revista o viés

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EDIÇÃO ESPECIAL DE ANIVERSÁRIO O IÉS REVISTA

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Edição especial impressa em comemoração ao aniversário de um ano da Revista o Viés.

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Page 1: Revista o Viés

EDIÇÃO ESPECIAL DE ANIVERSÁRIO

O IÉSR

EVISTA

Page 2: Revista o Viés

patrocínio

Page 3: Revista o Viés

18 do chão batido ao asfaltoA história da ocupação habitacional que, unindo forças, conseguiu tornar-se bairro onde antes era tudo campo

06EntrEvista: vito GiannotiEntrevista com o militante e comunicador sindical Vito

Gianotti

14MUNDUS IN LITTERAEViajantes-escritores desenham o mundo através das

letras

23POESIA

27 A DURA POESIA CONCRETA DE UMA ESQUINA PAULISTANAQue só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João

ISSO AQUI É UM SONHO?Como é sonhar sabendo que se está sonhando

34 UM LUGAR AO SOLAs pessoas do Beco do Cadena e os contêineres que servem de moradia provisória

38UMA PROSA COM OTTOOtto não mente, fala de suas verdades

42 ENQUADRADO: O FEITIÇO CONTRA O FEITICEIROColocando o quadrinista Spacca em quadrinhos

24O RETO

11 A REALIZAR-SE NO DIA 1° DE ABRIL DE 1964O padre fugiu, alguns convidados não chegaram: um casamento realizado no dia do Golpe Militar

05 EPISÓDIOSHistórias passantes. A linguagem inventada pela rua

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Page 4: Revista o Viés

O encontro de quem faz a revista foi consequência do curso de Jornalismo, onde todos, ou melhor, quase todos ingres-saram em 2008 na Universidade Federal de Santa Maria. Ali, a vontade palpitou e fez-se prática no final de 2009. A internet, usada por tantos, também foi e é usada por nós. O espaço que permite voz aberta, não-regras editoriais e condições a quem parte do zero monetário e físico, veio a calhar à ideia de viés - um meio eletrônico independente.

Mudanças foram feitas no percorrer de um ano, o qual a revista comemora com esta edição impressa. Quem gosta-va da ideia chegou mais perto para escrever, ler, divulgar. Edições passaram a ser semanais, renovadas aos sábados. Criamos uma Estante para indicar cervejas, livros, filmes. Usamos o Reto para charges, desenhos, fotografias. Com-preendemos, com a prática da escrita, o fazer jornalístico em meio às pessoas, não apenas paredes. Para as nossas curiosidades, tempo de resposta.

Os pensamentos que vertem têm espaço nas reuniões que fazemos de maneira alvoroçada, porém não descompro-metida. Antes, o carinho que temos por esse impulso que depende de cada parte para se manter prático. Somos dez estudantes de jornalismo e, mais do que isso, somos dez amigos. Somos o resultado de tudo isso: redatores, amigos e leitores.

o acervo

a Estante

o reto

o brique

arquivo com todas as edições da revista

prateleiras de indicações: livros, filmes, discos...

espaço com fotos, charges, desenhos...

acompanhe a

espaço da revista de troca com outras publicações que nos reconhecem e que influenciam nossa produção.

www.revistaovies.com

editorialrevista o viés

online:

expediente

REDAÇĂO Bibiano Girard, Caren Rhoden, Felipe Severo, Gianllu-ca Simi, Joăo Victor Moura, Liana Coll, Mathias Rodrigues, Nathália Costa, Rafael Balbueno e Tiago Miotto

REVISĂO DE TEXTO Gianlluca Simi e Nathália Costa

DIAGRAMAÇĂO Joăo Victor Moura e Tiago Miotto

ILUSTRAÇĂO DA CAPA Rafael Balbueno

ARTE DA CAPA Tiago Miotto

TIRAGEM 500 exemplares

IMPRESSĂO: Imprensa Universitária

[email protected]

COLABORE COM A REvISTA O vIÉS ONLINE

envie seu texto para [email protected]

Page 5: Revista o Viés

CAREN RHODEN

episódios

A compensação foi o cheiro de churrasquinho. Além da chuva quente – e, então, o cheiro de poeira –, o cheiro de churrasquinho. O sol era tímido. Quem trabalhou retornava. Aos outros, possibilidades caseiras. A luz se convertendo não trazia histórias, só construía. Eu esperava, mas ninguém podia contar de onde veio. “É que eu estou com minha mãe pelada na cama, trocando a fralda dela”. Riram do estado das coisas. “Tenho aula daqui a pouco, não tenho tempo”. “E eu estou trabalhando, é meu horário de trabalho”. “Estou de saída”. “Eu tenho um trabalho de faculdade pra entregar amanhã”. “Eu estou ocupado e não tenho disponibilidade”. “Me desculpe, minha filha, mas eu estou muito nervosa”. E “a dona da casa nem tá aí!”.

Não tinha dona mesmo. Escorada na sacada sobre almofadas, F., resfolgada, apreciava as ruas. Talvez não fosse exatamente isso. Embaixo da sacada dela, na rua, B. fumava um cigarro profundamente, expirando uma volumosa quantia de fumaça. Com a calça de jeans gasto que ia até o umbigo onde encontrava a blusa, bolsa pendurada na altura das coxas e cabelo crespo, curto e alto, encarava. Os homens não eram propriamente charmosos, em grande parte não se interessavam: não tenho dinheiro hoje. Naquela cena estetizada setentista, F. justificou-se a mim: “a dona da casa nem ta aí!”, sem papo. Uns minutos mais tarde, a sacada e a rua também estavam sem donas. O cigarro queimava, abandonado, o seu resto.

Andei. Do interfone de um prédio antigo, um sim. Subi. S., mãe. Abandonava um pouco de si em cada cidade. Não que esse abandono fosse deixar para trás.

Dentro dela, a palavra se tornava grave. Do primeiro namorado, o primeiro filho. Do segundo, a mudança de cidade - foi para longe. Do terceiro, duas filhas e a certeza de que aquele homem era indefinível, de que não podia conhecê-lo. Ele foi embora. Estou sozinha, estudo, vejo o filho que mora com o pai. Quando o menino vem aqui, fazemos pipoca, assistimos a filmes, nós quatro. Mas o que dói mesmo é ser abandonada. Rodei cidades, cinco cidades por amor, por emprego e voltei sem nenhum dos dois. Porque mulher brinca com boneca desde menini-nha, sabe e quer cuidar dos seus filhos depois. Uma mãe. E mãe não adoece, mãe não tem problemas, mãe está ali de cabelos lavados. Está quase na hora de buscar as meninas na creche.

Acima, longe do cheiro de churrasquinho, uma loja de relógios antigos. Um pouco concertando e outro pouco esperando que eles rodem rápidos, o senhor estava sentado como um pequeno rei dominado por badaladas velhas. Na esquina, o preço do dia. O guarda de trânsito contava os minutos no relógio de pulso para multar o infrator que não obedeceu ao tempo limite. Ali, estacionar não podia. Uma mulher naquele veículo pa-rado há horas. Por certo, ela esperava alguma coisa, sozinha e em segredo – não o dizia nem a si.

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“EU tEnho MUitas idEias...Italiano de nascença, brasileiro há mais de quarenta anos. Preso e torturado

pela ditadura brasileira. Metalúrgico. Grevista. Comunista. Vito Giannoti

JOÃO VICTOR MOURA

entrevista

“Esse aqui é o símbolo do liberalismo! Essa é a fi-losofia do neoliberalismo”! Um dedo do meio em riste era mostrado, entre “fâcks”, “fâck yú, mãdãfâcker”, “fâcki”. O microfone próximo à boca fazia o auditório retumbar as palavras faladas em um inglês macarrônico. Alguns ouvintes se contorciam de rir, Vito falava sério.

Passavam das seis da tarde quando Vito Giannot-ti sentou-se à frente de estudantes, professores e convi-dados para iniciar a palestra intitulada “Comunicação e disputa de hegemonia”. Em duas horas, falou do tema que o levara ali, comunicação como ponto de disputa da hegemonia na sociedade, mas também contou muito da sua história pessoal.

Suéter azul e verde, cabelos brancos, calças jeans, sandálias de couro, sotaque carregado, gestos largos de italiano, vogais que se exteeendem enfaticamente. Só mais um ‘vovô’ que, durante a entrevista, pára de falar para tomar seu remédio e que inicia suas manhãs corren-do numa esteira elétrica para manter a saúde e “morrer de pé, reclamando dos patrões”.

Nasceu em berço fascista. Seu pai, dono de uma pequena fábrica de sapatos, guardava armas em casa para “quando os comunistas chegassem”. Cursava Filosofia e Sociologia na Itália quando decidiu sair pelo mundo e vir parar no Brasil. Aqui se estabeleceu em 1966, fez cursos

técnicos para virar metalúrgico, torneiro ferramenteiro. “Para ser comunista tem que ser operário, metalúrgico”. Foram 25 anos trabalhando nas grandes fábricas paulis-tas.

Mas foi na Comunicação que Vito encontrou, desde sua chegada, a alternativa mais viável para um enfrenta-mento entre hegemonias. “Jornalismo proletário, contra o grande dos patrões”. Nas fábricas era o agitador, res-ponsável por boletins e jornais sindicais contra o patrona-to e o regime militar. O caminho natural daqueles tempos seguiu, Vito foi preso e torturado.

Hoje Vito coordena o Núcleo Piratininga de Comu-nicação, organização sem fins lucrativos que luta por uma comunicação mais plural e popular. Vito viaja pelo Brasil dando palestras, falando de sua história e da luta diária por outra hegemonia, que não seja dos grandes patrões, neoliberal ou individualista, e por outro jornalismo, que, contra o dedo do meio da sociedade individualista, mos-tre um punho fechado, socialista.

Ao fim da palestra, Vito concedeu entrevista à equipe da revista o Viés. A entrevista teve participação de Bibiano Girard, João Victor Moura, Nathália Costa, Ra-fael Balbueno e Tiago Miotto. As fotos são de Guilherme Porto.

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E nEnhUM dinhEiro no bolso”

revista o Viés: Quando o senhor se interessou por Co-municação?Vito Giannotti: Eu comecei a pensar em Comunicação imediatamente após começar a trabalhar na fábrica. Co-mecei em 68, em São Paulo. Eu percebi que a ditadura fa-lava um monte de coisas através da televisão. A Globo era um canal de desinformação da ditadura, que eles criaram pra isso, que só repetia o que o Regime falava. Eu me lem-bro de chegar na fábrica, nas segundas-feiras, e eu queria falar da situação, da conjuntura, dos estudantes fazendo manifestação etc. E os trabalhadores não estavam nem aí, falavam da novela, falando do que aparecia na TV. E eu via a necessidade de a gente se comunicar com os trabalhado-res, para que a gente pudesse falar das nossas ideias. Nós queríamos falar da ditadura, da repressão, dos salários baixos, da falta de emprego. E os trabalhadores estavam em outra. Como que nós íamos trazer os trabalhadores pra ‘nossa’? Era usando a Comunicação. A mais intensa, a melhor possível. E o grupo que eu tava era um grupo de oposição entre os metalúrgicos de São Paulo. A gente fazia boletins para incentivar os trabalhadores a se orga-nizarem, fazerem protestos, pequenas paralisações, uma ‘grevezinha’ ou uma grande greve. E esse boletim tinha que ser bem feito, distribuído, discutido, conversado. E eu, desde o começo, me envolvi nisso.

Como eu tinha mais facilidade para escrever, pelo fato de ter vindo de uma faculdade, sempre fui convida-do. Nós sempre fizemos boletins e eu sempre participei. Como eu sou disposto, não tenho sono, não durmo, aca-bei me envolvendo cada vez mais. Cada vez que você faz, se aperfeiçoa e assim eu fui fazendo. Fiquei apaixonado pela Comunicação.

O senhor falou que, naquela época, os empregados assistiam à Globo. Trazendo para os dias atuais, nós somos 20 mil estudantes em Santa Maria e apenas 200 vão protestar (em referência aos últimos protestos con-tra o aumento da passagem em Santa Maria, para saber mais acesse a matéria “Negociando o direito de ir e vir” no Viés online). Essa alienação, o senhor acha que se-gue?Vito: Acho que segue. Por isso é que se precisa, como Gras-mci [Antonio Grasmci, sociólogo italiano] disse, mudar a hegemonia na sociedade. Hoje se diz: “estudante é pra es-tudar, não é pra se meter, não é pra se envolver. Não adian-ta nada. Cada um cuida da sua, não adianta nada protestar, sempre foi assim, nada vai mudar”. São esses os valores repetidos em todos os programas de televisão, rádio, arti-gos de jornal. A sociedade defende essa visão hegemônica. O que é que nós temos que fazer? Ao invés dessa visão he-gemônica, colocar uma outra proposta, uma alternativa. E como vamos colocar? Com a Comunicação.

Como é que vamos chegar aos dois mil [manifes-tantes]? É possível. Na França, já faz um mês, tá tendo manifestação de dois, três, três milhões e meio de pessoas nas ruas. É milagre? O francês é melhor do que nós? Não. Eles têm uma história, um longo trabalho de disputa da hegemonia na sociedade. E nesse momento acordaram com o aumento da idade mínima para aposentadoria em dois anos. O transporte parou, tinha filas de 400 quilôme-tros em toda a França. Ou seja, teve ambulância que ficou presa no trânsito. Teve gente que morreu no trânsito. No entanto, 71% da população apoia a greve. Por quê? É a visão de que a greve é justa, é importante.

E aqui, quando tem uma greve o que é que a mídia

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diz? Que a greve atrapalha o trânsito. Se tiver uma greve na Av. Paulista, o que se fala é que impediu uma ambulân-cia de salvar um ‘velhinho’. “Morreu um velhinho, os gre-vistas são os culpados”. E todo mundo repete: “É, a cul-pa é dos grevistas, verdade”. Não há outra voz que diga: “O culpado é o governo, que provocou essa greve! Não os grevistas, que tão defendendo os direitos coletivos da sociedade”. Se não há essa outra voz, a única voz ouvida é a hegemônica que diz que a culpa é dos grevistas. Como nós vamos mudar essa realidade? Como vocês vão passar de 200 pra dois mil estudantes na rua protestando? Com muita comunicação. Com um jornal de vocês, com uma rádio de vocês. Com pichações. Onde for mais proibido é melhor ainda. Se for proibido, proibidão, sinal que surte efeito. Então é aí que têm que pichar, colar adesivos, car-tazes. Procurando não ser preso, óbvio. Porque eles têm a força. Nós vamos ter um dia, mas por enquanto são eles. É um longo processo para sair de 200 e chegar a dois mil estudantes. É muito trabalho de convencimento. Como se convence? Só de um jeito, falando. Você fala pra duas, três, quatro pessoas. Ou escreve para um jornal, ou na in-ternet, com todos os instrumentos disponíveis.

Como o senhor percebeu que a linguagem estava in-terferindo na comunicação?Vito: Eu vinha de uma faculdade de Sociologia. A minha linguagem não era a linguagem dos meus companheiros. Primeiro que eu tinha que disfarçar, ninguém podia saber que eu tinha fugido de uma faculdade. Se soubessem, eu poderia ir preso. E eu percebi que muitas coisas que eu falava os meus companheiros não entendiam. Por quê? Porque eu falava uma linguagem intelectualizada. E eu então tinha que fazer um esforço tremendo pra explicar as ideias nas quais acreditava pra que fossem entendidas pelas pessoas.

O normal era o seguinte: eu trabalhava na Arno naquele tempo, tinha trezentos ferramenteiros, dois esta-vam na faculdade. Hoje mudou totalmente, mas, naquele tempo, tinha só dois na faculdade. Então, eu estava entre 303 funcionários e só eu e mais dois tínhamos estudo uni-versitário. Se eu falava, eles não entendiam. Eu tive que começar a usar uma linguagem que o pessoal entendesse. Não é rebaixar a linguagem, mas traduzir termos como ‘hegemonia’, ‘irreversível’, ‘processo histórico’. Para os universitários, fazer parte de um processo é estar junto. Mas, se for à periferia de Porto Alegre com o pessoal que tem oito, nove anos de escola e falar: “gente, temos que fa-zer parte do processo”, eles vão falar: “eu não, não quero processo, não sou bandido”. Pra quem tem pouco estudo o termo ‘processo’ é muito feio. Nós temos que entender essa diferença. Na fábrica, lendo o jornal dos companhei-ros, o “Notícias Populares”, que tinha uma linguagem muito clara, simples, direta eu percebi que a gente tinha que parar de falar ’intelectualês’ pra falar ‘operariês’.

Seria esse ‘operariês’ o que o presidente Lula fala?Vito: Quase. Quase. Uma vez, me lembro, ele usou um termo: ‘condição sine qua non’. O que é ‘condição sine qua non’? Condição que sem ela nada vai funcionar, nada vai pra frente. Pra que usar ‘sine qua non’?

Essa seria uma das dificuldades da esquerda para conversar com o povo?Vito: A esquerda fala uma linguagem que os ‘normais’ não entendem. Fala ‘politiquês’, fala ‘intelectualês’, fala ‘juridiquês’. Nós temos que saber falar tudo isso, mas depende com quem que você vai falar. Não adianta achar que todo mundo entende. Se eu venho aqui falar com os estudantes, eu falo de qualquer jeito, quem não entender que se ‘exploda’, estudante tem que entender. Mas, se vou

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falar num mercado popular, com os vendedores, eu tenho que traduzir minha linguagem. Não é rebaixar, é traduzir. Como se fala casa em alemão? Haus. Em inglês? Home. Em francês? Maison. Em português? Casa. Qual é o me-lhor? Depende de onde você está. “Ah, maison é mais bo-nito”. Idiota! Maison é mais bonito na França, no Brasil o melhor é casa. Não adianta falar maison aqui. Tem que traduzir. Traduzir não é rebaixar.

E o senhor é otimista com os meios se popularizan-do, com rádios comunitárias, revistas e jornais inde-pendentes?Vito: Sou. Eu espero que aumente, que multiplique por mil. E que melhore a qualidade pra cacete, porque hoje em dia tá muito feio, muito ruim. Que melhore a qualida-de, que melhore a linguagem. Nós temos que fazer uma mídia tão bonita como a Globo. A Globo é muito bonita, esse é o problema. Desgraçadamente bonita. Nós temos que fazer uma coisa bonita para que o pessoal goste, que seja atrativa. Nós temos revistas e jornais nossos que são uma bosta, ilegíveis. Tem que ser coisas atrativas. Nada de espalhafatoso. Mas, se quer fazer uma revista, imita a bosta, a criminosa da Veja. Ela sabe fazer. Na cara, no as-pecto, na diagramação. Não inventa moda, não faz um ar-tigo de dez páginas sem foto. Não pode existir página sem foto. Tem que ter imagem, infográfico... A Carta Capital é uma puta revista e é muito bonita, temos que fazer isso.

O senhor dedicou a maior parte da sua vida à comu-nicação, mas o senhor não é formado. Qual a visão do senhor a respeito da discussão quanto à obrigatorieda-de do diploma?Vito: Eu acho uma discussão torta, complicada. O neo-liberalismo exige a desregulamentação de qualquer lei, então os patrões querem que não tenha o diploma. Se os patrões querem, eu sou contra. Tudo que é bom pro pa-trão eu sou contrário. Eu não entro na discussão logo de cara. Se os Marinhos não querem que precise de diploma, eu quero que precise. Embora, pessoalmente, ache uma babaquice. Não garante porra nenhuma. A maioria das faculdades de jornalismo é uma bosta, dirigidas por pro-fessores neoliberais que ficam falando mentira, de que a mídia é objetiva, imparcial, neutra. Prepara o estudante pra ser um jornalista do sistema. Então, pra mim, não ga-rante nada. Garante que aquele estudante neoliberal vai poder entrar na Globo, nada mais. Eu acho que o que o jornalista deve fazer é um puta curso de História. Jorna-

lista que não conhece a História do Brasil não é jornalista. Não serve pra bosta nenhuma. É um robô que foi ames-trado pra escrever. Qualquer idiota aprende a escrever. E daí? O que está por trás? Cadê a formação de História? Sociologia? Eu daria diploma de jornalista, sim, se tivesse graduação em História, Sociologia.

Com esses diplomas de História e de Sociologia, não corremos o risco de que a faculdade de Comuni-cação se torne um filtro ideológico, formando apenas comunicadores socialistas?Vito: Não, o socialismo é uma opção das pessoas. Tem que mostrar a realidade e cada um faz sua opção. O que não pode é como hoje, as faculdades enganarem. Eu tô pro-pondo que não enganem, que mostrem a realidade. Que mostre que a liberdade de imprensa é uma palhaçada. Quem mora na periferia não tem liberdade de imprensa porra nenhuma. Como ele vai fazer? Não tem quem faça, quem imprima, não tem dinheiro. Tem liberdade de im-prensa pros Sirotsky [família proprietária do Grupo RBS], nem pro jornalista tem liberdade. A Maria Rita Khel foi mandada embora por declarar uma posição política dife-rente da do Estadão. Não tem liberdade de imprensa e as

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meiro, nós temos que investir mais. Segundo, tem que ter regularidade. Qual a frequência da Veja, Época e IstoÉ? Semanal. Então menos que semanal não serve pra bosta nenhuma. Os fatos estão aí, hoje a vida corre rápido no Brasil, no mundo. Terceiro, a Veja, que eu considero a revista mais indecente do Brasil, é muito bem feita. Nós temos que fazer uma revista muito bem feita. Tem que ser bonita, não tem conversa. Ou nós fazemos uma coisa muito bonita pra disputar com o outro lado ou nós vamos ficar sempre por baixo.

Para o senhor, o aspecto principal é técnico?Vito: Não. Aí nós precisamos ver os temas, os nossos te-mas. Eles são difíceis. Mas é por serem difíceis que têm que serem muito bem tratados. Tem que ser atrativo, bonito. Tem que ouvir o povo, tem que cuidar da lingua-gem. Aí tá outro aspecto, a linguagem. Na nossa mídia, se queremos atingir professores e estudantes universitários, não tem problema nenhum [quanto à linguagem], mas, se queremos atingir o povo, que tem sete, oito anos de es-cola, a linguagem tem que ser obsessivamente cuidada. E não só a linguagem, mas a ‘cara’ do nosso jornal. Os jornais populares, o Diário Gaúcho, por exemplo, põem uma mulher pelada, uma bunda lá. Nós não vamos colo-car nem bunda nem teta. Nós temos que fazer um jornal que seja chamativo, atrativo, bonito e sem apelação, por-que nós somos contra a apelação da mulher, do machismo etc., etc. Então nós temos que fazer uma coisa bonita, sem apelação. E é muito difícil. Eu diria que eu só tenho espe-rança, confiança na nossa mídia se Deus ajudar bastante, se Deus não ajudar, não [risos]. Eu tô brincando com isso de Deus, mas é muito difícil. Mas nós temos que fazer. Se não fizermos, nós estamos condenados a sermos sem-pre dominados pela mídia hegemônica, pelo sistema.

faculdades têm que falar disso. Não tem que falar de so-cialismo, mas tem que mostrar que a liberdade do jorna-lista numa empresa é balela. A [Maria Rita] Khel, na sua coluna, analisou do ponto de vista dela, o comportamento da mídia nas eleições, disse que ela [a mídia] estava sen-do parcial. Terminou de escrever, apresentou, demitiram! Que adianta uma faculdade de jornalismo? [Na faculda-de] Tem que mostrar o que acontece, que o jornalista tem uma liberdade relativa. Mostrar como exemplo o caso da Khel, dez anos de coluna, demitida por que discordou do dono do jornal, do patrão.

No início da palestra, o senhor falou que, pela luta socialista, sentiu-se na obrigação de ser parte da classe operária. Pra fazer esse tipo de jornalismo alternativo, é exigência básica que alguma parcela do público alvo esteja também na concepção do trabalho? Vito: Mas é claro. É muito difícil fazer uma imprensa para os outros. Tem que estar junto com os outros. Se você tem, num jornal popular, quatro, cinco pessoas que são do meio popular, vivem lá, sentem lá, eles vão te dizer quais os principais problemas. Vão sentir, vão poder dizer qual aspecto é importante ou não, a linguagem, os temas, as reações, as fotos. Tem que estar junto. É muito perigoso fazer uma coisa para os outros, por que eles podem não se identificar com ela. Não é obrigatório, não é uma norma, mas é óbvio.

A mídia hegemônica tem uma relação de confiança com as pessoas. Como fazer com que a imprensa alter-nativa ganhe essa mesma confiança?Vito: Primeiramente, a imprensa alternativa tem que exis-tir. Não existe. Existe muito pouco. Nós só temos um pe-riódico [alternativo] que se atreve a ser semanal no Brasil, que é o jornal Brasil de Fato. É uma miséria. A direita, a mídia hegemônica tem a Veja, a Época, a IstoÉ, tem um monte de revistas. Nós temos o Brasil de Fato. Então, pri-

fotos: G

uilherme

Porto

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a rEaliZar-sE no dia 1º dE abril dE 1964

O NAMORO

No final da década de 50, para sair de Passo Fun-do e chegar a São Pedro do Sul, era necessário fazer uma viagem de 12 horas de trem até Santa Maria e mais uma hora e meia de ônibus, por estrada de chão, até a pequena cidade a quase 40km distante da Boca do Monte. Esse foi o percurso feito pelo jovem Hugo Aurélio quando foi hos-pedar-se na casa de seu tio Paulo para preparar-se para o vestibular de Medicina em Santa Maria. O “sobrinho do Seu Paulo” era frequentemente visto na praça e no cinema e, como costuma acontecer quando chega um rapaz novo em uma cidade pequena, chamou a atenção das moças do lugar. Entre elas estava Marília, filha do médico da cida-de, com quem se casaria depois de cinco anos de namoro, no 1º de abril de 1964, dia do Golpe Militar.

Hugo e Marília viviam em Santa Maria. Ele passara em Medicina e morava em uma república estudantil e ela estudava o magistério e dividia apartamento com algumas amigas. Com o passar do tempo, ambos começaram a juntar dinheiro para o ca-samento. Marília dava aulas para séries iniciais. “Naquela época, valorizavam os professores, pagavam bem. Até mexiam que quem casava com professora estava bem de vida, era ‘xupim’. Sabe aquele passarinho verde que coloca seus ovos no ninho de outros pássaros?”, relembra Hugo.

Além de ter sido um dos fundadores do pri-meiro cursinho pré-vestibular da cidade, criado por alunos da Medicina para os vestibulandos do curso,

ele também dava aulas de Ciências Naturais nos colégios Santa Maria e Manuel Ribas. Para que pudesse lecionar mesmo não tendo ainda completado os 21 anos, a maiori-dade da época, foi necessário que seu pai fosse a um car-tório emancipá-lo. Enquanto estudante, Hugo também assumia a clientela de alguns médicos já estabelecidos, quando estes tiravam férias. A prática hoje é considerada ilegal, mas, na época, era bastante comum.

Uma das pessoas do círculo de convivência do casal na cidade era o padre Romar Pagliarin, membro da Juven-tude Universitária Católica de Santa Maria. A instituição, que existiu até 1968, tinha como objetivo difundir os en-sinamentos religiosos da igreja no meio estudantil e pos-suía, na época, quatro ou cinco casas que hospedavam e ofereciam refeições para os estudantes. O padre, progressista c o n v i c t o ,

“Sr. e Sra. Walter Franz e Sr. e Sra. Prof. Aurélio Amaral têm o prazer de convidar V. S. e digníssima família para a cerimônia de benção nupcial de seus filhos Marília e Hugo Aurélio a realizar-se às 17:30 horas do dia 1º de abril de mil novecentos

e sessenta e quatro, na Igreja Matriz de São Pedro do Sul”.

FELIPE SEVERO

reportagem

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também era natural de São Pedro do Sul e fora professor de Filosofia de Marília. “O padre Pagliarin era um sujeito muito avançado para a época, fora a Roma, era jovem e professor de Filosofia. Tinha uma visão sociológica boa. Sempre que a gente ia almoçar na JUC, havia discussões políticas. Ele era o nosso Leonardo Boff. Um cara inte-ligente, com quem dava pra conversar”, lembra Hugo. Logo, foi uma decisão natural convidar Pagliarin para re-alizar a cerimônia de casamento.

O CASAMENTO

Quando casaram, Hugo tinha 23 anos e Marília, 22; um filho tão cedo não estava em seus planos, logo a data do casamento não foi escolhida em vão. Naquela época, com a falta de métodos contraceptivos, a maneira mais fácil de evitar a gravidez era através do método da tabelinha e o dia 1º de abril caía no período não-fértil de Marília.

Na noite do dia 31, véspera do casamento, alguns convidados já haviam chegado e estavam reunidos na sala da casa dos pais de Marília quando o pai de Hugo entrou contando a novidade que acabara de escutar no rádio: “Vocês não sabem o que aconteceu. Estourou uma revo-lução!”.

De fato, naquele dia, o general Mourão Filho, um dos articuladores do Golpe, deslocou suas tropas da cida-de mineira de Juiz de Fora em direção ao Rio de Janeiro, com o objetivo de desempossar o presidente João Gou-

lart. A atitude, considerada precipitada até mesmo pelos demais milita-

res, desencadeou uma mobilização das Forças Armadas que levou Jango a se refugiar no Rio Grande do Sul, no dia seguinte, e deixar vaga a cadeira da presidência.

O casal de noivos surpreendeu-se ao saber da notí-cia, mas não chegou a pensar em adiar o casamento. “Já estava tudo pronto e, naquele momento, a grande loucura da nossa vida era o casamento e não o golpe. Só fomos en-tender o que tinha realmente acontecido tempos depois”, diz Hugo.

Alguns parentes de Marília vindos de Pelotas para a cerimônia resolveram voltar naquele mesmo dia, com medo que estourasse alguma revolta popular na fábrica da família. Foi a primeira baixa da festa. Os demais fo-ram dormir cedo, visto que a cidade só tinha iluminação elétrica até a 1h da manhã, quando o gerador parava de funcionar. O dia seguinte ficaria marcado na história do casal e na do Brasil.

No dia 1º, chegando perto do horário do casamen-to, um atraso começou a incomodar a todos - e não era da noiva. O padre Romar Pagliarin, que viajaria de Santa Maria para São Pedro apenas para rezar a cerimônia de união, não aparecera. Ao saber do golpe, Romar escon-dera-se, na certeza de que seria procurado pelas forças militares, e ele tinha razão, tanto que, pouco tempo de-pois, seria preso por seu envolvimento com movimentos de esquerda.

Na falta de alguém para rezar a missa, procuraram o padre local, de quem Hugo e Marília não lembram o nome. O padre, ressentido por ter sido preterido a favor de um padre comunista, negara-se a realizar a cerimônia. Então Flávio, o irmão de Marília, resolveu buscar pesso-almente o vigário e trazê-lo, nem que fosse à força, e con-

seguiu. “O tal do padre veio com uma cara e fez um sermão todo anticomunista, cha-to, chato!”, lembra Marília.

Depois da cerimônia religiosa, fo-ram todos para a festa, realizada no Clu-

be do Comércio da cidade. O decorador da festa, o mais renomado de Santa Maria na época, dispusera uma mesa principal para os noivos, seus pais e os padrinhos, ou-tras mesas para os convidados e um bufê central de salgados. Sobrou muita comida da festa, visto que, dos 120 convidados, muitos não puderam comparecer, pois no dia as forças militares haviam fechado os

fotos do

arquivo

pes

soal

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postos de gasolina por todo o país para evitar uma mo-bilização popular. “Acho que deve ter faltado umas cin-quenta pessoas”, estima Hugo. A festa transcorreu sem maiores sustos e os convidados começaram a se retirar. Porém, para surpresa de todos, havia barreiras policiais por todas as estradas. Todos, inclusive os recém-casados, foram revistados na volta para casa.

“Eu tinha um colega que foi ao casamento e, quan-do chegou aqui em Santa Maria, já estava preso, porque era envolvido com a esquerda”, recorda Hugo. Outro amigo, por sua vez, com medo de que as Forças Armadas utilizassem os aviões do Clube do Aviador, do qual era só-cio, ao chegar à cidade, rumou ao clube e retirou peças de todos os aviões para impedi-los de alçar vôo.

Hugo e Marília não tiveram a lua-de-mel dos so-nhos. Haviam reservado um hotel em Gramado, para passar alguns dias, porém, com o fechamento dos postos e as barreiras policiais, não tiveram alternativa que não realizar suas núpcias no apartamento 52C do Edifício Ta-perinha, onde passaram a morar.

VIDA DE CASADOS

A vida logo após o casamento não foi glamorosa. Hugo ainda tinha um ano de faculdade pela frente e o ca-sal continuou almoçando todos os dias no Restaurante Universitário. Quando cansavam do ambiente, iam a um restaurantezinho modesto que servia pratos-feitos.

Foram montando a casa e, até hoje, lembram di-reitinho da primeira geladeira que compraram. Dividiam as tarefas domésticas: ela cozinhava e ele limpava o ba-nheiro. Dois anos depois do casamento, veio a primeira filha, Márcia, hoje professora de Comunicação Social da UFSM. O parto foi um pouco difícil, o que levou o casal a decidir pela cesariana para a outra filha que viria, Lucia-na, que trabalha como advogada em Porto Alegre.

“Minha filha nasceu pelas minhas mãos. Nós mo-rávamos em Panambi e naquela época não tinha celular nem nada. Então nós marcamos uma data pra cesariana com um anestesista. Ele fez a anestesia e eu, a cirurgia. Minha filha nasceu pelas minhas próprias mãos”, orgu-lha-se ele. “É, ele teve a chance de se livrar de mim”, diz Marília, rindo.

Hugo ascendeu na carreira. Foi o primeiro diretor do Hospital Universitário, quando este foi transferido para o campus. A ditadura fazia-se sentir. Em todo o país,

os reitores das universidades tinham “conselheiros” mili-tares, que zelavam pelo cumprimento das ordens superio-res dentro das instituições. Certa vez, o Reitor entrou na sala de Hugo e pediu para ele demitir um médico recém-contratado suspeito de envolvimento com a esquerda. Hugo disse que só o demitiria se o Reitor lhe desse uma ordem assinada, o que ele não fez. Logo, Hugo não demi-tiu o médico novo, que, inclusive, viria a se tornar o próxi-mo diretor do HUSM.

Marília cursou Letras depois que suas filhas cres-ceram e diz nunca ter recebido interferência do governo militar em seu trabalho. A ditadura, porém, seguiria até 1985, quando o Colégio Eleitoral elegeria Tancredo Neves como Presidente da República. Tancredo faleceria antes de assumir e o seu vice, José Sarney, assumiria até 1989, ano das primeiras eleições diretas após a redemocratiza-ção. Até chegar esse momento, a ditadura já teria mudado a vida de muita gente, como a do padre Romar Pagliarin, que após ser libertado da prisão, largou a batina, casou-se, teve um filho e mudou-se para Minas Gerais, onde se-guiu a vida dando aulas de Filosofia.

Hugo e Marília riem ao relembrar de tudo o que aconteceu em seu casamento. Os dois concordam que a viagem de núpcias para Gramado, por exemplo, não fez falta. Hoje eles andam pelo mundo todo, fazendo uma lua-de-mel por ano. Seu apartamento é decorado com lembranças dos países que visitaram: bonequinhos de sereias da Dinamarca e trolls da Escandinávia, ícones da Igreja Ortodoxa Russa, facas marroquinas, turcas, uru-guaias, uma pele de rena da Lapônia, entre outras coisas. Para o ano que vem, quando completa 70 anos, Hugo planeja uma viagem para a Antártica, para visitar a base brasileira que lá existe. Marília, porém, não quer de jeito nenhum e esse parece ser o principal impasse do casal, hoje em dia.

“O que eu acho importante dizer é que a vida a dois tu vais construindo dia a dia. Consolidando aqui, conso-lidando lá, aparando uma aresta. Um perdoando o outro em algumas coisas que saem erradas. O que interessa é isso, o final. Um final alegre, um final bom. Nós estamos muito bem, nossas filhas estão bem, nossos três netos também. Falando nisso, meu neto já anda de mãos dadas com uma menina aí, uma guriazinha muito boa. Tô vendo que, daqui a um tempo, vou estar dormindo com ‘a bisa-vó’”, diz Hugo.

“Ai, não fala isso! Que horror!”, retruca Marília.

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MUndUs in littEraE

A história começa quando contamos, pintamos e escrevemos. Nada pode ser dito sobre o passado e pouco, portanto, pode ser apreendido do presente sem os regis-tros daquilo que já passou. Por isso, dividimos a trajetó-ria humana em pré-história e história, sendo que esta foi inaugurada com a invenção da escrita. No início, ainda no período Neolítico, ela não passava de fichas com os detalhes das criações de animais e das colheitas, mas, de instrumento de controle da produção, a escrita se desen-volveu. A literatura, sua filha, surge a meter em letras e em palavras aquilo que vivemos.

Quando Pedro Álvares Cabral e sua frota chegaram às terras que, futuramente, seriam o Brasil, repetia-se o processo humano da organização da descoberta. O Novo Mundo, tão diferente e tão rico aos olhos, precisava ser percorrido e descrito. Da mesma maneira que os chine-ses, os gregos e os persas, desde há muito, preocupavam-se em descrever o universo e ordená-lo em constelações, aos exploradores que atracavam nestas novas terras era necessário desenhar mapas e rotas e definir limites.

Da junção de exploração e história, de viagem e escrita, surge a literatura de viagem, termo que, de certa forma, faz-se redundante, pois toda escrita advém de um ir e vir e ir contínuo, pelo qual tentamos ordenar num tex-to o que haveria de ser logo esquecido.

Por três séculos, o Brasil foi um país fechado aos viajantes. Só entravam aqui pessoas a mando da Coroa Portuguesa, que, medrosa de que outras nações euro-peias lhe roubassem as riquezas brasilianas, mantinha a colônia como uma ilha aos estrangeiros.

Em 1808, no entanto, D. João VI para cá fugiu e, com ele, trouxe todo um projeto “civilizador” para o que parecia ser a mais selvagem expressão do homem. A par-tir de então, a própria Coroa começou a incentivar e a pa-trocinar viajantes das ditas nações amigas que quisessem

explorar o Brasil.A literatura de viagem sobre o país, no entanto,

começou com os próprios portugueses em suas cartas de relato ao rei, a exemplo da Carta de Pero Vaz de Cami-nha. De 1500 a 1808, resumiu-se a isto: relatórios sobre as riquezas das terras descobertas. A partir de 1808, num ensaio modesto de avanço literário, os primeiros viajan-tes se embrenham não só pelo litoral, mas para dentro do Brasil. Como o interesse pelo país ressurgira na Corte Portuguesa, era preciso conhecer as terras que, por 300 anos, fora, para Portugal, o que a Sibéria era para a Rús-sia stalinista: o fim do mundo, a fixação indesejável.

O BRASIL NATURALMENTE

O tipo incipiente de literatura que se fazia sobre e no Brasil tratava-o como um objeto a ser cientificamente estudado. Deslumbrados pela riqueza da fauna e da flo-ra brasileiras, viajantes como Hans Staden e Auguste de Saint Hilaire escreviam sobre o clima, sobre as espécies de animais e plantas e sobre a abundância mineral do Brasil. Era parco o interesse sobre as pessoas que aqui moravam, pois era impensável que, numa terra tão distante da Euro-pa, tanto em geografia quanto em cultura, pudesse haver pessoas “civilizadas”. O homem brasileiro era também um tipo exótico, a ser descrito como um bicho.

Para a escritora Flora Süssekind, no livro “O Brasil não é longe daqui:o narrador, a viagem”, nessa época, a literatura servia como cartografia. Deveria traçar os as-pectos geográficos do Brasil. Para Flora, o espírito desse tipo de literatura estava também presente nos primórdios da literatura nacional, que, obcecada em definir o que era realmente brasileiro, apelava àquilo de mais distinto por aqui: sua exuberância natural.

A literatura de viagem reconfigura a geografia e desenha um mapa de letras.

GIANLLUCA SIMI

reportagem

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TERRA DE GENTE

Não necessariamente posterior à literatura de via-gem focada na natureza em sentido cronológico, outro tipo de viajante começou a explorar o Brasil de um jeito menos geográfico. Escritores como Maria Graham pas-saram a escrever sobre as pessoas do Brasil não só como “espécimes de uma raça inferior”, mas, basicamente, como seres de costumes pitorescos. Obviamente, a cria-ção eurocêntrica desses escritores não lhes abria total-mente os olhos ao caráter humano das pessoas daqui, mas já se mostravam preocupados com o registro da história, através de relatos sobre o cotidiano, sobre os costumes e sobre as cidades que começavam a crescer no Brasil. Es-creviam sobre cerimônias religiosas, hábitos indígenas, relação entre brancos e escravos etc.

Flora Süssekind chama esses escritores de narra-dores-cronistas, que “em vez de matas densas, imensas, falam de algum jardim público; em vez de uma sucessão de cachoeiras, descrevem confeitarias e conventos”. Não se perdeu o interesse no potencial de exploração das ri-quezas brasileiras, apenas se somou um interesse mais pelos “usos e costumes” da gente que aqui morava.

Dessa forma, em vez de os exploradores falarem do Brasil desde uma posição científica, evidentemente superior, o escritor se inseriu como sujeito participan-te do cotidiano local. As impressões não se quedaram somente em nomeações científicas, mas se expandiram para adjetivos mais abstratos, a representar os impactos sentimentais do que por aqui se vivenciava: “pitoresco”, “repugnante”, “lindo” eram palavras comumente usadas segundo Isadora Eckardt da Silva, doutoranda em Teoria e História Literária pela UNICAMP.

Segundo Isadora, as narrações de viagens se torna-

ram produto de consumo na Europa. Os escritores tam-bém passaram a ver nas terras exóticas uma oportunida-de de lucro. Os europeus consumiam literatura de viagem como novelas reais, cheias de personagens peculiares, como num circo.

Enquanto isso, no Brasil, a Corte e o projeto de burguesia se esforçavam para fazer o país parecer mais civilizado perante os olhos dos europeus. Ofereciam fes-tas pomposas aos viajantes, que deveriam, assim, ficar impressionados com o avanço cultural europeizado da sociedade brasileira. A historiadora Isabel Lustosa se refere a isso como “o Brasil que queria ser francês”, na clara tentativa de transformar o Rio de Janeio - centro econômico e político da época - na “Paris dos trópicos”.

fotos: Divulgação

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Apesar dos esforços pedantes, o resultado era frustrante para os anfitriões. A escritora Gina Lombroso, por exem-plo, acompanhou seu marido, o historiador Guglielmo Ferrero, numa série de celebrações à vinda do casal, mas, ao voltarem à Itália, Gina lançou um livro em que culpava a presença africana pela suposta indolência do brasileiro e dizia que as duas pragas do Brasil eram a malária e o bicho-de-pé.

DOS VIAJANTES DO SÉCULO XIX ATÉ AS REVIS-TAS E O CINEMA MODERNOS

Em janeiro de 1888, é criada a Na-tional Geographic Society (Sociedade Geográfica Nacional) nos Estados Unidos. Formada por geógra-fos, antropólogos e naturalistas, tinha o objetivo de “aumen-tar e difundir o co-nhecimento geográfi-co enquanto promove a conservação dos re-cursos culturais, his-tóricos e naturais do mundo”. Um ótimo mote, mas, nove meses depois, quan-do foi lançada a primeira edição da revista The National Geographic (A Geográfica Nacional), ainda se viam res-quícios do pensamento etnocêntrico e evolucionista de sempre.

Aliás, Charles Darwin, pai da Evolução na bio-logia, tem muito a ver com literatura de viagem. Assim como nos primórdios da Geográfica Nacional e como de costume nos relatos de viagem sobre o Brasil, por exem-plo, imperava, na época, o sentido de que o homem, como animal, deveria enquadrar-se nas leis da evolução e que, portanto, todos os povos do mundo estavam num proces-so de escalada até o modelo europeu. Era o álibi perfeito para desprezar, explorar e escravizar os “exóticos”.

No cinema, o filme Nanook, o esquimó, feito em 1922 por Robert Flaherty, é tido como o primeiro docu-mentário da história. Por ser um documentário, haveria

de ser completamente não-ficcional - algo amplamente discutido hoje nos círculos de estudos cinematográficos -, mas, pelo contrário, o que se viu foi um registro do pi-toresco em película. Naturalmente mais impactantes do que as palavras, as imagens do cinema, nesse sentido, só fizeram alimentar a ideia de “nós, europeus e civilizados” contra “eles, bárbaros e selvagens”.

A literatura de viagem e, mais amplamente, toda a produção simbólica em cima da viagem, como filmes e revistas, criou uma nova categoria: a do turista. A pa-lavra turismo vem do francês tour (volta) e ilustra o que, em português, poderia ser dito como “dar uma volta”. O turista vai, olha e volta. Não está interessado em saber muito do cotidiano do local - está de passagem, quer mais ver os museus, as torres e os restaurantes.

Assim, cresce o interesse pelo distante e desconhe-cido e proliferam-se revistas especializadas no assunto. No Brasil, o maior exemplo é a revista Viagem & Turismo, cheia de publicidade de agências de viagens que prome-tem muito lazer em dez parcelas e que são escritas mais pensando em quem não viaja do que em quem, de fato, vai. As reportagens revisitam o estilo explorador da lite-ratura de viagem do século XIX ao engrandecer as ma-ravilhas dos países “desenvolvidos”, como a França e o Canadá, e a espetacularizar os terrenos ainda “exóticos”, como as ilhas do Oceano Pacífico.

A ficção não fica para trás. Por mais desinteressa-dos que os filmes pareçam nos impactos de suas histórias, o cinema e a televisão ainda alimentam um imaginário baseado na comparação entre as culturas. A morada da sexta felicidade, filme de Mark Robson de 1958, enfatiza como a personagem de Ingrid Bergman simplesmente sente que pertence à China, mas nunca perde o tom hu-morístico quanto retrata os costumes chineses e, princi-palmente, sua falta de devoção ao deus cristão. E o que dizermos do patético filme de terror “Turistas”, filme de John Stockwell de 2006, em que um grupo de estrangei-ros é sequestrado por uma gangue de contrabando de ór-gãos - isso tudo, claro, no meio de uma floresta densa e tropical no Brasil?

A NOVA LITERATURA DE VIAGEM

Parece clichê dizer que a internet tem um papel re-volucionário em todos os aspectos, mas é preciso dizê-lo

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quando se fala de uma nova literatura de viagem. O ba-rateamento das viagens internacionais e a popularização de programas de intercâmbio geraram uma explosão de blogues e sítios sobre as experiências do viajante pelos confins do mundo. Não representam exatamente uma re-volução, porque seu conteúdo ainda é bastante marcado pelo foco no que é “esquisito”, mas convivem com outros tipos de relatos cibernéticos, cujos escritores estão cien-tes de que toda pessoa leva consigo sua carga histórica e cultural e de que é impossível julgar uma outra cultura baseado só no que ele, viajante, acha das coisas.

Sítios como Words without borders (Palavras sem fronteiras) são um bom exemplo de como é possível, mes-mo pela literatura de ficção, traçar uma cartografia do mundo através de um olhar menos etnocêntrico e mais preocupado com a questão humana universal. A comu-nidade Visual Journalists (Jornalistas visuais) também se enquadra nessa nova literatura: serve como plataforma de distribuição de reportagens sobre assuntos internacio-nais feitas por pessoas da região de tais assuntos, em con-traponto ao olhar por vezes viciado dos correspondentes da CNN, da BBC e de afins. Os próprios programas do National Geographic Channel e do Discovery Channel já mudaram, há bastante tempo, sua forma de se referirem ao “resto do mundo”. Em suas programações, veem-se muitos programas que falam menos dos animais exóti-cos e mais das pessoas e das suas culturas. No âmbito da América Latina, vítima frequente dos viajantes europeus, temos a TAL (Televisão América Latina), iniciativa do jor-nalista Gabriel Priolli, que serve de canal compilador da produção audiovisual latino-americana sobre suas pró-prias questões.

Seja por livros, revistas, filmes ou blogues, escre-ver sobre viagens tem se mostrado uma tendência huma-na. Desde as epopeias gregas até projetos como a TAL, nós sempre procuramos ordenar, em palavras ou em ima-gens, o recém descoberto, o novo, os lados de lá. Relatar a viagem nos é intrínseco.

A viagem, no entanto, não representa somente a descoberta do outro como diferente, mas também a desco-berta do outro como semelhante. Nunca vemos o “outro” da mesma maneira que ele vê a si mesmo, mas da maneira como ele nos parece. O local representa o conforto do ha-bitual, onde tudo é conhecido e já nos parece organizado. Viajar implica sairmos desse conforto para chegarmos a

outro lugar, des-conhecido e novo, onde tudo parece caótico e quebrado em pedaços a quem recém chegou. O estrangeiro só é estranho enquanto não conseguir or-denar o caos que se apresenta e que assusta.

No fim, o cerne da viagem, como um todo, não são nem a origem nem o destino, mas o próprio viajante como sujeito de um contexto específico que se torna sujei-to móvel e que, ao se deslocar, não cessa de desconstruir suas certezas e reconstruir aquilo que é e o que parece não ser.

Escrever sobre a viagem é registrar a história do de-senvolvimento dos seres humanos. Não uma escrita neu-tra e imparcial - porque isso não existe -, mas uma escrita feita por alguém de um lugar e de um momento que vai a um outro lugar em um outro momento e que está aberto à diferença. “Cabeça aberta” - por muito tempo faltou aos exploradores, mas, pelo menos, é a isso que parecem ru-mar os viajantes do século do XXI.

[+Extras]

o brasil não é longe daqui: o narrador, a via-gem, de Flora Süssekindo traço subjetivo e o fascínio do fenôme-no urbano na crônica de viagem de Maria Graham, de Isabel Eckardt da SilvaTeoria da viagem: poética da geografia, de Michel Onfrayhistória viva: o olhar dos viajantes 1 e 2, da Editora Duettonanook, o esquimó, filme de Robert Flaherty

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do chão batido ao asfalto

Há um canteiro de obras e um muro novo de alve-naria vai surgindo. Não apenas um, mas vários. A grande avenida permanece ora vazia, ora movimentada por um caminhão de lixo, um ônibus ou uma carroça. Na calma-ria da imagem, um motociclista ziguezagueia os declives a correr um cavalo fugitivo. Uma dupla brinca de atirar pedra enquanto os varais vão se enchendo de roupas. Um grande edifício escolar destoa dos demais e quebra a se-quência de telhados sobre os altos e baixos do terreno. Em uma placa informativa de rua, pendurada em mais uma esquina, podemos ler “Sem luta não há vitória”. A placa talvez indique em poucas palavras a realidade e o passado que o bairro Nova Santa Marta, em Santa Maria, conhece bem.

A Fazenda Santa Marta era uma grande extensão de terra que permeava a cidade de Santa Maria na década de 1970 e que, por pendências com o governo da época, fora desapropriada em 1978. Em 1980, a Companhia de Habitação do Estado do Rio Grande do Sul – COHAB – iniciou a construção da COHAB Santa Marta em um ter-reno de 39 hectares, espaço sutil se comparado ao tama-nho do terreno de posse do estado.

Em 1984, foi autorizada a doação de aproximada-

mente 340 hectares para a COHAB com o propósito de que fosse construído, no prazo de 5 anos, um conjunto re-sidencial - o que não se concretizou. Pelos anos seguintes, a tensão sobre o direito à moradia só aumentava na cida-de. Era início da década de 1990 e o país ia mal. Os sa-lários baixos e a desvalorização do emprego imperavam. Milhares de famílias, por toda a cidade, viviam de aluguel ou nas casas de parentes. Para se adquirir residência pró-pria na época, a burocracia era um entrave, além dos valo-res das parcelas de pagamento calculados sobre o salário mínimo, que eram exorbitantes.

Em 1990, ano antecedido por grandes ocupações de áreas e conjuntos habitacionais nos grandes centros brasileiros, ocorreu em Belo Horizonte o I Encontro Na-cional dos Movimentos de Moradia. Desse encontro, com representações de 13 estados, surgiria o Movimento Na-cional de Luta pela Moradia (MNLM). Este movimento logo se agregaria à luta em Santa Maria, atuando até os dias de hoje em vários bairros.

Seu Dimas não aceitava aquela circunstância des-vantajosa que mantinha desigualmente uma maioria de cidadãos sem terreno para erguer uma casa. Músico pro-fissional por muitos anos e taxista até hoje, o senhor mo-

reportagem

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Banho na bica, cavalo na carroça, água quente e motocicleta. A luta comunitá-ria pela construção do Bairro Nova Santa Marta, onde existia só campo e céu.

BIBIANO GIRARD E CAREN RHODEN

reno de estatura mediana não compreendia como tanta gente não tinha onde morar, sendo que o governo tinha espaços ociosos pela região. “Nosso primeiro passo foi elencar todo esse pessoal e mostrar para eles que era ne-cessário lutar pelo próprio espaço”.

Os barracões apontaram em 1991 no alto de onde hoje é a Vila 7 de dezembro, a primeira a edificar-se. Pela cidade, o boato era de que Sem Tetos haviam invadido um terreno, estigma hoje enfraquecido, mas corrente em algumas conversas. Seu Dimas enfatiza que “considero certo o termo ocupação. Invasão, para mim, é quando tu retiras alguém do lugar ou ocupa o lugar que alguém ocu-pava. Nós viemos para um lugar que não tinha nada, era vazio”.

A madrugada que deu início à ocupação se prolon-gou por turnos avante e levou mais de cem famílias a um objetivo comum. Vinham pessoas de todos os bairros da cidade.

Lonas pretas compunham o material de cons-trução inicial, além de qualquer outro que oferecesse características de alicerce. Precariamente, a decisão e a consciência de direitos iguais a todos se firmaram. Preca-riamente porque este sempre é o início: vontade e poucas

condições. Do verão, algumas despedidas por insalubri-dade e sequentes desânimos. A construção social e cole-tiva demora, precisa de resposta governamental e supera inviabilidades de formas variando entre fincar o pé, bater lata, impor organização; esta última, a chave do desenvol-vimento da Nova Santa Marta.

A entrada no terreno, depois da invasão, era proi-bida e policiada. Caminhos novos foram abertos e cami-nhões chegavam clandestinamente com material para levantar novas casas. “A gente até acha, desconfia, assim por se dizer, que a polícia sabia dos nossos caminhões entrando por estradas clandestinas. Na verdade, eles não queriam atrapalhar nossa luta e talvez fossem favoráveis à nossa causa”. A subida dependia de veículos fortes, caso contrário, não acontecia. Nessas coxilhas gaúchas, lado oposto aos morros santa-marienses, os cavalos e os bois irrompiam no meio das ruelas ainda em meio a planícies vazias e davam às crianças uma diversão anacrônica às do centro.

Nas nascentes, buscava-se a água com baldes e po-tes. Na bica, mais tarde, era um tanto confuso. A fila au-mentava enquanto alguém tomava banho, também feito a caneca ou em valetas que armazenavam água. Ninguém

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falou de facilidades. A iluminação nenhuma os colocava aos horários do sol. Assim, soando como civilização nova, perdendo alguns aqui e recebendo outros também, cons-truíram-se.

Não só na cidade, mas pelo país a notícia correu. Dentre pessoas de vários estados que chegaram ao Sul, também um sergipano que mora há sete anos aqui. “Ouvi na voz do Brasil.” Com saudade de subir coqueiro e do jei-to do seu povo, quer voltar. Chegou à aposentadoria de-pois de perder-se pelas ruas do bairro. “Uma coisa ruim baixou” e, então, perdeu-se sem nem conseguir reconhe-cer a esposa. Depois de quatro anos trabalhando no lixão, onde “tudo que é coisa ruim se junta”, melhorou a vida. De sotaque ainda carregado, sentado em sua cadeira de sol, não tem problemas em atar uma conversa falando dos filhos e da esposa, que trabalha em reciclagem. Erguidas em seu terreno, já estão duas casas.

Por força do grande número de pessoas - em torno de dez mil -, em 1994, a linha de ônibus 7 de dezembro foi criada. “Pra pegar ônibus, logo no início, eu caminhava num capinzal, no escuro e, às vezes, até me perdia”, diz uma senhora, que abraçava o filho antes de pegar a linha atual Alto da Boa Vista – Rodoviária. Em 1994, o desâni-mo impôs desistências. No ano seguinte, para que os ôni-bus continuassem passando, a população organizou um

mutirão para tapar os buracos da rua. Também se agilizou para conseguir luz. Dos tantos

homens que reclamavam em frente à AES Sul, 12 foram recebidos e, em 1996, água e luz abasteciam parte das ca-sas. Abastecimento lento e gradual, com o cano principal de água pago por outro mutirão feito entre moradores das vilas, cansados de esperar. A comunidade sempre foi ge-rida pelos seus moradores. Seu Eder, que chegou à loca-lidade por volta de 1992, explana sobre as vitórias e lutas como se contasse seu último domingo. Conhece os “da antiga” e os mais recentes vizinhos. “Quem saiu antes dessas melhorias de hoje em dia agora quer voltar”.

Realmente, os desistentes que, por algum motivo, deixaram o lugar e até alguns companheiros hoje devem matutar a opção errada. Existem bairros da cidade com dezenas de anos que até hoje não possuem qualquer tipo de pavimentação ou organização de plano diretor. Seu Dimas entende que obter pela insistência não deveria ser a forma mais correta de governo e população se rela-cionarem. Porém, nessas confusões que aconteciam em governos anteriores, em que a associação de moradores passava até anos pedindo um beneficiamento, toda a luta era válida.

Os moradores mais antigos, depois de mais de dois anos no terreno, já com casas, tiveram um momento de

ilustraçõ

es: Bibian

o Girard

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impasse com a polícia. Algumas pessoas que não tinham a habitação como motivo maior começaram a chegar à Nova Santa Marta e a polícia, em um ato maquinal, abriu valetas em torno da região, deixando os moradores en-trincheirados. “Eles não pensaram em quem já estava dentro e necessitava sair. Foram dias bem difíceis”, lem-bra Seu Eder.

Logo que a comunidade obteve a organização co-munitária, a educação das crianças tornou-se a principal exigência. Os alunos enfrentavam longas distâncias até as escolas mais próximas, o que os afastava muito das salas de aula, então, necessitavam de um centro educa-cional próprio.

Com muita insistência e depois de alguns impas-ses, os irmãos maristas conseguiram um terreno central no bairro e começaram a construção da Escola Marista Santa Marta. Havia um porém. No meio do caminho tinha um riacho. E, por muitos anos, mesmo depois da escola funcionar por um bom tempo, ele seguia no caminho. Em dias de chuva, a vazão era tão grande que conseguiu le-var por 700 metros abaixo um casal de irmãos. Os alunos seguiram enfrentando a chuva, a água e a rua barrenta e esburacada. Deu-se que, muito tempo depois, mais uma luta obteve vitória.

Aquele caminho de terra cortado pelo riacho hoje é

uma rua pavimentada e sinalizada. Para onde se olha, ruas demarcadas e outras asfaltadas. Tijolos e areia ajustados para virar muro. Postes levando a energia que, há pouco tempo, não existia. Seu Pedrinho, morador anterior à ocupação, conta que sua chácara só foi contemplada com energia elétrica depois que a associação de moradores re-sistiu para consegui-la. E, há dois anos, as notícias não eram favoráveis. O programa federal que agiliza obras pelo país năo beneficiaria o bairro.

“Nós tivemos que lutar para sermos incluídos no PAC. Por pouco não ficamos de fora. Permanecemos dois meses correndo de um lado para o outro, íamos até Porto Alegre para reivindicar isso. Nosso problema todo era por-que o terreno era do estado e, como o estado tinha dívidas com a união, poderíamos ficar de fora. Então, nós pres-sionamos por bastante tempo para que o governo Yeda [Crusius, PSDB] passasse o terreno para o município. Foi aí que conseguimos ser incluídos. Nosso movimento co-munitário é muito forte, bem atuante e o grande mérito das conquistas recentes é da associação de moradores”, diz Seu Eder, sentado à mesa de sua casa.

Entre as possibilidades de melhorias no bairro, está a legalização da rádio comunitária local. Ela foi fundada em 2008 e hoje espera a liberação da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) para atuar de forma legal

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nos arrabaldes. No início, as dificuldades de conseguir os equipamentos inviabilizaram a ideia. Entretanto, com ações entre vários moradores, conseguiram-se um com-putador, um microfone, uma mesa, além de uma caixa de som retorno doada pela banda Agito Capilar, que tocou na rádio.

A associação de moradores do bairro já enviou à ANATEL a documentação necessária para comprovar os requisitos mínimos necessários para a liberação do sinal. Os moradores estão cientes sobre a programação diária de uma rádio comunitária - “nós compreendemos e segui-mos a filosofia dela”, diz Eder.

As rádios convencionais não se interessam pela liberação. O porquê desse embate é o maior fluxo de vei-culação de propagandas e menor gasto para quem propa-gandear nas comunitárias. O que se faz nelas é anunciar sem exaltar um produto em detrimento de outro. Outro argumento contrário às rádios é o de que elas derrubam aviões, o que nunca foi um fato. Hoje esperam uma pe-tição para que consigam fazer alguma transmissão; o provável é que microfones abertos – e aí qualquer um da comunidade fala qualquer coisa - seja apenas aos finais de semana, como no exemplo de outras rádios comunitárias

que já têm a petição.Como próprio de um bairro que se caracteriza

como pequena cidade, as noites não são completamente seguras. A construção do Presídio Regional de Santa Ma-ria no Distrito de Santo Antão, próximo ao bairro Nova Santa Marta, trará, assim parece aos moradores, mais se-gurança. Como policiais terão que morar pelo entorno, a circulação deles daria às ruas mais respeito.

Também a resolver existe a iluminação pública – parece esperar mais uma mobilização -, as casas em si-tuação de risco - como algumas construídas em beira de riacho - e a completa instalação do sistema de esgoto. Também a elogiar, panos pintados a mão onde lemos “Ci-nema na comunidade”. Igrejinhas, muitos cavalos, músi-ca em alto volume na tarde de feriado. Vinte e cinco mil pessoas, mercadinhos, lojinhas, ônibus, farmácia, moto-rista, estudante, vizinhos e vizinhas. As pessoas do bairro viveram recentemente a situação que, a quem já está edi-ficado, parece absurda. Hoje existe acesso à internet para alguns, há poucos anos, em contrapartida, mal se conse-guia receber correspondências. O caminho, os próximos desenvolvimentos e os próximos tropeços continuarão, espera-se, a ser um grito coletivo.

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a rUa do tEMPo dEMaisCARENA SÓ

poesia

VentaE o segredo levanta cortinas

Venta Ondula a vida

VentaSobre o telhado rijo

Por aíEles caem

VentaE tombam as árvores velhas, doentes

VentaE caem corpos insuportáveis

VentaE os cenhos se fecham

Os olhos secamPorque venta muito forte

Na Rua do Tempo DemaisSorriem. Contemplam.

Esses flutuantesDa Rua do Tempo Demais

Essa rua imaterialOrnada com bolhas de suspiro

Estão todos em seus avessos.

A pele – não há peleCala toda a sua própria extensão

- redonda, finitaE parca

A pele desmaia no cabide do armárioO invólucro vivo se mata

É o passeio no mistérioAusculto o risco

Feérico

Segue na página 26

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fEliZ dia das MãEs

o reto

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Os desenhos são de Aloisio Licht e foram feitos em 2008. [email protected]

PlEnos PodErEs

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[Morar no silêncioOnipotente, onipresente, oniscienteEternamente alto...solene.Ou será que ele se vêNa ligação infinita dos diálogosE goza do absurdo,Megalomaníaco Mimado?]Alguns daquela Rua ainda se perguntam

No espelhoO caos das turbulências urgentes

- Há sempre nas cidades um clarão, um perto do além. Mas aqui. Lá que Os moradores acompanham o céu através dafumaça. De lá sobrevoam. Mas aqui -

Os da Rua do Tempo Demais são amorfosOs perpassa a vida

Ela se escondeFrágil, mirraPó de candelabroIndômita espreita

Cato os olhos da vidaReassumo a pele e saioSe me vou, que me vá gasta

[e de lá contesobre o que nunca basta]

Segue ventandoEu, de tanta velocidade,Carrego, vou carregandoGalhofas de mim: diluída

Vai ventar o dia todo.

O que é meu, o que me é?Bulhufas

Outros tantos da Rua não se perguntam mais.

- Há sempre nas cidades um clarão, um perto do além. Mas aqui. Lá que Os moradores acompanham o céu através da fumaça. De lá sobrevoam. Mas aqui -

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a dUra PoEsia concrEta dE UMa EsQUina PaUlistana

O famoso cruzamento da Ipiranga com a Avenida São João.

MATHIAS RODRIGUES

reportagem

Andando pelas calçadas sujas e quebradas do cen-tro paulistano, cujo desenho imita o mapa do estado de São Paulo em um constante contraste preto-e-branco, chega-se ao famoso cruzamento das avenidas Ipiranga e São João. Um porteiro ronca na recepção de um dos mui-tos hotéis que se espalham entre os edifícios antigos, que esperam por uma restauração.

O senhor aceita um jornal Primeiramão?

São oito da manhã e o céu cinza parece anunciar que a garoa de sempre está próxima. É dia 30 de dezem-bro de 2009, um daqueles dias nos quais todos os patrões já estão viajando há tempos, mas o povo pobre continua a levantar cedo e suar para levar uma ceia um pouco melhor para a família.

João, dois pão na chapa e um pingado!

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Nos balcões da padaria que ocupa uma das esqui-nas, clientes se acotovelam à espera de seu café da manhã. Queijo minas com peito de peru. Mais um pingado. Uma vitamina. A cada pedido, um sotaque diferente.

De sandálias, dois homens caminham pelo cruza-mento. Olham para a placa e logo resolvem tirar fotos. Acima da padaria, no mesmo prédio, poucas janelas aber-tas. Em uma delas, apenas uma placa: “SEX SHOP”.

7454 COHAB Educandário8700 Terminal Campo Limpo

509J Terminal Princesa Isabel408A Cardoso de Almeida

702P Pinheiros

Ônibus lotados, pintados das mais diversas cores e com os mais diversos destinos tomam as ruas do cen-tro da cidade. Outro contraste, dessa vez com o chama-tivo verde-limão dos telefones públicos, todos pichados e cheios de adesivos de prostitutas.

O sol parece querer aparecer. O vendedor ambu-

lante de óculos olha para cima, quase que rezando por vendas melhores nessa véspera de véspera de feriado. Mas o que o sol mostra é que grande parte do cinza do céu não são nuvens, e, sim, poluição, uma “feia fumaça que sobe”, apagando quase tudo.

Adriane Galisteu está grávida!Truffa 1 real!

Xerox!

Na banca de jornal onde se encontra tudo, parecem faltar justamente jornais. Ao lado, uma cabine de polícia vazia, com um Police escrito bem grande para turista ver, está posicionada de frente para um Citibank na outra es-quina. Em cima do logo do banco, um relógio moderníssi-mo. Contraste é realmente o que não falta por ali.

“Não vou pedir dinheiro nem nada. Saí da prisão faz duas semanas. Não roubo mais. Tenho AIDS.

O senhor poderia ir ali no Extra? Comprar o leite da minha filha? O Ninho de caixinha. É 3,15.”

A esquina continua sem policiamento. Pedintes an-dam rapidamente de um lado para o outro, com as mãos estendidas, sedentas por moedas. Mendigos dormem por todos os cantos e parecem ignorar o intenso barulho do trânsito.

O Bar Brahma - que deu fama à esquina - começa a abrir as portas, por enquanto só para os empregados. Na calçada, seis fiscais de trânsito levam a mão à cabeça ao ver que é justamente o carro da CET [Companhia de Engenharia de Tráfego, a empresa responsável pelo trân-sito em São Paulo], de número 0053, que está quebrado no meio da rua.

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Aluga-se ap

As paredes dos velhos prédios, se não cobertas de pichações indecifráveis, estão repletas de papéis e pro-pagandas coladas. De macacão vermelho, duas meninas seguem distribuindo gratuitamente os jornais de classifi-cados, e a dizer “aceita um jornal Primeiramão, senhor?”.

fotos: M

athias

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Sampa, de Caetano Veloso

Alguma coisa acontece no meu coraçãoQue só quando cruza a Ipiranga e a avenida São JoãoÉ que quando eu cheguei por aqui eu nada entendiDa dura poesia concreta de tuas esquinasDa deselegância discreta de tuas meninas...

...E foste um difícil começoAfasto o que não conheçoE quem vende outro sonho feliz de cidadeAprende depressa a chamar-te de realidadePorque és o avesso do avesso do avesso do avesso...

Elas só sairão de lá quando, exaustas, terminarem de dis-tribuir um carrinho de jornais de mais de dois metros.

A polícia chega quando as mesas do bar já estão sendo montadas para o almoço. O carro da CET continua lá, no meio do caminho. Mais algumas horas e o trânsito se complicaria. A cada dia, a “hora do rush” começa mais cedo nesse inferno sobre rodas que é São Paulo. O carro de número 0052 logo chega para ajudar. Em quinze mi-nutos, um carro da CET sai guinchado por outro.

Nego

Na camiseta de um pedestre, a bandeira da Para-íba. Na Casa da Mortadela, o sotaque é outro, italiano. Seu Irineu Stabile está há 52 anos na “esquina do peca-do”, como ele mesmo define a localização de sua famosa lanchonete. As mortadelas penduradas no teto chamam a atenção de quem passa pela rua. Quem entra conhece o chapeiro Raimundo - que logo oferece o tradicional lan-che da casa: mortadela, queijo e vinagrete. Lá, o barulho dos carros tem que competir com o da fritura, da “mor-tandela” e de quatro grandes calabresas.

O senhor aceita um jornal Primeiramão?

Essa loucura de cores, barulhos, poluição, gritos e sotaques é São Paulo. É “o avesso do avesso do avesso do avesso”. Essa é a maior definição da cidade que mais con-trasta paisagens e vidas. E o cruzamento da Ipiranga com a São João é prova disso.

Publicada originalmente na versão online da revista o Viés em 02 de janeiro de 2010.

Revisado pelo autor.

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isso aQUi É UM sonho?Os exploradores do mundo onírico:

os jeitos e as peculiaridades de sonhar lucidamente.

NATHÁLIA COSTA

reportagem

O rapaz testa o interruptor. Tenta desligar uma, duas, três vezes até que, enfim, repara que o lustre da pe-quena sala de madeira em que ele permanece não parece alterar a luminosidade. Sim, a luz não apaga e ele se dá conta, mais uma vez, de que está dentro de um sonho e de que ainda não pode sair dele. Ele despertou em seu sonho, mas ainda não acordou. Ele está tendo um sonho lúcido.

VOCÊ ESTÁ SONHANDO?

Basicamente, ter um sonho lúcido é sonhar tendo a percepção de que se está sonhando, é um sonhar cons-ciente. Uma espécie de insight onírico, a percepção exata de que ‘isso só pode ser um sonho’. Os sonhos lúcidos não são estranhos à maioria das pessoas. Muitos percebem, ou mesmo se lembram, de, em um dado momento, terem despertado a própria consciência em meio a turbilhões imaginários. Essa compreensão exata do momento do sonho pode ser natural, vinda do acaso, ou mesmo desen-volvida e treinada. Aos que dedicam suas preocupações ao ato de sonhar consciente, dá-se o nome de ‘onironau-tas’.

O que faz muitas pessoas aproximarem-se do so-nho lúcido pode ser tanto uma crença, quanto a busca pela cura ou apenas pura curiosidade. O universo inexplorado dos sonhos parece muito mais tentador quando pensado de forma consciente. Ter controle dos próprios pesadelos por exemplo. Ou apenas sair voando, experimentando sensações que não dominamos realmente. Estimando-se que passamos cerca de um terço da vida dormindo, é na-tural que pensemos em aproveitar esse período não ape-nas para descanso.

Existe quem se pergunte o porquê de se ter um so-nho lúcido – não pelo seu mecanismo natural, mas pela intenção de tê-lo. Acontece que, para muitos povos, ao decorrer de toda a história, os sonhos são parte indisso-

ciável da religião e da espiritualidade. Antes mesmo de representarem a frustração sexual para Freud, o jogo do bicho para os apostadores e a representação mental das sensações e emoções humanas para cientistas, os sonhos compunham o imaginário de diversos povos, nos mais di-ferentes lugares do mundo (África, Ásia, América), exis-tindo como presságios, mensagens divinas e previsões astrais ou o caminho para as respostas dos questiona-mentos da humanidade. Durante a Idade Média, também se matutou a respeito dos sonhos lúcidos. “São Tomás de Aquino afirma que isso acontece especialmente ‘no fim do sono, com os homens sensatos e com quem é dotado de imaginação forte’. [...]‘não só a imaginação retém sua liberdade, como o bom senso é parcialmente libertado; de modo que, quando um homem está dormindo, às vezes, consegue julgar se o que está vendo é um sonho e discer-nir, por assim dizer, as coisas das respectivas imagens”. Os argumentos citados de São Tomás de Aquino perten-cem ao livro Sonhos Lúcidos, de Stephen LaBerge - psicó-logo e neurofisiologista, que estuda cientificamente o ato de sonhar lucidamente.

O SONHO, O XAMANISMO E O TEATRO

Enquanto explica calmamente, em uma sala de aula no prédio de Artes e Letras, Paulo Márcio argumen-ta: “O teste do interruptor de luz é bem lendário. Se você está dentro de um sonho, o que é difícil perceber, porque você acha que tudo aquilo é real e, se você vai acender ou apagar a luz de um interruptor, a luz não vai mudar. Isso pode acontecer dentro de um sonho, realmente – mas nem sempre. No sonho é possível você apagar e ela real-mente apagar. Mas o que se diz é que ela não se apaga. Você pode acender uma luz e pensar: ‘pô, será que isso aqui é um sonho?’”

Paulo Márcio da Silva Pereira leciona desde a déca-

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da de oitenta no curso de Artes Cênicas da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Poucos anos atrás, mon-tou um grupo de pesquisa com alguns alunos do curso, que intuía relacionar o teatro com práticas do xamanis-mo, além de tentar desmembrar as variantes e desenrolar os mistérios do ato de sonhar lúcido.

O trabalho de Paulo Márcio e dos estudantes de te-atro não consistia apenas em desenvolver neles mesmos o hábito de sonhar lucidamente, mas também incorporar o aprendizado de seus sonhos ao cotidiano. Paulo Már-cio trouxe ao grupo os ensinamentos do antropólogo que estudava o xamanismo, Carlos Castaneda. Segundo Cas-taneda, dentro do sonhar existe um processo de vivência e de desenvolvimento – muito superior ao ato mecânico. Paulo Márcio tinha lido apenas até o quinto livro de Cas-taneda e foi com grata surpresa que recebeu de um aluno o livro do antropólogo, A Arte do Sonhar. A obra ensina através de exercícios a capacidade de ativar e reprodu-zir energia – denominada energia sutil. Para Castaneda, energia sutil é um aglomerado de links de energia, que normalmente trocamos em nossas interações cotidianas. O trabalho sugerido por Castaneda consiste em um exer-cício de recomposição dessa energia, fazendo com que o praticante identifique os próprios hábitos e treine sua memória. A explicação para o exercício de recomposição energética é a de que para sonhar lúcido careceríamos dessa mesma energia.

Pouco tempo depois do primeiro contato, Paulo Márcio já tinha conhecido um grupo de pesquisadores de Castaneda que realizava oficinas em São Paulo. Dentre todos os trabalhos, o sonho lúcido foi aquele que o des-pertou para a pesquisa. Sendo o seu grupo um grupo de pesquisa teatral, a intenção era relacionar, justamente, o exercício do ator com o chamado neoxamanismo (na no-menclatura de Castaneda).

Quando escreveu seus primeiros esboços a respei-to das práticas xamânicas, Castaneda trouxe aos curiosos a ideia passada pelos feiticeiros antigos de que os chama-dos passes mágicos (série de movimentos que realocam e treinam a energia sutil) foram passados através dos so-nhos. “É uma questão de se acreditar”, diz Paulo Márcio. O grupo de pesquisa resolveu ser bastante pragmático, testando e averiguando as mesmas práticas e comprovan-do (ou não) a sua existência. “O que eu posso dizer para você é que elas funcionam” – pondera Paulo Márcio.

CIÊNCIA DO SONHO

Parte inerente e indissolúvel do imaginário coletivo, os pensamentos oníricos nor-tearam e ainda norteiam de-cisões diversas ao redor do globo. Um campo dos mais curiosos do conhecimento e da imaginação humanas desde as primeiras o r g a n i z a ç õ e s coletivas, o so-nho, como hoje o concebemos, mantém-se um mistério natural.

Mesmo que a neurofisiologia e as pesquisas mais específicas do ato de sonhar e das reminiscências ce-rebrais presentes ao longo da noite pareçam caminhar cada vez mais prodigiosamente na direção de respostas concretas, o sonho abre as portas da percepção e mostra outros tantos caminhos ainda novos para a ciência. Sejam os sonhos compostos de apenas elementos químicos, bio-lógicos e físicos – ou estejam eles presentes em quaisquer outras instâncias do saber.

A ciência identifica que, durante as atividades diur-nas e despertas, a área do cérebro que mais funciona é o córtex pré-frontal. A mesma área ‘apaga’ durante a noite, misturando todos os elementos psíquicos dignos de uma salada mental.

Através de pesquisas com mapeamentos cerebrais, a ciência argumenta, mas ainda não com plena certeza, que a fase dos sonhar acontece em nossos cérebros a partir do momento em que entramos no famoso período REM – sigla em inglês para rapid eyes moviment, ou mo-vimento rápido dos olhos. No estágio profundo do sono, os olhos simulam movimentos friccionados nas pupilas. Os cientistas pesquisam e desconfiam de que os sonhos ocorram durante esse período.

Stephen LaBerge utilizou, por exemplo, os expe-rimentos em sonho REM para saber se, durante esse pe-ríodo, o indivíduo que sonhava apresentava sinais com-patíveis entre o que relatava ter sonhado e o que, de fato, ocorria em seu corpo durante o sonho. Por exemplo, a in-tenção de correr ou mesmo de voar (o preferido daqueles

ilustrações: Nathália Costa

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que testam o sonhar lúcido) provocaria

alterações na respi-ração e na transpiração

do sonhador. Assim, quando desperto, o pesquisador pode-

ria conferir se as lembranças do sonho lúcido do seu pesquisado

competem com os dados biológicos. Em seu livro, LaBerge argumenta que já existem provas suficientes para os benefícios do sonhar e do reconhecer nos sonhos as respostas, ou os estímulos, para a vida ‘real’: “[...]os sonhos sempre foram consi-

derados fonte importante de criati-vidade em quase todos os campos,

incluindo literatura, ciência, engenharia, pintura, música, cinema e mesmo esportes. Entre os primeiros sonhadores criativos que nos vêm à mente está Robert Louis Steven-son, que atribuiu aos sonhos a maior parte do que escre-veu, incluindo O estranho caso do dr. Jekyll e do sr. Hyde. Há outros exemplos ainda mais famosos[...] Muitos pin-tores também atribuem algumas das suas obras a sonhos: William Blake e Paul Klee são os casos mais comprova-dos. Entre os compositores, também verificamos que muitos (como Mozart, Beethoven, Wagner, Tartini e Saint Saêns) consideravam os sonhos uma fonte de inspiração. No cinema, há muitos exemplos de filmes inspirados em sonhos: citando apenas alguns tomados ao acaso, temos O ano passado em Marienbad, de Alain Resnais; A hora do lobo, de Ingmar Bergman e o roteiro do filme Gente como a gente, escrito por Judith Guest. “[...] Se você está relutan-do em aceitar a premissa de que não é tão raro que mui-ta gente tenha recebido ideias criativas em sonhos, estes exemplos deveriam ser suficientes para convencê-lo”.

VIDA ACORDADA

A cena descrita no início do texto, em que um rapaz testa o interruptor de uma provável sala imaginável, per-tence ao filme Waking Life (Vida Acordada), de Richard Linklater. O longa-metragem, feito em animação, trata do sonho, mas com inclinações filosóficas a respeito do seu aspecto lúcido.

Paulo Márcio também produziu, com seu grupo de

pesquisa, peças teatrais baseadas em experiências com o sonhar lúcido. Entre os trabalhos realizados pelos alunos, estão quatro monólogos e duas peças, sendo uma delas uma adaptação de Waking Life , como conclusão de curso do grupo: “O grupo trabalhava não só nos ensaios, como no seu cotidiano, em casa ou dormindo, full time mesmo. Também do sonhar a gente chegou a incorporar nas parti-turas de trabalho determinados movimentos aprendidos no sonho, assim como os passes mágicos. Quando eles conseguiam lembrar ou aprender, eu pedia que eles incor-porassem no trabalho, trabalhassem de várias formas até ir para a cena – trazer a coisa do sonho pra realidade.”

Mas o que ficou comprovado por todos eles é que, através de técnicas, é possível alcançar formas de provo-car o sonho lúcido, e o melhor, desenvolver-se a partir des-se sonhar. Porém, o comum, segundo Paulo Márcio, é que aconteçam duas coisas: a primeira é uma óbvia euforia e a segunda, o inevitável medo. Afinal, o universo dos sonhos é algo completamente novo, desprovido das mais diversas regras que nos cabem ao mundo real. Voar é, conforme os pesquisadores, aquilo que todos querem experimentar quando começam a treinar seus próprios sonhos. Desco-brir uma forma de entrar diretamente no sonho lúcido e passar, quem sabe, uma noite toda exercendo essa capa-cidade é coisa que muitos desejam e poucos conseguem. Paulo Márcio conseguiu e passou aos seus alunos as téc-nicas para esse fim: “Eu fui para um longo sonho, dentro de uma imensa aventura, e, quando eu acordei, já era de manhã. Então eu suspeito que tenha passado a noite toda em sonho lúcido. Isso contraria vários estudos normais de como se dá o sonhar e, como essa é uma técnica pou-co estudada, já pesquisada pelos cientistas, mas da qual ainda pouco se sabe, não dá para saber exatamente o que pode e o que não pode acontecer”.

As práticas para que o interessado consiga sonhar lucidamente não são poucas. Pipocam exercícios e técni-cas por aí. Entre todas elas, algumas podem funcionar e outras nem darem um sinal – depende daquele que está testando. Prática que é certa e que cientistas, pesquisado-res e curiosos de todos os tipos já recomendaram é fazer uma espécie de diário de sonhos. Sempre que for se dei-tar, deixe ao lado um bloco de notas, ou folhas de qual-quer tipo, e uma caneta ou lápis. Quando acordar, antes mesmo de se mover direito, anote (ainda que molenga) as lembranças de seu sonho. Isso pode ser feito a qualquer hora da noite, a qualquer momento em que você desperte.

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Adormecer com alguma coisa amarrada no pulso, pertur-bando de certa forma e memorando o seu estado desper-to, também é outra técnica, porém é necessário precaução para não interferir na circulação. Beliscar-se ou mesmo se perguntar durante o dia (como uma forma de testar a re-alidade) “isso é mesmo um sonho?” também funcionam de acordo com Paulo Márcio. Assim como os próprios so-nhos, as técnicas do sonhar também precisam ser adapta-das aos que sonham, não existindo fórmulas instantâneas ou práticas deterministas. Há casos de livros, como “So-nhos Lúcidos em 30 Dias”, capazes de produzirem tanto efeito quanto aquelas dietas malucas das revistas “Seque 25kg em uma semana”. Para a troca comum de experiên-cias, a internet é um prato cheio: o site Dreamviews (www.dreamviews.com) é recheado de fóruns, discussões, víde-os e comentários de pessoas de todo o mundo que tiveram ou que desejam ter sonhos lúcidos. Na página de recep-ção do site, a pergunta “Are you dreaming?”. Mergulhan-do na variedade de textos, é possível encontrar técnicas que lhe sirvam ou apenas conhecer as histórias de outros onironautas.

Concluído sua tese de doutorado, Paulo Márcio re-conhece que trabalha com um terreno polêmico e panta-noso e conclui que, há tempos (por causa do excesso de trabalho), não consegue ter um sonho lúcido. Mas seja para a ciência, para a fé ou para a magia, a sabedoria dos sonhos não está em um invó-lucro cerrado. Interpretar os próprios sonhos é reconhecer as próprias necessidades, os próprios medos e os próprios desafios. Que podemos apren-der com os sonhos, ciência e magia concordam.

Quando o rapaz da cena de Waking Life dirige-se até um outro rapaz sentado na mesma sala, o que ele escuta é o seguinte trecho: “Dizem que os sonhos somente são reais enquanto duram. Não pode-mos dizer isso da vida? Muitos de nós estão mapeando a rela-ção mente-corpo dos sonhos. Somos chamados onironautas, exploradores do mundo oníri-

co. Há dois estados opostos de consciência que de modo algum se opõem. Na vida desperta, o sistema nervoso ini-be a vivacidade das recordações. É coerente com a evo-lução. Seria pouco eficiente se um predador pudesse ser confundido com a lembrança de um outro e vice-versa. Se a lembrança de um predador gerasse uma imagem per-ceptiva, fugiríamos quando tivéssemos um pensamento amedrontador. Nossos neurônios serotonínicos inibem as alucinações. Eles próprios são inibidos no sono REM. Isso permite que os sonhos pareçam reais, mas bloqueia a concorrência de outras percepções. Por isso, os sonhos são confundidos com a realidade. Para o sistema funcio-nal de atividade neurológica que cria o nosso mundo, não há diferença entre uma percepção ou uma ação sonhadas e uma percepção e uma ação na vida desperta”.

Logo depois, entra outro rapaz, com macacão je-ans e sem blusa, ostentando uma tatuagem de coração e um pequeno cavaco, entoando alguma música folk: “um amigo me disse, certa vez, que o maior erro que podemos cometer é acharmos que estamos vivos quando, na verda-de, estamos dormindo na sala de espera da vida. O segre-do é combinarmos as habilidades racionais da vida des-perta com as possibilidades infinitas de nossos sonhos. Se soubermos fazê-lo, poderemos fazer qualquer coisa”.

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UM lUGar ao sol

Em uma cidade em que pipocam cursinhos pré-ves-tibulares e os estudantes são parte relevante da população local, poucos são os que nunca ouviram falar das proprie-dades termocondutoras dos metais. Enquanto a maioria das pessoas conhece na prática essa característica metáli-ca cozinhando em panelas e frigideiras, Dionatan da Silva e Cristiane Cardoso experimentam diariamente a capaci-dade dos metais de mudar rápido de temperatura de uma maneira bem menos agradável: nas paredes de sua mora-dia atual.

Dionatan e Cristiane residem desde o dia 7 de se-tembro numa das duas casas-contêiner disponibilizadas pela prefeitura de Santa Maria a famílias atingidas pela enchente de janeiro de 2010. Os contêineres de metal, anunciados pela administração municipal como moradias de caráter provisório, estão localizados no loteamento Brenner, onde deverão ser construídas as casas definitivas para algumas das 2,7 mil famílias que, segundo a Defesa Civil, atualmente estão em situação de risco na cidade.

A ENCHENTE

O primeiro mês de 2010 foi marcado pela alta in-cidência de chuvas nas regiões Sul e Sudeste do Brasil, fato ligado ao fenômeno El Niño, que vinha elevando os índices de chuva já havia dois meses. Enchentes aconte-ceram em diversas cidades e a notícia da ponte que caiu sobre o rio Jacuí, levando mais de vinte pessoas junto com a estrutura para baixo d’água, correu o mundo.

No dia 17 daquele mês, um domingo, um volume de 87 milímetros de chuva caiu sobre a cidade de Santa Maria - 55% da estimativa pluviométrica para o mês in-teiro. Naquele mesmo dia, as cerca de 30 famílias que re-sidem no Beco do Cadena, às margens do arroio que dá nome ao beco e na divisa entre os bairros Carolina e Sal-gado Filho, foram atingidas – mais uma vez – pelas águas que transbordaram do córrego. As famílias dali e de diver-sas localidades marginais da cidade foram acometidas em

diferentes graus pela enchente e parte delas perdeu tudo o que tinha.

No dia seguinte à enchente, os moradores do Beco do Cadena, certos da inviabilidade de permanecer no lo-cal, reuniram-se com cerca de 500 famílias e ocuparam o loteamento Brenner, terreno então ocioso da prefeitura. A ocupação foi impedida pela intervenção da Brigada de Operações Especiais (BOE) e a relação de negociações e tratativas dos moradores com a prefeitura teve início.

As pessoas do Beco do Cadena foram removidas para um ginásio, onde receberam alimentos e roupas. A primeira reunião dos moradores com a Prefeitura para discutir soluções para a situação crônica ocorreu no giná-sio mesmo, com a presença do prefeito Cezar Schirmer. Já na primeira reunião, surgem mal-entendidos e discursos divergentes. Segundo os moradores, o prefeito prometeu que eles seriam realocados em residências próprias em um loteamento do PAC cuja construção teria início em três meses – mesmo tempo que levaria para que fossem disponibilizados os contêineres para moradia provisória. A prefeitura nega que tenha sido estabelecido esse prazo.

Assim que a chuva cessou, as famílias retornaram ao Beco, à espera dos 20 contêineres prometidos pela prefeitura na reunião. Começaram a ser cadastradas no programa federal “Minha Casa, Minha Vida”, por meio do qual devem obter as casas que vão lhes custar uma taxa mensal de vinte reais ao longo de dez anos. Levou oito meses para que os primeiros dois contêineres estivessem disponíveis para ocupação.

O BECO

Os moradores do Beco do Cadena residem em casas de madeira, construídas de forma irregular, conforme a oscilação da renda das famílias – que raramente ultrapas-sa um salário mínimo – permite. Quase a totalidade dos habitantes vive da coleta de materiais para reciclagem. A maioria das casas é pequena, especialmente quando se leva em conta a quantidade de pessoas que moram sob um mesmo teto. A catadora Iara dos Santos, por exemplo,

As pessoas que vivem entre o beco que alaga e os contêineres que fervemTIAGO MIOTTO*

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reportagem

*Colaboraram Rafael Balbueno e Paulo Montedo

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vive com sete crianças em casa. Na enchente de janeiro, perdeu colchões, cobertores, comida e roupas – itens que foram repostos aos poucos com a ajuda dos vizinhos.

O rodízio dos lares é constante e costuma ocorrer entre os moradores do próprio beco, em uma versão her-mética do mercado imobiliário fartamente movimentado por estudantes e militares no centro da cidade. As trocas de domicílio das famílias do Beco do Cadena acontecem à medida em que as economias possibilitam a aquisição de tábuas ou a permuta de materiais ou residências com outros moradores.

Dona Solange, moradora do Beco do Cadena há mais de 20 anos, já teve quatro lares diferentes na região. Sentada nos fundos de casa com o marido, conta com orgu-lho que a moradia atual foi adquirida do antigo proprietá-rio há cerca de três anos. A casa de madeira, localizada um pouco mais distante da margem do arroio do que a maio-ria, precisa ser acessada por uma escada íngreme, pois está sustentada cerca de um metro e meio acima do chão.

A construção de palafitas – estacas de madeira que servem para elevar a altura do imóvel e evitar, assim, o alagamento – é feita por grande parte dos moradores. A tática funciona, pelo menos enquanto a madeira resiste à corrosão, à força da água e à erosão do solo arenoso. Aí, a solução é mudar de casa ou reconstruí-la em outro lugar tão logo quanto for possível.

É o caso da residência de Tiago da Silva, onde as madeiras de sustentação estão ruindo. Ainda assim, não é essa a principal causa da sua apreensão. O que mais pre-

ocupa o servente de pedreiro que mora com a família num dos pontos mais próximos à margem é a bronquite de seu filho. O garoto de quatro anos teve que ser hospitaliza-do alguns meses após a enchente e passa mal devido ao cheiro forte do arroio e à umidade do local. Por isso, Tiago nem cogita construir de novo no Beco: “até iríamos para os contêineres, mas sem luz não dá, por causa do garoto. O que precisamos mesmo é ir para uma casa”.

Apesar da disposição de partir para os contêine-res, a falta de luz não seria o único impedimento para que a família de Tiago conseguisse morar nas casas de lata. Não por acaso, enfermidades como bronquite e asma são recorrentes entre os habitantes do Beco do Cadena. Dionatan também sofre de problemas respiratórios e tem passado mal durante os dois meses em que habita a casa-contêiner. Segundo Cristiane, o problema acontece ao fim dos dias de sol, quando a tinta plástica parece “derreter” e o cheiro dela “isola” dentro de casa.

OS CONTÊINERES

De longe, é possível ver dois objetos retangulares, de um verde claro e vivo, que se destacam em meio ao descampado onde será o loteamento Brenner. Com uma porta e uma janela como únicas aberturas, os contêine-res possuem uma divisória para o banheiro – que também possui uma basculante – e têm medida aproximada de dois metros e meio de largura por seis metros de compri-mento. Eles vieram de Itajaí (SC) e a sua adaptação para

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fotos: Tiago Miotto

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a habitação foi feita pelo Escritório de Cidades – processo que resulta em um custo de cerca de R$ 8 mil por contêiner.

Atualmente, há duas casas-contêiner em uso na ci-dade. Cristiane e Dionatan, moradores provisórios de um dos contêineres, ficaram surpresos quando encontraram o ambiente sem água, sem luz e sem janela. A janela foi colocada pelos próprios moradores, mas a água demorou 15 dias para ser ligada. Durante este período, dependiam da boa vontade de vizinhos. “Fui na prefeitura e lá um em-purrava para o outro. Estávamos sem água e sem luz. De-pois de chegar cansado do trabalho, não dava para tomar um banho, tinha que fazer várias rotinas para conseguir água”, conta Dionatan.

Segundo Duda Barin, representante da Secretaria Municipal de Habitação e Regulação Fundiária e prin-cipal interlocutor da Prefeitura junto aos moradores, os contêineres só chegaram a Santa Maria no mês de maio e levaram até setembro para ser instalados devido à demo-ra para formalização da rede de esgoto do loteamento. A água demorou mais porque a prefeitura teve dificuldades em adquirir os canos de PVC para realizar a ligação.

Para que a luz fosse ligada, deveria ser solicitada pelos moradores junto à AES Sul - o que foi feito. Os agen-tes da AES Sul chegaram a ir duas vezes até o local, mas a luz não pôde ser ligada pelo fato de não haver um poste. “A luz só depende do poste e o poste é encargo da pre-feitura. Estávamos até pensando em nós mesmos conse-guirmos um e colocarmos aqui, mas vamos tirar de onde um poste?”, reclama Dionatan. Segundo Barin, o poste ainda não fora colocado porque só poderia ser transporta-do com uma retroescavadeira e as duas únicas da prefei-tura estavam estragadas. Barin afirmou que o poste seria providenciado assim que elas fossem consertadas.

Outro problema enfrentado pelos moradores das casas-contêiner é a frequente variação de temperatura.

“Agora, no verão, aqui é um forno. De noite é frio. Chega a verter água do teto. Se a gente cozinha aqui dentro com as portas fechadas, começa a pingar em cima do fogão”, relata Cristiane.

Os dois únicos contêineres que estão no loteamen-to foram disponibilizados para ocupação depois de muita pressão dos moradores, conforme descrevem Dionatan e Cristiane. Eles chegaram a obter um “documento” do prefeito Cezar Schirmer, no qual ele garantia que seis contêineres estariam no loteamento no dia 4 de setembro. O “documento” – termo que, segundo o casal, foi usado pelo próprio Schirmer – se resume a duas linhas escritas à mão pelo prefeito e a assinatura de Duda Barin.

“Tratamos os contêineres como uma célula de so-brevivência – não é uma casa em si. Ele é só a garantia de que tu tens um banheiro, uma cozinha, um espaço que te dá o mínimo de higiene para poder conviver”, explica Ba-rin. Ainda assim, o professor Décio Bevilacqua, do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Maria, acredita que o caráter provisório não pode limitar as condições mínimas de habitação.

“As casas-contêiner não são adequadas para a mo-radia em todos os sentidos. Um contêiner por princípio é um equipamento para transporte de mercadorias e, se não for equipado com controle de temperatura, até para o transporte de certos tipos de mercadoria ele é impróprio. Moradia, mesmo que para curto espaço de tempo, deve proporcionar condições dignas aos habitantes. Esta alter-nativa é inadequada em função de não oferecer as condi-ções de conforto térmico e lumínico, sendo que os riscos à saúde são evidentes”, afirma o professor, que dá aulas de Planejamento Urbano e Regional e estuda Sustentabili-dade Urbana. Ele propõe que uma alternativa mais viável seria “a construção de casas provisórias pré-fabricadas para uso temporário, até uma solução definitiva para es-

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tes e outros moradores de áreas de risco”.

A DEMORA

Em reunião com os moradores, no dia 10 de se-tembro, foi feita uma ata que estabelecia compromissos e datas para a prefeitura providenciar os contêineres res-tantes, água e luz. A ata foi feita à mão e o representante da Prefeitura levou-a para que fosse protocolada e adqui-risse, assim, alguma validade. Depois de alguns dias, a ata finalmente retornou para os moradores: digitada no computador, impressa em uma folha pautada com a lo-gomarca da prefeitura, mas sem assinatura ou número de protocolo algum. As assinaturas tiveram que ser no-vamente recolhidas, mas a validade legal do novo “docu-mento” é questionável.

Além da questão da luz, a colocação dos demais contêineres está parada – a prefeitura está com 18 con-têineres “no pátio”. O motivo para isso, explica Barin, é que a prefeitura não tem canos de PVC para realizar as ligações de água e esgoto dos contêineres restantes. Por isso, é necessário que se realize um processo de compra por licitação, o qual foi aberto no dia 5 de novembro.

No mesmo dia, foi aberto o processo de licitação para a construção das casas. No loteamento Brenner, o edital prevê 286 casas a serem construídas em um prazo de dezoito meses - que pode ser prorrogado - a partir do início das obras. Ao longo deste período, os moradores das áreas de risco têm duas opções: permanecer nas áre-as comprometidas ou ir viver em condições precárias nos contêineres por um período indeterminado.

No caso de Dionatan e Cristiane e da família do tio de Dionatan, que habita a outra casa-contêiner, não há mais opções. Uma das condições para que as famílias fossem para as casas-contêiner era que desmanchassem suas casas à beira do Cadena. Se os outros habitantes da área de risco ainda podem escolher entre permanecer à mercê do clima ou ir morar precariamente nos contêine-res, quem já vive neles está fadado a permanecer lá até que a casa saia finalmente do papel – o que pode demorar muito.

A ocupação de terrenos também está terminan-temente vetada. Faz parte do trato com a prefeitura que quem “invadir” perde o benefício da casa. Tal medida, se-gundo Duda Barin, foi tomada para barrar a “indústria da invasão” – na qual alguns dos ocupantes depois vendem terrenos e casas a preços ínfimos – que existiria em Santa Maria. As famílias de áreas de risco estão sendo cadas-tradas em uma lista de prioridade do PAC e, à medida em que algumas casas vagam, elas podem ser realocadas. Al-

gumas famílias do Beco do Cadena, por exemplo, foram para outros loteamentos, mas as vagas são escassas. O grosso das mudanças depende, de fato, da construção de novas casas.

As moradias serão construídas com verbas do PAC 3, que delimita o valor máximo de cada casa em 18 mil reais, mais 5 mil reais para a infra-estrutura do terreno. Como o processo licitatório depende do interesse das em-presas, surge outro empecilho: as construtoras têm mos-trado preferência pelas outras obras do programa “Minha Casa, Minha Vida”, cujo limite por moradia é de até R$ 41 mil. “Fizemos quatro licitações em que não apareceram concorrentes”, afirma Barin.

A incerteza em relação às novas moradias e à sé-rie de promessas descumpridas ou mal-explicadas fez com que, dez meses após a enchente, parte dos moradores do Beco do Cadena desistisse de ir para os contêineres ou re-construísse suas casas ali mesmo. Dona Rose (à direita, na foto) e seu Luiz, por exemplo, saíram de uma das casas com maior risco de desabar e foram para o local onde vi-viam Dionatan e Cristiane. “Eu, para os contêineres, não vou. Eles não nos levaram fazer o papel do ‘Minha casa, minha vida’? Até agora, não vimos nada disso”, diz Dona Rose.

Na casa recém construída, moram com eles qua-tro dos oito filhos. A única fonte de renda do casal vem da coleta de materiais recicláveis. “As coisas começaram a fi-car feias”, contam, “não tinha emprego para nenhum dos dois, aí descobrimos a reciclagem e começamos a catar”. Dona Rose, que também já foi faxineira, reclama que os preços pagos pelos materiais baixaram. Na semana ante-rior, um caminhão cheio havia rendido 98 reais. “Antes

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dava 200, 250 reais, mas baixou tudo”. Quando o casal alterna os turnos para catar, eles levam de quinze a vinte dias para juntar o suficiente para encher o caminhão. “Às vezes, leva mais tempo, quando a rua tá ruim. Também tem vezes que a gente tira uma carreta e já tem que ven-der, para comprar arroz, feijão, algo que falta”.

A preocupação com a geração de renda e a oferta de cursos de capacitação profissional para os moradores transferidos também é um dos aspectos a serem analisa-dos. “Isso é importante porque vamos gerar custos com os quais eles não lidam hoje: água, luz, IPTU, além da pró-pria taxa da casa, mesmo que seja baixa”, ressalta Duda Barin. Por isso, os moradores se questionam se poderão levar suas carroças e os materiais de reciclagem para as novas casas, já que corriam boatos em contrário. Segun-do Barin, não haverá problemas quanto a isso.

O representante da Secretaria Municipal de Ha-bitação e Regulação Fundiária admite que as coisas estão andando mais devagar do que deveriam. “Realmente, aconteceu um lapso de tempo muito grande em função da burocracia da coisa pública. Tentamos vencer isso, mas não é muito simples infelizmente”.

Entre os moradores do Beco do Cadena, a mais ansiosa pela mudança talvez seja Jucemara da Silva. Do-ente, sua irmã faleceu – assim como seu pai – à espera da casa e deixou seis filhos sob sua guarda. Quatro dos sobrinhos foram levados pelo Conselho Tutelar para um orfanato e ela só poderá obter a guarda das crianças nova-mente quando tiver uma residência em um local seguro. Apesar das poucas condições, mantém cinco crianças – netos, filhas e sobrinha que a chamam todos de “mãe” – e luta pela guarda dos filhos da irmã.

Moradora da região do Cadena há 40 anos, Dona Jucemara viu a parte do Beco em que foi criada ser cober-ta pela água do arroio. Ela conta que já passou por algu-

mas enchentes, pois nessas quatro décadas o Cadena pra-ticamente emparelhou a altura das margens – fator que, junto com a grande quantidade de lixo, faz com que ele transborde com qualquer chuva um pouco mais forte.

Com a intenção de irem para os contêineres, o ma-rido de Dona Jucemara chegou a desmanchar dois quar-tos da casa deles para levar para lá. Como se decepciona-ram com as condições das casas provisórias, pretendem montar novamente os quartos na moradia do Beco, já que a casa está com pouco espaço para as crianças.

A situação dos moradores do beco é bem mais comum do que pode parecer. Um relatório divulgado em 2010 pelo Ministério das Cidades estima que existam no Brasil cerca de dois milhões de domicílios em situação semelhante à do Beco do Cadena – são os chamados aglo-merados subnormais, que incluem favelas, palafitas, ocu-pações irregulares e todo tipo de habitação sem o mínimo de infra-estrutura.

Quando se amplia o escopo para domicílios rústi-cos, cômodos alugados e cedidos, casas com número ex-cessivo de moradores e pessoas sem condições de arcar com o aluguel, o déficit habitacional chega ao impressio-nante número de 5,572 milhões de domicílios. Grande parte (89%) do déficit no país se concentra na faixa de famílias com renda de até três salários mínimos.

A moradia é um direito humano básico, daqueles cuja ausência compromete de forma inaceitável a quali-dade de vida e a capacidade de ascensão social. Em Santa Maria, enquanto a licitação corre e o verão se aproxima, os contêineres esquentam sob o sol e a chegada do perío-do de chuvas ronda mais uma vez quem vive nas áreas de risco. O círculo vicioso que relaciona pessoas, questões políticas e interesses econômicos segue bem fechado e cada vez mais robusto.

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buco e General Jose Maria Paz forma, na verdade, uma esquina movimentada.

São ruas centrais da capital da província de Tucu-mán. Bares-cafés, uma padaria, um chaveiro e uma banca de jornais. Kiosco Otto se chama esta. Prateleiras grandes com diários, revistas, livros e, à parte das publicações, al-fajores, chicletes, balas, cigarros. Um banco de madeira e uma cadeira entre uma prateleira e outra. “Quer sentar?” Seu Otto está à frente da banca. “Este é meu habitat, di-gamos”. Ele tem olhos desconfiados. Traços andinos. Com os dentes amarelados, masca folhas de coca. Costu-me indígena boliviano. É como a erva mate para os gaú-chos, argentinos e uruguaios. Quando sentamos perto de Otto, nota-se que cheira como erva-mate também. “É, não sou argentino. Sou boliviano, de Cochabamba”. Com o cenário descrito, a semelhança está na paixão do dono

Em meio a jornais, o boliviano que vive na Argentina há mais de 40 anos fala sobre o mundo

Cruzando o momento da batalha de Chacabuco com a vida do General Jose Maria Paz, teríamos um cená-rio mais ou menos assim: século XIX, batalhas, guerras, alianças e desalianças efervescendo nas colônias luso-hispânicas. Em Chacabuco, região Norte do Chile, San Martin conduzia a etapa decisiva para a independência chilena. O chamado “libertador”, a frente do Exército dos Andes das Províncias Unidas do Rio do Prata, derro-tava as forças reais. Um pouco mais adiante do século, na Argentina já proclamada independente, Maria Paz lutava contra o projeto político centralizado em Buenos Aires. Sublevou-se contra os buenairenses e, depois de circular pelo Uruguai e imigrar ao Brasil, morreu condenando no cenário argentino que se formara. Um painel de lutas, conquistas e perdas. Mas, hoje, em San Miguel de Tucu-mán, na Argentina, o cruzamento da Batalha de Chaca-

reporta

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LIANA COLL

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pelo povo sudamericano.Da Bolívia, saiu em 1958. “Lá em Cochabamba

não tinha nem água potável. Água tem, mas potável não”. Foi pela escassez de água, na época, que recebeu o apelido Otto. Ele e a maioria da população tomavam água direto das fontes ou dos poços construídos. “E por essa água, a que não era boa para tomar, as pessoas ficavam com a do-ença dos gânglios inchados. Sabe como se chama? Exa-tamente, o bócio. Em quechua [língua de muitos povos andinos e que atualmente está sendo resgatada na Bolí-via], bócio se chama “cotto” e eu, pequeno, dizia “Otto”. Aí ficou o apelido”.

Pela pobreza, veio estudar na Argentina. Estudou, trabalhou como docente de ensino médio e, aposentado, montou a banca. “Este é um lindo trabalho. Posso falar sobre tudo, sobre Bolívia, Argentina, Brasil. Se uma pes-soa não lê, não sabe de nada. E temos que ler de tudo, não importa que jornal é...Todos os jornais do mundo têm po-deres enormes. Há muitos monopólios, a imprensa move as coisas”. Às 3 horas da madrugada, quando o jornal local, La Gaceta, está pronto, Otto sai para buscá-lo. Os jornais que vêm de Buenos Aires e de outros locais são en-tregues diretamente nos quiosques. “E isso também é um outro monopólio: a distribuição dos periódicos”.

A pele queimada forma um traço característico em

cima dos olhos. As pálpebras empurram o olhar para bai-xo. Assim, a expressão é sempre reflexiva e desconfiada. Otto não diz o nome verdadeiro e nem deixa que tirem fotos dele. Convive diariamente com o mais variado tipo de reportagens. Analisa fatos em um jornal e depois em outro. Recorre e compara. Enxerga situações, apurações e edições bizarras, pinça o que lhe serve e tira suas con-clusões. Aponta para os diários e fala da posição de cada um. “Muitos são iguais em vários aspectos. Aqui, todos falam mal do governo Kirchner. Os único que apoiam são o Página 12 e o Le Monde Diplomatique. O Le Monde é o mais equilibrado”.

São quinze para as nove da manhã e Otto começa a recorrer a assuntos dos mais variados. Detém a fala em um tema especialmente. Socialismo, Che, Fidel, guerrilha, revolução, Marx, Putin. O dedo indicador da mão esquer-da, maltratado na ponta pela artrite, começa a balançar e a saltar, como se desse lições. “Cada um tem assuntos de que gosta mais. Não sei como começou, porque lá em Cochabamba não chegava jornal. A gente ouvia alguma coisa pelo rádio e foi pelo rádio que se ficou sabendo de um Ernesto, de um Fidel e de tudo mais”.

Era o jovem Otto na década de 1960. Já na Argen-tina, escutou o eco sobre a revolução cubana. Um pouco tardiamente, teve conhecimento dos nomes envolvidos.

Otto, que nao gosta de aparecer em fotografias, é o senhor ao centro. Na foto conversa sobre os jornais com clientes

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Estudou o socialismo e as problemáticas dos países la-tino-americanos. Juntou um grupo de amigos e foi co-nhecer de perto algumas realidades. “Em 1967, estive no Brasil. Era um moleque, 18 ou 20 anos...Estive na selva amazônica, o pulmão da terra. Em Mato Grosso, conheci dois grupos de indígenas. Uns eram meio mansos, baixi-nhos. Outros eram fortões. Trabalhamos e convivemos. Aquelas terras gigantescas cheias de árvores enormes. É lindo”. Foram alguns meses percorrendo Brasil, Argenti-na e Bolívia. “Nós fomos só com uma mochila nas costas e a viagem durou pouco, enquanto conseguíamos algo para comer”. Vivendo e conhecendo as feridas e alegrias de vários locais, começou a interessar-se mais ainda por questões de política, economia e sociedade.

Das viagens, concluiu por que Che deixou de ser só um viajante e entrou para a história como revolucionário. “É, ele era cheio de dinheiro e tal, mas isso não importava para ele não... Ele dizia: ‘Tudo tem que prover da nature-za’”. A ponderação de Otto só escapa quando o assunto é Ernesto Che Guevara: “Para mim, ele é como um outro Deus”. Depois da fala, parece assustado pela própria voz. Aquieta-se. “É que cada um tem suas vontades e paixões e, se eu falo isso, não podes escrever aí: ‘Che é como um outro Deus’. Isso é o que eu falei. Aliás, isso tudo que eu tô falando, como podem saber se é verdade? É a minha verdade”. Na esquina de ruídos de ônibus, carros e vo-zes, passando das nove horas da manhã, descobre-se um grande ponto de cultura. As informações dos jornais e re-vistas, quando o senhor se põe a falar, ficam para depois.

Otto testa o conhecimento de cada pessoa com quem conversa. “Sabes quantos milhões de pessoas abai-xo da linha da pobreza há no Brasil? Mudou um pouco já, né!? O Brasil vai ser, em poucos anos uma grande po-tência. É. E o nome da mulher essa que ganhou agora? Sim. O nome do presidente do Uruguai? E o da Bolívia?” Mudanças. Novos atores no cenário político. Lula, Dilma, Mujica, Evo Morales. Estamos vivendo, sim, uma fase de modificações na América Latina e no mundo. Realidades emergentes surgem em cena. “Um operário no poder, ex-guerrilheiros no poder, um índio no poder. Isso é um pas-so enorme. E nós somos tão ricos. Temos de tudo. Eu não vou viver para ver, mas depois os espanhóis que tiraram o ouro da gente vão voltar. Não se come ouro e eles vão voltar em busca de comida e água”. O boliviano recorda da riqueza de Potosí, a cidade boliviana que mais movia a

economia dos países europeus na época colonial. Explo-rada até secar, foi condenada a um cenário de problemas sociais profundos.

A morte recente de Néstor Kirchner faz o dono da banca lembrar do tema União das Nações Sul-ameri-canas, UNASUL, da qual o político era presidente, e do Mercado Comum do Sul, MERCOSUL. Eufórico, mexe-se no banco desgastado. Bambo, o banco se mexe tam-bém, embalando a conversa. “Se fortaleceu a relação dos países aqui. É o que os estudiosos dizem que tem que se fazer. Um dia teríamos que ser quase uma coisa só. Um documento igual, uma economia unida...” Otto fala mais dos problemas do mundo do que dele. Imagina soluções, pegando um papel e esboçando os tipos de economia que crê darem certo. Os poucos detalhes que fala da sua vida conduzem sempre a uma reflexão de mundo. Escreve nú-meros, fala em Suíça, Suécia, Dinamarca, Holanda. Sorri falando do socialismo moderado. “É, acho que esse tipo de governo dá certo...”

Do que não deu certo ou do que precisou ser muda-do, arrisca dizer as causas. “Em Cuba, houve o problema de serem muito fechados. O Fidel Castro foi autoritário demais dizendo daquele jeito “vai ser assim e é assim”. A União Soviética era o único parceiro deles. O resto do mundo se fechou para Cuba. Aí, quando o regime se espa-tifou na URSS, Cuba perdeu as forças. Mas agora tá mu-dando um pouco, sim”. O papo segue. Voltamos a Che, às viagens, à guerrilha na Guatemala, à Guerra Fria, a lí-deres, a derrotas e a vitórias. Otto desenha rapidamente a história de algumas décadas.

Apesar de fechado, o senhor deixa transparecer al-guns desejos. Um livro, ele quer escrever um livro. “Sobre a minha vida, um dia quem sabe escrevo, junto dinheiro e saio a viajar, que é a coisa que mais quero nesse mundo. Por onde? Primeiro a Rússia. Quero conhecer o que foi um país socialista de verdade. Depois a África”. Entre uma palavra e outra, os dentes rangem e parecem mascar o ar. A cultura se mescla às vivências. Um papel com linhas só tem sentido quando aplicado à experiência. O sentido da informação é um ciclo que se completa em quem lê. “Vá viver e entenderás!”, parece gritar Otto quando diz a cada pessoa que passa por sua banca: “Bom dia, que jornal queres? Certo. Obrigado, até mais!”.

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POR RAFAEL BALBUENO

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A luz se convertendo não trAziA históriAs, só construíA. “Jornalismo proletário, contra o grande dos patrões”. no diA 1º, chegAndo perto do horário do cAsAmento, um AtrAso começou A incomodAr A todos - e não erA dA noivA. outro tipo de viaJante começou a explorar o Brasil de um Jeito menos geográ-fico. A filA AumentAvA enquAnto Alguém tomAvA bAnho, tAmbém feito A cAnecA ou em vAletAs que ArmAzenAvAm águA. ninguém fAlou de fAcilidAdes. a pele desmaia no caBide do armário o senhor AceitA um jornAl primeirAmão? voar é aquilo que todos querem experimentar quando começam a treinar seus próprios so-nhos. “AgorA, no verão, Aqui é um forno. de noite é frio. chegA A verter águA do teto”. um papel com linhas só tem sentido quando aplicado à experiência. A gestAção fAz pArte. é como você viver váriAs iden-tidAdes ArtísticAs coordenAdAs por umA coisA só.