riscos rebeldes: notas etnogrÁficas e criminolÓgicas sobre a pichaÇÃo

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  • 8/15/2019 RISCOS REBELDES: NOTAS ETNOGRÁFICAS E CRIMINOLÓGICAS SOBRE A PICHAÇÃO

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    PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SULFACULDADE DE DIREITO

    PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS CRIMINAIS

    MESTRADO EM CIÊNCIAS CRIMINAIS

    FERNANDO PICCOLI

    RISCOS REBELDES: NOTAS ETNOGRÁFICAS E CRIMINOLÓGICAS SOBRE APICHAÇÃO

    Orientador: Prof. Dr. Ney Fayet de Souza Júnior

    PORTO ALEGRE

    2014

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    FERNANDO PICCOLI

    RISCOS REBELDES: NOTAS ETNOGRÁFICAS E CRIMINOLÓGICAS SOBRE APICHAÇÃO

    Dissertação de Mestrado apresentada junto aoPrograma de Pós-Graduação em CiênciasCriminais (Mestrado e Doutorado) da PontifíciaUniversidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, como requisito parcial para a obtençãodo título de Mestre em Ciências Criminais.

    Área de Concentração: Sistema Penal eViolência Linha de Pesquisa: Violência, Crime eSegurança Pública

    Orientador: Prof. Dr. Ney Fayet de Souza Júnior

    PORTO ALEGRE

    2014

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    FERNANDO PICCOLI

    RISCOS REBELDES: NOTAS ETNOGRÁFICAS E CRIMINOLÓGICAS SOBRE APICHAÇÃO

    Dissertação de Mestrado apresentada junto aoPrograma de Pós-Graduação em CiênciasCriminais (Mestrado e Doutorado) da PontifíciaUniversidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, como requisito parcial para a obtençãodo Título de Mestre em Ciências Criminais.

    Aprovado em _____ de ____________________ de 2014.

    Banca Examinadora:

    _______________________________________Prof. Dr. Ney Fayet de Souza Júnior

    Orientador

    _______________________________________Prof. Dr. Alvaro Filipe Oxley da Rocha

    _______________________________________Prof. Dr. Juremir Machado da Silva

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    Aos manos Luk e Kavera,e a todos aqueles jovens que conheci na incompreendida arte da pichação, com meu desejode que mais pessoas escutem e leiam o que vocês querem dizer.

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    AGRADECIMENTOS

    Não há dúvida: concluir um mestrado é mais que uma simples etapa. É uma vitória.Toda vitória depende de uma série de fatores, tangíveis e intangíveis, um pouco de acaso, um pouco de sorte, mas jamais existiria sem algo crucial: o fator humano. A esse é precisoagradecer, e muito.

    Tantas pessoas passaram pela minha vida e construíram minha identidade e muito doque sei hoje é reflexo destas pessoas. A mais importante delas, sem dúvida, é minhaMãe.Maria Cecília, tu mãe da minha personalidade, da minha carreira, e eu sinto que agradecer éalgo tão ínfimo perto de tamanha dedicação, força e vontade, qualidades ímpares no mundo.Obrigado por tudo. Vou sempre reconhecer e ser eternamente grato por cada semente que tu plantaste em mim.

    Do lado da minha mãe, meus amigos, como parte da minha família, representaram um papel gigantesco.

    João Nunes Junior, qualquer tentativa de definir essa amizade aqui peca pelageneralização. Deixo as palavras pra ti, que sabe exatamente como brincar com elas. Só tenho

    a agradecer por tanto tempo de amizade, por ter sido uma das primeiras pessoas, sem dúvida,que instigou um pensamento crítico em mim, ainda nos idos tempos da faculdade de Direito.Obrigado pelo convívio diário, matinal, vespertino e noturno, pela companhia na(s) luta(s), por dividir tua inteligência e inspiração comigo.

    Rafael Zottis, meu irmão mais velho dos dois, obrigado pelo apoio, pela companhia, parceria e dedicação na vida profissional, pela amizade que perdura por bons anos. Crescemos juntos, e espero que continuemos crescendo sempre.

    Ney Fayet Júnior, por essa parceria que completa 3 conclusões de curso. Minhainiciação e amadurecimento acadêmico devem muito a ti.

    A todos os meus amigos, meus tios, tias, primo e primas, cada um de vocês sabe o papel que tem na minha vida e também na minha carreira. Aos amigos mais próximos, aosincríveis amigos que o teatro me deu, aos muitos amigos que conheci em 2013, muitoobrigado.

    Aos professores da PUCRS e do PPGCCRIM que contribuíram para o

    amadurecimento das minhas ideias e de várias formas contribuíram para este trabalho, desde afaculdade, passando pela especialização até o mestrado. A todos os funcionários que fazem

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    parte do programa e contribuem para a qualidade do Mestrado e Doutorado em CiênciasCriminais.

    Por fim, mas não menos importante, a todos os jovens que conheci nas madrugadas de

    2013 em busca de algumas palavras pra demonstrar, dentro de um ambiente acadêmico e tãohermético, o que vocês querem dizer quando esperam horas no frio pelo momento certo paraescalar um prédio e escrever o nome de vocês lá no alto com tinta preta fosca. Esse trabalhonão seria nada sem vocês.

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    Pa nóis é arte, pa sociedade nãoCorrer faz parte, rapaz, eu vou sagaz na missão,

    Amante da pixação, nos fone tocando rap, Incomodando os bico, estico nos fat cap,Ó só prefeito como a cidade tá decorada,

    Invasão do escalador, o bonde da madrugada, De rolo ou lata na mão, no apetite não traio, Respeito o samurai que sobe pelo para-raio,

    A tinta fede, pa nóis já é pique colônia, Foscando no arregaço, Picasso da Babilônia,

    Dizem que é crime, que canto apologia,

    Pra mim é sentimento em cada caligrafia, Dedo sujo veloz, a mil, mano como bala,Um monte na city tenta, só quem representa que escala,

    Escritura no beiral, fiz meu nome ter moral,O sistema não segura essa cultura marginal

    Nocivo Shomon – Pixadores

    Some people become cops because they want to make the world a better place. Some peoplebecome vandals because they want to make the world a betterlooking place.

    Banksy

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    RESUMO

    Este trabalho tem ênfase principal no fenômeno da pichação enquanto cultura juvenilmarginalizada e desprezada pela sociedade de forma geral. O principal objetivo é o estudodeste fenômeno a partir dos próprios envolvidos, os pichadores, valendo-se do métodoetnográfico de pesquisa. A partir de uma análise que foca nas leituras criminológicas

    contemporâneas, na criminologia cultural e nos estudos sobre desvio e criminalização das práticas culturais e da vida cotidiana, o que esta pesquisa propõe é uma visão cada vez maisabrangente sobre as artes urbanas perseguidas e criminalizadas pelas agências de controle e pela mídia de massa. O estudo se desenvolve em quatro capítulos, partindo de uma análisemais geral a respeito do que se espera de uma criminologia nos dias de hoje, seguido por umsegundo capítulo que aborda especificamente os protagonistas da história e o fenômeno do graffitie da pichação. O terceiro capítulo vai refletir diretamente sobre a criminalização dasartes de ruas e como as representações sociais acabaram por condenar a prática da pichação,tornando isso um crime e fazendo dos pichadores os vilões. Ao final, fruto da pesquisaetnográfica realizada no ano de 2013 em Porto Alegre, são trazidas as próprias impressões dos pichadores sobre seus atos e relatos do convívio direto do autor com estes jovens.

    Palavras-chave: Criminologia cultural; crimes de estilo; criminologia juvenil; arte urbana;graffiti; pichação.

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    ABSTRACT

    This work has major emphasis on the phenomenon of pichação as marginalized youth cultureand despised by society in general. The main objective is the study of this phenomenon fromown involved, taggers, drawing on ethnographic research method. From an analysis thatfocuses on contemporary criminological readings in cultural studies in criminology anddeviance and criminality of cultural practices and everyday life, what this research suggests isan increasingly comprehensive view of the urban arts persecuted and criminalized by controland the mass media agencies. The study unfolds in four chapters, starting from a more generalanalysis about what is expected of a Criminology today, followed by a second chapter thatspecifically addresses the protagonists of the story and the phenomenon of pichação andgraffiti. The third chapter will reflect directly on the criminalization of street arts and howsocial representations eventually condemn the practice of pichação, making it a crime andmaking the villains of taggers. At the end, the result of ethnographic research conducted in2013 in Porto Alegre, are brought own impressions of the taggers on their actions and reportsof direct contact with these young.

    Key words: Cultural criminology; crimes of style; youth criminology; street art; graffiti; pichação.

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    SUMÁRIO

    Mise-en-scène: introdução....................................................................................................... 10Capítulo 1 - Ato 1: Apresentação: os muros das cidades têm muito a nos ensinar ................. 14

    1.1 Contornos de uma criminologia extramuros, uma criminologia que vê e repara ........... 141.2 A cidade como fonte inesgotável de experiência antropológica ..................................... 231.3 Imagem e imaginário da violência e do desvio ............................................................... 27

    Capítulo 2 - Ato 2: Protagonistas: quem usa a tinta como forma de expressão ...................... 342.1 Como e porque ainda falar em desvio............................................................................. 342.2 Pichação, grafitti e apropriação do espaço visual urbano ............................................... 372.3 Jovens, contracultura e subculturas juvenis: da busca por identidade a adrenalina das práticas desviantes ................................................................................................................ 44

    Capítulo 3 - Ato 3: Conflito: criminalização e representação social das práticas culturais:crimes de estilo......................................................................................................................... 53

    3.1 A criminalização das artes que riscam e desenham nos muros da cidade ...................... 533.2 A representação social e estigmatização do pichador ..................................................... 59

    Capítulo 4 – Ato 4: Encerramento – Com a palavra, eles: por mais diálogos e menosmonólogos................................................................................................................................. 664.1 O primeiro contato e as primeiras lições das madrugadas .............................................. 664.2 A manutenção do contato: primeiros rolês, fotografia, noites de insônia ....................... 714.3 A consolidação como parte do grupo: lições e aprendizados das madrugadas deadrenalina e spray ................................................................................................................. 80

    Epílogo: considerações finais .................................................................................................. 87Referências Bibliográficas ........................................................................................................ 92

    Anexo ....................................................................................................................................... 97

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    M ise-en-scène: intr odução

    Este trabalho é, em grande parte, fruto de algumas madrugadas frias nas ruas de Porto

    Alegre. Como diz a música do grupo derap carioca Quinto Andar: Por isso que eu amo amadrugada / Por que quando o sol subiu tudo chega e a paz acaba.

    O tema da pichação foi uma escolha que veio da vontade de trabalhar com jovens, mas jovens que a sociedade quase não vê, mas fala muito sobre eles. A primeira ideia foi abordar otema das gangues e bondes juvenis, descartada após algumas pesquisas e contatos, queindicavam ter quase entrado em extinção, já há alguns anos, na cidade de Porto Alegre. Deforma oposta, a pichação cresce exponencialmente, ganha mais espaço no visual urbano, e,consequentemente, na mídia. Foi então que surgiu o encanto por esse mundo tão curioso edesconhecido daqueles que saem à noite sem serem visto e deixam suas marcas por todos oscantos, mudando constantemente a paisagem dos grandes centros urbanos.

    O primeiro capítulo é o ato necessário. Ele apresenta as bases criminológicas,sociológicas e antropológicas que deram origem ao trabalho. Nele, eu apresento os principaisautores que me inspiraram e construíram minhas referências teóricas. O trabalho é originário

    desse arcabouço teórico e de todas as leituras que fiz nos últimos anos. Primeiramente,apresento uma proposta de Criminologia aberta ao diálogo, com enfoque transdisciplinar,tendo como principais referências os autores da Criminologia pós-crítica, e a CriminologiaCultural. Logo em seguida, mesclam-se autores da antropologia, que serviram de suporte paraa pesquisa etnográfica, e também leituras de teoria de imagem, e imaginário, que vão serinterligadas posteriormente com o ponto que versa sobre as representações sociais do crime edo desvio.

    O segundo ato apresenta uma literatura específica sobre manifestações culturais juvenis, pichação e graffiti. É fato um apanhado histórico, e explicadas as principaiscaracterísticas dessas manifestações culturais. Vai a partir deste capítulo que vão surgir as primeiras questões que levaram à pesquisa de campo: quem são os pichadores? De onde elesvêm? O que pensam sobre suas atividades? Esse capítulo ainda é primordialmente teórico eapresenta uma visão geral sobre o desvio, sobre a apropriação de espaços urbanos, subculturas juvenis, entre outros temas relacionados dentro da sociologia e Criminologia.

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    Na terceira parte, ou terceiro ato, apresenta-se o conflito mais especificamente, einteressa aqui saber como as representações sociais acabaram por condenar a prática da pichação, tornando isso um crime e fazendo dos pichadores os vilões. A criminologia cultural

    crítica é a raiz mais forte deste capítulo, em cujo ponto o livro Crimes de Estilo, do sociólogoamericano Jeff Ferrell, serviu como principal referência. Apresento, neste capítulo,referenciais obtidos direto de reportagens dos veículos de imprensa, e algo que apresentetambém a visão das agências de controle estatal em relação aos pichadores, que vai servircomo pano de fundo e comparativo para o quarto ato, onde vou apresentar a autoimagem dogrupo pesquisado.

    No quarto ato, que encerra este estudo, trago a experiência das ruas. Por volta de 8meses de convívio com jovens pichadores de Porto Alegre, ouvi relatos, fiz muitas fotos etroquei ideias que enriqueceram pessoalmente. É a parte mais importante do meu trabalho,sem a qual, pra mim, não faria sentido. Para falar sobre pichação era preciso ir as ruas eliteralmente sujar as mãos de tinta. A maioria das pessoas nunca viu um pichador atuando,quanto mais teve uma conversa com um. Eu tive com vários, e sou eternamente grato a eles pela disposição e pela receptividade. Desde o início queria fugir da ideia de objeto de pesquisa. Os pichadores seriam meus amigos, ou nada feito. Não que eu tivesse que concordare assinar embaixo de tudo que falavam ou faziam. Mas a ideia de distanciamento foidescartada logo no início da pesquisa.

    O título do trabalho foi livremente inspirado na música Vício Rebelde, do MC Leonel. Destruidores do visual, amante do rabisco, fazendo risco ao mesmo tempo correndo risco.Mas, claro que pichação não é apenas mais um monte de riscos indecifráveis. Foi preciso partir dessa premissa para que se pudesse começar um trabalho sobre pichação. O

    esvaziamento de significado é apenas mais um ato violento, comum no discurso das agênciasde controle e nos veículos de imprensa. Era necessário ir além, sair do senso comum e pesquisar diretamente na fonte tudo que eu pudesse aprender sobre esta prática.

    Antes de iniciar as pesquisas, uma coisa sempre me intrigou na pichação: a genteconvive diariamente com ela no visual das cidades, entretanto dificilmente alguém conseguerelatar como ela surgiu. Na maior parte das vezes, ninguém vê: a ação dos pichadores ésorrateira como ratos (ou aranhas) que buscam exatamente o seu objetivo; e de repente

    somem. Era preciso vencer esse desafio, e encontrar essas pessoas, já que sofrem com ummanto de invisibilidade no dia-a-dia, e procuram não ser vistas à noite.

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    A pichação tem seu código próprio de conduta, sua estética, caligrafia e vocabulários próprios. É preciso entender como se dá seu funcionamento, e quem está por detrás daquelasletras muitas vezes ininteligíveis. Dentro dela existe uma gama surpreendente de diversidade,

    de significados, de subjetividades, de histórias de vida, e principalmente, de seres humanos.Seu preto e branco é mais colorido que muitosoutdoorsde marca de refrigerante. Aliás,famosas marcas de refrigerante têm usado a grafia da pichação e do graffiti em suas peças publicitárias. Um sinal.

    Desde o início deixo exposto o real motivo e objetivo desse trabalho: falar sobre pichação a partir de uma ótica invertida. Quem escreve é o estudante de mestrado, formadoem Direito, dentro de um ambiente acadêmico, a partir de uma linguagem técnica, ligada ateorias e inspirações criminológicas. Quem fala, ao final, são os próprios pichadores, emrelatos que tentam a maior verossimilhança possível, mesmo sabendo que muitas ideias emuitas falas despareceram na neblina das madrugadas, ou vão ficar apenas na memória.

    Decidi também fazê-lo em forma de cenas e atos em homenagem à minha formaçãoem teatro e pela busca por uma mais interessante de exposição de uma dissertação demestrado. Uma peça de teatro, um filme, um documentário, uma sessão de fotos, sempre me

    parecerão mais interessantes que um livro de capa em tom pastel com um título exaustivo.Enquanto isso não acontece,versatilizamos por aqui.

    Por que não conversei com autoridades, moradores dos prédios pichados, lojistas quetiveram sua fachada pichada? Porque a opinião deles é majoritária, e Nelson Rodrigues jádizia que toda unanimidade é burra. É preciso ouvir aqueles que acabam com a unanimidade,se quisermos tentar entender alguma coisa sobre nossa sociedade. A opinião das pessoas queabominam a pichação pode ser vista diariamente nos jornais:Os prédios tinham que passar

    um tipo de óleo para que esses inúteis resvalassem e caíssem para a morte, é apenas um dosmuitos comentários de mesmo tom violento feitos em uma reportagem sobre um pichador quefoi flagrado 11 vezes pela polícia enquanto pichava prédios em Porto Alegre.1

    É possível relacionar as teorias acadêmicas com a realidade das ruas. Apesar de, desdeo projeto de pesquisa, ter sido esse o objetivo deste trabalho, ao final me dei conta que nãoexiste nada melhor que a abertura. Por isso decidi que nenhum referencial teórico entraria noquarto capítulo, apenas relatos das madrugadas derolê e fotos (todas as imagens do trabalho

    1 Fonte: Acesso em: 20 jan. 2014.

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    Capítu lo 1 - Ato 1: Apresentação: os muros das cidades têm muito a nos ensinar

    1.1 Contornos de uma criminologia extramuros, uma criminologia que vê e repara

    As intervenções urbanas são capazes de fazer revelações mais precisas (e preciosas)sobre nós e a nossa sociedade do que muitos tomos empoeirados em bibliotecas. A paisagemda cidade é, por si só, reveladora. Revela sentimentos, reflete condições sociais, é uma tela em branco, em constante mutação e palco das mais diversas criações. Criações acidentais ouincidentais. Não importa.Os muros da cidade têm muito a nos ensinar: eles transbordamteoria. Por eles passam protagonistas e antagonistas. Histórias de vida e morte. De crime,

    desvio, conflito, violência. De medo. A rua tem vida, e tem algo que ela tá falando2.

    Por isso, esta pesquisa foi feita de fora pra dentro dos muros e das construçõesurbanas. A preocupação, desde o início deste estudo, foi de ouvir mais do que falar . E acimade tudo, ouvir quem realmente interessa ser ouvido, dando voz aos protagonistas,normalmente relegados injustamente a meros coadjuvantes das linhas que versam sobrenossos sintomas sociais. Portanto, cabe salientar desde o início, que sepulto qualquer pretensão de neutralidade. Não, pesquisadores não são neutros. Em verdade, ninguém éneutro. A neutralidade é uma pretensão científica, mas impossível de ser atingida. Somos,naturalmente, tendenciosos. Os livros que escolhi, as pessoas que ouvi, enfim, as escolhas quefiz, tudo me tira de uma postura neutra e me põe a pensar mais para um lado do que para outro(se é que podemos simplificar o pensamento dividindo-o em dois lados). O trabalho,consequentemente, não é neutro, nem asséptica, oo contrário, possui o máximo de vida que se poderia colocar em poucas folhas de papel.

    Voltando. A metáfora da construção metodológica“extramuros” deste estudo-ensaioreflete a forma que a criminologia tomou nos últimos 40 anos. É possível perceber umfenômeno na criminologia que abdica dos muros das Universidades, saindo da academia eindo paras as ruas. A criminologia solta suas mãos do Direito Penal e do Processo Penal eagora deseja ser livre, caminhar com as próprias pernas. Quer ser uma disciplina autônoma enão uma auxiliar de outras áreas. A despeito de toda discussão quanto à autonomia da“ciência criminológica”, o que se propõe, e o que realmente se considera a melhor opçãodiante da complexidade dos fenômenos contemporâneos é a abertura da criminologia para

    2 Trecho da música “Pixar é Humano”, de autoria do rapper Grilo 13.

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    outros saberes. Isso porque, se a criminologia pretende continuar produzindo trabalhos damelhor qualidade, segundo David Garland (2009, p. 123), ela necessitada manter-se mais“dialógica do que separada, e mais excêntrica do que fechada em si mesma”: “não é de uma

    criminologia autônoma que precisamos, é de uma criminologia expansiva apta a abraçar eenvolver um mundo intelectual que às vezes começa onde a criminologia independentegostaria de sair”3.

    Bom, e é justamente pela porta por onde a criminologia independente ou autônoma pretende sair que entra a pesquisa. Aqui a sociologia do desvio dialoga com a antropologiaurbana, que dialoga com a arte e, por fim, vai desembocar em algo próximo de umaideia decriminologia, mas que, na verdade, nada mais é que a busca por significados sobreexperiências desviantes e criminalizadas. Mais uma leitura da vida que nos cerca diariamente(e da qual é impossível dissociarmo-nos).

    Talvez a renúncia ao discurso privilegiado das ciências possibilite finalmente aconstrução de campo de saber verdadeiramente interdisciplinar, tendente atransdisciplinaridade, capacitado a estabelecer filtros às tendências autoritáriassempre potencializadas quando se está a portear nas entranhas dos poderes punitivos. (CARVALHO, 2008, p. 154)

    Daí decorre toda a necessidade de abertura transdisciplinar dos estudos

    criminológicos, por meio de uma “retomada da narratividade, em contraposição ao pensamento objetivista, calculador e técnico daScuola Positivae da Criminologia etiológicaem geral”, “como uma das múltiplas alternativas para tentarcompreender (no sentidohermenêutico) o Outro na sua fala, ainda que essa fala se expresse por meio da violência”.(PANDOLFO; PINTO NETO, 2009, p. 110) A proposta dos autores Alexandre CostiPandolfo e Moysés Pinto Neto (a qual me filio) instiga a

    [...] transformar a segura posição do criminólogo tradicional, que emite um discurso

    representacional baseado em causas para o agir do Outro, em um local de escuta, naqual ele é obrigado a tratar o Outro como sujeito, ouvir seu ato, ainda que ilegítimodo ponto de vista da legitimidade jurídico-política (cabe ao Direito Penal e à PolíticaCriminal, e não à Criminologia, ponderar e julgar desse ângulo). (PANDOLFO;PINTO NETO, 2009, p. 110)

    E é justamente seguindo essa mesma linha que Hélio R. S. Silva (2007, p. 30) introduzsua etnografia sobre Travestis realizada no Rio de Janeiro:

    A intenção aqui não foi a de tentar o panorama, para extrair regularidades a partir dacomparação. O panorama perde o contexto, o detalhe e a circunstância. E sãoexatamente a circunstância miúda, o pequeno detalhe e o contexto as instânciashumanizadoras por excelência contra todas as predisposições preconceituosas e

    3 As traduções deste trabalho foram feitas livremente.

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    etnocêntricas, sempre generalizantes, generalizadoras e generalistas. É, portanto, aimersão no detalhe que permite o conhecimento do outro.

    Dentro da criminologia, inicio o diálogo a partir de uma criminologia cultural. É

    provável que a criminologia cultural tenha sido uma das linhas pioneiras de estudoscriminológicos transdisciplinares. O que ela procura é justamente o foco principal destetrabalho:aproximaçãoe compreensãodos significados das “experiências desviantes para ossujeitos nela implicados” (CARVALHO; LINCK; MAYORA; PINTO NETO, 2011, p. 175).

    Entendo que, ao estudar o fenômeno do desvio e criminalização de práticas desviantes,fenômenos tão imprecisos e longe de qualquer possibilidade de conceituação e explicação, as balizas da Criminologia Cultural, proposta por Jeff Ferrel, Keith Hayward e Jock Young

    (2008), pode ser a melhor opção quando se busca uma criminologia aberta a todos os olhares.Umacriminologia extramuros.

    Eis o grande desafio: colocar-se frente a frente com asmanifestações culturais einterpretar todos seus sentidos e significados, a despeito dos olhares excludentes e“criminalizadores”.4

    Em termos práticos, a Criminologia Cultural analisa o espaço urbano como reprodutor

    de um ambiente de violência, de exclusão, da mesma forma em que está preocupada com oaumento da “vigilância” nas grandes cidades, o aumento dacultura do controle (GARLAND,1955). Sua forma de pesquisar e estudar tais fenômenos é predominantementeinterdisciplinar 5 e vale-se de técnicas de pesquisa etnográficas, emprestadas da antropologiacultural, com as quais o pesquisador vai ao encontro de seu objeto de pesquisa, procurandointeração e entendimento da sua realidade, o que influenciou diretamente a metodologia de pesquisa empregada neste estudo. A Criminologia Cultural prevê uma ligação mais estreita

    entre Criminologia e Antropologia Cultural, no momento em que observa e descreve ações4 Desde já aderimos a proposta feita por Jeff Ferrell em seuCrimes of Style(1993, p. 192), sobre o papel dacriminologia anarquista de enfrentamento com os abusos cometidos pelas autoridades e pelos empreendedoresmorais: “ As a part of this dismantling process, anarchist criminologists must actively confront and oppose moralentrepreneurs. Although at times laughable in its blundering intensity, the work of moral entrepreneurs cannotbe ignored or discounted, since it stands in direct conflict with the progressive goals of anarchist criminology.While anarchist criminologists attempt to dismantle the machinery of law, moral entrepreneurs work to createnew laws and new crimes; while anarchist criminologists work to undercut legal authority, moral entrepreneursexpand the scope, structure, and legitimacy of legality.” 5 Segundo Keith Hayward: “ No surprise, then, that cultural criminology isstridently interdisciplinary,in terf acing not just with criminology, sociology and crimi nal/youth j ustice studies , but with perspectives and

    methodologies drawn from inter alia cultural, media and urban studies, philosophy, postmodern critical theory,cultural geogra phy, anthropology, social movement studies and other ‘action’ .” Disponível em. Acesso em 27/11/2012.

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    Se podes ver, repara.” (SARAMAGO, 1995). A lição de Saramago é definitiva,somos cegosque veem, sofremos de cegueira mental:

    O egoísmo pessoal, o comodismo, a falta de generosidade, as pequenas cobardias doquotidiano, tudo isto contribui para essa perniciosa forma de cegueira mental queconsiste em estar no mundo e não ver o mundo, ou só ver dele o que, em cadamomento, for susceptível de servir os nossos interesses. (SARAMAGO, 2009)

    Em outras palavras, também podemos dizer quenosso olhar é educado,isto é, quandoolhamos, vemos o que aprendemos a ver, e não o que os nossos olhos realmente mostram. Nossos sentidos se complementam, e a visão é complementada e interpretada a partir de todosos conceitos que temos no nosso cérebro: pré-conceitos. Conceitos formados de acordo com oaprendizado adquirido desde a infância. As ruas da cidade estão repletas por uma multidão,

    envolta em diversos códigos de comportamento e códigos visuais que foram aprendidos ereaprendidos justamente para que essa multidão pudesse conviver “com prazer eentendimento razoável”.Segundo Celso Athayde, MV Bill e Luiz Eduardo Soares, cada pessoa inserida na grande multidão, tem o seu modo de observar e interpretar o mundo à suavolta. O pedestre quer chegar ao seu destino. O camelô procura seus clientes. O policial travauma busca pela sua “presa”. Um homem parado no semáforo vê a cidadecaótica à sua frente,de dentro do carro. Um menino vê a mesma cidade com um ar de descoberta, de curiosidade e

    alegria. Todos dividem e veem a mesma realidade,mas com olhos distintos e diferentes focosde atenção. O que o observador vê, o que retém na memória e o que reorganiza em umaimagem final, depende mais da sua visão do que a imagem produzida pelo que está sendoobservado.O foco não está no objeto: “o decisivo, no olhar, é arelação” (ATHAYDE, MVBILL, SOARES, 2005, p. 171).

    Uma das formas mais eficientes de tornar alguém invisível é projetar sobre ele ou elaum estigma, um preconceito.(ATHAYDE, MV BILL, SOARES, 2005, p. 175) O preconceitoé uma forma de gerar exclusão. Quando nosso olhar “educado” lança sobre o outro todos os pré-conceitos que estão enraizados na nossa mente, dando forma ao outro a partir do nossoolhar, transformamos a pessoa que vemos em um simples “indivíduo”: “tudo oque nela ésingular desaparece” (ATHAYDE, MV BILL, SOARES, 2005, p. 175). Também é possívelinterpretar essa relação como uma forma deetnocentrismo. Segundo Eduardo GuimarãesRocha (1995, p. 15):“aqueles que são diferentes do grupo do eu – os diversos ‘outros’ destemundo – por não poderem dizer algo de si mesmos, acabam representados pela ótica

    etnocêntrica e segundo as dinâmicas ideológicas de determinados momentos”.

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    A subjetividade pode ser facilmente desconstruída pelo estereótipo, peloetnocentrismo. E talvez não haja nada mais comum na nossa sociedade: o “inimigo”, o“marginal”, o “vândalo”, o “pobre”, o “burguês”, o “político corrupto”, o “viciado”, o

    “alcoólatra”, o “radical”, o “deficiente”. Todos os rótulos trazidos pelo nosso olhar são umaforma de negar a alteridade, transformando as pessoas em simples peças de um jogo que anossa mente cria. Todas as atitudes das pessoas se tornam previsíveis a partir do momento quecriamos sobre elas um estereótipo, por exemplo: “o que mais poderíamos esperar de um político senão isso que ele fez, roubando dinheiro dos cofres públicos?”; “ele é viciado, nãome admir o que comece a roubar para comprar as drogas que usa.”; “esses riscos na parede,sem nenhum sentido, isso é vandalismo puro, a pessoa que faz isso tem que ser presa”.

    Segundo Luiz Eduardo Soares, Celso Athayde e MV Bill, a partir do momento em que podemos prever o comportamento daquele que estigmatizamos como, por exemplo,“perigoso”, também tomamos a atitude de prevenção contra as suas reações previsíveis. “[...]Existem diversos mecanismos de reforço para o seu estilo de vida através de representaçõesnegativas do ‘outro’”, nas palavras de Eduardo Guimarães Rocha (1994, p. 15). Estamossempre atentos à possibilidade de sofrermos uma agressão desse “moleque”. É preciso perceber, no entanto, que é esse preconceito que acaba gerando uma violência ainda maior – aexclusão. É a profecia auto-realizadora,o que acontece, segundo Howard Becker (2008, p.44), quando tratamos“uma pessoa como se ela fosse em geral, e não em particular. Ela põeem movimento vários mecanismos que conspiram para moldar a pessoa segundo a imagemque os outros têm dela”.

    O preconceitonos cega, de forma que passamos a ver o outro como “uma imagemcaricata”. Só percebemos as atitudes do outro que queremos perceber, aquelas que já

    prevíamos; as demais são esquecidas, não damos atenção a elas. O exemplo disso é alguémque vê uma pessoa somente como “usuária de drogas”, e a partir daí, só consegue percebernela atitudes negativas relativas a esse estereótipo: não importa mais nenhuma qualidade da pessoa. O preconceito provoca invisibilidade (ATHAYDE, MV Bill, SOARES, 2005, p. 176-7).

    A indiferença também provoca invisibilidade. Fazendo uso de um método ardiloso, àsvezes sequer criamos estereótipos. Simplesmente ignoramos a existência de certas pessoas. É

    sabido que nossas cidades contam com muitos moradores de rua, de crianças a idosos. Mas,enquanto nos movemos no meio da multidão, sequer os vemos. A experiência proposta pelos

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    autores citados permite perceber o quanto somos engenhosos em criar indiferença. Ao voltarde uma viagem ao exterior, especialmente a um país mais rico que o Brasil ou menos injusto eonde não existem tantas pessoas morando nas ruas, tendemos a reparar mais na quantidade de

    crianças e adolescentes que vivem nas ruas das nossas cidades. Mas à medida que o tempo passa, nossa percepção vai diminuindo gradativamente, até voltarmos ao patamar anterior: osmoradores de rua se tornaram, para nós, novamente invisíveis. No entanto, como dizem osautores deCabeça de Porco, eles sempre estiveram e continuam estando lá (ATHAYDE, MVBILL, SOARES, 2005, p. 177).

    Essa ferramenta que a nossa mente usa, criando a invisibilidade, nos protege, nos livraque sofrer com a dor do outro. Ao colocar essas pessoas excluídas sob o manto dainvisibilidade, abstemo-nos da responsabilidade sobre elas. E poderemos, assim, viver a nossavida de forma mais tranquila. É um mecanismo adaptativo à realidade social que produzmiséria e marginalização.E provoca o que Jock Young chama de “demonização”, a partir dacriação de essencialismos, que gera como consequência soluções falaciosas para os nossos problemas sociais, onde nós lavamos as mãos da responsabilidade por eles:

    A demonização é importante porque permite que os problemas da sociedade sejamcolocados nos ombros dos “outros”, em geral percebidos como situados na

    “margem” da sociedade. Ocorre aqui a inversão costumeira da realidade causal: emvez de reconhecer que temos problemas na sociedade por causa por causa do núcleo básico de contradições na ordem social, afirma que todos os problemas da sociedadesão devidos aos próprios problemas. Basta livrar-se dos problemas e a sociedadeestará,ipso facto, livre deles! Assim, em vez de sugerir, por exemplo, que grande parte do uso deletério de alto risco de drogas é causado por problemas dedesigualdade e exclusão, sugere-se que, se nos livrarmos deste uso de drogas (“diganão”, trancafiem os traficantes), não teremos mais nenhum problema.[...] Assim, ocrime é a moeda forte desta demonização. Isto é, a imputação da criminalidade aooutro desviante é uma parte necessária da exclusão. (YOUNG, 2002, p. 165)

    É preciso, sem dúvida, procurar despir-se dos preconceitos, com uma forma que dê

    visibilidade ao excluído, marginalizado e demonizado, objetivo principal deste estudo daqui pra frente. Como fazer com que a pesquisa criminológica afaste seus fantasmas e saia para arua? A melhor forma (assim entendo) é como afirma David Brotherton (2008), sobre otrabalho com gangues e agrupamentos juvenis: “é preciso envolver -se com esses grupos,enxergá-los por diferentes ângulos, colocá-los em um contexto histórico, olhar para suaevolução no tempo e avaliar como mudam ou se não mudam.” Não há outro jeito senão ainserção no ambiente e no convívio com os grupos e suas manifestações culturais a serem pesquisadas. A importância da etnografia em criminologia, principalmente pós-crítica, éresumida por Jeff Ferrell (2010, p. 354) da seguinte forma:

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    Por definição, tais estudos [etnografias] incorporam o significado cultural das pessoas estudadas, e assim afirmam a sua complexa humanidade que, de outraforma, são reduzidas a resíduos estatísticos e às perigosas ambiguidades do crime edo controle social que desaparecem com a pseudocerteza da ‘ciência social’.

    Nas palavras das antropólogas Ana Luiza Carvalho da Rocha e Cornelia Eckert (2008, p. 9):

    A pesquisa etnográfica, constituindo-se no exercício do olhar (ver) e do escutar(ouvir), impõe ao pesquisador ou à pesquisadora um deslocamento de sua própriacultura para se situar no interior do fenômeno por ele ou por ela observado, atravésda sua participação efetiva nas formas de sociabilidade por meio das quais arealidade investigada se lhe apresenta.8

    O trabalho de ir a campo, a descrição precisa da realidade e da cultura sobre a qual a pesquisa quis se debruçar constitui elemento essencial do ato, do qual não se pode abrir mão,sob pena de ficar preso a uma narrativa terceirizada e apenas dialogar entre as visões já pré-concebidas. A pesquisa não tem a pretensão de traçar novas teorias sociais, quanto menos deapegar-se a hipóteses e conceitos pré-concebidos9, mas expandir horizontes como forma deconhecimento da alteridade e autoconhecimento:

    A pesquisa de campo etnográfico consiste em estudarmos o Outro como umaAlteridade, mas justamente para conhecer o Outro. A observação é então estaaprendizagem de olhar o Outro para conhecê-lo, e ao fazermos isso, também buscamos nos conhecer melhor. (ECKERT; ROCHA, 2008, p. 10)10

    Trata-se, segundo Marcelo Mayora Alves (2010, p. 52), de “observar os desvios e ocontrole social no âmbito da cultura em que são construídos. E observá-los não apenas peloviés deturpado da informação já processada pela reação formal, mas de maneira frontal, ouseja, encará-los diretamente.”Por isso, o que permeia todo este estudo é a premissa de que“aconstrução das noções de desvio e controle social dá-se nas teias de significado que o próprio

    8 Ainda, segundo as autoras (2008, p. 9), a etnografia é composta, basicamente, da “inter -relação entre o (a) pesquisador(a) e o(s) sujeito(s) pesquisados que interagem no contexto, recorrendo primordialmente às técnicas

    de pesquisa da observação direta, de conversas informais e formais, às entrevistas não-diretivas, etc”. Ainda, “seconstitui como forma do(a) antropológo(a) pesquisar, na vida social, os valores éticos e morais, os códigos deemoções, as intenções e as motivações que orientam a conformação de uma determinada sociedade.” (2008, p.10). Nas palavras de Alba Zaluar (2009, p. 563): “O trabalho de campo etnográfico, baseado na observação participantesegundo esta abordagem, é o modo de conhecer a “sociedade” ou a “cultura” estudada que culminana sua reconstituição desde o ponto de vista do nativo”.9 Seguem os ensinamentos do precursor do trabalho etnográfico na Antropologia, Bronislaw Malinowski (1984, p. 22): “Se um homem parte numa expedição decidido a provar certas hipóteses e é incapaz de mudar seus pontos de vista constantemente, abandonando-os sem hesitar ante a pressão da evidência, sem dúvida seutrabalho será inútil. Mas, quanto maior for o número de problemas que leve consigo para o trabalho de campo,quanto mais esteja habituado a moldar suas teorias aos fatos e a decidir quão relevantes eles são às suas teorias,tanto mais estará bem equipado para o seu trabalho de pesquisa”.10 “Esse momento é uma experiência única e intransferível. É uma busca de conhecimento orientada por

    conceitos de um campo semântico da teoria antropológica que nos estimula a questões antietnocêntricas, querdizer, de não fazer com que os juízos de valores da sociedade do(a) próprio(a) pesquisador(a) persistam ao olharo Outro evitando a armadilha de ver o Outro com os valores de uma sociedade tão distante que gere e reproduzao preconceito” (ECKERT; ROCHA, 2008, p. 14).

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    homem teceu e é nesse contexto que tais construções sociais podem ser descritas comdensidade” (ALVES, 2010, p. 46)11.

    A vinculação entre crime e maldade é a principal desconstrução de letras derap que apresentam o criminoso como alguém não apenasbom, malandro esedutoramente indócil, mas apreciável como ser humano. A desvinculação entrecrime e maldade era para ser um dos principais contributos da criminologia crítica para o pensamento. Tal intuito seria bastante facilitado se criminalizados participassem de teses acadêmicas, debatessem em congressos jurídicos e, ao invésou conjuntamente aos congressistas estrangeiros, nós conseguíssemos compreender,sem tradutores, os dialetos inscritos na própria cidade em que vivemos.(CARVALHO; LINCK; MAYORA; PINTO NETO, 2011, p. 47)

    A instigante provocação de José Linck, quando o autor analisa a imagem do malandroou criminoso presente nas letras derap, vai permear esse trabalho do início ao fim. Adotei a

    mesma posição proposta pelo autor, e acredito que seja a melhor solução para uma revoluçãona academia e na criminologia. Ao final, o quarto capítulo vai trazer o diálogo com aquelesque são os verdadeiros autores deste trabalho.

    1.2 A cidade como fonte inesgotável de experiência antropológica

    Desde a migração e urbanização massiva da década de 1950, a antropologia passa a teruma fonte inesgotável de pesquisa e, consequentemente, novos desafios, em todo o mundo.

    Segundo Michel Agier (2011, p. 35), “o antropólogo encontra na investigação urbana umafonte inesgotável de problemáticashíbridas e complexas”, o que o leva a outro patamar daantropologia, colocando-a inevitavelmente diante do caos.

    Existe uma grande dificuldade em realizar um estudo no próprio lugar onde se vive. Nossos olhos enfrentam diariamente a paisagem dos muros de concreto, e acostumam-se aeles de forma tão cruel, que a problematização se torna quase impossível. Ao revés de umolhar acomodado, cansado de lutar contra aquilo que não consegue explicar e já que se

    entrega a indiferença, o antropólogo que se encontra presente e implicado na cidade precisaver a cidade como ela vive, do ponto de vista dos citadinos e, além disso, deslocar a pergunta“o que é a cidade” para “o que faz a cidade”, possibilitando uma inversão do objeto para a osujeito, como propõe Agier (2011, p. 38).

    Longe de querer se apreender a cidade como totalidade, a proposta desta antropologiada cidade busca entender os laços, os agrupamentos, as relações interpessoais que produzem

    11

    A este respeito, valemo-nos do conceito de cultura trazido por Clifford Geertz (1978, p. 15), que dialoga comMax Weber ao dizer que o “homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumoa cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto não como uma ciência experimental em busca de leis,mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado.”

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    significados e sentidos. Ir até a minúcia da investigação interpessoal, buscar sentidos nos pequenos grupos, pois a cidade é composta de uma teia de relações.

    Como importância referência para os estudos de sociologia e antropologia da cidade,seus zoneamentos e toda a influência que o meio ou o contexto exerce sobre as pessoas, é possível citar a Escola de Chicago, cujos principais representantes investigaram asconsequências sociais decorrentes do rápido crescimento urbano produzido em Chicago nadécada de 1920 e 1930 (um local que passa de um assentamento no princípio do século XIX, para se transformar em uma cidade com mais de 3.000.000 de habitantes no primeiro terço doséculo XX) (MOLINÉ; PIJOAN, 2011, p. 81).

    Baseados em uma ideia de que a industrialização traria as pessoas para as áreascentrais das cidades (economicamente mais baratas), e, por isso, estas áreas centrais seriamcaracterizadas pela pobreza de seus habitantes, a heterogeneidade cultural e a mobilidade,marcadas pela desorganização.

    O principal apoio empírico para as teorias ecológicas veio da obra de Clifford Shaw eHenry McKay – Juvenile delinquency and urban areas – onde os autores demonstram que asáreas centrais de Chicago produzem muito mais delinquentes que as áreas periféricas, umasituação que se mantém mesmo com o intercâmbio completo entre as pessoas dessas áreas. A partir dessa ideia, dois dos principais representantes da escola de Chicago, Robert Park eErnest Burgess vão propor que existem áreas das cidades nas quais os problemas de controlesocial das sociedades urbanas estão bem acentuados, em razão de sua deterioração física, pobreza de seus habitantes, zonas de transição, heterogeneidade cultural e delinquência adulta(MOLINÉ; PIJOAN, 2001, p. 79-81)12.

    E diante da conclusão dos autores desta escola de que determinadas áreas das cidades produzem mais delinquência que outra, e que essas áreas se caracterizam por diversos problemas sociais, o problema seguinte era saber por que tais fatores levam esses locais a

    12 Ao estudar os jovens moradores do conjunto suburbano Quatre Mille, em Paris - França, o autor LoïcWacquant (2005, p. 140-41) relaciona a questão territorial com as práticas de violência e vandalismo perpetradas pelos habitantes destes locais:“A violência verbal desses jovens, assim como o vandalismo praticado por eles,devem ser compreendidos como resposta à violência socioeconômica e simbólica à qual se sentem submetidos por serem relegados a um lugar tão desprestigiado. Não são surpreendentes, portanto, a enorme desconfiança e aamargura que cultivam em relação à capacidade das instituições políticas e à vontade das lideranças locais desanar o problema.” Outra informação interessante trazida pelo autor é de que o bairro Quatre Mille é visto pelos

    moradores e retratado pela mídia como uma “caçamba”, ou ainda “a lata de lixo de Paris”, enquanto que asagências estatais, e os responsáveis pelo programa de reurbanização do governo local o classificam como “bairrosensível”. Essa distinção é uma forma de maquiar o problema, tornando cada vez mais invisíveis as pessoas quelá habitam. O mesmo acontece nos guetos, subúrbios e favelas ao redor do mundo, principalmente no Brasil.

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    terem uma taxa mais alta de delinquência juvenil. Para eles, uma explicação seria a de que as pessoas pobres encontrariam mais dificuldades de satisfazer suas necessidades recorrendo aosmeios lícitos, no entanto, este não é visto como o principal fator. A pobreza dos indivíduos só

    está relacionada à delinquência quando existe um conjunto de condições ecológicas quedificulte a capacidade da comunidade de efetivar seus valores comuns, quais sejam: a) menorcapacidade de associação: as associações de bairro são importantes na formação dos jovens.Mas é difícil existir essas associações em determinados bairros de onde as pessoas só pensamem sair quando melhorarem seus recursos; b) menor possibilidade de controle sobre asatividades desviadas: segundo os autores, quanto menor o controle, maior é a possibilidade deatividades delitivas; c) maior exposição dos jovens a valores desviados: influência da

    delinquência adulta, em razão dos valores dominantes (MOLINÉ; PIJOAN, 2001, p. 84-85).

    A contribuição da Escola de Chicago para uma análise social da cidade provocadiversos questionamentos e uma necessidade de verificar se, realmente, as conclusõeschegadas pelos autores há quase um século atrás realmente se aplicariam às cidades de hoje. Naquela época, e naquele contexto, o que se propunha era uma visão da cidade, sendo MichelAgier, com “áreas naturais de segregação”. Em Chicago, muitas dessas áreas recebiaminclusive definição por nome, por exemplo, Black Belt (negros), Little Sicily (italianos) eGhetto (judeus, e posteriormente, também para os negros) (AGIER, 2011, p. 118).

    As cidades brasileiras ainda são exemplos dessa realidade de metrópoles divididas emultifacetadas. A região metropolitana, da favela às comunidades mais isoladas, tudo éexemplo desse mosaico que forma nossas cidades. O centro continua sendo o lugar onde essemosaico se mescla, o lugar onde se encontram pessoas vindas das mais diversas regiões ezonas da cidade. Cada vez mais isoladas do centro, crescem também comunidades

    residenciais fechadas, geralmente condomínios de classe média e alta, cidades privadas,construídas como “temor e rejeição das manifestações da diferença social”. Estes enclavesfortificados refletem novos tipos de aglomeração e crescem com o aumento do controle e davigilância privada, e da cultura do medo, fazendo desaparecer as ideias de espaço público, deespaço de troca e de “encontro entre diferenças”, como constata Michel Agier (2011, p. 121-122).

    Por mais que os novos condomínios privados façam menção a algumaespécie de convivência entre seus moradores (piscina, cancha de esportes, bosquesinternos...), o que está sendo comprado é, acima de tudo, isolamento. Mão que hajauma conceituação arquitetônica que impeça completamente o convívio sadio e próximo de épocas passadas, mas porque não há nada que indique uma permanência

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    longa o suficiente para serem criados laços duradouros que transformem orelacionado em algo com qualquer significado. Nada sugere uma sucessão deencontros além de contatos visuais mudos no elevador. De qualquer forma, a piscina, a cancha de esportes e o bosque interno somente estão ali para não sernecessário correr o risco de sair do forte. (LINCK, 2010, p. 108-9)

    Como resume Zygmunt Bauman (2009, p. 32): “as cidades se transformaram emdepósitos de problemas causados pela globalização”. A cidades parecem cada vez mais projetadas para a segregação e a separação classista. Enquanto isso, a coabitação nos espaços públicos é sempre marcada por uma tensão, pelo risco, pela insegurança e pelo medo. E énessa insegurança que a cidade perde, em suas ruas, toda a “espontaneidade, a flexibilidade, acapacidade de surpreender e a oferta de aventura, em suma, todos os atrativos da vida urbana”(BAUMAN, 2009, p. 68). O que resta, portanto, como alternativa à insegurança? O tédio.Pagamos o preço do tédio e matamos as cidades ao construir recursos cada vez maismeticulosos para combater nosso medo e nossa insegurança.

    Como bem sabemos, as cercas têm dois lados. Dividem um espaço antesuniforme em “dentro” e “fora”, mas o que é “dentro” para quem está de um lado dacerca é “fora” pra quem está do outro. Os moradores dos condomínios mantém-sefora da desconcertante, perturbadora e vagamente ameaçadora – por ser turbulenta econfusa – vida urbana, para se colocarem “dentro” de um oásis de tranquilidade esegurança. Contudo, justamente por isso, mantêm todos os demais fora dos lugaresdecentes e seguros, e estão absolutamente decididos a conservar e defender comunhas e dentes esse padrão; tratam de manter os outros nas mesmas ruas desoladasque pretendem deixar do lado de fora, sem ligar para o preço que isso tem. A cercaque separa o “gueto voluntário” dos arrogantes dos muitos condenados a nada ter.(BAUMAN, 2009, p. 39-40)

    E é nessa segregação arquitetônica e psicológica que segue o fluxo cotidiano dasnossas cidades. A realidade é que jamais conseguiremos transformar nossas cidades emcenário de umapartheid“perfeito” . Aqueles que estão do lado de “fora” do muro querem servistos. E as zonas de intersecção de ambos os lados ainda representam boa parte de nossoespaço urbano, uma vez que nossas cidades ainda não foram transformadas em fortalezas

    medievais. É nessas zonas de intersecção que a tensão se cria e o espaço está aberto para todasas manifestações possíveis de visibilidade e interação com o todo. É nos entre-lugares que avida vai se encontrar, e àqueles que estão por detrás dos muros vão perceber que, junto comeles, existem outras pessoas coabitando os mesmos espaços. Não é à toa que a pichação e o graffiti buscam as áreas mais centrais da cidade, como forma de ampliar a visibilidade.Surgida na periferia, essas manifestações vão tomar os grandes centros, como serádemonstrado nos próximos capítulos.

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    1.3 Imagem e imaginário da violência e do desvio

    Não se pode deixar de traçar um panorama sobre a difusão e proliferação de imagens

    sobre a violência e o reflexo destas no corpo social. Além do que vemos nas ruas e no nossocotidiano, é preciso analisar o que é reproduzido sobre ele. Nos últimos capítulos, estetrabalho vai se preocupar em confrontar exatamente o imaginário sobre determinadas práticasculturais com a experiência real destas práticas, daí a importância desta primeira análise.

    Convive-se cada vez mais com uma aproximação do acontecimento real, em umasociedade de informação e onde somos bombardeados a todo segundo por notícias emdiversos meios de comunicação, repletas de imagens de violência. Não podemos fugir desse

    fenômeno, porque a construção do nosso conhecimento advém cada vez mais da informação,e menos da experiência prática. É necessário, portanto, analisar as consequências dessacompleta transformação da forma como estão registrados os acontecimentos e as imagens produzidas, principalmente pela mídia, no que se refere à violência urbana.

    Toma-se, portanto, como ponto de partida, uma análise crítica entre crime e mídia,amplamente difundida pelos estudos da criminologia cultural, a partir do momento em que, na sociedade do espetáculo (DEBORD, 1967) dos dias de hoje, praticamente nenhumacontecimento foge às lentes das câmeras de televisão e das lentes fotográficas da mídiaimpressa. O crime é um acontecimento que não fica longe desse fenômeno, e suas imagens setornam cada vez mais difundidas, mais presentes, mais realistas. Eis um importante campo deestudo, antes restrito às áreas da comunicação e da sociologia, e que hoje também édesenvolvido no campo criminológico, dado o caráter transdisciplinar da pesquisa sobre crimee violência.

    A análise das imagens da violência, e de pessoas relacionadas à cultura do crime,diante de sua proliferação na sociedade contemporânea, torna-se, segundo Salo de Carvalho(2009, p. 294-338),

    objeto de exploração que permite à criminologia romper com as barreiras entre oespaço real e o espaço virtual e ingressar nesta confusa realidade dotada de alto poder de produção de subjetividades. Ademais, a capturação do crime e do desvio pelo mercado e sua transformação em produto consumível geram fenômenos deestetização, estilização, glamorização e fetichização, potencializando asrepresentações e densificando, na cultura, simbologias, normalmente moralizadoras,sobre a questão criminal.13

    13 Ainda, segundo o mesmo autor (2009, p. 294-338), “a exibição superlativa e em tempo real das imagens dasviolências dissolve não apenas os limites de espaço e de tempo, como estilhaça as fronteiras dos significados do

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    É para romper com as barreiras entre espaço real e virtual que a criminologia culturalvai buscar nos estudos da sociologia do imaginário um norte para compreender o mercadogerado pela difusão em escala global do fenômeno da violência.

    Com isso, importante entender o papel que cumpre a imagem hoje, quando de suaexplosão no Ocidente, a partir de um produção obsessiva de imagens midiáticas. Sobre isso,apresenta-se o pensamento de Gilbert Durand (1999, p. 33-34):

    A imagem mediática está presente desde o berço até o túmulo, ditando as intençõesde produtores anônimos ou ocultos: no despertar pedagógico da criança, nasescolhas econômicas e profissionais do adolescente, nas escolhas tipológicas (aaparência) de cada pessoa, até nos usos e costumes públicos ou privados, às vezescomo “informação”, às vezes velando a ideologia de uma “propaganda”, e noutras

    escondendo-se atrás de uma “publicidade” sedutora... A importância da“manipulação icônica” (relativa à imagem) todavia não inquieta. No entanto é delaque dependem todas as outras valorizações – das “manipulações genéticas”,inclusive.

    As imagens do crime produzidas pela mídia e principalmente pelos noticiários se proliferam, como um “salão de espelhos”, gerando uma hiperexposição de imagens daviolência (o fenômeno framing crimeestudado por Keith Hayward e Mike Presdee em livrohomônimo). Essas imagens vão ser reproduzidas em escala global pelainternet , gerando asmais diversas formas de representação e interpretação cultural.

    O crime e as práticas de violência acabaram se tornando um produto consumível, cadavez mais evidente nos anúncios publicitários, na televisão, na música, entre outros. Para acriminologia cultural, vivemos o chamado marketing da transgressão, onde propagandas desom para carro mostram imagens de tumultos nas ruas, com anúncios de carros fazendoreferência ao “ joyriding ”14, a direção imprudente, esportes radicais e piromania, ao mesmotempo em que, outras tantas campanhas publicitárias fazem referência ao vandalismo, drogase rebelião política (FERREL; HAYWARD; YOUNG, 2008, p. 141)15.

    lícito e do ilícito, das condutas socialmente adequadas e daquelas transgressivas, da própria posição deinsider oude outsider dos seus atores e dos seus espectadores.”14 Roubar um veículo e dirigi-lo apenas por prazer, sem intenção de ganho material.15 No mesmo sentido:“Crime has been seized upon; it is being packaged and marketed to young people as aromantic, exciting, cool and fashionable cultural symbol. It is in this cultural context that transgression becomesa desirable consumer choice. Within consumer culture, crime is aesthetisized, and thus our experience of crimeis primarily aesthetic, that is to say, our collective experience of crime is given to us via the mass media. This is

    not to suggest any simple causal link between images of violence and crime in consumer culture andcontemporary youth crime; rather what I am suggesting is that the distinction between representations ofcriminality and the pursuit of excitement, especially in the area of youth culture, are becoming extremelyblurred .” (HAYWARD, 2002, p. 10).

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    É preciso estudar o efeito que isso provoca sobre as pessoas e sobre o fenômeno docrime, principalmente em uma sociedade onde tudo acaba sendo consumível e vivemoscercados de anúncios publicitários, com a mídia chegando até lugares antes inatingíveis.

    Principalmente entre os jovens, o crime é “vendido” pelas suas imagens como sendo algocool , algo interessante, que provoca certos sentimentos, como de “adrenalina”.

    O consumo, em meio ao tédio vivido pelos habitantes das grandes metrópoles, acabase tornando uma forma de revitalização de “emoções mortas” por meio do choque e do riscoda cidade16. Segundo Beatriz Jaguaribe (2007, p. 107), “os imaginários do risco e do medo, por sua vez, dependem da circulação das narrativas e imagens da violência e conflito social promovidas pela mídia virtual e impressa”.

    A vida na cidade é permeada por paradoxos: de um lado, a proliferação das imagensda violência geram um sentimento de insegurança, uma cultura do medo que impede as pessoas de saírem à noite e fazem dos shoppings e das casas cercadas por muros os lugaresmais seguros para se ficar. Entretanto, essa reclusão acaba gerando um sentimento de tédio, deonde as pessoas tiram a necessidade de viver novas experiências, de enfrentar o risco dacidade e ir além dos muros que as cercam. Hoje em dia existem diversas formas de quebrar

    esse tédio e fugir da monotonia cotidiana, exemplo disso são astours de visitações a lugares bizarros e encontros exóticos dos mais variados. A experiência mais comum, no entanto, é seresguardar e buscar na tela das TVs, ou mesmo do cinema, uma forma de fuga, pois “o medodo perigo e a complexidade de negociar a cidade também permitem que muitos se resguardemvoyeuristicamente do contato direto com a metrópole e vivenciem a urbe pelas telasmidiáticas”, tudo isso numa forma de “possuir experiências intensas e de encontrar adiversidade que quebre a monotonia do familiar ” (JAGUARIBE, 2007, p. 107).

    Nesse aspecto, como principal mecanismo de satisfação do desejo, ou mesmo dosentimento catártico, entram as mais diversas produções recentes que abordam a temática daviolência, mas não necessariamente de forma documental, ou com uma profundidade crítica,que busca uma reflexão sobre o tema, mas apresentando o “choque do real”, termo definido por Beatriz Jaguaribe (2007, p. 110)como sendo a “utilização de estéticas realistas visandosuscitar um efeito de espanto catártico no leitor ou espectador”. As imagens transmitidas estão16 Sobre o consumo promovido pela mídia, vale citar a reflexão de Beatriz Jaguaribe (2007, p. 120), “culturas

    midiáticas e novas formas de consumo criaram novas elites, celebridades e modelos. Entretanto, esta culturamidiática e as seduções do consumo contribuem para fomentar a crescente frustação dos jovens urbanos, acuados por penúrias econômicas que obstaculizam dramaticamente suas expectativas sociais e possibilidades deinvenção do futuro”.

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    fortemente ligadas ao apelo da violência urbana, como retrato da realidade: “favelas, centroscorrecionais, periferias urbanas carcomidas, prisões infectas e a saga de traficantes são algunsdos tópicos a bordados”, segundo a autora.

    Vivenciamos, há tempos, o fenômeno da hiper-realidade, na medida em que otelespectador, antes passivamente diante da tela de televisão, passa agora a se ver nela, comoem umreality show do social, do cotidiano, e focado na violência da cidade antes não vista.Diante disso, impossível não lembrar as palavras de Jean Baudrillard (1996), que envoltas emironia, resumem o momento em que vivemos paradoxalmente diante e dentro das telas:

    Vivemos na ilusão de que o real é o que falta mais, mas é o contrário: a realidadeestá no seu auge. À força da performancetécnica, chegamos a um tal grau derealidade e de objetividade que se pode até falar de um excesso de realidade que nosdeixa bem mais ansiosos e desnorteados que a falta de realidade, que podíamos pelomenos compensar pela utopia e o imaginário. Enquanto para o excesso de realidade já não há nem compensação nem alternativa.

    E aqui vale referenciar o pensamento de Gilles Lipovetsky (2009, p. 264) acerca dasrepresentações feitas pela mídia contemporaneamente, diante de uma evolução da tecnicidade:

    A mídia caminha pelo charme discreto da objetividade documental e científica, minaas interpretações globais dos fenômenos em benefício do registro dos fatos e dassínteses de dominante “positivista”. Enquanto as grandes ideologias tendiam alibertar-se da realidade imediata supostamente enganadora e punham em ação ‘o poder irresistível da lógica’, os procedimentos implacáveis da dedução, asexplicações definitivas decorrentes de premissas absolutas, a informação sacraliza amudança, o empírico, o relativo, o “científico”. Menos glosas, mais imagens; menossínteses especulativas, mais fatos; menos sentidos, mais tecnicidade.

    Não há dúvida: a busca por uma performance técnica cada vez maior, uma maioroferta de tecnologias nos campos da comunicação, como a fotografia, o cinema e a televisãonos coloca diante de uma ânsia contemporânea: tudo que vivemos precisa ser registrado emtempo real. As imagens de guerras são apresentadas para nós por jornalistas que se encontramdo outro lado do mundo, mas como se estivessem aqui, no Brasil (referência à guerra noIraque, Afeganistão, e acontecimentos relacionados à Primavera Árabe, como a perseguição emorte de líderes ditatoriais, além das recentes manifestações ocorridas nos meses de maio e junho de 2013 no Brasil); um sequestro de um ônibus é filmado do seu início ao seu desfecho(referência aqui ao sequestro do ônibus 174, ocorrido no dia 12 de junho de 2000, no Rio deJaneiro); em 2010 acompanhamos ao vivo a ação da Polícia Militar do Rio de Janeiro pararetirar o Morro do Alemão do controle dos traficantes de drogas.

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    Paradoxalmente, a ânsia pelo real traz um fenômeno curioso: “a mídia se torna real, ea vida se ficcionaliza”, segundo Beatriz Jaguaribe, (2007, p. 119), isso porque cada vez maissão potencializados o que a autora chama de “efeitos do real”:

    A modernidade desencantada e reencantada enfatiza a primazia da visão por meiodas novas máquinas da visualidade. A câmera fotográfica, o cinema, e posteriormente, no final dos séculos XX e XXI, a realidade virtual potencializaram o‘efeito do real’. A realidade tornou-se mediada pelos meios de comunicação e osimaginários ficcionais e visuais fornecem os enredos e imagens com os quaisconstruímos nossa subjetividade. O surgimento dos novos realismos na literatura,fotografia e cinema nos séculos XX e XXI atesta uma necessidade de introduzirnovos ‘efeitos do real’, em sociedades saturadas de imagens, narr ativas einformações. Estes ‘efeitos do real’ serão distintos daqueles do século XIX, não se pautam somente na observação empírica ou distanciada, mas promovem umaintensificação da experiência vivida que, entretanto, é ficcionalizada (2007, 30-31).

    Como dizia Baudrillard (1996, p. 26), “o tempo ‘real’ não existe, ninguém existe emtempo real, nada tem lugar em tempo real – e o mal-entendido é total.”.

    A imagem já não pode imaginar o real, visto que o é. Já não pode sonhá-lo, vistoque ela é sua realidade virtual. É como se as coisas tivessem devorado o seu espelhoe se tivessem tornado transparentes a si próprias, inteiramente presentes a si próprias, em plena luz, em tempo real, numa transcrição implacável.

    O que se vê como resultado das filmagens, não é o real, não é a nossa vida que está alina tela, nosso cotidiano, mas um recorte, a partir de um determinado plano, relacionado a um

    determinado ponto de vista. E essas variáveis são capazes de provocar os mais diversosefeitos.

    Quando relacionamos a mídia e o sistema penal, por exemplo, temos a seguinteconsequência: “A notícia produz a realidade social, enquanto a descreve, por doismecanismos fundamentais: a seleção dos fatos que serão divulgados, e do enquadramento queserá dado aos mesmos.” O que existe, hoje em dia, é um monopólio dos“agentes de controlesocial sobre as fontes de notícias, que tende a fornecer aos jornalistas um primeiro ponto devista definidor, a respeito de como será o fato compreendido e divulgado, com todas asconsequências morais e jurídicas daí decorrentes.” O que acaba acontecendo é umareprodução, pela imprensa, dos discursos e da lógica dos agentes de controle social, como a polícia, por exemplo, enfatizando e dando cada vez mais destaque à violência urbana comuma “lente” que foca em ações de indivíduos e determinados grupos, o que irá definir eresumir, para o senso comum, toda a criminalidade, difundindo a cultura do medo nasociedade (ROCHA, 2010, p. 52-54).

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    O recorte aqui produzido pelos meios de comunicação gera consequências preocupantes: uma sociedade que se coloca diante da televisão, reduzindo seu campo deinformação e fechando-se no muro da sua segurança (porque, como dito antes, sair na rua

    parece cada vez mais perigoso), acaba imersa em notícias de violência – geralmente marcadas por atos isolados de grupos selecionados pelas agências de controle estatal – , e então pinta umquadro da realidade social a partir do que vê e o que lê, parecendo ser esta a verdadeirarealidade.

    Um exemplo disso são as manifestações ocorridas no ano de 2013 em diversas cidadesdo país. Em diversas ocasiões, o recorte dado pela mídia ao movimento formado em suamaioria por jovens que buscavam, entre outras causas, a redução das tarifas de ônibus e umamaior destinação de recursos do governo para a área social em detrimento às obras bilionáriasrealizadas para a Copa do Mundo, foi limitado a cenas de vandalismo e saques praticados poruma minoria (e em grande parte motivados pela violência e abusos praticados pela ação da polícia contra as manifestações).

    Quando se faz uma determinada escolha sobre que imagem mostrar, qual perspectiva,qual o momento da captura, seja em vídeo, seja em câmera, está se produzindo um

    determinado sentido. Esse sentido, quando falamos de imagens da violência urbana, é o queconstrói nosso imaginário. Portanto, como mencionado antes, as imagens podem produzir,além da cultura do medo, o momento catártico marcado pelo ‘efeito do real’.O que preocupa,é a relação produzida a partir da imagem do “real”:

    As estéticas do realismo, nessas circunstâncias, aparecem tanto como resposta dechoque como também uma forma de retrabalhar as conexões entre experiências erepresentações na tentativa de produzir vocabulários de reconhecimento na incertezatumultuada das cidades brasileiras. As retratações atuais da favela, marginalidade eviolência urbana produzem estranhamento sem experimentação radical porque os

    códigos estéticos acionados podem até romper com a petrificação de hábitoscotidianos, mas são facilmente digeridos (JAGUARIBE, 2007, p. 120).

    A imagem mostrada é dotada de muitos significados, que interessam aos estudoscriminológicos que pretendem romper a barreira entre “virtual” e “real” das representaçõessociais. Como afirma Salo de Carvalho (2009, p. 325):a capturação do crime e do desvio pelo mercado e sua transformação em produto consumível geram fenômenos de estetização,estilização, glamorização e fetichização, potencializando as representações e densificando,na cultura, simbologias, normalmente moralizadoras, sobre a questão criminal. Todos essesfenômenos interessam ao estudo criminológico justamente para entender qual as semelhançase diferenças entre real e imaginário, entre imagem e autoimagem.

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    A notícia produz a realidade social, enquanto a descreve, por dois mecanismos fundamentais: a seleção dos fatos que serão divulgados, e do enquadramento que será dadoaos mesmos. Justamente, ocupando grande parte desse enquadramento mencionado por

    Álvaro Oxley da Rocha (2010, p. 52-54), é que entram os discursos de agentes de controlesocial, principalmente em matérias que se referem à violência e comportamento desviante. Não raro, esses discursos definem o ponto de vista que será abordado pela agência de notícia enão precisamos ir muito além para perceber o que existe entre o que a mídia aborda nasnotícias a respeito das práticas juvenis e a reação social provocada por este fenômeno. Asrepresentações midiáticas são a maior contribuição para a criação e disseminação de pânicosmorais, na medida emque “os meios de comunicação de massa são a grande fonte de difusão

    e legitimação dos rótulos” (FREIRE FILHO, 2005, p. 24).

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    Capítulo 2 - Ato 2: Protagonistas: quem usa a tinta como f orma de expressão

    Posso dizer que a minha contribuição contra a sociedadeé a pichação.

    Micuim

    2.1 Como e por que ainda falar em desvio

    É impossível não abordar, desde logo, a questão do desvio e do comportamentodesviante. Mas, para isso, sigo as recomendações de Gilberto Velho, pois, como lembra oautor, a noção de desviante é carregada de conotações problemáticas e seu uso demanda muitocuidado.Segundo ele, “a ideia de desvio, de um modo ou de outro, implica a existência de umcomportamento ‘médio’ ou ‘ideal’, que expressaria uma harmonia com as exigências dofuncionamento do sistema social” (2013, p. 41). Bom, não difere muito do que pensavaHoward Becker, quando em 1963, quando lançou pela primeira vez sua obra-prima,“Outsiders”, lido e relido por todos aqueles que trabalham com sociologia do desvio, oumatérias afins. Mas existem importantes diferenciações que merecem ser mencionadas sobreesse conceito.17

    Basicamente, Becker (2008, p. 18) lista quatro definições comumente utilizadas acercado desvio (além da sua, é claro): aconcepção estatística, na qual desviante é simplesmentealgo que varia excessivamente da média – uma concepção simples, que não se preocupa muitocom a violação de regras que interessa ao estudo dos “outsiders”; em segundo lugar, aconcepção patológica, colocando o desvio em uma linha essencialmente patológica,equiparando-o a uma “doença” – assim como a estatística, a concepção patológica é limitadano momento em que aceita o julgamento de algo leigo como desviante, e impede-nos de vertal julgamento como parte decisiva do fenômeno, ou seja, a relação entre o julgamento e o

    17 Sobre desvio e interacionismo simbólico, segue o seguinte resumo de Martine Xiberras (1993, p. 114-5): “A partir dos anos sessenta, um grupo de sociólogos renova as perspectivas e o objeto da criminologia americana eretoma, por sua conta, as hipóteses da Escola de Chicago. Todavia, estes investigadores vão mostrar como esta perspectiva permite renovar completamente o quadro teórico da sociologia. Eles põem em evidência o facto deque o crime ou a delinquência não são os únicos factos sociais sancionados pela sociedade, existindo toda umacategoria de práticas sociais que, tal como o alcoolismo ou as doenças mentais, acarretam também uma forma desanção por parte da sociedade. Aqueles que se chamamlabelling theorists, ou teóricos da etiquetagem social,inquietam-se também com as formas de sanção constituídas pela criação de novas categorias de desvio e com o

    facto de se poder classificar, sob novas etiquetas, uma parte descente da população. Chamam desde logo ‘desvio’a qualquer forma de comportamento que transgrida as normas aceites e definidas por um grupo, ou por umainstituição, numa dada sociedade. Não satisfeitos em redefinir, estendendo-o, o objeto da criminologia tornada‘sociologia do desvio’, estes sociólogos renovam também a maneira de apreender estes fenómenos”.

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    desvio; adiante, cita aconcepção funcional , que leva em conta uma sociedade ou parte dela eos processos que tendem a diminuir sua estabilidade, e que, por isso, reduziriam sua chancede sobrevivência – o problema é que, além da dificuldade da identificação entre o que é

    funcional ou disfuncional em uma sociedade ou um determinado grupo, essa concepção peca por ignorar o aspecto político do fenômeno desviante; por fim, o autor cita aconcepção sociológica, segundo a qual o desvio seria uma falha em obedecer a regras do grupo – mas,diante de diversos grupos, cada qual com seu conjunto de regras, o problema desta concepçãoseria definir exatamente“quais regras devem ser tomadas como padrão de comparação aoqual o comportamento é medido e julgado desviante” (BECKER, 2008, p. 19-21).

    Então, como forma de tentar chegar a um consenso, qual seria exatamente a melhorconcepção acerca do fenômeno do desvio? Primeiramente, é preciso partir de uma premissa – de que odesvio é criado pela sociedade: “O olhar da sociedade, que define a categoria dedesvio. O olhar dos estigmatizados, que integra a etiqueta aposta pela sociedade, mas quedesenvolve, não obstante, o seu próprio ponto de vista” (XIBERRAS, 1993, p. 116).Quandoreferenciei, lá no início deste estudo a frase dos autores do livro Cabeça de Porco de que “odecisivo no olhar é a relação”, é exatamente sobre isso que estava falando. Isso porque odesvio não é uma qualidade em si do ato praticado por uma pessoa, mas a relação entre esteato e a aplicação, por outras pessoas, de regras e sanções (BECKER, 2008, p. 22).Se um ato éou não é desviante, portanto, depende de como outras pessoas regem a ele (2008, p. 24).

    Isto vai ser muito importante ao estudo daqui pra frente. Se grande parte das pessoas,nas grandes cidades, não reagisse com espanto, repúdio, desgosto, medo, curiosidade ou atémesmo ódio com relação aos grafismos monocromáticos que a pichação coloca nos muros enos prédios ao nosso redor, o ato de pichação jamais seria objeto deste estudo, pois jamais

    seria um desvio. É justamente a reação que as pessoas têm em relação a tais atos, que colocaaqueles que o praticam como desviantes e, também, por isso, violadores de uma regra criada por lei, que prevê tal ato como sendo ilegal e repreendido com uma sanção. E mais importanteainda a ser analisado é o grau de resposta a esse desvio, ou a intensidade da reação comrelação a ele. É essa resposta que vai nos levar adiante na discussão acerca do caráterdesviante ou não de determinado ato.É imperativo fugir de uma “visão estanque e fracionadado comportamento humano que transforma a realidade individual em algo, em princípio,independente da sociedade e da cultura” (VELHO, 2013, p. 43).Por isso é de sumaimportância a análise e a referência com relação às representações sociais acerca da pichação.

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    Mais para frente, a reflexão recairá sobre o próprio ato em si da pichação, sobre arepresentação social feita com relação a este ato e também sobre a própria autoimagem dos pichadores.

    Outro aspecto importante acerca do estudo do desvio: dentro de um determinado grupoconsiderado desviante por outro, podem existir múltiplos comportamentos que se dissociamdos demais. Por isso, é preciso fugir da tendência de homogeneizar o comportamento dedeterminado grupo que acaba se tornando objeto de estudo, por menor que seja. Todo cuidadoé pouco: há uma forte tendência em generalizar determinados grupos, extratos ou classessociais de forma a tratá-los por esquemas deterministas ou reducionistas, caminhando emcontrário ao que realmente a antropologia busca (VELHO, 2013, p. 43). Determinismos ereducionismos também deveriam ter sido abolidos da pesquisa criminológica. Portanto, não se pode deixar de levar emconsideração que “a normalidade e o desvio dependem da construçãode um discurso que os defina, ou seja, a criminologia constitui-se como uma fábrica deanormalidades”, como afirma José Linck, tendo bem claroo impacto que isso gera enquanto processos de criminalização e normalização social (CARVALHO; LINCK; MAYORA;PINTO NETO, 2011, p. 5). O desvio, portanto, é uma categoria sociológica, importantedentro do âmbito acadêmico, pelo que contribui na mudança de um olhar acerca decomportamentos antes vistos como criminosos ou anormais.

    A valiosa contribuição que a antropologia social presta ao estudo do desvio é seu permanente “contato com indivíduos concretos, carregados de densidade existencial”, lidandocom diversas personagens, que não podem ser resumidos facilmente a categorias de “alfa” e“beta”, como menciona Gilberto Velho (2008, p. 49):

    Por isso mesmo, o trabalho do antropólogo tende a assumir cada vez mais adimensão da intersubjetividade. Não se trataria, então, de procurar abstrair aspectosindividuais, idiossincrasias pessoais etc., mas sim de procurar encará-los como parteda situação da pesquisa. Em vez de apagar essa dimensão“psicológica”, tarefarealmente impossível, resta aprender a explicitá-la e integrá-la a toda a investigação.Assim, mais uma vez, a procura de padrões sociais e culturais não implicaria um“por entre parênteses” a dimensão individual. Isto significa, de um lado, oantropólogo aprender a lidar com a sua subjetividade, e de outro, a considerar maisrelevantes para o seu trabalho características “estritamente individuais” das pessoascom quem está convivendo.

    Portanto, um estudo que se propõe a falar sobre desvio não pode considerar que todosos desviantes tenham a mesma ideia a respeito do que fazem, a mesma visão acerca do mundo

    ou tenham, ainda, a mesma origem social. Tratar todos de forma igualitária é concretar as

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    Celso Gitahy, essa seria uma necessidade humana como dançar, comer, dormir ou falar,associada diretamente à liberdade de expressão (2012, p. 13-14).

    A pichação é uma expressão gráfica, composta de palavras soltas ou frases, nomes,traços, desenhos, geralmente de escrita “rápida”, utilizando fonte curvilínea e extremamenteelaborada (denominada “árabe-gótico”18 ou Iron Maiden em referência as letras das capasdesta banda de heavy metal19) que podem variar seu significado: as pichações mais comunssão dos nomes ou apelidos dos próprios pichadores, símbolos de grupos de pichação, ou ainda palavras de protestos, reivindicação e manifesto. Em menor grau, a pichação apresentadesenhos e traços aleatórios de significados desconhecidos, ou restritos apenas a determinadosmembros de grupos de pichadores. Geralmente é monocromática, preto ou branco, feita comspray ou qualquer espécie de tinta mais o rolo de pintura. Mas, não existe regra: “o que pintare onde pintar são frutos de decisões individuais, subjetivas” influenciadas pelas mais diversasmotivações ou fatores (SPINELLI, 2007, p. 113).

    Os locais da prática variam, mas existe uma preferência pelo centro da cidade, namedida em que a exposição da arte aumenta consideravelmente. Vale dizer que a busca poruma maior exposição é uma constante na atividade do pichador. Diante disso, há aqueles que

    prefiram manter sua pichação em nível baixo, e buscam somente muros e fachadas no térreo.Mas outra vertente carrega consigo a preferência pelos lugares mais altos, bem acima do níveldo solo, com maior dificuldade de acesso, geralmente no alto da fachada dos edifícios, onde a“escalada” mais alta provoca orgulho e remete a uma façanha que influencia a reputação do pichador (SOUZA, 2012, p. 279).

    O fenômeno da pichação começa a surgir no Brasil durante entre a década de 1960 e1970, quando manifestantes contrários ao regime militar que governava o país na época

    passam a escrever frases de protestos nas paredes das grandes cidades. Mas é na cidade deSão Paulo, no final dos anos 1970 e início dos anos 1980 que a pichação começa a tomar os primeiros contornos que a levariam ao que hoje existe em quase todas as grandes cidades do país: naquela época, nomes como “Cão Fila – km 26”, “Juneca-Pessoinha”, “Gonha MóBreu”, “Eternamente”, começaram a ser pichados pelos prédios e muros da cidade20. Osnomes eram pichados com grafia normal, distante ainda dos formatos detags e letras árabe- 18 CANEVACCI, 1993, p. 183.19

    SPINELLI, 2007, p. 113.20 As histórias do que seriam os primeiros pichadores no Brasil são facilmente encontradas na internet. A versãoaqui apresentada foi retirada de entrevistas de pichadores gravadas para o documentário Pixo, dirigido por JoãoWaiver e Roberto T. Oliveira.

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    góticas que são vistas atualmente. Segundo o próprio Juneca, em entrevista a RádioBandeirantes21 explica como começou a fazer o que seriam as primeiras pichações de nomeno Brasil:

    É que acho que na nossa época não tinha tantas pichações, a nossa idéia nem eraaparecer, era somente a curiosidade das pessoas. Ou você via o Juneca-Pessoinhanuma avenida ou uma ruazinha sem saída, ou da casa de um parente, por exemplo. Não acredito ou numa estrada ou num outro estado numa outra cidade