revista brasileira de literatura comparada - 04

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    ISSN - o1 0 3 ~ 9 6 3 A Revista Brasileira de Literatura Comparada uma publicaoanual da Associao Brasileira de Literatura Comparada (Abralic).entidade civil de carter cultural que congrega professores universitrios, pesquisadores e estudiosos de Literatura Comparada, fundada emPorto Alegre, em 1986.DIRETORIA DA ABRALIC - .1996-1998Presidente: Raul Antelo (UFSC); Vice-Presidente: Maria Lcia de BarrosCamargo (UFSC); Secretria: Tereza Virginia de Almeida (UFSC):2a Secretria: Susana Scramin (UFSC); Tesoureira: Ana Luiza Andrade(UFSC); 2 a Tesoureira: Cludia Lima Costa (UFSC)CONSELHO DA ABRALIC - 1996-1998Beatriz Resende (UFRJ); Eduardo F. Coutinho (UFRJ); Evelina SaHoisel (UFBA); Gilda Neves da Silva Bittencourt (UFRGS); PauloSergio Nolasco dos Santos (UFMS); Renato Cordeiro Gomes (PUCRio); Suplentes: ~ f a r i a Luisa Berwanger da Silva (UFRGS), Vera Lucia Romariz de AraJo (UFAL).

    CONSELHO EDITORIALBenedito Nunes, Bris Schnaidermann, Dirce Cortes Riedel, EneidaMaria de Souza, Haroldo de Campos, Joo Alexandre Barbosa, Jonathan Culler, Lisa Block de Behar, Luiz Costa Lima, Marlyse Meyer,Raul Antelo, Silviano Santiago, Sonia Brayner, Tania Franco Carvalhal,Yves Chevrel.Os conceitos emitidos em artigos assinados so de absoluta e exclusiva responsabilidade de seus autores.Abralic - Associao Brasileira de Literatura ComparadaNcleo de Estudos Literrios e Culturais - NELIC - Sala 253Centro de Comunicao e ExpressoUniversidade Federal de Santa CatarinaCampus Universitrio - Trindade88040-000 - Florianpolis/SCE-mail: [email protected]: (048)331-9988Fone: (048) 331-6602

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    1998. Associao Brasileira de Literatura Comparada.Todos os direitos reservados.Nenhuma parte desta revista poder ser reproduzida ou transmitida sejamquais forem os meios empregados, sem permisso por escrito.

    ProduioGrficaAnnye Cristiny TessaroVictor Emmanuel CarlsonTiragem1.200 exemplares

    R349

    C I P ~ R A S I L . CATALOGAO-NA-FONIESINDICATO NACIONAL DOS EDlTORES DE LIVRos. RJ

    Revista brasileirade literaturacomparada. - N. 1(1991)- Rio de Janeiro: Abralic, 1991-v.AnualDescrio baseada em: N. 4 (1998)ISSN 0103-69631. Literatura Comparada - Peridicos. I. AssociaoBrasileira de Literatura Comparada

    98--1200 CDD809.005CDU82.091 (05)

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    Sumrio

    LiminarRaul AnteloProjees de um DebateWander Melo Miranda

    A Teoria em CriseEneida Maria de Souza

    A Ameaa do LobisomemSilviano Santiago

    Cuentos de Verdad y Cuentos de judosJosefina LudmerOs Contextos da Tradio UniversalRaul AnteloLa Cultura Invisible: Rubn Dario yel Problema de Amrica Latina

    Graciela Montaldo"Don't interrupt me": The Gender Essayas Conversation and CountercanonMary Louise Pratt

    Quatro (2+2) Notas sobre o Sublime e a DessublimaoItalo MoriconiSobre la Potica de Juan L. Ortiz: una Mirada de Traductos

    Willian RoweLeituras Impertinentes

    Maria Lucia de Barros CamargoSaturno Devorador da Modernidade: Imagens/SensaesAna Luiza AndradeArs Potentior Natura: EI Otro Tiziano de Farabeuf

    071 119314561

    75

    8510311 7127147

    Alberto Moreiras 16 1

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    LiminarEsta edio dedicada a Antonio Candido em seus 80 anos.

    Raul Antelo

    Este nmero da Revista Brasileira de Literatura Comparada pretende ser um entres signo, um sinal entre dois tempos, situado alm douniversal e aps o sujeito. Prosseguindo o debate de indeliberada homenagem ao Fiat modes, pereat ars, de Max Emst, estampado em De-clnio da Arte/Ascenso da Cultura (Florianpolis, maro de 1997), eao mesmo tempo preparando o VI Congresso da ABRALIC, cujo mote,com prudncia interrogativa que equipara comparatismo a estudos culturais, h de encerrar a gesto catarinense desta associao, a RevistaBrasileira de Literatura Comparada rene, em seu nmero 4, variados materiais para esse debate. Em suas diferenas e tenses, elesrevelam que, como sabemos, nos ltimos cinqenta anos, o modelo dosestudos literrios descansou na oposio entre o cnone e seu outro, acultura popular. O dictum de um crtico de arte, Clement Greenberg,pode alis sintetiz-lo: vanguarda ou kitsch? Porm, as guerras tericasdos anos 80 mudaram, radicalmente, o panorama. Com as abordagensdesconstrutivas e ps-estruturais, isto , com o tpico da "morte daliteratura", as oposies entre alta e baixa cultura, ruptura e permanncia, centro e periferia tomam-se insustentveis. As guerras tericasrecentes mostram que, em ltima anlise, a literatura comparada ateoria da guerra e que, ao mudar o cenrio e o objeto das lutas (nomais o indivduo, no mais o valor, no mais a disciplina, no mais anao) o especfico da literatura comparada, nos dias de hoje, suapassagem ao ato, sua dissoluo, sua transgresso, seu movimento aoexterior de si.

    No fortuito que comparatismo e guerra se vejam assim associados. A dimenso universal, central ao comparatismo, s se consolida, de fato, manu militari, no incio do sculo XX. Porm, esse movi-

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    mento de reorganizao dos mapas geopolticos e acadmicos trouxeconsigo uma nova definio do objeto. A arte passa a perseguir umabeleza de choque, convulsiva, que, no raro, se apropria de elementosprimitivos para aprofundar" a percepo e aguar a sensibilidade. Umavez alcanado, o conceito de universal muda conseqentemente. A esttica dad se assumir como detentora de muitas nacionalidades simultneas ao passo que o surrealismo associar suas intervenes aouniversal particularizado (o estalinismo) ou ao universal em transformao constante (o trotskismo). Todavia, aps as anlises frankfurtianassobre a dialtica da modernidade, compreende-se melhor at mesmoaquilo que Adorno ou Horkheimer teriam dificuldade em aceitar, isto ,que um saber sem iluso uma pura iluso. No existe mito puro, nosdiz, alis, Michel Serres, a no ser o saber puro de todo mito. Fundemse a, em conseqncia, a poesia e o mito, o cnone e seu outro (Pasolini, Arguedas, tantos mais), dimenses que, para serem analisadas, passam a requerer novos conceitos operacionais, tais como o sagrado e oprofano, o heterogneo e o homogneo. Aquilo que se apresenta irredutvel a toda assimilao (o assassino, o louco, o poeta maldito) definese como heterogneo. Narra-se nas vidas infames de Foucault e pratica-se para alm dos marcos da profisso e da disciplina. Por quedeveriamos ser probos se Marx viveu de bolsas, Nietzsche ou Kierkegaard se recusaram a atender ao bem comum, Blanqui ou Wilde foramconfmados a uma cela e Maiakovski ou Benjamin encontraram a via aoexterior no suicdio? Contra a economia do dom, heterognea, abre-se,pelo contrrio, em todos esses casos, como pano de fundo, a sociedadehomognea, de intercmbio e acumulao, para a qual toda a heterogeneidade se transforma em subverso.

    Tais princpios de heterogeneidade (postulados por Bataille e Leiris,retomados pelo estruturalismo francs de Tel Quel e o ps-estruturalismo norte-americano de October, ou ainda por nossos Hlio Oiticica ouLygia Clark) arrancam a arte do isolamento autoconfiante e da satisfao indulgente. A literatura no , "no pode ser, uma reles carta deburguesia ou distino. A literatura situa-se, portanto, para alm deuma simples reconduo, populista e redistributiva, dos bens simblicosmas, ao mesmo tempo, posta-se, ainda, para alm do refgio onde seacoberta e monopoliza toda distino social.

    A literatura comparada depende, visceralmente, do desenvolvimento de lutas mais amplas da que o fim da guerra fria em 1989 tenhaferido seu estatuto universalista e afete, em conseqncia, o estudo daarte e da literatura. A pax americana que se segue s conspiraes de1950-80 apresenta, com efeito, um novo avatar da guerra: a luta pormegafuses.

    Tomando nossa regio como contexto, creio poder aventar umaprimeira onda de luta e guerra, a do Paraguai, que, em cada tradio

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    nacional envolvida, profissionaliza os exrcitos e politiza as foras armadas, cunhando at o gentlico regional: barriga-verde. A ela se segueuma segunda guerra ou onda de modernizao, protagonizada dessavez pelo capito de indstrias (o Venceslau Pietro Pietra, Cicillo Matarazzo, os Civita) que capitaliza para si, dissolvendo-a, a sociedade produzida pela onda precedente. A primeira onda guerreira declarara umatrplice aliana, uma lei comum para os pases da regio. A guerra damodernizao industrial cinde-os e, em conseqncia, os separa, estimulando a concorrncia entre si, porm, eufemizando tambm a acumulao e, para tanto, lana mo do perigo externo e de todos os fantasmas do contgio por contato. a guerra antropofgica (tupy or nottupy) degradada, muitas vezes, a clich eufrico; a guerra dos valentes suburbanos de Borges ou das transculturaes narrativas modernistas de Guimares Rosa. O perodo ps-ditadura, no entanto, simulater ultrapassado esses conflitos, harmonizados agora sob uma espciepeculiar de pax latino-americana, o regime de intercmbios do Mercosul. necessrio, porm, mais do que nunca, interpretar o perodoatual como modulao diferencial da guerra nmade. Trata-se da passagem do mercado de bens para o mercado de capitais (da as entidades bancrias e financeiras liderarem o novo processo de megafuses).Como a renda dos investimentos a longo prazo menor do que o lucroque se obtm com as aplicaes a curto prazo, a prpria fuso estratgica do capital monetrio aparece agora subordinada fuso estratgica do capital fictcio. A poesia e o mito, eis a chave dos prncipes damoeda e suas engenharias geopolticas.A poesia, nos disse Mallarm, remunera os defeitos das lnguas.Na guerra simblica, a literatura comparada visa remunerar os defeitosdas particularidades. Para tanto, busca ir alm do particular regional ounacional, tendo que lutar agora com a emergncia de novos saberes, viade regra, comprometidos com o investimento a curto prazo, empenhados eles mesmos em ultrapassar o prprio conceito de universal. Soos estudos da cultura, j praticados na Inglaterra pauperizada pelofim do colonialismo mas globalizados, irreversivelmente, pela novaordem mundial.Nas pginas que seguem tentamos reunir um mostrurio detendncias a repensar essas questes sob uma particular viso latino-americana, certos de que essa regio supra-nacional a primeiramaneira de ultrapassar o estatuto colonial e de, ao mesmo tempo,construir um multiculturalismo especfico. Confiamos no debate queelas possam suscitar.

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    1 Sobre a noo de campo, ver GODZICH,Wlad. As literaturasemergentes e o campoda comparatstica. Ca-dernos deMestradolLi-teratura, Rio de Janeiro,nol3,1995,p.24-25.Campo tem a o sentidode um recorte do saberculturalmente construdo e submetido s operaes do seu aparato,sendo, portanto "condio da possibilidade dodesenvolvimento cultura!".Em vistadisso,afrrma-se que "o 'campo'da comparatstica ocampo." Ver tambmBOURDIEU, Pierre. Aeconomia das trocassimblicas. So Paulo:Perspectiva, 1987.

    Projees de um Debate

    Wander Melo MirandaUniversidade Federal de Minas Gerais

    o campo que descobrimos o solo apartir do qual o olhar terico formadoe, em conseqncia, condicionado.

    WIad Godzicho mpacto acadmico do debate sobre os estudos culturais entre nspode ser medido pelo espao que esse debate tem alcanado no mbitoda Associao Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), a maisimportante associao de pesquisadores da rea. primeira vista, oaparato de saber mobilizado pela abertura de outra via de discussoparece redimensionar os limites da interlocuo comparativista at aimploso de seus contornos disciplinares, colocando em xeque sua legitimidade institucional. Mas a perplexidade diante da nova situao, quepara muitos se traduz pela perda de identidade do objeto, indcio menos de uma crise do que a reafirmao, em termos radicais, de que oobjeto da comparatstica o seu campo 1.A natureza metaterica dos estudos comparados, assim percebida, reverte a expectativa de ausncia de rigor conceitual e diluio dosparmetros de avaliao crtica, uma vez que reorienta a perspectivao metodolgica a que submete o objeto para o exame das suas condies semiticas e culturais, que so, em ltima instncia, singulares elocalizadas. Trata-se de inquirir a formao de valores que da decorrem, a partir da alteridade que os constitui enquanto valores diferenciais e que, portanto, anulam qualquer exigncia de universalidade e totalizao.

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    12 - Revista Brasileira de Literatura Comparada, n 4, 1998A compreenso da literatura comparada como "institucionalizao de um saber sobre a diferena"2 promove um deslocamento criticoque busca, por um lado, historicizar o conceito, por outro, abstrair o queest muito contextualizado. Tal operao terica - formadora e condicionada, nos termos da epgrafe acima - distancia o comparativismo dacompulso documental e da avaliao unvoca que por vezes circunscrevem os estudos culturais esfera de um novo empirismo, emborano deixe de "localizar o esttico na constelao mais abrangente dosprocessos culturais, no sentido antropolgico"3.A questo tem ocupado com certa regularidade a agenda de discusses no mbito da critica literria no Brasil, em particular, de formamais sistemtica e contnua, nas atividades promovidas pela direo da

    Abralic e por seus pesquisadores. A partir do 5 congresso da associao, realizado no Rio de Janeiro de 30 de julho a 2 de agosto de 1996,sob a presidncia de Eduardo Coutinho, a discusso adquiriu contornosmais ntidos e incisivos, em virtude do prprio tema escolhido para oevento: "Cnones & Contextos". No dizer de Raul Antelo, afirmou-sea um registro dominante, o "das polticas de representao"4, contra oqual se insurgiu Leyla Perrone-Moiss, com o texto que obteve granderepercusso e igual polmica dentre os apresentados. O texto com ottulo de "Que fim levou a crtica literria?", foi publicado no caderno"Mais!" da Folha de S Paulo em 25 de agosto de 1996, alguns diasaps o encerramento do congresso, mostrando inusitada sintonia damdia com a academia.A indagao presente no artigo de Leyla Perrone resume aspreocupaes de parte expressiva dos profissionais da rea de Literatura no Brasil, meio atordoados com a influncia dos estudos culturaisde linha norte-americana no pas, como se o nosso velho e nunca resolvido problema do "torcicolo cultural" (Roberto Schwarz) retornasseoutra vez. O texto d forma a esse novo desconforto, abrindo o debatesobre a perda de espao dos "estudos especificamente literrios" naacademia e seu enfraquecimento diante das novas reas de poder nasinstituies de ensino. Diz a autora:

    No se trata aqui de negar a utilidade e a oportunidadedos "estudos culturais". Trata-se de defender o espaodos estudos especificamente literrios. O "culturalismo"que atinge a rea literria, e no apenas ela, ameaa substituir as disciplinas especializadas por um ecletismo desprovido de qualquer rigor na formao do pesquisador ena formulao de conceitos e juizos5

    Mais adiante Leyla Perrone esclarece de que modalidade dejuzo se trata: ')uzo reflexivo e no juzo determinante". Esse juzo seria

    l ANTELO, Raul. Discurso de posse da diretoria da Abralic. Florianpolis: UFSC, 1996.p. 4. (Indito).

    1 YDICE, George. Debates atuais em torno dosEstudos Culturais nosEstados Unidos. Salvador' ANPOLLlGT de Literatura Comparada,1997. p. 1. (Indito).

    t ANTELO. op. cit., p. 3.

    5 PERRONE-MOISS,Leyla. Que fim levou acrtica literria? Folhade S. Paulo, 25 ago.1996, Mais!, p. 9.

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    6YDICE, Op. cit., p. 1.

    Projees de um Debate - 13constitudo por uma elite intelectual, que na melhor tradio moderna daprimeira metade do sculo :XX, a responsvel pelo estabelecimentode padres de gosto e validade esttica - logo, de um cnone de referncia, sem o qual no possvel o julgamento crtico. Como argumentodefinitivo e legitimador da posio defendida, a autora lana mo daaula inaugural de Barthes, em 1977, no Colh!ge de France, chamando a ateno para o fato de o terico francs insistir na "responsabilidade da forma".

    No dificil perceber as razes - epistemolgicas e prticas,chamemo-las assim - da reao contra os estudos culturais, se se temem conta que estes, ao terem como objetivo "o estudo da formao decritrios de valor"6, colocam em xeque a hegemonia dos valores institudos pela comunidade de letrados, por meio da reviso do cnone porcritrios tidos como extra-literrios (reivindicaes de minorias e de excolnias), que no visam abolir o cnone, o que do ponto de vista deLeyla Perrone seria uma incoerncia de princpios. Na verdade, o queessa perspectiva crtica no percebe, por defender a manuteno deum espao disciplinar fechado ao que est alm ou fora de suasfronteiras, a lgica suplementar, no sentido derridiano do termo,que as referidas reivindicaes instauram na cena literria e culturalda contemporaneidade.

    Desligitimar esse processo, ao situ-lo como a "doxa triunfante"do ps-moderno (sem que se defina com rigor terico o que se estconsiderando sob tal rtulo), insistir num regime de leitura fundado novalor universal construdo pela modernidade ocidental, baseado na esttica da ruptura, na "superstio do novo" (que Baudelaire j criticavana arte moderna), na rejeio in totum da cultura de massa, vista comoa bte noire da atualidade. Da mesma forma, ao imputar as transformaes sofridas pela literatura e pela arte contemporneas necessidade de atender a imposies de um mercado transnacional num mundo globalizado, sem querer (ou querendo), investe-se na manutenodas literaturas nacionais cannicas, a partir do endosso da idia de nao como entidade una e autnoma.

    Tais questes reapareceram, de outra perspectiva, na reunio doGT de Literatura Comparada da ANPOLL, realizada em Salvador, de28 a 30 de setembro de 1997, sobretudo nas discusses realizadas apartir da conferncia "Debates atuais em tomo dos Estudos Culturaisnos Estados Unidos", proferida por George Ydice. A conferncia ressaltou a emergncia dos estudos culturais no final da dcada de 70 nosEstados Unidos e o olhar auto-reflexivo que distinguia a nova rea deconhecimento da crtica cultural anterior, como pode ser observado jno primeiro nmero de Social Text, atravs das contribuies dos colaboradores da revista, identificados esquerda do espectro ideolgicoamericano e responsveis pelas mudanas ento em curso. Carentes

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    de coerncia uniformizadora, os estudos culturais manifestam uma tenso interna, oriunda das vrias tendncias que abrigam, bem como mantm relaes de proximidade com os estudos subalternos, os estudosminoritrios e os ps-coloniais. De qualquer forma, tm como traodeterminante o fato de serem "uma srie de perspectivas tericas ecrticas que pretendem desconstruir as bases dos critrios nos quais sebaseiam os valores sociais"'. Nesse espao, a literatura e as artes emgeral continuam ainda a "fazer-nos experimentar os processos sociaisna sua forma, nos seus usos, nos seus contedos"8, embora sem o privilgio heurstico mantido at ento.

    A perspectiva culturalista e antropolgica, assumida de modo aeleger a "performance como prtica e a performatividade como princpio de anlise''9, resulta numa sorte de realismo que, conforme salientou Raul Antelo na ocasio, no leva em conta a tradio das vanguardas. Nessa tradio, ainda segundo Antelo, residiria uma alternativacrtica s representaes, mais precisamente atravs da operacionalizao conceitual e prtica do "ready made", entendido como refuncionalizao de um objeto j existente e que traria em si uma crtica aosprocessos de legitimao do valor, atravs da desconstruo de noescomo de origem e fundamento, propriedade e universalismo

    A abordagem do objeto cultural pelo interesse literrio instauraum antagonismo produtivo na relao da literatura comparada com osestudos culturais, podendo ser considerada como uma sorte de estratgia de abertura do objeto e de problematizao do seu campo (no sentido j explicitado). Para tanto, a prpria situao institucional de ambasas reas de estudo no Brasil favorvel. Nem os estudos culturais,nem a literatura comparada constituem departamentos autnomos nasuniversidades, definem antes programas de ps-graduao ou projetosde pesquisa JO , que transcendem territrios disciplinares muito marcadosacademicamente, absorvendo profissionais de distintas subreas deLetras e afins, na sua maioria provenientes do ensino de Teoria daLiteratura e de literaturas nacionais.

    Tem-se a um trao diferencial que nos distingue, por exemplo,dos comparatistas europeus, mais propensos a projetar sobre a Amrica Latina a marca filolgica de autor, fonte e original. Diferente deles,como lembrou Eneida Leal Cunha no debate do GT, a vulgata para ns outra - F oucauIt, Deleuze, Derrida - e com os estudos culturais queprovm dessa biblioteca que dialogamos. Noes da advindas, comoas de disseminao, suplemento, diflrance, literatura menor, nos fornecem o referencial terico para equacionar o que pede estudo na contemporaneidade - o local e suas relaes com o global. Ao contrriodas teorias da identidade, um olhar distanciado ou "estranho" sobre oobjeto permite articular o local ao debate internacional da atualidade,contextualizando-o nos termos de uma outra perspectiva, distinta do

    7 Idem, p. 7.

    8 Idem, p. li .

    9 Idem, ibidem.

    10 No caso dos estudosculturais, deve-se destacar o Programa Avanado de Cultura Contempornea da UFRJ(PACCIUFRJ). Atualmente o Programa realiza diversas modalidadesde debate via internet,do qual podem participar os que se cadastramna "home page" da Biblioteca Virtual de Estudos Culturais doPACC.

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    11 LIMA, Luiz Costa. Ocontrole do imaginrio ea literatura comparada.Cadernos de Mestrado/Litera tura, Rio de Janeiro, n0 13, 1995, p. 49.

    12 SANTIAGO, Silviano. Democratizao noBrasil- 1979-1981 (Cultura versus Arte). In:ANTELO, Raul et a\.Declnio da Arte/Ascen-so da Cultura. Florianpolis: Abralic/LetrasContemporneas, 1998.p. 11.

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    "elo entre a justificao esttica e o princpio de nacionalidade"!!, eloprprio relao comparativista tradicional.Melhor pensar na metfora da fronteira. Implcita literaturacomparada, toma-se espao de travessia, ao mesmo tempo limite elimiar da possibilidade de elaborao da diferena que os estudos culturais vo acentuar nos estudos literrios. No caso brasileiro, desde osanos 70, embora sem o rtulo que viria identificar posteriormente talrea de atuao, alguns toricos e crticos, provenientes de Letras oude Antropologia, j estavam trabalhando na fronteira entre literatura ecultura. o que Silviano Santiago demonstra com preciso no Seminrio "Declnio da Arte/Ascenso da Cultura", promovido pela Abralicem Florianpolis, em maro de 1997. Com o ttulo de "Democratizaono Brasil- 1979-1981 (Cultura versus Arte)", a conferncia de Silviano Santiago parte de uma srie de questes que vale a pena reproduzir:Quando que a cultura brasileira despe as roupas ne-gras e sombrias da resistncia ditadura militar e se vestecom as roupas transparentes e festivas da democratiza-o? Quando que a coeso das esquerdas, alcanadana resistncia represso e tortura, cede lugar a dife-renas internas significativas? Quando que a arte bra-sileira deixa de ser literria e sociolgica para ter umadominante cultural e antropolgica? Quando que se rom-pem as muralhas da reflexo crtica que separavam, namodernidade, o erudito do popular e do pop? Quando que a linguagem espontnea e precria da entrevista ljor-nalstica, televisiva, etc) com artistas e intelectuais substi-tui as afirmaes coletivas e dogmticas dos polticos pro-fissionais, para se tornar a forma de comunicao com onovo pblico?12

    Para o equacionamento das respostas, o crtico demarca operodo de 1979 a 1981. Detecta a alguns momentos-chave do quepoderia ser chamado de emergncia dos estudos culturais no Brasil,retomando o debate das relaes entre arte, vida e poltica, a partir dealguns textos da poca. So eles: as entrevistas reunidas em Patrulhasideolgicas (1980) por Heloisa Buarque de Hollanda e Carlos AlbertoMesseder; o livro Retrato de poca (um estudo sobre a poesia mar-ginal da dcada de 70) (1981), do mesmo Carlos Alberto; o artigo "Ominuto e o milnio ou Por favor, professor, uma dcada de cada vez",de Jos Miguel Wisnik, publicado em Anos 70 - Msica popular (1979-1980); o estudo de Cludia Matos Acertei no milhar (samba e malan-dragem no tempo de Getlio) (1981).Cada um desses textos contribui, sua maneira, para a demo-

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    cratizao das instncias de produo e recepo da arte e da literaturano Brasil, por meio de uma perspectiva antropolgica que cria novosespaos de enunciao, diferentes daqueles constitudos pelas prticasacadmicas e polticas at ento dominantes. Assim como o debatesobre as "patrulhas ideolgicas" encerra de vez a hegemonia da esquerda no mbito artstico-cultural, no campo da literatura a poesiamarginal ir relativizar a especificidade do literrio. Diz Silviano:

    Esvaziar o discurso potico da sua especificidade, liber/o do seu componente e/evado e atemporal, desprezandoos jogos clssicos da ambigidade que o diferenciava dosoutros discursos, enfim, equipar-lo qualitativamente aodilogo provocativo sobre o cotidiano, com o fim de umaentrevista passageira, tudo isto corresponde ao gesto metodolgico de apreender o poema no que ele apresenta demais efmero. Ou seja, na sua transitividade, na suacomunicabilidade com o prximo que o deseja para torn-lo seu. 13

    A funo de "mediador cultural" assumida pelo poema fa\oreceprocessos de identificao que tm repercusses mais amplas no instante em que o cotidiano se politizava e a poltica se cotidianizava, pararetomar a famosa constatao de Caetano Veloso. No outro o papeldo relato de vida dos jovens revolucionrios ou ex-exilados, que a ateno crtica de Silviano Santiago privilegia em alguns de seus ensaiosanteriores, como uma espcie de virada da literatura brasileira, numsutil acerto de contas com as produes do alto modernismo, no momento mesmo em que alguns de seus mais ilustres representantes, comoMurilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava, traziama pblico suas memrias, de elevada qualidade artstica.

    Na esteira dos relatos de vida dos jovens polticos, que o prprioSilviano pasticha sob a forma de interposta pessoa na fico Em liberdade (1981), a emergncia dos textos autobiogrficos das minoriasacentua a natureza "antropolgica" que a literatura produzida no Brasilvai adquirindo. Em conseqncia, desfaz-se a idia de uma nao literariamente una e coesa na sua diversidade. que o modernismo de 1922contribuiu para afirmar, surgindo em seu lugar um espao fragmentadoe disjuntivo na sua heterogeneidade.

    Nesse cenrio, a que a indstria cultural globalizada se encarrega de dar uma feio prpria, a atribuio da funo de mediador aoobjeto literrio uma atribuio de valor em que a diferena intra eintercultural joga a cartada decisiva. Na agonstica de valores assiminstituda, a questo da literatura nacional brasileira, por exemplo, tomauma outra direo, na medida em que o nacional deixa de ser pensado

    n Idem. p. 14.

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    14 Cf. SANTIAGO, Sil-viano. Vale quanto pesa.Rio de Janeiro: Paz eTerra, 1982. p. 39.

    Projees de um Debate - 17como aquilo que permite dar um significado homogneo ao que heterogneo. Colocada sob suspeita, a narrativa da nao que sustentavaavaliaes anteriores deixa de desempenhar o papel legitimador quevinha at ento exercendo e que a equao nacional = moderno sintetiza com preciso.

    A aferio da validade poltico-cultural de uma obra literria brasileira - se, no caso, ainda de todo cabvel o gentlico - no dependemais do seu maior ou menor grau de nacionalismo, nem do pagamentode um possvel dbito contrado com os centros hegemnicos internos eexternos. Vale dizer: a diferena que margeia o texto literrio e o constitui como tal no se define por uma originalidade intransfervel, mas antes a marca da retomada intermitente de uma cultura por outra. Trata-se, de certa forma, de pensar o texto "fora" da literatura, realizandouma operao desconstrutora que, para chegar ao seu fini., deve abandonar a especificidade literria imposta de antemo ao objeto por umacomunidade interpretativa dada ou sua reificao por determinados regimes centralizadores de leitura.

    A dinmica desse processo supe que a crtica abandone de vezsua postura ratificadora de padres universalistas de avaliao e equacione teoricamente suas prprias condies de possibilidade frente ssingularidades histricas. Se a globalizao libera as identidades locaisdo peso da cultura nacional, o poder residual desta ltima impede queaquelas sejam fetichizadas, abrindo um novo espao para a avaliaoda cultura outra sem deslegitimar a heterogeneidade que a toma irredutvel. A globalizao resulta, portanto, numa questo de escala oude comparao, que amplia o horizonte de expectativas do leitor, bemcomo o espao cultural e disciplinar da relao comparatista.

    Como um antroplogo que no precisa deixar seu pas, para lembrar aqui outra formulao de Silviano Santiago l 4, o crtico contemporneo anula a face endgena do intercmbio entre textos e culturas,com um p c e outro l: dentro e fora de espaos geogrficos e disciplinares. Essa postura lhe permite problematizar o local na sua relaocom o global, mais interessado no hiato inerente a uma viso duplamente prxima e distanciada do objeto -li terrio, artstico, cultural- do quenas certezas a que levam as teorias da identidade. a partir da quetem incio a possibilidade de constituio de um pensamento critico sobre a literatura na atualidade. esse debate que o 6 congresso daAbralic, a ter lugar em agosto de 1998 em Florianpolis, continua apropor sob a forma da indagao que o sintetiza - "Literatura Comparada = Estudos Culturais?" - e que deixa ainda em aberto a questoque buscamos pontuar.

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    Eneida Maria de SouzaUniversidade Federal de Minas Gerais

    o debate que hoje comea a movimentar a comunidade universitriase baseia na anl1ga ruscusso sobre os efeitos que determinadas teoriasestrangeiras prO\ ocam no campo da crtica literria, considerando-seesta como um do,s discursos que ultimamente tem se destacado no interior das Cincias Humanas. Nada mais saudvel do que essa aberturaao debate. no qual intelectuais se vem na obrigao de se posicionarem frente a tais questes, no lugar de preferirem continuar apticos noseu gabinete, reservando-se o direito de expresso apenas ao ambienteda sala de aula. As inmeras oportunidades oferecidas para o avanodas discusses no se restringem aos encontros acadmicos, sistematizao de pesquisas realizada por grupos interdisciplinares, s sesses de defesa de teses ou aos grandes congressos internacionais, mass publicaes veiculadas por revistas especializadas, livros e, principalmente, pela atuao do intelectual nos lugares aos quais convidadoa se manifestar, incluindo-se a os meios de comunicao de massa. Arecente inclinao de conjugar o saber produzido por especialistas comsua divulgao mais popularizada traduz os diferentes lugares por ondepassa atualmente o conhecimento, exigindo-se, na realidade, a revisode antigos preconceitos relativos separao entre cultura erudita. popular e de massa.

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    A crtica literria no Brasil, por sua vez experiente dos caminhospercorridos, tem se apresentado em diversos cenrios de elocuo, quevo desde a fase da crtica de rodap dos anos 30 aos 50, at o ambiente universitrio, onde se desenvolve um estudo mais especializado, coma criao, nos anos 70, de cursos de ps-graduao. A sua presena namdia , nos dias atuais, reservada a resenhas e a artigos que muitasvezes ultrapassam o mbito da crtica literria, constituindo-se, comfreqncia, em textos que incrementam o debate intelectual entre ns.Mas, antes de tudo, seria preciso lembrar que no se trata mais de seconsiderar a literatura na sua condio de obra esteticamente concebida, ou de valorizar critrios de literariedade, maS de interpret-Ia comoproduto capaz de suscitar questes de ordem terica ou de problematizar temas de interesse atual, sem se restringir a um pblico especfico.

    A preocupao de representantes da crtica literria quanto crise por que passa a disciplina causada pelas transformaesculturais e polticas das ltimas dcadas, razes pelas quais o problematerico no se restringe apenas crtica literria. A crescente diluiodas fronteiras disciplinares e dos objetos especficos de estudo provocadiscusses mais abrangentes na rea das humanidades, abalada pelaabertura epistemolgica e pelo enfraquecimento de territrios. Estudiosos brasileiros, acostumados a conviver com a chegada. hoje muito maisrpida, de teorias estrangeiras nos lares acadmicos. \em-se em conflito frente aos caminhos da crtica, uma vez que os estudos culturais deorigem anglo-saxnica, e atualmente desenvolvidos nos Estados Uni-dos, estariam ameaando os estudos literrios, corrompendo o objetode anlise e distorcendo a teoria da literatura. A mudana do centroprodutor de saberes ligados s Cincias Humanas - a Europa pelosEstados Unidos - constitui um dos maiores fatores da polmica queatualmente se trava no meio acadmico, considerando-se que os princpios norteadores e desconstrutores da teoria literria se concentra\am.basicamente, na Europa. Antigos inimigos do estruturalismo francs. aolado de novos defensores da literatura como discurso a ser priorizadofrente aos outros, assim como da teoria como forma de controle interdisciplinaridade desenfreada, esto novamente alertas contra o "imperialismo americano" e os efeitos de sua poltica cultural globalizada.

    A histria da teoria literria como construo moderna - os gregosa praticavam, mas no na concepo adquirida no sculo XX - estvinculada divulgao europia, nos anos 60, da teoria produzida naRssia pelos formalistas, herdeiros da revoluo cientfica da lingstica, desencadeada pelas descobertas de Saussure, alm do new cri ti-cism americano. Este conceito moderno da teoria literria teve por objetivo a produo cientfica do objeto de estudo, abolindo-se a visohistoricista, psicolgica e biogrfica do literrio e instaurando o princpioda literariedade como valor. Os desdobramentos dessa corrente for-

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    malista nos pases ocidentais so por demais conhecidos e continuam,at hoje, a ecoar nos discursos que se voltam para a literatura. O cartersistemtico da teoria, a relao funcionalista entre sistema literrio esistema social desenvolvido por Tinyanov, o valor intrnseco da obraliterria como construo de linguagem e a sua diferena relativa aodiscurso coloquial receberam tratamento mais sofisticado ao longo dotempo, alm de terem sido relidos posteriormente atravs de vriasteorias, tais como as da recepo e do efeito, veiculadas pelos alemesJauss e W. Iser.

    Com o boom terico trazido pelo estruturalismo a parti r dos anos50, as Cincias Humanas retomam as lies saussurianas e elegem oparadigma lingstico como articulador dos outros discursos, realizando-se, nas vrias reas de saber, o trnsito interdisciplinar na construo dos diferentes objetos de estudo. A antropologia de Lvi-Strauss, apsicanlise de Lacan, a leitura sintomal de Althusser, para citar apenasalgumas tendncias, contribuem para o dilogo que a crtica literriafrancesa ir manter com outros campos do saber. Embora a maioriados crticos respondesse pela fidelidade ao objeto da literatura e descrio semiolgica e lingstica do literrio - em substituio anliseestilstica e filolgica - o intercmbio disciplinar foi bastante praticado,destacando-se, entre eles, Roland Barthes e Julia Kristeva, responsveis pela abertura do texto literrio anlise psicanaltica e ampliaodo conceito de texto, pela introduo da categoria da intertextualidade,de origem bakhtiniana. Tericos da comunicao de massa, com boaaceitao no meio acadmico brasileiro, contriburam, atravs da abordagem semiolgica, para a expanso do objeto de estudo da teoria, nomais confinado s obras consagradas pelo cnone ou inserido no rtuloliterrio. Marcada ou no pelas parcerias discursivas, a teoria literriasoube pelo menos preservar, at pouco tempo, um espao de saberconsolidado, com suas regras, correntes, procedimentos analticos,autores e mtodos.

    A reao contempornea assumida pela crtica literria frenteaos estudos culturais no se restringe aos seus representantes brasileiros, mas se encontra tambm entre os europeus e os prprios norteamericanos. Manifestam-se inconformados no apenas com a "perigosa" diluio do objeto de anlise, mas tambm com a presumida ausncia de rigor terico e sistematizao metodolgica, que teriam sido motivadas, em grande parte, pelas teorias da multiplicidade, da desconstruo e da descontinuidade ps-estruturalista de Gilles Deleuze e Guattari, Jacques Derrida e Michel Foucault, referncias importantes para areleitura das questes culturais processada pelos americanos. Mas agrande vil da histria se concentra na figura "informe" da interdisciplinaridade, praticada, segundo seus detratores, sem a observncia de leisou de controle, a ponto de ser considerada, por K. Anthony Appiah, em

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    22 - Revista Brasileim de Literatum Comparada. n 4, 1998texto de 1993, "an unstructured post-modem hodge-podge"l.A discusso sobre os estudos culturais, a crtica literria comparada e a teoria literria consistiria, segundo alguns tericos, na transformao da interdisciplinaridade em um novo gnero (Richard Rorty) ounuma outra teoria (Jonathan Culler), em uma nova disciplina ou ps-disciplina, como a definem os crticos culturais. Sem que esse debateseja suficientemente levado a termo, persistiro as dvidas e as acusaes. Refletir sobre as diversas posies tericas que tratam do as-sunto uma das formas de tentar historiczar as questes e de entendera causa das desavenas. Caso contrrio, a discusso no avana ecorre-se o risco de se emitirem opinies equivocadas por falta de interesse em conhecer os lugares de onde esto sendo enunciados os diferentes discursos tericos. A identidade requerida s disciplinas ignoraos atuais processos de valorizao literria e cultural, nos quais soinseridos critrios que ultrapassam o campo particular de cada discurso.O embate entre as correntes da crtica que postulam a existncia de uma teoria rigorosa, sistemtica e os crticos culturais, respondepela necessidade de se manter o controle epistemolgico em relao aoobjeto de estudo. Entre os partidrios dessa idia, incluem-se os representantes da teoria construtivista alem, na figura de S. 1. Schmidt, ouaqueles que acreditam na teoria literria como "uma escola de relativismo, no de pluralismo" (A.Compagnon)2. Tal controle poderia aindaimpedir que o comparativismo e os estudos culturais se transformassem num "vale tudo" (Luiz Costa Lima)3; que a interdisciplinaridadepraticada pelos americanos fosse vista por S. J. Schmidt como "instalao de um armazm de secos e molhados" (Heidrun Olinto)\ ou que o'''culturalismo' que atinge a rea literria, e no apenas ela", no maisameaasse "substituir as disciplinas especializadas por um ecletismodesprovido de qualquer rigor na formao do pesquisador e na formulao de conceitos e juzos" (Leyla Perrone-Moiss)s.

    Uma primeira constatao que se extrai dessas opinies revela acensura ao ecletismo e falta de rigor na formulao de conceitos ejuzos prprios das tendncias contemporneas, em que se tomam frouxas as articulaes tericas, passivos os juzos de valor e imparcial aprtica analtica, em virtude do pluralismo de posies e de mtodos. Oque est em jogo, entre as tendncias culturais e literrias, no se restringe apenas escolha de obras que participem ou no do cnoneliterrio, mas se relaciona ao carter regulador da crtica cultural, aoconsiderar elitista a preferncia do estudioso por escritores consagrados e tradicionalmente aceitos pela comunidade acadmica. A reaodesses autores denuncia a intolerncia como atitude pautada pelos mesmos erros cometidos pela opinio elitista diante da literatura, reservando crtica o direito de escolher os autores "brancos e ocidentais"como objeto de culto e de anlise. No se trata, no entanto, apenas da

    J APPIAH, K. An-thony. Geists stories. In:BERHEIMER, Charles.(Ed.) Compara tive Life-rature in the age o fmul-ticulturalism. Baltimore:John Hopkins University Press, 1995. p. 57.

    COMPAGNON, Antoine. Le dmon de lalhorie: littrature etseus comnllln. Paris:Seuil. 1998. P 282.J LIMA. Luiz Costa. Ocomparativismo hoje.Congresso ABRALIC,5,1996. In: Anais ... Riode Janeiro: UFRJ, 1997,p. 81-84. OLINTO, HeidrunKrieger. In teresses epaixes: histrias de li-teratura. In: OLINTO,Heidrun Krieger. (Org.).Hislrias de literatura:as novas teorias ale-ms. So Paulo: tica,1996. p. 33.S MOISS, Leyla Perrone. A crtica literriahoje. Congresso ABRALIC, 5, 1996. Anais ...Rio de Janeiro, UFRJ,1997, p.6.

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    6 ELLIS, John M. Lite-rature lost: social agen-das and lhe corruptionofhumanities. Yale: YaleUniversity Press, 1997.p. 201.

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    liberdade de escolha e da conservao do gosto esttico: as razes quemotivam a defesa da literatura como manifestao singular e acima dosenso comum, como se sabe, dependem de critrios consensuais dedeterminada classe social, guiados pela relao entre cultura e poder,cultura e prestgio, critrios esses tributrios da concepo mediatizadae institucionalizada da literatura. Por trs da discusso do gosto estticose acham inseridos problemas mais substantivos quanto diferena declasse, democratizao da cultura e perda do privilgio de um saberque pertencia a poucos.

    Reaes dessa natureza so apresentadas por um professor deliteratura alem, John M. Ellis, da Universidade da Califrnia, no livroLiterature lost: social agendas and the corruption of the humaniti-es, ao discutir tanto o politicamente correto quanto a falncia da teoriacomo conseqncias graves dos estudos culturais. A causa imediatadessa falncia terica recai na filosofia francesa dos anos 70, representada por Derrida, Foucault, entre outros. Sintomaticamente, uma novaelite pensante vista pelo autor como detentora de saberes que secaracterizam pela sofisticao e pelo esquecimento da tradio, fazendo tabula rasa de tudo o que havia sido realizado no passado. Dotada delinguagem prpria, essa elite intelectual afastaria os que no se enquadrariam nos novos conceitos e expresses do momento, criando-se umasituao de excluso "politicamente incorreta", diria eu. A ameaa terica e a formao de grupos de resistncia existem, como se v, na prpriaacademia americana. As palavras do ensasta so provocadoras:

    The new elite shared a set of assumptions but not a pen-chant for analysis. One recognized members not by theiranalytical skill but by the standardized quality of theirattitudes. Ali went through similar motions to come to similarconc/usions. Theory was not no longer about conformity.Stanley Fish's Doing What Comes Naturally was typical bothin its predictable positions and its ignoring the past: inthis book, philosophy of science begins with Thomas Kuhn,serious questions about the idea of truth and the positivisttheory of language begin with Derrida, jurisprudencebegins with the radical Criticai Legal Studies movement,and cultural relativism is a bright new idea without anyprevious history6.

    Destruir o conceito de origem seria uma das maiores acusaess teorias culturalistas, visto que o que se critica em Stanley Fish justamente o esquecimento dos verdadeiros precursores tericos, pelavalorizao de pensadores contemporneos. O autor recusa ainda oalto nvel de estandardizao do saber, na medida em que se abole o

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    poder analtico e se privilegia a generalizao. Guardadas as devidasressalvas, toma-se evidente que a sua posio conservadora representa uma grande parcela do imaginrio crtico da atualidade, na qual atradio funciona como lugar de reserva utpica e as possveis mudanas como empecilho ideolgico para a preservao de cargos institucionais. Reconhecer a tradio como fora e no como modelo seriauma das formas de melhor lidar com a proposta desconstrutora de Jacques Derrida, por exemplo.A posio de Luiz Costa Lima em, "O comparativismo hoje",retoma algumas questes do livro de Ellis, com enfoque na urgncia dese pensar em categorias capazes de tomar comparveis os objetos.sem cair em preconceitos ligados a escolhas de ordem elitista ou deoutra ordem. Afasta-se do crtico norte-americano ao se colocar contraa atual desconfiana da crtica comparativista em relao teoria, \istacomo responsvel pelo universalismo interpretativo. Parte em defesade uma reviso do prprio conceito de universal, retirando-lhe uma ftmo apriorstica na formao de saberes, reforando, paradoxalmente,a impossibilidade de se conceber qualquer conceito sem a sua vertenteuniversalista - romper com esses princpios seria acreditar na formulao de teorias desprovidas de propriedades verificveis. Destituir o objetode sua homogeneidade interna seria interpret-lo na sua ausncia depropriedade o que o impediria de ser comparvel a outro. O valor decada objeto deve ser determinado como condio indispensvel para setentar construir um solo de discursos que mantenham propriedades afinse distintas, comparveis entre si.

    No momento presente, contemporneo s acusaes dirigidas ao falso moralismo que a teoria teria provocado.o comparativismo torna-se ento o qu? Pode-se defim-locomo o lugar das perplexidades ou como uma rea aovale tudo. De perplexidades: ante a suspeita que recai sobrea teoria como filhote do imperialismo(l) ou rebento domachismo(l) ou da suposta superioridade dos brancos )de que modo se poder exercer a comparao? Pois. comose poder comparar isso com aquilo sem que se tenha previamente identificado, justificado e legitimado ao menosuma categoria capaz de tornar comparveis os objetos...comparados? medida que a perplexidade no dobrada, o comparativismo se torna ento infestado pelo valetudo. Por que diabo no compararamos os poemas deRigoberta Manchu com os de Safo?! No bastaria comocategoria legitimadora a heterodoxia poltica de uma e asexual da outra? Ou porque no fazer o mesmo com afamigerada Tony Morrison e a hoje desconhecida Caroli-

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    , LIMA, Luiz Costa.O compara ti vismohoje. Congresso ABRA-UC, 5. Rio de Janeiro,UFRJ, 1996. Anais ...Rio de Janeiro, UFRJ,1997. p. 83.

    I Cf. OLINTO, Heidrun Krieger. Interesses e paixes: histrias de literatura. In:Histrias de literatu-ras. op. Cit., p. 30.

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    na Maria de Jesus? No seria dificil descobrir um metrocomum; ante o receio de acusaes de elitismo, que comu-nidade acadmica protestaria?7

    Na hiptese de se ter, na crtica contempornea, posies contrrias teoria, o que resultaria no "vale tudo" e na perda de critrios devalorizao dos objetos em anlise, cabe ao pesquisador se munir decategorias que propiciem a identificao do objeto e a particularizaodas associaes feitas. Inexistindo a prtica do pensamento como condio para que todo intelectual se posicione diante do objeto de estudo,cairia por terra a tentativa de conhecimento da literatura e de seusinmeros avatares. A preocupao do crtico pelo resgate da prticaterica como forma de controle do "armazm de secos e molhados" emque se transformou a operao interdisciplinar.Sem concordar com o que Costa Lima prope, principalmentequanto ao clima do "vale tudo" e da premncia em delimitar o campo dateoria literria como sada para o caos, acredito na necessidade de serem consideradas posies tericas que funcionem como articuladorasdas proposies de anlise e como elementos dignos de operar o distanciamento crtico. Nesse sentido, devero ser respeitadas as pluralidades interpretativas, levando-se em conta o inumervel conjunto de novos objetos at pouco tempo desconsiderados pela crtica, como os estudos das minorias, dos textos paraliterrios, da correspondncia, domemorialismo, e assim por diante.

    No artigo introdutrio coletnea Histrias de literatura, Heidrun Olinto descreve, com extrema preciso, a tendncia das novasteorias alems frente s teorias culturais desenvolvidas nos EstadosUnidos, principalmente a partir do advento das idias europias aps osacontecimentos do ps-guerra. Reconhecendo a "fraca herana filosfica" que caracterizava, na poca, o espao acadmico americano, aensasta constata, na atualidade, a proliferao de perspectivas interdisciplinares e a tendncia a privilegiar "molduras tericas flexveis abrangentes". Essa tendncia, tributria da teoria da multiplicidade, foi emparte instaurada pelo livro de Deleuze e Guattari, Mil/e plateaux, de1980, no qual se constri a imagem do rizoma, responsvel por uma"viso paradigmtica do pensamento atual", ao serem postulados espaos de dimenses e direes mltiplas e aleatrias 8 .

    Diante da internacionalizao c:tos bens culturais, do avano indiscriminado da interdisciplinaridade e do surgimento de um vocabulrio terico "miscigenado, de origem incerta", o discurso crtico contemporneo torna-se, segundo a ensasta, pulverizado, por ter se transformado em ')ogo metafrico belo e vago". Na realidade, o que se prope a prtica de uma interdisciplinaridade sria, atravs da posio deSiegfried J. Schmidt, ao construir uma cincia da literatura emprica,

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    com base em teorias sistmicas complexas. A resposta frouxidoepistemolgica das teorias ps-modernas dada por Schmidt atravsda noo de teoria sistmica, em que "os sistemas literrios so organizados hierrquica e holisticamente''9. Para a autora, no h dvida deque a construo de paradigmas consistentes e definidos teoricamenteconstitui a maneira mais plausvel de controle do discurso assistemtico, rizomtico e aberto dos estudos literrios na atualidade. HeidrunOlinto termina o ensaio denunciando o carter homogeneizador dos atuaismodelos tericos e parte em defesa da historicizao dos conceitos - oque no deixa de ser uma das grandes conquistas das teorias contemporneas - e do rigor cientfico do discurso crtico - que merece ressalvas de vrias ordens:

    Atualmente existe uma disposio nfima em aceitar mode-los globaiS homogeneizados que oferecem uma visocoerente e integrada do lugar onde obras literrias ocu-pam espaos inconfondiveis. Para muitos. histrias da li-teratura e, especialmente, conceitos de poca perderamsentido e plausihilidade no momento em que os prpriossuportes de sua construo so questionados e despedi-dos. (. .. ). O historiador da literatura devia articular teo-rias e no brincar com metforas, ainda que sejam belase fascinantes, nmadas e rizomticas 1o .

    Antoine Compagnon, em seu mais recente livro, Le dmon de lathorie, realiza um balano minucioso da teoria literria francesa noperodo estruturalista - do final da dcada de 60 de 70 - com o intuitode eleger essa poca como marco de uma significativa tendncia terica. Na introduo, sugestivamente intitulada "Que reste-t-il de nosamours?", um clima de nostalgia facilmente detectado, considrandose que a efervescncia cultural desses anos no se faz mais sentir naFrana - como, alis, em todo o resto do mundo. Mas a fora permanente inscrita no ideal terico transparece nas palavras do autor. queacredita desempenhar a teoria o papel de combate ao senso comum. oque lhe d, na verdade, o seu verdadeiro sentido. Ao concluir o balano da teoria literria na Frana, admite que suas reflexes. longe deconduzirem a uma desiluso terica, refletem mais uma d\"ida. oque motiva a contnua vigilncia crtica - a nica teoria conseqente aquela que aceita questionar a si prpria e colocar em causa o seuprprio discurso I .

    O final do livro registra, contudo, um alerta diante dos equvocosprovocados pela tendncia atual da teoria pelos ecletismos e pela pluralidade metodolgica. Na confeco da histria da teoria literria, o

    9 SCHMIDT, Siegfried,J. Sobre a escrita dehistrias da literatura.In: OLINTO, HeidrunKrieger. Histrias deliteratura. op. Cit., p.113.

    10 OLINTO, HeidrunKrieger. Interesses epaixes: histrias de literatura. Art. cit., p. 42-43.

    11 Cf. COMPAGNON,Antoine. Le dmon dela thorie. op. Cit., p.281.

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    11 COMPAGNON, Antoine. Le dmon de lathorie. op. Cit., p. 281-282.

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    autor teve a precauo de apontar as relaes entre a teoria literria ea lingstica, nas suas variadas manifestaes, sem se deter no dilogoda crtica com outros discursos (o psicanaltico, o antropolgico, osocial). O objetivo de proceder reviso da crtica literria francesateve como princpio a utilizao do processo de reduo do objeto depesquisa e a recusa estratgica de ampli-lo, seguindo o recorte econmico do mtodo. Para Compagnon, o conceito de teoria literria estruturalista se constri com base no paradigma lingstico, o que no diminui os seus limites epistemolgicos, mas acrescenta um alto grau derigor e de sistematicidade ao objeto. Os limites so descritos de maneira minuciosa e imparcial, notadamente quando se detm na elucidaode uma teoria do texto literrio construdo com base nos critrios detextualidade e de auto-referencialidade:

    La thorie de la littrature, comme toute pistmologie, estune cole de relativisme, non de pluralisme, car il n'estpas possible de ne pas choisir. Pour tudier la littrature,i l est indispensable de prendre parti, de se dcider pourune voie, ear les mthodes ne s'ajoutent pas et l'cltismene mene nulle parto Le pli critique, la eonnaissanee deshypotheses problmatiques qui rgissent nos dmarchessont done vitaux. ( . .) Je n ai done pas plaid pour unethorie parmi d'autres, ni pour le sens commun, mais pourla critique de toutes les thories, y eompris celle du senseommun. La perplexit est la seule morale littraire 12 .

    A figura de Barthes funciona como leit-motiv da minuciosa descrio do autor sobre as noes fundamentais que compem o campoda literatura e da teoria literria - a literatura, o autor, o mundo, o leitor,o estilo, a histria e o valor - por ser um dos responsveis pela sistematizao terica do discurso literrio. Por essa razo, Compagnon nodeixa de render homenagens ao grande crtico, que se notabilizou, inclusive, por romper as barreiras do modelo lingstico e se entregar a umaprtica terica mais plural e interdisciplinar, embora privilegiasse o discurso literrio frente aos demais. Pontua, com preciso, as inmerasinseres de Barthes nos registros literrios estudados, tais como ateoria da morte do autor, a valorizao do discurso literrio pelo seucarter escriturai, o efeito de real, a transitividade do literrio comoreforo do aspecto metalingstico do ficcional e a crilure como substituta do estilo. So esses alguns exemplos referentes rica contribuio do ensasta para a "cincia da literatura" e para a constituio deparadigmas que permitiram teoria ocupar um lugar de destaque nointerior das Cincias Humanas.

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    A herana francesa no deixa portanto de ser um dos grandestrunfos que a teoria literria carrega, considerando-se que ser a partirde sua divulgao que se tornou possvel construir um pensamento terico nos centros mais diversificados do mundo. O peso dessa conquistaimpede s vezes que as tendncias contemporneas da crtica- pautadas pelas descobertas europias e apresentando avanos emrelao a elas - sejam aceitas por grande parte da comunidade acadmica, como o caso de Leyla Perrone-Moiss, no texto "A crticaliterria hoje", apresentado no 5 Congresso da Abralic. Prevalece a amesma preocupao de Compagnon e de Costa Lima quanto ao fato deserem respeitados determinados princpios tericos com capacidade deimpedir o desvario ecltico da prtica analtica dos estudos culturais, damesma forma que se postula a retomada de valores estticos com direitos de restituir ao literrio o que no lhe mais atribudo. A grandeinimiga continua sendo a situao cultural e poltica da sociedade contempornea, dominada pela desconstruo e o multiculturalismo, conceitos que motivam o questionamento do modelo moderno e racionalista de pensamento. A defesa de cnones de referncia. enquanto condio para serem retrabalhados os novos preceitos literrios no constitui, a meu ver, nenhum empecilho para a convivncia do saber modernocom o ps-moderno.

    No se trata, tampouco, de transformar o debate em discussopartidria, em que o binarismo funcione como argumento de excluso,colocando a teoria contra os estudos culturais ou contra a ausncia deteoria, a alta literatura contra as demais manifestaes paraliterrias, oelitismo contra o populismo, e assim por diante. A defesa de uma teoriaque poderia se impor como nica e exclusiva no se sustenta mais noatual espao acadmico, pela natureza plural das tendncias crticas.Se a sociologia atua como disciplina que dialoga com a teoria construtivista de Schmidt, a filosofia, com os princpios tericos de Luiz CostaLima e a semiologia, com as posies de Leyla Perrone-Moiss e deAntoine Compagnon, outros campos de saber podero continuar a manter o dilogo com os estudos literrios e culturais. O perigo acreditarque a verdade se define pela exclusividade e singularidade desta oudaquela disciplina.

    Se as fronteiras disciplinares no mais se sustentam em tennosabsolutos, a defesa de posies radicais s iro comprovar a dificuldade de se conviver com os lugares indefinidos do prprio saber contemporneo. O conceito de indefinio, longe de significar a circulaocatica e irracional do conhecimento, aponta a necessidade de se pensar na terceira alternativa fornecida por Richard Rorty e por JonathanCuller, ao postularem a substituio da matriz disciplinar por um novognero e uma nova teoria. A interdisciplinaridade, de vil da histriapoderia receber tratamento mais condizente com sua fora de aglu-

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    tinao de diferenas e de pulverizao dos limites fechados doscampos tericos.Infelizmente, toma-se tarefa impossvel conservar, na atualidade, posies radicais contra os desmandos da teoria e o descontrole dosparadigmas de referncia. O mundo mudou, nos ltimos dez anos, deforma assustadora (para o bem ou para o mai), e por que motivo as-concepes artsticas, tericas e polticas no deveriam tambm trocaro caminho tranqilizador do reconhecimento pelo do saber sempre emprocesso? Enfrentar esse desafio uma das formas de continuar amover o debate terico, para que este no se transforme em consenso de grupos ou na apatia acadmica, provocada por um certotipo de mal-estar, que no incita a curiosidade, mas, ao contrrio,alimenta o conservadorismo.

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    Silviano Santiago

    Homenagem a Borges, dez anos aps a sua morte

    1. A China aquiAinda nos lembramos das pginas introdutrias de As Palavras e asCoisas (1966), livro em que o filsofo francs Michel Foucault desentranha da obra ficcional de Jorge Luis Borges uma classificao cientfica dos animais existentes no mundo, tal como ela se encontra relatadanuma enciclopdia chinesa. No texto de Borges se l que "os animaisse dividem em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leites, e) sereias, t) fabulosos, g) ces em liberdade", eassim por diante. Aos olhos do francs, a listagem classificatria seapresenta como extica. Sua origem est fora do Ocidente, na China.

    Durante o periodo a que ns, brasileiros, chamamos de Modernismo, ao qual Borges por direito pertence, o latino-americano no teriavisto na listagem apenas exotismo. Teria se identificado com as extraordinrias categorias inventadas pela imaginao frtil do argentino parainventoriar os grupos desencontrados dos animais existentes na terra, e

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    a elas, uma por uma, e a eles, um por um, teria prestado reverncia. Sse presta tal reverncia ao fogo que est numa metfora que, ao levara idia do exotismo americano para alm dos limites ocidentais, at aChina milenar, queima o vu que recobre o que nos familiar desde1492. A China o melhor palco metafrico e incendirio para o exotismo por excelncia deste Outro-do-Ocidente-dentro-do-Ocidente, que a Amrica Latina. Brbaro e nosso, escreveu Oswald de Andrade no maispoderoso dos manifestos modernistas, o "Pau Brasil".

    Em lugar da reverncia ou da identificao, experimentada peloslatino-americanos diante de cada categoria, de cada ser, Michel Foucault nos fala, nas pginas introdutrias de As Palavras e as Coisas,do riso, estruturalista e europeu, que lhe inspirou a leitura da enciclopdia chinesa inventada por Borges. O riso abala, escreve ele, "todas assuperfcies ordenadas e todos os planos que tomam sensata para ns aabundncia dos seres". A China de Borges, continua ele, indicia o modo"como o encanto extico de um outro pensamento [o do latino-americano achinesado] o limite do nosso [o do europeu]". De um lado, limitado pelo "olhar codificado" e, do outro, pelo "conhecimento reflexivo", ofilsofo encontra na enciclopdia chinesa de Borges uma "regio mediana" que liberta a ordem classificatria naquilo que a institui. No esprito de Maio de 68, a ordem aprisiona e, por isso, est havendo desordem.A desordem libera e, por isso, tem-se de estabelecer uma tipologia extica para apreend-la, de preferncia chinesa, com tonalidades cubanas.

    Ao contrrio de Foucault, o escritor modernista latino-americanoteria se detido diante de cada uma das figuras arroladas pela enciclopdia chinesa a fim de analisar a sua peculiaridade monstruosa que, noslimites asiticos inventados por Borges, iriam identificando a peculiaridade monstruosa dos seres que os descobridores e colonizadores inventaram para descrever extica e grotescamente, barrocamente sequiserem, os seres do Novo Mundo. Na monstruosidade dos trpicos (eno nas delcias tropicais) o exotismo borgeano deu ao latino-americano a forma mais instigante e mais arregimentadora do seu poder blicona luta contra o racismo hierarquizante do metropolitano vis--vls doantigo colono.

    Retomando as categorias de Foucault. agora em contexto diferente ao de As Palavras e as Coisas, digamos que o "olhar codificado"do europeu nunca se casou com o "conhecimento reflexivo" do latinoamericano. Ou melhor: s se casa no hfen Borges-Foucault, momentohistrico-revolucionrio dos anos 60 em que o olhar europeu, ao sertomado de riso diante da prpria criatura, o Exotismo, descobre queexiste entre ele e esse seu Outro uma "regio mediana que liberta aordem no seu ser mesmo". Na literatura latino-americana essa regiomediana teve um nome. D-se a ele a alcunha de "realismo fantstico"ou de "real maravilhoso", pouco importa, ambas e outras alcunhas des-

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    1 No rastro arqueolgico de Foucault estaria aligura extraordinria deVictor Segalen, tal comoaparece conceitualmente no Essai sur l'Exotis-me. Como diz GillesManceron, "il ne s'agit,pour Segalen, d'intgrer une vision du mondebien europenne des lments de dcor venusd'outre-mer, mais deconsidrer d'autres civiIisations en elles-mmes, sans les valuer la toise des cri teres occidentaux". Pertinentepara a nossa discusso o encontro na Chinade Segalen com Claudelem 1909. Segalen criticava o poeta, dizendoque ele tinha vivido treze anos na China e nosabia uma s palavra dechins; dizia ainda quenunca fizera abstraoda sua cultura e religio.Em carta esposa, escreve Segalen: "Claudel meparle ensuite forte la l-gere de I'hindouisme,qu'il me semble ne connaitre qu' travers Michelet". Mais pertinente ainda seria o estudocontrastivo da presenado citado Claudel e docompositor Darius MiIhaud no Brasil, nosanos de 19l7-18. v., doautor, "A tristeza de um a alegria do outro", Suplemento Idias, Jornaldo Brasil, 17 de maio de1997.

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    crevem situaes familiares para ns, j que servem para aambarcara longa Histria da cultura latino-americana do modo como foi reveladapela escrita ficcional.J para o francs Michel Foucault, "a monstruosidade que Bor

    ges faz circular na sua enumerao consiste [ .. ] em que o prprio lugardos encontros nela se acha arruinado. O que impossvel no a vizinhana das coisas, o prprio lugar em que elas poderiam circunvizinhar". A ordem do alfabeto (a,b,c,d .. ), que sempre serviu para ordenara abundncia de seres e animais diferentes, est arruinada. Os latinoamericanos sempre vivemos no lugar da desordem nos encontros, nosencontros arruinados, nos escombros catastrficos. Por isso, desde oprincpio, tivemos de acatar a vizinhana de guerreiros inesperados, quesaem dos mares atlnticos em casas flutuantes, como verdadeiros deuses do trovo; tivemos de sofrer como vizinho o peso cultural eurocntrico, que vem sob o jugo de nova lngua, novo cdigo religioso, ambosdesestruturantes dos hbitos e comportamentos; tivemos de aprender aconviver com essa presena imposta, extraindo dela o sumo da prpriaidentidade vilipendiada. Essas foram, entre muitas outras, as tarefaslatino-americanas na conquista duma regio mediana durante o processo de ocidentalizao, regio mediana de que a enciclopdia chinesa o fora to familiar quanto o dentro.De que forma Foucault se apropria da "realidade" latino-americana descrita metaforicamente por Borges? Ao descobrir l na Frana que a China aqui na Amrica Latina e acol, na sia . Ao descobrir que tudo familiar.Sinais precursores dessa descoberta esto na viagem de voltados produtos culturais colonizados, tema anunciado pelo quadro "Demoiselles d' Avignon", de Picasso. Esto no eurocentrismo fracassadodos anos 60, incapaz de encontrar na tradio cartesiana francesa oinstrumental necessrio para poder estabelecer uma tipologia que ajudasse a pensar a desordem ideolgica (Che Guevara e Mao Tse-tung,por exemplo) decorrente do fim das guerras coloniais. Esto na emigrao macia das colnias para as metrpoles, questo candente anunciada no Velho Mundo quando este, vencido, reinventa o seu Outro soba forma do racismo no prprio solo nacional, como o caso paradigmtico dos "pieds-noirs" (argelinos de origem europia) na Frana. O aquieuropeu de Michel FoucauIt o acol chins dos latino-americanosque, por sua vez, o aqui e agora de todos ns. O velho Ocidente seencontra no seu Outro. Tem como espelho o Outro.Repensar o solo familiar, tanto a nao europia quanto ahistria do Mesmo que a constitui, apront-lo para uma heterotopia,- eis o legado de Foucault. Escreve Foucault que Borges "retiraapenas a mais discreta, mas tambm a mais insistente das necessidades; subtrai o local, o solo mudo onde os seres se podem justa-

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    por". Conclui o francs que impossvel "encontrar um lugar comum a todas as coisas". Lugar comum - tomemos a expresso nosseus dois sentidos. O primeiro, o histrico-geogrfico, a Europa. Osegundo, o das "familiaridades de pensamento", para usar a expresso dele. O Mesmo deixa de ser duplamente lugar comum e, porisso, tudo passa a ser simultaneamente familiar na orgia dos descentramentos.

    Michel Foucault identificou a desordem ideolgica francesa (europia, mundial) na crise da linguagem, emprestou-lhe um solo arruinado, por sua vez tomado de emprstimo imaginao selvagem do argentino achinesado.

    O riso francs e estruturalista de Foucault, reverso da reverncia modernista nossa e, por isso, a outra face da nica moeda correnteno mundo globalizado, acaba por traduzir uma forma de reconhecimento por parte do europeu da rica contribuio cultural latino-americana(ou de qualquer outra regio colonizada pela Europa) para a compreenso do estado presente da civilizao ocidental. Com a ajuda de Borges, Foucault foi configurando nos seus sucessivos livros o novo e definitivo inimigo dos anos 60, o Mesmo: "a histria da ordem das coisasseria a histria do Mesmo - daquilo que para uma cultura algo a umtempo disperso e aparentado, portanto a distinguir por marcas e a recolher em identidades".Concluindo, diremos que a leitura do texto de Borges feita porMichel Foucault, aparentemente original, duplica tanto antigas leituraseuropias das culturas colonizadas, quanto modernas leituras latinoamericanas das culturas colonialistas, e tambm por isso acaba sendoresponsvel por uma das mais cannicas leituras do escritor argentino edo perodo literrio (entre ns chamado de Modernismo, repitamos) aque ele pertence.

    Ao voltar os olhos em lance vanguardista para o passado colonialda regio onde nasceu, transformando-o em manifestao cultural autntica, Borges representa o escritor latino-americano. Toma-se exportador de exotismo, re-alimentando o esgotamento cultural e artstico doOcidente europeizado. Esse esgotamento se manifesta, no sculo XX,pelo desejo de pensar o impensado, limite e graa de toda cultura metropolitana que se quer hegemnica, at mesmo nos seus estertores.

    A produo modernista latino-americana e a leitura foucaultianade Borges tm uma data. Ao caracterizar o extraordinrio trabalho dosmodernistas brasileiros em texto de 1950, Antonio Candido, em brilhante intuio, j tinha desentranhado Foucault na nossa dcada de 20.Escreveu ele: "As nossas deficincias, supostas ou reais, so reinterpretadas [pelos modernistas] como superioridades." E acrescentou:"As terrveis ousadias de um Picasso, um Brancusi, um Max Jacob, umTristan Tzara, eram, no fundo, mais coerentes com a nossa herana

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    2 Essas duas metforas,sabemos, se encontramnos textos jesutas dosculo XVI e servempara descrever a "inocncia" do selvagem brasileiro face ao futuro trabalho da colonizao eda catequese. Diz a Car-Ja de Pero Vaz de Caminha: "E imprimir-se-facilmente neles [selvagens] qualquer cunhoque lhe quiserem dar .."Cunho, informa o dicionrio, "ferro com gravura, para marcar moedas,medalhas, etc.; a marcaimpressa por esse ferro; uma das faces de certas moedas, na qual serepresentavam as armasreais".

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    cultural do que com a deles." O riso de Tzara, em pleno e distanteDad, ou o de Michel Foucault, em plena e recente efervescncia estruturalista, , portanto, mais coerente com a herana cultural colonizada do que com a colonialista.O riso europeu de Foucault, que inverte a cartografia colonialistanorte/sul, despertado pela realidade material latino-americana. Nossos autores sempre souberam integrar num solo nico, ou seja, atravs da linguagem literria e artstica, os dois ferozes inimigos inventados pelo etnocentrismo, o Mesmo e o Outro. Leites, sereias, ces emliberdade e animais pertencentes ao imperador ou desenhados comum pincel muito fino de plo de camelo, esses seres heterclitossempre conviveram familiarmente no mesmo espao enciclopdicolatino-americano.Essa ocidentalizao forada do Outro pelo Mesmo, onde o dentro existe para ser tomado e ocupado pelo fora, essa universalizaoocidentalizada do Mundo, enfiada definitivamente de fora para dentro evomitada intermitentemente de dentro para fora, so responsveis, respectivamente, por dois outros textos emblemticos de Borges, complementares e excludentes. De um lado, a sempre citada biblioteca deBabel (j o nome Babel no reenvia a uma outra e menos disparatadataxinomia chinesa, agora a das lnguas humanas?), onde todo o universonada mais do que o seu exterior, a sua representao escrita, ordenada alfabeticamente. Do outro lado, o conto "Funes, o memorioso", ondeo mundo desde que mundo se confunde com o interior provincianode um homem-enciclopdia, a sua cosmopolita vivncia-memria. Funes no esquece um mnimo detalhe que ele percebe, l ou imagina, porisso -lhe desnecessria e intil a escrita. Um erudito sem escrita prpria. O narrador do conto nos d o exemplo revelador: o sistema original de numerao que ele tinha inventado, "no lo haba escrito, porquelo pensado una sola vez ya no poda borrrsele".A memria extraordinria do argentino provinciano s lhe surgequando, ao cair do cavalo, perde totalmente o conhecimento. A memria de Funes se inscreve numa catastrfica "tabula rasa", numa ntima"folha de papel em branco"2. Relata o texto: "AI caer, [Funes - ou sera Amrica Latina?] perdi el conocimiento; cuando lo recobr, el presente era casi intolerable de tan rico y tan ntido, y tambin las memorias ms antiguas y ms triviales". Funes o nico ser humano - comparvel nisso biblioteca de Babel - que tem o direito de usar o verborecordar. Diz o narrador do conto: "Lo recuerdo (yo no tengo derechoa pronunciar ese verbo sagrado, slo un hombre en la tierra tuvo derecho y ese hombre ha muerto) ..." Em contraste s palavras do narrador,leiamos as palavras do personagem, Ireneo Funes: "Ms recuerdoslengo yo solo que los que habrn tenido todos los hombres desdeque el mundo es mundo".

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    Funes tudo lembra (tudo absorve, tudo sabe) e nada transmite. Arealidade presente to violenta, ntida e ntima para ele, to personalizada est na sua deformidade fisica, que no acata qualquer princpioordenador, venha ele da linguagem escrita, venha ele do ato de pensar.Leiamos outro trecho do conto: "No slo le costaba comprender que elsmbolo genrico perro abarcara tantos individuos dispares de diversostama'os y diversa forma; le molestaba que el perro de las tres y catorce (visto de perfil) tuviera el mismo nombre que el perro de las tres ycuarto (visto de frente)". Funes o Borges-anti-Borges, j que "eracasi incapaz de ideas generales, platnicas" e "pensar es olvidar diferencias, es generalizar, abstraer".

    Funes Pierre Mnard, o visvel Outro do Mesmo, aquele que,pela escrita da memria, diz que a Europa aqui na Amrica Latina.Aquele que tudo tem e nada possui. A biblioteca perdura, Funes vive damorte prematura. Morre de uma afluncia anormal de sangue no pulmo. De "congestin pulmonar", diz o conto. A morte prematura poderia ter vindo de fora, do tombo que levou quando andava a cavalo; defora, veio apenas o aleijo. A morte prematura veio de dentro. A afluncia anormal do fluido vital interior rouba-lhe o ar, f-lo desaparecerda face da terra. Resta-nos, como consolo para a perda, a biblioteca deBabel. O Oriente do Ocidente.

    2. A Ameaa do LobisomemComo dar continuidade a essa leitura de Borges, a essa leitura

    como guia para a compreenso da atual literatura latino-americana? Acontinuidade pelo fio condutor Borges no existe. Esta seria uma constatao um pouco simples, mas no simplria, como tentaremos provar.Para que esta nossa fala se alimentasse agora do texto borgeano, teriasido preciso haver neste final de sculo, do lado nosso, identificao ereverncia para com os modernistas e, do lado europeu, riso e apropriao para com os latino-americanos. Identificao e reverncia, riso eapropriao - essas quatro atitudes, vimos, esto comprometidas como tempo das vanguardas, com o nosso Modernismo. Representam umadeterminada viso da vitoriosa produo cultural latino-americana nosculo XX, desde o momento histrico em que ela ala vO nos anos 20,at o momento da sua consagrao nos anos 60, quando espouca ohoom do romance hispano-americano.

    Vale tambm dizer at o momento da sua museificao europia.Todos se recordam da labirntica ("los senderos se bifurcan") e consagradora exposio Jorge Luis Borges realizada no Centre Georges Pompidou, de Paris. Os grandes homens no morrem no tmulo, mas naprimeira esttua pblica. A glria enterra e, por isso, ela dita (aqui,

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    neste texto) pstuma.No h continuidade. H soluo de continuidade. Mas o textode Borges continuar sendo de ajuda, no para que com ele nos identifiquemos em reverncia, no para que dele se apropriem e riam osiluminados pensadores europeus. Teremos de ler o que foi e permanecerecalcado (excludo, marginalizado, assassinado, etc.), tanto no texto deBorges, como no texto modernista latino-americano. Ou seja: aqueleelemento, um detalhe apenas, que ameaa o texto borgeano na suacondio de mquina reprodutora, fabricante de produtos originais ecannicos pela universalidade.Para isso, tomemos como exemplo uma outra enciclopdia deanimais. Agora, o Manual de Zoologa Fantstica, escrito a quatromos, por Borges e Margarita Guerrero, e por muitas outras mos esparramadas pelo mundo, aquelas que tomam possvel uma coletneaenciclopdica. Detenhamo-nos na leitura do "Prlogo".O prlogo uma construo cartogrfica tpica de Borges. Ele trabalhado por um grande desdobramento e por desdobramentos menores, desdobramentos dentro do desdobramento. O todo compe um jar-dim - zoolgico no caso - de "senderos que se bifurcan" cujo horizonteanunciado o infinito. O grande desdobramento enuncia e abriga simultaneamente o jardim zoolgico da realidade e o jardim zoolgico dasmitologias. De um lado, nos diz o texto, a "zoologa de Dios" (os animais) e,do outro, a "zoologa de los sueos" (os monstros).Trabalhemos primeiro com as palavras dedicadas zoologia deDeus. Elas comeam por enunciar um topos clssico da vanguarda. Ozoolgico real seria o lugar por excelncia da criana que existe emcada um de ns. preciso dar voz a essa nat"vet que descobre omundo e o reinventa em abusiva enciclopdia. A observao de seresestranhos (no so humanos, no so animais domsticos) numjardim,em lugar de alarmar ou horrorizar a criana, encanta-a. Por isso, ir aozoolgico uma "diversin infantil" e, por ricochete, uma diverso dosadultos-autores e dos adultos-leitores. Outra bifurcao. Pode-se pensar o inverso, continua o prlogo. As crianas, vinte anos depois davisita ao zoolgico, adoecem de "neurosis". Como no existe crianaque no tenha ido ao zoolgico, no h adulto que no seja neurtico.Nova bifurcao no texto. Diz ele agora que a prpria idia de alarmeou horror sentida na primeira visita ao zoolgico falsa, pois o tigre depano ou o tigre das enciclopdias j tinham preparado a criana para otigre de carne e osso.O material bruto do livro est preparado e pronto para duas intervenes clssicas no universo textual de Borges, sempre saturado deinformao erudita. Primeira interveno. "Platn [ .. ] nos dira que elnino ya ha visto ai tigre, en el mundo anterior de los arqutipos, y queahora ai verlo lo reconoce". Segunda. Schopenhauer diria que tigres

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    38 - Revista Brasileira de Literatura Comparada, nO 4, 1998e menino so um s, pois ambos so uma nica essncia, a Vontade.Trabalhemos agora com as pala\Tas dedicadas "zoologa de lossueos". Neste grande desdobramento, os seres so todos eles e cadaum construdos por... desdobramentos. Ao lado dos tigres e lees dozoolgico de Deus, esto as esfinges, grifos e centauros das mitologias.Estes so feitos de dobras de seres que perfazem um novo ser, sotodos e cada um "monstruos" (a palavra recorrente no texto). Nocentauro, diz o prlogo, se conjugam o cavalo e o homem; no minotauro, o touro e o homem. Como vai ser dito no verbete "O centauro", "loverosmil es conjeturar que el centauro fue una imagen deliberada y nouna confusin ignorante". O monstro, novo ser, nada mais , portanto,do que a combinao (em nada ignorante) de partes de outros seresreais. Uma concluso se impe: a prpria produo de "monstros" semelhante produo do fantstico pelo texto borgeano, este que estamos lendo e qualquer outro.Com os monstros mitolgicos, estamos diante de um topos clssico de Borges. Nas imagens deliberadas de monstros, as possibilidades da arte combinatria beiram o infinito. S no o beirariam, no casodesse manual de zoologia, por tdio ou por nojo do produtor. Portanto, primeira vista, o zoolgico dos monstros, inveno dos homens, seriamais povoado do que o zoolgico dos animais, inveno de Deus. Logoo prlogo em evidente e definitivo bom senso corrige a afirmativa anterior: "nuestros monstruos naceran muertos, gracias a Dios". Moral: azoologia dos sonhos, aparentemente mais rica, mais pobre do que a zoologia de Deus. Prova mais cabal do amor exclusivo e supremo a Deus sexiste nas pginas iniciais do Libro dei cielo y dei infimo.At este ponto estivemos percorrendo o caminho de uma leituracannica de Borges. Sbito uma frase final do prlogo, um detalhe, falade uma ameaa. A ameaa anunciada e logo exorcizada pelo gestoincisivo de excluso: "Deliberadamente, excluimos de ese manual lasleyendas sobre transformaciones dei ser humano: ellobisn, el werewolf,etc."3. Ou seja: foram excludos dessa outra enciclopdia os seres queso produto de uma, para usar a expresso de Robert Louis Stevensonna sua famosa novela, "transforming draught".Estamos fazendo rolar pela mesa da literatura o dado da trans-formao do ser humano no texto de Borges. Est em jogo no processo de produo textual no mais a figura do desdobramento do um emdois, ad infinitum, ou do acasalamento do dois em um, ad infinitum,mas a figura da transformao. Transformao, entendamo-nos, afigura que traduz o puro movimento sem direo fixa, o movimento dodevir outro que dado, no como o um que conjuno de dois, apriori morto, mas como "confusin ignorante".A figura do desdobramento, em Borges, ativa o binarismo denorma e desvio, de saber e ignorncia, de Cu e Inferno, de Deus e

    J Caberia transcreveraqui uma instrutivaanedota narrada porClaudia Matos ao final do seu livro Acer-lei 110 milhar (Sambae .lfalandragem nolempo de Gellio):"Na conversa que tivecom Moreira da Silva,pedi-lhe um esclarecimento sobre algo queme deixara intrigadanum samba que ele havia gravado. Tratavase de um verso improvisado no breque final,que dizia: 'ij me disseram at que eu virava lobisomem'. Comoa ligao do tal lobisomem com o resto dosam ba era o bscu ra,embora perceptvel,perguntei-lhe: 'Masafinal, Moreira, o quevoc diz com essa histria de lobisomem?'N ada, ora. pra rimar, compreende?(cantando:) 'At mudei meu nome ... i jme disseram at que euvirava lobisomem ... 'Rima, e cabe bem notamanho da frase.'Mas , Moreira, se vocps essa palavra e nooutra qualquer, porque tem alguma coisaa ver. Tem uma ligaocom o resto, nem quevoc no perceba, queseja inconsciente. 'E ovelho Morengueira,com um risinho de gozao: ' Bom, ligao lisso deve ter mesmo.Mas isto ... o seu trabalho! Ou no ?'"

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    4 O Webster's registrano verbete para/le/:"extending in the samedirection and at thesame distance apart atevery point so as never to meet, as lines,planes, etc.: in modemnon-Euclidian geometry, such lines andplanes are consideredto meet at infinity."

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    Diabo, ativa a noo de conflito entre norma e desvio, entre saber eignorncia, entre Cu e Inferno, entre Deus e Diabo, etc., optando pelaexcluso ao final, ad astra per aspera, do que dado, ad limine, comodesvio. Borges retoma aqui um velho paradoxo popular e mstico, dadopelos dicionrios4 como pertencente moderna geometria no-euclidiana - o que diz que as paralelas se encontram no infinito, paradoxo este,no tenhamos dvida, que a garantia da legibilidade do seu textopelo grande pblico.

    Esse paradoxo est no nosso modernista Murilo Mendes, quandoele afirma, em aforismo, que pelos cinco sentidos tambm se chega aDeus e est, de maneira bem mais prosaica, no provrbio que diz quetodos os caminhos levam a Roma.

    Importante assinalar que, ao ativar os pares em guerra, ao ativlos at o infinito que, como vimos, recoberto por uma nica metforavencedora - platnica, schopenhauriana, bblica ou judaico-cabalstica,pouco importa - , Borges empresta ao que julga ser desvio o sentido dabestialidade (e no da animalidade fantstica, pois esta contempladapela zoologia, a de Deus e a dos sonhos). Decreta-se assim a impossibilidade de que o que dito como norma se transfigure num deviroutro e paralelo, suplementar. Esse devir outro da norma, a ser marginalizado e excludo da escrita borgeana, marca sempre a posse do Diabo sobre o "ser" e, por isso, O movimento do ser humano em direo aoseu outro precisa ser exorcizado literria e deliberadamente. No hlugar para o maligno em livro assinado por Borges e companheiros.Desde os anos 80, estamos dizendo modernidade que ponha o diabonoutro canto.

    No nosso Modernismo, o diabo tambm precisou ser exorcizado,ou assassinado, pelo menos por duas vezes. Um primeiro exemplo. Desdea pgina inicial de Grande Serto: Veredas, tem-se de assassinar Odemo que existe nas transformaes do bezerro em cachorro, em serhumano. Leiamos as palavras de Riobaldo: "Da vieram me chamar.Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem serse viu -; e com mscara de cachorro. Me disseram: eu no quis avistar[00'] Cara de gente, cara de co: determinaram - era o demo. Povoprascvio. Mataram." O movimento da transformao, do devir outro, tambm a forte presena do Diabo no texto de Guimares Rosa.

    Disso resulta que a encarnao do movimento de transformao sedar na imagem do redemoinho, passageiramente vencedor, claro. Depois de duzentas pginas, a imagem do p-de-vento reaparece no romance, agora descrita em sua concretude. "Redemoinho: o senhor sabe- a briga de ventos. O quando um esbarra com outro, e se enrolam, odoido espetculo. A poeira subia, a dar que dava no escuro, no alto, oponto s voltas, folharada, e ramaredo, quebrado, no estalar de pios,assovios, se torcendo turvo, esgarabulhando. Senti meu cavalo como

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    meu corpo." Nessa passagem o cavalo sentido como o prprio corpodo narrador. No se trata de uma "imagem deliberada" por parte doromancista, ou seja, homem-e-cavalo no representam a inveno docentauro dos sonhos. Pela catlise do redemoinho/Diabo, trata-se deuma "confuso ignorante" - para retomar os ensinamentos do manualde Borges-Guerrero.

    Um segundo exemplo."Lobisomem. Estremeceu com o pensamento. Era como se lhegritassem ao ouvido: Assassino! Lobisomem." - eis o que sente o per

    sonagem Jos Amaro no romance Fogo Morto, de Lins do Rego. Nouniverso romanesco do escritor nordestino, os lugares sociais do senhorde engenho e do negro so nitidamente demarcados. Sem lugar precisofica o homem livre, vivendo de favor nas terras do engenho. Na sociedade dramatizada por Lins do Rego ele o personagem passvel deviver o movimento de transformao: virar negro, virar senhor. Em FogoMorto esse lugar mvel ocupado pelo seleiro Jos Amaro, que serexpulso das terras do coronel Lula. Nem senhor, nem negro, andarilho,lobisomem.

    Em noites de lua, o seleiro sai livremente a caminhar pelo campoe, diz o povo, se transforma em lobisomem. A busca de algo alm dasnecessidades dirias - ou seja, a auto-satisfao na comunho com anatureza adormecida, a liberdade conquistada e a solido tomada pelolirismo buclico - torna Jos Amaro estranho ao mundo familiar dasterras de engenho descritas por Lins do Rego. Pouco a pouco o seleirovai sendo marginalizado, temido, ridicularizado, escorraado. O romance historia as varias fases da sua transformao em lobisomem e asrespectivas conseqncias.

    Ao final do segundo captulo se l: "No outro dia corria por todaa parte que o mestre Jos Amaro estava virando [a partir de agora, osgrifos so nossos] lobisomem. Fora encontrado pelo mato, na espreitada hora do diabo; tinham visto sangue de gente na porta dele".O verbo que o livro mais conjuga para Jos Amaro o verbovirar, j que ele nunca , e se for, ser algum sem identidade definida,ou com identidade a ser definida pelos outros para ser mais justamentemarginalizado. Virar nos seus vrios sentidos dicionarizados. Virar nosentido de transformar, como neste caso: "Diziam que pelas estradas,pe