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1 REVISTA DE MANGUINHOS | MAIO DE 2017

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embrar os 100 anos do falecimento de OswaldoCruz é, para esta Fundação, um momento ímparde reflexão. Momento de recordar a trajetória,as conquistas e o legado do grande médico e ci-entista e também pensar que caminhos seguir.

Esta edição da Revista de Manguinhos traz textos que apre-sentam o que fez e quem foi Oswaldo Cruz e como a instituiçãoe o país que ele ajudou a construir se relacionam com essaherança. É hora de colocar o passado em perspectiva, comouma forma de iluminar futuros possíveis. E é ainda uma oportu-nidade para avançarmos em projetos coletivos que contribuampara o SUS e para a ciência, tecnologia e inovação. Por tudoisso, instituímos o Ano Oswaldo Cruz.

Esta edição relata um estudo pioneiro desenvolvido na Fio-cruz Paraná que poderá abrir novos caminhos para a pesquisasobre a doença de Chagas – enfermidade que registra cerca de150 mil novos casos por ano no Brasil. Outra pesquisa, da Fio-cruz Minas em parceria com duas instituições, aponta que umabactéria pode auxiliar na transformação da glicose em energiapara o corpo, o que diminui a concentração de açúcar no san-gue. São ótimas notícias.

Outras reportagens apresentam novidades sobre a han-seníase e a giardíase e relatam a parceria com a UFRJ – ago-ra reforçada e ampliada. Também nas próximas páginasaparecem a produção da vacina de febre amarela, que ope-ra em capacidade máxima para dar conta da demanda, e asdiferenças entre mosquitos que transmitem a doença, entreoutros temas.

Boa leitura!

Nísia Trindade Lima

Presidente da Fundação Oswaldo Cruz

EDITORIAL

L

Foto: detalhe do busto de Oswaldo Cruz

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Saúde pública20

Investigação

Pesquisa12

10

PresidenteNísia Trindade Lima

Vice-presidente de Ambiente,Atenção e Promoção da SaúdeMarco Antonio Carneiro Menezes

Vice-presidente de Gestão eDesenvolvimento InstitucionalMario Santos Moreira

Vice-presidente de Educação,Informação e ComunicaçãoManoel Barral Netto

Vice-presidente de Pesquisae Coleções BiológicasRodrigo Correa de Oliveira

Vice-presidente de Produçãoe Inovação em SaúdeMarco Aurelio Krieger

Chefe de GabineteValcler Rangel Fernandes

Coordenadoria de ComunicaçãoSocial / Presidência

REVISTA DE MANGUINHOSNº 37 - MAIO/2017

Coordenação: Elisa Andries

Edição: Ricardo Valverde

Colaboradores: Alexandre Matos, AlineCâmera, André Bezerra, André Costa, FábioIglesias, Fabíola Tavares, Fernanda Miranda,Gabriella Ponte, Glauber Gonçalves, GraçaPortela, Gustavo Mendelsohn de Carvalho,Haendel Gomes, Keila Maia, Lucas Rocha,Maíra Menezes, Raquel Aguiar, RaquelTruta, Renata Fontoura, Rodrigo CostaPereira e Vanessa Freitas

Projeto gráfico e edição de arte:Guto Mesquita e Rodrigo Carvalho

Revisão: Ricardo Valverde

Fotografia: Gutemberg Brito, PeterIlicciev e Arquivo CCS

Administração: Assis Santos

Secretaria: Inês Campos

Autorizada a reprodução deconteúdos desde que citada a fonte

O que você achou desta edição?Mande seus comentários [email protected]

Revista de ManguinhosAvenida Brasil 4.365 - ManguinhosRio de Janeiro - RJ - CEP 21.040-900Telefone: 55 (21) 2270-5343

Agência Fiocruz de Notíciaswww.fiocruz.br/ccs

Impressão: Gráfica G.M. de Barros Eireli

ÍNDICE

Estudo pioneiroAvanços contra adoença de Chagas

Diabetes tipo 2na miraBactéria pode contribuirpara reduzir açúcar

Alta frequênciaEstudos reforçam necessidadede prevenção da giardíase

6 Notas

As mais recentes notíciassobre a Fiocruz

14 Pesquisa

Supressão de mecanismo daimunidade está associada acasos graves de hanseníase

26 Entrevista

Fiocruz e UFRJ fortalecemparceria

17 Pesquisa

Sofosbuvir tem açãocontra o zika

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Prevenção

Especial

As origensA história da vacinade febre amarela

Fio da História64

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Saúde pública24

Fitoterápicosno SUSProjeto busca inserir práticascom plantas medicinais

O legado deOswaldo CruzA herança e o compromissocom o futuro

Desafio urgenteIniciativa quer melhorardiagnóstico de câncer docolo de útero

32 Entrevista

Vacina para quem precisa

28 Produção

Fiocruz opera em capacidademáxima para atenderdemanda de vacina

34 Informação

O papel de cada inseto natransmissão da febre amarela

31 Inovação

Pesquisadores desenvolvemnovo imunizante contra afebre amarela

62 Estante especial

Livros abordam trajetóriade Oswaldo Cruz

58 Qualidade de vida

Coletivo promove vida maissaudável em Brasília

Capa de RodrigoCarvalho a partirde pintura óleosobre tela deJoão Batista daCosta (1917)

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NOTAS

Graças a um trabalho reali-zado pelo Instituto de Tecnologiaem Fármacos (Farmanguinhos/Fi-ocruz), a Agência Nacional deVigilância Sanitária (Anvisa) seposicionou contra o pedido depatente do Sofosbuvir, medica-mento usado no tratamento dahepatite C. A decisão foi publi-cada no Diário Oficial da União(DOU) em 20 de março. O posi-cionamento da entidade é a pri-meira etapa do processo. Apalavra definitiva será do Institu-to Nacional da Propriedade Indus-trial (INPI), órgão responsável porconcessão de patentes no país.

A resposta da Anvisa é resul-tado dos esforços de Farmangui-nhos em impedir que a empresaGilead tenha exclusividade naprodução e comercialização des-te antiviral no Brasil. Indicadopara tratamento da hepatite C,o Sofosbuvir evita transplante defígado, cirrose e câncer hepáti-co. O problema é o preço extre-mamente alto. O custo da terapiapor paciente, que hoje é de 7,5mil dólares aos cofres públicos,já chegou a custar US$ 84 mil, o

Anvisa e Farmanguinhos sãocontra a patente do Sofosbuvir

que restringe o acesso de quem precisado medicamento.

A petição que Farmanguinhos pro-tocolou no INPI em fevereiro mobilizouo Conselho Nacional de Saúde (CNS)a emitir a Carta de Recomendação 007,sugerindo que a Agência Reguladorase posicionasse contrariamente à pa-tente. O documento recomenda, ain-da, que o INPI referende a decisão daAnvisa. Além disso, que priorize o exa-me deste medicamento a fim de ace-lerar o processo.

Segundo o diretor de Farmangui-nhos, Hayne Felipe da Silva, caso apatente seja indeferida, a instituiçãoestará apta a produzi-lo graças a umaparceria com o Consórcio BMK. Nomomento, estão sendo realizados es-tudos de equivalência farmacêuticae de bioequivalência do medicamen-to. “Esta iniciativa reafirma o papelda Fiocruz enquanto instituição es-tratégica de Estado e reforça a inten-ção de produzir localmente produtosprioritários para o fortalecimento do Sis-tema Único de Saúde e a sustentabili-dade da oferta de tratamento”,destaca Hayne

Alexandre Matos

A presidente da Fundação Oswal-do Cruz, Nísia Trindade, participou em7 de março de uma reunião no BritishCouncil Brasil, em Brasília, para a apre-sentação oficial dos quatro projetos daFiocruz aprovados pelo edital Instituci-onal Links Zika Virus. Na reunião, Ní-sia apresentou a Rede de CiênciasSociais e Humanidades Frente à Epi-demia de Zika no Brasil, que tem comofoco as repercussões sociais das rela-ções entre o vírus os efeitos da doençanas famílias e no sistema de saúde.Nísia disse que a epidemia emergenuma complexa rede social, política,cultural e econômica que expressa, emúltima instância, um híbrido de deman-das sócio-biológicas que necessita serenfrentado por uma abordagem inter-disciplinar e políticas intersetoriais.

O Fundo Newton apoiará projetosinterdisciplinares de pesquisa e capaci-tação de recursos humanos para o de-senvolvimento de pesquisas relacionadasao vírus zika e seus impactos na socie-dade. O objetivo é que os estudos re-sultem em cursos de treinamento,metodologias, protocolos e pesquisa so-cial aplicada. Participaram da iniciativafundações de amparo à pesquisa de al-guns estados, o CNPq e a Fiocruz. Osprojetos aprovados pelo Fundo Newtonvão compor a Rede de Ciências Socais eHumanidades Zika Virus.

Ricardo Valverde

Fundo Newtonapoia projetospara pesquisasem zika

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Cientistas do Instituto Oswaldo Cruz(IOC/Fiocruz), em parceria com o Insti-tuto de Pesquisas Científicas e Tecno-lógicas do Estado do Amapá (Iepa),desenvolveram uma armadilha inova-dora para a coleta de mosquitos, emespecial, os anofelinos, que transmitema malária. A inovação representa trêsbenefícios diretos: facilita as pesquisasde campo, amplia a captura dos mos-quitos, e aumenta a segurança em re-lação ao contato com os vetores. Como formato similar ao de uma tenda, aferramenta conta com duas câmaras:a interna, projetada para abrigar o pro-fissional responsável pela coleta, e aexterna, onde ficam presos os mosqui-tos coletados.

A separação entre os dois ambien-

Pesquisadores inovam navigilância de vetores da malária

Acervo de moluscos ultrapassa marca de 10 mil lotesDe grande importância para o

conhecimento e conservação da bi-odiversidade brasileira, a Coleção deMoluscos do Instituto Oswaldo Cruz(IOC/Fiocruz) alcançou o número de10 mil lotes depositados no acervo.O espaço reúne conchas e partesmoles de aproximadamente 200 milespécimes de moluscos provenien-tes de mais de 60 países. Este acer-vo variado inclui exemplares deimportância para a saúde humana eanimal, incluindo caramujos capazesde transmitir doenças parasitárias,como a esquistossomose, caracóis elesmas que podem atuar como pra-gas agrícolas e mexilhões que cau-sam grandes perdas econômicas àgeração de energia.

A partir de investimentos institucio-nais e financiamentos de editais externos,o espaço recebeu uma série de melhori-as de infraestrutura, com destaque paraa modernização de armários e equipa-

mentos. Pesquisadores doLaboratório de Malacologiado IOC, que abriga a Cole-ção, publicaram estudo so-bre a diversidade e adistribuição geográfica dosespécimes incluídos na Co-leção, que servem comofonte para estudos sobre bi-odiversidade, taxonomia eevolução. O artigo foi publi-cado no periódico científicoArquivos de Ciências do Mar,que reuniu trabalhos sobrediversas coleções de molus-cos. A Coleção é credenci-ada como fiel depositária deamostras de patrimônio ge-nético pelo Conselho deGestão do Patrimônio Gené-tico do Ministério do MeioAmbiente.

Lucas Rocha

tes impede que o agente deendemias ou o pesquisadorsejam picados pelos mosqui-tos capturados que podem es-tar infectados. Em testes decampo realizados no Norte doBrasil, os pesquisadores com-provaram a eficácia da arma-dilha, chamada de MosqTent– união das palavras “mos-quito” e “tenda”, em inglês.A patente foi depositadapela Fiocruz no Instituto Na-cional de Propriedade Indus-trial (INPI), garantindo odireito à propriedade inte-lectual da invenção.

Lucas Rocha

Com o formato similar ao de uma tenda, aMosqTent tem duas câmaras: uma interna eoutra externa. Foto: Divulgação

O espaço reúne conchas e partes moles deaproximadamente 200 mil espécimes demoluscos provenientes de mais de 60 paísesFoto: Gutemberg Brito

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NOTAS

A Universidade Federal do Riode Janeiro (UFRJ) e a Fiocruzanunciaram, em 5 de abril, umvasto plano para institucionalizare incrementar a sua cooperaçãotécnica, aprimorando ações quefazem parte da história de cola-boração entre as duas instituições.Com objetivo de criar ações emconjunto e aprimorar as diversasjá existentes, grupos de trabalhoatuarão em eixos temáticos de-dicados a pensar e intervir emquestões que vão do patrimôniohistórico do Rio de Janeiro ao de-senvolvimento de novas vacinase pesquisas de ponta na área dasaúde. A cooperação prevê a ar-ticulação entre a rede hospitalarda Fiocruz e o complexo de novehospitais da UFRJ, bem como aintegração em todos os níveis deensino, incluindo graduação epós-graduação, e o desenvolvi-mento de projetos de educaçãobásica ampliados para as regiõesda Maré e de Manguinhos.

Fiocruz e UFRJ lançam plano decooperação técnica inédito

Em parceria com o Programa dePós-Graduação em Saúde Coletiva(PPGSC) da Universidade Federal doEspírito Santo (Ufes), a VideoSaúdeDistribuidora da Fiocruz lançou o do-cumentário Mulheres das águas, queretrata a vida e as lutas das pescado-ras nos diferentes manguezais do Nor-deste, onde o modo de vida e asobrevivência de suas famílias estãoameaçados pela poluição das grandesindústrias e pelo turismo predatório.O filme, que traz o tema diversidadecomo um elemento importante naconstituição de seu roteiro, foi dirigi-

VideoSaúde lança documentárioMulheres das águas

do por Roberto Novaes, professor epesquisador da Universidade Federaldo Rio de Janeiro.

Graça Portela

Jornalistas de diversos veícu-los de comunicação participaram,em 10 de abril, de uma oficinasobre febre amarela promovidapela Fiocruz. No encontro, osprofissionais de imprensa pude-ram se aprofundar no tema e ti-rar suas dúvidas com alguns dosmaiores especialistas da Funda-ção – Rivaldo Venâncio, RicardoLourenço (mosquitos e vetores),Marcia Chame (biodiversidade eepizootias), André Siqueira (as-pectos clínicos da febre amare-la) e Reinaldo Menezes (vacina).

Oficina sobrefebre amarela

Os pesquisadores poderão compar-tilhar plataformas tecnológicas e labo-ratórios do tipo multiusuários, com usode modernas tecnologias, entre outrosrecursos. O plano prevê também a co-operação com instituições de ensino epesquisa na América Latina, dandodestaque para o Rio de Janeiro como

problemática comum de estudo. Impor-tante destacar ainda a intenção dasduas instituições em colaborarem como desenvolvimento de políticas públi-cas para a cidade do Rio, valorizandoiniciativas na defesa dos direitos soci-ais e no desenvolvimento econômicoe social da cidade.

A presidente da Fiocruz, e o reitor da UFRJ, Roberto Leher, no evento delançamento de plano de cooperação. Foto: Peter Ilicciev

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Fiocruz e União Europeia debatemresistência antimicrobiana

Dirigentes da Fiocruz reuniram-secom uma comitiva da União Europeia(UE), em março, na sede da Funda-ção, para uma reunião sobre possí-veis parcerias de cooperação no temada resistência antimicrobiana. A co-mitiva foi liderada pelo comissárioeuropeu da Saúde e Segurança dosAlimentos, Vytenis Andriukaitis. Alémdo comissário, estiveram presentes oembaixador da União Europeia no Bra-sil, João Titternigton Gomes Cravinho,o conselheiro da Delegação da UniãoEuropeia no Brasil, Rui Manuel Rosá-rio Ludovino, o chefe de Unidade deTemas Sanitários e Fitossanitários echefe da força-tarefa sobre Resistên-cia Antimicrobiana, Koen Josee M.Van Dyck, e os oficiais em Saúde Pú-blica da UE Charles Evan Price e JuliaKerstin Langer.

Na abertura do encontro, a presi-dente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima,destacou que a Fiocruz já atua emparceria com a União Europeia no con-sórcio ZIKAlliance, para enfrentamen-to ao vírus zika. O consórcio reúne 52instituições de 18 países. Segundo Ní-sia, um acordo de cooperação inter-

nacional com a EU sobre resistênciaantimicrobiana pode seguir este eixo.A presidente lembrou que em 2015 aFundação e o Reino Unido desenvol-veram uma agenda em comum segun-do estas diretrizes.

O comissário europeu da Saúdee Segurança dos Alimentos, por suavez, afirmou que os fundos da UniãoEuropeia destinados ao vírus zika de-monstram o comprometimento daentidade com a saúde global. “É umaépoca difícil para promover e garan-tir direitos”, disse Andriukaitis. “Issosignifica que precisamos ter uma co-ordenação muito boa. E precisamosde instituições que ofereçam pesso-as, recursos e laboratórios para lidarcom esses desafios”. Parte da reuniãofoi dedicada à discussão sobre tuber-culose. O comissário destacou que odesenvolvimento de novas vacinas ekits diagnósticos é prioritário para aUE. “Não temos nenhuma nova va-cina para TB há mais de 20 anos,assim como não temos novos kits di-agnósticos”, afirmou.

André Costa

FundaçãosediaráConferênciaLuso-Brasileirade AcessoAberto

A 8ª Conferência Luso-Brasi-leira de Acesso Aberto (ConfOA)retornará em 2017 ao Rio de Ja-neiro onde, em 2011, foi reali-zada pela primeira vez no Brasil.A instituição que vai acolher aConfOA é a Fiocruz, uma refe-rência também no acesso aber-to. A 8ª Conferência ocorrerá nosdias 4 e 5 de outubro (comworkshops pós-conferência pre-vistos para 6 de outubro), no cam-pus de Manguinhos.

O tema da 8ª ConfOA é Doacesso aberto à ciência aberta,querendo sublinhar o alargamen-to do âmbito da conferência, dadoque o acesso aberto é uma com-ponente e uma condição indis-pensável da ciência aberta, queabrange outras dimensões. AConfOA pretende reunir as co-munidades portuguesa e brasilei-ra e também as dos demaispaíses lusófonos, que desenvol-vem atividades de investigação,desenvolvimento, gestão de ser-viços e definição de políticas rela-cionadas com o acesso aberto aoconhecimento e com todas as ou-tras vertentes da ciência aberta.A conferência assume-se como oespaço privilegiado para, com oobjetivo de promover a partilha,discussão e divulgação de conhe-cimentos, práticas e investigaçãosobre estas temáticas, em todasas suas dimensões e perspectivas.

Raquel Truta

O comissário europeu da Saúdee Segurança dos Alimentos,Vytenis Andriukaitis, na visita àFiocruz. Foto: Peter Ilicciev

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esenvolvido pelo Institu-to Carlos Chagas (ICC/Fiocruz Paraná), um es-tudo pioneiro poderáabrir novos caminhos

para a pesquisa relacionada à doençade Chagas. A investigação comprovou,pela primeira vez, que modificações emhistonas – proteínas presentes no nú-cleo da célula e que são fundamentaispara a compactação do DNA e para aregulação dos genes – estão amplamen-te presentes no Trypanosoma cruzi,parasita causador da doença. A pes-quisa do papel dessas modificações emseres humanos e outros organismos jáé consolidada no meio científico e con-templada pela área da epigenética, queinvestiga mecanismos regulatórios he-reditários que não envolvem mudançana sequência do DNA do organismo,bem como suas implicações no desen-volvimento de doenças como câncer epossibilidades de novas terapias.

“Sabemos que em outros organis-mos as modificações de histonas estãopresentes e, em humanos, têm direcio-

DRenata Fontoura

INVESTIGAÇÃO

nado a descoberta de alvos para trata-mento de diversas doenças. A partir dis-so, resolvemos investigar se elas tambémestariam presentes nas histonas do pa-rasita. Antes desse estudo, acreditava-se que essas modificações no T.cruzi eram escassas e não teriam mui-ta importância” explica a pesquisadoraGisele Picchi, do Laboratório de BiologiaMolecular de Tripanossomatídeos da Fi-ocruz Paraná. “Em outros organismosexistem cerca de 20 tipos de modifica-ções de histonas já comprovadas. Nossotrabalho mostrou, de forma inesperada,que as histonas do parasita apresentam,ao menos, 13 dessas modificações, evi-denciando um perfil com a mesma com-plexidade e sofisticação de outrosorganismos”, ressalta a cientista.

Técnicas de proteômica – que en-volvem o estudo em larga escala das pro-teínas expressas e suas modificações emuma célula, tecido ou organismo, inclu-indo a análise quantitativa da expressãoao longo do tempo, em diversas locali-zações celulares e/ou sob a influênciade diferentes estímulos – foram utiliza-

das para o desenvolvimento da pesquisainédita. “Nosso desafio metodológico foigrande, já que, num trabalho como este,há muitas peculiaridades. Desde a pre-paração das amostras, até a coleta eanálise de dados, todo o protocolo é di-ferenciado em relação a estudos de pro-teômica convencionais”, observa apesquisadora Lyris Martins Franco deGodoy, do Laboratório de Genômica Fun-cional da Fiocruz Paraná.

Segundo Lyris, os próximos passos in-cluem a investigação aprofundada dosimpactos dessas modificações. “Há maisde uma década, esses aspectos são estu-dados nas células de seres humanos e ou-tros mamíferos, porém ainda é uma árearecente de investigação, que tem muitoa crescer. A partir de agora se abre umcampo fértil para os estudos da importân-cia e função das modificações de histo-nas na biologia e patogênese do T. cruzi,bem como para a busca de alvos compotencial para o desenvolvimento de dro-gas epigenéticas contra a doença de Cha-gas”, conclui.

Os resultados da pesquisa foram

Estudo pioneiroFiocruz Paraná avança em pesquisa sobre doença de Chagas

A equipe da Fiocruz Paraná apresentou os resultados dapesquisa em um artigo científico no periódico Journal ofProteome Research. Foto: Itamar Crispim/Fiocruz Paraná

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11R E V I S T A D E M A N G U I N H O S | M A I O D E 2 0 1 7

apresentados em um artigo científicopublicado na edição de janeiro de 2017do periódico Journal of Proteome Rese-arch. (Post-translational Modifications ofTrypanosoma cruzi Canonical and Vari-ant Histones. Gisele F. A. Picchi, Vanes-sa Zulkievicz, Marco A. Krieger, NilsonT. Zanchin, Samuel Goldenberg, andLyris M. F. de Godoy. Journal of Proteo-me Research 2017 16 (3), 1167-1179.DOI: 10.1021/acs.jproteome.6b00655).

150 mil novoscasos por anono Brasil

No Brasil, devido à transmissão ve-torial domiciliar ocorrida no passado ehoje interrompida, predominam os ca-sos crônicos da doença de Chagas. Esti-ma-se que existam entre 2 e 3 milhõesde indivíduos infectados e a doença re-gistra cerca de 150 mil novos casos anu-almente, segundo dados recentes do

Ministério da Saúde. Globalmente, oscasos se concentram no México e empaíses da América do Sul e América La-tina. Porém, movimentos populacionaisem grande escala têm expandido as áre-as onde os casos da doença são encon-trados, registrando um aumento decasos, desde 2014, em países da Europae Estados Unidos.

Descoberta pelo pesquisador brasi-leiro Carlos Chagas em 1909, a doençaé transmitida mais frequentemente porinsetos triatomíneos, conhecidos popu-larmente com barbeiros. Logo após ainfecção, os pacientes apresentam umgrande número de parasitas no sanguee podem ter sintomas como febre, dorde cabeça, fraqueza intensa e inchaçono rosto e nas pernas. Nessa fase dadoença, o tratamento com drogas ca-pazes de matar os protozoários costu-ma ser eficaz, embora tenha fortesefeitos colaterais. No entanto, em mui-tos casos a fase aguda da doença temsintomas leves ou é assintomática, e ainfecção acaba sendo descoberta no

estágio crônico. Nessa etapa os parasi-tas se alojam nos músculos do coraçãoe no aparelho digestivo. Os pacientespodem permanecer anos sem sintomas,mas as lesões causadas nos órgãos vãose acumulando e, em 30% dos casos,os indivíduos apresentam complicaçõescardíacas, enquanto 10% têm compli-cações digestivas. Na fase crônica, nãohá ainda comprovação da eficácia dosmedicamentos disponíveis.

Em 2006, o Brasil recebeu um cer-tificado da OMS e da Organização Pa-namericana de Saúde (Opas) por terconseguido interromper a transmissãoda doença de Chagas pela espécie debarbeiro mais frequente no país:o Triatoma infestans. No entanto, se-gundo o Ministério da Saúde, nos últi-mos anos estão surgindo novos casosda infecção devido a uma forma alter-nativa de transmissão ligada à conta-minação de alimentos. A doençatambém pode ser transmitida por meiode transfusão de sangue, transplantede órgãos e da mãe para o feto.

Infográfico: Fiocruz Paraná

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esde que começou a serestudada, a microbiotaintestinal vem sendo as-sociada a diversas funçõesdo organismo. Recente-

mente, um estudo realizado pela FiocruzMinas, em parceria com outras instituições,mostrou que este conjunto composto porcerca de 100 trilhões de micro-organismospode ajudar a evitar uma doença que afetaaproximadamente 300 milhões de pesso-as em todo o mundo: o diabetes tipo 2. Apesquisa foi publicada recentemente naNature Communications, uma das maisinfluentes revistas científicas.

Segundo o estudo, a Akkermansiamuciniphila, bactéria presente na mi-crobiota intestinal, pode auxiliar natransformação da glicose em energia

DKeila Maia

para o corpo, diminuindo a concentra-ção de açúcar no sangue. Entretanto,a Akkermansia seria impedida de rea-lizar essa atividade pelo Interferon-gama, uma proteína liberada pelopróprio organismo, sempre que preci-sa se proteger contra infecções viraise de alguns protozoários e bactérias.

”Algumas pesquisas consideramo diabetes tipo 2 como uma doençainflamatória crônica, que faz com queo Interferon-gama seja constante-mente liberado, conforme ocorre comas doenças autoimunes. Por meio des-se trabalho, constatamos que o Inter-feron atrapalha o papel modulador daAkkermansia, levando ao excesso deaçúcar no sangue”, explica o pesqui-sador Gabriel Fernandes, do Grupo de

Informática de Biossistemas e Genô-mica da Fiocruz Minas.

Para chegar aos resultados, os pes-quisadores observaram a ação da Akker-mansia no organismo de camundongos,incapazes de produzir o Interferon-gama. Para isso, eles alimentaram osanimais e avaliaram o índice de quedada glicose somente pela ação da insuli-na. Depois, os cientistas introduziram abactéria (Akkermansia) no intestino dosratos e constataram que o nível de gli-cose caía ainda mais. Já em uma ter-ceira etapa, o Interferon foi introduzidono organismo dos camundongos e, comisso, os efeitos benéficos da Akkerman-sia não foram mais observados.

Em uma fase subsequente do estu-do, verificou-se que também em huma-

PESQUISA

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nos existe essa correlação entre a abun-dância de Akkermansia muciniphila eo nível de glicose no sangue. Ou seja,quanto maior a quantidade da bactériamaior a capacidade de metabolizaçãoe consequente diminuição de açúcar nosangue. Foram avaliadas as microbio-tas de 268 pacientes, bem como dadosbioquímicos e antropométricos.

”Fizemos o sequenciamento da mi-crobiota de cada um deles. Em seguida,por meio de análise estatística, avaliamosuma série de fatores, como quantidadede glicose, marcadores inflamatórios pre-sentes, resistência à insulina, entre outros.Assim, verificamos que a Akkermansia eo Interferon seriam fatores determinantesda capacidade de metabolismo de glico-se”, explica Fernandes.

Segundo o pesquisador, o estudoabre possibilidades para novas pesqui-sas voltadas para o tratamento do dia-betes tipo 2. “Se você tem um pacientecom resistência à insulina, é possíveloferecer a ele nutrientes que favore-çam a Akkemansia e neutralize a açãodo Interferon diante dessa bactéria. Umpossível tratamento natural seria pormeio de uso de prebióticos”, avalia.

Diabetes tipo 2Segundo a Sociedade Brasileira

de Diabetes, no Brasil, há mais de13 milhões de pessoas vivendo comdiabetes, o que representa 6,9% da

população. Desse total, cerca de90% têm o diabetes tipo 2. Um dosprincipais problemas enfrentados éque, muitas vezes, o diagnósticodemora, favorecendo o aparecimen-to de complicações.

Diferentemente do que ocorre como tipo 1, os indivíduos com diabetes tipo2 produzem insulina. Entretanto, muitaspessoas desenvolvem resistência a essehormônio e, com isso, a insulina nãoconsegue cumprir seu papel de transpor-tar a glicose para dento das células, para

que ela seja transformada em energiapara o corpo. Também pode acontecerde a pessoa não produzir insulina sufici-ente para suprir as demandas do orga-nismo e, assim, o hormônio insuficientenão consegue carregar todo o açúcar,que acaba se acumulando no sangue.

Em boa parte dos casos, a diabe-tes tipo 2 pode ser controlada com ati-vidade física e planejamento alimentar.Em outras situações, exige o uso deinsulina e/ou outros medicamentos paracontrolar a glicose.

Segundo o pesquisador, o estudo abre possibilidades para novas pesquisasvoltadas para o tratamento do diabetes tipo 2. Foto: João Guilherme Braga

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ma pesquisa liderada peloInstituto Oswaldo Cruz(IOC/Fiocruz) mostra quea bactéria Mycobacteriumleprae, causadora da han-

seníase, pode inibir um importante me-canismo da imunidade nos pacientes: aautofagia, que promove a destruiçãode microrganismos intracelulares nascélulas de defesa conhecidas comomacrófagos. Segundo as análises, asupressão da autofagia está associa-da com os casos mais graves da do-ença, chamados de multibacilares,pois os pacientes apresentam gran-de número de lesões com alta cargabacteriana. Realizado em colabora-ção com o Instituto Nacional de In-fectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz), Instituto Lauro de SouzaLima (ILSL), em São Paulo, e Univer-sidade de Cologne, na Alemanha, otrabalho foi publicado na revista ci-entífica Plos Pathogens.

De acordo com a coordenadora doestudo, Roberta Olmo Pinheiro, pesqui-sadora do Laboratório de Hanseníase doIOC, além de ampliar o conhecimentosobre o agravo, o achado aponta paraa possibilidade de novas terapias. “Nosúltimos anos, pesquisas destacaram aimportância da autofagia no controle datuberculose e da leishmaniose, mas opapel do mecanismo na hanseníase ain-da não tinha sido estabelecido. Nossosresultados sugerem que proteínas da viada autofagia poderiam ser alvos tera-pêuticos, uma vez que a ativação des-

UMaíra Menezes

se mecanismo parece contribuir para ocontrole do agravo”, afirma a farma-cêutica, acrescentando que o tratamen-to atual da hanseníase, baseado nacombinação de antimicrobianos, é efi-caz. Assim, os novos fármacos teriamfunção complementar.

Investigaçãodetalhada

Pela sua relevância, a autofagiafoi destacada no Prêmio Nobel de Me-dicina em 2016. O cientista japonêsYoshinori Ohsumi recebeu a láurea pordescobrir os genes envolvidos na re-gulação do mecanismo. O processoocorre em todas as células com o ob-jetivo de degradar estruturas, tantopara obtenção de nutrientes comopara eliminação de moléculas. Nosmacrófagos, que são células de defe-sa, a autofagia tem característicasparticulares, participando da destrui-ção de microrganismos que se alojamno interior das células.

Para investigar o papel da auto-fagia na hanseníase, os pesquisado-res analisaram amostras de lesões demais de 50 pacientes atendidos noAmbulatório Souza Araújo, primeirocentro brasileiro especializado nadoença a atuar alinhado a normasinternacionais de qualidade em as-sistência. Eles foram classificados emdois extremos da apresentação dossintomas: os multibacilares, que

PESQUISA

Célulassemdefesa

Estudo apontaque supressão daautofagia,importantemecanismo daimunidade, estáassociada comcasos mais gravesda hanseníase

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apresentam diversas lesões com altacarga bacteriana, e os paucibacila-res, que têm poucas lesões com quan-tidade reduzida de microrganismos.

Utilizando diferentes métodos deinvestigação, os cientistas observa-ram a presença de vesículas carac-terísticas da autofagia e de proteínasconsideradas marcadores do proces-so nas células. A expressão de ge-nes envolvidos na regulação domecanismo também foi avaliada.Todos os dados apontaram para ini-bição da autofagia nos pacientesmultibacilares e ativação nos indiví-duos paucibacilares.

Paralelamente, experimentos emcultura de células indicaram que o M.leprae atua para suprimir a autofagia.Nos ensaios, os pesquisadores verifica-ram que a infecção de macrófagos porbacilos mortos estimula o mecanismo.No entanto, quando as mesmas célulassão infectadas pelos microrganismos vi-vos, a autofagia não é ativada. Conside-rando os fatores que podem influenciarna autofagia, os cientistas investigaramos efeitos da molécula interferon-gamasobre o processo. Produzida durante aresposta imune, essa substância atuacomo sinalizador entre as células, indu-zindo a autofagia, entre outros mecanis-mos. Nos pacientes paucibacilares, osníveis de interferon-gama aumentamconsideravelmente na resposta à infec-ção pelo M. leprae, o que não ocorrenos indivíduos multibacilares. Os tes-tes mostraram que a inibição da au-tofagia nos macrófagos de pacientesmultibacilares pode ser revertida pelaação do interferon-gama.

”Os resultados nos levaram a for-mular uma hipótese: como estraté-gia para escapar do sistema imune,o M. leprae é capaz de inibir a viada autofagia. Nos pacientes pauciba-cilares, a secreção de interferon-gama consegue contrabalançar ainibição, o que favorece o controleda infecção. Já nos pacientes multi-bacilares, que apresentam um perfildiferente de resposta imune, isso nãoocorre e a infecção avança”, afirmaBruno Jorge de Andrade Silva, dou-torando do Programa de Biologia Pa-rasitária do IOC e autor do estudo.

A pesquisa contou com análises deamostras de pacientes e ensaios deinfecção experimental, que aponta-ram o papel importante da autofagiano combate ao M. lepraeFoto: Gutemberg Brito

Segundo Bruno, os experimentosapontaram que a inibição da autofagiaprovocada pelo M. leprae pode serrevertida por substâncias que ativamesse mecanismo de defesaFoto: Gutemberg Brito

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Papel daimunidade

Ao contrário do que ocorre emmuitos agravos, a existência de qua-dros leves e graves de hanseníase nãoestá ligada a uma evolução progres-siva dos casos. Alguns pacientes de-senvolvem a forma multibacilar logoapós a infecção pelo M. leprae, en-quanto outros podem permanecer poranos com perfil paucibacilar. Entre osdois extremos, há indivíduos comquadros intermediários, chamados deborderline – o que significa fronteira,em tradução literal do inglês. Alémde trazer consequências para a saú-de, a variedade de apresentaçõesimpacta na transmissão da hansení-ase. Os pacientes com baixa cargade parasitos não propagam o agra-vo. Já aqueles com alta carga podemtransmitir a infecção por meio dassecreções nasais e da saliva, caso nãoestejam em tratamento.

”Ainda não existem marcadoresque possam indicar previamente a pro-pensão para uma das formas da doen-ça, mas alguns fatores associados aosdiferentes quadros são conhecidos.Além de aspectos genéticos, as dife-renças no perfil de imunidade dos pa-cientes são importantes para a evolução

da hanseníase. A pesquisa mostra quea autofagia desempenha um papel sig-nificativo nesse processo”, explicaMayara Garcia de Mattos Barbosa, tam-bém doutoranda da Pós-Graduação emBiologia Parasitária do IOC e coautorada pesquisa.

Perspectivasfuturas

Além de investigar os casos multiba-cilares e paucibacilares, o estudo ana-lisou amostras de pacientes quedesenvolveram uma complicação gra-ve da hanseníase conhecida como re-ação reversa. Associado principalmenteaos quadros intermediários ou multibaci-lares, esse tipo de episódio pode ocorrerantes, durante ou após o fim do trata-mento. Nesses casos, os pacientes apre-sentam uma resposta imunológicaexacerbada, com forte inflamação, queacaba por provocar danos ao organismo.A pesquisa identificou que a inibição daautofagia é revertida durante a reaçãoreversa, que é marcada pela elevação dosníveis de interferon-gama. “Nas próximasetapas, vamos aprofundar a investigaçãosobre o papel da autofagia na reação re-versa e verificar se interferir nessa via podeser um caminho para prevenir esse tipode episódio”, conta Roberta.

A doençaO aparecimento de manchas

pardas ou rosadas na pele costumaser o primeiro sintoma da hansení-ase. Além de redução da sensibili-dade, as manchas apresentamausência de pelos e de transpiração.Uma vez que o M. leprae se alojainicialmente na pele e nos nervosperiféricos dos pacientes, a doençatambém pode causar dormência eperda de tônus muscular na áreaafetada. Algumas pessoas tambémapresentam caroços ou inchaços naspartes mais frias do corpo, comoorelhas, mãos e cotovelos. Se nãotratada, a hanseníase pode levar aincapacidades físicas.

A transmissão do agravo não ocor-re pelo contato com as lesões, massim por meio de secreções nasais esaliva, estando ligada ao contato pró-ximo com pessoas doentes que ain-da não iniciaram o tratamento.Oferecida gratuitamente pelo Siste-ma Único de Saúde (SUS), a terapiaé baseada em medicamentos antimi-crobianos, que combatem a bactéria.A transmissão da doença é interrom-pida logo após as primeiras doses damedicação. Porém, o tratamentocompleto dura de seis meses a umano e deve ser seguido até o fim.

De acordo com Roberta e Mayara, avaliar substâncias que ativam a autofagia podeser uma estratégia para o desenvolvimento de novas terapias para a hanseníaseFoto: Gutemberg Brito

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Ação contra o

PESQUISA

ZIKA

U

Adotado no tratamentoda hepatite C, o Sofosbuvirinibiu a replicação do víruszika em testes com culturasde células e minicérebros,impedindo a morte celular

Maíra Menezes

m estudo liderado pela Fiocruz mostra que o anti-viral Sofosbuvir, atualmente utilizado para trata-mento da hepatite C, tem ação contra o vírus zika.O efeito foi observado em testes com diferentestipos de células, incluindo células neuronais hu-

manas, além de minicérebros, organóides produzidos a partir decélulas-tronco que reproduzem os estágios iniciais de formaçãodo cérebro e são considerados um modelo para o estudo damicrocefalia associada ao zika. A pesquisa apontou que o medi-camento inibe a replicação viral, protegendo as células da mor-te provocada pela infecção. O estudo foi realizado por pesquisa-dores do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde(CDTS/Fiocruz), Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), InstitutoNacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz), Institutode Tecnologia de Fármacos (Farmanguinhos/Fiocruz), InstitutoD’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR), Universidade Federal do Riode Janeiro (UFRJ), Instituto Nacional de Ciência e Tecnologiapara Inovação em Doenças Negligenciadas (INCT/IDN) e consór-cio BMK, formado pelas empresas Blanver Farmoquímica, Mi-crobiológica Química e Farmacêutica e Karin Brüning.

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tudos com diferentes linhagens celu-lares, os pesquisadores decidiram tes-tar o medicamento em modelos maissemelhantes aos cérebros dos bebêsquando são afetados pelo vírus zikadurante a gestação. Os experimen-tos foram realizados com células-tron-co neurais de pluripotência induzidae minicérebros. Produzidas em labo-ratório a partir de células humanasextraídas da pele, as células-tronconeurais de pluripotência induzida sãosemelhantes às células precursorasque originam os principais tipos celu-lares do cérebro no início do desen-volvimento dos embriões. Já os mini-cérebros, produzidos a partir dessascélulas, são organoides que reprodu-zem a estrutura tridimensional docérebro do feto nos primeiros mesesda gestação, com a presença de di-ferentes tipos celulares.

Os testes de infecção experimen-tal foram realizados em parceria comos pesquisadores do IDOR, que de-senvolveram os modelos de estudo.Os cientistas verificaram que o Sofos-

A pesquisa foi apoiada pelo Con-selho Nacional de DesenvolvimentoCientífico e Tecnológico (CNPq) epela Fundação Carlos Chagas Filhode Amparo à Pesquisa do Estadodo Rio de Janeiro (Faperj). Os re-sultados foram publicados na revis-ta científica internacional Scienti-fic Reports. De acordo com ThiagoMoreno Lopes Souza, pesquisadordo CDTS e coordenador do estudo,mais investigações serão necessáriasantes da realização de ensaios compacientes, mas os primeiros resulta-dos apontam que o Sofosbuvir tempotencial para se tornar uma opçãono tratamento da doença.

“Identificar a ação contra o víruszika de uma droga que já é clinica-mente aprovada é muito importan-te. Ainda não sabemos quando tere-mos uma vacina disponível contra ozika e o uso de um medicamento an-tiviral pode reduzir os danos provo-cados pela infecção. Dependendo dosresultados futuros, o tratamento po-deria até ser considerado como me-dida profilática, como ocorre, porexemplo, no uso de certos medica-mentos antirretrovirais no caso doHIV”, afirma o pesquisador.

A semelhança entre o vírus da he-patite C e o vírus zika foi um dos mo-tivos que levaram os cientistas a tes-tar o medicamento. Os dois patógenosfazem parte da família Flaviviridae,que apresentam similaridades em al-gumas de suas estruturas. Uma de-las é a enzima RNA polimerase, res-ponsável pela replicação do materialgenético do vírus e alvo da ação doSofosbuvir. Os efeitos colaterais re-duzidos do produto para os pacien-tes com hepatite C na comparaçãocom outros antivirais e a ausência deprejuízos para a gestação de acordocom estudos em modelos animaistambém foram levados em conta.

Proteção paraminicérebros

Os experimentos foram realizadoscom uma linhagem do vírus zika emcirculação no Brasil. A partir dos re-sultados positivos observados em es-

buvir reduziu drasticamente a repli-cação do vírus zika tanto nas célu-las-tronco neurais como nos minicé-rebros, protegendo as células dosdanos provocados pelo patógeno.“Observamos proteção mesmo quan-do as células foram submetidas a tí-tulos elevados de vírus. Consideran-do que os organóides cerebrais sãoum modelo para o estudo da micro-cefalia associada ao zika, a ativida-de antiviral detectada é uma fortedemonstração do potencial do Sofos-buvir”, ressalta Thiago.

“Nosso modelo de minicérebroshumanos permitiu caracterizar osefeitos de um medicamento que foicapaz de impedir, de maneira bas-tante satisfatória, a multiplicação dovírus zika e a morte de células neu-rais humanas. Trata-se de uma im-portante descoberta brasileira quepoderá ajudar, futuramente, a redu-zir as consequências da infecção nosbebês em desenvolvimento”, comple-ta Stevens Rehen, neurocientista doIDOR e da UFRJ.

Os testes confirmaram que a ação da enzima RNA polimerase do vírus zika,responsável pela replicação do material genético viral, é inibida pela formaativa do fármaco Sofosbuvir (Foto: Gutemberg Brito)

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testes em uma linhagem de células derim de macaco, que recebe o nome deVero, não foi observado efeito do medi-camento na inibição da replicação viral.

De acordo com Thiago, diversas li-nhagens celulares são utilizadas com fre-quência em estudos de virologia. “Umavez que os modelos para estudo do vírusainda não estão completamente estabe-lecidos, testamos diferentes linhagenscelulares e escolhemos aquelas nas quaiso vírus conseguiu se replicar, provocandoclaramente o efeito citopático [com da-nos às estruturas celulares]. A ação maispotente do Sofosbuvir foi observada nascélulas hepáticas e neuronais humanas”,ressalta o pesquisador. Segundo ele, aausência de efeito do antiviral nas célu-las Vero pode ter diferentes explicações.“Isso ainda não foi investigado, mas épossível que o Sofosbuvir não consiga pe-netrar nessas células ou que, dentro de-las, ele não seja convertido na sua formaativa, o que é necessário para sua atua-ção. Também é possível que as célulasVero tenham algum mecanismo para eli-minar o fármaco, impedindo a sua ação”,pondera.

Colaboraçãocientífica

A parceria entre grupos de pesquisaé considerada essencial para os resulta-dos obtidos e para as próximas etapasdo estudo. “Esse trabalho envolveu di-versos laboratórios, que contribuíramcom as suas áreas de experiência, pro-duzindo rapidamente um resultado im-portante. A colaboração traz mais res-postas e mais qualidade para apesquisa”, afirma Eduardo Volotão, pes-quisador do Laboratório de VirologiaComparada e Ambiental do IOC, querealizou a concentração e a purificaçãodas amostras de vírus zika utilizadas noestudo. No IOC, os Laboratórios de Imu-nofarmacologia, de Flavivírus e de Ví-rus Respiratório e do Sarampo tambémcolaboraram com o trabalho.

De acordo com os cientistas, o fatode o Sofosbuvir ser um medicamentojá aprovado para uso em pacientes nocaso da hepatite C pode facilitar oavanço da pesquisa. “Geralmente sãonecessários anos para um fármaco sairda fase de estudos pré-clínicos e che-gar aos ensaios com pacientes. Comoo Sofosbuvir já passou pelos testes desegurança e foi aprovado para uso con-tra a hepatite C, esse processo podeser bastante acelerado”, diz Thiago.

Sofosbuvircontra hepatite C

O Sofosbuvir é um fármaco inova-dor, que foi lançado em 2013 e chegouao Sistema Único de Saúde (SUS) paratratamento da hepatite C em dezembrode 2015. Como a maioria dos antivirais,o medicamento não está disponível nasfarmácias e sua utilização só poder serfeita com acompanhamento médico. Notratamento da hepatite C, o remédio éutilizado em associação com outros an-tivirais. Entre as vantagens na compara-ção com as terapias anteriores estão oaumento da chance de cura, a reduçãodos efeitos colaterais e a possibilidadede administração por via oral. Em maiode 2016 a Fiocruz e o consórcio BMKassinaram um acordo para produzir o re-médio no Brasil.

Resultados emlinhagens celulares

O potencial de ação do Sofosbuvirsobre o vírus zika foi avaliado de diver-sas formas. Em um dos testes, a RNApolimerase do vírus zika foi purificadapara verificar se a forma ativa do fár-maco seria capaz de bloquear a suaação, da mesma forma que ocorre coma RNA polimerase do vírus da hepatiteC – hipótese confirmada nos ensaios.Os pesquisadores ainda verificaram queo Sofosbuvir provoca tantas mutaçõesno genoma do vírus da zika que a mul-tiplicação viral se torna inviável. Porisso, protege as células de um proces-so chamado de patogênese viral.

O medicamento foi testado em qua-tro diferentes tipos de células infectadaspelo vírus. O Sofosbuvir inibiu a replica-ção do patógeno em três linhagens ce-lulares: uma linhagem de células neuro-nais humanas, chamada de SH-Sy5y,uma linhagem de células hepáticas hu-manas, conhecida como Huh-7, e umalinhagem de células de rim de hamster,identificada como BHK-21. Já durante os

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SAÚDE PÚBLICA

Rio de Janeiro, segundamaior metrópole do país,e Santa Isabel do Rio Ne-gro, município do Amazo-nas com apenas 20 mil

habitantes aproximadamente, apresen-tam um problema comum: a alta frequên-cia de giardíase, infecção intestinal queafeta principalmente as crianças e podeprejudicar o seu desenvolvimento. A situ-ação é destacada em duas pesquisas li-deradas pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) publicadas em revistas científicasinternacionais. Na capital fluminense, exa-mes de fezes realizados em 89 criançasmenores de 4 anos frequentadoras deuma creche em uma comunidade detec-taram infecção por giárdia em quase 50%dos casos. Já na cidade amazonense, fo-ram contempladas 433 crianças e ado-lescentes menores de 14, e a prevalênciada doença chegou a 17%.

Além de exame parasitológico de fe-zes para diagnóstico da infecção, os estu-dos envolveram análises moleculares paracaracterização do perfil genético dos para-sitos. No Rio de Janeiro, o resultado foiconsiderado surpreendente: em 15 casos,foi identificada a presença do chamadogenótipo E, considerado por muito tempocomo causador de infecções unicamenteem animais de produção, como cavalos,bois e porcos. Uma vez que a transmissãoda giardíase ocorre a partir da ingestão decistos de giárdia, que são liberados nas fe-zes de pacientes e animais infectados, osdois estudos ressaltam que a falta de sa-neamento básico e a deficiência no forne-

OMaíra Menezes

cimento de água tratada nas regiões estu-dadas são fatores que contribuem para adisseminação da doença.

Desafios nocombate àgiardíase

O estudo realizado com 89 crian-ças menores de 4 anos frequentadorasde uma creche em uma comunidadecarioca identificou que 44 delas – qua-se 50% do total – estavam infectadaspelo parasito intestinal Giardia lamblia.Este protozoário pode prejudicar odesenvolvimento das crianças e levarà desnutrição infantil, nos casos maisgraves. Os cientistas do LaboratórioInterdisciplinar de Pesquisas Médicasdo IOC, que conduziram a investiga-ção, realizaram a caracterização mo-lecular dos patógenos. Eles verificaramque 29 crianças apresentaram infec-ção por parasitos giárdia do genótipoA (o mais comum em casos huma-nos no Rio de Janeiro) e 15 revela-ram presença do genótipo E – quefoi considerado por muito tempocomo causador de infecções unica-mente em animais de produção,como cavalos, bois e porcos. Publi-cado na revista científica The Journalof Infectious Diseases, o estudo tevecolaboração da Universidade do Es-tado do Rio de Janeiro e foi apoiadopelo programa Brasil sem Miséria.

De acordo com os especialistas,devido à falta de saneamento bási-co na comunidade, uma alta taxada parasitose intestinal já era espe-rada. Porém, esta é a primeira vezque a infecção humana pelo genó-tipo E é identificada em um núme-ro significativo de pacientes. “Compoucas ocorrências relatadas na li-teratura científica, que já havia re-gistrado casos isolados, ainda existiadúvida sobre o potencial de infec-ção do genótipo E em humanos. Opercentual expressivo de casos nes-se trabalho foi uma surpresa e con-tribui para confirmar essa hipótese”,afirma Maria Fantinatti, doutoran-da do Programa de Pós-Graduaçãoem Medicina Tropical do IOC e pri-meira autora do artigo.

Coordenadora do trabalho, a pes-quisadora Alda Maria Da-Cruz, chefedo Laboratório Interdisciplinar de Pes-quisas Médicas do IOC, diz que oachado levanta diversas questões, es-pecialmente relativas ao ciclo de trans-missão da giárdia, já que outros animais,além de gatos e cães, podem atuarcomo fontes de contaminação, aumen-tando a possibilidade de infecção. “Épossível que o genótipo E esteja se dis-seminando em humanos a partir docontato com as fezes de outras pessoasinfectadas. No entanto, também é pre-ciso considerar a possibilidade de queas fezes de animais tenham um papelimportante na disseminação da doen-ça”, pondera a pesquisadora.

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Aliando diferentes métodos deanálise, o estudo contribui paraconfirmar o potencial deinfecção humana por parasitosgiárdia do genótipo EFoto: Gutemberg Brito

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Realizado na cidade de Santa Isa-bel do Rio Negro, no Amazonas, umestudo com 433 crianças e adoles-centes menores de 14 anos identifi-cou infecção intestinal pelo parasitoGiardia intestinalis em 17% dasamostras analisadas. O índice foi ain-da maior, chegando a 22%, na faixaetária entre dois e cinco anos. Con-duzida por cientistas do IOC e da Fi-ocruz Piauí, a pesquisa ressalta anecessidade de ações para o enfren-tamento da giardíase, doença quepode causar desnutrição e compro-meter o crescimento das crianças.

“Este agravo não é contempladopelas políticas públicas de tratamento co-letivo contra verminoses intestinais. Em-bora seja muito frequente, a giardíase estáesquecida, e as consequências disso po-dem ser graves, uma vez que a infecçãoprejudica a absorção de nutrientes no in-testino”, ressalta Filipe Carvalho Costa,pesquisador da Fiocruz Piauí e coordena-dor do trabalho.

O tratamento coletivo contra vermi-noses intestinais implementado no Brasilé recomendado pela Organização Mun-dial da Saúde (OMS). A terapia é ofere-cida anualmente para crianças em idadeescolar em áreas onde há carência desaneamento. O objetivo é combater asinfecções causadas por vermes, comoAscaris lumbricoides – popularmenteconhecido como lombriga – e ancilosto-mídeos. No entanto, uma vez que a gi-árdia é um protozoário, microrganismocom características biológicas diferentesdos vermes, o albendazol, medicamen-

Em município do norte doAmazonas, 17% dosmenores de 14 anosapresentam infecçãointestinal por giárdia.Estudo reforça necessidadede políticas públicas contraa doença

Problemaesquecido

Outra questão é a conscientização sobreo uso indiscriminado de vermífugos, quenão têm ação contra giárdia. “Existe aimpressão de que as parasitoses intesti-nais são uma questão já resolvida no Bra-sil ou que não afetam os centros urbanos.Mas elas permanecem como um impor-tante problema de saúde pública”, res-salta a médica, especialista em doençasinfecciosas e parasitárias, lembrando que,além do tratamento, o saneamento é fun-damental para prevenir a reinfecção.

Os genótiposA classificação dos diferentes genó-

tipos de giárdia é feita a partir da análisede regiões específicas do DNA do para-sito. Entre as oito variedades, apenas Ae B são tradicionalmente conhecidas porinfectar seres humanos e alguns animais,incluindo cães e gatos. Os demais genó-tipos são encontrados unicamente emdeterminados hospedeiros: C e D emcães domésticos e selvagens, F em ga-tos, G em ratos e camundongos, e H emfocas. Com relação ao genótipo E, osachados recentes em diferentes espéci-es – incluindo coelhos e primatas, alémde seres humanos – apontam para a hi-pótese de que os avanços nas técnicasde genotipagem estejam permitindo aidentificação de um fenômeno que ocor-ria despercebidamente no passado. Poroutro lado, segundo as especialistas, épreciso também considerar a possibilida-de de adaptação dessa variedade de gi-árdia. “Uma vez que o contato com fezesde animais como cavalos, bois e porcosocorre mais frequentemente, é possívelque os parasitos do genótipo E tenhamse adaptado, tornando-se capazes de in-fectar os pacientes e outros hospedeiros”,comenta Alda.

Próximos passosOs cientistas planejam avaliar quais

as vias mais comuns de transmissão ea disseminação de giárdia do genótipoE. As análises devem incluir amostrasde fezes de animais, solo, água e ali-mentos produzidos e consumidos nacomunidade estudada. O trabalho tam-bém deve ser expandido para outrosbairros do Rio.

Importânciado saneamento

Amostras da água que abastece acreche foram analisadas na pesquisa e35 dos 36 educadores também passa-ram por exames de fezes. Consideran-do que não foi detectada contaminaçãoe que todos os funcionários apresenta-ram resultado negativo para enteropa-rasitos, os pesquisadores avaliam que ascrianças possam ter adquirido a giardía-se na comunidade onde moram. No lo-cal, a coleta de esgoto e a água tratadanão chegam a todas as casas. Nessascondições, os cistos de giárdia, que sãoliberados nas fezes dos pacientes e deanimais infectados, podem contaminaras fontes de abastecimento de água,facilitando a disseminação do protozoá-rio. Além de permanecer viáveis noambiente por meses, os cistos do parasi-to são resistentes ao cloro. “A infecçãoacontece quando as pessoas ingerem oscistos da giárdia. Uma vez que o trata-mento da água se torna difícil em deter-minadas localidades e o uso de cloro nãoé suficiente para eliminar o parasito, oconsumo de água contaminada consti-tui uma importante via de transmissão.O contato com superfícies contaminadase o hábito comum entre as crianças emidade pré-escolar de colocar as mãos eobjetos na boca também podem favore-cer a propagação do agravo”, explicaFantinatti. “Geralmente, as crianças demenor idade são as mais afetadas, poissua imunidade ainda se encontra poucoestimulada, impedindo o controle da in-fecção”, acrescenta.

Em muitos casos, a infecção é assin-tomática. Quando ocorrem sintomas, asmanifestações mais frequentes são diar-reia e dor abdominal, comuns em diver-sas enfermidades. Já nos casos deinfecções graves, o quadro pode evoluirpara desnutrição infantil, com impactodireto no desenvolvimento das crianças.O diagnóstico é feito através do exameparasitológico de fezes, com a detecçãodos cistos de giárdia nas amostras. Se-gundo Alda, esse é um dos desafios noenfrentamento do agravo. Se o examenão for solicitado, os pacientes assinto-máticos podem ficar sem tratamento.

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to utilizado, não é capaz de combatê-la.“O albendazol é um remédio de baixocusto, doado por empresas farmacêuti-cas para o tratamento coletivo de vermi-noses. A terapia contra a giardíase exigecinco dias de administração de um outromedicamento, o Metronidazol, ou trata-mentos de dose única com medicamen-tos de preço mais alto”, explica BeatrizCoronato Nunes, doutoranda do Progra-ma de Pós-Graduação em Medicina Tro-pical do IOC e primeira autora do artigo.

Com a ausência de indicação de te-rapia coletiva, o tratamento da giardíasedepende do diagnóstico realizado pormeio de exame parasitológico específi-co, que detecta os cistos (ovos) do para-sito nas amostras. De acordo com Filipe,o diagnóstico é ainda mais importantena medida em que a maioria dos pacien-tes infectados não desenvolve sintomas.“Nenhuma das 433 crianças e adolescen-tes incluídos no estudo apresentava diar-reia e, mesmo assim, identificamos 73casos de giardíase. A implementação daterapia coletiva para verminoses nas áre-as endêmicas tem prejudicado o diagnós-tico laboratorial das parasitoses intestinais,pois o exame para a detecção da doen-ça tem sido frequentemente deixado delado”, alerta o pesquisador.

Contaminaçãodisseminada

No trabalho, os pesquisadoresmapearam os casos de giardíase emSanta Isabel do Rio Negro. Os dadosmostram que a doença ocorre em to-dos os bairros da área urbana do mu-nicípio, com alguns locais de maiorincidência, principalmente nas proxi-midades do Rio Negro. A infecçãoafeta da mesma forma as crianças defamílias com diferentes faixas de ren-da, tanto acima como abaixo da linhade pobreza. Para os pesquisadores, osdados refletem a carência de sanea-mento básico na cidade. Segundo Fi-lipe, na área urbana do município, quereúne cerca de 5 mil pessoas, a mai-oria das casas não temfossa séptica eos dejetos são jogados diretamente norio. Dessa forma, os cistos de giárdialiberados nas fezes dos pacientes in-fectados podem contaminar a água eo solo, sendo ingeridos posteriormentepor outros indivíduos, que podem con-trair a doença. “Embora a Amazôniacontenha a maior bacia hidrográficado mundo, em Santa Isabel muitascasas não têm acesso à água potá-

vel. Durante o dia, os moradores re-cebem nas torneiras água extraída depoços e à noite, água retirada do RioNegro e clorada, o que não é sufici-ente para eliminar os cistos de giár-dia”, diz o pesquisador.

O perfil genético dos parasitos de-tectados nas amostras também apon-ta para o alto grau de disseminaçãoda doença. Em um laboratório decampo montado na cidade, o DNAdos protozoários foi extraído e anali-sado. Dois genótipos distintos de gi-árdia, chamados de A e B, estavamrelacionados aos casos. As duas vari-edades são conhecidas por infectarseres humanos e algumas espécies deanimais. “Se houvesse uma única fon-te de infecção na cidade, como umreservatório de água contaminado,todas as crianças apresentariam pa-rasitos com o mesmo perfil genético.Mas, na análise molecular, identifi-camos diversos subtipos de parasitosdos genótipos A e B, o que reforça ahipótese de que há múltiplas fontesde transmissão do agravo no municí-pio. Melhorias nas condições de sa-neamento e fornecimento de águasão fundamentais para mudar essecenário”, enfatiza Beatriz.

Carência de saneamento e deficiência no tratamento deágua são apontados como fatores que contribuem para adisseminação da giardíase em Santa Isabel do Rio NegroFoto: Arquivo IOC

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SAÚDE PÚBLICA

Foto: Ascom/Farmanguinhos

Edson SIlva

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m estudo dapesquisadorado Instituto deTecnologia emFármacos (Far-

manguinhos/Fiocruz) AmandaValverde tem feito a diferençana vida de moradores da co-munidade rural de Palmares,em Paty do Alferes (RJ). Tra-ta-se da introdução da fito-terapia na rede pública desaúde da localidade. O ob-jetivo é contribuir com aEstratégia de Saúde daFamília, estimulando ouso de plantas medici-nais, principalmente asencontradas na região.

Dada a sua im-portância no âmbito

da saúde pública, re-centemente, o trabalho foipremiado pelo Ministério daSaúde. A iniciativa vai ao

encontro da PolíticaNacional de PlantasMedicinais e Fitoterá-picos (PNPMF), criadaem 2006. “Completa-mos dez anos da políti-ca e práticas integrativase complementares noSistema Único de Saú-de. Acredito que o prê-mio é a concretizaçãode que é possível ter-mos a utilização destaspráticas na atenção bá-sica de saúde. Espero

que o trabalho estimule ini-ciativas para a inserção depráticas com plantas medi-cinais”, ressalta Amanda.

O estudo faz parte desua dissertação, denomina-da Introdução da fitoterapiano SUS: contribuindo com aEstratégia de Saúde da Famí-lia na comunidade rural de Pal-mares, Paty do Alferes, Rio deJaneiro, referente ao Mestra-do Profissional em Ciência eTecnologia Farmacêutica da Fa-culdade de Farmácia da Univer-

Usidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).Para desenvolver o estudo, a colabo-radora do Núcleo de Gestão em Biodi-versidade e Saúde de Farmanguinhos(NGBS) foi orientada pela idealizadorada iniciativa, Nina Claudia Barboza daSilva, e co-orientada por Mara Zélia deAlmeida.

Segundo Nina Barboza, o projetosurgiu de uma pesquisa sobre o conheci-mento de plantas medicinais por especi-alistas locais, ou seja, por moradores dePalmares, conhecidos na comunidadecomo grandes conhecedores do assun-to. “Na ocasião tive o primeiro contatocom a equipe da Saúde da Família queatua na região e que expressou o desejode receber informações científicas. Oobjetivo foi capacitar os profissionais paraque eles pudessem repassar para os pa-cientes as orientações corretas sobre ouso de plantas medicinais”, explica Nina.

Desse diálogo com a Equipe de Saú-de da Família, em especial enfermeirose agentes comunitários de saúde, soma-do aos dados obtidos na pesquisa comos especialistas, observa Nina, nasceu oprojeto de extensão Plantas Medicinaise Promoção de Saúde: Contribuindo coma Estratégia de Saúde da Família (ESF)em uma Comunidade Rural. “O traba-lho da Amanda, por sua vez, foi fruto dehipóteses surgidas deste projeto de ex-tensão e ainda de outras hipóteses quenão haviam sido resolvidas no projeto depesquisa inicial com os especialistas lo-cais”, ressalta a coordenadora.

CapacitaçãoNeste sentido, para estimular o uso

de fitoterápicos como instrumentos paraa promoção de saúde na comunidade,foi implantada uma horta comunitáriade plantas medicinais com caráter soci-oeducacional. “Elaboramos tambémum memento fitoterápico de plantasespecíficas da comunidade. Além dis-so, confeccionamos dois materiais di-dáticos sobre qualidade vegetal e formasfarmacêuticas”, explica Amanda.

Segundo a pesquisadora, durantea investigação foi possível constatarque o conhecimento tradicional e po-pular está fortemente presente na co-

munidade de Palmares. Para se ter umaideia, resultados preliminares mostra-ram que 82% da população fazem usode plantas medicinais. Desses, 64%consomem na forma de chá – o boldoé o mais usado.

Apesar do diagnóstico, todos osprofissionais da Unidade Básica de Saú-de de Palmares desconheciam as polí-ticas de plantas medicinais e práticasintegrativas e complementares para aintrodução no Sistema Único de Saú-de (SUS). “Assim, apresentaram de-manda espontânea por capacitaçãopara a atuação com plantas medici-nais”, observa Amanda.

Desta forma, outra ação é o acom-panhamento da capacitação dos profis-sionais da Estratégia de Saúde da Famíliapara atuação em plantas medicinais naregião. “O estudo que realizamos sebaseou em gestão participativa, possibi-litando a integração e diálogo dos dife-rentes atores, de modo a valorizar o usoda biodiversidade. Com isso, buscamossempre a discussão sobre plantas medi-cinais em seus diversos aspectos, taiscomo a otimização do uso popular, se-gurança de uso, certificação botânica,cultivo e sustentabilidade visando garantira saúde ambiental, individual e coletivada comunidade”, destaca.

A Plataforma Agroecológica de Fi-tomedicamentos (PAF), área de Far-manguinhos vinculada ao NGBS,contribuiu para a capacitação dessesprofissionais de saúde e para a implan-tação da horta comunitária de plantasmedicinais com caráter socioeducaci-onal. “As mudas das plantas foram pro-duzidas pelo setor de agroecologia, edeterminadas botanicamente pela Co-leção Botânica de Plantas Medicinais,ambas pertencentes à PAF”, explicaAmanda.

De acordo com ela, a capacitaçãoabordou temas sobre história, etnobo-tânica, fitoquímica, farmacologia e far-macotécnica. “Para a introdução destaprática como terapêutica no SUS é es-sencial planejar e executar atividadesvoltadas para a educação em saúde,valorizando os usuários da rede públi-ca local, de forma participativa e dia-lógica”, assinala.

Alexandre Matos

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Parceria fortalecida

H

ENTREVISTA

Gustavo Mendelsohn de Carvalho

oje demos um passo adi-ante num processo queé histórico, uma vez quea história da UFRJ e daFiocruz se confundem

em muitos momentos”, assim o reitorda universidade, Roberto Leher, ava-liou a importância do encontro entredirigentes da universidade e da Fio-cruz, em 24 de março. O objetivo foiprospectar e ampliar as possibilidadesde cooperação entre as instituições,sinalizando temas de interesse co-mum. Para a presidente da Fiocruz,Nísia Trindade, a oportunidade signi-ficou “um salto de qualidade, paraassumirmos um papel efetivo de insti-tuições irmãs, que vão colocar, noscenários fluminense e nacional, a de-fesa intransigente do SUS, da educa-ção pública de qualidade e de um pro-jeto para esse país”. Na entrevista aseguir, Leher comenta alguns aspec-tos da parceria.

UFRJ e Fiocruz intensificam cooperação institucional

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Qual é o significado desse es-forço para intensificar a cooperaçãoentre as duas instituições?

Roberto Leher: Grande parte dosnossos professores fizeram sua forma-ção na Fiocruz, desenvolveram proje-tos aqui, certamente muitos pesqui-sadores da Fundação fizeram suagraduação, mestrado e doutorado naUFRJ. Temos vínculos muito intensose permanentes, no entanto, precisa-mos avançar nessa interação. Aindadurante a gestão do doutor Paulo Ga-delha nós construímos um processo im-portante, que foi a constituição de umpolo de Farmanguinhos (o Centro deReferência Nacional em Farmoquími-ca) no Parque Tecnológico da UFRJ.Isso vai dar um salto qualitativo naspesquisas sobre fármacos e já marcouum primeiro esforço concreto de arti-culação entre as duas instituições.

Que encaminhamentos foramdecididos no encontro, como vãoinfluenciar para ampliar o papel daciência no Rio de Janeiro?

Leher: Reunimos a equipe de di-reção da Fiocruz e pró-reitores da UFRJe discutimos uma intensa agenda detrabalho que vai envolver os nossos tra-balhos relacionados ao Rio de Janeiro,de como podemos ter uma interaçãomais intensa com os problemas da ci-dade, seja no domínio da vigilânciaepidemiológica, políticas de saúde,questões relacionadas à violência, gê-nero, educação. A presidente Nísia Trin-dade incorporou essa agenda, desde oinício, com muito entusiasmo, respon-sabilidade e dedicação. Temos essamesma disposição na UFRJ, de desen-

volver grupos de trabalho para apre-sentar metodologias de integração, demodo que essas instituições que já sãoirmãs possam interagir de forma muitovigorosa, em benefício do Rio de Ja-neiro e do país. Porque nós produzi-mos conhecimento e formamos profis-sionais de saúde e de outras áreas deforma muito complexa, pensando emgrandes problemas da nação brasilei-ra. Certamente essa é a vocação his-tórica da Fiocruz e da UFRJ em sua pro-dução, é uma agenda muito positivapara o país, para a ciência e para o Riode Janeiro.

O que pode resultar dessa par-ceria em relação à defesa do SUS eda ciência e tecnologia nacionais?

Leher: Temos toda uma pauta emrelação a uma ação mais articuladana defesa institucional do SUS, do pa-trimônio científico-tecnológico do país,das políticas de educação pública e,finalmente, uma agenda que está re-lacionada mais amplamente a todaparte de pesquisas que envolvem asnossas unidades hospitalares, articu-lando a pesquisa básica e a pesquisaclínica. Também definimos como eixomuito importante o compartilhamen-to de infraestrutura de pesquisa, porexemplo, o desenvolvimento de cotu-telas na pós-graduação que espera-mos intensificar onde essa prática jáexiste, mas também queremos, nofuturo próximo, ter dupla diplomaçãoem alguns programas onde já temosuma construção comum, então o di-ploma sairia em nome da UFRJ e daFiocruz. Em suma, é uma agendamuito realista, que vem sendo cons-truída na prática de maneira mais lo-

calizada, mas que nós queremos daragora uma nova dimensão.

Qual o papel desse esforço podeter na otimização de recursos dis-poníveis nas duas instituições?

Leher: Essa é uma questão muitoimportante. A UFRJ dispõe em seus la-boratórios na área da saúde e tambémtecnológica de uma infraestrutura depesquisa que é muito significativa, comsupercomputadores, aparelhos de res-sonância de 900 Mhz, microscópioseletrônicos, e a Fiocruz também temequipamentos muito sofisticados emdiversas áreas. No lugar de comprar-mos equipamentos que já estão dispo-níveis, podemos investir em outras coi-sas e fazer um acordo de trabalhocomum, utilizando a essa infraestrutu-ra, um pesquisador da Fiocruz não pre-cisaria comprar seu aparelho de resso-nância, se já tem na UFRJ, porexemplo. Isso gera uma racionalizaçãodos investimentos.

Queremos trabalhar em conjunto,no sentido de ampliarmos nossas açõesem benefício da sociedade, sem envol-ver a necessidade de aporte de novosrecursos. Ou seja, podemos oferecermais à sociedade com os recursos quejá estão disponíveis. Por exemplo, a Fi-ocruz e a UFRJ podem oferecer uma re-sidência multiprofissional sem gastosadicionais. Podemos tranquilamente de-senvolver estratégias de melhoria da for-mação de professores no Estado do Riode Janeiro, somando esforços, sem queisso envolva a contratação de pessoal.Então, as duas instituições caminhandojuntas certamente poderão atendermelhor aos justos e necessários anseiosda sociedade brasileira.

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O reitor da UFRJ, Roberto Leher, no encontro com dirigentes da Fiocruz

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PRODUÇÃO

Equipe do Laboratóriode Febre Amarela (Lafam)de Bio-Manguinhos/FiocruzFotos: Ascom/Bio-Manguinhos

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disparada de casos defebre amarela na RegiãoSudeste, principalmenteem Minas Gerais e noEspírito Santo, teve gran-

des reflexos na produção de vacinas doInstituto de Tecnologia em Imunobiológi-cos (Bio-Manguinhos/Fiocruz). A necessi-dade de aumentar consideravelmente aoferta da vacina contra a doença mudoua rotina de diversas áreas da unidade.Esse aumento impactou todo o sistemaprodutivo, incluindo setores da Qualida-de e Logístico. No ano passado o Institu-to já havia passado por experiênciasemelhante ao ser acionado pela Orga-nização Mundial da Saúde para ajudarno combate a uma epidemia de febreamarela na África. Acabou sendo um ex-celente teste. Na ocasião, Bio-Mangui-nhos exportou cerca de 5 milhões dedoses. Pouco, diante das 30 milhões dedoses fornecidas ao Ministério da Saúdede dezembro a março deste ano, paraconter o surto nacional. Esse quantitativosupera o que seria entregue durante todoo ano e demostra o empenho de um gru-po de colaboradores, que têm no com-promisso com a saúde pública umamotivação para manter a produção a todovapor.

A epidemia de febre amarela ga-nhou as páginas de praticamente todosos jornais do país. E desde então a pro-cura pela vacina está alta. Para atenderessa demanda, a unidade precisou re-ver o seu planejamento. O Departamentode Vacinas Virais (Devir) intensificou osplantões e adequações de programaçõespara atender a nova demanda, que setornou prioritária na unidade. Essa foi aprincipal mudança na rotina dos colabo-radores da Divisão de Apoio de Virais(DIAPV) e do Laboratório de Febre Ama-rela (Lafam). De acordo com Lívia Quei-roz (DIAPV), “o maior impacto para aequipe foi no aumento da produção delotes de termoestabilizador da vacina e,consequentemente, na quantidade delotes das soluções intermediárias quecompõem o estabilizador”.

Já a gerente do Lafam, Caroline Ra-mirez, explicou que Bio-Manguinhos

Amantém um estoque estratégico de vírusaprovado, o que deixa a unidade em umasituação de razoável conforto. “Amplia-mos os plantões para realizar o descon-gelamento do ingrediente farmacêuticoativo (IFA). O grande esforço é manteresse estoque para continuarmos cobertosem casos de emergência”. A Divisão deFormulação (Difor/DEPFI) atua direta-mente no preparo de soluções interme-diárias/estabilizadores/antibióticosconsumidos na formulação de vacinas ebiofármacos. Além da rotina operacio-nal, a divisão apoia os projetos de me-lhoria da vacina, o que a curto/médioprazo contribuirá para o aumento da ca-pacidade produtiva da unidade, como aexpansão do Departamento de Proces-samento Final (DEPFI).

“Atender as demandas de rotina, etambém as novas, requer um complexoplanejamento de todas as atividades.Temos um grupo composto por 12 cola-boradores que desempenha com gran-de consistência, mesmo que isso envolvatrabalhar aos finais de semana”, contouo gerente do DEPFI, Jorge Mario Xavier.Além da formulação, também faz partedo processamento final da vacina enva-se, liofilização, recravação, inspeciona-mento, rotulagem e embalagem. Etapasque envolvem muitos colaboradores, fun-damentais para que todo o processo ocor-ra de forma eficiente e contínua. A partirda demanda definida pelo Ministério daSaúde, as áreas se reúnem e alinham oquantitativo de lotes por semana, ex-põem suas necessidades e dificuldadese buscam soluções.

“Trabalhamos para disponibilizar asdoses nos postos de saúde para imuni-zar a população (priorizando as áreas derisco) contra uma doença que pode ma-tar”, concluiu o gerente. Uma medidaadotada para reforçar a produção davacina febre amarela foi alterar o plane-jamento em relação a outros imunizan-tes. Com o aumento da procura pelavacina contra a febre amarela, Bio-Man-guinhos suspendeu uma entrega de 14milhões de doses para a ONU. Para darconta da demanda, também interrom-peu momentaneamente a fabricação datríplice viral, deslocando os funcionári-

Gabriella Ponte e Rodrigo Pereira

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os e as máquinas que trabalhavamna imunização contra sarampo, caxum-ba e rubéola para o setor voltado paraa febre amarela.

Foram realizados ajustes em todo pro-cesso produtivo, já que houve aumento daprocura por insumos como frascos, rolhas,embalagens e rótulos. “Alteramos o pla-no-mestre e adiamos a entrega da vacinatríplice viral para priorizar a febre amare-la”, explicou o vice-diretor de Produção,Antônio Barbosa. Porém, ele afirma que amudança no calendário não trará prejuízoà população, já que há estoque do produ-to no Ministério da Saúde.

Também faz parte dessa engrena-gem o Departamento de Controle deQualidade (Dequa). A Seção de Potên-cia (Sepot), parte do Departamento,também teve que tomar uma série demedidas para conseguir realizar umagrande quantidade de testes. Para isso,a gestora da Sepot, Carina dos San-tos, afirmou que foi preciso interfacecom outras áreas e até um esforço ex-tra dos colaboradores.

“O aumento da demanda impactouna interface com compras para viabilizar eotimizar a entrega de insumos utilizadosno teste de potência e no preparo das cé-lulas, realizando até compras emergenci-ais. Foi feita uma avaliação da condiçãofísica dos colaboradores, com sessões dealongamento por conta dos movimentosrepetitivos. Foi necessário, ainda, assumiro produto como prioridade de liberaçãodo setor, inclusive com atividade aos finaisde semana. Para atender ao cronogramade entrega, estamos fazendo reuniões se-manais para motivar os colaboradores aoperar de forma satisfatória com curtosprazos de entrega, transformando de for-ma positiva diariamente o ambiente de tra-balho”, enumerou Carina.

Barbosa explicou que a produçãosegue um rigoroso processo de controlede qualidade. “Apesar de estarmos ope-rando com nossa capacidade máxima,não descuidamos do controle de quali-dade. Estamos sempre passando por au-ditagem da Agência Nacional deVigilância Sanitária e, a cada dois anos,recebemos a visita de técnicos da OMS.Além disso, nossa equipe está semprepassando por cursos de reciclagem. Hápouca margem de erro”, afirmou.

A unidade tem feito reuniões semanais para motivar os colaboradores aoperar de forma satisfatória com curtos prazos de entrega, transformandode forma positiva diariamente o ambiente de trabalhoFotos: Ascom/Bio-Manguinhos

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INOVAÇÃO

ma nova vacina contra afebre amarela foi desen-volvida por pesquisadoresda Fiocruz Pernambuco.Baseada no RNA do vírus

causador da doença, ela foi testada emcamundongos e embora o nível de anti-corpos obtido tenha sido bem menor coma vacina experimental, os resultados daproteção contra a inoculação do vírus va-cinal da febre amarela por via intracere-bral alcançaram 100% de sucesso. Asvantagens do novo imunizante são a pos-sibilidade de ser ofertado para grupos derisco da vacina de vírus atenuado (crian-ças, gestantes, idosos, imunodeprimidose pessoas com alergia a proteínas do ovo)e a capacidade de produção em largaescala. Patenteada pela Fiocruz, a vaci-na precisa ser testada em humanos an-tes de chegar ao mercado.

Desde dezembro do ano passado,o Brasil vive um surto de febre amarela,tendo sido notificados mais de 3,1 milcasos em 17 estados das cinco regiões.Desse total, 729 casos foram confirma-dos e 249 mortes comprovadas, de acor-do com boletim do Ministério da Saúdedivulgado no início de maio. É em mo-mentos como este que a maior cober-tura vacinal do novo produto pode serum benefício a mais para a população.

UFabíola Tavares

Outra vantagem é a maior segu-rança oferecida. “A segurança estáno fato de a imunização ser feita sema presença do vírus vivo, mesmo queenfraquecido, o que torna nula achance de ocorrerem reações adver-sas e provocar óbitos, pelo fato de oDNA ser considerado uma moléculainerte no nosso organismo”, afirmao pesquisador Rafael Dhalia, doutorem biologia molecular. Ele desenvol-veu o imunizante com o também pes-quisador Ernesto Marques. Ambostrabalham no Departamento de Vi-rologia e Terapia Experimental (Lavi-te) da Fiocruz Pernambuco.

A vacina de DNA pode ainda ser pro-duzida em larga escala, em grandes fer-mentadores, com cultura de bactérias.Já a vacina convencional utiliza uma tec-nologia na qual são usados ovos fecun-dados para o cultivo dos vírus usados noimunizante, o que pode ser consideradoum limitante em relação à capacidadede escalonamento da produção.

Antes de poder ser aplicado napopulação, o imunizante criado naFiocruz Pernambuco precisa ser tes-tado em humanos para que sejamasseguradas sua segurança e eficá-cia. “Na etapa de testes a pessoatoma a vacina de DNA e depois de

um tempo recebe a vacina conven-cional. Se após essa segunda aplica-ção o vírus vacinal não se multiplicarno organismo, isso significa dizer quea vacina de DNA é capaz de neutra-lizar a infecção causada pelo vírusda febre amarela”.

A avaliação de anticorpos neutra-lizantes, e desafios com cepas não le-tais da febre amarela, também devemfazer parte desses testes. Nos ensaiospré-clínicos, feitos com 100 camundon-gos de duas espécies, 80 receberam avacina de DNA e 20 não. Após injetaro vírus da febre amarela em todos elessó sobreviveram os que foram imuni-zados, o que revela a mesma eficiênciada vacina convencional nesses animais.Os resultados do teste estão relatadosno artigo A DNA Vaccine against Ye-llow Fever Virus: Development andEvaluation (http://journals.plos.org/plosntds/article?id=10.1371/journal.pntd.0003693),publicado na revista científica PlosNeglected Tropical Diseases. A Fio-cruz, por meio da Coordenação deGestão Tecnológica, contratou a em-presa de conhecimento e inovaçãoWylinka, que está prospectando pos-síveis parceiros comerciais para ostestes clínicos e produção em largaescala dessa nova vacina.

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ENTREVISTA

maior epidemia de febreamarela silvestre já regis-trada no país ligou o sinalde alerta das autoridadesde saúde pública. E for-

mou longas filas nos postos de saúde, prin-cipalmente nas cidades mais atingidas,em Minas Gerais e Espírito Santo. Diantedesse cenário, a preocupação se alastroupara outros estados e a busca pela vacinafebre amarela aumentou. No entanto, aprioridade de vacinação é para quem estápróximo de zonas da mata ou vive emáreas rurais, e pessoas que viajarão paraas regiões endêmicas. Segundo o consul-tor científico do Instituto de Tecnologia emImunobiológicos (Bio-Manguinhos/Fio-cruz), Reinaldo de Menezes Martins, nãohá necessidade de uma corrida aos pos-tos. “Quem não está no perfil recomen-dado nem irá viajar para as regiõesafetadas, e mesmo assim toma a vacina,está se expondo a eventos adversos, semter nenhum benefício imediato”.

ARodrigo Pereira

Esta é a pior epidemia de febreamarela silvestre já registrada nopaís. A que se deve esse fato, vistoque temos a vacina para a doença?

Reinado Martins: A causa foique os moradores de áreas com re-comendação de vacinação não sevacinaram. Veja que os casos se con-centraram em Minas Gerais, umaárea com recomendação de vacina.Isso chama atenção para outro fato.A cobertura vacinal de febre amare-la em Minas antes da epidemia, pelomenos em crianças, era boa. É umailusão achar que somente vacinan-do os bebês irá se resolver o proble-ma. Não vai, porque essa doençatem atingido principalmente adultosdas áreas rurais. A cobertura embebês é boa por que é mais fácil va-ciná-los. As mães levam seus filhosao posto de saúde. Mas vacinar nazona rural é muito mais difícil, cujos

moradores não estão acostumadosa frequentar serviços de saúde e oacesso é complicado. Se a popula-ção das regiões de mata estivessevacinada não haveria epidemia.

Há uma grande preocupação dapopulação diante do número de ca-sos e mortes pela febre amarela, oque faz com que muitos procuremos postos de vacinação. A vacina éindicada para qual público?

Martins: Para os que moram emáreas com recomendação para se va-cinar. Principalmente os adultos, quese expõem mais – por trabalharemno campo ou junto às matas. A febreamarela é para todas as idades, ex-ceto quando houver contraindicação.Os viajantes que vão para essas áre-as também precisam se vacinar. Seseguirmos essa recomendação a epi-demia poderá ser controlada.

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A Organização Mundial da Saú-de (OMS) recomenda uma dose davacina, enquanto no Brasil o Minis-tério da Saúde orienta que as pes-soas tomem duas doses. Por queessa diferença?

Martins: Há vários estudos no Bra-sil mostrando que quando se vacinacrianças contra a febre amarela, es-pecialmente no primeiro ano de vida,a imunogenicidade (capacidade degerar anticorpos) é menor. Então háum questionamento se essa criançade 9 meses de idade, ao alcançar 40anos, ainda estará protegida. É pou-co provável. E mesmo quando há va-cinação em adultos – um grupo quetem uma proteção muito boa –, de-pois de dez anos, cerca de 1/4 já nãotem anticorpos em níveis considera-dos protetores. Então, achamos impru-dente estabelecer apenas uma dose,até por termos a produção local da

vacina. Certamente a escassez devacinas febre amarela em outros paí-ses contribuiu para a decisão da OMS.Mas o órgão diz que a vacinação degrupos especiais precisa ser melhor es-tudada. E aí inclui as crianças.

Há contraindicações para a va-cina da febre amarela?

Martins: Sim, para crianças me-nores de 6 meses, pessoas imunode-primidas e com doenças do timo.Outras pessoas só devem ser vacina-das mediante análise de risco-benefí-cio: aquelas com alergia a ovo egelatina, gestantes, mulheres que es-tejam amamentando nos primeirosseis meses, pessoas com 60 anos oumais e portadores de doenças autoi-munes. Em situações de emergênciaepidemiológica, surtos ou viagempara áreas de risco, o médico deveráavaliar a vacinação para estes grupos.

Quais seriam esses eventosadversos?

Martins: Quando há reação, nor-malmente é reação local ou um mal-estar passageiro. Febre, dores de cabeçae musculares têm sido os eventos maisfrequentes. É uma vacina que normal-mente é muito bem tolerada. No en-tanto, em 1999 identificamos que avacina febre amarela pode provocar umevento adverso grave, que é semelhan-te à própria febre amarela selvagem.Estimamos 1 caso para 400 mil dosesaplicadas. É raro, por isso não se justifi-ca deixar de vacinar. Por outro lado, nãohá sentido oferecer a vacinação em áre-as sem casos da doença. Por isso o Bra-sil tem áreas com e sem recomendaçãode vacina. Só que áreas com recomen-dação estão se expandindo e gradual-mente se aproximam do litoral. Épossível que no futuro sejamos obriga-dos a vacinar toda a população.

O consultor científico Reinaldo Martins Foto: Ascom/Bio-Manguinhos

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o início de 2017 até 24de fevereiro, o Brasilregistrou 326 casos con-firmados de febre ama-rela, com 109 óbitos.

Até o momento, os dados indicam queas notificações estão associadas ao ci-clo silvestre da doença, afetando pes-soas que contraíram o vírus em áreasde mata ou em suas proximidades.Segundo o Ministério da Saúde, os ca-sos de infecção urbanos não ocorremno país desde 1942. Uma das diferen-ças centrais entre as duas formas deaquisição da infecção está nos mosqui-tos que transmitem o vírus da febreamarela em cada ambiente, como ex-plicam pesquisadoras do Instituto Oswal-do Cruz (IOC/Fiocruz). Enquanto nasflorestas insetos dos gêneros Haema-

Dgogus e Sabethes disseminam o agra-vo, nas cidades, o Aedes aegypti, vetorda dengue, zika e chikungunya, tempotencial de transmissão.

”Os mosquitos Haemagogus e Sa-bethes vivem na copa das árvores. Porisso, o alvo preferencial das suas pica-das são os macacos, que compartilhamo mesmo habitat”, relata Dinair Cou-to, pesquisadora do Laboratório deMosquitos Transmissores de Hemato-zoários. Assim, no ciclo silvestre da fe-bre amarela, a circulação do vírus émantida pela interação entre os veto-res e os primatas, que são os principaishospedeiros e amplificadores do vírus:é a partir da picada em primatas infec-tados que mais mosquitos podem con-trair o vírus. Os símios da América doSul são muito sensíveis ao vírus da fe-

Maíra Menezes

INFORMAÇÃO

bre amarela. Eles adoecem de formasemelhante aos seres humanos e fre-quentemente morrem. O óbito de ma-cacos em determinada área é um dosprincipais indícios de circulação do ví-rus na floresta. “Nesse ciclo, a infec-ção humana ocorre de forma acidental.Ao entrar ou se aproximar de uma áreade mata onde há epizootia [mortalida-de de macacos], as pessoas não vaci-nadas podem contrair a infecçãoatravés de picadas de mosquitos Hae-magogus ou Sabethes infectados, queeventualmente descem da copa dasárvores para perto do solo. Sem imuni-dade à doença, elas serão infectadas”,completa Maria Goreti Freitas, pesqui-sadora do mesmo laboratório.

Diferentes espécies de mosquitosdos gêneros Haemagogus e Sabethes

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podem transmitir a febre amarela emambientes silvestres. No Brasil, as maisfrequentes são Haemagogus janthi-nomys e Haemagogus leucocelaenus,insetos considerados vetores primáriosda forma silvestre da doença, uma vezque suas características genéticas, bi-ológicas e comportamentais são favo-ráveis para a transmissão, tornando-oscapazes de desencadear e manter acirculação do vírus. Entre as espéciesdo gênero Sabethes, as mais comunssão Sabethes chloropterus e Sabethesalbiprivus, mosquitos considerados ve-tores secundários do vírus, pois não sãocapazes de sustentar a circulação viralisoladamente, mas podem contribuirpara a sua manutenção. Os dois gêne-ros de insetos podem ser encontradosem florestas de norte a sul do país.

Hábitos eaparência

Visualmente, Haemagogus e Sabe-thes são mosquitos bem diferentes. Noentanto, seus hábitos apresentam se-melhanças. No primeiro grupo, os Hg.leucocelaenus apresentam o tórax co-berto de escamas escuras com umafaixa prateada longitudinal na partesuperior, enquanto os Hg. janthinomystêm o tórax coberto de escamas detonalidade escura, que varia de verde-escuro a azul. “A olho nu, os Haema-gogus se parecem com os Aedes, sendoque os Hg. leucocelaenus se asseme-lham especialmente aos Aedes albo-pictus por terem a mesma listralongitudinal no tórax. A principal dife-

rença é que eles não apresentam lis-tras brancas nas pernas”, destaca Di-nair. Por outro lado, os Sabetheschamam atenção pelo colorido meta-lizado, com tons de violeta, roxo, azule verde.

Os Haemagogus e Sabethes são es-tritamente silvestres, sendo que os Sa-bethes são ainda mais seletivos na suadispersão. Os vetores se concentramnos locais de vegetação preservada eos Haemagogus podem ser encontra-dos ainda na periferia das florestas, naschamadas franjas da mata, onde osSabethes geralmente não se aventu-ram. Hg. leucocelaenus pode voar al-guns quilômetros por descampados,para atingir porções de mata isoladasda ação do homem. Para se reprodu-zir, esses insetos colocam seus ovos

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/IOCnos ocos das árvores e em bambus,

no acúmulo de água formado nos inter-nódios (as conexões entre trechos do cau-le). Assim como os Aedes, os Haemagogusnão depositam seus ovos diretamente nasuperfície aquática, mas sim na paredeinterna do criadouro próximo à lâminad’água. Quando os ovos são submersos,as larvas eclodem e passam a se desen-volver, se alimentado da matéria orgâni-ca presente na água, até se tornarempupas. Cerca de sete a dez dias após aeclosão dos ovos, os Haemagogus che-gam à fase de mosquitos adultos. Já osSabethes lançam seus ovos diretamentesobre a superfície da água e chegam àfase adulta quase um mês depois.

Insetos Haemagogus e Sabethes têmum tempo de vida considerado longo paramosquitos, o que pode favorecer a propa-gação dos vírus. Observações em labora-tório indicam que o tempo de sobrevivênciade ambos ultrapassa meses após os inse-tos atingirem a idade adulta. “Esse fator é

importante porque, uma vez infectado, omosquito permanece portador e capaz detransmitir o vírus da febre amarela durantetoda a vida”, diz Dinair.

Comparaçõescom o Aedes

Insetos Haemagogus e A. aegypticompartilham uma vantagem reprodu-tiva: seus ovos podem permanecer viá-veis no ambiente por períodos de seca,até que a chuva abasteça novamenteos criadouros com água, contribuindopara o nascimento das larvas. A resis-tência à dessecação é menor para osHaemagogus (cerca de quatro meses)do que para os A. aegypti – pode che-gar a um ano. Ainda assim, segundo aspesquisadoras, o período é longo o sufi-ciente para favorecer a continuidade dasespécies em locais com variação na fre-quência de chuvas. Em contrapartida,

os ovos de Sabethes precisam entrar emcontato com a água logo após a postu-ra ou perdem a viabilidade.

Ainda no aspecto reprodutivo, osHg. leucocelaenus têm uma particulari-dade: apenas partes dos seus ovos eclo-de após a primeira submersão em água,enquanto o restante permanece laten-te, pronto para eclodir em submersõessubsequentes. Esse mecanismo faz comque um único lote de ovos dê origem adiversos grupos de mosquitos no decor-rer do tempo, favorecendo a sobrevi-vência da espécie no ambiente por umlongo período. Ao mesmo tempo, con-tribui para a manutenção da circulaçãodo vírus da febre amarela, uma vez queas fêmeas infectadas transmitem o ví-rus para a prole, em um processo cha-mado de transmissão transovariana.

A capacidade de percorrer longasdistâncias também é um diferencial dosHg. leucocelaenus. Esses insetos podemalcançar um raio de dispersão de até 6

Segundo Dinair, algumas características da biologia dos mosquitosHaemagogus, como o tempo de vida longo, podem favorecer atransmissão da febre amarela silvestreFotos: Josué Damacena

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km, distanciando-se bastante dos seuscriadouros. Para comparação, os A.aegypti costumam passar toda a vidaadulta perto dos locais onde nasceram.Pesquisas apontam que em ambientescom alta densidade, com casas muitopróximas, esses mosquitos voam usual-mente num raio de 40 a 50 metros. Jáem regiões sem barreiras, como mon-tanhas, praias ou grandes avenidas, elesatingem até 800 metros.

Haemagogus e Sabethes são mos-quitos diurnos, assim como os A. ae-gypti. No entanto, enquanto a espécieurbana prefere picar no começo damanhã e no final da tarde, os vetoressilvestres apresentam maior atividadedo meio-dia até o pôr do sol, com al-guns estudos indicando dois picos: das12h às 14h e das 16h às 17h. “É inte-ressante observar que esses horários co-incidem, muitas vezes, com a atividadehumana na mata, tanto para trabalho,quanto para lazer”, comenta Goreti.

SazonalidadeA presença do vetor não é o único

fator necessário para a ocorrência decasos de febre amarela. Para que a do-ença seja disseminada é preciso havertambém vírus em circulação e indivídu-os suscetíveis, que possam ser infecta-dos. Considerando esse tripé, os registrosde febre amarela em áreas silvestrescostumam ter um caráter sazonal, comocorrência de surtos maiores em inter-valos de cinco a dez anos. Geralmente,os casos acontecem entre dezembro emaio, meses chuvosos em grande partedo Brasil, o que favorece a proliferaçãodos vetores. Além disso, embora hajaregistros da doença anualmente, epizo-otias de maior escala são observadas emintervalos de cinco a dez anos. Isso ocor-re porque, após um surto, grande partedos primatas infectados morre e aquelesque sobrevivem adquirem imunidade parao resto da vida. Com isso, a circulaçãoda doença se torna limitada pela ausên-cia de indivíduos suscetíveis e só volta acrescer conforme o número de macacosjovens, que não tiveram contato com oagravo, aumenta.

Importânciada prevenção

”Quando ocorre uma grande epizoo-tia, o risco de ocorrerem casos humanosaumenta, pois a circulação do vírus se tor-na mais intensa. Porém, é importantedestacar que, diferentemente dos animais,as pessoas possuem um meio eficaz dese prevenir: a vacina”, enfatiza Dinair.Considerando a área de circulação do ví-rus, a vacinação de rotina é recomenda-da em 19 estados. Além disso, por causado aumento no número de casos registra-dos no Sudeste desde o início do ano, háindicação temporária de imunização parao oeste do Espírito Santo, noroeste do Riode Janeiro e oeste da Bahia. A lista demunicípios com recomendação de vacinapode ser conferida no site do Ministérioda Saúde. Pessoas que vão viajar para es-tas localidades também devem se vaci-nar com, pelo menos, dez dias deantecedência.

De acordo com Goreti, alémde seguir as recomendaçõespara imunização, é importan-te intensificar o combate aoA. aegypti nas cidades, paraprevenir um possível retornoda forma urbana da febreamarela. “Teoricamente, atransmissão do agravo noambiente urbano pode vir aocorrer se uma pessoa doen-te for picada por um A. aegypti.Portanto, combater o mosquito éfundamental para reduzir o ris-co da reintrodução, assimcomo para enfrentar adengue, a zika e a chi-kungunya”, diz a pes-quisadora, lembrandoque eliminar os criadouros é uma dasprincipais formas de atacar o vetor. “Di-ferentemente das espécies silvestres,que colocam seus ovos nos ocos das ár-vores, o A. aegypti prefere os criadou-ros artificiais, comuns no ambienteurbano. Por isso, é preciso vedar as cai-xas d’águas, colocar tela nos ralos e guar-dar adequadamente os objetos quepodem acumular água”, orienta ela.

Os mosquitosHaemagogus, como oHg. leucocelaenus, sãovetores primários dafebre amarela silvestreFotos: Josué Damacena

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O que significa o Ano OswaldoCruz?

Nísia Trindade Lima: O AnoOswaldo Cruz busca ressaltar todacontribuição deste sanitarista e gran-de cientista brasileiro que teve comoseu maior legado o início do proces-so de constituição da FundaçãoOswaldo Cruz. Devemos sim celebraros grandes cientistas da história bra-sileira que se comprometeram coma nação e com o bem-estar de nossopovo, o que se torna ainda mais im-portante neste momento pelo qualpassa o país.

Estamos um momento de profundastransformações econômicas, sociais, tec-nológicas e nas formas de organizaçãodo Estado, o que traz um enorme desa-fio para pensar o futuro. Como este éincerto, não passível de redução a cál-culos de probabilidade, o estudo e o co-nhecimento de nossa história, de nossopaís, de nossa instituição e do contextointernacional tornam-se os elementosessenciais que fornecem as pistas paraum projeto de futuro.

O futuro não se constrói apenasa partir dos desejos abstratos. Nãoconseguimos pensar o Brasil sem con-

I

siderar que fomos um dos últimos pa-íses do mundo a abolir a escravidãoe que somente recentemente foi cri-ada uma institucionalidade na qual obem-estar passou a fazer parte de umprojeto de desenvolvimento. No in-terior da Fiocruz, este legado, quealiou ciência, educação, tecnologiae saúde, foi uma conquista iniciadacom Oswaldo Cruz e que passou pormuitos de nossos grandes cientistas,a exemplo de Carlos Chagas. Maisrecentemente, Sergio Arouca forne-ceu novos pilares para este projetoinstitucional, incorporando o legadode nossos “fundadores” e avançan-do para o contexto de um Estado euma instituição democrática e com-prometida com a sociedade, o SUS ea ciência, tecnologia e inovação.

Deste modo, o Ano Oswaldo Cruzé ao mesmo tempo a celebração deum legado e a assunção de um com-promisso com o futuro, tendo o bem-estar de nossa população como objetivoestratégico e as atividades de alta qua-lidade em ciência, tecnológica e ino-vação como um meio único paraalcançarmos o desenvolvimento soci-al, econômico e ambiental na socie-dade do conhecimento.

Quais serão os eixos temáticosdo evento?

Nísia: São oito: promoção da ci-ência, tecnologia e inovação em be-nefício da sociedade e a serviço davida; a importância do papel de umainstituição pública na produção e ino-vação em saúde; Fiocruz na articula-ção do sistema de ciência, tecnologiae inovação, nas dimensões regional,nacional e global; desafios dos obje-tivos de desenvolvimento sustentável;políticas e estratégias de saúde: pas-sado, presente e futuro com perspec-tivas ao fortalecimento do SUS;preparação da Fiocruz para a 4ª re-volução tecnológica; a Fiocruz e aeducação permanente; e democra-cia e perspectiva nacional na pros-pecção institucional.

O que será apresentado na ex-posição a ser montada na Câmarados Deputados?

Nísia: A exposição, além de levarpara nossa esfera de representação polí-tica, o maior conhecimento de nossa his-tória e de nossas grandes conquistas paraa humanidade e para o país, terá o desa-fio de mostrar como o sistema Fiocruz,

ESPECIAL

nstituído em março de 2017, o Ano Oswaldo Cruz - 100anos do legado de Oswaldo Cruz - O papel da ciência e dasaúde no projeto nacional, vai mobilizar toda a Fundaçãoem atividades que ocorrerão nos próximos meses. O proje-to, que tem oito eixos temáticos, também será responsável

por uma exposição na Câmara dos Deputados. Em entrevista, a presidenteda Fiocruz, Nísia Trindade Lima, aborda o significado do Ano OswaldoCruz e comenta a importância do cientista para o país. Segundo ela, oAno Oswaldo Cruz é, ao mesmo tempo, a celebração de um legado e aassunção de um compromisso com o futuro, tendo o bem-estar da popu-lação como objetivo estratégico.

Ano OswaldoCruz: celebraçãoe compromisso

Foto: Peter Ilicciev

A presidente da Fiocruz, Nísia Trindade

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que alia conhecimento, educação, ino-vação e produção de bens e serviços,constitui um patrimônio nacional únicoque deve ser orgulho dos brasileiros. Naprimeira parte da mostra serão apresen-tadas a trajetória e contribuições de Oswal-do Cruz e, na segunda parte, ressaltadaa contribuição da Fiocruz, como institui-ção de Estado comprometida com o SUS.Como decorrência, a exposição se inserenuma perspectiva ambiciosa de evidenci-ar o valor que possuímos como instituiçãopública de C&T&I e como podemos con-tribuir para a sociedade brasileira e parao avanço social, econômico e democráti-co de um projeto nacional que seja sus-tentável em suas múltiplas vertentes.

Qual o legado de Oswaldo Cruz?

Nísia: Como já mencionei, o legadode Oswaldo Cruz é a Fiocruz para a po-pulação brasileira, ou seja, a criação deuma instituição que alia ciência, tecnolo-gia (na fabricação de produtos biológicos,como vacinas e fármacos), educação, saú-de e projetos nacionais. Uma marca his-tórica da Fiocruz, e por isso muito forte,tem origem nessa matriz institucional de-senhada pela primeira geração de cien-tistas que Oswaldo Cruz reuniu emManguinhos, ou seja, o nosso compro-misso com a apropriação dos conhecimen-tos aqui gerados para a formulação depolíticas públicas de saúde.

Devemos lembrar que o InstitutoSoroterápico Federal, fundado em1900, e transformado em 1908 em Ins-tituto Oswaldo Cruz, foi criado comoresposta a uma grande emergênciasanitária: a necessidade de produzirsoro contra a peste bubônica que ha-via chegado a Santos e ameaçava aentão capital federal, o Rio de Janeiro.Oswaldo Cruz, como diretor do Institu-to Oswaldo Cruz e diretor-geral de Saú-de Pública, ampliou a agenda depesquisa institucional e induziu produ-ção de conhecimento em áreas diver-sas, como a microbiologia e a medicinatropical, tornando a instituição capazde atuar também no controle à epide-mia de febre amarela que assolava oRio de Janeiro no início do século 20.A Fiocruz, como sabemos, continuaempenhada e capacitada a dar respos-tas à sociedade brasileira, na forma deconhecimento científico, insumos e

atenção primária à saúde, nas situa-ções de emergência sanitária, tal comovimos no quadro recente e gravíssimoda tríplice epidemia de dengue, zika echicungunya, mas também na reemer-gência da febre amarela.

A matriz institucional criada porOswaldo Cruz, no entanto, não se re-vela apenas nas diversas atribuiçõesinstitucionais em pesquisa, produção eensino, ou nos episódios de epidemi-as, na capacidade de responder a umaemergência sanitária. Outro traço his-tórico muito relevante é a presençanacional da Fiocruz. Existem unidades

da Fundação em todas as regiões doBrasil. A presença da instituição no ter-ritório brasileiro começou com expedi-ções científicas, também nas primeirasdécadas do século 20, que acompanha-ram a expansão do Estado nacional bra-sileiro em obras para a modernizaçãode sua infraestrutura, ou seja, constru-ção de ferrovias, projetos de desenvol-vimento regional na Amazônia, obrascontra as secas no Nordeste etc. A baseinstitucional, então existente, permitiu,mais uma vez, a conjugação entre pes-quisa de laboratório, trabalho clínico eexpertise para trabalho de campo feitonos canteiros de obras. O papel da ins-tituição nessas expedições foi fundamen-tal para consolidar a medicina tropicalcomo disciplina científica, mas tambémpara fortalecer o seu protagonismo nosdebates referentes à saúde pública,como no movimento sanitarista dos anos1920, que buscava a implementação depolíticas federais de saúde, como a cri-ação de um Ministério da Saúde, e naformulação de projetos nacionais de de-

senvolvimento. Em suma, essa é a ma-triz que nos orgulha, inspira e desafia aaprimorar a instituição e suas diferen-tes áreas de atuação, para a promoçãoda saúde da população, o fortalecimen-to do SUS e de políticas de C&T&I e dodesenvolvimento autônomo do país.

Como analisa a saúde e a ciên-cia brasileiras cem anos após amorte do patrono da Fiocruz?

Nísia: O nosso país passou por pro-fundas transformações. Tornou-se urba-no e industrializado, constituiu umsistema de C&T robusto e nacional e,mais importante, avançamos na com-preensão da saúde como um dever doEstado, tendo o SUS o papel de garan-tir princípios da Constituição de 1988,vinculados à universalidade, à integra-lidade e à equidade. No presente, coma crise nacional e também global, háo grande desafio de, frente a pensa-mentos mais restritos de ajuste, aju-darmos a atualizar o papel da Fiocruznum novo projeto nacional que sejaao mesmo tempo dinâmico, inclusivoe sustentável.

A saúde, a ciência e a tecnologiadevem ser pilares essenciais desta novaestratégia. Não se enfrenta a criseolhando para trás e numa perspectivade passividade e de medo. A liçãomaior de Oswaldo Cruz e de nossosgrandes fundadores é o olhar para fren-te como base para nossa ação no pre-sente. É tratar esta diversidade do paíscomo riqueza. É resgatar o projeto damais vibrante democracia do mundo.É aproveitar a pulsão inovadora denosso povo excluído, mas a quem nãofalta luta e criatividade, quando asamarras de nossa história são enfren-tadas para nos deixar avançar.

Desacorrentar a criatividade, aciência, a saúde, a educação liberta-dora e a inovação, em bases partici-pativas e democráticas, faz parte denosso horizonte estratégico. A saídada crise nos impõe o desafio de pen-sar e fazer o futuro a partir de nossahistória e, ao mesmo tempo, nos cha-ma para a ousadia de não nos ames-quinharmos nos grilhões do passado.A Fiocruz foi o maior legado de Oswal-do Cruz. A ousadia para o novo, asua principal lição.

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uando, em 8 de marçode 1908, Oswaldo Cruzredigiu as linhas que in-formavam ao presiden-te da República Afonso

Pena o cumprimento do compromissode debelar em três anos a epidemiade febre amarela que se alastrava peloRio de Janeiro, teria ele imaginado quea então capital brasileira poderia embreve voltar a ser atingida por um novosurto da doença? Certamente, sim. Ocientista sabia do risco de um revés ealertava para a importância de se man-ter as ações de profilaxia e a “maisrigorosa vigilância”. Oswaldo Cruzmorreu em 11 de fevereiro de 1917sem testemunhar o surto que se aba-

QGlauber Gonçalves

teu sobre a cidade em 1928. De lápara cá, porém, a história tomou ru-mos que Oswaldo Cruz dificilmentesuporia: cem anos após a sua morte,o Rio de Janeiro, já não mais sede dogoverno federal, vive novamente aapreensão de ter a febre amarela ba-tendo a suas portas.

Nesta efeméride, a Revista de Man-guinhos revisita a trajetória de OswaldoCruz para discutir o legado deixado pelocientista e por seus contemporâneos.Diante de antigas e novas emergênciassanitárias, como febre amarela, dengue,zika e chikungunya – que desafiam acidade-vitrine do Brasil e outras regiõesdo território nacional –, é inevitável sequestionar por que o país parece patinar

no combate ao Aedes aegypti e a doen-ças por ele transmitidas, a despeito dosêxitos obtidos pelos seus cientistas noinício do século passado e dos avançoscientíficos e tecnológicos que se sucede-ram desde então. Apesar dos percalços,historiadores apontam que é justamentea herança deixada pela geração deOswaldo Cruz que continua a contribuirpara o enfrentamento dessas mazelas eguiar políticas de saúde pública.

Um olhar sobre o contexto sanitárioda virada do século 19 paro o 20 permi-te vislumbrar um padrão que se repeteao longo da história brasileira: a inexis-tência de uma política de investimentoem ciência de longo prazo. Diante daameaça da chegada da peste bubônicaà capital federal, criou-se o Instituto So-roterápico Federal – embrião da atualFiocruz. Seu escopo inicial era relativa-mente restrito: produzir localmente so-ros e vacinas, até então importados, paraenfrentar a doença. “Em geral, nos paí-ses periféricos, não se dá grande aten-ção à ciência e à tecnologia. O Estadobrasileiro caracteristicamente atendemais a emergências. Corremos semprepara apagar fogo. A saúde pública foiconstituída a partir do evento de epide-mias de doenças transmissíveis que exi-giram uma resposta do Estado”, afirmao historiador da Casa de Oswaldo Cruz(COC/Fiocruz) Carlos Fidelis da Ponte.

Passados os primeiros anos de forteturbulência política e econômica da Pri-meira República, o país via surgir um pro-cesso de industrialização e de forteexpansão da agricultura de exportação.Imigrantes chegavam em massa. O qua-dro sanitário das grandes cidades brasi-leiras, naquela altura, atingira um pontocrítico. Doenças como febre amarela,peste bubônica, varíola e tuberculose re-presentavam ameaças concretas ao de-senvolvimento do Brasil. Por conta dasepidemias que o atingiam, o Rio de Ja-neiro gozava de má fama internacional-mente: a cidade era vista como umdestino em que a probabilidade de semorrer acometido de uma enfermidadeera elevada. Com a maior estabilidadefinanceira e política alcançada, estabe-leciam-se as condições para que essesproblemas fossem enfrentados, especi-almente na capital federal.

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Um lugarpara aciência

nacionalChamado a integrar

os quadros do InstitutoSoroterápico Federalquando da sua criaçãoem 1900, Oswaldo Cruz,juntamente com seu gru-po, viu na instituiçãouma oportunidade que iamuito além da produçãode vacinas e soros con-tra a peste. “Com a che-gada da peste bubônica,abre-se uma chance parao projeto defendido pelogrupo de Oswaldo Cruz,que é muito mais ambi-cioso e muito mais vastodo que isso”, afirma o his-toriador Jaime Benchimol,da COC, que inclui na lis-ta de interlocutores deOswaldo Cruz nomescomo Francisco Fajardo,Eduardo Chapot Prévoste Adolpho Lutz. “Essegrupo tem um projeto de

modernizar a saú-de, introduzir amicrobiologia ecriar um espaçoadequado não sópara a instrumen-talização desseconhecimento,mas para que apesquisa pudesseser uma carreirareconhecida peloEstado”.

Se havia in-teresse econô-mico em aportarrecursos paraacabar com asdoenças queabatiam vidasno Rio de Ja-neiro no co-

meço do século 20, nada garantia queeles continuariam disponíveis para ma-nutenção da instituição vislumbrada porOswaldo Cruz no longo prazo. Essa ques-tão não escapou ao olhar do cientista,que atuou para forjar um sustentáculopolítico e financeiro para o Instituto queestava erigindo. Possivelmente, sem doisdos mecanismos incluídos pelo cientistano estatuto da instituição, ela não teriaevoluído para se tornar o que hoje é aFundação Oswaldo Cruz.

O primeiro mecanismo retirou o Ins-tituto da alçada da Diretoria-Geral de Saú-de Pública e subordinou-a diretamenteao na época intitulado Ministério de Jus-tiça e Negócios Interiores. Ao mesmotempo, Oswaldo Cruz conseguiu apro-var a possibilidade de geração de rendaprópria pelo Instituto. As receitas come-çaram a entrar com o desenvolvimentode uma vacina contra a chamada pesteda manqueira, que ameaçava o reba-nho bovino brasileiro na ocasião. Embo-ra continuasse a depender de verbasgovernamentais, o Instituto aproximou-se, com isso, da autossuficiência. “Istofoi de uma grande sagacidade. O grupo[do qual fazia parte Oswaldo Cruz] tinhaum projeto paralelo e lutou para imple-mentá-lo. Queriam transformar o peque-no e tosco laboratório soroterápico emum grande instituto de medicina experi-mental semelhante ao instituto Pasteurde Paris”, explica Benchimol.

À frente da Diretoria-Geral de Saú-de Pública, Oswaldo Cruz liderou tam-bém o combate à varíola e à febreamarela, que junto à peste bubônicacompunham a tríplice epidemia queassolava o Rio de Janeiro. A conjuntu-ra da época facilitou que medidas con-sideradas impopulares fossem tomadas:vivia-se sob um regime com fortes tra-ços autoritários. A lei da vacina obri-gatória, estratégia para vencer avaríola, tinha caráter draconiano. Semo certificado de imunização, conseguirum emprego – ou até mesmo se casar– era praticamente impossível. Ao mes-mo tempo, moradores de cortiços dasregiões centrais da capital federalviam-se impotentes diante das demo-lições levadas a cabo como parte dasreformas urbanas empreendidas no Riode Janeiro. “Foi um grau de interfe-

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rência do poder público na vida priva-da das pessoas como nunca houveraantes. Isso vai gerar uma reação muitoforte e violenta de insatisfação e des-contentamento”, afirma Benchimol.

Ousadia:Oswaldo Cruzencampa a teoriado mosquito

As contestações a Oswaldo Cruznão vinham apenas da população. Opróprio governo tinha reticências a umpilar importante das ações levadas adi-ante no front de combate à febre ama-rela. Nas últimas décadas do século 19,diversos países da América não viamuma saída do atoleiro que a doençarepresentava. Teorias rivais que tenta-vam explicar a doença disputavam es-paço. A virada se deu na passagempara o século 20, quando a chamadateoria havanesa, proposta por CarlosFinlay, foi referendada por uma comis-são norte-americana. Os estudos docubano apontavam que eram osmosquitos os responsáveis pela trans-missão da febre amarela: o inseto ex-trairia o germe da enfermidade dodoente e o inocularia em outra pessoaque, então, a contrairia.

Na esteira da chancela da Comis-são Reed, em uma investida ousada,Oswaldo Cruz encampou a teoria deFinlay, embora ainda se estivesse lon-ge de sua comprovação absoluta doponto de vista científico. Não se sabiaque espécie de mosquito exatamentetransmitia a doença nem qual era oseu agente transmissor, por exemplo.

“Oswaldo Cruz, correndo muito ris-co, resolver direcionar todo o esforçode combate à febre amarela à luz des-sa teoria. A campanha dele vai inclusi-ve ajudar no processo de demonstraçãode validade dessa teoria”, diz Benchi-mol. “O [então presidente] RodriguesAlves acende uma vela para cada lado.Deixa Oswaldo Cruz colocar a teoriahavanesa em prática e, ao mesmo,tempo implementa aquilo que os ve-lhos higienistas propunham, que era

arrombar a cidade e eliminar todas asfontes possíveis de miasma”, acrescen-ta o historiador em alusão às reformasurbanas levadas a cabo pelo engenhei-ro Francisco Pereira Passos, prefeito doRio de Janeiro entre 1902 e 1906.

A campanha da febre amarela seorganizou em moldes militares. O ser-viço de profilaxia específico para ocombate à doença organizou-se embrigadas. Quando um foco do mos-quito era identificado, equipes eramdeslocadas. A primeira providênciaera isolar o doente. O objetivo eraquebrar a conexão entre o inseto e odoente. Se o paciente fosse po-bre, era levado ao hospital deSão Sebastião. Os de classesmais abastadas, por outrolado, desfrutavam de um tra-tamento diferenciado: imedi-atamente construía-se ao redorde sua cama uma estrutura demadeira com tela para evitarque o mosquito se infectasseno doente. Calafetava-se acasa inteira, cobria-se o telha-do com pano de algodão e jo-gava-se pó de pireto para mataros mosquitos. Os que sobrevivi-am eram aniquilados com aqueima de enxofre. Outro gru-po se encarregava das larvas:aplicavam uma combinação depireto e querosene na água paramata-las. Nas áreas públicas, ogás Clayton, feito à base de en-xofre, era injetado nas canaliza-ções de esgoto.

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Preocupação com osgrandes problemasnacionais

Os problemas sanitários do Rio de Ja-neiro compunham apenas uma parte daspreocupações de Oswaldo Cruz, no en-tanto. Com as campanhas encaminha-das na capital, o cientista e seus pares doInstituto de Manguinhos voltaram

seus olhares para outras regiões. “Quan-do debelou os surtos epidêmicos na cida-de do Rio, Oswaldo Cruz se dirigiu aointerior e aos portos. Eles descobriram ma-zelas, entre as quais a doença de Cha-gas, mas também se colocaram como parteda solução”, afirma Carlos Fidelis. “Eletinha uma visão muito atenta do quadrosanitário e político. Ele não fazia ciênciapela ciência, mas uma ciência voltadapara os problemas do Brasil. Achava que,

se não tivesse contatocom isso, a instituiçãoperdia a razão de ser.”

Menos de um anodepois de enfrentar esuperar a Revolta daVacina no Rio, OswaldoCruz embarcou a bor-do do navio Repúblicapara uma série de visi-tas aos portos da Re-gião Norte do Brasil, em1905. O levante popu-lar teve como origema obrigatoriedade devacinação da popula-ção do Rio de Janeiro,capital federal, contraa varíola em 1904.Durante seis meses da

expedição sanitária aos por-tos marítimos e fluviais, ocientista fez anotações de-talhadas da passagem porcada porto, mostrando-seum verdadeiro cronista: foialém de impressões sobreas condições de saúde nascidades, sobre sua arquite-tura e topografia. Em car-tas enviadas à mulher,

Emília, ele relatou há-bitos e costumes doshabitantes de lugarescomo Vitória, Porto Se-guro, Salvador, Araca-ju, Maceió e Manaus.

“Além de registrarimpressões sobre ascondições de saúde rei-nantes nas cidades vi-sitadas, sua arquiteturae topografia, o cientis-ta comentava os hábi-tos e costumes de seus

habitantes, seus modos de vestir e falar”,afirma a historiadora da Casa de Oswal-do Cruz Ana Luce Girão. Tampouco es-caparam à observação de Oswaldo Cruzo comportamento de personagens que co-nhecia de porto em porto, fossem autori-dades, membros das elites locais ou gentesimples do povo. Alguns relatos e comen-tários dão a impressão de que, transcorri-do mais de um século das andanças docientista, alguns problemas – bem comosuas raízes – parecem imutáveis.

“É nítida a aversão que OswaldoCruz começava a desenvolver por políti-cos locais que não se ocupavam com osaneamento da região que governavam,empregando dinheiro público em provei-to próprio e na construção de suas car-reiras políticas sobre bases clientelísticas.Ao elogiar a firmeza de caráter de al-gum político, no entanto, o cientista fazquestão de realçar a excepcionalidadedessa virtude”, comenta Ana Luce.

Fiocruz: legadoconstruído porOswaldo Cruzmantémprotagonismo

Os paralelos com o passado in-dicam que o país parece ter ignora-do algumas lições que poderia teraprendido ao longo de sua história.“Estamos enfrentando isso de novo[surto de febre amarela] porque in-felizmente os dirigentes políticos doEstado colocam os interesses e apragmática clientelística acima dasquestões de competência e de téc-nica. Entregam-se órgãos que deveri-am ser conduzidos por esse patrimônioinestimável de bons sanitaristas e ci-entistas, pessoas que tem o know-how, a gente medíocre que vai usaressas estruturas em proveito do jogopolítico eleitoral mais rasteiro que sepossa imaginar”, critica Benchimol.“Nas horas de crise, o que acaba sal-vando é o legado de Oswaldo Cruz– uma Fundação Oswaldo Cruz, umInstituto Evandro Chagas, institui-ções científicas que rapidamentedão respostas”.

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Embora o legado associadoa Oswaldo Cruz seja uma cons-trução de uma ampla rede de ci-entistas e médicos, historiadoresreconhecem certa inevitabilidadede um mecanismo presente nosenso comum e em parte da his-toriografia: o apagamento do as-pecto coletivo da criação e avinculação dos feitos a um únicopersonagem. Esse processo aca-ba por desempenhar uma funçãoideológica. “Foi usado para indu-zir valores cívicos nas crianças nasescolas, mas é também acionadoquando os funcionários da Fiocruzvão às ruas para pleitear mais apoioà ciência e à saúde, defender oSUS. Hasteia-se, então, o Oswal-do Cruz. Essa figura mitológicacarregada de significados é usadacom variadas finalidades e em vari-ados contextos. E isso só é possí-vel dada a magnitude e aimportância do trabalho que foicriado naquele momento. Ele foium divisor de águas. Estamos aquinesta instituição portentosa, que éo seu legado mais evidente”.

Para o historiador Carlos Henri-que Paiva, da Casa de Oswaldo Cruz,a geração mais recente da ReformaSanitária – aquela que concebeu oSUS – operou sob determinadaspremissas cuja origem remonta aoperíodo de Oswaldo Cruz. Umadelas diz respeito ao papel do Es-tado na sua relação com a saúdepública. “A saúde como um as-sunto público e digno de interven-ção estatal é uma construção sociale política que remonta ao iníciodo século passado. A atuação deOswaldo Cruz e de contemporâ-neos, figuras como Carlos Chagase Belisário Pena, foi fundamentalpara que essa relação se estabele-cesse não só em termos institucio-nais, mas também para que seconvertesse em uma espécie de tra-dição na organização da saúdepública nacional. Daquela épocaem diante, a relação Estado e saú-de pública se converteria em umaespécie de obviedade à qual a ge-ração do SUS não só se assentaria,mas dela se beneficiaria”, analisa.

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médico e cientista Oswal-do Gonçalves Cruz nas-ceu em São Luís doParaitinga (SP), em 5 deagosto de 1872. Filho de

Bento Gonçalves Cruz e Amália Bu-lhões Cruz, graduou-se na Faculdadede Medicina do Rio de janeiro em1892, apresentando a tese de douto-ramento A vehiculação microbianapelas águas. Dois anos depois, a con-vite de Egydio Salles Guerra, que setornaria seu amigo e biógrafo, traba-lhou na Policlínica Geral do Rio de Ja-neiro, onde era responsável pelamontagem e a chefia do laboratóriode análises clínicas.

Em 1897 Oswaldo Cruz viajoupara Paris, onde permaneceu por doisanos estudando microbiologia, soro-

OHaendel Gomes

A trajetória do médico dedicado à ciênciaterapia e imunologia, no Instituto Pas-teur, e medicina legal no Instituto deToxicologia. Retornando da capitalfrancesa, o médico reassumiu o car-go na Policlínica Geral e juntou-se àcomissão de Eduardo Chapot-Prévostpara estudar a mortandade de ratosque gerou surto de peste bubônicaem Santos.

De volta ao Rio de Janeiro, assu-miu a direção técnica do Instituto So-roterápico Federal, que era construídona Fazenda Manguinhos. A instituição,sob o comando do barão de PedroAffonso, proprietário do Instituto Vací-nico Municipal, foi fundada em 1900.Dois anos depois, Oswaldo Cruz assu-miu a direção do Instituto e, no anoseguinte, chegou ao comando da Di-retoria-Geral de Saúde Pública (DGSP).

O desafio não era pequeno. O jo-vem médico e cientista teve que em-preender uma campanha sanitária decombate às principais doenças da ca-pital federal: febre amarela, pestebubônica e varíola. Para isso, adotoumétodos como o isolamento dos do-entes, a notificação compulsória doscasos positivos, a captura dos vetores– mosquitos e ratos –, e a desinfec-ção das moradias em áreas de focos.Em 1904, enfrentou uma rebelião, aRevolta da Vacina, que durou uma se-mana e teve como estopim a aprova-ção da lei da vacinação antivariólicaobrigatória. Apesar da crise, entre1905 e 1906, Oswaldo Cruz empre-endeu uma expedição a 30 portosmarítimos e fluviais de Norte a Sul dopaís para estabelecer um código sani-tário com regras internacionais.

A luta contra as doenças ganhoureconhecimento internacional em1907, quando Oswaldo Cruz recebeua medalha de ouro no 14º Congres-so Internacional de Higiene e Demo-grafia de Berlim, na Alemanha. Em1908 o sanitarista foi recepcionadocomo herói nacional e, no ano se-guinte, o instituto passou a levar seunome. Com a equipe do InstitutoOswaldo Cruz (IOC) fez o levanta-mento das condições sanitárias dointerior do país. Em 1910 combateua malária durante a construção daFerrovia Madeira-Mamoré (viajou aRondônia com Belisário Penna), e afebre amarela, a convite do gover-no do Pará.

Oswaldo Cruz ingressou na Aca-demia Brasileira de Letras e recebeuo título de oficial da Ordem Nacionalda Legião de Honra da França. Dei-xou o comando do IOC em 1916, emconsequência de sua doença renal.Em Petrópolis, tornou-se prefeito pornomeação do presidente Nilo Peça-nha. Em 11 de fevereiro de 1917,com o agravamento da doença,Oswaldo Cruz morreu na cidade ser-rana do Rio de Janeiro.

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HeróiIncluir Oswaldo Cruz no Livro dos Heróisda Pátria é homenagem devida, afirmahistoriadora sobre projeto do Senado

Fábio Iglesias e Haendel Gomes

é eterna na ciência”, disse ahistoriadora Nara Azevedoao lembrar a frase raciona-lista eternizada por OswaldoCruz para defini-lo. Em en-

trevista, a ex-diretora da Casa de Oswal-do Cruz (COC/Fiocruz) – autora do livroOswaldo Cruz, a construção de um mitona ciência brasileira – comentou ainda oprojeto de lei que tramita no Senado Fe-deral para incluir o nome do patrono daFiocruz no Livro dos Heróis da Pátria daNação, o mesmo que homenageia Tira-dentes e outros símbolos nacionais. Uma“homenagem devida”, afirmou.

A pesquisadora discorreu ainda sobrea importância de Belisário Pena para a cons-trução da imagem mítica em torno deOswaldo Cruz. Um ano após a morte dosanitarista, em 1918, ele criou a Liga Pró-Saneamento do Brasil, que tinha comoobjetivo promover uma mudança na saú-de. “A reforma que eles pretendiam eraassumida pelo Governo Federal porque,nesse movimento de natureza política, aideia era criar um Ministério da Saúde quetivesse abrangência nacional”, explicou.Nara abordou a trajetória do cientista, aimportância que teve para as políticas pú-blicas e seu trabalho à frente da Diretoria-Geral de Saúde Pública (DGSP), bem comosua representação política, científica e cul-tural para o país.

da Pátria

F“

ESPECIAL

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Em seu livro Oswaldo Cruz, aconstrução de um mito na ciênciabrasileira a senhora afirma que aintenção dos cientistas de Mangui-nhos, ao levar adiante o processode mitificação do sanitarista, era ade mobilizar a sociedade, principal-mente a classe política, em tornodos ideais sanitaristas. De que ma-neira isso ajudou a consolidar avan-ços na saúde pública brasileira na-quele início de século 20?

Nara Azevedo: Ajudou muito, masnão foi o único elemento. Depois damorte de Oswaldo Cruz, o papel quehavia desempenhado para tentar mi-nimizar os problemas de epidemias nacapital federal contribuiu para a sensi-bilização da classe política e intelectu-al, como Monteiro Lobato. Até então,sua obra [Urupês, com o personagem]do Jeca, falava sobre os homens po-bres brasileiros; tinha um conteúdo ra-cista enorme. Jeca estava condenadoà miséria, à doença. Acho que essepersonagem representa muito bem o

que se pensava da população brasilei-ra. E não se pode desvincular a ima-gem da população dessa maneira por-que tínhamos acabado de sair doregime escravocrata. Belisário Pena,médico que acompanha Oswaldo Cruzdesde a campanha da febre amarelaem 1904, é o organizador do movi-mento de mitificação de sua figura ecria, um ano depois da morte do cien-tista, a Liga Pró-Saneamento do Brasil.Oswaldo Cruz é o patrono da Liga, cujoobjetivo é promover uma mudança,uma reforma na saúde brasileira. Areforma que eles pretendiam era assu-mida pelo Governo Federal porque,nesse movimento de natureza política,a ideia era criar um Ministério da Saú-de, que tivesse abrangência nacional.Era quase como se o Jeca fosse o alvocentral desse movimento, representan-do a vítima das endemias rurais, asprincipais doenças da nação. Não eraverdade, mas achavam que era. Do-ença de Chagas, ancilostomose, ma-lária, por exemplo, deveriam ser com-batidas pela Liga e o futuro Ministério.

Não podemos esquecer que esseé o contexto do pós-guerra, da Pri-meira Guerra Mundial, e existe umgrande movimento nacionalista capi-taneado por uma camada intelectu-al e política, à qual sanitaristas emédicos vão se articular. Então, o dis-curso sobre Oswaldo Cruz, o “sanea-dor do Rio de Janeiro”, o “fundadorda medicina experimental”, que sãoas imagens que consegui identificarno meu trabalho, são as mais usadaspara defini-lo nesse discurso mitoló-gico e simbólico sobre o que ele re-presentou para o Brasil. O InstitutoOswaldo Cruz se tornou a primeiragrande instituição de pesquisa no Bra-sil e é o fundador da medicina expe-rimental. O problema do Jeca não éque ele é ignorante; ele não tem saú-de. Esse discurso é recorrente atéhoje, chamamos de determinantessociais. O movimento sanitarista doBelisário Pena mudou a opinião deMonteiro Lobato. Ele escreve sobreisso na Revista do Brasil, publicaçãoentão muito importante, que tinha se

Nara Azevedo: Belisário Pena foi o organizador do movimento de mitificação da figura deOswaldo Cruz e criou, um ano depois da morte do cientista, a Liga Pró-Saneamento do Brasil

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enganado e que, de fato, o Jeca nãoera culpado pela sua miséria. O cul-pado é o Estado, a sociedade que ti-nha que dar um jeito naquilo. Então,foi muito importante para o movimen-to, para o debate público sobre a saú-de. Resolveu? Não. Estamos com afebre amarela de novo.

Em que medida o contexto cul-tural e a própria personalidade deum Oswaldo Cruz “de carne eosso” explicam a construção deimagens como “general mata-mos-quito autoritário”, “apóstolo daciência”, “rei-todo-poderoso”,“Cristo da religião do saneamen-to”, “fundador da medicina expe-rimental no Brasil”?

Nara: Vamos separar essas coisas,porque esse general mata-mosquitonão tem nada a ver com Liga Pró-

Diretoria-Geral de Saúde Pública eimpõe políticas de cima para baixo.

“Apóstolo do saneamento” e“fundador da medicina experimentalno Brasil” são coisas que aparecemdepois da morte de Oswaldo Cruz.Eu me preocupei em entender porque se falava de Oswaldo Cruz como“Cristo da religião do saneamento”.A gente sabe que falar de Cristo noBrasil, um país católico, não é qual-quer coisa; comparar Oswaldo Cruza essa figura é algo muito significati-vo. Isso que me motivou a estudar oque eu chamei desse mito, é um mitomesmo. Fala-se dele como se proces-sasse um descolamento da vida datrajetória profissional, embora seusem os elementos dessa trajetória.O que ele fez na saúde pública, noInstituto de Manguinhos, é a base apartir da qual se projeta uma ideali-zação dessa figura. Quando escrevimeu trabalho, disse – e continuo

Saneamento. General mata-mosqui-to está nas caricaturas. Na verdade,são jornais da época, os caricaturis-tas que tinham um humor espetacu-lar, crítico; não sei se se repete noBrasil algo tão impressionante, aque-les jornalistas, desenhistas e artistas.Então, eles inventaram essa palavrade general mata-mosquito. Eu nãoquero cometer nenhum anacronismo.Nós vivemos em outra sociedade,temos outros tipos de relações; nãopodemos olhar com aquilo que cha-mamos de autoritarismo. Não vamosesquecer que a República tinha sidofeita por generais. É disso que elesestão falando também. Ele organizoucampanhas contra a febre amarelae, principalmente, contra a varíola,uma lei que já era obrigatória, só queninguém se vacinava. E aí houve umarevolta popular. General mata-mos-quito tem a ver com esse contextode 1903-1904, quando ele assume a

Belisário Pena na sessãocomemorativa do 2º aniversárioda Liga Pró-Saneamento do Brasil,realizada na sede da SociedadeNacional de Agricultura, em 1919

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achando isso – é impossível saberquem é o Oswaldo Cruz, para alémou para aquém dessas imagens queforam criadas para torná-lo público.Acho difícil. O passado está sendosempre reconstruído, não está numlugar que os historiadores tiram dobaú. Construímos interpretações dopassado a partir de registros e vestí-gios que essas personalidades e essepassado deixam. Então, eu não sei,é muito difícil hoje saber quem eraOswaldo Cruz.

Como a classe médica, em es-pecial as instituições com forte re-putação científica como a Acade-mia Nacional de Medicina e aFaculdade de Medicina do Rio deJaneiro, se relacionou com Oswal-do e o Instituto?

Nara: Eu tratei isso no meu estudo. Eraum elemento importante para que eupudesse afirmar a ideia de que o dis-curso mitológico, hagiográfico [relato

sobre a vida de um santo], heroicizan-te dessa figura; esses símbolos que fo-ram criados em torno de OswaldoCruz pudessem ser diferenciados decomo ele era reconhecido em vida.Qual era o reconhecimento e, maisimportante, o reconhecimento cien-tífico que ele tinha no meio médicoe científico da época, no Rio de Ja-neiro, em particular. Oswaldo Cruznunca foi professor da Faculdade Na-cional de Medicina. O Instituto Soro-terápico Federal passa a ter o nomede Oswaldo Cruz em homenagem aoprêmio [recebeu a medalha de ouroem nome da seção brasileira presen-te no XIV Congresso Internacional deHigiene e Demografia] em Berlimpelas campanhas que acabaram coma febre amarela, peste.

Muitos estudantes da Faculdade deMedicina vinham para Manguinhosfazer uma especialização, conhecer oslaboratórios ligados ao estudo da pes-te bubônica e de outras doenças. Em1907-1908, Oswaldo Cruz cria a Esco-

la de Manguinhos, o chamado Cursode Aplicação. O curso é de 1909, anoem que Carlos Chagas descobre a do-ença de Chagas. Acho que foi umaousadia criar esse curso, que hoje po-deríamos chamar de extensão; duravadois anos e era rigorosíssimo. Eles vi-nham praticar a medicina experimen-tal, ou microbiologia, a ciência pasteu-riana. Isso criou uma disputa com aFaculdade de Medicina, velada emcertos momentos, mais aberta e deconflitos abertos em outros.

Oswaldo Cruz inspirou-se oufoi influenciado por intelectuais dasua época para buscar conhecer osproblemas do homem brasileiro dointerior do país?

Nara: Não tratei disso em meu es-tudo, então vou compartilhar uma es-peculação baseada no que acabei defalar sobre o interesse científico que no-tabilizou o Instituto no mundo, as cha-madas doenças tropicais. Eu não con-

Fé eterna na ciência. A frase deinspiração positivista constava doexlibris de Oswaldo Cruz, selo aplicadonos exemplares de seu acervo

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reira Passos. A capital federal era as-sim, mas, também, os confins da Ama-zônia. Essas experiências vão dando aele e a esse grupo de cientistas pilaresou elementos para a constituição deuma justificativa de um trabalho de ci-entista, sobre o que é fazer ciência.Acho que foram todos muito influenci-ados, inspirados por essas condições.E isso não acontece só com eles, mascom os intelectuais engajados e ospolíticos.

Das dez cidades do país quemais precisam e menos fizeramobras para coleta de esgoto nosúltimos cinco anos, metade está noRio de Janeiro. Nova Iguaçu, Duquede Caxias, Belford Roxo, São Gon-çalo e a própria capital aparecemna lista feita pelo Instituto TrataBrasil entre os municípios com maisurgência em reforçar a rede de co-leta de esgoto. Precisamos de um

novo líder capaz de mobilizar dife-rentes segmentos da sociedadepara reverter o quadro sanitárionacional ou essa estratégia se mos-trou historicamente ineficiente?

Nara: Eu não acredito muito em li-deranças carismáticas. O discurso domito é que tornou Oswaldo Cruz isso.Acredito que o enfrentamento que vocêacabou de falar, o saneamento...vocêestá falando do Rio [ de Janeiro], mas oBrasil inteiro é assim. Saíram pesquisasrecentes do IBGE mostrando isso. A gen-te precisa é de políticas públicas demo-cráticas, de representação política efi-ciente, coisa que não temos no Brasilhá alguns anos. Vivemos numa socie-dade muito diversa daquela de Oswal-do Cruz e acho que precisamos ter re-presentantes políticos que façam isso.Sempre ouvi dos sanitaristas, especia-listas dessa área, que o custo do Estadocom os problemas de saúde diminuiria

sigo desvincular o interesse científico,intelectual com o mundo em que elesvivem, com a sociedade na qual vivem,da sua vida prática. Pensando assim,me pergunto o quanto o livro Os ser-tões, de Euclides da Cunha, influen-ciou Oswaldo Cruz e aquela geraçãode jovens. O livro fez um sucesso imen-so. Foi publicado em 1902, quandoOswaldo está chegando à Diretoria-Geral de Saúde Pública com a incum-bência de tratar epidemias que mata-vam pessoas. Ao mesmo tempo vocêtem uma denúncia pública sobre o queaconteceu em Canudos, que foi umgenocídio; o Euclides, que era todo en-tusiasmado com o combate aos insur-retos, acabou se tornando o grande de-nunciador, sem ser panfletário. Fez umaobra fantástica para dizer o que é ohomem brasileiro. Aquele livro é umespetáculo, parece ficção, mas é pro-fundamente realista na maneira deescrever. Eu me pergunto: se eu fossejovem naquela época, lendo uma coi-sa como essa, o que eu diria? Comoisso repercutiria em mim? Eu que souum cientista, trato dessas doenças,dessa população que está morrendo,ou seja, acho que faz sentido eu pen-sar que Euclides da Cunha pode ter tidoalguma influência sobre a maneiracomo Oswaldo Cruz via o que ele fa-zia, dava sentido e os interesses queteve, científicos e público que, paramim, não são dissociados.

Nesse sentido a senhora diriaque Oswaldo Cruz teve dois impac-tos, com Canudos e a com a Ama-zônia, que ele visitou?

Nara: Ele escreve sobre a Amazô-nia [onde foi combater a malária] norelatório que entrega à Estrada de Fer-ro Madeira-Mamoré. Nesse relatório,fiquei muito impressionada porque se-ria um relatório médico: “Olha, apli-quei tal coisa quinino (que era o quese fazia) nos trabalhadores e tal”. Mas,não, ele faz uma descrição antropoló-gica de cidades; Santo Antônio, sobrea população, como as pessoas vivem,as valas, os animais mortos nas ruas, oesgoto correndo a céu aberto; pareceo Rio de Janeiro antes da reforma Pe-

Cruzada Oswaldo: os micróbios que escapam (O Malho, 25/6/1910)

Zé Povo: - Vai, sábio hygienista, que tanto honras o Brazil! Deus te acompanhenessa nova e santa cruzada, que empreendes com sacrificio da própria vida! Mas, sialém dos da malária, pudesses também destruir aquelles outros micróbios... isso,então, é que era uma pechincha!...Oswaldo Cruz: - Impossível meu caro Zé! São microbios da politicagem e não háhygiene pacifica que possa com elles... Só tú, a poder de protestos, poderás umdia acabar com esses bichos!...

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muito. Grande parte das doenças da po-pulação tem a ver com saneamento,principalmente entre as crianças. NoNordeste, a mortalidade infantil é pro-vocada por muitas coisas, mas umadelas é falta de condições higiênicas.Até parece que a gente está falandodo discurso do século 19: condições hi-giênicas, água limpa, esgoto, que é umacoisa incrível que o Brasil ainda não te-nha no século 21. Acho que hoje [o quefaltam] são políticas e representaçãopolítica comprometida com bem-estarda população.

Seu estudo sobre a construçãode mitos pode ser também enten-dido como uma advertência?

Nara: Não sei, nunca pensei nisso.Eu acho que esse mito foi muito impor-tante e continua sendo. Para certas fina-lidades da área de saúde pública, asmesmas que mobilizaram o BelisárioPena e aquele grupo de médicos queestava em torno dele querendo reformara saúde pública. Eu acho que falar doOswaldo Cruz é uma chave importante,uma bandeira. Uma característica impor-tante que ele – e de vários da geraçãodele, não só médicos, políticos e outrosintelectuais – é essa característica de fa-zer da sua ação pública, da vida profissi-onal, algo que está a serviço do público.Se você olha para outros países, nemsempre vê esse tipo de intelectual. En-tão, acho que falar de personalidadescomo Oswaldo Cruz, não como “Cristoda religião do saneamento”, mas dessafigura que criou uma instituição de pes-quisa, produziu, formou muitos pesqui-sadores médicos no Brasil, todo o lega-do que essa instituição, o InstitutoOswaldo Cruz deu e a Fiocruz, é muito.Devemos continuar falando de OswaldoCruz quando a gente quiser ter avançosem termos de saúde e pesquisa no Bra-sil. Quem são nossos heróis?

Fiz pesquisa até 1972, quando secompletaram 100 anos do seu nascimen-to. Todos repetiam exatamente a mes-ma coisa que se dizia em 1918. Então,se sedimentam imagens simbólicas so-bre o que ele significava e representa-va. Isso é o mito, textos, signos, bustos,medalhas, as figurinhas Eucalol; muitascidades têm praças e ruas com o nome

de Oswaldo Cruz. Ele quase competecom Getúlio Vargas. Pensando nessagaleria dos heróis, temos o Tiradentestambém. Os heróis são um espelho doque a gente quer ser e do que há debom que podemos produzir. É uma pro-jeção idealizada das nossas ansiedades,expectativas, desejos. Quem é o únicomédico que está lá? Oswaldo Cruz! Naverdade, eu acho que ele está nessagaleria há muitos anos; há um séculose fala dele como herói da nação.

O Senado Federal está para ava-liar o Projeto de Lei 317/2016 so-bre a inclusão de Oswaldo Cruz noLivro de Heróis da Pátria, que reú-ne em sua maioria políticos e líde-res militares, religiosos e indíge-nas. Se aprovada a lei, a ciêncianacional terá oficialmente um per-sonagem heroico. Essa é uma ho-menagem devida?

Nara: Na historiografia também. Euacho que é devida, sim. Ele já existe namemória das pessoas, assim como Ge-túlio. Existem trabalhos que demonstramisso. Eu mesma participei, há muitosanos, quando trabalhava na FundaçãoGetúlio Vargas, de uma pesquisa de rua.Fiquei muito impressionada como sefalava de Getúlio, que é algo similar aoOswaldo Cruz, com muito mais ampli-tude; até porque é uma figura muitoimportante na sociedade, na políticabrasileira, na construção do Estado na-cional brasileiro. Falar de Oswaldo Cruznesses termos contribui para que se tor-ne aquilo que ele representa, símbolode mais saúde, políticas públicas quede fato contribuam para a melhoria davida das pessoas, e que esse Estado sejaeficiente nesse sentido; não seja o es-tado demagogo, populista. Sempre fa-lar dele é bom. Claro, perto de mim,eu vou dizer: “olha, lá! “; veja só, nãoé bem assim, olha o mito!”. Mas, poli-ticamente, falar de Oswaldo Cruz temhoje o mesmo significado e importân-cia que em 1918.

No início do século, quandoOswaldo Cruz assume a saúde pú-blica na capital federal, o “país dafebre amarela” precisava ser sane-ado, enfatizou Rui Barbosa em seu

discurso no Teatro Municipal emmaio de 1917. Com a persistênciade doenças como febre amarela emalária em diversas regiões brasi-leiras, podemos dizer que os ensi-namentos do cientista foram esque-cidos pelas autoridades sanitárias?

Oswaldo Cruz emcharge publicadana revista francesaChanteclair, em 1911

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Nara: Não. Até porque OswaldoCruz teve continuadores. Carlos Chagasfoi uma figura muito importante na con-tinuidade ao que Oswaldo Cruz tinhafeito na Diretoria-Geral de Saúde Públi-ca. Ele saiu da diretoria em 1909 e Cha-gas assumiu dez anos depois, em 1919.Quando Chagas cria o Departamento Na-

cional de Saúde Pública, nos moldes doque se pensava o que seria importanteem termos de saúde da população, asendemias, isso teve continuidade depois.Chagas fica até 1925-26, mas, quandoGetúlio Vargas assume o poder em 1930,já havia esse movimento político lidera-do pelo Belisário Pena em 1918. Todoseram médicos, mas com o Chagas e aentrada da Fundação Rockefeller no Bra-sil, com quem faz um acordo, formam-se pessoas nos anos de 1930. Getúlioadotou isso, formar pessoas especifica-mente especializadas na saúde pública.Então, não houve uma perda: a mortedo Oswaldo, o que ele iniciou – e não éele sozinho, insisto, é um grupo de mé-dicos –, teve sequência. Esse caso [defebre amarela ] em Minas Gerais e Espi-rito Santo que a gente está vendo agoraé falha de política pública, porque hojese sabe o que se tem que fazer; esseconhecimento está assentado, consoli-dado. É uma falha do aparato burocrá-tico estatal. O que tenho lido é isso, ine-ficiência operacional. Você pode ver emoutros casos de ameaças de epidemia,rapidamente se consegue controlar. Afebre amarela urbana não existe aqui[no Rio de Janeiro] desde 1942. É muitodiferente do que havia 100 anos atrás,quando ninguém sabia como as pesso-as tinham febre amarela.

Outro mito destacado em seulivro é o do progresso social resul-tante da atividade científica. A se-nhora verifica a permanência daideia da ciência como uma chavepara a resolução dos problemassociais do país?

Nara: A ideia da ciência como uminstrumento do progresso é um discursodo final do século 19. A geração doOswaldo Cruz, grande parte dela, estáinfluenciada por essa ideologia. A par-tir dos anos 1960/70, certos tipos de co-nhecimento, como a biologia, a física,campos que têm muito impacto na so-ciedade, passaram a ter uma crítica so-cial muito forte. De lá para cá, achoque isso só se intensificou. Pessoalmen-te acho que a ciência é um instrumentocada vez mais importante. Eu sou umaracionalista, acho que continua tendoimportância para a minimização das

nossas necessidades, dos nossos sofri-mentos humanos. Acho também quese Oswaldo Cruz estivesse vivo estariapreocupado com isso, porque acho queele era um exemplo de um cientista comalguns cuidados. A gente não pode ima-ginar que a ética médica que se temhoje é a mesma daquele período. Hojesão proibidas ou reguladas coisas quese faziam naquele momento, como usode pessoas em experiências científicas.

Que lugar algumas das ideiasque nortearam Oswaldo Cruz –como a defesa da ciência e da saú-de pública como instrumentos dedesenvolvimento do país – têm nomundo de hoje, em uma conjuntu-ra de recessão econômica, ajustefiscal pesado e crise política?

Nara: A gente tem que continuarlutando por isso, porque é um instrumen-to importante de desenvolvimento. A ci-ência e a tecnologia são coisas muitoimportantes para que o Estado brasileirodê atenção e a gente vive uma crisemuito séria nesse campo, com um Mi-nistério da Ciência e Tecnologia [Inova-ção e Comunicações] com grandes difi-culdades de recursos para financiarpesquisa e ensino, mas a gente não podedesistir. Temos que continuar achandoque isso é importante e cobrar dos go-vernantes que não fique lá no último lu-gar das prioridades do governo.

Que frase usaria para definirOswaldo Cruz?

Nara: Eu vou usar uma frase deleque eu acho que o define muito bem.Ele tinha alguns lemas, esse é um famo-so. Dizia e escrevia: “Fé eterna na ciên-cia”. Ele era um racionalista, um cientis-ta que acreditava que o conhecimentocientifico poderia contribuir para a cons-trução de uma nação brasileira civiliza-da, moderna, tal como ele vislumbrounas numerosas viagens que fez. Enfim,Oswaldo Cruz achava que poderíamoster outro padrão econômico e cultural, ea ciência era um instrumento disso.

Também se considera racionalista?

Nara: Sim, com certeza: “Fé eter-na na ciência”!

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Fé eterna na[divulgaçãoda] ciênciaSite de Obras Raras mantém viva ideia docientista Oswaldo Cruz sobre importânciada difusão do conhecimento

ESPECIAL

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André Bezerra

esde sua “these” de li-vre-docência na cadeirade Higiene e Mesologiada Faculdade de Medici-na do Rio de Janeiro a

tratados sobre a vacina contra a pestee a profilaxia da febre amarela, partedo legado científico de Oswaldo Cruzjá está a um clique de distância paraquem quiser se aprofundar em sua obra.Por meio do site de Obras Raras da Fio-cruz (www.obrasraras.fiocruz.br), suaprodução digitalizada vem sendo difun-dida na internet, sob os pressupostos dapolítica de acesso aberto.

Apesar de não ter vivido para pre-senciar os avanços das tecnologias di-gitais da informação e da comunica-ção, Oswaldo Cruz teria ficado felizem ver a consolidação da platafor-ma. “Era um homem à frente de seutempo. Para ele, ciência não preci-sava apenas de laboratórios, equipa-

mentos e as pessoas que faziam aciência, mas também uma boa bibli-oteca. Ele privilegiou a informação nocampo científico”, explica o chefe daBiblioteca do Instituto Nacional deControle de Qualidade em Saúde,Alexandre Medeiros, autor de disser-tação sobre o contexto da informa-ção na época do cientista.

Até o momento, oito documen-tos já constam no site, que disponibi-lizará progressivamente grande par-te do acervo da Seção de Obras Rarasda Biblioteca de Manguinhos e deoutros acervos da Fundação, pormeio do Laboratório de Digitalizaçãode Obras Raras do setor de Multimei-os do Instituto de Comunicação e In-formação Científica e Tecnológica emSaúde (Icict). “Os documentos pas-sam por um processo de conservaçãoe preservação e aqui são acondicio-nados para a digitalização”, explicao fotógrafo Rodrigo Méxas, um dosresponsáveis pela tarefa.

Títulos disponíveis

Allocução proferida na abertura do cursode pathologia geral (1917)

Peste (1906)

Relatorio àcerca da molestia reinante emSantos (1900)

Dos accidentes em sorotherapia (1902)

Discurso pronunciado na AcademiaBrazileira de Letras (26 de junho de 1913)

A vaccinação anti-pestosa: trabalho doInstituto Sôrotherapico Federal do Rio deJaneiro (Instituto de Manguinhos, 1901)

Prophylaxia da febre amarella (1909)

A vehiculação microbiana pelas águas(these,1893)

“O site de Obras Raras se insere den-tro dessa visão de Oswaldo Cruz justa-mente por fazer com que o material sejadivulgado e difundido, ampliando parao público o acesso ao conhecimento”,opina Medeiros. Com o acesso digital,as obras raras também ganham maiorproteção, pois passam a receber menosmanuseios, sem deixar de estarem à dis-posição de pesquisadores e estudiosos.

A reunião de sua obra até entãovinha sendo consultada na Opera Om-nia, publicação lançada no centenáriode nascimento de Oswaldo Cruz, há45 anos. O livro, organizado pela en-tão chefe da Divisão de Informação daFiocruz, Emília Bustamante, traz em for-mato impresso todos os seus trabalhosescritos, em fac-símile. A capa traz aimagem do ex-libris de Oswaldo Cruz,selo comum usado antigamente comomarca identificadora de coleções pes-soais, produzido pelo ateliê Stern, emParis, e onde consta a frase “Fé eternana ciência”, em latim.

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Brasil viu um século pas-sar desde que perdeu umde seus filhos mais notá-veis: em fevereiro de 1917morria Oswaldo Gonçal-

ves Cruz. Filho devotado, pai e maridoamoroso, o cientista foi responsável porpromover profundas transformações nopaís. Seus legados são numerosos. Ocontrole das epidemias de febre ama-rela, varíola e peste bubônica. O esta-belecimento da vacinação como umaprática de rotina no país. A nacionali-zação da ciência médica. Em home-nagem ao seu patrono, o InstitutoOswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) desenvol-veu um projeto especial que aborda suavida e seu legado. Com documentosde valor singular, gentilmente cedidospela Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fio-cruz), o projeto Oswaldo Inspira: 100anos sem Oswaldo Cruz (1872-1917)criou um espaço na internet que vaialém da biografia do pesquisador, jálargamente explorada: a iniciativa traz

detalhes e curiosidades sobre este bra-sileiro que, de criticado devido à im-plementação de medidas impopularesde saúde pública, se converteu emherói nacional. O projeto está disponí-vel no site www.ioc.fiocruz.br/oswal-doinspira.

“Nós recorremos a livros e docu-mentos com relatos de pessoas queconviveram diretamente com OswaldoCruz para construir um mosaico de as-pectos que procuram, um século apósa sua morte, nos aproximar da figuramultifacetada deste homem guiadopelo lema de ‘fé eterna na ciênca’”,destaca a jornalista Raquel Aguiar, ide-alizadora do projeto. Da infância à for-mação na Faculdade de Medicina doRio de Janeiro, passando pelo casamen-to, filhos, viagens e trabalho, o projetorelembra a vida de Oswaldo Cruz e trazaspectos inesperados: o gestor ousadocapaz de medidas impopulares, quenão esmorecia frente à difamação erumava ao túmulo do pai quando pre-

Legado e inspiração

cisava tomar decisões importantes; ochefe que pedia com voz branda eantecipava as necessidades daquelesque estavam à sua volta; o amante dedoces, que guardava guloseimas nogabinete em meio aos livros.

“Um dos destaques do projeto é,sem dúvida, a faceta de Oswaldo Cruzenquanto fotógrafo”, destaca Raquel,acrescentando que o apoio da equipeda Sala de Consulta do Departamentode Arquivo e Documentação da Casade Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) foi fun-damental. Uma das novidades do pro-jeto é trazer a público os álbuns quemostram a paixão do cientista pela fo-tografia. O acervo inédito que estavasob guarda do neto de Oswaldo Cruz,o também médico Eduardo OswaldoCruz, falecido recentemente, traz ce-nas do cotidiano e registros da tempo-rada do cientista com a família emParis, na virada do século 19 para oséculo 20, quando concluiu sua forma-ção no Instituto Pasteur.

Projeto Oswaldo Inspira reúne aspectos pouco conhecidosdo cientista, como o diletantismo pela fotografia

O

Acima: capa do site doprojeto Oswaldo Inspira. Ao

lado: fotos feitas por OswaldoCruz em viagem à Europa

ESPECIAL

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QUALIDADE DE VIDA

Semana Nacional deCiência e Tecnologia(SNCT), que teve comotema Ciência alimentan-do o Brasil, rendeu bons

frutos para a Fiocruz Brasília. Após a ofici-na de agricultura urbana realizada comcrianças e adolescentes, no último dia doevento, as colaboradoras Bruna PedrosoThomaz de Oliveira, do Programa de Ali-mentação, Nutrição e Cultura (Palin), Ta-tiana Novais, do Colaboratório de CiênciaTecnologia e Sociedade, e Ana Schramm,do Programa de Educação, Cultura e Saú-de (Pecs), tiveram a ideia de aproveitaresse momento para criar o protótipo deuma agrofloresta, no jardim da FiocruzBrasília, batizada de Jardim Comestível.

Para que o projeto da agrofloresta seconcretizasse a equipe contou com a aju-da de outros trabalhadores da instituição,do Centro de Referência em Agroecolo-gia e Tecnologias Sociais de Brasília (Crats)e do Coletivo Alcateia, grupo que pro-move ações a partir de mutirões com aintenção de transformar o espaço públicoe privado em um ambiente mais ecologi-camente equilibrado. Na ocasião, a equi-

AFernanda Miranda

Foto: Sérgio Velho Jr.

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pe, que já contava com 12 trabalhadoresda instituição, decidiu que o Jardim Co-mestível teria o formato de uma manda-la constituída por diferentes módulos. “Oconceito de agrofloresta busca consorciardiferentes tipos de plantas e extratos, porisso, plantamos, no centro da mandala,milho, uma árvore chamada moringa,que é totalmente comestível, feijão guan-du, feijão de porco, alface e outras horta-liças”, explica Bruna.

O grupo passou a se reunir periodica-mente com o objetivo de criar um labora-tório de práticas agroecológicas esustentáveis na instituição. “Eu achei queo termo laboratório era algo muito aca-dêmico e pouco atrativo. Então sugeri quechamássemos o coletivo de Clube do Jar-dim. Pensamos em clube justamente porse tratar de um grupo empenhado empensar nos processos de agroecologia, naqualidade de vida no trabalho e na res-significação da nossa relação com o am-biente que nos cerca”, conta Bruna.Tatiana complementa que o Clube doJardim é uma comunidade de aprendiza-gem, com troca de experiências e práti-cas a cerca de uma alimentação e vidamais saudáveis e sustentáveis.

O primeiro momento de partilha doClube do Jardim ocorreu 45 dias após aplantação, quando foi feita a celebra-ção da colheita com a participação doscolaboradores da instituição, do agrô-nomo do Movimento Nossa BrasíliaDalembert de Barros Jaccoud, que tra-balha com hortas urbanas e manejo deformigas e da professora de biodança ecoordenadora de desenvolvimento daadministração do Lago Norte de Brasí-lia, Leda Badra Bevilaqua. “Após umaroda de conversa e do compartilhamen-to de experiências, degustamos as alfa-ces colhidas do jardim”, recorda Bruna.

No início deste ano, o coletivoabriu o segundo canteiro da mandala,onde foram plantadas ervas aromáti-cas e medicinais. Em outro lugar dojardim, os colaboradores plantaram flo-res comestíveis como begônia, beijinho,gerânio e 11 horas. “Também pedimospara as pessoas trazerem algumamuda de casa e dividirem com a gen-te seu conhecimento sobre aquelaplanta”, comenta Tatiana.

Ana salienta que o Clube do Jardim

é um projetoimportante paraa instituição forta-lecer a integraçãodos colaboradoresde forma espon-tânea e promovera saúde e a quali-dade de vida. “Aoocupar um espaçoque era ocioso, pro-movemos uma es-pécie de paisagismoinclusivo e comestívele damos um novo sig-nificado para o que seentende por jardim ehorta. Além disso, porser uma temática trans-diciplinar, podemosagregar ao Clube doJardim diferentes ativi-dades desenvolvidas nainstituição”, avalia.

A proposta tam-bém é compartilhadapelo Departamento deInfraestrutura da insti-tuição e pelo SindicatoNacional dos Servidoresda Fundação OswaldoCruz (Asfoc-SN), que têmtrabalhado na construçãode pequenas praças nojardim da Fiocruz Brasília.“Instalamos bancos, pisoem algumas áreas, providenciamos asfloreiras para o Clube do Jardim e va-mos montar um redário. O nosso obje-tivo é promover ambientes saudáveis paraos trabalhadores da instituição”, destacaa responsável pelo Departamento de In-fraestrutura, Telma Contijo.

De acordo com Bruna, os próximospassos serão criar um canteiro de plan-tas comestíveis não convencionais, mon-tar uma composteira e um minhocário.“Temos muito trabalho pela frente e eume sinto privilegiada por trabalhar numainstituição que apoia projetos que be-neficiam o coletivo e por poder concre-tizar um sonho pessoal. A Fiocruz mostraque é possível instituições públicas ouprivadas investirem em iniciativas sus-tentáveis”, arremata.

Os sistemas agroflorestais sãoconsórcios de culturas agrícolas comespécies arbóreas que podem serutilizados para restaurar florestas erecuperar áreas degradadas. A tec-nologia ameniza limitações do ter-reno, minimiza riscos de degradaçãoinerentes à atividade agrícola e oti-miza a produtividade a ser obtida.Há diminuição na perda de fertili-dade do solo e no ataque de pra-gas. A utilização de árvores éfundamental para a recuperação dasfunções ecológicas, uma vez quepossibilita o restabelecimento deboa parte das relações entre as plan-tas e os animais. Os componentesarbóreos são inseridos como estra-tégia para o combate da erosão e oaporte de matéria orgânica, restau-rando a fertilidade do solo.

Jr.

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PREVENÇÃO

único Laboratório deTelessaúde da Funda-ção, em atividade noInstituto Nacional deSaúde da Mulher, da

Criança e do Adolescente FernandesFigueira (IFF/Fiocruz), marcou presen-ça no principal evento da Europa naárea da Telessaúde, o CongressoMedetel. O evento, promovido pelaSociedade Internacional de Teleme-dicina e Telessaúde, reuniu em abril,em Luxemburgo, especialistas demais de 90 países interessados natemática da tecnologia da informa-ção e da comunicação em saúde.

OAline Câmera

A coordenadora do Laboratório deTelessaúde, Angélica Baptista Silva,apresentou o projeto de utilização dateleconsultoria no enfrentamento deum grande desafio para a saúde pú-blica: o diagnóstico precoce do cân-cer do colo do útero. O câncer do colodo útero é o terceiro tumor mais fre-quente entre as mulheres brasileiras.No mundo, a incidência é ainda mai-or: trata-se da segunda neoplasiamaligna mais frequente. A falha naprevenção resulta em diagnósticos docâncer cervical em fases avançadas,levando à morte cerca da metade dasmulheres acometidas.

“Representar a Fiocruz no Mede-tel significou uma oportunidade ím-par, tanto de mostrar o nosso projeto,quanto de troca valiosa de conheci-mento para a instituição. Voltamoscom propostas concretas de parceri-as, como a contribuição num aplica-tivo voltado para gestantes e mãesde crianças de até 1 ano, além daparticipação em um grupo de traba-lho focado em mídias sociais emambiente hospitalar. Ainda que pe-sem as diferenças culturais e os re-cursos disponíveis, compartilhamosmuitos pontos em comum com diver-sos países”, destaca Angélica.

Um grande desafioLaboratório de Telessaúde apresenta trabalho em congresso europeu

Angélica Baptista apresenta o projeto Implantação e Monitoramentode Teleconsultoria da Rede Nacional de Especialistas em CâncerCervical, que compôs um dos painés do Congresso MedetelFoto: IFF/Fiocruz

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Acompanhando de perto o Grupode Interesse Especial (SIG, sigla em in-glês para Special Interest Group) do Ins-tituto voltado para a temática e adiscussão em torno da construção dasDiretrizes Brasileiras para o Rastreamen-to do Câncer do Colo do Útero, a coor-denadora do Laboratório de Telessaúdeenxergou, nas ferramentas tecnológicasdisponíveis, a oportunidade de proporum projeto de capacitação do profissio-nal da atenção básica. A ideia surgiu apartir da experiência da Rede Nutes doHospital das Clínicas da UniversidadeFederal de Pernambuco, que desde2015 atua na plataforma de Telessaú-de HealthNet com um aplicativo desen-volvido para auxiliar profissionais desaúde em suas rotinas diárias, além doapoio no diagnóstico à distância.

“Por mais que os profissionais pas-sem por treinamentos específicos sobrea diretriz, no dia a dia é comum surgi-rem dúvidas. Com o aplicativo, qualquerprofissional cadastrado na plataformapode enviar sua questão, que será enca-

minhada para um dos profissionais darede de especialistas que construiu odocumento. Trata-se de um canal diretoque, além de possibilitar a consolidaçãodos protocolos, constituirá uma janela deacesso à informação para rastreamentodos casos”, observa Angélica.

Inicialmente pensado como um pi-loto para o Rio de Janeiro, a expectati-va é que o projeto possa ser levado aoutros estados, o que reafirma a mis-são do IFF. “Ações de ensino dissemi-nadas sem limitação geográfica fazemtodo o sentido no contexto de um Ins-tituto Nacional. Não só devemos con-tribuir na formulação das diretrizes epolíticas públicas como também pode-mos atuar na capacitação à distância”,ressalta o ginecologista e gerente daÁrea de Atenção Clínico-cirúrgica àMulher, que também está à frente dainiciativa, Fábio Russomano. Para ele,os benefícios vão além: “entendemosque a ferramenta possibilitará a maiorinteração entre os profissionais, assimcomo o aperfeiçoamento do fluxo das

pacientes que são encaminhadas aoscentros de referência, sem contar aprojeção da imagem do Instituto comoreferência na plataforma para a qualserão encaminhadas as respostas dosespecialistas”.

A proposta é que as respostas se-jam baseadas em evidências e apresen-tem referências bibliográficas, seguindoassim, a metodologia da Segunda Opi-nião Formativa. “Trata-se de um tipo deteleconsultoria qualificada, pela qual serápossível criar um compilado consistentede perguntas e respostas sobre a temá-tica do câncer do colo do útero que es-tará vinculado ao banco de dados daBireme, que reúne dados bibliográficosem ciências da saúde, com acesso livree gratuito. Com isso, tornaremos possí-vel o compartilhamento do conteúdocom outros profissionais da saúde, au-xiliando-os em suas práticas diárias”, afir-ma Angélica. Em fase de cadastramentodos profissionais da atenção básica, aferramenta deverá ser efetivada no se-gundo semestre deste ano.

Fabio Russomano e AngélicaBaptista durante encontro doSIG voltado para o câncer docolo do úteroFoto: IFF/Fiocruz

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A ciência comoprofissão:médicos, bacha-réis e cientistasno Brail(1895-1935)

Dominichi Miranda de Sá

O livro aborda o proces-so de especialização daatividade intelectual noBrasil durante as trêsprimeiras décadas do sé-culo 19, período de sur-gimento de diferentesinstituições acadêmicas,como o Instituto Oswal-do Cruz. A autora anali-sa a emergência da figurado “cientista” em umcontexto em que já seanunciava o divórcio en-tre as “humanidades” eas “ciências duras”.

216 páginas | R$ 27,00 (16x 23 cm) | Ano: 2006

Histórias de pes-soas e lugares:memórias dascomunidades deManguinhos

Tania Maria Fernandes eRenato Gama-Rosa Costa

A obra busca reconstituira história de pessoas e lu-gares do território de Man-guinhos – hoje repleto defavelas que circundam aFiocruz –, com seus pro-blemas sociais. Os autoresestendem-se por cerca decem anos de ocupação doespaço, optando por darvoz aos moradores da re-gião. Entre depoimentos,fotografias, vídeos, docu-mentos oficiais, cartas ejornais de época, o livrorevela a diversidade e asingularidade dos proces-sos socioespaciais constitu-tivos das 12 comunidadesestudadas. Entre vivênciasnarradas, transparecem asconfigurações desse típicobairro de periferia que re-trata uma triste realidadede exclusão social e de dis-criminações.

232 páginas | R$ 39,00 (16x 23 cm) | Ano: 2009

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Louis Pasteur &Oswaldo Cruz:inovação e tradi-ção em saúde

Nísia Trindade Lima eMarie-Hélène Marchand

Organizado como partedas comemorações doAno do Brasil na França,o livro é fruto da coope-ração entre a FundaçãoOswaldo Cruz e o Insti-tuto Pasteur. Apresenta ahistória da contribuiçãocientífica de Pasteur eOswaldo Cruz, relata osdesafios atuais para as re-lações entre pesquisa emsaúde e melhoria nascondições de saúde dassociedades em desenvol-vimento, aborda os in-vestimentos em políticasde saúde em nível inter-nacional e o papel doInstituto Pasteur e fina-liza relembrando a histó-rica parceria entre osdois institutos. Textos emportuguês e francês.

340 páginas | R$ 70,00 (bro-chura); R$ 80,00 (capadura) (21 x 26 cm) | Ano:2005 | Coedição com a Fun-dação BNP Paribas-Brasil

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ESTANTE ESPECIAL

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Oswaldo Cruz: aconstrução de ummito na ciênciabrasileira

Nara Britto

A autora retoma um temarecorrente da vida social:o da construção ideológi-ca do mito por meio dafigura de Oswaldo Cruz.A obra ressalta o processode heroificação de que osanitarista foi objeto apósa sua morte, em 1917, apartir de testemunhos efestividades organizadascom o propósito de mar-car sua presença e eterni-zá-la. Essas iniciativascontribuíram para crista-lizar um imaginário soci-al ao qual a figura deOswaldo Cruz está associ-ada como salvador e após-tolo da ciência.

144 páginas | R$ 18,00 (21x 26 cm) | Ano: 2006 (1ªreimpressão - revista)

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Um lugar para aciência: a forma-ção do campusde Manguinhos

Benedito Tadeu de Oliveira(coord.)

Importante contribuiçãoà historiografia da arqui-tetura, oferece um pano-rama sobre a formação ea ocupação do campus deManguinhos durante oprimeiro século de existên-cia da Fundação OswaldoCruz - maior instituição depesquisa biomédica daAmérica Latina -, resga-tando a história de seusconstrutores. Teve comoponto de partida um le-vantamento histórico dosedifícios da Fiocruz, en-viado, em 1999, ao Institu-to do Patrimônio Históricoe Artístico Nacional para otombamento definitivoda área de entorno doconjunto arquitetônicode Manguinhos.

268 páginas | R$ 60,00 (21x 26 cm) | Ano: 2003

Vida e obra deOswaldo Cruz

Clementino Fraga

Lançado após três déca-das de sua primeira e úni-ca edição pela LivrariaJosé Olympio Editora,este livro retrata um ex-traordinário momento dasaúde pública brasileira.Trata-se de uma reediçãoda biografia de OswaldoCruz escrita por Clemen-tino Fraga e representauma bela e delicada ho-menagem do discípulo aseu mestre, ambos imor-talizados na história dasaúde pública no Brasil.

240 páginas | R$ 30,00 (16x 23 cm) | Ano: 2005 (2ªedição)

Vacina antivarióli-ca: ciência, técni-ca e o poder doshomens, 1808-1920

Tania Maria Fernandes

A obra discute as relaçõesentre ciência, técnica eprodução, tendo como re-ferência as descobertas deEdward Jenner e as refle-xões de Louis Pasteur so-bre a vacina antivariólica.Aborda a organização ins-titucional implementadadurante o Império com oobjetivo de possibilitar aprática da vacinação e asobrevivência do Institu-to Vacínico Municipal emum contexto de polariza-ção das propostas de cen-tralização dos serviços desaúde. Destaca o conflitoentre o barão de PedroAffonso e Oswaldo Cruzacerca do tema, o quecontribuiu para a tomadade posições antagônicaspor parte de médicos epolíticos da época.

Preço: R$ 20,00 | 144 pági-nas (16 x 23 cm) | Ano:2010 (2ª edição)

Vírus, mosquitose modernidade:a febre amarelano Brasil entre ci-ência e política

Ilana Löwy

A autora não se limita aapresentar a história dafebre amarela no Brasil,mas também examina asrelações entre o saber ci-entífico universal e a per-cepção da doença tantopelos pacientes quantopelos médicos. Löwy con-seguiu obter em primeiramão informações precio-sas, até então adormecidasem arquivos e documen-tos de difícil acesso, quepermitiram uma percep-ção das medidas de pre-venção preconizadas pelaFundação Rockefeller.

428 páginas | R$ 51,00 (16x 23 cm) | Ano: 2006○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

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FIO DA HISTÓRIA

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americanoJohn Davi-son Rockefe-ller, fundadorda empre-

sa de petróleo StandardOil, foi o primeiro ame-ricano a ter mais de 1bilhão de dólares, sen-do o homem mais ricodo mundo na década de1930. Em 1913 criou aFundação Rockefeller,que destinava recursospara a área da medici-na, educação e pesqui-sa. A Fundação chegouao Brasil em 1916 e,em 1923, estabeleceuum convênio com ogoverno brasileiro, paracooperação médico-sa-nitária e programas deerradicação de ende-mias, principalmentea da febre amarela.

Não à toa o Pa-vilhão Rockefeller,uma das instala-ções do Institutode Tecnologa emImunobiológicos(Bio-Manguinhos/Fiocruz), leva oseu nome. Foi como dinheiro do em-presário americanoque, na década de1940, montou-seo laboratório parafabricar a vacinafebre amarela,no campus da Fi-ocruz. “A cruza-da internacional

ORodrigo Pereira

contra a febre amarela teve partici-pação fundamental da Fundação Ro-ckefeller. Seus cientistas atuaram deforma intensa no programa de con-trole da doença, tanto no combate aovetor urbano, quanto no desenvolvi-mento tecnológico da vacina”, lembrao assessor científico de Bio-Mangui-nhos, Akira Homma.

Até meados da década de 1930,acreditava-se que a doença era trans-mitida unicamente pelo Aedes aegypti.Essa certeza veio abaixo no Vale doCanaã, no município de Santa Teresa(ES). Um grupo de especialistas brasi-leiros e da Fundação Rockefeller, den-tre eles Henrique de Azevedo Penna,após minuciosas investigações na re-gião, publicou um trabalho em 1933concluindo que a febre amarela não eranecessariamente uma doença urbana.O estudo acabou mudando os termosdaquilo que era uma certeza: a febreamarela silvestre parecia ser a modali-dade comum da doença, e a urbana,apenas uma manifestação anormal.

Azevedo Penna, junto com J.Austin Kerr, da Fundação Rockefel-ler, escreveu o Manual da Vacina,em 1941, com a descrição detalha-da das etapas de sua preparação,permitindo a todos conhecer exata-mente qual técnica foi usada na pro-dução de cada lote. Imagens tambémeram coladas aos manuais produzi-dos durante as décadas de 1930 e1940, período em que os procedi-mentos eram constantemente revis-tos em função de problemas defabricação pelos quais a vacina foipassando até o alcance de um mo-delo mais estável. Desenvolvida ori-ginalmente nos laboratórios daFundação Rockefeller em Nova York,a técnica de obtenção da vacina foi

modificada diversas vezes no la-boratório do Rio, tendo em vistaum melhor resultado na etapa decultivo do vírus – que passou a serfeito em embrião de galinha e nãomais em cultura de tecido.

Penna teve participação muitoimportante na concepção do sistemalote semente e na mudança dos pro-cedimentos em produção de frag-mentos de embrião de pinto parainoculação direta no embrião vivo, oque permitiu aumento substancial derendimento da produção. Os tecno-logistas de Bio-Manguinhos tambémrealizaram outros aperfeiçoamentos,melhorando o rendimento e a quali-dade da vacina, como foi o caso damudança da via de inoculação no ovoembrionado e da formulação da va-cina com termoestabilizadores.

Desde sua criação, em 1976, Bio-Manguinhos produz milhões de do-ses da vacina anualmente. Apenasem 2016 foram 14 milhões. Em se-tembro de 2001 a unidade obteve acertificação de Boas Práticas de Fa-bricação (BPF) da vacina febre ama-rela, emitida pela Anvisa, passofundamental para a pré-qualificaçãointernacional. No mês seguinte, Bio-Manguinhos alcançou a pré-qualifi-cação da Organização Mundial deSaúde para atuar como fornecedorainternacional do produto, fato inédi-to na área de produção de vacinasno Brasil. Em 2010, o Instituto assi-nou acordo de desenvolvimento coma farmacêutica americana Fraunho-fer de uma vacina contra febre ama-rela inativada, a partir de plataformavegetal. O objetivo é produzir umnovo imunizante contra a doença,mais seguro e eficaz e com menoseventos adversos.

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Busto de Oswaldo Cruz em frenteao Castelo da Fundação

Foto: Peter Ilicciev

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