homem de

letras, cidadão, mostra a carta que escreveu a um amigo Júlio (personagem que nunca mais

aparece no romance). Transmitindo sua saudade de voltar à sua terra natal, ele escreve:

“A minha imaginação, excitada pelos livros e pela incerta recordação do passado, que me deixara a descuidada infância, prometia-me um mundo de magníficas realidades, um paraíso de água e de verdura, em que, livre dos mesquinhos atentados do homem, se revela a natureza com toda a força e poesia!”46.

Miguel faz experiências que desabrocharam no resultado apresentado no romance O Coronel

Sangrado. Enquanto na História de um Pescador o personagem central José abandona a

formação para sempre, tornando-se, no final do romance, herói romântico; ao contrário, 45 Marcus V.C. Leite. A Dialética da Matutice e da Civilidade. Belém: Monografia de Especialização no NAEA 1996 e Cenas da Vida Amazônica. Belém: UNAMA 2002. 46 H.Inglês de Sousa, O Coronel Sangrado. Belém: EDUFPA 2003: 42 (2ª ed.).

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Miguel torna-se cidadão do mundo moderno como Guilherme Mestre, de Goethe — mas

depois da derrota política, recua à vida privada. A decisão tomada cabe nem na moldura

realista nem romântica; não se casa com a filha do coronel, nem por motivos políticos ou

“burgueses”, nem por motivos de amor que a filha Mariquinha sente, apresentando “alguns

clichês românticos”47. O movimento na Alemanha depois da derrota dos republicanos, em

1848, chama-se Biedermeier, o que significa o homem comum (“Meier”, nome como Souza)

é muito pedantesco, quadradinho e somente ligado à família (“bieder”; a tradução do

dicionário “honesto”, “integro” não leva em consideração as conotações mais válidas).

Pode-se, também, falar do Romantismo Tardio e Católico.

No final do romance O Coronel Sangrado, o narrador deixa morrer Moreira, o marido da Rita,

via o velho truque de deus ex macchina (Moreira afoga-se no rio), a fim de liberar Rita para

Miguel. Na véspera das eleições, ele, candidato dos conservadores, encontra o liberal

Ribeiro que lamenta a morte precoce do genro. Assim, é apresentado todo um conflito

interior de Miguel que é um conflito da formação apreendida:

“Rita era viúva e portanto, livre [...] Mas a que o levaria esse amor? A um casamento, impossível! Ele, Miguel de Faria, o bisneto do coronel Gama, casar com a filha do Apanha-tudo! Era uma coisa inadmissível. Onde estava então o seu orgulho, o legítimo despeito, a justificada vingança a que tinha direto, embora não quisesse usar dela por generosidade, por civilização, para mostrar que vivera entre gente, no Pará. Tudo se opunha a esse casamento: tradição de família, conveniências sociais, sentimentos pessoais, tudo. Não se esquecera do que lhe devia o tenente Ribeiro, o tenente” (CS: 189-190).

E um pouco mais adiante, a descrição psicológica do conflito:

“Miguel era uma natureza selvagem e ardente, de que uma educação civilizadora apenas aparara as pontas, cortara os ângulos bruscos, encobrira as exterioridades; deixou-se dominar por aquela forte paixão, que pensava ser uma inspiração fatal e sobre-humana, mas que ao certo não era senão a rebelião tumultuosa de ardentes desejos comprimidos. Atirou-se à rede e ficou sucumbido pela violência daquele amor sem limites” (CS: 190).

O conflito do Miguel é descrito no capítulo XIX, inclusive a sua despedida no romance. Os

últimos sete capítulos contam a fraude das eleições e a traição do Coronel Sangrado)

mostra como a questão da formação humanista (o narrador até fala do “cavalheirismo” e

da “honra”) atravessa o Realismo na beira do Naturalismo que revive no personagem de

Miguel a tensão romântica do amor individualizado:

47 M.V.Barreto. O Romance da Vida Amazônica. Uma Leitura Socioantropológica da Obra Literária de Inglês de Sousa. Presidente Venceslau/SP: 2003: 45.

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“Atirou-se à rede e ficou sucumbido pela violência daquele amor sem limites [...] O que ele queria era Rita, era o Paraná-Merim, era o Amazonas vasto, para si, para si só [...] Rita, a liberdade, a vida ampla do sítio, os dias bem nutridos, as noites bem gozadas na frescura das redes de linho, está aí o que ele queria, está aí o que ele, no fundo, desejara sempre” (CS: 194).

No romance História de um Pescador, a formação para o seu sobrinho José, o pescador, era

uma meta, uma finalidade do padre José e fracassou. José fugiu, não reconhecendo a

importância, necessidade e utilidade do ensino. É a metade do século XIX, José queria

viver no sítio e sustentar sua mãe e sonhar, romanticamente, seu amor Joaninha. Mas o

dono da terra, neste caso, o capitão Fabrício, interfere de forma decisiva. Estes homens são

o “mal da Amazonas”, são “homens vis e infames, que se locupletam com o sangue alheio,

nesses homens sem pundonor, sem alma nem coração, e que têm entretanto o apoio do

governo, que os alimenta, honra e robustece. Homens como o capitão Fabrício existem em

toda a parte do Amazonas”48.

A história de José termina, na verdade, no conto “Voluntário”: “De toda a parte se

levantavam clamores contra o rico e perverso fazendeiro do igarapé, mas cônscio do apoio

dos chefes do seu partido, continuava Fabrício, obrando as maiores atrocidades, que

constituíam a sua vida até que o filho do Anselmo Marques [José], com um salutar tiro de

espingarda, pôs-lhe termo à ominosa existência”49.

A província em termos culturais e políticos (a Amazônia cobre 60% da superfície do Brasil)

é grande demais, ainda no século XIX. “O Mulato”, constata Álvaro Lins, “é a história do

sentimento de Aluísio Azevedo em face da sua província [Maranhão]”50. São Luis como

Belém são capitais provincianos que se desenvolvem mais no auge da borracha. Azevedo

transfere-se depois do sucesso do romance para a capital cultural e político Rio de Janeiro,

mas “toda a vida sustentou em face da sua província um sentimento bastante complexo:

uma grande ternura e uma grande raiva. Não era propriamente ódio. Era raiva; e parece que

nascida de um despeito que o roeu para sempre: o de não ter obtido no Maranhão o

sucesso e os aplausos que desejava mais do que em qualquer parte” (A.Lins, 1963: 206).

Enquanto Inglês de Sousa deixou sua província cedo, no início da sua formação escolar. E

durante seu estudo em Pernambuco e São Paulo, lembrou-se da sua região e deixou quatro

48 H.Inglês de Sousa (Luiz Dolzani), História de um Pescador. Scenas da Vida do Amazonas. Belém: Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves/Secretaria do Estado do Pará 1990 (Lendo o Pará, 8): 49. 49 Inglês de Sousa apud Paulo Maués Corrêa, Inglês de Sousa em Todas as Letras. Belém: Paka-Tatu 2004: 55. Cf. também H.Inglês de Sousa, Contos Selecionados. P.M.Corrêa (org. e comentário). Belém: Paka-Tatu 2005: 58s. 50 A.Lins, Os Mortos de Sobrecasaco. Ensaios e Estudos (1940-1960). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira 1963: 206.

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romances que expressam o que Lins chama o “idealismo romântico e naturalismo” na

literatura em geral e, particularmente, no final do século XIX. E também, como Azevedo,

Inglês de Sousa abandonou o seu talento poético e dedicou-se à profissão e à carreira

político-administrativa. O que vale para Raimundo vale também para o Miguel,

significativamente mulato como personagem central: “Escrito no Maranhão, O Mulato

representa uma espécie da crônica da vida provinciana, nos seus aspectos morais e sociais

mais característicos [...] O que forma, no entanto, o centro deste romance é um problema

humano e social: o da adaptação do mulato na sociedade brasileira” (1963: 209s) — tanto

na cidade grande (São Luis) quanto no interior (Baixa Amazônia).

* * *

A percepção da Amazônia, neste ensaio, parte do que Wolfgang Reinhardt chama “por si

mesmo”51 i.e, dos autores autóctones, autores nascidos ou vividos na Amazônia que se

articulam com o intuito de escrever sobre sua terra natal ou experimentada. O Ciclo de

Borracha é marca histórica, importante e significativo para o desenvolvimento econômico,

cultural e de pesquisa científica. Mesmo diante da falência da riqueza que ocorreu depois de

um breve auge (1880-1910), os incentivos culturais ficaram e se expressaram — na sombra

e na pobreza. A expressão da “literatura do peixe-frito”, de Dalcídio Jurandir, não é

gratuita, valeu para toda produção literária do Pará (e do Amazonas e para os outros

Estados da região) nos séculos XIX e XX.

A proposta “cliométrica” em “investigar de forma contrafática a história” (W.Reinhard,

1992: 1105) se aplica nesse caso, pois a História da Literatura Brasileira do início até o

século XIX (S.Romero, J.Veríssimo, A.Coutinho, A.Candido) foi construída sem, ou quase

sem, os autores do Norte, da Região Amazônica. Eles são existentes e a produção literária

também. Propõe-se a inclusão da literatura da Amazônia, a fim de mostrar e esclarecer uma

realidade histórica e cultural no território do Brasil. Mas, naquele instante, começava a

dúvida: Amazônia fazia parte do território brasileiro? A partir de quando, como e sob quais

condições?

Certamente há uma coincidência entre o projeto nacional e o projeto de subjetivação no

mundo, no Brasil e na Amazônia (Pré-Romantismo: Tempestade e vontade, Iluminismo e

Romantismo): a saída do homem da imaturidade (Kant) em termos da literatura, o romance

de formação52, ou como Haroldo de Campos diz: “Nossa literatura, articulando-se como o

51 W.Reinhardt, “9.1. Eiführung”. In: Id./Peter Waldmann, Nord und Süd in Amerika. Gemeinsamkeiten, Gegensätze, europäischer Hintergrund. Freiburg i. Br.:Rombach 1992: 1107. 52 “A formação do jovem de família burguesa, seu desejo de aperfeiçoamento como individuo, mas também como classe, coincidem historicamente com ‘cidadania’ do gênero romance” (Wilma P.Maas, O Cânone

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Barroco, não teve ‘infância’ (‘in-fans’, o que não fala)”53. Os críticos românticos renovaram

a abordagem da literatura, valorizaram o romance e incluíram a crítica literária na literatura:

a crítica como complementação da obra literária (de arte), como propuseram Schlegel,

Novalis e Schelling. A renovação da literatura, ou em outras palavras, a formação da

literatura – não só da amazônica e da brasileira – foi explicitamente um projeto da

identidade. Como ressalta Homi K. Bhabha, tudo começa no local menor que o regional,

no local mesmo. “O discurso do nacionalismo não é meu interesse principal”, diz ele54; trata-

se da questão complexa de identificação cultural e “de interpelação discursiva que

funcionam em nome ‘do povo’ ou ‘da nação’”. A “construção cultural de nacionalidade [...]

como uma forma de afiliação social e textual” (1998: 199) tem seus motivos históricos —

tanto para o século XIX (Romantismo) quanto para seu momento na primeira metade do

século XX (Modernismo). Pode se constatar – pensando nesta questão complexa de

identificação cultural – que a literatura brasileira se renove a partir da região? Macunaíma e

Riobaldo não são habitantes dos grandes centros culturais, são representantes da Amazônia

e do Sertão. “O projeto dos modernistas de redescobrir os brasis do Brasil, deslocou o eixo

de atenção de Rio/São Paulo para se fazer olhar a todas as regiões. Assim, a Amazônia é

enfatizada na primeira geração; o nordeste, na segunda; o sertão baiano-mineiro, na

terceira. O índio, o mulato e o negro ganham voz, antes negada”55. “Brasil, enquanto

possessão e projeto de Nação”, continua Paulo Nunes, “foi escrito por Portugal [...] ao

‘escrever’ o Brasil, Portugal inscreve-o na aventura das terras a serem exploradas, na sina do

mapa dos domínios” (2000: 316).

José e Miguel, Eutanázio e Alfredo também não são habitantes dos centros, mas a

experiência individual deles, como personagens, envolvem “todo o árduo contar da própria

coletividade”56. A sondagem existencial é mais do que uma introspecção de um

determinado personagem; é a sondagem existencial de um grupo de seres humanos: os

ribeirinhos do interior do Pará, o amazônida, os habitantes da Ilha de Marajó – mas no

modo de apreensão artística de Jurandir, reconhece-se a ligação dialética entre o coletivo e

o individual. O coletivo concretiza-se no indivíduo como indivíduo social e, com isso,

depende do social que é uma questão do poder econômico e político; o abandono do

Mínimo. O Bildungsroman na História da Literatura. São Paulo: EDUSP 2000: 13). F.Schlegel ressaltou a questão da subjetividade na sua resenha do romance de Goethe. 53 H. de Campos, O Seqüestro do Barroco na Formação da Literatura Brasileira: O Caso Gregório de Mattos. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado 1989, p. 64. 54 H.K.Bhabha, O Local da Cultura. Trad. Myriam Ávila et alii. Belo Horizonte: EDUFMG: 1998: 199. 55 Paulo Nunes, “Lusopindoramaruanda ou alguns Tecidos da Terra Brasilis”. In: Estudos (Goiâna) v.27/no.2, 2000: 321. 56 F.Jamson apud H.Bhabha, 1998: 200.

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interior pelo dono do interior que vive na cidade grande, na metrópole57. Macunaíma

tornou-se bandeira da nacionalidade (herói brasileiro) em termos modernistas. A metrópole

denomina o regional; o regionalismo é uma expressão literária de outros “locais de cultura”.

A nação era signo de modernidade “sob o qual diferenças culturais são harmonizadas na

visão ‘horizontal’ da sociedade. A nação revela”, continua Bhabha, “em sua representação

ambivalente e vacilante, uma etnografia de sua própria afirmação de ser a norma da

contemporaneidade social”58. A norma se instala visando o outro que não é ela, a nação, a

metrópole. O personagem como sujeito é apreensível entre o “aqui” e “algum outro lugar”,

“na passagem entre contar/contado [...] e nessa cena dupla a própria condição do saber

cultural é a alienação do sujeito” (1998: 212). O conflito do sujeito coletivo e individual

permanece até no fim século XX (até hoje). Responder a busca da identidade e ao projeto

nacional, significa analisar o passado do Brasil e da Amazônia sob outras vias.

No século XIX com o movimento do Romantismo, aparece e articula-se o sujeito desde

busca em termos políticos e filosóficos. O Romantismo na Amazônia atravessa uma longa

caminhada histórica: desde o poema épico de Wilkens (1789/1815), a fundação cultural e

histórica da região, passando por Aranha (postum 1855), adepto de um Romantismo escolar,

Sousândrade (1858, 1874), a expressão continental, Lourenço Araújo Amazonas e seu

romance histórico (1857) ao Inglês de Sousa e seus romances de transição e expressão

realista-naturalista (1875 e 1876). No Brasil, mas não só no Brasil, esta auto-afirmação em

termos de literatura caracteriza-se por três momentos: a inovação lingüística (português,

brasileiro, tupi-guarani, etc.), a temática realista “polifônica” que da voz aos demais

vencidos e agora sujeitos da história (indígenas, escravos e caboclos) e a questão do gênero

em jogo (a poesia, a épica; literatura ficcional e literatura dos viajantes). Enquanto as

fronteiras se dissolvam, a essência da literatura expressa marcas e contornos mais nítidos.

Fontes das fotografias, Mapas e Ilustrações:

ALBUQUERQUE, Manoel Maurício et alii. Atlas Histórico Escola. Rio de Janeiro: MEC 1991 (8ª ed.).

57 Cf. G.K.Pressler, “Um Metadiscurso Literário ... sobre a Arte de Escrever e Narrar, incluindo um Conto sobre uma Pobrezinha Nordestina perdida e morta numa Grande Cidade do Sudeste:A Hora da Estrela, de Clarice Lispector”. In: Revista USP (São Paulo) no. 46/2000, pp. 80-87. 58 1998: 212. Cf. Clifford Geertz, O Saber Local. Novos Ensaios em Antropologia Interpretativa. Trad. Vera Mello Joscelyne. Petrópolis/RJ: Vozes 2006 (8ª ed., primeira edição 1997; original de 1983). Neste contexto, cabe como comprovação empírica o depoimento de Marcos Schechtman, diretor das gravações na Amazônia da minisérie da TV GLOBO, Amazônia — De Galvez a Chico Mendes (2006/2007): “Gravamos o máximo que podíamos lá, para ter o cheiro e o sabor locais. A viagem foi fundamental para entendermos a Amazônia, que tem um outro código, é outro universo cultural” (Lílian Fernandes, “História da Difícil Conquista do Acre”. In: O Liberal (Belém), 31/12/2006, p. 7 (“Revista da TV”).

Page 25: Romantismo na Amazônia?

25

CUNHA, Conceição/NASCIMENTO, Daria Cardoso (Orgs.). 500 Anos do Brasil sob a Ótica da Cartografia. Salvador/Bahia: SEI/SBC [2000].

DROULERS, Martine. L´Amazonie. Paris: Nathan 1995 (Géographie D´Aujourd´Hui). LUCARELLI, Franscesco. Ai Confini della Realtá. Il Nord dell’Amazzonia. O Corredor de Biodiversidade. Napoli:

Giannini 2005. THÉRY, Hervé. Environnement et Développement en Amazonie Brésilienne. Cartographie d’ edition de Pascale

Maurence. Paris: Bellin 1997.