revista brasileira de literatura comparada

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Revista Brasileira de Literatura Comparada - 2000 - Salvador

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A Revista Brasileira de Literatura Comparada (ISSN-0103-6963l é uma publicação anual da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralicl. entidade civil de caráter cultural que congrega professores universitários. pesquisadores e estudiosos de Literatura Comparada, fundada em Porto Alegre, em 1986.

DIRETORIA 1998-2000 Presidente: Evelina Hoisel (UFBA); Vice-Presidente: Eneida Leal Cunha (UFBA)

Primeira Secretária: Ana Rosa Ramos (UFBA); Segunda Secretária: Liv Sovik (UFBA)

Primeira Tesoureira: Antonia Herrera (UFBA); Segunda Tesoureira: Maria de Lourdes Netto Simões (UESC)

CONSELHO

Beatriz Resende (UFRJ); Eduardo Coutinho (UFRJ); Gilda Neves da Silva (CFRGS) Paulo Sérgio Nolasco dos Santos (UFMS); Raul Antelo (UFSC); Reinaldo Martins (UFMG); Maria Lúcia de Barros Camargo (UFSC) Renato Cordeiro Gomes (PUC-RI); Suplentes: Maria Luisa B. da Silva (UFRGS) Vera Lúcia Romariz de Araújo (UFAL)

CONSELHO EDITORIAL

Benedito Nunes, Bóris Schnaiderrnann, Dirce Cortes Riedel, Eneida Maria de Souza, Haroldo de Campos, João Alexandre Barbosa, Jonathan Culler, Lisa Block de Behar, Luiz Costa Lima, Marlyse Meyer, Raúl Antelo, Silviano Santiago, Sonia Brayner, Tania Franco Carvalhal, Yves Chevrel.

Os conceitos emitidos em artigos assinados são de absoluta e exclusiva responsabilidade de seus autores.

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© 2000. Associação Brasileira de Literatura Comparada. Todos os direitos reservados. Nenhuma partedesta revista poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados, sem permissão por escrito.

Revisão

Cássia Lopes Jane Lemos

Editoração

Bete Capinan

Impressão

Tiragem

1000 exemplares

Apoio

Instituto de Letras

Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS. RJ

R349 Revista brasileira de literatura comparada. - N. 1 (1991) - Rio de Janeiro: Abralic, 2000 - v.

Anual Descrição baseada em: N. 3 (1996) ISSN 0103-6963

1 Literatura comparada - Periódicos. I Associação Brasileira de Literatura Comparada.

CDD 809.005 CDU 82.091 (05)

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Apresentação

Os trabalhos reunidos no número cinco da Revista Brasileira de Literatura Comparada atestam o profícuo debate que se dissemina hoje no âmbito dos estudos comparatistas. A pluralidade de perspectivas, de abordagens teóricas e críticas dos trabalhos apresentados traduzem a multiplicidade de questões que caracterizam a Literatura Comparada neste final/início de milênio. Nesta diversidade, perpassa contudo uma espécie de fio condutor que enlaça os ensaios deste volume: a questão dos trànsitos culturais, estímulo para as reflexões sobre viagens, tradi­ção, identidades, culturas,tradução, globalização, transnacionalidade. Estes temas, desenvolvidos sob o prisma da releitura e da reversão dos valores culturais, impõem variadas formas de diálogos que se estabele­cem entre o local e o global, o nacional e o trasnacional, o passado e o contemporâneo.

Evelina Hoise!

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Sumário o estatuto do poema de&critivo de Elizabeth Bishop

Si/viano Santiago 9 "Alteridade" desde Sartre até Bhabha:

um surf para a história do conceito Ellen Spielmann 1 9

Teoria e prática de Antonio Candido João Alexandre Barbosa 29

Que faremos com esta tradição? Ou: relíquias da casa velha

Renato Cordeiro Gomes 43 Antropofagia no país de sobremesa

Vera Lúcia F ollain de Figueiredo 5 7 A pedra flexível do discurso:

imagens do Brasil na Alemanha de Goethe MyriamÁvila 65

Goethe, um teórico da transnacionalidade Eloá Heise 77

De traduções, tradutores e processos de recepção literária

Tania Franco Carvalhal 85 Literatura e música:

trânsitos e traduções culturais Solange Ribeiro de Oliveira 93

Tránsitos intranquilos: Carlos Gardel y Carmen como símbolos nacionales

Florencia Garramufío 1 O 1 Fluidez y transformación: religión, arte y género

en las fronteras de norte y sudamérica Malgorzata Oleszkiewicz 1 1 3

Entre o global e o local: cultura popular do Vale do Jequitinhonha e reciclagens culturais

Reinaldo Marques- 1 25

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8 Revista Brasileira de Literatura Comparada, nº 5, 2000

"Las dos Américas" de Carlos Fuentes. La tradición hispánica y la búsqueda deI lugar común

Graciela M. Barberia 1 4 1 Cultura brasileira: a África e a Índia dentro de nós

Vera Romariz Correia de Araújo 1 49 Nota de pé de página e espaço romanesco: discursos de trânsitos e traduções culturais

em A rainha dos cárceres da Grécia, de Osman Lins Ilza Matias de Souza 1 65

A vocação para o abismo: errância e labilidade em Clarice Lispector

Lucia Helena 1 79 EI discurso zapatista,

(,un nuevo discurso o un discurso emergente? Alejandro Raiter e Irene Munoz 1 9 1

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'Trabalho apresentado na con­ferência internacional "The art

üf Elizabeth Bishop" , realiza­da em Ouro Preto, entre os dias 1ge21 de maio de 1999,

o estatuto do poema descritivo de Elizabeth Bishop*

Silvia no Santiago Universidade Federal Fluminense

Você faz com que me sinta analfabeta! [ ... ] Os cenários, ou descrições, dos meus poemas são quase sempre fatos simples - ou o mais próximo que consigo chegar dos fatos. Mas, como eu disse , acho fascinante você ver que o meu poema desperta tantas referências literárias em você!

Carta de Elizabeth Bishop a Jerome Mazzaro, 27 de abril de 1978.

Uma das questões que a poesia de Elizabeth Bishop coloca é a do esta­tuto epistemológico do poema descritivo na contemporaneidade, vale di­zer, na modernidade tardia [high modernity]. De início, vamos aprovei­tar algumas das suas próprias palavras, retrabalhando-as com rompan­tes de sabotagem, como é de se esperar numa leitura crítica. Começarei por repetir, com a sua ajuda, que o poema descritivo da autora de North & South encena um jogo lingüístico que se passa entre a visualização objetiva do que "realmente aconteceu" e a sucessiva tradução sensível [rendering] do acontecimento privilegiado, tarefa a ser executada pela palavra poética. Dada a altitude da poesia em análise, esse jogo lingüís­tico traz implícita uma obsessiva e, por isso, interminável, aposta do eu lírico com a busca da verdade sobre o fato descrito.

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A experiência vivida do poeta - observamos melhor - não é (e pode até ter sido - mas não é disso que estamos falando) gravada em palavras imediatamente derramadas pela folha de papel em branco, em consonância com o calor da hora e a espontaneidade sentimental. Seriam estas as características das anotações apressadas e das impressões de

turista ou de viajante por distantes terras. A experiência vivida que se encaminha para a forma poema - excepcional pelo seu retomo obsessi­vo e inadiável no cotidiano do poeta, simbólica pelo lugar soberano que passa a ocupar nas suas mais básicas e elevadas preocupações literárias, - fica gravada e aprisionada em outro e mais espaçoso e mais elástico lugar, como veremos, até que possa ser entregue ao leitor como poema.

Em cima da grafia da experiência vivida, por mais fugaz que esta tenha sido, o poeta exerce paradoxalmente um controle a posteriori [apres coup] que espicha o instante da visualização, os momentos da observação aguda e as horas de encantamento por um longo e revivido tempo, época alongada por anos a fio em que se acentua o lento e metódico processo de trabalho com as palavras, com os versos do futuro poema. Essa luta insana com as palavras, trabalho propriamente poético, está situada a posteriori de toda e qualquer experiência de vida e é detalhe importante da poética de Bishop. Amigos e também poetas, como é o caso de Robert Lowell, foram extremamente sensíveis a ele. No poema "For Elizabeth Bishop 4", per­gunta-lhe Lowell: "DoI you still hang your words in air, ten years/ unfinished, glued to your notice board, with gaps/ or empties for the unimaginable phrase - unerring Muse who makes the casual perfect?"l

Essa espera silenciosa diante da grafia da experiência - marca do autêntico labor poético, alquimia que transforma o casual em pelfect, para retomar as percucientes palavras de Lowell- se dá nos bastidores do poema como recolhimento2 do ser na memória e na saudade. Pergun­ta Bishop no poema "Santarém": "Claro que eu posso estar lembrando tudo errado/ depois de - quantos anos mesmo?" Tudo está lembrado na memória de maneira correta, corretíssima, como dois e dois são cinco­adiantemos um pouco o raciocínio.

A espera silenciosa diante da grafia da experiência serve ainda para colocar o poema descritivo de Bishop, apesar da alta carga de sub­jetividade que ele comporta, ao lado dos poemas escritos pelos chama­dos poetas modernos construtivistas, ou seja, dos poetas que, desde Mallarmé, passando por Paul Valéry e o Ezra Pound editor de The Waste Land, acreditam que "cada átomo de silêncio/ é a chance de um fruto maduro", como está no célebre poema "Palmes", de Paul Valéry3.

Essa mesma espera trabalhadora e silenciosa do poeta diante da grafia da experiência, recolhimento do ser humano na memória e na sau-

I "Ainda penduras tuas pala­vras no ar por dez anos, ina­cabadas. coladas no teu qua­dro de avisos, com lacunas ou vazios para a expressão incon­cebível- Musa infalível que tomas o espontãneo perfeito?"

2 Palavra tipicamente baude­laireana_ Veja o soneto de mes­mo nome "Recueillement": "Sois sage, ô ma douleur, et tient-toi plus tranquille ___ " So-bre o conhecimento que Bishop tinha da poesia de Baudelaire, leiam-se os co­mentários extraordinários e sutis que faz às traduções do amigo Robert Lowell (v_ carta de I" de março de 1961: "É claro que as únicas traduções que tenho condições de julgar são as do francês ___ ")_

3 Patience, Patience./ Patience dans l' azur!/ Chaque atome de silence/ Est la chance d ' un fruit mOr!" Comenta o filóso­fo Alain: "Pafience, Pafience - tel est le maftre moI. On admire ces longs silences du poête; je ne m' en étonne point. Si Hugo avait refusé tes vers trop faciles, quels sitences!"

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4 Estamos tomando o conceito de labol'de maneira aproxima­da ao tomado por Marcia Tucker, diretora do The New Museum of Contemporary Art ~ responsável, juntamente com Isabel Venero, pela exposição --The Labour of Love", reali­zada em 1996 na cidade de Nova Iorque.

o estatuto do poema descritivo de Elisabeth Bishop 11

dade, é que aproxima Elizabeth Bishop dos poetas brasileiros de sua predileção, entre eles Carlos Drummond de Andrade ("Itabira é apenas uma fotografia na parede.! Mas como dói!") e João Cabral de Melo Neto ("Há vinte anos não digo a palavra! que sempre espero de mim. Ficarei indefinidamente contemplando! meu retrato eu morto").

Clarice Lispector, outra das escritoras favoritas brasileiras de Elizabeth Bishop, utiliza a palavra cuidado para descrever o processo muito especial- um misto de espera, paciência, atenção e de trabalho - que leva as coisas e os seres humanos a crescerem harmoniosamente, visto que por causa dele é que escapam às injustiças e desmandos de uma visão pragmática e masculína de progresso. "Tudo é passível de aperfei­çoamento ... " -lê-se no conto "Amor". Em carta a amigos, Bishop ano­ta: "Na cama estou lendo todo o Dickens, livro por livro, com a estranha ambição de escrever- ou melhor, terminar- um soneto sobre ele". O cuidado, alerta Clarice, não pode ser confundido com o trabalho material, no sentido em que o empregam as teorias econômicas, impostas como universais à sociedade pelo homem. O cuidado seria, na falta de outra palavra, o labor", o labor familiar em Clarice Lispector, o labor poético em Elizabeth Bishop, Carlos Drummond ou João Cabral. Complementa João Cabral: "a forma atingida! como a ponta de novelo! que a atenção lenta,! desenrola,/ aranha; como o mais extremo/ desse fio frágil, que se rompe! ao peso, sempre, das mãos! enormes",

O labor, em Clarice Lispector (e ousamos acrescentar: em Elizabeth Bishop e tantos outros poetas), é manifestação não da força humana alienada em trabalho socialmente útil e aferido pelos índices de produti­vidade, mas do cuidado, manifestação do "trabalho" que contribui para o progresso qualitativo do indivíduo e, por conseqüência, do ser huma­no. Escreve Bishop a Kit e Ilse Barker: "Tenho pena de pessoas que não conseguem escrever cartas. Mas desconfio também de que eu e você, Use, adoramos escrever cartas porque é como trabalhar sem estar de fato trabalhando [grifo nosso]". O cuidado re-orienta a história social tal como movimentada e explicada pelo macho trabalhador. O cuidado pode levá-lo a perceber, caso abandone as intransigências do falocentrismo teórico, que existe uma forma suplementar de "progresso" que, sem tra­zer à tona as injustiças desmascaradas pela análise do modo de produção capitalista tal como o faz a teoria econômica marxista, ou trazendo-as de

maneira "oblíqua", para usar uma palavra cara a Clarice, é também e principalmente útil à vida humana, tornando-nos mais dignos de convi­ver com os seres dos reinos animal, vegetal ou mineral. Nas sociedades modernas, é o labor que reequilibra o processo da circulação hierárqui­ca das pessoas entre outras pessoas e o processo de circulação das pes-

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soas entre animais, plantas e minerais, e é ele que, finalmente, não deixa

que seja o homem que ordene de maneira imperiosa e destrutiva a natu­

reza, Carlos Drummond já clamara contra a falta de cuidado dos minei­ros no poema" A montanha pulverizada", Começa por constatar: "Che­

go à sacada e vejo a minha serra,/ a serra do meu pai e meu avô", para

em seguida descobrir estupefato: "Esta manhã acordo e/ não a encontro.!

Britada em bilhões de lascas/ deslizando em correia transportadora/ en­tupindo 150 vagões/ no trem-monstro de 5 locomotivas .. ,"

Retomemos. Aquilo que "realmente aconteceu" vai ser dramatiza­do no poema descritivo de Elizabeth Bishop como um dom da aventura, vale dizer, um dom da vida ao sujeito. A resposta humana mais óbvia ao fato marcante acontecido é a dada pelo arrepio e, principalmente, pelo

grito. Eis algumas frases bem conhecidas de todos os presentes que, à

guisa de exemplo, extraímos do conto "Uma aldeia": "Um grito, o eco de um grito paira na aldeia." "É assim que o grito permanece suspenso, inaudível, na memória, no passado, no presente e nos anos que os sepa­ram". O grito que estoura os tímpanos - epifânico, esplendor e frag­mento significativo do que "realmente aconteceu" - tem um tempo que

lhe é próprio, circunscrito e circunspecto, tempo empírico, metrificado pela emoção do sujeito e os ponteiros do relógio. Trata-se de um tempo límpido que nem relâmpago e logo apagado, esquecido, mas sempre pres­tes a ser movimentado novamente em forma de eco. O grito tem também um tempo que extravasa os moldes recalcados da percepção instantânea e se esgueira delirante, em eco do eco do eco, pela memória, já sob a forma de sucessivos traços mnésicos, onde o presente é a letra morta do passado que se perpetua em pequenas mortes e lentas e incompletas res­surreições. De maneira bem mais clara, fala Elizabeth Bishop no conto "Primeiras letras": "O nome verdadeiro dessa sensação é memória. Tra­ta-se de uma lembrança que nem preciso tentar evocar, ou recuperar; está sempre presente, clara e completa".

Como escreveu, na mesma época, o poeta Ferreira Gullar no poe­ma intitulado "Galo Galo": "Grito, fruto obscuro/ e extremo dessa árvo­re: galo.! Mas que, fora dele,/ é mero complemento de auroras" . O grito é dentro e é fora. É fruto e é complemento de auroras. É sopro e é eco. É subjetivo e é comunitário. É o alvoroço da mente que se exprime pelo sopro; é o eco que orquestra o alvoroço e os ruídos da cidade. O grito obriga-nos a querer distanciar do sofrimento que representa, ao mesmo tempo em que traz, guardado a sete chaves, secretamente, o gosto amar­go do seu retorno, incansável e inesgotável. Distanciar, abandonar a cena e o local do grito. Deixá-los para trás, mesmo sabendo que a vida se desenha por rastros e circula pelo globo em singraduras.

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5 Lembro-me de uma cena do filme Nick's n/ovie, em que o ~ineasta alemão Win Wenders relata os últimos dias de vida Jo diretor Nicholas Ray. Em Jeterminado momento, repro­Juz · se na tela um velho >l'estern de Ray em que o ator Robert Mitchum, já velho, volta ao rancho onde foi cria­do. Escorrega por debaixo da casa em palafitas e descobre, escondidos, alguns gibis . Co­menta Ray: "Toda a minha obra foi sobre a idéia do lar".

o estatuto do poema descritivo de Elisabeth Bishop 13

Viajar toma-se para Elizabeth Bishop uma necessidade imperiosa e a cartografia dos deslocamentos, das derrapagens e dos imprevistos transforma-se num deleite para os olhos, o corpo e a imaginação. No poema "Questions of traveI", lê-se: "But surely it would have been a pity/ not to have seen the trees along this road,/ really exaggerated in their beauty,/ not to have seen them gesturing/ like noble pantomimists, robed in pink." Viajar traz sempre matéria nova, dura e incandescente, que precisa ser ordenada pelas palavras a fim de que, ao se escapar da vida no momento em que é vivida, não se escape pelo esquecimento à essência da biografia. Lembrar é preciso. A grafia da vida, no poema descritivo de Elizabeth Bishop, se impõe como letra morta. Letras ao ar, como diz Robert Lowell; roupas lavadas, diremos nós, que são esticadas no varal da imaginação à espera do sol da atenção, da chuva que as enxágua uma vez mais tomando-as mais limpas, do dia que incorpora novas sombras ao quadro, da noite que oferta o acaso das descobertas. Letras ao ar à espera do "casual perfect". O poema.

A viagem não significa necessariamente distanciamento geográfi­co de um lugar para outro e novo lugar, deste novo lugar para outro diferente. "Should we have stayed at home, wherever that may be" -pergunta Elizabeth Bishop. E, por isso, acrescentamos, a viagem signifi­ca distanciamento, mas desde que se entenda a geografia por uma lógica que, imperiosa, doloridamente esquarteja e redistribui o ser pelas mil e uma diferentes partes do planeta - norte e sul, leste e oeste - para poder melhor englobá-lo no seu home. 5 Em "Crusoe in England", lê-se: "I told myself/ "Pity should begin at home." So the morei pity 1 felt, the more 1 felt at home". Foi preciso que Elizabeth Bishop viajasse ao Brasil para que re-escrevesse a qualidade única da sua grafia de vida menina na Nova Escócia. Não é assim que devemos entender esta frase escrita a Kit e Use Barker, em 12 de setembro de 1952: "É engraçado - eu venho para o Brasil e começo a me lembrar de tudo o que me aconteceu na Nova Escócia - pelo visto, a geografia ainda é mais misteriosa do que a gente pensa". Quatro anos depois, ainda em Petrópolis, escreve um longo poema que se passa na Nova Escócia, "The moose", poema dedi­cado à tia Grace.

(E o poema é também uma letra morta cuja ressurreição se dá a cada nova leitura.)

Escrever poemas. Desenterrar e ressuscitar paisagens, desenter­rar e ressuscitar cadáveres, desenterrar e ressuscitar lembranças, desen­terrar e ressuscitar emoções, desenterrar e ressuscitar anotações, desen­terrar e ressuscitar leituras, e assim ad infinitum - eis o trabalho religi­oso e sacrílego do poeta com as palavras. Esse trabalho acabou por ter

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o nome com quatro letras de uma musa e por receber uma lógica econô­mica determinada pelo amor e por Camões: "que quanto mais vos pago, mais vos devo". Elizabeth Bishop escreve em carta: "Detesto perder gen­te". Viajar é um longo aprendizado nas artes pouco recomendáveis da

necrofilia e os mapas são as tábuas anatômicas em que se expõem à análise paisagens, cadáveres, lembranças, emoções, anotações e livros. Assim sendo, o que foi considerado no parágrafo inicial desta palestra de "tradução do acontecimento" vem balizado por um discurso poético que se apresenta sob a forma constante de autoconhecimento (o "conhece-te a ti mesmo socrático"), ainda que muitas vezes, no poema descritivo de Elizabeth Bishop, os dados propriamente autobiográficos se represen­tem escamoteados, ou camuflados na superfície da escrita asséptica e necrófila.

Elizabeth Bishop não é uma modernista, ou vanguardista como dizem os anglo-saxões. Por isso, seus poemas descritivos, mesmo os mais calçados pela influência de João Cabral de Melo Neto ("The Burglar of Babylon") ou da sua amiga Lota Macedo Soares ("Manuelzinho"), pouco ou nada têm a ver com estéticas nacionalistas ou ufanistas ("I somehow never thought of there being a flag" - não deixa de ser um verso emblemático). Elizabeth Bishop é uma modernista tardia, ou seja, uma high modernist. Nos seus poemas descritivos, devemos içar os da­dos autobiográficos do fundo do poço do poema num processo que equi­vale ao de freqüentar com carinho e sensibilidade certas e inúmeras "fon­tes", hoje guardadas como pequenos caixões de anjos nas alcovas das bibliotecas norte-americanas. Fontes como cartas enviadas e recebidas, anotações rápidas e travessas, relatos de conversa, entrevistas, depoi­mentos, rascunhos de possíveis obras, diários íntimos próprios e alheios, etc., etc. Um cotejo desses inumeráveis papéis avulsos com o texto final­mente dado à luz como digno do nome poema acaba sendo revelador da intensidade das impressões subjetivas no processo de elaboração do poema descritivo de Elizabeth Bishop.

Por intensidade das impressões subjetivas devemos entender basi­camente pressões internas/externas ao poema. As pressões que o poeta sofre em sucessivos instantes passageiros. Estamos falando, portanto, das pressões exercidas seja pelo convívio social com os familiares ou sucedâneos, seja pelo pequeno mundo cosmopolita que a escritora fre­qüenta, seja ainda pelo vasto mundo lá fora que lhe chega pelos meios de comunicação de massa ou por simples cartas; estamos falando das pres­sões impostas pela flora e fauna circundantes, anotadas com cuidado em cadernos e papel de carta; estamos falando, ainda e sobretudo, das pres­sões, na maioria das vezes inconscientes, exercidas pela leitura tanto de

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o estatuto do poema descritivo de Elisabeth Bishop 15

textos literários, quanto de textos não-literários. Nesse exercício, como em outros, Elizabeth é antes de mais nada intrometida. Em carta a Frani Blaugh, escreve: "Espero que você traga [de Nova Iorque] alguns livros. Os livros que mais gosto de ler são sempre os que tiro de alguém que ainda os está lendo". A anotação despreocupada traz algo antecipatório da arte de vida e da estética de Bishop. A leitura do livro tomado à amiga passa a dar continuidade à primeira leitura, e vice-versa, na medida em que ambas se repousam no eixo do empréstimo, ou seja, de uma troca em que alguém perde para que o outro ganhe, em que alguém ganhe para que o outro perca. "The art of losing isn't hard to master".

Vamos a um único exemplo de pressão de textos nitidamente auto­biográficos sobre o texto do poema, pois o tempo ruge. Um lugar de Petrópolis. O sítio de Alcobacinha. Ali, diz ela em carta à doutora Anny Baumann, "umas nuvens despencam das montanhas igualzinho a cacho­eiras em câmara lenta", esse lugar, essas palavras exercem pressão auto­biográfica sobre o poema "Questões de viagem", onde se encontram trans­critas em laboriosos versos: "and the pressure of so many c10uds on the montaintops/ makes them spill over the sides in soft slow-motion,/ tuming to waterfalls under our very eyes".

Diante das palavras por que começamos esta palestra, tão diretas na sua simplicidade e tão excludentes na sua postura teórica, já é chega­do momento de tomar. um definitivo cuidado epistemológico. Aquilo que "realmente aconteceu", para usar agora a linguagem freudiana, é já e sempre um traço mnésico. O que estamos chamando de "tradução do acontecimento" não se refere, pois, a apenas um movimento dos olhos, do olhar observador, que determina pelos sentimentos pessoais a pala­vra, numa ligação direta entre a emoção do sujeito e a paisagem vista ou entrevista. Não se refere tampouco à redução da história do indivíduo a um determinismo linear que considere apenas a ação do passado sobre o presente. Refere-se antes a um reordenamento dos traços mnésicos que estão sempre já [toujours déjà] inscritos na memória do poeta, reordenamento que é proporcionado ou ditado pela atenção ao instante que já não é mais o presente mas o passado no seu devir.

Ao contrário do que pode sugerir o poema "Santarém", a lem­brança nunca erra. Ela está sempre acertando, ao transformar, ao reordenar os traços mnésicos, como quis Jacques Lacao e Jacques Derrida ao relerem Freud. Escreve este em carta a William Fliess, datada de 6 de dezembro de 1896: "[ ... ] trabalho na hipótese de que o nosso mecanismo psíquico se tenha estabelecido por estratificação: os materiais presentes sob a forma de traços mnésicos sofrem de tempos em tempos, em função de novas condições, uma reorganização, uma reinscrição" [os grifos

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são dele]. Acrescentam Laplanche e Pontalis: "A remodelação posterior é acelerada pelo aparecimento de acontecimentos e de situações, ou por uma maturação orgânica, que vão permitir ao indivíduo acesso a um novo tipo de significações e a reelaboração das suas experiências anteri­

ores". Como passar de "lacunas e vazios" à "expressão inconcebível"? - não é assim que se refere Lowell ao mistério da poesia de Bishop e, principalmente, à busca da perfeição por parte dela?

No caso de Elizabeth Bishop, a opção pela escrita poética descri­tiva aponta a priori na direção de um feixe complexo e globalizador de discursos (em que a distância rígida entre elevado/sublime/erudito e bai­xo/popular/pop toma-se precária, substituída que deve ser pela noção de intensidade, de pressão, e, conseqüentemente, pelo deslizamento sub­reptício das repetições em diferenças). A opção pela escrita poética des­critiva serve também para recobrir uma ética que lhe é muito particular: a do modo confessional no campo das Letras; ética que tem sido recoberta pelos adjetivos tímida, discreta, sorrateira, etc. Lembro-me de Paul Valéry que, em carta a André Gide, lhe dizia que há coisas que são ditas "pour toi" [para ti] e outras que são ditas "pour tous" [para todos]. Con­fundir o modo confessional instaurado pelo "pour toi" com o "pour tous" pode levar a desentendimentos éticos definitivos na leitura da sua poesia. Seria correto questionar o glamour com que Elizabeth Bishop cercou o privado sem cercear curtas incursões pelo público?

Reorganizando as idéias, complementemos que a busca da verda­de pelo sujeito no poema descritivo de Elizabeth Bishop, produto incan­sável da reorganização e reinscrição dos traços mnésicos no mecanismo psíquico, dá-se de duas formas. Primeiro, como produto de uma concor­rência inesgotável de discursos paralelos, complementares ou suplemen­tares. O poeta, enquanto ser humano em sociedade, está sempre fabri­cando novos feixes de discurso que, nas mãos do leitor, passam a ser "fontes" inesgotáveis do aprimoramento da leitura de tal ou qual poema. Segundo, serve para estabelecer o que podemos chamar de protocolos éticos (no concreto do dia-a-dia profissional e no vulgar das fofocas , alguém pode dizer tudo, mas tudo depende do que esse alguém diz, do modo como o diz e a quem diz).

As traduções do acontecimento, isto é, as reorganizações do traço mnésico, podem e devem ser consideradas como alegorias do eu, inde­pendente do fato de o poema descritivo tematizar uma paisagem, um animal ou seres humanos. Nesse sentido, talvez, não seja tão prudente (a não ser por critérios exclusivamente didáticos) estabelecer distinções 6

entre alegorias impessoais, onde domina a presença da flora e da fauna, e alegorias subjetivas, onde dominam as experiências propriamente pes-

6 As distinções binárias (vida/ morte , certo/errado ... ) não eram do gosto de Bishop. De­viam diluir-se em "deslumbran­te dialética" (v. "Santarém").

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o estatuto do poema descritivo de Elisabeth Bishop 17

soais, e distinguir ainda entre as duas formas e as alegorias sociais, onde domina a presença do Outro, em geral de classe social mais baixa. O leitor pode e deve trabalhar com um sistema de dominância, pois é este sistema que chega a melhor explicar o interesse e a atenção do poeta em dada circunstância (não falaremos mais do foco dos olhos, mas do traba­lho necrófilo da memória). Esse sistema de dominância é que possibilita­rá a leitura de uma visão de mundo diferenciada ou uma concepção evolutiva do fazer poético.

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"Alteridade" desde Sa rtre até Bha bha:

um surf poro o história do conceito

Ellen Spielmann Universida Livre de Berlim

Como proceder para traçar um mapa, levantar uma cartografia deste campo? Começo por imaginar uma situação concreta: "Moço, por favor, como faço para chegar na Praça da Alteridade, na Place de l'Alterité? - "Muito fácil". Até esta praça conduziram, ao fim dos anos 40, três avenidas principais. Estas avenidas foram ampliadas ao fim dos anos 50, e finalmente, como vocês sabem, desde o começo dos anos 60 fo­ram recolocadas pelas auto-estradas e pelos serviços de helicóptero. As avenidas chamam-se O ser e o nada (L 'être et neant) de Jean Paul Sartre de 1943, O tempo e o outro (Le temps et f'autre) de Emmanuel Lévinas de 1946 e O segundo sexo (Le deuxieme sexe) de Simone de Beauvoir de 1949. A ampliação destas avenidas começou com Jacques Lacan desde seu discurso de Roma em 1953, e com Frantz Fanon no lapso que vai desde Rostos negros, máscaras brancas (Peau noire, masques blancs) de 1952 e Os condenados da terra (Les damnés de la terre) de 1958. Os engenheiros da auto-estrada chamam-se Edward Said, Gayatri Spivak e Homi Bhabha.

Voarei agora sobre a Place de r Alterité com Gayatri Spivak. Ela ressalta, em 1989, a propósito da exposição Magiciens de la terre, no Centre Pompidou de Paris, que alteridade é um conceito que aparece em inglês somente em meados dos anos 80 como tomado do francês através da discussão sobre os trabalhos de Emmanuel Lévinas, quer

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dizer, com 40 anos de atraso, e - digo de passagem - também a senhora Spivak chega com certo atraso à Place de /'Alterité. Ela toma o conceito de Lévinas do totalmente Outro sua "chama de rebate" para que o "totalmente outro" (le tout-autre) não seja reduzido ao mesmo/ ao próprio. Lévinas diz no livro O tempo e o outro: "O outro é o futuro; a relação com o outro é a relação com o futuro". E continua: "Eu defino o outro não através do futuro, senão o futuro através do outro, pois justo o futuro consta da alteridade total da morte". O outro que narramos, compreendemos, dominamos une-se e afiança-se com o mesm% outro através de um mecanismo: "o estado do espelho" - stade du miroir, (nas palavras de Lévinas face a face avec autrui, elaborado e formu­lado por Jacques Lacan.

A prevenção de Lévinas, segundo Gayatri Spivak, está unida à exigência de que antes de qualquer "ontologia" ou "fenomenologia trans­cendental" introduz-se uma ética da ética do "outro absoluto" (tout autre). Se pensamos o discurso de Lévinas sobre o outro até suas últimas conse­qüências, estamos diante de uma radical generosidade no momento da aproximação na qual o mesmo move-se em direção ao outro. E se for­mos um passo mais além, diremos que, em última instância, ele (o dis­curso) pede que o outro não agradeça.

Durante o vôo que realiza Gayatri Spivak, em 1989, sobre a Place de I 'Alterité a partir do convite para comentar o conceito, ela só se preocu­pa frente a um campo: a "subalteridade" - subalternity: campo que ela define como ainda não determinado pela dinâmica de política, cultura po­lítica, política cultural, cultura para a política. Para os sujeitos subalter­nos, não lhes outorga, não lhes concede uma posição de sujeito. No seu trabalho, Spivak situa a subaltemidade como arena ofiudgement ar testin ( "arena de julgamento ou teste") porque - é esta a forma como argumen­ta - porque nem a lógica da democracia parlamentária, nem a planifica­ção socialista, nem a da identidade cultural dão conta dela. Escreve:

This space is not, "uncontaminated" by the West, and certainly not apart" by collective social choice. Although cultural or political institutions, by definition, do not give them any support for them to be constituted as social agency ofjudgement,for my own work ( .. .) Therefor I will say no more than that is for us a space of anxiety. It is also a space of a genuine aporia of history. Both culturalism and the politics of of the nation-state will transform this ambiguous placel.

Em seguida, tratando por um lado da genealogia da noção filosó­fica "alteridade", procuro descrever e discutir diretamente cada uma das

I Gayatri Spivak. Oulside in lhe

leaching machinc. New York : Routledge, 1993, p. 213-14.

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distinções. Emerge a pergunta: o que é alteridade nos anos 40? Por outro lado, dou peso ao momento mediato: a conexão com outros debates e, com eles, a introdução de um metadiscurso dos discursos sobre alteridade.

Jean Paul Sartre publicou, três anos antes de O tempo e o outro de Lévinas, seu primeiro livro de filosofia, O ser e o nada, onde desenvol­ve, programaticamente, uma fenomenologia do outro e da alteridade. Tal filosofia constitui-se em nível dos indivíduos no marco de uma filosofia existencialista. Para isso, Sartre apropriou-se da dialética de "O senhor e o escravo" de Hegel para levá-la ao seu extremo e assim reformulá-Ia.

Bem, há que se advertir que a estratégia de Sartre faz parte de uma constante na filosofia francesa do século Xx. A relação maitre et esc/ave une em francês dois momentos-chave da filosofia do outro: tra­ta-se da relação "Senhor e escravo" em Hegel e "Senhor e escravo" em Friedrich Nietzsche. Com essa espécie de passo de prestidigitação, surge um duplo teclado conceitual por cujo intermédio um conceito vai ser usado para revelar o outro. Sartre intervém em favor de um sujeito forte, capaz de pensar o outro. O que é alteridade em 1943? A argumentação de Sartre é universalista: o outro é sempre uma ameaça, representa um pôr em questão da minha experiência, dotado com o poder de objetivar­me e mover-me para auto-objetivar-me. É claro que essa dinâmica entre o mesmo e o outro deve-se pensar em termos de reciprocidade. A rigoro­sa ontologia de Sartre divide de maneira cortante consciência e corpo para mover-se dentro dos limites da metafísica. Sem dúvida nenhuma, Sartre é um clássico do século XX e por isso uma figura suscetível de celebrar-se. No ano 2000, publica-se meia dúzia de novos livros, por exemplo: Le siec/e de Sartre por Bemard-Henri Lévy (Paris: Grasset). Mas, ao mesmo tempo, estou completamente de acordo com as leituras de O ser e o nada, que comprovam o fracasso do seu projeto de ontologia. Pois inclusive, na última página do livro, não se sabe ainda o que seja "o ser" e o que seja "o nada" e como se comportam entre si. No entanto, é precisamente a ontologia de Sartre que dá vocação a Octavio Paz para incluir na língua castelhana o conceito de otredad como conceito- chave no Ellaberinto de la soledad (1959). Na metade dos anos 50, um grupo de intelectuais em tomo da revista Contorno orienta-se no rumo do existencialismo de Sarte, para mencionar pelo menos dois exemplos lati­no-americanos.

Na metade dos anos 40, para resumir, a interpretação existencia­lista de Hegel serviu para propor um conceito ampliado de razão e da compreensão acerca de "o que em nós e nos outros encontra-se antes e sobre a razão", segundo a fórmula que propunha Maurice Merleau-Ponty. Em geral, menciona-se Simone de Beauvoir junto com Sartre sem maior

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diferenciação. Porém, seus conceitos de alteridade diferem entre si. Em que reside exatamente a diferença? Simone de Beauvoir adota a catego­ria existencial do outro. Converte-a também em categoria constitutiva da consciência: a consciência humana fundamenta-se no outro. Bem, sua abor­

dagem dá-se - e com isso ultrapassa o núcleo da posição de Sartre - na

adoção do conceito de alteridade na sua função crítica cultural. Este origi­na-se no marco de análises sobre o que divide os sexos (ela não fala em diferença) e sobre as relações de poder e dominação.

Para Simone de Beauvoir, as mulheres existem como outro. Ela foi a primeira a criticar a hierarquização e fixação das assimetrias dos gêneros, que tem em Lévinas seu expoente, seguindo-se, nos rastros dela, Luce lrigaray, Jacques Derrida e Gayatri Spivak. Contradizendo Lévinas, ela declara:

Je suppose que M. Lévinas n 'oublie pas que lafemme est aussi pour soi conscience. Mais i! estfrappant qu'i! adopte delibérément un point de vue d'homme sans signales la récipocité du sujet et de l'objet. Quand il écrit que lafemme est mystere, il sous-entend qu 'elle est mystere pour l'homme. Si bien que cette description que se veut objetive est en fait une ajfirmation du pril'ilege masculin2.

As mulheres seriam, segundo Simone de Beauvoir, o negativo dos homens, a carência. No entanto, ela realiza um decisivo deslocamento. Para ela, a identidade de gênero não designa um ser substancial, mas sim uma dimensão cultural e histórica. Na interpretação mais corrente, Si­mone de Beauvoir aparece intervindo em favor do direito da mulher, a chegar a ser um sujeito existencial, a ser incluída numa universalidade abstrata. Porém, deve-se destacar que sua posição implica também uma crítica fundamental da descorporalização do sujeito cognitivo masculino abstrato, como assinalava Judith Butler, em 1986, no ensaio Sex and gender in Beauvoir's Second Sex 3 • De maneira que Simone de Beauvoir reformula a dialética "amo-servo", colocando-a sob o signo da assimetria não mútua entre os gêneros. Ela afirma: o corpo feminino deve ser para as mulheres "situação" e "instrumento" da liberdade e não uma essência definitória e limitadora. "Situação" , aqui, deve ser entendida no sentido existencialista. E isso supõe, em último termo, a teoria da corporalidade de Sartre, que reproduz o dualismo corpo-espírito, apesar de seu intento de alcançar uma síntese entre os conceitos. Na sua leitura de Simone Beauvoir, Gayatri Spivak considera positiva a tentativa de Beauvoir de pensar corporal idade - representada pela figura Mãe - como instru­mento para logo desconstruí-Ia. No seu ensaio Frenchfeminism revisited,

, Simone de Beauvoir. Le deu.riell/ e sex e I , Pari s: Gallimard, 1961 , p. 16.

3 In : Yale French Studies, Si­mone de Beauvoir: Witness to a Century. n," 72. p. 74-g9. nov./dec. , 19g6.

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4 Spivak 1993, p. 151.

S kan Paul Sartre. In: Frantz Fanon. Les damnés de la ferre. Paris:~aspero, 1962,p.22.

Frantz Fanon. Peau noire , masques blancs. Paris: Seuil, 1<J52, p. 178 (a tradução é

minha).

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Spivak escreve: I read with sympathy, though against the grain, Beauvoir' s figure of lhe M olher provides an asymmetrical site ofpassage }I,ith lhe possibility of a strong framing of appropriation that has been protectedfrom a philosophical anthropology, yet not preserved in trans­cendental tall(~ . No Segundo sexo - publicado em 1949 - há uma nota de pé de página referente aos trabalhos de um tal Dr. Lacan. É óbvio que sua teoria acerca-se da constituição do sujeito - conhecida como "o estado de espelho" - apresentada pela primeira vez em 1936 no Congresso Internacional de Psicanálise, em Marienbad. Era conheci­da exclusivamente por um grupo muito pequeno de intelectuais france­ses. Era quase um dado de insiders.

No começo dos anos 50, entra em cena um psiquiatra e médico da Martinica. Seu nome é Frantz Fanon. O martinicano Fanon ampliou a avenida da alteridade até convertê-la em modelo analítico da experiência colonial. Já com Rostos negros, máscaras brancas (1952), radicalizou e sobressaltou as colocações de seus referenciais franceses. No prólogo aos Condenados da terra (1958), Sartre chega até a afirmar: "Fanon põe adiante dos nossos olhos o Ocidente desnudo, a civilização desnuda como num strip-tease"s. (Porém o problema consiste ao meu ver em que esse pôr a nu não tem a fascinação da sedução, mas sim a de horror).

O que é alteridade em Frantz Fanon? Fanon transferiu, transplan­tou o conceito às relações entre as raças, à divisão e à assimetria dos gêneros (esboçados e descritos por Simone de Beauvoir). O decisivo é o seguinte: Fanon transformou o conceito do outro, visto como estrutura fundamental da consciência, com ajuda do instrumentário psicoanalítico, para descrever e situar o sujeito colonial. Fanon refere-se ao "estado do espelho" estabelecido por Lacan e assim escreve: "Quando se há enten­dido este processo descrito por Lacan, não pode restar nenhuma dúvida que o verdadeiro outro do branco foi e segue sendo o negro e vice-versa. Somente que "o outro", destaca Fanon, "é percebido pelo branco ao ní­vel da imagem corporal em forma absoluta, como o não Eu"6 .

Fanon remete ao mesmo tempo para os limites das categorias psicoanalíticas quando inclui realidades históricas e econômicas no seu diagnóstico da situação colonial. Também em Fanon, desta vez referin­do-se às questões de raça, o corpo é compreendido em termos de "situa­ção" e "instrumento". E por conseguinte nas suas análises do colonialis­mo resulta que o corpo toma-se instrumento de liberação. Fanon postu­la uma igualdade entre liberdade e consciência. A consciência possui a capacidade de expressar dúvida. Consciência, raça e corpo se relacio­

nam entre si. A propósito do seu grande mestre, anota Fanon: "Jean Paul Sartre tem esquecido que o negro sofre com seu corpo de outra maneira

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que o branco" e, em seguida, agrega "inclusive se os estudos de Sartre sobre a existência do outro mantêm sua vigência (na medida em que O ser e o nada descreve a consciência alienada), sua aplicação à consciên­cia negra revela-se como falsa: porque o branco não é somente o outro, mas sim o-real-ou-imaginário-amo". Fanon utiliza no fim de Rostos ne­

gros. máscaras brancas a expressão "alteridade originária". Assume, assim, a problemática da "dupla consciência", formulada em The Souls of Black Folk de 1903 pelo intelectual negro W.E. Du Bois. Este termo designa a situação do double bind dos americanos negros. À pressão para assimilar-se to bleach his negro soul,? a resposta de Du Bois é de um rechaço sem nenhum compromisso. Esta postura estratégica vale também para Fanon. De particular interesse para os debates atuais é sua posição sobre o papel da violência na política da luta da liberação naci­onal contra o colonialismo. Fanon declara em 1958, durante a época da guerra na Argélia: " O colonialismo francês é uma guerra com violência, deve ser derrotado com violência. Nenhuma diplomacia, nenhum gênio político, nenhuma habilidade pode dominar ele." Até hoje posições como essa dão lugar a notórias irritações entre aqueles teóricos da alteridade que seguem linhas dominantes. Tzvetan Todorov considera o momento "curativo" das reações de violência e de vingança com suspeita no seu livro La conquête de /'Amérique. La question de l'autre (1982) ..

Pode-se afirmar que na filosofia e nas ciências sociais dos anos 40 e 50, incluídas a antropologia social e a psicanálise, o outro teve o papel de um limite que devia servir para ampliar a razão e o conhecimento, para compreender enfim o irracional.

A experiência da alteridade das mulheres, a que me referi, já que ultrapassa os limites da razão, tomou-se objeto de pesquisa. O mesmo vale para as experiências de psicóticos e neuróticos, primitivos e selva­gens. Resulta que serviram para ampliar o conceito da razão. Somente a geração de pensadores e cientistas dos anos 60 e 70, segundo anota Vincent Descombes, pôs fim aos esforços de integração do outro dentro de um conceito ampliado de razão.

Os intentos desenvolvidos até então para ultrapassar o heterogê­neo, dotar sentido ao absurdo e traduzir o outro na linguagem do mesmo levaram a uma reorientação com efeitos às vezes de choque. Michel Foucault toma posição na Praça da Alteridade e escreve uma história da psiquiatria resumível pelo seguinte apotegma: "O psiquiatra fala de lou­cos, mas os loucos não falam".

O fenômeno da loucura reside, segundo afirma Foucault, naquela cadeia de divisão da razão cujas origens encontram-se na separação en­tre o "mesmo" e o "outro". A reorientação epistemológica estabelece-se

) WlIiam E. B. Du Bois. In: Three neli ro classics. New

York: Avon Books, 1965, p. 213-390, p. 215 .

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, Jacques Derrida. Violence

et métaphys ique . In : Id . L'écrilure el la différence , Paris: Seuil, p. 135-6.

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em nova forma. Os caminhos que segue Foucault são a revisão do con­ceito do sujeito e a problematização das representações do outro. A lei­tura desconstrutivista de Lévinas que pratica Jacques Derrida em Violence et metaphysique enfoca a fenomenologia de Husserl e a ontologia de Heidegger, que ignoram a alteridade, para assim estabelecer as conseqü­ências disso na ética de Lévinas. Jacques Derrida escreve:

La conséquence en serait double, a) Ne pensant pas l'autre, elles n'ont pas le temps. N 'ayant pas le temps, elles n'ont pas l'histoire. L'altérité absolue des instants, sans laquelle il n'y aurait pas de temps, ne peut être produite - constituée - dans l'identité du sujet ou de l'existant. Elle vient au temps par autrui. Bergson et Heidegger l'auraient ignoré, Husserl encore davantage. B) Plus gravement, se priver de l'autre (non par quelque sevrage, en s'en séparant, ce qui est justement se rapporter à lui, le respecter, mais en l'ignorant, c'est-à-dire en le connaissant, en l'identifiant, en l'assimilant), se priver de l'autre, c'est s'enfermer dans une solitude ... et réprimer la transcendance éthique. En effet, si la tradition parménidienne - nous savons maintenant ce que cela veut dire pour Levinas - ignore I ' irréductible solitude de l'''existant'', elle ignore par la même le rapport à l'autre8 •

Este contexto seria também o lugar para aludir-se a outras bus­cas que têm ajudado no projeto da arqueologia do saber, na genealogia e na desconstrução. O ponto de partida dessas buscas é a abertura das teorias do discurso às vozes daqueles que têm sido constituídos como outros. Penso em particular na antropologia pós-moderna, nos trabalhos desenvolvidos a partir do seminário Writing cu/ture de Santa Fé e, mais em particular, nas abordagens de James Clifford. A consideração do tra­balho do antropólogo como trabalho de escritura e das etnologias como textos andou junto com a crise da autoridade etnológica, quer dizer, da crise da autoridade do etnógrafo para inventar com sua escritura o outro e a outra cultura. Um campo especial de análise inovadora são as teori­zações do discurso colonial.

Os termos-chave da teoria pós-colonial são "o outro" e "a alteridade". Seu engenheiro mais importante é Edward Said. Ele desen­volveu com Orientalism (1978) um modelo de análise para mostrar de que maneira funcionam autodescrições e autodefinições através do pro­cesso de assumir estereótipos da civilização ocidental. Said mostra, nas suas investigações sobre o passado imperial e o presente pós-imperial, de que maneira a constelação estabelecida por Foucault, entre saber e poder, atua em concreto e como dentro dessa relação estreita de inter-

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câmbio funcionam - com êxito - controle imperial e a política de expansão européia,

Said une a afirmação de Foucault com a relação reformulada por Sartre entre amo e servo, vinda de Hegel, transpondo-a em dicotomia entre o mesmo e o outro, Said argumenta que a relação colonial entre colonizadores e colonizados, o outro marginal, é uma relação hierárqui­ca que não supõe intercâmbio mútuo, quer dizer, saber sobre o outro possibilita representação, apropriação do outro, cria e legitima o direito de terminação arbitrária e de controle de acordo com os próprios interes­ses econômicos e geopolíticos. Em Culture and imperialism (1993), ele escreve:

In time, culture comes to be associated often aggressiveley, with the nation or the state; this differentiates "us" from "them", almost always with some degree ofxenophobia. Culture in this sense is a source of identity, and a rather combative one at that, as we see in recent "returns" to culture and tradition. These "returns" accompany rigorous codes of intellectual and moral behavior that are opposed to the permissiveness associated with such relatively liberal philosophies as multiculturalism and hybridity. In the formerly colonized world, these "retums" have produced varities ofreligious and nationalist fundamentalism9 •

Dentro da disciplina fundada por Edward Said, podem-se situar os trabalhos de Homi Bhabha. A autorização dos conceitos "the Other" e "alterity" sofre uma importante mudança entre dois textos chaves. The other question (1983) e Post-colonial criticism (1992). No primei­ro texto "Alterity" está unido como processo ao conceito de "mimicry" . desprendido de uma leitura de Lacan: trata-se do intento de um desloca­mento da posição e dos efeitos do sujeito colonial através dos movimen­tos da repetição, da iteração e da variação. Porque, assim argumenta Bhabha: The colonial stereotype is a complexo ambil'alent. contradicrO/}' mode of representation, as anxious as ir i5 asserrire. and demands nor only that we extend our criticaI and political objetil'es but that }l'e change the object of analysis itself 10 •

No segundo texto, o processo "of alterity" também adquire um papel decisivo, porém há que se precisar que se trata de um papel trans­formado. Bhabha define a perspectiva pós-colonial como algo que:for­ces us to rethink the profound limitations ofa consensual and collusive 'liberal' sense ofcultural community. Que papel tem a alteridade dentro da perspectiva pós-colonial? A resposta de Homi Bhabha não pode ser mais conclusiva. Bhabha declara: "Insisto em que a identidade cultural e

9 Edward Said. Culfll1'e and

imperialism. NewYork: Knopf, p. XIII.

In Homi Bhabha. The other

questiono In: Screen, vol. 24 n. °.6, p. I l{-35, p.22. 1983.

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11 Homi Bhabha. In: Stephen Greenblatt/Giles Gunn ed. , Redrawing lhe boundaries: the lransformalion of english and american lilerary sludies, N ew York: MLA, p. 437-65, p. 441,1992.

12 In: Casa de las Américas, n° 98, p. 36-57, p. 51.

11 Fredric Jameson. Third

World Lileralure in lhe Era of Hullinarional Capiralism.ln: Social Texl, n.o 15, p. 65-88, 1986.

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política é construída através de um processo de alteridade." O núcleo decisivo de suas propostas é o seguinte parágrafo:

Questions of race and cultural differences overlay issues of sexuality and gender and overdeterrnine the social alliancesof class and democratic socialismo The time for' assimilating' minorities to holistic and organic notions of culture value has dramatically passed. The very language of cultural community needs to be rethought from a post-colonial perspective 11 •

Resta colocar a questão dos debates sobre alteridade na América Latina. Concentra-seno debate sobre Próspero e Caliban, retomado pelo intelectual cubano Roberto Femandez Retamar, em 1971, depois da cri­se pós-revolucionária, quando a identidade cubana estava em questão. Provocado pelo affaire de Padilla, Femandez Retamar retomou a histó­ria de colonizadores e colonizados, de Próspero e Caliban, para pensar e resolver esse problema central através da construção do sujeito coletivo. Na re-Ieitura de Femandez Retamar está fixada a dicotomia coloniza­ção/anticolonização e imperialismo/anti-imperialismo, o outro é os EUA. O grande mérito de Femandez Retamar encontra-se na postura estratégi­ca da inversão das relações opostas entre Próspero e Caliban, assim que consegue valorizar a própria cultura. Em Nuestra América y Occidente (1976), ele sublinha a idéia de que os verdadeiros latino-americanos não "são europeus" e declara: "es decir "occidentales" (. .. ) Los grandes enclaves indígenas de nuestra América ( ... ) no requieren argumentar esa realidad obvia: herederos diretos de las primeras víctimas de lo que Martí llamó "civi!ización a devastadora" , sobreviven la destrucción de sus civilizaciones como pruebas vivientes de la bárbara irrupción de outra civilización en estas tierras"12.

No ato da inversão das posições, ele reduz o conceito de alteridade a simples atitude: reproduzir o outro. Ademais, suas reflexões inscritas no dicurso nacional não chegam a adaptar o conceito psicoanalítico de Fanon. Caliban y otros ensaios. Nuestra América y el mundo (1976) é o único texto traduzido que circula nos Estados Unidos. Publicado em 1989, com introdução de Fredric Jameson, o texto foi criticado pelo seu esquematismo de cunho anti-ocidental pela crítica. Continua a ser criti­cado com toda razão, mesmo quando Femandez Retamar introduz em versão ampliada o terrno"postoccidentalismo". O interesse de Jameson pela literatura do chamado Terceiro Mundo surgiu em 1986, quando ele propôs uma leitura tout-cour: ler todas as obras dessa literatura como

alegoria nacional 13 • No prefácio de Caliban salta à vista: a estratégia de

Jameson é inscrever-se no debate pós-colonial e assim ganhar peso. O

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prefácio serve para transfonnar Caliban em texto de articulação de dife­rença cultural e, ao mesmo tempo, transfonnar a si mesmo em teórico pós-colonial.

Reflexões de outra linha vêm do lado do teólogo de libertação Enrique Dussel. Ele dá peso à necessidade de postular o ofro latinoame­ricano zu postulieren, colocando argumentos éticos 14. O problema é que Dussel não deixa claro quais são as condições históricas concretas para o outro agir. Outro vazio branco que se encontra na perspectiva teológi­ca tomada por Dussel é: as mulheres desvanecem no horizonte 15. A falta do debate sobre o conceito Alteridade ou seu atraso l6 , na América Lati­na, explica-se pela força e presença do conceito da mestiçagem. O pro­cesso de mestiçagem como ato para valorizar o índio como outro, cons­truído pela síntese com o espanhol/português, alcançou o mesmo nível do colonizador. A síntese e a valorização da cultura própria nacional bloquearam pensar e conceitualizar "alteridade". Dentro da nova etapa da globalização cultural, observamos no debate uma série de mudanças e deslocamentos. Isso se mostra em particular no campo das teorias cul­turais, as quais buscam traçar novas cartografias. 17

1" Enrique Dussel. COmines

de la liberaciôn larinoameri­cana, Tomo. 2 Teología de la liberación y ética, Buenos Aires: Latinoamérica Libras 1974.

1; Marta Zapata. Filosofia de

la liberaciôn y liberaciôn de

la mujer.ln: Debate Feminis­ta, Vo1.l6, p. 69-97, 1997.

16Em 1996 publicou-se o nu­mero titulado Orredad da re­vista Debate Feminista, colo cando a pergunta : cómo

asume 01 otm , ai diferente, aI extraiio, Vol. 13 , p. IV, Abril 1996.

17 Ve Roman de la Campa. y

Larinoamérica y sus nuevos carrlÍgrajós: Discurso posco­lonial. diásporas intelec­ruales y enunciación fronte ­ri:a.ln: Mahel Moraiia (ed.), Crítica cu ltural reoría lit eraria latil10america , Revista /heroamericana , n° / 76- / 77, p . 697-7/7.

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Teoria e prática de Antonio Candido

João Alexandre Barbosa Universidade de São Paulo

No início de um ensaio sobre o que chamou de "timidez do romance", Antonio Candido soube caracterizar aquilo que há de secreto e pungen­te na atividade literária, marcando as incertezas que dominam muitas vezes os criadores, mesmo os maiores, com relação a suas próprias obras e o lugar que ocupam entre outras atividades sociais. Eis o trecho que quero destacar:

A literatura é uma atividade sem sossego. Não só os 'homens práticos', mas os pensadores e moralistas questionam sem parar a sua validade, concluindo com freqüência e pelos motivos mais variados que não se justifica: porque afasta de tarefas 'sérias', porque perturba a paz da alma, porque corrompe os costumes, porque cria maus hábitos de deva­neio. Outro modo de questioná-la, às vezes inconscientemente, é justificá-la por motivos externos, mostrando que a gratuidade e a fanta­sia podem ser convenientes como disfarce de coisa mais ponderável. Este ponto de vista do tipo Manequinho da Praia de Botafogo ('sou útil mesmo brincando') está, por exemplo, na base do realismo socialista, como foi ensinado nos anos do stalinismo. Mas, no fundo, Platão e Bossuet, Tolstói e Jdanov, por motivos diversos e com diversas formu­lações, manifestam a desconfiança permanente em face de uma ativida­de que lhes parece fazer concorrência perigosa aos messianismos e dogmas que defendem.

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"Isto faz que a literatura quase nunca tenha consciência tranqüila e manifeste instabilidades e dilaceramentos, como tudo que é reprimido ou contestado: tem dramas morais, renuncia, agride, exagera a própria dignidade, bate no peito e se justifica sem parar. Não é raro ver os escritores envergonhados do que fazem, como se estivessem pratican­do um ato reprovável ou desertando de função mais digna. Então enxer­tam na sua obra um máximo de não-literatura, sobrecarregando-a de moral ou política, de religião ou sociologia, pensando justificá-la deste modo, não apenas ante os tribunais da opinião pública, mas ante os tribunais interiores da própria consciência".)

Embora o texto seja apenas o começo de um estudo sobre o ro­mance francês do século XVII, existem nele elementos interessantes

como maneira do crítico armar a sua leitura, a partir mesmo da frase inicial, de grande generalidade, e que só aos poucos vai sendo particula­rizada. Deste modo, a afirmação de que "a literatura é uma atividade sem sossego" que, a princípio, poderia parecer referir-se somente ao próprio trabalho crítico, logo remete o leitor à indagação por sua valida­

de, em primeiro lugar desencadeada por juízes do pensamento e da moral que avaliam de sua "seriedade" em meio a tarefas tidas por mais impor­tantes, e, em segundo lugar, justificada a partir de argumentos extraídos de uma concepção de literatura que a vê como ornamento da imagina­ção capaz de instilar lições mais aproveitáveis.

Neste sentido, entre a busca pela validade e as justificativas para a existência, a frase inicial é retomada, expandida, no parágrafo final do texto pela afirmação da intranqüilidade que contamina a atividade literá­ria, travestindo-se de política, moral , religião ou sociologia, elementos com que joga para pacificar as tensões que a caracterizam de base. É natural,

portanto, que o texto se encerre com uma anotação da "mauvaise conscien­ce" que domina os escritores para quem a literatura não é senão um sucedâneo de serviços mais importantes a serem prestados à sociedade.

Por outro lado, sem que ocorra qualquer demarcação temporal no texto, as observações do crítico possuem uma generalidade, por assim dizer, teórica e que, passando pela prática das análises pontuais de obras que realiza no ensaio, é retomada ao final, mas aí já tendo percorrido um longo caminho de ataques e defesas da ficção, quando extrai da leitura de um esquecido teórico do século XVII - o cônego François Langlois, vulgo Fancan, e matéria principal do ensai02 - a justificativa maior para a literatura de ficção, qual seja, a de que "se a História representa o desejo da verdade, o romance representa o desejo da efabulação, com a sua pró­pria verdade. Esta é a sua grande, real justificativa; e, ao propô-la, Fancan realizou a melhor apologia possível do gênero ameaçado pelo Ministro da Justiça de então, mostrando que não se trata de um recurso estratégico

I Cf. "Timidez no romance", em A educação pela noite e

outros ensaios. São Paulo: Editora Ática, 19R7, p.82-3. (O ensaio foi publicado, pela primeira vez, com o subtítulo de "Estudo sobre as justificativas da ficção no começo do século XVII"', na revista Alfa da Fa­culdade de Filosofia. Ciências e Letras de Marília, em 1973)

" Prova disto é que, na edição em espanhol do ensaio, o seu título é modificado para "Fan­can, olvidado teórico de la novela"'. Cf. Antonio Candido, Ensayos y comentarios. Cam­pinas/México: Editora da Unicamp/Fondo de Cultura Económica de México, 1995, p.189-21O.

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3

Op. cit . , p. 99 .

Teoria e prática de Antonio Cândido 31

para reforçar os valores sociais, ideologicamente conceituados; mas de resposta a uma necessidade do espírito, que se legitima a si mesma".3

A leitura de todo o ensaio, entretanto, aponta para um aspecto curio­so: o texto transcrito funciona, na verdade, como uma espécie de gancho para aquilo que será o seu argumento central, na medida em que se trata de um ensaio de teor histórico-literário articulado por uma vigorosa hipótese teórica que está, de certo modo, encapsulada neste texto. E esta hipótese é de que modo o romance, um gênero de ficção encarado sob suspeição por entre os gêneros maiores, como a epopéia e o teatro, foi encontrando justi­ficativas para a sua validade na sociedade francesa do século XVII.

Neste sentido, não obstante todo o aparato erudito de que se reves­te o ensaio (e as notas e observações biobibliográficas são uma demons­tração inequívoca disto), não se trata de um ensaio historiográfico na acepção tradicional, em que a coleta de novos dados, visando renovar as interpretações, fosse o seu maior objetivo. Nem tampouco significa que o miolo histórico-literário seja uma mera demonstração de tese a ser defen­dida, mas daquilo mesmo que já ficou insinuado: de uma articulação em que o que era hipótese teórica no texto transcrito vai, aos poucos, inte­grando-se como história na leitura crítica, de tal maneira que, a partir de um dado momento, o leitor não mais distingue teoria e história pois ambas foram, por assim dizer, resolvidas pela escrita crítica.

Sem a teoria, a história não seria senão descrição sucessiva de dados e fatos; sem a história, a teoria não deixaria o patamar das espe­culações generalizadoras. É como se entre a história propriamente lite­rária - aqui representada pelo gênero romance em seus inícios france­ses - e a história circunstancial, que aqui se representa pela sociedade francesa do século XVII, a teoria, isto é, a hipótese teórica das tensões entre validade e justificativa do romance como gênero, funcionasse como metáfora crítica das articulações históricas, capaz, por isso, de operar a convergência de literatura e história, sem perda das tensões básicas que caracterizam suas relações.

Deste modo, entre a frase inicial do texto e a justificativa final, expressa através de Fancan, teoria e história foram soldadas pela leitura analítica que corresponde ao momento central do ensaio. Como, no en­tanto, a generalidade do texto transcrito é atemporal , a hipótese teórica

não é concludente mas se abre para outras leituras possíveis de tempos e

espaços literários: a afirmação da validade da ficção é tarefa que acaba por se impor como da própria natureza do trabalho com o imaginário.

Sendo assim, a validade será sempre uma conquista de cada obra, independente, de alguma maneira, da consciência do escritor que, com freqüência, tem dificuldade em reconhecer a sua legítima condição na

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sociedade. Por aí, deste modo, é possível recuperar a frase inicial com valor positivo: o desassossego da atividade literária é próprio da nature­za ficcional da literatura.

2 Quinze anos depois do ensaio considerado anteriormente, Anto­

nio Candido escreveu o texto que passo agora a examinar: O direito à li te ratura . 4

Embora tendo uma finalidade inteiramente diversa do escrito an­terior, e sendo diferentes no próprio movimento da escrita, o primeiro mais ensaístico, o segundo mais didático, creio que ambos coincidem num ponto central e decisivo, embora, no primeiro, o porta-voz da idéia seja o teórico Fancan, e, no segundo, seja o próprio autor-conferencista: a literatura, ou a ficção em geral, como necessidade profunda do ho­mem, instrumento capaz de intensificar um processo de humanização que advém precisamente das construções do imaginário. Eis um trecho selecionado do ensaio:

Chamarei de literatura, da maneira mais ampla possível, todas as cria­ções de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produ­ção escrita das grandes civilizações. Vista deste modo a literatura aparece claramente como manifestação uni­versal de todos os homens em todos os tempos. Não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contacto com alguma espécie de fabulação. Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar as vinte e quatro horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabulado. O sonho assegu­ra durante o sono a presença indispensável deste universo, independen­temente da nossa vontade. E durante a vigília a criação ficcional ou poé­tica, que é a mola da literatura em todos os seus níveis e modalidades, está presente em cada um de nós, analfabeto ou erudito - , como anedota, causo, história em quadrinho, noticiário policial, canção popular, moda de viola, samba carnavalesco. Ela se manifesta desde o devaneio amoro­so ou econômico no ônibus até a atenção fixada na novela de televisão ou na leitura seguida de um romance. Ora, se ninguém pode passar vinte e quatro horas sem mergulhar no universo da ficção e da poesia, a literatura concebida no sentido amplo

.. Tendo sido inicialmente um a palestra em curso sobre direi­tos humanos proferida em 198R, e publicado no livro Direitos humanos e . .. , em 1989, O texto pode ser lidu hoje em Vários escritos. Ter­ceira edição revista e amplia­da. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1995, p.235-263.

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5

Idem, p. 242-44.

6 Idem, p.24S.

Teoria e prática de Antonio Cândido 33

a que me referi parece corresponder a uma necessidade universal. que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito. Alterando um conceito de Ono Ranke sobre o mito, podemos dizer que a literatura é o sonho acordado das civilizações. Portanto, assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono. talvez não haja equilíbrio social sem a literatura. Deste modo, ela é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade, inclusive porque atua em grande parte no subconsci­ente e no inconsciente. Neste sentido, ela pode ter importância equiva­lente à das formas conscientes de inculcamento intencional, como a educação familiar, grupal ou escolar.( ... ). A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apóia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas. Por isso é indispensável tanto a literatura sancionada quanto a literatura proscrita; a que os poderes sugerem e a que nasce dos movimentos de negação do estado de coisas predominante. A respeito destes dois lados da literatura, convém lembrar que ela não é uma experiência inofensiva, mas uma aventura que pode causar proble­mas psíquicos e morais, como acontece com a própria vida, da qual é imagem e transfiguração. Isto significa que ela tem papel formador da personalidade, mas não segundo as convenções; seria antes segundo a força indiscriminada e poderosa da própria realidade. Por isso, nas mãos do leitor o livro pode ser fator de perturbação e mesmo de risco. Daí a ambi valência da sociedade em face dele, suscitando por vezes condena­ções violentas quando ele veicula noções ou oferece sugestões que a visão convencional gostaria de proscrever".5

Esta defesa do que chama, em certo momento, de "necessidade universal" da literatura, fundada em seu caráter de fabulação, e por aí respondendo ao traço construtivo e humanizador do imaginário, não sig­nifica, como se pode ver, a aceitação parcial daquilo que, na literatura, é também adequação à realidade, mas insiste nas inadequações possíveis, geradoras, como observa o crítico, de "problemas psíquicos e morais". O que significa, mais uma vez, enfatizar o que de desassossego existe na atividade literária, agora do ponto de vista do receptor.

Por outro lado, o que é notável, sobretudo para a compreensão do método crítico do autor, é como Antonio Candido, em seguida, e sem qualquer alarde metodológico, consegue aproximar a dialética da ade­quação e inadequação, que no texto selecionado parece somente tradu­zir os problemas de conteúdo da literatura, à questão mais árdua de sua

própria formalização. E isto ocorre, sobretudo, na quarta parte do texto,

a partir mesmo de uma afirmação essencial:

Toda obra literária é antes de mais nada uma espécie de objeto, de obje­to construído; e é grande o poder humanizador desta construção. en­

quanto construção.6

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A expressão em itálico, que está no texto, diz tudo: a função humanizadora da experiência literária é dependente de uma organiza­ção imposta pelo criador em seu material, as palavras, de tal maneira que estas passam, como diz o autor, a exercer um "papel ordenador sobre a nossa mente". Neste sentido, não são os conteúdos que são responsáveis por aquela função, mas o modo pelo qual são organizados e chegam ao leitor e isto, como se vai ver em seguida, independe da maior ou menor transparência da linguagem ou da clareza com que são referidos os aspectos da realidade. Diz o crítico:

Por isso, um poema hermético, de entendimento difícil, sem nenhuma alusão tangível à realidade do espírito ou do mundo, pode funcionar neste sentido, pelo fato de ser um tipo de ordem, sugerindo um modelo de superação do caos. A produção literária tira as palavras do nada e as dispõe como todo articulado. Este é o primeiro nível humanizador, ao contrário do que geralmente se pensa. A organização da palavra comu­nica-se ao nosso espírito e o leva, primeiro, a se organizar; em seguida, a organizar o mundo. Isto ocorre desde as formas mais simples, como a quadrinha, o provérbio, a história de bichos, que sintetizam a experiên­cia e a reduzem a sugestão, norma, conselho ou simples espetáculo mental,7

Os dois exemplos colhidos por Antonio Candido - um provérbio e um verso de estrofe de uma das Liras de Tomás Antonio Gonzaga -esclarecem de que tipo de construção se trata, estabelecendo como fator de eficácia dos textos, em sua diversidade de conteúdo, o jogo com a linguagem capaz de criar aquilo que se poderia também chamar de poeticidade dos textos, ou seja, o exercício, para usar a terminologia de Roman Jakobson, da própria função poética da linguagem.

No caso do provérbio - "Mais vale quem Deus ajuda do que quem cedo madruga" -, diz o autor:

Este provérbio é uma frase solidamente construída, com dois membros de sete sílabas cada um, estabelecendo um ritmo que realça o conceito, tor­nado mais forte pelo efeito da rima toante: 'aj-U-d-A' , 'madr-U-g-A' . A construção consistiu em descobrir a expressão lapidar e ordená-la segun­do meios técnicos que impressionam a percepção.8

Sendo assim, o conceito, que é a base do conselho proverbial, tem o seu efeito sobre aquele que lê ou escuta como dependente de escolhas e organizações operadas na linguagem e a impressão provocada está vinculada a este trabalho construtivo. Ou, para deixar o autor falar:

Quando digo que um texto me impressiona, quero dizer que ele im­pressiona porque a sua possibilidade de impressionar foi determinada

7 Idem, p.245-6.

, Idem. p.246.

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9 Idem, ibidem.

10

Idem, p.247-8.

Teoria e prática de Antonio Cândido 35

pela ordenação recebida de quem o produziu. Em palavras usuais: o conteúdo só atua por causa da forma, e a forma traz em si, virtualmente, uma capacidade de humanizar devido à coerência mental que pressupõe e que sugere.9

Da mesma maneira, os efeitos, agora de tipo emocional, que de­correm da leitura da estrofe de Gonzaga são vinculados, por Antonio Candido, a procedimentos de construção nitidamente desenhados na or­ganização verbal da estrofe, que é a seguinte:

Propunha-me dormir no teu regaço As quentes horas da comprida sesta; Escrever teus louvores nos olmeiros, Toucar-te de papoulas na floresta.

E não resisto em transcrever o comentário analítico do crítico, dada a sua importância como elemento caracterizador de seu método. Ei-lo:

A extrema simplicidade desses versos remete a atos de devaneio dos namorados de todos os tempos: ficar com a cabeça no colo da namora­da, apanhar flores para fazer uma grinalda, escrever as respectivas inici­ais na casca das árvores. Mas na experiência de cada um de nós esses sentimentos e evocações são geralmente vagos, informulados, e não têm consistência que os tome exemplares. Exprimindo-os no enquadra­mento de um estilo literário, usando rigorosamente os versos de dez sílabas, explorando certas sonoridades, combinando as palavras com perícia, o poeta transforma o informal ou o inexpresso em estrutura orga­nizada, que se põe acima do tempo e serve para cada um representar mentalmente as situações amorosas deste tipo. A alternância regulada de sílabas tônicas e sílabas átonas, o poder sugestivo da rima, a cadên­cia do ritmo - criaram uma ordem definida que serve de padrão para todos e, deste modo, a todos humaniza, isto é, permite que os sentimen­tos passem do estado de mera emoção para o da forma construída, que assegura a generalidade e a permanência. Note-se, por exemplo, o efeito do jogo de certos sons expressos pelas letras T e P no último verso, dando transcendência a um gesto banal de namorado: Toucar-Te de PaPoulas na floresTa. Tês no começo e no fim, cercando os Pês do meio e formando com eles uma sonoridade mágica que contribui para elevar a experiência amorfa ao nível da expressão organizada, figurando o afeto por meio de ima­gens que marcam com eficiência a transfiguração do meio natural. A forma permitiu que o conteúdo ganhasse maior significado e ambos juntos aumentaram a nossa capacidade de ver e sentir. 10

É esta capacidade de ampliação que o autor identifica com o que, diversas vezes no texto, chama de função humanizadora da literatura: "o

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processo que confinna no homem aqueles traços que reputamos essenciais,

corno o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição

para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de pene­trar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da comple­xidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor" .11

Mas, atenção!, é urna ampliação conquistada tanto pelas mensa­

gens de que a literatura é portadora quanto, e sobretudo, pelo modo de organização dessas mensagens, de que depende a sua eficácia. Daí a afinnação exemplar que se lê logo adiante:

A eficácia humana é função da eficácia estética, e portanto o que na literatura age como força humanizadora é a própria literatura, ou seja, a capacidade de criar formas pertinentes. 12

Por isso não basta a qualidade da mensagem para a detennina­ção do valor da obra, nem mesmo uma positividade ou urna negatividade anterior à realização da obra: a criação de "fonnas pertinentes", em que leio aquelas que são isomórficas em relação ao que se quer dizer, é que

instaura o valor da literatura enquanto prática social. Algo semelhante

àquilo que foi dito por outro grande ensaísta latino-americano, Octavio Paz, em texto intitulado Forma y significado:

Las verdaderas ideas de un poema no son las que se le ocurren aI poeta antes de escribir el poema sino las que después, con o sin su voluntad, se desprenden naturalmente de la obra. El fondo brota de la forma y no a la inversa. O mejor dicho: cada forma secreta su idea, su visión deI mundo. La forma significa; y más: en arte sólo las formas poseen significación. La significación no es aquello que quiere decir el poeta sino lo que efectivamente dice el poema. Una cosa es lo que creemos decir y otra lo que realmente decimos.1 3

A função humanizadora da literatura, ou suas funções psicológi­

ca, social e histórica, portanto, não está vinculada à adequação aos as­pectos da realidade, mas passa, antes, pelas incertezas e pelos desas­sossegos da própria construção da literatura enquanto literatura e, deste modo, pelas inadequações, contradições e paradoxos, substratos da lin­guagem.

l I Idem, p. 249.

12 Idem, p. 251.

1J Cf. Corriente {I/terna. Mé­xico: Siglo Veintiuno Edito­res, 7a.ed.,1973, p.7-8.

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1+ Cf. Literatura e sociedade.

EsTUdos de teoria e história literária. São Paulo: Compa­nhia Editora Nacional. 1965, p.3-17.

1\ Idem, p.3-4.

Teoria e prática de Antonio Cândido 37

3 Não se chegou a este tipo complexo de reflexão sobre as

intrincadas relações da literatura com a vida social sem uma larga expe­

riência e é de vinte e três anos antes do texto anterior (OU mesmo vinte

e sete, se contarmos com o fato de que "é o desenvolvimento de uma

pequena exposição feita sob a forma de intervenção nos debates" de

congresso de crítica em 1961, conforme se esclarece em nota de rodapé)

aquele que, a partir de agora, passo a comentar: o ensaio Crítica e sociologia, publicado em 1965. 1-1 Eis o trecho inicial do ensaio:

Nada mais importante para chamar a atenção sobre uma verdade do que exagerá-la. Mas também, nada mais perigoso, porque um dia vem a rea­ção indispensável e a relega injustamente para a categoria do erro, até que se efetue a operação difícil de chegar a um ponto de vista objetivo, sem desfigurá-la de um lado nem de outro. É o que tem ocorrido com o estudo da relação entre a obra e o seu condicionamento social, que a certa altura do século passado chegou a ser vista como chave para compreendê-la, depois foi rebaixada como falha de visão, - e talvez só agora comece a ser proposta nos devidos termos. Seria o caso de dizer, com ar de paradoxo, que estamos avaliando melhor o vínculo entre a obra e ambiente depois de termos chegado à conclusão de que a análise estética precede considerações de outra ordem. De fato, antes procurava-se mostrar que o valor e o significado de uma obra dependiam dela exprimir ou não certo aspecto da realidade, e que este aspecto constituía o que ela tinha de essencial. Depois, chegou-se à posição oposta, procurando-se mostrar que a matéria de uma obra é secundária, e que a sua importância deriva das operações formais pos­tas em jogo, conferindo-lhe uma peculiaridade que a toma de fato inde­pendente de quaisquer condicionamentos, sobretudo social, conside­rado inoperante como elemento de compreensão. Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas; e que só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tan­to o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente inde­pendente, se combinam como momentos necessários do processo inter­pretativo. Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desem­penha um certo papel na constituição da estrutura, tomando-se, portan­to, interno. 15

Sem desprezar o fato de que o texto arma uma excelente abertu­

ra para o estudo que se queira fazer de momentos decisivos na história

do pensamento crítico - coisa de que ° próprio ensaio se encarrega em

seguida -, a posição assumida pelo crítico, apenas dois ou quatro anos

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38 Revista Brasileira de Literatura Comparada, nº 5, 2000

depois da publicação de sua magistral obra de crítica historiográfica sobre a literatura brasileira, a Formação da literatura brasileira 16 ,

resume, por assim dizer, uma intensa experiência de análise e interpre­tação dos textos literários, em que, precisamente, se buscava o referido revezamento entre texto e contexto como está no texto transcrito.

Na verdade, a integração de elementos internos e externos, dando como resultado o valor da obra literária, será uma preocupação central da atividade crítica do autor, não se limitando aos condicionamentos sociais ou históricos, mas incluindo aquele's de ordem psicológica, como já está, por exemplo, em alguns ensaios do livro que publicou em 1964. 17 De fato, no ensaio referido do livro de 1965, tomando por exemplo o romance Senhora, de José de Alencar, o crítico mostra de que maneira ocorre esta transformação de elemento externo em interno, acrescentando:

Quando fazemos uma análise deste tipo, podemos dizer que levamos em conta o elemento social, não exteriormente, como referência que permite identificar na matéria do livro a expressão de uma certa época ou de uma sociedade determinada; nem como enquadramento, que permite situá-lo historicamente; mas como fator da própria construção artística, estuda­do no nível explicativo e não ilustrativo. Neste caso, saímos dos aspectos periféricos da sociologia, ou da histó­ria sociologicamente orientada, para chegar a uma interpretação estéti­ca que assimilou a dimensão social como fator de arte. Quando isto se dá, ocorre o paradoxo assinalado inicialmente: o externo se torna inter­no e a crítica deixa de ser sociológica, para ser apenas crítica. O elemento social se toma um dos muitos que interferem na economia do livro, ao lados dos psicológicos, religiosos, lingüísticos e outros. Neste nível de análise, em que a estrutura constitui o ponto de referência, as divisões pouco importam, pois tudo se transforma, para o crítico, em fermento orgânico de que resultou a diversidade coesa do todo".IS

É preciso acentuar, todavia, que este procedimento crítico de in­tegração não se dá apenas no nível da interpretação, em que, sem dúvi­da, ele melhor se revela, mas supõe, fortemente, a etapa analítica que, ao contrário do que geralmente se pensa, não é imune a elementos de intuição, sensibilidade e gosto crítico, por onde se revela a capacidade de leitura essencial do crítico.

Não é o crítico que transforma o elemento externo em interno mas sim o próprio processo de construção da obra, a ele cabendo a habilidade de fisgar a transformação, que é sempre o resultado de uma prática analítica ancorada na consciência da linguagem literária.

Para o crítico, não há, segundo leio o autor, preferência possível: a sua atividade se passa por entre as tensões suscitadas pelo movimento de intemalização que é a obra literária, a não ser que, ao invés de crítico

' 6 Formação da literatura bra­sileira (Momentos decisivos). São Paulo: Livraria Martins Editora, 2 vols., 1959.

17 Tese e antítese . Ensaios São Paulo: Companhia Edito­ra Nacional, 1964.

"Op. cit. , p.7.

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19 Para o problema mais espe­cifico, ver, do autor, o ensaio " Estímulos da criação literá­ria" , também em Literatura e sociedade, op.cil., p.49-83 .

Teoria e prática de Antonio Cândido 39

literário, ele se identifique, por exemplo, como sociólogo, psicólogo ou historiador.

Ora, é precisamente a transformação dos elementos que consti­tuem o campo destas atividades em obra literária, a que se chama pro­cesso de construção da obra, que é o alvo da atividade crítica. Por isso, para o crítico, nada que possa existir como estímulo para a criação lite­rária é estranho ou desprezível: a questão está sempre no modo de orga­nização, pela obra, dos estímulos possíveis.19 Daí também, e quase como um corolário natural, o que há de desassossego em sua atividade -região de sobressaltos, relações inesperadas e descobertas compensadoras.

De tudo isso, ressalta a questão crítica por excelência que subjaz ao texto selecionado e ao ensaio com um todo, isto é, a do julgamento de valor da obra literária que é percebido, mais uma vez, e coerentemente, como elemento que se extrai não daquilo que, na obra, é somente con­teúdo ou mensagem de qualquer espécie, mas daquilo que foi possível perceber como capacidade literária de integração, para utilizar os ter­mos do autor, dos componentes externos e internos.

O passeio realizado por Antonio Candido por diversas fases da história do pensamento crítico, sob o ângulo das relações entre literatura e vida social, vai mostrando ao leitor as maneiras por que o julgamento das obras, na medida em que faziam pesar excessivamente um dos la­dos de sua configuração, desfiguravam a sua integridade e, o que para mim é muito importante, de que modo sempre inseguro, instável e cheio de incertezas, continua a ser a tarefa crítica de integração sobre a qual o julgamento de valor pode ser expresso.

Nenhum condicionamento, seja ele biográfico, psicológico, histó­rico ou social, será suficiente como elemento explicativo convincente para a criação de uma obra literária, da mesma maneira que nenhum juízo de valor terá resistência se não estiver fundado nos deslizamentos incessantes entre condições e processos de construção.

Ou, para dizer de modo mais direto: não há certezas, mas buscas coerentes e conseqüentes que somente as incertezas do ensaísmo críti­co, fundado, entretanto, no rigor e na cultura literária, pode conduzir. Entre a obra e seu julgamento, o leitor crítico opera um outro tipo de integração: aquele que somente a consciência da linguagem permite entre o que significa uma obra e seu modo de significação.

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40 Revista Brasileira de Literatura Comparada, nQ 5, 2000

4 Escritos em três décadas distintas, 60, 70 e 80, os ensaios lidos, e,

de propósito, generosamente transcritos para deixar passar ao leitor a linguagem do próprio autor, confonnam, por assim dizer, um arco crítico e teórico de grande tensão e não menor resistência.

Das anotações sutis acerca da integração entre texto e contexto, em que Antonio Candido qualificava a sua experiência de leitor da lite­ratura, quer como crítico regular de jornais nos anos 40 (de que peque­nos e selecionados exemplos são dados no livro Brigada Iigeira20 ou no volume sobre Graciliano Ramos, Ficção e confissão21 ), quer como autor dos dois volumes da Formação da literatura brasileira ou do volume de ensaios O observador literário22 , quer já como professor de literatura brasileira, até as reflexões mais amplas sobre as funções humanizadoras da obra literária, sem perda de sua natureza construtiva, já nos anos 80, passando pelo renovado esforço historiográfico crítico de recuperação de um teórico do romance, dos anos 70, quando reuniu alguns textos no livro Vários escritos23 , a leitura dos textos escolhidos é capaz de indiciar não somente uma incessante operosidade crítica, como, o que talvez seja mais importante, uma coerência de base teórica que nada tem a ver com certezas absolutas ou ortodoxias críticas.

Operosidade e coerência que podem ser constatadas com a leitu­ra de seus últimos livros publicados: O discurso e a cidade24, em que reúne ensaios escritos nos anos 70, 80 e 90, alguns dos mais importantes que escreveu, como é o caso do influente Dialética da malandragem, e Recortes25 , conjunto de pequenos textos de várias épocas.

Se a operosidade é aspecto que ressalta óbvio da variedade de assuntos e obras literárias que os livros encerram, a coerência, por outro lado, pode ser detectada pela leitura de um trecho do prefácio que es­creveu para o primeiro livro. Ei-Io:

o meu propósito - diz Antonio Candido - é fazer uma crítica integra­dora, capaz de mostrar (não apenas enunciar teoricamente, como é de hábito) de que maneira a narrativa se constitui a partir de materiais não literários, manipulados a fim de se tomarem aspectos de uma organiza­ção estética regida pelas suas próprias leis, não as da natureza. da soci­edade ou do ser. No entanto, natureza, sociedade e ser parecem presen­tes em cada página, tanto assim que o leitor tem a impressão de estar em contacto com realidades vitais, de estar aprendendo, participando, acei­tando ou negando. como se estivesse envolvido nos problemas que eles suscitam. Esta dimensão é com certeza a mais importante da litera­tura do ponto de vista do leitor, sendo o resultado mais tangível do trabalho de escrever. O crítico deve tê-la constantemente em vista, em-

,o Brigada ligeira. São Pau ­

lo: Livraria Martins Editora,

s/do Há uma reedição deste li­vro, que reúne escritos para o rodapé de crítica do autor no jornal Folha da manhã, inti­tulada Brigada ligeira e ou­lros escritos. São Paulo: Edi­

tora Unesp, 1992.

' 1 - Ficção e confissão. Rio de

Janeiro: Livraria José Olym­pio Editora, 1956. Há uma reedição do ensaio da Editora 34, de 1992.

" O observador literário. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura/Comissão de Lite­ratura, 1959. Há uma reedição deste livro, incluída na obra de 1992, descrita na nota 20.

23 Vários escritos. São Paulo:

Livraria Duas Cidades, 1970. Para a reedição mais recente desta obra, ver nota 4.

" - O discurso e a cidade. São Paulo: Livraria Duas Cidades,

1993.

's - Recortes. São Paulo: Com-panhia das Letras, 1993.

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26 Cf. O discurso e a cidade, op.~it., p.9-1O.

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bora lhe caiba sobretudo averiguar quais foram os recursos utilizados para criar a impressão de verdade. De fato, umas das ambições do crítico é mostrar como o recado do escritor se constrói a partir do mundo, mas gera um mundo novo, cujas leis fazem sentir melhor a realidade originá­ria. Se conseguir realizar esta ambição, ele poderá superar o valo entre 'social' e 'estético', ou entre 'psicológico' e 'estético', mediante um esforço mais fundo de compreensão do processo que gera a singulari­dade do texto. Freqüentemente os críticos que levam em conta a sociedade, a persona­lidade ou a história acabam por interessar-se mais pelo ponto de partida (isto é, a vida e o mundo) do que pelo ponto de chegada (o texto). O meu interesse é diferente porque se concentra no resultado, não no estímulo ou no condicionamento. Tanto assim que nos ensaios da primeira parte não há dados sobre a pessoa do escritor e quase nada sobre a socieda­de e as circunstâncias históricas, que ficam na filigrana da exposição. O alvo é analisar o comportamento ou o modo de ser que se manifesta dentro do texto, porque foram criados nele a partir dos dados da realida­de exterior.26

Será preciso acrescentar alguma coisa? Talvez apenas insistir, voltando ao ponto de partida deste texto, que aquilo que alimenta a coe­rência do crítico não é um desejo de pacificação mas, ao contrário, o enfrentamento destemido do desassossego de sua própria atividade -procura, sem esmorecimento, de integração.

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I Este ensaio, em versão ligei­ramente modificada, foi apre­sentado no colóquio "Figuras da Losofonia: Homenagem a Cleonice Berardinelli", orga­nizado por lzabel Margato e realizado em Lisboa, fevereiro de 1999, sob o patrocínio do T nstituto Camões e da Cátedra Pe. Antônio Vieira da Estudos Portugueses da PUC-Rio.

2 SARAMAGO, José, Que/lI­rei com este livro :' São Pau­lo: Companhia das Letras, 1998 , p. 92.

Que faremos com esta tradição?

OU: relíquias da casa velha

Renato Cordeiro Gomes Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

A motivação para o duplo título deste texto' talvez mereça uma peque­na explicação. O primeiro deles remete à peça de teatro de José Saramago (1979); o segundo, à coletânea de contos de Machado de Assis (1906). Da peça Quefarei com este !i'TO? recorto mais especificamente o oitavo quadro do segundo ato que a encerra, com Luís de Camões recebendo o primeiro exemplar de Os Lusíadas. Cito: (Segurando o livro com as duas mãos) Que farei com este livro? (Pausa. Abre o livro, estende li­geiramente os braços, olha emji'ente). Que fareis com este livro?2. Ao concluir a trama, o poeta aponta para a abertura de outra trama, inda­gando o destino histórico e a utilidade daquele que será o livro por exce­lência da cultura portuguesa. Ao passar da primeira para a segunda pes­soa e olhar em frente (como indica a rubrica cênica), Camões interroga a posteridade sobre a recepção de sua epopéia, narrativa de fundação que possibilita inventar uma tradição, quando estabelece o lastro de uma história. Do livro de contos de Machado, retenho o título Relíquias da casa velha, associado pelo escritor brasileiro, na "Advertência" de aber­tura do volume, às lembranças que uma casa guarda, as tais relíquias com que metaforiza os inéditos publicados naquela ocasião. Livros que falam de livros, ou de casa velha, são-me, aqui, metáforas para nomear uma tradição.

As duas referências, desta maneira, servem-me de mote para for­mular a questão que me mobiliza. Pergunto: o que faremos desta tradi-

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ção, destas relíquias que recebemos de uma herança portuguesa, por via

da história? O nós, plural de sujeitos inseridos em outra cultura, a do

Brasil, refere-se aos intelectuais, pensadores, escritores, artistas brasilei­

ros que tiveram de enfrentar o problema da constituição de nossa identida­

de cultural e questionam, mais fortemente desde o Romantismo, o papel da

herança colonial portuguesa na invenção de uma tradição (para usar a

expressão de Eric Hobsbawn3) que nos constituiria. O que faremos desta tradição legada pelos portugueses para que possamos criar uma naciona­

lidade? A pergunta que se agudiza no Modernismo, quando proliferam as interpretações do Brasil, quando se redescobre o Brasil, ganha um novo componente: como tomar o Brasil um país moderno se somos produtos de uma tradição que complica nosso acesso à modernidade? Dotados de cons­

ciência histórica que permite saber, para além da afetividade, que somos produtos de uma tradição, esses pensadores podem analisar essa herança e

perceber sua continuidade (mesmo que em diferença), ou propor romper com ela, considerando a ruptura como instrumento da razão crítica e as­sentando a negatividade como traço forte da modernidade.

Por esta perspectiva, o papel dos intelectuais e dos homens de espírito ("clercs") de um país periférico como o Brasil foi moldado no e pelo processo que tinha como mira constituir a nação. Eles vêm, ao lon­go da história, pensando acima de mais nada a nação e, de diferentes maneiras, ajudando a reinventá-la seguidamente, até mesmo quando uma nova situação criada pela globalização mina as possibilidades do exclusivismo nacional e abre caminho para uma intelligentsia desterrito­rializada e desnacionalizida, ao mesmo tempo em que, contraditoriamente, as referências nacionais tomam-se de novo recorrentes. Retomemos, pois, uma visão panorâmica dos discursos que, ao longo de nossa História, tematizam o,país.

Se os discursos produzidos sobre o Brasil durante o período coloni­al moldaram a percepção sobre a terra e o homem, domesticaram um ima­ginário e, com o correr do tempo, constituíram uma tradição, espécie de arquivo do passado brasileiro, transmitido de geração em geração, esta tradição acaba criando um problema para os românticos brasileiros. Asse­gura Antonio Candido4, na Formação da literatura brasileira, que a pro­posta de nosso Romantismo, cuja expressão foi o nacionalismo literário, manifestava a consciência da atividade intelectual, não só como prova do valor brasileiro e o esclarecimento mental do país, mas também como tare­fa patriótica na construção nacional, quando discutem o processo civiliza­tório que exige a fundação de nação e do Estad05• Na proposta estava implícita a pergunta: que fazer da tradição colonial? Que papel teria esta tradição, quando a meta consistia em sustentar que possuíamos uma cultu-

J HOBSBAWN, Eric & RAN­GER, Terence (org. l. A inven­ção das tradiçíies. 2. ed. trad. Celina Cardim Cavalcanti. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

CANDIDO. Antonio. For­mação da literatura brasilei­ra: momentos decisivos. São Paulo: Martins, 1964. VoL I , p.309-310.

5 A respeito do tópico "Enun­ciar o Brasil", no Romantismo e, em especial, em José de Alencar. ver: CARRIZO, Silvina. "Palabra y memoria en Alencar". Grago{ftá: Re­vista do Instituto de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense. n. 1,2, sem. 1996. p. 205-217.

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6 Ver a respeito da busca de identidade nacional enquanto exteriorização do interior (nos românticos), ou interiorização do exterior (nos modernistas), o ensaio -o político e o psico­lógico, e,tágios da cultura" (in: TELLES, Gilberto Men­donça et aI. Oswald plural.

Rio de Janeiro: Ed. da VERJ, 1995. P. 99-106), em que o

seu autor Roberto Corrêa dos Santos comenta o ensaio

"Oswald de Andrade, ou o elo­gio da tolerância racial", de Silviano Santiago", tendo por timdamento a filosofia de N ietzsche. Propõe o crítico aí uma terceira via para a mani­festação da identidade que se­ria a "pura exteriorização do exterior".

HOBSBAWN, Eric. Op. cit., p.9.

8 MEYER, Augusto. "Alencar". In: ALENCAR, José de. Ira­cema: edição do centenário. Org. M. Cavalcanti Proença. Rio de Janeiro: José Olympio, 1965. p. 262.

9 Ver a esse respeito: SANTI­AGO, Silviano. "Atração do mundo (Políticas de identida­de e globalização na moderna cultura brasileira)". Gragoatâ. Revista do Programa de Pós­Graduação em Letras da Uni­versidade Federal Auminense.

n.l, 2. sem. 1996, p. 35. E também CARRIZO, Silvina, op. cit.

Que faremos com esta tradição? .. 45

ra autóctone a dar-nos identidade? O esforço romântico buscava, então, exteriorizar o interior, aquilo que dizia respeito ao nosso ser; buscava re­presentar e identificar a nação como algo imanente, isto é, o que apontava para a identidade cultural e a nacionalidade como essência. Indicava tal proposta a recusa do exterior com que até então nos reconhecíamosó,

Numa terra onde tudo era ainda conjecturaI, problemático e con­jugado ao futuro, a vontade de afirmar-se projeta-se na invenção de uma tradição (repito a expressão de Eric Hobsbawn) através de práticas discursivas que visavam inculcar certos valores através da repetição, o que implicava, automaticamente, uma continuidade (artificial) em rela­ção ao passado histórico apropriad07• Essa invenção tem por propósito reagir a uma situação nova e assume a forma de referência a situações anteriores, ou estabelece o seu próprio passado. Sendo essencialmente um processo de formalização, essa tradição inventada atrela-se à trans­formação ampla do país motivada pela Independência política (1822), que requereu a tarefa patriótica de construir um Estado-nação unificado. "Tudo isto correspondia ao vazio brasileiro, à tenuidade de nossa cons­ciência nacional, sem lastro de tradições sedimentadas"8, segundo a for­mulação de Augusto Meyer. O trabalho dos românticos, com destaque para José de Alencar, visava justamente sedimentar as tradições inventa­das, formando um lastro a ser legado às gerações vindouras. Esse afir­mar-se enquanto síntese do que representaria uma "essência nacional" está atrelado, pois, a um paradoxo: nega-se uma tradição que, ao mesmo tempo, é reinterpretada na tentativa de preencher aquele vazio com nar­rativas, imagens, idéias que contribuiriam para a formação de mitos fun­dadores da nacionalidade.

Aqui talvez não seja ocioso citar os romances indianistas e de fundação de Alencar que, utilizando elementos antigos na elaboração de nova tradição inventada, segue um movimento cronológico às avessas. O guarani (1855), Iracema (1865) e Ubirajara (1874) iluminam, res­pectivamente, três momentos históricos com os quais o autor pretende estabelecer o mapeamento simbólico da construção da nação: o Brasil histórico dos novos "senhores da terra" e a luta inglória dos índios con­tra os conquistadores portugueses nos primeiros séculos da colonização; o primeiro encontro de raças e fundação da raça brasileira por ocasião do descobrimento e início da colonização; e a pureza étnica dos tempos pré-cabralinos9• As três narrativas ressemantizam essas matérias do pas­sado sob o signo da conciliação, do reca1camento da violência, realçan­do o elemento autóctone, elevando-o ao nível do português heróico dos tempos da colonização, assinalando o que há de recordar e esquecer na construção histórica da nação.

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Sabendo-se que o próprio conceito de nação é um artefato histo­ricamente construído (Benedict Anderson JO), o paradoxo apontado (ne­gar uma tradição e reapropriá-Ia para inventar outra tradição, buscando uma continuidade com o passado) não deixa de salientar o dilema entre a necessidade de delinear-se uma imagem-síntese e as contradições históricas que a negam. A experiência colonial portuguesa no Brasil não contribui para essa busca de unidade, se levarmos em conta as distantes e atomizadas províncias, afinal "unificadas" no período imperial quando se cria o mito da nação brasileira, nos moldes da síntese romântica 11. Se como apontam Anderson e Renan l2 "o esquecimento também é fator essencial na criação de uma nação", era preciso esquecer toda uma rea­lidade "indesejável" de multiplicidade, de estranhezas mútuas, de confli­tos e de afastamentos na elaboração de uma imagem única, totalizante, de uma nação reconciliada. A herança colonial portuguesa é submetida, assim, a um processo de ressemantização a serviço de um discurso ideo­lógico que justifica e funda ajovem nação. Essa perspectiva possibilita também ficcionalizar as contradições da identidade nacional, nos discur­sos que advogam a fundação como origem e unidade simbólicalJ • Se a nação é também constituída pela narração, como quer Homi Bhabhal~, a narrativa romântica brasileira, em particular a de feição indianista, pro­põe uma "comunidade imaginada" (Benedict Anderson) enquanto totali­dade estável e a identidade cultural enquanto essência fundadora resul­tante da conciliação de colonizador e colonizado. Se a pergunta implícita era saber o que fazer da tradição, esta teria de ser necessariamente redi­mensionada em direção aos discursos que delineiam os contornos imagi­nários de uma comunidade, sua história, sua origem.

Esse mesmo dilema ganha feições mais dramatizadas entre os modernistas brasileiros. Marcados pelos traços vanguardistas, na busca do novo pelo novo, por uma estética de ruptura, que negava a tradição (o que chamavam pejorativamente de "passadismo"), também eles se colo­caram a pergunta-problema quando se propunham a "descobrir" o Bra­sil, a oferecer interpretações para o país. Como interpretar o passado, vale dizer, a tradição, em função do presente? O que faremos com esta tradição, quando vislumbramos um futuro (utópico) que nos faria entrar na modernidade, superando o atraso que nos atrelava a um mundo velho? Tanto o projeto estético (a necessidade de uma escrita de vanguarda) quanto o ideológico (a necessidade de tomar o Brasil um país moderno, o que passaria infalivelmente pela industrialização e pela urbanização, isto é, o que asseguraria a passagem de país agrário para país industrial-urbano), ou de maneira mais abrangente o projeto cultural, viam a tradição como um problema a ser enfrentado. O que faremos com esta tradição que nos

10 ANDERSON , Benedict,

Imagined communities: refletions on the origin and spead of nationalism. London: New York: Verso, 1991.

" GlASSONE, Ana Claudia. "Não há pecado ao sul do equador: histórias de amor construindo o Brasil". Mono­grafia apresentada ao prof. Renato Cordeiro Gomes. no curso "Imagens de nação no discurso cultural brasileiro". Programa de Pós-Graduação em Letras , Departamento de Letras, PUC-Rio , 2. sem. 1999.

" RENAN. Ernest. "O que é uma nação" In: ROUANET, Maria Helena (org.). Naciona­lúlade 011 questão. Rio de Ja­neiro : Ed. da UERJ, 1997. (Cadernos da Pós!Letras).

13 HELENA, Lúcia. "Escre­vendo a nação". In: IV Com­gresso Ahralic: Litera/ura e diferença: Anais. São Paulo: Abralic, 1995.

I. BHABHA, Homi (ed.). Na/ion and narra/ion. London: New York: Routledge, 1993.

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15 PRADO . Paulo. Retrato do

Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira. g. Ed. Org. Carlos Augusto CaliL São Paulo : Companhia das Letras , I YY7.

16 CALlL. Carlos Augusto.

" Introdução". In : PRADO, Paulo Op. cit. p. 11 .

Que faremos com esta tradição? .. 47

constitui, mas com a qual queremos romper, negá-la criticamente para conquistar e apossar-nos do futuro?

Muitos são os textos - ficcionais , poéticos, ensaísticos, de mani­festos, de intervenção - que emblematizam essa atitude e que, ao mes­mo tempo, expressam estratégias de identificação cultural, a exemplo do Manifesto da Poesia Pau Brasil (1924) e do Manifesto Antropófago (1928), de Oswaldo de Andrade, com suas palavras de ordem: "Nenhu­ma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres"; "Contra todas as catequeses", "Contra as sublimações antagôni­cas. Trazidas nas caravelas"; "Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade". Ou o episódio emblemá­tico de "Vei, a Sol" , de Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, em que essa representante dos trópicos se vinga do "herói de nossa gente", transformando-o no "brilho inútil das estrelas", por este ter preferido a varina portuguesa, elemento da cultura colonizadora, a uma das filhas de Vei, representante da civilização da luz.

Estes poucos exemplos servem para confirmar a versão canônica veiculada pelas instituições literárias, que privilegia a interpretação do Modernismo pelo viés da destruição, da vanguarda e da ruptura, em detrimento dos valores legados pela tradição. Estão neste caso pensado­res como Paulo Prado e Sérgio Buarque de Holanda, que se relacionam com as demandas modernizantes do modernismo paulista.

Paulo Prado, aristocrata cosmopolita, herdeiro de uma das famíli­as mais ilustres de São Paulo e um dos promotores da Semana de Arte Moderna, que descobre o Brasil em Paris (como outros intelectuais de sua classe, antes e depois dele), publicou o ensaio Retrato do Brasil l5 ,

em 1928, influenciado pelo historiador Capistrano de Abreu e levado pela busca dos elementos que determinam os traços de nossa identidade como nação. Com seu projeto de investigar as origens da nacionalidade, intentava vislumbrar um momento inaugural de autonomia para o país: analisava o passado, a tradição, em função do presente, para programar o futuro. "Entendia o nacionalismo como o processo de tomada de cons­ciência das limitações e virtual idades do corpo social que permitiria -como ele próprio afirma em artigo da revista Terra Roxa e outras terras - romper os laços que nos amarravam desde o nascimento à velha Eu­ropa, decadente e esgotada"16 - sublinha Carlos Augusto Cali!.

Para interpretar o Brasil do seu tempo, Paulo Prado traça o "re­trato" sem as tintas do ufanismo e revela as mazelas do país, cujas cau­sas vai buscar na história da formação política, social, racial, moral e cultural da nacionalidade, uma formação defeituosa, doente, que afeta a esfera pública. A visão pessimista detecta o estado do país como resulta-

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do dessa doença moral, perigosamente arraigada na tradição e obliterada por uma auto-imagem superestimada, herança do romantismo. Eis a tese que abre o livro:

Numa terra radiosa vive um povo triste. Legaram-lhe essa me­lancolia os descobridores que a revelaram ao mundo e a povoa­ram. O esplêndido dinamismo dessa gente rude obedecia a dois grandes impulsos que dominaram toda a psicologia da desco­berta e nunca foram geradores de alegria: a ambição do ouro e a sensualidade livre e infrene que, como culto, a renascençafize­ra ressuscitar17 •

Partindo dessa premissa, o ensaio rastreia as raízes históricas des­sa "doença", conseqüência do processo colonizador que leva a um senti­mento generalizado de tristeza. Assim, como condicionadoras da adap­tabilidade do português aos trópicos, associa cobiça, luxúria e tristeza a outros fatores de nossa formação: a mestiçagem, a preguiça como con­trafação da ética do trabalho, o bovarismo e a melancolia que desorgani­za a vontade que o Romantismo viera acentuar, o desapego à terra, o desordenado individualismo e a conseqüente não propensão à vida asso­ciativa, a hipertrofia do patriotismo indolente, o "vício da imitação" (p.204). Disso resultou um "corpo mal organizado" que ainda "dorme o seu sono colonial" (p.21O) (as expressões são do autor).

O diagnóstico de Paulo Prado detecta a herança colonial e o que ela forjou em nossa formação como algo que se manifesta no atraso, impedindo o desenvolvimento e o progresso. Chega a propor a solução radical que poderia vir através da Revolução, a própria ruptura em ação a promover a mudança identificada ao progresso como gesto fundador da modernidade. Diz ele: "Força nova que surge como destruidora das velhas civilizações e das quimeras do passado. É a Revolução" (p.21 O)

(atente-se para um detalhe: o autor não é um pensador marxista). E con­clui: "Apesar da aparência de civilização, vivemos assim isolados, cegos e imóveis, dentro da própria mediocridade em que se comprazem gover­nantes e governados. Nesse marasmo podre será necessário fazer tábua rasa para depois cuidar da renovação total". Ao reivindicar um novo começo, o ensaísta está implicitamente respondendo à pergunta: "o que faremos com esta tradição?". Para Paulo Prado, negar a tradição signifi­cava um gesto inaugural, descontínuo, a barrar a permanência e a transmissibilidade. O gesto de ruptura apontava para o ingresso do Bra­sil no clube dos modernos e progressistas, para quem a tradição legada pela colonização é um empecilho. Na clave das metáforas patológicas e às vezes racistas disseminadas pelo texto, cuja força vem da "poetização"

17 PRADO, Paulo. Op. Cit. p.53 .

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18 HOLANDA, Sérgio Buar­

que Raí:es do Brasil. 14. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 198 1.

19HOLANDA, Sérgio Buar­que de. Cohra de vidro. São Paulo Perspectiva, 19n. p. 83.

20 CANDlDO, Antonio. "O significado de Raízes do Bra­sil" . In: HOLANDA. Sérgio Buarque de . Op. cit. p. xi.

Que faremos com esta tradição? .. 49

dos fatos, o mundo moderno seria uma manifestação de saúde: a Revolu­ção encarregar-se-ia da higiene.

Talvez se pudesse dizer que o livro do historiador Sérgio Buarque de Holanda Raízes do Brasil18 (1936) dá continuidade, em diferença, à interpretação do país empreendida por Paulo Prado, no mesmo diapasão dos modernistas. Para o livro de Sérgio, vale o que ele próprio dissera de Gilberto Freyre: "os valores tradicionais só lhe interessam verdadeira­mente como força viva e estimulante, não como programa" 19. Como afir­ma Antonio Candid020 , Raízes do Brasil constitui um ensaio de interpre­tação da formação brasileira, mas escrito com um olhar preso às tensões contemporâneas (a década de 30). A ótica adotada ancora-se em novos elementos que, a partir daí, se relacionam com nossas identificações, no momento em que os Estados Unidos se apresentam como herdeiros, ou mesmo a encarnação, da idéia de América. Frente a isto que é considera­do como nova civilização, impunha-se a nossa pergunta-guia: o que fa­remos da tradição que nos formou, se desejamos ingressar no mundo imaginado como moderno? Para equacionar o problema, o historiador vai buscar as "raízes", os fundamentos do nosso destino histórico, nos modos de ser ou na estrutura social e política, a partir da implantação da cultura européia no Brasil, que se dá em condições estranhas à sua [da Europa] própria tradição, o que redundaria numa vacuidade de um ser nacional marcado pelo signo de desterro. No momento em que o histori­ador busca nossas "raízes", afirma o nosso desenraizamento: "somos uns desterrados em nossa terra". A investigação, assim, coloca em pauta os modos como nos situamos na tradição européia. Ou nas palavras do autor: "caberia averiguar até que ponto temos podido representar aque­las formas de convívio, instituições e idéias de que somos herdeiros ( ... ) através de uma nação ibérica" (p.3). E continua mais adiante: "a verda­de ( ... ) é que ainda nos associa à Península Ibérica, a Portugal especial­mente, uma tradição longa e viva, bastante viva para nutrir, até hoje, uma alma comum, a despeito de tudo quanto nos separa. Podemos dizer que de lá nos veio a forma atual de nossa cultura; o resto foi matéria que se sujeitou mal ou bem a essa forma" (p.II).

É justamente frente a essa "forma atual de nossa cultura", cujas raízes são investigadas, que cabe a pergunta - o que faremos dessa tradição, no momento em que se agudizam nossas contradições e se pre­tende formular um projeto moderno para o Brasil. Assim, sistematizan­do os traços da tradição brasileira que foram herdados, o historiador a vê historicamente formada na colonização que se pautou pelo personalismo

tradicional atrelado às formas fracas de organização (associação que im­plique solidariedade e ordenação), à frouxidão das instituições e à falta de

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coesão social; pela visão hierárquica e autoritária da sociedade; pela falta

de racionalização da vida, o que indica a repulsa da moral fundada no

culto ao trabalho sistemático (característico da ética protestante); pela acen­

tuação do afetivo, do irracional, do passional, logo a atrofia das qualida­

des ordenadoras, disciplinadoras, racionalizadas; pela civilização de raí­

zes rurais que permite a autarquia da fazenda, em detrimento das cidades, da res-publica: a entidade privada precede sempre a entidade pública, o

que, por sua vez, se conjuga ao patriarcalismo enquanto marca da velha

ordem familiar, com o predomínio das vontades particulares que privilegi­

am os laços afetivos e de sangue, gerando a "cordialidade", marca do caráter brasileiro que ele associa a "condições particulares de nossa vida rural e colonial, que vamos rapidamente superando" (p.313).

O prolongamento desses traços (aqui redutoramente sintetizados) é rastreado em função de um possível projeto moderno para o Brasil, a

ser fundamentado na racionalidade da norma abstrata, na organização

da esfera pública, adequada às relações impessoais que decorrem da posição e da função do indivíduo, o que implicaria pôr em causa os aspectos retrógrados, patriarcais e paternalistas que se estendem da casa­grande à sociedade como um todo. Frente a esse projeto, o historiador vê a herança da tradição como um entrave à tentativa de modernização racional do país, ainda alimentado pela "raízes" de sua formação cultu­ral, cujas características são avessas ao fenômeno moderno. A proposta de dissolução da ordem tradicional, ao implementar esse projeto, reque­reria a liquidação dessas "raízes" (as linhas tradicionais), em benefício dos rumos abertos pela civilização urbana e cosmopolita.

Se Sérgio Buarque propõe, contudo, em Raízes do Brasil, a supe­ração de traços da herança ibérica, como condição para construir uma nação moderna, em contrapartida Gilberto Freyre inscreve-se num tipo de modernismo conservador que relê a tradição por uma clave altamente positiva, buscando contribuir para uma modernidade que não se funda na idéia de progresso. Em Casa grande & senzala (1933 fi, escreve o elogio da colonização portuguesa, ressaltando as vantagens da miscige­nação, numa leitura eufórica do tipo de sociedade resultante da ação plástica e flexível do colonizador, que gera, segundo ele, uma "democra­tização social". Buscando em nossas características congênitas, oriun­das da matriz lusitana, uma capacidade de acolher formas dissonantes, o sociólogo pernambucano condensa com a idéia de "plasticidade" as três características - mobilidade, miscibilidade e ac1imatabilidade - que foram as condições para a expansão ultramarina portuguesa. Nas pala­vras de Ricardo Benzaquem Araújo, da miscigenação à plasticidade, a argumentação de Freyre "reforça aquela visão idílica da colonização

'I FREYRE, Gilberto. Casa !(rande & senzala. 20 ed. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: INL, 19HO.

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22 ARAÚJO, Ricardo Benza­quem. Guerra e paz: Casa

grande & senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994. p.47.

23 MELLO, Evaldo Cabral. "Cioran na Espanha". Mais! Folha de S. Paulo. 17 jan. 1999, p.9.

24 ANDRADE, Oswald de. "A

marcha das utopias " . In: Obras completas VI: Do Pau­Brasil à Antropofagia e às Utopias. Manifestos, teses de concursos e ensaios. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasi­leira, 1978. p. 145-228.

25 A interpretação aqui esboçada deve os créditos à leitura de Vera Follain de Figueiredo, no ensaio "Na ilha da utopia", in: Da profecia ao labirinto: imagens da História na ficção latino-americana

contemporânea. Rio de Janei­ro: Imago: Ed. da VERJ, 1994. p.15-36. Nesse belo en­saio, a autora, explorando a pluralidade e a simultaneida­des de tempos na América La­tina, questiona a implantação do projeto moderno no sub­

contmente, através da leitura comparativa entre A marcha das IIlOpias. de Oswald de Andrade, e do romance Os passos perdidos. do cubano Alejo Carpentier, ambos de 1953.

26 Ver nota 8.

Que faremos com esta tradição? ... 51

portuguesa no Brasil, sustentada justamente pelo descarte dos conflitos e pela ênfase na adaptação, na tolerância recíproca e no intercâmbio -principalmente - sexual"22. No dizer do historiador Evaldo Cabral de Mello, até os anos 30 deste século, a ideologia "nacional" (as aspas são dele) esbarrava sempre no pessimismo racial e nos ônus da colonização portuguesa. A partir dessa data, acrescenta, "o Brasil transitou do pessi­mismo entranhado à euforia irresponsável acerca do futuro nacional. Parte desta mudança de clima mental, deveu-se à Casa grande & senza­la, obra que transformou a miscigenação e a colonização portuguesa, de passivos em ativos da história brasileira"23.

Nessa transformação de passivo a ativo da história brasileira, no balanço das visões ideológicas que atravessaram o nosso modernismo, o elogio da colonização portuguesa, ainda que em outro tipo de diapasão

diferente do de Gilberto Freyre, é articulado na obra tardia de Oswald de Andrade, quando, depois de romper com o Partido Comunista, em 1945, retoma idéias suas dos anos 20, em particular a Antropofagia. Na série de artigos publicados em 1953, no jornal O Estado de S. Paulo, reunidos sob o título de A marcha das utopias24, discorre sobre o ciclo histórico do pensamento utópico gestado a partir da descoberta da América. O princi­pal alvo crítico é a mentalidade capitalista, associada à ética protestante. Como analisa Vera Follain de Figueiredo, em Da profecia ao labirinto, a ênfase não recai, nesse discurso oswaldiano, nos males da civilização cris­tã, de modo abrangente, nem nos efeitos repressivos da colonização portu­guesa, como acontecia no manifesto de 192825 , que, sob as influências das

vanguardas, pressupunha o contato com o estrangeiro, que seria "devora­do e metabolizado" culturalmente, pois se não há nenhum interior prévio, nenhuma essência particular suficientemente forte para nos constituir, era necessário interiorizar o exterior em termos de formação culturaF6. Na retomada dessas idéias, a série A marcha das utopias, em sua revisão

crítica, rejeita a mentalidade que se sedimenta com a Reforma, para valo­

rizar, em contrapartida, o que nos chegou pela via da Contra-Reforma: a atitude plástica, compreensiva e aberta dos jesuítas, que já era fruto da miscigenação, que o português colonizador já trazia de sua formação hí­brida. Ao vencer os holandeses (fato histórico que Oswald elege como marco referencial), o Brasil, através dos portugueses, rejeitaria a cultura

racionalista e pragmática que marca a modernidade ocidental, ressaltando

o iberismo de uma América que, portadora de uma matriz cultural pré­

moderna intocada pela Reforma e pela Revolução Científica, preservou elementos de comunitarismo, de organicidade e de encantamento capazes

de construir alternativa ao impasse do mundo anglo-saxão (a historiadora

Heloisa Starling segue essa linha ao reinterpretar Grande sertão: veredas,

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de Guimarães Rosa27). Assim, reabilitando aspectos da nossa coloniza­ção, eclipsa a história interna no que corresponde a uma corrida atrás das conquistas e dos valores do mundo moderno nascido com a Reforma, e, assim, eclipsa, também, a idéia de atraso, o que possibílíta tirar vantagens

da noção de multiplicidade e simultaneidade temporal que nos caracteriza­

ria, apontando sugestões de a cultura colonizada exercer um papel ativo para assinalar sua diferença. O ritual antropofágico da cultura brasileira instalado na transgressão ao modelo abre-se para a utopia que Oswald denomina "o matriarcado de Pindorama", o mundo do ócio contra o negó­cio, com a afirmação do "bárbaro tecnizado".

As contradições entre ruptura e tradição que, em largos traços, rastreamos até aqui, configuram, pois, o perfil do movimento modernis­ta que, ao mesmo tempo, se ligava ao modelo de país politicamente anco­rado no projeto de modernização autoritária e elitista. As leituras do movimento, entretanto, até pouco tempo, privilegiaram o viés da renova­ção estética sob o signo do experimento revolucionário e da vanguarda, em detrimento dos valores legados pela tradição. Levar em conta essa contradição permite recuperar as tensões que possibilitam depreender daí outros sentidos, ampliando as versões canônicas.

Nesta ótica, "o duplo caráter desse processo pode ser percebido na figura de Mário de Andrade e sua dupla posição diante do passado: utiliza-se tanto do mecanismo de 'traição da memória' como estratégia para apagar os rastros e esquecer lições herdadas da tradição, como revitalizar a memória dessa tradição, ao se empenhar na luta de preser­vação do patrimônio cultural brasileiro. Como intelectual e homem pú­blico, colabora no Departamento Cultural do Município de São Paulo, no Ministério da Educação e Saúde de Gustavo Capanema, durante o Estado Novo de Getúlio Vargas, elabora projetos e procura restaurar a 'fraca' memória do país"28, como ressalta Eneida Maria de Souza, no ensaio "Preguiça e saber".

Com o desenvolvimento do trabalho de intelectual e de artista, Mário busca a atualização do projeto moderno de construção da memó­ria nacional pelo mapeamento das relíquias da velha casa nacional e da sistematização de um pensamento crítico brasileiro. Alargando o sentido de tradição para englobar não só a herança portuguesa, mas também o patrimônio brasileiro erudito e popular, vale para ele o que disse em carta de 1924 a Drummond: "Pois é preciso desprimitivar o país, acen­tuar a tradição, prolongá-la, engrandecê-Ia"29.

A obra polimórfica e imensa de Mário de Andrade ajuda a perce­ber a permanência do discurso da tradição no modernismo que a revisão crítica dos ciclos de interpretação do movimento deixa ver, para além do

27 STARLlNG, Heloisa Maria Murgel. "Outras conversas sobre os jeitos do Brasil". In: SOUZA. Eneida Maria de (org.). Modernidades tardias. Belo Horizonte: Ed. UFMG,

1999. p. 82. Nesse ensaio, Starling propõe uma renovada leitura de Grande sertão: ve­redas, de Guimarães Rosa que vai de encontro ao projeto de JK, cujo furor desenvolvi­mentista incluía a disposição visionária de inaugurar uma cidade totalmente planejada levado pela crença na constru­ção de uma nacionalidade de base homogênea. O romance de Rosa. de 1956. configura uma proposta de releitura in­tensa do país, como meio de contraste necessário para inter­romper a hegemonia de um projeto triunfalista de adesão à modernidade. Quando reve­la os impasses de duas visões de mundo, o iberismo e o anglo-saxão, o contínuo vai­vém entre o moderno e o ar­caico, as formulações de Starling. como o trecho citado, permitem aproximá-Ia das idéias de Oswald de Andrade.

28 SOUZA, Eneida Maria de "Preguiça e saber". In: _ _ (org.). CarlOS a Mário. Cader­no de Pesquisa, n. 11. Belo Horizonte: Núcleo de Assesso­ramento à Pesquisa: Faculda­de de Letras da UFMG, novo 1993. p. 139.

20 ANDRADE, Carlos Drum­

mond de. A lição do amigo:

cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andra­de. Rio de Janeiro: José Olym­pio, 1982. p. 15.

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30 SANTIAGO, Silviano. "A permanência do discurso da tradição no modernismo". In: Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das letras, 1989. p. 94-125.

Jl FABRIS, Annateresa. "Bie­nal". jornal de Resenhas, n. 43. Folha de S. Paulo, lO oul. 1998, p. 1. O texto é uma re­senha crítica do Catálogo da Bienal de São Paulo de 1998.

Que faremos com esta tradição? ... 53

ângulo de visão da vanguarda30, como mostrou Silviano Santiago no ensaio "A permanência do discurso da tradição no modernismo" (apre­sentado, em 1985, no curso "Tradição/ Contradição" pela Funarte). É possível, então, perceber que já havia um lastro de tradição sedimentada que muitos modernistas vieram reciclar, reativando suas forças ainda vigentes, apesar das radicais palavras de ordem ao contrário. Assim, Manuel Bandeira, que afirma sua "libertinagem" poética com "basta" e com "estou farto" da tradição e grita "não quero mais saber do lirismo que não é libertação" (ver o poema "Poética"), alia, contraditoriamente, no correr de sua longa obra, os gestos de ruptura com a realocação dos traços da tradição do lirismo luso-brasileiro. Ou Vinicius de Moraes di­alogando com o Camões lírico no seu Livro de sonetos (1957). Ou Drummond, que, em atitude de homenagem, revisita o canto X de Os Lusíadas no poema "A máquina do mundo" (de Claro enigma, de 1951), que lhe é revelada na "estrada de Minas, pedregosa". Ou João Cabral de Melo Neto, que, em Morte e vida severina (1956), retoma a forma do auto medieval que fincou raízes no Nordeste brasileiro, para construir seu "Auto de Natal pernambucano", em que resgata o sentido original do ritual cristão, através do mergulho na realidade nordestina, mas, ao reciclar uma forma teatral que a tradição nos legou, põe todo esse lastro a favor de um projeto da modernidade, que aponta para a colonização do futuro (a expressão é de Octavio Paz) pela superação das condições ne­gativas do presente. Negando o mundo da morte associado à condição severina, o poema a desnaturaliza e a mostra como histórica, produto das contingências socioeconômicas; como tal, não permanente, possível de ser superada, quando o homem se toma sujeito da história.

A herança cultural funciona como lastro, estratégia que possibili­ta ler como a tradição circula. Entretanto voltar, hoje, à pergunta "que faremos com esta tradição?", nos serve, ao mesmo tempo, para perceber a debilitação dos esquemas cristalizados de "unidade" e de "autenticida­de", quando se sabe que, longe de ser uma construção nacional, a cultura configura-se cada vez mais como um processo de montagem multicultural, como atividade gestada em diversos centros, para a qual os referentes tradicionais de identidade estão perdendo importância diante do caráter transnacional das tecnologias e do consumo de mensagens e produtos simbólicos. A tradição herdada e transmitida não pode mais assegurar a

homogeneidade da cultura nacional, mas pode ser ressemantizada, reciclada pelas operações de transação culturaPI.

Em clima de comemorações dos 500 anos do "descobrimento" do Brasil, evocar Iracema, forte emblema de nossa nacionalidade, per­sonagem criada por José de Alencar, em 1865, talvez possa ser sintomáti-

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54 Revista Brasileira de Literatura Comparada, nº 5,2000

co em relação à herança do processo de civilização legado pelos portu­

gueses. Se a romântica Iracema (anagrama de América) é símbolo da

nacionalidade reconciliadora que, sob o signo da cordialidade, recalca a

violência da conquista, do encontro do português colonizador com a terra

descoberta por Cabral, dois meses depois do carnaval, a Iracema desta

outra virada de século nem esperou as festas dos 500 anos, "voou para a América", como diz a canção de Chico Buarque (do CD Cidades, 1998), atraída pelas promessas de melhores condições de vida e do universo da cultura do consumo e do espetáculo. Ela abre mão da "cultura da revolta" (para usar a expressão de Julia Kristeva, in Sentido e contra-senso da revolta); deixa-a, por exemplo, para o cacique Nailton Pataxó Hã-Hã­Hãe, do sul da Bahia, que, na "Marcha Indigenista 2000", em abril, co­

brou, em Brasília, compromisso das autoridades com os povos indígenas. Essa Iracema "pós-moderna" pouco se importa com as flechas que atin­

giram o relógio criado por Hans Donner, o programador visual da Rede

Globo de Televisão, para fazer a contagem regressiva até 22 de abril. A Iracema certamente pouco, ou nada, interessem tais tipos de "provoca­ção". Se ela, agora, também empreende uma viagem - de avião -, mas como imigrante, cumpre uma outra sina um tanto diferente de suas antecessoras: não é mais Sinhá Vitória (de Vidas secas, de Graciliano Ramos), nem Macabéa (de A hora da estrela, de Clarice Lispector), nem uma suposta Severina-retirante (possibilidade permitida pelo poema Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto); "é Iracema da América", que, "se puder, vai ficando por lá", ainda que de vez em quando tenha alguma saudade do Ceará. Mesmo que não aceite a provocação que seu nome comporta, agora, já ressemantizado, cumprindo o anagra­ma nele embutido, talvez seja fecundo, nestas comemorações dos 500 anos, reler a herança portuguesa como "provocação", enquanto estraté­gia que possibilite, em tempos pós-utópicos, procurar entender nossas contradições que se atrelam à construção de nossa identidade cultural, que não se esgota, porque nunca se dá plenamente, mas fazendo-se numa prática sempre em processo.

Quando são comemorados os 500 anos da "descoberta" do Brasil, a nova ordem mundial obriga-nos a nos pensar além de nossas fronteiras, ao mesmo tempo em que se publica uma revista oficial sintomaticamente in­titulada Rumos, isto é, procuramos rumos (talvez isto explique o sucesso do filme Central do Brasil, de Walter SaBes Jr., ou dos livros de Eduardo Bueno que narram como crônicas os primeiros tempos da colonização, "em ritmo de aventura numa edição didática", como anunciam os suple­mentos de livros dos jornais brasileiros). Nos 500 anos, repito, procura­mos rumos - os do passado e os do presente - e ainda nos perguntamos: "que faremos com essa tradição, com essas relíquias da casa velha?".

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Antropofagia no país de sobremesa

Vera Lúcia Follain de Figueiredo Universidade Estadual do Rio de Janeiro

Somos um país de sobremesa. Exportamos bananas, casta­nha-do-pará, cacau, café, coco e fumo. País laranja!

Oswald de Andrade

Embora a Antropofagia, de Oswald de Andrade, tenha surgido sob o estímulo do contexto econômico, político e cultural do Brasil e da Europa dos anos 20, para compreendê-la melhor, é importante considerá-la no interior do projeto de construção de uma cultura brasileira autônoma, que vinha sendo desenvolvido desde o Romantismo. A proposta antropofágica dialoga com o passado procurando resolver impasses anteriores que havi­am marcado a reflexão sobre a cultura no Brasil. A Antropofagia é a chave utilizada por Oswald para superar tanto o idealismo ufanista ro­mântico quanto o pessimismo determinista que contaminou os intelectuais do final do século, influenciados pelo cientificismo etnocêntrico europeu.

A fórmula encontrada pelo modernista, combinando sentimento nacionalista e cosmopolitismo, elegendo o híbrido em detrimento das categorias puras e excludentes, nasce da necessidade de criar novos parâmetros de pensamento que nos permitissem ultrapassar as dicotomias que vinham balizando o pensamento sobre a cultura no país e que atua­lizavam sempre o mesmo esquema: ou a defesa de um nacionalismo essencialista e fechado ou a apologia de um universalismo modernizador que significava completa submissão a modelos europeus. Este esque­ma, herdado do século XIX, revela seu esgotamento na obra de pré­modernistas como Lima Barreto e Euclides da Cunha. Em Triste fim de

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Policmpo Quaresma, a desgraça do personagem resulta do nacionalis­mo de inspiração romântica que orienta toda a sua ação e que se mostra completamente inadequado para o entendimento dos problemas do país, levando-o, no final do livro, a questionar, diante do fracasso das boas intenções que o nortearam, o próprio conceito de "pátria":

E bem pensando, mesmo na sua pureza, o que )'inha a ser pátria? Não teria levado toda a sua vida norteado por uma ilusão, por uma idéia a menos, sem base, sem apoio, por um Deus ou uma deusa cujo império se esvaía? ( ... ) Pareceu-lhe que essa idéia como que fora explorada pelos conquistado­res por instantes sabedores das nossas subserviências psico­lógicas, no intuito de servir às suas ambições... ( ... ) Certamente era uma noção sem consistência racional que pre­cisava ser revista. l

Através de Policarpo Quaresma, Lima Barreto não tematiza ape­nas a falácia do mito romântico de pátria, a inconsistência do indianismo como sinônimo da busca de uma origem pura, mas indica a necessidade de reavaliar alguns traços tradicionais da nossa cultura, herdados do colonizador, preparando terreno para a releitura do passado que será feita nas décadas seguintes não só por Oswald de Andrade, mas tam­bém por Mário de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freire. Antecipa a desnaturalização, tão freqüente hoje, na chamada pós-mo­dernidade, de conceitos criados pela modernidade, como o de nação, assinalando o seu caráter construído: "Uma hora para o francês, o Fran­co-Condado é a terra dos seus avós, outra não era, depois era; num dado momento a Alsácia não era, depois era e afinal não vinha a ser"2, diz o personagem.

Em Os sertões, de Euclides da Cunha, o drama da enunciação, presente de forma tão nítida na obra, decorre da inadequação do apara­to teórico, criado na Europa e em voga naquele momento no país, utili­zado pelo autor, para a compreensão de uma realidade que desafiava a rigidez dos pressupostos cientificistas. A Guerra de Canudos colocava o intelectual comprometido com o projeto modernizador diante de uma situação, na qual o que se evidenciava não era o aspecto emancipador e racional da modernidade, mas a face violenta, justificadora da exclusão que pode assumir nos países com fortes contradições sociais.

A proposta "ver com olhos livres", de Oswald de Andrade, inserida nesse processo reflexivo do início do século, assume um forte sentido crítico - os olhos deverão libertar-se daquelas categorias epistemológicas que se mostraram ineficazes para o melhor entendimento da realidade.

1 Lima BARRETO. Triste Fim

de Policarpo Quaresma. 8" ed. S.Paulo: Brasiliense, 1970, p.207.

'Ibidem, p.207.

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] Walter MIGNOLO. "La razón postcolonial: herencias coloniales y teorÍas postcolo­niales··. In: Revista Cragoató. n° 1. Niterói: EDUFF, I 'N6, p.9.

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Não se trata de dispensar todo e qualquer aparato teórico, de fazer o elogio da visão ingênua. A política cultural do autor é uma tomada de posição contra a mentalidade colonialista de aceitação passiva dos valo­res afirmados pela civilização ocidental, que foram desistoricizados e legitimados como "universais". A construção da idéia de modernidade, conectada à expansão européia, passou pela constituição de um lugar geocultural privilegiado, hegemônico, de produção do conhecimento, ou seja, o lugar da produção teórica tendeu a ser identificado com o mundo europeu. Oswald reivindica o direito de dialogar com essa produção sem subserviência, de construir uma interpretação do Brasil, partindo de premissas diferenciais que possam dar conta das nossas contradições. Busca um outro lugar de enunciação que permita a relativização das ima­gens criadas pela tradição ocidental. Nesse sentido, afina-se com práti­cas teóricas posteriores identificadas com a afirmação de uma razão pós­colonial que, no dizer de Walter Mignolo, questionam "o espaço intelectual da modernidade e a inscrição de uma ordem mundial na qual o Ocidente e o Oriente, o Eu e o Outro, o Civilizado e o Bárbaro, foram inscritos como entidades naturais"3 .

O ângulo de visão que adota para abordar a modernidade é o do mundo americano, fazendo sobressair o papel decisivo que desempe­nhou nas transformações que tomaram possível a constituição da Euro­pa moderna. No Manifesto Antropófago, dirá: "Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem". Em "A marcha das utopias", retomando, nos anos 50, teses lançadas nos anos 20, focaliza a primeira fase da modernidade sob o prisma do que vai chamar de Ciclo das Utopias, cujo início seria marcado pela divulgação da descoberta da América, no século XVI, e o fim pelo Manifesto Co­munista em meados do século XIX. O recorte feito na história, pelo autor, visa ressaltar a contribuição do continente para a concepção da utopia de uma sociedade igualitária, que origina as obras de Thomas More e Campanella, inspirada pela existência americana. Interessa-lhe o que há de negatividade, de ruptura com o contínuo da história, de descentramento, no projeto utópico inspirado pela América como lugar da alteridade que abala certezas, sugerindo alternativas, provocando a imaginação alheia. A alteridade é vista, assim, como valor positivo.

Esse olhar descentrado se contrapõe ao discurso da superiorida­de européia e revela a outra cara da modernidade, aquela que aponta para a violência e para a negação do outro, traindo a utopia primeira. É óbvio que tudo isso está relacionado com o próprio clima da Europa pós­primeira guerra e com a crítica que eles mesmos estão fazendo dos rumos tomados pela história européia, mas o que é importante destacar

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é O aproveitamento que intelectuais, oriundos de países de herança colo­

nial, fazem desse questionamento da cultura racionalista ocidental:

Neste momento a Europa viveu uma crise psicológica em face da tecnização, mercantilização, alienação e \'iolência gene­ralizada, expressas em termos de contradições neomao:istas, decadência splengleriana e invasões freudianas do subcons­ciente. A tomada de consciência latino-americana exigia pre­cisamente esta dissolução dos motivos evolucionistas e refor­mistas. A Europa agora oferecia patologias e não apenas modelos. O desencanto no centro motivava a reabilitação na periferia.4

Oswald de Andrade, Alejo Carpentier e outros escritores latino­americanos tiram partido da "redescoberta da América", feita nesse momento por intelectuais europeus críticos da razão burguesa, para afir­mar num diapasão positivo a alteridade americana, se contrapondo ao

discurso etnocêntrico que sustentou a empresa colonialista. Na década

de 40, Oswald dirá: "Entre outras vantagens, a guerra nos trouxe esta -a de melhor nos conhecennos"5.

O alvo de combate é, então, todo o arcabouço ideológico utilizado para justificar a dominação européia sobre povos e terras distantes - em 1914, a Europa detinha um total aproximado de 85% do mundo, na fonna de colônias, protetorados, dependências, domínios e commonwealths"6. Na América Latina, como observou Florestan Fernandes? , o anticolonia­lismo dos extratos privilegiados só foi intenso em um ponto, o da conquista da condição legal e política de donos do poder. Nos demais aspectos, as elites locais teriam promovido o congelamento da descolonização. Trata­se, então, para Oswald de Andrade, de promover o descongelamento da

atitude anticolonialista, fazendo uma releitura da história que se contra­ponha à aceitação do mito vitimário criado com a modernidade que im­planta a idéia de que a missão européia é levar a civilização a povos bárbaros e primitivos, mesmo que para cumpri-la tenha de utilizar-se da violência, submetendo "povos inferiores" a um sacrifício necessário para galgar os degraus da modernidade: "Contra todas as catequeses e con­tra a mãe dos Gracos", dirá no Manifesto Antropófago.

As conturbações do velho continente, no início do século, abalam os códigos incorporadores, universalizantes e totalizantes criados pelas grandes metrópoles e, com isso, abrem espaço para a elaboração de novas representações que se contrapõem à retórica dominante. Oswald percebe a necessidade de fazer a revisão e a desconstrução da repre­sentação ocidental do mundo não-europeu, afinnando o direito de nar-

• Richard MORSE. A volta de McLuhanaíma: cinco eSludas solenes e uma brincadeira séria. Trad. Paulo Henriques Brito. S.Paulo: Companhia das Letras, I 990, p. I 83.

5 Oswald de ANDRADE. Pon-

la de lança. 3" ed. Rio de Ja· neiro: Civilização Brasileira, 1972, p.63.

6 Edward SAlDo Cullura e Im-

perialismo. Trad. Denise Bottman. S.Pau\o: Companhia das Letras, 1995, p.38.

7 Rorestan FERNANDES. "O

problema da descolonização" . In América La/ina: 500 anos da conquisla. S.Paulo: Ícone, \987 .

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8 Lezama LIMA. A expressão americana. Tradução, intro­dução e notas de Irlemar Chiampi. S.Paulo: Brasilien­se, 1988.

9 Sobre a relação entre a an­tropofagia de Oswald de An­drade e a vanguarda dadaísta (RevISta Canibale e Manifeste Canibale Dada, de Francis Picabia), ver Campos, Harol­do de .Poesia. antipoesia e an­tropofagia. S.Paulo: Cortez e Moraes , 1978.

Antropofagia no país da sobremesa S9

rarmos e construirmos nossas próprias imagens e, nesse sentido, anun­cia a postura crítica que está na base do Realismo Maravilhoso, surgido três décadas depois, na América hispânica, assim também como suas propostas se aproximam das idéias que o cubano Lezama Lima apre­senta nas conferências que pronunciou em 1957, reunidas no livro A expressão americana.8 Para pensar o devir americano, Lezama Lima dissolverá dicotomias e hierarquizações que não se coadunam com a afirmação da cultura latino-americana. Substituirá a ordenação tempo­ral pelas analogias livres, a idéia de repetição pela de recorrência criati­va, o culto da razão por uma gravitação em tomo da imaginação e da memória.

A Antropofagia se inscreve nesse panorama que predispõe à re­leitura do paradigma da razão moderna, sem se definir como um movi­mento contramoderno. Oswald evita a metodologia dos antagonismos radicais, que repetia sempre, de uma forma ou de outra, a fórmula cu­nhada por Sarmiento - civilização ou barbárie. No lugar das polariza­ções disjuntivas, propõe a síntese dialética, no lugar do "ou" , coloca o "e" - "o misto de dorme nenê que o bicho vem pegá e de equações", "a floresta e a escola" -, fazendo da mestiçagem cultural a categoria­chave para sua abordagem. O Manifesto Antropófago é, de um lado, um canto futurista: a agitação do contexto interno, ainda que mais con­centrada em São Paulo, a exigir mudanças políticas e econômicas e a industrialização crescente suscitam a esperanca de que poderíamos "acertar o relógio com a contemporaneidade". De outro, é um canto primitivista e é o contexto externo que vai estimular a valorização do que, em nós, não se compatibiliza com o modelo racional europeu.9 Ao assumir o paradoxo primitivo-modernista, adota uma ótica culturalmen­te descentrada: o reconhecimento da importância da técnica serve para neutralizar a tentação de interpretar comodamente o atraso como mani­festação de uma força criadora original, não contaminada pelos vícios europeus; a valorização dos aspectos mestiços da cultura brasileira - o desrecalque não se restringe só à herança indígena, mas se estende a toda diferença resultante da mistura de raças e valores - serve para controlar o volume "do grito imperioso de brancura em mim".

A proposta antropofágica não se limita, assim, a justapor o entu­siasmo com o progresso de São Paulo à valorização das origens indíge­nas. Expressa o desejo de descolonizar a cultura, rejeitando as polariza­ções de inspiração européia: é de lá que ora nos vem o elogio da "irraci­onalidade americana" como alternativa primitiva para os males da civi­lização, ora nos chega o culto incondicional do progresso que expulsa da contemporaneidade os países cujo processo de modernização não se

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realizou plenamente, esquecendo-se de que a modernidade plena das metrópoles se constituiu com o gesto que empurrou as colônias para a margem, que a periferia é a outra cara, a alteridade essencial da moder­nidade, como observou Enrique Dussel lO•

O ritual antropofágico indígena é recuperado como metáfora de uma visão de mundo inclusiva - a devoração, ao cabo e ao fim, aponta para a valorização da diferença. É recuperado também porque foi o argumento principal utilizado pelo europeu para negar aos indígenas a condição humana, justificando, assim, a violência do conquistador, à medida que criava o mito do mau selvagem. Inspirando-se no selvagem brasileiro de Montaigne ("A França só teve um humanista: Montaigne. Depois disso foi cortesã ou regicida ... "," afirmará), vai fazer o elogio do "mau selvagem", que devorava para não ser devorado. Recupera também o pensamento mítico, a partir do qual faz a crítica da visão evolutiva e linear da história, que, trabalhando com a idéia de um desen­volvimento por etapas, não daria conta da multitemporalidade america­na:

Em Nietzsche e Kierkegaard, inicia-se no século XIX um dra­mático protesto humano contra o mundo lógico de Hegel e a sua terrível afirmação de que tudo que é racional é real. Hegel, que completa a metafísica clássica de Kant, promete e sagra a imagem dum mundo hierarquizado e autoritário que terminará nas delícias do Estado Prussiano e dialeticamente em Nüremberg. Com ambos tudo acabaria azul e legal, em catecismo e presepe. 12

Denunciando o caráter etnocêntrico da visão européia da histó­ria, antecipa a relativização do estatuto científico do discurso histórico, tão em voga atualmente. O discurso anticolonialista de Oswald tenderá, então, a inverter imagens construídas pelo colonizador, o que se explica levando-se em consideração que a formação de identidades culturais é sempre contrapontual, pois, como assinala Edward Said, "nenhuma iden­tidade pode existir por si só, sem um leque de opostos, oposições e nega­tivas - os gregos sempre requerem os bárbaros e os europeus reque­rem os africanos, os orientais etc.".13 No caso dos países que foram colonizados, o contraponto se dará com a cultura colonizadora. Daí vem o caráter ufanista, apesar de não abrir mão do senso crítico, que o dis­curso de Oswald assume por vezes, visando superar a nossa dependên­cia cultural através da canibalização das tradições européias e da erradicação do complexo de inferioridade que alimentamos ao nos olhar no espelho fornecido pelo europeu.

10 Enrique DUSSEL. 1492: o

encobrimento do outro: a ori­gem do mito da modernidade: Conferências de Frankfurt. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1993.

11

Ibidem nota 5, p.59.

J' - Oswald de ANDRADE Es-

tética e política. S. Paulo: Globo, 1992. p. 102.

13 Ibidem nota 6, p. 34.

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14 OswalddeANDRADE. "A marchadas utopias". In: Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. Rio de Janeiro: Ci­vilização Brasileira, 1970.

15 Ibidem nota 12, p. 167.

16 Ibidem nota 12, p.131.

Antropofagia no país da sobremesa 61

Caberia distinguir a utopia oswaldiana do otimismo da oligarquia cafeeira, entusiasmada com uma certa atmosfera de modernização e conservadora no âmbito doméstico, cujo nacionalismo elipsa as contra­dições sociais. O ufanismo de Oswald faz parte da luta pela reapropriação de uma imagem para emprestar-lhe um outro sentido, capaz de criar uma consciência nacional que não se opõe a uma consci­ência social. A utopia caraíba é ao mesmo tempo crítica - "no fundo de cada utopia não há apenas um sonho, há também um protesto"14, Oswald dirá - e idealizadora, já que nasce da insatisfação com o pre­sente, mas busca criar ânimo para a construção do futuro, mesmo que, muitas vezes, não seja nada fácil sustentar este ânimo, quando, por exem­plo, revoltado com os rumos da nossa economia, declara: "Somos um país de sobremesa. Com açúcar, café e fumo só podemos figurar no fim dos menus imperialistas"15. A militância, durante quase 15 anos (1931-1945), no Partido Comunista revela a sua disposição para lutar em duas frentes - a cultural, onde pretendia contribuir para a descolonização das mentalidades, e a política, na qual se batia por uma sociedade igua­litária. Aos 60 anos, no discurso de agradecimento pela homenagem de aniversário, declara:

A mim, a cidade mecânica fizera de súbito conjugar o verbo crackar: Eu empobreço de repente Tu enriqueces por minha causa Ele azula para o sertão Nós entramos em concordata Vós protestais por preferência Eles escategem a massa.

E acrescenta: "Eu não sabia que este verbo era irregular. Tinha herdado tudo, menos a convicção da propriedade privada"16. A passa­gem é interessante porque costuma-se contrapor as idéias engajadas de Oswald a sua vida confortável de herdeiro da oligarquia do café, sendo que, raramente, se destaca o longo tempo de militância política que de­dicou a um partido cujos ideais professados se voltavam contra a acu­mulação capitalista. Assim também ainda não aprofundamos a reflexão sobre a maneira como, sobretudo a partir do final dos anos 40, procurou conciliar a visão marxista com o pensamento antropológico, no esforço de compreender a multi facetada realidade brasileira.

Oswald de Andrade não foi um deslumbrado com a moderniza­ção. Preocupou-se com a ambivalência de seus efeitos, daí jogar com o binômio tradição/modernidade, usando a tradição como lugar onde se

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situar para criticar a modernização de fachada que só beneficia as eli­tes, Na verdade, os intelectuais de países periféricos, pelas próprias

contradições acentuadas do contexto interno, muitas vezes, antecipa­

ram problematizações do projeto modernizador que estão em pauta, na

contemporaneidade, em textos teóricos produzidos no mundo desenvol­

vido. No entanto, a hipótese, alimentada pelo teimoso utopismo do autor, de que países como o Brasil, marcados pela heterogeneidade e pela multitemporalidade, poderiam gerar soluções alternativas às adotadas pelas sociedades pragmáticas e utilitaristas do Norte, tendo como alia­das a ciência e a tecnologia, cujo avanço estaria a serviço da construção de um mundo mais justo, parece cada vez mais distante e é com grande ceticismo que lemos passagens como a seguinte:

Atingindo o clímax da técnica, o calvinismo, que foi, com a doutrina da Graça, o instrumento do progresso, tem que ce­der o passo a uma concepção humana e igualitária da vida - essa que nos foi dada pela Contra-Reforma. A técnica passa da fase de apelfeiçoamento à conquista de mercados, indo levar à África mais remota ou às ilhas da Oceania o mesmo livro e o mesmo ferro de engomar, a mesma televisão que marcavam de superioridade os países mecanizados. Passa­se a socializar e a universalizar o produto da máquina. 17

Nosso escritor modernista, como vemos no trecho acima, anteviu a expansão do mercado em escala planetária e imaginou que a difusão dos avanços tecnológicos contribuiria para a criação de um mundo mais igualitário, no qual "os fusos trabalhariam sozinhos" e o homem deixaria de ser escravo atingindo o limiar da Idade do Ócio. Para ele, a técnica, no caso do Brasil, traria a solução para os problemas que nos impediam de acertar o relógio com a contemporaneidade, além de permitir a pre­servação de características culturais, advindas da colonização ibérica, que revelavam a nossa vocação para nos transformar na sociedade com a qual sonhava. A tecnologia contribuiria para uma nova maneira de perceber o tempo - como convergência de momentos, como simulta­neidade dos instantes - e, com isso, poderia libertar-nos da prisão de uma história sucessiva e linear que nos condenava a ter de viver com atraso cada etapa já vivenciada pelas nações hegemônicas. Na época da fotomontagem, nada nos impediria de beber de um trago só nossa independência técnica, como afirma em "Aqui foi o sul que venceu".

Hoje, entretanto, sabemos que o sonho de Oswald de Andrade está longe de se realizar. O ferro de engomar chegou à África mas não diminuiu a superioridade dos países desenvolvidos, porque cada vez mais

17 Ibidem nota 14, p. 152.

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18 Milton SANTOS. A nature­za do espaço: técnica e tem­po. razão e emoção. S. Pau­lo: Hucitec. 1996.

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são eles que detêm o saber científico e técnico, enquanto nos limitamos a importar as aparelhagens sem dominar aquele tipo de conhecimento produtivo que, em nossos dias, é toda a fonte do poder. Por outro lado, não nos é dado escolher o que queremos ou não aproveitar do progresso técnico nem tampouco determinar o momento que julgamos mais ade­quado para a incorporação de uma nova máquina à nossa vida. O mer­cado mundial impõe seus produtos e a tecnologia, como observou Milton Santos IR, se toma inevitável, auto-expansiva e relativamente autônoma, levando a todos os lugares a sua "lógica instrumental indiferente ao meio em que se instala". Sob a égide do mercado, a tecnologia se expande "comandada pela mais-valia que opera direta ou indiretamente no mun­do".

Também quanto ao Brasil, o futuro , que imaginou, vai sendo adi­ado. O capitalismo, pela primeira vez planetário, movimenta-se no sen­tido de gerar, através do consumo, um plasma cultural uniforme que tende a nos tomar céticos, pelo menos na América Latina, quanto à possibilidade de realização do sonho do nosso modernista, calcado no elogio da particularidade cultural enquanto criadora de caminhos alter­nativos aos seguidos pelos países hegemônicos do Ocidente. Ao contrá­rio, em tempos de globalização, o que constatamos é o predomínio de uma mentalidade fatalista diante da nova ordem mundial, é um novo determinismo, em tudo oposto ao desafio permanente de romper com os limites do possível que norteou o pensamento de Oswald de Andrade.

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I Este artigo se baseia em pes­quisa realizada durante janei­ro e fevereiro de 2000 em

Weimar, Alemanha. com bol­sa Ja Stiftung Weimarer Kl assik.

2 Edição de 4 de dezembro de 1821.

A pedra flexível do discurso: imagens do Brasil

na Alemanha de Goethe'

Myriam Ávila Universidade Federal de Minas Gerais

João e Francisca, de volta ao Brasil depois de quase 200 anos, olham através de nós com os mesmos rostos inexpressivos com que posaram para o desenhista vienense em 1821. Anunciados como uma das sensa­ções trazidas pelo Brasil pela expedição científica enviada pelo Impera­dor da Áustria por ocasião do casamento de sua filha Leopoldina, sua autenticidade era devidamente atestada em relatório de viagem publica­do na Revista Vienense de Arte, Literatura, Teatro e Moda2 e o artista­retratista anotou sob a gravura em metal: aus der Natur gezeichnet (re­tratados em observação direta). Os olhos vazios destacam-se no retrato, apesar dos vistosos enfeites botocudos que lhes deformam as orelhas e os lábios. Os rostos, coloridos, emergem de dentro de roupas européias apenas esboçadas. "o casal que o Dr. Pohl achou por bem trazer para a Europa, e que a ele se juntou voluntariamente [ .. ] o homem contando 20 e a mulher 21 anos, vêm, com exceção de uma curta temporada junto a fazendeiros portugueses, [ ... ] diretamente das mãos da Natureza."

Conformado pelo olhar objetivizador do estrangeiro, o retrato se toma emblema da imagem do Brasil predominante na Europa de inícios do século XIX. O presente artigo tenta resgatar nessa imagem a humani­dade seqüestrada, que é nossa, de João e Francisca.

* * *

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Na biblioteca particular de Goethe, em Weimar, encontram-se, entre dezenas de livros de viajantes, cientistas ou não, sobre as Améri­cas, treze obras dedicadas ao Brasil, de autoria de Spix e Martius, Eschwege, Maximilian de Wied-Neuwied, Kloss, Nees von Eisenbach, Pohl. Alguns desses mantiveram correspondência com o escritor ou fre­qüentaram sua casa na sede do grão-ducado de Saxe-Weimar. A par dessas obras de infonnação erudita colhida in loco pelos autores, figu­ram entretanto, curiosamente, no acervo de livros sobre o Novo Mundo, dois pequenos volumes que compõem o livro A descoberta da América, dedicado à juventude e publicado, já na quarta edição, em 1796, por uma editora de livros didáticos. Seu autor, Joachim Heinrich Campe, escre­veu vasta obra de caráter pedagógico, que inclui uma coleção de 12 volumes de descrições de viagens de to<!o tipo, sempre com a indicação "para a juventude", além de uma nova versão de Robinson Crusoe, Robinson derjüngere. Este último parece ter tido grande sucesso, sendo traduzido para o francês com o título de Le nouveau Rohinson.

Goethe teria, na época da edição de A descoberta da América, 47 anos. Não há qualquer indicação de que teria adquirido o livro para seu filho (a compra foi feita em 1798). Mais possivelmente teria sido levado pela curiosidade que lhe despertava o continente distante. Nesse livro, Campe usa a estratégia de representar seu narrador como um pai que conta histórias para os filhos, interrompido de quando em quando por suas perguntas ou pelos comentários da mãe, em um serão familiar em tudo semelhante aos da Dona Benta de Monteiro Lobato. A narrativa cobre não apenas a viagem de Colombo como também as conquistas do México e do Peru. O Brasil não é mencionado' . O interesse inicial pelo misterioso Novo Mundo levaria o poeta a cultivar, no início do século XIX, a amizade de Alexander von Humboldt. o famoso explorador ale­mão das Américas, que também não penetrara no território brasileiro.

Essa ausência do Brasil nos relatos de viagem da época se explica pelo fechamento das fronteiras aos estrangeiros. atra\-és do qual os por­tugueses procuravam defender a posse de sua mais importante colônia. Ecos do Brasil se ouviam no Robinsol/ de Defoe. ainda de 1719, e no novo Rohinson de Campe. Neste, as referências se diluem para a ima­gem lendária do Eldorado ou o clássico topos do locus amoenus, provo­cando das crianças, narratários da história, os seguintes comentários:

Não é este país aqui, que pertence aos portugueses e onde se encontra tanto pó de ouro e pedras preciosas? (Le nouveau Robinson, p.454 )

Teodoro - Papai, neste ponto eu bem que gostaria de estar no lugar de Robinson.

No entanto. o livro contém um mapa em que o Brasil está representado com algumas ci­dades escolhidas aleatoriamen­te. No espaço relativo a Minas Gerais figuram Vila Rica e "Tabaraba" (ltaverava?).

oi Hamburg, 1779.

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o pai - É mesmo? Teodoro - Sim, pois agora ele tem tudo de que precisa, e vive em um país tão lindo, onde nunca é inverno. (LNR, p.261)

Nas Descrições de viagens para a juventude, há referências mais precisas ao Brasil, mas a tônica continua sendo o mistério que envolve o país com o severo controle dos navios estrangeiros que ali aportam, resul­tando em um retrato pouco confiável de sua parte visível (a cidade do Rio):

De lá puseram-se a caminho do Brasil, uma conhecida província portuguesa na América do Sul" [ .... ] A cidade Janeiro .... é incri­velmente bela. (Viagem do Comodoro Byron - 1764/1766) 3ª par­te, p. 9.

As igrejas são muito bonitas [ ... ] As ruas são todas retas e cru­zam-se umas com as outras em ângulos retos. (Viagem do Capi­tão Cook - 1768-1771) 5ª parte, p. 98.

N a região onde se encontram ouro e diamantes "niemand darf betreten" (ninguém pode pisar). Pode-se apenas imaginar a dura vida que ali levam os escravos forçados a trabalhar dia e noite nas minas. Onde estas se localizam. ninguém sabe. Há ainda referências ao todo­poderoso vice-rei, que proíbe a entrada aos navios do Capitão Cook.

A imagem do Brasil que prevalece na Alemanha do século XVIII é portanto nebulosa e esmaecida, menos estimulando a curiosidade do que promovendo o esquecimento. Um fato novo, porém, mudará com­pletamente esse estado de coisas: a transferência da Corte Portuguesa para o Brasil em 1808. com a conseqüente abertura dos portos "às na­ções amigas". Com o rei vem o mineralogista alemão Barão Guilherme de Eschwege. nomeado capitão do exército português. Permanece dez anos no país como diretor de minas e, voltando à Alemanha, publica em 1818, na cidade de Weimar, onde Goethe era conselheiro do grão-duque Carl August , seu primeiro livro sobre o Brasil, Diário do Brasil.

O interesse despertado pelas notícias do Brasil divulgadas por Eschwege, que, como Hans Staden, era natural do Hessen, se comprova pelas numerosas observações que Goethe lhes dedica em seu diário. Se­gundo uma pesquisa de Wolfgang Hoffmann-Hamisch, publicada como artigo na revista Cultura de 1948, entre 84 menções ao Brasil que se encontram em diversos escritos de Goethe, um terço se refere a Eschwege e suas obras. A maioria desses comentários diz respeito a uma amostra mineralógica que o barão trouxera do Brasil e que instigara o poeta a encontrar na Alemanha uma pedra semelhante:

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68 Revista Brasileira de Literatura Comparada, nº 5, 2000

Em troca envio-vos uma rocha encontrada na Alemanha e que é parente bem próxima do itacolomito do Sr. von Eschwege , como ele próprio admitiu , e pergunto se com vos­sa larga experiência já \'istes uma parecida? Na minha opi­nião, também aqui, como no Brasil deve haver nas cercanias a pedra flexívef.5 [Carta a C. c. mn Leonhard, em 9 de junho de 1823]

Vós certamente \'os sentireis mm'ido a no\'Qs pesquisas quan­do eu \·os disser que é bastante semelhante ao itacolomito brasileiro, uma rocha que seria encontrada apenas na Amé­rica do Sul. [ .. .] As peças que me enviastes parecem em sua decomposição natural totalmente idênticas àquele. 6 [Carta a Friedrich Constantin von Stein, em 11 de junho de 1823]

A maioria das menções ao Brasil que se encontram nos diários e correspondência de Goethe refere-se aos anos em que o poeta esteve em contato com Eschwege. Entretanto, décadas atrás ele já dirigira a aten­ção a nosso país. Em 1782 escrevera duas "canções brasileiras", tiradas dos Ensaios de Montaigne e retrabalhadas em verso. Um delas recebeu em 1825 uma nova versão.

Todeslied eines Gefangenen. Brasilianisch. 1782

Kommt nur kühnlich, lommt nur alIe, Und versammelt euch zum Schmause! Denn ihr werdet mich mil Drauen, Mich mil Hoffnung nimmer beugen. Seht, hier bin ich , bin gefangen , Aber noch nicht überwunden, Kommt, verzehret meine Glieder, Und verzehrt zugleich mit ihnen Eure Ahnherrn , eure Vater, Die zur Speise mir geworden. Dieses Fleisch, das ich euch reiche, 1st ihr roren , euer eignes , Und in meinen innnern Knochen Stick das Mark von euren Ahnherrn. Kommt nU1~ kommt, mit jedem Bissen

5 Coethes Werke. IV Abteilung. IGoethes Briefe] . 37. Band. Weimar: Hermann Bóhlaus Nachfolger, 1906. p. 60.

6 Idem,p.64.

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Kann sie euer Gaumen schmecken. (Canção de morte de um prisioneiro. Brasileira. 1782

Vinde com ousadia, vinde todos, Reuni-ros para o festim! Pois jamais me curvareis Com ameaças e promessas. Vêde, aqui estou, prisioneiro, porém nunca derrotado, Vinde, consumi meus membros, E ingeri no mesmo ato Vossos próprios antepassados Que a mim serviram de pasto. Esta carne que ofereço, É de vós mesmos pedaço Mora no cerne de meus ossos A medula de vossos pais. Vinde , pois: a cada naco Saberão eles a vosso palato.)

Brasilianisch.1825

Schlange halte Stille, Halte stille Schlange! Meine Schl1'ester will ron dir ab Sich ein Muster nehmen: Sie will eine Schnur mirflechten, Reich und bunt. wie dubis!, Dass ich sie der Liebsten schenke. Triigt sie die. so wirst du Üherall ror allen Schlangen Herr/ich scIJon gepriesen.

(Brasileira. 1825

SerpellTe. não te movas, l\'ão te mol'QS, serpente! Minha irmã quer copiar O padrão da tua pele; Quer trançar-me uma faixa, Em ricas cores, como as tuas, Que darei à minha amada. E quando a trouxer no cOlpO Serás, entre todas as outras Se/pentes, a mais louvada.)

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Trata-se, nesses poemas, de atividades humanas. Os comentári­os listados por Hoffmann-Hamisch, no entanto, dizem respeito quase que exclusivamente a plantas e rochas. Aí se tem o Brasil como reserva de tesouros naturais, como comucópia, como uma terra em que o ho­mem é apenas mais uma criatura entre outras.

Seres de cultura, seres de natureza

A literatura de viagem que Goethe leu e releu minuciosamente (incluindo autores como Spix e Martius, John Mawe, Wied-Neuwied e muitos outros) não se limita, porém, a descrição da natureza. Um outro lado do país aparece nessas obras, na apresentação de costumes e carac­terísticas dos habitantes - entre os quais contavam-se já então raros grupos indígenas - e de fatos econômicos e políticos, etc. Por que Goethe ignora esses outros aspectos, fixando sua atenção apenas sobre as ciên­cias naturais?

Como vimos, seu primeiro contato com o Brasil ocorreu através dos comentários de Montaigne sobre os povos nativos. Bem mais tarde, em sua correspondência com Martius, surge de novo o tema das canções indígenas, no âmbito de uma coleção de canções populares, que Goethe interessantemente denomina Nationallieder, mostrando o entranhamento da idéia de nação em seu pensamento:

As canções nacionais enviadas vêm aumentar minha coleção de forma muito característica: é impressionante o contraste entre as tiro lesas . alegres. rústicas. civili:::adas [gesittete}. com as bra­sileiras. cruas. sombrias. primitivas [genaturte}

Ao demarcar o território dos costumes [Sitten] como um espaço europeu, em contraposição ao da natureza [Natur] ,reservado ao Brasil, Goethe não faz mais que corroborar a perspectiva dos numerosos cien­tistas germanófonos que nas duas primeiras décadas do século XIX em­preenderam uma nova descoberta do Brasil, buscando catalogar sua fauna, flora e populações indígenas, em afã bastante justificado diante da des­truição perpetrada pelos colonizadores. As várias expedições que, a mando dos nobres, partiam para o Novo Mundo, estavam imbuídas da missão de anexar ao cabedal científico europeu todo conhecimento que dali pu­desse ser extraído. Não apenas com descrições e desenhos se procurou saciar essa fome de saber, mas também com o transplante para o velho continente de todo tipo de espécime vegetal, mineral e animal, sem exce-

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ção para o elemento humano. Os patronos dessas dispendiosas viagens intentavam com elas

dar mostra de seu esclarecimento, mas também enriquecer seus domí­nios com as raridades trazidas de longe, que vinham então povoar seus parques zoológicos, suas estufas e jardins, seus museus e gabinetes. Residualmente, alguma riqueza mais concreta era obtida através dos diamantes e amostras de ouro recolhidos pelos viajantes. A mais suntu­osa expedição desse tipo, saída de Viena no ensejo do casamento da Princesa Leopoldina com D. Pedro, trouxe para a coleção de curiosida­des do Imperador austríaco macacos de sete espécies diferentes, um gambá, pacas, capivaras, tatu, urubus, emas, papagaios, araras, periqui­tos, jabutis e um jacaré, além de diversos outros animais menos exóti­cos, inclusive um "galo cantor", de que Eschwege já dera notícia no seu Brasil, nom mundo, mas que morreu durante a travessia do Atlântico.

Em tudo imitavam agora os exploradores da Europa Central os primeiros viajantes franceses e portugueses que no século XVI voltavam dos trópicos carregados de curiosidades, apenas legitimados desta vez por uma postura científica de observação metódica e notação precisa que amainava a cobiça pelo exótico dos senhores que os financiavam.

O grão-duque Carl August de Saxe-Weimar, de quem Goethe era assessor direto, procurou também se inserir na moda do dia, encomen­dando mudas de plantas brasileiras e comprando diamantes trazidos por Eschwege. Inveja a coleção vienense, de que gostaria de obter ao menos as sobras:

Herr Schreibers bem que poderia nos enviar algumas migalhas caídas da real mesa do Imperador. Talvez von Eschwege venha de Kassel , onde agora está, e nos traga algo de surpreendente. (Carta a Goethe, 14 de janeiro de 1822)

Estou muito grato a Schreibers pelas sementes. Parecem ser es­pécies rotalmente Iloms; peço-vos que lhe agradeçais e pergun­tes, se não chegaram a Viena sementes da Araucaria excelsa e de Arrocarpus: O Senhor ,'on Eschwege afirma que já enviou por di"ersas \'e:es sementes dessa primeira para a Alemanha, a di­rasas pessoas. inclusive a seu irmão; mas ela nunca vingou. Quando surgir outra oportunidade de viagem ao Brasil , encomendai ao Sr. Schreibers um bom estoque de ambas. (Carta a Goethe. 21 de fevereiro de 1822)

Nesse mesmo ano de 1822, sem que o fato da independência seja decisivo ou ao menos devidamente percebido pelos alemães, a "febre

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brasileira" chega ao auge. Em Hamburgo, cidade portuária, não se fala de outra coisa. A canção Brasilien ist nicht weit mn hier ("O Brasil não é longe daqui", que Flora Süssekind toma como mote de seu livro sobre a fundação do narrador na ficção brasileira) soa em todos os cantos, obrigando os fabricantes de realejos a reformarem seus instru­mentos para tocá-la. Entre o povo em geral dominava ainda a idéia de uma terra pródiga em ouro e diamantes, um lugar onde os aventureiros poderiam "fazer a América", enfim, a Schlaraffenland das velhas can­ções populares, onde tudo era possível.

Mesmo a imagem do Brasil da classe letrada era montada de certa forma a partir da idealização, embora constantemente reajustada e refinada segundo as mais recentes descobertas e relatos dos \iajan­teso A pesquisa científica estava, nesse caso, mesclada com alta parce­la de curiosidade pura e com a mania da coleção característica da épo­ca, tomando mais importante a obtenção de amostras extraordinárias do que a mera descrição dos fenômenos naturais.

Em ambas as posturas, vemos um Brasil para consumo externo, sem existência política ou cultural própria, um país em que qualquer ramo produtivo ou criativo de atividade humana só vinha contrariar sua vocação anunciada de repositório de recursos e belezas naturais. Todo outro aspecto da experiência brasileira dos viajantes se resumia nas quei­xas acerca do desconforto, má alimentação, ignorância e preguiça que criavam obstáculos ao bom progresso da viagem.

A atitude de Goethe, no entanto, certamente companilhada com alguns de seus amigos mais próximos, entre os quais Eckermann e Frédéric Sorét, opõe-se à da maioria de seus contemporâneos no descaso pelo exótico aliado a um interesse permanente pelos relatos de viajantes sobre o Brasil. Embora fosse um grande leitor de viajantes em geral , como indicam os livros que retirou da Biblioteca de Weimar ao longo das três primeiras décadas do século XIX, seus repetidos empréstimos de livros sobre o Brasil indicam uma atenção menos voltada para o entretenimen­to do que para o estudo principalmente da botânica e da mineralogia. Eckermann, em suas Conversas com Goethe. não menciona uma única vez o país, embora relate uma visita de von Manius ao poeta. Mas pode­mos colher, aqui e ali, comentários deste que refletem sua postura com relação ao nosso país.

Em certa passagem do livro, Eckermann fala dos zoológicos par­ticulares dos nobres da época, cujas espécies exóticas lhe causam aver­são, provocando a seguinte resposta de Goethe: "A nós, os macacos e a gritaria dos papagaios são com razão antipáticos porque vemos esses animais aqui, em um ambiente para os quais eles não foram feitos". Este

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7 In Eckermann, J. P. Gespriiche mil Goethe. Zurique: Buchclub Ex Libris .3" ed., 1976. p.132.

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comentário pode ser entendido como necessidade de atribuir um lugar fixo para cada coisa, atitude extremamente conservadora, mas também como uma sugestão de que retirar um elemento de seu ambiente para satisfazer uma paixão pelo estranho é amesquinhá-lo, retirar-lhe a signi­ficação que possui dentro de seu contexto. Sua concepção de língua jus­tifica esta leitura, já que para Goethe um idioma se assenta sobre uma série de elementos7: solo, clima, modos de vida, costumes, relações soci­ais e até mesmo a constituição do país em que ela se desenvolve, não podendo, portanto, ser visto como fato isolado.

Mais interessante ainda é a maneira como Goethe passa dessa concepção de observância do contexto na interação com a alteridade à reflexão sobre a tradução, para cuja elaboração teórica seu conceito de literatura mundial tanto contribuiu:

F a: parte da natureza alemã apreciar tudo o que é estrangeiro em sua própria forma e se acomodar a suas singularidades. Isto e a grande maleabilidade de nosso idioma tornam as traduções alemãs fiéis e completas. (Eckermann, Gesprache, p.132/133)

Somente através da tradução, que se aproxima aqui da concepção benjaminiana, é possível de fato apreciar o estrangeiro. O olhar tradutor busca equivalências, sem impor a precedência de uma língua sobre a outra, de uma cultura sobre a outra. Sua qualidade maior é a docilidade, a capacidade de se acomodar às singularidades do outro.

A procura de uma pedra-irmã do quartzo flexível brasileiro, a que Goethe se dedicou com convicção, parece-me significativa como expres­são imagética da vontade de descobrir aspectos em comum nas mais diversas culturas. Essa vontade teria possivelmente levado o grande es­critor alemão, como acontece também com o conceito de Weltliteratur, a superar o ponto de vista colonialista. reconhecendo as diferenças sem que elas representem um empecilho às trocas com o estrangeiro.

Nesse sentido, a tarefa do tradutor era para Goethe de extrema importância. Ao contrário de outros escritores, inclusive nossos contem­porâneos, ele recebia com grande entusiasmo as traduções de suas obras, chegando às vezes a considerá-las mais completas, aqui também no sen­tido benjaminiano, de maior proximidade a uma língua ideal, quando traduzidas. Criador ele próprio, era-lhe evidente que a nova versão de uma obra literária sempre trazia consigo algo do tradutor e das particu­laridades da segunda língua. Um de seus poemas dá testemunho disso:

Jüngst pflückt ich einen Weisenstrauss Trug ihn gedankenvoll nach Haus,

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Da hatten von der warmen Hand Die Kronen sich alie zur Erde gewandt. Ich setzte sie in frisches Glas Und welch ein Wunder war mir das! Die Kõpfchen hohen sich empor, Die Bliitterstengel im grünen Flor, Und ali zusammen so gesund Ais stünden sie noch aufMuttergrund. 50 war mir's ais ich v.'undersam Mein Lied in fremder 5prache l'ernahm.

(Colhi há pouco um ramalhete Trouxe-o pensativamente Mas, ao calor de minha mão, Penderam as hastes para o chão. Depois, na jarra refrescadas, Que renascer admirável! Ergueram-se logo as corolas, Reverdejaram suas folhas, E tão sadias , por inteiro , Como se ainda em seu canteiro. Assim também, embevecido, Vi meu poema traduzido.)

Nesse poema comparam-se palavras com flores . Outra metáfora nos será mais útil aqui: a que aproxima as palavras das pedras. Trata-se de velhíssima metáfora, que podemos encontrar unida à primeira já no conto de fadas em que palavras são, via feitiço, transformadas ora em flores, ora em pedras, conforme o merecimento de quem as pronuncia. Repetidamen­te identificada com a palavra na poesia moderna, a pedra aparece também com força emblemática na história do herói nacional brasileiro, Macunaí­ma, que, pretendendo emular a coleção de pedras do gigante - estrangei­ro - Piaimã, cria para si uma coleção de palavrões. O texto de Mário de Andrade é estudado de forma magnífica por Eneida Maria de Souza em ensaio que se intitula, significativamente, A pedra mágica do discurso, onde se destrincham os jogos enunciativos que ali têm lugar entre signo e coisa, e nos quais a pedra ocupa os dois lados do campo.

É de pedra-signo e pedra-coisa que se trata igualmente nesse en­contro novecentista entre Alemanha e Brasil, com o qual aprendemos um pouco mais sobre o discurso colonial e vislumbramos a possibilidade de um discurso pós-colonial. Eschwege trouxera para Weimar diamantes

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do Brasil, que, ao cabo de muitas negociações, vendeu ao grão-duque Carl August. Goethe, macunaimicamente, não podendo ter uma coleção de pedras preciosas como a de seu mecenas, junta fragmentos de rocha de diversas procedências. Sua atenção se volta para o quartzo flexível que o viajante lhe dera.

Podemos, em perspectiva, ver essas duas espécies de pedras atu­ando em conjunto como mediadoras naquele encontro de certa maneira inaugural entre Brasil e Alemanha. O diamante, duro, infriável represen­ta aqui aquela inalienável singularidade, sem a qual não se pode conce­ber um idioma, um povo, um poema, um indivíduo. O itacolomito maleável está para a disposição de ver com os olhos dos outros e falar as palavras do estrangeiro. Os dois aspectos são importantes no encontro entre cul­turas; ambos estão presentes na visão de Goethe. Dessa visão pode emer­gir enfim uma imagem do Brasil que não tenha como pressuposto a pre­cedência de uma cultura sobre a outra.

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Goethe, um teórico da transnacionalidade

Eloá Heise Universidade de São Paulo

A partir do conceito de Weltliteratur de Goethe, pretende-se depreender a idéia subjacente de transnacionalidade. O autor entende "literatura universal" como uma manifestação que intermedia as literaturas nacio­nais, intercambiando seus valores ideais. Parte do pressuposto de que a poesia se manifesta como "patrimônio comum da humanidade", não sen­do exclusividade de nenhum povo, de nenhum tempo. Para Goethe, a mera oposição entre literatura nacional e literatura mundial seria uma ótica limitante e desprezaria o processo dinâmico de trocas interculturais entre as literaturas. Levando em consideração exatamente esse diálogo, Todorov classificou Goethe como o primeiro teórico da interação cultu­ral. A partir da discussào engendrada pelo crítico, percebe-se um outro matiz da idéia de Weltlirerawr. não apenas no sentido de uma "literatura universal", na qual se manifestam denominadores comuns às literaturas do mundo, mas como veículo ideal onde se percebem as transformações pelas quais cada literatura nacional passa em tempos de trocas universais.

O conceito de Weltliteratur -literatura mundial, um termo em­pregado por Goethe em 1827 quando de suas conversas com seu então secretário Johann Peter Eckermann (1791-1854), insere-se na obra publi­cada em 1848, o último livro dos três volumes dos Gespriiche mit Goethe in den letzten Jahren seines Lebens - Conversações com Goethe nos últimos anos de sua vida . Em 1836, o editor Brockhaus publica as

Conversações de Goethe com Eckermann, título sob o qual a obra pas­sou a ser divulgada, em dois volumes. Em 1848, vem a público o terceiro

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volume, do qual consta a conversa datada de 31 de janeiro de 1827, quando Goethe afirma ter chegado o tempo da "literatura mundial". Eckermann planejava ainda escrever um quarto volume de suas conver­sas com o mestre, mas morreu antes de realizar seu intento. Esta obra que, talvez pela sua extensão, ainda não mereceu uma tradução completa a partir do original no Brasil, foi avaliada por um leitor do calibre de N ietzsche como um dos mais significativos textos de prosa em língua alemã.

A palavra Weltliteratur, que em meio ao diálogo casual do grande clássico alemão não mereceu grandes teorizações, tomou-se, dentre nós, um conceito aplicado e inúmeras vezes citado no contexto dos estudos da literatura comparada.

Este é o caso, por exemplo, da nota explicativa inserida por Luíza Lobo em Teorias poéticas do romantismo. Nesta obra, com tradução, seleção e notas da pesquisadora, consta: "Literatura mundial, Weltliteratur, Word Literature, é o termo proposto por Goethe para o campo do saber que hoje constitui a Literatura Comparada" (Lobo: 1987, p.32). Pela explicação fornecida por Luíza Lobo, poder-se-ia entender o conceito de Weltliteratur em equivalência à idéia de literatura comparada, numa acep­ção de "literatura geral". Pode-se, contudo, entender também literatura comparada como um recurso analítico e interpretativo, um ato lógico­formal empregado em estudos críticos. Nesse sentido, literatura compa­rada e Weltliteratur implicariam um processo dinâmico de trocas interculturais.

Percebe-se , através de um exemplo casual, que o termo Weltliteratur se presta a diferentes interpretações, sendo, portanto, ne­cessária a citação do próprio excerto no qual a palavra se encontra inserida, para termos uma base concreta de argumentação.

Quartafeira, 31 de janeiro de 1827. ( ... ) "Cada l'e:: me parece mais". Goethe continuou. "que a po­

esia é patrimônio comum da humanidade e que todos os lugares e em todos os tempos se manifesta em centenas de pessoas ( ... ) o dom poéti­co não é assim tão raro e não há ra::ão para nos orgulharmos quando compusermos uma poesia boa. Nós, os alemães, se não olharmos para fora do nosso apertado ambiente, caímos facilmente nesta ignorância pedante. É por isso que gosto de me informar do que se passa nos outros países e aconselho a todos a que procedam assim. Literatura nacional não quer hoje dizer coisa muito importante: chegamos ao momento da literatura mundial e todos devemos contribuir para apres­sar o advento de tal época. Nesta apreciação das coisas estrangeiras não devemos cair na limitação a uma só coisa e considerá-la como

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1 Os números entre parênte­ses que aparecem citados no corpo do texto correspondem ao número da página da obra: Eckermann. J. Conl'crsaçôes de Goethe com Eckermann. Irad. de Silveira. L. Porto: Li­vraria Tavares Martins, 1947.

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modelo depois. Não devemos circunscrever-nos ao chinês ou ao sérvio, a Calderon ou aos Nibelungos: antes, para satisfazermos a nossa ne­cessidade de ter por perto um modelo, recuemos antes até os gregos em cujas ohras a beleza humana está bem expressa. Todo o restante deve ser considerado só sob o aspecto histórico e dele tirar-se-á somente o que tiver de hom, quando for possível (161 ).'

Goethe parte da idéia de que a poesia não se restringe a essa ou aquela literatura, mas manifesta-se como "patrimônio comum da huma­nidade", não sendo exclusividade de nenhum povo, de nenhum tempo. Estas observações do mestre têm origem em um comentário ingênuo de Eckermann que, em relação a um romance chinês com o qual Goethe se ocupava naquele momento, afirma: "Um romance chinês deve ser uma coisa muito estranha" (159). Classificando a limitação de uma perspec­tiva endógena à literatura que nos é própria de "ignorância pedante", Goethe mostra que, sob esta ótica limitante, teríamos apenas a mera oposição dos conceitos de literatura nacional e literatura mundial.

Portanto, numa primeira "tradução", Weltliteratur seria a expres­são de um "patrimônio comum da humanidade", espécie de biblioteca de obras significativas, das quais se pode extrair o bom e o belo.

Em outro trecho, parte das conversas datadas como princípio de março de 1832, portanto poucos dias antes de sua morte, Goethe expres­sa uma espécie de "testamento" político-poético, onde reafirma a sua crença no bom, no belo e verdadeiro como única pátria da poesia: uma poesia livre, atemporal e espacialmente indeterminada:

Quando um poeta quer exercer ação política, tem de se filiar num partido, e logo que o faz, está perdido como poeta. Tem de dizer adeus à liberdade do espírito, à imparcialidade de visão e, em l'ez delas enterrará na cabeça até as orelhas o capuz da into­lerância e do ódio cego. O poeta amará como homem e cidadão a pátria. mas a pátria da sua virilidade poética e da sua ação poética é o Bom, o Nobre e o Belo, coisas que não estão limita­das a uma certa nação ou uma certa pro\'íncia, mas que ele co­lhe e forma onde quer que as encontre (318/19).

Para colher e formar a pátria poesia é necessário, contudo, tam­bém buscar o outro, a informação "do que se passa em outros países". Nesse sentido, o conceito de Weltliteratur se amplia para abarcar a idéia de interação das literaturas entre si. É preciso olhar "para fora do nosso apertado ambiente" como forma de ampliação de horizontes e de troca profícua de experiências,

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Essa idéia de intercâmbio de bens culturais entre as nações subjaz em outras manifestações teóricas de Goethe, quando o autor em uma obra como Schriften zur Literatur-Escritos sobre literatura detém-se em analisar o processo tradutório, uma atividade que, por definição, pres­supõe a mediação e interação entre duas culturas. Goethe caracteriza,

então, o tradutor como um "mediador nesse geral comércio espiritual", afirmando, ainda, que a tradução "permanece como uma das transações mais importantes e dignas nas relações gerais do mundo (Welfl'erkehr)" (Goethe, apud Milton, J.: 1997, p.63). A menção de idéias ligada ao conceito de tradução parece-me válida para explicar, a partir do jargão utilizado pelo próprio poeta, que, quer se trate de Weltverkehr ou de Weltliteratur, essa teoria e prática surge como conseqüência de uma ci­vilização movida sob a égide do comércio mundial. A alusão a este con­texto pode apontar para uma das origens do conceito Weltliteratur. Não se pode esquecer de que estamos em uma época em que as cidades da Alemanha setentrional perdem sua posição de importância para centros comerciais holandeses e ingleses e o comércio internacional transfere-se do Mediterrâneo para o Oceano Atlântico.

Um outro ponto de referência para a gênese da idéia de uma litera­tura mundial está no abrangente espectro de interesses literários de Goethe. Se, desde a juventude, o autor propunha-se a estender seus conhecimen­tos para além da literatura alemã, familiarizando-se com obras da litera­tura latina, grega, inglesa e francesa, a partir de 1820 empenhou-se em abrir seu mundo rumo ao Oriente e a conhecer obras importantes da literatura hindu e chinesa. Lia e interessava-se pelos jovens talentos lite­rários de sua época em outros países, como Byron, Walter Scou, Mérimée, Victor Hugo, Manzoni, só para citar alguns dos nomes mais importantes que aparecem nas Conversações com Eckermann. De forma cada vez mais incisiva defendia, em sua revista Über Kunst llnd Altertum - So­bre Arte e Antigüidade, a tese de que a criação poética é "um patrimônio comum da humanidade". Nesse sentido, afirma o mestre: "o vasto mun­do, tão expandido quanto ele seja, é sempre apenas uma pátria amplia­da" (Goethe, apud Boerner: 1964, p. 132). A idéia de uma literatura mundial surge da crença na existência de um constante processo de efei­tos recíprocos entre as diversas literaturas nacionais. Levando em consi­deração exatamente esse diálogo com o outro que Todorov, em sua obra The moraIs ofH istory, 1991, classificou Goethe como o primeiro teórico da interação cultural. Para externar tal julgamento, Todorov baseou-se no conceito de Weltliteratur como um campo privilegiado que mantém, de forma efetiva, aberto o "caminho da significação compartilhada" .

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Goethe, um teórico da transnacionalidade 81

A partir da discussão engendrada por Todorov, percebe-se um ou­tro matiz da idéia de Weltliteratur, não apenas no sentido de uma "litera­tura universal", na qual se manifestam denominadores comuns às litera­turas do mundo. O elemento vital da Weltliteratur encontra-se nas trans­formações pelas quais cada literatura nacional passa em tempos de tro­cas universais.

Ao contrário do que possa parecer a uma primeira vista, entender uma manifestação literária como Weltliteratur não significa abrir mão de sua especificidade como literatura nacional, significa, antes de tudo, um mergulho no nacional até que se encontre o que há nele de universal.

De acordo com esse conceito de Goethe, pode-se entender como Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, alcançou repercussão mundial. Esse romance, que, durante muito tempo, foi analisado apenas como um nítido representante da literatura regionalista brasileira, é hoje reconhecidamente considerado uma manifestação do modernismo inter­nacional. Esta é, por exemplo, a opinião de David J ackson, professor na Universidade de Yale, que numa entrevista falou sobre a recepção de Rosa nos Estados Unidos:

A impressão que tenho é que ele junta várias das principais e melhores tendências do modernismo em geral. Ele tem todo um lado de experimentação lingüística que nós observamos em J oyce e Pound - aquele gosto não só pela palavra, pela etimologia, pela complexidade da própria forma verbal ( ... ) Ele junta a isso, porém algo que em Joyce não encontramos, que é o lado folcló­rico, primitivista das vanguardas ( ... ) E isso entra realmente por meio do elemento telúrico, da terra, da região dele, das práticas lingüísticas regionais. Guimarães une estas duas grandes ten­dências modernistas de uma maneira genial e pessoal. (Folha de São Paulo, 30/06/96, p. 6)

Este romance de Rosa também faz do autor um mestre da moderni­dade pela abordagem de uma visão global da existência onde se fundem a natureza, o bem e o mal, o divino e o demoníaco, o uno e o múltiplo.

Refletindo no sentido inverso e convergente no que tange ao con­ceito de Weltliteratllr , Rosa. em um extenso depoimento sobre literatura - entrevista de 1965 concedida a Günter Lorenz, publicada no volume 1 da Ficção completa do autor, Rio de Janeiro, 1994 -, aponta o espe­lhamento do universal no nacional, mostrando existir entre ele e Goethe uma interlocução humanística.

Goethe nasceu 110 sertão ( ... ); ele era , como os outros a quem admiro, um moralista. um homem que vivia com a língua e pel1-

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sava no infinito. Acho que Goethe foi, em resumo, o único grande poeta da literatura mundial que não escrevia para o dia, mas para o infinito. Era um sertanejo (GR 1, 49).

o conceito Weltliteratur não se concretiza, pois, apenas na dire­

ção de buscar no nacional o que há de universal, mas também no sentido inverso: em meio ao universal, resgatar o que existe de nacional. Na citação acima, a postura de Rosa, assumida diante de uma cultura, para ele estrangeira, é a de reconhecer nela o que há de universalmente huma­no e depois tentar incorporar esse aspecto àquilo que é próprio da sua cultura. Abrir-se para uma outra cultura estrangeira é, nesse nexo, não se entregar, mas, em última instância, receber. Falando em outros ter­mos: a vivência e a convivência com uma cultura estrangeira tornam-me mais cônscio de minha própria identidade, ao mesmo tempo em que ser­vem de força motriz para essa minha identidade, colocando-a em movi­mento. Citando a conclusão de Todorov: "As coisas não são universais, mas os conceitos podem ser; a gente não deve simplesmente confundir os dois, assim o caminho da significação compartilhada pode permanecer aberto". (Todorov: 1991, p.16). Em outras palavras: o universal intera­ge com o nacional, torna o nacional mais atuante, fazendo, por sua vez, com que o nacional se abra rumo ao universal.

Note-se, contudo, que esse conceito de Goethe não surge desvin­culado de seu tempo e do espírito de sua época, de seu Zeitgeist. Como afirma o próprio autor em conversa com Eckermann datada de 1 Q de abril de 1831,

( ... ) ninguém em arte, se fa: por si próprio. Como se o homem devesse a si próprio outra coisa que não fosse a estupide:.' Mes­mo se o artista não te\'e mestre célebre. pelo menos se beneficiou do contato com mestres excelentes de cujos ensinamentos (. .. ) formou sua personalidade arTíSTica" ~ 306/307 l.

Não podemos esquecer que Goethe pertence à geração que se de­senvolve, como a intelligentsia alemã de sua época. desde a rebeldia da fase Sturm und Drang até uma atitude mais consciente e moderada, mesmo que mais resignada, do período clássico.

Talvez, para entender melhor esse classicismo alemão, pode-se pensar na fase clássica de Herder, Goethe e Schiller como uma Renas­cença alemã tardia, o equivalente ao classicismo francês. A diferença, contudo, entre os clássicos alemães e os representantes do classicismo em outros países reside no fato de que, na Alemanha, o classicismo consubstancia-se como síntese das tendências classicistas e românticas.

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Goethe, um teórico da transnacionalidade 83

É por isso que Goethe, fora da Alemanha, é por vezes considerado um autor romântico. Um exemplo dessa combinação inusitada entre clássi­co e romântico é a relação dos clássicos alemães com Rousseau. Eles seriam inconcebíveis sem a concepção da volta à natureza, ao mesmo tempo em que se opunham à hostilidade do filósofo francês perante a cultura. A arte seria o caminho através do qual se poderia obter a posse simultânea da natureza e da cultura.

No fundo, Goethe deve ser considerado como um representante do Iluminismo na Alemanha, mesmo que não se possa qualificá-lo como um racionalista na acepção literal do termo. Apesar de inclinações aristo­cráticas, manteve-se um defensor intransigente da liberdade de pensa­mento. Em consonância com as classes bem-sucedidas, Goethe compor­tava-se de forma prudeme e moderada, afastando-se do exacerbado indi­vidualismo. mostrando, em sua fase clássica, uma tendência para o "tí­pico, o universalmente válido, o regular e normativo, o permanente e o intemporal" (Hauser: 1995, p.626).

Como conseqüência desse desenvolvimento, na última fase de sua produção, afasta-se de uma abordagem puramente pessoal de literatura, para chegar a uma concepção supranacional e social de arte. Esse é, por exemplo, o caminho percorrido por seu herói, Wilhelm Meister, que na busca por satisfação individual chega ao reconhecimento de que o ser humano precisa se auto limitar e percorrer o trajeto que leva da auto­realização para a auto-superação, rumo à humanidade. Eis o verdadeiro sentido da Bildung, da formação, segundo a concepção do Goethe clás­sico. Seu ideal educacional só encomra sentido na cultura da sociedade como um todo: "Só todos os homens reunidos constituem a humanida­de", como se afirma no Wilhelm Meister.

Dentro deste contexto, é compreensível o surgimento de um con­ceito como o de Weltliteratur.

Mesmo que Goethe tenha sido o primeiro a desenvolver o conceito de literatura universal, a idéia já estava subjacente na cosmovisão, na Weltanschauung, do Iluminismo. O Século das Luzes conquistou urna elevada concepção de igualdade através da filosofia do liberalismo. O individualismo que se manifesta na Ilustração baseia-se na primazia da razão, substrato comum a todos os homens. Por mais que os indivíduos sejam diferentes entre si por causa de suas culturas, de seus lugares de origem, eles permanecem essencialmente iguais por serem todos dotados de razão, o fundamento da dignidade humana.

A partir desses pressupostos, é fácil entender o diálogo europeu que se estabelece entre as nações civilizadas do continente a partir da segunda metade do século XVIII. A literatura de expoentes do Iluminismo

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como Voltaire, Diderot, Locke, Rousseau ou Lessing é a expressão de uma comunidade européia, a consonância dialógica de várias vozes, por­

tanto, Weltliteratur no sentido mais estrito da palavra. Uma literatura mundial, entendida como concepção mais ou me­

nos homogênea do mundo intelectual, já existira em outras épocas, como por exemplo na Idade Média, quando o índice de universalidade era con­ferido pela língua comum, o latim, patrimônio cultural sob o domínio do clero. No barroco e rococó impôs-se a uniformidade a partir da língua francesa, reino dos círculos palacianos aristocráticos. Mas só no século XIX consolida-se uma concepção de universalidade em termos democrá­ticos e modernos. Uma universalidade que devemos hoje contrapor à idéia preponderante e assustadora de nossos dias, a globalização.

Hoje, no mundo da globalização, estamos sujeitos às regras do mercado; nossas especificidades são niveladas para se pautarem pela força motriz do desempenho e do ganho. A universalização, em contra­partida, pressupõe o reconhecimento de uma cultura plural e preconiza a união e o contato entre povos no sentido de troca recíproca de bens cul­turais que, em última instância, levariam a um melhor conhecimento de cada um desses povos. Um novo conhecimento do outro leva a um novo conhecimento de mim mesmo, potencializando esse movimento rumo ao infinito. Nesse sentido, a universalidade, que parece uma utopia, esboça­se não como fato consumado, mas sob forma de projeto.

Referências bibliográficas BOERNER, Peter. Johann Wolfgang von Goethe in Selbst:eugnissen und Bilddoku­

menten. Reinbek bei Hamburg, Rowohlt, 1964.

ECKERMANN, Johann Peter. Conversações de Goethe com Eckermal/ll. Trad. Luís Silveira. Porto: Livraria Tavares Miranda, 1947.

HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes. 1998, p. 497-726.

LOBO, Luíza. Teorias poéticas do Romantismo. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1987 (Série Novas Perspectivas, 20).

MILTON, John. O poder da tradução, São Paulo: Ars Poetica: 1997.

ROSENFELD, Anatol. Autores pré-românticos alemães. São Paulo: E.P.U.,1992.

TODOROV, T. The morais of History, Minneapolis: University of Minnesota Press, 1991.

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I Lisa Block de BEHAR. ".\dviertendo allector"'ln: AI m,lrgen de Borges. Buenos AIres, Siglo Veintiuno Edito­res. 1987.

De traduções, tradutores e

processos de recepção I iterá ria

Tania Franco Carvalhal Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Se os anos 60 do século que acaba de findar se caracterizaram pelo desenvolvimento da reflexão teórica sobre o literário, com uma intensifi­cação que repercute ainda no decênio seguinte, um dos campos benefici­ados por esta tendência foi, certamente, o da tradução literária. Basta evocarmos um clássico do gênero, Les problemes théoriques de la traduction, de Georges Mounin (1963), para nos darmos conta da com­plexidade desses estudos e vermos como se hesitava então entre a no­ção do "intraduzÍvel" e seu contrário.

Nessa época, sabe-se, um grupo de estudiosos da Universidade de Constanza, reunidos em torno a H.-R. Jauss, desloca a reflexão do autor (emissor) para o leitor ou o público (receptor), reabilitando a im­portância da participação deste último na criação literária.

A noção de "Rezeptionsasthetik" ou estética da recepção ganha impulso e, como observa Lisa Block de Behar, esta noção "reconoce que la presencia dinámica de la historia se interpone entre la literatura y su estudio, entre la obra y ellector pero, desde el momento en que no puede eludirse, la asume".1 Isto está implícito na provocação contida no título da

conferência de Jauss na Universidade de Constanza, o hoje clássico estu­do "A história literária como um desafio à teoria literária" (1967). Tam­

bém os conceitos de "horizonte de expectativa" e de "leitor implícito"

(W. Iser) introduzem novas perspectivas na orientação crítica e nos estudos de literatura comparada, como assinalou Paul Cornea ao dizer

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que "la vogue des théories de la réception a bouleversé les études consacrées aux sources"2.

Poderíamos igualmente observar que essas teorias da recepção conjugam o estético com o histórico e em lugar de uma história das

formas propõe uma história de efeitos.

O desenvolvimento dos estudos relativos à tradução como disci­plina institucionalizada se produz neste contexto teórico-crítico no qual toma-se impossível dissociar tradução de disseminação e de recepção de uma obra.

A par de sua função de instrumento a serviço de um acesso a outras literaturas, a tradução adquire um estatuto próprio e ganha, no campo das pesquisas comparatistas, um lugar de relevo. Susan Bassnett em seu livro Comparative literature. A criticai introduction (1991) insiste na centralidade desses estudos em literatura comparada, fazendo convergir de tal maneira as duas orientações que, em sua perspectiva, o comparatismo se encontra quase sinônimo de uma teoria da tradução.3

Em estudo posterior, intitulado "What is comparative literature?" (1995), cujo título em francês - "Lire en frontalier" (1996)4 - é

esclarecedor como orientação metodológica, George Steiner vê a literatu­ra comparada como uma herdeira de Babel e, em conseqüência, o estudo das traduções toma-se indispensável e prioritário neste domínio da inves­tigação literária. "Cette affaire de traduite a donc la primauté en littérature comparée' - escreve ele - 'et c' est ce qui la relie à ce que je considere comme un deuxieme point de mire: la dissémination et la réception des oeuvres littéraires à travers temps et lieux."5 Assim, para Steiner, a defi­nição do campo de pesquisas comparatistas se faz no âmbito dos estudos de tradução associados aos de recepção literária, como anota:

Tout ce qui se passe entre les langues. entre les textes de périodes historiques ou de formes littéraires différentes. les interactions complexes d'une tradllction nOll\'elle et de celles qui l' ont précédée, l' ancienne mais lOlljollrs \'imllle ri\'alité de la lettre et de l' esprit, tout ce commerce eSl hien celui de la littérature comparée, Étudier, par exemple. la grosse centaine de traductions anglaises de l'lliade et de l'Odyssée, c' est connaftre par e.xpérience l' évo/ution de la /angue anglaise (on devrait dire : des langues anglaises) de Caxton à Walcott: c' est pénétrer les rapports successifs et pélpetuellement changeants de la sensihilité hritannique et des représentations de l' ancien monde: c' est ohserver Pope qui lit Chapman et Dryden eux­mêmes lecteurs d' Homere et Pope lui-même lisant Homere comme à travers te brillant cristal de Virgile,Ó

Paul CORNEA. "La Iittéra­lure en Roumanie", In: Com­

parafive liferatllre world­

wide: isslIes and mCfhods/La

lirrérafllre ('omparée dans le

monde: qllesfions Cf métho­

des. I Org. Tania F. Carvalhal], Porto Alegre, L&PM, Vitae, AILC, 1997, p.125.

3 Susan BASSNETT. Compara­

five IÍferafllre. A criTicai ÍnfrodllcfÍon. Oxford, Black­well , l991.

George STEINER. Op. cito Oxford , Clarendon Press, 1995. Em francês, PassÍons impllnies . Paris, Gallimard, 1996,

5 George STEINER, p.133.

6 George STEINER, p. 132.

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7 George STEINER, p.135.

De traduções, tradutores e processos de recepção literária 87

Nesta transcrição, pelo menos três elementos se esclarecem: a literatura resulta de tramas intertextuais, a literatura comparada se defi­ne pela mobilidade mesma que caracteriza seus estudos, ocupados com passagens, intercâmbios, migrações e trocas (comércio, diz Steiner), e a tradução se valida como sinônimo de leitura. Estudá-los significa en­tender como determinados autores foram lidos e o que estas leituras dizem sobre os povos. as línguas e as culturas que as receberam. Para Steiner, tradução, disseminação e recepção literárias estão ainda natu­ralmente associadas porque as questões que um comparatista propõe a si mesmo são sobretudo aquelas que intentam saber com precisão quem leu um certo livro, quem o pôde ler e quando. Assim, observa ele: "De quels extraits, de quels comptes rendus, de quelles citations et de quelles traductions des idéalistes allemands Coleridge a-t-il pu disposer?" Ou, mais adiante: "combien de temps fallut-il aux traductions-imitations françaises de Byron pour atteindre le Caucase?" Tentando definir a tarefa do comparatista, Steiner acentua o fato de que a cada etapa de seu trabalho, "il devra prendre ses plus hautes responsabilités quant à ces questions de traduction et de dissémination"7 .

Deste modo, graças a essas aproximações, não podemos deixar de reconhecer, hoje, que as traduções são elementos importantes nos processos de circulação literária e que devem ser estudadas em si mes­mas e nas diferentes formas de sua contribuição, como concretização possível de outros textos e de outras culturas. Trata-se, sem dúvida, de um recurso indispensável à escrita da história literária, pois que a análise das traduções, no seu conjunto, possibilita acompanhar a evolução das formas e dos efeitos, dos gêneros e do gosto, através da penetração tardia de idéias, de estilos e de atitudes críticas que não são as nossas.

Além disso, como estratégia e lugar das mediações interliterárias, a tradução é considerada atualmente como um recurso essencial nas rela­ções com o Outro. O tradutor é um intermediário exemplar que toma possível o conhecimento não apenas de uma literatura engendrada em outra língua mas também de costumes e dados culturais veiculados pelo texto traduzido. Dessa maneira, ele facilita contatos inesperados, permite o conhecimento de procedimentos e de formas literárias que recebem freqüentemente uma acolhida imprevista da literatura/cultura de chegada e que trazem consigo novas orientações e novas tendências.

Mas há neste contexto um outro dado fundamental. Nas refle­xões mais recentes sobre a teoria da tradução, esta é considerada como um fator determinante na configuração da literatura mesma da língua na qual traduzimos. Isto porque ela exerce forte impacto sobre a literatura de chegada, trazendo consigo orientações e soluções novas ao literário.

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Trata-se do que Manfred Schmeling pensou sobre a recepção produti­va (1984:75), observando que todo tipo de influência "ne s'explique plus, désormais, causal-génétiquement d'une oeuvre à l'autre, d'un auteur à un autre, d'une nation à une autre" mas que ela se integra em um "procédé de réception complexe auquel participent trois instances: l'auteur, I' oeuvre, le public".H

Pode-se também compreender a importância das traduções na organização de diferentes sistemas literários através das reflexões de Itamar Even-Zohar (desde 1978)9 e as que José Lambert explicita em "Plaidoyer pour un programme des études comparatistes: littérature comparée et théorie du polysysteme"lO. Os autores integram respecti­vamente os grupos de pesquisa das universidades de Tel Avive de Louvain e estudam as inflexões das traduções nas literaturas de chega­da. Even-Zohar desenvolveu a noção de polissistema a partir das con­cepções dos formalistas russos (Poetics today, 1979 e 1990) e Lambert explora a descrição teórica do sistema literário em inúmeros trabalhos.

Do mesmo modo, Yves Chevrel no texto "Le texte étranger: la littérature traduite" (1989) do Précis de littérature comparée, que or­ganizou com Pierre Brunel, observa que "Le systeme français du XVIII e siecle est profondément modifié par les textes traduits", sublinhando que a França das Luzes traduziu muito e foi pioneira em várias iniciati­vas, fornecendo material para novas traduções, em outras línguas, do texto que ela tinha inicialmente traduzido. Esse fato evoca-nos o suces­so das traduções de textos gregos nas edições "Les belles lettres", mui­to difundidas no Brasil, e como muitos textos de Dostoiévsky e de outros autores russos chegaram a alguns de nossos tradutores pela versão em francês. De acordo com Chevrel, nesta perspectiva seria necessário perguntar em que medida os tradutores franceses foram eles próprios influenciados por esse papel de intermediários europeus que lhes coube representar. De certo modo sabiam que os textos por eles difundidos conteriam elementos de sua própria cultura e veiculariam também da­dos da experiência de cada um.

Vê-se nessas breves alusões que o trabalho do tradutor adquire pouco a pouco outras dimensões. De um lado, é ele quem estabelece as relações, quem toma mais fácil o conhecimento, a aproximação de po­vos e culturas, a quem é dado, por vezes, selecionar os textos a serem lançados na outra cultura, a quem, em suma, é entregue a tarefa de transpô­los. De outra parte, o tradutor interfere diretamente na produção literária de um país na medida em que ele recria, segundo um modelo anterior, formas e idéias que é preciso inserir na sua própria tradição. É um aspec­to que se pode identificar na repercussão de um movimento como o da

R Manfred SCHMELlNG. Te­

oria )' praxis de la literatura comparada. Barcelona, Alíà, 1984.

, Itamar EVEN-ZOHAR. The

position of translated lileralure within lhe lilerary polrs)'stem. Tel Aviv, 1978.

10 José LAMBERT. In: Actes

du Congrés de la SFLGC. Montpellier, 1980. Do mesmo autor, "Traduction" . In: Théorie lifféraire. Problemes ef perspecfives. IOrg. 1.

Bessiere, E.Kushner, D. Fokkema e M.Angenot]. Pa­ris, PUF, 1989.

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11 André LEFEVERE. In: tram!ation. history &

culture. I Ed. Susan Bassnet! and André Lefevere I London, Pinter, 990, p.27.

De traduções, tradutores e processos de recepção literária 89

poesia concreta na literatura brasileira, cuja atuação, além da própria pro­dução vanguardista, associou traduções e reavaliações de autores esque­cidos e marginalizados, interferindo positivamente na nossa literatura por nela introduzir autores e orientações revolucionárias. Como esclarece Haroldo de Campos em "Poesia de vanguarda brasileira e alemã", de A arte no horizonte do prol'ól'el, "no empenho de criar a sua tradição­ou a sua antitradição - e de retirar da custódia timorata dos historiado­res da literatura o vivo do passado literário para restabelecer as veredas

escamoteadas duma evolução de formas cujo vetor fosse a criação, a poesia concreta brasileira - sintonizada em suas preocupações com a jovem guarda da poesia alemã - selecionou ainda, para a divulgação no Brasil, autores como um Christian Morgenstem e um August Stramm, além dos pintores-poetas Kandinsky e Klee"( 1977: 169).

André Lefevere em "Translation: its genealogy in the WesC', co­

menta que a tradução é, em grande parte, responsável pela imagem de um texto, de um escritor e de uma cultura. A certa altura, anota:

Together with historiography anthologi-::.ing and criticism ir prepares works for inclusion in the canon of world literature. It introduces innovations into a literature. It is the main medium through which one literature influences another. It can he potentially suhversive and it can he potentially conservatil'e l' .

o caráter subversivo da tradução assinalado por Lefevere acres­centa ainda outro sentido à figura do tradutor, reconhecendo-lhe uma importância não considerada antes e acentua sua atuação no sistema

literário como sendo potencialmente positiva ou negativa, responsável por avanços ou retrocessos em seu desenvolvimento.

Na medida em que a literatura traduzida age sobre a literatura nacional, estabelecendo com ela um processo de trocas e nela injetando

elementos novos, o tradutor interfere na própria tradição literária. Nes­sa mesma perspectiva, Lefevere observa ainda que "translation is one of the most obvious forms of image makings of manipulation, that we have" (990:26-7).

Da consciência deste papel, portanto, se conclui que o estudo das traduções pode nos dizer muito não apenas sobre o universo literário nas

relações entre as literaturas, mas também sobre o mundo no qual vivemos.

Tradução e tradição

"Translation is not only the appropriation of previously existing textes in a mode of vertical succession; it is the materization of our

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90 Revista Brasileira de Literatura Comparada, nº 5, 2000

relationship to otherness, to the experience - through language - of what is different", escreve Sherry Simon no ensaio intitulado "The language of cultural difference: figures of alterity in canadian translation"12 , atrain­

do nossa atenção para como são respeitadas a alteridade e as particula­

ridades nas traduções, o que tem muito a ver com as normas históricas

e institucionais que dominam as tradições nacionais, mesmo que elas não sejam eternas.

Um dos primeiros aspectos a sublinhar é a maneira como o tradu­tor entra em contato com a cultura a que pertence o texto que ele deve traduzir. Para alguns trata-se de um procedimento fácil, de acordo com

as experiências particulares que lhe permitiram viver em um determina­

do país ou de visitá-lo com uma freqüência capaz de assegurar-lhe certa intimidade com sua cultura. Para outros, a experiência é sobretudo livresca, construída à distância e sempre por intermédio de um terceiro. É o caso dos tradutores que se utilizam de uma língua estrangeira para

transpor de outras que não conhecem. Há, pois, o uso de uma media­

ção. O tradutor vale-se de uma tradução anterior, em língua e cultura que ele conhece bem e sobre esta base organiza seu trabalho.

Excelentes tradutores adotaram este procedimento para traduzir de línguas que conheciam pouco e algumas vezes o talento individual, a formação literária, o domínio integral da língua de chegada permitiram que o trabalho resultante tivesse qualidade apesar de equívocos que só seriam evitados e dirimidos pelo confronto com o texto em língua original.

Por outro lado, há que se ressaltar as dificuldades das traduções que lidam com texto de tradições literárias diversas. No texto final, há urna superposição de tradições. O distanciamento cultural insere no tex­

to que resulta certos componentes que não se encontravam no texto

original e o transformam. Suprimindo alguns elementos que seriam desconhecidos ao leitor,

introduzindo outros que lhe são familiares, o tradutor facilita sua aceita­ção, possibilitando uma acolhida mais imediata. Nesse sentido, a observa­ção de José Lambert é pertinente e esclarecedora quando diz que "chaque

culture et chaque littérature (re)formulent, à leur façon, la traduction et ses variantes" (1995: 192). Parafraseando o autor, é possível dizer que os tradutores (re)formu1am, a seu modo, a própria tradição.

É o que observou Antonio Candido no prefácio à tese pioneira em estudos de recepção literária entre nós de Onédia Célia de Carvalho Bar­bosa, intitulada Byron no Brasil. Traduções, defendida na Universidade de São Paulo, em 1969Y Ali, a autora realiza o estudo das traduções como elemento definidor da recepção de Byron no Brasil. Ela o faz em duas etapas: inicialmente, identifica os tradutores e as traduções no perí-

12 Sherry SIMON. In:

Refhinking franslation

(discours e, suhjecfivity,

ideologyi. fEdo Lawrence Venutil, London, Routledge, 1992.

13 Onédia Célia de Carvalho

BARBOSA. Op.cif. São Pau­lo, Ática, 1975.

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De traduções, tradutores e processos de recepção literária 91

odo de 1830 a 1911 ; logo, desenvolve a análise crítica dessas traduções. Onédia segue duas orientações teóricas em literatura comparada que estavam em vigor: a de Etiemble, em Comparaison n' est pas raison (1963), e a de Harry Levin, sobretudo em Reji-actions (1966), ambos adeptos do estudo de traduções. Ela combina dois métodos, a pesquisa histórica e a reflexão crítica ou estética, aliás complementares, segundo Etiemble. A classificação cronológica das traduções permite à autora determinar com precisão o desenvolvimento histórico das influências literárias e a repercussão de Byron na literatura brasileira. A análise

crítica, por outro lado, enfatiza as soluções encontradas pelos tradutores e favorece o estudo comparado dos textos traduzidos.

No prefácio do livro, Candido sublinha a importância de pesqui­sas deste tipo para os estudos de literatura no Brasil, no âmbito dos quais não se pode evitar a orientação comparatista considerando as re­

lações que nossa literatura sempre manteve com as da Europa. Ao comentar a evolução que a autora estabelece a partir das

traduções iniciais de cunho arcádico para as de cunho romântico, escre­ve Candido: "Estas (as de cunho romântico) mostram como os textos de Byron foram ajeitados pela sensibilidade local, que de um lado exagerou os seus traços, e de outro escolheu neles o que se ajustava melhor à moda literária daqui. Neste sentido, é fundamental o estudo sobre a opção de Francisco Otaviano, que empurrou os brasileiros para um cer­to Byron (o melodramático, o folhetinesco), enquanto ficava quase es­quecido o Byron melhor, das sátiras e do Don Juan".

Fica claro então que uma tradução pode alterar o texto original sob influência do contexto da literatura de chegada. Bem mais tarde, analisando as traduções de Baudelaire no Brasil, em A educação pela noite e outros estudos (1987), Candido voltará a insistir neste dado, colocando em evidên­cia como os tradutores do poeta francês acentuaram certos aspectos de sua obra em detrimento de outros, em escolha dirigida pelas tendências de época ou as carências que eles reconheciam na literatura brasileira.

A possibilidade que tem uma tradução de repercutir efetivamente na literatura que a acolhe, nos faz lembrar o que diz Roland Barthes em S/Z, o estudo sobre a novela Sarrasi ne, de Balzac, publicado em 1970. Em certa passagem. lê-se: "11 y a d'un côté ce qui est possible d'écrire et de I'autre ce qu ' il n 'est plus possible d 'écrire: ce qui est dans la pratique de l'écrivain et

ce qui en est sorti: quels textes accepterais-je d'écrire (de ré-écrire) de

désirer, d'avancer comme une force dans ce monde qui est le mien?".

Retomando e transformando as palavras finais do autor, diríamos

"que textos aceitaria eu tradu:ir para lançá-los como uma força neste mundo que é o meu?".

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Tal é o sentido da tradução como resultado de um desejo, de uma escolha deliberada por parte do tradutor. Desta maneira, as traduções contribuem a alterar profundamente as normas estéticas em curso, in­troduzindo um autor consagrado - Byron ou Baudelaire - em uma outra literatura. Trata-se, de acordo com Pascale Casanova em publica­ção recente - La république mondiale des lettres, 199914 -, de uma "intraduction", terminologia empregada pela autora para identificar o processo de introduzir em uma dada literatura inovações que pertencem a outra. Casanova considera que o programa de traduzir os clássicos elaborado durante o século XIX pelos românticos alemães é uma inici­ativa deste tipo. Segundo ela, a esta noção se acrescenta outra, a de "littérarisation", definida como "toute opération - traduction, autotraduction, transcription, écriture directe dans une langue dominan­te - par laquelle un texte venu d'une contrée démunie littérairement parvient à s'imposer comme littéraire aupres des instances légitimes".

Vista assim, a tradução é mais do que uma via de acesso ao universo literário, é uma forma de reconhecimento literário e não ape­nas uma "transposição lingüística". Yves Chevrel em seu La littérature comparée (1989) salienta que "traduire, éditer une traduction, n'est pas seulement envisager une opération d' ordre linguistique, c' est aussi prendre une décision qui met en jeu un équilibre culturel et social". Portanto, a tradução de um texto raramente é independente do sistema que deve acolhê-la.

Os papéis hoje atribuídos aos tradutores e às traduções nos pro­cessos de disseminação e de recepção literários, aqui mencionados, seriam certamente suficientes para que se considere a importância des­te tipo de estudo no âmbito da literatura comparada, para que nele en­contremos interesse e para que se converta em objeto de permanente reflexão.

,- Pascale CASANOVA. Op.

cito Paris, Seuil, 1999.

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"

Literatura e música: trânsitos e traduções culturais

Solange Ribeiro de Oliveira Universidade Federal de Minas Gerais

... Em requebros e encantos de impureza Todo o feitiço do pecado humano.

O/avo Bi/ac. Música Brasileira

E lugar-comum da história musical, tanto quanto da história literária, a criação de um estilo novo a partir de uma relação intertextual com uma forma artística anterior. Quando ocorre em culturas marcadas pela expe­riência da colonização, a relação, freqüentemente paródica, destaca muitas vezes a diferença entre o modelo e a criação resultante de sua deforma­ção. Na música, a constituição do novo pela subversão do tradicional chega mesmo a antecipar formas ainda por surgir nos velhos centros hegemônicos.

Nas literaturas pós-coloniais, salta aos olhos a deformação criativa de línguas ou formas poéticas legadas pela antiga metrópole. Nas ex-colô­nias britânicas notam-se as múltiplas variações do inglês, agrupadas sob a denominação abrangente de "english", onde a letra minúscula indica a diversificação da língua imperial, "English", pelas diversas literaturas pós­coloniais. No Brasil, descontadas as inevitáveis divergências, impõe-se o paralelo com a fala brasileira, cuja independência do padrão lusitano foi oficialmente proclamada pelos modernistas. Há que lembrar ainda a apro­priação dos clássicos ocidentais pela literatura de nações surgidas em an-

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tigas sociedades colonizadas, como no poema Omeros de Derek Wilcott.

O autor caribenho transforma os herois da Ilíada em pescadores da ilha de

Santa Lúcia, par a par com a transcriação do épico helênico em modernos

versos livres, cuja lógica interna pouco ou nada se assemelha à da poética

clássica. Desse modo, a reação a formas canônicas herdadas dos coloniza­

dores serve a um duplo propósito, a renovação formal e a construção de

uma identidade nacional - preocupação constante de literaturas que, de maneiras variáveis, em tempos mais recentes ou mais remotos, começam pela re-escrita de modelos impostos pela colonização.

Na música encontram-se exemplos de recriações semelhantes. Com­posições pós-coloniais, frutos da reinterpretação local de velhas formas européias, transformam-se não raro em símbolos nacionais. No vaivém

das relações entre artes e entre nações, algumas dessas criações

transculturais metaforizam o confronto entre culturas imperiais e pa­drões culturais mais recentes. A título de ilustração, podemos começar pelos Estados Unidos. Sua atuação como potência neocolonizadora qua­se faz esquecer a condição original de colônia britânica, que, apesar de circunstâncias históricas particularíssimas, foi inicialmente marcada,

como as demais, pela angústia da dependência cultural. Em 1891 o com­positor norte-americano Charles Edward Ives lança Varialions on "America". Primeira composição politonal conhecida, a peça antecipa padrões musicais só mais tarde utilizados na Europa. Claramente paró­dica e transcultural, edificada sobre elementos musicais tomados de em­préstimo ao hino nacional inglês, Variations transita de um para o outro lado do Atlântico, traduzindo a composição inglesa para um novo idio­ma musical. Como diriam os antigos músicos brasileiros pitorescamente chamados de chorões, o pioneiro compositor norte-americano "suja" God save lhe King, isto é, deforma-o artisticamente, com o objetivo de criar uma obra onde o jogo intertextual enfatiza tanto a dívida cultural quanto a necessidade de superá-la.

O termo "sujar", à primeira vista pejorativo, reflete bem a forma ambivalente como são a princípio consideradas as criações que deformam um modelo fornecido pela cultura dominante, de modo a afirmar um novo modo de ser cultural. Não sem razão, Ives tomou-se o monstro sagrado da independência musical norte-americana. Suas criações, intimamente liga­das à região de New England, utilizam a técnica de colagem, semelhante à usada pela pintura e pela literatura, incorporando citações de canções e danças rurais, hinos religiosos e música clássica. O norte-americano não nega sua admiração pelos monumentos musicais da tradição européia: uti­liza ecos de Brahms, Beethoven, Bach e Wagner. Por outro lado, antecipa a prática dos grandes centros, introduzindo inovações como atonalidade,

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Literatura e música: trânsitos e traduções culturais 95

ritmo múltiplo, feixes tonais inusitados, harmonias politonais, constru­ções polimétricas e microintervalos, que só mais tarde ocorreriam na mú­sica européia. Assim, o irreverente compositor inaugura nada menos que uma expressão musical da identidade norte-americana. Em Concord, mo­numental sonata para piano, repete a façanha, cumprindo o desejo de Thoreau: faz, realmente, "ouvir uma flauta sobre Walden" ... Como obser­va Leonard Bernstein, Ives toma-se simultaneamente o Mark Twain, o Emerson, o Thoreau e o Hawthorne da música norte-americana.

No Brasil, os criadores do choro, forma musical de difícil defini­ção, cumprem um papel surpreendentemente afim ao de Ives. Não apenas deformam criativamente modelos europeus - e, desse modo, inauguram uma expressão da identidade nacional- como, ao fazê-lo, atingem efei­tos composicionais desconhecidos pelos velhos mestres. Nesse sentido, argumenta Gilberto Mendes, o choro, como criação instrumental urbana, é a contribuição brasileira mais verdadeiramente original para o repertório internacional. Contrasta com a utilização de nossa música folclórica, de origem rural, que, em detrimento das formas populares urbanas, foi prefe­rida por alguns modernistas como emblema do nacional. Na verdade, a apropriação da música folclórica pela música erudita de corrente naciona­lista, tendo ocorrido também na Europa do século XIX, não caracteriza uma contribuição tipicamente brasileira. Nossa música genuinamente na­cional, entendida como criação de formas novas, diferentes da música eu­ropéia, não se encontra em composições marcadas pelas constantes meló­dicas e rítmicas do folclore brasileiro, que têm origem européia e equiva­lem às produzidas pelo nacionalismo musical europeu do século XIX. Resultantes, na avaliação de Mendes, do "simples aproveitamento do temário folclórico desenvolvido dentro de esquemas formais clássico­românticos", as peças nacionalistas representariam um "retrocesso às estruturas significantes do século passado, das correntes nacionalistas européias" (Mendes, 130). A música "brasileira", no sentido de criação original do país à época do modernismo, consistiria, antes, em novas jus­taposições de acontecimentos sonoros, prenúncios da colagem musical de nossos dias. O choro integra, certamente, essas formas novas. José Miguel Wisnik acrescenta que o aparecimento dessa forma urbana inicialmente popular e sua ocasional incorporação à música erudita consolidam no ter­ritório musical "um desses momentos vitais de interpenetração de lingua­gens (o erudito e o popular, o sacro e o profano), sem a qual os saltos qualitativos não podem ser dados" (Wisnik, 112).

Difícil de definir, o choro é geralmente mais um modo de tocar que um gênero musical. Um jeito, um jeitinho, brejeiro, buliçoso, provo­cante. O nome, como sua variante carinhosa, "chorinho", remete à for-

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ma lamentosa de execução, que não exclui uma aliciante extroversão. Com graça despretenciosa, seduz o ouvinte menos sofisticado e desarma o iniciado mais exigente. Um exemplo ficcional dessa sedução aparece no romance de Antonio Callado, Reflexos do baile, quando Carvalhaes, o embaixador de Portugal a caminho de uma visita protocolar a uma

escola pública, ouve por acaso uma seqüência sonora intrigante:

notas musicais puseram-se a estalar e crepitar como gomos de bambu deitados às chamas. Uma toada amorosa, cheia de reque­bros, mas enquadrada em composição sonora de tão alarmante rigor que perguntei ao meu descompassado coração se afinal cá existem dementes a tentar tudo começar de novo. Franziu o cenho o diretor da escola diante dos perigosos, dissolventes anjos que a música soltava entre as crianças de uniforme (18-19).

o educado ouvido de Carvalhaes capta imediatamente a originali­dade, a sofisticação formal (inesperada em criação popular) da toada, que o leitor logo descobre ser um choro. A irreverência para com mode­los europeus, explicando a razão pela qual é considerado "perigoso" e "dissolvente" pelo tradicional mestre-escola, faz do choro a metáfora musical do romance. A ênfase em seu aspecto revolucionário antecipa a inspiração política subjacente à narrativa: o histórico seqüestro dos em­baixadores, parte da tentativa de desestabilizar a ditadura militar instau­rada no Brasil pelo golpe de 1964.

A evolução histórica do choro, sua relação com o novo, o revolu­cionário, o popular, explica a propriedade da metáfora. O nascimento do choro coincide com o fim da era dos barbeiros, músicos autodidatas surgidos no Rio de Janeiro e na Bahia em meados do século XVIII. Nas horas vagas, aproveitavam a habilidade manual adquirida no exercício da profissão para complementar sua féria modesta: executavam músicas alegres à entrada das igrejas ou durante a celebração de festas. Consti­tuía-se assim a primeira experiência de música instrumental brasileira como espécie nova de serviço urbano, o entretenimento público. O vari­ado repertório dos barbeiros incluía fados, chulas, lundus - primeiro gênero de dança e canção urbanizada inspirado em batuques rurais - e também cançonetas, valsas e contradanças francesas. Digno de nota é o fato que as composições importadas eram abrasileiradas pela forma es­pecial de execução, que chamou a atenção de Debret. Os barbeiros con­tribuíam assim para consolidar uma execução irreverente, próxima dos padrões de cultura popular já nacionalizados, em contraste com a tradi­ção européia iniciada na Idade Média, que fora adotada pela elite nacio­nal. José Ramos Tinhorão informa que a contribuição original desses

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músicos residia na "dolência penetrada de sensualidade que viria a ca­racterizar as futuras bandas de adro de igreja e de coreto no Brasil" (Tinhorão, 123-131). Animando a Festa da Glória, prestigiada pela fa­mília real desde a chegada do Príncipe Regente D. João, os barbeiros tocavam junto aos casarões de figurões do Império, nas redondezas do outeiro da Glória na zona sul carioca. Sua música atraía também "belas mulatas, lustrosas crioulas, velhos e crianças, homens e mulheres de toda casta", conforme testemunha Melo Moraes Filho, citado por Tinhorão. Propiciava-se assim um encontro da elite com o povo, função tradicionalmente exercida pela música popular até os dias de hoje.

A decadência da música dos barbeiros ao final do século XIX coincide com o aparecimento no Rio de Janeiro dos grupos de choro, formados pelas primeiras gerações de operários e pequenos funcionários da moderna era urbano-industrial. Seu estilo lânguido de tocar, possivel­mente herdado dos barbeiros, harmonizava-se, segundo Tinhorão, com "a maneira piegas com que as classes médias do Rio de Janeiro do século XIX interpretaram os transbordamentos do romantismo europeu" (Tinhorão, 160). O meio social onde inicialmente se cultivava o choro era o da baixa classe média, contemporânea do surto de desenvolvimen­to proporcionado pela riqueza do café no Vale do Paraíba. Dessa classe saíam os músicos chorões, animando, em casas de família, bailes modes­tos, depreciativamente apelidados pela sociedade elegante deforrobodós, maxixes ou chinfrins. Após 1920, o fim da Primeira Guerra Mundial e a visão, proporcionada pela divulgação do cinema, do novo mundo do ca­pitalismo industrial contribuem para encerrar a era dos chorões.

O desaparecimento da função inicial do choro - animar bailes de gente simples - não impediu a continuidade das composições, nem sua ascensão à condição de quase gênero musical, ocasionalmente tratado de forma erudita e aceito pelas elites, num processo semelhante ao sucedido com o samba. Pode-se, já então, pensar no triunfo do choro como início do "coroamento de uma tradição secular de contactos", utilizada para efeito de uma "invenção da tradição" ou da "fabricação da autenticida­de" brasileiras, na linguagem de Eric Hobsbawn e Richard Peterson. Não por acaso, Henrique Cazes, investigando a história do choro, consi­dera-o a matriz mais importante da música brasileira.

Podem estender-se ao choro as conclusões do estudo de Hermano

Vianna sobre o que Antonio Candido denomina a "nacionalização" e "generalização" do samba. Vianna analisa "o mistério do samba", isto é, sua transformação de "ritmo maldito", nascido nos morros cariocas e inicialmente reprimido pela polícia, em símbolo da cultura brasileira, após a conquista do carnaval, do rádio e do gosto das camadas médias e

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superiores (Viana, 62-65). O antropólogo faz questão de ressaltar que a função de mediação exercida pela música popular entre grupos sociais bastante diversos já existia no Brasil muito antes desse triunfo, que ocor­reu a partir dos anos 30.

Recapitulada a evolução histórica, resta a dificuldade de defini­

ção do choro. Mário de Andrade assinala seu "caráter decisivamente anticancioneiro e anticoreográfico", caracterizando o choro como resul­tante de "conjunto instrumental livre, de função puramente musical, com­posto de um pequeno grupo de instrumentos solistas, [geralmente flauta , violão e cavaquinho] exercendo o resto do conjunto uma função pura­mente acompanhante, antipolifônica, de caráter puramente rítmico-har­mônico" (Andrade, 137). Trata-se menos de uma forma musical definida que de um modo de tocar, especialmente um modo brasileiro de executar música estrangeira: "Vamos chorar aquela valsa", dizia-se nos tempos de Joaquim Calado, um dos compositores pioneiros de choros.

É esse "modo especial", essa maneira de subverter as formas do­minantes, que Reflexos do baile toma como emblema do nacional, "sinal cifrado da diversidade brasileira compondo um mito nacional". No ro­mance de Callado, trata-se especialmente do nacional enquanto movimen­to a favor das massas, contra um grupo acumpliciado com a opressão neocolonial norte-americana, como pode ser considerado o movimento mi­litar de 1964.

O caráter emblemático das alusões ao choro é sinalizado por sua posição estratégica, ao início e ao fim do romance de Callado. Já citei a primeira referência, quando a toada desafiadora parece a Carvalhaes uma reinvenção transatlântica da própria arte musical. O choro atua como um sinal de alerta, para o leitor e para a personagem, quando tenta despertar o distraído embaixador português para o complô que fervilha sob seus olhos alienados. Carvalhaes só se interessa por amenidades sociais e literárias. Quando muito, com cerimônia libidinosa, admira Juliana, filha de seu colega Mascarenhas, embaixador brasileiro aposen­tado. O português não adivinha, na bela freqüentadora dos CÍrculos di­plomáticos, a guerrilheira ardilosa, enamorada do revolucionário Capi­tão Roberto. Aproveitando a visita de Elizabeth II ao Rio de Janeiro, Beto e seus companheiros planejam seqüestrar a soberana e um grupo de embaixadores, a fim de provocar a queda da ditadura militar. Fracassa­da a conspiração, e consumado o brutal assassinato policial de Juliana e dos outros conspiradores, o estupefato embaixador desperta, finalmente, para a tragédia humana e política que antes não soubera ver. Trata de voltar a Portugal, levando na bagagem gravações do choro, símbolo da nação brasileira e de seus sonhos de reinvenção social. A última parte do

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romance associa à música sedutora a metamorfose de Carvalhaes, traumatizado por sua experiência no Brasil:

Era outrora pesado, taurino de estilo. Assustado agora, trêmu­lo, um esquilo, vive a mirar portas e janelas, como se malfeitores e demônios estivessem a saltar por elas. Só nos abre os olhos e sorri. como se sombra do homem de outrora fosse, ao ouvir ao gramofone a música que do Brasil trouxe, doce ( ... ) como o mel C .. ) Chamam-se choros, as toadas, doem na gente, soluçam-se ao bandolim. "Quero que as cordas que arriarem meu ataúde ao fundo da terra, este o desejo, o último, que ouvem de mim, sejam as deste travesso alaúde, deste bandolim". (117)

A citação remete aos dois traços contrastantes do choro - a dolência melódica e o buliçoso do ritmo. A narrativa prossegue com a morte e o enterro do desditoso Carvalhaes, que não sobrevive à perda de Juliana e à brutal descoberta da repressão militar no Brasil. Seu desejo de ser enterrado ao som de um choro enfrenta a resistência do bispo local. A dificuldade é contornada graças à imaginosa explicação inven­tada por Padre Bartolomeu, amigo do falecido embaixador. Note-se, na saborosa linguagem do narrador, a objeção do bispo português aos no­mes brasileiros das toadas: resume-se na rejeição do que na verdade é uma nova linguagem, onde se confundem inovações lexicais e musicais.

O Bispo imaginara escrito em latim o hinário do bandolim, e dera, sem embargo da idade, um pulo, ao ver que cada cantar tinha nome em português ou brasileiro vulgQ1~ ou chulo: Assanhado, André de Sapato Novo, Bonicrates de Muletas, VascaÍno. Respon­deu Bartolomeu, improvisante , que Santo André Apóstolo, ao en­contrar o Senhor descalço, no caminho de Emaús, tirou a sandá­lia dos pés e atou-a aos pés de Jesus, que lhe disse: Doravante, não pisarás mais o chão, para sempre terás os pés calçados numa canção. A canção fê-la o povo André de Sapato Novo ... (125-6 )

Satisfeito o desejo do morto, os requebros sensuais da toada bra-sileira transformam em baile o solene ritual do enterro português. O epi­sódio é descrito por uma testemunha escandalizada:

as notas da me/adia ma/dita, que começaram a soar sojigadas,

entranhadas nas \'Ísceras do disco como diabos nas dobras e pregas do negro ,'elltre de quem os engendra, l'oaram em densos rolos pelas janelas da casa. pelas portas da Capela e até pela grimpa assanhada de abetos e choupos. Eram agudos punhais de música, ( ... ) verrumas amare/as. ( ... ) E ( ... ) que fizeram os

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campônios e as raparigas, os trabalhadores da Quinta, fumo ao braço, os miúdos? Persiguinaram-se por acaso? Arrodilharam-se? Deram-se, isto sim, as mãos primeiro, oscilan­tes como caniços a aLguma doce viração, ensaiaram depois uns

passos, uns volteios, e, antes mesmo que pudesse alguém bra­dar água vai, puseram-se a bailar, a dançar entre os ciprestes e à vista do caixão, a se enlaçarem as cinturas, a sapatear, às umbigadas, mãos nos quadris, possessos , endemoninhados, nas roscas duma dança de São Guido ... (l29-130)

Em vista disso, pergunta, perplexa, a personagem portuguesa: "quem proverá às almas de nosssa própria gente, cuja fé adelgaçou-se de tal for­ma que estala e se dispersa ao som do bandolim duma ex-colônia?" Não demora o protesto do indignado bispo contra "as imagens sinistras do bailarico avinhado e campestre", nem é difícil imaginar suas razões. Atra­vés do choro, a ex-colônia inverte simbolicamente o roteiro de Cabral, invade a antiga metrópole, conquista Portugal, vingando-se da passada dependência, além de demonstrar o papel de reação contra a colonização cultural freqüentemente assumido pelas criações transculturais. Simboli­zando a rebelião contra o regime militar, a metáfora musical de Reflexos do baile anuncia também o repúdio aos vínculos neocoloniais que, aceitos pela ditadura brasileira, substituíram a ultrapassada dominação portugue­sa. A oposição ao conservadorismo da ex-metrópole harmoniza-se com a metaforização, através do choro, do clamor pela renovação social e políti­ca que, ao lado da elaboração formal, toma o romance de Callado uma das mais inspiradas denúncias ao golpe de 1964.

Referências bibliográficas Andrade, Mário. Dicionário musical brasileiro. Belo Horizonte: Editora Itatiaia Li-

mitada, 1989.

Callado, Antonio. Reflexos do baile. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra. 1977,4" ed.

Cazes, Henrique. Choro. Do quintal ao Municipal. São Paulo: Editora 34, 1998.

Mendes, Gilberto. "A música". In Ávila, Afonso (org). O Modemismo. São Paulo: Perspectiva, 1975.

Squeff, Enio e Wisnik, José Miguel. Música. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982.

Tinhorão, José Ramos. História social da música popular brasileira. Lisboa: Edito­rial Caminho S. A., 1990.

_. Música popular. Um tema em debate. São Paulo: Editora 34, 1997, 3ª edição.

Vianna, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor/Editora UFRJ , 1995.

Wisnik, José Miguel. O som e o sentido.Uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

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Trânsitos intranquilos:

Carlos Gardel y Carmen

como símbolos nacionales

Florencia Garramuno Universidad de San Andrés - Uba - CONICET

Assim é a triste:a actual do samba. É possível que, dentro de poucos annos, mude de carácter, porque toda essa música ur­bana, mesmo de gente de morro, é eminentemente instável e se transforma fácil, como as coisas que não têm assento numa tradição necessária. E, no caso, o nosso carácter nacional, não definido, atravessado de internacionalismos e inf7uências estrangeiras fataes, seria essa necessária tradição.

Mário de Andrade

Mário de Andrade ve, en la inestabilidad deI samba de los anos treinta, la inestabilidad de un carácter nacional y, junto con él, de una tradición nacional. Su razonamiento, en esta cita, da sin embargo otra vuelta de tuerca a la noción de la tradición nacional: aquí, la inestabilidad deI samba se debería a la ausencia de una tradición necesaria, tradición sin embargo constituida por un carácter nacional atravesado de intemacionalismos e influencias extranjeras. Esa "tradición nacional" que no lo es por ser heterogénea e inestable plantea, para Mário y para este trabajo, una serie de preguntas que van contra una cierta similitud entre algunos conceptos de nación, de identidad nacional y de cultura

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PB Revista Brasileira de Literatura Comparada, nº 5, 2000

nacional. Esa homología tiene que ver con una idea de la nación, y de la cultura que la expresa o la representa, como un todo, sino homogéneo, perfectamente articulado y unido: de allí la idea de la nación como ese "binding together of disparate elements" (Brennan, 1990) y de la cultura como constituida por "structures of feeling" que reunirían un consenso de subjetividades (Williams, 1966),

Si bien hace ya bastante tiempo que la idea de una cultura como un todo homogéneo cuyo opuesto seria precisamente la anarquía ha sido puesta en cuestión, la idea de que la cultura es un campo de negociaciones (Greenblatt 1988; 1995) no siempre ha llevado a un estudio de las dife­rencias que esa cultura articula. Incluso muchas veces ese estudio de las negociaciones que construyen una cultura analiza cómo ese conflicto se resuelve, cómo ese conflicto, para penetrar en la cultura, deja, de alguna manera, de ser tal. Contra el estudio de la unidad expresiva de una cultu­ra, que tiende precisamente a obturar y apagar los conflictos que la construyen, me parece importante intentar otro tipo de estudio: un estudio que busque en la cultura los conflictos que la constituyen, que trate de describir la articulación de esos conflictos, no su sutura, y que busque, en una única cultura nacional, las diferentes redes que la constituyen. Si la construcción de una identidad (individual, social, política, nacional, cultural) se concibe como un proceso en el que la diferencia está siempre presente como aquello que condiciona e impide la completa constitución de esa identidad (Butler 1995, 441) , esa identidad no es sino una renegociación constante de diferencias. Dice Lac1au (1996, 60):

Esto significaría, desde luego, apartarse de la idea de negación como inversión radical. La principal consecuencia que se sigue de esto es que "política de la diferencia" significa continuidad de la diferencia sobre la base de ser siempre otro; y el rechazo dei otro no puede ser tampoco eliminación discursiva radical, sino renegociación constante de las formas de su presencia.

Desde esta concepción, describir a una cultura significaría inves­tigar la forma en que esas diferencias se articulan y se negocian en dife­rentes productos cuIturales. Si desconfiamos, entonces, de una cultura nacional como todo homogéneo, de lo que Appadurai llama la "substantialization" deI término cultura, (,no deberíamos también des­confiar de los análisis de la cultura que ven en ella la negociación de conflictos como un dispositivo de resolución de los mismos?J

EI desarrollo deI tango y deI samba, y su conversión, de oscuros productos marginales, en símbolos de una identidad nacional, es un proceso que sirve para atisbar uno de los ejes sobre los que se articula

1 Dice Arradurai (1998 ,12):

"Imp lying a mental substance,

the noun culture arpears to

privilege the sort oI' sharing,

agreeing, and bounding tha fly

in the face of the facts of the

unequal knowledgc and the

diffe rential r restigc oI' lifestyles,

and to discouragc attcntion to

thc worldviews and agency of

those W ho are matginalized or

dom inated. Viewcd as a r hysical

substance, culturc bcgins to

smack of any variety of

biol ogisms, inclu ding race,

which we have ccrtainl y

outgrown as scientifi c cat egories".

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2 Horacio Ferrer (1960, 30) ya

cueslionaba el criterio crono­lógico para la distinción de las guardias, escogiendo en su lu­gar un eriterio formal.

Tránsitos intranquilos, .. 103

una gran cantidad de diferencias culturales: de clase, de género, de gru­pos, de región. Y describir a las culturas argentina y brasilefia como culturas en conflicto.

l,Por qué elegir el tango y el samba para analizar esas "políticas de la diferencia"? Porque tango y samba son puntos críticos de un debate cultural en cada uno de sus países, porque sus desarrollos históricos presentan muchas similitudes y porporcionan así un instrumento compa­rativo entre Argentina y Brasil y porque parecerían constituirse como nudos de conflictos en los que intervienen discursos culturales de los más variados. Hay un corpus de novelas (Triste fim de Policarpo Qua­resma, lubiabá, Nacha Regules, Historia de arrabal, Raucho), de poesías (algunas de Borges, de Güiraldes, de Manuel Bandeira, de Mário de Andrade), de ensayos (Martínez Estrada, Gilberto Freyre, Borges, Má­rio de Andrade) y de filmes (Melodía de arrabal, Luces de Buenos Aires, Down Argentine Way, The gang's ali here) que van a articular estos conflictos en tomo ai tango y ai samba, en distintos momentos históri­cos, de formas muy diferenciadas.

El tango y el samba han, además, compartido un destino bastante similar en los estudios que se han realizado sobre ellos. Sobre el tango y el samba se ha construido una historia más o menos generalizada que distribuye diferencias culturales a lo largo de un eje diacrónico. Hay un tango prostibulario y un tango sentimental, un tango para ser bailado y otro para ser escuchado, o, para usar la cronología más canónica, un tango de la vieja guardia y otro de la nueva.2 También la historia dei samba ha sido construida sobre un eje lineal, marcando una evolución desde el samba de los terreiros de Bahia aI samba sofisticado de las escolas de samba que surgieran en Rio de Janeiro por los afios treinta (Edison Carneiro 1982). Parecería que el tango y el samba han sido muchas cosas diferentes, pero que esas diferencias pueden explicarse por la evolución histórica, por un linaje en el que antecesores y herederos funcionan como puntos sin fricciones de una rectitud genealógica. Es claro que esas etapas han sin duda existido, pero, l,hasta qué punto la distribución histórica de las diferencias no ha opacado en estas formas culturales debates y polémicas contemporáneos que, en un mismo mo­mento histórico, estaban mostrando una cultura mucho menos homogénea que la que se quería imaginar? No busco en el tango ni en el samba una identidad cultural, sino, más bien, la diferencia. La diferencia cultural que se inscribió en esas formas, como en tantas otras de la cultura. No sólo hubo tangos y sambas de diversas connotaciones ideológicas y culturales en una misma etapa de esa cronología, sino que muchos de esos tangos y sambas se opusieron explícitamente a otras formas contemporáneas,

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constituyéndose en espacios privilegiados de disputas y polémicas. En

los treinta, por ejemplo, se desarrolla una documentada polémica entre Noel Rosa y Wilson Batista en torno a la antítesis malandr%tário (Cláu­dia de Matos, 1982), y Borges discutÍa las diversas teorías sobre el origen dei tango como una cuestión de legitimidad cultural (Borges 1980).

Este corpus tiene algunas ventajas: permite atisbar la historia dei

tango y dei samba desde una perspectiva múltiple que lleva a comprender diferencias y conflictos en torno ai samba y ai tango desde una perspec­tiva cultural más general y abarcadora: los debates en torno aI tango no son, simplemente, debates sobre diferentes estilos de tango; son debates sobre diferentes tipos o redes de culturas. Se hacen visibles, así, gracias aI tango y aI samba, conflíctos culturales más amplios que sirven también

para entender otros problemas culturales que no se agotan en el tango y en el samba y que, según artículaciones específicas, aparecen en otras zonas de la cultura. Pienso por ejemplo en los distintos modernismos y las peleas en las que se encarnaron esas diferencias, en el caso de Brasil, pasibles de ser explicadas también desde los conflíctos que el samba­

y, en general, la cultura popular - va a articular para la sociedad y la vanguardia brasilefía de la época. Las vanguardias argentinas de los veinte y sus guerras de posiciones se observan también de manera diferente según las posiciones que frente aI tango estos diferentes grupos adoptaron.

El tango y el samba, claro, tuvieron desarrollos propios a sus for­mas musicales y de baile, desarrollo o evolución que muchas veces ha sido visto como un proceso de estilización o de saneamiento. A menudo, la nacionalización de estos productos marginales se explica como un efecto de ese saneamiento: tango y samba, apropiados por la elite, despojados de sus costados "procaces" y étnicos, pueden convertirse entonces en productos nacionales. Creo que el proceso, sin embargo, es más complejo. Lo que transformó aI tango y aI samba en productos culturales fue, más que ese simple saneamiento, una intrincadísima red de discursos culturales constituida por novelas, poesías, ensayos, filmes, letras de tango y samba y artículos periodísticos y crónicas.3 Esas redes de significación cultural van delineando a cada momento historias que cuentan las luchas y dispu­tas que forman una cultura. Los diferentes discursos sobre el tango y el samba, en diferentes momentos históricos, van marcando diferentes posiciones de sujeto que distribuyen diferencias culturales. Así, el tango y el samba sirven como instrumentos críticos para analizar las diferentes redes de la cultura brasilefia y argentina. Es la historia discursiva de la construcción deI tango y el samba en símbolos nacionales lo que permite ver esas diferencias.

En este artículo me interesa analizar, dentro de ese marco, la articulación de diferencias cuIturales que las imágenes de Carlos Gardel

J Marta Savigliano (1995,73-136)

analiza de una fonna interesantíssima un proceso fundamental en la naci­onalización deI tango que resulta marginal para este estudio: lo que ella lIama "the colonizing gaze", es decir, la primera aceptación y transfonnación dei tango en París para sólo luego volver a Argentina y ser aceptado en ella.

"En eI proceso de conversión dei tango y dei sambaen símbolos nacio­nales, estos films y los géneros a los que pertenecen representan por un lado el momento de mayor ditusión y divulgación dei tango y dei samba como elementos nacionales. EI tango y el samba van a propiciar processo sumamente importantes en el desarrollo de una cinematografia nacional en cada uno de sus países. En los comienzos de la industria ci­nematográfica argentina, el tango proveyó historias para los films, cuyos guiones fueron muchm. veces tomados dei mundo dei tango y de sus letras. La presencia dei tango en el cine incluso es previa a la aparición dei cine sonoro. EI primer largometraje argentino es precisa­mente Tango (aunque algunos datos indican que Los cabal/erus de cememo estaba ya tenninada antes de que se empezara a producir Tango , cf. Espana, 1992), de Luis Moglia Barth, que ya toma uma historia de tango para converti ria en guión cinematográfico. Muchos de los guionistas e incluso directores fueron hombres dei mundo dei tango, como Antonio Lepera, guionista de Melodía de arrobai, o Manuel Romero, guionista de Luces de Buenos Aires. Con la lIegada dei cine sonoro y antes de que se desarrollara el proceso dei subtitu­lado y doblaje, el precario desplaza­miento de Hollywood fue aprove­chado por los cines nacionales lati­no americanos para incentivar una industria nacional que encotró en el tango en la Argentina - así como en las rancheras en México o el mismo samba en Brasil- anzuelos para atraer a un público latinoame-

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ricano. EI tango fue además el pro­ducto que luego las industrias extranjeras, especialmente Holly­wood, apropiaron para conquistar un mercado hispanohablante. Cf. Mahieu, 1974, Couselo, 1988, y Ana Maria López, 1985. EI tango en la Argentina dia lugar ai desarrollo de un género cinemato­gráfico específico, el film de tango o la "ópera tanguera", como la denomina Domingo di Núbila (1959). En el cine mudo brasileno el samba está ausente, aunque pro­porciona (junto con la música eru­dita bra,ilena, como el caso de O guarani. de Carlos Gomes) ele­mentos para los primeros "filmes cantados" ("sung films" , Johnson and Stam. 1982,27), filmes en los que se cantaba detrás dei telón. Esta tradición sería uno de los an­tecedentes dei género tipicamente brasileno de las chanchadas, que serán el reino dei samba. Si bien éstas encuentran su origen nacio­nal en los films de carnaval , la constJtución dei género va de la mano de una hibridación muy tuerte con el musical hollywoo· dense. Cf. Oliveira Dia~, 1993,53.

5 Es preciso tener en cuenta aquí que la popularización dei tango ~ dei samba es un proceso que no se confunde con el proceso de su nacionalización, aún cuando a veces se superponga con éste. La nacionalización dei tango y dei samba implica la intervención de una serie de discursos culturales - ensayos, novelas, poesías y letras - que comienzan a actuar incluso antes, en algunos casos, de la efectiva popularización de estos productos culturales: el caso de O i'O/'tiço, una novela de 1889. en la que el samba ya figuraba como lo "típicamente brasileno" - cuando el samba todavía no había llegado a Rio de Janeiro y se circunscribía a una danza baia­na -. es un hecho de lo más para­digmático. Cf. Florencia Garra­mino en prensa.

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y Carmen Miranda construyen en dos filmes: Luces de Buenos Aires y Down Argentine Way.4 Aunque para la época en que estos filmes son producidos, tango y samba ya se han popularizado bastante, continúan articulando una serie de conflictos culturales que las imágenes de Carlos Gardel y Carmen Miranda hacen evidente.5

En estas películas, las performances de Gardel y de Miranda resultan sostenes de diferencias culturales (entre campo y ciudad, en el caso de Luces; entre Estados Unidos y Sudamérica, en Down Argentine Way). En las imágenes de Gardel y de Miranda se proponen identidades nacionales (Gardel, gaucho que canta tangos; Miranda, mulata baiana) que desde el comienzo se denuncian como inabarcables y contradictorias. Gardel, porque es un gaucho que, después de haber cantado canciones camperas, aparece en el film como un perfecto conocedor deI tango y canta, nada menos que en un peringundín portefío, Tomo y obligo; Car­men, porque abre el film, vestida con su vestuario de mulata baiana, cantando un samba cuyo ritmo americanizado tiene un estribi110 en inglés y se presenta, además, como representante de Buenos Aires. Más adelante en el film será ella misma, cantando en portugués Mamãe eu quero, quien aparecerá como representante "típica" de "Ia noche portefía". En ambos casos. el vestuario parecería funcionar, no como "traje típico", sino como disfrazó : oculta, bajo la máscara de una tipicidad, las diferen­cias que constituyen a esa identidad.

AIgunas escenas de estos filmes cristalizan claramente ese movimiento de la diferencia que se percibe en los cuerpos de Gardel y de Miranda.

Luces de Buenos Aires7 participa de una de las características típicas deI melodrama y deI musical hollywoodense. Precisemos más: de una de las características que el musical tomó de la forma melodramáti­ca ya existente en otros géneros. Se trata de una estructura binaria de oposiciones entre el vicio y la virtud, que supone la confrontación de antagonistas claramente identificables y la final expulsión de uno de ellos.8

En este film, ese binarismo se distribuye espacialmente entre dos espacios e identidades: el campo, espacio de la inocencia y la pureza; y la ciudad, sitio deI vicio y de la depravación. A cada uno de estos espacios le co­rresponde en el film un tipo específico de música: el tango, claramente asociado a la ciudad y a la amoralidad que ésta va a representar, y las canciones camperas, asociadas con la moralidad y fidelidad que se inscriben en el paisaje pampeano. En esta distribución el film no hace más que reafirmar el primer nacionalismo argentino (el sintagma es de Payá y Cárdenas 1978), cuyo discurso criollista, cristalizado en algunos textos paradigmáticos como El payador, de Leopoldo Lugones, Eurindia,

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de Ricardo Rojas, o - un poco más problemático con respecto a su colocación dentro de ese nacionalismo - Raucho, de Ricardo Guiraldes, postulaba precisamente esta distinción entre un campo asociado con pu­reza - y pureza en el sentido racial, también, en tanto opuesto a la inmigración -, inocencia, fidelidad, sinceridad y, por el otro lado, una ciudad que se veía como el espacio de la mezcIa -vista de manera nega­tiva -, la inmigración, la delincuencia y la corrupción. 9 Ahora bien: si ésta es la primera adjudicación de valores con las que se abre el film, a lo largo de la narrativa que el film va construyendo se notará un desplaza­miento significativo que va a ir incorporando, en cada uno de estos polos binarios, elementos de su otro.

Pero vayamos por partes. EI film narra la historia de una jovencita campesina (Sofía Bozán) que es contratada por un empresario porteiío para cantar en Buenos Aires. En su decisión de partir hacia Buenos Aires, el film plantea también la traición de un amor: esa chinita cantante tiene en el campo un novio, que es nada menos que el patrón de la estancia, perso­nificado por Gardel. Junto con ella y alrededor de esta relación, el film va a tejer una trama de traiciones y ascensos y descensos morales que van a articularse en tomo deI tango. La ida a la ciudad significa el olvido de las raíces campesinas, el ascenso económico de la chinita - que ahora recibe regalos de vestidos y joyas - y el descenso moral: junto con el olvido de su ti erra va el olvido de su novio y su compromiso con relaciones sexuales "ilegítimas". Dentro de esta narrativa, no sólo aparecen canciones de tango y bailes, sino que la historia misma que el film narra es una historia típica de tango - la historia de una "milonguita"-, sólo que con final feliz gracias a la intervención, precisamente, deI campo y sus representantes: la chinita es forzada con un lazo a volver aI campo y reintegrarse a su hábitat y "duefio" "original". Con este final, el film parecería respetar ese funcionamiento melodramático de expulsión de uno de los palas de ese binarismo original. Sin embargo, la trama diegética deI film es interrumpida por una serie de performances cuyo efecto sobre la narrativa parece tergi­versar esa historia dei "triunfo dei bien".

Si bien el film asocia tango con ciudad - asociación que definiti­vamente triunfará en la historia deI tango, hoy reconocido como una música típicamente urbana -, lo cierto es que es esa asociación, de hecho, lo que el film va a negociar. 10 Esta asociación deI tango con la ciudad, y, junto con ella, de la identidad nacional como una identidad urbana o rural, es en realidad el trasfondo conflictivo sobre el que se construye el filmo Por un lado, resulta claro que, en un gesto costumbrista, el film distribuye canciones camperas para el campo y tango para la ciudad. La identidad campera es personificada por Gardel, quien canta

• Dice el Maria Moliner de disfraz: "Cosa que resulta inadecuada o inapropiada en la persona o cosa que la lIeva o usa"'.

7 Luces de Buenos Aires fue

realizada por la Paramount en Paris, en 1931, dirigida por un director chileno, Adelqui Millar. Los guionistas fueron el ya mencionado Manuel Romero y Luis Bayón Herrera. Es la primera película hecha por Gardel, sin contar Flor de dura:no, en la cual participa de una forma bastante episódica. Según Collier (1986. 173-214), este film y los que le seguirán fueron realizado por Gardel con la intención de alcanzar fama internacional.

'Peter Brooks (l9R4, 14-20) relaciona el nacimiento dei melodrama con una reacción ante la desacralización que "both reasserted the need for some version of lhe Sacred and offered further proof of the irremediable loss oflhe Sacred in its tradilional categorical, unifying form". Dentro de esta reacción, la estructura de oposiciones dei melodrama y su clara distinción de un uni­verso moral sirve a la necesidade de purgar un orden social.

9 Sobre el discurso criollista, ver Adolfo Prieto, 1988: para una historia dei discurso sobre el campo en la literatura argen­tina, ver Montaldo, 1994.

'" Esta negociación se emnarca dentro de una serie de disputas entre calegorías geográficas y culturales que pueden verse en muchos tangos cuyo origen campero es netamente eviden­te. Especialmente en tangos de Agustín Bardi. como El abmjo. E/ mdeo, E/ touro, y de José Martínez, como Expresiôn campera o El pa/ellque. Cf. Ferrer. 1960, 54.

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Sin ir más lejos, el que parece ser el primer tango en cruzar el océano, La morocha, es un tango mucho más cercano aI mundo criollo que allunfardo. Estos tangos se oponen violen­tamente a la interpretación de ese primer nacionalismo que veía aI tango como algo abso­lutamente diferente - espurio, incluso, yporesorechazable -ai mundo criollo. Para esta posición, cf. Leopoldo Lugo­nes, fi parado/', Ezequiel Martinez Estrada, Radiogra­fia de la Pampa.

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en el film tres veces la misma canción campera, E/ rosa/o l,Por qué repe­tir tres veces una misma canción? No es sólo para ofrecerle a la audiencia varias performances de Gardel. La función de su repetición está en mos­trar, en cada una de sus performances, un significado diferente de esa canción (y, deberíamos agregar, si ella representa aI campo, también de éste). En el primer caso, se canta aI comienzo deI film: es una canción que el personaje de GardeJ compone pensando en la chinita, que todavía no lo ha abandonado. En este momento, funciona como premonición de lo que va a acontecer. Cuando Gardel vuelva a cantaria y su novia traicionera ya esté en la ciudad, su sentido será diferente: ya relata algo que efectivamente está aconteciendo y, de hecho, no sólo Gardella canta de manera diferente, sino que también su audiencia - representada en el film por unos peones -Ia recibe de manera diferente. La tercera y últi­ma vez ocurre después de que Gardel ha ido a buscar a su novia a Buenos Aires y ha sido rechazado por ella. Si bien la canción es la misma, en cada una de sus tres performances aparecen significados complementarios, no sólo por la actuación diferenciada que Gardel hace en cada caso, sino también por la respuesta de la audiencia frente a ésta.

La otra identidad dei film, la identidad ciudadana, aparece repre­sentada por el tango: tango es lo que canta la chinita traidora en el teatro dei centro de la ciudad, y un tango para bailar es el trasfondo musical de una escena fundamental en el desarrollo diegético deI film: la escena de la "perdición" de la chinita, en el contexto de una "casita" o garçoniere.

Hay en la historia deI tango una cronología deI tango bailado aI tango cantado que es necesario resumir aquí para entender la negociación que el film plantea. Los primeros tangos, asociados con la vida prostibularia, eran tangos para ser bailados, tangos en los que incluso la letra no existía o, si existía, se le daba muy poca importancia. Muchos de los tangos de la guardia vieja, por ejemplo, fueron tangos sin letra, a los que se les compusieron letras - en muchos casos, varias - mucho tiempo después. El paso deI tango bailado aI tango canción, datado en 1917 con Mi noche triste de Contursi y asociado a Carlos Gardel- y, a su vez, a su propio desplazamiento de cantor de canciones camperas con el dúo Gardel-Razzano a cantor de tangos como solista -, es visto como una de las etapas más necesarias para la aceptación deI tango por las clases medias y altas. Considerada una de las estrategias de lo que se ha llamado como "saneamiento" deI tango (Salessi, 1985), el desplazamiento de los cuerpos y de la coreografía vista como muy procaz hasta entonces, y la mayor preponderancia que se le da ahora a la canción, que sólo se escucha y no se baila, se considera uno de los primeros pasos en la limpieza dei tango (SeBes y Benarós, 1977).

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EI film coloca, en un mismo plano, el tango baile asociado a la amoralidad y el tango canción que, luego de ser testigo de la amoralidad de su novia, Gardel canta para denunciarIa, Esa denuncia está articulada en un tango cuya letra tiene claras referencias aI paisaje campesino ("Si

los pastos conversaran/esta pampa le diria"), colocando además en labios de Gardel, el gaucho moral, la performance deI mismo, Del tango baile aI tango canción, Luces de Buenos Aires narra la transformación de los significados iniciales deI campo y la ciudad: junto a aquella transfonnación de la canción campera, y de lo que ésta representa, el film va pautando un desplazamiento deI tango, una parábola que describe el camino inver­so a la canción campera: de símbolo y perpetrador de la amoralidad, el tango se convierte en su denunciante, No es casual, en este sentido, que la escena en la que Gardel canta Tomo y obligo - en el peringundín de la ciudad - repita y copie una escena anterior en la pulpería deI campo, cuando Gardel canta El rosa/o Con esta escena en el peringundín deI puerto, que repite aquella otra escena en la pulpería deI campo, el film equipara canciones camperas con tango y, junto con ellas, campo con ciudad. Pero me interesa marcar que con esta equiparación no se produce una igualdad, sino una negociación de diferencias. Si bien el film acaba con el retomo de la chinita aI campo y la historia pareceria ser la deI triunfo de la virtud, el campo ha sido contaminado por la procacidad deI tango y el tango, a su vez, "limpiado" por la pureza deI cantor, Gardel. Así el film propone también una imagen diferente sobre el tango y la ciudad que aquélla con la que se abre.

Junto a la oposición campo-ciudad y canción campera-tango, el film está negociando además una de las contradicciones fundamentales sobre las que se tejieron una serie de polémicas sobre el tango en la época: la contradicción entre el tango cantado y el "criollismo", intentando recupe­rar para el tango un origen criollo que Lugones en El payador y Ricardo Rojas en Eurindia, por ejemplo, se habían opuesto a reconocer. El annado de esta genealogía deI tango, que puede reconocer en el cantor de canciones camperas un cantor también de tango, me parece que es aquí fundamental.

Quiero pasar ahora a Down Argentine Way, un film dirigido por Irving Cummings en 1941. Este film es uno de los films más importantes producidos durante la época de la "good neighbor policy" y puede considerarse como propaganda de la misma. Junto con The gang's ali here - quizás más explícita en este sentido - propone la negociación de las diferencias culturales que separarían a los Estados Unidos de sus vecinos sudamericanos, mostrando que esas diferencias resultan muy poco importantes. En el caso de este film la historia, también melodra­mática con final feliz, relata la negociación de diferencias que impide la

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11 Para un análisis más detallado de este film, ver Garramui\o, 2000.

12 Eisnstein veía en la misma actuación de los actores un juegode montaje (opuesto ai concepto de representación), en el que se combinan algunos rasgos de un personaje o de una forma de comportamiento, cuya yuxtaposición crea la imagem integral. Y agrega: "What is most noteworthy in such a method? First and foremost, its dynamism. This rests primarily in the fact that the desired image is 110! jixl.'d ar ready-made, buf arises­is bom. The image planned by author, director and actor is concretized by them in separate representational elements, and

is assembled - again and finally - in the spectator's

perception (Eisenstein. I 'l75. 31).

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concreción deI amor entre una joven norteamericana y un argentino, cuyos padres habrían sido aparentemente enemigos. AI descubrirse el error en esa identidad, el amor puede consumarse y, con él, la alianza entre la norteamericana y el argentino - que funciona, a través de recursos va­riados, como representante de una supraidentidad sudamericana. lI

En los títulos, el film indica que en él Carmen Miranda actúa como "herself': de hecho, ella va a aparecer en la película como la cantante Carmen Miranda y su actuación en la misma se limita a estas performances artísticas, que aparecen marcadas como un espectáculo aI que asisten los protagonistas deI filmo Los títulos, de alguna manera, parecen asumir desde el comienzo el ser uno mismo (una identidad) como una actuación, una performance. Me interesa analizar la primera escena de este film: Carmen Miranda, con su vestuario de mulata baiana, cantando un sam­ba americanizado y por momentos, según los juegos deI montaje, como fondo musical de imágenes de Buenos Aires. Ya en este montaje - y entendiendo por montaje no sólo la combinación de distintos fotogramas, sino también la combinación de un disfraz baiano con una lengua inglesa como representante de una ciudad argentina 12 - se combina una serie de diferencias culturales que van a ser fundamentales en el desarrollo de la trama deI filmo Veámoslo en detalle. EI samba mismo, South American Way, es un samba americanizado no sólo por tener parte de su letra en inglés, sino por la suavización de su ritmo. Si se compara el ritmo de este samba con el de otro samba más tradicional que Carmen Miranda canta­rá más avanzado el film, Mamãe eu quero, esa diferencia es notoria. Este samba americanizado narra además la peculiaridad de un modo de ser latinoamericano - ese "South American way"- que resaltaría pre­cisamente por su especificidad. Sin embargo, frente a esa música se colocan imágenes de una Buenos Aires que parece una ciudad de lo más "semejante" y no, según lo que plantea la canción, tan peculiar: son imágenes de "lo europeo" de Buenos Aires: el Congreso, el Corre0 Cen­tral, la Plaza de Mayo, pero de la Plaza de Mayo, no la Casa Rosada ni el Cabildo, que apenas se atisba en el margen de la pantalla, sino los edifícios de estilo más europeo que se ven sobre Diagonal Norte. Mientras la canción refíere, en portugués, aI típico mercado brasilefio donde el tabuleiro vende vatapá, las imágenes muestran una ciudad en donde esa canción y esa "tipicidad" latinoamericana están ausentes. Las imágenes de la ciudad, por otro lado, se yuxtaponen con el coro de la canción, cantando en inglés una traducción de lo que Carmen Miranda ha cantado en portugués.

Me gustaría proponer que esta canción y este fragmento deI film con el que se inicia la narración funcionan un poco como la obertura en

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la ópera: resumen, en términos musicales, el desarrollo de lo que vendrá. De hecho, lo que el film relata y esta obertura indica aquí es precisamen­te el borramiento de esa diferencia que separa a ese South American Way de los norteamericanos. Ese borramiento no es, sin embargo, pacífico: la Buenos Aires que el film presenta en estas imágenes no se corresponde con la letra de la canción; hay una incongruencia fundamental entre estos dos universos deI filmo Mientras el film propone ese borramiento de la diferencia, las performances de Carmen Miranda, como base fundamen­tal para ese borramiento, parecen estar marcando, en cambio, la irreductibilidad de esa diferencia, irreductibilidad que se marca siempre como un problema de mal interpretación: la americana malinterpreta aI galán argentino; el padre de este último malinterpretó aI padre de aquélla. Es en síntesis la figura de un conflicto, y la exposición - y no simple resolución - de ese conflicto lo que el film y las performances narran.

Así como en esta performance el coro traduce aI inglés la canción de Miranda, en muchos otros momentos el film explota la figura de la traducción como mediadora o catalizadora de esa unión entre ambas culturas que no podría existir sin ella. Sin embargo esa traducción, aI mismo tiempo que produce el entendimiento, ocasiona también la malinterpretación y, a partir de ella, los conflictos. Me parece que en ese sentido, el que estos filmes - y el género que se podría derivar de ellos, los films hollywoodenses sobre Latinoamér.ica - puedan leerse como malinterpretaciones de Sud América, plagados de "errores", tiene que ver en realidad con la articulación de ese conflicto entre las culturas de ambos países. No es que Hollywood confunda Rio con Buenos Aires, sino que, en ese representar Buenos Aires por Rio o por Carmen Miranda, como en este caso, 10 que está articulando es el conflicto que representa ese desconocimiento de Latinoamérica. Articulando también, junto con ella, la misma contradicción que, según Alonso Aguilar (1968, 70), comprometió a la "good neighborpolicy" que sustenta ideológicamente los "South of the border musicaIs": la contradicción entre el respeto que significa preocuparse por Latinoamérica y, por el otro, el esfuerzo por subordinar sus naciones a las necesidades económicas de los Estados Unidos. Si, como dice Sérgio Augusto (1982, 360), "even with the best of intentions Hol1ywood had tTOuble treating Brazil the way it deserved to be treated", lo cierto es que en ese problema está justamente la imposibilidad de resolver el conflicto que se quiere y que estos filmes no logran suturar.

Mientras las narrativas de estos films se estructuran sobre un có­digo melodramático - triunfo deI bien sobre el mal, la verdad sobre el error -, las performances parecen marcar otra historia: los procesos de

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13 Dice Judith Butler (1993, 241 ):"Perlonnativity describes this relation of being implica­ted m that which one opposes, this rurning of power against itself to produce alternative madalities of power, to establish a kind af political cantestation that is not a "pure" appasition, a "trans­cendence" af contemporary relations af power, but a difficult labor of forging a future from resources inevita­bly Impure".

Tránsitos intranquilos ... III

negociación y la articulación de esas diferencias, sobre las que se construyen esas narrativas. En ese sentido, las performances no deconstruyen las narrativas: no las cuestionan o las critican. Pero sí muestran o evidencian lo que esas identidades pretenden ocultar. En ese sentido, funcionan como la repetición para Freud (1981, 147-156): hacen visibles ciertos hechos que en su inscripción original permanecían ocul­tos. Por eso me parece más apropiado leer el tango y el samba, en tantos símbolos nacionales - y tal vez todo símbolo nacional -, no como representación de una identidad (ya dada o inmutable, ya cambiable y contingente), sino como performatividad: de un código social, de una cultura de diferencias, de una negociación. Entender ciertos símbolos culturales como actos performativos implica comprenderlos como repetición de normas y leyes, repetición constrefíida que, sin embargo, en el acto de exponer esa constTÍcción, hace visible un cierto desconocimiento y rechazo de esas normas y leyes. 13

El buscar identidades, el analizar, en los films, sólo sus narrativas sin tener en cuenta la inserción en ellas de las performances, tal vez sea la causa de encontrar en la cultura cómo los conflictos se solucionan, cómo la cultura suturaría una diferencia inconmensurable. Interrumpir esas narrativas, buscando en su lugar la performatividad, puede tal vez servimos para atisbar la cultura de otro modo: no como sutura, sino como, ella misma, productora de conflictos.

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I Guillermo GÓMEZ-PENA, "The borde r is" (1993), cita­do en Acosta-Belén and San­Tiago, po 36-370

Fluidez y transformación:

religión, arte y gênero

en las fronteras

de norte y sudamêrica

Ma Igorzata Oleszkiewicz The University of Texas at San Antonio

Border culture means boycott, complot, ilegalidad, clandestinidad, contrabando, Transgresión, desobediencia binacionalo o o

But it also means transcultural friendship and collaboration among races, sexes, and generationso But ir a/so means to practice creative appropriation, expropriation, and subversion of dominant cultural forms o But it also means multiplicity of voices away from the center, diflerent geo-cultural relations among more culturally akin regionso o o

But it a/so means regresar, volver y partir: to return and depart once againo 00

But it a/so means a new terminology for new hybrid identities and métiers cOl1stantly metamorphosizing o o o

But it also means to look at the past and the future at the same timeo l

EI alambre de Tijuana que separa a los EE.UU. de México es un símbolo de los múltiples intentos de segregación entre los pueblos, las naciones, las culturas. En este trabajo intento demostrar hasta qué punto las

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divisiones culturales en el continente americano han sido permeables. Me concentro en el campo de la representación de las imágenes religi­osas, específicamente la de la Virgen María, y analizo la conexión que ésta tiene con la identidad y los diferentes papeles que adopta en nuevos contextos.

A la llegada de Cortés a México-Tenochtitlán, éste se encuentra con que los indios están acostumbrados a la veneración de los ídolos. Este culto indígena de los ixiptla difiere deI de las imágenes cristianas, que supuestamente sólo deben referirse a un poder divino, "abrirse sobre un otro." EI ixiptla, en cambio, "era el receptáculo de un poder, la pre­sencia reconocible, epifánica, la actualización de una fuerza imbuida en un objeto, un ser-ahí ... ", uniendo así aI significante con el significado" (Gruzinski 61-62). Este hecho no es sin consecuencias sobre la manera en que los indígenas mexicanos perciben las imágenes sagradas traídas por los espanoles: las cruces, los santos, y sobre todo las múltiples imágenes de la Virgen María. Estas efigies se aceptan y se colocan entre las suyas propias, cobrando así un poder incluso más grande deI que tenían para los invasores. También tenemos que recalcar que en el cato­licismo romano de la contrarreforma y de los evangelizadores deI N uevo Mundo la imagen juega un papel preponderante -la Nueva Espana es una sociedad "saturada de imágenes". Estas imágenes, que aquí obtienen una función muy especial-la de la evangelización de los infieles - no se limitan a la percepción estática. La mirada las sigue cuando "caminan" en las procesiones callejeras y cuando, encarnadas en actores indígenas, sufren martirios y persecuciones ejemplares. EI teatro de evangelización, que utiliza imágenes animadas para persuadir, es un vehículo que incita intensa emoción, animando así la imagen y confundiéndola con la esencia que busca representar. Esto la acerca otra vez a la idea de ixiptla con la cual se busca "captar y manifestar la esencia cósmica de las cosas" (Gruzinski 84, 96).

Desde que la Virgen de Guadalupe se aparece en el cerro deI Tepeyac en el ano 1531 (aquí no vamos a especular sobre la autenticidad de esta aparición ), la veneración y el entusiasmo que suscita son mucho más fuertes que los que podrían ser provocados por una simple imagen. Obviamente, se trata de la presencia de la Virgen misma en la pintura, igual que en el caso de un ixiptla. Además, entre los indígenas mexica­nos, fuera de las grandes manifestaciones públicas, también tenemos un interesante culto privado de la imagen, manifestado en los oratorios do­mésticos o santocalli y en la veneración de los ídolos de linaje o tlapialli. De la misma manera, los indios se refieren a la Virgen como "mi Senora de Guadalupe" (Gruzinski 185-6), manifestando un apego familiar. Así,

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2 Edmundo O'Gorman discu­te la posibilidad de que en la ermita construida en el

Tepeyac, antes deI surgimiento dei cul to a la Guadalupe en su forma actual, hubiera una estatua de bulto de la

G uadal upe extremefia espafio­la o una pintura de la Virgen de la [nmaculada Concepción (O'Gorman 9-10).

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la antropomorfización de la divinidad en la efigie cristiana, conjugada con el concepto indígena de la presencia de la esencia cósmica divina, intensifica y llena de vida las imágenes traídas por los espafíoles.

La Virgen de Guadalupe, aunque lleva un nombre árabe-espafíol y su figura demuestra cierto parecido con la Virgen de la Inmaculada Concepción.~ no es una Virgen espafíola. Es posible que el origen de su nombre provenga de la palabra náhuatl cuauhtlapcupeuh ("la que surge de la región de la luz como el águila de fuego") (NebeI124) o dei vocablo coatlayopeuh ("'el águila que planta su pie sobre la serpiente") (Palacios 270) y haya sido espanolizado como Guadalupe, el nombre de la Virgen extremena (lugar de procedencia de Hemán Cortés y otros conquistado­res), que visualmente no se asemeja en nada a la mexicana, ya que es una estatua de buho de una Virgen negra sentada con el nino en las rodillas. En cambio, si la comparamos con la imagen de la Virgen de la Inmaculada Concepción, la Virgen de Guadalupe mexicana muestra notables semejanzas, aunque también múltiples transformaciones. Primero, la tez de Guadalupe no es blanca sino morena, como la indíge­na, y su capa de celeste se transforma en turquesa - el color sagrado de los aztecas que simboliza agua y fuego, prosperidad y abundancia vege­tal. Este es también el color de la diosa madre terrestre y lunar Tlazolteotl, de la diosa dei agua y de la fecundidad, Chalchiutlicue, y deI dios de la guerra, Huitzilopochtli. La túnica de Guadalupe, transformada de blanca en rojiza, otra vez nos hace pensar en la simbología azteca donde el color rojo representa el este, el sol, la juventud y el renacimiento vegetal. Esta Virgen-madre está encinta con su hijo Jesús (lo cual está indicado por la cinta que lleva), habiéndolo concebido de una manera milagrosa, igual que la diosa-madre Coatlicue, que concibió de manera "inmaculada" ai dios Huitzilopochtli (Soustelle 80-82). Además, Guadalupe se le apare­ce a un indio, Juan Diego, en la colina dei Tepeyac -lugar de veneración de la diosa terrestre y lunar, Tonantzin-Coatlicue. EI cerro dei Tepeyac, que se volvió ellugar deI máximo culto a la Guadalupe, ya era ellugar de peregrinación más concurrido de Mesoamérica en los tiempos prehispánicos, y en los primeros anos de la colonia se construyó allí una ermita dedicada a "la Madre de Dios" para así suplantar el culto que allí había (Q'Gorman 7).

Las funciones y los papeles que juega esta Virgen en las historias personales, tanto como en la historia oficial de México, son múltiples. Ella es la protagonista de las luchas por la Independencia (1810-23), durante las cuales es llevada en los estandartes de los insurgentes, contra la Virgen de los Remedios, adoptada por los realistas. Es también la patrona en la Guerra de la reforma (1854-57), en la Revolución mexica-

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na (1910-17) y en la Rebelión de los cristeros (1927-29) (Herrera-Sobek 41-43). A mediados deI siglo XVIII hay en México una eclosión deI fervor guadalupanista; en 1737 se jura su protectorado sobre la ciudad de México; en 1746, sobre el reino de Nueva Espafía, y en 1754 se efectúa

una confirmación de este juramento por el papa Benedicto XIV, con lo

cual queda estabIecida una fiesta litúrgica para la Guadalupe en el calendario. Según Altamirano, esta fiesta unía "todas las razas ... ; todas las clases ... todas las castas ... todas las opiniones de nuestra política", convirtiéndose "en expresión de una conciencia nacional". "La imagen barroca adopta una función unificadora en un mundo cada vez más mestizo ... " (Gruzinski 209, 145).

Fuera de estos reconocimientos y homenajes oficiales, mediante los cuales la Virgen es apropiada por las autoridades, la Guadalupe es también la constante compafíera de la gente, siendo expuesta en los alta­res domésticos y llevada cerca deI cuerpo en medallones, tarjetas y tatuajes, en infinita proliferación de reproducciones. Aunque ya en la Nueva Espafía, la Virgen, junto a otras imágenes, aparece incluso en la pintura corporal (Gruzinski 163), los órganos oficiales se ocupan de cui­dar su "pureza" y, fuera de proporcionarle una nueva compafíía en la forma de las alegorias de América y Europa, los símbolos patrióticos como el águila en el nopal, o los colores nacionales mexicanos, su imagen, aunque expuesta, paseada y adaptada a nuevas funciones y contextos, básicamente no se transforma.

La arriba mencionada función luchadora y subversiva de la Virgen, paralela a los intentos de apropiación oficial, ya está presente desde el siglo XVIII, cuando las imágenes religiosas también se vuelven una expresión de la resistencia indígena, y "llegan a materializar el rechazo político, social y religioso deI orden colonial" (Gruzinski 193). En la actualidad, la Virgen de Guadalupe ha sido expropiada para participar en la rebelión zapatista de Chiapas.3 Este proceso de apropiación de la Virgen María, que se manifiesta en la mexicanización e indianización de la Guadalupana, así como en su función de protectora de los desampara­dos y de guerrera; que adopta en los movimientos de resistencia social y étnica, se intensifica en los territorios mexicanos que pasaron aI dominio estadounidense en 1848, como Texas, Nuevo México, Arizona y California. Es en estas tierras, alejadas de los centros oficiales, donde con los afíos se empieza a notar con más fuerza la fluidez y flexibilidad en la representación de la imagen. En los espacios liminales de los emi­grantes y de los mexico-americanos deI suroeste de los Estados Unidos, donde se "reelabora las definiciones de identidad y cultura a partir de la experiencia fronteriza", es donde podemos ver más claramente la

3 Durante una marcha de los zapatistas en la ciudad de Mé­

xico, el 5 de febrero de 1995, Guadalupe aparece en un estan­darte con un pasamontaíias ne­gro, como el de los que la acompafian (Mayan Uprising). Similarmente, durante las luchas revolucionarias en

Nicaragua, Guadalupe fue re­presentada como la " Madre

proletaria," con el paíiuelo ne­gro y rojo de los sandinistas en el cuello (Randall 121).

4 Este papel de la Virgen nos hace pensar en el «Cantar de los cantares» 6: 10- \3 donde leemos: «~Quién es ésta que surge como la aurora,(bella como la luna./ brillante como el sol,/ remible como un ejérciro?» (énfasis mío) (La Biblia 1141)

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adaptabilidad de la imagen a diferentes funciones y circunstancias. La misma experiencia de la frontera muchas veces significa transgresión por causas de ilegalidad, y es también aquí donde con más facilidad se amplían los "niveles de resignificación" (García Canclini 302, 278). Lejos deI lugar donde fue consagrada oficialmente y apropiada por el Estado, la Virgen recobra y desarrolla su función subversiva como aliada de los desposeídos y de los inmigrantes, en pro de la justicia social; se vue\ve la Virgen "deI cruce", "de la contaminación", "de la crisis de identidad", convirtiéndose en un símbolo de resistencia contra la cultura anglosajona dominante (Gómez-Pefia 180-2). Durante la huelga de los obreros de los vifiedos organizada por César Chávez en California en 1965, y en otras marchas de trabajadores agrícolas en el sur de los EE.UU., la Virgen de Guadalupe fue usada como símbolo de la identidad y de la dignidad de los chicanos.

Tanto en la vida como en el arte de los mexico-americanos, la Virgen de Guadalupe es apropiada y adaptada a sus cambiantes necesidades y circunstancias. Aparece en los murales, en las pinturas de los coches, en los anuncios, en el arte de pano de los prisioneros y en los tatuajes. Se sale de sus confines estáticos y camina por la caBe, practica deportes, baila, lucha y trabaja. En la pintura de Ester Hernández deI afio 1975, la Guadalupe, vestida con un traje de kárate, como el título lo indica, "deflende los derechos de los xicanos" y en la de Amado Pena deI afio 1974, titulada "Rosa deI Tepeyac", aliado de una Guadalupe mayor y morena leemos la inscripción "Virgen de Guadalupe patrona de mi raza" (Chicano art 324, 242). La Virgen también apoya la liberación femenina. En los cuadros de la californiana Yolanda M. López, la Guadalupana se encama en un tríptico formado por tres generaciones de mu jeres: la artista misma, su madre y su abuela, efectuando sus funciones diarias como la costura o el correr, o se convierte en una madre mestiza dándole de mamar a su hijo. La Virgen se libera de su postura pasiva entrando en acción y movimiento hasta llegar a usar un vestido corto y tacos altos, como en la pintura deI afio 1978 que provocó un escándalo en México ai ser usada como portada de la revista F em en 1984 (Lippard).

En el arte de los chicanos de Texas, la Guadalupe también aparece representada en diferentes contextos modernos de la vida diaria y hasta se embarca en un transbordador espacial, volviendo a su supuesto lugar

de origen - el cielo - como en la obra "La Virgen de Shuttle" de

George Cisneros. Pero la Virgen es sobre todo una madre terrestre, duefia

de todos los elementos: tierra, aire, agua y fuego. Esto está confirmado

por varias pinturas de San Antonio, donde se enfatiza su conexión con la cultura indígena. En el cuadro de Miguel Cárdenas, "Water Lady",

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Guadalupe es la mujer que entra a rezar con una olla de agua en la ceremonia deI peyote; en el cu adro "Soy el corazón" de Ramón Vásquez y Sánchez, un chamán indígena la está adorando (V ásquez y Sanchez 2/4).

De esta manera, la Virgen adquiere una importancia especial en la

vida de los chicanos. Siendo "extranjeros en nuestro país ... 10 que nos une es la Virgen de Guadalupe ... we want her to take us out of bondage ... Se le canta mananitas, se le regala flores y ella está presente con nosotros en todos los pasajes vitales importantes: el nacimiento, los quince anos, el matrimonio y la muerte. La gente necesita creer en algo; se le reza primero a la Virgen que a Cristo porque ella es madre que da vida y tiene corazón. No es una figura religiosa, ella es de la gente, de la casa, de la familia" (V ásquez y Sanchez 2/4). La idea deI ixiptla, equivalente aI culto personal, predomina. La Virgen es "expropiada" de la religión ca­tólica y puesta en otros contextos, con otras finalidades. Un ejemplo puede ser las pinturas y murales que encierran los símbolos de un Azt1án mítico, como la pirámide y el indio, visibles en el cuadro "Virgen de Guadalupe" de Guadalupe Ortega. Muchas de ellas documentan una historia. En el cuadro de Raúl Servín, "La Conquista", Guadalupe es testigo de los eventos que sucedieron en México. En una parte deI mural de José Antonio B urciaga, "The mythology and history of maíz", llamada "The last supper of chicano heroes", Guadalupe, como Tonantzin y Amé­rica, domina sobre un grupo de héroes presididos por el "Che," elegidos en votación por un grupo de chicanos de Califomia (Burciaga 92-6). La Guadalupe protege a este grupo de americanos deI norte y deI sur, domi­nando tanto sobre el maíz y la vida como sobre la muerte, igual que la diosa azteca Tonantzin-Coatlicue. Entre estas figuras históricas, Guadalupe es una presencia cósmica.

l.Cómo explicar esta intensa explosión de creatividad y transformaciones a las cuales la Virgen de Guadalupe está sujeta en las regiones fronterizas? Tenemos que tomar en cuenta el hecho de que las regiones nortenas de la Nueva Espana no estaban expuestas a la misma clase de esfuerzos de cristianización como lo eran las areas deI centro deI virreinato, donde residían las autoridades eclesiásticas y se construían deslumbrantes iglesias barrocas. En Texas, en Califomia, no había más que algunas misiones que intentaban organizar la vida y la fe de los indígenas, con pocos recursos. Aquí tampoco había grandes riquezas minerales ni naturales que atrajeran la atención, y por consiguiente estas regiones remotas existían en relativo abandono. Por esta razón, podemos decir que la doctrina católica aquí no ha calado muy hondo. A menudo, los chicanas, por debajo de la capa exterior norteamericana anglo, socavan también la espanola, para redescubrir una esencia indígena. Esta es visible

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5 En dos conversaciones recientes, Ramón Vásquez y Sanchez, "Xagu Kaí," pintor y director dei programa de ar­tes dei Centro Cultural Aztlán de San Antonio, me aclaró que como coahuilteca es también director dei "Native American Church " donde se practican cerimonias dei peyote. Este hecho no lo hace menos cató­lico, ya que concurre a misa todos los domingos (Vásquez y Sanchez 2/4 y 2/7/(0).

6 Candomblé - religión sin­crética afro-católica, con una predominancia de elementos yurubas sobre los católicos; umbanda - religión conscien­temente sincrética con una gama de diferentes elementos. incluyendo los yorubas, católi­cos, orientales, espiritistas y kardecistas; caboclo-religión s incrética donde predominan o forman parte los elementos in­dígenas.

7 EI término ,Hella maris surgió por un error de los copistas que malinterpretaron el nombre slilla maris o gota dei mar que San Jerónimo le dio a Miriam (Warner 262),

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por ejemplo en la facilidad de la asociación de la Guadalupe con las diosas indígenas, con la tierra y con el culto a la mujer. Liberados de la ortodoxia católica en un país multirreligioso donde no existe el énfasis en una sola tradición, pero también "siendo extranjeros en su propia tierra," hay necesidad de re-inventar una identidad y una tradición. Guadalupe, desprovista en parte de sus asociaciones hispano-católicas y lista para prestar sus servicios de madre protectora a una nueva causa, se convierte en patrona y símbolo de los mexico-americanos y su herencia indígena. Hasta cierto punto, la religión católica puede ser sentida como un elemento impuesto por el enemigo y la identidad es buscada en símbo­los pre-cristianos, como en el caso de los descendientes de los indios coahuiltecas de Texas.5 Lo curioso es que Guadalupe, como símbolo de una madre protectora y luchadora, ha trascendido religiones, razas y lenguas y se ha vuelto universal, sirviéndole de patrona a diferentes gru­pos e intereses: tanto los muy católicos como los que están en contra deI catolicismo, tanto los pro-gobierno como los rebeldes, tanto los "strait" como los "gay."

Una función similarmente abarcadora es cumplida por la diosaj Virgen lemanjá, que como máxima patrona maternal y protectora encuentra un camino unificador a las vidas de diferentes grupos de brasilefios, divididos por el status económico, racial y cultural. Algunos ven en eUa a la Virgen de la Inmaculada Concepción, patrona de los navegantes y de Bahia, otros a la diosa-madre yoruba de las aguas sala­das. En sus diferentes encamaciones, está presente tanto en la misa cató­lica como en la ceremonia deI candomblé, de umbanda y de caboclo.6

La imagen de lemanjá más popular en el Brasil de hoy está emparentada con la representación barroca de la Virgen de la Inmaculada Concepción. Examinemos algunos aspectos de su trayectoria. En la Edad Media, la Virgen como steUa maris,7 o estrella deI mar, polar y matutina, se asocia con la imaginería náutica. En el Renacimiento el rol de María como reina de los mares adquiere una aplícación práctica - la de la protección a los navegantes. Los exploradores espafioles y portugueses se entregan a la tutela de María como Nuestra Sefiora de los Navegantes. EUa los acompafia y los protege en las travesías marítimas y es especial­mente como la Inmaculada Concepción que la Virgen es asociada con la luna, el cielo y el mar (Wamer 262, 267). Colón nombra una de sus carabelas "Santa Maria". En 1640 la lnmaculada Concepción es decla­rada patrona de todos los reinos de Portugal, inclusive el Brasil (Oleszkiewicz, "Los cultos ... " 250). Salvador da Bahia, constituida en 1502 como la primera capital deI Brasil, hasta hoy día tiene como "su única patrona" a Nossa Senhora da Conceição da Praia, cuya monumen-

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tal iglesia está ubicada frente ai puerto de Salvador, protegiendo a los marineros. Su imagen en esta iglesia se asemeja a las representaciones clásicas dei siglo XVII aI estilo de Velázquez, Zurbarán, Ribera o Murillo.

Sin embargo, aquí apenas comienza "Ia carrera" de esta imagen de María en el Brasil. La lnmaculada es sólo uno de los ingrendientes dei proceso de sincretismos y apropiaciones que en el siglo XX desembocan en figuras y cultos muy particulares. En otra ribera salvadorefia, la deI barrio Río Vermelho, frente aI mar se encuentra la iglesia de Saint' Anna, madre de la Virgen María que "Ia concibió sin pecado" y protagonista de la primera representación de la lnmaculada Concepción,8 y junto a ella la pequena casa de lemanjá, donde se reúnen y dejan sus ofrendas los pesca­dores. Este es también ellugar de donde salen las barcas cargadas de flores y ofrendas el 31 de diciembre - día de la fiesta umbandista y nacional de lemanjá. El8 de diciembre está reservado para Oxum - otro aspecto de la reina de las aguas - y el 15 de agosto para lemanjá (D'Oxum ] 4). De esta manera, las fiestas católicas marianas más importantes - la de la Inmaculada Concepción (8 de diciembre) y la de la Asunción (15 de agos­to) - han sido "repartidas" entre los orixás odiosas correspondientes a la Virgen María, en los cultos sincréticos afrobrasilefios. Estos dos días también corresponden a las celebraciones de las dos imágenes que se fusionaron en la de la Inmaculada Concepción que prevalecen desde el siglo XVII -la de la Virgen de la Asunción, basada en la de la Mujer deI Apocalipsis, y la de la Inmaculada tota pulera.

lemanjá es la diosa yoruba de las aguas saladas deI mar y de la fecundidad; igual que en el caso de María, su color es el celeste y su día el sábado. El origen de la figura de lemanjá está en la religión yoruba, traída por los esclavos deI Africa occidental en la segunda mitad deI siglo XVIII (la esclavitud en el Brasil persistió hasta el afio 1888). Hoy día lemanjá es un orixá muy importante en la religión afrobrasilefia, candomblé, donde desempena el rol de la reina de los mares y la madre de todos los orixás o dioses, tanto como de los seres humanos. Es también una de las esposas de Oxalá, sincretizado con Jesucristo, igual que María, identificada con la Iglesia como la esposa de Cristo.

Un desarrollo todavía más curioso es el proveniente deI culto de la umbanda que, aI ser más abiertamente sincrético e incluir elementos afri­canos, europeos, indígenas y orientales, se volvió generalizado en el Brasil. La imagen de lemanjá proveniente de la umbanda se popularizá tanto que llegá a producir un culto nacional a esta figura - el iemanjismo. Esta imagen, que es resultado de múltiples sincretismos, guarda gran parecido con la Virgen de la Inmaculada Concepcián, pero se libera de las contradicciones de ésta. Igual que la imagen tradicional de la

Ya en el siglo VII la lnmaculada Concepción se representaba en la iconografia como el momento dei abrazo de los padres de María, Ana y Joaquín, delante de la Puerta Dorada de Jerusalén.

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Inmaculada, Iemanjá es representada como una mujer blanca con cabello largo, vestida de celeste, que frecuentemente aparece con un espejo (uno de los seis símbolos de la pureza de la Virgen). También se la representa acompafiada de simbología astral y con una corona en la cabeza. Sin embargo, con la transformación de la Inmaculada en Iemanjá, ésta se libera dei color blanco o pureza de su túnica, que se transforma en un vestido celeste, deI manto azul y de la cinta. Su vestido se vuelve ajusta­do y escotado, descubriendo los atributos de una mujer sexual y fértil, en sus senos grandes y caderas anchas. Curiosamente, el espejo de la Virgen tota pu lera reaparece como uno de sus atributos, pero aquí, otra vez, esta encamación de la Virgen está humanizada y el espejo es símbolo de su vanidad. Además, igual que en el caso de la Guadalupe, se rescata su conexión con la muerte, ya que Iemanjá también es la sirena y la calunga que atrae a los marinos aI fondo deI mar de donde ya no salen. Así María, sublimada en la tradición cristiana a sólo dos aspectos femeninos contradictorios - la pureza virginal y el amor matemo - (Levi 5), en su aspecto de Iemanjá recupera su dominio ancestral sobre el ciclo vital dei nacimiento, la vida y la muerte. De esta manera, la Virgen en su forma de Iemanjá reivindica en el Brasil su rol original de diosa protectora de la fertilidad, de la vida y de la muerte, acercándose aI arquetipo de la Magna mater. Esta conexión está confirmada por el hecho que hasta hace poco en Bahia, el 8 de diciembre, día de la Inrnaculada Concepción, se celebraba el festival de la sociedad femenina africana Gcledé con el propósito de apla­car las iyá mi, las terribles madres ancestrales (Augras 15).

Otro fenómeno fronterizo singular tiene que ver con la fluidez de los roles de género en el ambiente de las prácticas religiosas afro­brasilefias. Además de los terreiros o casas de candomblé más tradi­cionales, donde las sacerdotisas (iyalorixás o mães-de-santo) y las iniciadas que entran en trance (iaôs o fi! has-de-santo) sólo pueden ser mujeres, existen otras menos ortodoxas, dirigidas por hombres (babalorixás o pais-de-santo). Es también un saber común en el Brasil que los pais-de-santo y los filhos-de-santo, u hombres que entran en trance incorporando a los orixás, tienden a ser homosexuales. De las 136 casas de candomblé estudiadas por Vivaldo da Costa Lima, sólo 34 eran dirigidas por pais-de-santo, de los cuales 28 eran homosexuales (171).

Esta situación está relacionada con el hecho de que para ser poseída por Ull orixá, la persona tiene que adoptar simbólicamente

el rol femenino. EI iniciado o iniciada es el «caballo» ai cual

cabalga el santo u orixá durante la posesión. Este acto de posesión por el orixá (iene una analogía con el acto sexual. Aunque el

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sexo mítico de los dioses puede ser masculino, femenino o andrógino , en el acto de posesión los dioses son estructuralmente masculinos y los iniciados - femeninos. Así los iniciados, sean mujeres u hombres, ai ser montados por los orixás, asumen el papel femenino en las ceremonias religiosas. (Oleszkiewicz, "EI papel ... " 197)

Este hecho está confirmado por el travestismo en las ropas y los peinados de los iniciados hombres, introduciendo un elemento de ambigüedad en la identidad de género.

En el norte y el nordeste deI Brasil, donde la tradición matrilineal es mucho más fuerte que en otras regiones influenciadas por la cultura yoruba, hay una gran interdependencia entre el candomblé y las otras esferas de la vida. El sistema simbólico de género de los cultos afrobrasilefios, basado en la actividad y la pasividad y no en la hetero y homosexualidad, ha influido en la sociedad más amplia, creando las categorías de homen (activo) y bicha (pasivo) (Oleszkiewicz, "El papel..." 197-8).

Los discutidos espacios liminales de las fronteras entre las cultu­ras se caracterizan por cambios de identidad, hibridez, adaptabilidad, creatividad y ambigüedad. Nepantla o "lugar de la frontera" (Anzaldúa 165) también significa la transgresión de las normas, tanto culturales como jurídicas. Las personas que se encuentran en este espacio liminal pierden su contexto y tienen que adaptarse a las nuevas circunstancias. Muchas veces están fuera de la ley, incluso sin saberlo. EI proceso de llegada puede ser más o menos violento, pero siempre hay una violencia institucional que impacta a los recién y no tan recién lIegados, especial­mente si éstos quieren conservar su cultura o si reclaman sus derechos. Quieran o no, son sometidos a un proceso de asimilación cultural por la cultura dominante. Esta se iguala con el grupo que tiene el mayor poder económico y por consiguiente político. Sin embargo a veces, como ocurrió en el Brasil con los africanos, los resultados son sorprendentes - la sociedad dominante o toda la sociedad se ve influenciada por el grupo que llegó como el más desposeído y abusado. Hoy día, quiéranlo o no los brasilefios, todos se ven marcados por la influencia de la cultura de los esclavos negros que ha permeado su diario vivir, y es por las expresiones de esta cultura que el Brasil es conocido en eI mundo. Sin embargo, el proceso no ha sido unilateral. Así como los africanos prestaron a los europeos el nombre y las características de la diosa Iemanjá, los portu­gueses les proporcionaron la consagrada imagen de la Virgen de la lnmaculada Concepción, con su postura erguida y su color celeste. EI resultado de este intercambio es el iemanjismo.

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Fluidez y transfonnación ... 123

Tanto en el Brasil como en México, desde el siglo XVI lugares liminales donde confluyen la raza europea, la indígena y la africana, cada una con su preexistente multiplicidad étnica, cultural y lingüística, como en los territorios aI suroeste de los Estados Unidos - desde mitades deI siglo XIX también geográficamente fronterizos -, se dan las circunstancias para una extrema multiplicidad e hibridización. Estas sociedades "vive[n] inmersa[s] en la imagen, la proliferación de lo híbri­do y de lo sincrético, los mestizajes de cuerpos, de pensamientos y de culturas" (Gruzinski 158). Es en estas condiciones que se crean las posibilidades más fértiles de transformación y adaptación, así como de ambigüedad. Los símbolos consagrados pueden vaciarse de su significa­do acostumbrado y lIenarse de nuevos contenidos (Gómez-Pefía 183). Así los brasilefíos y los chicanos reinventan y activan las conocidas imágenes que sufren múltiples transformaciones, hasta que sus prototipos a veces se vuelven irreconocibles.

Ambos fenómenos, el de Guadalupe y el de Iemanjá, a pesar de que sus prototipos existan en Espafía y en África, no se desarrollan de la misma manera en sus regiones de origen. En Espana, en África occidental, y en menor grado en México, sus imágenes están petrificadas. Es en las fronteras entre diferentes razas, lenguas y culturas en el N uevo Mundo donde estas efigies adquieren una nueva vida y dinamismo empezando a cumplir múltiples funciones. Este hecho nos hace pensar en los modos de sobrevivencia que desarrollan las personas cuando sus circunstancias cambian y cuando se ven expuestas a nuevas influencias y situaciones. Son conocidos la adaptabilidad y los modos de sobrevivencia, tales como la ironía y el juego, desarrollados por los negros esclavos traídos a las costas americanas, así como por otros grupos portefíos, constantemente expuestos a nuevos contextos y su existencia amenazada, pero también cargada de imprevistas posibilidades creativas. Paralelamente a la transformación de estos grupos humanos, sus símbolos también se modifican, cumpliendo nuevos papeles en estas difíciles transiciones. Estos símbolos son fluidos y adaptables, igual que la identidad de los individuos que viven en híbridas circunstancias.

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I Este texto resultou de traba­lho apresentado ao seminário " Discursos da tradição e con­temporaneidade", realizado na Universidad Nacional de Cór­doba, Argentina, em setembro de 1997, e posteriormente pu­blicado em DALMASSO, María Teresa et aI. Discursos de tradiciôn )' contemporo­neidad. Córdoba: Centro de Estudios Avanzados (U.N.C.), 1998. p.97-112. Para sua pu­blicação no Brasil, nesta Reris­ta Brasileira de Literatura Comparada, o texto sofreu uma revisão e alguns acrésci­mos.

2 BENEDETTI, Mario. EI ejercicio dei criterio: obra crítica /95()-/994. Buenos Aires: Seix Barrai, 1996. p.37.

Entre o global e o local: cultura popular

do Vale do Jequitinhonha e reciclagens cu Itu ra is 1

Reinaldo Marques Universidade Federal de Minas Gerais

Partir de la región, a los efectos de la creación !iteraria, no implica la sumisión a (ni el descarte de) modos dialectales, vetas dei folklore, monumentos de la historia zonal. Partir de la comarca es asumirla en tanto ser humano (. .. ). Es también mirar el mun­do, entender el mundo, vivirlo, sufrirlo, gozarlo, pera no con la actitud neutra de los desarraigados, sino con la mirada preocu­pada, imaginativa y profunda de los que tienen los dos pies sobre una tierra. Saber a que sitio se pertenece no implica la exigencia de vivir en esse sitio, pera habilita en cambio inmejo­rablemente para comprender a quienes viven dondequiera.

Mario Benedetti2

o presente trabalho pretende considerar a perlaboração de elementos

locais e globais, no processo complexo das transferências intercuIturais, que ocorre entre as comunidades locais do Vale do Jequitinhonha e as grandes metrópoles. Situada no noroeste do estado de Minas Gerais e con­siderada uma das regiões mais pobres do Brasil, as manifestações culturais

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126 Revista Brasileira de Literatura Comparada, nº 5,2000

populares das comunidades do Vale são, no entanto, muito ricas e diversificadas, obtendo repercussão nacional e internacional. Para tan­to, tomarei algumas manifestações culturais do Vale (literatura popular, música, artesanato) como materiais disponíveis para as práticas da

reciclagem cultural e procurarei examinar as implicações desse materi­al reciclado em termos das identidades local e nacional, no contexto da globalização e de uma cultura mundializada.

1. Um modo periférico de olhar e saber

Uma vez delimitada a proposta e o alcance deste trabalho, julgo pertinentes algumas considerações iniciais para efeito de uma contextu­alização epistemológica. É que todo conhecimento se produz a partir de um local e o meu olhar sobre o tema se lança a partir de um lugar marcado por certas referências e pressupostos - aqueles próprios de uma reflexão teórico-crítica produzida hoje no interior de universidades e centros de pesquisa da América Latina. Trata-se de um olhar que experimenta os paradoxos, os impasses e problemas específicos de uma "modernidade periférica"3, ou de uma modernização tardia. E entenda­se periférico aqui não como atributo de margens fixas em relação a algo central, mas como metáfora de deslocamento e de investigação, em que um projeto centrado de modernidade é experimentado e questionado a partir de suas margens heterogêneas.

Ao se pensar as práticas culturais populares do Vale do Jequitinho­nha hoje, faz-se mister considerar dois universos discursivos que parecem se opor: o da tradição, que aproximarei das experiências culturais locais e populares, e o da contemporaneidade, referindo-se a um mundo globali­zado, marcado pela atuação onipresente dos meios de comunicação de massa e pela conformação de mercados transnacionais de produção e consumo de bens materiais e simbólicos. Todavia, o que nos interessa é pensar os cruzamentos entre o tradicional- as culturas locais, populares - e o moderno, propiciando a interação entre tradições orais, teatrais e visuais e as tradições escritas. Ou seja, desviando-me de uma concepção moderna da cultura, baseada na sua estratificação e na hegemonia da letra, quero ter presente a noção de "hibridismo cultural", formulada por Néstor García Canclini, que supõe a interação entre cultura de massa, cultura popular e alta cultura, constituindo uma dinâmica que articula o local e o cosmopolita~. Marcada pelo heterogêneo, a cultura mostra-se um mundo mais aberto, mais indeterminado e polissêmico, não se consti­tuindo em mero reflexo dos arranjos infra-estruturais da sociedade.

3 Veja-se, a propósito, HERLlNGHAUS, Hennann, WALTER, Monika (Ed.). Poslllodernidad en la perife­ria: enfoques latinoamerica­nos de la nueva teoría culto ral. Berlin: Langer, 1994. Tra­ta-se de um livro contendo en­saios de diferentes críticos e pensadores latino-americanos sobre o complexo proce"-So de modernização cultural da América Latina. No ensaio de abertura, os editores procuram situar a noção de "modernida­de periférica" confrontando-a com o "projeto da modernida­de" e indicando experiências epistemológicas produzidas na América Latina capazes de reformular a idéia do "pós"­moderno.

Cf. CANCLlNI, Néstor García. Culturas híbridas: estrategias para entrary salir de la modernidad. México: Grijalbo, 1990.

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5 Cf. LÉVY, Pierre, As tecno­logias da inteligência: o fu­turo do pensamento na era da informática, Rio de Janeiro: Editora 34, 1993, p,126,

fi Este projeto foi desenvolvi­do em parceria com a Profa. Vera Lúcia Felício Pereira (PUC-Minas) e contou com o apoio do CNPq. Na sua disser­tação de mestrado, a Profa. Vera trabalhou com um con­j unto de histórias recolhidas na pesquisa. Este seu trabalho já se encontra publicado (ver PE­REIRA, Vera Lúcia Felício. O artesão da memória no Vale do Jequitinhonha. Belo Ho­

rizonte: Editora UFMG/Edito­ra PUe-Minas, 1996).

Entre o global e o local: ... 127

Para melhor se compreender as articulações da cultura, é preciso se desfazer da concepção linear, progressiva e evolutiva do tempo, típi­ca da modernidade. Tal imagem retilínea do tempo organiza a história cultural como uma sucessão de períodos, ou etapas, em que cada perío­do da vida cultural se mostra como aperfeiçoamento e superação do anterior. Dentro dessa ótica de progresso, um momento posterior nor­malmente tende a anular e excluir as experiências e formas culturais do anterior. Assim, o mundo da oralidade primária, por exemplo, teria sido superado pelo mundo da escrita e este, por sua vez, estaria sendo ultra­passado pelo mundo informático-mediático da contemporaneidade. Se­guindo essa lógica, em termos latino-americanos, a modernidade impli­caria a destruição do tradicional, das culturas étnicas locais, a anulação do saber narrativo fundamentado na experiência de narradores popula­res. Na verdade, esses mundos não correspondem a eras, a épocas determinadas, mas convivem simultaneamente em cada momento e lu­gar, com intensidades variáveis, de modo que o saber narrativo próprio da oralidade primária também se manifesta tanto no saber teórico­interpretativo da escrita quanto no saber modelizado e simulado típico da informáticas. Seria mais apropriado então trabalhar com a noção de "heterogeneidade multitemporal" proposta por Canclini, em que elemen­tos da tradição popular, deslocados mas não anulados, persistem e con­vivem com elementos do mundo da escrita e da informática.

2. Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, Brasil

Durante cinco anos desenvolvi um projeto de pesquisa sobre a literatura popular do Vale do Jequitinhonha6 , o que implicou diversas viagens a algumas cidades do Vale, o contato com contadores de histó­rias e "causos", com artesãos e artistas, com lideranças culturais e co­munidades locais. Constituiu-se num rico processo, em que me envolvi com as questões culturais de comunidades subalternas. Já me valendo de um natural distanciamento, quero retomar algumas questões que me afligiam durante a realização dos trabalhos de campo e pensá-las à luz de outros referenciais téorico-críticos.

Com uma superfície de 85.027 quilômetros quadrados, equivalen­do a 14,5CJc do estado, o Vale estende-se em tomo do Rio Jequitinhonha, principal fonte de sobrevivência da população, e nele existem cerca de 58 municípios. Quanto à sua constituição econômico-social , vejam-se os seguintes esclarecimentos:

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A formação da região foge aos parâmetros da formação históri­ca de Minas Gerais, O Vale começa a ser colonizado no século XVIII, através das atividades mineradoras, principalmente a ex­ploração de diamante. Inicia-se o povoamento pelo Serro (1700), seguindo de Diamantina (1713): a primeira povoação é a Vila do Príncipe, capital da comarca de Serro do Frio; a segunda, o Ar­raial do Tijuco, demarcado em 1731 como Distrito Diamantino. A maioria das cidades, formadas até o terceiro quartel do século XVIII, ficam no Alto Jequitinhonha e dedicam-se à mineração.

(00') A extração do ouro e do diamante acelerou o processo de povoamento e de urbanização, acarretando problemas no abastecimento de gêneros alimentícios para a região. Surgi­ram, então, no Médio Jequitinhonha, povoações que se de­dicaram à pecuária e à agricultura de subsistência, a fim de suprir as necessidades dos núcleos mineradores, onde não era permitida a diversificação de atividades.

(00') A decadência da extração do ouro e do diamante proporcionou à enorme população do Vale do Jequitinhonha um duplo movi­mento: a passagem para a economia de subsistência, ou a dis­persão dessa população em direção às terras que margeiam os rios Jequitinhonha e Araçuaí, onde havia condições para o de­senvolvimento da pecuária extensiva. No entanto, o abandono em que se encontravam as atividades agro-pastoris, os métodos rudimentares adotados e, mais do que isto, a contração da ren­da inviabilizaram ou retardaram atividades agrícolas mais ar­rojadas, fazendo prevalecer a antiga agricultura de subsistên­cia. Relatórios recentes da Fundação João Pinheiro e da Codevale configuram a região como problemática e, ao descre­verem-na em seus múltiplos aspectos, ji'isam que ainda hoje há uma estrutura fundiária defeituosa, com baixos níveis tecnológicos e reduzida ocupação de mão-de-obra.7

Na realização da pesquisa, visitamos algumas cidades do Alto e do Médio Jequitinhonha, a saber: Diamantina, Serro, Turmalina, Araçuaí, Minas Novas, Chapada do Norte, Capelinha, ltamarandiba e Berilo. Nas primeiras viagens, a maior parte era feita em estradas de terra e, ainda durante a realização da pesquisa, foram asfaltadas as estradas para Araçuaí, Turmalina, Minas Nova e Capelinha. Com o asfalto, as ques­tões que se colocavam então eram as da influência do progresso e suas

7 PEREIRA. op. cito p.I5-17.

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S Cf. BORNHEIM, Gerd. O conceito de tradição. In _ eta\. Cullura brasileira: lra­diçâo/conlradiçâo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/Funarte, 1987. p.l~.

Entre o global e o local:_ .. 129

conseqüências para a vida não só econômica e social, mas também cultural das comunidades. O asfalto facilitava a ligação do Vale com os grandes centros urbanos, as capitais - Belo Horizonte, São Paulo, Sal­vador, Rio de Janeiro -, e constituía-se em fator de modernização. Mas uma modernização tardia, como mostrarei mais adiante.

Aos nossos olhos não escapava, no entanto, a extrema pobreza de muitas comunidades locais. O que levava a um movimento de migra­ção de massas trabalhadoras muito grande. Os jovens e os adultos iam para outros estados, sobretudo São Paulo, ficando fora cerca de nove meses do ano. Muitos migravam para Belo Horizonte, em busca de melhores condições de vida, entre eles, cantadores e compositores, con­tadores de casos e artistas do artesanato. Ficavam no Vale as mulheres, as crianças e os velhos, lutando pela sobrevivência.

Entretanto, apesar da pobreza, as manifestações culturais da re­gião são expressivas, na literatura popular (a região está tematizada nas obras de Guimarães Rosa), na música, no artesanato. E o narrar está estreitamente ligado ao fazer, ao fabrico de produtos artesanais. São estas expressões culturais que queremos considerar agora.

2. Tradição, memória, cultura

Ao pensar a tradição em termos da cultura popular do Vale do Jequitinhonha, quero entendê-la como uma realidade dinâmica, marcada pela dialética da permanência e da mudança, pela ação conflitiva e simul­tânea de um princípio de organização e um princípio de desorganização. Etimologicamente, a palavra tradição vem do termo latino traditio, por sua vez derivado do verbo tradire, que designa o ato de entregar algo para outra pessoa, de passar algo de uma geração a outra. Ademais, o verbo tradire remete à relação com o conhecimento oral e escrito, o que implica que, através da tradição, algo é dito e esse dito passa de geração a geraçãox• Aqui vemos a dimensão discursiva da tradição: algo é enunci­ado, dito. E se se trata, pois, de passar algo, a tradição é precisamente esse movimento de passagem em que algo é transmitido e recebido. Mas é um movimento não só de continuidades e semelhanças, como também de descontinuidades e diferenças, visto que, no processo de passagem e recepção, a geração que recebe o dito o faz de forma ativa, ou seja, há um complexo trabalho de assimilação e transformação dos discursos da tradi­ção. Desse modo, a tradição pode ser vista como vestígio, traço do que se esvai, do que morre, do que silencia. Mas traço vivo do que se transforma em memória e persiste no presente, no hoje, interrogando o que é e o que

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será. A memória é, por conseguinte, uma cadeia de reminiscências, o núcleo vital e ativo da tradição. Daí se entender o fato de muitos contado­res de caso do Vale começarem suas histórias assim: "Conforme reza a tradição, que eu ouvi de meu pai, que ouviu de minha avó ... ".

Esse encadeamento não pressupõe, todavia, um tempo linear, ho­mogêneo e vazio, nem a presença absoluta do idêntico. A continuidade da tradição implica torções, rupturas, traições. A tradição necessita da ruptura para continuar. O que se dá pela recepção ativa do que se trans­mite, do que se herda.

Se a memória é o núcleo vital e ativo da tradição, ela é também o pressuposto da cultura. Então, conforme propõe Alfredo Bosi, a cultura deve ser vista como tradiçã09 • Para tanto, ele postula a superação de uma idéia reificada e estática da cultura, deslocando-se o seu conceito: não se trata a cultura de um conjunto de objetos e coisas de consumo, mas de uma ação e um trabalho. Dentro dessa concepção ergótica, a cultura é um processo, que importa mais que os seus resultados. E a cultura popular seria aquela que o povo faz no seu cotidiano e dentro daquelas condições que ele pode fazer.

Em relação ao problema da cultura popular, é preciso ter em con­ta que certas abordagens tanto marxistas quanto funcionalistas tende­ram a considerá-la como uma totalidade orgânica, ressaltando quer a sua relação com as estruturas ideológicas da sociedade, quer a sua co­esão interna, em que cada elemento (hábito, crença, técnica) tem o seu significado na economia do todo. Essas abordagens, conquanto tenham contribuído bastante para a compreensão da cultura popular, incidiam freqüentemente em análises dicotomizantes, dualistas, que separavam as esferas do popular, do massivo, da esfera do erudito, do culto, con­fundindo as instâncias do popular e do massivo. Conformadas por uma epistemologia e uma visão de história modernas, privilegiavam a com­preensão totalizante e sistêmica do problema, de teor homogeneizante.

Entretanto, mesmo na compreensão gramsciana da cultura popu­lar como expressão das condições de vida do povo (ou seja, os grupos subalternos), por oposição à cultura erudita, expressão da elite, do mun­do oficial, Gramsci já advertia, em suas observações sobre o folclore, para o fato de que o povo não constituía uma coletividade homogênea de cultura, apresentando estratificações culturais que nem sempre podiam ser identificadas em sua pureza, conquanto o isolamento histórico de de­terminadas coletividades populares fornecessem a possibilidade de certa identificação 10. Ou seja, Gramsci já sublinhava o caráter heterogêneo da cultura popular, marcado pela presença seja de elementos conservadores e reacionários, seja de elementos inovadores e progressistas, capaz de

9 Cf. BOSI, Alfredo. Cultura como tradição. In BORNHE IM, Gerd et a!. Op. cil. p.3l-58.

la Cf. GRAMSCI, Antonio. Literatura e l'ida nacional. 3. ed. Trad. de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Ci­vilização Brasileira, 1986. Observações sobre o folclore , p.1 ~3-190 .

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11 CHAUí, Marilena. Como superar a dicotomia entre con­formismo e resistência? In HERLINGHAUS, H., WAL­TER, M. Op. cil. p.170.

Entre o global e o local: ... 131

absorver e reelaborar motivos oriundos da cultura dominante, combinan­do-os com outros das tradições precedentes. Já se salientou também essa capacidade vital da cultura popular de assimilar e transformar elementos urbanos afetados por novas tecnologias, de entrelaçar o novo e o arcaico, de se apropriar e transfigurar os elementos da cultura de massa.

Gostaria de frisar então esse caráter heterogêneo da cultura po­pular, estendendo-o à esfera da cultura em geral. E de considerar a cultura popular, a partir de uma formulação de Marilena Chauí, como "um conjunto disperso de práticas, representações e formas de consci­ência que possuem uma lógica própria" 1 I. Mas uma lógica que, ao invés de ser um dado apriorístico, constitui-se dispersamente durante os acon­tecimentos, respondendo a condições novas, diversamente do que ocor­re na cultura de massa, em que se tem uma estrutura totalizante, dotada de regras e referências que precedem o ato comunicativo. Assim sen­do, a cultura popular não consistiria, como expressão de grupos domina­dos, numa outra cultura ao lado ou no fundo da cultura dominante.

Com essa formulação, é possível esquivar-se de uma visão tanto romântica quanto ilustrada da cultura popular. Segundo a primeira, a

cultura popular coloca-se como guardiã da tradição e do passado, como manifestação da alma popular; para além de uma cultura ilustrada, eru­dita, haveria uma cultura pura e autêntica, primitiva e comunitária. Já para a perspectiva ilustrada, não passaria a cultura popular de um mu­seu ou arquivo, daquilo que se entende como "tradicional", que a moder­nidade se encarregaria de desfazer, sem possibilidades de reação. Tanto

em uma quanto em outra, observa Chauí, a cultura popular é entendida como uma totalidade orgânica, fechada em si mesma, estando incapaci­tadas ambas de apreender as diferenças culturais. Todavia, em sua com­preensão da cultura popular, Chauí mantém-se atrelada a uma lógica binária e dicotomizante, dificultando o entendimento do popular hoje,

que não mais se vincula fixamente a grupos subalternos.

3. Entre o local e o global: reciclagens culturais

Ao se examinar a ação dos atores culturais do Vale e os materiais

dela resultantes, logo se percebe a estreita relação com o cotidiano, com

o mundo concreto da vida e do trabalho. Nas canções e histórias popu­

lares da região é comum a referência a uma série de ofícios através de personagens como o roceiro, o canoeiro, o machadeiro, o boiadeiro, o

tropeiro, o arrieiro, a tecedeira etc., flagrados em sua ação. Nelas fica

evidente também uma aguda consciência das diferenças e desigualdades

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sociais, da precariedade das condições materiais de existência. Na can­ção "Tropeiro", tematiza-se a diferença social decorrente da proprieda­de: "Você me chama eu tropeiro/ E eu não sou tropeiro não/ Sou arrieiro da tropa, Marcolino,l O tropeiro é meu patrão". Já numa outra canção, "Oh! vida triste", o que se destaca é a percepção contundente das desi­gualdades nas condições de vida, associada a elemento de caráter utó­pico - o sonho: "Oh vida triste é a vida da pobreza/ Oh vida alegre é a vida da riqueza/ As horas certas tem a cama e tem a mesa/ Eu quero dormir um sonho no colo de uma princesa". Esse mundo dos ofícios sobretudo manuais, um mundo pré-moderno, mantém estreita vinculação com o mundo mítico-religioso, dos rituais e das festas, retratado em canções como "Folia dos Santos Reis", "Bendito do Rosário", "Penitên­cia", "Batuque do Presépio".

As histórias e casos recolhidos junto aos narradores populares do Vale revelam a existência daqueles dois tipos de narradores populares descritos por Walter Benjamin: o narrador sedentário, o artesão, que permanece na comunidade e se torna o guardião da memória coletiva, preservando seus valores e costumes, de um lado, e, de outro, o narrador nômade, viajante, que traz em seus relatos o saber do outro12 • Esse narrador viajante é hoje o migrante, que vai trabalhar nos grandes cen­tros urbanos e volta trazendo suas experiências muitas vezes de sofri­mentos e frustrações, minimizadas talvez por algum equipamento ele­trônico na bagagem: um aparelho de rádio, um televisor. Mas nos relatos desses narradores populares percebe-se a importância da experiência e do conselho, garantias da autenticidade do que enunciam. Em Araçuaí ouvimos de um desses narradores, o velho Paiada, um lema bastante ilustrativo disso: "Falo porque vi e vivi e posso provar!"

Muitos desses narradores populares do Vale são artesãos. Benja­min também já explicitou a íntima conexão desse mundo das artes e ofícios manuais, que sofrerá profundas transformações com o advento da produção industrial, com as narrativas populares. Uma vez que os homens jovens e adultos normalmente vão para as grandes capitais, buscando, em trabalhos temporários na construção civil ou no corte de cana nas usinas de açúcar, o sustento para si e a família, no Vale ficam as mulheres, as crianças e os velhos, que vêem no artesanato uma for­ma de aumentar a renda familiar e se livrar da fome. Daí que, em sua maior parte, os artesãos do Vale sejam mulheres - tecedeiras, tapeceiras, bordadeiras, paneleiras, ceramistas -, marcando a produção artesanal com um traço feminino, através de peças que tematizam o labor e cotidiano das mulheres, das mães: bonecas de barro, mulheres grávidas, mulheres amamentando, mulheres tecendo ou bordando, etc. Todavia, gran-

l' - Cf. BENJAMIN, Walter. o

narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In

. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1985. Vol. I - Magia e técnica. arte e política - ensaios sobre literatura e história da cultu­ra. p.197-221.

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de parte dessa produção artesanal - tapetes, colchas, moringas, bilhas, vasilhas etc. - tem um caráter extremamente prático, utilitário, relacio­nado às demandas e necessidades do dia-a-dia, dos afazeres domésticos.

Esse universo do artesanato, das histórias e canções, das festas (Folia de Reis. Festa do Rosário, Festa do Boi de Janeiro) e danças regionais (a dança dos Caboclinhos), encontrado no Vale do Jequitinhonha, constitui o mundo da cultura popular, por meio do qual grupos subalter­nos constroem suas formas de comunicação, dando visibilidade social e simbólica à sua existência. Um mundo marcado pela presença do tradi­cional, do arcaico, das expressões culturais étnicas próprias de comuni­dades negras e mestiças espalhadas pelo Vale e que procuram preser­var suas raízes africanas e indígenas. Nele pode-se ver bem a localida­de cultural: a prevalência de traços locais, de singularidades históricas regionais, reveladores de que as expressões e mensagens simbólicas são produzidas sempre na dimensão do local, podendo avançar no sen­tido de transcender suas fronteiras regionais e afirmar-se em termos nacionais ou transnacionais. O que possibilita a uma cultura local esta­belecer relações complexas com outras formas culturais e até se tomar hegemônica, isto é, traduzindo em vocabulário contemporâneo, globalizar­se. De modo que se poderia dizer que o global é o local hegemônico.

Os aspectos até aqui levantados em relação à cultura popular do Vale do Jequitinhonha não devem sugerir, no entanto, que no Vale se en­contraria um patrimônio de processos e mensagens simbólicas autêntico, puro, incontaminado por elementos alienígenas, contendo marcas indelé­veis de uma identidade regional e até mesmo nacional. Uma tal inferência consistiria em grave prejuízo para a compreensão dessas formações cul­turais locais, por constituir-se numa regressão àquela idéia romântica da cultura popular como totalidade orgânica e autônoma, guardiã da tradição e do passado, da genuína alma popular. Uma cultura ameaçada e em vias de ser destruída pelos processos de modernização, tocados pela raciona­lidade instrumental tecnológica própria do projeto europeu de uma moder­nidade centrada. Ao contrário do que se poderia imaginar, o que ocorre no Vale é um processo intenso de mesclagens culturais decorrente das trans­ferências interculturais, em que se combinam elementos os mais tradicio­nais e arcaicos com os mais modernos produtos da tecnologia, a comuni­

cação oral primária com as técnicas dos meios eletrônicos e massivos de

comunicação, o rural e o urbano. E que bem exemplifica o fenômeno da hibridação cultural designado por Canclini. Um fenômeno relacionado, a meu ver, com os procedimentos da reciclagem cultural.

Para melhor se compreender tal fenômeno há que se levar em conta o fato de que a modernização no continente latino-americano se desenvol-

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ve de fonnas diferenciadas e desiguais nos seus diversos países, em que à modernidade cultural nem sempre corresponde uma modernização socioeconômica, industrial. O que gera freqüentemente a noção de uma modernidade truncada, falha, se comparada ao modelo europeu. Mes­mo num único país, como o Brasil, tomado em suas várias macro e microrregiões, percebe-se um avanço desencontrado dos processos mo­dernizadores, o que temos designado por modernização tardia. Aqui se destaca o papel desempenhado pelas grandes metrópoles, nonnalmente as capitais, como pólos irradiadores da modernização econômica e cul­tural para as regiões mais afastadas. Capitais que, integradas ao merca­do global de consumo por meio da atuação massiva dos meios eletrôni­cos de comunicação e dos processos mediáticos, experimentam a disso­lução das fronteiras entre o próprio e o alheio, entre o culto e o popular, entre o centro e a periferia, convivendo com diversas ordens de proble­mas, afetos tanto à modernidade quanto à pós-modernidade. Capitais que se debatem em meio a conflitos e impasses em variados níveis, devido à superposição de diferentes temporalidades e espacialidades, em que se mesclam o arcaico e o tecnológico, o rural e o urbano, o local e o global, resultando num intenso movimento de negociações das iden­tidades, que já não se definem mais territorial e monolingüisticamente e, sim, de fonna transterritorial e multilingüístical3 •

Um exemplo ilustrativo do que estamos falando: minhas primei­ras viagens às cidades de Araçuaí, Tunnalina e Minas Novas, no ano de 1987, foram em estradas de terra, em sua maior extensão ainda não asfaltadas, e que demoravam em tomo de doze ou quatorze horas de muita poeira. No governo Newton Cardoso, eleito em 1988, o asfalto estendeu-se da região do Alto ao Médio Jequitinhonha, chegando até Tunnalina, Minas Novas, Capelinha. Presenciei, nesse momento, dis­cussões de lideranças comunitárias e culturais do Vale a respeito das vantagens e ameaças do asfalto, num caso flagrante de modernização tardia. Nas últimas viagens que fiz a essas cidades, em 1990, já pude desfrutar das vantagens do progresso: com viagens mais curtas, comi menos poeira. Curiosamente, em entrevista a um canal de televisão logo que eleito, ao ser indagado sobre os projetos de seu governo para o Jequitinhonha, esse mesmo governador havia salientado o da pavimen­tação asfáltica de mais estradas e também a construção de fábricas de louças na região, visto que aquelas coisas de artesanato não geravam muito emprego. Eis aqui uma clara visão de modernização tardia aliada a traços populistas, própria das elites governantes do nosso continente. O asfalto, na verdade, tinha como objetivo maior facilitar o escoamento do carvão vegetal produzido em grandes extensões das chapadas do

13 Cf. CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cida­dãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janei­ro: Editora UFRJ, 1995. Ver especialmente a introdução.

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Vale, atendendo-se à demanda sobretudo das usinas siderúrgicas situa­das na região metropolitana da capital mineira, especialmente as da ci­dade de Sete Lagoas, e, obviamente, os interesses das companhias de reflorestamento que investiam na plantação de eucalipto no Vale.

No IV Encontro dos Trabalhadores Migrantes do Vale do Jequitinho­nha, acontecido em Minas Nova à época, acompanhando as discussões realizadas, pude visualizar melhor as conseqüências desse projeto modernizante: muitos pequenos proprietários rurais vendiam suas terras para as companhias reflorestadoras e iam trabalhar como assalariados nas plan­tações de eucalipto, matando formigas; ou engrossavam as fileiras daqueles que migravam para as capitais em busca de emprego. Uma leitura predomi­nante do comportamento desses pequenos proprietários, realizada então, realçava o caráter conformista de sua atitude e valorizava a daqueles que preservavam suas terras, mesmo que áridas e sem recursos para plantar e produzir qualquer coisa. Hoje me pergunto se um tal procedimento não implicava difíceis estratégias de negociação, e mesmo de resistência, frente às novas realidades impostas pelo progresso. Em outros grupos de discus­são, por ocasião desse mesmo Encontro, procuravam-se traçar estratégias de resistência e de negociação com governo e empresas quanto a implanta­ção de barragens e de fábricas de celulose na região, tendo em vista o impacto social e ambiental dessas medidas.

As interações desse processo de modernização com as formações da cultura popular são muito complexas e com implicações nem sempre previsíveis. Se, por um lado, assiste-se à desestruturação de grupos de congada e das festas nas zonas rurais, por exemplo, de outro, percebe-se a sua transferência para as periferias das cidades do Vale, ou mesmo para as capitais. Penso que uma melhor abordagem desses fenômenos de trans­ferências interculturais, relativos ao popular, ao folclore, requer a rejeição de certas teses imbutidas em estudos clássicos sobre o assunto.

Uma delas proclama a supressão das culturas populares pelo mo­derno. O que, na realidade, não ocorre. Com efeito, longe de desapare­cerem, as culturas tradicionais se desenvolveram e se transformaram em novos contextos, modernos e urbanos. Canclini já observou que o avanço da indústria cultural e da comunicação de massa, as transforma­ções tecnológicas e culturais, derivadas da combinação da microeletrônica com a telecomunicação, não destruíram o folclore. Ao contrário, segun­

do ele, a indústria do disco, os festivais de dança, os meios de comunica­

ção de massa - em particular, o rádio e a televisão - contribuíram

para incrementar a produção do artesanato e para divulgar as canções e as danças populares, amplificando-os em escala nacional e internacio­nal. O que atribui a algumas causas, tais como: a impossibilidade de que

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a produção industrial e urbana se estendesse a toda a população; a ne­cessidade do próprio mercado de integrar ao circuito da comunicação de massa estruturas e bens simbólicos tradicionais, como meio de atingir aquelas camadas populares ainda à margem da modernidade; o interes­se dos governos e políticos pelo folclore, como forma de alcançar hegemonia e legitimidade; e, por fim, a continuidade da produção cultu­ral dos setores populares14• Em conseqüência disso, combinadas a for­mas culturais urbanas, as manifestações culturais tradicionais e dos cam­poneses já não são a parte predominante da cultura popular.

As transformações e constatações acima apontadas não devem su­gerir, no entanto, a exaltação do mercado e da técnica como instâncias de promoção e bem estar da cultura popular, mesmo porque as interações entre tais instâncias e os produtores da arte popular costumam ser tensas e conflituosas, envolvendo árduas e complexas estratégias de negociação.

Tais transformações são bem visíveis na cultura popular do Vale do Jequitinhonha. Em uma canção intitulada "Trem da História", Rubinho do Vale articula uma expressiva metáfora do que está subjacente a es­sas mudanças; sua letra fala de um trem que vem do Jequitinhonha em direção às capitais, parando em toda estação e "unindo trilhos urbanos/ com outros trilhos rurais". Aqui, expressão de umajá arcaica revolução industrial, a locomotiva e os trilhos compõem uma interessante imagem dessa modernização tardia que mescla o rural e o urbano, transforman­do as formas culturais populares.

A presença do rádio e da televisão nas cidades do Vale, sendo que muitas delas já usufruem do vídeocassete e dispõem de locadoras de vídeo, promove combinações inusitadas do popular com a cultura de massa, e mesmo com o erudito, revelando aquela capacidade vital da cultura popular de assimilar e transformar elementos urbanos e tecnoló­gicos. Me lembro de que, entrevistando Sá Luíza, concorrida benzedeira de Araçuaí, pude apreciar essas combinações: em seu rústico quarto onde realizava as benzeções, havia uma cômoda antiga junto à parede e sobre ela um aparelho de televisão, circundado de imagens de santos, e, pendurados na parede crucifixos, cruzes, reproduções de imagens de diversos santos e santas, benditos, santinhos. Enquanto conversava com Sá Luíza, me recordo disso, o televisor estava sintonizado num canal que exibia o desenho animado do pato Donald.

Na casa de Zefa, artesã de Araçuaí, que trabalha com esculturas de madeira, fiquei admirado com o fato de as paredes do cômodo onde trabalhava estarem cobertas por recortes de capas e páginas das revis­tas da grande imprensa (Veja, Manchete, Isto É), contendo fotos de artistas, políticos, cenas das grandes cidades etc. Perguntei-lhe sobre a

I. Cf. CANCLINI, Néstor G. Culturas híbridas. op. cit. p.200.

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razão daquilo e ela me disse que buscava inspiração naquelas imagens para criar suas peças. Zefa, por sinal, nos contou "causos" bastante hu­morísticos sobre o primeiro automóvel que chegou em Araçuaí, ou o pri­meiro avião que passou por lá, causando muito susto. No caso do automó­vel, um morador da cidade, ao deparar-se com os faróis do carro brilhan­do na noite. ao entrar na cidade, julgou tratar-se de um monstro terrível, um lobisomem. Em Chapada do Norte, cidade que me chamou a atenção por causa da persistência de crenças em feitiçarias, não foi possível gra­var as histórias de alguns contadores, nem fotografá-los, por acreditarem que, ao registrar sua voz, teríamos a posse de suas almas. Entretanto, nessa mesma cidade, na sala da pensão em que me encontrava hospeda­do, várias crianças passavam a manhã em frente ao televisor assistindo, no programa da Xuxa, a desenhos animados de ficção científica.

São exemplos significativos do intrincado processo de absorção e transformação dos elementos urbanos e tecnológicos pelo popular, nas comunidades locais do Vale, em que diferentes temporalidades e espacial idades se superpõem na mescla do arcaico com o novo, da men­talidade mítico-mágica com a racionalidade iluminista e tecnológica, do erudito com o popular. Em muitos relatos que ouvi do "Seo" Joaquim, criativo contador de "causos" de Minas Novas, versando sobre homens valentes que lutam com vários soldados ao mesmo tempo, derrotando­os, percebe-se a apropriação de elementos das canções de gesta medi­evais, cuja penetração no Nordeste brasileiro se fez pela presença de textos como Carlos Magno e os doze pares de França. O que aponta para as contaminações e mesclagens entre literatura oral e literatura impressa, letrada.

Os meios de comunicação de massa, especialmente o rádio e a televisão, contribuíram muito para essas fusões e hibridações culturais. Possibilitaram a divulgação da cultura popular do Jequitinhonha para além das fronteiras regionais, em escala nacional e internacional. Esti­mularam e apoiaram a realização de festivais de cultura popular na re­gião, associados a entidades governamentais, como a Codevale, e não­governamentais, como o Movimento de Cultura Popular do Vale do Je­quitinhonha. Produziram inúmeros programas e documentários sobre a sua cultura.

Há que se destacar aqui os festivais de música popular promovi­dos por vários municípios da região, momento propício para se observar a atuação dos cantadores populares, mesclando ritmos locais, como o batuque, a toada, com ritmos cosmopolitas, como o rock, resgatando longínquas influências, como a presença do estilo medieval na canção "Tirana da Rosa". E a indústria do disco possibilitaria o incremento des-

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se trabalho, dado que vários desses cantadores têm produzido seus dis­cos de forma independente e alguns já contam com o suporte de gran­des gravadoras.

Quanto ao artesanato, a sua divulgação pela mídia ampliou o seu mercado consumidor, aumentando a produção. As criações de Maria Lira Marques, Ulisses Pereira Chaves, Zefa, Dona Isabel e de tantos outros já encontram consumidores provenientes dos grandes centros urbanos, e até do estrangeiro, conscientes da valiosa marca cultural de suas peças. Essa interação com o mercado urbano acarreta modifica­ções na percepção que os próprios artesãos têm de seu trabalho: as suas peças perdem o caráter "utilitário" em função do "estético", pas­sando a ser vistas como "enfeites". As demandas desse novo mercado, mais distante, têm influído na dimensão das peças, como a redução do tamanho das bonecas de barro, para ficarem mais apropriadas à emba­lagem e às longas viagens.

Esses aspectos, até aqui observados, permitem afirmar que a cul­tura popular do Vale do Jequitinhonha já habita um entre-lugar, um espa­ço intervalar entre o local e o global, em que o que se destaca é o processo de hibridismo cultural. Esse processo será melhor compreen­dido se levarmos em conta o fenômeno da reciclagem cultural. Para tanto, há que se ter presente o papel e a ação de certos atores culturais: os próprios artesãos, os contadores de casos, os cantadores do Vale, associados a outros artistas, pessoas e grupos envolvidos com o popular. Trata-se especialmente daqueles que migraram do Jequitinhonha e vie­ram para as capitais e que, nas grandes cidades, procuram preservar e divulgar a sua cultura de origem. E o fazem envolvendo-se com outros atores sociais e culturais, com sindicatos, partidos políticos, com órgãos governamentais de cultura, com associações culturais, com setores uni­versitários e acadêmicos. E aqui já é preciso se desfazer da tese que faz do popular um monopólio de setores populares, visto que nem todos envolvidos com a produção e o destino da cultura popular do Vale do Jequitinhonha são oriundos ou pertencentes às classes populares.

O que esses atores culturais estão realizando, a meu ver, é um intenso trabalho de reciclagem cultural dos materiais populares do Vale. Segundo Silvestra Mariniello, a reciclagem cultural é resultado de um retorno da oralidade, associada à aparição de uma oralidade secundária, a do audiovisual, da informática '5. Segundo ela, ao eliminar e reduzir as barreiras geográficas, lingüísticas, culturais e sociais, os meios de comu­nicação de massa vão acelerar os processos de reciclagem cultural, dando a eles maior visibilidade pela passagem de um meio a outro (do escrito para o cinema, por exemplo). Desse modo, a reciclagem cultural

15 a. MARINIELLO, Silvestra Le discours du recyclage. In ____ , DIONNE, Claude, MOSER, Walter (Ed.). Recyclages: économies de /' appropriafiol1 cu/fureI/e.

Montreal: Éditions Balzac, 1996. p.7-20.

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16 Cf. RAMA , Angel. Los procesos de transculluración en la narrativa latinoamerica­na. In . La 1/ol'ela en América Latina: panoramas 1920-1980. Bogotá: Instituto Colombiano de Cultura. 1982. p.203-234.

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caracteriza-se pela produção de discursos híbridos, a partir do uso de materiais múltiplos e heterogêneos, em que a escrita é invadida pela oralidade e vice-versa. O que faz com que as práticas da reciclagem sejam portadoras de instabilidade, ameaçando as identidades dos dis­cursos e das formas culturais locais ou globais.

Um exemplo dessa prática da reciclagem em relação à cultura popular do Vale pode ser apreendido na literatura oral. Muitos contado­res de "causos" são pessoas oriundas do Vale mas que migraram para a capital mineira há alguns anos e vão reproduzindo ou reinventando as histórias de lá. Costumam participar de shows e eventos culturais, de rodas de conversa, onde contam as histórias do Vale. É o que fazem, por exemplo, Gonzaga Medeiros e Tadeu Martins, que já publicou livros com os seus "causos". Deslocadas do contexto popular, do circuito comunicacional da oralidade primária, tais histórias se parecem a frag­mentos de um mundo em transformação, reapropriados e reutilizados no espaço da oralidade secundária, onde recebem um novo tratamento. Ainda que de modo diferenciado, tais contadores repõem em circula­ção, no mundo mediático e do simulacro, dos narradores pós-modernos, as marcas da experiência e do vivido que embasavam as narrativas populares, matrizes estas de tantas obras clássicas da literatura brasilei­ra, a exemplo de Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa.

Também os cantadores populares do Vale praticam a reciclagem cultural, ao reutilizarem as canções da região, dando a elas o suporte do compact disc, retrabalhando suas sonoridades por meio de equipamen­tos sintéticos, do sampler, remodelando-as segundo novas possibilida­des rítmicas. O que permite uma amplificação em escala infinita das vozes musicais das gentes do Jequitinhonha. Sirva de exemplo o CD Jequitinhonha Vale Brasil: música popular e folclórica, com performances dos cantadores Frei Chico e Lira Marques, Rubinho do Vale e Coral Trovadores do Vale, com livreto bilíngüe, português e ale­mão. E também o CD Beira mar novo, também do Coral Trovadores do Vale, formado por professoras, artesãos e pequenos trabalhadores de Araçuaí, cidade do médio Jequitinhonha, cuja primeira gravação foi Ainda bem não cheguei, uma produção em vinil de 1984, reunindo inúmeras canções populares da região.

Segundo Angel Rama, dentro da modernidade, os intelectuais le­trados desempenham o papel de instâncias mediadoras do processo de transculturação l6 • São os transculturadores, que tomam onipresente a modernidade e o regime da escrita, garantindo fixidez e estabilidade à cultura e favorecendo, ao mesmo tempo, o seu desenvolvimento e con­trole pelo Estado. Num raciocínio analógico, gostaria de dizer que os

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cantadores e os contadores das histórias e "causos" do Vale, ao resga­tarem e amplificarem hoje a voz, constituem-se em transvocalizadores. Reciclam esse traço persistente e sempre atual de antigas formações culturais, dando-lhe novas possibilidades no mundo mediático e informático das formações culturais globalizadas. Mas, ao fazê-lo, ati­vam mecanismos de instabilidade que ameaçam as identidades cultu­rais, revelando a heterogeneidade da cultura e problematizando a nossa própria visão da história.

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1 Carlos FUENTES, "Las dos .-\méricas", relato incluido en Elnaranjo. Madrid: Alfagua­ra. 1993. Todas las citas corresponden a esta edición. Usamos la sigla LdA seguida por el número de página. Ob­,ervamos que en a1gunas ediciones y resenas periodísti­cas el título se amplía: EI naranjo () los círculos dei riempo. Algunas de estas observaciones se presentaTOn en mi ponencia "Multicultu­ralismo y sujeto de fTOnteras en EI Naranjo de C. Fuentes". Actas dei 1'" Congreso de la Asociación Argentina de Hispanistas. Córdoba-Argentina .• 1999.

, Carlos Fuentes clasifica de esta manera a los relatos en la entrevista realizada por Jorge Halperin, .. Esta/llos mejor que e/1 la época dei boo/ll", Clarín. julio 1993.

J Cristóbal COLÓN. Textos-'

docu/llentos cO/llple flls. Pró­logo y notas de Consuelo Varela. Madrid: Alianza Edi­torial, 1982.

la

"Las dos Américas" de Carlos Fuentes 1 •

La trad ición búsqueda dei

hispânica y lugar común

Graciela M. Barbería Universidad Nacional de Mar deI Plata

...nuestra relación con Espana es tan conflictiva como la relación de Espana con ella misma: irresuelta a veces enmascarada, a \'eces resueltamente intolerable, maniquea, dividida entre el bien y el mal absoluto.

Carlos Fuentes, El espejo enterrado, 28

Cuestiones previas

N uestro interés por la lectura de la última de las "novelas breves"2 que forman el volumen El naranjo deI mejicano Carlos Fuentes, intenta desentrafiar el espesor de la escritura, a los efectos de mostrar algunos aspectos que el relato absorbe de los textos deI pasado, en este caso los escritos por Cristóbal Colón, los interroga de acuerdo con el imaginario contemporáneo y los reescribe en el posquinquenio. Mediante un itinerario que instala un "mundo" plural, LdA interpela aI lector desde el mismo espacio de su heterogeneidad y desplaza una primera mirada focalizada en establecer las múltiples relaciones intertextuales tanto con las "fuentes colombinas"3 como con los diversos y abundantes discursos críticos. Como en muchas de sus obras, Fuentes no presenta en LdA acciones encadenadas lógicamente una a la otra, sino que construye acciones rotas e interacciones que se unen siempre de nuevo, en un cambio perma-

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nente y se asemejan a las construcciones variables de un caleidoscopio. Mezclando informaciones reales con la acción ficcional, marca a partir de la primera línea su desinterés por la cronología histórica y la vocación por destacar la causalidad de los acontecimientos políticos y sociales en el proceso cultural latinoamericano, razón por la cual los nexos

textuales entre sus prácticas discursivas revelan también sus reflexiones sobre la lectura, la escritura, las fronteras entre los discursos a la vez que apuntalan no pocas claves de lectura.

Entre el escribir y el callar

Las primeras líneas de la novela reiteran la estrategia de selección que orienta el discurso de Fuentes, aI elegir el tipo discursivo deI diario para entrecruzar las diferentes etapas de Colón navegante, en una linealidad cronológicamente indiferenciada pero condensada en tomo aI viaje que se inicia el 3 de agosto de 1492, respaldado por los reyes Católicos. También el presente de las palabras iniciales aglutina todos los tiempos, en un presente histórico que registra desde las etapas anteriores a la larga travesía hasta el regreso a Espana en nuestros días: En el vuelo de [beria soy tratado como lo que soy, una reliquia ambulante, Cristóbal Colón que regresa a Espana después de quinientos anos (252). El relato despliega su ficción, jerarquizando el plano tempo-espa­cial como anclaje de privilegio y generando un âmbito con característi­cas dialógicas; a la vez que testimonia una serie de cuestiones que aluden tanto a los contrastes geoculturales entre América y Europa como aI lugar de enunciación . Desde allí, el sujet04 activa la estrategia deI recuerdo e instala el espacio de la memoria según una doble vectorialidad: por una parte, la que se articula en tomo aI eje de "la escucha", que actualiza las palabras de su madre durante el tiempo de la infancia, y por otra, la de "la mirada"5 , puesto que el asombro ante la naturaleza antillana dispara el cotejo y la comparación entre el espacio deI mundo deI ahora con el de los puertos y las ciudades europeas deI pasado.

El signo plural deI título violenta la referencia histórica deI descubrimiento e invierte el orden establecido por la historia oficial, aI mismo tiempo que reabsorbe y entrecruza los textos colombinos, aunque privilegia la versión deI Diario deI primer Viaje para esta propuesta anticanónica y, aI mismo tiempo, refiere a los "dos momentos" que es posible advertir en el relato: el que reescribe los sucesos acerca de la América encontrada por un Colón "solitario y naúfrago", y la América de nuestros días (1992), descubierta por el mercado global, la que -inscripta en el proceso de la mundialización comercial- desdibuja sus

• En el trabajo usamos el tér· mino "sujeto" según lo plantea Francine MASIELLO: "EI es­critor procede a inventar una persona coherente dentro dei texto creativo,destinada a ejercer un control inexorable sobre la cuestión dei arte. Tal texto, produce un discurso de excepcional subjetividad por lo que el yo de la enunciación se define a través de su relación con los fenómenos que en él se nombran" (191'16). Véase también Susana R. de RIVAROLA (1989), Jorge LOZANO, Cristina PENA, Gonzalo ABRIL (1989), CORNEJO POLAR (1995).

5 A partir de esta clasificación remitimos ai trabajo de Gabri­ela TINEO, "Resonancias y c1aroscuridades en EI arpa y la somhra" en M. SCARA­NO, M. MARINONE Y G. T1NEO, La reinvención de la memoria. Rosario, Argentina, Beatriz Viterbo Editora, 1 <m: pp.43-71.

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Cfr. Martin L1ENHARD. Lu voz y SII hllella . La Habana: Casa de las Américas, 1990.

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fronteras geopolíticas y culturales. De manera tal que el sujeto trabaja en una zona de cruces y desde el presente, entreteje el pasado con el futuro e incluye elípticamente a los diferentes sujetos sociales contemporáneos: los trabajdores mejicanos , los balseros cubanos u otros grupos latinoa­mericanos que dejan sus lugares de origen para ingresar en la América anglosajona. a la vez que disena otra territorialidad que tiene aI migrante como agente principal. Esta situación, de quien vive entre dos culturas, muchas veces en conflicto, y cuya pertenencia no es ya a una sola nacionalidad sino a varias, atraviesa la mirada dei sujeto para todo cuanto lo rodea y también ante su propia individualidad, razón por la que asume en el espacio discursivo la responsabiliad de todos los lugares de significación. De manera tal que las huellas de la subjetividad no sólo enmarcan los diferentes momentos dei recuerdo actualizado, sino que modelizan transgresora y dinámicamente un ejercicio de descentramiento y rearmado de la tradición hipertextualizada e hipersemiotizada en tomo a la imagen de Colón .. Según esta perspectiva, los fragmentos deI diario senalan las coacciones internas dei escritor y crean un lugar propicio para que el sujeto recorte y elija las palabras que, en un gesto con sufici­entes semejanzas, la letra estampa en las cartas tiradas ai mar, dentro de una botella sin rumbo -lector - probable, donde se presenta y construye esa otra entidad geográfica e histórica que le es ajena - en el tiempo de escribir -, pero se desea preservar. Este trabajo de recorte y fragmentación que repite la operatoria seleccionada para el di seno total de la "novela", mina el poder deI texto legitimado por la tradición, resemantiza los signos y estalla favoreciendo una recepción múltiple.

En la misma línea de estas observaciones, prestamos particular atención a los mecanismos discursivos mediante los cuales el sujeto de la enunciación fisura la hegemonía de la letra en el contexto de la negada de Europa a América, según lo planteado Martín Lienhard: la conquis­ta o toma de posesión no se apoya desde la perspectiva de sus actores en la superioridad política-militar de los europeos, sino en el prestigio y la eficacia casi mágica que ellos atribuyen a la esc ri­turaÓ y desjerarquiza la escritura colombina tanto como pai abra asociada ai concepto de documento, como en su veracidad histórica, ya que la voz autofirmada por el uso de la primera persona recupera los acontecimientos deI pasado y los parodia en un acto que además

transgrede lo que José Luis Romero llamó la mentalidad fundadora. Simultáneamente, desdibuja la presencia deI intelectual en la linealidad discursiva, aunque algunas formas lexicales propias de nuestro tiempo insinúan su presencia entre las fisuras deI recuerdo actualizado, por donde retoma en la búsqueda de las palabras para su propia historia.

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EI fragmento dei Diario copiado por De las Casas y seleccionado para el epígrafe, transcribe una escritura cuya intencionalidad fue sefialar

lo sucedido frente a lo que se esperó que fuese . A partir dei mismo, Fuentes revisa, reescribe y actualiza la voz de Colón y hace posible una

otra historia, la de las lecturas impulsadas por el interés en problematizar el acto de nombrar y el lugar de enunciación. De manera tal que la reescritura dei Diario colombino no es sólo la retransmisión de una noticia y de un proceso "de invención" (E. Q'Gorman), sino fundamen­talmente un ejercicio de revisión y mostración sobre los comienzos de la ciudad letrada ( A. Rama 1984). Este ejercicio de lectura y reescritura dei Diario traducido por Las Casas, cuya intención fue sefialar lo que era frente a 10 que se quería que fuese, también incluye el reposicionami­ento de la mirada, ellugar desde donde se restablece el pasado colectivo y se disefia un texto alternativo que simultáneamente testimonia simbó­lica y oficialmente el proyecto político de la corona espafiola, a la vez que lo refuta con una palabra desprendida de toda imposición y distan­ciada de lo que la costumbre ordena hacer (229). Este gesto de auto­determinación se entreteje con el imaginario colombino y en diálogo con las imágenes que incluyen a la naturaleza antillana, desde lo más amplio (el mar) hasta ellímite interior dei espacio transitable (la playa y la sei­va), hace que la escritura ingrese el ámbito de la utopía, el lugar en donde es posible construir otra vida "sin consecuencias", ai mismo tiempo que revisa el modo de historización: Queda Ilegar aI paraíso, y en el

Edén no hay más riqueza que la desnudez ... Acaso ése era mi verdadero sueno. Lo cumplí. Ahora debía protegerlo (239). La descripción de las estrellas que lo guían durante la travesía oceánica, la transparencia dei mar, la adaptación de las semillas deI naranjo y los atributos edénicos dei paisaje se confunden con la imagen de la escritu­ra, ya que todos ellos ofician como espejos que refractan una semiosis múltiple, mediante un criterio de selección que actualiza lo ya realizado en Europa. En Pontevedra dejé un archivo falso (237). De esta manera, la letra se hace archivo, registra tanto 10 claro (los fragmentos dei Diario) como lo oscuro y desconocido (las cartas enviadas en la botella) y establece un ámbito de coexistencia, de libertad y de resguar­do ante el poder hegemónico, con 10 cual genera una zona de intertextualidad dentro de la textualidad, donde el impulso para escribir no está determinado por el as ombro ante lo desconocido o la duda acer­ca de estar en el Paraíso sino por la voluntad de autodeterminación entre el hablar o el callar.

Estas peculiaridades organizan contrapuntísticamente la lectura­reescritura dei diario según la doble vectorialidad a que referimos ini-

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7 Acerca dei origen judío de Colón existe una amplia y va­ria da bibliografia. En este trabajo solo puntualizamos textualmente esta cuestión en tanto y en cuanto la misma nos permite abordar ciertas aspec­tos acerca de la reescritura dei Diario en el marco de las re­laciones multiculturales.

8 "Madre Espaiia. lias sido crllel ('on TUS hijos israeliTas. Nos lias perseguido y expul­sado. Hemos dejado aTrás nueslras casas . nueslras tierras. nuesTros recuerdos. Más a pesar de lU ('rue/dad. te amamos Esparja y a lí anllelamos regresar. Vn día recibiráo5 a lus hijos erral/­tes ./eo5 abrirás los bra:os. pe­dirás perdón. recol1ocerás mlleSlra fide/idad a 111 lierra. Regresaremos a nueslras ca­sas. Esla es la /lave. Esla es la oración." (250). La oraci­ón se repite en distintas partes deI relato y presenta modifica­ciones. lo que nos permite proponer otra Iínea de trabajo cifrada en la relación entre la voz/oralidad y la escritura.

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cialmente. Así resulta que mientras una de dichas Iíneas consigna lo que se "percibe"y lo estampa en el papel, la otra registra la escucha que el sujeto hace en relación con sus opciones, en y desde un presente transido de pasados mediante un ejercicio que conjuga todos los tiempos culturales. En este mismo sentido, el papel, la pluma y el tintero no son simples obje­tos ubicados junto con los sombreros y abalorios (256) traídos en el batel sino los materiales que posibilitan una geografia escrituraI, y aI mismo tiempo problematizan la historia oficial a la vez que absorben el gesto productor deI sujeto enmascarado en la voz colombina, en una serie de blancos que se corresponden con deliberados espacios de silencio. Esta violencia sobre la gramaticalidad deI sistema asociada con la innovación para introducir el relato histórico y el afán puesto en reinventar quinientos anos más tarde dicho acontecimiento, le permite aI sujeto no sólo trabajar en la doble perspectiva aludida, sino indagar en la violencia encubierta ya presente en el inicio deI viaje colombino y que permanece con diferen­tes máscaras hasta nuestros días. Las palabras se multiplican hasta descorrer definitivamente lo que se reconocía silenciado, reservado aI espacio de la intimidad, y así develar e intensificar el doble movimiento imaginario que va de América a Espana y viceversa, para finalmente acudir a la autorrefutación: no soy catalán, ni gallego, ni marroquí, ni genovés. Soy judío sefardí, cuya familia huyó de Espana, después de las persecuciones de siempre, una más, una de tantas, ni la primera ni la última ( 240 F Las sucesivas negaciones y afirmaciones confirman y religan aI navegante con un tiempo colectivo histórico, sincrónico aI de la empresa colombina, cuando la política espanola puso en movimiento los límites culturales dentro y fuera deI continente. En este punto, la dualidad deI título estalla y sus relaciones con los otras relatos deI volumen que lo preceden se intensifican aI dialogar con las diferentes matrices culturales desplazadas de los discursos hegemónicos e incluir otra historia silencia­da, la de las dos Espanas: una, la de los ancestros, la de la expulsión, la deI ladino; la otra la de la apertura geopolítica, la que hizo posible el viaje, la de la lengua oficial, la dei lugar recuperado a donde se espera volver.

En consecuencia, la escritura privilegia la zona de lo oculto y ofi­cia como reactivo revi sionista que, desde la blanca mansión de los naranjos, desjerarquiza el concepto de unidad indiferenciada y de tradición, ai mismo tiempo que proyecta un texto híbrido y da una interpretación de la historia indisociable de las relaciones entre ambas oriIlas. AI develamiento deI origen entretejido con la memoria de la escucha fami­liar, se le incorpora la plegaria escrita y rezada en voz bajaS ; a las imágenes de las ciudades, la llave de la casa ancestral de la "judería de Toledo"; aI acto de escudrinar en la espesura deI paisaje caribeno, el de

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plantar las semillas deI naranjo. El árbol y su fruto ofician de lugar de convergencia entre la memoria y el olvido, entre el sujeto y los signos con que estampa su mirada desde los distintos lugares y con los distintos objetos que lo rodean , tanto en la soledad dei paisaje antillano, como cuando la geografía se ha modificado por la acción urbanística japone­sa. y cobra una diferente significación cultural. Así, mediante este ritmo peculiar entre lo dicho y lo borroneado, la letra indaga arqueológicamente entre los diferentes contextos y gradualmente restablece la cadena de los acontecimientos "otros". Este trabajo recuperador dei pasado se fisura cu ando arriba la corporación japonesa: Firmé más papeles que duran­te las capitulaciones de Santa Fe ..... me hicieron ceder las playas de Antilla (253). Firmé aturdido los diversos contratos con expendio de pollo frito y aguas gaseosas, gasolineras, moteles ... (255). La violencia se filtra por todos los lugares y la voz deI sujeto es absorbida por la palabra-acción de los que llegan y el proceso de modemización que expulsa hacia los márgenes a quienes no participan deI nuevo ordeno En este punto, la fragmentariedad no alude solamente, como en el Diario deI Almirante, a un gesto básico ordenador dei corpus colombino, sino que indica las notas convergentes de un proceso de mundialización ci­frado en el desconocimiento deI otro, a partir de lo cual se da la supresión.

Palabras finales

La escritura, distanciándose de las normas preestablecidas para el tipo discursivo dei Diario, ai desvincular la coordenada temporal entre las partes, LdA privilegia la estrategia dei fragmento como mecanismo de ruptura y fusiona las múltiples c1asificaciones que le puede dar el lector a este relato. A partir de los materiales desestimados por otros discursos, legitima otras instancias discursivas (el edicto de expulsión de los judíos, las tradiciones orales reservadas y custodiadas por el imaginario sefardita), de manera tal que la idea de texto único desaparece y la figura deI intelectual como traductor-descifrador desplaza el concepto de autor. En este contexto, LdA entreteje la voz Colón presentado, contado y di senado como integrante de la comunidad sefardita, con las palabras de uso coloquial y algunos de los interrogantes dei intelectual mejicano formulados anteriormente: i Podemos ser sin Espana? i.,Puede Espana ser sinnosotros?9. A partir dei diálogo entre textos y voces, la escritura afirma la genealogía familiar dei Almirante, históricamente debatida e incluye no sólo la cuestión de las dos Espanas que coexisten en 1492, sino que amplía una primera zona de sentido, puesto que per­mite establecer una serie de homologías, de semejanzas y diferencias

• Carlos FUENTES, EI espeja enterrado, 1992.

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con las dos Américas de fines de este milenio, a los efectos de repensar la relación centro-periferia.

Las preguntas de las primeras líneas resuenan en los fragmentos finales, cuando el regreso a Espana resulta irreversible y el extranamiento ha sustituido a la mirada. La llave de la casa natal y la plegaria abren el futuro, donde es posible la convivencia entre las singularidades culturales y, mediante un acto de imaginación materializado por la letra, se impulsa la revisión de los modelos y el develamiento de una máscara que detrás deI carnaval sustenta el avasallamiento y el habla de un imaginario que se anuda en tomo a una representación dominante de la sociedad y el estado. Por esto LdA insiste en el carácter desparejo de la historia de la modernidad que comienza con el )·iolento encuentro entre Europa y América a jines dei siglo Xl ~ porque de allí se sigue en ambos mun­dos . /lna radical recol1stitución dei uni1'e/"so (Aníbal Quijano, 1988), mientras senala paródicamente de qué manera América latina es tanto víctima tardía como casi agente pasivo deI proceso de modemización. A través deI juego entre "censura" y actos de franqueza se intenta expli­car la nueva situación en un movimiento recuperador de todas las versiones sin que ninguna sea definitiva. La constante de este trasiego es el movimiento doloroso de los pueblos . la migración , la fuga. la esperanza, ayer, hoy.

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A expressão é de Ángel Rama, exposta no li vro A ci­dade das lerras (1985), que mostra a formação dicotômi­ca das cidades americanas: uma letrada, racional, sede do poder branco e hegemônico, e uma iletrada, mística e difusa, único espaço possível dos na­tivos.

Evidentemente, o autor re­presenta a região sub-saharia­na ou África negra.

Cultura brasileira: , , a Africa e a India

dentro de nós

Vera Lúcia Romariz Correia de Araújo Universidade Federal de Alagoas

Quando Adonias Filho representa o complexo cultural brasileiro, seu olhar incide sobre a cidade americana iletrada!, seu patrimônio de ora­lidade e manifestações de um sagrado voltado para a natureza, "o teísmo silvestre" apontado por Bernardo Bernardi (op. cit.: 396) na antiga cul­tura oral grega_ De fonna subsidiária, aparecem manifestações laicas no cenário urbano, quando o autor representa elementos da cultura popular brasileira. O autor escolhe as representações africanas2 e indígenas como interfaces básicas de nossa identidade cultural, de quem o interlocutor seria a alteridade européia. A cada passo de sua narrativa, inferimos que essas culturas integrariam o interior de nosso complexo cultural, media­das, sobretudo, pelo sagrado e pela oralidade. Apesar de, em seu projeto estético, Adonias atribuir lugar de realce aos interlocutores africano e indígena, seu procedimento ultrapassa o veio particularizante. Desses grupos, o autor retira valores que constituem verdadeiros universais da cultura, como a integração com o mundo natural, a presença do sagrado e a valorização da memória.

Mas, quer na cultura africana, quer na indígena, o sagrado e a tradição oral são integrados, pois, nos povos sem tradição escrita, essa relação é transmitida e realizada pela palavra falada. Esta, para Dominique Zahan (1976), é um equivalente da água e do fogo na teolo-

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gia africana: uma potência fundadora cuja força se manifesta nas fun­ções rituais.

Como no mundo grego, religião, arte e trabalho não se separam na cultura africana, fundindo-se em um todo integrado que é a vida da tribo.

Se, por um lado, Bernardo Bernardi propõe o termo "teísmo sil­vestre", Dominique Zahan utiliza o de "templos naturais" (1976: 586) para o sagrado africano, descrevendo a profunda ligação entre o homem e o cosmos, cuja base é material e concreta. É com a natureza e seus elementos (terra, ar, fogo e água) que os africanos articulam sua relação com o sagrado, comunicando-se com os astros, a flora e a fauna circundantes, para expressarem suas dificuldades cotidianas ou milenares. O calendário espiritual é organizado de acordo com as estações da natu­reza, que delimitam o calendário agrícola e a vida da tribo; por essa razão, o espaço natural transforma-se, circunstancialmente, em ritual.

Também na cultura indígena americana o historiador Ake Hultrantz (1976) encontra essa profunda integração com os elementos naturais; entre os povos da América do Norte registrou-se o culto ao deus Mestre dos alimentos, assim como na América do Sul foi observada referência a uma deusa-mãe, protetora da agricultura. Entre nós, o Curupira dos tupis é considerado o senhor das florestas, assim como cada árvore, no relato dos caraíbas, possuiria um espírito que precisa ser, por vezes, apaziguado.

Há uma noção comum às tribos americanas - conforme registro de Hultrantz - de que espíritos vegetais guardam segredos da floresta, cuja devastação deve ser punida. Esse pesquisador recolheu o depoimento de um índio norte-americano, quando o obrigaram a cortar grande exten­são de florestas: "Devo cortar as entranhas de minha mãe?" (ibidem: 732).

Essa relação íntima dos grupos referidos com a natureza é capta­da por Adonias Filho em seus romances, onde o espaço brasileiro é den­samente impregnado por valores sagrados transmitidos pela tradição oral. Entram em cena, pois, os indígenas e os negros, estes fortemente associ­ados à África; de forma sutil, mas recorrente, surgem cantadores popu­lares que o narrador relaciona inicialmente aos antigos cegos e cantado­res videntes no mundo helênico, mas que posteriormente adquirem uma autonomia que pode ser explicada pelo fato de as culturas serem dinâmi­cas e suscetíveis à urbanização e secularização. Neste sentido, a concep­ção que o autor nos deixa entrever do complexo cultural brasileiro se expande; aos indígenas e negros acrescenta figuras da cultura popular brasileira, voz não-hegemônica, mas viva.

A escolha de grupos e subgrupos socioculturais alijados da gran­de cultura nacional, branca e hegemônica, não é aleatória; o escritor reconhece nessas matrizes étnicas e populares a base referencial de nos-

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sas narrativas, bem como atribui à oralidade espaço decisivo na compo­sição de nosso épico. Em artigo publicado na Revista Brasileira de Cul­tura (1972), o também crítico literário Adonias Filho assim se posiciona sobre a questão:

o fabulário popular engendrando a epopéia; os contos e abecedários mobilizando o repositório folclórico,fornecendo os tecidos para o romance. Em sua continuidade, a partir do século XVI até a eclosão erudita do romance nos começos do século XIX, em sua continuidade - abrangendo as contribuições indí­gena, africana, e ibérica - a oralidade executa trabalho [ ... ] ex­traordinário que a crítica histórica inoplicavelmente não asso­ciou ao romance. (ibidem: 147, grifos nossos)

Mas escritores preocupados em representar o complexo cultural brasileiro, como Mário de Andrade, registram uma espécie de estranhe­za diante do insuficiente aproveitamento que fizemos dos valores indíge­nas e africanos, o que provavelmente se deu pela força da hegemonia colonizadora de base européia. Em O turista aprendiz (1976), Mário observa que

Há uma espécie de sensação ficada da insuficiência, de sarapintação. que me estraga todo o europeu cinzento e bem arranjadinho que ainda tenho dentro de mim [ ... ] E esta pré­Iloção in\'encÍl'el [ ... ], de que o Brasil, em vez de se utilizar da África e da Índia que teve em si, desperdiçou-as, enfeitando com elas apenas a sua fisionomia, suas epidermes, sambas, maracatus, trajes, cores, 1'Ocabulários, quitutes ... E deixou-se ficar, por den­tro,justamel1fe naquilo que, pelo clima, pela raça, alimentação, tudo, não poderá nunca ser, mas apenas macaquear, a Europa. (Andrade, 1976: 60 e 61, grifos nossos)

A associação do termo Índia (país) à cultura indígena só pode ser aceita como licença poética de Mário, uma vez que não apresenta base científica de apoio. Mas quando, no final da década de 20, Mário de Andrade escreve sobre esse aproveitamento superficial das culturas afri­cana e indígena, antecipa, em quase meio século, a crítica ao que se chama de "folclorização de uma cultura" - ou seu uso como objeto exótico -, o que corroboraria sua não inclusão na identidade socio­cultural brasileira. Autores como o próprio Mário de Andrade, Guima­rães Rosa e Adonias Filho evitarão esse olhar reducionista sobre as fa­ces subalternas do país, retirando de regiões vistas como exóticas - por

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que distanciadas da perspectiva do autor - verdades humanas válidas para compreender o local e o universal, sem excludências.

No momento histórico em que Adonias escreve sobre esses gru­pos, que se entrecruzam com a cultura popular e a base rural nas ques­tões relativas à tradição oral e a um sagrado não canônico, um elemento

comum atravessa-os. Pouco valorizados nos espaços urbanos e cosmo­politas, cantadores, habitantes rurais, índios e negros constituirão a face mística e difusa do país, que encontrará no meio rural, ou nos subúrbios das grandes cidades, o exíguo espaço de expressão. Serão, sempre, dicotômicos esses espaços, porque dilacerados por uma contradição que nos constitui, hoje.

Que somos nós entre os povos do mundo, os que não somos a Europa, o Ocidente ou a América original? [ ... ] A macro-etnia pós-romana [ ... ] deji'ontou-se na América com uma nova prova­ção. Frente a milhões de indígenas e outros tantos milhões de negros, novamente se transfigurou, mais amorenando-se e mais se aculturando [,.,]. Primeiro, a contribuição européia de técnicas e de conteúdo ideológicos [ ... ]. Segundo, seu antigo acervo cultu­ral que, apesar de drasticamente reduzido e traumatizado, pre­servou línguas, costumes,formas de organização social [ ... ] ar­raigados em vastas camadas de população, [que] conduzem den­tro de si [ ... ] o conflito entre a cultura original e a civilização européia. Alguns deles tiveram sua "modernização" dirigida pelas potências européias que os dominaram. (Ribeiro, 1994: 86 e 90, grifos nossos)

Evidentemente, poderíamos inferir que a face urbana do moder­nismo brasileiro e a crescente desvalorização do espaço rural na arte relacionam-se com essa modernização conduzida por fora; desarticulan­do esse veio modernizador cosmopolita, Ángel Rama3 (1975) apresenta­rá escritores como Juan Rulfo, Arguedas, Guimarães Rosa e Mário de Andrade, a quem chamará de transculturadores narrativos - os que traduzem as tensões entre as manifestações externas e internas de uma mesma cultura.

Darcy Ribeiro chama-nos, reiteradamente, de "povo novo"; essa expressão é mostrada como resultado da "confluência dos contingentes profundamente díspares em suas características raciais, culturais e lin­güísticas" (op. cit.: 92), que nos diferenciariam das matrizes formado­ras. Somos, hoje, uma síntese tensa composta a partir de fragmentos culturais de patrimônios diferenciados.

o artigo de Ángel Rama­"Transculturação na narrati­va latino-americana" - foi tra­duzido para os Caderno.< de Opinião (Rio, 1975). Julgo fundamental a leitura desse estudo para esclarecer o tra­tamento literário de questões culturais entre nós.

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Nossa juventude, ou nossa diferenciação, fez-se a partir de dolo­rosos processos de colonização (com o índio) e de destribalização, com a escravidão negra. Darcy Ribeiro considera a escravidão uma força destribalizadora, pois "desgarrava as novas criaturas das tradições an­cestrais para transformá-las no sub-proletariado da sociedade nascente" (ibidem: 94). Também o antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira (1981) registra a depreciação socioeconômica e cultural a que são relegados jovens índios nos grandes centros urbanos brancos. Oliveira detectou experiência de jovens indígenas que, atraídos pelo fascínio tecnológico, buscam uma vida melhor nas cidades. Quando percebem que, nelas, são desqualificados socialmente, regressam a seus sistemas tribais onde são valorizados; renasce, então, dessa dolorosa experiência, um gradativo sentido de reconstrução étnica.

Outro antropólogo brasileiro, Egon Schaden (1969), observa que muitos grupos sobreviventes, após relações interculturais e conseqüente perda de elementos de sua cultura, mantêm e alimentam um forte sentido de reconstrução étnica. Essa consciência tardia de sua cultura se mani­festa, sobretudo, nas manifestações religiosas e na reiteração dos ritos mais antigos. Também Shaden nos lembra, citando estudos de Eduardo Galvão e Mário Simões, que quando culturas indígenas parecem desapa­recer, seu patrimônio étnico, religioso e psicossocial sobrevive nos mes­tiços, que passam a ocupar o mesmo território. É o caso dos índios Tenethára do Maranhão que, apesar da integração ao branco e conse­qüente descaracterização, influenciaram profundamente a subcultura amazônica, conforme pesquisa de Eduardo Galvão; também sertanejos e caboclos, distanciados de centros urbanos, teriam herdado indiscutíveis traços indígenas, como a integração com os elementos naturais.

Onde se encontrariam, no espaço brasileiro, o cantador popular, o negro e o índio? Ainda hoje, habitantes das grandes cidades, muitos trazem a selva e o campo nos valores e na retórica, unindo-se, nessa cidade iletrada, pela oralidade e por um sagrado de bases não canônicas.

No espaço urbano, o diálogo de formas e culturas se efetiva e esta base sagrada, sobretudo no que conceme aos fenômenos populares, pode laicizar-se, como lembra o pesquisador brasileiro Oswaldo Elias Xidieh (1967).

Os grupos rústicos brasileiros são com escassas exceções católi­cos . [ ... ] É um catolicismo todo especial porque reajustado, atra­

"és do tempo, ao impacto de culturas diferentes entre si. [ ... ] essa

seculari:ação se dá quando certos aspectos e valias de velhas crenças e práticas mágico-religiosas de um dado momento em

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diante, passam a ser considerados como excessivamente miraculosos e, portanto, impossíveis. Para tanto, para reduzir o

sagrado ao profano, o sério e venerável ao cômico e ridículo [ ... ] o mundo rústico dispõe, também, de um repositório tradicional de

referências irreverentes sôbre as coisas da fé. (ibidem: 111 e 135)

o pesquisador afirma, ainda, que há sempre uma possibilidade de secularização implícita nas crenças e costumes religiosos rústicos e po­pulares porque estes não se congelam no tempo, deixando-se influenciar

por novas tecnologias que, obviamente, modificam sua visão do mundo sagrado.

A concepção, defendida por Adonias Filho, de que o indianismo constituiria uma das matrizes fundamentais de nossas narrativas, encon­

tra eco na história da crítica literária latino-americana mais recente. Antonio Candido já havia traçado em 1959 um percurso desse olhar

sobre o indígena, desde o Romantismo até o que chama de neo-indianismo dos modernistas brasileiros - mais calcado em bases etnográficas.

Evidentemente, o escritor Adonias Filho, ao posicionar-se critica­mente sobre o tema, comprovou a visão de Antonio Candido referente à base etnográfica mais consistente dos modernistas brasileiros; recorren­

do a Couto de Magalhães e aos antropólogos Franz Boas e Mary Austin, Adonias enfatiza os elementos da contribuição indígena à ficção brasi­leira. A relação com a natureza, da forma étnica, transparece na compo­sição do espaço romanesco e da própria personagem, que se impregna de aspectos animais sem que isto configure uma redução estilística. Neste caso, comparar seres humanos a animais, no universo romanesco adoniano

e em outros escritores, tem seu correspondente na noção indígena, mas também católica de base medieval, de que o homem não é o senhor do mundo natural, mas um de seus integrantes, com os quais deve relacio­nar-se com respeito e em situação de igualdade.

o cenário surge ao vivo na aparição da selva, os rios e as árvo­res , as estrelas e o sol, as noites e as madrugadas. A personagem dispõe de conduta psicológica na revelação de um caráter como [ ... ] a astúcia no jabuti e a falsa esperteza na raposa . A trama episódica constitui uma seqüência lógica e engendra o centro de interesse. [ ... ] E a mensagem, que Couto de Magalhães pôde cap­tar ao examinar os argumentos, revigora os mitos indígenas. (Adonias Filho, 1972b: 150)

Essa influência indígena, defende o autor, se relacionará com as constantes literárias ibéricas e africanas, com as "tradições indígenas,

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ficcional e mítica [concorrendo] para formar a tessitura dos nossos con­tos populares" (ibidem: 150).

O crítico britânico Gordon Brotherston (1993) amplia a perspec­tiva sobre o tema. Os textos sobre a colonização da América Latina foram escritos por viajantes europeus comprometidos com o processo político-ideológico, de base judaico-cristã e eurocêntrica; nesse sentido, ouvir a voz dos autóctones é fundamental para conhecermos sua visão de mundo e dissecar valores religiosos que - até então - nos vinham filtrados pela perspectiva externa.

A primeira constatação - ou retificação - a fazer é a de que a ausência de uma escrita alfabética não significa ausência de tradição retórica; Brotherston lembra que há uma rica tradição oral tupi-guarani, como uma igualmente rica tradição watuna.

Uma leitura atenta dos próprios viajantes estrangeiros sobre a Amé­rica - posteriormente aproveitada pelos românticos e pelos modernistas - permite-nos perceber a existência de verdadeiros gêneros retóricos como narrativas orais, canções, gritos de guerra e cantos funerários, ratificando a posição de autores como Gordon Brotherston e o suíço Martin Lienhard (1993). Para este, o continente americano jamais constituiu um vazio cul­tural, pois aqui existiam "coletividades organizadas, com práticas discursivas socialmente estáveis e de grande sofisticação, fundamental­mente orais" (Lienhard, 1993: 43). Vinte e três anos antes, ainda na déca­da de 70, Adonias defende essa mesma idéia, referindo-se ao Brasil.

Com esses textos veio igualmente a visão do mundo dos povos indígenas, caracterizada, segundo Brotherston, por uma permanente ce­lebração da agricultura, uma integração do homem com a natureza e com as outras espécies, uma visão cosmogônica, além de um modo mui­to particular de conceber os limites entre o sonho e a realidade.

De um extremo a outro do continente, a visão americana da cha­mada conquistafoi captada em um mosaico de imagens, em uma variedade de fontes que têm em comum uma perspectiva indígena. Abundam exemplos de linguagem falada,fixada alfabeticamente, que com variados recursos retóricos defendem a América de seus invasores em termos tanto políticos como morais e religiosos. No momento dos primeiros contatos vemos como nas costas do Brasil os xamãs tupis tratam os padres fi"anceses e portugueses de hi­pócritas, de caribes ... e de ignorantes de Deus e do mundo indí­

gena [ ... ]. (Brotherston, 1993: 66, tradução e grifos nossos)

Em um texto oral transcrito por Miguel Léon Portilla e referido por Brotherston, a voz magoada de um índio náhuatl lamenta que te-

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nham posto preço no jovem, no sacerdote, na criança e na donzela, sem que tenham os colonizadores aquilatado as riquezas de jade e ouro das terras espoliadas. No poema "O canto do Piaga", de Gonçalves Dias, há um lamento indígena semelhante, enunciado pela voz do sacerdote indí­gena (o piaga).

Não sabeis o que o monstro procura? Não sabeis a que vem, o que quer? Vem matar vossos bravos guerreiros Vem roubar-vos afilha, a mulher Vem trazer-vos algemas pesadas Com que a tribo tupi vai gemer [. .. }

Mesmo o Piaga inda escravo há de ser (Gonçalves Dias: s/d)

Para Gonçalves Dias, a chegada do colonizador branco ameaçará a unidade étnica e religiosa das tribos, profanando "manitôs e maracás"; esse tema é muito caro ao poeta, que se diferenciará de José de Alencar por uma perspectiva mais centrada no indígena e na constatação doloro­sa de seus valores ameaçados. No poema "Deprecação", o enunciador, introjetando a visão americana, reclama de Tupã o abandono das nações indígenas e o avanço do Deus cristão; para o poeta, o deus indígena colocou em si mesmo uma máscara - "um denso velâmen de penas gentis", o que o impediu de aquilatar a tragédia dizimadora de seu povo. Esse poema é um criativo exemplo do diálogo entre os dois sagrados a partir de uma voz indígena, tão pouco ouvida na crítica literária e nas formas artísticas antigas e atuais.

No texto indígena (maia-quechua) Popol Vuh, a voz de um nativo, ao relatar a origem do mundo, afirma que os homens se distinguiram, pela primeira vez, dos animais, quando neles se instaurou a "capacidade de honrar o céu" (Pizarro, 1993: 72).

Lendo, na atualidade, textos orais indígenas, Martin Lienhard (1993) apresenta uma diferença fundamental entre ambos: nos primei­ros, a prática retórica não se dissocia de outras práticas sociais como o trabalho, o rito religioso ou o exercício político. Nesses textos orais -profundamente integrados ao cotidiano de seus autores e receptores-, não se pode falar em autonomia artística; como na literatura oral grega, as manifestações artísticas integram a totalidade da vida cultural. Como igualmente ocorreu na tradição grega, apoiamo-nos em transcrições e traduções de fragmentos culturais.

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4 Provavelmente imbuído des­se espírito eurocêntrico. José de Anchieta, no Brasil, escre­veu textos em idioma indíge­na que veiculavam ideais eu­ropeus e judaico-cristãos.

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Lienhard afirma que, por volta de 1570, o poder europeu reprimiu qualquer tentativa de transcrição de textos indígenas, temendo o ressur­gimento da memória coletiva e do orgulho étnico."' Isso evidentemente ocasionou uma representação da cultura indígena descentrada de sua base referencial; como um modernista de expressão neo-indianista, Adonias Filho supera essa lacuna lendo antropólogos ingleses das déca­das de 60 e 70. Isso provavelmente motivou sua postura crítica voltada para a importância da oralidade na vida dos povos e na composição ficcional.

Para Pierre Clastres, a palavra falada constituiu uma forma de poder político nas primeiras sociedades americanas, atribuindo prestígio a quem a utilizasse. Os indígenas consideravam-na um dever dos chefes e controlavam a veracidade, ou propriedade, de seu conteúdo, a fim de que fosse mantida a tradição.

Sobre a tribo reina o seu respectivo chefe e este reina também sobre as palmTas da tribo [ ... ] Senhor das palavras: é esse o nome que muitos grupos dão ao seu chefe. (Clastres, 1990: 107)

Essa palavra falada citada por Clastres guarda profunda seme­lhança com a "palavra antiga" encontrada por Walter Mignolo (1993) em grupos indígenas mexicanos: oral, ritual e coletiva.

Após uma viagem que fez à África, Adonias Filho escreve Luanda Beira Bahia, romance que representa a trajetória da colonização européia no Brasil, introduzindo, consciente e intencionalmente, a importância do elemento africano em nossa formação cultural. "Pedaços vivos da África estão na Bahia" - afirma nesta obra o narrador de Adonias Filho, reite­rando uma relação entre os dois continentes que se repete em sua ficção e no artigo, já mencionado, da Revista Brasileira de Cultura (1972b).

A chegada do contingente negro ao Brasil, segundo Eduardo d'Amorim (1996), faz-nos refletir sobre duas questões: a primeira, é que os negros africanos já possuíam domínio de algumas tecnologias - fato favorecedor do escravagismo negro; a segunda é que havia escravidão na África, mas para aqui foram enviados grupos de várias etnias e hierarqui­as, com desarticulação violenta das organizações tribais anteriores.

Diferentemente de outros imigrantes que, apesar do exílio e das dificuldades de adaptação, receberam um território - o que lhes possi­bilitou manter uma forma de unidade étnica -, o processo imigratório africano realizou-se em condições extremamente desfavoráveis. Com essa posição concorda Antonio Candido, para quem esse lugar inicial desfa­vorável ocasionou a tardia utilização do negro em nossa literatura. Se o índio desaparece de nossa vida pelo processo colonizador, reaparece com-

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pensatoriamente como mito literário - um paradigma de heroísmo da jovem nação. Para Antonio Candido, no entanto, o negro

escravizado, misturado à vida quotidiana em posição de inferio­ridade, não se podia facilmente se elevar a objeto estético,numa literatura ligada ideologicamente a uma estrutura de castas. (Candido, 1975: 274)

Para Maria de Nasaré Baiocchi, que escreveu Negros de Cedro, somente no início deste século a contribuição do elemento negro à soci­edade brasileira passa a ser objeto de investigação científica, em oposi­ção à do indígena.

enquanto as nossas populações tribais eram investigadas por naturalistas que compunham expedições científicas, nacionais e estrangeiras, a presença do negro na cena brasileira só transpi­rava fragmentada, como tema de literatura, nas observações fugidias feitas por viajantes. (Baiocchi, 1983: 2)

Alfredo Bosi, no ensaio "Sob o signo de Caim" (l992c), analisa alguns aspectos fundamentais da poesia condoreira de Castro Alves. Para o crítico, nossa retórica poética vai sinalizar para processos de mudan­ça, com a transformação da imagem do Brasil que, de paraíso tropical, passa a ser representado com uma nódoa social, por insistir na política escravagista. A paisagem poética que se vê nos textos de Castro Alves mostra uma contradição entre o mundo natural e o inferno social, com projeções deste sobre as cenas românticas; o poeta mostrará "palmeiras torturadas" e "epopéias manchadas" pelo estigma da escravidão. Nos limites do século XIX, Bosi vislumbra uma importante mudança no ní­vel retórico.

Fazer o continente negro dizer-se, dar-lhe o registro de primeira pessoa, foi um passo adiante no tratamento de um tema que, pela sua posição em nosso drama social, tendia a ser elaborado como a voz do outro. [ ... ] A combinação de uma África arcana ("há dois mil anos" ... ) com uma África-sujeito ("te mandei meu grito" ) é a novidade primeira do poema [ ... ] pois dá ao pretérito mais obscuro e ao mito [ ... ] o poder magnético da presença ime­diata em que se resolve todo ato de interlocução. A Áji-ica é [ ... ] um ser animado e, pela atualização do eu poético, um ser que tem consciência de sua identidade e de sua história. (ibidem: 254, grifo do autor)

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A leitura de Bosi - extremamente atenta - mostra-nos como a tradição judaico-cristã, embasada no Gênesis, atribui ao homem negro a maldição de Cam - espécie de projeção da culpa adâmica. Para esse crítico, a referência bíblica circulou nos séculos XVI, XVII e XVIII, servindo de pretexto às teologias católicas e protestantes para que, utili­zando o velho mito com propósitos mercantis, justificassem a política colonizadora européia, que aprisionava populações islâmicas - ou de outras crenças - para salvá-las da "danação de Cam".

Mercadores e ideólogos religiosos do sistema conceberam o pe­cado de Cam e sua punição como o evento fundador de uma situação imutável [ ... ]. (ibidem: 258)

É nessa perspectiva de suposta imutabilidade da história negra que recai o poeta Castro Alves quando, impregnado pelo veio humanita­rista do século XIX, diz que Deus não responde e que está "embuçado nos Céus".

Os deuses africanos, em Adonias, não se calam; integrados à com­posição narrativa, eles se tomam personagens e verdadeiros cúmplices culturais do processo enunciativo. Na novela "Simoa", a deusa negra, similar a Iemanjá, trai, desde o nascimento ("'foi nascida", sem pai e mãe), a incorporação dos valores negros africanos; o narrador justifica os rumos da narrativa pela vontade de Orixalá ou Ogum, afirmando que com estes deuses "armam-se todos os destinos". No romance Luanda Beira Bahia, a professora negra ensina ao brasileiro Caúla uma lição repleta de verdade humana: o caminho da África, que a narrativa apre­senta como o da nossa origem.

Aprendera o que tinha a aprender, a aritmética e gramática, len­do e escrevendo como ela própria [ ... ] Em certas horas,frente ao mapa do mundo para as lições de geografia, ela se comovia a ponto de, alternando a voz, também comover a c/asse [ ... ] a mão negra se abria sobre o mapa e mostrando os continentes , parava na África. A voz [ ... ] gerava paisagens e animais, pondo a selva e seus habitantes dentro da sala. (L.B.B.: 17, grifos nossos)

A noção de um saber necessário ao grupo, que não se encontra

nos livros, interfere na composição desse texto; enquanto o conhecimen­

to letrado aponta para as lições de geografia e tem seu mediador na mão do homem. o conhecimento de verdades humanas é mediado pela voz­fundamental tradutor da tradição oral africana.

Essa aprendizagem da África - não incluída nos programas for­

mais de nossa educação cultural - é apresentada no livro como um

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patrimônio que o autor quer realçar, mas que não encontra senão espa­ços intersticiais e exíguos de expressão na realidade social: é o correlato da cidade americana iletrada, de Rama (1975).

A herança africana que, culturalmente, nos chegou fragmentada, é resultado de uma grande diáspora negra, pois os africanos viram-se

dispersos em sua anterior unidade tribal. Escravidão como destribalização, o conceito de Darcy Ribeiro é corroborado por Maria de Lourdes Ban­deira no livro Território negro em espaço branco (1994); nesta obra, a antropóloga afirma que os negros tendem a constituir "grupos étnicos compartilhando uma cultura de diáspora, cujas práticas - de origem africana ou não" (ibidem: 332) - provocam uma necessidade interna de integração e externa de ampliação de "espaços negros na territorialidade branca" (ibidem).

Nei Lopes, na obra Bantos, malês e identidade negra (1988), discrimina os vários grupos étnicos negros, ressaltando que a cultura branca hegemônica acentuou as diferenças étnicas entre eles, com o pro­pósito de dividi-los e enfraquecê-los. Nesse fracionamento intencional, setores da cultura branca apontavam os negros mais ou menos aptos para a escravidão; nesse erro histórico, incorreram o crítico literário Síl­vio Romero e o médico e antropólogo Nina Rodrigues.

Apesar de as entidades africanas citadas por Adonias terem, pri­mordialmente, uma nomenclatura do grupo gêge - um dos contingentes fixados na Bahia -, não nos parece propósito do escritor representar as diferenças internas dos grupos afro-brasileiros. É intenção do autor -comprovada em seus vários livros - equiparar a importância da heran­ça negra africana à de outras culturas, próximas e distantes, que forma­ram o complexo brasileiro; evidentemente, dessa grande herança ele re­corta valores para representá-los, atuando como um redutor consciente do amplo mosaico étnico brasileiro.

Uma das divindades negras que integram a narrativa adoniana é Ogum, registrado nas etnias "yorubá", "nagô", "angola" e "gêge", confor­me registra Eduardo Fonseca Júnior, no Dicionário antológico da cultura afro-brasileira (1995). Apresentado como orixá da guerra e da agricultu­ra, Ogum é um deus do ferro, equivalente ao mito grego de Prometeu, que desce de sua condição sagrada para tomar-se defensor dos homens.

Quando Adonias Filho elege as tradições indígena e africana do complexo cultural brasileiro para seu universo representado, configura­se uma opção de autoria antietnocêntrica. Conscientemente, ele capta vozes não-hegemônicas e ilumina-as no tecido romanesco, adotando com elas um pacto de cumplicidade narrativa e cultural. É o que ocorre quan­do, do amplo acervo referencial popular, o autor escolhe a figura dos

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cantadores orais e dos artistas contemporâneos para também comporem a voz brasileira do diálogo cultural.

Na representação da cultura popular em sua obra, Adonias Filho desenvolve um percurso pequeno, mas significativo. Em seus primeiros romances, o pacto é ainda tímido e o popular aparece através de alusões a um passado rural, imerso na oralidade; na década de 80, o autor traz este acervo para sua representação do popular urbano, deixando-nos entrever uma atualização deste universo subalterno, não hegemônico, mas vivo e resistente. Vemos, então, que a voz brasileira no projeto adoniano, em permanente diálogo com outras tradições, é iluminada sob um foco que apresenta seus diálogos internos. Adensa-se, então, o caráter híbrido de sua representação quando o universo referencial se mostra mais amplo.

Que elementos da cultura popular brasileira o autor capta para, em seguida, reduzi-los e condensá-los em seu projeto literário? Embasado no grande caldo da rica cultura popular medieval, estudada por Mikhail Bakhtin (1987), o autor representa suas figuras utilizando um tom ale­gre e libertário, claramente transgressor da cultura política e religiosa hegemônica, e uma materialidade sensível que conduz uma representa­ção exuberante da vida, do corpo e de seus signos de fertilidade. Para Bakhtin, o tom alegre e exuberante era uma clara possibilidade que se apresentava de desestruturar o tom sério e contido - pernitente - do cristianismo primitivo.

o tom sério afirmol/-se como a lÍnica/orma que permitia expres­sar a l'erdade, o bem e de maneira geral tudo que era importante e considerál'el. O medo. a l'eneração, a docilidade, etc. constitu­íam por sua ve.: os tons e mati.:es dessa seriedade. O cristianismo primitivo (na época antiga) já condenava o riso. Tertuliano, Ciprião e São João Crisóstomo levantaram-se con­tra os espetáculos antigos, principalmente o mimo. o riso mímico e as burlas, (Bakhtin, 1987: 63)

A visão bakhtiniana de uma alegria libertária como gênero retórico embasado na cultura popular medieval provocou algumas críticas ao que seria um recorte unilateral desse autor. Boris Schnaiderman (1998) lembra que a leitura mais atenta de seus escritos, sobretudo os de publi­cação póstuma como Questões de literatura e estética (1988), apresenta o riso relacionado ao seu contraponto e duplo - a morte e o sofrimento ligados à tradição judaico-cristã. No ensaio contido na obra referida­"O cronotopo de Rabelais" -, Bakhtin analisa textos do romancista francês em que são representados, em tom parodístico, o jejum e a ascese medievais, bem como passagens de seres pelo mundo dos mortos.

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Julga Bakhtin que o mérito de Rabelais consistiu em trazer para o primeiro plano uma riquíssima cultura popular medieval, ainda que cons­ciente de que em diálogo com a tradição judaico-cristã. Essa consciência

favoreceu a comunicação com o leitor, imerso na tradição histórica e retórica religiosa e mesmo conhecedor de injúrias, blasfêmias e palavras de baixo calão que ecoavam nos ambientes populares, a partir de um reaproveitamento catártico dos elementos da cultura religiosa medieval.

Ao associar a alegria popular libertária a seu par relacional - o sofrimento e a morte na tradição judaico-cristã -, Mikhail Bakhtin pro­cede a uma renovação do cânone histórico-literário a partir de um apro­veitamento mais próximo da integralidade da cultura popular medieval, sem o rebaixamento que lhe foi imputado, através dos tempos, por críti­cos e escritores. Ele desmascara o sentido ideológico que, segundo suas próprias palavras, representava um "quadro falso do mundo [ ... ] rela­ções hierárquicas falsas, hostis à natureza delas [sem] contato vivo e carnal" (1997: 284).

Neste sentido, quando o escritor Adonias Filho, no livro O Largo da Palma, une as tradições populares às judaico-cristãs, percebe-se que seu texto aprende a tecer o contato "vivo e carnal" recortado de nosso complexo cultural popular. O que poderia ser captado como um rebaixa­mento retórico na perspectiva canônica da história literária tradicional resulta como uma ampliação, ainda que tardia, de referências que ama­durecerão sua obra no sentido de uma representação calcada em uma perspectiva de totalidade.

Quando Adonias Filho traz seus seres ficcionais do passado para o presente urbano, evidencia-se um elemento da cultura popular brasilei­ra já registrado por Marcos e Maria Ignez Ayala (1995): os elementos da cultura popular são permeáveis ao contexto sociocultural, não se imobi­lizando no passado de sua gênese.

Como toda cultura, ela só se mantém na medida em quefor repro­duzida, reelaborada permanentemente, e que necessariamente se transforma quando se modificam as condições histórico-sociais no âmbito das quais é produzida. (Ayala e Ayala, 1995: 62)

A esse respeito, o professor Oswaldo Elias Xidieh (1967), referin­do-se às narrativas pias populares que coletou e analisou, observa que elas incorporam modificações da vida social no tempo, sendo reelaboradas e manifestando em seu cerne signos dessa mudança, como a urbanização e a secularização.

Aliás, nas primeiras representações do universo popular que efeti­va, na década de 60, Adonias Filho atrela esses seres ficcionais a um

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mundo antigo, oral e sagrado; na década de 80, o popular representado toma-se urbano, laico e imerso em uma materialidade sensível exube­rante, já referida por Bakhtin como uma atitude de enfrentamento diante da cultura hegemônica de base cristã. Nesta última década de sua repre­sentação, o projeto adoniano faz dialogarem esses dois pólos culturais tão diversos no interior de uma mesma obra, pois o Largo da Palma representa, simultânea e contraditoriamente, o extrato popular não hegemônico e o judaico-cristão interagindo no espaço urbano, contem­porâneo e brasileiro de Salvador, com homens e mulheres negras ratifi­cando mas atualizando, no presente, as antigas heranças.

No final do romance Luanda Beira Bahia, o escritor constrói uma imagem densa de significados culturais. O pai europeu morto, um filho mestiço de índio, outro de negro, igualmente mortos, são colocados em uma embarcação para que façam a viagem de volta pela África, Europa e América. Mais que figuras individuais, essas personagens constituem representações simbólicas de nossa cultura.

O narrador adoniano, como os gregos, índios e negros que culti­vam seus mortos e integram-nos no olhar sobre o presente, avisa que farão a viagem de volta "como bons marinheiros". Essas culturas, que se mobilizaram no tempo e no espaço, "viajando", dialogando tensamente e trocando palavras e rituais, formaram o processo cultural brasileiro: como respondendo a Mário de Andrade, Adonias Filho não desperdiçou a África e a Índia que tínhamos dentro de nós.

Referências bibliográficas

ANDRADE. Mário. ( 1976) O turista aprendi:. São Paulo: Duas Cidades, Secretaria da Cultura.

AYALA, Marcos; AYALA, Maria Ignez Novais. (1995) Cultura popular no Brasil. 2. ed. São Paulo: Ática.

BOSI, Alfredo. (1992c) Sob o signo de Cam. In: -. Dialética da coloni::.ação. São Paulo: Companhia das Letras.

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COLOMBRES. Adolfo. (1993) "Palabra y artificio: las literaturas bárbaras".}n: Pizarro, Ana. Palavra, literatura e cultura. São Paulo: Memorial; Campinas: Unicamp.

FILHO, Adonias. (l972b) "Aspectos sociais da literatura brasileira". Revista Brasi­leira de Cultura. Rio de Janeiro: MEC. p.147-160.

__ o (l977a) Luanda Beira Bahia. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, (Coleção Vera Cruz, 157).

__ o (l982a) Léguas da promissão. 9. ed. São Paulo: Difel.

__ o (l982b) As velhas. São Paulo: Difel.

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Nota de pé de página e espaço romanesco: discursos de trânsitos

e traduções culturais em A rainha dos cárceres da Grécia,

de Osman Lins

Ilza Matias de Sousa Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Osman Lins é um dos autores brasileiros contemporâneos que mais provocam discussões no horizonte da leitura e da recepção do texto literário, ao reativar padrões obsoletos e resistentes do modelo estético realista, para produzir um efeito ambíguo de real e obrigar a nascer disso uma perspectiva de anamorfose ou deformação da imagem do mundo, da nação, do país.

Ele procede ao desmontamento da literatura naturalista arcaizante, reconhecidamente já arruinada, mas sustentada, pela cultura oficial, como viva e legítima. No seu trabalho de ficção, o autor exerce, principalmen­te, esse papel desconstrutor através da investigação das representações sociais que nos cercam e nos transformam, a todos, em atores, em per­sonagens que engolem nossos seres reais. Sua obra romanesca partici­pa da pós-crise da vontade de realidade que dissimula a fantasia, da qual resultam os sujeitos dispersos em papéis. Todos (e tudo) recebem o ser de

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simulacro, condição para que existam instituições humanas, fundadoras das identidades e especificidades históricas como estruturas semi óticas.

O autor promove o abalo do terreno literário, enquanto configura­ção simbólica, que participa dos processos sociais, encontrando-se en­tre as fontes de poder semiótico. No espaço verbal de seus livros, onde

discursos se confrontam e se interpelam, regidos pela instabilidade, nada se sustenta em "mesmidades", nem autor, nem leitor. Isso mostra que essas identificações podem aparecer e desaparecer na construção ficcional dos sujeitos e só a leitura consistirá no espaço de deliberação dos significados do texto.

Nos anos 70, período em que se localiza a produção de A rainha dos cárceres da Grécia, não se vive mais a crise da representação na literatura. Esta passa a ver-se como auto-referente e recusa ser substi­tuta do real. O desaparecimento de tal crise por meados do século XIX e primeiras décadas deste século, com a modernidade, não se deu sem escândalos, nem sem derrisão. A crise esgota-se na sua "monstração". Caberá à contemporaneidade o trabalho de luto. O romance de Osman Lins aparece, nesses tempos de pequenas fabricações ficcionais, como um dos responsáveis pelo retomo do drama na letra brasileira e nordes­tina. Pathos dramático que serve de recurso romanesco para ironizar o império da metalinguagem na ficção nacional.

A ironia opera, no romance, a figura do luto da representação literária e de seu poder. Polemiza, em seu interior discursivo, a literatura transformada em aparelho institucional de linguagem, que busca narrar a si própria com um grande aparato técnico, científico e analítico.

O romance origina-se do gesto criativo da enunciação irônica que declara um novo amor, uma outra intensidade dramática para a ficção, uma nova vida para a narrativa literária, subtraída do desejo de se auto­interpretar, mantendo a arbitrária pontuação subjetiva do autor.

A sintaxe fragmentária de restos, de detritos de representações culturais, de escritos canônicos, de trocadilhos homonímicos consiste no novo tecido romanesco. Tecido disjunto organizado na forma de conste­lações discursivas ao mesmo tempo contingentes e arquitetônicas. Cria­se uma nova topografia - a de um certo lugar nomeado Grécia, que é representação circense, palhaça de um paradigma literário esgotado, mas que insiste no imaginário do autor brasileiro. A imaginação osmaniana monta o discurso do espantalho, "arestada fala, eriçada de significações e de enigmas, truncados por lapsos". Discurso onde quem fala é uma outra ficção, o narrador, um espantalho feito de matéria seca e morta, de fundo falso. Máscara da máscara, num jogo devorador de eus, de um eu autobiográfico homofônico do eu ficcional.

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Nota de pé de página e espaço romanesco ... 167

o paroxismo é o tom do fingimento desse discurso que põe em movimento a própria composição do livro, desde o título, a capa, até o texto e o seu aparato de notas de pé de página. Disso resulta um discur­so de proliferação de palavras, imagens, citações, que ironizam o vistoso e ornamental simulacro de erudição - o ensaio.

Ao escolher a forma de registro pessoal e intimista do diário, a fim de executar o seu projeto de estudar o romance de Júlia Marquezim Enone, sua amiga, em estado de manuscrito, recusado pelos editores, o narrador traça o seu processo de fingimento. Tudo aí se finge: os destinadores, os autores, os atores, o texto do romance de seu duplo verbal feminino, Júlia Marquezim Enone, a intitulação, a escrita diversa da que é. Esse fingimento surge de uma analogia com o modelo grego que se corrompe pelo esquecimento. Não há mão de escriba que se feche sobre a materialidade discursiva. A máquina da imprensa faz do escritor um maneta.

Nesse lugar tenso de interpelações discursivas, as relações de sentido são produtos maquínicos, produzidos pelas práticas literárias, en­quanto práticas ideológicas de editoras, universidades, mídias, constituí­das pelas contradições das demandas sociais dominantes e da demanda dos dominados. E é no reconhecimento desse lugar nodal dominante­dominado ocupado pela literatura, no campo das produções sociocultu­rais, que o romancista instala-se. Elas sugerem que, considerada como um sistema de símbolos fechado e autônomo, a literatura não constitui, em si mesma, realidade alguma. Antes, mostra-se um discurso do es­pantalho "atroador e autônomo" (A.R.C.G., p. 154), falso enigma que só se dá à decifração por equívocos.

A experimentação incessante dessa matéria morta permite que se exiba a luta silenciosa do escritor diante da produção de sentidos e dos procedimento técnicos, estilísticos e formais, mobilizados para fazer o discurso funcionar como literário ou não. Nada assegura a transmis­são literal da história e do real.

Nas primeiras páginas do falso diário, o agente enunciador, sob o disfarce do narrador não nomeado, encena as estratégias de negocia­ção com o leitor para entrar no regime de falsos enigmas de especula­ção imaginária e de memória provisória. É dentro de um processo interrogativo, de deslizamento e inconsistência, que a textualidade do romance e a sua paratextualidade se estabelecerão na história.

O paratexto, definido semioticamente como o aparato, a ostenta­ção pública do aparelho textual- nome do autor, retrato do autor, título e intertítulos da obra, orelhas, dedicatórias, biobibliografias, epígrafes, notas, introduções, conclusões, prefácios, posfácios, advertências -,

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coloca em discurso a tensão entre as subjetividades autor e leitor em face da codificação ideologicamente orientada que põe o livro em circu­lação, determinando gêneros de textos discursivos e narrativos, ficcionais ou não. Isso se instaura dentro de determinações materiais históricas, formais ou simbólicas, observando-se injunções de autoria, leitura, edi­

ção, editoração, mercado, consumo, concorrência do livro com meio de comunicação de outras ordens culturais. Enfim, pressupõe imposições da demanda social das imagens, das demandas estéticas e morais de grupos ou classes sociais interessadas.

É no paratexto que se constitui o direito burguês do autor relativa­mente à propriedade do livro. O paratexto regula a leitura e é lugar de regulação do autor, de constituição de sua biobibliografia. Espaço ritual que erige um panteão e também espaço de intermediações entre o sub­jetivo e o objetivo, o consciente e o inconsciente. Funciona inclusive enquanto entrada, protocolo em que se registra uma dada "leitura" dos eventos do texto, a ser endossada - postumamente - pelo leitor. Ce­rimonial de passagem.

O paratexto, na escritura clássica, representa a moldura do qua­dro de uma realidade construída que pretende ser uma continuidade, sendo, apenas, uma produção arbitrária ou uma pós-produção dessa re­alidade. Na ficção romanesca, a paratextualidade trabalha duplamente o simbólico e o imaginário, pretendo funcionar como uma espécie de filtro de processos de autoria, crítica e edição.

O romance, enquanto gênero, objetivado em livro, bem simbólico e bem econômico, é tomado por um lugar não-metafísico, uma imanência reciclável e cultural de normas, concepções, princípios estético-literári­os. Tecido romanesco mosaicado, A rainha dos cárceres da Grécia faz é abalar a autoridade dos discursos arrogantes e eternos, estilhaçan­do o corpo cristalizado de escrituras consagradas e aproveitando restos de corpo de escrituras e de escritores, de que resulta uma massa de signos que se lançam no abismo do tempo e do espaço. Qual o antes, qual o depois? Qual o fora, qual o dentro? O romance está em pedaços, desfigurado. Osman Lins junta aquilo que parece estranho a si mesmo num só "corpus": ensaio e romance, verdade e ficção, texto e paratexto.

A paratextualidade literária, no romance A rainha dos cárceres da Grécia, de Osman Lins, compõe a trama ficcional e constitui um pro­cedimento estético-irônico, no sentido de instaurar a sua narratividade específica, voltando-se contra e sobre ela mesma. Escolhe o seu alvo nos processos de canonização clássicos e mostra os limites da autonomia e autonormatividade absolutas do discurso literário praticado pela moderni­dade.

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Na borda do corpo original do texto, a ironia aciona uma forma de registro do prazer suplementar do autor em experimentar a obra literá­ria, reciclar as formas, gêneros e estilos codificados na cultura. O escri­tor abre vias experimentais no espaço do pé de página e essa produção marginal dirige-se para o texto. Entre os dois, texto e paratexto, numa exorbitante escrita, emerge uma profusão de discursos não garantidos institucionalmente: quiromânticos, proféticos, esotéricos, discursos com temáticas literárias populares ou folclóricas que concorrem com discur­sos de erudição. Vulgarização e oralidade, artifício e retórica criam uma espessa camada de ironia e dissimulam o caráter desconstrutor do ro­mance.

As notas de pé de página são convocadas para servirem de marcadores dessa ironia iconoclasta. Assim, através do trabalho da pa­ratextualidade, obtém-se que

Marcar, nesse sentido, é uma forma de metacomunicação, isto é, ao longo da mensagem irônica há uma mensagem "clara", embora geralmente indireta, com a intenção de dar uma clara insinuação da nature:a real da mensagem irônica. Em termos gerais, marcar um texto irônico significa estabelecer, intuitiva­mente, Oll em plena consciência, alguma forma de perceptível contradição, disparidade, incongruência ou anomalia que pode então ser tornada natural ou assimilada ao ser reconhe­cida pelo destinatário em sua função de metacomunicação ... (Mueche, 7:363-375)

Essa composição de notas irônicas põe em funcionamento a assimetria e a incongruência entre o texto literário e o seu paratexto, entre a norma reguladora e a ficção transgressora, entre a eficácia da metáfora na tradição literária e a iconografia biobibliográfica, fenôme­nos discursivos que, nas margens da paratextualidade, emprestam ao texto suas leituras, revelando o campo mítico dessas leituras.

As notas, no romance, mimetizam a referencialidade biobliográfica que coloca o texto sob a lei cultural. Exibem-se como um rol de docu­mentos que forjam um gênero de auto-retrato oficial do autor, num en­quadramento bizarro que desnaturaliza sua autenticidade, já que altera­do pela intenção incongruente da ironia, exposta numa escrita apócrifa e secreta, intensamente cifrada.

A coleta bibliográfica e os traços biográficos, em A rainha dos cárceres da Grécia, impõem uma produção de subjetividade de signifi­cação irônica, mediante a qual o leitor é convocado a refletir sobre a constituição do discurso literário e os verdadeiros nós que ocorrem e

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interrompem as fonnações ideológicas em que esse discurso se articula, para ter o reconhecimento da lei cultural e sair da ignorância do arbitrá­rio dessa lei. A comunicabilidade da obra entra em suspeição na enunciação irônica e coloca a interação verbal num impasse, desde o

título que desorienta o leitor até a autoria disfarçada: pode-se confiar em

destinadorde mensagens duplas? A autoridade do discurso busca plasmar­se na relação de figuras de autores/leitores que legitimam, comentam e expõem, trazem a público a obra produzida por outro, citando-o. Sujeito da organização textual, o autor exerce uma prática de escrita /leitura com pre­tensão a impor, na esfera cultural, um programa estético consistente. A ironia desaloja autoridades, no processo de autoria do romance de Osman Lins, e convoca a consistência a se mostrar a cada reinterpretação discur­siva.

As notas entram no jogo romanesco como duplo irônico do texto ensaístico. O emprego da anamorfose no ângulo de visão adotado para construir o cenário do discurso bizarro, que o narrador-espantalho "atroa­dor e autônomo" produz, altera a pretensa normalidade e objetividade da representação convencional. As notas, então, desfiguram a referencial idade literária e biobibliográfica do autor, reduzem cânones a meros resíduos.

Incorporadas ao texto, emprestadas de códigos técnicos ou cien­tíficos, as notas aparecem, no espaço romanesco, encarnando corpos estranhos, cuja representação insólita e invulgar só se dá à observação a partir da liberação do leitor, de sua saída da norma da leitura. A per­cepção anômala de dipsômano, que o narrador do discurso do espanta­lho "atroador e autônomo" adota, possibilita quebrar o automatismo da visão e da percepção literária.

Do entrechoque entre texto e paratexto, no romance A rainha dos cárceres da Grécia, surgem novas relações significativas, trocadas em miúdo no aparato das notações de pé de página, que excedem a praxe para confrontar a grande significação textual da instituição semi ótica com procedimentos de in-significância marginais.

O romance osmaniano usa o paratexto como disfarce da ficção e decide pela super-dissimulação do pathos, com o objetivo de tomar a ação dramática desse pathos mais marcante. O gênero romanesco assume o elogio da maquilagem, que tem nas notas ornatos de sentido. Falsas hesi­tações, falsos índices, referências imaginárias são operações do sujeito da enunciação que imprimem sutil tom humorado e alegre às notas, lan­çando-as no pé de página como confetes na cena dançante e carnavaliza­da da escritura. A imitação literária debruça-se sobre si mesma numa espécie de arremedo, desvelando que a palavra sancionadora das obras, disseminada em notas, cala outras leituras que esperam uma palavra pro-

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fética ou até a interpretação de oráculos. A figuração irônica das obser­vações; a marca arbitrária do enunciador masculino ao imitar o sexo oposto, reverenciando o seu duplo feminino verbal, Júlia Marquezim Enone, tudo isso (e mais) exacerba o corpo de escrituras, antes de se apor a assinatu­ra.

Daremos alguns exemplos, nos quais são visíveis o humor e a disposição particulares do destinador do romance: veja-se isso na apre­ciação do ensaio de Diderot O elogio de Richardson, quando o narrador anônimo faz a seguinte observação que confere super-dissimulação e, ao mesmo tempo, relutância irônica à nota.

Texto com notas 20 e 21

Nota

"Nesse manuscrito, divulgado em fac-simile pela revista Drum(20) onde retoma e antecipa(2\)".

"21. Antecipa. O ensaio sobre Richardson aparece em

1761, enquanto a versão final do Paradoxe sur le Comédien, segundo Assézat, é de 1773".

(A.R.c.a., p.66)

Ou na "monstração" do eu pelo duplo feminino verbal, Júlia Marquezim Enone, retratada como produto da imitação da imitação, marca irônica da literalidade da autoria:

Texto com nota 48

Nota

"Engana-se quem crê que todos os fragmentos de uma narrativa nascem da mesma intenção e conver­

gem, em acordo perfeito, seja para onde for. Só a obra, mais nada, acolhe e justifica o que a ela se associa. Objeto uno e, entretanto, caprichoso, apto a assimilar corpos estranhos, modelam-no os múlti­plos interesses do escritor por tudo que - impor­tante - ou sem valor claro - deixou no seu espírito marcas duráveis(48)".

"48. Dos papéis de J.M.E. Ignoro se a observação é

sua ou se copiou de algum livro o fragmento citado".

Ainda, na transposição do comentário alógrafo da personagem dentro do processo de super-dissimulação do sujeito da escrita.

Texto com

nota 26 " ... no Palácio do governo o Rei abre as narinas, aspi­ra, não se move, não vê, aspira e ensina, real: 'A chuva é fria' (26)".

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172 Revista Brasileira de Literatura Comparada, nº 5,2000

Nota "26. Para Maria de França, a autoridade superior é

sempre um 'rei'''.

A palavra sancionadora do discurso literário recebe, portanto, um

tratamento curioso, oblíquo e metaforizador:

Texto com nota 39

Nota

" ... brote: [ ... ] e que era 'o biscoito militar, pago nas viagens marítimas e distribuído aos soldados nas diligências' (39)".

"39. Tarcísio L. Pereira, Clavinas e rendas, São Paulo, Melhoramentos, 1956, p.73. Devo ao mesmo autor as demais informações deste parágrafo".

(A.R.C.G.,p.l31)

o traço alegre da ironia instaura a "percepção inidônea" do narrador, revelando aos olhos do leitor o tratamento autoritário da questão da verdade literária nos discursos críticos que buscam legitimar quadros de verdades absolutas, como um ato de nomeação arbitrária. A paratextualidade inscre­ve-se entre o dizer e o não dizer, desorientando essas verdades:

Texto com nota 33

Nota

" ... para realçar os efeitos que buscava, ela, no vasto repertório do Método de redação, desde já incluído na minha estante de obras que à falta de melhor cha­mo celestiais, ao lado do Moderno Curso de Orató­ria, de Admir Ramos(33l ... ".

"33. São Paulo, Cia. Brasil Ed., naturalmente sem

data".

Esse é o repertório das notações irônicas que transformam o cam­po conceitual da crítica, no romance, em menções figurativas e cifram os jogos de legitimação institucional da escritura, dados numa espécie de contabilidade supernumerária de citações, remissões, referências.

A montagem maquínica, ardilosa e inteligente do romance utiliza­se do artifício das notas e expõe os traços caricaturais que a supercodificação da escrita produz. O "aparelho de notas", "como um pequeno corpo arbitrário", uma espécie de pressão plástica cristalizada da representação literária, esbarra no parcial, incompleto. O dispositivo da ironia costura e descostura os ditos do tecido romanesco compacto.

A ironia trabalha sobre "uma ficcionalidade muito impura, muito marcada de referência história e por vezes de reflexão filosófica". A referencialidade histórica traz o cenário social do Recife e seus perso-

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Nota de pé de página e espaço romanesco ... 173

nagens pobres, anônimos, desfavorecidos pela sorte; a reflexão filosófica volta-se para a metafísica do romance, da produção literária, das relações e modos de interações autoriais e actoriais que esse tipo de produção criadora implica. O semi dizer irônico transtorna o real documentário. O dizer científico da erudição metalingüística surge como um órgão inútil.

O arranjo anômalo das notas, em meio à ficção, a intensidade hiperbólica que estas apresentam remetem ao questionamento da frontei­ra entre real e ficção, texto e paratexto, identidade e alteridade. O funci­onamento desse aparato de notações, no romance de Osman Lins, prepa­ra o pensamento estético-literário para novos paradigmas narrativos.

Texto de ficcionalidade impura, A rainha dos cárceres da Grécia descanoniza a literatura. As notas, simulando erudição, deixam de ser pon­tos de apoio, guias de leituras, para transformarem-se em listas onomásticas, uma maquinaria de nomes e mais nomes próprios e impróprios.

A maquinação pseudográfica do aparelho de notas, no processo de super-dissimulação do romance, desestabiliza o lugar real ou fictício do autor e dos seus personagens, podendo estes situarem-se de um lado ou de outro. Isso desautoriza o julgamento sobre o que é autêntico ou apócrifo, alógrafo ou autógrafo na escritura. As notas simulam operar uma veridição que não pode ser posta à prova. Texto citante e texto citado situam-se numa zona cambiante e fugidia. Notas e corpo textual mantêm relações lícitas e ilícitas em regime de propriedade autoral. Na passagem que se abre, entre texto e paratexto, nem o comentário pro­

duzido pelo autor real e empírico, nem as circunstâncias pessoais da enunciação são suficientes para introduzir na ficção a legibilidade e a certeza. A ironia é que a ficção às vezes é mais verdadeira que o real. Ou, outras vezes, o real parece mais fictício que a própria ficção. Os elementos de ancoragem histórica colaboram para a ambígua homonímia

entre real e ficção na obra osmaniana.

Texto com nota 38 "Cheio de marujos, o navio, associado às imagens

evidentes de guerra, ancora "na praça no chão seco" - espaço anômalo - e com esta manobra ingressa no irreal. Isto se escapar ao leitor que a romancista aí não se reporta à guerra e sim à festa: alude a Nau Catarineta, folguedo popular do Nordeste que o in­glês Henry Kaster, parece, é o primeiro a descrever.

(Travels in Brazil, 1816), mas já se pode ver, em se­gundo plano, num esboço de Franz Posto Baseado no naufrágio do navio que, em 1565, se dirigia a Lis­boa vindo do Recife. (38)".

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174 Revista Brasileira de Literatura Comparada, nº 5, 2000

Nota "38. É a tese de Pereira da Costa, no Folklore Per­nambucano, 1 ª edição autônoma, Recife, Arquivo

Público Estadual, 1974, págs. 254 e segs".

Propõem-se igualmente saídas para criar o efeito de veridição, lançando-se mão de sentidos etimológicos, filológicos, mostrando-se que o jogo da verdade depende da linguagem, não está no domínio da ação dramática humana que o narrador desenvolve no romance, exercida pelo amplo espectro de personagens, que se cruzam e interrompem, prolongam ou retomam fios narrativos, quase sempre em associações falsas.

Texto com

nota41

Nota

"[ ... ] O que toma menos clara - e isto, creio, não casualmente - a coerência da série são alguns ter­mos de significado enigmático ou pouco vulgar como sumetume [ ... ] ou súpeto, grafia antiga de súbito, remanescente na fórmula de supetão. (41)".

"4l. O epíteto, realmente, parece um tanto deslocado na seqüência. Seria uma pista falsa, para estorvar a decifração? Não sei se incorro numa compreensão tendenciosa quando associo o termo à idéia de susto, de vinda inesperada, de gesto que afugenta, brusco".

A anotação tomada do campo difuso entre real e irreal, podendo pertencer tanto a texto discursivo etnográfico, quanto a texto de ficção, é antes um meio de disseminar a profusão entre discursos, como se o problema do autor, da verdade, do real e da ficção fosse o temor do "branco", da desertificação dos signos. O exemplo a seguir parece ser a (de )monstração da experiência do limite absoluto do discurso que cessa diante do real. A nota de pé de página menciona ironicamente essa abissalidade, diante do prolixo.

Texto com

Nota 42

Nota

"Tal interrogação, no mapa brasileiro de Marcgrave,

é naturalmente menos abissal e tem um nome: o Bácira,

hoje serra da Pacira [ ... ] 'isolado, posto no meio da

solidão, era a fronteira, o limite absoluto de tudo quanto se sabia.(42)".

"42. Luís da Câmara Cascudo. Geografia do Brasil

Holandês, São Paulo, Ed. José Olympio, 1956, págs.

195/6. Reordeno, acima, expressões daquele estudi­

oso, único que encontrei - e por acaso - dados

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Nota de pé de página e espaço romanesco ... 175

sobre o Bácira, mais um vestígio da presença holan­

desa no romance de J .M.E. Aliás, como ainda vere­

mos, o mapa de Marcgrave ajuda-nos a compreen­

der certas obscuridades no discurso do lá".

A paratextualidade, em A rainha dos cárceres da Grécia, finge ser homônima, homógrafa e homófona da textualidade central e centralizadora. Constrói-se como simulacro. O "assim está escrito" e o "assim está mostrado" não se equivalem, um não testemunha o outro, nem garante. O paratexto é a outra margem romanesca que desterrito­rializa a ficção.

O romance, enquanto um ornamental e vistoso simulacro (mons­truoso?!) de erudição e conhecimento, inscreve a paratextualidade na natureza das máquinas de tramas autorais, ante as quais "a precisão nada precisa: é desfiguração da verdade, máscara, equívoco, ilusão" (A.R.C.G., p.71). As funções culturais remissivas das notas são frus­tradas, pois elas podem estar num e noutro lugar, no texto ficcional e no paratexto regulamentador; seguir no corpo do texto, fingir a continuida­de espacial, ou desorientar o agora e o antes, o ali e o aqui, remetendo, ao mesmo tempo, para o nada, para o fantasma, para o real:

Nota: semelhante aos velhos e às pessoas muito doentes, ve­nho observando-me, neste últimos tempos, mais do que o nor­mal. Como se eu suspeitasse de mim, como se receasse que, em mim. esteja para ocorrer o que não sei. Com isto, invado, mais do que desejava, o meu livro e o da minha amiga. Recu­ar, se possÍl'el. (A.R.C.G., p.155)

A rainha dos cárceres da Grécia, dessa maneira, mostra-se

uma obra desconcertante. Este desconcerto é tanto maior quando, aca­

bada a leitura (feita vezes sem conta!), percebemos estar diante de um semi-romance, em que o semidizer irônico desvela um discurso de um sujeito que, reconhecendo a obsolescência do gênero, não hesita em utilizar os recursos disponíveis, mesmo que não haja uma transmissão a sustentar. A ironia será o instrumento adequado ao momento em que a arte dissolve a relação falsa e imitativa com o real, assume sua natureza

de simulacro e arrasta com isso o seu lastro imaginário na autonomização

absoluta da literatura.

As notas advêm no simulacro como uma possível irrupção de fragmentos do real no pensamento literário. Fazendo parte das compo­

sições eruditas, vistas como técnica de refinamento bibliográfico e ma­

nipulação de obras por profissionais (literatos, ensaístas, teóricos, cien-

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176 Revista Brasileira de Literatura Comparada, nº 5, 2000

tistas), deslocadas do seu ambiente "natural", passam a representar uma memória fragmentada e visual do que já foi antes erudição, saber, con­ceito, tomando-se, à semelhança de estrelas no céu do texto (Barthes) romanesco, restos de cintilações.

a romance osmaniano articula no paratexto e no texto a

ritualização da crise da representação literária nos limites das possibi­lidades sintáticas e semânticas da língua dentro do princípio do artifício do vazio e do cheio, da sua potência e da sua impotência.

As notas de pé de página, ou de rodapé, acabam sendo, no ro­mance, signos daquilo que aproxima o discurso crítico do discurso ficci­onal: a construção de linguagem. Há, nesse ponto, uma radical indife­rença entre ambos, texto e paratexto, mas, ao mesmo tempo, uma alteridade radical, visto que a crítica quer dizer tudo, esgotar o objeto, e a ficção, mediada pela ironia, coloca-se como um semidizer, numa má­quina de produzir superabundantes referenciais. Corpúsculos, as notas no romance projetam um "mapa" de uma região imaginária tomada por um corpo grande textual provido de pequenos corpos que se estendem tentacularmente: hidra fabulosa de papel e letras. Elas projetam no texto sua sombra.

Através das anotações dos comentários alógrafos, feitos pelos personagens, e dos comentários do outro, citado, o falso ensaísta, narra­dor do romance, provoca sua própria alestesia, Lé., a sensação da pre­sença do estranho, do outro, como angústia, sintoma, gozo, desejo. Si­mulacros de rigor intelectual, as notas, no romance A rainha dos cár­ceres da Grécia, têm uma figuração irônica de boneco, livro ou volume falso. Não se configuram em formas de elucidação para o leitor alusivo e remissivo, que talvez se sinta traído ou abandonado quando não reco­nhecer as regras do jogo romanesco. a paratexto falso é uma "novela" que se entrelaça ao romance.

As notas são, no espaço ficcional, marcadores irônicos de uma problemática autoral de assinatura do discurso. Estão, com referência aos tropos da linguagem figurada do texto, na situação de alótropos de uma linguagem privada de sentidos, do ser e da verdade, lugar de "non­sense", que é no que se transforma o paratexto nas mãos de asman Lins. No paratexto clássico, notas são pertenças de discursos garanti­dos. Na literatura brasileira, instituíram-se com elementos tomados de empréstimo à tradição exegética portuguesa, judaico-cristã, e humanis­ta, consagrando-se o modelo de anotações por vias eruditas, literárias, etnológicas e etimológicas. Desde essa perspectiva, oferecem-se como jogo de espelhos ou máscaras, a partir do qual as práticas discursivas encontram seu status, encenando um teatro de referências.

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Nota de pé de página e espaço romanesco ... 177

A simulação irônica do romance desinveste as notas da função histórica do conhecimento, na medida em que invadem-nas ignorância, tolice, "non-sense". Não operam editorialmente a apelação publicitária do "vender uma imagem" que convença o leitor da sinceridade do autor, nem procuram oferecer-se para defender a tradição e a memória. Não garantem títulos, nem fontes de autoridade. O aparelho das notas e todo o conjunto paratextual (título, ilustração da capa, nome do autor) encer­ram, no romance de Osman Lins, um programa estético em que:

A ironia, aqui, não advém do erro voluntário, de ver-se doa­ção no gesto distraído de abandonar o que já foi usado; nas­ce de uma obliteração, sempre intencional, do discernimento: o que vem de roldão nas águas podres de enchente é exaltado como sinal de fartura e não de ruína (A.R.c.G., p.163).

Reconhece-se nesse programa um paradigma de civilização - o mundo grego - arruinado, o que restou dele, seus objetos culturais dissociados, quebrados. Ao lado disso, fragmentos de obras concorrem na identificação provisória da questão cultural da literatura brasileira: o entrelugar do discurso (Silviano Santiago), entre a Europa colonizadora e as Américas colonizadas. Os cortes que essas relações abrem para a nação brasileira atravessam o romance como um ritmo tribal do bárbaro que se opõe à civilização violentamente introduzida. Isso é evocado na sombra da loucura que se projeta sobre a razão civilizadora, na figura da excluída, da louca das ruas de Recife, Maria de França, que, por tal exclusão, está isenta da cultura da civilização, que ela não pode definir, conceituar, mas pode despertar com o seu grito.

Texto e paratexto, colocando a obra entre os elementos da cultu­ra, instituindo a publicação como dimensão da obra, traduzem uma có­pula irônica de restos textuais, lixo e excremento da história e da cultu­ra. Ícones de uma certa região imaginária denominada Grécia, as notas de pé de página, no romance de Osman Lins, consistem numa matéria de indeterminação objetiva de universos incorporais que se incrustam na literatura brasileira.

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Primo LEVI. É isto UII/ / 10 -

n/em? Trad. Luigi deI Re. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p. 49.

2 Clarice LISPECTOR. Um sopro de "ida: pulsações. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1978. p. 124.

A vocação para o abismo: errância e labilidade

em Clarice Lispector

Lucia Helena Universidade Federal Fluminense

Frente a este mundo infernal, minhas idéias se confundem: será mesmo necessário elaborar um sistema e observá-lo? Não será melhor compreender que não se possui sistema algum?

Primo Levi. É isto um homem?1

Olhar a coisa na coisa hipnotiza a pessoa que olha o ofus­cante ohjeto olhado. Há um encontro meu e dessa coisa vi­brando 110 ar. Mas o resultado desse olhar é uma sensação de oco . m~io , impenetrável e de plena identificação mútua. Deus me perdoe creio que estou divagando sobre o nada.

Clarice Lispector. Um sopro de vida.2

Ao tratar da ficção de Clarice Lispector, tenho por objetivo apresentar nova interpretação para recurso que já examinei em meu livro Nem musa, nem medusa: itinerários da escrita em Clarice Lispector. Refiro-me à provocação, que a obra da autora faz ao leitor, de mergulhar no exame da auto-referencialidade literária, presente em quase todos os seus tex­tos, nos quais obsessiva tendência à vocação para o abismo é força propulsora do trabalho com a linguagem.

No livro, mostrei que tal processo - a crise da representação figurativa - era o princípio construtivo responsável pela desestabiliza­ção na obra de Lispector. Para isso, tomei três questões a serem

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180 Revista Brasileira de Literatura Comparada, nº 5,2000

investigadas: a do sujeito, a da escrita e a da história, aplicadas à leitura de Laços de família, Água viva e A hora da estrela.

Sob outro enfoque, discutirei o uso da auto-referencial idade como um modo singular, na ficção da autora, de se refletir sobre o limite, dele fazendo tema e problema narrativo. Pretendo, ainda, examinar como se

comporta esse tema-problema no desenho bipartido dos textos da auto­ra, que reúne obras aproximáveis da tradição representativa da literatu­ra, como Laços de família e A via crucis do corpo, e outras que a ela se contrapõem na qualidade de experiências muito radicais de escrita auto­referente, como Água viva e Um sopro de vida. Por vezes a marcha em direção a um paradoxal "transbordamento para dentro" é de tal monta que sua linguagem sequer simula aludir a um referente, manifestando-se sob a forma de um dizer movido pela compulsão de dobrar-se sobre si mesmo, numa tentativa sempre frustrada de capturar algo que ainda não foi dito' . Clarice Lispector trabalha a linguagem como se lembras­se, e ao mesmo tempo esquecesse, dos sistemas narrativos já elaborados pela tradição, simulando não possuir sistema algum, procurando seduzir o leitor com afirmativas do tipo: Eu sou o atrás do pensamento4 ; ou então: Escrevo sem modelos5 •

Para avaliar as linhas mestras desse modo (as)sistemático de nar­rar, conjugado à experiência de esgarçamento dos limites, parto do pres­suposto de que "por que narrar" e "como narrar" tomaram-se, progres­siva e verticalmente, o problema de seus textos, que abalam o sistema narrativo ainda vigente em Laços de família e A via crucis do corpo. Mesmo que estas duas obras tenham adotado técnicas introspectivas, como o fluxo-da-consciência, elas ainda se baseavam no desenvolvimen­to de um tema e não chegavam a radicalmente diluir as categorias de tempo, espaço e personagem como acontece, por exemplo, em Água l'i\·a.

A diferença básica entre Laços de família e Água vim consistiria em que, na última, a narrativa se despoja dos elementos que consagra­ram a tradição mimética resumida por Horácio na fórmula "ut pictura, poiesis", em que se preconizava para o literário a função de esboçar, como na pintura, um quase retrato-reflexo do mundo.

Em meu texto quero, portanto, discutir a "vocação para o abis­mo" como uma obsessão pela tematização da referencial idade vista como mise-en-abyme, o que, em Clarice Lispector, tem a ver com a experiên­cia do limite. Tal procedimento suscita a articulação de cinco eixos se­mânticos de que tratarei adiante e que podem ser, no momento, assim enunciados: 1) O olhar, as identidades; 2) Os limite: o estrangeiro, o estranho; 3) A cruz e o novelo; 4) O espelho, a representação; e, por útlimo, 5) A errância, a movência e a labilidade.

Berta WALDMAN. A retó­rica do silêncio em Clarice

Lispector. Rel'islU Tempo Br<1' sileiro. Rio de Janeiro, nO 128,

p. X-9 , jan.-mar., 1997.

4 Clarice L1SPECTOR. Um sopro de vida: pulsações. Ri0 de Janeiro: Nova Fronteira. 197X. p. 70.

Clarice L1SPECTOR. Um SO!'/'O de ,'ida: pulsações. Ri" de Janeiro: Nova Fronteira. 1978. p.H I.

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A vocação para o abismo ... l8l

Para nomear uma tão engendrada escrita, apenas aparentemente nau sem rumo, lembro-me do título de um livro da ficcionista portuguesa contemporânea Maria Gabriela Llansol: Contos do mal errante. Conside­ro que, na escrita em que se manifesta a vocação para o abismo, como um mal que estende seus tentáculos de contágio, nenhum limite permanece em segurança. Lança-se, então, a hipótese de que a lógica da composi­ção em Lispector se baseia na relação com os limites, em seu cruzamen­to e na repetição em circularidade, gerando alterações diferenciais, dos núcleos semânticos - espécie de mônadas temáticas - de que parte.

Há uma fascinante experiência do limite em Clarice Lispector. Matéria da escrita, o nada abre e fecha a ambição de totalidade que pulsa em seus textos. A partir de suas investidas, nenhuma dimensão descansa intacta e a alma e as vísceras, o escuro e a incandescência, o vazio e o pleno se fundem e se confundem.

De tal modo se desestabilizam fronteiras que, em "A imitação da rosa", o ponto vazio e horrivelmente maravilhoso dentro de Laura de­sencadeia terrível independência, capaz de pôr em risco a passiva in­serção da personagem na rígida relação matrimonial que mantém com Armando, o marido.

É notável o jogo de achar-se e perder-se e a rede de claro e escuro que se arma, correlacionando Laura, as rosas e o Cristo. Em conflito, dividida entre a tentação de entregar-se ao que a atrai e a obrigação de cumprir os papéis determinados pela convenção social, Laura procura livrar-se tanto das rosas (luminosas, múltiplas no mesmo talo) quanto do Cristo (a pior das tentações). Eróticas e iluminadas, as rosas são uma outra Laura que ela, modesta, doméstica e marrom, não pode ser.

No texto de Lispector, essas fronteiras tendem a atenuar-se, fa­zendo com que Laura (o sujeito) e as rosas (o objeto) se contaminem e permutem papéis, numa relação de conversibilidade e de aniquilamento da vontade. Como o contágio pode vir a ser mortal, ao penetrar na terra­sem-chão do imaginário e do delírio, Laura se perde na luz, na alerta loucura que a faz estar em casa como se num trem que já partira.

Luz e sombra, grutas, reentrâncias, o mar e as raízes são elemen­tos reincidentes na paisagem, que vai progressivamente se tornando uma localização-mental formada pela introspecção que perpassa seus textos.

Ana, de "Amor", deseja a raiz firme do mundo, o que lhe é dado por seu lar, seu fogão e seus filhos, ainda que, de súbito, ao ver o cego parado no meio da rua mascando chicletes, o frágil equilíbrio interior se desestabilize: estar no bonde era umfio partido. Também se partem os ovos que carregava na sacola. E ovo, na obra de Clarice Lispector, já se disse: é simultaneamente geral e particular. Interior (alma ou clara/

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gema) e exterior (corpo ou casca.) Tempo e eternidade, 'ovo por enquanto será sempre revolucionário'.6

No tratamento do tempo repercute esse constelado curto-circuito

dos limites. A tendência é de submeter-se a temporal idade a cada vez

mais ir-se caracterizando como um mergulho em direção a uma instância

interior onde tudo se apresenta simultâneo e convulso: é a dimensão do instante-já, em que se realizam alguns dos principais textos longos da autora, como Água viva, Um sopro de vida, A hora da estrela.

Como se fosse o estilhaçamento de um presente em rotação perpé­tua, é nesta dimensão de transformações que se conjuga o universo ávido e confinado dos personagens. Uma estratégia astuciosa de sua narrativa é desequilibrar os dualismos com os quais o senso prático e o senso

comum, sutilmente aludidos, subdividem o mundo. Nada, em nenhuma direção, no tempo ou no espaço, permance intacto no mundo agônico que seus textos desenham.

A dimensão do espaço, feita coisa-mental, apresenta uma interes­sante convulsão das medidas e limites: se sujeito e objeto se fundem e se

confundem, se o tempo se dá na simultaneidade do instante já, o fora e o dentro, formas clássicas de indicar o interno e o externo, aquilo que, pelo olhar e pela luz, se distinguem do invisível e do opaco, em sua obra encontram-se também confundidos.

Esta forma de ser do espaço e de nele estarem as personagens no seu tempo peculiar determina uma questão interessante no processo de composição de Lispector, que é a forma de articular dentro e fora, o olhar e a identidade, na construção de um universo em que tudo tende à anulação de barreiras, à movência e à contaminação.

1. O olhar, as identidades:

De todos os seus textos, Um sopro de vida é o que conduz essa questão ao ponto máximo. Entre Ângela e o Autor, o que está em jogo, no limite extremo da tensão, é o que dá a ser, se eclipsando7 • A tal ponto interdependentes, personagem e criador contaminam-se na visão recí­proca de um mundo que se me olha. E em que o dentro e o fora se esgarçam.

O ato de olhar, sempre convocado, por um lado indica o movi­mento de voltar-se para fora; e, por outro, o de retomar, simultaneamen­te, para dentro, resultando o sujeito imantado pela atração incontornável de um hipnótico objeto que paralisa o olhar, confinando sujeito e objeto e desfazendo a diferença, como que tentando destramar a fronteira entre o caos e o cosmos. O olhar revela-se, neste tipo de trabalho com a lin-

6 Cf. Berta WALDMAN. A

retórica do silêncio em Clarice Lispector. ReviSTa Tempo Bra­sileiro. Rio de Janeiro, nO 128, p. 14.jan.-mar., 1997

1 Cf. ainda. o fragmento a se­guir, no texto de Berta WALDMAN. A retórica do silêncio em Clarice Lispector. Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, nO 12X, p. 14: "O neutro é. então. a pura identi­dade, na qual se anula a dife­rença entre sujeito e objeto. ambos compenetrados numa visão recíproca. sem transcen­dência. Aí um é para si mes­mo aquilo que se espelha no olhar do outro".

Page 183: Revista Brasileira de Literatura Comparada

8 Ainda que relativamente ao

estudo do silêncio, Berta

Waldman também aponta esta questão no texto já referido em meu artigo,

A vocação para o abismo", 183

guagem, uma forma de sugerir o derramar-se para dentro, instância na qual, mais uma vez, o limiar entre as luzes e as sombras, o fora e o dentro acaba por ser redimensionado,

Pode-se postular que uma lei contamina e comanda esse universo narrativo tão aparentemente desagregado: tudo nele se regula pelo regi­me da voracidade, o que faz com que uma energia impulsionada pela avidez e a vertigem não se detenha diante de qualquer limite. Ao contrá­rio, alimenta-se dos limites, engolfando-os. Mediante essa estratégia, em Água viva, o eu e o tu tendem a indiferenciar-se, enquanto n' A hora da estrela toma-se como articulação-chave a tensa separação e confusão entre o sujeito da experiência e o sujeito narrador, voltando-se um para dentro do outro, num processo de auto-referencialidade, ainda que essa lúdica conversão provenha de um jogo de armar que se inicia separando as duas instâncias, simulando os limites - a serem solapados - entre a autoria e a narratividade.

Há textos, como Um sopro de vida e Água viva, que se caracteri­zam por esta avassaladora marcha reflexiva rumo ao abismo das cenas narcísicas. Nos dois aparecem, com insistência flagrante, as referências aos espelhos, convertidos em formas de sinalizar questionamento, atos de reflexão, imagens de confinamento e mergulho dos personagens cada vez mais para dentro de si e de um mundo narrado em que a alteridade rebate sobre o sujeito, num processo de circuito fechado, em que tudo termina para recomeçar.8 E em que, numa circularidade obsessiva, o que se perde de novo retoma.

A forma de pensar a identidade, problema que sempre retoma em sua escrita, é a de moverem-se o eu e o outro num permanente gesto de recolhimento mútuo, construindo-se o processo de textualização numa mise-en-abfme em que se nubla e, em alguns momentos, anula-se a dife­rença entre sujeito e objeto.

Se tomo Água viva como baliza, encontro - estrategicamente postas, uma à página quatorze e a outra à página noventa e sete, uma abrindo e a outra fechando o livro - duas expressões que se destacam - o intangível do real (água) e ofigurativo do inominável (fogo). Como fronteiras nas quais a comunicação entre o eu e o tu se realiza, esses marcos são organizados, não apenas um em relação ao outro, mas cada um deles em relação a si mesmo, de acordo com lógica de extrema sime­tria: neuroticamente se repete o artifício e aproximam-se os contrários. O que acontece na tessitura dessas barragens?

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184 Revista Brasileira de Literatura Comparada, nº 5,2000

2. Os limites: o estrangeiro, o estranho

Tudo pode acontecer nesse território ao mesmo tempo limitado e

sem limites, onde as coisas não se derramam, mas se esparramam, já que

não há hipótese de transbordamento para fora, levados que foram estes

limites ao ponto zero. No prefácio à tradução norte-americana de Água viva, diz Hélene Cixous9 que em Lispector opera-se por morte e

renascimento, num fluxo incessante de ramificações. Como no mito de Fênix, nada é fixo e uma violência latente mantém em contínua atividade um processo inestancável de significação. Em meio a esta voragem, to­davia - onde vísceras torturadas 10 nos guiam -, há o cuidado de não ser voraz, de que a narradora trata, não sem humor, num fragmento de Legião estrangeira, intitulado "A arte de não ser voraz"II : Eu, mada­me, gosto de comer exatamente antes dafome. É mais elegante. O inte­ressante é que a frase vem em francês - Moi, Madame,j' aime manger juste avant la/aim. Ça/ail plus distingué. O que leva a cogitar que não ser voraz, nesse universo de avidez, é ato a ser grafado na língua do

outro, o estranho, o estrangeiro.

A ficção de Lispector distende uma corda de tenso equilíbrio numa construção pensada de fonna extremamente sutil nos detalhes. Num trân­sito turbulento do sentido, convive-se com a falta de organização da es­trutura maior, que faz com que seu texto seja todo atravessado, de ponta a ponta, por um frágil fio condutor e, ao mesmo tempo, leve o leitor à experiência de uma falta de construção.

Saboreia-se o inconcluso nessa narrativa que tem no ilimitado do limite o seu alvo-condutor. Pois a figura em Clarice é a metamorfoseI~ . Ela, como os barrocos, é alegórica, no sentido benjaminiano. Uma pro­funda desordem orgânica, conceitual, dá a pressentir ordem subjacente à aparente matéria frouxa e fluente. Isto faz com que os limites de sua obra sejam compostos num arranjo de contradições. Uma delas é a que Lispector esboça ao dizer que as frases balbuciadas são feitas na hora em que estão sendo escritas e crepitam de tão novas e ainda verdes.

São o fio lascivo da linguagem, entidade elástica. Daí não causar espécie que um dos limites em que se estende a corda do trapézio seja o da experiência da linguagem, que ela exercita e impõe quase que sem pudor de repetir-se, já que na maioria de suas obras o leitor é convidado a pescar a entrelinha, a ambicionar a quarta dimensão da palavra, a falar da insuficiência da linguagem, quase à exaustão.

Na poética de um Augusto dos Anjos, de quem Clarice Lispector se aproxima na angústia causada pela busca de uma totalidade impossí­vel de ser atingida, seria como esbarrar no mulambo da língua paralíti-

9 Hélene CIXOUS. Forward. In: Clarice LISPECfOR. Tile

sfream oi lile. Trans .by Elizabeth Low e Earl Fitz . Minneapolis: University oi Minnesota Press, 1989, p. XI­XXXV.

III Cf. Clarice LISPECTOR.

Água \'i\'a: ficção. Artenova: Rio de Janeiro, 1973, p.34.

I I Clarice LISPECTOR. Le­giv o estrangeira: contos e crônicas. Rio de Janeiro: Edi­tora do Autor, 1964, p. 169.

I' Cf. fragmento de Clarice L1SPECTOR. Um sopro de \'ida: pulsaçôes. Rio de Janei­ro: Nova Fronteira, 1978, p. 85: "Eu, alquimista de mim mesmo. Sou um homem que se devora? Não. é que vivo em eterna mutação I ... ]. "vivo de esboços não acabados e vaci­lantes".

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A vocação para o abismo ... 185

ca. tísica, tênue, mínima e raquítica. Na de Lispector, consiste em referir-se à difícil dinâmica do continente e do conteúdo - do ovo e da galinha, da origem e da finalidade da vida e da criação.

Assim, no paradigma da voracidade, que contracena com estes limites ilimitados, encontra-se também o repetido tema da origem e da finitude, da vida e da morte, do imigrante, do permanentemente estran­geiro, não importa onde. E, aqui nesta fronteira, é o próprio enunciado - a metonímia, a sinédoque, a articulação entre as partes na linha do discurso, do sintagma; e o paradigma - a metáfora, o delírio, a conden­sação, a poesia, o silêncio e a auto-referência que se dobram entre si, fazendo da mise-en-abyme uma de suas principais estratégias narrati­vas, numa escrita que procura conter e ser contida, mas incontinente escapa, assim como dela escapam o que ela quer nomear e representar.

3. A cruz e o novelo

E, como os barrocos -lembro-me aqui dos sonetos de Manuel Botelho de Oliveira a Anarda bela -, Clarice Lispector parte do enlace do que entre si é estranho e se contradiz. Essa articulação segue - por estranho que pareça na ficção de um narrador que a todo tempo gosta de afirmar que escreve aos saltos, sem modelo - um procedimento de cer­rada regularidade: os elementos se enovelam em cruz, como na figura de retórica do qlliasmo.

São dois os eixos em que mais notavelmente isto se opera na obra

de Lispector. O primeiro deles é o do vazio, da falta, do silêncio, de tudo que é

não-pleno. residual, impossível de captar: o inominável. São matrizes idealistas e românticas (como as do sol negro e melancólico nervaliano) que encontram abrigo em sua escrita, marcada também pelo diálogo com

o Simbolismo, a música, o inefável e a estética das correspondências.

A outra ponta do novelo, nós a encontramos na relação também obsessivamente apresentada entre o real e o figurativo, em que Lispector acaba por conduzir o leitor ao paradigma do olhar, ao do campo das imagens visuais, das artes plásticas e dos elementos-síntese desse eixo

figurativo - a luz, os olhos -, levando-nos a reenlaçar, ainda que

desconstrutivamente, a tradição realista de representação.

Creio haver uma ressonância, ou até mesmo uma releitura, da ale­goria platônica da caverna, em sua ficção, no entrechoque dos dois limites

(o intangível do real- a água - e o figurativo do inominável- o fogo,

o calor, a água viva) em que ela escolhe operar. Limites todo o tempo

sacudidos, que florecem na densa selva de palavras de Água viva.

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186 Revista Brasileira de Literatura Comparada, nº 5,2000

Num outro texto, "A geléia viva"I3 , fragmento-matriz de Água viva, a autora reúne essas dimensões, intensificando os sentidos de incandescência e de incontinência ao criar um fragmento que sugere a situação-limite de um quase absurdo semântico: os "olhos do escuro". Com eles como que ressoam os olhos dos raros homens capazes de ver no escuro e no claro, na metáfora iluminista instituída na República. E, além, o assinalar de que alguns homens especiais - os filósofos, media­dores entre o real e o ideal, entre as aparências e as essências - conse­guem "ver" melhor do que outros.

Em Água viva, todavia, ainda que a personagem feminina seja tematizada como pintora, ver não é o melhor remédio. Nesse sentido, Lispector estaria mais com Sófocles do que com Platão, pois é no pri­meiro que vai buscar a imagem do cego (um Tirésias?) que impulsionará Ana em face da dimensão de escuridão e finitude de seu universo burguês, no conto "Amor", de Laços de família. E é nesta simultânea cegueira e vidência, e na capacidade de articular e entrecruzar contrários, que a estratégia de alargamento dos limites, até a anulação, vai-se fazendo.

É também em cruz (em quiasmo) a relação que a autora esboça entre a linguagem e a representação, ou a da literatura e a representação do real, ou seja, o que da cultura a literatura retém e o que na cultura ela faz implantar. Estabelecer cruzamentos e reflexividades, num itinerário dúplice em que se aponta, simultaneamente, para o fora e o dentro-para o olhar e as vísceras -, mas conduzindo-se a um movimento que "trans­borda para dentro", poderia ser um dos modelos dessa outra-lógica dos fragmentos, encontrável nos textos de Lispector. Auto-intitulando-se fiandeira de achados e perdidos, sua tecelagem de fragmentos semanti­camente desestruturados desenha uma sintaxe lógica e recorrente, base­ada na repetição que, ao final, acaba por criar não o mesmo, mas a diferença.

4. O espelho, a representação

Procurar a relação da cultura com a literatura, em sua obra, é como compreender o ovo e a galinha de seus contos. E isto significa dar de cara com um signo móvel, em que todos os sentidos cabem, o que é condizente com a já comentada "voracidade" do mundo narrado em seus textos. Por outro lado, há, neste sentido que sempre se evola e muito evoca sem afirmar, um fino trabalho com a linguagem.

Ela registra, pelo menos duas vezes, que não escreve sob inspira­ção. Há em sua obra, como na de Cabral, que ela não imita, uma educa­ção pelo obstáculo (o aprender da pedra cabralino).

13 Inserido na subdivisão inti­tulada "Fundo de gaveta", de A legião estrangeira, obra na qual , na primeira parte, reú­nem-se contos.

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14 Clarice L1SPECTOR. A 11'­g iâo eSTrangeira: contos e crônicas. Rio de Janeiro: Edi­tora do Autor, 1964, p. 171.

15 Clarice L1SPECTOR. A 11'­g iâo eSTrangeira: contos e crônicas. Rio de Janeiro: Edi­tora do Autor. 1964. p. 171.

16 Clarice L1SPECTOR. A 11'­giâo eSTrangeira: contos e crônicas. Rio de Janeiro: Edi­tora do Autor, 1964, p. 171.

A vocação para o abismo ... 187

Fazer avançar o limite da linguagem e da significação, até o impronunciável e o absurdo. Falar de formas e de substâncias, essas palavras malditas. E não saber muito bem como dizer delas e com elas. Tomemos o texto "A geléia viva", de A legião estrangeira. Como um ovo dentro de uma galinha, encontro Água viva em silêncio germinando nesse texto. É a dobra: da linguagem sobre ela mesma, do ovo sobre o sujeito, do sujeito sobre si mesmo, do cego sobre Ana, de Laura sobre Armando e das rosas entre si. É a representação ardilosa da alteridade entre referencialidade e auto-referencialidade que caracteriza a produ­ção em abismo da obra de Lispector: Havia uma geléia que estava viva. Quais eram os sentimentos da geléia ? O silêncio. Viva e silenciosa, a geléia arrastava-se com dificuldade sobre a mesa. 1~

A geléia, diz o narrador, não se derrama. Esparrama-se e conta­mina: Quando olhei-a, nela vi espelhado meu próprio rosto mexendo­se lento na sua vida. Era noite fechada, continua a narradora, agora em primeira pessoa: Lançada no horror, quis fugir da geléia,jui ao terra­ço, pronta a me lançar daquele meu último andar da Rua Marquês de Abrantes. [. . .] Mas antes de saltar eu resolvi pintar os lábios. 15

Numa cadência metonímica, o texto vai compondo e decompon­do, entre o claro e o escuro, o acordar e dormir, o terraço e o quarto - o fora e o dentro de uma mulher que pensa em morrer e quer salvar-se, e que é um rosto desagregado em uma ambiência desagregadora.

A fronteira entre a vida e a morte, entre a luz e a escuridão vai ficando cada vez mais reluzente. Subitamente, os valores se trocam e acon­tece. semanticamente, o inverso do que se deveria esperar. Quando a luz se acende. a geléia viva se transforma em parede, em teto e vai-se matando tudo que se podia matar, tentando restaurar a paz da morte em torno de nós,júgindo ao que era pior que a morte: a vida pura, a geléia viva. 16

Este fragmento resume os elementos (as palavras domésticas) em tomo dos quais giram algumas das obsessões da narradora: a inquieta­ção diante da vida pura, da identidade pura, da plenitude que, sendo impossível narrar, esbarra no silêncio e impede a narrativa e o fluxo de linguagem.

5. A errância, a movência e a labilidade

Diferentemente das cosmogonias remotas, a de Lispector produz um texto mutante, que toma a origem como algo diverso do fundamento ou da proveniência, concebendo-a como um caroço (sempre o movimen­to reflexivo para dentro) que se alcança após árduo trabalho na lida com o instante-já:

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Neste instante-já estou envolvida por um vagueante desejo difuso de maravilhamento e milhares de reflexos do sol na água que corre da bica na relva de um jardim todo maduro de pe/fumes, jardim e sombras que invento já e agora e que

são meio concreto de falar neste meu instante de vida. Meu estado é o de jardim com água correndo. 17

Neste sentido, a cosmogonia de Lispector contempla a História como fragmento, mediado pelo eu narrador, inscrevendo-a como perso­nagem. A História aí se expressa enquanto ruína, no sentido benjaminiano, de matéria tensa, tortuosa, contorcida e onírica:

Eu sou assombrada pelos meus fantasmas, pelo que é mítico, fantástico, gigantesco: a vida é sobrenatural. E caminho segu­rando um guarda-chuva aberto sobre corda tensa. Caminho até o limite do meu sonho grande. Vejo afúria dos impulsos viscerais: vísceras torturadas me guiam. 18

A cosmogonia de Lispector promove correspondências, criando elos nos quais se unem seja o sexualmente vivo e o que é de natureza metalizante, seja a palavra ao silêncio, seja o sopro divino à marca de Satã:

A mão verde e os seios de ouro - assim é que pinto a marca de Satã. Aqueles que nos temem e à nossa alquimia desnudamfeiti­ceiras e magos em busca da marca recôndita [. . .] pois esta mar­ca era impronunciável mesmo no negrume de uma Idade Média -Idade Média, és a minha escura subjacência [ ... ]1 9

A referência à Idade Média abre mais um elemento nessa teia de linguagem em movência. E o deslizamento de cacos da história e da

História parece que por instantes se completa. Por que a Idade Média em Água viva?

Com a referência, retoma-se o eixo da escrita como maldição, ainda que maldição que salva, rastro deixado pela autora em uma de suas crônicas, datada de 1968, na qual se registra: Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada. lo

Em obra posterior, A hora da estrela, o ato de escrever também se encontra tematizado na fronteira da salvação entre a vida e a morte, ainda que nem Macabéa nem Clarice se salvem, e mesmo que Rodrigo S. M. hesite diante da narrativa da morte de sua personagem: Até tu Brutus? Sim,foi este o modo como eu quis anunciar que - que Macabéa mor­reu. Vencera o Príncipe das Trevas. Enfim a coroação. ll

D • Clarice L1SPECTOR. Agua

viva: ficção. Artenova: Rio de Janeiro, 1973, p. 19.

]X •

Clarice L1SPECTOR. Agua viva: ficção. Artenova: Rio de Janeiro, 1973, p. 34.

IY Clarice LISPECTOR. Água \'il'll: ficção. Artenova: Rio de Janeiro, 1973, p. 30.

20 Clarice LISPECTOR. A descoberta do mundo. 3. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992, p. 136.

21 Clarice LISPECTOR. A hora da estrela. Rio de Janei­ro:JoséOlympio, 1977,p. 102.

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22 Clarice L1SPECTOR. A hora da estrela. Rio de Janei­ro: José Olympio. 1977. p. 95.

'3 Clarice LlSPECTOR. Água \'im: ficção. Artenova: Rio de Janeiro, 1973, p.16.

A vocação para o abismo ... 189

A marca de Lúcifer, presente no fragmento de A hora da estre­la, reenlaça a marca de Satã, inscrita em Água viva. Em ambas, articu­lando as diferenças, ressoa uma questão antiga - desde Moisés se sabe que a palavra é divina22 - que permanece ecoando-escoando nos textos de Lispector.

Escrever seria, pois, atividade alquímica, de movências e corres­pondências, de alterações de seres e estados, de proteiforme desejo de alterar as formas da existência. Escrever, portanto, imbricar-se-ia, como um fazer enfeitiçado, no cruzamento da vida e da morte, lugar de encon­tro e de desencontro, por onde a existência pode passar, mesmo quando já terminou.

Água viva, texto exemplar do processo que preside, subterrâneo, toda a escrita de Lispector, realiza-se na matriz enfeitiçada do instante­já, em que os limites e as fronteiras - da maldição, da salvação, da cura, da doença, da palavra e da coisa, das imagens e do inefável, de Satã e de Deus - se fundem e se confundem, como o eu e o tu em que o eu absoluto se dispersa e metamorfoseia, no tecido instável de um pro­cesso de significação em movência.

Nesse lugar-enfeitiçado, instante-já da voragem dos limites, es­creve Clarice Lispector. Este é o lugar do presente, do cruzamento da história, petrificação ao mesmo tempo que mudança. É o lugar da dobra, em que a linguagem está em toda a sua força de construção. Esse lugar­tempo não tem centro. Ele é o lugar do sujeito em deriva e das formas em transmutação, onde a literatura transgressora se realiza: O que te falo nunca é o que tefalo e sim outra coisa. Capta essa coisa que me escapa e no entanto vivo dela e estou à tona de brilhante escuridão. 23

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*0 artigo foi publicado em Lil1l(uística y Politic([ (Ed. Biblos. Buenos Aires , 1(99). Os organizadores deste nú­mero da revista resolveram republicá-Io, para maior cir­culação no Brasil, conside­rando o relevo da temática.

EI discurso zopotisto, 2un nuevo discurso

o un discurso emergente?*

Alejandro Raiter Irene Murioz

Universidade de Buenos Aires

En noviembre de 1993 salía la primera edición argentina de La Utopía Desarmada, donde Castafieda, quizás el más influyente politólogo mexi­cano daba cuenta de la historia de la izquierda latinoamericana y proponía el más acabado análisis de una convicción generalizada: los afios calientes de los 70, con sus expectativas revolucionarias y el accionar de las organizaciones armadas estaban definitivamente clausurados; ante la nueva época abierta cambiaban las exigencias de la izquierda que debía asumir objetivos más módicos y realistas. Sin embargo, el primero de enero de 1994, el mismo día en que la puesta en vigencia deI NAFTA debía llevar a México aI primer mundo, el alzamiento de Chiapas reabrió el debate. Fue - según Holloway - elI er día dei último ano.

Fuimos muchos los que quemamos nuestras naves esa madruga­da dei primero de enero y asumimos este pesado andar con UI1

pasamontaiías amordazando nuestro rostro ( ... ) ;,La toma deI poder? No, apenas algo más difícil: UI1 mundo nuel'o. (125: carta deI subcomandante Marcos a Gaspar Morquecho)

l, Últimos estertores de la guerrilla de los 70? l,Expresión de nuevas formas de Iucha en el marco de un mundo globalizado l,Anunciación de

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una renovada esperanza revolucionaria de la mano de la rebelión de los excluidos?

EI debate está abierto y no es nuestra intención dar cuenta de él, pero sÍ queremos destacar una extrafía unanimidad: todos los analistas coinciden en destacar el despliegue de "un nuevo discurso de izquierda", un discurso que sería radicalmente distinto aI de la izquierda tradicional. Desde una perspectiva de análisis deI discurso político o "ideológico", es frecuente que los analistas atribuyan el éxito importante o inesperado de algún discurso político a determinadas "novedades", que serían parte de sus características distintivas y motivo fundamental de su éxito en el seno de la sociedad. 1 Nuestro propósito aquí se limita a explorar con las herramientas deI análisis deI discurso hasta qué punto el discurso zapatista es realmente "nuevo" y, en todo caso, dónde reside su diferencia.

Como corpus de análisis hemos tomado los materiales recogidos en la recopilación: EZLN. Documentos y Comunicados, Ediciones Era, México, con prólogo de Antonio García de León y crónicas de Elena Poniatowska y Carlos Monsiváis.2• Dos características deI corpus que conviene sefíalar desde un comienzo. Por un lado hay dos tipos de emisores: el subcomandante insurgente Marcos, y emisores institucionales: el Comité Clandestino Revolucionaria Indígena - Comandancia Gene­ral deI Ejército Zapatista de Liberación Nacional (CCRI-CG deI EZLN, su Departamento de Prensa y Propaganda y El Despertador Mexicano, órgano Informativo dei EZLN. Por otra parte, mucho más significativa desde el punto de vista de las características deI discurso político, se trata de textos que tienen la particularidad de estar dirigidas explícitamente aI exterior deI grupo combatiente, como se cuidan muy bien de indicar para cada documento.3

1. l, Un lenguaje "cercano a la gente"?

Dn lugar común, como dijimos, es atribuir el indudable éxito, aI menos medido en términos de interés, de la comunicación zapatista, a su nuevo "Ienguaje". Desde una recepción realizada en Buenos Aires, esto podría atribuirse a una diferencia dialectal, de tipo sociolingüístico. Según este supuesto, los políticos como grupo, y los políticos de izquierda comprendidos dentro de esta caracterización, hablarían en un sociolecto diferente ai que utiliza "la gente", con 10 que este grupo queda definido así como un tercero ajeno a la política, quizás utilizando formas "cultas" o no populares, conceptos desconocidos y hasta una sintaxis incomprensible.

1 En la bibliografía argentina en particular, esto sucedió ob­viamente con el discurso de Perón, y más recientemente con el de Alfonsín. En cuanto a Menem, dada su esc asa producción discursiva, y la existencia reiterada de lo que los analista~, sobre todo perio­dísticos, llamaron "contradic­ciones" en sus dichos durante actos públicos de la campana electoral de 1989, prefirieron volcar este éxito en el confuso concepto de imagen. Ver los trabajos clásicos de [Sigal y Verón 1988lfDeÍpola; 1981], para el caso de Perón y los de [Landi; 1985] en el caso de Alfonsín.

'Todos los fragmentos citados y la numeración de página consignada corresponden a dicha edición.

3 La única excepción el frag· menta incluido bajoel subtítu· lo "/nsl/'llcciones para Jefes y Ojiciales dei EZLN" dei El Despertador Mexicano, Órgano Informativo deI EZLN. (pag.37,38)

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El discurso zapatista... 193

Los textos producidos por los zapatistas tienen, obviamente, dife­rencias dialectales con la producción discursiva política de Buenos Aires: forman de otro modo los diminutivos: dicen momentico en lugar de momentito; anteponen el pronombre personal en la inteITogación, y otras:

No entiendo su palabra de este senor. (108) c:Acaso la inteligencia sólo /lega en su cabeza dei ladino? (l08) Te voy a platicar una historia que me pasó el otro día (217)

Sin embargo junto con estas formas dialectales que podrían ser interpretadas como indicador de popular o no letrado tambiên aparecen formas muy cultas y en desuso en las clases populares:

Vale, recordad que lo único que hemos hecho es ponerle un gatillo a la esperanza. (245)

Ninguno de los emisores que asumen la responsabilidad de la producción zapatista es ajeno a las formas cultas. EL CCRI -CG no elude complicados problemas teóricos, como sistemas de tenencia de la tieITa en un futuro gobiemo, listado prioritario de cultivos, posiciones de alianza y convergencia, motivos de repudio a una u otra organización política, etc. EI subcomandante Marcos no desdefía siquiera la utilización de fra­ses en inglês y francês, la cita de autores de novelas (recordemos que se presenta como locutor privilegiado de una "base" predominantemente analfabeta, como êl mismo declara), de la Constitución Mexicana, resoluciones de la ONU o dei TLC, alusiones a la teoría política, etc.

Salud y suerte en los idus de marzo (197)

El Sup inoportuno e impertinente,just like a estornudo ... (245)

Rniso mentalmente y es inútil: los mejores argentinos son guerrilleros (por ejemplo, el Che), o poetas (Juan Gelman, por ejemplo) , o escritores (por ejemplo, Borges), o artistas (Maradona, por ejemplo), o cronopios (por siempre, Cortázar) , 110 lIay argentinos asadores de duraluminio ... (239)

Los textos zapatistas tienen una retórica compleja llena de alusiones y sobreentendidos. En definitiva no se trata de un sociolecto de clases populares. sino de uno culto, letrado, característico de un emisor con estudios universitarios, situación que, en el caso dei subcomandante Marcos, no oculta en ningún momento.

Sin embargo es cierto que el discurso zapatista ofrece variaciones de forma, y en esto sí podemos encontrar novedad y diferencia: los docu­mentos zapatistas tienen todos receptores declarados; los documentos

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tienen encabezados diferentes según estén dirigidos a periódicos, a otra organización indígena, a federaciones estudiantiles, a partidos políticos, etc. Aquí sí el discurso zapatista se aparta de la producción discursiva política de la Argentina. lo nuevo es la utilización intensiva y extensiva de variaciones de registro. Las variaciones de este tipo son las diferencias - formales y de significado - que presenta un dialecto particular y que son debidas aI contexto en que es emitido, por ejemplo situacional (insti­tucional, familiar, etc) o interpersonal, en cuanto a una simetría o asimetría en relación aI poder que detentan, a la familiaridad que tienen entre sí los interlocutores, si el destinatario es individual o colectivo, etc.

EI discurso zapatista varía siempre que explicita un interlocutor diferente. En las cartas que dirigen a otras organizaciones indígenas no se utiliza la ironía, recurso deI que sÍ se hace uso en los comunicados a los periódicos y en las cartas dirigidas a partidos políticos o a la federación estudiantil. Tampoco ese es ellugar para la información de la situación militar. En notas a las ONG u otras organizaciones de la "sociedad civil" se procura estab1ecer una relación de identificación o acercamiento, netamente diferenciada de la distancia que establecen frente a partidos políticos cuando a éstos les envían notas o comunicados. La izquierda es criticada - la más de las veces irónicamente - en cartas que se le dirigen directamente o en notas a los periódicos, pero nunca cuando se dirigen a las ONG, aI gobiemo mexicano, a organizaciones campesinas, o a "los nifios deI mundo", etc. Los recursos utilizados para lograr estas variaciones son múltiples:

la ironía: Nosotros celebraremos por partida doble: primero sacrificare­mos a un infante (para que no haya duda de nuestra barbarie) no a los dioses mayas sino a los dei Olimpo (para que no haya duda de nuestro apoyo ai TLC) ... (224) Comunicado deI 10 de mayo, dirigido a cuatro periódicos)

EI 33,71 % dice que "perdí el piso" con la crítica ai PRD y el veto a "importantes diarios" (?). E166% dice que nunca he tenido piso alguno, que seguro me desalojaron. EI 0,29% 110 trajo co­pia de la boleta predial. (249) PD de un comunicado a la prensa deI I de junio

las fórmulas rituales: Recibimos su carta dei 15 defebrero de 1994. COI1 hOl1or grande recibimos su palabra de ustedes, Reciban ustedes nuestra humil­de palabra que habla con verdad. (157) Carta a los indígenas expulsados, 20 de febrero, CCRI-CG deI EZLN.

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El discurso zapatista ... 195

EI CCRI-CG dei EZLN se dirige con respeto y honor a todos ustedes para decir su palabra, lo que hay en su corazón y en su pensamientoDeclaración "mandar obedeciendo" . (175)

No es su sociolecto, entonces, lo que distingue aI discurso zapatista, pero estas variaciones de registro hablan por sí solas de un cuidado por la recepción que lo aleja de las prácticas discursivas casi autistas de la retórica tradicional de la izquierda.

2. La cuestión de los géneros

Mucho se ha discutido acerca de la especificidad deI discurso po­lítico, si el discurso político constituye un género o si es simplemente una especificidad de los discursos sociales [Verón et aI; 1988], o en definiti­va una clasificación que sólo tiene que ver con el carácter deI emisor, en tanto que él es un profesional de la política, o si es un efecto de reconocimiento, si es el receptor quien lo considera como tal. Nosotros preferimos utilizar, y lo hemos fundamentado en otros lugares, la noción lo político [Raiter: 1987, 1994], presente en un discurso como una operación [Faye: 1977] que puede estar realizada en discursos que pertenecen tradicionalmente a cualquier otra generalidad discursiva, como el periodístico, el pedagógico, el religioso, etc, en cuanto pretendan un cambio en las conductas, creencias o actitudes de los destinatarios a partir de la presentación de una pararrealidad discursiva. Los destinatarios de verían impelidos a este tipo de cambio (o a su confirmación) a partir de una inferencia obligada debida a la comprensión, sin posibilidades concre­tas de comprobación referencial, de esa realidad presentada y descripta en el discurso. Subsiste, de todos modos la confusión entre el discurso polí­tico, entendido como poseedor de una especificidad o característica propia y distintiva, y el discurso político en tanto simplemente entendido como textos producidos por políticos profesionales. Nosotros preferimos llamar, discurso público ai que normalmente emiten los políticos cuando están trabajando como tales. El discurso público se caracterizaría por estar constituido por la fundón polémica [Angenot; 1978], por un lado y por tener como destinatarios, mencionados explícitamente, usualmente a los partidarios y adversarios deI emisor, que puede ser tanto institucional como personal.

No se nos escapa que la caracterización genérica es extremadamente difícil, y que una caracterización precisa y sistemática de los géneros, así como una buena taxonomía, están lejos de haber sido logradas. Sin

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embargo nos atrevemos a afirmar que mucho de lo "nuevo" deI discurso zapatista está en este terreno, Consiste precisamente en que dentro de la producción deI emisor chiapaneco encontramos textos que responden a diferentes tipologías: relatos históricos y míticos, discursos públicos, órdenes y comunicados militares, cartas personales, proyectos de ley, cuentos ficcionales y fantásticos, panfletos, resoluciones judiciales, poesías y fábulas de animales son los diferentes "tipos" textuales de la producción zapatista4 •

Mientras que la producción discursiva política tradicional, se mantiene dentro de lo que lIam amos discurso público incluso hasta el hartazgo, aún en diferentes espectáculos comunicativos, es decir indepen­dientemente deI tipo de evento en el que están participando: intervenciones en el parlamento o reuniones ministeriales, en el gobierno o como opositores, como candidatos electorales, ante inauguraciones o conmemo­raciones, en reportajes radiales, televisivos o periodísticos, ante periodistas nacionales o extranjeros, en libros o artículos periodísticos propios, pan­fletos, en actos públicos partidarios o con extrapartidarios, etc.; los dis­cursos zapatistas rompen este molde variando permanentemente. La Declaración de la Selva Lacandona, verdadera declaración de guerra deI 2 de enero de 1994, es seguida de una crónica periodística el día 5, para ofrecernos el día 13 comunicados a la prensa que no desdeõan ilntercalar grios franceses o ingleses, una propuesta de negociación, una carta a otra organización política y ... un cuento que mezcla lo real y lo fantástico.

La función polémica típica deI discurso público no desaparece, pero la función poética (para tomar un concepto más tradicional) [J akobson; 1988], constituyente deI discurso literario adquiere un peso inusitado para la comunicación política. La diversidad de géneros y las variaciones de registro son sólo dos modos en que se pone de manifiesto esta constante preocupación por la forma de la comunicación.

3. Las estrategias discursivas

Junto con las ya mencionadas variaciones de registro y la utilización de diversos géneros, que son en realidad sólo formas y modalidades aI servicio de estrategias comunicativas, queremos destacar otras estrategias, específicamente discursivas.

la construcción dei destinatario Una condición de todo discurso es constituir a sus destinatarios.

Es decir, bajo la superficie deI texto, que seõala quién habla y a quién se le habla, el que habla se posiciona frente a su oyente y frente aI tema que

Estamos tomando aquí lo político no como gênero dis­cursivo, sino como una dimen­sión presente en diferentes tipos textuales_ Ver; Raiter, 1995.

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En el caso de Perón. por ejemplo. - excelente y minu­ciosamente analizado por Sigal y Verón (op ci!) -Ia utiliza­ción de los "nosotros" y de los ~. de los mayestáticos o de los colectivos de identificación. son funcionales a la constitu­

ción de su lugar como emisor

único. En los otros casos suce­

de lo mismo aunque con otros recursos: deI "yo" personal a los colectivos de identificación

y de éstos aI mayestático o vuelta a un " yo" que casi no

eshumano.

El discurso zapatista... 197

trata (el tercero discursivo) de determinada forma, de modo que construye en el discurso su propia imagen junto con la dei emisor, que podrá ser simétrica con su oyente, poseyente de un saber que implica distancia, líder y conductor de su oyente, etc. EI destinatario también es construido a par­tir de la imagen deI oyente que ellocutor pretende, por ejemplo con colectivos deI tipo "compatriotas", "ciudadanos", etc. Los oyentes potenciales se sienten asÍ interpelados por el discurso aI tiempo que son constituidos.

Los discursos de la izquierda suelen interpelar a los trabajadores, aI pueblo, etc, según sus estrategias particulares en cada momento, pero el destinatario normalmente es uno y se mantiene igual a sí mismo. Los tex­tos zapatistas buscan por el contrario constituir un destinatario plural: la izquierda en armas, las comunidades indígenas, las organizaciones no partidarias, los que simpatizan con las minorias étnicas, con las minorias sexuales, con los pobres, con los campesinos, con los débiles, con los valientes, los pacifistas, todos los que puedan identificarse con la rebeldía. El propio Marcos así lo explicita:

PD. MAYORITARIA QUE SE DISFRAZA DE MINORÍA

INTOLERADA . A todo esto de que si Marcos es homosexual:

Marcos es gay en San Francisco, negro en Sudáfrica, chicano en

San Isidro, anarquista en Espana, palestino en Israel, indígena en

las calles de San Cristóbal, chavo banda en Neza, rockero en CU,

judío en Alemania, ombusdman en la Sedena,feminista en los par­

tidos políticos. comunista en la post guerra fría, preso en Cintalapa,

pacifista en Bosnia, mapuche en los Andes, maestro en la CNTE,

artista sin galería ni portafolios, ama de casa un sábado por la

noche en cualquier colonia de cualquier ciudad de cualquier Mé­

xico, guerrillero en México de fin dei sigla XX, huelguista en la

CTM, reportero de nota de relleno en interiores, machista en el

movimiento feminista, mujer sola en el metro a las 10 PM, jubila­

do en plantón en el Zócalo, campesino sin tierra, editor marginal,

obrero desempleado, médico sin pla=a, estudiante inconforme,

disidente en elneoliberalismo, escritor sin libros ni lectores, y, es

seguro, =apatista en el sureste mexicano. ( ... ) Todo lo que incomo­

da ai poder y a las huenas conciencias, eso es Marcos. (243)

ellugar dei emisor Los locutores políticos argentinos construyen en sus textos aI emisor

por encima de sus destinatarios, alejado de éstos, como visionarios o adelantados.5 EI emisor es siempre un adelantado que todo lo sabe, que dispone de un saber y un poder suficientes para interpretar a sus destinatarios, explicarles y ensefíarles, a partir de lo cual impone su voz.

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198 Revista Brasileira de Literatura Comparada, nº 5, 2000

La situación deI locutor zapatista, con las rubricas deI subcoman­dante Marcos o institucionales, es totalmente diferente.

Un recurso es la autocalificación como no importantes - lo que incluso podría interpretarse como un rasgo de cortesía - aI utilizar para autonombrarse frases nominales deI tipo:

nosotros los más pequenos de la tierra, nosotros los sin rostro y sin historia ... (156)

pero el rasgo subsiste en contextos estratégicos - militares e incluso en actos de habla de que pueden constituirse como amenaza:

nosotros no somos importantes, si nosotros desaparecemos otros vendrán

Otros recursos son el uso de la segunda persona (no impersonal):

Queremos decides que recibimos su carta que nos mandaron el 24 de enero de 1994 ( ... ) Nuestro corazón se hacefuerte con sus palabras de ustedes que vienen de tan lejos (118,119, carta aI Consejo Guerrense 500 anos de resistencia indígena)

eI marcar la distancia física entre el emisor y sus destinatarios:

Con gusto recibimos el saludo y apoyo de ustedes, homhres y mujeres, que luchan en otras tierras y por caminos dil'ersos para lograr las mismas libertades, democracia y justicia que ansia­mos todos (129, carta aI Consejo Estudiantil Universitario)

y el de describir otras actividades además de la propia como válidas,

Nuestra forma de lucha no es la única, tal vez para muchos ni siquiera sea la adecuada. Existen y tienen gran mlor ofras for­mas de lucha. Nuestra organización no es la única.( 103, comu­nicado de prensa)

EI emisor es asÍ uno más, ni siquiera un primus inter pares, sino uno más de los que hablan con palabra verdadera (varios comunicados).

la voz dei otro EI otro o los otros siempre son objeto de un cuidadoso tratamiento

en los textos marcados por lo político. La función poIémica suele llevar a anular las otras voces, ya que el tercero discursivo solo es objeto de calificaciones o c1asificaciones, o destinatario de actos de habla de advertencia o amenaza.6 Cuando la voz deI otro es citada, o cuando a

6 Sigal y Verón muestran cómo en el discurso peronista se anula a los potenciales adversarios, mostrándolos ine­xistentes o a los sumo extravi­ados, confundidos o traidores: los otros no tienen derecho a la voz porque también quedan fuera dei juego político que el enunciador describe. En los textos de los Montoneros de los anos setenta se mantiene esta estrategia discursiva me­diante la calificación de "trai­dores" u "ocultos" poseedores de "objetivos inconfesables"; como solo pueden "moverse en las sombras" la voz dei adversario. aunque pueda ser mencionada, está descalifica­da por el lugar de emisión, antes que por sus dichos. En los emisores políticos de la izquierda argentina la opera­ción es similar: como portado­res de una ideología extrana a los intereses de la c1ase. solo buscan enganar para ocultar el "enemigo principal", o con­fundir, la descalificación es absoluta. En el discurso Alfonsinista la operación es similar: los otros no tienen derecho a decir. I Menéndez y Raiter; 19~61

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sus dichos se refiere el emisor, es simplemente para descalificarlos, no para rebatirlos; nuevamente el centro está puesto en los personajes que han emitido, y no en los dichos.

En el discurso zapatista el otro existe, su voz no es anulada, sino citada y no siempre descalificada. Por supuesto que en tanto estrategia discursiva resulta estar en estrecha relación con las otras: ellugar deI emisor y dei destinatario y con los elementos característicos de su producción discursiva: la diversidad de géneros y las variaciones de registro.

Les comunicamos a ustedes que estamos completamente de acuerdo con la totaUdad de la propuesta deI senO/' Comisionado para la Paz y la Reconciliación en Chiapas en lo referente a este punto. (117, carta aI Comisionado Nacional de Intermediación y aI Sefíor Manuel Camacho Solis, CCRI-CG)

Dijimos nuestra palabra ai supremo gobierno y a todas las personas buenas y honestas que hay en el mundo. También hablamos COI1 las gentes malas para que escucharan la verdad. Algunos recihieron nuestra palabra, ofros siguieron en el camino deI desprecio a nuestra raza.(. .. ) Hemos encontrado en el Comisionado para la Paz y la Reconciliación en Chiapas a un hombre displlesto a escuchar nuestra razones y demandas. EI no se conformó con escuchamos y entendemos, buscó además las posibles solllciones a los problemas. (187, decIaración deI fin deI diálogo, Subcomandante Marcos y CCRI-CG). EI seliO/' Cárdenas ha venido a escuchamos y /0 ha hecho con atención y respeto. Esperamos que la palahra verdadera de los I/Ombres y /1/ujeres sin rostro sea escuchada y tenga un lugar en su corazón (235, mensaje a Cuauhtémoc Cárdenas).

4. Democracia, libertad, justicia

Una y otra vez se repiten, democracia, libertad y justicia consig­nas y objetivos de la lucha zapatista que reaparecen en casi todos los documentos y terminan funcionando como su cierre no son - aparente­mente - ni nuevas ni originales. Sin embargo, es sabido que el signifi­

cado de los signos no se mantiene constante, no están dados de una vez y para siempre, sino que va cambiando. ;,Cómo se logra esta? Los signos

no "significan" solos sino en el texto en que aparecen, como en los ejemplos

que dimos, o también como resultado de toda la producción discursiva de determinados emisores, personales o institucionales. De acuerdo con

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los sintagmas en que aparecen, con qué otros signos se los combina o califica, con cuáles se los compara, contrapone o coordina, los signos adquieren diferente valor. Algunos de los signos, cuando se repiten cons­tantemente a lo largo de una producción discursiva, como patria - pueblo

- trabajadores en el caso deI discurso peronista, O democracia - solución económica en el alfonsinista, o unidad-de-acción en el sindicalista y el comunista, se constituyen en los signos ideológicos característicos de esos discursos.[Voloschinov; 1926]

Así podemos decir que justicia -libertad - democracia son signos ideológicos dei discurso zapatista. Es lícito preguntamos, entonces, con qué valor aparecen estos signos en los di scursos.[Raiter y Menéndez, 1986]

Parcialmente aI menos estos valores son definidos explícitamente. Democracia significa "mandar obedeciendo".

Fue nuestro camino siempre que la voluntad de los más se hiciera común en el corazón de los hombres y mujeres de mando. Era esa voluntad mayoritaria ef camino en el que debía andar el paso dei que mandaba. Si se apartaba su andar de lo que era razón de la gente, el corazón que mandaba debía cambiar por otro que obedeciera. Así nació nuestra fuerza en la montana, el que manda obedece si es verdadero, el que obedece manda por el corazón común de los hombres y mujeres verdaderos. Otra palabra vino de lejos para que este gobierno se nombrara, y esa palabra nombró ' democracia' este camino nuestro que andaba desde antes que caminaran las palabras. Los que en la noche andan hablaron : Y vemos que este camino de gobierno que nombramos no es ya camino para los más, vemos que son los menos los que ahora mandan y mandan sin obedecer, mandan mandando. Y entre los menos se pasan el poder de mando, sin escuchar a los más, mandan mandando los menos. sin obedecer el mando de los más. Sin razón mandan los menos. la palabra que viene de lejos dice que mandan sin democracia, sin mando deI pueblo, y vemos que esta sinrazón de los que mandan man­dando es la que conduce el andar de nuestro dolor y la que ali­menta la pena de nuestros muertos. Y vemos que los que mandan mandando deben irse lejos para que haya otra vez razón y verdad en nuestro sue/o. Y vemos que hay que cambiar y que manden los que mandan obedeciendo, y vemos que esa palabra que viene de lejos para nombrar la razón de gobierno, democracia, es buena para los más y para los menos. (175, Declaración, man­dar obedeciendo, CCRI-CG).

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7 Ver también para la descrip­ción de esta democracia asamblearia en relación a la cuestión de la respuesta ai diá­

logo: infonne de marcos. 24 de febrero, (l6R y sg) y el comu­nicado de CCRI-CG sobre el resultado de la consulta dei 10 de junio, (pág. 257 Y sg.)

EI discurso zapatista ... 201

Estamos frente a un relato casi mítico donde la voz de los ancestros y la los zapatistas (los hombres sin rostro) se encuentran en la palabra que viene de lejos (l,la de Rousseau?), para proponer la crítica de las instituciones existentes y un programa político que no puede tener otro valor que el de una ruptura radical:

Por suicidio o fusilamiento, la muerte dei actual sistema político mexicano es condición necesaria, aunque no suficiente, dei tran­sito a la democracia en nuestro país. ( ... ) Nacerá una relación política nuera. Una nueva política cuya base no sea la conji"ontación entre organizaciones políticas entre sí, sino la confrontación de sus propu estas políticas con las distintas clases sociales, pues dei apoyo REAL de esta nueva relación política, las distintas propuestas deI sistema y rumho (socialismo, capita­lismo, socialdemocracia, etcétera) deherán convencer a la mayoría de la Nación de que su propuesta es la mejor para el país. (273, Segunda Declaración de la Selva Lacandona).

Otros signos usados también afianzan este valor de democracia: el presidente Salinas de Gortari, es definido como un usurpador no tanto por el fraude en la elección que lo consagró, sino porque no consultó a los indígenas sobre el ingreso de México aI TLC, porque el mal gohierno no manda obedeciendo sino mandando.

Esta democracia, por otra parte, no es sólo un programa, alude a una práctica social en funcionamiento y explica los tiempos y las moda­lidades de decisión:

Los hombres y las mujeres y los ninos se reunieron en la escuela de la comunidad para ver en su corazón si es la hora de empezar la guerra para la libertad y se separaron los 3 grupos, o sea las mujeres. los ninos y los hombres para discutir y ya [uego nos reunimos otra vez en la escuelita y llegó a su pensamiento en la mayoría que ya se empiece la guerra porque México ya se está vendiendo con los extranjeros y el hambre pasa pero no pasa que ya no somos Mexicanos y en el acuerdo llegaron 12 hombres y 23 mujeres y 8 ninos que ya tienen bueno su pensamiento y firmaron los que saben y los que no ponen su dedo (pág. 241, citando un acta de acuerdo anterior aI alzamiento)

Tenemos ahora la obligación de reflexionar bien /0 que sus palahras dicen. Dehemos ahora hahlar ai corazón colectivo que nos manda (187, declaración deI fin deI diálogo). 7

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No hay una definición tan precisa como la de democracia para la libertad, peTO siempre aparece asociada a ella porque se asimila aI derecho "elementa/" de decidir:

El más valioso de ellos (los derechos elementales deI ser huma­no) es el de decidir, con libertad y democracia, la forma de gobierno. (274)

Libertad no es otra cosa que no sujeción a otras decisiones de las colectivas, tomadas en la comunidad, aI punto que el EZLN no pretende tomar el poder de México, porque seria imponer su decisión a otras organizaciones comunitarias, que se verian así privadas de su libertad de decidir.

~La justicia? Es la garantía deI autogobierno y como tal se exige la justicia indígena, derogación deI Código Penal de Chiapas. Simultáneamente hay también otro sentido esencialista de la justicia que se presenta como autoevidente: no es justo que no haya electricidad en un estado que la produce, que se mueran las mujeres porque no hay clínicas para partos, son necesarios precios justos para los productos deI campesino y las artesanías de las mujeres, hospitales, maestros ... Camacho Solís, delegado deI "supremo gobiemo", denominación apa­rentemente tradicional deI ejecutivo mexicano, no puede atender a la de­manda de justicia que solicitan los delegados zapatistas en la mesa deI diálogo, porque en todo caso no puede ofrecer más que "juicios" o "amnistía para los que portan armas", es decir, como máximo, sujeción a las leyes existentes que no son legítimas

~Quién tiene que pedir perdón y quién puede otorgarlo?(. .. ) ~Los que nos negaron el derecho y don de nuestras gentes de gobernar y gobernarnos? ~Los que negaron el respeto a nuestra costumbre. a nuestro color, a nuestra lengua ? ~Los que nos tratan como extranjeros en nuestra propia tierra y nos piden papeles y obediencia a una ley cuya existencia y justeza ignoramos? (90)

Junto a los ecos rousseaunianos, o todavía más antiguos, están presente OtTOS de resonancias modernas: la sociedad civil asociada aI pueblo se constituye en la múltiple y plural depositaría de la soberanía. PeTO adquiere aquí también un valor nuevo: opuesta ai gobiemo, ai esta­do, y a los partidos políticos, e incluso aI EZLN mismo, es ella la verdadera portadora de la democracia, la libertad y la justicia.

El proceso de diálogo para la paz viene de una determinante fundamental. no de la vo/untad política dei gobierno federal, no

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de nuesfra supuesta fuerza político-militar (que para la mayoría sigue siendo un misterio) sino de la acción firme de lo que llaman la sociedad civil mexicana. De esta misma acción de la sociedad civil mexicana, y no de la voluntad dei gobierno o de la fuerza de nuesfros fusiles, saldrá la posibilidad real de un cambio democrático en México. (pág. 98, comunicado de prensa, subcomandante Marcos.)

La única fuer:a capa: de llevar a cabo el tríptico libertad, democracia y justicia, y de cambiar el mundo entero, es la fuerza deI pueblo, la de los sin partido ni organi:ación, la de los sin voz y sin rostro. Quien gane con verdad esa fuer:a, será invencible. (pag 238).

No podemos hacer aquí avanzar en un análisis más exhaustivo dei funcionamiento de los signos ideológicos en el discurso zapatista pero esperamos haber mostrado el complejo proceso por el que modifican y otorgan valor nuevo, propio: la historia mítica, la teoría política y la realidad mexicana tal como están presentadas en el relato zapatista.

5. Ellugar deI discurso zapatista

Sabemos que ningún discurso es interpretado en forma aislada, sino que lo es dentro de una red de discursos. No hay nunca un primer discurso, un momento cero, porque cada nuevo discurso llega a conti­nuación de otros ya enunciados; cada uno rechaza, refuta, discute con, etc. discursos anteriores en el tiempo pero presentes y actuales dentro de la red en que ha tenido lugar, y que funciona como condición de posibilidad de aparición de ese discurso, y que constituyen ai menos parte de sus condiciones de producción, y que formarán parte de la interpretación (recepción) de cada uno de los discursos en particular.

En este sentido es muy interesante analizar qué lugar ocupa, o puede ocupar, el discurso zapatista. Lo primero que hay que sefíalar es que lo radicalmente nuevo deI discurso zapatista es, en todo caso, el lugar que pretende ocupar en la red discursim es decir, en el conjunto de referencias sociosemióticas; está formada por todos los discursos que, manteniendo esas referencias, responden, critican, afirman total o parci­almente, discursos anteriores. [Foucault 1969]. Una red discursiva no es homogénea: el discurso dominante [Raiter; 1992] es una parte de las referencias de una red, que establece las condiciones para construir la verosimilitud, dentro de ésta; determina un "eje" que califica a los otros

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discursos como opositores, marginales, aliados, pornográficos, verdade­ros, falsos etc., por la distancia que toman con respecto a ese eje que el dominante establece.

El discurso dominante de los 90 es, por supuesto, el neoliberal que acompafia el proceso de globalización capitalista. Es con este dis­curso con el que debe competir el zapatista. No se encuentra con otros discursos guerrilleros, no debe demostrar que es el más nacionalista ni el más revolucionario, tampoco debe demostrar que no está vinculado a la política exterior soviética o cubana, pero si se encuentra con otros dis­cursos que resultan calificados desde el dominante: el socialdemócrata, el de la izquierda tradicional. Debido a este nuevo contexto es que no es foquista ni insurreccional, aunque esté armado, ni rousseauniano aunque se funde en la soberanía deI pueblo ni gramsciano, aunque mencione a la sociedad civil, ni nacionalista ni internacionalista, aunque vacilen per­manentemente en denominarse indígenas de México o en México, son ... zapatistas. Las reminiscencias de "lo viejo", de sintagmas nominales ya conocidos, tienen la frescura de la novedad, los signos ideológicos, significantes conocidos, adquieren nuevo valor.

Frente a un discurso dominante en una formación discursiva todo nuevo discurso tiene varias pero limitadas posibilidades: adoptar los sig­nos ideológicos deI discurso dominante, y acoplarse a él, o intentar cam­biar los valores de esos signos. En este caso, puede convertirse en un discurso opositor dentro de la red (o marginal, o subversivo, o patológi­co, etc.), con lo que legitima aI discurso dominante como tal, o intentar convertirse en opositor a la red. Esta última parece ser la apuesta zapatista ya que, como venimos mostrando, no tratan de calificar aI discurso do­minante dentro de la red sino de cambiar totalmente su sistema de referencia, y a esto concurren no sólo los cambios de valor de los signos ideológicos, sino también las estrategias discursivas, la diversidad de géneros y las variaciones de registro.

6. Una conc1usión que no conc1uye

l..Se trata de un discurso emergente? [Giménez Montiel, 1981] La primera condición es la de lograr la ruptura deI sistema de referencias sociosemióticas en función deI cuallas nuevas producciones discursivas son verdaderas o falsas (verosímiles o inverosímiles) y adquieren senti­do. Es indudable que este discurso que rompe la férrea división en el discurso dominante entre realidad y ficción, en el que los muertos indíge­nas viven con los indígenas armados y les aconsejan, en el que el tiempo

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no puede medirse con reloj, y hasta los adversarios más terribles son tratados con respeto, es un discurso que cuestiona los valores de los signos ideológicos dominantes y no sólo los estrictamente políticos que hemos analizado sino también de signos tales como el de muerte, el de tiempo, el de historia, en relatos donde los referentes pueden confundirse, ~es Zapata o es el EZLN?

Desde la hora primera de esta larga noche en que morimos, dicen nuestros más lejanos ahuelos, hubo quien recogió nuestro dolor y nuestro olvido. Era y no era de estas tierras su paso, en la hoca de los muertos nuestros, en la voz de los sahedores ancianos, caminó su pa/ahra de él hasta el corazón nuestro. Huho y hay, hermanos, quien siendo y no siendo semilla de estos sue/os a la montana /legó, muriendo, para vh'ir de nuevo, hermanos, vivió muriendo el corazón de este paso propio y ajeno cuando casa hi:o en la montana de nocturno techo ( .. .) Es y no es en estas tierras: Votán Zapata, guardián y corazón dei pueblo

Pero, ~es un discurso emergente? El tiempo nos dirá si puede serIo, pero creemos haber mostrado que tiene las características inmanentes que lo definen. Para constituirse en discurso emergente debería además reunir una segunda y más exigente condición: inaugurar un nuevo siste­ma de referencias, producir una nueva red discursiva, obligar a los dis­cursos que lo sigan a que lo discutan, lo comenten o lo refuten. Se trata de mantener la iniciativa discursiva, se trata de sostener la lucha discur­siva por el poder. Y en esta conviene no olvidar - parafraseando libremente a Foucault - que para participar en la lucha discursiva por el poder los zapatistas tuvieron previamente que lograr ser emisores po­líticos, es decir, debieron luchar para poder decir.

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