riscos e oportunidades

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    So Paulo2010

    riscos eoportunidadesem tempos de mudanas

    Ladislau Dowbor, Ignacy Sachs e Carlos Lopes (Org.)

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    Editora e Livraria Instituto Paulo FreireRua Cerro Cor, 550 | Lj. 0105061-100 | So Paulo | SP | Brasil

    : + 55 11 3021 [email protected] | [email protected]

    www.pauloreire.org

    Banco do Nordeste do Brasil S/AEscritrio Tcnico de Estudos Econmicosdo Nordeste

    Av. Pedro Ramalho, 5.700 | Bloco A2 rreoPassar | 60743-902 | Fortaleza CE | Brasil

    www.bnb.gov.br

    Instituto Paulo Freire

    Diretores

    Alexandre Munck

    ngela AntunesFrancisca PiniMoacir GadottiPaulo Roberto Padilha

    Luana Vilutis -Coordenadora de Educao PopularJanaina Abreu -Coordenadora Grco-EditorialLina Rosa -Pesquisa e Preparao de OriginaisCarlos Coelho-RevisorRenato Pires - Capa, Projeto Grco, Diagramao e Arte-nalAlessandro Melo, Flvia Landucci Landgraf e Soa Dowbor -Equipedo projetoCrises e

    Oportunidades

    Banco do Nordeste do Brasil - BNB

    Roberto SmithPresidenteJoo Emlio Gazzana, Jos Sydrio de Alencar Jnior, Luiz Carlos Everton de Farias,Luiz Henrique Mascarenhas Corra e Silva, Oswaldo Serrano de Oliveira e Paulo SrgioRebouas FerraroDiretores

    Escritrio Tcnico de Estudos Econmicos do Nordeste - ETENE

    Jos Narciso Sobrinho- Superintendente

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    ndices para catlogo sistemtico:1. Crises e oportunidades : Transformaes sociais : Sociologia 303.45

    Riscos e oportunidades : em tempos de mudanas / Ladislau Dowbor, Ignacy Sachs e Carlos Lopes

    (org.) . -- So Paulo : Editora e Livraria Instituto Paulo Freire ; Fortaleza, CE : Banco do Nordeste doBrasil, 2010.

    Vrios autores.ISBN 978-85-61910-44-0

    1. Crises 2. Desenvolvimento econmico 3. Ecologia 4. Economia 5. Frum Social Mundial (2010 : Salvador, BA)- Propostas 6. Mudana social 7. Poltica econmica 8. Poltica social 9. Problemas sociais I. Dowbor, Ladislau. II.

    Sachs, Ignacy. III. Lopes, Carlos.

    10-05868 CDD-303.45

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    Sumrio

    Apresentao ........................................................................................... 09Coordenao cientfica do Projeto Crises e Oportunidades

    Crises e oportunidades em tempos de mudana .................................... 11Carlos Lopes, Ignacy Sachs, Ladislau Dowbor

    Crises convergentes: realidade, medo e esperana ................................. 29Susan George

    Condenados a inventar: desafios para a Cpula da Terra de 2012 ........ 37Ignacy Sachs

    Novas fraturas, feridas antigas: a revitalizao daAgncia do Sul ......................................................................................... 43

    Carlos Lopes

    As mltiplas crises e o fracasso da governana global ........................... 55Peter Wahl

    Desenvolvimento com trabalho, renda e direitos: construindorelaes sociais e de trabalho mais democrticas e sustentveis ............ 69Artur Henrique

    A grande sntese ps-neoliberal .............................................................. 79Jos Carlos de Assis

    A caminho de uma nova ordem econmica? .......................................... 87Mrio Murteira

    Crise da civilizao hegemnica e interaprendizagem deparadigmas alternativos .......................................................................... 97Roberto Espinoza

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    Riscos e oportunidades

    A Amrica Latina na crise mundial ...................................................... 103Paul Singer

    Nordeste em transformao: panorama socioeconmico e

    entraves para o desenvolvimento .......................................................... 113Airton Saboya Valente Junior

    Fundos Rotativos Solidrios: dilemas, avanos e esperanas deuma poltica pblica inclusiva no marco da economia solidriano Nordeste do Brasil ............................................................................ 123Clarcio dos Santos Filho

    Territrios - inovao e sustentabilidade .............................................. 137Juarez de Paula

    A crise e as oportunidades para uma agenda demudanas estruturais .......................................................................... 143Moacir Gadotti

    Dez mandamentos do Ministrio da Cultura nasgestes Gil e Juca ................................................................................... 147

    Alredo Manevy

    O Programa Territrios da Cidadania como alternativa deconstruo de um novo modelo de desenvolvimento .......................... 161Svio da Silva Costa

    Batalhas da comunicao: novas iniciativas Sul-Sul ............................ 169Carlos ibrcio

    Estado e desenvolvimento: instituies e democracia .......................... 173Jos Celso Cardoso Jnior e Jos Carlos dos Santos (Zeca)

    Para alm da austeridade: as prioridades econmicas em fasecom a questo social .............................................................................. 183Marcio Pochmann e Milko Matijascic

    A crise e as oportunidades .................................................................... 201Silvio Caccia Bava

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    A proteo social como perspectiva de transformaodo Estado e da sociedade ....................................................................... 209Sonia Fleury

    Em direo Renda Bsica de Cidadania ............................................. 217Eduardo Matarazzo Suplicy

    Migraes intrarregionais, integrao polticae desigualdade econmico-social .......................................................... 233Neide Patarra

    Olhando o futuro ................................................................................... 253Amir Khair

    A oportunidade nossa frente .............................................................. 255Antonio Martins

    Os rumos do Brasil ................................................................................ 269Ladislau Dowbor

    Instituto Paulo Freire

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    Apresentao

    Coordenao cientfica do Projeto Crises e Oportunidades

    Opresente volume az parte de um esoro mais amplo de construo de uma agendade mudanas, rente ao conjunto de crises que convergem e que ameaam o pla-neta. Nada de catastrofismo: bom senso. J oi dito que expandir indefinidamenteo consumo num planeta de dimenses limitadas s pode ser pensado por um idiota, ou porum economista. Somos sete bilhes de pessoas, e 75 milhes a mais a cada ano, todos queren-do consumir mais, jogar o lixo produzido como se no tivesse custo ou impacto ambiental,poluindo os rios como se no precisssemos de gua, esgotando os lenis reticos porque

    as tcnicas modernas permitem, liquidando um petrleo no renovvel sem pensar nas pr-ximas geraes, praticando uma sobrepesca que rompe as cadeias alimentares dos oceanos,desmatando para exportar carne, esterilizando os solos. E estamos gerando uma alteraoclimtica que ameaa a prpria vida no planeta.

    Estaramos vivendo melhor, com estes rumos? Os desequilbrios sociais esto se demons-trando to dramticos como os desequilbrios ambientais. J morreram 25 milhes de pessoasde Aids, e estamos discutindo o valor das patentes, porque a pirataria, evidentemente, no ti-ca. Deixamos morrer dez milhes de crianas por ano de causas ridculas, e aparentemente no um problema tico, nada em todo caso que no seja resolvido com um pequeno programa cor-porativo de ajuda a uma avela ou a uma escola. A Organizao das Naes Unidas para Agricul-

    tura e Alimentao (FAO) mostra que, com a crise financeira de 2008, o nmero de desnutridosdo planeta subiu de 900 para 1.020 milhes, em particular porque houve um deslocamento deaplicaes especulativas de papis financeiros para commodities, encarecendo os gros. Nadadisto, aparentemente, constitui uma situao de crise. Crise quando os especuladores paramde ganhar dinheiro, e para enrent-la todo o dinheiro necessrio oi encontrado, dezenas de

    vezes o que seria necessrio para enrentar os dois dramas do planeta: o ambiental e o social.O n da crise, na realidade, est no ato de que vivemos num planeta em grande parte

    desgovernado. No se consegue orientar os recursos humanos, financeiros, tecnolgicos ede inormao para o que realmente importa: a priorizao das situaes mais crticas desorimento no planeta, as situaes simplesmente inaceitveis; o enrentamento sistemtico

    das desigualdades de acesso renda e aos processos produtivos; a reduo em ritmo demobilizao planetria das emisses de gases de eeito estua; a aplicao das tecnologiasna generalizao de processos limpos de produo; a conteno drstica do conjunto dedesperdcios que permeiam todas as nossas cadeias de produo e de consumo; a reduodo martelamento de idiotices publicitrias que incitam um consumismo sem sentido, e apromoo de uma sociedade inormada sobre o que realmente podemos azer no nossoplaneta com os meios que temos. As tecnologias de inormao e a conectividade planetriapermitem este deslocamento em proundidade que podemos chamar, de orma ampla, deuma nova cultura do desenvolvimento.

    Gente de bom senso est ajudando a construir uma nova agenda. A nossa participao, doncleo Crises e Oportunidades, busca, alm das crises, as oportunidades que surgem. Nasceude reunies com Ignacy Sachs, o primeiro a propor este processo de construo colaborativade ideias; seguiu com reunies que incluram Paul Singer, nia Bacelar, Eduardo MatarazzoSuplicy, Mrcio Pochmann, Carlos Lopes e dezenas de outras pessoas que hoje figuram na

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    Riscos e oportunidades

    plataorma de discusso www.criseoportunidade.wordpress.com e contribuem com textos,ideias, propostas.

    Em janeiro de 2010, no Frum Social Mundial (FSM) emtico, de Salvador da Bahia,os temas-chave oram amplamente discutidos em mesa redonda. Amadurecidos, hoje soapresentados no presente volume. Em linhas gerais, so textos que caracterizam a crise ci-

    vilizatria que vivemos, nas suas diversas dimenses, reunindo enoques econmicos,polticos, inanceiros, culturais, territoriais. emos vises acadmicas do mundo do traba-lho, do mundo empresarial, dos movimentos sociais, do governo. H uma convergncia clara,no conjunto, para a viso propositiva, com a conscincia de que nenhum segmento socialpoderia carregar sozinho a dimenso das mudanas necessrias. medida que as diversasdimenses da crise se aproundam, mais agentes da sociedade deixam de lado simplificaesideolgicas, e buscam respostas em articulao uns com os outros. rata-se de uma boa dosede tica combinada com bom senso. Os autores reunidos no presente livro refletem estaspreocupaes, e a diversidade das suas experincias resulta numa viso de conjunto particu-larmente rica.

    O Banco do Nordeste encampou esta ideia, que transormamos no projeto Crises eOportunidades, e assegurou um financiamento bsico para a sua expanso. O Instituto dePesquisa Econmica Aplicada (Ipea) aderiu e deu sustento. O Instituto Paulo Freire (IPF) seencarregou da gesto, e hoje podemos dizer que este barquinho cheio de ideias flutua, e estcomeando a navegar com um certo rumo, ainda que as guas sejam revoltas.

    odos os textos deste documento esto disponveis online no sitewww.criseoportunidade.wordpress.com, podendo ser livremente divulgados para fins nocomerciais, no regime Creative Commons, sempre assegurando a citao da onte e a ma-nuteno da integridade dos textos.

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    Crises e oportunidades em tempos de mudana

    Documento de referncia para as atividades do ncleo Crises e Oportunidades no

    Frum Social Mundial Temtico/Bahia Janeiro de 20101

    Carlos Lopes2, Ignacy Sachs3, Ladislau Dowbor4

    odos temos as nossas crises prediletas. So as crises dos valores, das pandemias, da demogra-fia, da economia, da energia, da especulao financeira, da educao, da pasteurizao cultu-ral, de identidades, da banalizao da vida, da misria que explode no mundo, da alta de guaque j atinge mais de um bilho de pessoas. A questo no mais a de escolher a crise que nos pareamais ameaadora. A verdadeira ameaa vem de uma convergncia impressionante de tendnciascrticas, da sinergia de um conjunto de comportamentos at compreensveis, mas proundamenteirresponsveis, e requentemente criminosos, que assolam a nossa pequena espaonave.

    Nas ltimas dcadas, echamos o horizonte estatstico do planeta. Com todas as variaespossveis nos detalhes, no conjunto, hoje sabemos o que est acontecendo. E a imagem que emerge simplesmente trgica. Inicialmente oi vista em ragmentos. Na cidade do Rio de Janeiro (Bra-sil), em 1992, ampliamos a nossa viso do que est acontecendo com o meio ambiente; em Viena(ustria), com os direitos humanos; no Cairo (Egito), com o crescimento populacional; em Beijing(China), com o papel das mulheres; em Istanbul (urquia), com a urbanizao; em Copenhague(Dinamarca) de 1996, com a situao social do planeta, em Johanesburgo (rica do Sul), em 2002,com o desenvolvimento sustentvel, antes de vermos agora, de novo, em Copenhague, a dimensodos desafios climticos. Hoje, mesmo sem grandes reunies planetrias, nos damos conta, em rela-trios que cobrem desde a extino das espcies at a acidificao dos oceanos e o esgotamento de

    metais raros, que enrentamos um desafio sistmico, onde j no cabem simples arranjos nas or-mas como organizamos o que podemos chamar, de maneira ampla, de gesto da sociedade. Umaoutra gesto inevitvel. Os desafios so simplesmente vitais, no sentido mais direto do termo.

    Somos todos avessos a catastrofismos. No queremos parecer bruxos que pintam um uturo ne-gro. O Clube de Roma, de certa maneira, nos vacinou contra alertas que nos pareceram prematuros.Hoje estamos comeando a avaliar de orma mais sensata o realismo destas previses. Com os dadosse cruzando de orma coerente, com a generalizao e apereioamento dos modelos, com a prpriaacessibilidade online das mais variadas pesquisas cientficas, permitindo a conrontao dos dadosde inmeros ncleos de pesquisa, o uturo deixou de ser uma vaga ameaa, um desenho inseguro.De certa orma, nas nossas conscincias, o uturo chegou. Na orte expresso adotada como ttulo do

    Frum Social Mundial emtico, em Salvador, trata-se de uma crise civilizatria.1 O conjunto de iniciativas do ncleo Crises e Oportunidades, inclusive o presente texto, pode ser acessado em www.crise-

    oportunidade.worpress.com.

    2 Doutor em Histria pela Universidade de Paris 1, Pantheon-Sorbonne, especialista em desenvolvimento pela Universidadede Genebra. Foi consultor da Organizao das Naes Unidas para a Educao, Cincias e Cultura (Unesco) e da ComissoEconmica das Naes Unidas para rica (CEA). Atualmente diretor executivo da United Nations Intitute or raining andResearch (Unitar) e subsecretrio-geral da ONU. Publicou diversas obras e participa de 12 conselhos acadmicos.

    3 Socioeconomista e proessor titular da cole des Hautes tudes en Sciences Sociales(Escola de Estudos Avanados em CinciasSociais) de Paris. Nessa instituio, undou, em 1973, o Centro Internacional de Pesquisas em Meio Ambiente e Desenvolvimen-to o qual dirigiu at 1985 e o Centro de Pesquisas sobre o Brasil Contemporneo, do qual atualmente codiretor. Sua maisrecente publicao no Brasil :A terceira margem - em busca do Ecodesenvolvimento. (So Paulo: Companhia das Letras, 2009).

    4 Doutor em Cincias Econmicas pela Escola Central de Planejamento e Estatstica de Varsvia, proessor titular da PonticiaUniversidade Catlica de So Paulo (PUC-SP) e consultor de diversas agncias das Naes Unidas. autor de Democra-cia Econmica,A Reproduo Social: propostas para uma gesto descentralizada, O Mosaico Partido:a economia alm dasequaes, ecnologias do Conhecimento: os Desafios da Educao, todos pela Editora Vozes, alm de O que Acontece com orabalho?, Ed. Senac, e co-organizador da coletnea Economia Social no Brasil, Ed. Senac. Seus numerosos trabalhos sobreplanejamento econmico e social esto disponveis no site:http://dowbor.org . Contato:[email protected]

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    E nos preocupamos tambm em manter o realismo, seno nos nossos desejos que podemser infinitos, pelo menos nas nossas propostas. Mas este realismo tem de ser qualificado. Namaioria dos casos, ao olhar o dicil que obter o mnimo avano de reduo da poluio, oualguma proteo para crianas em situao de risco, achamos que colocar os nossos objetivosmuito alto alimenta bons sonhos, mas no assegura boas polticas. Hoje, com a dimenso das

    ameaas, a viso tende a se deslocar. emos de colocar no nosso horizonte realista aes queassegurem a sobrevivncia das espcies na terra e nos mares, a manuteno das condies dereproduo da nossa prpria vida. Qual o mnimo que assegura a sobrevivncia? Um polti-co pode se dar ao luxo de pensar de quanto vai reduzir as suas aspiraes, para conseguir um

    voto avorvel sua proposta. Ns, como construtores de vises, temos de deixar claro, sim,qual o mnimo necessrio para evitar a catstroe e assegurar uma vida digna e sustentvel.

    A nossa tarea, neste sentido, de definir horizontes mnimos de resultados sistmicos quetemos de obter, j no como sonho de um mundo possvel, mas como exigncia do que neces-srio. E rente a estes resultados sistmicos, irmos definindo estratgias, propostas, agendas.

    odos j estamos, sem dvida, cansados de azer isto. E cansados de ver as propostas rejeitadas

    ou adiadas, as anlises serem diludas em supostas dvidas cientficas, e o planeta embalado no ma-rasmo to bem qualificado de business as usual. O que nos est tirando do business as usual, o quetransorma a crise em oportunidade o ato que a crise atinge muita gente, e est se tornando de umaevidncia mais palpvel. Como humanidade, estamos reagindo de maneira realista: ou seja, estamosreagindo no quando a gua estava nas canelas, mas quando comea a chegar ao pescoo.

    O exerccio que pretendemos no presente texto, ao apresentarmos argumentos para esti-mular a discusso e provocar propostas, apontar os principais eixos de mudana, e as poss-

    veis convergncias de ao. Porque o que temos pela rente um imenso esoro planetrio deagregao de oras, de articulao em rede, de aproundamento da compreenso dos desafios,de ampla comunicao, visando gerar uma massa crtica de conhecimento por parte dos mais

    variados atores sociais. O educador Paulo Freire (1921-1997) definia bem a nossa tarea: somosos andarilhos do bvio. Dizia isto com bom humor, pois o bom humor az parte do processo.

    Queremos parar de nos matar de trabalhar para construir coisas inteis e destruir o planeta.Queremos priorizar radicalmente a melhoria da situao de um bilho de pessoas que passamome e de dez milhes de crianas que morrem anualmente de causas ridculas. Queremos aprosaica qualidade de vida, o prazer do cotidiano, em paz, para todos, e de orma sustentvel.

    O sistema hoje vigente produz muitos bilionrios, mas no responde aos anseios de umavida digna e sustentvel para todos. Na realidade, agrava todos os problemas, e nos empurrapara impasses cada vez mais catastrficos. emos um deslocamento tico undamental pela

    rente: parar de nos admirar com a ortuna dos aortunados, como se ossem smbolos de su-cesso. A tica do sucesso deve estar centrada no que cada um de ns, individualmente ou ematividades institucionais, contribui para melhorar o planeta, e no no quanto consegue delearrancar, ostentando ortunas e escondendo os custos.5

    Aproveitamos aqui vrios documentos, aportes dos mais variados pesquisadores, porque setrata essencialmente de sistematizar pontos-chave, de acilitar a convergncia dos nossos esor-os. Apoiamo-nos em particular nos aportes da ampla conerncia sobre a crise e o desenvolvi-mento de Braslia (Brasil), em maro de 2009, buscando construir sobre o j adquirido.

    I A DIMENSO DOS DESAFIOS

    Focaremos aqui o que nos parecem ser os quatro principais desafios, ou vetores de

    5 Os rios de dinheiro e embustes utilizados pela ExxonMobil e outras empresas para tentar camuflar os impactos da mudan-a climtica e outros desastres ambientais esto descritos em detalhe no livro de HOGGAN, James. Climate Cover-up; thecrusade to deny global warming,Vancouver Greystone Books, 2009.

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    desequilbrio que nos ameaam. rata-se de salvar o planeta, de reduzir as desigualdades, deassegurar o acesso ao trabalho digno e de corrigir as prioridades produtivas.

    A convergncia dos desequilbrios

    O grfico que apresentamos abaixo constitui um resumo de macrotendncias, no perodo hist-rico que vai de 1750 at a atualidade. As escalas tiveram de ser compatibilizadas, e algumas das linhasrepresentam processos para os quais temos ciras apenas mais recentes. Mas, no conjunto, o grficopermite juntar reas tradicionalmente estudadas separadamente, como demografia, clima, produode carros, consumo de papel, contaminao da gua, liquidao da vida nos mares e outros. A siner-gia do processo torna-se bvia, como se torna bvia a dimenso dos desafios ambientais6.

    Fonte:New Scientist,October 18,

    2008, p. 40.

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    01 NOTHERN HEMISPHERE AVERAGE SURFACE TEMPERATUTE

    02 P OPULATION

    03 C O2 CONCENTRATION

    04 GDP

    05 L OSS OF TROPICAL RAINFROREST AND WOODLAND

    06 SPECIES EXTINCTIONS07 M OTOR VEHICLES

    08 W ATER USE

    09 P APER CONSUMPTION

    10 F ISHERIES EXPLOITED

    11 O ZONE DEPLETION

    12 F OREIGN INVESTMENT

    1750 1800 1850 1900 1950 2000

    O comentrio do New Scientist sobre estas macrotendncias oca diretamente onosso prprio conceito de crescimento econmico.

    A cincia nos diz que, se queremos ser srios com a viso de salvar a terra, precisamos daroutra orma nossa economia. Isso, naturalmente, constitui uma heresia econmica. O cresci-mento, para a maioria dos economistas, to essencial como o ar que respiramos: seria, dizem,a nica ora capaz de tirar os pobres da pobreza, de alimentar a crescente populao mundial,de enrentar os custos crescentes dos gastos pblicos e de estimular o desenvolvimento tecno-

    lgico isso sem mencionar o financiamento de estilos de vida cada vez mais caros. Eles noveem limites ao crescimento, nunca. Nas semanas recentes tornou-se claro quo aterrorizadosesto os governos por qualquer coisa que ameace o crescimento, enquanto derramam bilhesem dinheiro pblico num sistema financeiro em alncia. No meio da conuso, qualquer ques-tionamento do dogma do crescimento precisa ser visto de orma muito cuidadosa. O questio-namento apoia-se numa questo duradoura: como conciliamos os recursos finitos da terra como ato que medida que a economia cresce, o montante de recursos naturais necessrio parasustentar a atividade tambm deve crescer? Levamos toda a histria humana para a economiaatingir a sua dimenso atual. Na orma corrente, levar apenas duas dcadas para dobrar7.

    6 New Scientist, p. 40, 18 oct. 2008. Para acessar o grfico online veja http://dowbor.org/ar/ns.doc; o dossi completo podeser consultado em www.newscientist.com/opinion; os quadros de apoio e ontes primrias podem ser vistos em http://do-wbor.org/ar/08_ns_overconsumption.pd; contriburam para o dossi: im Jackson, David Suzuki, Jo Marchant, HermanDaly, Gus Speth, Liz Else, Andrew Simms, Susan George e Kate Soper.

    7 No original: Te science tells us that i we are serious about saving the Earth, we must reshape our economy. Tis, ocourse, is economic heresy. Growth to most economists is as essential as the air we breathe: it is, they claim, the only orce

    Instituto Paulo Freire

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    A convergncia das tenses geradas para o planeta torna-se evidente. No podemos maisnos congratular com o aumento da pesca quando estamos liquidando a vida nos mares, oucom o aumento da produo agrcola quando estamos liquidando os aqueros e contaminan-do as reservas planetrias de gua doce. Isto sem alar do aumento de produo de automveise da expanso de outras cadeias produtivas geradoras de aquecimento climtico. As solues

    tm de ser sistmicas. Esta viso mais ampla pode e apenas pode viabilizar mudanas maisproundas, ao estender o nvel de conscincia dos desafios.Qual desenvolvimento queremos? E para este desenvolvimento, que Estado e que meca-

    nismos de regulao so necessrios? No h como minimizar a dimenso dos desafios. Comsete bilhes de habitantes e 75 milhes a mais a cada ano que buscam um consumo cada

    vez mais desenreado, e manejam tecnologias cada vez mais poderosas, o nosso planeta mos-tra toda a sua ragilidade. E ns, a nossa irresponsabilidade ou impotncia.

    O escndalo da desigualdade

    A financeirizao dos processos econmicos vem h dcadas se alimentando da apropria-o dos ganhos da produtividade que a revoluo tecnolgica em curso permite, de orma radi-calmente desequilibrada. No o caso de desenvolver o processo aqui, mas importante lembrarque a concentrao de renda no planeta est atingindo limites absolutamente obscenos8.

    Distribution o Income

    82,7%

    11,7%

    2,3%

    1,9%

    1,4%

    Fonte:

    Relatrios deDesenvolvimentoHumano (1992,

    p. 35; 2005, p. 37).

    A imagem da taa de champagne extremamente expressiva, pois mostra quem tomaque parte do contedo, e em geral as pessoas no tm conscincia da proundidade do drama.

    capable o lifing the poor out o poverty, eeding the worlds growing population, meeting the costs o rising public spen-ding and stimulating technological development not to mention unding increasingly expensive liestyles. Tey see nolimits to growth, ever. In recent weeks it has become clear just how terrified governments are o anything that threatensgrowth, as they pour billions o public money into a ailing financial system. Amid the conusion, any challenge to the growthdogma needs to be looked at very careully. Tis one is built on a long standing question: how do we square Earths finiteresources with the act that as the economy grows, the amount o natural resources needed to sustain that activity mustgrow too? It has taken all o human history or the economy to reach its current size. On current orm, it will take just twodecades to double. New Scientist, p. 40, 18 oct. 2008.

    8 H imensa literatura sobre o assunto. O grfico anexo, conhecido como taa de champagne, do Relatrio de Desenvol-

    vimento Humano 1992 das Naes Unidas; para uma atualizao em 2005, ver Relatrio de Desenvolvimento Humano2005, p. 37. A taa de champagne apenas afinou o gargalo, no houve mudanas substantivas. Uma excelente anlise doagravamento recente destes nmeros pode ser encontrada no relatrio Report on the World Social Situation 2005, Te Ine-quality Predicament. New York: United Nations, 2005.O documento do Banco Mundial, Te next 4 billion,que avalia em4 bilhes as pessoas que esto ora dos benecios da globalizao, igualmente interessante (IFC. Te Next 4 Billion.Washington, 2007). Estamos alando de dois teros da populao mundial.

    Riscos e oportunidades

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    Os 20% mais ricos se apropriam de 82,7% da renda. Como ordem de grandeza, os dois terosmais pobres tm acesso a apenas 6%. Em 1960, a renda apropriada pelos 20% mais ricos erasetenta vezes o equivalente dos 20% mais pobres; em 1989, era cento e quarenta vezes. A con-centrao de renda absolutamente escandalosa, e nos obriga a ver de rente tanto o problematico, da injustia e dos dramas de bilhes de pessoas, como o problema econmico, pois

    estamos excluindo bilhes de pessoas que poderiam estar no s vivendo melhor, como con-tribuindo de orma mais ampla com a sua capacidade produtiva. No haver tranquilidade noplaneta enquanto a economia or organizada em uno de um tero da populao mundial.

    Esta concentrao no se deve apenas especulao financeira, mas a contribuio significa-tiva e, sobretudo, absurdo desviar o capital de prioridades planetrias bvias. Te Economisttrazuma cira impressionante sobre o excedente social, gerado essencialmente por avanos tecnolgicosda rea produtiva, mas apropriado pelo setor que qualifica de indstria de servios financeiros:A indstria de servios financeiros est condenada a sorer uma horrvel contrao. Na Amrica aparticipao desta indstria nos lucros corporativos totais subiu de 10% no incio dos anos 1980, para40% no seu pico em 2007. Gera-se uma clara clivagem entre os que trazem inovaes tecnolgicas

    e produzem bens e servios socialmente teis os engenheiros do processo, digamos assim e osistema de intermedirios financeiros que se apropriam do excedente e deormam a orientao doconjunto.Os engenheiros do processo criam importantes avanos tecnolgicos, mas a sua utilizaoe comercializao pertence a departamentos de finanas, de marketing e de assuntos jurdicos, quedominam nas empresas e se apropriam da sua utilizao. um sistema que gerou um proundo di-

    vrcio entre quem contribui produtivamente para a sociedade e quem remunerado.9

    Ao juntarmos os dois grficos, o do New Scientistsobre os megatrendshistricos, e a dataa de champagne do Relatrio de Desenvolvimento Humano, chegamos a uma conclu-so bastante bvia: estamos destruindo o planeta, para o proveito de um tero da populaomundial. Estes so os dados bsicos que orientam as nossas aes uturas: inverter a marcha

    da destruio do planeta e reduzir a desigualdade acumulada. importante lembrar que a nossa principal medida de progresso, o PIB, no mede ne-

    nhum dos dois, pois no contabiliza a reduo do capital natural do planeta, contabiliza comopositiva a poluio, que exige grandes programas de recuperao, e na realidade apresenta-nos apenas a mdia nacional de intensidade de uso da mquina produtiva10. E lembrar tam-bm que o motivador principal dos investimentos privados, o lucro, age contra ambos: temtudo a ganhar com a extrao mxima de recursos naturais e a externalizao de custos, e notem nada a ganhar com quem tem pouca capacidade aquisitiva. A motivao do lucro, emcurto prazo, age naturalmente tanto contra a preservao como contra a igualdade.

    O desafio do acesso ao trabalho digno

    A desigualdade e a sustentabilidade esto diretamente ligadas aos desequilbrios na inclu-so nos processos produtivos. A mo de obra, a nossa imensa capacidade ociosa de produo,mais parece um problema do que uma oportunidade. Na orma atual de uso dos atores deproduo e das tecnologias, a incluso produtiva a exceo. No Brasil, temos cento e noven-ta milhes de habitantes. Destes, cento e trinta milhes esto em idade ativa, entre 15 e 64anos, pelo critrio internacional. Na populao economicamente ativa, temos cem milhesde pessoas, o que j aponta para uma subutilizao signiicativa. As estatsticas do em-

    9 No original, Te financial-services industry is condemned to suffer a horrible contraction. In America the industrys shareo total corporate profits climbed rom 10% in the early 1980s to 40% at its peak in 2007. Te economist, A Special Reporton the Future o Finance,p. 20, 24 jan. 2009.

    10 Ver, em particular, o relatrio de Amartya Sen, Joseph Stiglitz e Jean Paul Fitoussi, Report by the Commission on the Mea-surement o Economic Perormance and Social Progress,disponvel em www.stiglitz-sen-fitoussi.r.

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    prego, por sua vez, mostram que temos neste ano apenas 31 milhes de pessoas ormalmenteempregadas no setor privado, com carteira assinada. Podemos acrescentar os nove milhesde uncionrios pblicos do Pas, e chegamos a quarenta milhes. Ainda assim, estamos lon-ge da conta. O que azem os outros? emos empresrios, sem dvida, bem como uma massaclassificada como autnomos, alm de cerca de 15 milhes de desempregados. No conjunto,

    orma-se um imenso setor de pessoas classificadas no conceito vago de inormais, avaliadospelo O Instituto dePesquisa Econmica Aplicada (Ipea) em 51% da populao economica-mente ativa. O estudo sublinha que a existncia dessa parcela de trabalhadores margemdo sistema no pode em nenhuma hiptese ser encarada como uma soluo para o mercado(IPEA, 2006, p. 346). Essa parcela representa a metade do pas11.

    O ato essencial para ns que o modelo atual subutiliza a metade das capacidades pro-dutivas do Pas. E imaginar que o crescimento centrado em empresas transnacionais, grandesextenses de soja (duzentos hectares para gerar um emprego), ou ainda numa hipottica ex-panso do emprego pblico, permitir absorver esta mo de obra, no realista. Evoluir paraormas alternativas de organizao torna-se simplesmente necessrio.

    O drama no Brasil representativo de um universo mais amplo:

    O emprego inormal representa entre a metade e trs quartos do emprego no agrcola na maio-

    ria dos pases em desenvolvimento. A parte dos trabalhadores inormais na ora de trabalho no

    agrcola varia entre 48% na rica do Norte e 51% na Amrica Latina e o Caribe, atingindo 65%

    na sia e 78% na rica subsahariana12.

    Assim, o drama da desigualdade que vimos acima no constitui apenas um problema de dis-tribuio mais justa da renda e da riqueza: envolve a incluso produtiva digna da maioria da po-pulao desempregada, subempregada, ou encurralada nos diversos tipos de atividades inormais.

    O conjunto das propostas que surgem, a partir da Organizao Internacional do rabalho (OI),sobre o trabalho digno, as vises do Banco Mundial sobre os quatro bilhes de excludos dosbenecios da globalizao, e um conjunto de iniciativas de desenvolvimento local encontramaqui a sua lgica: um Produto Interno Bruto (PIB) que cresce mas no inclui as populaes no sustentvel. Estamos alando de quase dois teros da populao mundial a quem se trava o acessoao financiamento, s tecnologias, ao direito de cada um ganhar o po da sua amlia 13.

    A deformao das prioridades

    A tabela abaixo, extrada do Relatrio de Desenvolvimento Humano de 1998, apresentaa deormao das prioridades do uso dos recursos no planeta. A leitura simples: no seconseguem os seis bilhes anuais suplementares para universalizar a educao bsica, masse conseguem sim oito bilhes para cosmticos nos EUA, e assim por diante. Os valores sobaixos, pois so dlares que valiam mais na poca, mas o contraste evidente. As ciras maisrecentes apenas se agravaram. Os setecentos e oitenta bilhes de dlares em gastos militares,

    11 Na sua expresso mais direta, o setor inormal encarado como gerador de empregos de baixa qualidade e remunerao,ineficincias e custos econmicos adicionais, constituindo uma distoro a ser combatida... Em 1992 o percentual dainormalidade era de 51,9%, atingiu 53,9% em 1998, voltando a 51,7% em 2003 e caindo para 51,2% em 2004. Os dadosso muito semelhantes praticamente para a totalidade da Amrica Latina. (IPEA. Brasil, o estado de uma nao: mercado

    de trabalho, emprego e inormalidade. Rio de Janeiro: Ipea, 2006. p. 337, 339).

    12 UNIED NAIONS Te Inequality Predicament. New York, 2005. p. 30.

    13 emos hoje inmeros estudos que apresentam propostas prticas tanto para a inormalidade como para a desigualdade degnero, a mudana da jornada de trabalho, polticas locais de incluso e outras, dada a extrema diversidade das situaesherdadas, inclusive o aproveitamento inadequado de universitrios.

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    em 2008, j somam um trilho e meio. E se pensarmos nos trilhes de recursos pblicostranseridos nesta crise para intermedirios financeiros privados, teremos uma ideia do graude absurdo das prioridades.

    Na realidade, o que precisa ser expandido hoje no mundo so os servios bsicos essenciaisda humanidade, e muito menos os bens sicos de consumo. Em particular, h coisas que no

    podem altar a ningum. O planeta produz quase um quilo de gros por dia e por habitante, etemos um bilho de pessoas que passam ome. Os dez milhes de crianas que morrem de omee de alta de acesso gua limpa e causas semelhantes, constituem um escndalo insustentvel.Mas do ponto de vista do investimento privado, resolver problemas essenciais no rende, e oconjunto da orientao das nossas capacidades produtivas se v radicalmente deormado.

    Fonte:

    Euromonitor 1997; UN1997g; UNDP, UNFPA,ed. UNICEF, 1994;Worldwide Research,Advisory and BusinessIntelligence Services,1997. Human develo-

    pment Report, 1998,New York, p. 37.

    GASOS ANUAIS EM DLARES

    Educao bsica para todos $ 6 bilhes*

    Cosmticos nos EUA $ 8 bilhes

    gua e servios sanitrios bsicos $ 9 bilhes

    Sorvetes na Europa $ 11 bilhes

    Sade reprodutiva das mulheres $ 12 bilhes

    Perumes na Europa e nos EUA $ 12 bilhes

    Sade bsica e nutrio $ 13 bilhes

    Rao para animais de estimao na Europa e EUA $ 17 bilhes

    Entretenimento corporativo no Japo $ 35 bilhes

    Cigarros na Europa $ 50 bilhes

    Bebidas alcolicas na Europa $ 105 bilhes

    Drogas no mundo $ 400 bilhes

    Gastos militares no mundo $ 780 bilhes

    * Estimativa de custo anual adicional para alcanar o acesso aos servios sociais bsicos em todos os pases em desenvolvimento.

    Aparece como inevitvel, no horizonte poltico, a democratizao das decises sobre comoso utilizados os recursos econmicos do planeta, incluindo aqui no s os recursos dos ora-mentos pblicos, mas a orientao das aplicaes dos gigantescos recursos de undos de pen-so e dos grandes intermedirios e especuladores financeiros. No podemos continuar a andarcompletamente deriva em termos da priorizao dos nossos objetivos. O uso dos recursos, que

    so o resultado dos esoros do conjunto da sociedade, deve obedecer a uma viso sistmica e delongo prazo, obedecendo s prioridades crticas de reduzir os desastres sociais e ambientais.Em termos das megatendncias econmicas, sociais e ambientais, portanto, estamos deriva.

    Estamos destruindo o planeta em avor de uma minoria, para ampliar a oerta de bens sem critriosde prioridade de uso ou de impacto ambiental e social, concentrando-nos em tecnologias de ponta,sem assegurar os mecanismos de acesso correspondentes. E temos como pano de undo a imensa ta-rea de organizar a transio para outro paradigma energtico produtivo, a era ps-petrleo. Semprehaver quem espere que uma mo invisvel resolva estes desafios. Quem aqui so os sonhadores?

    II RESGATAR A CAPACIDADE DE GESTO PBLICA

    Na discusso de um outro mundo que esperamos seja possvel, temos de evoluir cada vez maispara o como azer, para os mecanismos de gesto correspondentes, para a descoberta das brechasque existem no sistema, no sentido da sua transormao. O mundo no vai parar em determinado

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    momento para passar a uncionar de outro modo. Cabe a ns introduzir, ou reorar, as tendnciasde mudana. A anlise dos processos decisrios e a busca de correes tornaram-se central.

    O que emerge como eixo central de reflexo, portanto, a inadequao dos processosdecisrios nas diversas tendncias crticas que temos de enrentar. Enrentar o desafio am-biental planetrio exige processos colaborativos e a construo de uma cultura de pactos pelo

    bem comum, ou pelo menos para evitar o desastre comum. A ruptura do ciclo da pobreza eda desigualdade implica no deslocamento da viso tradicional que atrai investimentos paraonde se situa a capacidade de compra e, portanto, envolve a mudana da chamada governanacorporativa. O processo de incluso produtiva dos quase dois teros de excludos envolve umaoutra lgica do emprego, ormas mltiplas e dierenciadas de insero na produo de bens eservios. O resgate destas prioridades reais do planeta e da humanidade envolve por sua vezuma participao muito mais significativa do Estado, que com todas as suas ragilidades aindaconstitui o melhor instrumento de coordenao de esoros sociais de que dispomos. Mas setrata de um Estado muito mais regulador do conjunto dos esoros da sociedade. indispen-svel o resgate da viso sistmica, da viso de longo prazo, e dos mecanismos de planejamen-

    to. Estamos alando, na realidade, da construo de uma outra cultura poltica.Naturalmente, todos nos sentimos pequenos rente a processos de mudana deste porte.

    E podemos achar que colocar os desafios to altos no realista. O ato que ningum nosest perguntando se queremos ou no enrentar a tarea. O aquecimento global no est es-perando que estejamos de acordo, nem o esgotamento do petrleo, nem a explorao semcontrole dos mares, nem a perda de cobertura florestal, nem o vrus da Aids. E a lista longa.Outras ormas de gesto so inevitveis, a nica pergunta realista se queremos pagar umpreo menor agora, ou muito maior mais rente.

    Reforar e democratizar o Estado

    As crticas ao tamanho do setor pblico refletiram no passado recente uma viso ideol-gica e conhecimento ragmentado da realidade. Nas palavras de um diretor da cole NationaledAdministration, a amosa ENA, melhorar a produtividade do setor pblico constitui a me-lhor maneira de melhorar a produtividade sistmica de toda a sociedade. O Relatrio Mundialsobre o Setor Pblico, elaborado pelas Naes Unidas em 2005, mostra a evoluo que houvea partir da viso tradicional da Administrao Pblica baseada em obedincia, controlesrgidos e conceito de autoridades, transitando por uma ase em que se buscou uma gestomais empresarial, na linha do public management que nos deu, por exemplo, o conceito de

    gestor da cidade no lugar do preeito, e desembocando agora na viso mais moderna que orelatrio chama de governana participativa ou responsive governance.Esta ltima orma de organizao implica que no espao pblico a boa gesto se conse-

    gue por meio da articulao inteligente e equilibrada do conjunto dos atores interessados nodesenvolvimento, os chamados atores interessados, ou stakeholders. uma gesto que buscaresponder, ou corresponder aos interesses que dierentes grupos maniestam, e supe sis-temas amplamente participativos, e em todo caso mais democrticos, na linha da governanaparticipativa, alm da ampliao da transparncia de todos os processos.

    A evoluo da administrao pblica tradicional (Public Administration) para o New PublicManagement se baseou numa viso privatista da gesto, buscando chefias mais eficientes. A evolu-

    o mais recente para o responsive governance, que traduzimos aqui por governana participativa,est baseada numa proposta mais pblica, onde as chefias escutam melhor o cidado, e onde aparticipao cidad, atravs de processos mais democrticos, que assegura que os administradoressero mais eficientes, pois mais afinados com o que deles se deseja. a dierena entre a eficincia

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    autoritria por cima e a eficincia democrtica pela base. A eficincia medida no s no resulta-do, mas no processo.

    O quadro abaixo ajuda a visualizar esta evoluo:

    Evoluo do conceito de governo

    O modelo de governana [...] enatiza um governo aberto e que se relaciona com a sociedade

    civil, mais responsabilizada e melhor regulada por controles externos e a lei. Prope-se que a

    sociedade tenha voz atravs de organizaes no governamentais e participao comunitria.

    Portanto o modelo de governana tende a se concentrar mais na incorporao e incluso dos

    cidados em todos os seus papis de atores interessados (stakeholders), no se limitando a satis-

    azer clientes, numa linha mais afinada com a noo de criao de valor pblico. [] A teoria

    da governana olha para alm da reorma da gesto e dos servios, apontando para novos tipos

    de articulao Estado-sociedade, bem como para ormas de governo com nveis mais dieren-

    ciados e descentrados. [] A abertura (openness) e transparncia constituem portanto parte

    deste modelo emergente (UN. World Public Sector Report. New York, 2005. p.13).

    O novo modelo que emerge est essencialmente centrado numa viso mais democrtica, comparticipao direta dos atores interessados, maior transparncia, com orte abertura para as novastecnologias da inormao e comunicao, e solues organizacionais para assegurar a interatividadeentre governo e cidadania. A viso envolve sistemas de gesto do conhecimento mais sofisticados,

    com um papel importante do aproveitamento das novas tecnologias de inormao e comunicao.Para a discusso no Brasil e na Amrica Latina, estes pontos so muito importantes. m avirtude de ultrapassar vises saudosistas autoritrias, e tambm a pseudomodernizao que colo-cava um manager onde antes tnhamos um poltico, resultando numa mudana cosmtica porcima. uma evoluo que busca a construo de uma capacidade real de resoluo de problemasatravs das pactuaes necessrias com a sociedade realmente existente. Esta sistematizao detendncias mundiais vem dar maior credibilidade aos que lutam pela reapropriao das polticaspela cidadania, na base da sociedade, em vez da troca de uma soluo autoritria por outra.

    A alocao racional de recursos

    A alocao de recursos eita por intermedirios, sejam eles governo, bancos, seguradoras,undos de penso, planos de sade, ou os gigantes planetrios que chamamos de investidores ins-titucionais. odas essas instituies recolhem recursos sob diversas justificativas. Mas so

    Fonte:

    UN. World PublicSector Report. NewYork, 2005. p. 7

    AdministraoPblica

    Nova GestoPblica

    GovernanaParticipativa

    Obedincia Credenciamento Empoderamento

    Polticos Clientes Cidados, atores

    Cumprimento

    de leis e regrasEfcincia e resultados

    Responsabilidade,

    transparncia

    e participao

    Objetivosquantitativos Objetivosqualitativos Processo

    Relaocidado-estado

    Responsabilidadeda administraosuperior

    Princpiosorientadores

    Critrio parasucessoAtributo chave Imparcialidade Profssionalismo Participao

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    intermedirios, ou seja, trabalham com dinheiro que do pblico, e deveriam destinar os recursosa atividades afins.

    O governo, principal intermedirio, aloca os recursos segundo um oramento discutido noparlamento e aprovado em lei. Fato importante: o governo tem de assegurar a captao dos recur-sos que vai investir. A poltica fiscal (azenda) e a aplicao (planejamento) tm de estar casados

    na pea oramentria. No conjunto do planeta, os governos so os maiores gestores de recursos, equanto mais rico o pas, maior a participao do governo nesta mediao.A tabela abaixo interessante, pois mostra esta correlao rigorosa entre o nvel de desen-

    volvimento e a participao do setor pblico. Nos pases de renda baixa, a parte do PIB que cabe aogoverno central de 17,7%, elevando-se numa progresso regular medida que chegamos aos pasesde alta renda14.Falar mal dos governos parece ser um consenso planetrio, mas precisamos cada

    vez mais deles, inclusive nos Estados Unidos.

    Note-se que se trata, na tabela acima, dos gastos do governo central apenas. Os gastospblicos totais so bem mais amplos. H uma dcada os gastos do governo americano eramde 34,3% do PIB, comparados com 48,2% na zona europeia, uma distncia de 14 pontos; em2010, o gasto americano esperado de 39,9% do PIB, comparado com 47,1%, uma distnciade menos de oito pontos percentuais15. Lembremos que a cira equivalente no Brasil de36%. Na Sucia, que ningum vai acusar de ser mal gerida, de 66%. E so ciras anteriores interveno do Estado para salvar os bancos.

    Seja qual or a poltica adotada, portanto, essencial assegurar a qualidade da alocao derecursos por parte do maior ator, o governo. Essa correlao entre o nvel de prosperidade dopas e a participao do setor pblico no misteriosa: simplesmente, o mundo est mudando.Antigamente, ramos populaes rurais dispersas, e as amlias resolviam muitos dos seus pro-blemas individualmente, com a gua no poo e o lixo no mato. Na cidade, generalizam-se osinvestimentos sociais, pois precisamos de redes de gua e esgoto, de guias e sarjetas, de redesescolares, de sistemas de segurana, destino final de resduos slidos e assim por diante, eviden-temente assegurados com orte presena do setor pblico. So servios de consumo coletivo.

    H que levar em conta igualmente, nesta presena crescente do setor pblico em todo o planeta,

    a mudana da composio intersetorial das nossas atividades. H poucas dcadas, o que cham-vamos de atividades produtivas eram essencialmente atividades industriais, agrcolas e comerciais.Hoje, passam a ocupar a linha de rente as polticas sociais. Vale lembrar que o maior setor econ-mico dos Estados Unidos no a indstria blica, nem a automobilstica, mas a sade, com 16%do PIB, e crescendo. No Brasil, somando a populao estudantil, os proessores e gestores da reaeducacional, estamos alando de 60 milhes de pessoas, quase um tero da populao do Pas. Aspolticas sociais esto se tornando um ator poderoso de reestruturao social, pelo seu carter capilar(a sade tem de chegar a cada pessoa) e a sua intensidade em mo de obra. So reas onde, com aexceo dos nichos de alta renda, o setor pblico tem prioridade evidente, requentemente articuladocom organizaes da sociedade civil, outra rea em expanso, caracterizando um setor pblico no

    governamental. A economia social e suas variantes ocupam um lugar crescente no conjunto dasatividades econmicas.14 SCHIEBER, George; FLEISHER, Lis; e GORE, Pablo. Getting Real on Health Financing, Finance and Development. Inter-

    national Monetary Fund, dez. de 2006. Disponvel em: http://www.im.org/external/pubs/f/andd/2006/12/schieber.htm.

    15 Te Economist, p. 37, 14-20 mar. 2009,citando dados do Newsweek.

    Fonte:

    Finance andDevelopment, IMF,dez. 2006

    Pases de:

    Baixa renda

    Renda mdia baixa

    Renda mdia alta

    Alta renda

    Governo central, porcentagem do PIB, incio anos 2000

    17,7

    21,4

    26,9

    31,9

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    Um terceiro eixo de transormao social a evoluo para a sociedade do conhecimento.Hoje, quase todas as atividades envolvem uma orte incorporao de tecnologia, de conheci-mentos dos mais variados tipos, do conjunto do que temos chamado de intangveis, ou deimaterial. Quando o essencial do valor de um produto est no conhecimento incorporado,mudam as ormas de organizao correspondentes. Na base est um amplo processo social

    que envolve as pesquisas dos mais dierentes setores, a generalizao do acesso educao e ossistemas de diuso de inormaes que elevam a densidade de conhecimento no conjunto dasociedade, com ortssima participao de recursos pblicos em todos os nveis. A tendncianatural os conhecimentos se tornarem bem pblico (creative commons), pela acilidade dedisseminao que as tecnologias modernas permitem, e pela compreenso que gradualmentepenetra na sociedade de que o conhecimento se multiplica melhor quando se compartilha. Oconhecimento um bem cujo consumo no reduz o estoque, pelo contrrio.

    Estes so megatrends, macrotendncias que transormam a sociedade, e que exigemde ns sistemas de gesto muito mais diversificados, descentralizados e flexveis. Estamosevoluindo para a sociedade em rede, para sistemas densamente interativos e colaborativos.

    Alianas e parcerias entre diversos segmentos sociais, envolvendo reas tanto pblicas comoprivadas, nos diversos nveis de organizao territorial, esto se generalizando. A urbaniza-o leva a uma ampliao acelerada das dinmicas da gesto local, em que as comunidadesse apropriam do seu desenvolvimento. As polticas sociais geram processos participativos, asociedade do conhecimento nos leva para processos colaborativos em rede.

    O que est acontecendo na realidade um choque do uturogeneralizado, e tanto a quedado muro de Berlim como a pilantragem irresponsvel de Wall Street apenas despertaram,inicialmente na esquerda, depois na direita, a compreenso de que as mudanas precisam sersistmicas. O business as usual (BAU), de ambos os lados do espectro poltico, est saindo orade cena. So as relaes de produo, no sentido amplo, que mudaram, e com isso os meca-

    nismos atuais de regulao tornaram-se, em boa parte, obsoletos.O papel do Estado aparece assim como central, inclusive na dimenso mundial da crise.

    Dada a extrema ragilidade dos instrumentos planetrios de governana, o eixo estratgico deconstruo dos novos sistemas de regulao passar mais pela articulao de polticas nacionaisdo que propriamente pela esera global. O Estado aparece assim com uma uno reorada noplano dos equilbrios internos, e no plano da redefinio das regras do jogo entre as naes.

    O potencial da gesto local

    Com a passagem do milnio, a humanidade tornou-se dominantemente urbana. Isto implicauma outra racionalidade nos processos decisrios e nas instituies que nos regem, pois hoje cada re-gio ou localidade tem um ncleo urbano que pode administrar o seu desenvolvimento, e este ncleotorna-se por sua vez um articulador natural do seu entorno rural, ponto de convergncia de uma ges-to racional do desenvolvimento. Hoje, ainda predominam iniciativas setoriais como Cidades Saud-

    veis, Cidades Educadoras, Agenda 21 Local e assim por diante, mas gradualmente estamos evoluindopara iniciativas integradas como Bogot Como Vamos, Nossa So Paulo e tantas outras.

    O desenvolvimento local permite a apropriao eetiva do desenvolvimento pelas comuni-dades, e a mobilizao destas capacidades vital para um desenvolvimento participativo. In-meras experincias no mundo tm mostrado que o interesse individual das pessoas pelo seu

    progresso unciona eetivamente quando ancorado no desenvolvimento integrado do territrio.Com sistemas simples de seguimento de qualidade de vida local, e o condicionamento do acessoaos recursos estruturao de entidades locais de promoo do desenvolvimento, gera-se a baseorganizacional de um desenvolvimento mais equilibrado. J se oi o tempo em que se acreditava

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    em projetos paraquedas: o desenvolvimento unciona quando participativo, com um razo-vel equilbrio entre o omento externo e a dimenso endgena do processo.

    A racionalidade da alocao dos recursos exige em ltima instncia uma avaliao eficientedo uso final dos emprstimos, coisa bastante mais trabalhosa do que o comrcio de derivativosde outras atividades especulativas. O agente de crdito no nvel local, que conhece o seu bairro

    e a sua comunidade, as necessidades e os potenciais da regio, torna-se de certa maneira umcredenciador da solidez dos usos finais dos recursos. trabalhoso, exige conhecer a realidadedas pessoas, azer o seguimento, mas a nica maneira de transormar as poupanas de uns noaumento da produtividade de todos, a chamada produtividade sistmica do territrio.

    ampla a experincia nesta rea, desde o Grameen Bankno Bangladesh, at as ONGs deintermediao financeira da Frana, a constituio de Bancos Comunitrios de Desenvolvi-mento e de Oscips de crdito em numerosos municpios no Brasil, a evoluo das experin-cias de microcrdito do Banco do Nordeste. A exigncia da aplicao local da poupana dapopulao, com regras mais amplas de compensao entre regies ricas e pobres atravsda rede pblica, dever permitir o financiamento tanto da micro e pequena empresa, como de

    organizaes da sociedade civil empenhadas em projetos sociais e ambientais, investimentospblicos locais e regionais em saneamento, manuteno urbana e semelhantes.

    Os diversos programas sociais do governo brasileiro, desde o Bolsa Famlia at o Luzpara odos, convergem no seu impacto de dinamizar o acesso local a recursos, mesmo nasregies mais pobres do Pas. Esta convergncia agora reorada com o programa erri-trios da Cidadania, que representa um programa antirecessivo de recorte rooseveltianocapaz de compor ao lado do PAC16 uma poderosa alavanca, no apenas para resistir sturbulncias atuais, mas para deflagrar uma nova dinmica de crescimento, mais equilibra-da do ponto de vista regional, e capaz de incorporar, de ato, as populaes do campo aodesenvolvimento do sculo 21. So cerca de vinte bilhes de reais para cento e vinte regies

    do Pas. Esta viso, de apoio ao desenvolvimento local, tanto responde a uma poltica anti-cclica como democratizao do governo e ao resgate das desigualdades.

    No conjunto, est se desenhando em parte graas crise financeira de 2008 mas sobre-tudo pelo acmulo de desequilbrios crticos um Estado mais descentralizado, mais partici-pativo, mais democrtico nos seus processos decisrios, mais transparente no plano da inormao,e com maior papel articulador dos diversos agentes de transormao da sociedade.

    No conjunto, naturalmente, se os instrumentos de gesto pblica constituem um vetor chavede transormao, no h como ignorar a proundidade da mudana cultural que necessriapara que o prprio Estado mude. O que temos pela rente uma mudana civilizatria, com a

    dimenso que isto significa, e com a janela de tempo relativamente curta que temos pela rente. Aconscincia dos desafios e o sentimento de urgncia penetram lentamente nas mentes das pessoas.A nossa tarea trabalhar nesta tomada de conscincia e ajudar na construo dos rumos.

    III ESBOOS DE AGENDA

    Est na moda dizer que o estatismo ruiu com o muro de Berlim, e o neoliberalismo como muro de Wall Street. Morreram, na realidade, as vises simplificadoras dos processos deci-srios da sociedade. A viso dicotmica que nos deu o estado burocrtico do Leste europeu,de um lado, e a arrogncia corporativa exemplificada por Wall Street de outro que est

    em crise. A sociedade complexa moderna j no comporta este tipo de simplificaes. emos dedesenvolver processos mais flexveis e dierenciados de regulao, no estrangulando os processos

    16 O PAC Programa de Acelerao do Crescimento um dos programas centrais do governo ederal brasileiro no sentido dedinamizar a expanso de inraestruturas, gerar empregos, reorar a incluso (PAC Social) e enrentar a crise financeira global.

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    decisrios, mas aproximando-os das necessidades reais da sociedade, com mais transparncia e de-mocracia. Como sociedade, desejamos no somente sobreviver, mas viver com qualidade de vida. Eisto implica elencarmos de orma ordenada os desafios e as respostas. So os resultados mnimos aserem atingidos, com os processos decisrios correspondentes.

    As propostas, ou linhas de ao sugeridas abaixo, tm um denominador comum: todas j oram

    experimentadas e esto sendo aplicadas em diversas regies do mundo, setores ou instncias de ati-vidade. So iniciativas que deram certo, e cuja generalizao, com as devidas adaptaes e flexibili-dade em uno da diversidade planetria, hoje vivel. No temos a iluso relativamente distnciaentre a realidade poltica de hoje e as medidas sistematizadas abaixo. Mas pareceu-nos essencial, noentanto, elencar de orma organizada as medidas necessrias, pois ter um norte mais claro ajuda naconstruo de uma outra governana planetria. No esto ordenados por objetivos, pois a maioriatem implicaes simultneas e dimenses interativas.

    1. Resgatar a dimenso pblica do Estado

    Como podemos ter mecanismos reguladores que uncionem se o dinheiro das corpora-es a regular que elege os reguladores? Se as agncias que avaliam risco so pagas por quemcria o risco? Se aceitvel que os responsveis de um banco central venham das empresas queprecisam ser reguladas, e voltam para nelas encontrar emprego?

    Uma das propostas mais evidentes da ltima crise financeira, e que encontramos mencionadaem quase todo o espectro poltico, a necessidade de se reduzir a capacidade das corporaes priva-das ditarem as regras do jogo. A quantidade de leis aprovadas no sentido de reduzir impostos sobretransaes financeiras, de reduzir a regulao de banco central, de autorizar os bancos a azerem todae qualquer operao, somado com o poder dos lobbiesfinanceiros tornam evidente a necessidadede se resgatar o poder regulador do Estado, e para isto os polticos devem ser eleitos por pessoas de

    verdade, e no por pessoas jurdicas, que constituem fices em termos de direitos humanos. En-quanto no tivermos financiamento pblico das campanhas, polticas que representem os interessesdos cidados, prevalecero os interesses econmicos de curto prazo e a corrupo.

    2. Refazer as contas

    As contas tm de refletir os objetivos que visamos. O PIB indica a intensidade do uso doaparelho produtivo, mas no nos indica a utilidade do que se produz, para quem, e com quecustos para o estoque de bens naturais de que o planeta dispe. Conta como aumento do PIB

    um desastre ambiental, o aumento de doenas, o cerceamento de acesso a bens livres. O ndi-ce de Desenvolvimento Humano (IDH) j oi um imenso avano, mas temos de evoluir parauma contabilidade integrada dos resultados eetivos dos nossos esoros, e particularmenteda alocao de recursos financeiros, em uno de um desenvolvimento que no seja apenaseconomicamente vivel, mas tambm socialmente justo e ambientalmente sustentvel. Asmetodologias existem, aplicadas parcialmente em diversos pases, setores ou pesquisas. A am-pliao dos indicadores internacionais como o IDH, a generalizao de indicadores nacionaiscomo os Calvert-Henderson Quality o Lie Indicators,nos Estados Unidos, as propostas daComisso Stiglitz/Sen/Fitoussi, o movimento FIB Felicidade Interna Bruta , todos apon-tam para uma reormulao das contas. A adoo em todos as cidades de indicadores locais

    de qualidade de vida veja-se osJacksonville Quality o Lie Progress Indicators tornou-sehoje indispensvel para que seja medido o que eetivamente interessa: o desenvolvimentosustentvel, o resultado em termos de qualidade de vida da populao. Muito mais do que ooutput, trata-se de medir o outcome.

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    3. Assegurar a renda bsica

    A pobreza crtica o drama maior, tanto pelo sorimento que causa em si como pela arti-culao com os dramas ambientais, o no acesso ao conhecimento, a deormao do perfil deproduo que se desinteressa das necessidades dos que no tm capacidade aquisitiva. A ONU

    calcula que custaria trezentos bilhes de dlares (no valor do ano 2000) tirar da misria um bilhode pessoas que vivem com menos de um dlar por dia. So custos ridculos quando se considera ostrilhes transeridos para grupos econmicos financeiros no quadro da ltima crise financeira. Obenecio tico imenso, pois inaceitvel morrerem de causas ridculas dez milhes de crianaspor ano. O benecio de curto e mdio prazo grande, medida que os recursos direcionados base da pirmide dinamizam imediatamente a micro e pequena produo, agindo como processoanticclico, como se tem constatado nas polticas sociais de muitos pases. No mais longo prazo,ser uma gerao de crianas que tero sido alimentadas decentemente, o que se transorma emmelhor aproveitamento escolar e maior produtividade na vida adulta. Em termos de estabilidadepoltica e de segurana geral, os impactos so bvios. rata-se do dinheiro mais bem investido que

    se possa imaginar, e as experincias brasileiras, mexicanas e de outros pases j nos orneceramtodo o know-howcorrespondente. A teoria to popular de que o pobre se acomoda se receberajuda, simplesmente desmentida pelos atos: sair da misria estimula.

    4. Assegurar o direito de ganhar a vida

    oda pessoa que queira ganhar o po da sua amlia deveria poder ter acesso ao trabalho. Numplaneta onde h um mundo de coisas a azer, inclusive para resgatar o meio ambiente, absurdo onmero de pessoas sem acesso a ormas organizadas de produzir e gerar renda. emos os recursos

    e os conhecimentos tcnicos e organizacionais para assegurar, em cada vila ou cidade, acesso aum trabalho decente e socialmente til. As experincias de Maharashtra na ndia demonstrarama sua viabilidade, como o mostram as numerosas experincias brasileiras, sem alar no New Dealda crise dos anos de 1930. So opes onde todos ganham: o municpio melhora o saneamentobsico, a moradia, a manuteno urbana, a policultura alimentar. As amlias passam a poder viverdecentemente; e a sociedade passa a ser melhor estruturada e menos tensionada. Os gastos comseguro-desemprego se reduzem. No caso indiano, cada vila ou cidade obrigada a ter um cadastrode iniciativas intensivas em mo de obra. Dinheiro emprestado ou criado desta orma representainvestimento, melhoria de qualidade de vida, e d excelente retorno. E argumento undamental:assegura que todos tenham o seu lugar para participar na construo de um desenvolvimento sus-

    tentvel. Na organizao econmica, alm do resultado produtivo, essencial pensar no processoestruturador ou desestruturador gerado. A pesca ocenica industrial pode ser mais produtiva em

    volume de peixe, mas o processo desastroso, tanto para a vida no mar como para centenas demilhes de pessoas que viviam da pesca tradicional. A dimenso de gerao de emprego de todasas iniciativas econmicas tem de se tornar central.

    5. Reduzir a jornada de trabalho

    A subutilizao da ora de trabalho um problema planetrio, ainda que desigual na suagravidade. No Brasil, conorme vimos, com cem milhes de pessoas na Populao Economi-

    camente Ativa (PEA), temos 31 milhes ormalmente empregadas no setor privado, e novemilhes de empregados pblicos. A conta no bate. O setor inormal situa-se na ordem de50% da PEA. Uma imensa parte da nao se vira para sobreviver. No lado dos empregos de pon-ta, as pessoas no vivem por excesso de carga de trabalho. No se trata aqui de uma exigncia

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    de luxo: so incontveis os suicdios nas empresas, onde a corrida pela eficincia se tornousimplesmente desumana. O stressprofissional est se tornando uma doena planetria, e aquesto da qualidade de vida no trabalho passa a ocupar um espao central. A redistribuiosocial da carga de trabalho torna-se hoje uma necessidade. As resistncias so compreens-

    veis, mas a realidade que, com os avanos da tecnologia os processos produtivos tornam-se

    cada vez menos intensivos em mo de obra, e reduzir a jornada uma questo de tempo. Nopodemos continuar a basear o nosso desenvolvimento em ilhas tecnolgicas ultramodernasenquanto se gera uma massa de excludos, inclusive porque se trata de equilibrar a remune-rao e, consequentemente, a demanda. A reduo da jornada no reduzir o bem-estar ou ariqueza da populao, e sim a deslocar para novos setores mais centrados no uso do tempolivre, com mais atividades de cultura e lazer. No precisamos necessariamente de mais carrose de mais bonecas Barbie, precisamos sim de mais qualidade de vida.

    6. Favorecer a mudana do comportamento individual

    Neste planeta de sete bilhes de habitantes, com um aumento anual da ordem de 75 milhes,toda poltica envolve tambm uma mudana de comportamento individual e da cultura do con-sumo. O respeito s normas ambientais, a moderao do consumo, o cuidado no endividamento,o uso inteligente dos meios de transporte, a generalizao da reciclagem, a reduo do desperdcio h um conjunto de ormas de organizao do nosso cotidiano que passa por uma mudana de

    valores e de atitudes rente aos desafios econmicos, sociais e ambientais. No apago energtico dofinal dos anos de 1990, no Brasil, constatou-se como uma boa campanha inormativa, o papel co-laborativo da mdia e a punio sistemtica dos excessos permitiram uma racionalizao generali-zada do uso domstico da energia. Esta dimenso da soluo dos problemas essencial e envolvetanto uma legislao adequada como, sobretudo, uma participao ativa da mdia.

    Hoje, 95% dos domiclios no Brasil tm televiso, e o uso inormativo inteligente deste ede outros meios de comunicao tornou-se undamental. Frente aos esoros necessrios parareequilibrar o planeta, no basta reduzir o martelamento publicitrio que apela para o con-sumismo desenreado, preciso generalizar as dimenses inormativas dos meios de comu-nicao. A mdia cientfica praticamente desapareceu, os noticirios navegam no atrativo dacriminalidade, quando precisamos vitalmente de uma populao inormada sobre os desafiosreais que enrentamos. Grande parte da mudana do comportamento individual depende deaes pblicas: as pessoas no deixaro o carro em casa (ou deixaro de t-lo) se no houvertransporte pblico, no aro reciclagem se no houver sistemas adequados de coleta. Preci-

    samos de uma poltica pblica de mudana do comportamento individual.

    7. Racionalizar os sistemas de intermediao financeira

    A alocao final dos recursos financeiros deixou de ser organizada em uno dos usos finais deestmulo e orientao de atividades econmicas e sociais, para obedecer s finalidades dos prpriosintermedirios financeiros. A atividade de crdito sempre uma atividade pblica, seja no quadrodas instituies pblicas, seja no quadro dos bancos privados que trabalham com dinheiro do pbli-co, e que para tanto precisam de uma carta-patente que os autoriza a ganhar dinheiro com dinheirodos outros. A recente crise financeira de 2008 demonstrou com clareza o caos que gera a ausncia de

    mecanismos confiveis de regulao no setor. Nas ltimas duas dcadas, temos saltado de bolha embolha, de crise em crise, sem que a relao de oras permita a reormulao do sistema de regulaoem uno da produtividade sistmica dos recursos. Enquanto no se gera uma relao de orasmais avorvel, precisamos batalhar os sistemas nacionais de regulao financeira. O dinheiro no

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    mais produtivo onde rende mais para o intermedirio: devemos buscar a produtividade sistmica deum recurso que pblico.

    A Coreia do Sul abriu recentemente um financiamento de 36 bilhes de dlares para financiartransporte coletivo e alternativas energticas, gerando com isto 960 mil empregos. O impacto posi-tivo ambiental pela reduo de emisses, anticclico pela dinamizao da demanda, social pela

    reduo do desemprego e pela renda gerada, tecnolgico pelas inovaes que gera nos processosprodutivos mais limpos. em inclusive um impacto raramente considerado, que a reduo do tem-po-vida que as pessoas desperdiam no transporte. rata-se aqui, evidentemente, de financiamentopblico, pois os bancos comerciais no teriam esta preocupao, nem esta viso sistmica (UNEP,Global Green New Deal,2009). Em ltima instncia, os recursos devem ser tornados mais acessveisconorme os objetivos do seu uso sejam mais produtivos em termos sistmicos, visando um desen-

    volvimento mais inclusivo e mais sustentvel. A intermediao financeira um meio, no um fim.

    8. Taxao das transaes especulativas

    Uma das alternativas mais requentemente sugeridas a taxao das transaes especu-lativas. Na linha da antiga proposta de James obin, uma taxa de, por exemplo, 0,20% sobrecada transao reduziria drasticamente a lucratividade dos que tm como atividade o cons-tante movimento de capitais, ao que apresentada pelos especuladores como aumentandoa fluidez do mercado, quando na realidade gera comportamentos de manada que joga preosde papis e de commoditiespara cima e para baixo e desorganiza qualquer atividade de pla-nejamento organizado da produo e do investimento produtivo. Um segundo importanteeeito de uma taxa deste tipo que todas as transaes passariam a ser registradas, o que redu-ziria drasticamente os imensos volumes de movimentos ilegais, em particular a evaso fiscale o uso de parasos fiscais. rata-se de uma medida necessria, ainda que no suficiente, paraa desintermediao das transaes, e reduo dos diversos tipos de atividades alavancadas(cary tradeetc.). A recente aplicao no Brasil de uma taxa de 2% sobre capitais que entrammostra o potencial de polticas nacionais de racionalizao dos fluxos especulativos.

    Particular ateno precisa ser dada aos intermedirios que ganham apenas nos fluxos entreoutros intermedirios com papis que representam direitos sobre outros papis e que tm tudoa ganhar com a maximizao dos fluxos, pois so remunerados por comisses sobre o volume eganhos, e geram, portanto, volatilidade e pr-ciclicidade, com os monumentais volumes que noslevaram por exemplo a valores em derivativos da ordem de 863 trilhes de dlares em junho de2008, 15 vezes o PIB mundial. A intermediao especulativa dierentemente das intermediaes

    de compras e vendas entre produtores e utilizadores finais apenas gera uma pirmide especulati-va e insegurana, alm de desorganizar os mercados e as polticas econmicas17.

    9. Repensar a lgica dos sistemas tributrios

    Uma poltica tributria, equilibrada na cobrana, e reorientada na aplicao dos recursos,constitui um dos instrumentos undamentais de que dispomos, sobretudo porque pode ser pro-movida por mecanismos democrticos. O eixo central no est na reduo dos impostos, e simna cobrana socialmente mais justa e na alocao mais produtiva em termos sociais e ambientais.A taxao das transaes especulativas (nacionais ou internacionais) dever gerar undos para

    17 Baba, Naohiko et al. BIS Quarterly Review, p. 26, dec. 2008. Disponvel em: :In November, the BIS released the latest statistics based on positions as at end-june 2008 in the global over-the-counter(OC) derivatives markets. Te notional amounts outstanding o OC derivatives continued to expand in the first hal o2008. Notional amounts o all types o OC contracts stood at $863 trillion at the end o June, 21% higher than six monthsbeore. So 863 trilhes de dlares de derivativos emitidos, rente a um PB mundial de cerca de sessenta trilhes.

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    financiar uma srie de polticas essenciais para o reequilbrio social e ambiental. O imposto sobregrandes ortunas hoje essencial para reduzir o poder poltico das dinastias econmicas (10% dasamlias do planeta so donos de 90% do patrimnio amiliar acumulado no planeta). O impostosobre a herana undamental para dar chances a partilhas mais equilibradas para as sucessivasgeraes. O imposto sobre a renda deve adquirir mais peso relativamente aos impostos indiretos,

    com alquotas que permitam eetivamente redistribuir a renda. importante lembrar que as gran-des ortunas do planeta em geral esto vinculadas no a um acrscimo de capacidades produtivasdo planeta, e sim aquisio maior de empresas por um s grupo, gerando uma pirmide cada vezmais instvel e menos governvel de propriedades cruzadas, imprios onde a grande luta pelocontrole do poder financeiro, poltico e miditico, e a apropriao de recursos naturais. O sistematributrio tem de ser reormulado no sentido anticclico, privilegiando atividades produtivas e pe-nalizando as especulativas; no sentido do maior equilbrio social, ao ser ortemente progressivo; eno sentido de proteo ambiental, ao taxar emisses txicas ou geradoras de mudana climtica,bem como o uso de recursos naturais no renovveis18.

    Particular ateno dever ser dada s taxas sobre emisso de gases do eeito estua,

    que devero desempenhar um papel importante em termos de captao de recurso, epodero constituir um undo de primeira importncia, para o equilbrio ambiental.Est se tornando evidente que o mercado de carbono simplesmente no suicientecomo mecanismo de dissuaso das emisses. A aplicao de taxas sobre as emisses

    j em curso na Sucia, na Noruega, ou na Itlia tecnicamente simples, e o seu usogeneralizado permite que os usurios particulares ou industriais sejam obrigados a in-corporar nas suas decises econmicas os custos reais indiretamente gerados para todaa sociedade, inclusive as uturas geraes.

    10. Repensar a lgica oramentria

    O poder redistributivo do Estado grande, tanto pelas polticas que executa por exemplo,as polticas de sade, lazer, saneamento e outras inraestruturas sociais que melhoram o nvel deconsumo coletivo como pelas que pode omentar, como opes energticas, incluso digital eassim por diante. Fundamental tambm a poltica redistributiva que envolve poltica salarial, deprevidncia, de crdito, de preos, de emprego. A orte presena das corporaes junto ao poderpoltico constitui um dos entraves principais ao equilbrio na alocao de recursos. O essencial assegurar que todas as propostas de alocao de recursos sejam analisadas pelo triplo enoqueeconmico, social e ambiental. No caso brasileiro, constatou-se, com as recentes polticas sociais,

    (Bolsa-Famlia, polticas de previdncia etc.) que volumes relativamente limitados de recursos,quando chegam base da pirmide, so incomparavelmente mais produtivos, tanto em termosde reduo de situaes crticas e consequente aumento de qualidade de vida como pela dinamiza-o de atividades econmicas induzidas pela demanda local. A democratizao aqui undamen-tal. A apropriao dos mecanismos decisrios sobre a alocao de recursos pblicos est no centrodos processos de corrupo, envolvendo as grandes bancadas corporativas, por sua vez ancoradasno financiamento privado das campanhas.

    11. Facilitar o acesso ao conhecimento e s tecnologias sustentveis

    A participao eetiva das populaes nos processos de desenvolvimento sustentvel

    18 Susan George traz uma ilustrao convincente: um bilionrio que aplica o seu dinheiro com uma conservadora remu-nerao de 5% ao ano aumenta a sua ortuna em 137 mil dlares por dia. axar este tipo de ganhos no aumentar osimpostos, corrigir absurdos.

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    envolve um denso sistema de acesso pblico e gratuito inormao necessria. A conec-tividade planetria que as novas tecnologias permitem constitui uma ampla via de acessodireto. O custo-benecio da incluso digital generalizada simplesmente imbatvel, pois um programa que desonera as instncias administrativas superiores, na medida em que ascomunidades com acesso inormao se tornam sujeitos do seu prprio desenvolvimento.

    A rapidez da apropriao deste tipo de tecnologia, at nas regies mais pobres, se constatana propagao do celular, das lan housesmais modestas. O impacto produtivo imensopara os pequenos produtores, que passam a ter acesso direto a diversos mercados, tanto deinsumos como de venda, escapando aos diversos sistemas de atravessadores comerciais efinanceiros. A incluso digital generalizada um destravador potente do conjunto do pro-cesso de mudana que hoje se torna indispensvel.

    O mundo requentemente esquece que dois bilhes de pessoas ainda cozinham com le-nha, rea em que h inovaes significativas no aproveitamento calrico por meio de ogesmelhorados. ecnologias como o sistema de cisternas do Nordeste, de aproveitamento dabiomassa, de sistemas menos agressivos de proteo dos cultivos etc., constituem um vetor

    de mudana da cultura dos processos produtivos. A criao de redes de ncleos de omentotecnolgico online, com ampla capilaridade, pode se inspirar na experincia da ndia, ondeoram criados ncleos em praticamente todas as vilas do pas. O World Economic and SocialSurvey2009 particularmente eloquente ao deender a flexibilizao de patentes no sentidode assegurar ao conjunto da populao mundial o acesso s inormaes indispensveispara as mudanas tecnolgicas exigidas por um desenvolvimento sustentvel.

    12. Democratizar a comunicao

    A comunicao uma das reas que mais explodiu em termos de peso relativo nas trans-ormaes da sociedade. Estamos em permanncia cercados de mensagens. As nossas crianaspassam horas submetidas publicidade ostensiva ou disarada. A indstria da comunicao,com sua antstica concentrao internacional e nacional e a sua crescente interao entreos dois nveis gerou uma mquina de abricar estilos de vida, um consumismo obsessivoque reora o elitismo, as desigualdades, o desperdcio de recursos como smbolo de sucesso.O sistema circular permite que os custos sejam embutidos nos preos dos produtos que nosincitam a comprar, e ficamos envoltos em um cacarejo permanente de mensagens idiotas pa-gas do nosso bolso. Mais recentemente, a corporao utiliza este caminho para alar bem desi, para se apresentar como sustentvel e, de orma mais ampla, como boa pessoa. O espectro

    eletromagntico em que estas mensagens navegam pblico, e o acesso a uma inormaointeligente e gratuita para todo o planeta, simplesmente vivel. Expandindo gradualmenteas inmeras ormas alternativas de mdia que surgem por toda parte, h como introduzir umacultura nova, outras vises de mundo, cultura diversificada e no pasteurizada, pluralismo em

    vez de undamentalismos religiosos ou comerciais.A lista de propostas e sugestes pode evidentemente alongar-se. O ato que mais inspira

    esperana a multiplicao impressionante de iniciativas nos planos da tecnologia, dos siste-mas de gesto local, do uso da internet para democratizar o conhecimento, da descoberta denovas ormas de produo menos agressivas, de ormas mais equilibradas de acesso aos recur-sos. O Brasil, neste plano, tem mostrado que comear a construir uma vida mais digna para o

    andar de baixo, para os dois teros de excludos, no gera tragdias para os ricos. Inclusive,numa sociedade mais equilibrada, todos passaro a viver melhor.

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    Crises convergentes: realidade, medo e esperana

    Susan George1

    Embora o G-20 e outros rgos oficiais tenham, at o momento, se recusado a reconhe-cer o ato, no estamos simplesmente passando por uma crise financeira por maisgraves que sejam os aspectos financeiros das perturbaes em curso mas uma crisemltipla, na qual todos os elementos que a compem se reoram e se agravam reciprocamen-te. Dessa orma, sequer se trata de uma crise, reerente, em seu significado genuno, a ummomento relativamente breve entre dois possveis resultados como uma doena, por exem-plo, situada entre a recuperao e a morte. Estamos em um perodo muito mais longo masaqui adotaremos o vocabulrio padro corrente.

    Para alm das finanas, preciso reconhecer que as desigualdades nacionais, internacio-nais, e entre os cidados do mesmo pas, alcanaram nveis insustentveis, tanto nos pasesdesenvolvidos quanto naqueles em desenvolvimento. A pobreza est se espalhando e apro-undando, a escassez de alimentos e de gua est se tornando crnica, os conflitos emergemem sociedades cujo stress crescente, e os eeitos catastrficos das mudanas climticas queavanam muito mais rpido do que os especialistas previram surgem indistintamente portodas as partes.

    Esses aspectos no podem ser mais encarados separadamente: para oerecer apenas al-guns exemplos dessas conexes, podemos observar que os ricos tm imprimido imensas, ju-rssicas pegadas ecolgicas e, apesar de seu reduzido contingente, causam muito mais danosde que centenas de milhares de pessoas pobres. Como Jared Diamond nos mostra em seulivro Colapso, a principal razo da runa das sociedades anteriores, sob stressambiental, oi oconsumo das elites que continuaram a utilizar massivamente os recursos naturais, por muitotempo depois de seus compatriotas mais pobres terem sentido no bolso a impossibilidadedesse acesso.

    O aquecimento global atinge muito mais os pobres do que os ricos, e simultaneamenteexacerba desigualdades sociais e a escassez de gua e alimentos. A crise financeira reprime oshumildes, os quais no tm nada a ver com suas causas: basta apenas pensar na onda de hipo-tecas nos Estados Unidos, que jogou milhes de amlias americanas nas ruas, aproundando

    sua insegurana e pobreza2

    .Os preos dos gneros alimentcios que compem a dieta diria dos mais pobres podemdobrar da noite para o dia quando especuladores financeiros agem sob o mercado de commo-ditiesou quando o governo e grandes latiundirios destinam enormes extenses de terra parao plantio de agrocombustveis. Como seria possvel sequer imaginar concertar a economia,quando milhes de pessoas tm menos dinheiro em seus bolsos, e sorem ortes impactos do

    1 Co-undadora e presidenta honorria do movimento Associao pela ributao das ransaes Financeiras para ajuda aosCidados (AAC-Frana), co-undadora e presidente da Diretoria do ransnational Institute (Amsterdam). Susan Georgetambm oi presidenta do lObservatoire de la mondialisation. autora de 14 livros traduzidos em diversas lnguas. Suas obrasmais recentes so: Hijacking America: How the Religious and Secular Right Changed What Americans Tink, Another World

    is Possible i...2 No total, oram executadas 2,3 milhes de hipotecas em 2008, aumentando para 2,8 milhes nos primeiros trs quartos

    de 2009. esperado que 2009 alcance o nmero de 3,5 milhes hipotecas. Devido ao aumento do desemprego, segundoa American Mortgage Bankers Association, aproximadamente quatro milhes de donos de imveis so delinquentes(cumprem com seus pagamentos por ao menos noventa dias) ou esto no primeiro estgio de execuo de hipoteca. Vejatambm o site realtytrac.com para uma onte comercial de propriedades hipotecadas venda.

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    desabamento do nmero de vagas de trabalho e dos valores das aes.Isto s uma pequena amostra da mirade das interaes entre elementos desta crise

    plural, no obstante esses impactos evidentes continuam desconhecidos oficialmente. O setorfinanceiro se divorciou da economia real, onde homens e mulheres vivem; se distanciou destaainda mais, e est novamente criando bolhas destinadas a estourar uma a uma. No momento

    em que o mercado de aes mostra sinais de vida, nos dito que a crise acabou3

    .Isso pode ser verdade para uma srie de investidores, cujo nico interesse o giro do mer-cado de aes, mas absolutamente also para todas as outras pessoas. Quando os ricos tm tudoo que precisam e mais alguma coisa; quando pessoas comuns esto extremamente endividadas,ortemente taxadas para pagar a crise e tm muito pouco dinheiro para o consumo; quando osbancos no azem emprstimos para pequenos e mdios negcios; quando pouco investido naeconomia real, qual poderia ser o resultado seno um prolongado perodo de estagnao?

    O recentemente autoproclamado governo global do G-20, acompanhado de seus fiiscapachos do Banco Mundial, do Fundo Monetrio Internacional (FMI) e da OrganizaoMundial do Comrcio (OMC), claramente no entendeu as realidades atuais. Suas receitas

    at agora se limitam ao setor financeiro o nico aspecto da crise que eles aparentementepercebem e at mesmo nisso, os remdios parecem pior do que a doena. As estimativas dassomas injetadas nas instituies financeiras mundiais comeam a partir de cinco trilhes dedlares [$5.000.000.000.000]. Muitas so mais altas do que isso. Inclusive uma especialmenteautoritria, ormulada por dois peritos do Banco da Inglaterra, que estimam que as interven-es governamentais de qualquer tipo, para o dlar, a libra e o euro, chegam a $14 trilhes ou$14.000.000.000.000. Essas somas preenchem um quarto de PIB anual e mundial4.

    Esse dinheiro no cai do cu, mas, como todo valor, est enraizado no trabalho e nanatureza. Os governos esto apostando no uturo trabalho por meio de impostos, e na natu-reza por meio da explorao de recursos no renovveis, para pagar seus donativos ao setor

    financeiro. Mas os recursos esto se esgotando e sua explorao se tornando mais custosa. Odesemprego tem aumentado de tal orma que contribuintes comuns detm menos renda parapagar seus impostos, ao passo que os ricos no pagam seus impostos, de qualquer orma. Osgovernos esto praticando o que os ranceses chamam de la uite em avant... ugindo alm;contando que, no uturo, aparea alguma sada compensatria para o que no presente toma aorma de uma crescente pirmide de dvidas. O mundo caminha sobre a corda bamba.

    Para financiar tal dvida, a soluo escolhida pelos Estados Unidos oi vender ttulos do e-souro (chamados de dourados (gilts) no Reino Unido), o que aprounda a dvida, e a empurrapara um uturo cada vez mais distante. No entanto, nada garante que o governo dos Estados

    Unidos no v sucumbir tentao de desvalorizar a sua moeda, integral ou parcialmente, para3 Nos anos de 1950, nos Estados Unidos, emprstimos impressionantes oram eitos ao setor financeiro e economia real,

    em montantes equitativos. Em 2007, mais de 80% dos bancos dos EUA oram para o setor financeiro norte-americano.Veja Dirk Bezemer, Membro da Escola de Pesquisa, Departamento de Economia e Negcios, Universidade de Groningen,Lending must support the real economy, Financial imes, 5 de novembro de 2009.

    4 Emprstimos compensatrios (bailouts) pelo mundo todo so notoriamente diceis de quantificar. So atores a seremconsiderados: se tais somas oram consignadas ou realmente investidas pelos governos; o grande nmero de agnciasde governos providenciando os desembolsos; se bancos receptores as tm pagado, em retorno, ou no, ou se pretendemaz-lo; dierenas nos sistemas de inormao e coleta de dados nacionais. O Caderno Dinheiro da CNN, Rastreadorde Depsitos , em novembro de 2009, computou, s para os Estados Unidos, cerca de trs tri