revista brasileira de literatura comparada - 09

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Diretoria A B R A L I C 2005/06

Presidente José Luís Jobim (UERJ/UFF)

Vice-presidente Lívia Reis (UFF)

1 ° Secretário Antonio Carlos Secchin (UFRJ)

2° Secretário João Cezar de Castro Rocha (UERJ)

1 ° Tesoureiro Roberto Acízelo Quelha de Souza (UERJ)

20 Tesoureira Claudia Maria Pereira de Almeida (UERJ)

Conselho Audemaro Taranto Goulart (PUC/MG)

Eduardo Coutinho (UFRJ)

Gilda Neves Bittencourt (UFRGS)

Ivia Iracema Duarte Alves (UFBA)

Maria Cecília Queirós de Moraes Pinto (USP)

Maria Eunice Moreira (PUC/RS)

Reinaldo Martiniano Marques (UFMG)

Rita Terezinha Schmidt (UFRGS)

Suplentes Márcia Abreu (UNICAMP)

Tania Regina Oliveira Ramos (UFSC)

Conselho editorial Benedito Nunes, Bóris Schnaidermann, Eneida Maria de Souza,

João Alexandre Barbosa, Jonathan Culler, Lisa Bloch de Behar,

Luiz Costa Lima, Marlyse Meyer, Raul Antelo, Silviano Santiago,

Sonia Brayner, Tania Franco Carvalho!, Yves Chevrel.

ABRALIC C.G.C.04901271/0001-79 Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Instituto de Letras Rua São Francisco Xavier 524, 11 0 andar - CEP 20559-900 Bairro Maracanã - Rio de Janeiro 1 RJ Fone/Fax: (21) 2587-7313 E-mail: [email protected]

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4 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006

© 2006 Associação Brasileira de Literatura Comparada A Revista Brasileira de Literatura comparada (ISSN- Dl 03-6963J é uma publicação anual da Associação Brasileira de Literatura Comparada (AbralicJ, entidade civil de caráter cultural que congrega prOfessores universitários, pesquisadores e estudiosos de Literatura Comparada, fundada em Porto Alegre, em 1986.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem permissão por escrito,

Editores José Luís Jobim Lívia Reis Antonio Carlos Secchin João Cezar de Castro Rocha Roberto Acízelo de Souza Claudia Maria Pereira de Almeida

Formatação e Casa Doze Projetos & Edições produção gráfica

Tiragem 2000 exemplares

Revista Brasileira de Literatura Comparada / Associação Brasileira de Literatura Comparada - v,l, n,l (1991 ),­Rio de Janeiro: Abralic, 1991-v, ,n,9, 2006

ISSN 0103-6963

1 , Literatura comparada - Periódicos, I. Associação Brasileira de Literatura Comparada,

CDD 809,005 CDU 82,091 (05)

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A revista e o X Congresso Internacional da ABRALlC

José Luís Jobim Lívia Reis

Antonio Carlos Secchin João Cezar de Castro Rocha

Roberto Acízelo de Souza Claudia Maria Pereira de Almeida

editores

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Este segundo número da Revista Brasileira de Literatura Comparada, editado em nossa gestão, aponta para a possibilidade de nos igualarmos ao patamar desejado pela CAPES, de dar ênfa­se aos periódicos científicos que tenham periodicidade no mínimo bianual nas avaliações do QUALIS.

O lançamento desta edição no X Congresso Internacional da ABRALIC, realizado entre 31 de julho e 4 de agosto de 2006, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro - em promoção conjunta com a Universidade Federal Fluminense e a Universida­de Federal do Rio de Janeiro - faz parte também das comemora­ções referentes aos 20 anos de atividades ininterruptas de nossa associação, como não poderia deixar de ser.

Agradecemos aos pesquisadores de todo o país e do exteri­or que responderam ao callfor papers, e não podemos deixar de dizer que gostaríamos de ter mais espaço para acolher ainda mais artigos do que o já elevado número que ora publicamos. De todo modo, a própria diversidade dos articulistas que contribuem para este número é uma comprovação expressiva da importância nacio­nal e internacional desta nossa Revista, e um fato a ser celebrado.

Agradecemos também aos nossos pareceristas ad hoc, que trabalharam muito e em tempo recorde, para que pudéssemos lan­çar este número ainda em nosso evento de 2006.

Quanto ao evento em si, foi no período entre 31 de julho e 04 de agosto de 2006 que se realizou o X Congresso da ABRALIC,

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6 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006

na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, envolvendo profes­sores e pesquisadores do Brasil inteiro e do estrangeiro, e contan­do com mais de 2.000 inscritos.

É sempre bom lembrar que a ABRALIC foi fundada em 1986, na UFRGS, completando assim 20 anos em 2006. Desde então, promoveu 10 congressos e 10 encontros regionais, nas se­guintes Universidades: UFRGS, UFMG, UFF, USP, UFRJ, UFSC, UFBa, UFMG e UERJ. Seus últimos dois congressos (UFMG e UFRGS) reuniram, cada um, cerca de 1.700 professores e pesqui­sadores. Hoje, a ABRALIC é a associação científica mais antiga e com maior destaque na nossa área, e a maior associação de estu­dos literários da América Latina. Sua diretoria é eleita bianualmente, compondo-se de 6 pesquisadores/docentes (na atual, seus mem­bros são da VERJ, UFF e UFRJ), responsáveis por todas as ativi­dades no biênio. Há também um Conselho, integrado por ex-pre­sidentes e por pesquisadores de destaque na área, que dialoga com a diretoria, nos assuntos de interesse da ABRALIC.

O X Congresso Internacional da ABRALIC discutiu o lo­cal, o regional, o Ilacional, o inter-nacional, o planetário: lu­gares dos discursos literários e culturais, e teve como subtemas: Lugares dos discursos literários e culturais. Construção de iden­tidades: local, regional, nacional, internacional, étnica, sexual, lingüística, religiosa, de classe, de grupo. Centro e periferia. Me­trópole e colônia. O colonial e o pós-colonial. Herança ibérica e Novo Mundo. Relações culturais e blocos transnacionais (MERCOSUL e União Européia). Exceção cultural e globalização. Homogeneidade e heterogeneidade. Políticas cul­turais nacionais e internacionais. Interseções, compartilhamentos, articulações, singularidades, diferenças, assimetrias e hierarquias nos fluxos literários e culturais. Quadros de referência da circula­ção e aquisição do saber cultural e literário. As teorias e seus lugares de enunciação. Modos de ver, modos de julgar, descrições e prescrições.

Como "lugar" acabou sendo a palavra-chave que presidiu tanto o Encontro Regional da ABRALIC-2005 quanto este X Con­gresso Internacional da ABRALIC, convém aqui reiterar a nossa concepção deste termo:

"Um lugar é, antes de mais nada, uma construção elaborada

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A revista e o X Congresso Internacional da ABRALIC

I Jobim, J.L. ABRALIC: Sentidos do seu lugar. Rev. Brasileira de Literatura Comparada, Rio de Janeiro, 8, p. 95-112, 2006.

por várias gerações de homens e mulheres que nele habitaram ou por ele passaram, e que ajudaram a formular o sentido que tem. Ele é constituído por redes públicas de sentido, formado­ras de subjetividade. Nele se constituem interpretações públi­cas simbolicamente mediadas, inclusive sobre o sentido deste lugar e sobre o que significa estar inserido nele. Num lugar, circulam elementos que de algum modo impõem sentido às experiências singulares dos sujeitos, elementos em relação aos quais estes sujeitos interpretam suas experiências (e os textos que lêem), bem como direcionam suas ações. Em outras pala­vras, o lugar é sempre fonte de pré-concepções que de alguma maneira contribuem para a elaboração de nosso dizer, pois nele se situa o sistema de referências deste dizer - incluindo determinado universo de temas, interesses, termos etc. -, siste­ma que sempre já estabelece um limite dentro do qual nosso campo de enunciação se circunscreve. Lugares têm sempre história, e mesmo o apagamento de certos elementos constitutivos da história do lugar também é decorrente de ra­zões históricas." 1

Mais do que nunca, hoje, faz-se necessário estudar as corre­lações entre os lugares e os discursos literários e culturais, gerando construções de toda ordem, derivadas não só de relações políticas assimétricas, mas também de todo um quadro complexo de interse­ções, compartilhamentos, articulações, singularidades, diferenças, assimetrias e hierarquias nos fluxos literários e culturais.

Com o evento de 2006, pretendemos, entre outras coisas: 1) Dar prosseguimento ao trabalho acadêmico que até o presente momento vem caracterizando o perfil da Associação Brasileira de Literatura Comparada (isto é, situar o estudo da Literatura em relação a problemas teóricos fundamentais para a discussão do quadro de referências em que se situam estes estudos, bem como em relação a pesquisas desenvolvidas em outras áreas das Ciênci­as Humanas); 2) Buscar uma maior integração acadêmica entre os associados, objetivando gerar novos projetos e parcerias inter­universitárias, a partir da realização dos simpósios temáticos e da sinergia gerada pelo congresso; 3) Oferecer uma contribuição re­flexiva em relação aos quadros de referência que delimitam fluxos literários e culturais; 4) Incentivar a emergência de novas parceri­as e projetos entre pesquisadores da área; 5) Enfocar as mais re­centes teorias e projetos sobre o tema do Encontro, destacando a

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8 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006

atividade literária e seu papel de verdadeira intersecção entre as diversas áreas de conhecimento, perspectiva que mantém o cará­ter multidisciplinar dos eventos da ABRALIC.

Tivemos a presença dos seguintes pesquisadores, como con­ferencistas convidados do X Congresso da ABRALIC, todos com reconhecida qualificação e produção acadêmica: Ana Pizarro (Uni­versidade de Santiago de Chile), Benjamin AbdallaJr. (USP), Edson Rosa da Silva (UFRJ), Eduardo Portella (ABL), Hans Ulrich Gumbrecht (Stanford University), Lucia Helena (UFF), Luiz Costa Lima (UERJ), Eduardo Coutinho (UFRJ), Pablo Rocca (Universidad de la República - Uruguai), Jean-Marc Moura (Université de Lille), Luisa Campuzano (Universidade de Hava­na), Patrick Imbert (Universidade de Ottawa), Regina Zilberman (PUC-RS), Reinaldo Martiniano Marques (UFMG), Silvano Peloso (Universidade de Roma - La Sapienza), Zilá Bernd (UFRGS).

Ressalte-se que a publicação em livro das conferências, a exemplo do que ocorreu com as palestras do Encontro Regional da ABRALIC-2006, permitirá a um público mais amplo o acesso ao resultado do evento.

As atividades, em todos os dias do congresso, foram distri­buídas em mesas-redondas, na parte da manhã e ao final da tarde, da qual participaram os pesquisadores convidados, e em Simpósios, organizados por Professores e pesquisadores, selecionados pela Comissão Organizadora. O Encontro teve o total de 10 (dez) mesas-redondas, cada uma com 2 (dois) conferencistas, e 71 (se­tenta e um) Simpósios, funcionando em um turno (manhã ou tar­de), durante os dias do evento.

Três universidades participam diretamente da organização des­se Encontro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), sede do evento, Universidade Federal Fluminense (UFF) e Univer­sidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A Diretoria da ABRALIC foi responsável pela organização, junto com uma Comissão Organizadora mais ampla, composta dos seguintes nomes: José Luís Jobim (UERJIUFF); Lívia Reis (UFF); Antonio Carlos Secchin (UFRJ); João Cezar de Castro Rocha (UERJ); Roberto Acízelo Quelha de Souza (UERJIUFF); Claudia Maria Pereira de Almeida (UERJ); Carlinda Fragale Pate Nunez (UERJ); Ana Lúcia de Souza Henriques (UERJ); Roberto Mibielli (UFRR); Luiz Edmundo Bouças Coutinho (UFRJ); Fernando Casaes (UERJ)

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A revista e o X Congresso Internacional da ABRALIC

Além dos acima nomeados, contamos com 54 monitores, in­dispensáveis para tornar possível a realização do X Congresso In­ternacional da ABRALIC. Agradecemos a eles e a todos aqueles cujo trabalho foi fundamental para o sucesso do empreendimento.

Para terminar, gostaríamos de chamar a atenção sobre o novo sistema de envio de todos os textos completos das comunicações a serem apresentadas em cada simpósio, para publicarmos, de modo que, no primeiro dia do Congresso, cada participante pudesse rece­ber, junto com o material do congresso, os anais, com a sua comu­nicação já publicada.

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Este novo procedimento permitiu que os coordenadores de simpósios, a seu critério, pudessem fazer apenas a discussão dos trabalhos, já que estes estavam disponíveis bem antes do evento. Este é um novo procedimento, já que o próprio formato dos con­gressos de nossa área não beneficia um possível aprofundamento crítico dos temas e objetos pesquisados, pois a estrutura básica de nossos congressos consiste em apresentações de cerca de 20 minu­tos, sem discussão posterior - ou, pelo menos, sem uma discussão que mereça, até pelo tempo a ela dedicado, ser considerada como relevante. Assim, planejar eventos nos quais, ao invés de se levarem papers que são lidos sem discussão, se possa introduzir a prática de disponibilizar os textos anteriormente para, durante o evento, dedi­car-se apenas a discutir o que antes foi disponibilizado, pode levar a um maior adensamento geral das argumentações desenvolvidas so­bre os diversos temas, pois o debate, inclusive com a verbalização de opiniões contrárias, obriga ao acuramento de posições. Ressal­te-se que tanto a decisão sobre a disponibilização e circulação (ou não) dos textos antes do evento (por exemplo, através de anexos em e-mails para os participantes dos simpósios) quanto a sua forma de apresentação ou discussão no próprio evento foram decisões does) próprio(s) coordenador(es) de cada simpósio.

A todos os sócios e participantes do X Congresso Internaci­onal da ABRALIC, nossos agradecimentos por sua contribuição.

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Sumário

A revista e o X Congresso Internacional 5 da ABRALlC

Artigos A formação, os deslocamentos: modos de escrever

a história literária brasileira Joana Luíza Muylaert 1 3

Antonio Candido e o projeto de Brasil Regina Zilberman 35

A rota dos romances para o Rio de Janeiro no século XIX Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos 49

A crônica na imprensa periódica oitocentista: Machado de Assis e a formação do público leitor

Patrícia Kátia da Costa Pina 65 O marido da adúltera, de Lúcio de Mendonça, ou as estratégias

de publicação de um romance como folhetim Socorro de Fátima Pacífico Vilar 79

De São Paulo aI Aconcagua: una trayetoria latino americana para Monteiro Lobato

Marisa Lajolo 99 Euclides da Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos

Délia Cambeiro 1 07 Matériaux pour une étude de la réception de la littérature

brésilienne en France Pierre Rivas 1 29

Lições de viagens, devoção religiosa e sobrevivência nos trópicos: o Brasil no romance juvenil francês oitocentista

Andréa Borges Leão 141 Os cadernos de campo de Roger Bastide:

entrecruzamentos múltiplos Maria de Lourdes Patrini-Charlon 161

Da representação do horror ao vazio da representação Edson Rosa da Silva 1 81

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12 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006

A literatura e a virtualização do texto literário Rogério Lima 191

A ficção brasileira contemporânea e as redes hipertextuais Ana Cláudia Viegas 213

O hipotexto de N 011 Luiz Gonzaga Marchezan 229

Outras palavras: o Catatau de Paulo Leminski em três tempos Marília Librandi Rocha 243

Narrar ou perecer: Sérgio Sant' Anna e Ricardo Piglia, sobreviventes Ângela Maria Dias 259

Transcriar, transubstanciar: a homenagem dos "cinco sentidos" de Harotdo de Campos- a Gius-eppe Ungaretti

Maria Luíza Berwanger da Silva 269 As ironias da ordem: Carlos Drummond de Andrade

e Fernando Pessoa Maria Esther Maciel 283

Lendo e re-escrevendo o passado: Shakespeare apaixonado Thais Flores Nogueira Diniz 293

Luuanda 40 anos: a força das palavras mais velhas Laura Cavalcante Padilha 307

Resenhas

Dom Quixote: utopias André Trouche e Lívia Reis, org.

Rodrigo F. Labriola 323 Conceitos de literatura e cultura

Eurídice Figueiredo, org.

Maisa Navarro 327 Jacques Derrida: pensar a desconstrução

Evando Nascimento, org Carla Rodrigues 330

História. Ficção. Literatura. Luiz Costa Lima

Sérgio Alcides 336

Apresentação dos autores 345

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A formação, os deslocamentos:modos de escrever a história literária brasileira

Introdução

Joana Luíza Muylaert de Araújo (UFU)

As relações entre culturas literárias diversas têm recebido da crítica brasileira contemporânea tratamentos distintos, confor­me o ponto de vista teórico inseparável das escolhas do crítico e da sua sensibilidade para certos temas, autores e textos, e não outros. Mas, como se sabe, nem sempre a natureza provisória e inacabada das interpretações é assumida explicitamente nos tex­tos de críticos e historiadores da literatura. A pergunta que então proponho, neste trabalho, refere-se à possibilidade de se postular histórias da literatura brasileira orientadas para os vazios, para as rupturas do que se estabilizou como sistema nacional coerente e orgânico, cristalizando-se assim um certo modo de perceber a tradição ou a formação de textos canônicos brasileiros.

Em síntese, a proposta também poderia ser nos termos, a seguir, formulada: compreendendo a formação da literatura brasi­leira não como linha evolutiva de uma identidade essencialista e original a ser revelada, mas como imagem construída no cruzamen­to da cultura e da subjetividade dos diversos intérpretes, passaría­mos então a identificar váriasformações da literatura brasileira, tantas quantas propuseram os historiadores desde o romantismo.

Em outras palavras, o que poderíamos interpretar, talvez equivocadamente, como desacertos da crítica, oferece-nos ao con­trário os elementos indispensáveis para a afirmação de uma escri­ta caleidoscópica da história, diversa e dispersa, com as aporias incontornáveis e constitutivas de todo trabalho rigoroso de crítica e historiografia.

A hipótese aqui apresentada pressupõe a reavaliação de ques-

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tões teóricas pertinentes ao campo da historiografia literária, bem como ao terreno da crítica no Brasil, marcada pela insistência no descompasso das produções literárias brasileiras em relação às lite­raturas européias. E, uma vez que toda opção teórica nos com­promete em atitudes práticas, o ponto de vista escolhido me le­vou a assumir o gesto propositivo de afirmar em relação aos textos não o que teriam deixado de cumprir, mas o que neles efetivamente se realizou.

Nesse gesto está implicada, portanto, uma perspectiva críti­ca em relação às abordagens totalizantes da literatura brasileira, uma perspectiva plural e mais arriscada da história literária como representações assumidamente fragmentadas e inacabadas ou, nas palavras de Siegfried J. Schmidt, como construções "tão multifacetadas quanto os historiadores que as escrevem" (OLINTO, 1996, p. 116). E é desse ponto de vista que proponho examinar a possibilidade de outras escritas da história literária brasileira, além das que vem sendo elaboradas a partir da idéia de "formação" como um percurso evolutivo, relativamente contínuo, de estilos, formas e temas literários ou, ainda, como superação da tradição.

A reflexão pretendida implica, em síntese, afinidade com as principais vertentes da historiografia literária contemporânea, com­prometidas com a redefinição dos paradigmas que sustentaram a historiografia tradicional, dentre os quais destacam-se os de lite­ratura nacional, de história e narrativa ficcional enquanto gêneros estanques, de época e de periodização e, particularmente, a cate­goria dos textos canônicos, os chamados clássicos universais da literatura. São questões da teoria literária, inseparáveis da historiografia, que o historiador contemporâneo - compelido a problematizar o seu ofício - deve incorporar na sua escrita. Duplo desafio, portanto: além de uma inescapável opção teórica entre as diferentes concepções a respeito da história, deve ao mesmo tem­po teorizar sobre as mudanças constantes dos padrões estéticos ou as várias representações do que chamamos literatura, pois do historiador se espera que assuma a responsabilidade crítica, explicitando seus pressupostos teóricos e seus métodos, revelan­do, até onde isso é possível, as marcas de sua subjetividade na construção das histórias que narra e problematiza.

No caso dos críticos brasileiros, distinguimos aqueles que, em seus trabalhos de crítica historiográfica, vêm promovendo des-

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A fonnação, os deslocamentos: modos de escrever a história literária brasileira

locamentos importantes nos modos de percepção de tudo o que se compreendeu até então como história da literatura nacional, tanto no que se refere a uma suposta brasilidade perceptível nos textos considerados quanto no que diz respeito a uma também presumível continuidade de formas e estilos sucedendo-se numa relação linear de causas e efeitos. Antes, porém, de expor algumas propostas dentre as mais representativas de uma historiografia não apenas mais plural e abrangente, mas, sobretudo, crítica de suas próprias premissas, considero necessária uma breve nota sobre o s-entido da idéia de "formação" e seus desdobramentos na historiografia literária moderna no Brasil, destacando-se os traba­lhos de Antonio Candido e Roberto Schwarz.

o sentido da formação na historiografia de Antonio Candido

Momento decisivo para a historiografia literária brasileira é o trabalho de Antonio Candido que, na esteira aberta pela crítica de autores como Silvio Romero e José Veríssimo, desenvolverá conceitos fundamentais como os de sistema e formação literária, pilares de seu trabalho historiográfico, construído a partir da idéia de que, como todo discurso, a história literária brasileira consiste na construção política/ideológica de um projeto mais ou menos consciente e deliberado de um conjunto de autores, leitores e ins­tituições, interessados em solidificar a sua própria literatura. Com o necessário distanciamento em relação ao mecanicismo de algu­mas abordagens sociológicas da literatura, o autor pretende, con­forme ele mesmo escreve, "chegar mais perto de uma interpreta­ção dialética", ao tratar dos "aspectos sociais que envolvem a vida artística e literária nos seus diferentes momentos" (CANDIDO, 1976, p.17 -18). Para o objetivo almejado, o crítico dispõe de um conjunto de princípios balizadores das análises que empreenderá. Em linhas gerais, a noção de sistema liter~rio, desenvolvida pelo autor, sustenta-se· na inter-relação dos três fatores - produção, recepção e transmissão - que asseguram a formação e a continui­dade de uma tradição literária no país. A respeito, escreve o autor, explicitando seu método, que a mútua dependência entre autor, obra e público interessa na medida em que "esclarecer a produção artística", pois importa estudar as relações da literatura com a

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vida social a partir de uma dupla perspectiva, que possibilite per­ceber "o movimento dialético que engloba a arte e a sociedade num vasto sistema solidário de influências recíprocas" (CANDIDO, 1976, p. 24).

Situar a obra de Antonio Candido, ressaltando a sua singu­lar "dissonância" no conjunto de autores clássicos que procura­ram explicar o Brasil, orientados pelo comum propósito de apre­ender as "linhas evolutivas mais ou menos contínuas" do processo social e cultural do país, é matéria do recente trabalho de Paulo Arantes sobre o sentido da idéia de formação, "verdadeira obses­são nacional", na ensaística brasileira.! No ensaio em questão,

. interessa ao autor traçar a história crítica de uma destacada linha­gem de "intérpretes do Brasil", iniciada pelos escritores românti­cos e retomada por críticos do final do século XIX, como Silvio Romero, Araripe e José Veríssimo, salientando-se a figura de Machado de Assis, e mais recentemente redefinida, a partir de novos princípios teóricos, por Antonio Candido e Roberto Schwzarz, aos quais coube resgatar criticamente a tradição, desse modo compreendida "não como peso morto, mas como elemento dinâmico e irresolvido, subjacente às contradições contemporâ­neas" (ARANTES, 1997, p.34).

Roberto Schwarz: tradição e modernidade -descompassos da cultura brasileira

É na esteira aberta por Candido que Roberto Scwharz vai empreender a reflexão sobre a obra de Machado de Assis, dando continuidade ao que permaneceu sugerido nas últimas linhas do segundo volume da Formação da literatura brasileira. Escreve Roberto Schwarz, em conhecido ensaio sobre os descompassos da cultura brasileira, que a experiência da segregação entre as elites intelectuais do país e as classes populares passou a ser per­cebida como um impasse - que inviabilizava a sintonia da nação com os países europeus mais avançados - apenas a partir da me­tade do século XIX.2

No mencionado estudo, parte o autor de uma passagem de Sílvio Romero, em polêmico e equivocado julgamento a respeito

I ARANTES, Paulo Eduardo e ARANTES, Otília Beatriz Piori. Sentido da formação. São Paulo: Paz e Terra, 1997.

2 SCHWARZ, Roberto. Naci­onal por subtração. In: -. Que horas são? São Paulo: Cia das Letras, 1989.

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A fonnação. os deslocamentos: modos de escrever a história literária brasileira

de Machado de Assis. Na passagem em questão, o crítico e histo­riador evolucionista, equívocos à parte, acusa no quadro intelec­tual brasileiro uma cisão social, um disparate: de um lado, uma pequena elite europeizada, distanciada do grosso da população, sem outro talento senão o de "copiar"; de outro, a maioria inculta, produtores anônimos do folclore, da arte popular. A cópia, o arre­medo, o pastiche seriam a conseqüência natural de uma produção intelectual realizada por escritores, políticos e estudiosos sem ne­nhuma relação com o mundo à sua volta.

Certo é que o problema não poderia ser reduzido a um es­quema tão simples como o exposto nessa descrição realizada pelo escritor, em que são apontados os efeitos de questões cujas raízes foram apenas aludidas.

A explicação para o descompasso cultural no interior da soci­edade brasileira e entre o país e as nações centrais desenvolvidas não poderia ser de natureza racial, conforme propunha Sílvio Romero; sem considerar os disparates das mesmas teorias raciais, basta a evidente constatação de quem imitava no caso não eram os mestiços do povo, mas a elite branca, europeizada, como observa o autor de Que horas são? O pecado original, nas palavras de Roberto Schwarz, não residia na cópia, mas no fato de que só uma classe copiava. Sílvio Romero vê nos tempos coloniais um relativo espíri­to de coesão nacional e atribui isso à "hábil política de segregação" que nos mantinha num circuito de idéias exclusivamente portugue­sas e brasileiras. Foi apenas depois com a vinda de D. João VI para o Brasil e, sobretudo, a partir do Império, que a cópia do modelo europeu e a distância entre elite letrada e população inculta passa­ram a ser percebidas como "disparate" ou "descompasso". O que sempre existiu - a imitação, a separação entre elite e classes popu­lares - desde os tempos da colônia, tomou -se um impasse, um dile­ma teórico para as gerações de intelectuais a partir da metade do século XIX. Dilema teórico que expressa, por sua vez, os impasses de natureza econômica, social e política do país. Como a passagem da colônia a Estado autônomo não acarretou, no Brasil Império, uma real modificação da estrutura básica característica da antiga colônia, assentada na escravidão e no latifúndio, o contraste entre formas de vida do Brasil Colônia e formas modernas de civilização burguesa, entre velhos princípios e as idéias liberais apenas acen­tuou as dimensões de um problema já antigo.

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18 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006

Diante desse quadro, é compreensível que tudo o que signifi­casse moderno fosse, simultânea e paradoxalmente, desejado e rene­gado como ameaça estrangeira à "coesão" e à "identidade nacional".

A tese da cópia cultural proposta por Sílvio Romero surge como tentativa de explicar a discrepância entre os dois Brasis. Evitando a imitação, estaria solucionado o problema, o país se reconciliaria consigo próprio, a cultura nacional estaria salva. Mas esse, como se vê, constitui um falso problema. A renúncia à cópia é, na verdade, impensável'e mesmo indesejável; de fato, não so­mos atrasados porque imitamos, antes imitamos "mal" porque so­mos atrasados. A cópia não constitui necessariamente um valor negativo, menos ainda é ela a causa de graves desigualdades soci­ais e culturais no interior de uma mesma sociedade. Mas essas, porém, são avaliações possíveis segundo uma perspectiva con­temporânea nossa, do século XX; juízos portanto que não esta­vam no horizonte de um autor do século passado, inspirado por teorias raciais e pelo darwinismo social, como é o caso de Sílvio Romero. Em linhas gerais, essa é a leitura crítica de Roberto Schwarz que, em nova chave, segundo a perspectiva política dos conflitos de classe, retoma o problema anunciado no século XIX.

Roberto Schwarz: forma - expressão e matéria social na obra de Machado de Assis

Tradicionalmente, Machado de Assis é considerado uma das raras exceções na experiência literária nacional; escritor uni­versal - voltado para uma temática centrada em problemas que afligem todos os homens de todos os tempos e lugares - cons­truiu uma obra cujos procedimentos mais se aproximam dos modernos esquemas da forma narrativa contemporânea ao es­critor do que da provinciana prosa de acentuada cor local. Esse aspecto do romance machadiano, porém, nem sempre foi consi­derado uma qualidade. Basta lembrar as antigas polêmicas em torno do sentimento nacionalista, supostamente precário e mes­mo ausente, na obra do escritor.

Seguindo as propostas sugeridas pelo próprio Machado no célebre artigo "Notícia da atual literatura brasileira - Instinto de nacionalidade", Roberto Schwarz afirma o nacionalismo da fic-

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A formação, os deslocamentos: modos de escrever a história literária brasileira

ção machadiana expresso na forma, não a forma como a enten­dem os formalistas, mas numa "forma-expressão" da estrutura do país. O que significa essa "forma-expressão" para o crítico?

O grande desafio para os escritores brasileiros do final do sécclo era estar em sintonia, simultaneamente, com a realidade nacional e com a forma "mais ilustre do tempo", o romance. "Ado­tar o romance" implicava "acatar também a sua maneira de tratar as ideologias". O romance é uma forma importada da Europa "cujos pressupostos, em razoável parte, não se encontravam no país, ou encontravam-se alterados". Ora, o único modo de ser verossímil­isto é, de ser fiel à nossa condição já que a "dívida externa nas letras", tão inevitável quanto nas demais esferas da sociedade, nos conduzia à imitação de uma forma imprópria, inadequada para ex­pressar a realidade do país - era explicitar essa impropriedade, essa inadequação na forma importada. E essa "façanha" coube a Macha­do de Assis que soube reiterar, em nível formal, os deslocamentos de ideologias, próprias de nossa formação social, utilizando para isso, de modo consciente e crítico, a forma importada. Machado encontrou na sátira e na ironia a forma adequada a uma nova maté­ria. Na segunda fase de sua obra, o escritor conseguiu obter uma forma brasileira verossímil filiando-se, como era inevitável, às ten­dências européias/cosmopolitas na literatura. Em outras palavras, Machado foi original porque soube imitar de modo criativo.

O nacionalismo de Machado, portanto, não exclui a univer­salidade, presente em sua narrativa sob uma forma caricata, como é o caso de Memórias póstumas de Brás Cubas em que a indissolubilidade entre forma literária e matéria social se revela mais explícita na própria construção do enredo através do narrador. Analisando esse romance, Roberto Schwarz procura demonstrar que, por meio da atitude desabusada, prepotente e voluntariosa do narrador-personagem, atitude que expressa um comportamen­to típico da elite intelectual brasileira, da qual Brás Cubas fazia parte, Machado conseguiu revelar a realidade nacional utilizando uma forma universal importada. Brás Cubas representa o homem culto brasileiro que "dispõe do todo da tradição ocidental", ado­tando a esse respeito uma atitude de superioridade irreverente e afetada, sem consistência crítica. O cosmopolitismo de Brás Cu­bas não passa de uma farsa, de uma caricatura, pois a cultura geral que ostenta se mostra "uma espécie de pacotilha, na melhor tradi-

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ção pátria, em que o capricho de Brás Cubas toma como provín­cia a experiência global da humanidade e se absolutiza". Brás é um provinciano pretensioso que, sem nenhum respeito pelo co­nhecimento acumulado, banaliza "todas as idéias e formas à dis­posição de um homem culto do tempo", substituindo-as constan­temente de acordo com as suas veleidades pessoais. Ora, a uni­versalidade da narrativa machadiana reside exatamente no fato de a forma romance utilizada desmascarar, na sua própria constru­ção, o provincianismo do narrador-protagonista. Sintetizando a proposta de Roberto Schwarz, a volubilidade do narrador é, ao mesmo tempo, tema (conteúdo) e princípio formal do romance; fórmula que, presente na prosa machadiana da segunda e grande fase, assegurou, para o universo cultural brasileiro, "provinciano, desprovido de credibilidade", um lugar no primeiro plano da lite­ratura contemporânea universal, embora reconhecido apenas bem mais tarde e, ainda assim, em círculos restritos.3 Machado teria encontrado, desse modo, a solução para o problema apresentado há algum tempo em "Instinto de nacionalidade", conforme já indi­camos. Mas, como reiterou em vários artigos, o crítico entende que o verdadeiro antagonismo reside nos conflitos de classe soci­ais, por sua vez refletidos e refratados nas formas literárias; se as causas dos impasses nas esferas cultural e literária são em essên­cia de natureza histórica, a crítica deve pôr em relevo as relações entre forma artística e necessidade histórica. A insistência de Roberto Schwarz na perspectiva sociológica se contrapõe a algu­mas das recentes tendências da crítica literária brasileira, mais afi­nadas com o pensamento desconstrutivista europeu. São vários os textos em que o autor discute essa questão, reformulando o problema da "formação", central na obra de Antonio Candido. A propósito, deve-se ressaltar o procedimento incomum, e louvá­vel, na crítica brasileira; que é o apreço pelo pensamento crítico das gerações anteriores, resgatado, é claro, em novas bases, con­forme já apontamos ao mencionar o estudo de Paulo Arantes a esse respeito.

É ainda Roberto Schwarz quem chama a atenção para a vida intelectual no país, marcada pela ausência de "um campo de problemas reais, particulares, com inserção e duração histórica próprias, que recolha as forças em presença e solicite o passo adiante" (SCHWARZ, 1989, p.31). Embora considerando a rele-

'As observações de Roberto Schwarz sobre Memórias Póstumas de Brás Cubas, comentadas neste artigo, encontram-se em L'm mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1990.

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vância do problema da "formação em descompasso", conforme discutido por Roberto Schwarz e Antonio Candido, é com o olhar voltado para o que há de próprio e ajustado nos escritos brasilei­ros que pretendo circunscrever um campo de problemas críticos pertinentes ao conjunto da produção literária nacional e suas rela­ções com o contexto mais amplo da literatura universal, assim denominada provisoriamente. Ao incorporar as abordagens críti­cas inspiradas na perspectiva da história literária como represen­tação de uma tradição inventada, sempre contingente em relação a nossas concepções e a nosso presente, encaminho essa reflexão para uma outra direção, diversa e, em certa medida, divergente, en relação à dos dois autores mencionados, cuja historiografia se enraíza na idéia de tradição como sistema mais ou menos coeren­te e coeso de obras e autores nacionais.

Pressupostos da idéia de "formação": recortes

Em conhecido texto, tanto quanto polêmico, Haroldo de Campos (1989) pretendeu desvelar os pressupostos básicos da Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Valen­do-se de teóricos como Walter Benjamim e Derrida, entre outros, o crítico opôs as noções de "constelação" e "disseminação" aos princípios de "sistema" e "origem", eixos da historiografia de Antonio Candido. Em linhas gerais, seus argumentos se baseiam na afirmação de que a perspectiva histórica fundamentada na ori­gem, na suposição de um começo não inventado ou deliberadamente construído, corresponde a uma "visão substancialista da evolução literária" correlata, por sua vez, a "um ideal metafísico de entificação nacional". Sem considerar as dife­renças entre a historiografia do século XIX e a proposta de Candido, ressalta o propósito comum, verificável em todas elas, de estabelecer uma "tradição contínua" de "estilos, temas, formas ou preocupações", o que leva o crítico a reduzir a concepção historiográfica de Candido a mera reedição do modelo romântico de história literária, "voltada para o desvelamento evolutivo­gradualista" da literatura nacional.

Outro escritor foi mais conseqüente na crítica dirigida à Formação, sobretudo pelo êxito em conciliar o respeito ao "mes­tre" (LIMA, 1992, p.168) e um rigoroso exame da obra. Sóbrio

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no tom e consistente na argumentação, Luiz Costa Lima inicia o ensaio com observações sobre o que denomina de "eixos da ativi­dade crítico-literária no século XX" (LIMA, 1992, p.153), visan­do, a partir dessas observações, situar no panorama contemporâ­neo o trabalho historiográfico de Candido. Ou, nas palavras do ensaísta, dirigir-se à Formação indagando "como ela se localiza quanto aos eixos aludidos", a saber: "a questão da especificidade da linguagem literária", "a relação da linguagem literária com a socie­dade" e "a idéia de literatura nacional" (LIMA, 1992, p.153-156).

Submetendo ao crivo de uma leitura crítica passagens do prefácio à segunda edição e o capítulo teórico-metodológico da Formação, Costa Lima afirma inicialmente que o que poderia pa­recer "afastamento das histórias orientadas pela exclusividade do fator nacional" revela-se, ao inverso, dele tributário (LIMA, 1992, p.156). Tarefa nada fácil, devemos reconhecer, a de se propor a crítica de um discurso extremamente refinado e sedutor que, na sua urdidura narrativa, parece ter pretendido suprimir os rastros de seus pressupostos teóricos e juízos de valor, ao eleger "vários caminhos, conforme o objeto em foco", determinando assim "a realidade superior do texto" (CANDIDO, 1975, p.33; 36).

Ainda mais levando-se em conta a astúcia de uma crítica que, longe de negar a subjetividade inerente ao seu exercício, pelo contrário, incorpora-a assumindo sem meias palavras a responsa­bilidade de suas escolhas, conforme atesta o parágrafo final do capítulo introdutório da Formação:

Sob este aspecto, a crítica é um ato arbitrário, se deseja ser criadora, não apenas registradora. Interpretar é, em grande parte, usar a capacidade de arbítrio; sendo o texto uma pluralidade de significados virtuais, é definir o que se esco­lheu, entre outros. A este arbítrio o crítico junta a sua lingua­gem própria, as idéias e imagens que exprimem sua visão, recobrindo com elas o esqueleto do conhecimento objetivamente estabelecido (CANDIDO, 1975, p.39).

Ora, o que se revela nessas, como em muitas outras passa­gens, é uma atitude crítica, derivada "de uma concepção a-histó­rica da forma", nos termos de Costa Lima (LIMA, 1992, p.157) e de uma insustentável dicotomia entre interpretação e conhecimento objetivo. Em outras palavras, a declarada subjetividade crítica não

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se faz acompanhar de uma explicitação das teorias e métodos adotados e, ao que se sabe, é precisamente a teoria o elemento esclarecedor da "conduta interpretativa do crítico" (LIMA, 1992, p.157). Sendo assim, "o favorecimento da tolerância metodológica" (presumivelmente solidário de uma atitude consciente de seus li­mites, derivados das idiossincrasias do crítico), ao contrário do que poderia parecer, pretende na verdade fazer desaparecer as marcas da subjetividade inicialmente assumida e, no mesmo pas­so, legitimar a objetividade da crítica, uma vez colada ao seu ob­jeto, de fato e de direito, "a realidade superior do texto" (CANDIDO, 1975, p.33; 36). Tomo a citar Costa Lima, que, com leve ironia, descreve o impasse desse "crítico-caçador":

Atividade dirigida por valores, a cadeia de decisões em que a crítica se insere - a cadeia formada por pressupostos teóricos, operacionalização metodológica e pragmática crítica - implica que seu agente não mais pode ser confundido com um caçador que, em busca da caça, se orienta pelos rastros que a presa deixa. Ao crítico, assim como ao historiador, só cabe a analo­gia com o caçador se se lembrar que um e outro não só perse­guem rastros, mas que, assim fazendo, produzem outros ras­tros: os rastros do rastreador (LIMA, 1992, p.158).

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Além da concepção a-histórica da forma, acima menciona­da, Costa Lima acusa um outro rastro na Formação, em sintonia com o primeiro: o pretendido "distanciamento do autor", "asse­gurado pelo tom descritivo da narrativa" (LIMA, 1992, p.160).

Esses traços do autor na obra, longe de garantir objetivida­de, são antes reveladores dos inevitáveis, incontornáveis, juízos de valor. Isso porque "a estabilidade estética" - ou visão a-histó­rica da forma - não se deveria apenas ao primeiro eixo da moder­na historiografia no século XX (a questão da especificidade da linguagem literária), mas a "uma concepção mais tributária de uma visão tradicional do que se estava disposto a admitir" (LIMA, 1992, p.l59).

Examinada a suposta evidência da idéia de sistema literário, assegurada na volumosa descrição dos fatos literários, Luiz Costa Lima lança a pergunta que Candido não fez, mas cuja resposta estaria diluída tanto na exposição de seus pressupostos quanto nos capítulos dedicados à história dos "momentos decisivos" da

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formação literária brasileira:

[ ... ] quão extensa deverá ser a recepção para que se lhe tenha como dec1aradora de um sistema? Bastará uma recepção ates­tada para que o sistema se afirme em funcionamento? Se o fosse, a fama local de Gregório não justificaria sua exclusão. Se, portanto, não basta uma recepção localizada, qual a exten­são necessária? (LIMA, 1992, p.162).

Na passagem da Formação, abaixo destacada por Costa Lima, reúnem-se os dois traços que confirmam "a articulação de­cisiva da Formação ( ... ) com o que se chamara o terceiro eixo da preocupação crítica contemporânea, precisamente aquele que de­rivava da atitude dominante no século XIX" (LIMA, 1992, p.l64), a idéia de literatura nacional. Citando Candido, Costa Lima assi­nala: '[ ... ] Os escritores brasileiros que [ ... ] lançaram as bases de uma literatura brasileira orgânica, como sistema coerente e não manifestações isoladas' (LIMA, 1992, p.163). Nesta frase, estão explícitos - embora não explicados nem assumidos pelo autor da Formação - os conceitos de coerência eforma orgânica deriva­dos do funcionalismo antropológico inglês. Costa Lima, apesar de não se deter largamente nesse aspecto, ressalta "a importância decisiva desse legado na concepção de sistema" (LIMA, 1992, p.163) incorporada na historiografia de Candido. Em síntese, afir­ma o autor "que o decisivo na armadura teórica da Formação é menos a idéia de articulação entre produção e recepção literárias do que sua extensão nacional e seu caráter de coerência" (LIMA, 1992, p.163), favorecendo a "coesão homogeneizante" na inter­pretação da história da literatura brasileira. O fato de o barroco ter sido excluído da Formação se explica "não tanto porque sua circulação fosse drasticamente menor que a dos árcades, senão porque impede que se lançassem as bases de uma literatura brasi­leira orgânica, como sistema coerente" (LIMA, 1992, p.164). Tanto a exclusão de Gregório como a inclusão dos árcades "só se explicam porque o peso decisivo recai na qualificação de sistema nacional" (LIMA, 1992, p.164).

Retomando a pergunta de Costa Lima sobre a efetiva representatividade de um sistema literário, vejamos como o críti­co formula o problema, antes enfrentado por Haroldo de Cam­pos. Ao reivindicar o resgate do barroco, sua inclusão no cânone,

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Haroldo de Campos reitera o primado do nacional na escrita das histórias literárias. Dito de outra forma, Haroldo de Campos polemiza com Antonio Candido no terreno de seu adversário e, por esse motivo sobretudo, perde força, em grande parte, o con­junto de seus argumentos. Incluir ou excluir, essa não é a questão, Tendo como alvo principalmente a idéia de sistema, Haroldo de Campos parece ter-se esquecido de formular uma pergunta deci­siva: o que se entende por nacional?

Na esteira de João Adolfo Hansen, Costa Lima ,vem nos lembrar que a sátira barroca era prevista e codificada nos tratados poéticos, o que "impediria, se não por vezo anacrônico, que se envolvesse a poesia de Gregório em algum propósito nacional" (LIMA, 1992, p.165).

Um outro problema, portanto, no centro da polêmica sobre a formação da literatura brasileira e que gerou, assim como a ques­tão do nacional, algumas respostas equivocadas, contra as quais se manifestaram outros críticos, além dos aqui citados. Em rela­ção ainda ao "seqüestro do barroco", muito oportunamente es­creve Lígia Chiappini:

A contradição básica de Haroldo de Campos está em, ao mes­mo tempo, contestar a história contínua, a tradição que Anto­nio Candido se propôs a perseguir nos momentos decisivos de sua constituição, e integrar aí Gregório de Matos que, no en­tanto, vê como ruptura, Recusar como ideológica essa tradição e, no entanto, querer incluí-lo nela. Trata-se, no mínimo de um equívoco. Gregório só poderia entrar em um outro livro, não neste. E outro teria de ser o projeto do historiador, não este (CHIAPPINI, 1992, p.175).

Devemos ainda ressaltar o anacronismo muitas vezes não percebido por críticos de Antonio Candido, que, ao postularem a inclusão de Gregório de Matos na Formação, não se dão conta dos princípios que abraçam, julgando contradizê-los. Noções como uma suposta origem absoluta (que, aliás, Candido não postulou) e uma periodização tributária da concepção romântica retomam à cena, comprometendo o adequado entendimento da Formação, apontando erros onde houve extrema coerência em relação aos propósitos do autor, devidamente explicitados. A esse respeito, recorro mais uma vez às palavras esclarecedoras de Lígia Chiappini:

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"a origem não é um problema para Antonio Candido, mas para seus críticos. O que lhe interessa não é defender uma tradição hegemônica, mas entender a constituição de uma hegemonia, pro­jeto que ele explicita claramente para leitores que queiram enten­der" (CHIAPPINI, 1992, p.174), no primeiro capítulo, "Literatu­ra como sistema".

Não sendo a "origem" propriamente um problema, volta­mos então ao que, ao lado da idéia de formação, motivou este texto: a idéia de sistema literário nacional, preponderante nas his­tórias de literatura brasileira. Eis, como vimos, uma questão bem mais complexa do que supõe uma crítica apressada.

Este e outros problemas a ele relacionados - como os vín­culos entre culturas literárias hegemônicas e periféricas - têm re­cebido da historiografia brasileira contemporânea tratamentos dis­tintos, conforme o ponto de vista teórico inseparável, sempre, das escolhas e da sensibilidade do crítico para certos temas, autores e textos, e não outros.

A essa altura já podemos perguntar se seria possível, dentro do registro da formação, postular histórias da literatura que não impliquem a noção de sistema nacional coerente e orgânico. Ou ainda: é possível, é desejável escrever uma história literária não propriamente desvinculada da idéia de formação mas, simultânea e paradoxalmente, dela partindo e dela se deslocando.

Em outros termos: entendendo a formação da literatura bra­sileira não como percurso evolutivo de uma identidade suposta­mente essencialista e original (ou, no entender de Candido, como "continuidade ininterrupta de obras e autores" (CAND IDO, 1975, p.25), mas como construção discursiva de seus diversos intérpre­tes, representação até certo ponto inseparável de seu próprio refe­rente, seria mais apropriado falar deformações da literatura brasi­leira, do romantismo às mais recentes teorias da história literária.

A propósito, a idéia de "formação de um sistema literário", proposta por Candido, parece se alinhar, conforme ele próprio explicitara, com o projeto romântico de construção nacional e da literatura. Essa noção, como sabemos, fez escola, inaugurando uma considerável tendência do pensamento crítico brasileiro no século XX. Coube a Roberto Schwarz, nas. palavras de Paulo Arantes, "tirar as devidas conseqüências do roteiro traçado por Antonio Candido, reapresentando o problema da formação como

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uma questão material de acumulação da experiência intelectual nas condições francamente proibitivas da dependência" (ARANTES, 1997, p.32-33). Desde então, "o sentimento acabrunhador da posição em falso de tudo o que concerne à cultu­ra brasileira" (ARANTES, 1997, p.14) tem sido a tônica de toda a crítica brasileira solidária com o autor das "idéias fora do lugar".

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Reconhecendo "o permanente sentimento de inadequação que desde a origem vem alimentando o mal-estar definidor de nosso trato enviesado com as idéias" (ARANTES, 1997, p.33) como uma das possibilidades de se reapresentar o problema da forma­ção literária brasileira, penso em leituras sobre os escritos brasilei­ros, motivadas por outro sentimento - o de que, em matéria de prosa ou poesia literária, nem sempre a crítica comparativa pro­voca sensação de descompasso ou desacerto, a menos que se iden­tifique o historiador da literatura brasileira ao historiador da na­ção brasileira, incluindo aqueles cujo olhar privilegia os laços indissociáveis entre literatura e sociedade.

Porque, não é redundante nem excessivo reiterar, o que na verdade está em pauta é, antes, uma questão de perspectiva teóri­co-política, em jogo nas diversas propostas críticas da produção literária brasileira. E o ponto de vista adotado bem poderia resul­tar de uma outra convicção: a de que o sentimento de sermos ainda uma cultura periférica em desacerto com a cultura hegemônica central - ou "uns desterrados em nossa terra", con­forme célebre formulação de Sérgio Buarque de Holanda, no pa­rágrafo de abertura de Raízes do Brasil (1995, p.31) - não seria privilégio do brasileiro, mas sentimento comum às culturas mo­dernas, à margem dos grandes centros de decisão política e eco­nômica, que vem se aprofundando na mesma proporção dos impasses e contradições da sociedade contemporânea.

Na impossibilidade de se sentir em casa, familiarizado com o que seria próprio de sua cultura, na impossibilidade de superar o desterro ou acertar os ponteiros do relógio nacional, por que não assumir e incorporar a estranheza que nos constitui? Por que não acentuar, nos escritos em prosa e verso de tantos escritores - des­de o nosso, nem sempre compreendido, romantismo - a afirma­ção desse gesto em meio ao que neles eventualmente tenha se traduzido como expressão de uma melancólica ou nostálgica bus­ca do que nunca teria ou terá existido?

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É com o sentimento paradoxal de estranha familiaridade que assumimos identidades que não nos pertencem, assim, poe­tas, prosadores e (por que não?) historiadores deveriam narrar suas histórias como se fossem um outro, com o olhar oblíquo de quem, não se reconhecendo de forma imediata no objeto que tem diante de si, precisa criar as conexões, os vínculos, ali onde as lacunas, as fraturas não permitem uma imagem coesa e coerente. A história da literatura, percebida como busca criativa de um sen­tido para as experiências de uma coletividade, solicitaria do histo­riador o mesmo gesto de deslocamento, de pôr-se no lugar do outro, a que recorre o narrador ficcional. Admitindo a impossibi­lidade de apreensão totalizante e absoluta da experiência literária, esse historiador sustentaria na sua própria voz as múltiplas e dis­persas vozes da cultura, construindo, no lugar das histórias tra­dicionais teleológicas, narrativas caleidoscópicas, micro-históri­as, anotações à margem.

Considerações finais

Gostaria de encerrar essas considerações/recortes evocan­do dois autores argentinos que, em seus ensaios crítico-poéticos sobre a história e a tradição literária de culturas à margem, reve­lam percepções inteiramente novas para quem havia se habituado a pensar o problema como impasse, beco sem saída, ou ainda como contradição a ser, num futuro incerto, superada.

De Jorge Luis Borges, comento dois textos bastante conhe­cidos - "O escritor argentino e a tradição" (BORGES, 1998) e "Sobre os clássicos" (BORGES, 1999) - em que o problema se apresenta de forma clara, precisa e, arrisco afirmar, definitiva. Eles não se apresentaram casualmente à minha lembrança. Ao contrá­rio, esses textos, em forma e tom de despretensioso ensaio, sem qualquer veleidade teórica definitiva, produzidos, pois, de um outro lugar - não propriamente acadêmico/disciplinar - pareceram-me, por isso mesmo, talvez mais apropriados ao pronunciarem uma palavra outra que não as que costumam soar dos lugares já conhe­cidos e percorridos.

Como de costume, em sua prosa quase austera em contras­te com a ironia que a perpassa, Borges surpreende ao explicitar as

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principais contradições implícitas na noção de obras clássicas. Clás­sico, nos lembra o autor, "é aquele livro que uma nação, ou um grupo de nações, ou o longo tempo decidiram ler como se em suas páginas tudo fosse deliberado, fatal, profundo como o cosmos e passível de interpretações sem fim" (BORGES, 1999, p.168). Con­tingentes e, em certa medida, imponderáveis, essas decisões variam tanto quanto as formações históricas sobre as quais se erigiram.

Levando mais longe a provocação, relembra que, se houve um tempo em que "acreditava que a beleza era privilégio de uns poucos autores", agora sabe "que é comum e está a nossa espreita nas casuais páginas do medíocre ou em um diálogo de rua" (BORGES, 1999, p.168). Até aqui nada de muito novo nos é re­velado, não fossem as palavras simples, diretas e incisivas com as quais relativiza julgamentos consagrados pela crítica a respeito de um conjunto de obras e autores, como na passagem a seguir:

Para alemães e austríacos, o Fausto é uma obra genial; para outros, uma das mais famosas formas do tédio, como o segun­do Paraíso, de Milton ou a obra de Rabelais. Livros como o de Jó, a Divina Comédia, Macbeth (e, para mim, algumas das sagas do Norte) prometem uma longa imortalidade, mas nada sabemos do futuro, salvo que diferirá do presente. Uma prefe­rência pode muito bem ser uma superstição (BORGES, 1999, p.l68).

Sendo assim, a "beleza" de um texto não se revela na forma, na estrutura, na imanência textual, nem tampouco em qualidades vagas, transcendentes que nos permitiriam afirmar a existência de obras clássicas eternas. Essa "beleza" é antes resultado de um encontro do texto com o leitor ou, nas palavras Borges: "A glória de um poeta depende, em suma, da excitação ou da apatia das gerações de homens anônimos que a põem à prova, na solidão de suas bibliotecas" (BORGES, 1999, p.168).

Antes de passar ao outro texto do autor, quero ressaltar ainda o deslocamento radical da perspectiva centrada na obra (e, portanto, no autor) para uma direção, senão oposta, divergente, destacando-se nesse passo, ao mesmo tempo, a necessidade ine­vitável de referências e sua extrema precariedade, construídas que são sobre o movediço, incerto território do tempo. Movimento divergente também no sentido de que desloca o foco para outras,

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diversas, diferentes literaturas, por nós não apenas desconheci­das, mas quase sempre sequer suspeitadas. Num gesto de sincera modéstia, reconhece: "Assim, embora meu desconhecimento das letras malaias ou húngaras seja completo, tenho certeza de que, se o tempo me propiciasse a ocasião de seu estudo, encontraria nelas todos os alimentos que o espírito requer" (BORGES, 1999, p.l68).

Concluindo, na questão dos clássicos interferem as barrei­ras lingüística, política ou mesmo geográfica, obrigando aqueles que da literatura se ocupam a admitir as limitações de seus parâmetros de "beleza", que são também as da coletividade de que fazem parte. Afinal, a preferência por determinados autores e textos é tanto uma questão pessoal quanto das "gerações de ho­mens" que, "urgidas por razões diversas, lêem com prévio fervor e com uma misteriosa lealdade" os livros tornados clássicos (BORGES, 1999, p.169).

Isso posto, poderíamos pensar que Borges, um iconoclasta, desconsidera ou minimiza a importância dos clássicos, quando o que se passa não é exatamente assim. Em outro texto, tratando do escritor argentino e da tradição, afirma com veemência o pertencimento à cultura ocidental do escritor argentino e de todos os sul-americanos, de um modo geral (BORGES, 1998).

Como no caso dos clássicos, a tradição ocidental do outro/ nosso colonizador é também "um gosto adquirido", incorporado e transformado por sua vez em outra tradição, nossa, própria, e do outro simultaneamente. Numa certa medida, não haveria como escapar desse fechamento, dessa clausura que tem condenado "o escritor à margem" ao beco sem saída das imitações mais ou me­nos bem feitas do modelo europeu ou do sonho romântico de uma literatura autêntica, surgida de um outro lugar, de uma pátria de origem imaculada, não de outros povos mas própria supostamen­te. Estaríamos assim ligados à cultura ocidental por destino ou fatalidade histórica e portanto não teríamos escolha.

Por outro lado, a condição de culturas e tradições à mar­gem (uma vez que se expressam nos limites de um centro, tão imaginado quanto real, mas em relação ao qual não se percebem tão estreitamente vinculadas que não possam com ele romper sem que, com esse gesto, se sintam órfãos de origem e de valores par­tilhados) proporciona inesperadas possibilidades de transgredir, inovar sem a imposição de uma "devoção especial" diante de toda

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a cultura ocidental herdada. "Creio que os argentinos, os sul-ame­ricanos em geral ( ... ) podemos lançar mão de todos os temas eu­ropeus, utilizá-los sem superstições, com uma irreverência que pode ter, e já tem, conseqüências afortunadas", é o que nos diz Borges (BORGES, 1998, p.295), postulando o direito a ser euro­peu sendo argentino, descartando com essa atitude todos os luga­res comuns da velha questão sobre o local e o universal.

Em outros termos, é essa a perspectiva de Ricardo Piglia. "O olhar oblíquo", "a troca de lugar" deveriam constituir as qua­lidades do escritor do "próximo milênio", conforme uma "sexta proposta" para a literatura, imaginada pelo autor de Nome falso­Homenagem a Roberto Arlt, para ser acrescentada às de Ítalo Calvino já conhecidas. O "deslocamento" a que se refere Piglia (2001) - da periferia para o centro - não mais diz respeito ao mapeamento geográfico das culturas hierarquizadas. Não seria esse o sentido do gesto próprio do escritor "à margem". Piglia fala de um lugar específico - "do subúrbio do mundo" - é verdade, mas para mostrar que esse é o lugar da linguagem, ou da literatura, nesse caso tomadas sinônimas.

A verdade tem a estrutura de uma ficção de onde outro fala. Fazer na linguagem um lugar para que o outro possa falar. A literatura seria o lugar em que sempre é outro o que vem falar. "Eu sou outro", como dizia Rimbaud. Sempre há outro aí. Esse outro é aquele que tem que saber ouvir para que isso que se conta não seja uma mera informação e tenha a forma da expe­riência. Parece-me, então, que poderíamos imaginar que há uma sexta proposta. A proposta que eu chamaria, então, a distân­cia, o deslocamento, a troca de lugar. Sair do centro, deixar que a linguagem fale também na fronteira, naquilo que se ouve, naquilo que chega do outro (PIGLIA, 2001, p.3).

Creio que é desse lugar distanciado em relação à própria palavra, quase sempre cristalizada, que o historiador da literatura libertaria outros sentidos para a história que narra, libertaria a ver­dade da correspondência, no limite impossível, com os fatos, apro­ximando-se do narrador ficcional na medida em que cede espaço para a entrada em cena do outro que nos constitui. O historiador contaria não exatamente o que aconteceu mas, como o poeta! prosador, o que poderia ter acontecido. Ou, ainda, como quer

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Piglia, "O ponto cego da experiência, que quase não se pode trans­mitir", a menos que se "suponha uma relação nova com a lingua­gem dos limites" (PIGLIA, 2001, p.2).

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1 Cf. ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. Trad. de Lólio Lourenço de Oliveira. São Paulo: Ática, 1989.

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Regina Zilberman (PUC-RS)

Mas olhemos antes, em sua generalidade, a Formação da litera­tura brasileira. O livro, fundamental como poucos outros serão em nossa cultura - do porte, digamos, de Um estadista do Impé­rio, Casa-grande e senzala, Raízes do Brasil -, é, antes de mais nada, uma história do Brasil. Mas uma história que se desenrola numa região mental diferente. Trata-se do Brasil pensando a si próprio. O monólogo interior do Brasil.

Antonio Callado

No estudo sobre o que chama de comunidades imaginadas, Benedict Anderson escrutina o modo como, nas diferentes regi­ões do globo terrestre, se constitui o sentimento de nação ou a consciência nacional. 1 Se, na Europa, a introdução da imprensa fra­turou a unidade do latim, promoveu a ascensão das línguas vemáculas e, com isso, enfraqueceu o poder centralizador da Igreja, na Améri­ca o processo foi distinto. Nesse continente, a consciência nacional associou-se ao movimento separatista, resultante do fortalecimento de uma sensibilidade singular, conforme a qual as pessoas geradas no Novo Mundo começaram a se perceber vinculadas ao espaço natal, a se entender desde uma noção de pertença à terra de origem, a qual desejaram transformar em nacionalidade.

Anderson indica que, na Europa da imprensa nascente, houve a territorialização da língua, que fragmentou a unidade até então garantida pela fé e pelas dinastias imperiais. Essas adquiriram cu­nho "nacional", condição que garantiu sua permanência na Idade Moderna. Na América, talvez seja possa afirmar que a "territorialização" foi literalmente telúrica, graças à assimilação

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entre o espaço e o sentimento suscitado por ele. Provavelmente foram os Estados Unidos o lugar em que a

associação entre nacionalidade e conquista do território tenha se dado de modo mais completo. Ainda que a independência tenha envolvido a área ocupada pelas treze colônias originais, a expan­são na direção do Ocidente já se anunciava no século XVIII; e, na primeira metade do século XIX, o país incorporava a Louisiania, disputava o Texas e avançava célere rumo à conquista da região junto à orla do oceano Pacífico. A Doutrina Monroe, ambígua aos olhos atuais, significou, em 1823, uma tomada de posição política que tinha como referência o desenho geográfico do Estado que se apresentava à população norte-americana.

Outros povos elegeram fórmulas distintas, sem abrir mão da relação entre nacionalidade e espaço físico. Alguns colocaram a literatura na função de intermediário, transferindo-lhe a tarefa de representar o sentimento da nacionalidade que se definia por um apreço especial conferido à pátria, local de nascença e perma­nência. No Brasil, o processo tomou configuração particular, pois, mais do que representar ou traduzir aquele sentimento ou consci­ência nacional, coube à literatura substituí-lo, tomar seu lugar e constituir, ela mesma, a encarnação do nacional.

Não foram os teóricos e militantes da Independência que delegaram à literatura aquela missão, pois a tarefa definiu-se algu­mas décadas após a separação da metrópole. Foi preciso, inicial­mente, suplantar o sentimento antilusitano experimentado pelos intelectuais que tiveram de aceitar o governo de D. Pedro I, de­pois apear o imperador do poder e então buscar na história os dados que ajudariam a encorpar a consciência da nacionalidade. É que essa não podia se construir à revelia das relações mantidas, desde o período colonial, com a Metrópole, de modo que se fez à custa da conciliação entre separatismo e aceitação da dependên­cia econômica e cultural.

O aparecimento, em 1838, de instituições como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, modelado conforme o de Pa­ris, colaborou para que o intuito nativista se concretizasse. Mas o fato de que, no começo da década de 1840, seus membros ainda buscassem fórmulas que ensinassem "Como se deve escrever a história do Brasil", tema do concurso promovido em 1840 e ven­cido, em 1845, por um estrangeiro, o cientista alemão Carl F. Philip

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2 Cf. MARTIUS, Carl Friedrich Philipp von. Como se deve escrever a História do Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro 6 (24) : 389 - 411. Janeiro de 1845. Cf. igualmente ZILBERMAN, Regina Romance histórico, história romanceada. In: . AGUIAR, Flávio; MEIHY, José Carlos Sebe Bom; V ASCONCELOS, Sandra Guardini T. (Org.). Gêneros de fronteira. Cruzamentos entre o histórico e o literário. São Paulo: Xamã, 1997.

J Cf. DENIS, Ferdinand. Resumo da história literária do Brasil. Trad. e notas Guilhermino Cesar. Porto Alegre: Lima, 1968. Cf. GARRETT, Almeida. Bosquejo da História da Poesia e Língua Portuguesa. In: _. Parnaso Lusitano. Paris: J. P. Aillaud, 1826.

4 SILVA, Joaquim Norberto de Sousa. "Bosquejo da história da poesia brasileira." In: ZILBERMAN, Regina; MOREIRA, Maria Eunice. O berço do cânone. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1998. p. I üO. Originalmente publicado em Modulações poéticas. Rio de Janeiro: Tipografia Francesa, 1841.

von Martius, é sugestivo das dificuldades experimentadas por aque­le colegiado, numa época em que a autonomia política parecia assegurada.2

A mesma década de 40 do século XIX presenciou fenôme­no interessante: se ainda era preciso estabelecer parâmetros para a redação da história do Brasil, que, da sua parte, não podia evitar a afirmação da presença e influência portuguesa, a história da lite­ratura, por outro lado, já propunha algumas formulações bem de­finidas. As primeiras propiciaram-nas estrangeiros interessados na trajetória literária que o país parecia dispor: em 1826, tanto o francês Ferdinand Denis, quanto o lusitano Almeida Garrett, am­bos residentes na ocasião em Paris, conferiam detida atenção aos poetas nascidos no Brasil, comparando-os a seus confrades lusi­tanos.3 Mas os brasileiros não demoraram a se manifestar, valen­do a pena destacar que, em 1841, Joaquim Norberto de Sousa Silva,já então membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasi­leiro, redigia o "Bosquejo da história da poesia brasileira", bas­tante calcado nos predecessores Denis e Garrett, mas, ainda as­sim, confiante de que ''já possuíamos uma literatura, senão legi­timamente nacional, - que raras o são -, ao menos em parte",4 sintoma de que igualmente contabilizávamos um passado e con­sistíamos uma nação.

A literatura corporificou doravante a nação, respondeu por ela e prestou contas, em nome da autonomia e da auto-suficiên­cia, ausente talvez em outros setores da vida pública e social. Os historiadores da literatura converteram-se em avalistas da nacio­nalidade, o que, se, de um lado, aumentou sua responsabilidade, de outro, afiançou a notoriedade que alcançaram, bem como sua inserção nos aparelhos de Estado: no século XIX, o Colégio de Pedro 11 e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro; no século XX, a universidade, onde exercem seu ofício.

A história da história da literatura é, pois, a da trajetória da busca, encontro e afirmação da nacionalidade, expressa e materi­alizada pelas obras que formam aquele acervo. Antônio Candido situa-se num ponto fulcral desse percurso, porque, assim como se integra ao processo, revela seus limites e aponta para suas contra­dições, indicando, por extensão, as alternativas que se abrem ao pesquisador a partir do modo como desempenhou sua função.

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1. Uma história de formações

Quando publicou, em 1959, a Formação da literatura bra­sileira: momentos decisivos, Antonio Candido já tinha percorrido os caminhos da história da literatura, matéria de sua Introdução ao método crítico de Sílvio Romero, de 1945, e de sua participa­ção, com o capítulo "O escritor e o público", no projeto encabe­çado por Afrânio Coutinho e intitulado A literatura no Brasil. O crítico literário talvez fosse mais notório, graças à atuação na re­vista Clima, no começo da década de 1940, e nos jornais Folha de São Paulo, Diário de São Paulo e Estado de São Paulo (cujo famoso Suplemento Literário ajudou a planejar e a manter), nos anos 40 e 50, de que resultaram os estudos reunidos em Brigada ligeira, de 1945, e O observador literário, de 1959.5

Quando publicado, "Formação da literatura brasileira: momentos decisivos" constituiu, contudo, seu produto mais ex­tenso e encorpado, revelador de seu profundo conhecimento da tradição da literatura brasileira, com ênfase na documentação dos séculos xvrn e XIX, citada ao longo dos dois volumes do livro. Candido costuma falar com certa modéstia da obra, atribuindo sua feitura à encomenda do editor José de Barros Martins, que o encarregara de elaborar "uma história da literatura brasileira, aos origens aos nossos dias, em dois volumes breves, entre a di­vulgação séria e o compêndio", aguardara pacientemente "nada menos de dez anos" e acolhera um texto distinto do solicitado, portador de um título não muito usual nos meios literários.6

Vale lembrar, por outro lado, que, no mesmo ano, Celso Furtado publicava a Formação econômica do Brasil e que, na década anterior, mais exatamente em 1942, Caio Prado Júnior editara Formação do Brasil contemporâneo: colônia, enquanto Nelson Werneck Sodré, em 1944, escrevera e publicara, pela co­leção Documentos Brasileiros, da José Olympio, a Formação da sociedade brasileira. Um ano antes do aparecimento da Forma­ção da literatura no Brasil, em 1958, Raymundo Faoro lançara Os donos do poder, cujo subtítulo informava tratar a obra da "For­mação do patronato político brasileiro".

O capítulo das "formações" congregava importantes inte­lectuais e pesquisadores do Brasil até o princípio da década de 60, que, por meio do título de seus livros, confessavam determi-

S Cf. D'INCAO, Maria AngeIa; SCARAB6TOLC, Eloísa Faria (Org.). Dentro do texto, dentro da vida. Ensaios sobre Antonio Candido. São Paulo: Companhia das Letras; Poços de Caldas: Instituto Moreira Salles, 1992.

6 CANDIDO, Antonio. Prefácio da la edição. In: ___ o

Formação da literatura brasileira. Momentos decisivos. 2. ed. revista. São Paulo: Martins, 1964. V. I, p. 13.

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7 IGLÉSIAS, Francisco. Introdução. In: FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1963.

8 Cf. NIETZSCHE, Friedrich. El nacimiento de la tragedia. Introdução, tradução e notas Andrés Sánchez Pascual. Buenos Ayres: Alianza, 1998.

9 Cf. NIETZSCHE, Friedrich. La genealogía de la moral. Introdução, tradução e notas Andrés Sánchez Pascual. Buenos Ayres: Alianza, 1998.

nada afinidade intelectual entre si. No prefácio à Formação econômica do Brasil, Francisco

Iglésias destaca que, ainda que o autor do livro, Celso Furtado, fosse economista, a atitude que assume na redação da obra é a do historiador. O mesmo atributo confere Iglésias a Caio Prado Júnior, que, em 1945, escreve a História econômica do Brasil. Nesse caso, destaca que o trabalho de Prado Júnior importa sobretudo para a história, tal qual o de Furtado, embora o pesquisador paulista talvez desejasse ser acolhido pelos economistas.? A observação de Iglésias indica como o termo "formação", presente direta ou indiretamente nos títulos, vincula-se ao âmbito da história, apre­sentando-se como uma das facetas da investigação das genealogias.

O estabelecimento das "formações" é uma maneira de fazer história, que, desde logo, nega uma tendência do gênero, a de buscar as origens ou o ato primordial da fundação. Esse procedi­mento vigorou no século XIX, sobretudo quando se estabilizaram as histórias nacionais, caracterizadas pelo esforço de fixar o mo­mento, ou a data, de nascimento da pátria. Aceito o episódio inici­al, estruturava-se a cronologia, contínua e ascendente, na direção do aperfeiçoamento das marcas iniciais e diferenciadoras, que vi­riam distinguir e assegurar o perfil nacional.

O século XIX mostrou-se pródigo no que diz respeito a histórias nacionais desse feitio, modelo absorvido e assimilado pelas histórias da literatura. Também essas movimentavam-se na busca dos incidentes fundadores, a gênese mítica, a partir da qual se construía uma tradição; marcada por especificidades e diferenças. O pensamento romântico, valorizando as origens e a primitividade, colaborou para fundamentar teoricamente a historiografia da lite­ratura, que assim se consolidou e expandiu-se, firmando-se sobre­tudo graças à sua aliança com a escola e o ensino.

N a passagem do século XIX para o XX, pensadores como Friedrich Nietzsche questionaram o arranjo da história, de um lado, entendendo o nascimento como um evento consagrador, e não como manifestação de primitividade inacabada e imperfeita, de que é exemplo seu estudo sobre a tragédia grega;8 de outro, valo­rizando a pesquisa em nome das genealogias, momento de revela­ção, compreensão e análise da natureza dos temas e objetos que vêm a ser matéria da reflexão do filósofo. 9

A pesquisa focada na genealogia privilegia o começo, acom-

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panhando a transformação, e não sua evolução. Só que o começo é móvel, porque corresponde ao tempo em que a investigação inicia, ocasião escolhida e fixada pelo pesquisador, que a elege em sintonia com o tema a estudar e a perspectiva a assumir. Se o tema perde em autonomia, o estudioso ganha em compromisso com o trabalho executado, passando, doravante, um a depender do ou­tro. O ângulo metodológico adotado faz com que o tema dependa do sujeito que o investiga; mas esse precisa responder pelas for­mulações apresentadas.

O modo como Antonio Candido lida com a formação da literatura brasileira guarda afinidades com essa proposta de se fa­zer história, cujo resultado permitiu-lhe, por extensão, refletir so­bre a sociedade brasileira a partir de paradigmas que suplantam as limitações impostas pela ótica romântica.

2. Formação e sistema

Candido explica o entendimento da noção de formação na introdução de sua obra, dividida em quatro capítulos. O primeiro começa por uma tomada de posição, estando declarado no pará­grafo de abertura que" este livro procura estudar a formação da literatura brasileira como síntese de tendências universalistas e particularistas"; 10 logo a seguir, explica que, para melhor com­preender o "processo formativo", cabe distinguir entre "manifes­tações literárias" e "literatura propriamente dita", sendo essa considerada "um sistema de obras ligadas por denominadores comuns".11

Na perspectiva de Antonio Candido, o reconhecimento de que os textos literários estão interligados garante a identificação do sistema. A literatura não se confunde com a obra; pelo contrá­rio, ultrapassa-a, constituindo uma armação que acolhe ou rejeita criações distiI1tas que se apresentam a ela. Essa descrição não es­gota, porém, a r.~,:[c de sistema, que transcende o universo artís­tico, ao incluir umà r~de de sujeitos e de concepções vigentes no meio onde a criação individual aparece. Eis a natureza dos deno­minadores comuns, assim discriminados pelo Autor:

Estes denominadores são, além das características internas, (lín­gua, temas, imagens), certos elementos de natureza social e

10 CANDIDO, Antonio. Op. cit. p.25.

11 Id. p. 25. Ênfases do A.

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Antonio Candido e o projeto de Brasil

12 Id. p. 25-26.

13 CANDIDO, Antonio. "A literatura e a vida social". In:

. Literatura e sociedade. Estudos de teoria e história literária. São Paulo: Nacional, 1965. p. 27. Ênfases do A.

14 Cd. JAKOBSON, Roman. Lingüística e poética. In: _. Lingüística e comunioação. 2. ed.Trad. Isidoro Blickstein e José Paulo Peso São Paulo: Cultrix, 1969. p. 123.

psíquica, embora literariamente organizados, que se manifes­tam historicamente e fazem da literatura aspecto orgânico da civilização. Entre eles se distinguem: a existência de um con­junto de produtores literários, mais ou menos conscientes do seu papel; um conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de público, sem os quais a obra não vive; um mecanismo transmissor, (de modo geral, uma linguagem, traduzida em es­tilos), que liga uns a outros. O conjunto dos três elementos dá lugar a um tipo de comunicação inter-humana, a literatura, que aparece, sob este ângulo como sistema simbólico, por meio do qual as veleidades mais profundas do indivíduo se transfor­mam em elementos de contato entre os homens, e de interpreta­ção das diferentes esferas da realidade. 12

Candido refere-se a três elementos - sumariamente resumi­dos ao produtor literário, ao conjunto de receptores, e ao meca­nismo transmissor, a linguagem - que possibilitam a uma obra literária aparecer e amalgamar-se a um processo de comunicação interpessoal. Percebe-se desde logo que o sistema conta com, pelo menos, quatro fatores, pois um deles, a linguagem, definida de modo muito amplo no excerto citado, inclui tanto um suporte material, que varia segundo sua especificidade, quanto um código virtual.

No ensaio, datado de época aproximada, "A literatura e a vida social", Candido insiste no modelo triádico, referindo-se aos "três momentos indissoluvelmente ligados da produção, e [que J se traduzem, no caso da comunicação artística, como autor, obra, público."13 Trata-se, porém, de uma simplificação de sua intuição metodológica, que, de certo modo, condiz com o modelo preferi­do pela teoria da comunicação, formado por seis elementos em permanente integração e comutação: 14

contexto emissor ou remetente mensagem ou obra

canal código

recebedor ou desti­natário

Na perspectiva de Candido, esse modelo, ainda que orgâni­co, não é estático, mas dinâmico, já que a interação entre os fato-

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res da comunicação aciona e anima o sistema. Além disso, confere papel categórico ao público, noção coletiva que abriga os desti­natários das manifestações dos produtores literários. Por último, materializa o significado da formação, pois essa somente se concreti­za quando estão presentes os sujeitos, os meios e as intenções artísti­cas que, conjugados, mobilizam-se para prover de cultura e de litera­tura a um determinado ambiente ou cenário geográfico.

No Brasil, segundo Antonio Candido, "isto ocorre a partir dos meados do século XVIII, adquirindo plena nitidez na primei­ra metade do século XIX": 15

É com os chamados árcades mineiros, as últimas academias e certos intelectuais ilustrados, que surgem homens de letras for­mando conjuntos orgânicos e manifestando em graus variáveis a vontade de fazer literatura brasileira. 16

Amparado na noção de sistema, Candido pode enraizar a formação num determinado tempo e em certo espaço, liberando­se dos atos fundadores, dos atestados de nascimento e de batis­mo, das manifestações isoladas, dos voluntarismos individuais. A formação não constitui processo abstrato, nem o sistema opera no vácuo, já que inclui, como se fosse um sétimo fator, uma dada intenção - no caso, a vontade de fazer literatura brasileira. O his­toriador da literatura retoma ao ponto de onde saíram os pesqui­sadores que o antecederam, para oferecer sua interpretação dos acontecimentos. O sistema pode não ter início, mas dispõe de uma finalidade, matéria principal do projeto da historiografia literária brasileira.

3. Início e projeto

Em 1996, Antonio Candido publicou uma Iniciação à lite­ratura brasileira, resumo originalmente destinado a fazer parte de obra coletiva a ser publicada na Itália "no quadro das comemo­rações do 5° Centenário do descobrimento da América" .17 A co­letânea programada não se concretizou, o autor conservou o ori­ginal até decidir lançá-lo "como texto interno da nossa Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo", com o intuito de "oferecer aos jovens da Casa uma espé-

15 CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. V. I, p. 27.

16 Id. p. 27.

17 CANDIDO, Antonio. Nota prévia. In: _. Iniciação à literatura brasileira. 3. ed. São Paulo: Humanitas, 1999. p. 9.

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I8 Id. ibid.

19 CANDIDO, Antonio. Apresentação. In: _./nicillção à literatura brasileira. p. 11.

20 Id. p. 12.

21 Id. p. 13.

22 Id. p. 13.

cie de aide mémoire que esclareça o desenho geral da literatura brasileira e sirva de complemento a textos mais substanciosos."18

Mais uma vez a modéstia da apresentação não faz jus ao texto, que, ao substituir a "formação" pela "iniciação", retoma pontos fundamentais da obra de 1959. O primeiro deles aparece na introdução, em que o autor observa, primeiramente, a pertença da literatura do Brasil às "do Ocidente da Europa". A seguir, lem­bra que, no nosso caso, "o conceito de 'começo' é nela bastante relativo", porque, ao contrário do que ocorreu com as "literatu­ras matrizes" (como a portuguesa, em relação à brasileira), 19 não houve uma paulatina e simultânea constituição da língua, da lite­ratura e da sociedade. Na América, deu-se o imediato e cabal trans­plante de uma tradição literária já existente:

Assim, a literatura não 'nasceu' aqui: veio pronta de fora para transformar-se à medida que se formava uma sociedade nova.20

A seguir, o autor completa e explícita o paradoxo:

Num país primitivo, povoado por indígenas na Idade da Pedra, foram implantados a ode e o soneto, o tratado moral e a epísto­la erudita, o sermão e a crônica dos fatos. 21

Além de paradoxal, o processo tem um significado ideoló­gico que evidencia o papel exercido pela literatura durante a colo­nização e a trajetória subseqüente da sociedade brasileira:

A história da literatura é em grande parte a história de uma imposição cultural que foi aos poucos gerando expressão lite­rária diferente, embóra em correlação estreita com os centros civilizadores da Europa.22

A conclusão', surpreendente pela convicção, motiva a ne­

cessidade de explicar o sentido da palavra "imposição":

Esta imposição atuou também no sentido mais forte da pala­vra, isto é, como instrumento colonizador, destinado a impor e manter a ordem política e social estabelecida pela Metrópole, através inclusive das classes dominantes locais. Com efeito, além da sua função própria de criar formas ex-

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pressivas, a literatura serviu para celebrar e inculcar os valo­res cristãos e a concepção metropolitana de vida social, conso­lidando não apenas a presença de Deus e do Rei, mas o mono­pólio da língua. Com isso, desqualificou e proscreveu possí­veis fermentos locais de divergência, como os idiomas, crenças e costumes dos povos indígenas, e depois os dos escravos afri­canos. Em suma, desqualificou a possibilidade de expressão e visão-de-mundo dos povos subjugados.

Essa literatura culta de senhores foi a matriz da literatura brasileira erudita.23

Rejeitando, por outra via, o conceito de fundação ou come­ço mítico, tal como fizera na Formação, Candido, na Iniciação, reitera o caráter motivado e pragmático que acompanha a presen­ça e a ação da literatura no espaço americano. Mais explicitamen­te materialista que nos anos 50, não tem ilusões quando ao papel que exercem os aparelhos culturais e a tradição literária no pro­cesso de ocupação e colonização do Novo Mundo. Contudo, não se deixa levar pela perspectiva reducionista, tratando de evidenci­ar o modo dialético com que se dá o desenvolvimento da literatu­ra nas condições impostas pelo meio - físico, econômico, social­original. Eis por que lembra que cabe "discemir na literatura bra­sileira um duplo movimento de formação", decorrente da ação de dois fatores diversos que requereram harmonização: de um lado, a necessidade de converter a realidade observada, diferente da que caracterizava a literatura européia, em tema artístico, o que significou inserir o novo no corpo do tradicional; de outro, a ne­cessidade de alterar as formas convencionais, para que tivessem condições de absorver os dados locais, o que significou adaptar o velho às formulações do até então desconhecido.

O jogo que se estabelece determina a permanente e irremovível tensão experimentada pelos produtores literários bra­sileiros, que se expressam com mais intensidade à medida que o sistema se consolida. Esse adquire forma a partir da segunda me­tade do século XVIII, reproduzindo-se na Iniciação o recorte his­tórico proposto na Formação, agora com nome e sobrenome, pois o período é designado "era de configuração do sistema literá­rio", antecedido pela "era das manifestações literárias" e suce-

23 Id. p. 13.

dido pela "era do sistema literário consolidado" .24 Sistema, por !4 Id. p. 14. Itálicos do A.

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Antonio Candido e o projeto de Brasil

25 Id. p. 15.

26 Em "Literatura e desen­volvimento", Candido vale-se mais uma vez da triplice repartição paraentendere descrever a escala de re-presentação do subdesen­volvimento pela literatura brasileira. Cf. CANDIDO, Antonio. Literatura e desen­volvimento. In: _. A educação pew noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987.

27 Cf. VERÍSSIMO, José. História da literatura bra­sileira. De Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908).4. ed. Brasília: Ed. da Universidade de Brasília, 1963.

sua vez, recebe definição ligeiramente diversa, ainda que o pensa­dor não resista a defini-lo conforme um modelo triádico:

Entendo aqui por sistema a articulação dos elementos que cons­tituem a atividade literária regular: autores formando um con­junto virtual, e veículos que permitem o seu relacionamento, de­finindo uma "vida literária": públicos, restritos ou amplos, ca­pazes de ler ou ouvir as obras, permitindo com isso que elas circulem e atuem; tradição, que é o reconhecimento de obras e autores precedentes, funcionamento como exemplo ou justifica­tiva daquilo que se quer fazer, mesmo que seja para rejeitar.25 .

Talvez seja o impacto do método dialético, debitado a Hegel e, depois, a Marx, que leve Antonio Candido a repartir em três parcelas a noção de sistema que elege, assim como acontece ao recorte histórico proposto, que apresenta invariavelmente três eta­pas.26 A etapa intermediária corresponde à antítese da primeira desde sua designação, pois, tal como na Formação e em ensaios posteriores, opõe as já mencionadas "manifestações literárias" à "literatura", correspondendo essa a uma estrutura definida e com­plexa. Por decorrência, não pode encampar a divisão usual, prefe­rida pela historiografia romântica e não desmentida depois, entre as literaturas anterior e posterior à Independência, divisão aceita mesmo pelo nada romântico José Veríssimo, embora esse justifi­que a repartição em termos estéticos, e não exclusivamente histó­ricos. 27

Com efeito, conforJTle Candido, tanto o que precedeu a se­paração política de Portugal e o Romantismo, quanto esse último movimento constituem uma única etapa, relativamente homogê­nea e contínua, caracterizada não por estilos, temas ou escolas, mas pela adoção de um projeto comum.

É na Formação que Candido refere-se pela primeira vez a esse projeto, descrito ainda na introdução da obra. Dado o fato de que ele define a natureza da literatura brasileira, desenhando sua personalidade e percurso, o projeto revela-se metodologicamente mais importante para a construção da história literária do que o reconhecimento do sistema e seu funcionamento. Esse constitui pré-condição da literatura, mas corresponde a uma armadura que requer preenchimento, o corpo e a alma traduzidos pelo projeto.

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Que, no caso da literatura brasileira, tem o seguinte teor:

Os escritores neoclássicos são quase todos animados do desejo de construir uma literatura como prova de que os brasileiros eram tão capazes quanto os europeus; mesmo quando procu­ram exprimir uma realidade puramente individual, segundo os moldes universalistas do momento, estão visando este aspecto. ( ... ) Depois da Independência o pendor se acentuou, levando a con­siderar a atividade literária como parte do esforço de constru­ção do país livre, em cumprimento a um programa, bem cedo estabelecido, que visava a diferenciação e particularização dos temas e modos de exprimi-los. Isto explica a importância atri­buída, neste livro, à "tomada de consciência" dos autores quanto ao seu papel, e à intenção mais ou menos declarada de escrever para a sua terra, mesmo quando não a descreviam.28

Ao identificar o projeto que anima os escritores brasileiros, nascidos ou residentes na América portuguesa, Candido procede a uma importante inversão. Diferentemente dos historiadores da literatura que o antecederam (e a alguns que o sucederam), ele não vai atrás da expressão nacional, que conferiria distinção e autonomia às obras produzidas no torrão natal ou relativas a ele. Pelo contrário, ele transfere a busca para os autores estudados: são os intelectuais e criadores de boa parte dos séculos XVIII e XIX que trataram de se mostrar brasileiros, produzir uma arte "legitimamente americana", segundo os termos utilizados por Joa­quim Norberto, antes citados, e, com isso, competirem em pé de igualdade com seus confrades europeus, em vez de emularem-nos.

Candido não incorpora tal busca como sua, de modo que não precisa cobrar dos homens que fizeram a história da literatura brasileira a realização de uma idéia pré-concebida e antecipada pelo pesquisador. Em vez de ver o tecido pelo avesso, como seguida­mente agiu a intelectualidade nacional perante seu próprio passado, ele analisa o lado direito, verificando o que foi alcançado na direção da realização de um projeto que fez do Brasil uma nação.

Nação com seus problemas e paradoxos, sem dúvida. Como se observou antes, os românticos elegeram a literatura para, mais do que representar, corporificar a nacionalidade; da sua parte, porém, o país, povoado por iletrados, na maioria escravos, depois

28 CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. V. I, p. 28.

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imigrantes oriundos de regiões muitos pobres da Europa, só po­deria frustrá-los. Antes disso, como o próprio Candido destaca, a literatura tinha sido instrumento de dominação, imposição cultu­ral, incu1cação de valores estranhos aos habitantes originais da América; tinha sido também instrumento de exclusão, pois apenas no século XX, e nas últimas décadas principalmente, as formas de expressão populares receberam atestado de legitimidade artística, podendo ser inseridas ao cânone e circular pela escola e pelas instituições culturais.

Por tudo isso, a literatura parecia o veículo menos adequa­do a passar atestado de autonomia e nacionalidade a seus usuári­os. Foi ela, contudo, que recebeu a incumbência, e narrar sua his­tória é igualmente acompanhar um trajeto de muitos fracassos e poucos sucessos. Trata-se, porém, de uma história consolidada, frágil no que diz respeito aos resultados, mas resistente enquanto itinerário compacto e contínuo. Entendê-la eqüivale a entender a nós mesmos e a nosso lugar no trajeto percorrido, tendo, sempre que possível, a obra de Antonio Candido como nosso guia.

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A rota dos romances para o Rio de Janeiro no século XIX

Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos (USP)

o objetivo principal deste artigo é lançar luz sobre o merca­do livreiro europeu das primeiras décadas do século XIX, com especial ênfase nos editores que exerceram um papel fundamental na disponibilização e circulação dos romances ingleses no Brasil oitocentista. O interesse principal, aqui, recai sobre os mecanis­mos e práticas de mercado que possibilitaram que o principal porto brasileiro naquele período fosse um dos centros de irradiação e dis­seminação dos romances para o restante do território nacional. Tra­ta-se de investigar um dos importantes atores no processo de difu­são do gênero, na medida em que foram responsáveis por criar con­dições materiais para a implantação do romance também no Brasil.

O assunto de que vou tratar aqui foge do terreno propria­mente literário. Ele forma, porém, junto com outros componen­tes, tais como a disponibilidade de equipamentos e bens culturais e a instituição de espaços públicos de leitura, a base material que possibilitou o acesso dos leitores aos livros durante o período que se seguiu à chegada da Corte portuguesa ao Rio de Janeiro em 1808. A abertura dos portos às nações amigas e os interesses co­merciais em ambos os lados do Atlântico favoreceram a integração do país no mercado livreiro internacional, que experimentava, por sua vez, um momento de notável expansão mundial. O ato do Príncipe Regente ocorria, ao que tudo indica, num momento bas­tante propício para os livreiros europeus, ansiosos por expandi­rem suas vendas e encontrarem novos consumidores para os li­vros que imprimiam e vendiam.

Antes de penetrar nesse território, no entanto, gostaria de explorar alguns dos argumentos que Franco Moretti apresenta em

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seu Atlas do Romance Europeu l , para, por um lado, confirmar algumas de suas observações, e por outro complicar ligeiramen­te o quadro que ele desenha dos mercados narrativos por volta da primeira metade do século XIX. Entre suas principais teses, Moretti demonstra a existência, nesse período, do que ele deno­mina de "duas superpotências narrativas" - a Grã-Bretanha e a França - como centros produtores e exportadores de ficção, fato que em si não deveria causar estranheza na medida em que esse predomínio apenas reproduziria, no plano literário, o papel cen­tral que a base franco-britânica exerceu na "transformação do mundo entre 1789 e 1848"2. Os mapas de Moretti se restringem aos circuitos percorridos pelos romances franco-britânicos no res­tante da Europa e lhe permitem afirmar que, "na maior parte dos países europeus, a maioria dos romances são, muito simplesmen­te, livros estrangeiros"3. Embora não tenha sido seu propósito incluir na sua geografia literária os países deste lado de cá, se o tivesse feito, as constatações de Moretti dificilmente seriam di­ferentes. Da mesma maneira que húngaros, italianos, dinamar­queses e gregos4 , também os leitores brasileiros iriam se famili­arizar com o novo gênero por meio dos romances ingleses e franceses que, predominantemente, passaram a circular no Rio de Janeiro de modo cada vez mais significativo a partir das pri­meiras décadas do século XIX e a se espraiar para as outras províncias do Império logo em seguida. O Brasil integrava-se, dessa forma, às rotas transatlânticas do mercado literário, que tinha seu centro na França e na Grã-Bretanha.

Restaria, assim, verificar se o que Moretti lê nos mapas eu­ropeus, a preponderância expressiva dos romances canônicos e um "padrão regular e monótono" de entusiasmo pelos mesmos tipos de livros - ou, em suas próprias palavras, "uma Europa unificada por um desejo pelo que Peter Brooks chamou de 'ima­ginação melodramática"'5 -, também vale para caracterizar as obras de ficção que se alugavam ou vendiam nas boticas e livrari­as e que se emprestavam nos gabinetes de leitura e bibliotecas fluminenses. Um exame dos romances à disposição dos leitores brasileiros revela não apenas uma espécie de monopólio das es­tantes por autores como, por exemplo, Walter Scott, Charles Dickens, Daniel Defoe e Eugene Sue, mas também exibe uma in­teressante diversificação de títulos e subgêneros novelísticos, pos-

I Franco Moretti. Atlas of the Europea1l Novel, 1800-1900. London. Verso, 1999. Trad. bras.: Atlas do Roma1lce Europeu, 1800-1900. Trad. Sandra Guardini Vasconcelos. São Paulo. Boitempo, 2003. Ver capítulo 3, "Mercados narrativos, c. 1850", p. 153-208.

2 Eric J. Hobsbawm. Ver prefácio, A Era das Revoluções, Europa J 789-1848_ Trad. Maria Tereza Lopes Teixeira e Marcos Penchel. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1977, p.l5.

3 Moretti, p. 197.

4 Moretti, p. 197.

, Moretti, p. 187.

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6 Ver José de Alencar. "Como e porque sou romancista". Obra Completa. Rio de Janeiro, Ed. José Aguilar, 1959, vol. I, 125-155.

7 Silver{ork: designação jocosa para se referir aos romancistas de princípios do século XIX que tratavam da vida e dos costumes elegantes, derivada das descrições que o Fraser 's Magazine fazia de Edward Bulwer-Lytton como "polidor de garfos de prata". Embora Lytton afirmasse que seus propósitos eram satíricos, esses romances ofereciam aos leitores uma experiência vicária da vida em sociedade. Entre os romancistas "silver-fork" encontravam-se Lady Charlotte B ury, Lady Blessington, Benjamin Disraeli e Catherine Gore, cujos romances encon­tramos nos acervos dos gabinetes de leitura flumi­nenses.

, Na sua análise da produção e circulação do romance na Europa, Moretti se vale da teoria de Wallerstein para identificar os países que pertenceriam ao centro, semi periferia e periferia do sistema. Ver op. cit., p. 184.

9 Moretti, p. 190.

10 Moretti, p. 191.

sivelmente facilitada pela posição periférica do Brasil nesse mer­cado. Isto é, para cá os livreiros mandaram um pouco de tudo: Richardson e Marivaux, Lesage e Sterne, Radcliffe e Paul de Kock, Charlotte Bronte e Chateaubriand, Bulwer-Lytton e Fenélon, Fielding e Dumas, só para citar alguns freqüentadores assíduos dos anúncios de jornal ou dos catálogos dos gabinetes de leitura desse período. Chegaram igualmente aqueles que Moretti afirma não terem tido presença significativa nos outros países da Europa além da Grã-Bretanha e França, como as aventuras do Capitão Marryat, tão apreciadas por José de Alencar6 , Ainsworth, Miss M.Elizabeth Braddon, Wilkie Collins, ou Georgiana Fullerton, as "industrial noveIs" de Elizabeth Gaskell e os romances "silver­fork"7. Poderíamos pressupor, portanto, que essa diversidade te­ria colocado em circulação no Brasil um amplo e importante acer­vo de temas, formas, procedimentos e técnicas para os primeiros brasileiros que se arriscaram no terreno da ficção. Talvez mais amplo do que tiveram à sua disposição seus sucedâneos nos paí­ses da semi-periferia e da periferia da Europa.8

Por outro lado, ao atribuir a seleção a forças culturais parti­culares de cada lugar - "o padrão geográfico sugere uma afinida­de cultural entre a forma específica e o mercado específico"9 -, Moretti deixa na sombra um dos elos fundamentais nessa cadeia de circulação, pois sequer menciona o papel exercido pelo comér­cio livreiro no processo. Não seria razoável imaginar que, numa fase de industrialização da produção de livros, os interesses co­merciais possam também ter estado na base dessas exportações? Se assim for, é possível complicar ligeiramente o quadro dos mer­cados narrativos construído por Moretti trabalhando com a hipó­tese de que não são necessariamente "o catolicismo que 'selecio­na' os romances religiosos para o público italiano" ou "a maior emancipação das mulheres [que] seleciona narrativas de livre es­colha emocional nos países protestantes"lO os únicos fatores res­ponsáveis pela circulação de certas obras, e não de outras, nos diferentes países. A conclusão lógica nos levaria a supor, dessa maneira, que, se de um lado os países importavam os livros, na outra ponta livreiros de olho no mercado podem muito bem ter imposto escolhas e padrões de gosto, apostando no que já havia sido previamente testado, aprovado e se mostrara bem-sucedido no centro do sistema.

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Nessa perspectiva, o comércio livreiro se juntaria aos ou­tros componentes do circuito de circulação dos livros, tais como os jornais, os periódicos especializados e os críticos, nessa função de mediação e de estabelecimento de um cânone literário que, no caso do romance, foi se construindo paulatinamente desde o sé­culo XVIII. As disputas e polêmicas entre livreiros, críticos e pe­riódicos são um capítulo curioso da história do romance inglês setecentista e dão bem a medida de quão influente era sua ativida­de e quão explícitos os seus interesses comerciais. ll

Essas são algumas das trilhas que gostaria de explorar nesse ensaio, na tentativa de retraçar os caminhos dos romances da Eu­ropa para o Brasil, na primeira metade do século XIX. É evidente que não se pode esquecer a presença dos livreiros franceses e portugueses no Rio de Janeiro entre 1808 e a suspensão da censu­ra em 1821, estudados por Maria Beatriz Nizza da Silva, Lúcia Maria Pereira das Neves, Tânia Bessone e Leila Algranti 12. Como salienta essa última, esse foi um período em que várias casas e editoras de origem francesa, estabelecidas em Portugal desde o século anterior, "começaram a abrir filiais no Brasil, enviando seus representantes para atuarem no comércio de livros"13 , atividade que, a essa altura, não era especializada - "eram negociantes que em meio a várias quinquilharias e objectos de luxo também vendi­am livros" .14 Havia, ainda, os negociantes franceses que, fugindo da Restauração ou em busca de melhores condições de vida, ha­viam entrado no Brasil a partir de 1815 e que, estabelecidos em diferentes tipos de negócio, vendiam livros.15 Por ora, entretanto, pode ser proveitoso inverter a direção do olhar e buscar recons­truir os circuitos de que participaram os homens que fizeram a história do livro na Europa no século XIX.

Não cabe, aqui, investigar de forma exaustiva o comércio livreiro nessa primeira metade do século XIX, mas creio ser pos­sível desenhar um quadro desse momento de expansão do comér­cio internacional do livro na Europa e arriscar algumas hipóteses sobre seu impacto na circulação de livros em nosso país, naquele período. Quero salientar que, embora meu recorte sejam sempre os romances ingleses, eles são representativos desse comércio in­ternacional, que engloba britânicos, franceses, portugueses e as tão conhecidas contrafações belgas. De qualquer forma, essa ex­pansão do comércio europeu e os efeitos que surtirá por aqui só

11 Ver Sandra Guardini T. Vasconcelos. A Formação do Romance Inglês. Ensaios Teóricos. Faculdade de Filo­sofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2000. Tese de Livre­Docência, 3 vol.

12 Maria Beatriz Nizza da Silva. Livro e sociedade no Rio de Janeiro (1808-1821), Revista de História, vol. XLVI, n. 94, abril-junho 1973, p. 441-457; Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves. Comércio de livros e censura de idéias: A acti­vidade dos livreiros franceses no Brasil e a vigilância da Mesa do Desembargo do Paço (1795-1822). Ler Histâria, n. 23, 1992, p. 61-78; Leila Mezan Algranti. Censura e comércio de livros no período de permanência da corte por­tuguesa no Rio de Janeiro (1808-1821). Revista Portu­guesa de Histâria, voI. 23, n. 1,1999,p.631-663.

13 Leila Mezan Algranti. Política, religião e mora­lidade: a censura de livros no Brasil de D. João VI (1808-1821). In: Maria Luiza Tucci Carneiro (org.). Minorias Silenciadas. História da Cen­sura no Brasil. São Paulo, EDUSP/ Imprensa Oficial do EstadG"FAPESp, 2002, p. 1Il-112

14 Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves, op. cit., p. 64.

i5 Ver Tânia Bessone da C. Ferreira e Lúcia Maria Bastos P. das Neves. Livreiros franceses no Rio de Janeiro: 1808-1823. História Hoje: Balanço e Perspectivas. IV Encontro RegionaldaANPUH-RJ.Riode Janeiro, Associação Nacional dos Professores Universitários de História, 1990, p. 190-202.

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A rota dos romances para o Rio de Janeiro no século XIX

16 Depoimentos de comer­ciantes estrangeiros no Rio de Janeiro, na década de 1810, dão notícia das dificuldades e demora na entrega dos produtos e no desembaraço alfandegário e da falta de infra-estrutura portuária. Ver Herbert Heaton. A Merchant Adventurer in Brazil 1808-1818. The Journal of Economic History, vol. 6, n. I, maio de 1946.

17 Ver Frédéric Barbier. Le Commerce Intemational de la Librairie Française au XIXe Siecle (1815-1913). Revue d'Histoire Moderne et Contemporaine. Torne XXVIII, janvier-mars 1981,p. 94-I17.

18 Fonte: National Archives (PRO), CUST 9/1 e CUST 9/ 35, respectivamente.

19 Barbier, op. cit., p. 11 O.

20 "De la situation actuelle de la librairie et particulierernent des contrefaçons de la librairie française dans le nord de l'Europe", in Revue Britannique, Paris, torne XXVI, 4e. série, mars

1840, 52-97. A revista traz um quadro com valores comparativos à página 80.

irão se fazer sentir a partir da década de 30, quando o Brasil já gozava de sua condição de país politicamente independente.

Em tomo do decênio de 1840, as inovações, melhorias e maior rapidez nos transportes terrestres (ferrovias) e marítimos (vapores), nas transações bancáriasl6 e nos serviços postais, as mudanças nas técnicas de impressão e nos modos de produção e distribuição, somadas à expansão do público leitor graças ao au­mento da alfabetização, começavam a facilitar significativamente a circulação dos livros na Europa. O comércio livreiro, a partir principalmente de Londres e Paris, passou por um processo de profissionalização, com a substituição do antigo "bookseller" res­ponsável pela impressão, edição e venda ou aluguel de livros, pela figura do "publisher", o editor moderno especializado apenas na edição dos livros. Além disso, a reordenação jurídica do comércio livreiro internacional, que passou a incluir convenções, leis de propriedade literária e acordos bilateriais entre editores, possibili­tou estabelecer redes de vendas, permitindo o contato e a relação direta entre profissionais, por meio da figura do livreiro comissário permanente. Muitas vezes, o livreiro exportador acabava por fun­dar uma verdadeira sucursal no exterior, por intermédio de um mem­bro da sua própria famílial7 , como foi o caso de B.L. Garnier no Rio de Janeiro a partir de 1844. A abertura dos portos brasileiros ocorria, portanto, num momento absolutamente auspicioso para os livreiros europeus. Já em 1812, os registros alfandegários da Grã­Bretanha informavam exportações da ordem de f346 em "livros impressos". E se até 1848 seu crescimento esteve longe de ser ex­cepcional, tendo atingido apenas f404 naquele anolS , a participa­ção da França aparece como muito mais expressiva, com 11 tonela­das de livros em português e em latim impressos ali e enviados ao Brasil em 1821.19 Segundo dados da Revue Britannique, no ano de 1838 a França expediu 230.000 francos em livros para o Brasil, ao passo que no ano anterior as contrafações belgas que também tive­ram o nosso país como destino haviam somado 16.000 francos.2o

A análise das referências bibliográficas relativas aos roman­ces ingleses que circularam no Rio de Janeiro apresenta resultados interessantes do ponto de vista da atividade editorial européia. Longe de exibir uma concentração, no entanto, o total de 99 autores e 502 títulos coletados se divide entre casas editoriais diversas e proce­dências várias, como podemos verificar nos quadros abaixo:

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Autores britânicos (identificados) Séc. 18 Séc. 19

30 69

Obras anônimas Séc. 18 Séc. 19

11 24

Língua Inglês Francês Português Espanhol

Editoras: origem França Inglaterra Portugal Bélgica

Sem dados 9

225 títulos 146 títulos 128 títulos

3 títulos

Alemanha (Leipzig) Brasil (Rio de Janeiro) EUA (Nova York) Suíça (Genebra)

84 títulos 81 títulos 40 títulos 33 títulos 24 títulos 11 títulos 11 títulos 2 títulos

Tamanha dispersão dos títulos por tantas editoras européias obriga a levantar diferentes hipóteses para tentar explicar o cami­nho desses livros até o Brasil. Do lado de cá, as licenças concedi­das pela Mesa de Desembargo do Paço dão testemunho das ativi­dades de livreiros como Paulo Martim Filho (estabelecido à Rua da Quitanda), João Roberto Bourgeois, que não só fazia negócios com Luanda, Lisboa, Porto e Londres, mas enviava livros do Rio de Janeiro para diversos cantos do Brasil, e Pierre Constant Dalbin, que foi também editor de obras de Cervantes, Fénelon, Chateaubriand e Lesage, entre outros.21 Além disso, sabemos, por exemplo, que, assim que se abriram os portos em 1808, "os britâ­nicos chegaram em grande número. Por volta de agosto, tinham entre 150 e 200 comerciantes ou agentes comerciais no Brasil".22

21 Tânia Bessone da C. Ferreira e Lúcia Maria Bastos P. das Neves. Livreiros franceses no Rio de Janeiro: 1808-1823. p. 194 e ss. Fernando Guedes informa que a casa Rolland tinha entre seus "importantes e perduráveis clientes no Rio de Janeiro" um certo João Baptista Bourgeois. com quem Rolland fez "negócios entre 1798 e 1815". Ver Fernando Guedes. O Livro e a Leitura em Portugal. Lisboa. Ed. Verbo, 1987. p.148-150. nota 1.

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22 Rory Miller. Britain and Latin America in the Nineteenth and Twentieth Centuries. Longman, 1993, p. 42. Herbert Heaton: "Por volta do final de 1808 haviam sido enviados ao Rio de Janeiro produtos britânicos no valor de pelo menos cinco milhões de dólares. Com eles ou antes deles foram os comerciantes britânicos ou agentes comissionados às vintenas. Em setembro, era possível reunir sessenta e duas firmas britânicas no Rio para subscrever um abaixo-assinado; e, uma vez que eles descreviam a si mesmos como compreendendo 'uma grande maioria dos comerciantes respeitáveis residentes aqui', parece seguro supor que, se acrescentásssemos a minoria e os não respeitáveis, alcançaríamos um total de cem negociantes britânicos apenas no Rio." In: A Merchant Adventurer in Brazil 1808-1818, op.cit., p. 6.

23 Ver Geoffrey Jones. Merchants to Multinationals. British Trading Companies in the Nineteenth and Twentieth Centuries. Oxford, Oxford University Press, 2000. Há notícia de que 60 casas comerciais britânicas estavam funcionando no Rio de Janeiro em 1820. Ver D.C.M. Platt. Latin America and British Trade, 1806-1914. London, Adam & Charles Black, 1972.

24 Nelson Schapochnik menciona o gabinete de leitura de Cremiêre, na Rua da Alfândega, e os de Mongie, Dujardin e Mad Breton, na Rua do Ouvidor. Veja "Contextos de Leitura no Rio de Janeiro do século XIX: salões, gabinetes literários e bibliotecas", in Stella Bresciani (ed.). Imagens da Cidade. Séculos XIX e XX. (ANPUH/São Paulo: Marco ZeroIFAPESp, 1993), 147-162. Villeneuve, Didot, Mongie, Crémiêre, Garnier, Plancher, Dujardin eram alguns desses livreiros.

Muitos começavam como "commission merchants" e serviam como agentes dos fabricantes e atacadistas britânicos, negociando dire­tamente com eles. Mais importante mercado latino-americano para a Grã-Bretanha até o final do século XIX23 , quando foi suplanta­do pela Argentina, o Brasil portanto passou a fazer parte de uma rede que, além dos negócios diretos com as editoras européias, muito provavelmente se valeu dos correspondentes e dos viajan­tes para estabelecer as rotas percorridas pelos romances até che­gar aos leitores brasileiros. O mercado livreiro local, mesmo que incipiente no iníci024 , logo se expandiu a ponto de tornar possível, algumas décadas mais tarde, encontrar livros publicados por Aillaud e Hachette em Paris, por Routledge e Bentley em Londres, ou Bernhard Tauchnitz em Leipzig. Ele se mostrava, dessa forma, extraordinariamente atualizado em relação às modas literárias eu­ropéias, e adotava práticas semelhantes às da famosa Mudie's Library25, que incluiu a tática de anunciar sua seleta de livros nos jornais para aquecer as vendas e acabou por se transformar na melhor propaganda que podia haver para qualquer romance. A biblioteca circulante de New Oxford Street possuía um Departa­mento de Exportação para os excedentes e recebia encomendas não só do continente europeu, mas também de locais tão distantes quanto São Petersburgo, Índia, China e América.26 Seu maior ri­val era W.H. Smith, que abriu sua primeira banca de livros na Euston Station, em Londres, e por volta de 1862 possuía uma rede de 185 filiais em estações ferroviárias inglesas, fazendo ne­gócios e entregas em toda a Inglaterra e também no estrangeiro. O tamanho desses empreendimentos pode justificar o comentário de Anthony Trollope em 1870: "We have become a novel-reading people [ ... ]"27.

A história do acesso da burguesia à cultura letrada, no sécu­lo XVIII, e, posteriormente, da classe operária ao mundo da fic­ção, no século XIX inglês se fizera graças à formação de um cir­cuito de que participaram livreiros, bibliotecas circulantes e edi­ções cada vez mais acessíveis, colocando o livro ao alcance de um número cada vez maior de pessoas. Esses circuitos letrados foram fundamentais na formação do leitor médio. Concorreram para isso coleções como a Routledge's Railway Library, a Bentley's Standard NoveIs, a The Parlour Library (com 279 títulos publicados entre 1847 e 1863) e a Routledge's Standard NoveIs, que reuniam ro-

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mances tanto do século XVIII quanto do século XIX, como por exemplo Caleb Williams, Thaddeus of Warsaw, Frankenstein, Hungarian Brothers, Otranto, Vathek, St. Leon. A Bentley's Standard NoveIs, cujas três séries somaram 158 volumes28 , repre­sentou um notável avanço no processo de democratização de lei­tura, graças às suas edições baratas de romances conhecidos.

Michael Sadleir afirma que "( ... ) quando [os editores] lan­çaram a série [Bentley's Standard NoveIs] não a planejaram deliberadamente como uma série barata de ficção popular con­temporânea, mas sim como uma tentativa de registrar a fama per­manente de certos romances escritos desde o grande período do romance do século XVIII, que, entretanto, não haviam sido republicados adequadamente até o momento, de forma barata e acessível"29. Entretanto, o fato é que essas coleções contribuíram decisivamente para disponibilizar obras de ficção a um contingen­te cada vez mais substantivo de leitores. Público para isso havia, já que a classe operária havia começado a ganhar acesso à educa­ção formal na Inglaterra oitocentista. (Enquanto na década de 1790 Edmund Burke estimava a dimensão do público leitor na Grã­Bretanha em cerca de 80.000 indivíduos, em torno de 1814 a Edinburgh Review contabilizava não menos de 200.000 pessoas dos setores médios da sociedade como o público para as leituras de entretenimento e instrução.)30

Iniciada em 1831, com 126 volumes, a coleção da Bentley's Standard NoveIs só se encerrou em 1862, constituindo-se, ainda de acordo com Sadleir, "num marco da história da publicação de edições baratas". Em 1849, a Routledge lançava a sua prolífica, bem-sucedida e longeva Railway Library que, sem qualquer pre­tensão de ater-se a textos significativos, tinha como objetivo pu­blicar ficção popular a preços populares. Até 1899, havia publi­cado 1.277 títulos, os famosos "yellowbacks", livros de formato pequeno e baixo preço vendidos nas bancas das estações ferro­viárias, para serem lidos durante as viagens de trem e que re­ceberam essa denominação por causa de suas capas cuja cor pre­dominante era o amareloY Acrescente-se ainda a Smith, Elder's Library of Romance, com apenas 15 volumes, formada por ficção completamente original e especializada nas histórias romanescas, como o próprio título da coleção indica32 . Muitos desses livros aqui chegaram ainda em suas edições originais, não traduzidas,

" Tendo iniciado suas atividades com uma pequena loja em 1844, Charles Edward Mudie expandiu seus negócios em 1852, tendo se tomado um dos mais influentes livreiros do século XIX inglês. Era conhecido como "Leviatã Mudie". Ver Guinevere Griest. Mudie's Circulating Library and the Victorian Novel. David & Charles, [1970].

26 Ver William C. Preston. Mudie's Library. Rep. Good Words, October 1894; Guinevere Griest, op. cit.

27 G. Griest, op. cit.[número de página não recuperado 1

28 Priorizando novas tiragens de romances em formato acessível e em grande escala, essa coleção marcou época com suas três séries: la. série (1831-1854, com 126 títulos; 2a. série (1854-1856), com 22 títulos; 3a. série (1859-1862), com 10 títulos, agora sob o nome geral de "BentIey's Popular Noveis". Ver Michael Sadleir, XIX-Century Fiction. A bibliographical record based on his own collection. London, Constable & Co., 1951,2 vols.

29 No original: "In other words, when they [the editors] launched the series they did not deliberately foresee it as a cheap-edition series of current popular fiction, but rather as an attempt to register the permanent fame of certain noveis written since the great period of eighteenth-century novel-writing, but not hitherto fittingly reprinted in handy and cheap form". Michael Sadleir, op. cit., vol. 2, p. 94.

300S dados podem ser encontrados em William SI. Clair, The Reading Nation in the Romantic Period. Cambridge ,C ambridge University Press, 2004.

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" Ver Chester Topp. Victorian Yellowbacks and Paperbacks, 1849-1905. Denver, Hennitage Antiquarian Bookshop, 1993-1999,4 vols; Michael Sadleir. Collecting "Yellowbacks" (Victorian Railway Fiction). Constable, London, [1938], p. 127-161.

31 A Smith, Elder & Co. foi fundada em 1816eeraumadas editoras de grande prestígio no século XIX, tendo publicado Charlotte Bronte, William Thackeray, Anthony Trollope, Elizabeth Gaskell e George Eliot. Ver Robin Myers & Michael Harris. A Genius for Letters. Booksellers and Bookselling from the 16th to rhe 20th century. Winchester, St. Paul's Bibliographies; Delaware, Oak Knoll Press, 1995. Foi a Smith, Elder & Co. que publicou o Catálogo da Rio de Janeiro British Subscription Library.

lJ Os dados podem ser encontrados em Richard D. Altick. The English Common Reader. A Social History ofthe Jfass Reading Public, 1800-1900. 2nd ed. Columbus, Ohio State University Press, 1998. Ver Appendix B, p. 383-384.

" Romances publicados em série ao preço de um penny (moeda inglesa).

como é o caso de Marryat, W.H. Ainsworth e G.P.R. James (dig­nos representantes da Railway Library), dos anônimos The Disinherited and The Ensnared e The Mascarenhas, da Smith, Elder & Co. Outros, chegaram em tradução, vindos de Lisboa, Paris, Bruxelas ou Leipzig, como é o caso de M. Banim, M.E. Braddon, Wilkie Collins, etc.

A aposta na edição ou reedição em coleções baratas dos romances favoritos do público (entre os 279 títulos da The Parlour Library, por exemplo, se reeditaram romancistas como Elizabeth Gaskell, Jane Austen, Elizabeth Inchbald, Anne Bronte, Jane Porter, etc.) rendeu vendas que nos deixam espantados, mesmo dentro dos padrões dos dias de hoje: Guy Mannering, de Scott, vendeu 2.000 cópias no dia seguinte ao de sua publicação; Rob Roy, também de Scott, vendeu 10.000 numa quinzena e mais de 40.000 até 1836; Pickwick Papers, de Dickens, vendeu um total de 800.000 exemplares até 1879; A Christmas Carol, também de Dickens, vendeu 16.000 só no dia de sua publicaçã033 • São números que impressionam não só como indicadores de verda­deiros fenômenos editoriais - os best-sellers do século XIX -mas também porque são prova concreta da existência de um cír­culo cada vez maior de leitores e de um processo inegável de democratização do acesso ao livro.

As edições baratas não se restringiram aos romances do sé­culo XVIII ou aos escritores mais consagrados como Scott e Dickens. Aos poucos, elas deram lugar à produção de novos tipos de ficção para atender à mudança de gosto dos leitores das classes mais baixas. Os velhos romances reeditados em novas tiragens haviam prestado um bom serviço mas decerto devem ter começa­do a parecer fora de moda aos novos leitores citadinos - sua lin­guagem era destoante e soava antiquada, a vida que retratavam parecia estranha e era necessário um estilo mais contemporâneo, mais próximo e adequado aos novos tempos.

Decorrente da industrialização e da migração do campo para a cidade, a formação de uma nova cultura urbana, se deu início a uma era de ficção de massa, nas décadas de 1840 e 1850, confir­mou no. gosto popular os nomes de Ann Radcliffe, cuja influência na ficção popular foi enorme, e de Walter Scott, cujo Ivanhoe foi onipresente e gozou de uma popularidade que atravessou o sécu­lo. As penny-issue novels34 , embora tenham elegido outros temas

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e interesses, mais afeitos a essa cultura urbana, fundiram o gótico e o histórico e imitaram exaustivamente esses modelos. Segundo Louis James35 , The Pickwick Papers (1836-7) de Dickens foi o livro mais plagiado de seu tempo. As penny-issue noveis estão fora do escopo dessa discussão, mas o que interessa ressaltar aqui é que, com freqüência, foram as edições baratas dos romances populares na Inglaterra que chegaram ao Rio de Janeiro.

Até 1829, as vinte e cinco Waverley noveis de Walter Scott haviam vendido 500.000 exemplares e até 1860, em torno de 2 a 3 milhões36 • Scott também teve papel fundamental na consolida­ção de um formato de edição que se iniciou com seu Waverley, em 1814. Como significava bons negócios para as bibliotecas circulantes e gabinetes de leitura porque podia ser alugado para três leitores simultaneamente, o romance em três volumes virou moda pelas mãos de Charles Edward Mudie, que não só ajudou a difundi-lo como lhe conferiu status, dignidade literária e serieda­de, em comparação com os "yellowbacks", considerados leitura leve e de entretenimento. Mais importantes, porém, foram as con­seqüências que esse formato teve na própria estruturação dos ro­mances pelos romancistas, que se viram obrigados a levá-lo em conta e passaram a adequar suas narrativas à extensão dos "three­deckers": o uso de incidentes, a tendência a longas descrições, os enredos múltiplos, a ênfase nos retratos das personagens, a rique­za de detalhes, as digressões autorais, as reflexões ou as conver­sas com o leitor. Não se trata, como se poderia supor, de simples pormenores, uma vez que esses procedimentos serão aqueles que se tornarão familiares também para os nossos escritores, desse lado de cá do Atlântico.

Enquanto Richard Bentley logo adotou, também ele, o for­mato dos três volumes mas tratou de baixar os preços, e George Routledge e W. H. Smith apostavam nas "railway libraries", os editores franceses imediatamente reagiram com edições baratas (caso de Charpentier, Levy e Hachette, entre 1838 e 1855)37 e com as coleções do "chemin de fer"38 . Assim como os ingleses, também eles haviam se aberto para o estrangeiro (Gosselin, Bossange e Didot eram livreiros exportadores), chegando alguns inclusive a se instalar nas colônias, ou ex-, como foi o caso das falTI11ias Bossange e Garnier, no Rio de Janeiro.39 Os irmãos Michel e Calman Levy, por exemplo, criaram uma biblioteca familiar a

35 Louis James. Fictionfor the working man, 1830·1850. London, Penguin, 1974.

36 Ver WiIliam St. Clair, op.cit., ver quadro à p. 221.

37 Jean. Yves MoIlier. L'Argent et les Lettres. Histoire du Capitalisme d'Édition, 1880-1920. Paris, Fayard, 1988.

38 Em lo de abril de 1852, Louis Hachette propôs-se, em nota às Compagnies de Chemins de Fer, a publicar o sucedâneo francês das "railway noveis": "MM. L. Hachette et Cie ont eu la pensée de faíre toumer les 10isirs forcés et l'ennui d'une longue route au profit de I' agrément et de l'instruction de tous." Cf. Jean Mistler, La Librairie Hachette de 1826 à nos jours. Paris, Hachette, c. 1964, p. 123.40

Mollier, L'Argent et les Lettres, p.365. Ver também Jean MistIer, op. cit., p. 269.

39 Baptiste-Louis Gamier (1823-1893) foi o irmão que se estabeleceu no Rio de Janeiro em I 844,segundoinforma Laurence Hallewell. O Livro no Brasil. são Paulo,EDUSP, 1985,p. 127-128. Martin Bossange, por sua vez, juntamente com seus dois filhos Adolphe e Hector, forma urna empresa familiar com ramifi­cações internacionais, com lojas emLeipzig,Madri,noMéxico,em Montréal, Nápoles, Nova Iorque, OdessaeRiodeJaneiro. VerDiana Cooper-Richet. L'imprimé en Iangues étrangeres à Paris ao XIXe siecle: lecteurs, éditeurs, supports. In: Revue française d'/ústoire du livre, ns. 116-117, 3e e 4e trirrestres, 2002, p. 203-235 (p. 213).

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A rota dos romances para o Rio de Janeiro no século XIX 59

40 Mollier, L'Argent et les Lettres, p. 365. Ver também Jean Mistler, op cit., p. 269.

41 A Revue Britannique de março de 1840 ressaltava a importância dos colporteurs e da colportage na distribuição dos livros. Ver nota 16.

42 Jean-Yves Mollier, op. cito

43 Ver Jean-François Botrel. La librairie "espagnole" en France au XIXe siecle. In: Jean-Yves Mollier. Le Commerce de la Librairie en France au X/Xe siecle, /789-1914. Versailles, IMEC Éditions; Paris, Éditions de la Maison des Sciences de I'Homme, p. 292-3. Nota explicativa: quintal é uma antiga medida de peso equivalente a 4 arrobas; um quintal métrico equivale a cem quilogramas.

44 Frédéric Brubiec lb! Publishing Industry and Printed Output in Nineteentb-Centwy France. In: Kennetb Carpenter (ed.). Books andSociety in History. New Yorlc, R.R. Bowker, 1983, p. 199-230 [p.205].

45 Jean-Yves Mollier, L'Argent et /es Lettres, p. 91.

46Williamst. Oair,op.cit., p. 296-297. Segundo Diana Cooper­Richet, Giovanni Antonio GaIignani insta1anocentm de Paris uma livraria, um gabinete de leitura e uma casa editora, consa­grados à literatura britânica e a jornais em inglês, enquanto Louis­Claude Baudry lança. em 1829, a coleção Ancient and modem BritishAuthors, com 32 títulos. A partir dos anos 30, Galignani e Baudry iriam se associar, ofere­cendo aos leitores Walter Scott, Maria Edgeworth, Dickens e Thackeray. Ver L'imprimé en languesétrangêresà Paris au XlXe siecle: lecteurs, éditeurs, supports. In: Revue française d'histoire du livre,ns.1l6-1l7,3ee4etrimestres, 2002, p. 203-235.

um franco o volume e, em 1889, seu catálogo contava com 1.414 títulos de 277 autores, aí incluídos Dickens, Ann Radcliffe e G.R. Reynolds,40 Enquanto uma rede de colporteurs41 e de viajantes comerciais ou vendedores itinerantes (os "commis voyageurs") era o ponto de contato entre os comerciantes e os clientes e con­sumidores e garantia as exportações para a América do Sul duran­te o século XIX42, os números demonstram que no começo do século XX a França já havia exportado para a América Latina "(Argentina, México e Brasil, essencialmente) uma média de 1.100 quintais métricos de livros em línguas estrangeiras ou mortas".43

Paris, centro das modas, tinha um público leitor capaz de transformar em best-seller qualquer aventura literária44 e, ao final da guerra de 1815, tornou-se um dos grandes centros de publica­ção de textos em língua inglesa. Enquanto os irmãos Firmin Didot tinham a propriedade literária das obras de Scott45 , Baudry publi­cava textos em inglês e, já ao final da década de 1820, os novos romances ingleses eram vendidos em Paris no prazo de três dias de sua publicação em Londres, em edições de boa qualidade e por um preço quatro vezes menor que o britânico. Também se torna­ram comuns os acordos e as sociedades, como a de Baudry e Galignani, ou a de Firmin Didot e Hachette, com fins de compartilhamento da produção e distribuição dos livros. Entre 1830 e 1850, Baudry e Galignani ofereciam um bom catálogo de literatura inglesa recente46 e o mesmo Baudry, assim como Aillaud e Pillet Ainé, publicava ainda traduções de romances em portugu­ês, Constata-se, dessa maneira, o quanto esses livreiros e editores contribuíram para as trocas e transferências culturais e como, mesmo que indiretamente, exerceram um papel fundamental no processo de difusão e disseminação de autores e romances em circuitos ml iro mais amplos e territórios muito mais distantes do que o dos países europeus.

Cada uma das casas editoras tem, obviamente, sua história. Para ilustrar esses caminhos tortuosos do romance pelo mundo, valho-me dos casos mais representativos no que diz respeito àquele conjunto de 502 romances ingíeses que chegaram ao Rio de Ja­neiro no século XIX, O primeiro abarca um conjunto de títulos que, embora tenham sido publicados por editoras diferentes, re­presenta a participação inglesa nesse mercado, com suas inventi­vas soluções para a democratização do livro. Refiro-me especifi-

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camente às edições populares da Routledge, da Chapman and Hall (1849-1902), da Bentley, da J.S. Pratt e da S. Fisher, com uma contribuição diferenciada mas tendo em comum o fato de estarem todas envolvidas na produção de encadernações baratas. De to­dos, talvez George Routledge (1812-1888) seja o exemplo mais paradigmático. Tendo começado suas atividades como livreiro em 1836, Routledge já em 1844 havia se tomado editor, publicando tanto grandes autores quanto romancistas menores, e também obras estrangeiras em inglês, como as de Lesage, Eugene Sue, Balzac, Cervantes e Dumas.47 "Imitação deliberada e não totalmente es­crupulosa da ParIour Library", editada por Simms & M'Intyre de Belfast e cujo propósito era difundir boa literatura num formato elegante e barat048 , a bem-sucedida Railway Library, a um shilling o volume reimpresso, foi a versão de Routledge para aquela série. Tacada certeira, sua iniciativa de associar o símbolo do progresso e modernidade da Inglaterra vitoriana e industrial - o trem, as ferrovias e as viagens de trem - e o romance sobreviveu meio século, até 1899, e foi imitada do outro lado do Canal da Mancha por Louis Hachette e em Portugal pelo editor Manuel Antonio de Campos Júnior, com sua coleção "Leitura para Caminhos de Fer­ro", de 1863.49 Tanto em Londres quanto em Paris, esforços simi­lares em estabelecer uma política de preços baixos e edições po­pulares criaram novos parâmetros editoriais e produziram os exem­plares que atravessaram o oceano e vieram aportar no Rio de Ja­neiro. Seriam eles também destinados aos eventuais viajantes das estradas de ferro brasileiras, implantadas a partir do decênio de 1850 pelas companhias inglesas?50

O segundo caso diz respeito à conhecida Casa Hachette. Responsável por uma coleção de 150 volumes vendidos a um fran­co cada - a Bibliotheque des Meuilleurs Romans Étrangers -, Louis Hachette ajudou a divulgar na França um conjunto de auto­res estrangeiros, entre os quais os ingleses ocupavam um lugar de honra: Bulwer-Lytton, CharIotte Bronte, Benjamin Disraeli, Mayne-Reid, William Thackeray e CharIes Dickens. É este último que me interessa particularmente aqui, porque representa um caso emblemático das mudanças que passavam a ocorrer no mundo da edição. Desde 1854, algumas obras de Dickens figuravam no ca­tálogo da Bibliotheque de Chemins de Fer e, desde as décadas de 1830 e 1840, vários de seus romances podiam ser lidos em fran-

47 Ver Chester Topp. Victorian Yellowbacks, vol I.

48 Michael Sadleir, op. cit., volume lI, p. 167.

49 Ernesto Rodrigues. Cultura Literária Oitocentista. Porto, Lello Editores, 1999, p. 13.

500S britânicos estiveram envolvidos na construção e operação das ferrovias bra­sileiras desde o início (a primeira linha foi inaugurada em 1854) e nos últimos anos do Império havia vinte e cinco delas controladas por grupos britânicos em diversos cantos do país, como por exemplo a The São Paulo Railway, The Minas and Rio Railway Company, The Recife and São Francisco Railway, etc. Fonte: Catálogo da Exposição "Os Britânicos no Brasil", São Paulo, Centro Brasileiro Britânico, 2001.

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-\ rota dos romances para o Rio de Janeiro no século XIX 61

'I Citado por Jean Mistler, op.cit., p.l60. Devo todas as informações referentes à Casa Hachette a essa obra e a Jean­Yves Mollier, Louis Hachette 11899-1864). Le fondateur d'un empire. Paris, Fayard, 1999.

52 Sobre esse tópico, ver Herman Dopp. La Contrefaçon des Livres Français en Belgique,J 815-1852. Louvain, Liv. Universitaires, Uystpruyst Éd., 1932; François Godfroid. Nouveau Panorama de la Contrefaçon Belge. Bruxelles, Académie RoyaJe de Langues et de Littérature Françaises, [1986].

cês, seja em traduções livres como a de Mme Niboyet para As Aventuras de Mr. Pickwickem 1838, ou o David Coppeifield que Pichot havia traduzido para a Revue Britannique, tendo como ponto comum entre todas elas a infidelidade das traduções. Para fazer frente aessa situação, emjaneiro de 1856 Dickens e Hachette assinam um contrato de publicação e logo depois Paul Lorain é escolhido para supervisionar o trabalho de tradução da série de 28 romances do escritor inglês, iniciando-se uma parceria estreita entre autor, editor e tradutores que vai render frutos no sentido de uma maior profissionalização dessas relações. Além disso, Dickens as­sume o papel de conselheiro na escolha dos romances ingleses para tradução e coopera com Hachette nos contatos que o editor francês busca estabelecer com outros autores ingleses da época. Em minuta de carta a Dickens, datada de maio de 1856, Hachette declarava:

Je désirerais maintenant étendre ces relations [avec Milady Fullerton, auteur de Lady BirdJ aux autres écrivains dont les ouvrages sont les plus estimés en Angleterre et son de nature à être le mieux accueillis en FranceY

Como seus sucedâneos, Hachette também tinha uma ativi­dade importante na exportação por meio do Départment Étranger Hachette (D.E.H.) e especial interesse na Inglaterra e Alemanha, mantendo representantes e viajantes e às vezes até mesmo seus dirigentes em andanças pelo mundo, a partir do final do Segundo Império. O dado de que os esforços da casa editora se dirigiam sobretudo à América Latina pode ser comprovado pelo fato de que a coleção de romances ingleses em circulação no Rio de Ja­neiro no século XIX publicados por Hachette consta de 44 títu­los, a maior por parte de um só editor.

Haveria ainda que ressaltar a presença e a participação das contrafações belgas, nessa coleção. A controvérsia que cerca a propriedade ou impropriedade do uso do termo e sua definição é conhecida e exige uma certa cautela na sua aplicação. Associada ou não à idéia de fraude e plágio, vista como imoral e corruptora do gosto, a contrafação foi fenômeno mundial e não apenas belga, favorecido pela ausência de regras e de regulamentação internaci­onal quanto a direitos autorais e legais.52 Assim, tanto Aillaud, em

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Paris, quanto Bassompiere, em Liege, os Baudoin freres e Berthot, em Bruxelas, Chapman, em Londres, Dujardin em Gand e Tauchnitz em Leipizig, podiam ser incluídos na lista dos contrafacteurs. No entanto, foram os belgas que souberam tirar proveito da maior liberdade de imprensa vigente nos Países Bai­xos, livres da censura e dos impostos pesados que marcavam as atividades na França sob Napoleão, e a contrafação belga viveu seu período de apogeu entre 1815 e 1850, quando entrou em declínio graças à assinatura da primeira convenção franco-belga de direitos do autor, em 1852. "Une réproduction à bon marché", conforme a definiu Herman Depp53 , a contrafação belga adotou o formato reduzido (in-12, in-18 ou in-32) no lugar do in-8D

parisiense, com papel de qualidade inferior e tipos mais cerrados. E, embora a contrafação belga de livros em língua inglesa tenha sido modesta, dada a universalidade do francês como língua de cultura, foram vários os livreiros belgas que publicaram autores ingleses: em 1825, P.J. de Matt de Bruxelas tinha em catálogo os romances de Walter Scott; em 1835, Wahlen publicou sua "Collection d' Auteurs Anglais Modernes", além de Banim, Blessington, Gore e Radcliffe; Méline ou Wahlen publicaram ain­da Bulwer, Dickens, Edgeworth, Goldsmith, G.P.R. James, Marryat, Scott, Trollope.

Os franceses, é evidente, se ressentiram da concorrência belga, mas, como Emile de Girardin deixou claro, "La Bélgique a fait ce qu'elle avait le droit de faire, et ce que la France n'avait aucun scrupule de pratiquer à l' égard des livres anglais ... "54 , o que dá a medida de quão generalizada era a prática nos dois países.

A Revue Britannique de março de 1840 comentava:

MM. Galignani et Baudry, de Paris, sont les seuls qui, à force de soins et de persévérance, soient parvenus à donner à la contrefaçon des ouvrages anglaises une certaine importance. Ces éditeurs ont pour clientelle les trente mille familles anglaises qui habitent la France, la Suisse, la Savoie, l' ltalie et les diverses parties de l' Allemagne ( ... )55

Vindos de Bruxelas, são trinta e três os títulos de romances ingleses que compõem o acervo fluminense, dos quais trinta e um em francês e dois em inglês, o que apenas confirma a avaliação da mesma Revue Britannique a respeito da predominância flagrante

53 Herman Dopp, op. cit., p. 12.

54 Citado por Herman Dopp, op. cit, p. 12.

55 Revue Britannique, mars 1840, p. 60-61.

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.-\ rota dos romances para o Rio de Janeiro no século XIX 63

56 William Todd & Ann Bowden.Tauchnitz International Editions in EnglishJ 84 J -1955. A Dibliographical history. New Yolk, BibliographicalSocietyofAm'rica, 1988, p. 3.

57 Idem, ibidem, p. 770 e 1022.

e universalidade da língua francesa, considerada como "instrument de haute sociabilité" no período. Como dizia o autor (não identi­ficado) do artigo, os editores belgas sabiam muito bem como ex­plorar o filão que a apatia dos franceses parecia deixar de lado, aproveitando-se ainda do fato de que "aujourd'hui, Londres consomme par semaine de 12 [sic] à 1.500 francs de contrefaçons belges". É curioso lembrar que a própria Revue Britannique, ori­ginalmente editada em Paris, tinha sua similar belga, com uma tiragem de 1.200 exemplares.

Por outro lado, os títulos em inglês, originários de fora da Grã-Bretanha, se concentram nas mãos de outro dos casos inte­ressantes que vale a pena destacar. Trata-se de outro pequeno conjunto de 24 romances, que também circularam no Rio de Ja­neiro naquele período, todos produzidos pelo mesmo editor, um alemão de Leipzig. Bernhard Tauchnitz (1816-1895) fundou a editora em 1837 e a partir de 1841 passou a publicar uma coleção de autores britânicos e norte-americanos em inglês, um costume bem-estabelecido no continente, como o provava a parceria entre as firmas de Baudry e Galignani.56 A editora encerrou suas ativi­dades apenas em 1943, ao ser destruída em um bombardeio. Na­quele ano, a coleção havia atingido a impressionante cifra de 5.370 volumes, a maior parte deles de ficção. 57

O principal alvo de Tauchnitz não era o mercado britânico, mas o próprio continente europeu, e as ferrovias faziam o trans­porte de seus livros para diversos pontos da Europa, para dali serem enviados para o exterior: de Bremen para os Estados Uni­dos, de Dresden para Viena, de Paris, para a Espanha, Portugal, África e Oriente Próximo. Por contrato com os autores, os volu­mes não podiam ser exportados para a Grã-Bretanha, mas acaba­vam lá chegando pelas mãos de turistas britânicos que os compra­vam durante suas viagens ao continente. Uma oferta de publica­ção vinda de Tauchnitz significava uma consagração, e não nos surpreende saber que Dickens, Marryat e Bulwer-Lytton foram alguns dos romancistas que autorizaram o editor alemão a publicá­los. Pelham, or the Adventures of a Gentleman, de Bulwer Lytton, e The Posthumous Papers ofthe Pickwick Club, deDickens, inau­guraram a coleção em 1842, que anunciava como seus traços dis­tintivos a correção do texto, a elegância exterior e os baixos pre­ços, e podia se gabar de que, muitas vezes, a "edição internacio-

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nal" era lançada muito antes de sua contraparte nacional. Segun­do dados de 1937, a firma havia produzido mais de 40 milhões de exemplares e o legendário Barão de Tauchnitz havia recrutado 6.000 livreiros em todo o mundo.58

Quer seja nas ediçõés de Hachette, de Tauchnitz ou da Routledge Railway Library, ou em contrafações belgas, os roman­ces ingleses que circularam no Rio de Janeiro ao longo do século XIX ajudam a contar a história dos circuitos, rotas e caminhos percorridos por esses livros a partir dos diversos centros euro­peus em seu longo percurso até os portos brasileiros. O que eles nos mostram é que os mercados narrativos de que fala Moretti são efetivamente sem fronteiras. Por ocasião do centenário de Tauchnitz, um outro editor, Walter Hutchinson (1887 -1950), pres­tou-lhe uma homenagem, lembrando-lhe as realizações:

There are no boundaries in literature - neither race nor creed, and books, I sometimes think, fonu probably the best basis for that true internationalism which it is hoped will one day be established in the world. Baron Tauchnitz, whose Centenary it is to be fittingly celebrated throughout the world, was, in my opinion, one of the greatest of embassadors, for he made available to millions of people the works of the greatest authors af alI nations. Baron Tauchnitz's brilliant idea developed into an internatianal institution and few men have left behind them in their work a more enduring memoriaP9

Mesmo que se ouça nessas palavras um certo exagero encomiástico, característico dessas ocasiões, é forçoso reconhe­cer que, assim como ocorreu no caso de Tauchnitz, o grande feito desses homens foi ligar os continentes por meio dos livros. Foi graças a esses espíritos empreendedores, ao seu faro para os ne­gócios e à sua ousadia que os livros se tornaram mais baratos, que as tiragens aumentaram e que obstáculos foram transpostos para que os romances chegassem às mãos de seus leitores, mesmo que eles fossem em pequeno número e estivessem distantes, do outro lado do oceano.

" Cf. Tauchnitz-Edition. The British Library, London, 1992.

59 Idem, ibid.

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1 CAMPOS, Humberto de. "Elogio do Analfabetismo". 1.1.: Diário da Tarde. Ilhéus, 28 de março de 1933,. p.2

, Idem.

A crônica na imprensa periódica oitocentista : Machado de Assis e a

formação do público leitor

Patrícia Kátia da Costa Pino (UESC)

I. Oralidade e jornalismo

No dia 28 de março de 1933, o escritor Humberto de Cam­pos publicou, na página dois do Diário da Tarde, periódico ilheense de destaque na sociedade da época, o protesto "Elogio do Analfa­betismo", de onde destaco o fragmento a seguir: "Brasileiro que sabe ler o nome não pega mais no cabo da enxada, abandona a lavoura, e vem para a cidade ... "l . Sua concepção de ordem social, cultural e econômica fica clara no texto em questão: há indivíduos privilegiados - os donos das terras - que podem e devem estudar, dominar as letras e os cálculos; há, por outro lado, aqueles que, desprovidos da posse das mesmas e de quaisquer outros bens, devem contentar-se em "servir aos senhores". Campos termina a crônica: "Quem planta alfabeto não apanha feijão"2 . Ou seja, para esse intelectual, poucos deveriam ler e escrever, e muitos deveri­am, com seu suor cotidiano, sustentá-los, na eterna reprodução de uma ordem social patriarcal, capitalista e, mais que tudo, cruel.

Esse patriarcalismo brasileiro remonta aos tempos coloniais e vem do outro lado do oceano. A Metrópole construiu, nos sécu­los em que explorou nossas riquezas materiais e humanas, um país dividido entre os que tinham e sabiam e os que não tinham e não conseguiam nunca saber. Não tínhamos escolas, ou as tínhamos em pequeníssimo número; não tínhamos imprensa; não tínhamos meios de produção e ampla circulação de conhecimento, enfim.

Somente a partir de 1808, o Brasil conquistou o direito de contar, oficialmente, com tipografias, direito este que, nos sendo

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negado nos séculos precedentes, reduziu nossas letras impressas à marginalidade. Com a chegada de D. João VI e a transferência da Corte para cá, entramos, tardiamente, na era da imprensa. Mas, tudo o que é impresso demanda leitura, supõe-se. E como, até então, o impresso era raro, a habilidade da leitura era um tanto ociosa, pelo menos, no que tange aos grupos populares e, em particular, às mulheres e aos negros.

Na parte introdutória deA letra e a voz, Paul Zumthor estu­da três formas de oralidade: a primária, própria de grupos analfa­betos, sem contato algum com a escrita; a mista, que sofre influ­ência externa da escrita; a terceira, chamada segunda, que se re­faz pelo papel e pela tinta. Assim ele distingue cultura escrita (possuidora de uma escritura) e cultura letrada, na qual " ... toda expressão é marcada mais ou menos pela presença da escrita ... "3

Mesmo voltadas para a Idade Média européia, as reflexões de Paul Zumthor abrem caminho para que se reflita sobre as prá­ticas culturais oitocentistas brasileiras. Nós não eliminamos radi­calmente a oralidade; aqui, escrita e oral partilham a cultura. A voz surge como alternativa para o olho, permitindo que a leitura fique na interseção visual/auditivo e contactando diretamente o universo oral do leitor.

a Brasil do início do século XIX era carente de editoras, livrarias e periódicos. Com o correr do século, a situação muda em parte, surgem livreiros, editores de periódicos4 • Mas os leito­res, esses espécimes raros, demandavam uma verdadeira emprei­tada de caça por parte dos produtores de bens culturais impres­sos. Essa precariedade, se criou obstáculos para a formação de grupos de leitores, por outro lado, viabilizou o aproveitamento dos protocolos de comunicação oral que reinavam por estas plagas, deu margem à sua incorporação aos padrões do impresso, aproxi­mando este último de possíveis receptores.

Tal incorporação, como a entendo, significou, de certa for­ma, fazer do papel e da tinta substitutos do corpo e da voz dos contadores de causas, dos porta-vozes das instâncias administrati­vas etc, num processo de modernização das ações de produção e de recepção. Se, nas práticas culturais marcadas pela oralidade, o tom, o gesto, dão suporte à voz, no âmbito das práticas letradas, tornou­se necessário o estabelecimento de instrumentos que orientassem a recepção do impresso, mediando o trânsito do oral para o escrito.

3 ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a "literatura" medieval. Tradução de Amálio Pinheiro e Jerusa Pires Ferreira. São Paulo, Companhia das Letras, 1993.p.18

4 PINA, Patrícia Kátia da Costa. Literatura e jornalismo no oitocentos brasileiro. Ilhéus, EDITUS, 2002. p.29-59.

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5 LAJOLO, Marisa e ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. São Paulo, Ática, 1996. p. 16

6 ASSIS, Joaquim Maria Machado de. "O Jornal e O Livro". In.: --o Obra completa. 5ed. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1985. V.3. p.943-944

Segundo Marisa Lajolo e Regina Zilberman, " ... só existem o leitor, enquanto papel de materialidade histórica, e a leitura, en­quanto prática coletiva, em sociedades de recorte burguês, onde se verifica no todo ou em parte uma economia capitalista."5 Leitor e consumidor são, portanto, termos equivalentes no dezenove, não só brasileiro. Enquanto indivíduo de carne e osso, o leitor do dezenove é o mantenedor do comércio cultural: orientar seu gosto, estabelecer modos de habituá-lo a determinado tipo de texto e/ou de publicação eram ações autorais/editoriais importantíssimas.

Nesse contexto, o jornalismo foi fundamental. Suas carac­terísticas - periodicidade, universalidade, variedade de temas e matérias, atualidade, difusão - fazem dessa prática cultural um grande instrumento de agregação de público (leitores e/ou ouvin­tes). O jornalismo desenha o espaço social, marca seus contornos, suas áreas de interseção; tudo, nas páginas dos jornais, tem uma seqüência, obedece a uma ordem. Dessa forma, os produtores de cultura impressa, especificamente, os tipógrafos e editores de jor­nais, desde os inícios do século XIX, constroem suas páginas, a fim de que pudessem atender às necessidades e expectativas dos indivíduos que, em função da nova ordem social e econômica, passavam a ser vistos como consumidores em potencial.

Em 1859, Machado de Assis publica, no Correio Mercantil, uma apologia ao Jornal:

Tudo se regenera: tudo toma uma nova face. O jornal é um sintoma, um exemplo desta regeneração. A humanidade, como o vulcão, rebenta uma nova cratera quando mais fogo lhe ferve no centro. A literatura tinha acaso nos moldes conhecidos em que preenchesse o fim do pensamento humano? Não; nenhum era vasto como o jornal, nenhum liberal, nenhum democrático, como ele. Foi a nova cratera do vulcão.6

Aos vinte anos de idade, o Bruxo do Cosme Velho lança um de seus feitiços, através do texto "O Jornal e O Livro", do qual foi retirado o fragmento acima. O feitiço a que me refiro é a confissão pública de sua paixão pelo jornalismo, paixão que ele almejava contagiante.

Referindo-se ao jornal como uma alavanca de Arquimedes no que tange à inteligência humana, é à possibilidade jornalística de penetração social que Machado de Assis rende homenagem.

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Para enfocar a importância do jornalismo, o romancista fluminense faz uma breve reflexão sobre as relações entre a imprensa e o livro:

o livro era um progresso; preenchia as condições do pensa­mento humano? Decerto; mas faltava ainda alguma cousa; não era ainda a tribuna comum, aberta à família universal, apare­cendo sempre com o sol e sendo como ele o centro de um siste­ma planetário. A forma que correspondia a estas necessidades, a mesa popular para a distribuição do pão eucarístico da publi-cidade, é propriedade do espírito moderno: é o jornaP ,--o op. cit., p.945

o livro era pouco: de circulação restrita, de manuseio difí­cil, interessando diretamente quase que apenas a um grupo seleto de indivíduos cujos hábitos culturais foram estabelecidos quer no convívio escolar e acadêmico, quer no convívio social com outros indivíduos de formação cultural erudita, caso do próprio Macha­do de Assis, o livro só atendia em parte aos anseios de difusão cultural próprios desse escritor e de seus contemporâneos.

Reside aí a importância do jornal: diários, semanais, quinze­nais ou mensais, os periódicos vinham preencher uma imensa la­cuna no Brasil oitocentista - vinham mediar as relações entre a cultura oralizada, ou auditiva, que se constituiu e firmou no Brasil Colônia, e a cultura letrada, pautada pela inserção e circulação do impresso como mídia veiculadora e organizadora do pensamento. Erafáciller um jornal: suas folhas se dobravam, era pouco volu­moso, podia ser guardado até nas algibeiras. Podia ser lido na esquina, compartilhado por muitas pessoas. O jornal incluía, as­sim, os trânsitos cotidianos oitocentistas em suas possibilidades de apropriação, as quais já estavam previstas e configuradas em sua materialidade, em sua forma.

Na teorização de Luiz Costa Lima, há uma distinção entre oralidade e auditividade. O primeiro conceito é por ele entendido como próprio de culturas desconhecedoras da escrita, as quais têm na palavra falada o instrumento maior para a construção e a manutenção da memória e das tradições grupais. O segundo, por sua vez, caracteriza o uso de estratégias de aprendizagem, produ­ção e circulação de conhecimentos de natureza oral, por parte de culturas que conhecem e dominam a escrita. A auditividade, as­sim, traz um peso negativo, pois implica o desprestígio do escrito e do impresso. Para o referido pesquisador, " ... a cultura auditiva

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8 LIMA, Luiz Costa. "Da Existência Precária: O Sistema Intelectual no Brasil". In.:-. Dispersa demanda: ensaios sobre literatura e teoria. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1981. p.16

9 ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Op. cit., idem.

é profundamente uma cultura de persuasão. Mas da persuasão sem o entendimento. Donde, da persuasão sedutora."8 Conside­rando a cultura brasileira como marcada pela auditividade, Luiz Costa Lima a caracteriza como uma espécie de reino do espetácu­lo, onde viceja o ornamental e ilusório. Como se organizaria a empresa jornalística nesse Brasil espetaculoso?

Ao jornal caberia a tarefa de estabelecer um universo de receptores, a partir daquilo que era vivenciado no cotidiano da sociedade. Os antecessores do jornal diário - dentre eles desta­que-se a leitura coletiva, em praça pública, de ordens, leis, avisos oficiais - supriram, por alguns séculos, as necessidades de comu­nicação dos que aqui viviam e contribuíram para que se estabele­cesse uma tradição de oralidade. O jornal dialoga com as marcas deixadas por essa tradição, revi sita-a e a coloca em interação com as mudanças culturais trazidas pelo século XIX.

Trata-se de um processo por demais complexo, no qual o jornalismo brasileiro tenta se inserir desde 1808, com a chegada da Família Real, a Imprensa Régia, a Gazeta do Rio de Janeiro e o Correio Braziliense, tendo, a princípio, Portugal como referên­cia e, com o periódico de Hipólito da Costa, o Brasil como núcleo explícito de suas tentativas de construção de um grupo receptor expressivo, que consumisse o produto cultural, fazendo-o circu­lar mais ampla e livremente.

lI. O jornal e sua importância como suporte da escrita

Para Machado de Assis,

o jornal apareceu, trazendo em si o gérmen de uma revolução. Essa revolução não é só literária, é também social, é econômi­ca, porque é um movimento da humanidade abalando todas as suas eminências, a reação do espírito humano sobre as fórmu­las existentes do mundo literário, do mundo econômico e do mundo social. 9

Além de mudar as práticas de produção literária, e isso por envolver um público amplo, "democrático", diferente das elites habituadas ao consumo do livro, o jornal - e os demais periódi­cos, acrescente-se - abalaria as estruturas das sociedades a ele

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sujeitas. E por que tal convicção? No Brasil, especialmente, por­que o jornalismo, na ótica machadiana, efetuaria um processo de educação informal, levando esse novo público, historicamente habituado aos ornamentos discursivos que incentivavam a crença e a adesão às idéias alheias, a fazer contato com uma maneira de produzir e divulgar bens culturais cuja ênfase vai para o individu­al, o particular, o reflexivo.

Cumpre ressaltar que a questão não é problematizar uma possível ameaça ao livro pela "popularidade" do jornal. André Belo assinala que

o sentimento de que o livro estava ameaçado apareceu pela primeira vez na segunda metade do século XIX, no momento em que, por razões econômicas, culturais e tecnológicas, a lei­tura dos jornais se popularizou, chegando a novas franjas de leitores que não liam livros habitualmente. 10

As relações entre livro e jornal medem-s~ exatamente pelo tipo de público a que cada uma dessas mídias atende, pelos usos a que cada uma dessas mídias pode se submeter. O livro tem um leitor raro no Brasil Colônia e no Brasil Império, raro por inúme­ras razões: pouca escolaridade da população, desprestígio históri­co da leitura em favor da audição, preço das publicações etc. Para Marisa Lajolo e Regina Zilberman, " ... 0 livro configura-se como lugar em que a noção de propriedade mostra a cara, conferindo visibilidade a um princípio fundamental da sociedade capitalista. construída a partir da idéia de que bens têm donos, fazem parte das transações comerciais ... "1l O livro é patrimônio, é bem durá­vel, pertence a uma ordem social ligada à noção de permanência e de valor material agregado. O livro não era e não é para "qualquer um". Infelizmente ...

O jornal responde a uma demanda diferenciada: seu consu­midor queria e quer um contato com o cotidiano imediato, quer entretenimento barato, quer conhecimento suficiente para "man­ter a prosa na esquina". E mais que tudo: não queria - e ainda não quer - perder a segurança de se sentir parte de um processo mai­or, um processo que não o exclui através de mecanismos de sele­ção que o caracterizam negativamente em comparação com seg­mentos sociais privilegiados.

:0 BELO, André. História & liwo e leitura. Belo Horizonte, Autêntica, 2002. p.20

11 LAJOLO, Marisae ZILBERMAN, Regina. O preço da leitura: leis e números por detrás das letras. São Paulo, Ática, 2001. p.l8

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12 LIMA, Luiz Costa. "Machado de Assis: Mestre de Capoeira 11". In.: Jornal do Brasil. Caderno Idéias. Rio de Janeiro, 4 de janeiro de 1997. p.5

13 SANTAELLA, Lúcia. Cultura das mídias. 2ed. São Paulo, Experimento, 2000. p.53

Em "Machado de Assis: Mestre de Capoeira lI", publicado no Caderno Idéias do Jornal do Brasil, a propósito da edição das crônicas machadianas feita por J ohn Gledson, Luiz Costa Lima dá uma pequena amostra de como se configuraria o caráter auditivo da cultura brasileira na página jornalística: "Ora, curiosamente, o êxito de Machado dependia de que seus leitores estivessem habi­tuados, como ele próprio diria, às letras grandes, tipos in oitavo, com muitas ilustrações nas margens."12 Essa transposição para o impresso de elementos ornamentais, sugestivos de práticas cultu­rais auditivas, era efetivamente necessária para que o jornal pu­desse ter acesso aos novos consumidores que na época ganhavam visibilidade - para que pudesse, sim, seduzi-los. E nessa afirma­ção não vai nenhum desdouro, é uma questão de "economia de mercado".

A sociedade brasileira, até a difusão da imprensa, em mea­dos de século XIX, mantém hábitos culturais formados no âmbito da oralidade, isto é, o leitor brasileiro foi criado nos liames da palavra-espetáculo. O ornato o seduz, a reflexão o afasta. É preci­so reeducá-lo. Para Machado de Assis, o jornal é a mídia adequa­da para levar essa tarefa a bom termo, conjugando práticas orais e práticas letradas.

Segundo Lúcia Santaella, a linguagem jornalística insere-se perfeitamente no mundo de consumo capitalista:

o jornal, por seu lado, após um primeiro momento (suas fases ainda artesanais) de importação de beletrismo literário, foi gradativamente desenvolvendo seu próprio know-how (pós-in­dustrialização) buscando para si uma imagem de objetividade, economia e imparcialidade que o mosaico jornalístico parecia realizar, satisfazendo a necessidade de condensação informati­va e fornecendo ao leitor doses cotidianas para sua reserva de acontecimento - (ficção). J3

Enquanto suporte de informação e cultura, o jornal pode suprir as necessidades intelectuais do leitor. Mesmo em sua fase inicial, no Brasil do século XIX, ele poderia ser lido em qualquer lugar, por uma ou por várias pessoas, poderia ser alvo de uma leitura coletiva, alcançando, assim, até mesmo receptores analfa­betos - poderia ser, também, emprestado, vencendo limites, im­posições e dificuldades financeiras.

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A viabilização da leitura como ato social, da leitura por gru­pos, da audição do lido, faz do jornal o elemento revolucionário a . que se refere Machado de Assis.

EmA ordem dos livros, Roger Chartier ressalta a importân­cia do meio material do impresso para a efetivação de um proces­so receptivo:

Manuscritos ou impressos, os livros são objetos cujas formas comandam, se não a imposição de um sentido ao texto que carregam, ao menos os usos de que podem ser investidos e as apropriações às quais são suscetíveis. As obras, os discursos, só existem quando se tomam realidades físicas, inscritas sobre as páginas de um livro, transmitidas por uma voz que lê ou narra, declamadas num palco de teatro. 14

o suporte da escrita, então, influi diretamente no processo de recepção. O livro, ao surgir, incrementou uma elitização da leitura: quer voltado para o estudo, quer para o lazer, o livro demanda, em geral, uma leitura particular e silenciosa, a partir da qual o leitor dialoga tão só com o lido. O livro é objeto de status, de determina­ção do lugar social dos grupos que com ele são habituadas.

Luiz Costa Lima, em "Comunicação e Cultura de Massa" , afirma que, no século XIX europeu, há imensa quantidade de pu­blicações, entre jornais, romances-folhetim etc, mas não há, ainda uma efetiva "cultura de massa", uma vez que se mantém enorme distância entre produções culturais destinadas à elite citadina, ao homem urbano, e ao homem rural, por exemplo. Segundo ele, "A comunicação cultural tem suas centrais indicadas nos mapas das cidades: são os teatros e seus sucedâneos, os chás recitativos, os jornais matinais, as salas de concerto." 15 Isso significa que, na ótica do teórico em questão, nem a produção cultural que se que­ria voltada para novos e amplos segmentos sociais efetivava seus objetivos de circulação e consumo. Mas, já é um começo de mu­dança, já é um sinal de incorporação de frações sociais até então excluídas do circuito cultural.

Ao relacionar livros e jornais, Luiz Costa Lima tem um ponto de vista conteudístico: entre a adaptação de um dado assunto para um livro e para um artigo de jornal há uma boa distância, o que não impediria que "questões graves" fossem tratadas nos dois veículos. Na verdade, enquanto mídias da escrita, livros e jornais

14 CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVII. Tradução de Mary Del Priore. Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1994. p.8

l' LIMA, Luiz Costa. "Comunicação e Cultura de Massa". In.: MOLES, Abraham A. et alii. Teoria da cultura de massa. Introdução, comen­tários e seleção de Luiz Costa Lima. 4ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990. p 40

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A crônica na imprensa periódica oitocentista: Machado de Assis e a formação do público leitor

\6 CHARTIER, Roger. Op. cit., p.16

17 __ • "Do Livro à Leitura".

In.: -. et alii. Práticas da leitura. Tradução de Cristiane Nascimento. Introdução de Alcir Pécora. São Paulo, Estação Liberdade, 1996. p.96

têm funções, em geral, diferenciadas: pela periodicidade curta, pela freqüência da publicação, pela multiplicidade de assuntos enfocados em uma mesma edição, as folhas tendem a tratar pano­ramicamente o que noticiam, informando o público dos aspectos essenciais de cada fato; os livros, por outro lado, dão um enfoque verticalizado aos assuntos que abordam e isso, no mínimo, por uma questão de volume e extensão.

Segundo Roger Chartier, "O essencial é compreender como os mesmos textos podem ser diversamente apreendidos, maneja­dos e compreendidos" .16 Essa diversidade não implica, necessari­amente' marcas de hierarquização, não faz, por exemplo, o livro melhor que o jornal, mas aponta para a relação indispensável en­tre conteúdo e suporte material do texto.

Em "Do Livro À Leitura", Chartier trabalha com a questão da posse do livro e com a questão dos usos do impresso e das formas de apropriação do mesmo, colocando a história do im­presso como uma história das práticas culturais a ele associadas: ele expõe duas formas de abordagem da história do impresso e da leitura - a que enfoca a produção de textos e a que aborda a pro­dução de livros. O que importa para a investigação da leitura via produção de textos são as senhas, explícitas ou implícitas, traba­lhadas pelo autor, suas instruções ao leitor, as quais têm duas es­tratégias, a saber, inscrever no texto convenções sociais ou literá­rias e empregar técnicas que objetivam a produção de um deter­minado efeito:

Existe aí um primeiro conjunto de dispositivos resultantes da escrita, puramente textuais, desejados pelo autor, que tendem a impor um protocolo de leitura, seja aproximando o leitor a uma maneira de ler que lhe é indicada, seja fazendo agir sobre ele uma mecânica literária que o coloca onde o autor deseja que esteja. 17

Essas instruções, no entanto, se cruzam com outras, relacio­nadas ao suporte material da escrita e que envolvem questões tipo­gráficas, como disposição e divisão dos textos, ilustrações etc. Tal trabalho editorial, essa maquinaria externa ao texto, interage com ele, e traz implícito o tipo de leitor a que o impresso se dirige:

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Os dispositivos tipográficos têm, portanto, tanta importância ou até mais, do que os 'sinais' textuais, pois são eles que dão suportes móveis às possíveis atualizações do texto. Permitem um comércio perpétuo entre textos imóveis e leitores que mu­dam, traduzindo no impresso as mutações de horizonte de ex­pectativa do público e propondo novas significações além da­quelas que o autor pretendia impor a seus primeiros leitores. 18

o enfoque do suporte material da escrita abre, portanto, espaço para o social. Os protocolos de leitura implicados no im­presso indiciam os possíveis usos que cada grupo social pode fa­zer dele. Como afirma Márcia Abreu: "A leitura não é prática neu­tra. Ela é campo de disputa, é espaço de poder."19 A percepção da problemática envolvida no consumo do impresso implicou, desde seus começos, um investimento em estratégias capazes de abrir caminhos para que livros, jornais, folhetos, enfim, pudessem cir­cular produtivamente nas sociedades.

Faustino Xavier de Novaes, em tom bastante divertido, pu­blica em O Futuro, uma "Chronica", texto bastante interessante, do qual retiro o seguinte fragmento, para reflexão: "Um periódico que encerra cinco artigos, ocupando 40 páginas, e uma gravura, e que só desagrada pelo formato, é um excelente periódico. Falta­lhe só crescer, ou diminuir, e tudo isso poderá suceder com o tempo."20 Pode-se perceber que o cronista parece se dar conta da importância do suporte material do impresso em seu processo de consumo e apropriação: tamanho, quantidade de textos, de pági­nas, presença de ilustrações, localização das mesmas, relação en­tre o lugar do texto e o dos anúncios, enfim, são fatores decisi­vos, ao que tudo indica, na relação entre o bem cultural impresso e seu possível e desejado consumidor.

No século XIX brasileiro, ao que tudo indica, independen­temente de o escrito circular no livro ou no jornal, sua transfor­mação em moeda cultural de troca cotidiana foi objetivo comum a toda a nossa elite intelectual. O consumo da cultura impressa tor­nou-se capital nessa época. Aumentá-lo era prioridade, ao contrá­rio do desejo de Humberto de Campos, expresso no protesto de 1933, cuja abordagem deu início a este estudo. Para isso, era pre­ciso tornar essa cultura impressa não apenas um instrumento de educação distensa, informal: o consumidor educado dentro de de­terminados padrões passaria a exigir a permanência desses mes-

IS __ • Op. cit., p.98

19 ABREU, Márcia. "Prefácios: Percursos da Leitura". In.:-. (org.). Leitura, história e história da leitura. Campinas, Sp, Mercado das Letras, Associação de Leitura do Brasil; São Paulo, FAPESP, 2002. p.IS

20 NOVAES, Faustino Xavier de. "Chronica". In.: O Futuro: periodico litterario. Fundação Casa de Rui Barbosa, Rev20 1, V.I, n I, set.l862. p.1

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.:.. ~rônica na imprensa periódica oitocentista: Machado de Assis e a formação do público leitor

21 ASSIS, Joaquim Maria \, lachado de. "29 de outubro de 1893". In.: --o A semana. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre, W. M. Jackson Inc., 1957. V. I. p.409

"-. Op. cit., p.435

mos padrões. Ele teria as marcas dos textos que lhe eram impos­tos, até porque essa imposição não era explícita. Era preciso re­volucionar o horizonte de expectativas da época.

IH. Na impossibilidade de uma conclusão ...

No dia 29 de outubro de 1893, Machado de Assis publica, em A Semana, uma curiosa crônica. Trata-se da representação de uma conversa entre uma leitora insatisfeita e um cronista, que se afastara da coluna na semana anterior por problemas de saúde. A leitora reclama a presença do cronista, colocando sob suspeita a doença alegada e imputando ao texto a característica de soporífe­ro. 21 É uma leitora ousada, sem dúvida.

O espaço deixado vago por Machado de Assis na Gazeta de Notícias do dia 22 de outubro foi ocupado por um texto de Ferreira de Araújo, diretor do referido periódico. Houve, apenas, uma al­teração no título da seção usualmente ocupada pelo escritor fluminense: em lugar de "A Semana", "Uma Semana". Trocar a definição do "A" pela indefinição do "Uma" poderia dar ao leitor habituado à coluna uma idéia de exceção, camuflando a lacuna e, simultaneamente, exibindo-a.

Ferreira de Araújo demonstra grande empenho em descul­par-se com o leitor:

Doente o cronista, doente ou alistado em um batalhão de vo­luntários, voluntário ou preso sem noção de culpa, preso ou nadador barrigudo, força é que alguém o substitua por esta vez só, amigo leitor, que há tempos trazes o paladar apurado pelo manjar dos deuses, que todos os domingos te servem.22

O absurdo das desculpas evidencia a necessidade das mes­mas: somente por doença, guerra ou prisão o cronista poderia afastar-se do jornal, quebrando uma cadeia de publicações que simultaneamente criava e alimentava o horizonte de expectativas do leitor oitocentista. Era necessário ocupar o lugar deixado por Machado de Assis. Outra questão que ressalta do fragmento aci­ma: o leitor é um "amigo", alguém a quem não se poderia decep­cionar, um "amigo" que já se habituara a encontrar "manjares jornalísticos" naquela mesma seção do periódico, todo domingo.

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o hábito estabelecido pelo cronista machadiano parece ter um papel fundamental na interação do jornal com o receptor: resguardá-lo, ao que tudo indica, é essencial. Na crônica de 29 de outubro, em que retoma Machado de Assis, um outro aspecto des­sa necessidade de se criarem e alimentarem hábitos de recepção aparece no diálogo do cronista com a leitora ousada e irrequieta:

- Não, não me mande embora, deixe-me ficar ainda um instan­te. É tão bom vê-la, mirá-la ... E depoi's, advirto que estou ape­nas na tira oitava, e tenho de dar, termo médio, doze. - Vamos; fale por tiras. - Tomara poder falar-lhe por volumes, por bibliotecas. Não esgotaria o assunto: tudo seria pouco para dizer os seus feiti­ços e o gosto que sinto em estar a seu lado.23

o cronista parece ficar à mercê do consumidor: pede que este continue a lê-lo. Só que a advertência de que um determina­do número de tiras deveria ser preenchido, além de apontar para a obrigação profissional do jornalista - que deve ocupar um deter­minado espaço no papel, espaço este que lhe é prévia e sistemati­camente indicado - dá outra dimensão ao relacionamento escri­tor/jornal/público: o termo mediano desse circuito - o jornal -tinha sua organização particular, a qual precisava ser seguida pe­los dois outros termos - escritor e público, isso para que se esta­belecessem hábitos de consumo para a mercadoria adquirida, em­prestada ou ouvida, i.e., a fim de que o que estivesse impresso pudesse ser conhecido. Assim, o aparecimento repetitivo da mes­ma coluna, nos mesmos dias, em um dadO periódico, seria, de um lado, garantia de circulação para o jornal e, de outro, garantia de distração para o consumidor.

Dividir o espaço do papel impresso entre o texto literário ou não e anúncios de Semolina, espartilhos, máquinas de costura; usar o texto como moldura para uma ilustração central; conversar familiarmente com os leitores; publicar as seções sempre na mes­ma página e em dias pré-determinados; usar linhas separadoras de colunas e condutoras do olhar do leitor; trabalhar com tipos mai­ores para facilitar a leitura. 24 Todas essas estratégias, muitas delas simbolizando uma incorporação de práticas culturais auditivas ao espaço da escrita, funcionaram para persuadir, seduzir, envolver o receptor oitocentista brasileiro.

23 _. Idem, p.409

24 PIN A, Patrícia Kátia da Costa. Op. cit., p.149-162

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Todas elas indiciam o imenso valor cultural da página jornalística nesse processo de construção de hábitos de leitura e consumo do impresso, permitindo que se reflita sobre sua funcio­nalidade social, sobre como o jornal, enquanto suporte da escrita - literária ou não -, contribuiu para uma espécie de educação informal do público, tomando-se, até hoje, mídia privilegiada no reino da escrita, configurando-se como a alavanca de Arquimedes a que se referiu Machado de Assis, em 1859.

Referências

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o marido da adúltera, de Lúcio de Mendonça, ou as estratégias de publicação de um romance

como folhetim

Socorro de Fátima Pacífico Vilar (UFPB/Cnpq)

o marido da adúltera faz parte daquele rol de obras do século XIX que foram relegadas por certa história da literatura brasileira que "dividia o tempo em segmentos demarcados pelo surgimento de grandes escritores e grandes livros" (DARNTON, 1990, p. 132). No Brasil, além de esquecidos alguns livros, tam­bém o foram o suporte por onde circularam - predominantemente o jornal- e os leitores que os leram e participaram indiretamente da sua elaboração. É nosso objetivo portanto, trazer para o centro do debate tanto a figura de Lúcio de Mendonça, como escritor importante do século XIX, como também o seu romance e o pa­pel que o jornal desempenhou na formulação de um gênero literá­rio, fundamental para a formação da literatura brasileira, que é o romance-folhetim.

Para não fugir a essa tradição de escritor jornalista ou jor­nalista escritor tão peculiar ao século XIX, a carreira de Lúcio de Mendonça, autor de O marido da adúltera, objeto de análise des­te ensaio, esteve desde muito cedo ligada ao jornal. Sabe-se que, quando aluno do Colégio Pimentel, em 1864, fundou e manteve como redator e proprietário um pequeno jornal, A Aurora Fluminense. Em 1867, já na Corte, funda outro jornal A Tesoura, que é ilustrado. Na década de 70 passa a trabalhar no jornal A República, como tradutor e noticiarista, ao lado de Machado de Assis, José de Alencar, Quintino Bocaiúva, entre outros, convi­vendo assim com várias gerações de escritores. Depois da passa­gem pelo jornal Colombo do interior de Minas Gerais, Lúcio de Mendonça volta ao Rio de Janeiro em 1888 e funda o jornal O Escândalo, porta-voz do caráter militante desse autor: "Chama­se O Escândalo esta revista porque vivemos num tempo tristíssimo,

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delimitado, constrito, impregnado de convenção e de mentira tem­po que é escandaloso dizer a verdade. Pois havemos de dizê-la, nua e crua, em todos os assuntos, custe o que custar, doa a quem doer" (MENDONÇA, 1934, p.32).

Com o fim desse jornal, Lúcio de Mendonça passa a traba­lhar na a redação de O País e do Jornal do Brasil. No Rio, estabe­lece contato com outros escritores, entre os quais Pardal Mallet, Olavo Bilac, Luís Murat e Raul Pompéia. Com Machado de Assis, Medeiros de Albuquerque e outros, ele funda a "Panelinha", que consistia de encontros mensais, em que aproveitavam almoços e jantares para discutir interesses da profissão. Em 1889, outro lu­gar de reunião desses intelectuais, para um diário chá das cinco foi a redação da Revista Brasileira, onde Lúcio de Mendonça, agora membro do Supremo Tribunal Federal, teria ressuscitado a idéia de criar a Academia Brasileira de Letras, "a ser fundada ofi­cialmente pelo governo republicano". Desde então, a "Academia passou a ser tema de interesse dos debates dos presentes, que, concordando com Lúcio, iniciaram uma intensa campanha pelas páginas dos jornais em prol do apoio governamental na implementação do plano acadêmico" (RODRIGUES, 2001, p. 34). Talvez porque, como afirma João Paulo Rodrigues, o projeto ori­ginal de uma Academia patrocinada pelo Estado tenha falhado, o nome de Lúcio de Mendonça é muito pouco lembrado na criação da Academia, cabendo todo o mérito de fundador à figura Macha­do de Assis. Além do caráter de fundador, Machado de Assis foi responsável pela idéia equivocada, segundo João Paulo Rodrigues, de que a instituição tinha e tem caráter "apolítico": "Era [Macha­do de Assis] o exemplo maior de escritor que havia conseguido se manter puro, o que significava que conservara sua produção e sua postura afastadas da ingerência política ( ... )" (Idem, p. 60).

Apenas em 1901, em um jantar em que se reuniram vários escritores em um almoço oferecido por Lúcio, em homenagem ao lançamento do seu livro Horas do bom tempo, "Valentim Maga­lhães proclama-o, em público, 'o verdadeiro fundador da Acade­mia Brasileira" (Idem, p. 68). Sobre sua participação no surgimento da Academia, Coelho Neto assim comenta:

Lúcio era o mais corajoso e solícito dos aios da pobrezinha. Foi ele que a vacinou com a linfa da perseverança. Foi ele que

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I Sua obra consiste prin­cipalmente de livros de poesia (conf. MENDONÇA, 1934)e alguns trabalhos jurídicos, além da sua colaboração em jornal.

a curou da coqueluche, que lhe pôs ao pescoço o colar de âmbar para evitar as crises de dentição, que a batizou no templo das musas e que lhe incutiu na alma a grande fé, tônico que a forta­leceu para vencer os percalços da primeira infância ... "(Apud, MENDONÇA, p. 175)".

Foi no jornal Colombo, onde Lúcio de Mendonça trabalhou de março de 1879 a junho de 1885, que foram publicados os capí­tulos do folhetim O marido da adúltera, seu único romance l . Como a maioria dos jornais e folhas das cidades do interior, o pequeno jornal da província de Campanha, do estado de Minas Gerais, tan­to circulou por todo o estado e país, como fez circular em suas páginas matérias e artigos dos principais jornais da corte e de ou­tras províncias. O certo é que este romance só foi publicado em livro em 1882, pela tipografia de Oliveira Andrade, proprietário do jornal Colombo.

Lúcio de Mendonça dedica O marido da adúltera, que cha­ma de "ensaio de romance", ao colega Dr. Esperidião Eloy de B. Pimentel Filho, a quem confessa, pedindo a benevolência do ami­go que do romance nada pode esperar como obra de arte, uma vez que fora

Escrito para folhetim do Colombo, quase sempre à hora de fechar-se o correio da Campanha, e impresso em folha de livro logo depois da publicação periódica, sem tempo de corrigir-se, sem prévia leitura do trabalho completo, o que deu causa a numerosas retificações posteriores ( ... ) (p. 22)

Na sua dedicatória, Lúcio de Mendonça encena uma con­cepção bastante corrente no século XIX acerca do jornal. Moran­do em São Gonçalo, ele enviava pelo correio o folhetim a ser publicado no jornal Colombo, da cidade de Campanha. Assim, o texto escrito para o jornal é sempre fruto da urgência, redigido ao calor da hora, sem burilamento ou correção, o que caracteriza o demérito com que foram tomadas as publicações em jornais. Ao mesmo tempo, a divulgação de um romance em jornal era essen­cial para os autores, pois ele dava projeção aos folhetins, muitos dos quais, rapidamente transformados em livros, de onde eram apagadas as marcas que lhes dava o jornal. É o que se observa no depoimento de Coelho Neto, autor de obra tão volumosa que, ao

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contrário da pressão sempre alegada como transtorno pelos escri­tores, sentia grande prazer enquanto escrevia, mas se assustava depois com os erros ali encontrados: "Tenho um processo de tra­balho constante. Só as novelas foram acabadas e retocadas antes de serem entregues aos editores. ° resto da minha obra tem sido escrito dia a dia para os jornais. Assim fiz a Capital Federal, o Rei fantasma, O turbilhão" (In RIO, 1907, p. 56).

Talvez porque tenha lhe faltado essa revisão é que no ro­mance de Lúcio de Mendonça percebemos de forma bastante evi­dente as características do romance-folhetim, revelando, como está implícito nas palavras do autor, que o jornal imprime um modo de escrever e constitui um gênero que lhe é bastante peculiar. Trata­se do romance-folhetim, cujo "texto é definido externamente pela forma como é apresentado: o fragmento cotidiano do jornal que vai por sua vez constituindo fascículos que levam ao todo do vo­lume" (MEYER, 1996, p. 159). Em outras palavras, segundo Antonio Hohlfeldt (2003, p. 40), citando Lise Queffélec, a carac­terização do romance-folhetim francês possui as seguintes carac­terísticas do ponto de vista da sua estrutura e circulação:

Seu suporte é o jornal e, por isso, ele deve possuir atualidade em seus temas; divulgado na seqüência diária do rodapé do jornal, exige rapidez de escrita mas, ao mesmo tempo desen­volvimento do próprio enredo, exigindo por vezes o retomo de alguma personagem ou não valorizando determinada figura para a qual o romancista havia reservado um papel de maior signi­ficação na narrativa.

Há ainda que se considerar o romance-folhetim a partir do tipo de conteúdo e do público que o lê. Assim temos que havia os romances para homens, o romance para mulheres e aqueles desti­nados a crianças e jovens; naqueles dedicados às mulheres, como é o caso de O marido da adúltera, prevalecem os de narrativa "lacrimenjante ou sentimental", as narrativas de "alcova", cujo relato principal diz respeito à traição (HOHLFELDT, p. 45).

Mesmo correndo o risco de toda a generalização, podemos afirmar que O marido da adúltera e A conquista de Coelho Neto são uns dos raros romances do século XIX que deixam explícita essa íntima relação entre jornal e literatura. Em A conquista, Co­elho Neto tem como objetivo mostrar o jornal e sua importância

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nas conquistas e na "odisséia" de toda uma geração de escritores, a quem dedica o livro. Como ele mesmo afirma na dedicatória, dele é apenas a memória, que utiliza para tratar da vida de todos os que "venceram" e não perderam a esperança. Seu romance traz para o centro do debate, o modo como alguns dos principais inte­lectuais da época se utilizaram e trabalharam no jornal. Entre eles, Aluisio de Azevedo, Arthur Azevedo, Olavo Bilac, José do Patro­cínio, Pardal Mallet, Guimarães Passos e Paula Ney (OLIVEIRA, 1985, p. XIII). No romance A conquista, o autor encena esse co­tidiano de trabalho através do personagem Anselmo, que todos identificam com ele próprio. Nele, Anselmo afirma que "levanta­va-se muito cedo, tomava o seu banho e descia para a cidade, sentando-se imediatamente à mesa de trabalho. Escrevia o artigo de fundo, a Boêmia, romance au jour le jour, a crônica do dia, redigia o noticiário e todas as seções" (p.21O).

Em A conquista, a literatura ganha um suporte e uma materialidade e os escritores deixam de ser príncipes de poetas e passam à condição de empregados e trabalhadores. Como afirma Cristiane Costa em Pena de aluguel, esse brilhante estudo sobre a relação entre os escritores e o jornal, "o jornalismo também esta­va longe de ser uma profissão bem-remunerada. Para conseguir melhor renda, até os mais famosos escritores eram polígrafos obri­gados a se dividir por vários órgãos de imprensa" (2005, p.55). Mas apesar da presença constante da literatura e do jornal, não há na construção do romance os elementos próprios a outros livros do mesmo autor, construídos para e no jornal, como Capital Fe­deral, o Rei fantasma, O turbilhão, acima referidos.

Segundo Flora Sussekind, em um dos raríssimos estudos motivados pelo romance O marido da adúltera, "o papel prepon­derante do jornal na organização da narrativa e como elemento que se faz referência a todo o momento" (1993, p.219). O roman­ce Marido da adúltera é construído por cartas da personagem central Laura e do amigo de Luís, seu marido, Otávio à redação do jornal O Colombo. Denominadas respectivamente de "Cartas de uma desconhecida" e "As confidências do morto". Em ambas,

o autor utiliza mais do que as cartas aos leitores do jornal, pois faz uso das cartas pessoais de Luís dirigidas ao amigo e de cartas de Laura a amiga Malvininha, bem como de uma cópia de seu livro de lembranças. Todo esse artifício próprio ao romance-folhetim,

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conforme analisaremos a seguir, serve para contar a história de uma moça do interior que, ao se mudar para o Rio de Janeiro, deixa-se seduzir pelo primeiro rapaz que encontra. Baseado no determinismo, o autor tenta provar a influência da família no cará­ter de Laura, a personagem principal. Aliás, é a família quem vê em Luís, jovem bacharel, a oportunidade de tramar o casamento da filha, a fim de "reparar" o erro do passado. Luís, por sua vez, ama Eugenia que é obrigada a casar com um jovem rico. Laura depois de casada vai com o marido para o interior, onde passa a traí-lo, movida pelo tédio e pela falta de amor. O último caso de Laura será na casa da irmã, que era uma cortesã, famosa pelos rui­dosos casos amorosos com homens ricos. Numa rocambolesca tra­ma, Luís toma conhecimento do adultério e se mata em seguida.

Em O marido da adúltera, do título ao leitor implícito, do uso que a narradora faz do pseudônimo, passando pelas cartas em que são contadas as desventuras da adúltera e do seu marido, observamos as marcas explícitas dessa relação. Na verdade, até mesmo o capítulo inicial, "À redação do Colombo" onde Laura pede ao redator para que publique por sua vez, reproduz o argu­mento do primeiro capítulo de Os dramas de Paris, de Ponson du Terrail, onde este vai contar como submeteu um manuscrito ao diretor do jornal La Patrie, que constava de mais de 100 folhetins, (MEYER, 1996, p.147).

Entre as tantas razões para se justificar o pouco caso que a história da literatura teve com a contribuição do jornal para sua consolidação, pode-se incluir a rígida divisão que colocou em la­dos opostos jornalistas e escritores, ou que identificou a literatura com a "alta cultura e o jornalismo com a cultura de massa". Cristiane Costa tenta retomar e compreender os laços que uniram o jornalis­mo e a literatura e indagar sobre essas entidades que são autor jor­nalista e autor literário e de "como e quando os dois campos se constituem em separado. Para ela, "somente na década de 20 do século passado é que a literatura (ou, antes, o beletrismo) será ex­pulsa do jornal", mas "essa separação será tão naturalizada que se esquecerá que as duas atividades começararnjuntasem 1808" (2005, p. 14). Para analisar essa relação nas primeiras décadas do século XX, a autora toma como base o célebre Momento Literário, de João do Rio, especificamente uma das cinco perguntas: "O jornalis­mo, especialmente no Brasil, é um fator bom ou mal para a arte

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literária?" (Rio: 1907, p. XVIII). As respostas, sejam em forma de cartas, seja através das entrevistas, foram publicadas primeira­mente na Gazeta de Notícia - seguindo um caminho bem conhe­cido do texto literário - e só em 1907 tiveram sua publicação em livro. Segundo nota de seu editor, os depoimentos fizeram tanto sucesso, "que os principais jornais dos principais Estados não du­vidaram em aplicá-los às respectivas literaturas" (Idem, p.VII).

Em geral, tinha-se uma visão ambígua do jornal. Ao mesmo tempo em que se reconhecia sua importância para a formação da literatura brasileira e para a consolidação e reconhecimento da carreira do autor, revelava-se o que consistia a queixa mais co­mum: o teor superficial, ligeiro e pouco profundo dos textos pro­duzidos em jornal, marcados pela necessidade de serem produzi­dos de forma rápida e cotidiana, fazendo com que os jornalistas escrevessem sob pressão. Acreditava-se que, movidos pela pres­são, dificilmente conseguiriam produzir algo de qualidade. Nada diferente do que afirmava, em 1859, Machado de Assis na crônica "O folhetinista". Para ele, o folhetinista é uma planta européia que se alastrou pelo mundo afora "por onde maiores proporções to­mava o grande veículo do espírito moderno, o jornal" (1986, p. 967). Ele não tem dúvidas que o folhetinista é uma "nova entidade literária", que une a "arte do útil e do fútil, o parto curioso e singular do sério, consorciado com o frívolo", com dias tecidos a ouro, a não ser por aqueles em que tinha que escrever, quando "passam-se séculos nas horas que o folhetinista gasta à mesa a construir a sua obra". Essa dificuldade, segundo o autor, origina­se do "cálculo e do dever". Essa imagem do folhetim - que será o espaço por excelência do literário -, do romancista, do poeta e do jornal criada por Machado de Assis é modelo de uma concepção que se fortalecerá durante o século XIX. Esta lógica do literário como o fútil útil, parece nortear a personagem José do Patrocínio do romance A conquista, de Coelho Neto, que ao propor a cria­ção de um jornal, inclui a crônica literária, mas com a ressalva de que para ele, as "duas coisas sérias do jornal são o noticiário e a gerência" (COELHO NETO, 1985, p. 150).

Na desvalorização do texto publicado em jornal, está implí­cita a valorização do livro pelo tempo que se lhe podia dispensar na revis~~, na correção dos erros tipográficos e até mesmo para evitar-se algo muito comum aos folhetins que era a inverossimi-

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lhança, muitas vezes constatada na morte de um personagem que voltava à trama muitos meses e capítulos depois, em um sinal cla­ro de que o autor não lia o escrevia e era traído pela memória. Na verdade, o escritor de folhetins contava com a desatenção do seu leitor, ou leitora, como sempre explicitou Machado de Assis, uma vez que estes eram publicados emjornais que circulavam em dias alternados, às vezes semanalmente, outras vezes quinzenalmente. É o caso do jornal Colombo, onde primeiramente foi publicado o romance em questão, que saía apenas nos dias 2, 8, 14,20 e 26 de cada mês (MENDONÇA, 1934, p.23). Mesmo que fosse publica­do em dias espaçados, os leitores do jornal, a quem Lúcio de ~len­donça, editor do Colombo e personagem do romance não queria desagradar, prezavam a seqüência, o desenrolar de toda história e a perspectiva de desenlace final, razão por que ele temeu que a carta que dava início àquela história não fosse seguida por outras: "publica-se a primeira carta (que ela havia dirigido aos redatores para que fosse publicada). Mas as outras? Mas publicar a primeira e ter talvez de seqüestrar as seguintes? É nada menos que excitar a curiosidade dos leitores e deixá-la insaciada: má ação em todo caso, talvez desgosto para os assinantes, descortesia com certe­za" (p. 25). A preocupação com os leitores revela as injunções que este começava a exercer no tocante às assinaturas dos jornais.

Observe-se que não há por parte do redator do jornal qual­quer manifestação no sentido de não publicar a carta. Por isso, que no gesto de Laura da certeza da publicação de suas cartas, assim como no do amigo de Luís o outro narrador da história, revela-se uma imagem bastante próxima do que ocorria nos jor­nais: esse era um espaço propício a vários gêneros literários2 • À parte todos os propósitos políticos e libertários do jornal, dirá Silva Ramos em O momento literário, há uma "feição essencial­mente mercantil das folhas diárias, revelada nas pequeninas preo­cupações de furos, curiosidades de senhoras vizinhas, folhetins de sensação, ao paladar das criadas de servir ( ... ) (1907, p. 179)". Deixando de lado os preconceitos de Silva Ramos, suas observa­ções talvez nos ajudem a entender por que alguns escritores trata­ram de "retirar" de seus textos as marcas do jornal. Afinal, as folhas e jornais eram muitos e toda a colaboração era bem-vinda. Como sugerem as palavras do editor Lúcio de Mendonça em rela­ção ao desejo de Laura de ter suas cartas publicadas: "aí vão para

, Para Flora Sussekind (1993, p. 2 I 6), o fato de o missivista ir se tornando o narrador principal do relato, deve-se à simpatia do diretor de O Colombo, uma vez que este não poderia deixar de se aliar a "alguém que encara o jornal como um espaço polêmico, plural, à semelhança da imagem liberal que sonha para0 país".

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a imprensa as suas cartas, e irão pelo mesmo caminho as que vie­rem. Se, porém, como é mais provável, Laura de M. quer fazer romance sentimental, ainda que verdadeiro, que o faça embora; só temos que lhe agradecer a colaboração, que é interessante" (p. 26). Não havia seleção, nem critérios para a publicação dos textos no jornal e grande parte do que se publicava era ou anônimos, ou sob pseudônimos.

Como argutamente observa Flora Sussekind (1993), o jor­nal exerce no romance o papel de protagonista, pois que foi atra­vés dele que Laura conheceu Luís Marcos, naquilo que era muito comum: os bacharéis iniciarem (muitos evidentemente não conse­guiram passar dos anônimos e da "colaboração solicitada") sua carreira literária, publicando em jornais de São Paulo, o que foi o caso do próprio Lúcio de Mendonça. Laura "já conhecia o nome de Luís Marcos, e sabia de cor muitos versos dele publicados em folhas de São Paulo que o bacharel mandava à família" (p. 59/60). O jornal era O Apóstolo lido não só por Laura, mas por sua amiga beata que também já conhecia o rapaz de nome e lamentava que ela viesse a casar "com um inimigo da religião" (p. 99). Há tam­bém o episódio, já notado por Flora Sussekind, em que Laura, planejando um futuro na Corte para ela, imagina uma carreira jornalística para o marido para a qual tinha os pré-requisitos ne­cessários: "tinha amizades no jornalismo fluminense, podia obter que o tomassem para colaborador de alguma das folhas diárias" ... (p. 123). Há inclusive um momento irônico, visto pelo próprio Luís, minutos antes de ele mesmo ler em um jornal a sua nefasta histó­ria. Ao entrar em uma barbearia, enquanto esperava viu um rapaz "muito embebido na leitura de umjornal do dia, em que colabora­vam escritores novos. Imaginei pelo interesse, que estaria lendo algum artigo dele próprio" (p. 148). É através da leitura de jornais que Luís toma conhecimento da traição da mulher. É também pelo jornal que seu amigo se inteira da morte dele. No jornal, ele reco­nhece a história de Luís e identifica no pseudônimo a verdadeira autora do folhetim.

Mais que isso, o jornal era o lugar das disputas amorosas, palco dos amores impossíveis, dos amores risíveis, revelados numa guerra de textos nem sempre tidos por "literários", seja através de poemas amorosos - muitas vezes em forma de carta - seja em trovas populares, mas todos de uma forma preponderantemente

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marcados pelo anonimato, escondidos pelo pseudônimo, recurso utilizado por praticamente todos os escritores e muitos leitores que viam seus textos publicados, como fez Laura, com o nome Ângela do folhetim que Luís leu. Dentro da narrativa mesma, per­cebe-se que anteriormente esta história, que era lida através de cartas, veio a público, em um jornal, quando um "amigo literato distinto" propôs a Otávio que se revelasse a traição de Laura, "num conto engenhoso, que só os interessados entendessem" (p. 145). Outro uso para o jornal também está descrito no romance. Trata-se de uma fala de João, padrinho de Laura, inconformado com o fato de sua família não lhe ter procurado quando passaram aperto financeiro: "- Diabo! - dizia com voz velada de comoção. - Por que não me escreveram ... para toda parte do mundo ... ainda que fosse pelo jornal? .. "( p. 53).

Muito nos ajudaria poder consultar os originais onde foi publicado pela primeira vez O marido da adúltera, para determi­nar com precisão o número de exemplares e meses em que foi dado a público. Mas pela estrutura dos capítulos e a informação de que O Colombo saia pelo menos 5 vezes por mês, podemos nos aproximar desse tempo real. O livro é composto de 14 partes, dividas entre as cartas que Laura escreve aos leitores do jornal e aquelas que escreve a sua amiga Malvininha, além das memórias do seu livro de lembranças, que formam os IX capítulos denomi­nados de "Cartas de uma desconhecida"; a outra parte denomina­da de "As confidências do morto", refere-se às cartas do narrador ao jornal e àquelas de Luís que lhe chegaram às mãos. Ao todo são 6 cartas distribuídas em 3 capítulos. Essa variedade de gêne­ros e multiplicidade de vozes, ou "virtuosismo rocambolesco" como observa Marlyse Meyer, ao analisar os romances de Poison du Terrail, são constituídas pelas "famosas gavetas características do romance arcaico ... ". Segundo a autora (1996, p. 159):

Internamente o texto apresenta os mais variados processos nar­rativos, que emprestam todos os modelos para compor uma vertiginosa construção em abismo estruturada em embuste e ardil como forma de articulação do enredo: embuste de verda­de, embuste de mentira, vítimas de mentira (cúmplices e pré­informados) etc.

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Nessa "construção em abismo", há o embuste da narradora, "ardilosa" como mulher e também como narradora; se ela enga­nou o marido, engana agora os leitores. Primeiramente, faltando com a verdade, quando surge um outro narrador, amigo de Luís, o marido traído, que resolve contar a verdadeira versão da histó­ria. História do passado aliás que ele conhecia em detalhes, mas que resolvera ocultar do seu amigo; era o segredo de Laura, seu envolvimento com o jovem oficial rio-grandense. Se por um lado Laura escreve para que seu exemplo seja "lição proveitosa a algu­mas outras", supondo serem as leitoras quem liam os seus escritos e os romances-folhetins, por outro, o missivista duvida que seja uma mulher aquela quem escreve as cartas. Trata-se de outro embuste, agora com relação à própria escrita: "Digo que deve ser um homem porque não é de pena feminina aquele estilo embebido de realidade; o mais que digo vê-se pela desapiedada nudez em que se revelam os fatos vergonhosos dessa vida de mulher" (p. 73). Não se trata de falta de capacidade ou de talento para escre­ver um romance, mas da necessidade que estes romances têm do engodo, do ardil para o "bom" andamento do folhetim.

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Considerando que a maioria das cartas e dos capítulos corresponde ao espaço do jornal destinado ao folhetim, à exceção do capítulo VI, muito longo, que provavelmente foi dividido em sua publicação, temos que este romance levou algo em torno de 4 meses para ser publicado. Como um bom romance-folhetim, es­crito quase sempre no limite da hora, como sugere a dedicatória do autor, O marido da adúltera possui um "mistério do passado" (MEIYER, 1996) que vai nortear toda a trama. Primeiramente, em relação à própria Laura que esconde do marido o fato de já haver tido um relacionamento no passado, o que na moral oitocentista já se constitui como um adultério; Luís Marcos por sua vez amava Eugênia que casou com um homem rico. Em meio a esses pequenos segredos, há um maior que não é o adultério, nem o motivo pelo qual ela o pratica, mas a pergunta principal: teria, portanto o suicídio de Luís Marcos relação com esse episó­dio? Teria o marido tomado conhecimento da traição de Laura? Como se deu a traição? Este era o verdadeiro mote para o desen­rolar do folhetim.

Contrariando o estereótipo do folhetim sobre adultério, nesse romance a adúltera não é punida com a morte, nem com a reclu-

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são, porém, sua "falta"deveria ser reparada com a expiação públi­ca do seu remorso. A narrativa tem início com a personagem Laura de M. justificando a publicação de sua história como sendo uma forma de provar aos amigos dele que agora compreendia, "ainda que muito tarde, o homem honrado que foi [seu] marido - para desgraça sem remédio e para meu desesperado remorso" (MEN­DONÇA, 1974, p. 23)3. Mas o narrador faz questão de mostrar ao leitor que se trata de mais um engodo dela, posto que depois da morte do marido, "só depois de gasta e repelida, tendo descido toda a escala da degradação, é que se foi refugiar na província se na devoção, refugium peccatorum", onde passa a escrever sua história (p. 152).

Pois qual não é a surpresa do leitor contemporâneo - que pode voltar as páginas do texto e confirmar que o marido estava morto quando ela deu início à narrativa - quando no último capí­tulo, surge uma carta do marido de Laura, o dr. Luís Marcos de Lima, ao missivista narrador em que conta como tomou conheci­mento da traição da mulher. A citação é longa, mas será funda­mental para acompanharmos como a narrativa construída com esses fragmentos diários não tem compromisso com a verossimilhança, mas com movimento vertiginoso da elaboração "simultânea":

Na estação, comprei as folhas do dia, a Gazeta, o Jornal, a tal folha dos rapazes. Na travessia fui lendo a Gazeta; no ferro­carril, abri o jornal, e embrenhei-me nas correspondências da Europa até que me faltou luz. A poucos quilômetros da esta­ção terminal, abri o jornalzinho. Atraiu-me o folhetim .. .\ngela, assinado por um pseudônimo auspicioso; mas , à proporção que me adiantava, a leitura ia ganhando para mim um interesse terrível. Ângela era um feliz retrato de Laura, completo. minu­cioso, desenhando até um imperceptível defeito que ela tem no lábio inferior. O marido, designado apenas por doutor, era eu, visto através de um baixo ódio que eu não conhecia (p. 149).

Voltemos pois ao primeiro capítulo como leitores da narra­tiva integral, publicada em livro, desconfiados do fazer folhetinesco. Nele, a protagonista dirige sua carta aos leitores do jornal Colombo, tempos após a morte do seu marido. Como se observa na passa­gem acima, a história que Luís lê, a mesma história publicada em o Colombo, está contada em outro jornal, o tal jornalzinho "em

'.-\ partir dessa citação, fart; referência apenas ao número da página do romance de Lúcio de \1endonça.

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'J marido da adúltera, de Lúcio de Mendonça, ou as estratégias de publicação de um romance como folhetim

que colaboravam escritores novos"(p. 148). Portanto, temos aqui duas possibilidades bastante plausíveis em se tratando de um fo­lhetim. Primeiramente, o folhetim Ângela, não representaria uma outra história apenas parecida com a sua, como somos quase obri­gados a considerar. Mesmo cor' a total inverossimilhança desta passagem, esta seria a mesma história escrita por Laura com a finalidade de precipitar o fim trágico e intensificar embuste e o ardil da personagem. Nesse caso, levando em conta a forma de escrever e ler um folhetim, a coerência não se daria com os capí­tulos iniciais, mas com aquilo que tinha sido recentemente publi­cado, pouco importando se o que se passava naquele momento diferia do início do romance. A citação acima é do último folhe­tim, separado do clímax da narrativa por uma cópia de carta, em que com tom momo, Luís se despede do amigo narrador e confidencia o amor impossível que nutria por Eugenia, bem como o sofrimento ao se despedir dela. Esse capítulo, referente à quinta carta das "Confidências do morto" é precedido pela "Cópia do meu livro de lembranças", onde Laura, sem nenhum pudor ou culpa - diferentemente do que afirmava no primeiro capítulo -narra sua aventura com o jovem estudante de medicina, na man­são da sua irmã em S. Lourenço, tal qual descrito pelo folhetim Ângela. O capítulo do folhetim termina com a inesperada viagem do marido e a possibilidade de ela passar três dias e três noites com o amante.

Segundo, a outra possibilidade, bastante plausível do ponto de vista do romance-folhetim, é a de Otávio ter levado a cabo a sugestão do amigo "literato distinto" de revelar tudo a Luís, atra­vés "de um conto engenhoso, que só os interessados entendes­sem", e que foi publicado no jornalzinho lido pelo marido traído. Seja qual for a solução encontrada pelo autor, ambas, são perfei­tamente adequadas ao desfecho de um folhetim publicado emjor­naI. O importante para a ação deste tipo de romance é que ele descobrisse os atos da mulher. Descobri-lo pelo jornal então, é uma forma de negociar o sentido do texto, diminuindo a assimetria entre este e o leitor (ISER, 1999, p. 28), favorecendo a produção de sentido do qual o leitor também participa, haja vista que ele está lendo a mesma história também numa folha de jornal. Dessa forma, temos aqui uma estratégia sabida dos escritores do século XIX, que pela boca da personagem Teixeira, médico e filósofo de

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A conquista consiste em oferecer ao público leitor que "está ainda no período infantil do deslumbramento", os romances preferidos que "são os de complicado enredo, os magnificentes, os emara­nhados que não passam de ampliações de contos de fadas para crianças grandes. Não há ainda o critério estético, não sei se pos­so dizer assim. O leitor não se preocupa com a substância nem com a forma; a inverossimilhança é o seu ideal, quanto mais irre­al melhor" (COELHO NETO, p. 132, Grifos nossos).

Filiado à estética realista, O marido da adúltera, ao mesmo tempo em que "aumenta a complexidade do espaço de jogo" (ISER, 1999, p. 69), ao apresentar a trama sob vários olhos, precisa de alguma forma manter presente o contexto citado, na referência implícita que faz a outros romances do gênero. Dessa forma, o adultério, ou a tese naturalista que o romance tenta provar - a de que o caráter da personagem foi forjado pela herança familiar e pelas condições do meio - compreende a "citação" da "alta litera­tura", aliada aos ingredientes fundamentais do "baixa literatura" característica do romance-folhetim, publicado no jornal. Assim é que, para Lúcio de Mendonça, editor do jornal e personagem do romance, a primeira carta de Laura revela um "caso literário dos mais atraentes e dos menos embaraçosos" numa alusão explícita a um assunto comum a esse gênero de romance, ao mesmo tempo em que ela "por mais que nos queira prevenir em sentido contrá­rio, é, apesar de sua desgraça, ou por amor dela própria, uma romântica. Sinto dizer-lho: mas está se vendo ... " (p. 25). Assim, ao considerá-la romântica, o autor traz para dentro do texto ou­tras personagens de romances realistas, por sua vez, leitoras de folhetins e romances românticos, cujo paradigma é a personagem Madame Bovary, aludida seja pelo adultério, seja pelo tédio que sentia quando passou a morar em B. depois do seu casamento, como relata em carta para a amiga Malvininha:

Malvininha, está decidido: a tal roça, que os senhores poetas nos impigem como um ninho de tranqüilas felicidades, é um mar morto de tranqüila pasmaceira, de inesgotável aborreci­mento! [ ... ] Mas as horas vazias de trabalho precisavam ser cheias de outra equivalente ocupação se é que outra assim existe; e não o eram.

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Desta falta me veio o tédio, que é caminho certo da perdição para as naturezas imaginativas, como infelizmente é minha vida Cp. 120)

Os amores de folhetim e o adultério estão presentes tam­bém na leitura que o narrador, amigo de Luís, faz do Processo Clémenceau, de Alexandre Dumas Filho e discute com Luís e Otávio, no tempo em que eram estudantes em São Paulo. Nele, o marido adulterado mata a adúltera, uma jovem que ele mal conhe­cia, mas com quem resolvera casar. O narrador defende a conduta do marido traído. Já Luís argumenta de forma contrária, justifi­cando que como o homem casara com sua fantasia - já que não conhecia a família, nem a origem da mulher - fora ele e não ela quem traiu. O fato é que Luís Marcos, ao acusar o marido que mata a adúltera, está se condenando, assumindo para si toda a responsabilidade pelo que viria a fazer dali a dois anos. Suas pala­vras são ao mesmo tempo antecipação e excesso folhetinesco na medida em que toma mais "vil" a traição de Laura que o enganou antes do casamento; ele já é uma "vítima da verdade" antes mes­mo de ela vir à tona, pois se este o não previu, se o não evitou, é com certeza, culpado (p. 76).

Ao contrário do narrador, Luís Marcos vê como única saída para o marido traído do Processo Clémenceau, o "dever de ma­tar-se". Otávio, seu amigo e narrador, embora fique sabendo do segredo de Laura, evita escrever para o amigo contando, na espe­rança de encontrá-lo em breve. Mas os ardis supostamente mon­tados pela família dela para que passe a noite com Laura e o casa­mento de Eugênia, seu verdadeiro amor, precipitam e exigem dele o casamento. O amigo por sua vez, o sujeito pré-informado a qual se refere Marlyse Meyer, toma-se cúmplice do passado de Laura, levando o amigo a ser vítima da mentira. Porém, ao narrar a histó­ria, tenta de alguma forma justificar aos leitores de o Colombo a sua atitude.

Outra estratégia de romance folhetim trazida para este ro­mance diz respeito ao passado do próprio Luís Marcos. Este tam­bém tinha um segredo que nunca chegou a conhecer. Na segunda carta do seu amigo, ficamos sabendo "que a família a que Luís, enjeitado, apenas julgava pertencer por adoção e caridade, era sua pelo sangue, e a herança do homem que o criou, renunciada

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por ele em favor dos colaterais, não era mais do que uma restitui­ção, e desfalcada, da herança do próprio pai". Assim, quando mais tarde o tio movido pela culpa, na tentativa de reparar seu erro, instituiu Luís seu herdeiro universal, este sem o saber repudiou a herança num gesto heróico e de desprendimento.(p. 82).

Outro aspecto típico do folhetim é o título que nos remete diretamente ao assunto tratado, sem as sutilezas machadianas de nomear D. Casmurro um romance sobre adultério. Nesse caso, o título é até redundante, pois segundo Marlyse Meyer, o adultério é sempre do gênero feminino (1996, p. 253). Na verdade, esse título revela uma das nuances dos romances-folhetins, publicados em jornais, que antecipavam o lançamento de um novo romance, a poucos dias de finalizar o que estava em publicaçã04 • Muitas vezes, esses anúncios vinham até mesmo sem o nome do autor, o que revela a importância de um título direto, chamativo, que ante­cipasse para o leitor de folhetins o teor daquilo que iria ler como algo já conhecido. Assim foram Anjos e demônios, de Aléxis Bouvier, Os companheiros do crime, E. Chavett, A carne de Os­car Metinier, Caixão Negro de George Pradel, entre tantos. Coe­lho Neto trata desse aspecto quando conta a João do Rio a histó­ria do seu livro Rajah de Pendjab. Como estava precisando de dinheiro propôs escrever um folhetim para substituir aquele que fora perdido pela Gazeta. Sugeriu como título O príncipe encan­tado, o que não foi aceito por se tratar de um "'título velho". Sugeriu Rajah de Pendjab, que foi aceito e proposto para dar início em dois dias: "E a reclame foi feita para um romancista francês, de que a Gazeta deu o retrato reproduzindo a cara do Humphreys" ... (RIO, 1907, p. 57).

Em seu ensaio, "O romance epistolar e a virada do século" Flora Sussekind (1993, p. 211) chama a atenção para o fato de que "o romance brasileiro também passou ao largo da trilha epistolar", razão pela qual ela dedica seu estudo a dois exempla­res desse gênero: O marido da adúltera e A correspondência de uma estação de cura de João do Rio, de 1918. Embora escassa no romance, a carta freqüentou com muita assiduidade o jornal, prin­cipalmente nas polêmicas e debates, como aquela que travam Laura e Luís pela versão verdadeira da história. Na carta cabiam os vári­os tipos de texto literário: poesia, narrativa,"ensaio". Pelo menos nos jornais paraibanos, desde 1854, encontramos cartas polêmi-

4 Quando faço referência à circulação do texto literário em jornais, ela diz respeito aos jornais paraibanos nos quais desenvolvo pesquisa. Faltam­me dados sobre os jornais que circularam no Rio de Janeiro, mas creio que o processo verificado nas Províncias repetia aqueles da Corte.

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cas, de caráter político e cartas mais pessoais, como aquelas que Laura, Luís e seu amigo escrevem. Ainda está por se fazer uma pesquisa sobre os gêneros utilizados pelos jornais, que foram apa­gados depois de sua publicação em livro.

Ein uma nota de Vida literária no Brasil- 1900, Brito Bro­ca informa que o gênero epistolar tomava-se comum em algumas revistas, entre elas O Pirralho (1911 - 17) e que aquela era uma voga francesa(BROCA, 1958, p. 229). Exemplo dessa utilização da carta pelo cânone da literatura brasileira, é o das cartas escritas por Machado de Assis que, não se adequando aos propósitos dos priorizados por Afrânio Coutinho, organizador de suas obras completas, prefere juntar todas sob o epíteto de Miscelânea, nome bastante apropriado, pois que sob essa rubrica se enquadrava toda a sorte de escritos. Mas o certo é que nessa Miscelânea se inclu­em várias cartas, entre as quais "Carta à redação da imprensa aca­dêmica", publicada no jornal de mesmo nome, de São Paulo, cujo teor visa responder a críticas que foram feitas a sua comédia Ca­minho da porta. Outra, dirigida a Henrique Chaves e publicada na Gazeta de Notícias, faz o necrológio de José Telha Ferreira de Araújo. Há ainda outro exemplo clássico do uso de cartas no jor­nal, que são aquelas que deram a José de Alencar notoriedade, quando começou a escrevê-las sobre a Confederação dos Tamoios, publicadas em 1856, com o pseudônimo de Ig, no Diário do Rio de Janeiro, nas quais critica o poema épico de Domingos Gonçal­ves de Magalhães, dileto do Imperador e considerado então o maior poeta da literatura brasileira (LIRA NETO, 2006).

Na verdade, a carta é um dos elementos fundamentais para uma das "marcas sui generis"do folhetim que é o exagero amplifi­cador. A perspectiva levantada por Marlyse Meyer (Idem, 160), na análise da obra de Ponson du Terrail, e bastante apropriada ao romance de Lúcio de Mendonça, demonstra que "um bom exem­plo desse excesso são as cartas, as narrativas intercaladas, as lei­turas de depoimentos, testamentos, etc ... ". Como já comentamos, O marido da adúltera lança mão dessa estratégia para cativar o leitor e prolongar o enredo folhetinesco, além de permitir as tais gavetas literárias a que se refere Marlyse Meyer. Do ponto de vista de Laura, há a carta intencionalmente elaborada para a leito­ra do jornal Colombo, com vistas ao propósito nobre de tirarem delas "lição proveitosa". Do ponto de vista da construção do

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folhetim e dos leitores que o lêem, uma adúltera arrependida, ten­tando provar as conseqüências de uma "educação corruptora e falsa" não é matéria de interesse. Tanto que sua primeira traição -do ponto de vista da moral oitocentista - ao manter relações com o jovem estudante, é perdoada por um padre. É preciso, portanto, provar o seu engodo e para isso, surgem as cartas que escreve para Mal vininha - "acabado produto da educação com que se cri­ara, entre mimos babões e brutalidades viloas, na ociosidade, na ignorância e no namoro" - cujo caráter assim descrito pelo narrador aproxima-a mais do perfil de Laura e justifica por que a escolheu para fazer suas confidências. Nelas não é a adúltera arrependida quem narra, mas a mulher entediada, insatisfeita com o marido e o casamento. Seu livro de lembranças, por sua vez, vai revelar a "verdadeira" Laura, que se deixa seduzir por uma única frase do estudante, com quem terá um caso. Do lado do narrador, as cartas que publica como "As confidências do morto" são compostas da memória desse narrador e de cartas escritas por Luís a ele que, cúmplice involuntário da mulher, se sentirá na obrigação de res­taurar a verdade e eximir-se da culpa.

Enfim, pode-se concluir, que o estranhamento causado as soluções estéticas de O marido da adúltera causam certa estra­nheza ao leitor contemporâneo, porque desnuda em sua estrutura as estratégias e o modelo de narrar próprios ao folhetim. Estes, por sua vez, fazia-se a partir de um leitor real, o leitor de jornal. "Leitor intencionado, ficção do leitor no texto" (lSER, 1996, p. 79), a quem autor e narrador originalmente se dirigiram, cujas injunções foram determinantes na elaboração do romance-folhetim.

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Referências

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RODRIGUES, João Paulo Coelho de. A dança das cadeiras. Literatura e política na Academia Brasileira de Letras (1896 - 1913). Campinas: Editora da Unicamp, Cecult, 2001

SUSSEKIND, Flora. Papéis colados. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1993

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1 Texto presentado en la 8' Jomadns Andinns de Literatura wtitw Americana (Lima, 9 a 13 de agosto de 2004).

, "São muitos os estudos sobre o romance, a poesia, o teatro, o cinema, a pintura e a música, entre outras linguagens, nos quais está presente, explícita ou subjacente, a idéia de" nacional". ( ... ) Sem prejuízo das contribuições realizadas e possíveis a partir do emblema nacional, cabe experimentar a perspectiva aberta pela idéia de contato, intercâmbio, permuta, aculturação, assimilação, hibridismo, mestiçagem ou, mais propriamente, transcul­turação." (p.94-95) In: Ianni, Octavio. "Transculturação". In: -. Enigmas da moder­nidade mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2000

J Sus cuentos fueron publicados bajo los siguientes títulos: Urupês. São Paulo: Ed. Revista do Brasil, 1918; Cidades .\fortas. São Paulo: Ed. Revista do Brasil, 1919; Negrinha. São Paulo: Revista do Brasil e Monteiro Lobato & Cia. 1920

De São Paulo 01 Aconcagua: una trayectoria latinoamericana para

Monteiro Lobato 1

Para Octavio Ianni, in memoriam

Marisa Lajolo (Unicamp)

Muchos son los estudios sobre la novela, la poesía, el teatro, el cine, la pintura y la música - entre otros tantos lenguajes­en los cuales se encuentra presente - de forma explicita o subyacente la idea de " nacional" ( ... ) Sin prejuicio de las contribuciones realizadas y posibles a partir deI emblema na­cional cabe experimentar la perspectiva abierta por la idea de contacto, intercambio, permuta, aculturación, asimilación, hibridismo, mestizaje o - mas propiamente dicho -transcul turación2

EI escritor brasileno José Bento Monteiro Lobato nació en Taubaté -ciudad deI interior paulista- en 1882. Su abuelo -el Vizconde de Tremembé-, era propietario de ti erra en una región de agricultura y economía decadentes a partir de fines deI siglo XIX. La madre de Monteiro Lobato era hija ilegítima deI Vizconde, pero ese origen -en aquella época estigmatizado- no impidió que su hijo se tomase heredero deI abuelo.

De su origen rural, Monteiro Lobato parece haber mantenido una sensibilidad bien sintonizada con personajes, situaciones y paisajes interioranos. Sus cuentos magistrales3 giran en tomo a la identidad de este campesino -el polémico jeca tatu-, inevitablemente atropellado por el progreso, que en las primeras décadas deI siglo XX arruinó pequenas ciudades deI interior paulista. De ahí surge la metáfora ciudades muertas , la cual da

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título aI libro en cuyo afí.o de lanzamiento (1919) vendió más de cuatro mil ejemplares. pn 1918 Urupês tuvo tres ediciones, alcanzando la estupenda cifra de cinco mil ejemplares. Reeditada aI afí.o siguiente, en 1919 la obra parece haber llegado a doce mil ejemplares. Cidades Mortas vendió 4 millares durante el afí.o de su lanzamiento, y ambos libros (Urupês y Cidades Mor­tas) fueron reeditados en 1920, cuando junto con el nuevo tí­tulo -Negrinha-, prosiguieron su carrera de éxito, totalizando 20 mil ejemplares en 1920.

Como todos los jóvenes de su c1ase social, Monteiro Lobato estudió Derecho y se graduó en 1904. En 1907 fue nombrado promotor público en otra pequefí.a ciudad deI interior paulista -Areias-, y allí vivió durante algunos afí.os. Con la muerte deI abuelo en 1911, Monteiro Lobato hereda la hacienda a la cual se muda con su familia (se había casado en 1908). Desde allí envía artícu­los para la prensa, colaborando con el periódico O Estado de São Paulo y con la Revista do Brasil. Ambos eran vehículos de gran circulación y de sólida respetabilidad.

Fue en un gran periódico paulista que en 1914 Monteiro Lobato publicó los dos artículos que tornaron famoso su nombre en todo el país: "Velha praga" (12 de noviembre de 1914) y "Urupês" (23 de diciembre deI mismo afí.o). En ambos, Lobato hacía una crítica ácida e implacable a las costumbres interioranas. Es en la Revista do Brasil que, poco tiempo después, inicia su trayecto de éxitos como editor y empresario de cultura.

De colaborador, Monteiro Lobato se convierte en propietario de la Revista do Brasil. En efecto, en 1917 vende la hacienda, se muda a São Paulo y aI afí.o siguiente compra la Revista do Brasil. Y es desde la mesa de redacción de tal revista, que comienza a planear y construir una dimensión latinoamericana para la litera­tura. Para su literatura, para la literatura brasilefí.a, para la literatu­ra latinoamericana.

Son tradicionales, ai menos en la tradición de los estudios literarios brasilefí.os que conozco, las investigaciones que tratan de "encontrar" o "construir" convergencias temáticas y estéticas entre intelectuales latinoamericanos brasilefí.os y no brasilefí.os. Investigaciones de este tipo son instigantes, sin embargo pueden enriquecerse aún más con estudios que le confieran materialidad a las convergencias estéticas y críticas que ellas rastrean. Esta

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verti ente de recorte materialista, histórico y recepcional resulta esencial para desarrollar un discurso crítico comprometido con una teoría literaria de América Latina, en oposición a una teoría literaria en América Latina.

Siguiendo la estela de Ángel Rama, Cornejo Polar, y Anto­nio Cândido, este trabajo parte de la hipótesis de que no siempre las categorías críticas forjadas en los centros hegemónicos responden de manera satisfactoria a las prácticas literarias vigen­tes en la periferia. Del centro a la periferia es el rayo que cubre la distancia entre las expresiones teoría literaria en América Latina y Teoría Literaria de América Latina.

Monteiro Lobato puede ser una clave para el estudio de estas relaciones literarias latinoamericanas. Por lo tanto es hacia él que llamo la atención de los colegas, invitándolos a revisitar la obra deI escritor que habitó en los estantes de lectura y en los corazones infantiles de América Latina, de México a la Patagonia, de los Andes aI Pão de Açúcar.

Monteiro Lobato fue uno de los primeros arquitectos de la utopía de una América unida por libros y lectores ... Asi que en su vasta obra podemos rastrear manifestaciones reincidentes -aunque tenues y efímeras- de un proyecto para la formación de un sistema literario latinoamericano.

Desde la perspectiva de Antonio Candido, la existencia de un sistema literario resulta fundamental para que se puedan discu­tir las diferentes articulaciones de la literatura con la sociedad. En el caso de nuestra América, tal sistema necesita responder a las diferentes e inestablés articulaciones entre las diversas literaturas latinoamericanas, y de todas y de cada una de ellas con la sociedad pluriétnica, polilingüística y no homogéneamente letrada de nuestros países.

Las relaciones entre autores, obras y públicos, la mediación de intermediarios entre estos tres polos de la lectura literaria, las formas históricas asumidas por tales relaciones y mediaciones, la base técnica disponible y la legislación que reglamenta el comer­cio nacional e internacional de libros, junto a los datos cuantitativos y cualitativos de públicos disponibles, son elementos que le confieren materialidad a (concretizan) lo que se estudia cu ando se estudia literatura, sobretodo desde una perspectiva historico­comparativa .

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En el material sobre el cual me apoyo para la construcción de este sistema comienza a revelarse de forma modesta y domés­tica, a través de una carta de 1920. En ella Monteiro Lobato, ya de gran renombre y propi~tario de la Revista do Brasil, le escribe a Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), entonces un intelectual todavía inédito de una lejana provincia deI nordeste brasileno (Rio Grande do Norte). La carta es pequena, sin embargo, ya docu­menta el empeno de Lobato en la construcción de una red entre intelectuales de diferentes puntos de América: en la misma le anun­cia a Câmara Cascudo el envío de una obra argentina, de la cual había recibido algunos ejemplares para distribuirIos en Brasil:

Y espero mandarle un libro interesante que la "Nosotros", re­vista argentina, me encomendó que distribuya entre nuestros hombres de letras.

Esta promesa fija la figura de Monteiro Lobato como intermediario y difusor de la literatura argentina en territorio brasileno, aI colocar en circulación a escritores deI país vecino, no sólo más allá de las fronteras argentinas, sino también más allá deI eje Rio de Janeiro -São Paulo.

Muchas y muchas cartas deI acervo de Monteiro Lobato depositadas en la UNICAMP por sus herederos refuerzan y detallan este su papel de divulgadorA. EI autor integra una red de intelectuales -en especial brasilenos y argentinos- que no sólo intercambiaban libros y divulgaban sus respectivas producciones, sino que también debatieron y desarrollaron proyectos para viabilizar el intercambio literario entre sus países. En la Revista do Brasil, Monteiro Lobato publica a escritores argentinos, aI tiempo que varios de sus textos circulan por Argentina durante los anos veinte deI siglo pasado.5

Estas traducciones muestran que no fue apenas desde la posición de distribuidor que Monteiro Lobato dia curso aI (hasta hoy) ambicioso proyecto de dar amplitud latinoamericana a un proyecto cultural y literario. Algunos anos más tarde, también consiguió una abundante (y hasta hoy probablemente inigualada) circulación de sus obras en la América hispánica.

En carta de 1943 ,el comenta con su esposa las grandes expectativas que depositaba en el mercado argentino:

4 Los herederos de Monteiro Lobato depositaron un valioso acervo dei escritor en el Centro de Documentação Alexandre Eulálio, en el Instituto de Estudos da Linguagem, de Unicamp. La investigación de dicho acervo - de la cual este trabajo es un resultado parcial - cuenta con financiamiento de la Fapesp y dei CNPq.

5 Urupês es publicado en Argentina en J 921, en la Biblioteca de Novelistas Latinoamericanos (trad. de Benjamin Garay), y en ese mismo ano la revista Nosotros (a. 15, v. 38, n. 145, mayo de 1921, pp. 96-100) publica el ensayo "Letras brasilenas: visión general de la literatura brasilefia". También en ese afio La Novela semanal (a. 5, n. 183, 16 de mayo) publica el cuento "Negrinha" con el título de "Alma negra" (Cf Artundo, Patrícia. Tesis de Doctorado. USP,2OO2).

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De São Paulo ai Aconcagua: una trayetoria latinoamericana para Monteiro Lobato

6 Maria Pureza da Natividade Lobato era la esposa de "'Ionteiro Lobato .

7 Ruth Monteiro Lobato (t 916- XXXX) fué la ultima ruja de Monteiro Lobato y D. Purezinha.

Purezinha 6 :

( ... ) Recibí el contrato de la edición de todos mis libras infantiles en espanol en la Argentina. Todos. Y para comenzar saldrá un bloque de cinco. El negocio me parece excelente, pues alIá podré tener una renta tal vez mayor que la de aquí, y de ese modo podré reservar una de esas rentas para ir acumulando una fortunita para ti y para Ruth 7. Mi preocupación ahora son sólo tú y Ruth. He de dejarlas bien. Tranquilicénse. Ahorrando unos 5 contos por ano, en pocos anos estarán seguras -y habrá la renta de mis libras aquí y alIá. Hasta 60 anos después de mi muerte. No le temas aI futuro ( ... )

Efectivamente la promesa se cumple, aunque sólo en parte. ÉI no se hace rico, pero su obra circula por toda América Latina. Y algunos anos después de esta carta, Lobato sigue el camino de sus libros: entre junio de 1946 y junio de 1947 se muda a la Ar­gentina, donde junto a algunos amigos funda la editora Acteon.

La persistencia con que Monteiro Lobato invierte en Argen­tina es reforzada por una carta de ( 13 de) agosto de 1946 enviada desde Buenos Aires aI amigo brasileno Otaviano (Alves de Lima). En ella , Monteiro Lobato muestra una aguda percepción de las especificidades y potencialidades dei mercado argentino (en oposición ai brasileno). En ese sentido demuestra un tino comer­ciai poco común entre los hombres de letras, si bien ésto ya lo había probado con anterioridad en los anos 20, cu ando transformó una pequena casa editorial en la mayor editorial brasilena.

EI escritor atribuye la pujanza dei mercado editorial argenti­no a la gran difusión del idioma espanol, así como a una legislación que prácticamente subsidia la producción dellibro, aI no tas ar su materia prima:

En el campo editorial, Argentina goza de dos grandes ventajas sobre Brasil: 1) el papel para libras entra libre de derechos de aduana; 2) existe un mercado exterior para la producción. EI ano pasado la praducción de libras fue de diez mil toneladas, de las cuales cinco mil fueran exportadas. Fíjate que maravilla. Ahí no exportamos libra alguno y sobre el papel importado tenemos una tasa equivalente aI 100% deI precio de costa. Solamente existe exencÍón para el papel de periódicos y revis-

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tas. Esto explica el tremendo desarrollo de la industria editori­al argentinas.

Es así que a lo largo de toda su vida, Monteiro Lobato fue multiplicando sus lazos con el mundo editorial/literario latinoamericano. De regreso a Brasil, en carta a otro amigo -Godofredo Rangel - relata que

( ... ) este mes escribí 20 libritos nuevos para la Editorial Codex de Buenos Aires, libritos juguetes, de poco texto y muchas ilustraciones coloridas. Saldrán en dos lenguas. Y abora voy a escribir unos seis para un editor de México -que más tarde también podrán salir aquí. -( ... ) (30.07.1947)

Ya en su Historia dei mundo para los ninas 9 - la versión que Lobato da de la conquista de América por los espanoles tiene un acento critico poco comun en livros infantiles anteriores a lo politicamente cierto de nuestros días. Ya en aquel entonces ensefiaba Lobato que

La conquista de América por los europeos fue una tragedia sangrienta . i A hierro y fuego i era la divisa de los predicadores dei cristianismo . Mataran a diestra y siniestra , destruyeron todo 10 que encontraron y llevaron todo el oro que había. Otro espanol , llamado Pizarro, hizo en el Perú lo misino con los incas, otro pueblo civilizado, muy adelantado que existía allí (108)

Las lecciones de este narrador las aprendían bien los personajes que, a semejanza de lo que se quería que se pasase con los lectores, preguntan a quien les contaba la historia:

- Pero, l, qué diferencia hay, abuelita, entre estos hombres y aquel Átila, o aquel Gengis Khan, que marchá hacia Occidente con los terribles tártaros, matando, arrasando y saqueándolo todo l,(1l0)

A esta tan sencilla cuanto actual pregunta, le contesta Dona Benita ,la abuela tantas veces en la obra de Lobato alter ego deI escritor :

8 Nunes, Cassiano (org), Monteiro Lobato vivo. RJ. MPM Propaganda / Record 1986, p. 122

9 Se trata de una adaptación dei libro Child's history of the world de Y.M.Hiller , publicada en 1933 en Brasil, y que alcanzara 9 ediciones hasta 1943. En 1947 la versión espaiiola de este Iibro se publica en dos volúmenes por el editorial argentino Arnericalee. Unacuartaedición (traducción deM.J. de Soza) sale alaluzen 1956 por el editorial Losada ( copyright by Editorial Americalee) . Ias citas vienen de esta edición .

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De São Paulo al Aconcagua: una trayetoria latinoamericana para Monteiro Lobato

10 La carta es citada por Edgar Cavalheiro que, infelizmente, no indica la fecha ni la localizaci6n de las cartas; pero la veracidad de la fuente es confinnada por otras cartas depositadas en la Unicamp, que también se refieren al abortado proyecto peruano de Monteiro Lobato.Ell4deenerode 1947, porejempl0, e1 escritor informa a su amigo Rangel que "(. .. ) Habiendo ya visto y hecho amistad con los árboles de Buenos Aires, puedo mudarme de país y ando pensando en eso. Escogiendo uno. Por el momento Perú está en primer lugar ( ... )"

- La unica diferencia es que la historia ha sido escrita por los occidentales, y nada más natural que lleven el agua a su molino. De ahí que nuestros historiadores consideren como fieras a los tártaros de Gengis Khan y como heroes a los conquistado­res europeos. ( 110)

Se ve asi muy temprano en su obra, la comprensión critica de Monteiro Lobato respecto la historia de Latinoamérica. Pero es cu ando todavía vivía en la Argentina, que el da retoques finales, y casi inesperados, aI antiguo proyecto de una literatura de identidad latinoamericana. En esta nueva versión de la antigua utopía, la latinoamericanidad lobatiana va más allá deI intercambio deI mer­cado editorial latinoamericano. Lobato , desde Buenos Aires, propone la latinoamericanización de su discurso literario y se prepara para ello.

( ... ) me voy aI Peru. Esto aquí, de la misma forma que ahí, no tiene profundidad. Son dos países que comenzaron con la llegada dei europeo. Pero el Peru ya tenía mil metros de profundidad cuando el europeo llegó. De modo que allá existe una superposición de civilizaciones y razas - cosa mucho más interesante que este inrnigracionismo de aquí y de ahí.

Como se ve la inspiración para este salto cualitativo latinoamericano de su proyecto literario viene deI Peru 10 :

( ... ) En estos tres meses me voy ai Peru, a vivir por allá algún tiempo, a incarme, llamarme, guanacarme, chinchilarme, etc., y escribir rni mayor libro: mi pandilla de allá deI Sitio, hundida en el Peru de Atahualpa, presencia el drama de la conquista por los fascinerosos Pizarro y Almagro, los nazistas de la época. ( ... )

Incarse, llamarse, guanacarse, chinchilarse es una linda metáfora deI ritual de iniciación latinoamericana para un escritor brasilefío: pues solo después de incarse, guanacarse, llamarse y chinchilarse, Monteiro Lobato se cree listo para escribir un libro sobre

( ... ) toda la tragedia de la destrucción de los incas, aztecas y mayas por los espaõoles invasores.l,La historia de América se

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sabe por boca de quién? iDel Aconcagua! Sólo un Aconcagua puede tener la necesaria ausencia de ánimo para contar la cosa como realmente fue, sin falsedades patrióticas, nacionalistas, raciales o humanas ... Cp. 233)11 .

Infelizmente, el plan no se realiza. Lobato no viaja aI Peru, ni escribe ellibro anunciado. Deja la tarea inconclusa para que otros la realicen, tal vez hoy, quizás nosotros . Dicho sea de paso, aI recontar desde otra perspectiva la tragedia brasilefí.a de Canu­dos, tal vez Vargas Llosa haya dado un gran paso en ese sentido de nosotros contarmos la historia los unos de los otros. EI caso es que Monteiro Lobato regresó a São Paulo y murió un afí.o después, el 04 de julio de 1948.

No obstante no haber escrito la historia de América por boca deI Aconcagua, esto no impide que Lobato ocupe un lugar impor­tante en la historia de la literatura de esta América. En la historia de la literatura de la

América deI Sur América deI Sol América de Sal,

para hablar como un contemporáneo de Monteiro Lobato, Oswald de Andrade. Así, bien antes de la formalización de las teorías de la globalización, Monteiro Lobato parece haber sido un escritor latinoamericano que percibió la fecundidad de la mirada oblicua con que, observándonos los unos a los otros, vamos construyendo una identidad que , sin embargo sus múltiplas fauces, tiene en cada una y en todas sus verti entes la solidez fuerte deI Aconcagua o deI Pão de Açúcar. Identidad de la cual los estudios literarios tienen que dar cuenta lo que puede empiezar por construirse una base de datos de las relaciones letradas y literarias latinoamericanas y por inventar la epistemología de la oblicuidad.

II Cavalheiro, Edgar, Monteiro Lobato: vida e obra. Tomo 2. São Paulo: Editora Brasiliense. 3'. Ed., 1962, p. 233.

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Euclides da Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos

U ma sintética introdução

Délio Combeiro (UERJ)

Nunca será demasiado avivar-se a memória para o terrível massacre de Canudos, que em 5 outubro de 2007 comple­tará 110 anos, para a figura de seu idealizador e a de seus seguido­res. Muitos títulos encontrará o pesquisador, ou um simples lei­tor, cuja curiosidade intelectual o leve à indagação. Desde o apa­recimento de Os sertões, surgiram numerosos documentos - al­guns ficcionais -, que, por vezes, fixaram alguns estereótipos a respeito da rica temática, mas, não se pode negar, acumulam im­portante material de estudo. São inúmeras críticas a uma possível influência - o comentado Facundo, de Domingo Sarmiento -; à

dura dicção euclidiana em julgar o fenômeno - o Conselheiro e sua gente são casos patológicos -; além de tantos outros instigantes juízos. Além disso, ao mesclar segmentos interpretativos, outros de cunho criativo, com forte dose de imaginação sobre o fato, provoca classificações, que a situam como uma obra híbrida, cir­culando entre a História e a Literatura. Raros textos, entretanto, conseguiram subtrair-se à influência da análise de Euclides e, sem dúvida, o autor denunciou o crime cometido contra uma coletivi­dade, também provocou uma interpretação do Brasil.

Para esse breve trabalho de marcas comparatistas, cotejam-se trechos de Os sertões com os d' A guerra do fim do mundo, de Vargas Llosa, obra também extensa e cerrada. Pela impossibilidade de nele comentarem-se as inúmeras articulações e cenas da trama complicada e bastante enovelada, privilegiar-se­ão algumas passagens onde se evidenciam mais vivamente a refle-

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xão de Llosa sobre Canudos. Focaliza-se o diálogo respectiva­mente entre as personagens ficcional e histórica Galileu Gall e frei João Evangelista. Pretende-se refletir sobre a representação lite­rária dos elementos evidenciados nas primeiras linhas desse en­saio.

Uma tentativa de cotejo

Quando esteve no Rio de Janeiro, ao ser entrevistado sobre por que escrevera uma obra sobre o sertão brasileiro, Vargas Llosa explicou que fizera um roteiro para a Paramount, em parceria com Rui Guerra. Não se realizou o filme - La guerra particular ou Los papeles deI infierno - mas, desejando escrever a "Guerra e Paz" latino-americana, ele transformou o roteiro em livro. Des­lumbrado com Os sertões, assinala ter sido a obra fator importan­te para escrever A guerra do fim do mundo, confessando que, através dela, o trágico episódio não fora completamente esqueci­do, como outros violentos choques havidos na América Latina.

Sobre Canudos, lera imensa bibliografia, assinalando a falta de representatividade dos vencidos nos textos pesquisados. Por­tanto, em seu reescrever palimpséstico, retocando, à sua maneira, o mosaico euclidiano, entrelaçou vozes representativas de níveis sociais, econômicos e culturais. A escrita de Vargas Llosa articula acontecimentos verídicos já longamente descritos por Euclides da Cunha, porém, mesmo tendo como fonte a famosa obra, ques­tiona o texto núcleo e abre imaginativos vôos, não só na constru­ção da narrativa, bem como nos meandros da fábula. Recriando, por outro viés, a epopéia daqueles seres despossuídos do arraial baiano, Llosa pintou um monumental painel de imagens - misto de crônica e situações factuais - ao repensar, em perspectiva crí­tica/criadora, o que chamou de um "mal-entendido nacional". Munido do distanciamento crítico, ao inverso de Euclides, devido à separação temporal quanto às ocorrências de Canudos, vai mes­clando reflexões dialéticas às novas faces e visões do que teria sucedido à época, por meio de um narrador onisciente e inúmeras personagens. Desse modo, no mundo contemporâneo, sua escrita ilumina, com agudeza, aquele sangrento episódio da História do Brasil.

Prêmio Ernest Hemingway de 1985, essa representação da

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Euclides da Cunha e Vargas LJosa: dois olhares sobre Canudos

epopéia brasileira - uma alegórica luta entre ordem e transgressão - entrelaça experiências pessoais de diversas personagens verda-

. deiras e fictícias, que emergem na trama, enredadas em monta­gem bem atual. Os episódios sempre fragmentados retardam a trama, modificam os focos narrativos, em alternado jogo de ações, que, pouco a pouco, pelos vários pontos de vista introduzidos por um único narrador onisciente, vão-se fechando e concluindo, em micro estruturas aparentemente estanques. Embora independen­tes, elas se coligam por mestria técnica: na concepção de Baktin, trata-se de uma escrita polifônica, em que vozes em contraponto, tal qual na partitura musical, harmonizam-se, unem-se, em igual­dade de importância, sem haver sobreposição hierárquica de dis­curso. Com essa técnica Llosa sugere ao leitor a impossibilidade de a verdade sobre aqueles fatos ser totalmente conhecida.

O tempo narrativo reflete a fragmentação daquele universo em múltiplas linhas cronológicas, estruturadas em constante fluxo de idas e vindas, com imagens focadas/desfocadas, mas que se interligam num "plot", ou seja, em uma intriga subjacente, nervo da ação que tudo comanda: a história de Canudos e a energia magnetizadora do Conselheiro. Pode-se dizer que, na obra, a si­nuosidade temporal (re)trabalha os fatos, na tentativa de compreendê-los, sem estabelecer visões binárias redutoras, ten­tando criar um tertius inclusivo e auxiliar na leitura plural do ho­mem em situação.

A arquitetura textual sugere uma estrutura mutante - de certa forma caleidoscópica - pois os episódios amarram/desamar­ram, em sucessão cambiante de quadros, impressões e sensações, produzindo, em síntese, a ação global, deflagradora da questão política e religiosa nacionais. A narrativa, portanto, prima pela ausência de um ponto de vista único ou exclusivo, com seus arti­fícios desconstrutores, ramifica-se em histórias particulares coli­gadas à grande História. Tudo emerge do ataque a Canudos que, no relato, está acontecendo, bem como da influência que a expe­dição ao arraial suscitou na vida de cada personagem.

Apesar de desencadeador da "guerra do fim do mundo", Conselheiro não assume a força da enunciação. Tudo o que se sabe a seu respeito afIora indiretamente pela descrição, atos ou diálogos de certas personagens que gravitam pelas bordas do re­lato. Ancorada na História e na ficção, A guerra do fim do mundo

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conserva alguns nomes históricos da obra euclidiana, entre eles, Moreira César, que aparece em ação, como representante da or­dem. Nela é qualificado de temperamento "fanático" e "obsessi­vo": acusações freqüentes, em Os sertões, mas em relação ao Conselheiro. Cria também outros, de conotações não raro irôni­cas ou de marcas universalmente expressivas, que, por analógicas ilações, suscitam reflexão pelo pensamento renovador que demons­tram. Expressivo exemplo é Galileu Gall, cujo nome composto lembra dois cientistas: Galileu, físico, astrônomo e escritor italia­no do século XVI-XVII (1564-1642), introdutor da luneta na as­tronomia, além de outras inovações científicas e seu posicionamento diante da Inquisição; Gall, o médico alemão Franz J osef Gall (1758-1828), criador da frenologia, teoria que estuda o caráter e as funções intelectuais e humanas, baseando-se na con­formação do crânio.

Aliás, na obra de Vargas Llosa, essa personagem - amálgama de dois cientistas - desempenha relevante papel crítico. Com a luneta de seu olhar inquiridor, tudo para ele é objeto de pesquisa, de questionamentos da ordem lógica e social. Na novela, ele é também frenólogo, além de um revolucionário politicamente engajado, com posições anarquistas, também é correspondente de um jornal francês, cujo nome Etincelle de la révolte já acena para a própria centelha da lucidez, o gérmen do fogo, o estopim clarificador da rebeldia, através de idéias desconstrutoras. O iconoclástico Galileu Gall parece ser um alter ego do narrador, que, por meio deste, exercita sua posição diante dos fatos, valori­zando os atos libertários daquele herege nos confins de Belo Monte.

Entre inúmeros da galeria imaginária de Llosa, há o Jorna­lista Míope, irônico epíteto, transformado em onomástico, pois no desenrolar da narrativa jamais é dito o seu verdadeiro nome. Sem dúvida, o autor pontua também sua crítica em relação ao jornalista Euclides da Cunha, ao enxergar, com lentes deturpadas/ desfocadas, a veracidade das ocorrências, segundo a opinião subliminar que mina do texto. Gall enxerga melhor do que o Jor­nalista Míope, que forçado a fugir chega ao arraial completamen­te desvinculado com o mundo de Canudos. Ele deseja escrever um livro para relatar a guerra, porém perdera os óculos - portan­to, não via - e ficara sem pena e sem tinta durante a fuga - logo, não escrevia. Por isso, lembra Euclides, criticado por sua visão

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Euclides da Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos

míope da realidade de Canudos. Em diversificadas elucubrações, Llosa transita por vários

patamares em tomo da História acontecida. Apreende o proble­ma, contorna-o através de olhares diversificados, inverte-o em choques de abordagens que se "dialetizam" na narrativa in fieri, ou seja, no próprio processo de escrita. Em meio às entrelinhas, nas dobras e subterrâneos do discurso, múltiplas são as peripécias das personagens impregnadas de situações críticas.

No ludismo verbal de tempos e de espaços acoplados, deli­neia-se na obra o comportamento e a psicologia do Conselheiro, caracterizando seu desempenho no grupo, como organizador po­lítico - o mito do herói civilizatório - como orientador espiritual - o mito do guardião do sagrado congregador.

O narrador abre o texto com o retrato físico do Conselhei­ro, aludindo a seu aspecto alto e magro que parece "estar sempre de perfil". Os mesmos trajes usados aproximam-no do perfil eternizado por Euclides da Cunha: a mesma túnica de azulão e as sandálias de pastor. Os detalhes focalizam parte de seus hábitos simples, desprovidos de qualquer preocupação corporal, chegam ao famoso epíteto - Conselheiro - que lhe deu fama e, aos pou­cos, compõe-se a aura mítica do chefe político-religioso. Em se­guida ao primeiro retrato físico e psicológico, tem-se lírica descri­ção do ambiente natural dos vilarejos do sertão, à hora do crespúculo, do qual participavam os que se sentiam amparados por suas palavras. Nesse momento, todos o "escutavam em silên­cio, ( ... ) o interrompiam para tirar dúvidas milenaristas, escatológicas. Terminaria o século? Chegaria o mundo em 1900?" (VARGAS LLOSA, 1987,p.17). Essas e outras alusões fornecem subsídios para uma interpretação de ele estar ligado à experiência do sagrado, não só pelas previsões e anúncios das desgraças dos últimos dias, mas pela força de sua presença coroada de intensa atmosfera mística. O epíteto de Conselheiro, que Antônio Vicente Mendes Maciel recebeu, também corresponde àjustiça divina e à humana, reunindo as funções essenciais de conselheiro do espírito e da carne. Além da força carismática que exercia sobre o outro, ele atraía seus ouvintes - já seguidores ou não - por meio da po­tência da linguagem que empregava em seus sermões.

Euclides da Cunha afirmou que na apreciação dos fatos o tempo substitui o espaço para a focalização das imagens e que o

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historiador precisa de certo afastamento dos quadros que con­templa, desta forma, nota-se a preocupação em compor um qua­dro mais fiel possível dos acontecimentos já ocorridos. Sem aprofundarem-se opiniões de que sua obra suscita várias interpre­tações quanto à sua classificação, Euclides preocupou-se em trans­mitir um relato compromissado com a verdade impessoal dos acon­tecimentos, com a história e não imaginá-los - oposto a Vargas Llosa, que, longe do espaço e do tempo de Canudos, acrescentou a verdade ficcional da trama romanesca à realidade história do administrador daquela cidade santa. A vida material em Canudos era dividida por tarefas entre os adeptos, porém passava obriga­toriamente pelo crivo do líder, ratificando sua função de chefe religioso e de legislador político. No entanto, interferir no mundo imaterial, no sobrenatural, apenas o Conselheiro poderia fazer, sobretudo nos tempos de luta contra o Anticristo, pois eram dele as profecias do que haveria de acontecer. Ele já revelara em seus sermões que as forças do "cão" viriam prendê-lo e passar na faca toda a cidade. Por isso, com as perseguições das tropas, com o "começo do fim do mundo", toda Canudos se uniu em tomo do Conselheiro.

Nos dois escritores, encontra-se referência à tolerância do Conselheiro quanto ao amor livre e à pregação contra a Repúbli­ca, "porque o dominador, se não estimulava, tolerava o amor li­vre. Nos conselhos diários não cogitava da vida conjugal, traçan­do normas aos casais ingênuos" (VARGAS LLOSA, 1987, p.146). Também no texto de Llosa, acentua-se o fato de os seguidores negarem o casamento civil e praticarem, com base nas leis pro­postas pelo chefe, algo que a personagem Lélis Piedade - repro­duzindo a fala do consenso - comenta ser promíscuo e represen­tar a instituição do amor livre. A personagem acrescenta que, com tal prova de corrupção e de heresia, as autoridades expulsarão os fanáticos. Tal é a visão preconceituosa da personagem, nas fre­qüentes discussões dialéticas que atravessam o livro, engrandeci­do pelas possibilidades de diferentes leituras dos fatos.

A rebeldia quanto às normas do estado civil salienta-se nos dois autores, confirmando-se acentuado interesse por temas de insubordinação libertária de minorias. No caso dos iconoclastas, o repúdio às leis da República significava estarem apenas preocu­pados com as de Deus, confirmadas no casamento religioso. Para

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eles, era de vital importância a união frente a Deus e não diante dos homens.

Quanto à rebeldia, Canudos é descrito como reduto de revoltosos durante o relato de Oall sobre encontro com Frei João Evangelista do Monte Marciano - participante do famoso Relató­rio sobre os acontecimentos. Nas considerações do revolucioná­rio, Canudos sugere, dependendo do olhar que o aborde, um utó­pico falanstério, à maneira de Fourier, ou refúgio de insurretos desobedientes das leis. Em comentário ao célebre Relatório, o jornalista e frenólogo coloca a visão do Frei, que, enviado pelo Arcebispo da Bahia ao povoado devido a denúncias de heresia, fica assustado e enojado com o que viu. Porém, refletindo sobre o relato do capuchinho, Oall conclui que, logicamente, por causa da condição de religioso, sua experiência no arraial deveria ter sido difícil de compreender, até mesmo amarga. Para suas conclusões norteadas por princípios libertadores, diz Oalileu Oall que:

Para um ser livre o que o Relatório deixa entrever por entre suas remelas eclesiásticas é apaixonante. A pretexto de refrear o casamento civil, o povo de Canudos aprendeu a unir-se e a se desunir livremente sempre que homem e mulher estejam de acor­do, pois, ( ... ) seu condutor e guia - a quem chamam de Conse­lheiro - ensinou-lhes que todos os seres são legítimos pelo sim­ples fato de nascer (VARGAS LLOSA, 1973, p. 56).

Sem dúvida, ele é um advogado das normas circulantes em Canudos, comunga com o ideário da harmonia entre os seres en­voltos pelo mesmo desejo. A entrevista do frenólogo com o capuchinho é a oportunidade de reforçar a geografia libertária de Canudos, opondo-se, então, à idéia de distopia eternizada por Euclides, ao utilizar famosos sintagmas depreciativos como "urbs monstruosa", "refúgio de fanáticos", e "civitas sinistra do erro", Tal encontro fictício, entre Oall e o padre, realizado no refeitório do Mosteiro é comentado com entusiasmo pelo correspondente; confirmaria, também, nesse diálogo, a opinião de que em Canu­dos a gente humilde e sem experiência praticava coisas que os revolucionários europeus consideravam necessárias para implan­tar a justiça na Terra. Sublinha-se aqui um dos veios essenciais: os seres são mobilizados religiosamente pelo anseio de eqüidade so­cial. Em Euclides, o líder, que não escondia o horror que tinha

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pelo sexo feminino, chegando a não encará-las, é comparado ao frígio Montano, no que tange a restrições impostas à aparência física das mulheres, proibidas de se cuidarem. Já os seguidores, a uma "farândola de vencidos da vida, gente ínfima e suspeita, aves­sa ao trabalho, heróis da faca" (CUNHA, 1993, p.120).

O relato do capuchinho enfatiza haver no arraial uma multi­dão de seres esquálidos, cadavéricos, amontoados em cabanas de barro e palha, além de armados até os dentes "para proteger o Conselheiro, que as autoridades tinham tentado matar antes" (V ARGAS LLOSA, 1987 ,p.57). O padre assegurava ter visto em Canudos facínoras perigosos, mencionando para Galileu o nome de João Satã, um dos tenentes do Conselheiro. Tal constatação estarrecera o religioso que, em missão ao lugar, interpelou o pró­prio bandido sobre a existência de delinqüentes numa aldeia que se diz cristã. O padre recebeu como resposta que o desejo do Conselheiro era o de fazê-los homens bons e que se algum dia rou­baram ou mataram foi pela condição em que viviam. Se fossem banidos dali cometeriam novos crimes. Além disso, entendiam a caridade do chefe como a que Cristo praticara. A declaração entusi­asma o anarquista, que a ela se refere em carta endereçada a revolu­cionários europeus: "Essas frases, companheiros, coincidem com a filosofia da liberdade" (VARGAS LLOSA, 1987, p. 57).

A novela de Llosa, portanto, desenha uma geografia da li­berdade e da fartura, sedimentada no mito de um espaço utópico, criado literariamente com esse nome por Morus e, de certa forma, materializado em Canudos por seus habitantes, pois respeitavam o direito do outro e os bens coletivos. O arraial é enfocado como um lugar de paz, abençoado, recebendo os seguidores o mesmo tratamento que Jesus Cristo dispensara a seus fiéis, sugerindo a aproximação do Conselheiro com o Filho de Deus. Com isso, a narrativa desenha a figura do líder como um protetor, um salva­dor - um soter - levando sua palavra a fim de redimir não apenas os sofrimentos materiais, a miséria, mas o crime, o pecado. Se em A guerra do fim do mundo, Canudos aparece como terra de aco­lhida e aperfeiçoamento espirituais, incrustada numa geografia pro­tetora, salvática e sobretudo revolucionária, onde o chefe legisla­va em leis fundamentadas no ius profano e no fas divino, em Os sertões, a sociedade foi interpretada como bastante negativa. Gall engrandece os seguidores, comenta que as pessoas de Canudos

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chamam-se a si mesmas de jagunços, palavra que quer dizer re­voltados e que para elas Anticristo e República são a mesma coi­sa, considerando as palavras do líder religioso uma verdadeira música revolucionária para seus ouvidos. O novo regime, pertur­ba a estrutura consignada, é considerado o responsável por todos os males, alguns abstratos, sem dúvida, mas também pelos con­cretos e reais, como a fome e os impostos. Já em Euclides, jagun­ço não possui a mesma conotação: no texto de Llosa recebe uma carga romântica. O significado de revoltado, atribuído à palavra jagunço na obra do peruano, não encontra aproximação na do brasileiro, que o representa como um bandido. Deve-se também considerar que a interpretação de Gall torna a palavra engrandecedora e heroicizante, pois, etimologicamente, jagunço não remete a revoltado. Jagunço prende-se a zaguncho, uma arma de arremesso, semelhante à azagaia. O valor semântico atribuído ao termo liga-se à ação defensiva da chamada Guarda Católica do Conselheiro e de seus fiéis, tratados como fanáticos e revolucio­nários, em A guerra do fim do mundo e como facínoras, em Os sertões.

Na crítica à fala conservadora do capuchinho, Gall duvida de que ele e sua ordem sejam grandes entusiastas do novo, pois, a República, paraíso de maçons, significou um enfraquecimento da Igreja. Para o religioso, os conselheiristas formavam uma seita político-religiosa insubordinada contra o governo constitucional do país, Canudos era um Estado dentro do Estado, pois lá não se aceitavam as leis, as autoridades não eram reconhecidas nem o dinheiro da República admitido. Preocupado com as mudanças no vilarejo, garantia que, da mesma forma com que se instituíra a promiscuidade de sexos, também se estabelecera em Canudos a promiscuidade de bens: tudo era de todos. Para Gall, contrário a essa visão, o Conselheiro praxilizava idéias sociais novas no ser­tão, ainda que tão antigas no espírito humano. As "novas" idéias sociais, segundo o revolucionário, encontravam-se taticamente ve­ladas sob pretextos religiosos, devido ao nível cultural dos conselheiristas. Ao final de uma carta, ele pergunta aos destinatári­os se não era notável que no fundo do Brasil um grupo de insurretos formasse uma sociedade em que se aboliu o casamento, além do dinheiro; onde a propriedade coletiva substituiu a individual.

Fiel a ideais políticos reformadores, afirma não participar

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da consternação de Frei Marciano, quanto aos fenômenos obser­vados em Canudos, pois o que experimentava com a concreta realização de uma possível utopia na Terra era "alegria e simpatia por esses homens graças aos quais, dir-se-ia, no fim do Brasil, renasce de suas cinzas a Idéia que a reação acredita haver enterra­do na Europa no sangue da revoluções derrotadas" (VARGAS LLOSA, 1987, p.59).

Portanto, a partir da fala de uma personagem fictícia, Galileu Gall, e de uma outra histórica, Frei Marciano, constrói-se no tex­to literário, através de dialético questionamento, a figura emblemática do Conselheiro conforme a concepção mítico­messiânica, quando um salvador viria para exercer o poder religi­oso e o político em uma Terra desprovida da dor e do mal. Em sutil intertextualidade com as lendas apocalípticas do fim do mun­do e com a escrita de Os sertões, Vargas Llosa retoma, em várias passagens, o filão mítico tão difundido na cultura luso-brasileira, oriundo da Península Ibérica, desenvolvido, sobretudo, por Bandarra, nas Trovas, e por Vieira, em A história do futuro.

Retornando-se ao foco em que Gall se manifesta com insis­tentes reflexões questionadoras, tem-se, em outra carta, remetida aos mesmos correligionários, relatos concernentes a experiências junto a homens do povo, defensores dos objetivos do "santo guia". Comenta a vitória dos fiéis contra os soldados do governo, diz que os acontecimentos constatados de que os jagunços derrota­ram cem soldados que marchavam contra Canudos "confirmavam os indícios revolucionários". Contudo, acrescenta, refletindo so­bre a estratégia dos seguidores, que intuições e ações corretas se misturavam com superstições inverossímeis. Deste modo, apesar de entusiasmo pelas práticas daqueles homens rudes, ele conse­gue emitir dialética visão, situando-se entre dois horizontes: lou­va as corretas ações, mas vislumbra arraigados aspectos supersti­ciosos entre os fiéis daquele cenobita. Em certa medida, nesse elo de uma práxis concreta, desconstrutora do status quo vigente concomitante a aspectos arcaicos de arraigadas crendices, reani­ma-se, na escrita de Llosa, a própria ambiência em que eclodiu a utopia do Conselheiro: em Euclides, "um infeliz [que] destinado à solicitude dos médicos, veio, impelido por uma potência superior, bater de encontro a uma civilização, indo para a história como poderia ter ido para o hospício" (CUNHA,1993, p.120). Quanto

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a superstições, a intuições dos conselheiristas convém notar seus comentários cientificistas sobre a dúbia psicologia do grupo:

o clã tumultuário de Antônio Conselheiro ( ... ) continuou a marcha do desnorteado apóstolo, pervagando no sertão. ( ... ) Não cogitava de instituições garantidoras de um destino na Terra. Eram-lhe inúteis Canudos era o cosmos ( ... ) transitório e breve: um ponto de passagem terminal, de onde descampariam sem demora ( ... ) (CUNHA, 1993, p. 36).

Demonstra-se, assim, a diminuição de valor na análise do clã do Conselheiro. Tem-se o perfil "tumultuário", em que o con­dutor se configura um homem sem rumo, um "desnorteado após­tolo". Para Euclides, Canudos não possui a chave soteriológica, não havendo ali uma conjuntura estável, garantindo a seus prosé­litos eficaz apoio material. Aquele topos não seria um eterno cos­mos, mas um caos transitório e breve. Já em Vargas LIosa, supers­tições e intuições são motivos que participam do traço particular da psicologia do grupo de maneira positi va, desprovida de lingua­gem cientificista, caracterizadora do pensamento euclidiano.

Ainda por intermédio de GalI, em carta aos amigos, tem-se a tentativa de questionamento racional, porém, não depreciativo, segundo a lógica do revolucionário. Ele vai atrás de todos os indí­cios clarificadores do problema, sem pretender a Verdade absolu­ta. Logo, sem descartar quaisquer hipóteses, questiona:

São os símbolos religiosos, místicos, dinásticos, os únicos ca­pazes de sacudir a inércia de massas submetidas há séculos à supersticiosa tirania da Igreja e, por isso, utiliza-os o Conse­lheiro? Ou tudo isso é obra do acaso? Nós sabemos, compa­nheiros, que na história não há acasos, e por arbitrária que pareça, há sempre uma racionalidade encoberta atrás da mais confusa aparência. Imagina o Conselheiro a perturbação histó­rica que está provocando? Trata-se de um intuitivo ou de um espertalhão? Nenhuma hipótese é descartável, e, menos que as outras, a de um movimento popular espontâneo, não preme­ditado. A racionalidade está gravada na cabeça de todo homem, mesmo na do mais inculto ( ... ) (VARGAS LLOSA, 1987, p. 93).

Advogando a racionalidade, aliás tônica que permeia o dis­curso de Euclides, refletindo as coordenadas dos fins do século

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XIX, Gall utiliza esse artifício lógico através de teses e antíteses, pois diz que nenhuma hipótese é descartável, a fim de ratificar o valor de Canudos e de seu fundador. Valoriza, entretanto, uma racionalidade "outra", diferente do pragmatismo cartesiano que se manifesta na observação de Euclides daqueles "sertanejos bron­cos"; abre, assim, a possibilidade de que se perceba com novo olhar os que não comungam a fala oficial. A tentativa de Gall é de compor uma explicação convincente e não preconceituosa, para aqueles fatos advindos de um chamado profético, de marcas escatológicas, de um imaginado corte da História pelo líder e que culminaram na formação da cidade. Em Os sertões, o arraial con­cretizou a irracionalidade geográfica pelas mãos de um pietista ansiando pelo reino de Deus e abrigaria uma horda de loucos. Sublinhando a irracionalidade e a psicose coletiva, os seguidores teriam sido atraídos para lá pelos "despropósitos do Santo endemoninhado" cuja missão pervertedora levou-os a um "fana­tismo que não tem mais limites". O lugar era visto como uma distopia insana, "uma cidade dobrada por um terremoto", um "dédalo desesperador" e um "baralhamento caótico" que "traíam a fase transitória entre a caverna e a casa (00') traduzindo, mais do que a miséria do homem, a decrepitude da raça" (CUNHA, 1993, p. 232-239). Já o texto de Llosa fornece outros pontos de obser­vação contrastantes, quanto aos elementos humanos e geográfi­cos encontrados em Os sertões.

Eternizando por meio do texto ficcional a compreensão do fenômeno como um todo harmonioso, lê-se no autor peruano que "a diversidade humana coexistia em Canudos sem violência, em meio a uma solidariedade fraterna e um clima de exaltação que os escolhidos não haviam conhecido" (VARGAS LLOSA, 1987, p. 97). Em Llosa, não se encontra alusão ao "diagnóstico" euclidiano dado a Canudos de loeus horrendus da loucura e do banditismo. A população não é considerada uma turba de "temperamento vesânico" guiada por um chefe "dominador incondicional", por um "grande desventurado" e "retrógrado do sertão". O texto de Llosa alude sim a uma heteróclita comunidade de necessitados e de abandonados: índios, negros, brancos, mulatos, homens consi­derados de bem - ou mesmo bandidos - todos juntos em uma comunidade de destino, unidos em constante harmonia de pensa­mento e de objetivos, como desejava Charles Fourier. Eram co-

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mandados pelo Conselheiro, que delegava à Guarda Católica a defesa do território sagrado e, como diz o narrador sobre o "san­to", o santuário atraía peregrinos de todo o mundo, também a atenção do Anticristo República.

Em A guerra do fim do mundo, a fala depreciativa encon­trada na obra de Euclides é assumida por personagens da classe dominante e do poder constituído. Um diálogo entre Moreira César e o barão de Canabrava - rico latifundiário da região - retoma idéias contidas em Os sertões quanto aos "escolhidos". Note-se que o famoso coronel da República fala dos seguidores como he­reges dementes, incendiários e ladrões de fazendas, que matavam com balas explosivas e fuzis modernos. No entanto, o barão, sus­peito de proteger os "jagunços", desmente as afirmações, decla­rando que tudo não passava de uma manobra para se fazer todo o país acreditar que Canudos significava aquele perigo tão propalado. Acrescenta, ainda, a seus argumentos:

Esses miseráveis não têm armas modernas de nenhum tipo. As balas explosivas são projéteis de limonita, ou hematita parda se prefere o nome técnico, um mineral que ( ... ) os sertanejos usam em seus bacamartes há muito tempo. ( ... ) Os fuzis ingle-ses, sim. Foram trazidos por Epaminondas Gonçalves, seu mais fervoroso partidário na Bahia, e para nos acusar de aliança com uma potência estrangeira e os jagunços. E quanto ao es­pião inglês de Ipupiará, ele também o fabricou, mandando as­sassinar um pobre-diabo que, para sua desgraça, era ruivo. O senhor sabia disso? (VARGAS LLOSA, 1987, p.92).

Mas a crítica atualizada, tendo como idôneo apoio reflexivo Ataliba Nogueira, repensou a perseguição ao Conselheiro e a des­truição de Canudos. A partir de conceitos desenvolvidos pelo es­tudo da revisão de Os sertões por A. Nogueira,

deduz-se não ser apropriado o título de herege dado ao funda­dor de Canudos. Antônio Conselheiro não pregava idéias hete­rodoxas. Não pode ser chamado de gnóstico, muito menos de bronco, pois sabia ler e escrever, deixando obras de fé cujo lastro é de raiz ortodoxa católica. Ratifica-se, dessa forma, que ele não se opôs aos dogmas da Igreja, ( ... ) nunca se nominou Messias, muito menos Salvador,( ... ) mas se negava a seguir

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ordens de seus representantes. Portanto não foi um dissidente radical da Igreja romana, como afirmou Euclides da Cunha. ° estudioso viu a dinâmica do fenômeno captada, de alguma for­ma, porum espírito pré-concebido. ( ... ) Quanto a possíveis anseios de esperanças escatológicas ( ... ), seria possível que tais fantasi­as místicas circulassem no imaginário coletivo dos conselheiristas, da mesma forma que circularam em vários grupos religiosos de várias épocas (CAMBEIRO, 2003, p. 468-470).

Tal linha crítica, seguida por Roberto Ventura, atribui o ataque ao temor das classes dirigentes de que o arraiallibertário se tomasse ameaça regional e nacional do ponto de vista da pro­priedade, além de constituir-se em um Estado dentro do Estado, como diz o capuchinho a Galileu Gall. Para R.Ventura, a destrui­ção de Canudos

se deveu menos ao anti-republicanismo do Conselheiro do que a fatores políticos, como os conflitos entre facções partidárias na Bahia, a atuação da Igreja contra a atuação pouco ortodoxa dos beatos e pregadores e as pressões dos proprietários de ter­ras contra a comunidade, cuja expansão trazia escassez de mão­de-obra e rompia o equilíbrio político da região. (VENTURA, 1997, p. 90).

Assim, o diálogo entre o coronel da República e o latifundi­ário demonstra que o tema da propriedade é fundamental, sendo trabalhado em A guerra do fim do mundo. Também o diálogo entre Gall e um determinado jagunço aborda a questão da terra como ponto de honra para os proprietários da região se defende­rem contra outras possíveis investidas dos "conselheiristas fanáti­cos". Ao tentar explicar que a perseguição ao Conselheiro e a sua Jerusalém eram uma defesa da burguesia contra o ataque de mi­norias carentes à propriedade privada, o jagunço negou ser esta a verdadeira causa.

Para o ponto de vista daquele homem simples, o poder, representado no coronel, enviara soldados porque os fiéis esta­vam construindo templos, visto que a República queria acabar com a religião, oprimir a Igreja, os fiéis e todas as ordens religi­osas. Pior ainda: instituíra o casamento civil. Replicando as afir­mativas do conselheirista sobre a interpretação das causas da

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guerra, Gall diz que

abolir a propriedade e o dinheiro estabelece uma comunidade de bens, faça-se em nome do que quer que seja, mesmo no de nebulosas abstrações, é algo ousado e valioso para os deserdados do mundo, um começo de redenção para todos. E que essas medidas desencadearão contra eles, cedo ou tarde, uma dura repressão, pois a classe dominante jamais permitirá que frutifi­que semelhante exemplo: neste país há pobres de sobra para tomar todas as fazendas. O Conselheiro e seus seguidores têm consciência das forças que estão acionando? (VARGAS LLOSA, 1987, p. 92).

Confinuando o diálogo existente nas duas obras, tem-se tam­bém a alusão ao movimento da Vandéia, acontecido durante a Revolução Francesa. Esse sectarismo manifestado aos ideais re­volucionários do século XVIII, comentado pela personagem de Vargas Llosa como movimento retrógrado, inspirado pelos pa­dres, foi também objeto de comparação com as leis internas de Canudos. Em Os sertões, Euclides da Cunha refere-se aos aconte­cimentos de Canudos como "a nossa Vandéia", aludindo a ela em seu livro e também em um artigo na imprensa, a possíveis "forças monarquistas em luta contra a República ainda jovem ... " (ANDRADE,2002,p.122).

Canudos - historicamente um "divórcio trissecular entre o litoral e o sertão" (ANDRADE, 2002, p. 179) - em Llosa repre­senta um autêntico paraíso concretizado, em Euclides, mesmo guardando o caráter de um éden, o arraial é definido como um primitivo abrigo de fanáticos e de bandidos. Para o peruano, o Conselheiro é retratado como agente de um singular, expressivo e importante fenômeno de uma cidadela libertária, sem dinheiro, sem patrões, sem polícia, sem padres, sem banqueiros nem pro­prietários, um mundo construído com a fé e o sangue dos pobres mais pobres. Comparando-se o texto de Euclides com o de Llosa, mas respeitando-se as devidas diferenças de época e de visão, conclui-se, parcialmente, que em Vargas Llosa existe uma conti­nuidade literária do mito do chefe e da utopia salvadora, símbolo de um mundo sem maldade, sem doenças, nem miséria. Tal espa­ço fora criado e liderado por Antônio Conselheiro, ser carismático capaz de preparar os fiéis em uma comunidade sonhada, uma re-

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produção da Canaã e da Jerusalém bíblicas para o milênio tão esperado e propiciador da volta ao Paraíso. Entretanto, Euclides da Cunha cita nomes e termos correntes à época, para descrever e esboçar, ante o olhar de futuros historiadores, o que chamou de um crime. Ele pretendia descrever o acontecimento sob a ótica da realidade lógica e acabou seduzido também por pretensas ma­nifestações sebastianistas encontradas em quadrinhas dentro dos casebres e anotadas em sua caderneta, embora isso fosse refutado por estudiosos, dentre estes, Ataliba Nogueira e Roberto Ventura.

Porém, cabe enfatizar que, se Euclides se preocupava principalmente com o fato histórico, com a visão científica e raci­onal do fenômeno, Vargas Llosa, ao contrário, investiu na roma­nesca recriação da história, de forma diversa, imaginativa, que, sem abandonar o factual, descreve literariamente o movimento de Canudos. Confirma-se na obra do escritor peruano a perspectiva mítico-sagrada do fenômeno e, por ironia, essa constatação se estende, ainda, à obra euclidiana, pois, ao assinalar crendices e ignorâncias míticas/místicas, sublinha a permanência de algo pri­mordial naquela sociedade. Inconscientemente e sob a égide da cientificidade, que deseja demonstrar e esclarecer, em seu relato histórico-cientificista deu relevância suficiente aos mitos que tran­sitavam no universo de Canudos. Perpetuava-se no texto dos dois escritores o momento em que se consolidava, na sociedade arcai­ca de Canudos, a metamorfose de temas confluentes, tais como: milenarismo, heresia, utopia, messianismo. Desta forma, mani­festaram dados armazenados no imaginário cultural, captaram em épocas diversas da História fenômenos que eternizaram as ações humanas e canalizaram para o texto a emergência do mito do che­fe político-religioso.

Na tentativa de concluir sem esgotar possibilidades de ou­tras futuras reflexões, pode-se dizer que a figura literária do Con­selheiro, em Os sertões, é negativa. O autor alude ao chefe como um evangelizador fatal e sinistro. Interpreta ter sido o Conselhei­ro quem arrastara aquela pobre gente para uma desgraça incalcu­lável. A obra, apesar de registrar o mito atualizado de uma figura carismática, carece da intenção engrandecedora, encontrada em Vargas Llosa. Já em A guerra do fim do mundo, focalizaram-se também as supostas ligações anti-republicanas de Canudos, de­senvolvendo-se, da mesma forma, o mito do chefe político-religi-

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::<.IClides da Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos

oso simbolizado no sebastianismo corrente na Baixa Idade Média portuguesa revigorado no líder. Diversas vezes, tem-se o relato de que os fanáticos sebastianistas queriam restaurar o Império, com a ajuda do Conde D'Eu, dos monarquistas, da Inglaterra, apesar de a literatura encaminhar a interpretação para um movi­mento messiânico capaz de fundar um "mundo às avessas": um dos topoi literários mais conhecidos (CURTIUS, 1996, p. 139-144), onde não existissem dores.

Quanto à ajuda extramuros enviada por anti-republicanos para Canudos, está igualmente tratada. Durante um diálogo entre Moreira César e Padre Joaquim, pároco de Cumbe, a idéia de conspiração estrangeira é apresentada em situações ridículas para o poder. O padre, preso por suspeita de levar munições para os jagunços, gozava de toda a liberdade no arraial, rezando missa, visitando sua companheira e filhos, sendo interrogado por isto pelo obsessivo Coronel:

- Falemos das balas explosivas ( ... ) Entram no corpo e estou­ram como uma granada, abrindo crateras. Os médicos não ti­nham visto feridas assim no Brasil- de onde vêm? Algum mi­lagre, também? ( ... ) - Que um padre tenha filhos não me tira o sono - diz Moreira César. Preocupa-me, apenas, que a Igreja Católica ajude os facciosos. Diga o nome de outros sacerdotes que ajudam Ca­nudos (VARGAS LLOSA, 1987, p. 254-255).

Durante o diálogo entre o coronel e o padre, aparece mais uma vez a descrição psicológica dos jagunços através da ótica do poder, sugerindo-se no perfil ambíguo do seguidor a concepção da natureza do chefe: louco, místico, santo e bandido.

Durante o interrogatório, as dúvidas e os mistérios envolvendo o Conselheiro também se mostram:

- O Conselheiro? - pergunta Moreira César, sarcástico. - Um santo, sem dúvida? - Não sei, Excelência - diz o prisioneiro. Eu me pergunto todos os dias, desde que o vi entrar em Cumbe, há muitos anos. Um louco, pensava no princípio. ( ... ) Apareceram uns padres capuchinhos, enviados do Arcebispo, para investigar. Não en­tenderam nada, assustaram-se, também disseram que era lou-

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co. Mas como se explica então, senhor? Essas conversões, essa paz de espírito, a felicidade de tantos miseráveis? - E como se explicam os crimes, a destruição de propriedades, os ataques ao Exército? - interrompe o Coronel (VARGAS LLOSA, 1987, p.256-257).

Além da interferência das personagens Gall, Frei Damião e Padre Joaquim, chega-se a uma configuração de Canudos, do Conselheiro e dos fiéis, através do Jornalista Míope, que apresen­ta outro ângulo do fenômeno. Os pensamentos do Jornalista so­bre tudo o que se passava e o futuro da guerra são investigados pelo narrador.

Acompanhando os acontecimentos, estava presente no ins­tante da conversa entre o Padre e o Coronel. Após o encontro, o Jornalista Míope foi tocado por questões instigantes, buscando mentalmente respostas esclarecedoras. Ele faz indagações para compreender se Canudos podia ser explicado somente através dos conceitos de conjuntura, rebeldia, conspiração, intrigas dos polí­ticos que pretendiam a volta da Monarquia. Com as palavras do padre tivera a certeza de que não era bem assim. Para ele, forma­va-se o contorno de algo "difuso, desatualizado, incomum, algo que seu ceticismo não o impede de chamar divino ou diabólico ou simplesmente espiritual" e que uma dúvida sobre a verdade o leva à pergunta: "O que é então? (VARGAS LLOSA, 1987, p.233).

Uma conclusão parcial

Justamente tal pergunta gerou, nos textos literários e críti­cos uma série de conceitos os mais variados sobre o fato. Uma polêmica se instala quanto ao comportamento de alguns seguido­res, encarregados da defesa de Canudos contra ataques externos. Nas descrições de Euclides da Cunha e Vargas Llosa, os adeptos aparecem como guerreiros e se igualam na força aos militares. Todavia, é considerado estranho um grupo de pessoas religiosas apresentarem uma milícia armada. Os jagunços, em Os sertões e em A guerra do fim do mundo, formaram a Guarda Católica, am­bígua designação das "tropas" conselheiristas. Os dois autores atestam a existência de uma brigada de defesa composta de faná­ticos e de antigos perseguidos pela polícia. Outra observação é

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::udides da Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos

feita a respeito de armamentos, citados pelo dois autores, mas refutado, no incidente das madeiras, pela crítica revisionística, em especial de A. Nogueira. Quanto ao porte de armas, a explicação é simplificada, já que normalmente um sertanejo traz sempre algo que o defenda do ataque de um animal ou de um salteador em suas incursões pelo mato.

Sejam eles jagunços armados - significando um revoltado ou um bandido - ou simples fiéis fanáticos, deve-se recorrer à força do Conselheiro que, em suas peregrinações e sermões per­suasivos, conseguiu arrastar todos os componentes da mar­gem para a página da existência. Tentando colocar o ser humano acima dos desejos e paixões da vida material, ela atraía a atenção dos ouvintes com suas promessas de um futuro restaurador, de uma romântica ordem social igualitária. Por se sentirem atacados, constituíram um grupo defensivo, apavorados pelo medo de se­rem dispersados. Os bens que conseguiram recolher, trazidos por aqueles que aderiam à causa, eram de todos. Eles temiam que acabassem em mãos do Anticristo República, a força desarticuladora de Canudos - para Euclides, um "dédalo desesperador de becos estreitos, ( ... ) em absoluta desordem, ( ... ) [obra de] uma multidão de loucos" (VENTURA, 1992, p.91) -porém experimentado como omphalos, como o centro do mundo, pelos seguidores.

Em A guerra do fim do mundo, Antônio Conselheiro é, para alguns, um santo e um revolucionário desejando efetivar, social­mente, ideais igualitários. Para os representantes do poder é um fanático rodeado de bandidos. Já em Os sertões, é um doente pa­ranóico aliciador dos desprovidos que viam na sua figura e pa­lavra a única salvação propagada em seus sermões. O organizador religioso e político sugerido por Vargas Llosa, em Euclides da Cunha, é um louco apóstolo extravagante, perseguido por estig­ma atávico, portador de uma "psicologia especial". Ressaltado por Vargas Llosa como um líder organizador, preocupado não apenas em salvar os homens do Anticristo República, emA guer­ra do fim do mundo, ele é o líder social e religioso de seus segui­dores, munido de autoridade necessária para livrá-los do pecado e conduzi-los à salvação após o juízo final.

Assinala-se que a essência rebelde e a síntese revolucionária da utopia imaginada e concretizada por Antônio Conselheiro é

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indicada ainda por Gall, aquele idealista que se identifica com o líder e com o arraial. Mas sua preocupação é com o material, com o quotidiano, assim, afasta seu questionamento sobre a desigual­dade entre os homens do campo metafísico e místico, não se em­penha em responder às questões que lhe coloca, a personagem Jurema:

- O senhor acredita que o Conselheiro foi mandado pelo Bom Jesus? Acredita nas coisas que ele anuncia? Que o mar será sertão e o sertão mar? Que as águas do Vaza-Barris vão virar leite e suas barrancas, cuzcuz de milho pra que os pobres co­mam? (VARGAS LLOSA, 1987, p.233).

Para finalizar, destaca-se a passagem em que durante sua viagem rumo a Canudos, a fim de conhecer a cidade prometida e seu fundador, Gall encontra um grupo de sertanejos que vagava e lhes fala da seguinte maneira, em clara adesão àquele tão criti­cado projeto:

_ Não percais a coragem, irmãos, não sucumbais ao desespe­ro. Não estais apodrecendo em vida porque um fantasma es­condido atrás das nuvens assim o decidiu, mas porque a soci­edade está mal formada. Estais assim porque não comeis, por­que não tendes médicos nem remédios, porque ninguém se preocupa convosco, porque sois pobres. Vosso mal se chama injustiça, abuso, exploração. Não vos resigneis, irmãos. Do fundo de vossa desgraça, rebelai-vos, como vossos irmãos de Canudos. Ocupai as terras, as casas, apoderai-vos dos bens daqueles que se apoderaram de vossa juventude, que rouba­ram vossa saúde, vossa humanidade ... (VARGAS LLOSA, 1987, p. 233).

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Referências

ANDRADE, O. de Souza. História e interpretação de Os sertões. 4.ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2002.

CAMBEIRO, D. A figura literária de soter e herege em Os sertões, de Euclides da Cunha. In: MALEVAL, M. A. T. e PORTUGAL, ES. (orgs.) Estudos galego-brasileiros. Rio de Janeiro: H. P. Comunicações, 2003.

CUNHA, E. da. Os sertões. São Paulo: 1993, Cultrix.

CURTIUS, E. Literatura européia e Idade Média latina. São Paulo: Hucitecl USP,1996.

NOGUEIRA, A. António Conselheiro e Canudos. São Paulo: Editora Nacional, 1974.

VENTURA, R. Canudos como cidade iletrada: Euclides da Cunha na urbs monstruosa. In: B. A. Junior e I. M. Alexandre (orgs). Canudos: palavra de Deus sonho da terra. SãoPaulo: SENAClBoitempo, 1997.

VARGAS LLOSA, M. A guerra do fim do mundo. 16.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1987.

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Motérioux pour une étude de lo réception de lo littéroture brésilienne en Fronce

1 Ce texte est la version 3ugmentée d'une communi­.:ation, « Littérature brésilienne en France : limites et fonde­ments », au colloque de i' Université de Pau organisé par !e Centre de Recherches Poétiques et Histoire Iittéraire : Bourlinguer en écriture. Les :nfluences croisées franco­brésiliennes organisé par Eden víana Martin et Nadine Laporte, (janvier 2006), inédite, à paraitre. Ce texte s' adressait au départ à un public français non spécialisé. 11 reprend des éléments parus dans France­Brésil (direct. Michel Riaudel, ADPF, 2005), « La réception de la littérature brésilienne en France », p.67-72. 11 integre également des éléments de la communication du colloque sur « La formation du roman au Brésil ». Pour Ie détail des ceuvres traduites, je renvoie à la Bibliographie franco­brésilienne de Georges Raeders (Rio de Janeiro, 1960) qu'on complétera avec Estela dos Santos Abreu: Brasil França, ouvrages brésiliens traduits en France (B.N., Rio, 2004). Pour I'histoire de la traduction et de la réception de cette littérature,je renvoie à mes deux livres Encontro entre lite­raturas .' França Portugal Brasil (Hucitec, 1995) et Dialogos interculturais (Hucitec, 2005). On se reportera aussi à Mario Carelli, Cultures croisées, Nathan, 1993 et à Marie Hélene Catherine Torres : Variations sur l' étranger dans les lettres.' cent ans de traductions françaises des lettres brésiliennes (Artois Presses, Université 2004).

Pierre Rivas (Sorbonne Nouvelle, Paris 111)

La littérature brésilienne se situe, dans le systeme de la littérature mondiale, comme ultra-périphérique, au sens ou les organismes intemationaux parlent de centre, périphérie, semi­périphérie, périphérique longtemps par rapport au Portugal, lui­même périphérie de la Péninsule ibérique. La relation Centre­Périphérie, théorisée un temps, dans le sillage post Braudel de I' «économie-monde» a élaboré I' idée de dépendance culturelle: une littérature du soupçon, entre plagiat et épigonisme, voire exotisme, la frappant d'illégitimité, car transposant des idées «intempestives hors de leur lieu»l

Pareillement périphérique, la place du portugais dans le systeme mondial de la traduction, ses flux et refluxo Les spécialistes ont montré que les langues du monde constituent un systeme de communication hiérarchisé, qui se vérifie dans le flux des traductions. 11 y a des langues dominantes et des langues dominées. L'anglais est aujourd'hui la langue hypercentrale : 50 % des traductions se font à partir d'elle ; puis des langues centrales : le français (10 %) et I' allemand ; puis des langues semi­périphériques : espagnol, italien ; les autres langues : arabe, russe, chinois, portugais, se situent au-dessous de 1 % (on voit donc que la hiérarchie d'une langue est indépendante de son extension : il y a des langues internationales et des langues régionales, même avec des milliards de locuteurs). 11 y a une relation entre hiérarchie des langues et flux des traductions; si paradoxal que cela paraisse, plus une langue est dominante et plus on traduit à partir d' elle et moins elle traduit vers elle. Le systeme anglo-saxon est tres auto-

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centré; la France s'est longtemps nourrie d'elle-même ; elle traduit aujourd'hui plus de littérature brésilienne que les USA2.

Le handicap brésilien est ici encore manifeste: position périphérique ; une langue «rare» selon la terminologie officielle, et Iongtemps non institutionnalisée dans l'enseignement (et à I' avenir incertain et menacé aujourd'hui).

Handicap encore: une insularité géo-culturelle face aux vingt Amériques hispaniques qui n'ont jamais perdu le contact avec I' ancienne métropole espagnole, laquelle leur a servi de relais et de chambre d'échos dans le monde hispanique et le reste du mon­de, en particulier grâce aux maisons d'édition à Barcelone, et au rôle d'agents littéraires. Tel n'est pas le cas du Portugal, ex­métropole qui a vu sa colonie grandir et s' auto-centrer, ou les relations littéraires se sont distendues au point, parfois, de s' ignorer.

Handicap encore: I' écrivain hispano-américain écrit pour un immense public, vingt pays, une ex-métropole attentive, dans une langue intemationale. Cela explique le «boom» latino-américain, auquelle Brésil ne participe pas. L'écrivain brésilien écrit dans une langue méconnue et sans échos autres, parfois, que son «état» régionaI, hors de grands centres légitimant (São Paulo, Rio). En ce sens, la littérature brésilienne est une littérature «mineure», au sens de Deleuze, «périphérique» au sens néo-marxiste. L'héritage portugais Iui-même, prestigieux et trop ignoré, est une voix solitaire, élégiaque et désaccordée face à I' ostentation espagnole. Le Portugal salazariste a longtemps tenu à I' écart cette littérature d'un modemisme subversif et, malgré le Prix Camões, ces deu x littératures se connaissent mal.

La littérature hispano-américaine a su trouver depuis longtemps sa consécration à Paris, capitale de la République Mondiale des lettres, qui a intemationalisé ces littératures, imposant Borges malgré la réticence de ses compatriotes, ou Paz. La présence d'écrivains, diplomates ou en exil, d'universitaires, de colonies importantes «d'expatriés» ont été des relais fondamentaux, en particulier dans l'université. Tel n'est pas le cas pour les Brésiliens, émigrant peu, et I' enseignement de leur Iangue a été essentiellement investie par des Portugais.

Se pose donc ici le problême central des intermédiaires et des traducteurs. Ferdinand Denis a été au XIxe siêcle le fondateur des études brésiliennes (et, d'une certaine maniêre, l'apôtre et le

2 HEILBRON, 1. et SAPIRO, G. in Actes de la Recherche en Sciences sociales, n° 144. Les traductions représentaient en 2003, 2,8 % du total de la production éditoriaIe ~ricaine.

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\'Iatériaux pour une étude de la réception de la littérature brésilienne en France

.1 SurcesnoIm,cf.rresdeuxlivres cités en note 12, et le colloque Lisbonne atetier du lusitanisme .trançais, études réunies par 1. PENJON et P. RIVAS, Paris, Presses Sorbonne Nouvelle, 2005, l04p.

" Voir «V Latbaud, agent secret des littératures luso-brésiliennes en France» et «Demiere tentation de V Latbaud,le Brésil", in Cahier des Amis de V. Larbaud, respectiverrent n° 34, 1997,87 p. et n° 5, nouvelle série, Edit des Cendres, 2005, 157 p. (études réunies par P. RIVAS).

5 Je renvoie à mon article <<Fortune et infortunes de 1. Amado en France, réception comparée de I'reuvreamadienne»,inJ.Amado, lectures et dialogues autour d'une lEuvre, Paris, Presses de la Sorbonne Nouvelle, 2005, p. 23 à 30. Sur le régionalisrre,je rappelle \estravauxd' Anne-MarieThiesse. On sait que le régionalisme n' est qu' une variante de I' exotisme : le paysan mêrre Français, est <<I1otre frere farouche» plus proche du caboclo que du Parisien.

parrain d'une Iittérature brésilienne autonome). Ces médiateurs Iittéraires indispensables ne sont pas toujours des traducteurs, IesqueIs manquent OU de rigueur ou de gout, sans réelle formation jusqu' à récemment. Hommage ici à des passeurs inspirés teIs Phileas Lebesgue, Pierre Hourcade ou Armand Guibert3 • Roger Caillois a joué un rôle central avec La Croix du Sud, mais Ies trop rares titres brésiliens se circonscrivent à une veine essentiellement régionale. V. Larbaud a été «1' agent secret des Iittératures Iuso-brésiliennes» ; Ie Brésil fut sa «demiêre tentation»4 . C' était un exceptionnel «passeur», mais isolé, mal épaulé par des traducteurs peu inspirés ; et la maladie a vite mis un terme à cette trop brêve saison.

II faut ici insister sur une question centrale s' agissant de la réception de cette Iittérature. Le BrésiI est un pays-continent, qui, à l' inverse de I' Amérique hispanique, ne s' est pas balkanisé. Mais l'unité impériale n'a subsisté qu'au prix des autonomies régionales. La littérature brésilienne est une, mais constituée de régionalismes Iittéraires spécifiques, des «comarcas» (AngeI Rama). La cartographie littéraire du Brésil ne cOIncide pas avec sa réception à l' étranger. Une Iarge partie de cette littérature ne passe pas à l'étranger. L'horizon d'attente du lecteur français (mais généralisable) ne s'intéresse qu'à une partie três géographique et circonscrite: la littérature du Nord-Est.

Donc, il faut analyser la réception de cette littérature dans ses diversités régionales : quelles régions Iittéraires retiennent principalement, voire exclusivement, I' intérêt français? C' est une question épineuse et qui génêre beaucoup de malentendus dans le dialogue France-Brésil.

Depuis le Romantisme, avec F. Denis, l'intérêt français va naturellement, vers la différence, de I'!ndien au XIXe siêcle jusqu' à la reconnaissance du Noir au xxe siêcle. Phileas Lebesgue «adap­te» Iracema pour un public adolescent. Mais il faut surtout insister sur l'importance de la littérature régionaliste en France au début du siêcle. Les deu x principaux traducteurs français, Lebesgue et Gahisto, sont des militants régionalistes, venus du Nord, provinciaux hostiles à la littérature parisienne, mondaine, psychologique ou avant-gardiste, et séduits par I'idée de race, non raciste mais enracinée, celle d'un «peuple», de «I' intérieur»5 . Cette séduction ethnographique explique leur attention au courant régionaliste, en particulier à Monteiro Lobato, à l'Enfer et au

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Paradis vert amazonien, mais aussi à Alcides Maya, ou au caboclo de C. Neto. Ce sera aussi le cas de I' autre important intermédiaire, Jean Duriau. Les trois collaborent à la Revue de ['Amérique [atine qui est entre les deux guerres, la principale revue ouverte à ces pays. Ajoutons qu'ils sont pareillement hostiles aux avant-gardes littéraires tenues pour jeux gratuits du parisianisme. Or le Brésil doit se libérer de ces modeles. À peine sacrifient-ils au «roman psychologique et mondain» d' A. Peixoto.

Les «fortunes contrastées» de Machado de Assis et Graça Aranha relevent pareillement de stratégies idéologiques, diplomatiques et mondaines. Le succes de ce dernier relevant de I' antigermanisme alors frénétique en France, de son «nacionalis­mo para barressiano» (G. Freyre), et, accessoirement, du «roman philosophique à idées» mis à la mo de par Paul Bourget. Bergson le loue comme «le représentant par excellence de la pensée brésilienne». Pour O. Lima, présentant Machado en Sorbonne, le plus grand éloge est de le placer entre Mérimée, Renan ou Daudet; de le réduire, en fait, à la tradition de la latinité quand Aranha serait aux avant-postes du combat pour la civilisation. Canaan, pour Jacques Bainville, est I' équivalent des Déracinés de Barres. Machado est un artiste, Aranha un penseur, trop peu «Brésilien». II faudra attendre Roger Bastide pour le restituer au lecteur français à sa brésilianité intérieure fonciere dans sa préface à la traduction de Quincas Borba en 1955. La traduction de Dom Casmurro en 1936 avait quelque peu déplacée les références, d' Anatole France vers Sterne (René Lalou dans les Nouvelles littéraires) et voire Dickens (Gahisto dans le Mercure de France en 1937). Tous ces traducteurs sont plus sensibles au courant loca liste (ils traduisent C.Neto, M. Lobato, A. Azevedo, etc.) qu'au versant cosmopolite (ni Machado, ni les modernistes) ; à la poésie néoparnassienne (Bilac), pas à la modernité poétique - accessoirement Ribeiro Couto, en poste en France.

Ces stratégies officielles de 1 'idéologie de la latinité rendent ainsi hommage, en Sorbonne, en 1909, à Machado de Assis sans lui rendre justice: honoré, à peine traduit et inaperçu. On lui préférera Graça Aranha, plus idéologue. Son statut rappellera assez celui de Eça de Queirós à qui on préférera Teixeira de Pascoaes, plus idiosyncrasique. Mais le roman réaliste européen, Galdos, Verga, Fontane, ne trouvera pas plus de curiosité en France,

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attentive à-Ia- seuIe- singularité- anglaise ou -russe: La politique­officielle fait traduire Nabuco ou Rui Barbosa sans aucun écho. Les relations mondaines, la comédie des gens de lettres faciliteront les traductions de A. Celso ou A. Peixoto et plus encore celle de Graça Aranha. Mais beaucoup de ces traductions sont à compte d'auteur (Eneas Ferraz, etc.).

L'absence de relais éditoriaux est ici manifeste malgré la présence de l'éditeur Garnier, O Bom Ladrão, dont Figueiredo Pimentel disait que son représentant au Brésil ignorait tout de cette littérature.

L' officialité incline à une lecture sollicitée de cette littérature. Ainsi de I'Anthologie de Victor Orban publiée en 1913, à la de­mande de O. Lima, et qui est bien contestable et trop officielle. Un paradigme regne encore, celui, dysphorique, de I' anthropologie des Lumieres, de De Paw à Buffon et Hegel: continent de «l'immaturité physique et morale ... pays inachevés ... enfants inconscients [simple] écho du vieux monde» ... expression d'une vie étrangere, dit Hegel dans la Raison dans l'histoire.

«La formation du roman brésilien», laborieuse et difficile est le propos du livre en français de B. Costa, le Roman au Brésil (1918). Il cite à peine «Mémoires d'un sergent de la Milice», qui n' aurait qu'une valeur documentaire. Ronald de Carvalho, dans la Revue de Geneve d' avril 1921 sera moins fervent de Aranha, plus ouvert à Macedo, attentif à Lima Barreto, «un Sterne plus ému, un Gorki moins rude». Les références de B. Costa sont «Ia haute littérature française» : Bourget, Hermant, MareeI Prevost, Anatole France. Voulant analyser les «moments mentaux» du Brésil, montrer «I'éclosion du roman au Brésil, son développement», il retient quatre écri vains de référence: Machado de Assis, la colonne ionienne, sobre et élégante; A. Azevedo, naturaliste «dorique», Coelho Neto, néo romantique composite, et, culmination et couronnement, Graça Aranha, colonne corinthienne (à I' exception de Machado, tous ces écrivains sont aujourd'hui absents des librairies françaises, comme le sont Abel Hermant, MareeI Prevost. Paul Bourget).

Graça Aranha et Coelho Neto seront les écrivains les plus traduits, ou les plus loués. lei se vérifie encore la géographie littéraire du Brésil français: Alencar, Azevedo, etc., tous écrivains du Nord, du Nord Est, du Maranhão, de Bahia, de l' Amazonie,

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attentifs à une lignée d'expression sociale, romantique ou réaliste, aux «scenes de la nature» quasi ou franchement exotiques. Ce sont des écrivains «bombásticos», boursouflés, qu' on qualifierait de néo-baroque, ou d' épais sensualisme.

Vn peu de cette constance pourrait se retrouver dans le succes de J. Amado en France, qui fut considérable et qui, s' il doit un peu au départ, aux stratégies politiques, l'a incontestablement transcendé, en faisant l' écrivain le plus lu et par un lectorat largement ouvert. Mais son succes permet de revenir sur la lecture «idéologique» et téléologique de Costa, pour qui le roman brésilien - à I' image du français - devrait passer du pur phénoménisme de Macedo ou de Almeida, du grossier sensualisme de Azevedo (et sans doute aurait-il pensé ainsi de Amado), au «grand» roman idéologique de Aranha. On a à juste titre soutenu que la matrice du roman brésilien du XIXe siecle ne se trouve pas dans le roman européen du XIXe siecle, mais dans celui du XVIIle siecle chez Steme ou Diderot, et, au-delà, chez Cervantes ou Rabelais, comme le dit Milan Kundera. D'ou la modemité, aujourd'hui reconnue, de Macedo ou de Manuel Antonio de Almeida.

Il faudra attendre, dans la lecture et la réception de la littérature brésilienne en France, les travaux de Roger Bastide apres la Seconde guerre, pour qu'un changement de paradigme, décisif, se produise et que la littérature brésilienne soit reconnue dans son altérité et Machado dans sa radicale et universelle différence. Mais le modemisme brésilien, la littérature du Sud, reste encore largement étrangere au lectorat français. La «dépendance» parait jouer en sa défaveur. «Simple écho du vieux monde»? Le saut qualitatif du modemisme brésilien par rapport aux avant-gardes européennes échappe encore à nos ethnocentrismes.

L'unité de la littérature brésilienne est faite de tension entre deux pôles, le cosmopolitisme et le localisme pour reprendre I' opposition de Antonio Candido. Littérature à double registre, fatalité de I'héritage colonial - entre Mémoire européenne et Fondation américaine, entre tentation centrifuge et vocation centripete, entre Machado de Assis, écrivain de stature intemationale à la mesure d'un Flaubert, et Euclides da Cunha, I' auteur de l' épopée nationale des Sertões, entre Clarice Lispector qui n'est pas indigne de V. Woolf et Jorge Amado, le chantre de Bahia. S'il fallait réduire tres vite l'horizon d'attente du lecteur

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~ fatériaux pour une étude de la réception de la littérature brésilienne en France

• Voir mon article <<Le Brésil dans l'imaginaire français: tentation idéologique et récurrences mythiques», in Images réciproques du Brésil etdelaFrance,IHEAL,1991.

français face au Brésil, on hasarderait le fantasme duprimitivisme sous ses deux formes, répondant aux deux moments fondateurs de son émergence ; celui de la Découverte, des «descobridores» et, disait Borges, dans ce mot, il y a or: vision de l'Eldorado, du Paradis Terrestre, le pays du désir (Hegel), de lajouissance (Lacan) et, à I' opposé, celui des «conquistadores» colonisateurs cruels: l'Enfer, la violence, l'esclavage, l'anthropophagie, marquant négativement conquérants et autochtones. Ce sont ces deux veines qui traversent I' imaginaire français de Montaigne et Jean de Lery à Cendrars et Lévi-Strauss.

Dans l'imaginaire français, sur la longue période, le Brésil appara'it à la fois comme remords (colonial) et désir (fantasme) d'une incomplétude française. C'est la veine «exotique» et primitiviste qui travaille nos fantasmes brésiliens. Elle constitue l'horizon d'attente français, à la fois son fondement et ses limi­tes. Limites quand la France réduit le Brésil à sa latinité périphérique pour des raisons géo-politiques; cette littérature est une «copie» du modele français et Machado de Assis un Anatole France des Tropiques. Les Modernistes de São Paulo, pour Blaise Cendrars ne font que singer les modes parisiennes, tard et mal. Cette littérature est donc, dans sa dimension universaliste ou ses modalités modernistes, frappée d'illégitimité ou d'épigonisme. C' est la veine régionaliste, la plus idiosyncrasique pour les uns, la plus «exotique», se plaindront beaucoup de Brésiliens ouverts à la Modernité et en quête de reconnaissance internationale, qui retiendra le lecteur français - non plus le double de la France, sa pâle copie, mais sa contre-figure. L'horizon d'attente français, dans les années 30, perd de sa superbe ethnocentrique et travaille les tréfonds archai'ques et primitivistes: crise de la raison occidentale, émergence de I' ethnographie, du freudisme, du marxisme, du Surréalisme6 • Ces tropismes vont trouver dans la veine régionaliste «enracinée», «archai'que», du Nord-Est leur «Supplément d'âme»: le roman social, surtout celui de Jorge Amado, dont on ne saurait sans injustice réduire le succes à I' acti visme de I' internationale communiste, ni à son seul exotisme, ni, plus tard, à son côté érotico-populiste.

Pourquoi cet intérêt pour le roman régionaliste-social nordestin, cette ignorance des grands romans urbains de Macha­do de Assis et ce constant désintérêt pour le Modernisme ? Blaise

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Cendrars n' avait que sarcasmes pour ces modernistes de São Paulo qui I' avaient accueilli si généreusement, assurant qu' il ne resterait d' eux que « quelques romans illisibles et une pincée de plaquettes rares », leur préférant Bahia et Pernambuco, «les deux mamelles des Belles Lettres et des Arts Brésiliens [ ... ] qui ont mis le Brésil dans le grand courant de la littérature mondiale à côté des USA» (préface à I'Enfant de la plantation de Jose Lins do Rego, repris dans Trop c' est trop). II y aurait à dire et à redire sur les propos et sur la position de Cendrars dans le champ littéraire français d' alors. II y a un double malentendu, de Cendrars, Robinson Suisse s'ensauvageant dans le Brésil «archa'ique» et fuyant les milieux littéraires (à la maniere de Jean Jacques) et des modernistes tentant de fonder une tradition nationale que «le pirate du Lac Léman», «pourri de littérature» dit Mario de Andrade pourrait compromettre dans son utopie de la «tabula rasa ».7 II y a un double malentendu entre Cendrars et les Modernistes à propos de deux Brésils - des deux Brésils. Mais les choses n' ont guere changé, même apres qu' on a traduit, édité, étudié, le Modernisme8 • Et le succes d' Amado perdure.

Le Brésil est bien la contre-figure du modele français. Face à une littérature du soupçon, s' épuisant en psychologisme, minimalisme, néoclassicisme, formalisme, narcissisme autofictionnel, le roman nordestin affirme sa confiance dans le récit, son abandon au Iyrisme, sa force tellurique, sa dimension épique: I' émergence de ce que Milan Kundera appelle «le roman du Sud et sa généalogie : Rabelais, l' oralité, le créole, I' esthétique de I' invraisemblance, Rushdie, Naipaul, Garcia Marquez, Chamoiseau» .

Face à I'utopie de lamodernité à I'heure de la mondialisation arasante, le roman du Sud - y compris Faulkner et Glissant­oppose, selon I'expression d'Homi Bhabha (O local da cultura) «des cultures de la contre modernité, résistant à leurs oppressives technologies assimilationistes». Le Brésil est le pays de I' «homem cordial» contre I' individu sérialisé.

Mais I' altérité brésilienne ne se réduit pas à la nature tropicale, la vitalité du Noir ou I'énigme de l'Indien. Le mystere des origines et la fascination de la transe exportent beaucoup de stéréotypes et de clichés alimentant en retour et multipliant les fantasmes français et leurs écrits sur le Brésil, et pas seulement chez Cendrars.

7 l' ai esquissé ces poiots in «Ceodrars Homme Nouveau, Nouveau Monde», in Europe, spéciaI Ceodrars, o o 566, juin 1976 ; dans «B1aise Cendrars et I' avant -garde» in Blaise Cendrars 20 ans apres, Klincksieck, 1983, et dans <<Éloge du déserteUD>, in B. Cendrars, le bourlingueur des deux rives, A. Colin, 1995 (sous la direction de Qaude Leroy).

g Sur le Modernisrne brésilien, voir Ie nurnéro 599 d' Europe, mars 1979.

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Matériaux pour une étude de la réception de la littérature brésilienne en France

Cette réception - et cette veine française - désesperent le Brésil du Sud face à la persistante méconnaissance de leur avant­garde littéraire et de leurs grands écrivains classiques. Littérature exotique d' exportation: putes aguichantes et voyous au grand creur. Mais la France a exporté aussi nos paysans madrés de Maupassant et les Marseillais de Pagnol. Et on a plus lu à l' étranger Hervé Bazin que Julien Gracq.

11 faudrait ici distinguer entre auteurs lus - et trop «lisibles» (Gide de Amado) et auteurs reconnus dans le canon littéraire à I' étranger - cas des hispano-américains Borges, Cortázar, Paz. Machado de Assis est une référence pour Susan Sontag ou Carlos Fuentes. Son reuvre, relue à la lumiere, non plus de Anatole France, mais de Steme, voire de Dostolevski ou de Pirandello, est un peu mieux reconnue d'une élite restreinte et mérite de I' être davantage.

Le seul auteur brésilien qui a trouvé un certain statut littéraire est Clarice Lispector, à travers Helene Cixous; le relais se fait à travers la littérature féministe qu'elle n'a jamais prétendu représenter. Elle est une référence dans un certain systeme littéraire français, mais en marge, que sa qualité littéraire transcende infiniment.

Entre le grand lectorat - Amado - et les instances de légitimation - Clarice - qu'y a-t-il ? Des noms, souvent éphémeres. Le modemisme pauliste n'a pas trouvé son public, même restreint à une élite et Graciliano Ramos pas beaucoup plus. La prégnance en France du roman nordestin et amazonien est corroborée par les tropismes des chercheurs français. Lévi-Strauss, RogerBastide enseignant à São Paulo, mais travaillant sur 1'lndien et le Noir et ignorant les travaux de leurs collegues du Sud (Sergio Buarque de Holanda ne sera traduit - Racines du Brésil- que tres tardivement alors que Gilberto Freyre est traduit et fêté à Cerisy-Ia-Salle). Les manifestations de cette Année du Brésil- de I' ouverture indienne au Grand Palais aux musiques nordestines et aux expositions sur l' Amazonie en sont encore la preuve.

La réception d 'une littérature étrangere donne toujours lieu à des malentendus : la place de Poe en France, celle de Laforgue, de Corbiere ou de Supervielle en Angleterre le montre assez. La différence brésilienne est particulierement manifeste s' agissant de la poésie et sa réception spécifique. Vn lectorat partout réduit et davantage en traduction ; la nécessité de traducteurs inspirés

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maitrisant la langue source et la langue cible ; des maisons d' édition dévouées. Mais il faut dire encore que la trajectoire de la poésie brésilienne au XXe siêcle est irréductible, elle ne recoupe pas les grands courants poétiques internationaux, le Surréalisme par exemple, à l'écart des grandes tendances, y compris sud­américaines. Le Modernisme, dans sa radicalité, et le concrétisme, derniêre utopie de I' avant -garde, ont pu retenir I' intérêt de quelques revues, de quelques maisons d' édition et paraitre même parfois confisquer toute la parole poétique brésilienne dans des chapelles ou des ghettos de revues. Quelques grands ont été traduits (Carlos Drummond de Andrade, Ferreira Gullar). Mais on ne trouve aucun recueil de Bandeira, de João Cabral de Melo Neto. On peut se féliciter de voir traduit quelques figures féminines exemplaires: Ana Cristina Cesar, Hilda Hilst, etc. Là encore, c' est la singularité de cette poésie, à I' écart des grandes tendances, qui peut expliquer leur isolement : un certain schématisme formeI, une réticence certaine aux images, un ostinato rigore dans la philosophie de la composition, une radicalité extrême dans I' expérimentation, aucun de ces grands poêtes qui aient connu la consécration d'un Neruda, d'un Borges, d'un Paz, d'un LezamaLima. De grands poêtes exilés et ensevelis dans leur insularité.

La facile séduction brésilienne et son exotisme réducteur cachent la difficile altérité brésilienne et son opacité. Le vertige de I' altérité peut se tradu ire dans les épiphanies de Clarice Lispector mais plus difficilement dans I' ethos amazonien ou I' aridité du ser­tão. - qui est une image de I'âme - chez Euclides da Cunha ou Guimaraes Rosa: le paradis vert est surtout un enfer9 • La culture orale, qui est la matrice de cette littérature, donne sa séduction aux romans de J. Amado, et sa difficile appréhension à ceux de G. Rosa.

Pour Hegel, l'Europe désormais, c'était la Prose. L'Épopée, la Poésie, le Mythe étaient le terrain et le terreau du Nouveau Monde, pays ou I'on rencontre le Diable, les Esprits, la Mort, le Double, le Merveilleux médiéval ; pour la théorie post-coloniale, les sociétés périphériques sont la mémoire et le laboratoire des contre-cultures. Ceci se vérifie au Brésil plus qu'ailleurs. D'ou peut-être la difficulté d'appréhender ces lectures sinon à travers stéréotypes et clichés? Mais est-ce une bonne approche que ce réductionnisme socio-critique ou idéologique ?

9 La veine nordestine a retenu I' édition française. L' autre grande fascination est I' Amazonie. Mais le grand livre amazonien pour le lecteur français est F orêt vierge, l'reuvre du portugais Ferreira de Castro <<tIaduit" par B. Cendrars.

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Matériaux pour une étude de la réception de la littérature brésilienne en France

10 On trouvera un état de la question dans le n° 919/1920 d' Europe, Littérature du Brési~ nov.-déc. 2005, organisation Michel RIAUDELet P. RIVAS et dans France Brésil, ADPF, 2005, sous la direction de M. RIAUDEL, qui releve I'état présent des traductions disponibles actuellernent dans la librairie française. On trouvera égalementdans cetouvrage,sous le titre «La réception de la littérature brésilienne en France», une prerniêre ébauche de ce texte sur les Matériaux ici repris, élargi et augmenté.

Cetlcprésenlaliondel'é1mpresem de la littérature brésilienne en France, sommaire, rapide, panoramique, certainement arbitraire, s' adresse à des lecteurs français non avertis. On peut la prendre, de même que ces Matériaux, comrne une vision française qui, à ce titre, avec ses limites et ses limitations peut intéresserle~brésilien comrne docwnent.

En conclusion, faisons le point sur I' état présent de cette réception de la jeune littérature lO •

On peut la résumer par ces deux pôles constitutifs dês I' origine, entre tradition naturaliste et régionale et cosmopolitisme international. La lignée néo-naturaliste de la «Génération de 90» s'établit pour nous dans la tradition fondatrice de notre imaginaire comme terre de la sauvagerie, de la violence, de la cruauté. Les Nouveaux Cannibales sont les jeunes des banlieues sensibles, «les sauvageons» de la périphérie. Ce sont les romans de lafavela: ainsi de la Cité de Dieu de Paulo Lins, de Tant et tant de chevaux de Luiz Ruffato ou des romans de Patricia Melo. Trafiquants de drogue, psychopathes, marginaux, romans de la violence urbaine, dont le pêre est Rubem Fonseca. Littérature à la lisiêre du document, de l'image, dans un néo-naturalisme exacerbé, un hyper réalisme bru­tal, alimenté par et alimentant les media, telenovelas ou films -assurant ainsi continuité et rupture dans notre horizon d' attente et

nos premieres images : la Terre du Mal, de I' exces, de la démesure. L' image édénique, la nostalgie des origines, notre rêverie

récurrente, primitiviste et amazonienne s'infléchit en nostalgie non plus de I' espace, mais du temps et de la mémoire chez Milton Hatoum, auteur amazonien mais habité de sa mémoire libanaise et orientale, tissant de songe une élégie mélancolique. Cette veine orientale (Raduan Nassar) voire orientaliste (Alberto Mussa) dessine, dans une littérature généralement expressionniste, un filon qui déréalise le réel. Ce travail de déréalisation est au centre de romans de Chico Buarque (Budapest) et de Bernardo Carvalho, plus maniériste et post modeme (Mongolia, Neuf nuits) traduisant l'incertitude, la perplexité, l'instabilité d'un Brésil déraciné de son terreau rural et perdu dans ce Nouveau Brésil.

Vision dilacérée de ces deux Brésils, entre enfer et paradis, qui s'inscrit dans la lignée d'un imaginaire brésilien de Cendrars à Orsenna, de Peret à Rufin, voire dans l'émergence d'un roman noir français chez Bernard Mathieu ou Mathieu Térence, entre euphorie et dysphorie, enchantement et désenchantement du monde. Le succes intemational de Paulo Coelho, dans son formatage de best-sellers déterritorialisé, laisse peut-être encore sourdre un peu de cette prégnance d'une quête et d'une nostalgie d'un autre monde.

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I A pesquisa de que resulta este texto só foi possível graças a uma temporada de estudos no Centre de Recherche sur le Brésil Contemporain da École des Hautes Études en Science Sociales, Paris, onde realizei, no priIreim seJreStre do ano de 2005, um estágio pós-doutoral. Para tanto, contei com a orientação de Jean Hébrard e obtive bolsa de estudos da CAPES.

2 Sobre os dados biográficos de Amelie Schoppe, consultar Brinker-Gabler (1986). Maria Teresa Cortez (2003) apresenta um estudo sobre a representação do Brasil na novela alemã Die Auswanderer Nach Brasilien Oder Die Hütte Am Gigitonhonha, de Amelie Schoppe, no qual oferece indicações sobre o percurso intelectual da autora

Lições de viagens, devoção religiosa e sobrevivência nos trópicos: o Brasil no romance juvenil francês oitocentista 1

Andréa Borges Leão (UFC)

República mundial das letras juvenis

Amelie Weise Schoppe nasceu em Fehmarn, uma ilha ao norte da Alemanha, no dia 09 de outubro de 1791. Com o pai, o Dr. Friedrich, foi iniciada na arte de curar, e, após a morte do "médico da cidade", em 1798, mudou-se para Hamburg. Lá, ins­talou-se na casa de um tio acabando por abrir uma escola para meninas, em 1823, com uma educadora chamada Fanny Tarnow. Antes disso, Amelie cumpriu o destino das moças de seu tempo: casou-se com um jurista, teve três filhos e ficou viúva. Seu casa­mento não lhe trouxe muita felicidade. Após a morte do marido, passou a escrever livros com o objetivo de sustentar a família. Publicou, então, obras com lições de sabedoria e moral a fim de guiar as crianças na vida prática, além de colaborar para muitas revistas e editar jornais de moda na Alemanha e em Paris, dentre os quais se destaca a Revista Para Jovens Iduna. Suas obras so­mam mais de 200 títulos e, além do francês, algumas foram traduzidas para o inglês, o holandês e o tcheco. Em 1851, a es­critora emigrou para os Estados Unidos onde faleceu no dia 25 de setembro de 18582 •

Julie Nicolase Delafaye-Bréhier nasceu na cidade francesa de Nantes, então capital da Bretanha, no dia 15 de março de 1785. Seus pais eram um casal de burgueses comerciantes, Jean Julien Marie Bréhier e Marie Jeanne Pichon. Em 1793, Julie trocou a Bretanha por Saintonge, a região de sua mãe, abandonando o ca­tolicismo e tornando-se protestante. Cresceu educada pelo tio, Auguste, um cura constitucional e poeta a quem a escritora dedi-

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cou seu livro L'[ntérieur d'une Famille ou Le Récit du Voyageur. Com o pai, não menos afetuoso e severo que o tio, Julie definiu-se escritora. No texto da dedicatória - À la mémoire de mon pere -do livro Le Robinsonfrançais, publicado logo após a morte de Bréhier, a autora traça o perfil de uma figura austera a qual nunca teve coragem de glorificar em vida. A conduta do pai lhe servira para a composição dos personagens. Em 1812, casou-se com o médico Gratien-Claude Delafaye. Julie cultivou uma longa rela­ção de amizade literária com seu primeiro editor, o livreiro espe­cializado em coleções juvenis Alexis Eymery, dedicando-lhe o li­vro Le petit voyageur en Gréce ou lettres du jeune Evariste et de safamille. Julie Nicolase, ou Mme. Delafaye-Bréhier, consagrou­se escritora de sucesso de livros juvenis classificados como ro­mance moral, gênero bastante popular. Faleceu em 1850, após concluir sua maior obra - o romance histórico Histoire de ducs de Bretagne: raconté par um pere ases enfants, publicado pela casa Lehuby, herdeira dos Eymery, em 18513 •

O que há em comum entre as trajetórias individuais dessas duas mulheres de letras? Se partirmos de suas origens sociais, linhagem materna e paterna, e de suas estratégias de aliança no universo letrado, suas inserções na República das Letras, vere­mos duas figuras femininas típicas do período: familiarmente bem dotadas por capitais escolar e cultural, os quais convertem em educação e escrita. Essas mulheres constituem-se pólo domina­do no mundo da produção intelectual. Às vezes, de tão discre­tos, seus trabalhos são, por longos anos, invisíveis, o que, no entanto, não as impede de cultivar a singularidade do próprio nome, reivindicando publicamente suas autorias. Os exercícios de cópia, o gosto pelas cartas e pelas narrativas dialogadas que orientam os romances epistolares, a prática dos deveres de esti­lo, o cuidado com os usos das palavras, todas as experiências da intimidade, levam as duas escritoras à entrada num lento percur­so de afirmação da individualidade, que tem corno conseqüência imediata o investimento na carreira literária através da escrita de livros para ajuventude. Não por acaso as duas caprichavam nos prefácios e dedicatórias que antecediam os textos de seus livros, segredando detalhes de suas vidas domésticas, desenhando-se como criadoras singulares e, claro, preparando elas mesmas a recepção de seus romances.

3 Para os dados biográficos de Julie Nico1ase Delafaye-Bréhier, consultar D' Amat e Prevost (1982). E os seguintes do­cumentos: Catalogue Général des Livres Imprimés de la Bibliotheque Nationale (s/d); Catalogue Général de la Librairie Française Pendant 25 ans (1840-1815).

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Lições de viagens, devoção religiosa e sobrevivência nos trópicos: o Brasil no romance juvenil francês oitocentista

Amelie Weise Schoppe e Julie Nicolase Delafaye-Bréhier têm em comum um élan criador e a paixão pela educação moral. Partilham um universo de temas, preocupações e referências co­muns que define suas autorias no gênero da literatura de forma­ção pedagógica. Como mulheres de letras cumprem seus papéis no longo processo de interiorização das obrigações sociais atra­vés dos dispositivos de imposições e apropriações das práticas de leitura. Afinal, o leitor que aprende a lição, domina a emoção. Amelie e Julie Nicolase ocupam lugar de honra nas experiências que orientam o processo de civilização (Elias, 1994), e, a uma certa altura de suas carreiras, chamam a atenção dos livreiros­editores. Daí a conveniência em publicá-las e a aposta feliz no sucesso comercial de suas obras.

Uma outra disposição bem mais desafiadora revela o traço de união entre as duas: uma rica imaginação literária, misto de sensibilidade e razão, que as conduz ao exotismo tropical. Amelie e Julie Nicolase elegem o Brasil e o sistema de relações coloniais como tema de um de seus romances juvenis. As duas escritoras parecem contar com as mesmas fontes de inspiração e trabalho, que orientam a trama dos enredos e a descrição de personagens índios e negros americanos, viajantes e emigrantes europeus, tão próximos e distantes. Lendo seus livros, chega-se à conclusão de que as duas damas estavam muito bem informadas sobre a história do Brasil e de que seus conhecimentos não eram apenas docu­mentais e livrescos.

De início, suas obras destacam-se pela excelente aceitação obtida daqueles que' referendam as leituras na Europa do século XIX: os livreiros-editores e o público leitor. No ano de 1828, é publicado, em Berlim, um romance de Amelie Schoppe intitulado Os Emigrantes no Brasil ou Cabana de Gigitonhonha. Ilusão, sa­bedoria e moral para viver, que conta a história da vinda de uma família de emigrantes alemães para o Brasil. Esse livro conhece uma longa vida na França. Inicialmente é traduzido livremente do ale­mão por Mlle. R. Du Puget para a Librairie de L'Association pour la Propagation et la Publication de Bons Livres, tal era a recomen­dação de suas lições de sabedoria e moral para viver.

Em 1839, a narrativa alemã dos Emigrantes no Brasil inicia sua longa carreira de imitações francesas (adaptações livres do texto original) feitas por Louis Friedel para a Biblioteca da Juven-

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tude Cristã dos impressores-livreiros católicos Alfred Mame, de Tours. A obra é devidamente aprovada pelo Arcebispo daquela província. Em 1842, alcança a 3° edição, em 1853, está na 7°, e em 1870 comemora uma 9° edição de puro sucesso pedagógico e comercial. A partir de 1851, é traduzida do alemão também em sucessivas edições por F-C. Gerard, para a livraria-editora Mégard, de Rouen. Na nova casa, compõe a Biblioteca Moral da Juventude e ganha, em 1862, o título de Robinson Brasileiro. Suas tiragens variam entre 3.000 a 4.000 exemplares, garantindo su­cesso de vendas para os Mégard até 1866. A partir daí, a obra é publicada até o ano de 1918 pela casa editora Eugene Ardant, de Limoge, não mais como tradução, e sim como imitação de F. C. Gerard, indicando a transação de compra e venda entre os livreiros.

O romance Os Portugueses da América - lembranças his­tóricas da guerra do Brasil em 1635 (contendo um quadro inte­ressante dos costumes e usos das tribos selvagens, e detalhes ins­trutivos sobre a situação dos colonos nessa parte do Novo Mun­do), de Julie Nicolase Delafaye-Bréhier, tem sua trama ambienta­da durante as batalhas da primeira fase da ocupação holandesa em Pernambuco. Obtém aprovação do Arcebispo de Paris no dia 28 de outubro de 1846. Dois meses após, em dezembro, obtém sua inscrição na Bibliographie de la France - founal Géneral de L'imprimerie et de la Librairie, para ser definitivamente publica­do pela casa Lehuby, em 1847. Classificada como uma obra desti­nada à juventude, mais precisamente como uma "Americana ao uso da juventude", chega a três tiragens no ano de sua publicação.

A primeira, publicada em um volume in-8 ilustrado com 12 litogravuras em duas cores, preto e branco, pelos artistas Auguste Lemoine, Janet-Lange e Giraud, é vendida aos livreiros a 250 fran­cos (o exemplar custa 6 francos). A segunda, oferece as mesmas ilustrações, mas baixa de preço, custando 175 francos. Já a tercei­ra, vem nas cores ouro, vermelho, azul e violeta, num exemplar de charmosa capa e apresenta nova queda de preço: toda a tiragem custa apenas 100 francos.

Este artigo analisa o modo pelo qual os livros Os Emigran­tes no Brasil ou Cabana de Gigitonhonha (na versão francesa de P-C Girard), e Os Portugueses da América colocam o problema da colonização, da nacionalidade, da instrução religiosa e da apli­cação mOfal. O ponto de vista adotado é o de uma sociologia

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Lições de viagens, devoção religiosa e sobrevivência nos trópicos: o Brasil no romance juvenil francês oitocentista

histórica das práticas culturais (Chartier, 1990). Associando a ca­tegoria de representação do mundo social aos modos de produ­ção, difusão e apropriação dos objetos culturais, essa abordagem privilegia, na análise do trabalho de construção dos significados das obras, o estudo dos processos a partir dos quais os textos conhecem suas publicidades.

N as histórias imaginadas por Amelie e Julie Nicolase, os povos selvagens adquirem o estatuto de modelos e contra-mo­delos postos ao uso dos leitores e de seus pais em todas as eta­pas da educação moral. A popularização de suas obras, com su­cessivas reedições e imitações por todo o século XIX, produz gerações de leitores europeus que, na onda da expansão do co­mércio de livraria para a América Latina, acabam encontrando os leitores de além-mar, como as crianças e os jovens brasilei­ros. Isto supõe a existência de um universo cultural comum en­tre as duas comunidades de leitura, com os mesmos modos de recepção das mensagens, os mesmos preconceitos e categorias de percepção do mundo social da América Portuguesa, configu­rando uma república mundial das letras juvenis.

Em 1858, mais de dez anos após a primeira edição parisiense, Os Portugueses da América entram para a biblioteca de obras ins­trutivas e recreativas do catálogo de venda da Livraria de Baptiste­Louis Garnier e passam a ser adquiridos na loja da Rua do Ouvidor. O romance entra no Brasil como obra importada, jamais obtendo tradução para o português. Os Emigrantes no Brasil igualmente não foram traduzidos para o português e muito menos entraram para as coleções de livros importados da livraria francesa.

Lições de viagens: o romance moral sobre o Brasil

No século XIX, a formalização do Brasil como nação não é recurso exclusivo da historiografia ou das narrativas ficcionais de escritores brasileiros. Antônio Candido (1959) nos chama a aten­ção para a importância do pensamento crítico do francês Ferdinand Denis, que, pioneiramente, no livro Résumé de I 'histoire littéraire du Portugal suivi du résumé de l'histoire littéraire du Brésil (1826),

reconhece e confere tratamento literário aos temas nativistas, à natureza e ao índio brasileiro. A consciência de autonomia e inde­pendência da literatura brasileira em relação a Portugal formulada

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por Denis, que viveu alguns anos no Brasil, acaba por contagiar um grupo de jovens escritores que, entre os anos de 1832 e 1838, morava em Paris. Dentre eles, estava José Gonçalves de Maga­lhães e Manuel de Araújo Porto-Alegre. Em 1836, Magalhães publica um ensaio sobre a história da literatura brasileira na revis­ta do grupo denominada Niterói, no qual traça seu programa de renovação estética fincando os marcos do início francês do ro­mantismo brasileiro.

Ao lado dos homens de letras e de ciências que se forma­vam em viagens pedagógicas a Paris, os livreiros estrangeiros es­tabelecidos no Rio de Janeiro são personagens decisivos para a criação do mito nacional. O projeto intelectual que orienta suas partidas para a América Latina e, uma vez firmado o negócio da livraria, as trocas internacionais possibilitadas pela circulação dos textos, a importação e tradução de obras clássicas, sua distribui­ção em função de categorias específicas - como as idades - para posterior organização em coleções temáticas - como as Bibliote­cas Juvenis -, assinalam práticas que vão muito além da pura e simples relação comercial com os clientes ou da imposição de modelos culturais.

A categoria de "brasileiro", com a correlata invenção das tradições nacionais, não se define apenas pelo trabalho estilístico da escrita. A rede de edição sobre a América e, como parte dela, sobre o Brasil, formada em países como a França e a Alemanha, também contribui para a invenção nacional. Essa produção toma por base tanto registros descritivos, dos quais os livros de viagens e os compêndios de história natural são bons exemplos, como romances destinados ao público juvenil, os quais elegem a vida e a natureza tropical - as florestas com histórias recheadas de heroísmos e barbáries dos índios, a escravidão negra e a vinda dos emigrantes -, como temas e guias para desenvolver o senso moral dos jovens leitores. A prática da venda de livros é também a disse­minação de idéias e modelos de escrita.

A voga do exotismo tropical na produção literária para a juventude mostra que a conjuntura que antecede a especializa­ção e industrialização do mercado editorial francês é marcada por um sistema estético produtor de singularidades, com amplo espaço para os países americanos, e para o Brasil em particular, ao mesmo tempo em que se desenvolvem as apostas do comér-

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cio de livraria na expansão internacional. Enquanto a livraria francesa se instala no Brasil, a partir de meados do século XIX, ou mais exatamente, enquanto os livreiros Garnier desenvolvem o livro na Corte do Rio de Janeiro, o Brasil é produzido literari­amente na França.

No Rio de Janeiro oitol;entista, já podemos vislumbrar um princípio de diferenciação do incipiente público leitor. Haja vista a variedade temática das coleções classificadas nos catálogos, por exemplo, de venda da Livraria de Baptiste-Louis Garnier para os anos de 1857-1858, que vão desde as obras importadas de recre­ação juvenil, as novelas e romances ilustrados franceses, os livros de artes militares, de história natural e religião, dos dicionários e compêndios escolares em várias línguas, até as obras de legisla­ção, comércio ou economia política. Esses livros, saídos dos pre­los franceses e belgas, podiam ser lidos ou tomados de emprésti­mo nos clubes e gabinetes de leituras de obras estrangeiras. Al­guns anos antes, havia um, de propriedade do francês Cremieux, situado na Rua da Alfândega, que tinha como sócio e freqüentador assíduo o jovem José de Alencar. Foi lá que o futuro escritor co­nheceu os romances "marítimos" de Walter Scott e Cooper, assim como os clássicos de Alexandre Dumas e Balzac, Arlincourt, Frederico Soulié e Eugene Sue (Alencar 1998: 54-55).

Ademais, sabemos, por intermédio de Márcia Abreu (2003: 118-131), que de há muito os cariocas apreciavam as leituras de livros importados. Com a abertura dos portos, levas de estrangei­ros, adultos e crianças, passaram a residir no Brasil e, certamente, a se constituir público leitor para os clássicos ingleses, franceses e espanhóis. Alguns jovens conheciam autores como Berquin, Fénelon ou Mme. Leprince de Beaumont. Mesmo com a fiscaliza­ção exercida pelo Desembargo do Passo, entre os anos de 1808 e 1826, aponta ainda Abreu (2003: 124), era expressiva a presença de livros juvenis importados no Rio de Janeiro. Exemplo do título Les escoliers en Vacance, de Mme. Delafaye-Bréhier, que teve autorizada sua entrada e permanência no Brasil. Destaca-se, no período, a presença das governantas estrangeiras nos espaços europeizados das famílias - as senhoras professoras. Essas damas tinham como função a educação sentimental de crianças e jovens (Leite, 1997). Elas modelavam, assim, de acordo com suas refe­rências culturais e lingüísticas, o gosto de seus discípulos.

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Por isso mesmo, Baptiste-Louis Garnier mantém, num de seus catálogos (1857-1858), quase duzentos títulos em francês classificados como lembranças, crônicas, anedotas, geografias, viagens e descrições. Em muitos deles, o Brasil figura como tema. A literatura de viagem atrai a curiosidade pelo pitoresco da aven­tura, realçando a coragem dos marinheiros diante das intempéries na travessia, narrando histórias de naufrágios e fazendo descri­ções romanceadas dos modos de vida e crenças de povos desco­nhecidos, quase sempre os índios americanos. Na França, as bibli­otecas de educação moral e formação religiosa passam a incluir títulos que se destacam pelas interpretações das comunidades di­tas selvagens (indígenas e africanas) oferecendo uma forma de instrução que não representa perigo para a fé porque fundada nos ritos da conversão, do batismo e do matrimônio.

Além dos romances, as descrições metódicas das cinco par­tes do mundo, Europa, Ásia, África, América e Oceania, os ma­pas, tratados de geografia, pequenos fragmentos do universo, es­timulam o interesse pela ciência natural, pelas visitas aos museus e o convite aos gabinetes. Mas, aos olhos desembaraçados de uma criança, as serpentes, monstros e festins antropofágicos devem em muito mais aguçar os medos e satisfazer a curiosidade. Nesse momento, o descobridor Cristóvão Colombo entra para o panteão dos heróis da juventude e sua história passa a constar nas biogra­fias de crianças célebres, servindo como modelo cultural. Tanto é que o famoso escritor Julio Veme acaba romanceando sua biografia.

Com relação aos escritos sobre o Novo Mundo, é principal­mente sobre a vida do índio brasileiro que recai o novo projeto de aplicação das regras morais. Seus costumes, a alegria emanada dos cantos, danças e festins, as caçadas e lendas apaixonadas so­bres suas origens, tomam-se motivos para reflexões sobre os ex­cessos provocados pela barbárie, como a condenável prática da antropofagia, que até os podia excluir dos domínios da civilidade, mas, ao contrário do esperado, os elege como preferidos dos lei­tores. A Europa testemunha o nascimento de uma paixão român­tica e juvenil pelo exotismo tropical.

Esses temas constam nas coleções de livros juvenis da livra­ria parisiense dos irmãos Garnier e, uma vez firmado o gosto do público francês pela literatura de viagem, são exportados para o Brasil. Para os leitores europeus, representam o conhecimento da

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4 Não se pode desconhecer que o século XIX foi marcado pela leitura como competência universal dos franceses e que a extensão da familiaridade com o objetos escrito, impresso e manuscrito, só tenha sido possível tardiamente aos brasileiros. Mas, estudando os catálogos de venda parna juventude da livraria carioca Garnier, tive a dimensão do leitorado juvenil diretamente educado em francês, que era numeroso o suficiente para justificar a oferta dos quase duzentos títulos de livros importados. A respeito da leitura no século XIX naFrnnça, consultei Crubellier (1990) e Hébrard (\990).

diferença, mas para os leitores brasileiros, as descrições funcio­nam acima de tudo como espelho e memória. Um universo cultu­ral comum liga, por laços de afinidade na leitura, uma elite inte­lectual e juvenil do.Yelho e do Novo Mund04 • E para os produto­res de textos, "a descoberta da América e os fracionamentos da cristandade tornam-se instrumentos de um duplo trabalho de clas­sificação e conhecimento: a relação com o homem selvagem e com a tradição religiosa" (Certeau 2000: 213). É nesse domínio que uma cultura encontra-se com a outra.

O gênero classificado como viagem, ainda que composto de textos heterogêneos entre si, acaba por fazer parte de um outro gênero de perfil mais ficcional - o romance de formação moral. As descrições são apropriadas pelo novo regime literário e passam a intervir como referências e contra-referências nas etapas previstas para a educação. Preferencialmente, o romance moral destina-se aos adolescentes. Seus objetivos são confessos - a aplicação dos princípios cristãos através das ações modelares dos personagens. Define-se como literatura espiritual, divertida e instrutiva. Seus livros visam a produzir uma sensibilidade engajada na crença e antes de serem publicados necessitam pas­sar pelos comitês eclesiásticos de leitura, que funcionam como primeiros censores, anteriores mesmo aos livreiros e aos pais. Esses comitês inauguram um sistema jurídico-religioso de con­trole dos textos. Os editores Mégard, de Rouen, grandes distri­buidores de livros de coleções infantis por toda a França e, atra­vés dos Garnier, difusores da literatura francesa para o Brasil, não dispensam o exame prévio das autoridades responsáveis pela educação religiosa. Essa prática assinala uma submissão ao que Jean-Yves Mollier (2000) chama de "lógica da demanda social" - no caso, atendendo aos objetivos da Igreja Católica -, caracte­rística do antigo regime da produção editorial.

Se a observação dos sentimentos de homens primitivos, quase próximos aos animais, e o estabelecimento de comparações com os homens civilizados, nutre uma imaginação literária, acaba também por suprir necessidades de ordem pedagógica. Uma via­gem para o Brasil mobiliza sentimentos de medo e fascínio, ao mesmo tempo que nutre sonhos de fortuna alimentados pelas no­tícias das terras férteis e das minas de pedras preciosas. É o que propõe a saga dos Emigrantes no Brasil. Amelie Schoppe, sua

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autora, tira todos os proveitos das situações de incerteza e perigo, caminhando na tradição pedagógica dos contos de advertência, prevenindo os jovens europeus contra o fascínio e a cegueira da ilusões. Fazer a América era o mesmo que escolher o abandono -a orfandade.

A literatura "novomundista" de aplicação moral compara a escravidão branca, a qual se vêem submetidos os emigrantes no Brasil, com o sistema da escravidão negra, levando os leitores a incorporar, ou a manter bem sólido, o valor moderno da liberdade do indivíduo - principal conquista da Revolução Francesa.

Note-se que o âmbito de circulação do romance moral é o universo cultural juvenil, não contando ainda essa classe de tex­tos com o estabelecimento da Sociologia como ciência explicativa do comportamento. Os modelos e contra-modelos oferecidos pelos índios e negros escravos americanos, a antropofagia, as fugas e insurreições, a constituição de uma estrarlha República dos Palmares, entre uns, e os maus hábitos da nudez, entre ou­tros, ambos relacionados à heresia, à perda do decoro da civili­dade e aos perigos de embrutecimento dos comportamentos, ou, tudo posto ao contrário, as virtudes da vida natural, deveriam levar a mocidade a voltar-se para o seu interior e, partindo da intimidade, compreender os motivos da ação e fortalecer suas relações com a crença.

O bom e o mau selvagem, figuras do pensamento romântico europeus, entram no projeto moral pedagógico na condição de parâmetros de comparação frente às desvantagens e máculas da civilização. Por isso mesmo, o romance moral pode igualmente surtir efeitos contrários, uma vez que as práticas e significações produzidas pela leitura nem sempre correspondem aos anseios e imposições dos autores e livreiros-editores. E, se o novo leitor se identificasse com a vida nas florestas tropicais, livre de bússolas, mapas ou quaisquer constrangimentos morais? Acima de tudo, qual o efeito disso para os leitores brasileiros?

Para colocar a moralidade em ação faz-se necessária, acima de tudo, a pronta adesão das mulheres de letras, como Amelie e Julie Nicolase, aproximando-as dos eclesiásticos. Observa-se um processo de transferência de sacralidade dos padres para as escri­toras, nesse momento particular da disputa pela posse do poder legítimo sobre a aplicação da moral, travada entre o conhecimen-

5Há uma vasta linhagem do pensamento intelectual europeu sobre o fudio americano, e, por conseguinte, sobre os brasileiros. Destaco as fontes clássicas dos séculos XVI e XVIII; Montaigne eRousseau. UmafillVedeconsulta muito iIqxxtanteé o livro pioneiro de Afonso Arinos de Melo Franco (2005).

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Uções de viagens. devoção religiosa e sobrevivência nos trópicos: o Brasil no romance juvenil francês oitocentista

to cientifico, que já se esboça, e a tradição da velha Igreja Cató­lica, detentora da legitimidade intelectual. Deste modo, as fun­ções femininas mais se adequam à posição eclesiástica. A posi­ção dos arcebispos que cumpriam a função de revisores de tex­tos. Ora, uma autora deveria se situar no curso do processo de civilização, cabendo-lhe articular da melhor forma possível um discurso sobre as diferenças. A vida dos habitantes dos trópicos - sempre relacionada a um sistema regulador de censuras e proi­bições - se tornaria mais compreensível, e, até, mais suportável, se posta em uma operação escriturária.

Lições de sobrevivência nos trópicos: os emigrantes no Brasil

Antes do aparecimento das versões francesas da novela de Amelie Schoppe, a narrativa de viagem pedagógica baseada na imaginação do mundo colonial como mundo naturalizado (selva­gem e preguiçoso), que, de acordo com Francis Marcoin (1999), experimenta as delícias da geografia através da errância romanes­ca, já havia mostrado toda sua força aos jovens leitores europeus. Em 1839, Alexis Eymery escreve e publica uma coleção de livros - de pequeno formato e com muitas páginas - sobre aventuras de viagens a várias partes do mundo, incluindo o continente america­no e, ao sul dele, o Brasil- Universo em miniatura ou as viagens do pequeno André sem sair de seu quarto. Utilizando a técnica do diálogo entre pai e filho, mais que adequada ao estilo confessional do romance de formação, esses livros apresentam quadros instru­tivos e divertidos para guiar a infância no conhecimento das qua­tro partes do mundo: África, Ásia, América e Oceania.

A passagem pelo Brasil inicia-se com o elogio ao jovem príncipe, herdeiro da Casa de Bragança. Em seguida, passeia-se pelo enorme bazar no qual se transformara o comércio do Rio de Janeiro realçado pela descrição de ruas estreitas por onde desfi­Iam escravos carregando damas indolentes nas liteiras. Sobressa­em as perucas e bijuterias. Mas o Brasil imaginado por André é, antes de tudo, um reino de pedras preciosas, rubis. diamantes e com muitos papagaios, situado entre a floresta da Tijuca e o dis­trito de Diamants. Ap~nta-se, então, o vale do rio Gigitonhonha (Jequitinhonha), metáfora de mais uma ilha deserta. No romance

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de Amelie, o vale é porto de salvação para uma família de Robinsons oitocentistas perdida no Brasil tropical. As margens férteis do rio Gigitonhonha é palco da trama imaginada no livro Os Emigrantes no Brasil.

Com uma série de advertências aos jovens europeus sobre as ameaças e os perigos da partida para os países da América do Sul, a narradora tem como objetivo denunciar a experiência das várias famílias de colonos alemães em princípios do século XIX, oferecendo pistas das armadilhas nas quais se viam envolvidas logo no embarque. No porto de Amsterdã, de onde partiam os navios para o Rio de Janeiro, capitães inescrupulosos propunham a assinatura de contratos de compra e venda da força de trabalho dos emigrantes, em troca do pagamento da viagem. Entra em cena o drama da escravidão branca. Nesse romance, a ênfase das via­gens recai sobre a aplicação de uma moral religiosa entre cristã e moderna, combinando os desígnios de Deus à preservação dos direitos individuais do cidadão. Por isso mesmo, a narradora ao tirar o máximo de proveito das advertências e conselhos acaba por instaurar uma pedagogia do medo.

Na tradição dos Robinsons que partem em família (Soriano, 1982), Riemann é um fazendeiro viúvo e arruinado pela seca que assola seu país. Um dia, ouve trechos de uma canção que diz: o Brasil não é longe daqui. Toma, então, a decisão de partir da Ale­manha em direção ao Brasil, levando sues filhos: Conrad, o mais velho, Anna, Marguerite e Wilhelm. Um deles, entretanto, deveria sacrificar-se pelos outros. Tamanha provação só poderia recair sobre Conrad, o primogênito, que vende-se ao capitão do navio. A travessia é marcada por infortúnios, fome e sede, algumas tem­pestades, além de doenças como o « mal do mar ».

Ao chegar no Rio de Janeiro, uma cidade de ruas estreitas, cheia de Igrejas e magníficas casas (cenário semelhante ao descri­to por Eymery), o proprietário do jovem alemão leva-o ao merca­do de escravos negros. A família resta petrificada diante de tantos horrores. No mercado, a liberdade de Conrad é novamente vendi­da. Desta vez, o comprador é o inspetor do jardim imperial, um homem bastante rico. Conrad desaparece das vistas de seu pai e de seus irmãos.

Enquanto isso, Riemann segue para o Palácio do Governa­dor, a fim de obter os papéis que o tomam proprietário de um

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Lições de viagens, devoção religiosa e sobrevivência nos trópicos: o Brasil no romance juvenil francês oitocentista

terreno no vale de Gigitonhonha, a maior mina de diamantes do Brasil. Antes da viagem, ouve as advertências de um secretário alemão do Palácio: não comprar jamais diamantes dos negros que trabalham nas minas, são todos roubados e as penas para esse delito são bastante severas. Esses conselhos, fala a narra­dora, devem servir de regras de conduta, porque as lições de moral próprias ao gênero no qual foi classificado a novela de Amelie devem agir através dos personagens. A essa altura, o pai Riemann já se deu conta de que as promessas feitas aos emi­grantes jamais se cumpriam.

Ao chegar em Gigitonhonha, a familia de heróis descreve a mesma trajetória de Robinson Crusoé, o personagem de Daniel Defoe. Riemann e seus filhos são europeus civilizados postos di­ante das aventuras da natureza: alimentam-se de legumes e frutas frescas oferecidas pela terra fértil, e de peixe do rio. Constróem uma cabana, fabricam os utensílios domésticos com a argila do lugar, modelam toscos instrumentos de trabalho necessários ao cultivo da terra e ousam até reunir troncos de árvores para fabri­car uma canoa. Afinal, como os leitores poderiam se apropriar dos (des )caminhos postos à fanu1ia Riemann? Responde a narradora: aprendendo com a experiência e com as situações de necessidade.

Bem adiantada a narrativa, a família conhece Claus, um sol­dado alemão que servia no exército brasileiro. O novo amigo com­pra, por uma bagatela, o diamante de um negro a quem protegia. O escravo escondera (na verdade, roubara) a pedra de seus feito­res num dia de trabalho nas minas. Claus, então, oferece o dia­mante a Riemann, que com ele poderia reaver a liberdade do filho. Apresenta-se à família um dilema moral, ao mesmo tempo que jogo educativo para o leitor: como aceitar a oferta de um roubo?

Riemann, então, parte para o Rio de Janeiro. Chegando lá, reencontra o funcionário alemão, M. Albrecht, que conhecera no Palácio do Governo. Após narrar suas heróicas robinsonadas, o emigrante pede ajuda ao amigo a fim de restituir o diamante à Coroa. Não foi difícil. Nessa época, o Brasil possuía uma jovem imperatriz da Áustria que gostava de proteger os alemães. Triunfa o caminho do bem. Comovida com a história da escravidão bran­ca, a Princesa D. Maria Leopoldina, esposa do Imperador D. Pedro I, restitui a liberdade a Conrad. É feita a vontade de Deus e a família Riemann funda uma colônia alemã no Brasil.

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Lições de devoção religiosa: Os portugueses da América

Para alimentar a produção do sistema literário do qual tra­tamos, havia uma vasta bibliografia sobre o Brasil em disponibili­dade no mercado do livro europeu, que ia desde as sucessivas edições dos relatos dos viajantes do século XVI - as experiências de Jean de Léry e André Tevet na França Antártica -, passando pelas fontes documentais do século XVIII, como o estudo de Rocha Pitta, até chegar às viagens de exploração e missões dos naturalistas contemporâneos, como Henry Koster, Spix e Martius e Auguste de Saint-Hilaire, à boa acolhida da sociologia dos cos­tumes brasileiros do próprio Ferdinand Denis, ou o célebre com­pêndio de história pátria Histoire du Brésil depuis sa découverte en 1500 jusqu' en 1810, de Alphonse de Beauchamp, publicado, em três tomos no ano de 1815 pela casa de Alexis Eymery.

Em Os Portugueses da América, Julie Nicolase Delafaye­Bréhier tece uma história situada em terras do Nordeste brasilei­ro, na cidade de Olinda, e em tempos coloniais, 1635, período da ocupação holandesa. Os personagens são colonos portugueses, do sangue azul da casa de Bragança, índios tapuias, de feroz ori­gem tupinambá, e negros sublevados na República de Palmares. O texto narra a execução de um plano de vingança - seqüestro se­guido de cativeiro na floresta tropical - imaginado pelos índios contra seus senhores e algozes, os colonos portugueses. Duas damas, Élvire e Héléna, são raptadas pelas suas escravas domésti­cas, a velha Mocap - mentora do plano -, e ajovem mestiça Yassi­Miri, ama de leite do pequeno Sebastião, filho de Élvire. Amiip, escravo pessoal de Dom Aleixo, marido de Élvire, também adere ao plano. Aproveitando-se da confusão causada no dia da ocupa­ção da cidade pelos holandeses, Mocap foge com as duas mulhe­res, Yassi-Miri e Sebastião, tomando o rumo da tribo dos tapuias. Só ela, a velha tupinambá, conhece os desvãos da floresta e seu retomo para sua tribo acompanhada de duas senhoras cativas era prova maior de triunfo e conquista.

Enquanto ocorre o rapto das senhoras brancas, Dom Aleixo segue, com ArraYp, para o forte de Matias de Albuquerque. De­pois de travar longos debates teológicos com seu escravo - todas as criaturas não são filhas de um mesmo Deus, então, o que justi-

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Lições de viagens, devoção religiosa e sobrevivência nos trópicos: o Brasil no romance juvenil francês oitocentista

"Em várias passagens, encon­tramos as famosas descrições de Jean deLél)' e Andréa 1bevet

fica a captura e os maus tratos aos índios?, quer saber Arralp -, o nobre português toma-se prisioneiro dos negros-cidadãos suble­vados da República de Palmares. Testemunha a organização de uma República tropical, com deveres e direitos, mas, horroriza-se ante as bebedeiras nas festas da colheita do milho, que levavam a excessos. A escravidão, para os povos selvagens, brutalmente li­vres, se bem conduzida e cristianizada, poderia ser uma etapa da civilização, defende a narradora.

A imaginação européia do mundo colonial é naturalizada, e o desafio maior para a trama do romance moral é a cristianização da raça.

Dom Aleixo consegue libertar-se, mas, andando alguns pas­sos, encontra um grupo de índios ferozes, que o fazem refém. Desta vez, o nobre português é presa de um festim canibal. Prestes a ser devorado - chega até a jogar pedras nos executores, segundo o costume narrado pelos viajantes do século XVI6 - é salvo por um missionário inaciano. Reencontra Arralp e descobre a traição.

Abre-se uma via para a inversão de papéis entre dominan­tes e dominados - e se os senhores se tomassem escravos e os escravos,senhores?

O pano de fundo da narrativa, a ocupação holandesa da ci­dade de Olinda serve apenas como cenário para o desenvolvimen­to da trama. Todos os personagens se encontram na floresta. Du­rante uma longa jornada pela mata tropical, enfrentando serpen­tes, monstros e rios, as duas damas vão confrontando seus valores aos dos tapuias, afirmando os preceitos da religião católica, a fé nos sacramentos e a inexorável conversão dos bárbaros america­nos. Ignoram seus destinos. Ao fim, correm o risco de serem de­voradas. Nesse momento, ameaças e preces não surtem mais o menor efeito, lembram "o vento que sopra em uma planície deser­ta". As duas escravas fugitivas regozijam-se com a nova situação, movidas por um forte sentimento - selvagem, civilizado ou cris­tão? - de vingança, definido pela narradora como "compromisso com a dignidade", perdida nos maus tratos da escravidão, o que abre uma discussão sobre a fidelidade e o medo da traição à raça.

Desenrola-se novo debate teológico sobre a humanidade dos índios, suas virtudes e vícios, a condenável prática da antropofa­gia, o ressentimento, tanto dos índios brasileiros em relação aos portugueses, quanto destes em relação aos holandeses, a quem reputavam de povos heréticos. Afinal, Deus não se manifesta em

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todas as coisas? Mas seria preciso cristianizar a barbárie, civilizá­la, ainda que a civilidade fosse representada também como corrupção da natureza e frivolidade artificial cortesã, revelando a narrativa, a essa altura, um confronto de inspiração tipicamente roussseauniana. Na composição dos personagens estão as propri­edades que definem as figuras do bom e do mau selvagem.

Em OI inda, Héléna levava a vida lasciva dos colonos portu­gueses. Nascida no Brasil, filha de um senhor de engenho arruina­do, Dom Álvaro Rodriguez, é inclemente no castigo aos escra­vos. Já Élvire, nascida em Portugal, é modelo de boa cristã. Aos selvagens que a seqüestraram, aplica a virtude do perdão. Para embaralhar um pouco esse jogo colonial e colocar o problema da mestiçagem, a autora faz os personagens indígenas descenderem de uma pequena tribo que fora governada pelo português Diogo Álvares Correia, o Caramuru. Eles também demonstram, a seus modos, alguma polidez e desvelo para com o sofrimento das cati­vas. Essas senhoras jamais se habituaram aos rigores do trabalho.

Entremeando ficção e episódios da história, Mme. Delafaye­Bréhier não demonstra medo de se ferir ou perder nessa estrada. As florestas, animais,jibóias, festins, caçadas e a poligamia selva­gem, bizarros costumes dos índios brasileiros, são realisticamente narrados aos jovens europeus.

No cativeiro das duas damas portuguesas, feitas escravas de suas escravas tapuias, colocam-se dois graves problemas de ordem moral e religiosa. O primeiro diz respeito à educação do pequeno Sebastião, que deveria, pelos novos costumes, furar seu lábio inferior e orná-lo com uma pedra azul. Aos olhos de sua mãe, isto parece uma mutilação. O chefe tapuia, verdadeiro sultão selvagem, apaixona-se pela portuguesa Héléna, desejando-a para sua sétima esposa. Como poderia uma cristã casar-se com um homem já por seis vezes casado? Na ocasião em que Héléna sai para buscar água no rio, as outras esposas do chefe, descontentes com a iminência da perda de posição para uma estrangeira, rap­tam-na, torturam-na, arrastando-a pelos cabelos, para finalmente amarrá-la ao tronco de uma árvore perto da qual passa um rio habitado por serpentes venenosas. Héléna desaparece, e o chefe, colérico, expulsa Mocap e sua derradeira cativa, Élvire, da tribo. Os personagens seguem mais uma rota de aventuras pelo deserto, desta vez, de volta à cidade de Olinda. Mocap morre de sede du-

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rante a travessia, não sem antes ser batizada por Élvire, que junto com Yassi-Miri e o pequeno Sebastião, acaba sendo encontrada por Dom Aleixo. Anos após, Héléna também é reencontrada, vi­vendo no deserto com uma farru1ia holandesa, demente. O cristia­nismo triunfa sobre os vícios e poucas virtudes da vida selvagem. A escravidão, de acordo com a moral da história, é, de fato, etapa necessária para o longo e tumultuado processo de civilização e da conversão ao cristianismo.

Na composição de seu romance moral, Mme. Delafaye­Bréhier se baseia claramente nos clássicos relatos de viagens do século XVI - nos textos de Jean de Léry, Viagem à terra do Brasil, e de André Thevet, As singularidades da França Antárti­ca. Não consta que ela mesma tivesse feito viagem ao Brasil. Se, como diz Michel de Certeau (2000), os itinerários dos viajantes são previamente esboçados nas operações da escrita, mesmo em configurações históricas diferenciadas, Mme. Bréhier, Jean de Léry e André Thevet acabam compondo um mesmo texto. Por­que os três tomam posse de um mesmo objeto literário, a descri­ção do índio brasileiro.

A história dos Portugueses da América conduz seus leitores ao questionamento dos papéis sociais, que, mesmo na rigidez emanada pela ordem das coisas do século XIX, não estão para sempre fixados. A história colonial também pode ser escrita ao contrário. As regras de dependência e assimilação dos coloniza­dos em relação aos colonizadores podem ser deslocadas. A narra­tiva do cativeiro tapuia de senhores portugueses acaba por tecer um sistema de contradições que culmina com uma desmontagem do mundo de certezas da colônia portuguesa no Brasil, ainda que essa desmontagem esteja limitada pelo final triunfante do cristia­nismo. Afinal, a literatura de Julie Nicolase Delafaye-Bréhier não poderia contradizê-la.

O mais sedutor é que toda essa história foi composta muitos anos antes de José de Alencar imaginar O Guarani, com o heroísmo do índio brasileiro e toda nossa mitologia de fundação. Sendo assim, só nos resta imaginar o escritor cearense saindo da Livraria Gamier, ou antes do gabinete de leitura do francês Cremieux, com Os Portugueses da América nas mãos.

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Consideraçãoes finais

o modo como se organizava a escrita sobre o Brasil na Fran­ça oitocentista deixa evidente uma rede de relações de interdependência funcional entre as mulheres de letras, seus tra­dutores e os livreiros-editores responsáveis pela classificação e organização dos livros nas coleções juvenis. A novidade pedagó­gica representada pelo Brasil como tema do romance moral unia­se ao empreendimento comercial da difusão internacional dos li­vros franceses.

Nesse sentido, o empreendimento comercial dos irmãos Garnier na América Latina desempenhou papel decisivo. Com a livraria francesa no Brasil intensificava-se o movimento das tro­cas culturais entre o Velho e o Novo Mundo. Enquanto Baptiste­Louis Garnier instalava-se na corte do Rio de Janeiro, em 1844, o Brasil era produzido literariamente na França. Os livros analisa­dos demonstram verdadeiro sistema produtor de singularidades que, seguindo a tradição das narrativas de viagem do séc. XVI, alimentava um grosso filão do mercado editorial europeu - as bibliotecas cristãs e morais dajuventude -, ao mesmo tempo em que dava os rumos da invenção literária do Brasil.

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Lições de viagens, devoção religiosa e sobrevivência nos trópicos: o Brasil no romance juvenil francês oitocentista

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Os cadernos de campo de Roger Bastide: entrecruzamentos múltiplos

Maria de Lourdes Patrini-Charlon (UFRN)

Este trabalho de análise dos cadernos de campo de Roger Bastide inscreve-se na dupla dimensão da antropologia e da histó­ria cultural. Os cadernos de campo do antropólogo representam um conjunto notável de escritura autográfica preparatória no seio dos quais encontram-se expostos os passos de uma produção e do itinerário de sua viagem à África do Oeste, em 1958. Neste artigo, proponho-me a examinar a variedade e o conteúdo do material manuscrito e dos suportes sobre os quais repousa a escritura do pesquisador francês. As diferentes ações de escritura, assim como a variedade de suportes e de conteúdos, serão apresentados atra­vés da "mise en relation", realizada pela interlocução observada nos manuscritos encontrados nos arquivos do "fundo Bastide". Essa "mise en relation" está presente entre a escritura e o suporte, entre as práticas de escritura, entre os suportes, entre os dados e, igualmente, entre as vozes de pesquisadores que, de uma forma ou de outra, são sujeitos participantes da pesquisa do estudioso. Estarei privilegiando a escritura de campo e, enquanto suporte, os cadernos, porque eles estão em relação direta com o meu real objeto de pesquisa. O material selecionado e os conteúdos privile­giados pela minha pesquisa encontram-se classificados na« cate­goria » NOTES, na « rubrica» Notes de lecture et de voyages. do inventário elaborado pelo Institut Mémoires de L' édition Contemporaine (IMEC), na França.

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A escritura de campo de Bastide: o pesquisador -escritor

Se Gustave Flaubert deu início a uma nova geração, a dos "escritores - pesquisadores"!, podemos dizer que Roger Bastide pertence a uma geração de "pesquisadores - escritores". Seus manuscritos constituem uma quantidade considerável de notas autográficas e de notas de trabalho que dão a dimensão da força de investigação e de verificação do antropólogo que, além de uma curiosidade científica sempre presente, fez de seu objeto de estu­do a causa de seu percurso. Segundo suas próprias palavras, "es­crever" é sempre retirar das profundezas do "eu" todos os tesou­ros escondidos, todas as flores noturnas do subconsciente, e é também, por conseqüência, despertar todos os demônios e os deu­ses escondidos, liberar os antepassados". (Bey lier, 1944a: 3-4) 2.

Bastide concebe uma problemática central sobre os conta­tos culturais e sistemas simbólicos em um campo bem preciso e que ele jamais abandonará. Seu campo de observação será a Fran­ça, a África do Oeste e o Brasil. Sua escritura de campo revela sua escolha e confirma seu engajamento e busca constante concernentes a essas questões:

Lundi J 8 aotu -lettre n. J 5, Bastide anota em seu Cahier -Mon Journal 3 : COl1versation avec V. sur la comparaisoll entre Eguns à Bahia et ici 4 •

Se em suas pesquisas Bastide privilegia a comparação, ele confere ao mesmo tempo uma importância consideráwl às trocas assimiláveis, ao modo assimétrico sobre a forma na qual as coisas se passam, sabendo como levar em conta o resultado de um pro­duto híbrido. Desde o início de sua produção sobre o Brasil, Bastide procurou conhecer bem as relações íntimas existentes entre os negros e brancos na sociedade brasileira, marcadas por distanciamentos e reaproximações múltiplas. Ele se perguntava freqüentemente: "Comment penser le contradictoire?" (Beylier, 1978: 221). Para ele o Brasil é um exemplo da interpenetração de civilizações e é o lugar onde se realiza o cruzamento de tradições intelectuais distintas. Segundo o pesquisador, esse cruzamento lhe permitia compreender as especificidades do país e de seu povo e também de onde ele extrairia os instrumentos conceituais neces­sários para a análise de seu objeto de estudo. Para Roger Bastide

I Ver artigo de BIASI, Pierre· Marc de. "Notion de carne! de travail : le cas F1aubert". In: Carnets d'écrivai/ls. Paris, Éditions du Centre National de la recherche scientifique (CNRS), 1990, pp. 23-56.

1 BEYLIER, Charles. "Le sujet et l'objet". In: BASTIDE, Roger. Images du /lordes te mystique e/l no ir et bla/lc. Pandora/Des Sociétés, Paris, 1978. p. 222. (Bey1ier cite Bastide). (tradução nossa).

3 MO/l ]our/1al estará no texto sempre em itálico, pois esta denominação foi dada por Bastide ao ca/lier I.

4 Neste texto todas as citações de Bastidc estarão em itálico.

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, Todos os documentos manuscritos de Roger Bastide sobre sua viagem de estudos à África são inéditos.

6 Sobre esta experiência, Bastide escreveu um artigo que foi publicado com fotos de Pierre Verger na revista Etnografia, n.18, Museu Nacional de Etnografia e História. Junta Distrital do Porto, 1968. (N. O.) e em Verger-Bastide: dimen,w"jes de uma amizade, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2002. No entanto, o texto manuscrito encontrado no caderno de campo é ainda inédito.

7 VERGER, Pierre. "Roger Bastide". In: LUHNING, Angela (org) Verger-Bastide: dimens(jes de uma amizade, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2002, pp.255-257.

, LUHNING, Angela (org) Verger-Bastide : dimens(jes de uma amizade, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2002, pp. 39-54.

'Conforme conceito desen­volvido por Paul Ricoeur em Temps et Récits. Paris, Seuil, 3v. 1985.

era necessário ir ainda mais longe em sua compreensão, por isso quis conhecer as fontes, ver, entender, enfim estar no campo. As­sim, ele parte em viagem para a África do Oeste (Benin e Nigéria) em 1958, por setenta e dois dias. Durante sua permanência nessa região africana, ele recolhe um corpus que reúne mitos, narrati­vas, rituais, canções, provérbios, danças, expressões típicas e fa­tos folclóricos5 • Ele compartilhou esta experiência com seu ami­go, o antropólogo Pierre Verger6 • É, pois, o próprio Verger quem nos informa dizendo que, infelizmente, Bastide não redigiu o livro que queria ter preparado a partir das notas obtidas na África - e complementa: "Fato lamentável, pois não há dúvida de que ele teria sabido nos transmitir tudo o que havia visto, com aquela mistura de poesia e humor que ele sabia incluir na sua obra de sociólogo"7. Em "As múltiplas atividades de Roger Bastide na África (1958)" 8 , Pierre Verger reafirma ainda: "Bastide, infeliz­mente, não publicou um livro apresentando o conjunto de impres­sões e experiências vividas por ele durante sua estada no Golfo de Benin ( ... )". Além das articulações mencionadas, nessa matéria manuscrita e inédita há outras presentes entre a escritura de cam­po e as notas de leitura, os desenhos, as fotos e os mapas de itine­rários. Trata-se de uma escritura que acolhe ainda: seleção mais ou menos voluntária dos fatos, deslocamentos, organizações cro­nológicas e diacrônicas de acontecimentos que, elaborados den­tro de uma dinâmica, serão os responsáveis pela construção de uma trama9 entre os documentos manuscritos. Assim, jogos de interações constantes são estabelecidos, revelando as interferên­cias entre o "eu" e o "grupo", um "eu" que não sai jamais impune da experiência, pois com Bastide não há de um lado o observador e do outro a realidade que ele estuda.

Os manuscritos: articulações em vários sentidos

1 - Dos manuscritos com o inventário

Entre os documentos e o inventário há uma dinâmica que é absolutamente estabelecida no momento da organização e da dis­tribuição dos documentos. Isso requer do pesquisador muita aten­ção, pois ele deve estar sempre pronto a usar sua experiência para perceber exatamente onde se encontram os pontos nevrálgicos

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das relações entre os manuscritos: Como foram estabelecidos? Quais os critérios e caminhos escolhidos pelos técnicos que os manusearam ordenando-os, com o objetivo de dar-lhes coerên­cia? Definir o lugar mais adequado para cada um dos documentos é, sem dúvida, o primeiro desafio para quem vai realizar este tra­balho, chegar a um conjunto no qual cada peça deve estar em relação corri as outras, respeitando sempre o tempo, o espaço, o contexto, a história dos documentos e a tradição terminológica, o que não é tão evidente como pode parecer à primeira vista. Nos arquivos do "fundo Bastide" não temos documentos classificados sob a categoria "cadernos de campo" e nem "cadernos de traba­lho", por exemplo. Esses são alguns dados que indicam que o pesquisador tem que construir suas próprias trilhas no inventário, para isso ele tem que conhecer minimamente o objeto de estudo e a obra do estudioso. Por exemplo: o primeiro título consultado [LE CANDOMBLÉ DE BAHIA ET LA CÉRÉMONIE DE aNDO (KOBE)] per­tence à "categoria" NOTES, logo à "rubrica" Notes de lecture et des voyages. A descrição dos documentos contidos nesse título anuncia, entre outros documentos: Mss - cahier de notes avec quelques dessins. Na realidade, o que havia era um caderno do tipo brochura (50 páginas), com um título sobre a capa da frente: Le candomblé de Bahia, escrito por Bastide. Na quarta capa (ver­so), Bastide anotou: Cérémonie de Ondo, Kobe, 22 juillet, (fête des Ignames Neuves). O título do inventário anuncia, mas não explica nem especifica seu conteúdo. Em um mesmo conjunto (pasta) estão reunidos o candomblé da Bahia e a cerimônia de ando. Isso vai exigir explicações mais precisas, principalmente se considerarmos que nesse caderno há duas práticas de escritura diferentes: uma de trabalho e a outra de campo. Qual percurso deverá percorrer o pesquisador para concluir que o caderno em que o antropólogo registrou suas notas de campo da cerimônia de ando corresponde à estada de Bastide na África, em 1958? Sabe­mos muito bem que Bastide esteve na África diversas vezes. Se as notas de campo correspondem apenas a um dia de observação, o dia 22 de julho, como encontrar o ano correspondente? A data colocada na capa do caderno não traz o ano. Como precisar as datas com tais incertezas se o pesquisador está com esses docu­mentos pela primeira vez nas mãos? O título é o primeiro entre mais de sessenta existentes nessa categoria do inventário lO • Na

10 Entretanto, a pesquisa que eu estava realizando na categoria Notes, na rubrica Notes de lecture et de voyages, mostrava-me a cada dia que, se os cadernos de campo realmente existissem, havia uma grande chance de eles estarem classificados naquela rubrica.

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rubrica Notes de lecture et de voyages encontramos dois subconjuntos: notas de leituras e de viagens. O caderno em ques­tão não se insere nem em notas de viagens nem tão pouco em notas de leitura. Ele foi denominado simplesmente caderno de notas, sem qualquer outra especificação. Isso me levou a pensar que havia uma grande possibilidade de o conteúdo ter sido priorizado na classificação dos documentos, sem levar em conta os suportes e tão pouco as práticas de escritura, a não ser aquelas já consagradas, como a correspondência. Para mim algo estava claro: a nomenclatura 'caderno de campo' estava excluída dessa classificação, até porque o interesse por essa prática de escritura autográfica é bem recente. Na realidade, Bastide dividiu material­mente esse caderno em duas partes, utilizando ações de escritura diferentes. Na frente, trata-se de um caderno de trabalho e no verso de um caderno de campo. Na frente temos a correção por página do livro Le Candomblé da Bahia-Brésil: evidentemente não se trata de notas de leitura, nem de viagem, nem de campo, pois estas notas estariam mais próximas de notas de trabalho, ao invés disso, trata-se de correções das provas preparatórias da edi­ção do livro. No verso, temos as notas que Bastide tomou durante uma cerimônia de Ondo, a que assitiu em Kobe, África do Oeste, em 1958, mas isso eu só pude descobrir e confirmar depois de ter avançado bastante na leitura dos documentos. Primeiramente, foi necessário encontrar o Cahier I - Mon ]ounal e depois de muito trabalho de análise consegui estabelecer as relações. Em seu diá­rio de campo, no dia 22 de agosto, ele registra o acontecimento, apenas anunciando o fato' e dizendo: voir autre cahier. Essa bipartição da classificação em lecture / voyage assim como a de caderno de notas não foi feita por Bastide. No conjunto em que foi colocado este caderno de "notas", como foi denominado, há, igualmente, um texto manuscrito de Roger Bastide sobre o êxta­se. Esse texto se refere provavelmente ao capítulo V: "La structure de l'extase", de seu livro Le Candomblé de Bahia-Brésil. Nesse sentido, constatamos que essa classificação não é satisfatória, nem globalmente do ponto de vista dos títulos, nem localmente do ponto de vista dos documentos e muito menos do ponto de vista dos suportes. Ressaltamos que se os cadernos de campo encontrados fazem parte da "rubrica" notes de leitura e de voyages, essa "ru­brica" abriga uma vasta nomenclatura: caderno de notas, caderno

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de viagem, diário de viagem, carnê de viagem, notas de viagem, notas de visitas e carnê de notas. Essas são todas as denomina­ções que foram dadas ao suporte cadernos. Nesse caso, percebe­se muito bem que a noção de "caderno" e de "viagem" é um tanto quanto ambígua. Inicialmente, é preciso esclarecer que nós não podemos misturar caderno de campo, caderno de trabalho, cader­no de viagem se quisermos respeitar a tradição terminológica. Para o técnico que elabora o inventário é, sem dúvida, difícil reconhe­cer a importância de certos elementos que caracterizam os ma­nuscritos e as práticas de escritura. Entretanto, para o pesquisa­dor se dar conta, num primeiro contato, de que um caderno utili­zado frente e verso, sem data completa, contendo práticas de es­critura e conteúdos diferentes possa ser identificado, ao menos em uma de suas partes como um caderno de campo e que possua relação estreita com as anotações diárias feitas por Bastide no Cahier 1- Mon Journal durante sua estada em 1958, na África, não é também nada simples. Um documento é às vezes colocado em um título que, de início, pode parecer revelador, mas que es­conde elementos e, em alguns casos, os mais importantes. A escri­tura de campo desse caderno foi organizada de forma particular, o antropólogo elaborou seu texto respeitando as partes da cerimô­nia assistida. ele não se serviu de uma escritura diária. A especificação f suporte. conteúdo, escritura) dos cadernos está longe de ser estabelecida segundo uma terminologia mais adequa­da e a escolha do título notes de lecture et de voyage não dá senão uma indicação muito geral do conteúdo da rubrica. Assim, um documento manuscrito (reunido em um título específico) pode pertencer a um "título", que normalmente indica seu conteúdo, mas ele pode estar, às vezes, em relação mais estreita com outros documentos, ou seja, fazendo parte de outros conjuntos. em títu­los diferentes. Dessa forma, a leitura de outros documentos colo­cados em títulos ou até mesmo de rubricas diferentes é necessária para se encontrar o fio orientador. Os outros documentos do mes­mo conjunto não são sempre esclarecedores, eles exigem também outros percursos mais elaborados da parte do pesquisador. Enfim, o corpus é extremamente diverso e heterogêneo, por isso traba­lhoso, exigindo conhecimentos específicos sobre os seus conteú­dos. Apesar de todos os esforços para se dar certa clareza, um inventário merece ser sempre retrabalhado, pois há continuamen-

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te a necessidade de novos ajustes. Com as evidências que ternos, cabe ao pesquisador descobrir os caminhos nos quais o inventário foi construído para poder reorganizar sua busca. Mesmo se a cons­trução do inventário obedeceu a técnicas propagadas, é preciso saber que as evidências seqüenciais não são sempre credíveis, porque as verdadeiras chaves não são encontradas senão após muito trabalho. Com isso, quero dizer que as rotas apresentadas pelo inventário são preciosas para que o pesquisador possa come­çar seu trabalho, mas cabe a ele assumir a tarefa de restabelecer um novo caminho onde os documentos manuscritos serão deslo­cados de um lado a outro, para serem recolocados em contato com os seus pares, formando um conjunto coerente.

2 - Dos suportes com a escritura de campo

Para Roger Bastide a escolha do suporte é urna questão de menor importância. Folhas avulsas de todos os tamanhos e cores, diversos tipos de papéis assim corno materiais destinados a um uso bem preciso, tais corno os envelopes, os calendários ou as cartas de visita podem ser suportes para os seus registros. Da mesma forma que nos cadernos convivem práticas de escritura diferentes, encontramos a prática de escritura de campo em urna variedade de suportes. Essa diversidade vai exigir urna disposição considerável para a leitura de documentos que, se à primeira vista não se assemelham aos materiais que estão sendo buscados, po­dem, no entanto, conter a chave para certos mistérios. A prática tem nos mostrado que as classificações dos manuscritos e seus suportes jamais podem nos dar urna garantia e que os desvios merecem, algumas vezes, mais atenção que a rota bem traçada. Deixando de examinar um documento, estaremos arriscando dei­xar para trás algo precioso. Corno selecionar toda essa matéria? Talvez seja menos complicado quando se procura o manuscrito de urna obra específica, mas quando se trata de escrituras prepa­ratórias corno os registros de campo, o pesquisador deve absolu­tamente esmiuçar todo o inventário, pois a ausência de urna no­menclatura que defina suporte e conteúdo exige urna busca que vá além da questão da terminologia utilizada e que ultrapasse a questão das evidências. Exemplo: as folhas azuis avulsas classifi­cadas e descritas no inventário corno 'algumas notas de leitura' no

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título [CAHIER DE VOYAGES : DAHOMEY ET NIGERIA I] contêm, além das notas de leitura e referências bibliográficas, uma classificação e uma descrição com algumas indicações das páginas dos conteú­dos de cada um dos cadernos de campo elaborados por Bastide durante sua permanência na África em 1958. A leitura minuciosa dessas folhas levou-me a descobertas preciosas, que significaram um ponto de chegada e ao mesmo tempo um ponto de partida. Nessas folhas, Bastide elabora índices sobre alguns conteúdos de seus cadernos, mas onde estariam os suportes com tais conteú­dos? Assim uma lista de assuntos com as páginas numeradas do Cahier I continua até a página 188, onde ele anota: Yhovisme (sublinhado por Bastide). Nesse Cahier I, o pesquisador ressalta as páginas que abrigam suas notas de leitura. No entanto, quem conhece bem esse caderno sabe que as notas de leitura estão na mesma seqüência em que se encontram a escritura profissional, diária, com dados obtidos no campo e também algumas extraídas de arquivos documentais, além da escritura pessoal. Na prática de escritura de campo não vamos encontrar sempre a linearidade e a seqüência habitual tão desejada. No caso de Bastide, podemos dizer que tanto para a classificação dos cadernos quanto para as ações de escritura e para os suportes, as tônicas são a variedade e a diversidade.

Seguindo a classificação do antropólogo (na folhas l,4 azuis) saltamos do caderno I ao caderno 111 e mais tarde, ele retorna ao caderno 11.

Cahier des Baptêmes à Agoue 1846 - 1880 n. lll" + [esses sinais estão no manuscrito]

p.l - Bres. cath. Bres. Et armé de Français

p. 15 - Bres. cath. (1956) p. 17 - Bres. cath. Histoire + p.l8 (Fétichisme) p. 19 - Les maisons brésiliennes à Lagos (articIe) A lista vai até a página 29 - cimetieres, inscriptions '2 .

Ao lado das páginas acima citadas, Bastide anota entre colche­tes : [Papiers à part Brésiliens Porto Novo, liste, mariages etc.]

Em seguida e após o traço de separação habitual há a lista de páginas do caderno 11.

"Indicação e descrição do conteúdo de algumas páginas do caderno UI.

12 Esses conteúdos das páginas fazem referências aos dados oriundos de documentos.

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Os cadernos de campo de Roger Bastide: entrecruzamentos múltiplos

"Indicação e descrição do conteúdo de algumas páginas do caderno 11.

p. 1 - Visite Negres à Chacha Mais adiante, ao lado das páginas, ele anota: n.lI 13

p. 13 - Port des esc1aves Ouidah p. 15 - Baptêmes à Ouidah. 1876 - 1881 / 1866 - 1873 Bastide anota ao lado da p. 15 : Suite carnet ;aune -1880 e embaixo dessa informação: + cahier bleu c1air - 1875.

É interessante observar que, diferente do Cahier I, os con­teúdos das páginas não se referem somente às notas de leitura no Cahier 11 e no Cahier 111, ou seja, encontramos exemplos extraí­dos do campo nesses cahiers, por exemplo: p.lO - Visite d' Almeida; e igualmente anotações oriundas de fonte documental, por exemplo: p.15 - Baptêmes à Ouidah et p. 87 - Rôle Bres. Guerre 1914.

Assim, num mesmo caderno convivem notas de trabalho, de campo e anotações pessoais. Talvez a necessidade de traçar um percurso, organizando seus instrumentos de trabalho e seus dados em relação ao seu objeto de estudo é que motivou Bastide a elaborar esses índices dos cadernos. De qualquer forma, para mim, esta classificação foi extremamente útil. A partir dessas in­formações, pude identificar e selecionar alguns dos cadernos exis­tentes no inventário. Entre os meus achados, eu sabia faltava ain­da encontrar outros cadernos. A variedade de documentos é uma constatação, seja do ponto de vista do material, seja em relação ao conteúdo e ao suporte. No entanto, isso não me impediu de penetrar nesses conjuntos e, assim, tentar analisar a escritura do antropólogo, conhecendo mais de perto suas experiências de tra­balho de campo. Normalmente, a escritura de campo e seus su­portes (cadernos, carnês) constituem-se em tomo de uma exigên­cia material, da continuidade textual e por isso o pesquisador ten­ta evitar a priori o uso de folhas avulsas, mas isso está claro que para Bastide é uma norma que se transgride. Escrever, anotar, registrar são as ações que orientam a conduta do estudioso e isso ocorre sempre dentro de uma dinâmica. Freqüentemente, ele in­terrompe seus registros para anotar uma questão que será refleti­da e discutida mais tarde, faz desenhos, esboços diversos, faz re­ferências a títulos de obras, menciona trabalhos de outros pes­quisadores, enfim, sua escritura profissional revela um diálogo permanente entre o "aqui" e o "agora", momento performático da

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ação do pesquisador e sua experiência acumulada. Bastide elabo­ra inventários para tudo: sobre seus artigos, leituras, livros, publi­cações, listas de obras lidas ou para serem lidas, correspondênci­as, nomes de pessoas e de amigos e isso tudo pode estar em meio às notas de campo. Apesar de muitas vezes constatarmos a sua falta de interesse por um suporte mais adequado ao exercício de seu ofício, ele demonstra, de uma maneira particular, muito rigor nas suas ações de escritura. No entanto é possível que, para esta viagem de pesquisa, ele tenha escolhido alguns cadernos como suporte, pois ele chegou mesmo a elaborar durante a viagem de 1958 um diário de campo14 - Mon Jounal, como ele mesmo denominou. Eu diria que Roger Bastide, além do pouco interesse que demonstra pelo suporte, parece preferir os suportes mais sim­ples e os mais acessíveis. Prova disso é que, entre os cadernos de campo de Bastide examinados, o Mon Journal é um simples ca­derno do tipo escolar, dois outros trazem sobre a capa a denomi­nação de caderno de "rascunho" e um outro é um caderno de publicidade (Air France). Enfim, todos os cadernos se asseme­lham a cadernos escolares.

3 - Entre as práticas de escritura do Mon Journal

Para tratar dessa articulação interna, ou seja, da "mise en relation" que observamos nas ações escriturais de Roger Bastide no interior de um mesmo caderno - o Cahier I - Mon Journal, podemos começar dizendo que ele contém a escritura nômade e a sedentária que pode se efetuar através de duas ações e em dois momentos distintos. O antropólogo serve-se desse caderno, en­quanto suporte, também em dois momentos distintos e com fun­ções distintas: suporte nômade e suporte sedentário. Entretanto, no que se refere às práticas de escritura, as fronteiras não são assim tão delimitadas. Em cada um desses momentos, podemos ter a presença da escritura profissional e a pessoal. Assim, num mesmo dia ou numa mesma página, podemos encontrar notas com descrições dos dados obtidos no campo, notas de leitura, referên­cias bibliográficas, registros de comentários posteriores, resumos de observações, algumas notas à margem e anotações pessoais. Em meio a esta variedade observei ainda a presença de anotações feitas após a observação, frases conclusivas que resumem reflexões,

14Entre os cadernos encon­trados, este é o único que foi construído com a escritura diária, dia-a-dia, durante os 72 dias que passou na África, em 1958.

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15 Conforme a classificação feita por Bastide, há duas denominações: Journal ou cahier.

novas hipóteses, diferentes problemas, lembretes (Ver V. photos), enfim, nada parece escapar da pena do pesquisador que mantém tudo sob controle. Importante ressaltar que, ao lado da escrita diá­ria obtida no trabalho de campo, há ainda a presença de outros dados, mas dessa vez oriundos de arquivos (fonte documental)

O Cahier I - Mon Journal é do tipo quadriculado, brochu­ra, 192 páginas, capa cartonada de cor cinza, formato 22cmx 16, Sem, tipo escolar. As páginas do caderno foram numeradas, elas comportam somente a escritura manuscrita, desenhos e esboços também de autoria do antropólogo. Ele preencheu todas as pági­nas com uma caneta do tipo esferográfica azul com uma escrita minúscula, de leitura difícil. Como já foi dito anteriormente, estão presentes nesse caderno a escritura profissional e a pessoal, distri­buídas da seguinte maneira por Bastide15 : da página 1 à página 182 - escritura de campo - Mon Journal- e as 10 páginas finais foram consagradas quase que exclusivamente à escritura pessoal. No entanto, a parte destinada à escritura profissional, como já foi bem evidenciado, não contém somente a escritura de campo:

Mercredi 27 aout lettre n022 ( ... ) Visite du tombeau du roi Glebe. Enorme mausolée,

avec son lit au centre et moustiquaire, pour que son âme puisse se reposer. ( ... ) Apres visite au cartier des forgerons - bijoutiers.

Essas páginas estão entremeadas por notas de pesquisa do­cumental, de leitura e também pela escritura pessoal :

Puis lu un peu. L'apres-midi ai pris documents potitiques sur Brésiliens à la commission des Affaires Politiques du Gouvernement. Passé I' apres-midi et la soirée à les tire et à prendre des notes.

Às vezes estas interferências se dão de forma ainda mais surpreendentes. Nesse caso, a escritura profissional se justapõe com a pessoal, intensificando-se mutuamente:

Samedi 16 aout lettre n013 Aujourd'hui fait un peu de correspondance. Je ne suis pas sor­ti. V. est un peu fatigué. V. me parle malgré son mal de tête à nouveau de Ondo. Lui se demande, étant donné que le rituel. ..

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( ... ) Mercredi 27 aout lettre N°22 Départ à 11 h30 de Ouidah. Nous passons para Allada, Agun, Bohian. Arrivée à Abomey, à prés de 14h. l'avais mangé quelques bananes en route ( ... ).

Algumas vezes, quando a escritura pessoal ganha espaço, ela é sempre entremeada por uma escritura de memória, de agen­da que acaba por remeter de forma mais ou menos direta ao trabalho de pesquisa:

Lundi 15 septembre lettre 37 Ce matin course et promenades dans Porto Novo Vendredi - 29 aoút - Écrire à Christiane (fille de R.Bastide) Lundi 1 ° septembre Le soir Cotonou. Diner chez Platonoff. Rentré vers 11h Y2. Bavardé avec V. presque vers 1 heure. Dimanche 14 septembre Ce matin resté à la maison p. travailler. Un peu de fievre

No entanto, a partir da página 183, ele anota: « Appendices l6 » (páginas não numeradas). Desta vez a escritura profissional está menos presente, trata-se sobretudo de uma escri­tura pessoal: contabilidade, listas de compras e de presentes para a família. Temos aqui a presença do Bastide organizador de listas intermináveis. Entretanto, a escritura profissional entra sorratei­ramente e se mistura à escritura pessoal de uma forma menos acen­tuada, mas suficientemente verificável.

4 - Da escritura profissional com a correspondência e a fotografia

Na obra autográfica de Roger Bastide há uma forte presen­ça de colaboradores, como se houvesse uma sociabilidade de cri­ação. Nos traços da sua escritura autográfica o coletivo junta-se ao individual. A importância da correspondência se faz num diálo­go a quatro mãos e confirma uma vez mais o atributo coletivo bem marcado na sua escritura. Em seu diário de campo - Mon lournal, ao lado da data ele registra o número da carta que escre­veu assim como o número da foto que certamente está relaciona-

16 Como já explicamos, trata-se apenas de uma divisão material do suporte, pois em matéria de ações de escrituras, elas continuam a transgredir as fronteiras das partes material­mente estabelecidas.

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da com as notas ali registradas. Exemplo:

p. 25, ele anota: Lundi 28 - Lettre nO 1. p. 27 : Mardi 29 -lettre n02 Vendredi 5 Septembre. Lettre nO 28 (photo 3)

Fizemos a leitura de grande parte da correspondência de Roger Bastide. No que concerne aos destinatários sei que uma grande parte era de amigos e colegas de profissão; representantes de órgãos públicos interessados em pesquisas científicas, repre­sentantes de editoras e revistas especializadas. Bastide sempre trocou cartas (profissionais e pessoais) com seus alunos, seus ex­alunos e colegas de profissão. O Cahier I, Mon Journal informa­nos que, além das cartas destinadas aos amigos e colegas, estão também registradas as que ele enviava à sua família.

A carta por definição é algo que se compartilha. Ela tem muitos aspectos: enquanto prática de escritura, é um objeto que se troca, um ato no qual estão em cena "eu, ele e os outros". A carta, um texto autográfico, distanciado de seus atores toma-se documento. Assim, enquanto documento a correspondência vai, como outros documentos, estabelecer uma rede de relações, possibilitando interlocuções com os destinários/remetentes, mas igualmente com os dados de campo registrados por Bastide em seus cadernos e seu objeto de estudo.

Na África, em 1958, em Mon Journal, Bastide conserva ainda viva a questão do "desafio popular", discussão mantida com intelectuais brasileiros durante décadas:

Mercredi 27 aout - lettre n.22 Visite du Palais des Rois ( ... ) lmportance du symbolisme. Le symbolisme dicté par les proverbes. Ce qui fait que I' objet a à la fois 1 sens concret et 1 sens abstrait. II y a là 1 trait de mentalité africaine que je retrouve dans le desafio: la mentalité rébus.

A leitura da correspondência é que tomou possível, primei­ramente, a compreensão mais aprofundada deste registro de cam­po e ainda me deu a oportunidade de acompanhar o debate sobre o "desafio" que durante décadas Bastide, pacientemente, mante­ve com escritores, poetas e intelectuais brasileiros.

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Uma quantidade considerável de cartas endereçadas a Bastide consta do arquivo (de Mário de Andrade, Câmara Cascudo, Manuel Bandeira, Gilberto Freyre, entre outros). Algumas delas tratam de assuntos bem precisos, discutem conceitos e produções científicas (17 cartas de Lévis-Strauss11 ), outras abordam direta­mente a pesquisa, algumas tratam diretamente de questões pesso­ais e há aquelas em que a escritura profissional e a pessoal convi­vem no texto em perfeita harmonia. Nesse sentido, citaríamos as cartas de Pierre Verger18 • Das 44 cartas classificadas no título [Bibliographie (Voyage Afrique)], algumas delas tratam especifi­camente da viagem à África, em 1958. Nelas o antropólogo P. Verger coloca-se à disposição para receber e acompanhar o ami­go e colega no seu itinerário de pesquisa. Envia também informa­ções detalhadas sobre a viagem e a chegada. Sobre a confirmação destas trocas preliminares que antecederam a viagem de Bastide, podemos encontrar algo similar na primeira página do M on Joumal, de Roger Bastide.

No que se refere às fotografias ali anotadas, elas são na maioria de autoria de Pierre Verger. Isso vai possibilitar, sem dú­vida, a produção de uma iconografia das idéias, mas também dos documentos manuscritos e inéditos de Roger Bastide.

Uma folha branca avulsa (A4) traz uma lista feita por Bastide sobre sua produção de artigos, os que ele tinha a intenção de escre­ver e publicar. Esta lista nos informa o interesse do pesquisador em divulgar os resultados de seu trabalho realizado durante sua estada na África com Pierre Verger. Aqui também o material fotográfico, principalmente o de Pierre Verger, é integrado a sua produção.

1- Livre? - Remontée aux Sources R.B - Photos V. (10 à 14) 2- Bulletin Etudes Dahoméennes - (pour Lombard) - P.V et R.B Description d'une cérémonie religieux -Photos V. 3- Pour Monod - Bulletin IFAN ? - (simple article sur Ies aspects) R.B Une étude sur les Brésiliens 4- Peut être ultérieurement livre les plus développé sur les Brésiliens d' Afrique qui a déjà un éditeur si Monod ne Ie prend pas, la VI Secteur va Ie demander 5- Pour le Congres : Rapport Général sur Ies Marchés -P.VetR.B 6- Pour Annales de L.Febvre Iong article sur les Marchés -

17 A autorização para a leitura das cartas foi concedida por Claude Lévi-Strauss através de carta manuscrita.

18 Recebi, igualmente, autoriza­ção da Fundação Piem: Verger (Salvador/BA) para ler as cartas de P. Verger.

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19 Temos neste caso mais uma prova que a classificação do inventário considerou mais a pertinência entre os conteúdos.

P. V. et R.B 2 à 4 Photos V. 7- Articles Revue de Paris: Fêtes d'Oxum ? ou autre eérémonie ? R.B

5 - Das viagens com os temas

As viagens de trabalho se sucedem na vida de Bastide. Em cada uma delas, o pesquisador carrega consigo os seus temas de estudo, bagagem cara ao estudioso que segue sempre acompa­nhado de suas problemáticas e hipóteses. E, assim, fazendo parte da mesma trama, os fios se multiplicam (dados), fortificando os laços (relações e conclusões) que a experiência outorga ao estudi-0so. Os documentos reunidos no título [CAHIER DE VOYAGES :

DAHOMEY ET NIGERIA I], especificamente uma folha branca avulsa que traz um texto de Bastide sobre o Bumba-meu-boi (Burrinha), ilustra de forma exemplar o que acabo de afirmar. Este texto faz parte do mesmo conjunto do Mon Joumal, diário de campo de 1958 19 , e está datado: (Dimanche 27 mars 19~6 - Ouidah. Association Francisco da Rocha).

Ainda não encontrei mais informações sobre esta viagem à África feita por Bastide em 1966. Entretanto, os dados de campo obtidos por Bastide confirmam que a viagem de 1966 aconteceu, pois identifiquei em sua escritura de campo uma comparação en­tre os dados obtidos nessa viagem e na viagem anterior, realizada em 1958. A escritura contida na folha avulsa interage com a escri­tura diária, Bastide estabelece relações entre as viagens, entre os dados, fazendo mais uma vez circular no tempo, no espaço e no contexto o seu objeto de estudo:

Aujourd'hui dans la même ville de Ouidah, variation par rapport à ee qui j' avais vu la demiere fois = il semble done bien que si même strueture ou sehéma, grand rôle de spontanéité créatrice des animateurs. ( ... ) Noter aussi variation des masques vu encore même type, mais le Water mamy, malgré ses 2 serpents, avec sa figure blanche, ses lunettes = 1 vieille danse créole davantage que mythique). Par les bouviers avec son grand chapeau de paille etc. (ver p.2 do diário de campo, de 1958).

O confronto de relações que assinalamos durante esse tra-

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balho está mais uma vez presente na variedade das práticas de escritura assumidas pelo estudioso. Para ilustrar o que acabo de afirmar, podemos citar o artigo sobre a "Burrinha" publicado em 2002. Ao lê-lo, sentimos a presença da escritura preparatória rea­lizada no campo, fonte imprescindível para que uma outra ação de escritura desse a luz ao artigo, tornando pública uma experiência única e pessoal. Da mesma forma, pude perceber numa leitura em seqüência as relações estreitas existentes entre as duas produções escriturais, apesar de cada uma estar escrita em uma língua dife­rente, pois o artigo foi publicado em português, e parece dar con­tinuidade ao primeiro, estabelecendo uma relação circular entre a escritura de campo e escritura da obra.

No artigo "A Burrinha de Uidá", (texte de Roger Bastide et photos de Pierre Verger), publicado no livro VERGERlBASTIDE - Dimensões de uma amizade, temos a revelação de um desejo que será responsável por mais uma viagem, e a confirmação da busca permanente de temas que lhe são caros e que circulam nos interstícios da terras do Brasil e da África. Assim escreveu Bastide: "Foi essa vontade de rever o. Brasil que me levou, nestas férias, a ir ter com meu amigo Pierre Verger entre os « brasileiros» de Uidá, de Porto Novo e de Lagos, que ele conhece tão bem. E o Brasil- esse Brasil importado para a terra africana pelos descen­dentes dos antigos escravos que voltaram para lá com a religião, a língua e os costumes do Brasil - mais uma vez realizou meus de­sejos: no próprio dia em que desembarquei do avião, sem ter tido tempo de desfazer a mala, de me instalar, Verger me arrastou a Ui dá para assistir a uma "Burrinha" deliciosamente brasileira." (Bastide, 2002: 77)

Primeira página do diário de campo:

13 juillet Arrivée Kotonou - Verger m'attend avec camionnette IFAN 20 • Beau temps, mais nuages vers le soir. Départ pour Ouidah21

(40 Km environ) un dtner chez M. Bisson, ma ire. La maison me rappelle étrangement le Brésil " on mange dehors, en se servant soi-même, parmi les fleurs, les arbres, sous un manguier. Paysage un peu récifien22 • un peu Apipucos. Plusieurs membres de la «colonie française », blancs ou Martiniquais, Guyanais - Le matin, visite du marché - L' apres­midi, visite du quartier « Brésil ». Répétition de la

20 IFAN: Institut français de I' Afrique noire

21 Ouidah = Uidá.

22 Os dicionários Larousse (2002) e Le PerU Roberr (CD 2001-2003) trazem o subs­tantivo récif e o adjetivo récital - e - aux. A forma utilizada por Bastide não consta nesses dicionários. A palavra recifien talvez faça parte das conhecidas adaptações (francês e português) criadas e utilizadas por Bastide.

23 "Burrinha" é o nome que recebe em Dahomey a festa popular do "Bumba-meu-boi".

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24 A palavra fazendaire pode ser o mesmo caso da palavra recifien: adaptações lingüís­ticas.

25 Escolhi esse sinal (=)

para representar as palavras não legíveis.

26 Escolhi esse sinal (l1I1I1I/) para representar as rasuras do texto.

« Burrinha23 ». 2 pandeiros, 2 tambours (plusieurs noms donnés, «marcha» = marcha militaire) - Danses de 2 mas­ques (masques achetés chez commerçants) ,- apparition de « cheval marin », tres bien - La déesse des eaux avec son allure de dame fazendaire24 , avec ses lunettes, etc., et ses serpents caraibes (quelle peut bien être l' origine de ce mas­que ?) avec ses 2 dames d'honneur, 1 plus « brésilienne »

d' allure et I' autre plus africaine, avec coiffure africaine, toute jeune est tres jolie, dignité de reine, orgueil. Répétition des sambas. Loi de la mémoire collective .- fragments de phrases brésiliennes et tn::n:::n:(25 phrases détachées, remplissage ave c de phrases africaines (syncrétisme linguistique), mais intérêt I 11111j26 Verger leur copie les chants plus nettement brésiliens de Porto-Novo - La fê te était tombée en désuétude, le nouveau maire qui veut redonner vie à Ouidah (peu I' égal à Kotonou) IIIII demande de la reprendre.

As viagens, os temas, as ações de escrituras, os autores e as experiências colocam-se em relação dinâmica onde também vo­zes se cruzam. O exemplo mostra como surge da escritura de Verger a escritura de Bastide, desta vez vinda da experiência do campo que ambos compartilharam. Deixando para trás o contato diário com o campo de pesquisa, muda a ação da escritura, pre­serva-se a experiência vivida, muda-se a ação do olhar, dá-se con­tinuidade à trama, fios intermináveis, "mise en relation" de uma prática, de uma obra, de uma vida e assim a viagem continua e é Bastide quem diz:"Mas outros deveres me esperam em Paris, e eu não verei outra vez as 'iaôs' de Xangô, que me fizeram sonhar em pleno coração de África, e as suas irmãs que estão do outro lado do oceano"(Verger:2003, p.SO).

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2 Longe de qualquer interpre­tação romântica da arte como meio de salvação do artista, importa perguntanno-nos em que sentido a arte pode real­mente ser um anti destino. Se não pode constituir um instrumento eficaz no combate contra a violência e a morte, pode ao menos, como diria Malraux no prefácio de Le Temps du mépris ''tentar dar aos homens consciência da grandeza que ignoram em si mesmos" (Le temps du mépris. Paris, Gallimard, 1935, p. 9). Ou, se pensarmos na questão da metamorfose através dos tempos, havemos de entender que o antidestino da arte - ou seja: o fato de sempre escapar à fixação das formas e do sentido - é a bem dizer seu primeiro destino enquanto obra de arte.

Da representação do horror ao vazio da representação

Edson Rosa da Silva (UFRJ / CNPq)

L'horreur, en effet, ne s' annule que par un exces d'horreur. Georges Bataille. L'Érotisme*

o livro que André Malraux escreveu sobre o pintor espa­nhol Goya em 1950, intitulado Satume', sempre me pareceu revelador de sua relação com a idéia de sagrado e a idéia de mor­te. Não com a idéia de religião, mas com uma dimensão sagrada

. que ultrapassa qualquer crença ou ritualização dogmática. É a partir desse sagrado que, segundo Malraux, obseda Goya e «que nos a..tinge por seu caráter negativo» (S, 156) que ele analisa a obra ~troz do pintor espanhol. Mas como se manifesta esse sagrado? Não seria certamente por uma «invisível presença sugerida pelos mitos» ou por uma luz que para ele apontasse, diz Malraux, que acrescenta a seguir: «O único meio que possui a arte de tentar a expressão [de tal sagrado] é o de restabelecer o contato com tudo aquilo que transforma o artista apenas num momento de passa­gem: o sangue, o mistério, a morte» (S, 157).

Duas idéias estão embutidas aí: a de que o artista não pode resgatar de forma romântica e nostálgica o que a morte destruiu (o que me leva a contestar uma compreensão ingênua da famosa afirmação de Malraux: «A arte é um antidestino»2 , que não cabe aqui discutir); e a outra idéia que afirma que é só pelo contato com a morte que o artista conseguirá exprimir o sagrado,

É claro que este sagrado a que me refiro não é o sagrado dicotômico do cristianismo: é o sagrado pleno, aquele que, etimologicamente, reúne puro e impuro, aquele que, no rastro da reflexão de Nietzsche, poderíamos chamar de sagrado dionisíaco,

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em que não há dualismos nem separações, em que se encontram criação e destruição, prazer e dor. Ao tratar do tema da violência e do sagrado, Georges Bataille, não sem sugerir a filiação nietzschiana, insiste ao longo de sua obra na íntima relação entre o homem e a animalidade, e acentua a tensão que o abjeto, a souillure, introduz no humano, estabelecendo assim um vazio­fora-da-humano onde as antinomias se esvanecem, onde a expe­riência (que Bataile chama sempre de experiência interior) con­fronta o que se pensa e o que se vive. É nesse timbre que busca conjugar todas as formas do aparentemente humano com as inevi­táveis conseqüências do inumano que diz, em O erotismo, que «o horror da morte não se acha unicamente ligado ao aniquilamento do ser, mas ao apodrecimento que lança as carnes mortas na fer­mentação da vida» 3 •

Tento construir, assim, um instrumental conceitual que me permita tratar o abjeto como um cruzamento de sentidos, em que se encena um paradoxo: o do abjeto (ab-jectum) rejeitado pelo humano, mas que do humano provém. O abjeto é uma me­táfora da repulsa / atração da morte. Eis por que a representa­ção do horror sempre choca e, ao mesmo tempo, fascina o hu­mano. Eis porque o mal, muitas vezes temido e rechaçado, é, por vezes, necessário e desejado.

É sobre esse jogo antitético - extremamente baudelairiano - que gostaria de discorrer, comparando alguns episódios que me parecem altamente significativos dentro dos romances de André Malraux nos quais podemos contemplar a beleza terrível e sagrada da morte, a fascinação do mal e os processos da abje­ção: o primeiro trata do momento em que Claude e Perken, per­sonagens do romance La Vaie royale [A Estrada real, 1930] que se passa na floresta do Camboja, reencontram Grabot, persona­gem prisioneiro de uma tribo selvagem local; e o outro é aquele em que Garine e o narrador do romance Les Conquérants [Os Conquistadores, 1928], que trata da guerra de Cantão, em 1925, na China, encontram o corpo de um combatente alemão terri­velmente torturado.

3 BATAILLE, Georges, op. cit., p.63.

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4« L'héautontimorouménos »,

in : Oeuvres completes, t. I. Paris: Gallimard, 1975,78.

5 Todas as citações dos romances remetem à edição coletiva da Pléiade: MALRAUX, André. Romans. Paris: Gallimard, 1976. A página será indicada entre parênteses, precedida da sigla do romance em questão: VR (La Voie Royale), C (Les Conquérants), CH (La Condition Humaine). As traduções são de minha responsabilidade.

* Je suis la plaie et le couteau ! Je suis le soufflet et la joue !

Je suis les membres et la roue, Et la victime et le bourreau !

Charles Baudelaire 4

As primeiras alusões à vida de Grabot o fazem mergulhar numa atmosfera de lenda e de mistério. Enquanto buscamos com Claude, um arqueólogo, e Perken, um aventureiro conhecedor da região, os templos khmers perdidos na floresta asiática, participa­mos ao mesmo tempo da ansiedade de Perken à medida que nos aproximamos da região onde se encontra aquele personagem. A partir da terceira parte do romance, a busca arqueológica deixa de constituir o centro de interesse da expedição, cedendo o lugar à luta do Perken pela libertação de Grabot.

Ao partir para a região dos conflitos na Ásia, esse persona­gem não o fizera tão simplesmente por interesses econômicos ou políticos; buscava, sobretudo, responder a uma necessidade im­periosa de «acertar as contas consigo mesmo»5 (VR, 219). Volta­se para sua própria solidão. Algo o separa dos outros e o torna diferente: é a sua coragem. Esse é o germe do conflito que tam­bém vai dominar Tchen, o famoso terrorista da Condição Huma­na. Para esses dois personagens, arriscar a vida é um prazer, já que a morte não lhes causa medo; ao contrário, ela os fascina. Gtabot é capaz de ultrapassar todos os limites para expor-se e perder-se, para gozar de um prazer terrível: o prazer de sua pró­pria dor. É nesse sentido que, segundo Bataille, a perda se instala como um meio de aquisição de um poder sobre si mesmo e uma nova força sobre o mundo. É nesse sentido que ultrapassa a di­mensão humana para alcançar uma dimensão sagrada, na qual o gesto da morte e o ato do sofrimento participam da força de um sacrifício ritual.

É assim que a mutilação, que Grabot se impõe causando a destruição do próprio olho com pus blenorrágico, permite-lhe, na experiência da dor, a vitória da coragem sobre o medo. Diante de um escorpião que lhe causa forte repulsa, sua atitude é a mesma: ao invés de fugir, expõe-se e deixa-se picar de propósito (VR,

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245-246). Toma-se assim um agente do mal, um transgressor. Como os reis das comunidades primitivas que, no momento de sua entronização, transgrediam as leis mais sagradas e eram agre­didos pelos súditos que os sujavam de sangue e excrementos para, assumindo o abjeto, conquistarem o poder de exorcizar a própria abjeção: contaminando-se com o impuro, absorviam o veneno do mal. A singularidade do gesto de Grabot confirma seu isolamento. Com efeito, não é o ato de violência que lhe impõe a marginalização. Pelo contrário, sua exclusão precede o ato e exi­ge o sacrifício, pois a exclusão é a marca da eleição. Enquanto pharmakos, espécie de vítima sacrificial, ele encerra a ambigüida­de característica do sagrado: etimologicamente a palavra latina sacer, sacra, sacrum possui dois sentidos que se excluem: sagra­do e maldito, aquilo que não se pode tocar sem sujar e o que não se pode tocar sem se sujar. Carregando no seu próprio corpo o bem e o mal, Grabot se distingue fisicamente do homem comum, tomando-se dessa forma o ponto de convergência das diferenças, o objeto multiforme, o homem-animal, humano-inumano, resolu­ção das antíteses.

Prisioneiro dos selvagens, Grabot é condenado a empurrar a mó de um moinho, como num círculo infernal absurdo. Quando Claude e Perken penetram na palhoça sem janelas para libertá-lo, eles o reencontram como um objeto aterrorizador, « um rosto aviltado» (VR, 260), cujos olhos não vêem, um corpo brutalizado (por ele mesmo e pelos outros). A reação dos dois traduz o emba­raço angustiante diante do desconhecido que o corpo do escravo ainda misterioso lhes impõe. A impossibilidade de aproximar-se dele reside no fato de que «suas pálpebras esticadas coladas em um osso ausente» davam a esse rosto o aspecto de uma degrada­ção terrível. Grabot parecia um cadáver, imagem da decadência humana.

Exorcizar o mal é, para ele, antes de tudo, encarná-lo, assu­mindo assim uma forma inumana. Assustadora ilustração do para­doxo da paixão de viver e da intimidade com a morte, contra cujo absurdo luta sem tréguas. E o melhor meio de fazê-lo é antecipar sua forma abjeta, é incorporá-la com toda a consciência, consci­ência semelhante à do Sísifo de Camus, opondo-se dessa forma ao jogo do destino, atacando-o com as mesmas armas.

Nesse sentido, o rosto de Grabot que tentei esboçar, evoca,

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.« Les Aveugles » , BAUDELAIRE, Charles, op. cit,92.

a meu ver, a figura do homem em uma espécie de nudez fora do tempo. Sem voz e sem visão, esse corpo assusta e fascina, como se alcançasse o silêncio mais eloqüente e a visão mais ilimitada. Se aludi à análise que faz Malraux dos desenhos de Goya, é que vejo ali, sob a forma de um ensaio, a mesma imaginação que ge­rou os personagens romanescos. Falando dos torturados dos De­sastres da guerra, Malraux afirma: "Quando o que ele pinta tem relação com o atroz - que o tenha visto, que lhe tenham contado ou que ele mesmo imagine - Goya mantém sua ligação com o intemporal. O supliciado, o homem de braços cortados suspensos nos galhos, que evocam a tortura milenar [ ... ] estão nus - fora do tempo." (S, 115). Ora não poderíamos evocar aqui Grabot, que acabamos de ver?

*

Leurs yeux, dont la divine étincelle est partie, Comme s'ils regardaient au loin, restent levés

Au ciel ; on ne les voitjamais vers les pavés Pencher rêveusement leur tête appesantie.

Ils traversent ainsi le noir illimité, Ce frere du silence étemel.

Charles Baudelaire6

Garine e o narrador de Les Conquérants encontram em uma sala o corpo do combatente alemão Klein terrivelmente tortura­do, ao lado de três reféns chineses.

Diante desses corpos mortos e degradados, os personagens se sentem confusos, como se se encontrassem subitamente face a face com algo misterioso e incompreensível. Com efeito, a sensa­ção de estranhamento que os invade é a súbita revelação de um outro mundo. Eis o que diz o narrador: «esses corpos de pé têm algo, não de fantástico, mas de surreal nessa luz e nesse silêncio. Consigo respirar de novo agora, e, com o ar que aspiro, invade­me um odor que a nada se assemelha, animal, forte e insípido ao mesmo tempo: o odor dos cadáveres» (C, 129).

A presença dos mortos transforma inteiramente o espaço em que se encontram. A posição ereta dos corpos contra a parede

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dá uma dimensão diferente a esses cadáveres que não têm a pos­tura habitual dos mortos, mas que parecem invadir, de certa for­ma, o mundo dos vivos. Donde a reação do narrador que, pene­trando na luz radiante e no silêncio, vê aí algo que ultrapassa os limites do real. Tudo se transformou, como o ar, dominado por um odor animal mais forte do que a presença dos homens.

É um momento ao mesmo tempo de ruptura e de reencon­tro: ruptura com a vida e reencontro do humano com o inumano. E desse encontro nasce, como uma força estranha e dominadora, a fascinação. Os corpos torturados de Klein e dos três chineses projetam na atmosfera silenciosa da sala uma aura sagrada. E, diante dessas vítimas, Garine e o narrador são submetidos a uma experiência mística: aproximam-se da morte e estabelecem com ela laços de intimidade.

Aos olhos do narrador, o corpo de Klein impõe-se como a imagem concreta da tortura. E à descrição inicial do romance, quando o texto apresenta o militante como um homem grande e forte, vem sobrepor-se a de um corpo mutilado, com «uma enor­me mancha no meio do rosto: a boca rasgada com uma navalha)), diante do qual o narrador desvia os olhos: « feridas abertas, gran­des manchas escuras de sangue coalhado, olhos revirados, todos os corpos se parecem. Foram torturados ... » (C, 130). É impossí­vel não se pensar em Goya diante deste quadro! Como Goya, Malraux rompe com a tradição do belo, do real agradável à vista, e descobre em um percurso por outros já trilhado a beleza do mal. Por isso, sua obra é pontilhada de quadros atrozes que, como o de Klein e como a produção do pintor espanhol, trazem a revelação ou a sedução do horrível: « A terrível forma da sedução chama-se fascinação»7. Ora, diante de Klein e dos Chineses, achamo-nos diante desse in temporal de que fala Malraux a propósito de Goya - a tortura milenar - que nos transporta para fora do tempo.

A chegada da mulher de Klein introduz nesse quadro já tão denso e sobrenatural um personagem novo. Imóvel diante daque­le corpo, sem chorar, ela o contempla. De súbito, cai de joelhos. Não reza. Parece atraída pelas marcas das atrocidades, como se, por elas, e apenas por elas, se lhe revelasse naquele momento a significação mais profunda do sangue: a eterna questão da morte dos homens. E num gesto de amor, essa mulher-sem-nome, essa mulher-sofrimento, «toma nos braços o corpo» do marido (C, 131),

7 \1ALRAUX, André. Dessins de Goya au Musée du Prado. Genêve : Skira, 1947, p. XIII.

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recuperando, assim, no romance (e na obra, onde a presença fe­minina é tão reduzida) a imagem terna da Pietà. A figura da mãe não é incompatível com o universo cruel e violento que aí vive­mos e ainda menos com a mulher do militante alemão. Aliás, a Pietà é ela própria uma figura plena de contrastes, pois reúne para sempre (como um destino petrificado!) a dor e o amor. Ela abraça a morte com um gesto convulsivo: «sacode a cabeça com um movimento incrivelmente doloroso de todo o busto .... ». Esfre­gando-se contra o sangue derramado, maculando o próprio corpo com os restos do humano, essa pobre mulher acentua o caráter absurdo da morte: «com uma terrível ternura, esfrega seu rosto, de forma selvagem, sem um soluço, no lençol ensangüentado, nas chagas» (C, 131).

Esse quadro tão expressivo que Malraux nos apresenta reú­ne também - e de forma magistral- pela presença da mulher ama­da ao lado do cadáver do marido as figuras de Eros e de Tânatos. Em outras palavras, funde numa mesma imagem dois gestos que se assemelham fundamentalmente: o do amor e o do sacrifício. E com seu gesto de amor, a mulher confunde-se com a morte, em uma comunhão fascinante e terrível, em um diálogo que, embora mudo, diz muito mais do que qualquer tratado sobre a morte.

*

Os exemplos que apresentei como formas de pensar e de representar o abjeto são apenas dois momentos dos inúmeros que encontramos nas literaturas e nas artes. Nada de novo. A primeira questão que me movia nessa reflexão era delimitar um espaço de significação do abjeto que é, ainda, a meu ver, e continuará sendo, muito amplo, pois envolve manifestações diversas de um gesto que lança longe (ab-jecta) aquilo que nos repulsa, mas que, por outro lado, não se pode inteiramente separar do ser humano. A segunda questão referia-se à aura sagrada que esse abjeto instau­ra. O terrorista é um sacrificador: o homem-bomba imola e Se imola. Por isso, emaranhando vozes como Bataille. Kriste\"3.. Nietzsche, mesmo se nem sempre mencionados. circunscreYi esse abjeto em torno da morte e de seus avatares.

A terceira questão é pensar a representação do abjeto e in­dagar sobre sua eficácia. É inegável que a arte constitui para o

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artista um manancial de vida, um espaço de ressurreição onde, apesar da violência e da morte, reencontra ou tenta reencontrar ainda o equilíbrio das coisas. O artista cria, instaura novas rela­ções, um novo mundo (mesmo que imaginário). Seu gesto tem força demiúrgica, tem poder contra a violência. Mas até que pon­to?

Em Notas de literatura, onde Adorno discute a função da obra engajada, essa pergunta assume um lugar de destaque. Refe­rindo-se à peça de Sartre, quando alguém pergunta em Morts sans sépulture se há sentido em viver enquanto existem homens que batem em outros até que os ossos se quebrem, diz que uma per­gunta se impõe ao mesmo tempo: a arte ainda pode existir? Em um diálogo com o espanhol Alvear, professor de História da Arte, Scali, intérprete de Masaccio e de Piero della Francesca, profes­sor da Universidade de Florença, diz no romance A Esperança, que relata a guerra civil espanhola de 1936: «Nas Igrejas do sul, onde combatemos, vi diante de quadros enormes manchas de san­gue. As telas perdem sua força» (E, 835). Ao que responde Alvear: « Seriam necessárias outras telas, só isso».

O que Alvear queria dizer com isso não fica claro. Creio que cada tempo exige sua arte, novos engajamentos, e novas re­presentações. Que escritores e artistas venham apresentando cons­tantes protestos contra a violência que grassa ao nosso redor, não há a menor dúvida. O que eu queria arriscar como reflexão é ob­servar que, ao lado de inúmeras formas concretas de representa­ção, a representação do vazio tem cada vez mais lugar e é plena de sentido.

Temos assistido na literatura e nas artes a uma reflexão cons­tante sobre a ausência, o vazio, o silêncio. A linguagem perfeita do silêncio escaparia a toda e qualquer materialidade física que a pudesse macular. A ausência do livro, para Blanchot, parece não querer corporificar a obra, mas alimentar o processo, como se, pela não existência, nada se pudesse corromper.

Penso que há uma migração da representação concreta para uma representação pela ausência. Dois exemplos me vêm à lem­brança. Visitei em julho de 2004 o Judisches M useum em Berlim, construído pelo arquiteto Daniel Liebeskind. O museu é organi­zado a partir de três eixos que se entrecortam: o da continuidade, o do exílio e o do holocausto. São salas altas, grandes, corredores

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imensos e tudo quase vazio. Há salas com quadros de artistas judeus e outras salas vazias, numa ausência eloqüente de quadros que sumiram, foram destruídos, ou nunca existiram. Talvez se pudesse chamar isso de uma instalação do Vazio da Morte. A sala das máscaras humanas, de aço, sobre as quais somos convidados a caminhar, causando um barulho metálico, agressivo, hostil -barulho abjeto - do humano desumanizado é algo que causa dor e repulsa.

O segundo exemplo é o monumento que, naquele julho, ainda estava por terminar: pedras tumulares negras em pleno centro de Berlim, a algumas quadras apenas da porta de Brandenburg. Túmulos vazios, plenos de lembranças. Era o centro do III Reich. Parece um cemitério. Mas não há corpos. Só pedras. É o monu­mento da ausência.

Creio que é possível pensar essa ausência-plena. Plena de memória, vazia de forma humana. Ainda não sei bem como elabo­rar essa reflexão. Mas parece-me que a forma vazia, tal qual a linguagem do silêncio, é uma forma de proteger o já desumanizado, ou pelo menos de impedir a sua nova desumanização. Forma pre­cária, talvez, de preencher o vazio com a memória que não se apagou. Parece um simples jogo de palavras, mas não é. Pelo menos para mim não é. Cria-se o espaço da morte, onde não há morte, porque a morte nada pode contra a morte.

Fiquei perplexo como diante do sagrado. Recolhido. Emo­cionado. Muito mais do que diante da exibição abjeta dos cabelos, das malas e dos sapatos de Auschwitz.

Estou convencido de que a ausência é uma nova forma de reflexão e de representação da catástrofe e do horror.

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'Lady Makby, marido Ideal (1895), in Beckson, Karl (Org). O melhor de Oscar Wilde. Tradução Dau Bastos. Rio de Janeiro: Garamond, 2000.

'Ulman, Ellen. Perto da máquina. Tradução Márcio Grillo. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 200 I, p. 123.

lKolata, Gina. Clone: os caminhos para Dolly e as implicações éticas, espirituais e científicas. Tradução Ronaldo Sérgio De Biasi. Rio de Janeiro: Campus, 1998, p. 21.

4Perrone-Moisés, Leyla. Derrida no Rio. Folha de São Paulo, Caderno Mais! São Paulo, 8 de julho de 2001.

'Huxley, Aldous. Admirável mundo /lOvo. Tradução Vidal de Oliveira e Lino Vallandro. 26a. edição - São Paulo: Editora Globo, 2000, p. 9-10.

'Kolata, Gina. Clone: os caminhos para Dolly e as implicações éticas, espirituais e científicas. Tradução Ronaldo Sérgio De Biasi. Rio de Janeiro: Campus, 1998, p. 7.

A literatura e a virtualização do texto literário

Rogério Limo (UnB)

Nada mais perigoso do que ser demasiado moderno: corre-se o risco de sair de moda muito rapidamente.

Oscar Wilde I

Viver virtualmente é uma arte. Como qualquer arte, a virtual idade não é nem estável nem segura.

Ellen Ullman2

o pós-moderno e a literatura Frankenstein

Chamamos atenção para a seguinte questão: talvez se deva pensar a questão do virtual, ou de sua invasão do território literá­rio, enlaçando, pelo menos para começar, três referências inevitá­veis: complexidade, velocidade, interdisciplinaridade. Elas nos proporcionarão, combinadamente, outras possibilidades de refle­xão. E neste momento, diante da polimorfia do virtual, da lenti­dão da letra e da velocidade da imagem, a saída jamais terá de ser a clonagem da literatura.

Segundo Gina Kolata a clonagem é uma metáfora e um es­pelho. "Ela nos força a contemplar a nós mesmos e os nossos valores e a decidir o que é importante para nós e por quê."3 Para Jacques Derrida a clonagem se configura como uma repetição calculada da identidade genética de um indivíduo4 , da mesma for­ma como Huxley denuncia o fato em seu Admirável Mundo Novo ao descrever a fria racionalidade do Processo Bokanovisky5. A bokanovskização é a metáfora de Huxley para a aplicação da li­nha de montagem fordiana à reprodução humana. A clonagem implica na produção e não na geração de um ser6 ; essa afirmação coloca a literatura em um impasse entre a criação e a produção.

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A clonagem da literatura deve ser interpretada como uma repetição em série daquilo que já está posto pela própria literatu­ra. O pós-modernismo opera justamente no sentido contrário ao da clonagem, que entendemos estar muito mais afeita ao cânone ou próximo do que Barthes chama de texto legíveU Os textos legíveis "São produtos (e não produções) que constituem a enor­me massa de nossa literatura". 8 Esses são textos da esfera do pos­sível e não do virtual.

O pós-moderno trabalha com os signos cristalizados da cul­tura e tem por finalidade questionar valores estabelecidos e elabo­rar um novo objeto artístico, utilizando como material de sua com­posição elementos da própria cultura.9 É possível que com esse tipo de ação viéssemos a ter uma literatura FrankensteinJO , mas não uma literatura clonada. "A literatura sempre antecipa a vida nunca a copia: ela a molda segundo seus próprios objetivos".!! Os corpos textuais, legíveis, produzido pela literatura pós-moderna são corpos fraturados, dotados de virtualidades e virtualizações (problematizações) internas ao texto e externas ao seu funciona­mento, enquanto artefato técnico de comunicação de uma forma de arte em transformação.

A literatura e a mídia digital

O advento da mídia digital de massa e das recentes tecnologias de informação/comunicação colocou em xeque o pa­pel tradicional da literatura e da arte como um todo, desencadean­do um movimento de autoquestionamento a partir de seus própri­os fundamentos. Estes questionamentos ocorrem sob diversos aspectos, dentre os quais podemos citar: a noção e concepção de autoria, a fragmentação da narrativa, as novas relações textuais - criadas a partir do conceito de hipertexto (matriz de textos potenciais), da relação textolimagem, da interatividade, da virtualização do texto literário e da introdução do conceito de ciberliteratura.

Diante deste quadro, começa a ser esboçada uma poética da literatura pós-moderna e de suas relações com o mundo virtual, atentando-se especialmente para as obras que procuram redefinir e ampliar o estatuto do literário seja pelo diálogo intersemiótico

7Barthes, Roland. SfZ: uma análise da novela Sarrasine de Honoré de Balzac. Tradução Lea Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, p.38.

'Ibidem, p. 39.

9Lima, Rogério. O dado e o Óbvio: o sentido do romance na pós-modernidade. Brasília: Editora da Universidade de Brasília/Editora Uni versa, 1998.

1°0 termo Frankenstein ou Frankensteinização tem sido usado por diversos segmentos da crítica e autores como Nízia Villaça e Rosa Maria Rodríguez Magda para desig-nar o texto literário pós-moderno em suas diversas formas de realização e elementos textuais integrados por ele. Nízia Villaça com o apelo à metáfora do termo alude "ao fato de que o texto eletrônico, no complexo infor­mático/com unicacional, participa de um imaginário maquínico que, visto a partir de um horizonte do corpo enquanto dado natural, é considerado agente de desumanização, robotização, controle tecnoló­gico." VJllaça, Nízia. "Robinson Crusoé, Babel, Prankenstein e outros mitos: corpo e tecno­logia. In Villaça, Nízia.GÓes, Fred e Kosovski, Ester (Orgs.). Que corpo é esse? Novas perspectivas. Rio de Janeiro: Mauad, 1999. Para Rosa María Ro-drigues Magda, "Nos encontramos en el seno de la frankensteinizaçíon de la cultura, de la sociedade y de lavida. Mientras las sociedades avanzadas nos ofrecem un modelo holo­gramático, retroviral, de redes informáticas, de fusión cyborg entre la biología y la técnica, el mundo en su conjunto nos retroatrae al territorio preindus­trial do monstruoso, fragmentos distorsionados e irrecic1ables de un sigl0 que se acaba, deformes presencias milenaristas, la

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A literatura e a virtualização do texto literário

multiplicidad heterogenia de nuestros fantasmas recientes engarzados en una fisiología excrescente, descomunal y atroz. Síntesi imposible, monstruosa por tanto, de la historia en nuestro presente, y presencia acechante dei monstruo de lo otro que en vano pretendemos recluir más aliá de nuestros limites de seguridad. Con la denominación "modelo Frankenstein" pretendo meta­forizarestas dos vertientes: porun lado, la pervivencia de los restos cadavéricos de nuestro pasado: teoóas, estéticas, religiones ... que retornan en una contemporaneidad convulsa, que no compone sin más un mosaico de datación diversa sino que lo integra en un dinamismo redivivo y mutante; y, por otro lado, plasmar la presencia y eI horror de lo monstruoso en los limites de nuestra conciencia y nuestrageografía: el extranjero, el fanático, el violento, el marginal, las minoóas diferentes y ladiferenciaen suma." Magda, Rosa María Rodríguez. El modelo frankenstein: de la diferencia a la cultura post. Madrid: Editorial Tecnos, 1997.

11 Vivian, em "A decadência da mentira", 1891. In Beckson, Karl (Org). O melhor de Oscar Wilde. Tradução Dau Bastos. Rio de Janeiro: Garamond, 2000.

12 Guattari, Félix. Da Produção da Subjetividade. In Imagem máquina. São Paulo: Editora 34, 1993.

13 Kubrick, Stanley. 2001 Uma Odisséia no Espaço. MGMI UA HOME VIDEO, VÍDEO ARTE DO BRASIL, 1968. 63Deleuze, Gilles e Guattari. Mil platôs: capitalismo e esqui­zofrenia. Vol. I. Tradução Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. São Paulo: Editora 34, la Reimpressão, 1996, p. 16.

do texto com imagens, sons e movimentos, seja pelo questionamento de conceitos sobre leitura, autoria, narrativa e representação. No bojo de todas as discussões surgidas em torno da literatura neste final de século e que, atualmente, têm merecido lugar de destaque no campo das ciências humanas está, sem dúvi­da, a questão relativa ao pensamento e à produção literária na era do digital. Diante deste fato, buscamos com este trabalho refletir sobre as seguintes questões: até que ponto, e de que maneira, se diferenciam a forma e a sensibilidade literária da modernidade e da pós-modernidade frente ao avanço da tecnologia digital e como se processará a relação leitor/texto diante do novo quadro que se estrutura? Para responder a essas questões trabalharemos com a crítica da cultura que irá nos fornecer instrumental teórico­investigativo para que tornemos possível a formulação de alguns pressupostos teóricos acerca de uma nova lógica existencial para o sentido da literatura, num mundo dominado por imagens, velo­cidade, informação em tempo real.

Definitivamente, - como diz Félix Guattari 12 - entramos na era da subjetividade maquínica, não de uma subjetividade reterritorializada, mas de uma subjetividade controlada pelas má­quinas: mídias, bancos de dados, a temporalidade dos computa­dores (tempo real), telecomunicações. Não se trata aqui de dizer que as máquinas tomarão o poder e dominarão o homem % a ficção científica já fez essa previsão e ela não se concretizou, não da forma como foi profetizada ou como o computador HAL 9000, de 2001 Uma odisséia no espaçol3, tentou impor a sua lógica coisificada de máquina. Mas de apenas constatar o fato de que, cada vez mais, e com maior intensidade, a nossa subjetividade está entrando em máquina: esta é a era que Guattari classifica como era da idade da informática planetária. Segundo Freeman Dyson, não há nenhum perigo concreto de que a inteligência hu­mana venha a ser superada pela artificial, pois está continuará a ser uma ferramenta sob controle humano. 14 O perigo real reside no uso e na conformação que pode ser dada às máquinas abstratas (políticas, econômicas, científicas, e outros)15 que podem agenci­ar a nossa consciência e sensibilidade de forma danosa.

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o virtual como problema

Segundo Jean Baudrillard, hoje não pensamos o virtual; so­mos pensados por ele. Baudrillard aborda a questão do virtual de forma bastante negativa. Segundo ele, não é possível imaginar­mos o quanto o virtual já transformou todas as representações que temos do mundo. O virtual, na sua opinião, caracteriza-se pela eliminação da realidade, mas não só, pois também inclui o apagamento da imaginação do real, do político, do social "- não somente a realidade do tempo, mas a imaginação do passado e do futuro (a isso chamamos, em função de uma espécie de humor negro, de "tempo real")."16

O virtual apresenta-se como uma ilusão que é perpassada e dominada pela entrada em cena da informação, pelo fim do pensa­mento com o surgimento da inteligência artificial. Para esclarecer o seu pensamento, Baudrillard usa um exemplo bastante delicado, devido ao fato de estar situado ao longo do acontecimento mais assustador e mais incompreensível de nossa história moderna: a exterminação dos judeus nos campos de concentração nazistas e os que negam a sua ocorrência histórica, os chamados negacionistas. A postura negacionista é absurda e aberrante, pois vai contra a realidade histórica e objetiva da exterminação. No tempo histórico os fatos aconteceram e as provas estão ao alcan­ce de qualquer um, que as queira investigar. Mas Baudrillard cha­ma a atenção para o fato de não estarmos mais no tempo históri­co; de agora em diante estamos no tempo real. No tempo real não há mais prova de nada. É impossível verificar a exterminação no tempo real. O negacionismo é visto como um absurdo na sua pró­pria lógica, mas ajuda a esclarecer por meio do próprio absurdo o surgimento de uma outra dimensão:

% paradoxalmente chamada tempo real, mas onde precisamen­te a realidade objetiva desaparece, não somente a do aconteci­mento presente, mas também a do acontecimento passado e a do futuro. Tudo se esgotando numa total simultaneidade que os atos aí não acham sentidos, os efeitos não acham suas causas e a história não pode mais aí se refletir. 17

O tempo real é visto por Baudrillard como um gênero de

14 Dyson, Freeman./nfinito em todas as direções. Tradução Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 342.

15 Deleuze, GiIles e Guattari, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 5. Tradução Peter Pá! Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo: Editora 34, p. 227.

16 Baudrillard, Jean. Tela Total. Porto Alegre: Sulina, 1997, p. 73.

17 Ibidem, p. 73.

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" Lévy, Pierre. O que é o virtual. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 1996. (Coleção Trans) p. 18.

buraco negro, onde nada penetra sem sofrer um esvaziamento de sua substância. Os campos de exterminação - argumenta o filó­sofo- tornam-se virtuais e só têm existência na tela do virtual. Todos os horrores decorrentes do Holocausto e os testemunhos da sua ocorrência são lançados, apesar dos negativistas, apesar de nós, no que ele chama de abismo do virtual onde os acontecimen­tos ou os fatos só existem o tempo que existem e nada mais.

A visão de Baudrillard em relação ao virtual é altamente cética e desencantada. Ele pressente no virtual a desestabilização da verdade e a derrota do pensamento histórico e crítico. Com isso ele quer dizer, na verdade, que há o triunfo do tempo real sobre o presente, sobre o passado, sobre toda e qualquer forma de articulação lógica da realidade.

O mesmo não pode ser dito de Pierre Lévy que busca nos seus trabalhos uma compreensão diferenciada do virtual. Lévy apresenta uma visão mais positiva, pois vê no virtual a sua opo­sição ao atual. Fugindo ao senso comum o autor retira o concei­to de virtual da ordem da ilusão, da ausência de existência. Des­ta forma, ele passa a ser entendido não como oposição ao real, mas ao atual. Vírtuahdade e atualidade são apenas duas manei­ras de ser diferente. A atualização pertence à esfera da solução de um problema, invenção de uma solução para um complexo problemático; enquanto que a virtualização pode ser entendida como o movimento inverso da atualização, ou seja, ela está situ­ada no contexto da problematização. Porém, não deve ser en­tendida como uma desrealização (transformação de uma reali­dade num conjunto de possíveis), mas como uma transformação de uma identidade, um deslocamento do "centro de gravidade ontológico" do objeto considerado que, ao invés de se orientar para uma solução (atualização), "a entidade passa a encontrar sua consistência essencial num campo problemático". Virtualizar uma entidade qualquer deve ser entendido como encontrar uma questão geral à qual ela se relaciona: consiste em fazer mover a entidade em direção a essa interrogação e em reorientar a atua­lidade de partida como resposta a uma questão particular. 18 Par­tindo desta conceituação, buscamos virtualizar a construção do sentido na narrativa da chamada pós-modernidade, pois enten­demos que o texto do romance no seu percurso do moderno para o pós-moderno se desterritorializou rumando na sua

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virtualização (problematização) para uma ressurgência da cultu­ra do texto.

o virtual e suas relações

Devemos fazer aqui algumas observações acerca de alguns conceitos como real e virtual, possível e atual, atualização e virtualização. Considerando, inicialmente, a oposição entre real e virtual, no seu uso ordinário, a palavra virtual é utilizada para indicar ausência de existência, a não-materialidade de uma "reali­dade" tangível. O real pertence à ordem do tenho, o virtual está situado na ordem do terás, estando, dessa forma, circunscrito ao campo semântico da ordem da ilusão (ideal, ilusório, imaginado, imaginário, irreal, quimérico, utópico, possível). Esta compreen­são do virtual, produzida no âmbito do senso comum, tem como maior conseqüência - advinda da ironia fácil desse pensamento - a produção de um entendimento enganoso e grosseiro da rela­ção real-virtual e, conseqüentemente, das diversas formas de virtualização. Ainda que demasiado grosseiro para constituir uma teoria geral, essa maneira de enfocar a questão tem um fundo de verdade que se revelará bastante útil, conforme poderá ser cons­tatado mais adiante.

A respeito das novas relações pessoais e comerciais estabelecidas ou impostas pelas novas formas de vida mediada pela tecnologia digital e do virtual, Ellen Ullman escreve:

Houve um tempo (ainda vivo na memória) em que "virtual" era uma palavra livre no idioma. Significava "quase verdadei­ro" ou "para todos os efeitos, mas não por completo. Não de fato". A pessoa podia dizer: "Eu estava virtualmente feliz". Encontrava-se feliz de fato? Não, porque junto com o "virtual­mente" havia um quê de falsidade, alguma coisa ausente, um estado inefável de que a felicidade não era tanta assim. Então, dizer "tenho uma empresa virtual" deveria significar que tenho uma empresa que não é tão real assim, algo próximo da reali­dade de uma empresa, mas sem algum elemento essencial. Outras pessoas, por exemplo. Entretanto, a palavra "virtual" já não vaga livre no idioma. Foi aprisionada pelas máquinas. Hoje "virtual" significa viver nesse lugar - que não é tão aqui assim - do computador e do

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19 Ulman, ElIen. Perto da máquina. Tradução Márcio Grillo. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2001, p. 120.

20 Hollanda, Aurélio Buarque de. Novo Aurélio Século XXI: Dicionário da Língua Portu­guesa - Dicionário Eletrônico. Rio de Janeiro: Editora Nova FronteiralLexikon Informática, 2000.

21 Lévy, Pierre. O que é o virtual. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 1996. (Coleção Trans) p.IS.

22 Deleuze, Gilles. Diferença e repetição. Tradução Luiz Orlandi, Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p.33S.

23lbdem, p. 339-340.

software. A palavra conserva um quê de ausência, daquilo que não é real. Mas, de alguma forma, essa negação virou uma coisa boa. Ter vida efêmera e vagar nesse lugar indefinível que agora conhecemos como ciberespaço é considerado excelente. Os semideuses vivem ali. "Tenho uma empresa virtual" - óti­mo, maravilha, formidável. 19

o vocábulo virtual na sua origem do latim escolástico virtuale significa aquilo que existe como faculdade, porém sem exercício ou efeito atual. Suscetível de se realizar; potencial. Diz­se do que está predeterminado e contém todas as condições es­senciais à sua realização. Opõe-se, nesta acepção, à idéia de po­tencial e atuaPO . "O virtual tende a atualizar-se, sem ter passado, no entanto, à concretização efetiva ou formal". 21 Exemplificando, a semente contém virtualmente a árvore. Em termos filosóficos, e como vimos na acepção da palavra elencada acima, o virtual não se opõe ao real, porém se coloca em total oposição ao atuaF2 . As categorias virtualidade e atualidade se configuram somente como dois modos de ser diferente.

Conforme escreve Deleuze:

o virtual possui uma plena realidade. Do virtual, é preciso dizer exatamente o que Proust dizia dos estados de ressonân­cia: "Reais sem serem atuais, ideais sem serem abstratos", e simbólicos sem serem fictícios. O virtual deve ser mesmo defi­nido como uma estrita parte do objeto real- como se o objeto tivesse uma de suas partes no virtual e aí mergulhasse como numa dimensão objetiva.23

Deleuze traz à luz a distinção entre possível e virtual, cha­mando a atenção para o perigo de se confundir o virtual com o possível:

Com efeito, o possível opõe-se ao real; o processo do possível é, pois, uma "realização". O virtual, ao contrário, não se opõe ao real; ele possui uma plena realidade por si mesmo. Seu pro­cesso é a atualização. É um erro ver nisso apenas uma disputa de palavras: trata-se da própria existência. Cada vez que colo­camos o problema em termos de possível e de real somos for­çados a conceber a existência como um surgimento bruto, ato puro, salto que se opera sempre atrás de nossas costas, subme-

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tido à lei do tudo ou nada. Que diferença pode haver entre o existente e o não existente, se o não existente já é possível, recolhido no conceito, tendo todas as características que o con­ceito lhe confere como possibilidade? A existência é a mesma que o conceito, mas fora do conceito. Coloca-se, portanto, a existência no espaço e no tempo, mas como meios indiferentes, sem que a produção da existência se faça num espaço e num tempo característicos. A diferença só pode ser então o negativo determinado pelo conceito: seja a limitação dos possíveis entre si para se realizarem, seja a oposição entre o possível e a reali­dade do real. O virtual, ao contrário, é a característica da Idéia; é a partir de sua realidade que a existência é produzida, e pro­duzida em conformidade com um tempo e um espaço imanentes à Idéia.24

Em segundo lugar, o possível e o virtual se distinguem ainda porque um remete à forma de identidade no conceito, ao passo que o outro designa uma multiplicidade pura na Idéia, que ex­clui radicalmente o idêntico como condição prévia. Enfim, na medida em que o possível se propõe à "realização", ele próprio é concebido como a imagem do real, e o real como a semelhan­ça do possível,25

o possível, como coloca Deleuze, é exatamente igual ao real, já constituído, porém caracteriza-se como um real fantasmático, desrealizado, desprovido de existência, que congrega um conjunto de possíveis. Segundo a leitura que Lévy faz de Deleuze, "A realização de um possível não é uma criação, no sen­tido pleno do termo, pois a criação implica também a produção inovadora de uma idéia ou de uma forma".26 Sendo a diferença

entre possível e real puramente lógica. Para o narrador deA bibli­oteca de Babel, de Jorge Luis Borges, - em sua busca pelo livro que contivesse todos os livros - o possível na sua relação com o real é a própria garantia de existência de um objeto. "Não me parece inverossímil que nalguma divisão do universo haja um li­vro total". Em nota a esta especulação ele afirma:

Repito-o: basta que um livro seja possível para que exista. So­mente está excluído o impossível. Por exemplo: nenhum livro é ao mesmo tempo uma escada, ainda que, sem dúvida, haja livros que discutem e neguem e demonstrem essa possibilidade e ou­tros cuja estrutura corresponde à de uma escada. 27

24 Ibdem, p. 335-336.

25 Ibid, p. 340.

26 Lévy, Pierre. o que é o virtual. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 1996. (Coleção Trans) p. 16

27 Borges, Jorge Luís. "A biblioteca de Babel" In Ficções. 6ª edição. Tradução Carlos Nejar. São Paulo: Globo, 1995, p. 90.

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28 Ibidem. p.16.

Na relação das oposições estabelecidas o virtual não se opõe ao real, mas sim ao atual. O virtual se configura como um comple­xo problemático: um nó de tendências ou forças que segue uma situação, um acontecimento, um objeto ou uma entidade qual­quer, e que aponta para um processo de resolução que se materi­aliza na atualização. Desta forma, a virtualidade pode ser entendi­da como uma problemática inerente a um ser, já a atualização se caracteriza como a solução, que não estava previamente enuncia­da, de um problema. Segundo Lévy a atualização é criação, "in­venção de uma forma a partir de uma configuração de forças e de finalidades".28 É possível apontar uma relação entre o pós-mo­derno e atualização devido às características desta nova forma de sensibilidade e da atualização? A resposta a esta pergunta é afirma­tiva. Lido pela ótica do virtual, o pós-moderno contém em si a virtualização, que se presentifica sob a forma de problematização - característica que lhe é imanente - e a atualização, que se esta­belece como resposta às questões impostas pelo pós-moderno.

Na relação entre possível e real, vimos que o possível é o real desrealizado à espera de uma dotação de realidade que o re­tire do limbo. O que toma o real semelhante ao possível. Na cor­relação de forças entre virtual e atual não há nenhuma relação de similaridade, pois se o real é análogo ao possível, o atual não guarda nenhuma relação de semelhança com o virtual, pois a sua função é responder a ele. A relação entre virtual e atual se configura da seguinte forma: o virtual se apresenta como problema e o atual como solução para esse problema, resultando daí a atualização.

Lévyescreve:

Se a execução de um programa informático, puramente lógica, tem a ver com o par possível/real, a interação entre humanos e sistemas informáticos tem a ver com a dialética do virtual e do atual. A montante, a redação de um programa, por exemplo, trata um problema de modo original. Cada equipe de programadores redefine e resolve diferentemente o problema ao qual é con­frontada. A jusante, a atualização do programa em situação de utilização, por exemplo, num grupo de trabalho, desqualifica certas competências, faz emergir outros funcionamentos, de­sencadeia conflitos, desbloqueia situações, instaura uma nova dinâmica de colaboração ... O programa contém uma

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virtualidade de mudança que o grupo - movido ele também por uma configuração dinâmica de tropismos e coerções -atualiza de maneira mais ou menos inventiva.29 29 Ibid, p.l7.

o processo da virtualização

o processo da virtualização se constrói e pode ser definido justamente como um movimento na contramão da relação e do movimento que vai do virtual ao atual: atualização. Pois, na eco­nomia da virtualização a ordem dos fatores é invertida, alterando substancialmente o produto. O ponto de partida agora é a atuali­zação (uma "solução") na direção de um problema, ou seja, cons­titui-se como uma passagem do atual em direção ao virtual, ge­rando dessa forma a virtualização. Ao contrário do possível (rea­lização, ocorrência de um estado pré-definido) a virtualização não é uma desrealização (a transformação de uma realidade num con­junto de possíveis), mas uma mudança de identidade, "um deslo­camento do centro gravitacional ontológico do objeto considera­do".30 Em lugar de deixar-se conhecer de maneira exata, de ex­por-se com precisão por meio de sua atualidade, ou seja, pelo viés da solução, a entidade transita para um campo problemático, onde descobre sua consistência essencial. 31 Retomando, a virtualização de uma entidade qualquer se funda no movimento de invenção de um problema geral à qual ela esteja relacionada, em fazer transitar o objeto em direção a essa questão e redefinir a atualidade de partida como resposta a uma questão particular. O virtual tem para si a "realidade de uma tarefa a ser cumprida, assim como a realidade de um problema a ser resolvido; é o problema que orien­ta, condiciona, engendra as soluções, mas estas não se asseme­lham às condições do problema". 32

Para exemplificar o processo da virtualização Lévy utiliza a transformação do espaço de trabalho na era digital:

Tomemos o caso, muito contemporâneo, da "virtualização" de uma empresa. A organização clássica reúne seus empregados no mesmo prédio ou num conjunto de departamentos. Cada empregado ocupa um posto de trabalho, precisamente situado e seu livro de ponto especifica os horários de trabalho. Uma empresa virtual, em troca, serve-se principalmente de teletrabalho; tende a substituir a presença física de seus empre-

30 Ibid, p.l7.

31 Ibid, p.18.

32 Deleuze, Gilles. Diferença e repetição. Tradução Luiz Orlandi, Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p.341.

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JJ Lévy, Pierre. O que é o virtual. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 1996. (Coleção Trans) p. 18.

gados nos mesmos locais pela participação numa rede de co­municação eletrônica e pelo uso de recursos e programas que favorecem a cooperação. Assim, a virtualização da empresa consiste, sobretudo, em fazer das coordenadas espaço-tempo­rais do trabalho um problema sempre repensado e não uma solução estável. O centro de gravidade da organização não é mais um conjunto de departamentos, de postos de trabalho e livros de ponto, mais um processo de coordenação que redistribui sempre diferentemente as coordenadas espaço-tem­porais da coletividade de trabalho e de cada um dos seus mem­bros em função de diversas exigências.33

Constatamos aí a ocorrência da desterritorialização do traba­lho, fato este que tem gerado diversas controvérsias no que diz respeito às rápidas transformações tecnológicas que os setores pro­dutivos têm sofrido e as interferências e mudanças que estas trans­formações impõem à organização do trabalho e aos trabalhadores.

A autora e engenheira de software norte-americana Ellen Ullman descreve com perfeição, em seu ensaio autobiográfico, o que é viver essa deriva da empresa virtual e o quanto ela pode gerar de assombro:

Mas a vida virtual das empresas tecnológicas exige algo além da inspiração. O que se mostra indispensável é passar para o resto do mundo uma idéia de existência real. Devemos parecer uma empresa no sentido habitual da palavra, com a sala cheia daquele zumbido empreendedor. Não há nada mais estranho do que estar de calça moletom suja e atender ao telefone dizendo "Ellen Ullman aqui" com voz madura e eficiente. É como pro­jetar-me (sic) num outro universo, onde visto um terninho e meu ca~elo está limpo, algum lugar que não tem nada a ver com o mundo que habito de moletom. Enquanto falo ao telefo­ne - com um cliente ou diretor -, tenho a consciência de que coloquei a voz de maneira correta e de que vêem como desejei ser vista: uma mulher inteligente e empreendedora num aparta­mento requintado de paredes de tijolo. Desligar então é quase doloroso. Clique. Volto a mim mesma: criatura a nadar sozi­nha no mar do tempo. Além de certa entonação de voz, a fachada da realidade construída é totalmente eletrônica - e, portanto, virtualizada mais uma vez. Endereço na internet com nome da empresa; fax com nome da empresa saindo do outro lado; secretária eletrô-

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nica que atende com voz de recepcionista, não a nossa; número de telefone terminado em zero alguma coisa, para pensarem que telefonaram para nossa linha privada, e não para a única que temos; timbres feitos por impressora a laser; recibos pro­duzidos em Excel, Quattro Pro ou QuickBooks - tudo isso e mais alguma coisa para criar a ilusão necessária e inequívoca de existência padrão. É meio assustador pensar na facilidade que é fazer tudo isso.34

A desmaterialização dos espaços tradicionais se corporifica sob uma nova forma de localização no ciberespaço: o endereço eletrônico, virtual. A desterritorialização total ocorre com a con­figuração do pontocom:

Agora até Wall Street quer deixar Wall Street. Alguns meses depois voltei de Nova York, li um artigo no Wall Street Joumal: a Bolsa de Valores de Nova York precisa de mais espaço para equipamentos eletrônicos e já fala em sair da cidade. Serão mais lojas fechadas em Wall Street, na verdadeira Wall Street, o lugar que um dia foi o sustentáculo da cidade. Imaginei como se chamaria depois da mudança: www.wallstreet.com? Mas por que a bolsa não deveria se mudar? Por que os profis­sionais da área não deveriam viver como os diretores, fazendo telecomutação de suas lindas casas em Connecticut? A Nasdaq é apenas um grande sistema de informações.35 Então, por que não a Bolsa de Valores de Nova York? O prédio na Wall com a Broad, na esquina do nosso, poderia talvez se transformar em atração para turistas. Talvez alguns corretores de carne e osso, pudessem ficar ali com suas camisas de corretor e gritar pelo microfone para transmissão de identificação de voz no siste­ma. Por que não? As cidades parecem ter se transformado em franquias de parque de diversões .36 As grandes lojas da Times Square são exatamente as mesmas Virgin, Gap, e Disney da Union Square, em São Francisco, da Praça Catalunha, em Barcelona, ou do Champs Élysées. Os mesmos Mickey Mouses, Levis e hamburguesas. Então, por que não grandes lojas da Bolsa de Nova York?37

A percepção da invasão do campo do real pelo virtual é um sentimento que paira sobre todos os que se dispõem a uma olhada rápida aos acontecimentos a sua volta. Em meio a tanta velocida-

H Ulman, Ellen. Perto da máquina. Tradução Márcio Grillo. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2001, p. 123.

" Grifo nosso

'" Grifo nosso.

37 Ulman, Ellen. Perto da máquina. Tradução Márcio Grillo. São Paulo: Conrad Editorado Brasil; 2001, p. 71.

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A literatura e a virtualização do texto literário

38 Auster, Paul e Wang, Wayne. Sem Fôlego. Produção: Peter Newman/lnteral Production em associação com NDFIEURO SPACE "BLUE IN THE FACE" com Harvey Keitel -Madona - Michel J. Fox - Jim Jarmusch -Lou Reed - Roseanne - Mira Sorvino - Lily Tomlin . Elenco: Heidi Levitt, figurino: Claudia Brown, Di-retor de Fotografia: Adam Holender . A.S.C, editor: Christopher Tellefsen. 1995, tempo aproximado 89 minutos, EUA.

39 Jean-Claude Carriere em entrevista a Catherine David in David, Catherine et al. Entrevistas sobre () fim dos tempos. Tradução de José Laurenio de Melo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

de é preciso diminuir a marcha e andar mais devagar. Assim como o personagem criado por Paul Auster para o filme Sem Fôlego38 ,

Auggie Wren. Wren, ao mostrar um álbum de fotografias para Paul Benjamin, e logo após este reclamar que eram sempre as mesmas fotos tiradas de um único ângulo e de um mesmo lugar, responde para Benjamin "V á mais devagar ou você não entenderá nada". Guardadas as devidas proporções, esta é a mesma postura adotada por Jean-Claude Carriere em seu elogio da lentidão: "O principal é talvez não ter um relógio digital, domar cada dia, to­mar o seu tempo em vez de ser tomado por ele". 39

Baudrillard, tomado pela sensação de canibalismo do real pelo virtual, alerta para a disneylandização dos espaços comerci­ais e industriais produtivos invadidos pelo virtual apontada por Ulman:

No começo dos anos 80, quando a metalúrgica Lorena entrou em crise definitiva, os poderes públicos tiveram a idéia de ate­nuar esse desabamento criando um parque europeu do lazer, parque de temática "inteligente", destinado a dar fôlego à re­gião: foi chamado de SchtroumpfIand. O diretor da siderurgia defunta tornou-se diretor do parque de atrações, e os metalúrgicos desempregados foram recontratados como "Schtroumpfmen" no quadro desse novo SchtroumpfIand. In­felizmente, quando o parque teve, por razões diversas, de fe­char as portas, os ex-metalúrgicos convertidos em "Schtroumpfmen" acharam-se desempregados. Destino Som­brio que, depois de ter feito as vítimas reais do trabalho gerou os fantasmas do lazer, e finalmente os desempregados de am­bos. Mas SchtroumpfIand era apenas uma miniatura. O empreendi­mento Disney tem outra dimensão. Para se ter uma idéia, é preciso saber que Disney "Illimited", depois de ter anexado uma das maiores redes de televisão americana, está prestes a comprar a rua 42, em Nova York, a parte "quente" da rua 42, para fazer uma zona de atração erótica, sem mexer em nada, ou quase, ali: simplesmente transformar ao vivo, in situ, um palco sagrado da pornografia em sucursal da Disneyworld. Transformar os empresários da pornografia, as prostitutas, como os metalúrgicos de SchtroumpfIand, em figurantes de seu próprio mundo, uniformizados, museificados, disneificados. Como foi que o general Schwarzkopf, estrategista da guerra

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do Golfo, comemorou a sua "vitória"? Com uma gigantesca party na Disneyworld. Digna conclusão, com essa alegria co­letiva no templo do imaginário para uma guerra virtua1.4o

Desterritorialização e identidade

A questão da desterritorialização do trabalho e a perda da identidade são os temas principais do filme A rede41 , filme que segue a tradição das produções de entretenimento no sistema dos grandes estúdios hollywoodianos. Em A rede a personagem prin­cipal, Ângela Bennett - uma experta em encontrar defeitos (bugs)

em programas de computadores, que tem o seu escritório de tra­balho em sua residência - após receber de um colega de trabalho um arquivo contendo um programa de computador se vê no meio de uma conspiração. A conspiração envolve a segurança de siste­mas de informação do governo americano e uma grande corporação que pretender monopolizar o mercado de programas de segurança informatizada do país.

Como Bennett tem acesso ao plano da conspiração, por meio de um disquete de computador, que supostamente conteria um programa defeituoso enviado por seu amigo, a corporação busca eliminá-la substituindo a sua identidade pela identidade de uma criminosa perigosa, procurada pela polícia. Devido ao fato de Ângela Bennett viver totalmente em função de seu trabalho -sempre em casa conectada à Internet -, desterritorializada e virtualizada, apenas mantendo vínculos mínimos com o mundo real e sem existência exterior até mesmo para a vizinhança, não consegue provar a ninguém, quando confrontada pela polícia, que ela é quem diz ser. Isto ocorre devido ao fato de nem mesmo os seus vizinhos mais próximos nunca a terem visto, ou de a terem visto muito poucas vezes para que pudessem fixar uma identifica­ção segura da personagem. A única pessoa que poderia provar que ela quem diz ser é sua mãe. Porém, essa sofre do mal de Alzheimer, ou seja, não tem memória (função cognitiva), melhor dizendo é portadora de uma memória em ruína, num processo crescente de "desconexão cortical"42. A mãe de Bennett não é capaz de estabelecer a relação dialética entre recordação e esque­cimento, principal característica da memória43 e, dessa forma, garantir o reconhecimento e a confirmação da identidade da per-

'" Baudrillard, Jean. "Disneyworld Company" in Tela Total. Tradução Juremir Machado da Silva Porto Alegre: Sulina, 1997,p.l22.

41 Winkler, Irwin. A rede (The Net). Sandra B ullock, Jeremy Northam, Denis Miller Rot, John Brancato e Michael Ferris. Produzido por Irwin Winkler e Rob Cowan. Cor. Aprox. 105 minutos. Aventura. Copyright 1995 Columbia Pictures Industries Inc. Distribuição Columbia Tristar Home Vídeo, LK-TEL Vídeo. Sony Music Enterteinement (Brasil) Ind. e Com. Ltda (Distribuição Exclusiva).

4'Leibing, Annette. "O homem sozinho numa estação: a doença de Alzheimer e as práticas do esquecimento no Brasil". In Leibing, Annettee Benninghoff-LühI, Sibylle (Orgs.). Devorando o tempo: Brasil, o país sem memória. São Paulo: Editora Mandarim, 2001.

43 Humberto Eco em entrevista a Catherine David in David, Catherine et a!. Entrevistas sobre o fim dos tempos. Tradução de José Laurenio de Melo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

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44 Winkler, Irwin. A rede (The Net). Sandra Bullock, Jeremy Northam, Denis Miller Rot, John Brancato e Michael Ferris. Produzido por Irwin Winkler e Rob Cowan. Cor. Aprox. 105 minutos. Aventura. Copyright 1995 Columbia Pictures Industries Inc. Distribuição Columbia Tristar Home Vídeo, LK-TEL Vídeo. Sony Music Enterteinement (Brasil) Ind. e Com. Ltda (Distribuição Exclusiva).

45 Lévy, Pierre. O que é () virtual. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 1996. (Coleção Trans) p. 25.

46 Integrante da Escola de Crítica Alemã juntamente com Erich Auerbach, Leo Spitzer e Frederic Gundolf. A crítica alemã, inicialmente em 1915, no interior da universidade, depois em processo de imigração sob o regime nazista, produziu trabalhos fundamen­tais que, por seu método e espírito de síntese - herdeiros de vasta tradição - renovaram o panorama dos estudos literários.

sonagem. No filme, identidade está diretamente ligada à memória, que estacionada em bancos de dados oficiais tornou-se um objeto frágil e passível de todo o tipo de ataque digital, podendo, por essa via, vir a ser alterada a qualquer momento conforme adverte Ângela Bennett:

Pense. O mundo todo está dentro de um computador ... Tudo. A sua carteira de motorista, registro da Previdência ... Cartão de crédito, histórico médico, está tudo lá ... Tudo está lá ... Tudo está guardado numa sombra eletrônica que todos temos ... Im­plorando para ser alterada. Eles fizeram isso comigo e farão com você também.44

Ao longo de toda a trama da narrativa de A Rede a persona­gem busca recuperar a sua identidade roubada e provar a sua ino­cência em crimes que não havia cometido. A questão da identida­de é um dos temas que passou a dominar a cena das discussões críticas no final do século XX, impulsionada pelo avanço das no­vas tecnologias de comunicação e conseqüente desenvolvimento do ciberespaço, lugar onde as identidades se diluem e se transfor­mam de maneira vertiginosa.

Pierre Lévy escreve:

As coisas só têm limites claros no real. A virtualização, passa­gem à problemática, deslocamento do ser para a questão, é algo que necessariamente põe em causa a identidade clássica, pensa­mento apoiado em definições, determinações, exclusões, inclu­sões e terceiros excluídos. Por isso a virtualização é sempre heterogênese, devir outro, processo de acolhimento da alteridade. Convém evidentemente não confundir a heterogênese com seu contrário próximo e ameaçador, sua inimiga, a alienação, que eu caracterizaria como reificação, redução à coisa, ao "real". 45

No âmbito da crítica literária, entre tantas, há algumas ques­tões que apontamos como exemplos de processos de virtualização do entendimento da literatura: a primeira delas se refere ao crítico Ernst-Robert Curtius46 e a sua proposição de procedimento críti­

co de apagamento de todas as fronteiras temporais e espaciais,

que configuram o impedimento da proliferação de uma visão universalista no estudo crítico-literário. Ainda que Curtius tenha

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elaborado as bases do seu procedimento crítico tendo em mente a preservação e guarda da literatura européia, numa clara manifes­tação do mais puro eurocentrismo, ignorando até mesmo a litera­tura norte-americana, no momento em que o mundo já havia se fragmentado por causa do avanço totalitarista do nacional socia­lismo na Alemanha e da Segunda Guerra Mundial.47 Ao propor a eliminação das fronteiras temporais e espaciais, Curtius virtualizou a questão da crítica e da teoria literária, em sua época, assim como Albert Béguin48 que via com grande desconfiança as categorias li­terárias' os estilos, as zonas geográficas: "A fixação da vida do es­pírito em categorias estáveis não é benéfica à inteligência dessa vida".

A segunda questão diz respeito ao romance Iracema, de José de Alencar. O romance de Alencar é considerado uma das obras mais importantes da literatura brasileira, e responde pela representação da construção da nacionalidade brasileira em sua narrativa. Esta é uma questão que coloca o romance numa posi­ção de acomodação na série literária brasileira, representada pelo Romantismo e sua realização no Brasil. Analisado pelo viés da virtualização é possível reinvestir o romance de uma problematização que o recoloca na cena da crítica não como obra canônica da literatura brasileira, mas como obra que carrega con­sigo questões que não foram tocadas, e por isso mesmo, não fo­ram resolvidas ao longo da narrativa, devido ao fato de não se configurarem como preocupação do autor, à época em que foi escrito o romance, ou de a figura feminina e os problemas que suscita não encontrar ecos substanciais, no círculo de leitores e intelectuais do século XIX, relativos à sua condição perante a crítica. Uma das questões em Iracema que validam uma leitura pelo processo de análise da virtualização refere-se à identidade da personagem situada no âmbito da expressão objetiva da natureza. Como conseqüência desta opção na elaboração das caracterÍsti­cas da personagem se cria condições para a sua dominação pelo colonizador branco e sua conseqüente perda de identidade. Desta forma, teremos a sua destruição em favor da manutenção do status quo do branco dominador que, para a personagem, no seu primei­ro encontro, aparece como sedutor e depois como "marido".

O processo de esvaziamento, perda e destruição da identi­dade de Iracema, levam-na a romper com as leis de seu povo, da própria natureza, e instaura uma desordem absoluta, restando à

47 Tadié, Jean-Yves. A crítica literária no século XX. Tradução Wilma Freitas Ronald de Carvalho. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1992, p. 53

48 Albert Béguin (1901-1957) integrante da escola de Genebra juntamente com Marcel Raymond, George Poulet. Jean Rousset e Jean Starobinski; fazia a chamada crítica da consciência cujas bases de trabalho critico seguiam o itinerário do sentido e buscavam dar, com esse mesmo movimento, sentido à literatura, ao mundo e a nós mesmos.

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49Balandier, Georges. A desordem: elogio do movi· menta. Tradução de Susana Martins. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.

50Lévy, Pierre. O que é o virtual. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 1996. (Coleção Trans) p. 25

51 Silva, Anazildo Vasconcelos da. Semiotização literária do discurso. Rio de Janeiro: Elo, 1984.

52Maranhão,Haroldo. Memorial do fim: a morte de machado de Assis. São Paulo: Marco Zero, 1991.

53 Deleuze, GilIes e Guattari. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. VaI. 1. Tradução Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. São Paulo: Editora 34, la Reimpressão, 1996, p. 25.

personagem a fuga. A fuga é o movimento49 que encaminha a personagem para a recomposição da ordem, ainda que ela mesma não saiba disso. Quanto mais Iracema se afasta de seu povo mais se aproxima do abismo no qual irá cair. Com a quebra dos laços tribais e familiares, a personagem é lançada em um não-lugar, um território vazio. Desterritorializada resta à personagem apenas o sofrimento e a morte. Iracema passa a ter uma existência virtualizada (problematizada e não-presencial), pois a sucessão de seus atos a transforma em um problema para a sua tribo; pesa sobre a personagem uma fatalidade: "O guerreiro que possuísse a virgem de Tupã morreria", e, conseqüentemente, a sacerdotisa, pela quebra de seus votos.

A virtualização se configura na passagem do ser para a ques­tão que põe em demanda a identidade clássica, idéia baseada em definições, determinações, exclusões, inclusões e terceiros exclu­ídos.50 A questão do não-lugar se adequa muito bem ao caso de Iracema, pois diferentemente do limbo que a colocaria no reino do possível-já que limbo significa esquecimento, e o que é es­quecido está desrealizado e, a qualquer momento, pode ser lem­brado - garantindo, desta forma, a sua possibilidade de sobrevi­vência. O não-lugar não oferece condições de sobrevivência ao personagem, pois este se encontra em total desconformidade com o seu mundo. A perda da identidade será cobrada pelo espaço e todas as suas convenções sociais, no momento de imposição da sua lógica narrativa; como conseqüência da imposição da lógica do espaço, a única saída para o personagem está na sua morte. 51

O conceito de não-lugar está relacionado a outro conceito que é o de não-presença. Com o exemplo de Iracema, inserimos a ques­tão do não estar presente ou da virtualização como êxodo.

Outra obra na qual podemos exemplificar a ocorrência da virtualização como forma problematizadora é Memorial do fim: a morte de Machado de Assis, de Haroldo Maranhão52 • Memorial do fim integra a categoria de escritura que pode ser classificada como rizomorfa53 e hipertextual. O hipertexto que a obra traz consigo é construído por fragmentos da ficção machadiana e por elementos culturais e históricos do mundo no qual essa obra este­ve e está imersa. Memorial do fim virtualiza pontos importantes da literatura machadiana e da leitura da obra machadiana, do pró­prio fazer literário e das relações do autor com as figuras históri-

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cas do seu tempo, atualizando-as. Tomando a atualização como criação e invenção de uma forma, partindo de uma estruturação dinâmica de forças e de finalidades, é possível afirmar que o ro­mance na pós-modernidade produz e introduz qualidades novas na narrativa, produz uma transformação das idéias, um verdadei­ro devir que realimenta o virtual, enquanto força problematizadora.54 Questões da mesma ordem aparecem no ro­mance A laranjeira, de Carlos Fuentes.

A Laranjeira é formada por cinco novelas, frutos de uma mesma árvore, que simbolicamente significa a fecundidade para vários povos e está intimamente ligada à história da conquista do continente americano e à formação do imaginário dos espanhóis conquistadores e dos povos conquistados.

A narrativa de A Laranjeira é bastante sedutora, apesar de carregar consigo o tema da morte como fio condutor de suas cin­co novelas. As duas margens é o título da primeira das cinco no­velas que é narrada por Jerónimo de Aguilar, espanhol que parti­cipou da Conquista da América como língua (intérprete castelhano/ náhuatle) de Hernán Cortés. Jerónimo de Aguilar, machadianamente, faz um balanço amargo da grande empresa marítima espanhola e das traições dos conquistadores e dos con­quistados. O narrador de As duas Margens, a mais importante das cinco novelas, ao longo de sua narrativa toca em questões funda­mentais da cultura.

Com a sua autoridade de morto ele passeia pela crônica his­tórica, por uma discussão sobre o uso da língua como instrumento de dominação e traição, levantando questões acerca da validade da narrativa e sobre a moralidade do conquistador e do conquistado.

História e ficção se misturam ao longo das cinco novelas, sempre mediadas por um narrador morto, ou que logo estará morto, como ocorre ao personagem Vince Valera, narrador de Apolo e as putas. As putas são sete anãs que trabalham para uma cafetina conhecida como Branca de Neve, que não sabem o que fazer com seu cliente morto em pleno mar, durante uma orgia sexual, num caíque que não sabem conduzir e sem comida. Em meio a essa situação tragicômica, só o que lhes resta, para resolver o proble­ma de comida, é usar o pênis de Vince Valera como isca para pescar. Enquanto se deteriora, Valera pode perceber a verdadeira

,. Lima, Rogério. O dado e o óbvio: a significação no romance da pós-modernidade. Brasília: Editora Universidade de BrasílialUniversa, 1998.

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alma dessas mulheres do México, mas não a si próprio. Ele não sabe o que representa, e nem pode saber verdadeiramente quem é, pois como morto está impedido de olhar-se no espelho.

Em Os filhos do Conquistador há um embate ácido entre os dois filhos de Cortés: Martin I, filho do conquistador com espa­nhola Juana de Zúfíiga, e Martin 11, com a índia Malinche. Num diálogo longo, provocativo e cheio de rancor aparecem as contra­dições da Conquista, as traições da Coroa a Cortés e o menospre­zo pelos filhos de espanhóis nascidos na América. A morte apare­ce como espetáculo e o sentimento dominante é o de nostalgia de

" Numância, antiga cidade da um país que não chegou a nascer. Espanha (a modema Sória). Em As duas Numâncias55 o tema da narrativa e da verdade

da história aflora, a dualidade surge como problema, o duplo se apresenta como uma questão que atormenta filosoficamente o narrador. A narrativa é discutida como uma invenção que satisfaz a curiosidade daquele que não consegue saber o que se passa além dos muros da cidade sitiada. O espelhamento e o estilhaçamento do eu e da narrativa são temas caros em As duas Numâncias.

A última novelaAs duas Américas fala de um paraíso des­coberto por Colombo, que nele permaneceu e se estabeleceu, lançando apenas uma garrafa ao mar com a sua descrição e loca­lização, com a finalidade de dar conta da sua descoberta à Coroa espanhola. Colombo permanece no seu paraíso durante anos, até que finalmente chegam os japoneses e suas grandes corporações e globalizam a América, transformando-a em um não-lugar, num grande parque de diversões do turismo interna­cional, tendo Colombo como seu testa-de-ferro e gerente. O destino da América na visão de Carlos Fuentes é extremamente irônico e trágico, pois na busca de sua identidade não há espelho que lhe sirva para lhe mostrar quem ela é verdadeiramente. Fuentes se comporta como o personagem Políbio, narrador de As duas Numâncias, que imagina o que se passa dentro da cida­de cercada para, perversamente, dizê-lo ao general romano con­quistado. Imaginar e narrar a América é fundamental. Esse ges­to é perverso, mas é também caridoso, pois sem a ficção não saberíamos o que aconteceu à América.

Lévy chama atenção para o fato de que:

Fazer de uma coerção pesadamente atual (a da hora e da geo-

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grafia, no caso) uma variável contingente tem a ver claramen­te com remontar o inventivo de uma "solução" efetiva em di­reção a uma problemática, e, portanto, com a virtualização ( ... ). Era, portanto, previsível encontrar a desterritorialização, a sa­ída da "presença", do "agora" e do "isto" como uma das vias régias da virtualização.56

Assim como Albert Béguin via com grande desconfiança a fixação de categorias literárias, estilos ou zonas geográficas como ação não benéfica à inteligência dessa vida, e por este motivo pro­punha a eliminação destes entraves conceituais, o pós-moderno impõe às categorias história e ficção o mesmo que o virtual opera em relação a espaço e tempo, ou seja, transforma-as em um vari­ável contingente que remonta uma "solução", que remete a uma problematização da forma de narrar na pós-modernidade e dos elementos que são motivadores da ficção pós-moderna, sendo, por esse motivo, uma virtualização, rigorosamente nos padrões que foram definidos anteriormente.

Vetores de virtualização

A literatura é o campo do virtual e da virtualização por ex­celência e são os seus representantes modernos, entre tantos, Jor­ge Luís Borges, com seu Pierre Menard autor do Quixote, Tlon Uqbar Orbius Tertius, Franz Kafka, com a sua Metamoifose, James Joyce, com o Ulisses. O virtual irrompe na cena literária por con­ta do não-lugar da literatura, do nomadismo que ela incorpora ao migrar de um leitor para outro, de uma época para outra, de um significado para outro. Por mais que pareça estranho fazermos tal afirmativa a literatura, a nosso ver, não tem a existência física que o objeto livro tenta lhe conferir. Enquanto livro, a literatura não tem existência, pois o livro não passa de um objeto, "um amonto­ado mudo de palavras estéreis, o que há de mais insignificante no mundo", conforme avalia Maurice Blanchot57 ,jazendo, às vezes, empoeirado em alguma prateleira de alguma biblioteca.

A realização da literatura só é concretizada por intermédio da leitura, que, por sua vez, se processa num não-lugar - lugar virtual, problematizador. Referimo-nos aqui não a um espaço físi­co e material determinado onde é possível localizar o ato da leitu-

56 Lévy, Pierre. o que é o virtual. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 1996. (Coleção Trans) p. 21

57 B lancho!, Maurice. O espaço literário. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 13.

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58 Banhes, Roland. "Escrever a leitura" in O Rumor da língua. Tradução Mario Laranjeira. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 42.

'9 Mcluhan, Marshall. A galáxia de Gutenberg: a formação do homem tipo­gráfico. Tradução de Leônidas Gontijo e Anísio Teixeira. São Paulo: Cia. Editora Nacional, Editora da USP, 1972.

00 Barthes, Roland. "Escrever a leitura" in O Rumor da língua. Tradução Mario Laranjeira. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 42.

61 Wachowski,Andye WacIDwski,

Larry . Matrix. Cor. EUA. Elenco: Keanu Reeves, Laurence Fishbume, Carrie-Anne Moss, Hugo Weaving, Joe Pantoliano, 1999. 136 minutos.

ra. Esse espaço pode conter o corpo do leitor, mas não garante que o leitor, propriamente dito, esteja contido nele. Pois, de modo algum, é possível afirmar que esse espaço contenha o leitor, a literatura e sua virtualidade (a leitura enquanto ato problematizador). A questão é: em que ponto da conexão leitor­obra ocorre a realização da leitura e da literatura? Barthes - ques­tionando a localização da letra - afirma que a leitura resulta de formas transindividuais: as combinações produzidas pela letra do texto nunca são - não importando a atitude que seja tomada­anárquicas; "elas são sempre tomadas (extraídas e inseridas) den­tro de certos códigos, certas línguas, certas listas de estereóti­pOS".58 É possível afirmar que a realização de um autor se dá em sua obra, mas permanece a questão onde se dará a realização da obra? Na sua virtualidade e na virtualidade da sua leitura.

A reprodução técnica do livro proporcionada pela Galáxia de Gutemberg59 permitiu a disseminação da obra de arte literária e do objeto livro mundo a fora, mas não garantiu a realização da leitura e, conseqüentemente, da literatura. Pois, como vimos ante­riormente, a literatura só se realiza no ato da leitura, o que exige contato físico com o objeto livro. Não ocorrendo esse contato não há literatura, somente a persistência do objeto.

Barthes escreve:

Abrir o texto, propor o sistema de sua leitura, não é apenas pedir e mostrar que podemos interpretá-lo livremente; é princi­palmente, e muito mais radicalmente, levar a conhecer que não há verdade objetiva ou subjetiva da leitura, mas apenas verda­de lúdica; e ainda mais, o jogo não deve ser entendido como uma distração, mas como um trabalho - do qual, entretanto, se houvesse evaporado qualquer padecimento: ler é trabalhar o nosso corpo (sabe-se desde a psicanálise que o corpo excede em muito nossa memória e nossa consciência) para o apelo dos signos do texto, de todas as linguagens que o atravessam e que formam como que a profundeza achamalótada das frases. 60

o livro é somente o meio, a porta de entrada para a virtualidade da literatura. Funciona como as pílulas vermelha e azul ofertada por Morpheus ao personagem Neo no filme MatriX'1 , que colocam para o personagem o problema da escolha. Uma vez aberto o livro é possível ter acesso a uma "verdade ficcional" que,

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no retorno da leitura, faz com que lidemos com a realidade de maneira alterada, assim como a personagem Clair Torneur, em Até o fim do mundo62 , após ser curada do vício das imagens. Aqui introduzimos a seguinte questão: existe a possibilidade da fundação de uma pertinência da leitura? Qual a função do desejo no estabelecimento dos protocolos de leitura? É possível uma rela­ção recalcada entre o leitor e o livro? Qual é o lugar do sujeito na cena da leitura na era do virtual? O seu lugar são todos os lugares escrevíveis: a deriva, as multiplicidades rizomáticas63 , o virtual.

62 Wenders, Wim. Até o fim do mundo. Majestic Films. Produção: Jonathan Taplin e Anatole Dauman. Distribuidor: Top Tap Horne Vídeo. Willian Hurt - Solveig Dommartin -Sam Neill - Max Von Sydow -Rüdiger Vogler - Emie Dingo -Jean Moreau - Fotografia: Robby Müller. Música: Graerne Revell. Edição: Peter Przygodda. 1990.

6' Deleuze, Gilles e Guattari. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. I. Tradução Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. São Paulo: Editora 34, la Reimpressão, 1996, p. 16.

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A ficção brasileira contemporânea e as redes hipertextuais

Ana Cláudia Viegas (UERJ / PU C-Rio)

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As intersecções entre literatura e informática suscitam di­versas questões teóricas, não necessariamente inéditas, mas redimensionadas pela reconfiguração do circuito de produção, circulação e consumo da escrita pela internet: intercruzamento das figuras do leitor e do autor, através do modo de leitura hipertextual e das práticas de criação coletiva de textos; discussão das noções de autor e obra, a partir da disseminação da colagem, montagem, apropriação e recriação como processos de criação artística, dando-se mais um passo no deslocamento da aura da obra de arte; delicadas questões sobre a autoria e seus direitos jurídicos de propriedade sobre o texto, cuja legislação necessita revisões e atualizações, de acordo com esse novo modo de circu­lação do texto literário; redefinição dos critérios de atribuição de valor ao texto literário, dada a sua circulação em meio a uma multiplicidade de tipos de textos, imagens e sons.

Pensar as mudanças sociais trazidas pelos novos meios im­plica não pensá-los como fontes de inovações em si, mas, sim, a interação entre essas novas práticas de comunicação e as transfor­mações sociais. Ou seja: deslocar a análise dos meios até as medi­ações sociais (Martín-Barbero 2001). Walter Benjamin (s/d). em seu clássico texto sobre a "reprodutibilidade técnica", aponta para a historicidade tanto dos valores estéticos como da percepção humana, indicando que novos meios significam transformações nos corpos, consciência e ações humanas, e não somente novas formas de expressão.

Na virada do século XX para o XXI, a articulação dos cir-

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cuitos de produção, transmissão e recepção da literatura com ou­tras esferas da mídia e a apropriação de recursos expressivos des­tas pelos textos literários lançam novos desafios para essa prática tradicionalmente fundamentada na cultura do livro, mas hoje hibridizada com gêneros não-literários e meios de comunicação audiovisuais. Afinal, a difusão desses meios, sobretudo a televisão a partir dos anos 1950, e, já no final da década de 1970, os com­putadores, marcaria um novo limite nas transformações das re­presentações e dos saberes. Para autores como Pierre Lévy, vive­ríamos um destes raros momentos em que, a partir de uma nova configuração técnica, "um novo estilo de humanidade é inventa­do" (Lévy 1993: 17).

Uma concepção dinâmica de leitura embaralha as funções de leitor e autor, na medida em que aquele, na posição de navega­dor, edita o texto que lê, participando da estruturação do hipertexto, criando novas ligações. O questionamento da noção de identida­de autoral vista como uma subjetividade integrada, responsável pela doação de sentido ao texto, também encontra eco na leitura­escrita hipertextual, na qual a condição do texto singular, propri­edade de um autor único, cede lugar ao texto em constante trans­formação pela participação das múltiplas vozes autorais.

A conexão em rede permite ao internauta navegar através de sites e links diversos, fazendo da leitura da tela um deslizamento entre superfícies, acompanhado da montagem fragmentária de novos textos, num processo semelhante ao ato de "zapear" entre imagens de diferentes canais de tevê. Trata-se de duas experiênci­as cognitivas e comunicativas a que se pode atribuir a dimensão corpórea, sensorial identificada como típica da modernidade por autores como Georg Simmel e Walter Benjamin, ao tratarem, res­pectivamente, da caracterização do homem da metrópole e da "experiência do choque".

A base psicológica do tipo metropolitano de individualida­de consiste, segundo Simmel, na intensificação dos estímulos ner­vosos, resultante da alteração brusca e ininterrupta entre estímu­los exteriores e interiores. Esses estímulos contrastantes, rápidos, concentrados e em constante mudança levam à atitude blasé, cuja essência consiste no embotamento do poder de discriminar. "O significado e valores diferenciais das coisas, e daí as próprias coi­sas, são experimentados como destituídos de substância. Elas apa-

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A ficção brasileira contemporânea e as redes hipertextuais

recem à pessoa blasé num tom uniformemente plano e fosco; ob­jeto algum merece preferência sobre outro." (Simmel 1979: 16). As diferenças qualitativas se traduzem pela quantidade, dentro da "filosofia do dinheiro" (Simmel 1978), o maior dos niveladores, pois expressa todas as diferenças qualitativas das coisas em ter­mos de "quanto?".

Ao analisar o tema da multidão em Baudelaire, Benjamin define como "se conquista a sensação da modernidade: a dissolu­ção da aura através da 'experiência' do choque" (Benjamin 1975: 70). A morte da aura na obra de arte nos fala, mais do que da arte, dessa nova percepção, dessa nova sensibilidade das massas, a da aproximação, mesmo das coisas mais longínquas e sagradas, com a ajuda das técnicas. Quando Benjamin elege o cinema como o cenário privilegiado da atenção distraída e fragmentada, sintoma de transformações profundas nas estruturas perceptivas, não se trata de um otimismo tecnológico ou da crença no progresso, mas de um modo de pensar as transformações da experiência que o tornam um pioneiro, ao "vislumbrar a mediação fundamental que permite pensar historicamente a relação da transformação nas condições de produção com as mudanças no espaço da cultura, isto é, as transformações do sensorium dos modos de percepção, da experiência social" (Martín-Barbero 2001: 84).

A indiferenciação e a mudança na percepção, caracterizada pela "atenção distraída" solicitada por meios de massa como o cinema e a televisão, nos parecem ferramentas úteis para se pen­sar o modo de leitura hipertextual. A leitura em computador pode ser definida como uma edição, uma montagem singular, através da qual uma reserva de informação possível se realiza para um leitor particular. Pierre Lévy distingue os pares real/possível e atual! virtual, de modo que o virtual não se opõe ao real, mas ao atual. O possível se define por ser como o real, apenas sem existência, latente. Estando já todo constituído, ao se realizar, não implica criação. A atualização do virtual, ao contrário, constitui a inven­ção de uma solução exigida por um complexo problemático. Não se trata de ocorrência de um estado predefinido ou escolha entre um conjunto predeterminado, mas de produção de qualidades novas, invenção de uma forma a partir de uma configuração dinâ­mica de forças e finalidades. Seguindo estas concepções filosófi­cas, as imagens digitais não são virtuais, mas imagens possíveis

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sendo exibidas. A dialética virtual/atual só se dá com a interação entre os sistemas informáticos e as subjetividades humanas, "quan­do num mesmo movimento surgem a indeterminação do sentido e a propensão do texto a significar, tensão que uma atualização, ou seja, uma interpretação, resolverá na leitura" (Lévy 1996: 40).

O ato de leitura se define, assim, como uma atualização das significações de um texto, sendo o hipertexto uma virtualização dos processos de leitura. A organização do texto escrito em pará­grafos, capítulos, sumários, índices, notas, remissões contribui para sua articulação além da leitura linear, fazendo do ato de ler um processo de seleção, esquematização, construção de uma rede intertextual. A estruturação do hipertexto em uma rede formada por nós e pelas ligações entre esses nós não o restringe ao suporte digital. Conceitos como os de intertextualidade e dialogismo já pressupõem o texto como tecido de múltiplas textualidades, as­sim como a leitura de uma enciclopédia já é do tipo hipertextual. O que se apresentaria como novo na digitalização seria a rapidez da passagem de um nó a outro e a associação, no mesmo media, de textos, sons e imagens em movimento.

Pierre Lévy, em suas reflexões sobre o que é o virtual, afir­ma que "o texto continua subsistindo, mas a página furtou-se" (Lévy 1996: 48), apagando-se esta sob a inundação informacional, indo seus signos, não mais cercados pelas margens, juntar-se à torrente digital. O texto, desterritorializado, em fluxo e metamor­fose constantes, apresenta-se nas telas como a atualização de um hipertexto de suporte informático.

Os textos literários brasileiros produzidos nos anos 90 do século XIX e nas primeiras décadas do século XXjá foram estu­dados a partir de sua interação com as invenções modernas: o bonde elétrico, o aeroplano, o automóvel, a fotografia, o telefone, o fonógrafo, o gramofone, o cinema e, em especial, a máquina de escrever. Escapando das frágeis e oscilantes classificações em pré, pós ou neo alguma coisa, Flora Süssekind aborda, na ficção brasi­leira desse período, "um traço que lhe será bastante característi­co: o diálogo entre forma literária e imagens técnicas, registros sonoros, movimentos mecânicos, novos processos de impressão" (Süssekind 1987: 18). Partindo da representação desses artefatos industriais na literatura da época, a autora analisa como o contato com essas inovações deixa de ser apenas objeto de descrição ou

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A ficção brasileira contemporânea e as redes hipertextuais

discussão, para enformar a técnica de certos autores. Interessa-nos agora pensar como essa interação literatura­

tecnologia vem se dando nas últimas décadas, na passagem do século XX para o XXI. Se a máquina de escrever foi a imagem privilegiada pela autora de Cinematógrafo de Letras para pensar esse diálogo na virada do século XIX para o XX, quais as marcas deixadas pelo computador na escrita das últimas gerações? As chamadas "novas tecnologias", digitais e virtuais, compõem o cenário contemporâneo, participando tanto do cotidiano quanto do imaginário atual. Se esses novos meios caracterizam novos modos de pensar, sentir e perceber, como sua presença se faria notar nos textos contemporâneos?

Esse diálogo, assim como no caso dos autores que antece­deram a Semana de Arte Moderna em 1922, se dá de diversas formas, estando as tecnologias virtuais presentes tanto como ob­jeto de representação quanto como influência sobre as estratégias retóricas utilizadas na escrita atual. No primeiro caso, temos a paisagem urbana repleta de telas, imagens, celulares, computado­res e toda uma parafernália tecnológica utilizada por personagens e narradores das ficções contemporâneas. Quanto a marcas dei­xadas no fazer literário, podemos citar a fragmentação, a forte visualidade, a utilização de múltiplos recursos gráfico-visuais, os microrrelatos. Sem falar, é claro, em toda a produção de textos não impressos, veiculados pela internet, que adquirem, pelo novo meio de circulação, características específicas, constituindo, tal­vez, uma retórica própria.

Ao pensarmos a literatura brasileira contemporânea em diá­logo com as novas tecnologias, queremos observar, de um lado, de que modo o uso destas se traduz em inovações estéticas nas narrativas atuais, ou seja, como se dá o trânsito entre página e tela, de que modo a primeira, tendo-se "furtado", se recompõe para expressar esse texto virtualizado; e, de outro, como o novo suporte enforma os textos produzidos para nele circularem.

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Ao longo da história da literatura, tem havido propostas inovadoras de narrativas não lineares, assim como a imprensa vem criando diversos mecanismos opostos ao poder da linha. Tais de­safios, contudo, ganham nova dimensão ao disporem de uma nova tecnologia textual que não tem por base a linearidade. Também nós, leitores, ao lermos um livro de forma não seqüencial, pulan-

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do capítulos, buscando a informação desejada através de índices remissivos, compondo novos volumes com textos fotocopiados de obras diversas, desafiamos a linearidade do texto impresso, lendo-o como um hipertexto. Colocamos em prática, na produ­ção ou recepção de textos, uma das três linhas evolutivas identificadas por Benjamin nas intersecções entre arte e técnica: "em certos estágios do seu desenvolvimento as formas artísticas tradicionais tentam laboriosamente produzir efeitos que mais tar­de serão obtidos sem qualquer esforço pelas novas formas de arte" (Benjamin s/d: 185).

Narrativas literárias contemporâneas fazem uso de procedi­mentos e técnicas que parecem provir de gêneros não-literários e meios de comunicação audiovisuais e digitais. São exemplo das estratégias retóricas utilizadas por essa geração de escritores que troca a máquina de escrever pelo computador as obras eles eram muitos cavalos (2001), Mamma, son tantofelice (2005) e O mun­do inimigo (2005), de Luiz Ruffato. Como num zapping urbano, a narrativa de eles eram muitos cavalos descreve o cotidiano de São Paulo em setenta fragmentos, numerados e intitulados, sem nenhuma espécie de continuidade, nenhum enredo como fio con­dutor, apenas a "montagem efervescente"l de doses que se entrecortam e justapõem. Trata-se de um mosaico de diversos ti­pos de textos - um cabeçalho, previsões meteorológicas, anúncios classificados, orações, cartas, cardápios, conselhos astrológicos, simpatias, lista de livros, recados de secretária eletrônica, duas páginas com um retângulo preto - dispostos com diferentes diagramações, formatos de letras, sinais tipográficos. Traduz-se, de certa forma, na página impressa, a diversidade textual das pá­ginas da web, por onde a literatura, mais um desses tipos de texto, também circula.

A leitura pode começar em qualquer ponto e seguir qual­quer direção, a multiplicidade desafiando a linearidade, que tro­peça e se desdobra indefinidamente. Assim como nos novos espa­ços virtuais, "em vez de seguirmos linhas de errância e de migra­ção dentro de uma extensão dada, saltamos de uma rede a outra, de um sistema de proximidade ao seguinte" (Lévy 1996: 96). As várias pistas intertextuais também nos levam a uma leitura labiríntica, multilinear. Os textos de Oswald de Andrade, Memóri­as sentimentais de João Miramar, e Cecília Meireles, Romanceiro

'Néstor García Canclini define a cidade contemporânea "como um videoclipe: montagem efervescente de imagens descontínuas" (Canclini 1995).

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'Sergei Eisenstein (1990) a define como o "fato de que dois pedaços de filme de qualquer tipo, colocados juntos, inevi­tavelmente criam um novo conceito, uma nova qualidade, que surge da justaposiçâo". O cineasta russo reitera, ainda, a importância do "princípio unificador", isto é, do princípio que deve "determinar tanto o conteúdo do plano quanto o conteúdo revelado por uma determinada justaposição desses planos". Nos atos de "zapear" e navegar na internet, no entanto, a montagem ganha um novo perfil: revogando o princípio unificador, que predetermina a escolha e combinação das cenas mon­tadas, e a hierarquia de planos (cf. Eisenstein 1990), jus­tapõem-se, ao acaso, imagens de diferentes origens. O excesso de imagens de baixa densidade semântica e sua repetição em série permitem cortes e colagens em qualquer ponto, pois todos se equivalem. Este novo tipo de montagem aproxima-se, por­tanto, da conceituação de Simmel para a atitude b!asé: dificuldade de discriminar devido ao excesso de infor­mação.

da Inconfidência, estão virtualmente presentes no hipertexto de Ruffato, podendo ser atualizados pelo leitor.

O título, reiterado pela epígrafe ("Eles eram muitos cava­los, / mas ninguém mais sabe os seus nomes, / sua pelagem, sua origem ... " - Cecília Meireles) e pela dedicatória ("Para Cecília"), nos remete à obra de Cecília Meireles, Romanceiro da Inconfi­dência, abrindo também um link no texto de Cecília, que pode nos levar a Ruffato. Assim como os personagens do caos urbano não têm nome, nem se sabe de onde vieram ou para onde vão - só captamos, no ritmo vertiginoso da narrativa, pedaços de cenas -, também as palavras, "testemunhas sem depoimento, / diante de equívocos enormes" (Meireles 1983: 228), galopam em torveli­nho, sem origem, reapropriadas, ressemantizadas.

Impossível não ver no texto de Ruffato ecos oswaldianos. Os fragmentos também numerados e intitulados de Memórias sen­timentais de João Miramar, nos quais se misturam vários gêneros textuais e se ressalta a materialidade gráfica, estão virtualmente presentes em seu hipertexto, podendo ser atualizados pelo leitor. Parece, no entanto, que os cortes cinematográficos e a escrita telegráfica de Oswald de Andrade se aceleraram ainda mais, des­fazendo-se até mesmo a tênue trajetória da personagem que per­passa aquelas memórias descontínuas. O ritmo do texto de Ruffato acompanha a aceleração da vida urbana desde o início da industri­alização de São Paulo, objeto da obra modernista de 1924. A montagem cinematográfica2 cede lugar ao zapping, imagens que surgem e desaparecem como se pelo comando de um controle remoto. Neste caso, entretanto, diferentemente da linguagem televisiva, nem as imagens têm baixo teor semântico, nem os cor­tes são aleatórios. A página, ao assimilar um traço característico da estética televisiva, o suplementa: alternando o deboche, a ter­nura, a violência, a ingenuidade, a esperança, a decepção, expõe feridas, tensões, causando impacto no leitor. Se o ritmo alucinante da cidade contemporânea, expresso num texto em permanente movimento, leva a urna "atenção distraída", esta, ao focalizar-se instantaneamente, o faz de maneira muito mais intensa.

Pierre Lévy identifica, na passagem de técnicas anteriores de leitura em rede (índices, sumários, notas remissivas) à digitalização, urna "pequena revolução copernicana", na qual não é mais o leitor que se desloca, mas sim o texto. Embora, no caso

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do livro de Ruffato, o leitor ainda se movimente fisicamente no hipertexto, virando páginas, buscando os livros de Cecília Meireles, Oswald de Andrade ou outros na estante, também o texto gira, dobra-se e desdobra-se, caleidoscópico, diante do leitor. Nele, a interpretação não remete mais exclusivamente a uma intenção autoral. "O sentido emerge de efeitos de pertinência locais, surge na intersecção de um plano semiótico desterritorializado e de uma trajetória de eficácia ou prazer." (Lévy 1996: 49).

Os dois outros livros de Ruffato, Mamma, son tanto felice e O mundo inimigo, fazem parte do projeto de uma série de cinco volumes com o título de Inferno provisório. Através de textos fragmentados, passíveis de serem lidos separadamente, mas, ao mesmo tempo, complementares, ambos narram a desestruturação da vida rural frente à modernização. Seus personagens, pequenos agricultores, imigrantes italianos pobres, sofrem as conseqüênci­as sociais e emocionais do processo de industrialização ocorrido no Brasil a partir dos anos 1950. As histórias de um e de outro volume retomam e entrelaçam personagens e situações, fazendo da leitura e da construção de sentido um efeito da interseção de planos. Passado e presente se misturam em fragmentos de memó­ria, encaixando peças de um "quase-romance desestruturado" (Nina 2005). Mudanças tipográficas chamam a atenção do leitor para os diferentes tempos e vozes presentes nos textos.

Nota-se no segundo volume, no qual alguns personagens começam a migrar para as cidades grandes, uma aceleração do ritmo da linguagem, que, assim como em eles eram muitos cava­los, acompanha o aumento da velocidade e da intensidade de estí­mulos, característico da formação das metrópoles. Podemos ima­ginar nos próximos livros da série a continuidade desse processo, como se o cotidiano de São Paulo, descrito nos fragmentos do livro publicado em 2001, fosse o destino desses personagens.

Uma nota ao fim de cada volume adverte que alguma passa­gem pode ser reconhecida, já que aí se encontram histórias narra­das em outros livros do autor, "reembaralhadas". Assume-se a criação pela repetição, anunciada pelo enfraquecimento das no­ções de autêntico e original na era da reprodutibilidade técnica.

Observamos, assim, nas obras de Luiz Ruffato, uma das vertentes das relações entre a cibercultura e a ficção brasileira publicada a partir da década de 1990. Utilizando-se de estratégias

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retóricas dos meios digitais, sua página se faz tela. Discutiremos, a seguir, de que modo algumas tendências dessa ficção podem estar relacionadas ao uso por escritores deste novíssimo século da internet como importante estratégia de inserção no circuito artÍs­tico-literário.

***

Se, na virada do século XIX para o XX, o jornal é reconhe­cido como o caminho mais curto para chegar-se ao editor, atual­mente, a internet tem sido usada como uma espécie de vitrine do texto para o público em geral e/ou os editores. Estes, quando de­sejam apostar em novos autores ou organizar antologias que bus­cam mapear um perfil da ficção contemporânea, têm essa ferra­menta como fonte. É o caso de Paulo Roberto Pires, diretor da Editora Planeta, e das obras Paralelos: 17 contos da nova litera­tura brasileira, Prosas cariocas: uma nova cartografia do Rio de Janeiro e das antologias de textos escritos por mulheres organiza­das por Luiz Ruffato. Di versos jovens autores também utilizam os blogs como oficina criativa para seus primeiros romances. Pode­mos citar, a título de exemplo, os livros de Clarah Averbuck «www.brazileirapreta.blogspot.cOITI» Máquina de pinball, Das coi­sas esquecidas atrás da estante e Vida de gato; e Corpo presente,de João Paulo Cuenca.«www.carmencarmen.blogger.com.br». Se os livros de Averbuck são montados a partir de fragmentos selecio­nados em seu site, Cuenca, no entanto, resolveu manter on line uma espécie de making of de seu livro, depois de receber a pro­posta da editora Planeta para publicá-lo, afirmando em seu blog que seu livro não é um exemplo de blog que vira livro, mas exata­mente o inverso: seu blog é que é sobre o livro e seus processos.

Em Das coisas esquecidas atrás da estante, Clarah Averbuck discute o papel e o valor da literatura hoje e sua relação com os blogs. A autora, entretanto, discorda da idéia de que os blogs cons­tituam um gênero específico:

10/9/2003 Coletânea de um bloooog? Sim, amiguinhos, coletânea de um blog . Existem livros de contos. De poesia. De crônicas. Por que não uma coletânea de textos publicados em um blog? Afi­nal, como eu estou cansada de dizer mas continuo repetindo

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porque nunca param de perguntar, blog é apenas um meio de publicação para o que quer que o autor, dono e soberano do blog, queira escrever. «www.brazileirapreta.blogspot.com»

o uso desse novo meio, no entanto, deixa marcas no texto:

Vocês notaram que eu desencanei completamente de usar pará­grafos neste post? Parei. Parei de usar parágrafos na minha cabeça também. Notaram também que estou perdendo meu so­taque e falando coisas completamente paulistas como desencanar? Também tenho falado me amarro e demorô, por causa dos cariocash. Eu sou a primeira pessoa que pega sota­Que pelo ICQ. (Averbuck 2003: 46)

A interação com o público leitor e a influência deste sobre o texto escrito, características dos blogs, são tensionadas pela auto­ra, que afirma, em alguns momentos, sua voz como única e a po­sição do leitor como a de quem, ao escolher ler aquele texto, deve aceitar o pacto que lhe é proposto.

2/9/2003 A internet não é como uma televisão aberta, onde você zapeia e passa por canais indesejados e vê coisas que não queria. Para entrar aqui, no meu blog, é preciso digitar o endereço no browser, ou entrar em algum link, ou seguir seu próprio bookmark. Ou seja, tem que Querer entrar aqui. É uma escolha. E é por isso que eu não entendo esses leitores Mark Chapman que vêm aqui só pra torrar minha pequena e delicada paciência e encher minha caixa postal com suas opiniões não solicitadas. «www.brazileirapreta.blogspot.com> )

No livro Das coisas esquecidas atrás da estante, a primeira orientação ao leitor é a epígrafe de Charles Bukowski, uma das referências constantes da escritora. "se você for tentar, vá até o 1 fim. 1 senão, nem comece." Aceite o pacto, leitor. As citações (Paulo Leminski, Lou Reed, Vicente Celestino, Tangos & Tragédias etc.) compõem a rede hipertextual, afirmando, também no texto im­presso, a multiplicidade do sujeito que escreve:

"Eu estou de férias. Agora só vou falar pelas palavras dos outros até recuperar as minhas próprias, que aspirei nariz aden-

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tro em uma nota de um dólar. Vou me internar dentro de mim mesma até saber quem é quem. Esse negócio de ser duas ainda vai me matar." (Averbuck 2003: 108).

Se considerarmos, de acordo com McLuhan, que "o meio é a mensagem", podemos afirmar que esse novo modo de circulação do literário faz surgir um novo tipo de escrita? A constituição do termo "blog" já traz em si idéias contraditórias: web (página na internet) + log (diário de bordo) = "diário íntimo na internet". Como um diário "íntimo" pode ser exposto na rede para quem qui­ser acessar e, além de ler, comentar, rasurar, participando do pro­cesso de criação? Se os diários sempre trouxeram em si um interlocutor, ~á que toda escrita se dirige a alguém, agora esse ou­tro, ainda que virtual e desconhecido, se explicita e atualiza o pro­cesso ativo de toda leitura. Os papéis do autor e do leitor são, assim, compartilhados, fragmentando a figura do sujeito que se escreve.

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O "pacto autobiográfico" realizado entre quem escreve e quem lê "escritas íntimas" se fundamenta, segundo o clássico es­tudo de Philippe Lejeune (1975), num contrato de identidade se­lado pelo nome próprio, que resume a existência do autor, pois aquele seria a única marca no texto de um fora-do-texto, remeten­do a uma pessoa real que assume a responsabilidade da enunciação do texto escrito. No caso dos blogs, essa identidade se fraciona tanto pela parceria com os leitores como pela pluralidade de no­mes assumidos pelo blogueiro. Embora fale de seu cotidiano, suas opiniões, não há no texto, necessariamente, essa marca que "re­mete à pessoa real", podendo, inclusive, uma mesma pessoa ter vários blogs, identificados por diferentes apelidos.

Ao caracterizar o narrador pós-moderno, em contraponto aos narradores tradicional e moderno, tal como definidos por Walter Benjamin, Silviano Santiago questiona: "Só é autêntico o que eu narro a partir do que experimento, ou pode ser autêntico o que eu narro e conheço por ter observado?" (2002: 44). Mais adiante, conclui: "O narrador pós-moderno sabe que o "real" e o "autênti­co" são construções de linguagem." (idem: 46-7). Nesse contex­to, a noção de um segredo pessoal a ser revelado no papel ou nas telas se relativiza: "a intimidade era teatro", como disse a poeta dos anos 70, Ana Cristina Cesar (1987: 50).

O segredo é uma das questões fundamentais para os diários

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íntimos, redimensionada quando esses diários se voltam para o público numa página da web. Ainda que expostos na internet, os blogs não excluem o segredo. Há diversos níveis de segredos: aqueles que se contam aos amigos mais próximos, à família, ape­nas a alguém muito íntimo ou que não se revelam a ninguém, nem a si mesmo. Essas diferenças se mantêm nos diários virtuais.

Ao contrário do que se pensa, a exposição na internet não anu­la a possibilidade de se criar um segredo, mas estabelece novas formas de compartilhá-lo. ( ... ) O diarista virtual determina quem pode se aproximar de seus segredos mais íntimos e quem não deve suspeitar deles através de senhas, do texto cifrado e do acesso restrito ao blog. É ele que estabelece o c.uanto o leitor comum deve saber de sua vida particular e o que deve ser man­tido em sigilo. (Schittine 2004: 19-21).

o "contrato de cumplicidade" com o leitor se modifica, po­dendo a confiança ser reforçada pela distância e o desconheci­mento quanto aos leitores ou ser questionada, já que essa mesma distância facilita o uso de máscaras, fantasias, mentiras. Formam­se "redes de segredos": pequenos grupos que dividem segredos entre si, com alguns nós em comum.

A sinceridade da enunciação "torna-se um falso problema", como já anunciara Barthes em relação ao "autor de papel": "a sua vida já não é a origem das suas fábulas, mas uma fábula concor­rente com a sua obra" (Barthes 1988: 76). Ou, como diz em sua autobiografia:

Este livro não é um livro de "confissões"; não porque ele seja insincero, mas porque temos hoje um saber diferente do de on­tem, esse saber pode ser assim resumido: o que escrevo de mim nunca é a última palavra: quanto mais sou "sincero", mais sou interpretável, sob o olhar de instâncias diferentes das dos anti­gos autores, que acreditavam dever submeter-se a uma única lei: a autenticidade. (Barthes 1977: 130).

Se o que escrevo sobre mim pode mudar de um dia para o outro, os blogs podem registrar essas mudanças a qualquer momento, sendo o intervalo de tempo da escrita menor que um dia. Os diários nas telas permitem que, a cada releitura, o texto seja alterado ou as "falhas da memória" preenchidas, sem dei-

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xar marcas dessas rasuras. Ao contrário dos diários de papel, que guardam a caligrafia individual e diferentes materialidades da memória - pétalas, papéis de bombom, recortes etc. -, a tipografia dos computadores uniformiza. Esses fatores, soma­dos à possibilidade de falha dos dispositivos de memória das novas tecnologias, levam a um registro imperfeito da memória pessoal, apesar da sua imensa capacidade de armazenamento de uma memória artificial. (Schittine 2004: 117-8).

Na "escrita de si" via internet, o trânsito entre documento e ficção, vida real e virtual, constrói uma intimidade meio encena­da, meio realista. Parece-nos que, nessa vertente atual da literatu­ra, vida e obra tornam-se difíceis de distinguir. A figura do autor aparece dentro do texto ficcional, mas de maneira mentirosa, num confessional fingido.

Tanto nos blogs como nos livros, podemos constatar uma tendência para o uso da primeira pessoa em textos que não são autobiográficos, mas que apresentam pistas da identidade autoral. No último romance de Marcelo Mirisola, Joana a contragosto, o personagem-narrador, um escritor, conta seus encontros e desencontros com Joana, uma leitora com quem mantém inicial­mente contato via internet até se conhecerem pessoalmente num hotel e manterem um breve relacionamento amoroso-sexual. V á­rios traços biográficos de Mirisola presentes na narrativa - as ini­ciais M. M., a publicação de crônicas via internet, os livros Azul do filho morto e Herói devolvido, a transformação de escritores seus amigos em personagens e até o número da conta no Itaú -tornam indecidíveis as fronteiras entre autor e narrador, vida e ficção. Ao mesmo tempo em que o texto sugere uma autoexposição, deixa o leitor sempre desconfiado se os fatos nar­rados têm uma referência real ou são completamente ficcionais: "Não se tratava apenas de ficção" (Mirisola 2005: 10), "Fui eu quem a inventei" (idem: 14), "Ninguém vai saber que é você, Natércia." (idem: 48).

A criação de diferentes identidades, característica das pági­nas virtuais, extrapola seu suporte técnico, apontando um traço da subjetividade contemporânea: plural, ambígua, ficcionalizada. Sabemos que em qualquer relato autobiográfico o compromisso com a verdade é sempre relativizado pelas falhas da memória e a

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contaminação desta pela imaginação. Parece-nos, no entanto, que, num tempo em que a realidade se define como um cruzamento de imagens e não como dados objetivos representados por elas, es­ses textos contemporâneos investem na invenção biográfica, for­mulando "autoficções".

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o hipotexto de NolI

Luiz Gonzaga Marchezan (UNESP-Araraquara)

Uma reflexão no âmbito das práticas que vivenciamos des­de o final do século passado leva-nos a pensar em novas configu­rações literárias do século XXI, uma vez que, de maneira ímpar no tempo, tais práticas apresentam-nos resoluções para o texto verbal que superam medidas e limites lineares, possibilitando-nos, por isso, imaginar, até, outras concepções para o literário. Ricardo Piglia (1990, p.3), ainda no século XX e mais voltado para a fun­ção representativa do texto literário, a mimética, notou, de forma paradoxal:

[ ... ] os espaços ficcionais invadem a vida cotidiana e a socieda­de moderna. Essa distinção muito definitiva da estética tradici­onal, "qual é o campo da ficção, qual é o campo do real?", se dissolveu. Vai daí que, para mim, esse é o tema que está inscri­to na relação entre a literatura e a realidade.

Observou ainda:

Essa relação [literatura/realidade/verdade] seria para mim o ponto a partir do qual surgem as histórias, as tramas, as ques­tões que devem ser narradas.

As considerações de Piglia são instigantes e recuperam tam­bém para a demanda da narrativa a idéia de destino: fatos sucessi­vos ocorrem na vida dos homens e constituem a sua vida, inde­pendentemente da sua vontade. Dessa maneira, observaremos, em tais narrativas, modos de vida em formas literárias que nos apontarão uma cifra a desdobrar-se tanto na direção dos enigmas

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do comportamento da vida contemporânea representada, como em desafios de leitura dessa literatura contemporânea.

Percebemos, no momento, pela mídia ou internet, uma oferta diversificada de textos, que notamos, divisamos e pouco sabemos diante do tanto que vemos. Vivemos num mundo no qual nosso olhar encontra-se refém do espetáculo midiático. A leitura é uma atividade da vida civilizada, da vida social, coletiva, processada diariamente no âmbito dos conhecimentos individuais e coletiva­mente preparados. Diante disso, e da pletora de textos que nos envolve no dia-a-dia, a pergunta que nos fazemos é pela situação, condição, categoria ou natureza do texto literário, aquele que, de forma linear, reúne uma situação discursiva, no caso, operada pela obra literária, para o leitor de uma realidade textual, que, para nós, constitui-se naquele que lê o verbal de maneira singular, na e com a singularidade do texto literário. Trata-se do leitor de um gesto rapidamente esgotado, sem reiterações, sem os múltiplos suportes: visuais, eletrônicos; sem vínculos, links, portanto, com um hipertexto; trata-se de um leitor voltado para o texto literário, que volta a sua intencionalidade para a realização da arte literária, prática contemplada, inclusive, dentro das ousadias das configu­rações do texto literário contemporâneo, pelo hipotexto. Ajuste­mos, assim, nossa discussão, a mais este contraste.

Compreendemos que os tempos atuais, os que estão em atos, transfiguram-se, tanto em narrativas compostas em hipertextos sustentados pela intertextualidade, por múltiplos textos, como em narrativas compostas por hipotextos, sedimentados pela interdiscursividade, que incorpora percursos temáticos e ou figu­rativos, valores, de um discurso em outro. Estas últimas, em espe­cial, explicam-se nas observações novamente de Ricardo Piglia (2000, p.123), agora, de outra fonte: "La inspiración se construye a partir de lo que se há escrito antes, cada vez se inscribe com toda la literatura".

O leitor do hipotexto, do nosso ponto de vista, constitui-se no leitor que lê o literário, o singular, como salientamos acima; esse leitor consiste naquele que não sustenta a sua leitura no po­tencial, no virtual, no desmesurado, características do hipertexto. O hipotexto volta-se para o pontual, para o momentâneo, a medi­da de uma hesitação, momento em que "os espaços ficcionais in­vadem a vida cotidiana e a sociedade moderna", conforme Piglia

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o hipotexto de NoU

I Analisaremos, da coletânea, o conto Bispo da madrugada, que, ao lado dos outros, constitui-se no que o seu autor nomeou como instantes ficcionais: uma série de contos ultracurtos publicados na Folha de S. Paulo, numa pequena coluna, Relâmpagos, mantida pelo autor de agosto de 1998 a dezembro de 2001. Analisaremos aqui o conto Bispo da madrugada, publicado em 20/12198, que, depois, ao lado de todos os outros, foi reunido pela Editora Francis, em 2003, em livro intitulado Mínimos, múltiplos, comuns, numa edição que recebeu o Prêmio Jabuti de melhor capa e o segundo lugar para livro de contos, além do Prêmio ABL de Ficção 2004.

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(1990, p.3), características, convenhamos, que sempre demarca­ram a demanda das narrativas literárias.

O que lemos, então, em um hipotexto? Observamos uma história por meio de um discurso, de um código, o literário, elabo­rado por uma organização e configuração particulares da lingua­gem.

O nosso objetivo, agora, é o de explorar o literário num conto de João Gilberto NolI, Bispo da madrugada, um hipotexto, escrito, inicialmente, para um projeto editorial da Folha de S. Pau­lo, conforme as rápidas intenções da reportagem da época: "A Ilustrada passa a publicar, a partir de hoje, uma coluna literária diária, na página 2, ao lado de Horóscopo". (ILUSTRADA, 1997, p.l) Nesta reportagem, a F olha anunciou também os titulares da coluna: Heloisa Seixas, Voltaire de Souza e Fernando Bonassi. João Gilberto NolI substituiu Heloisa Seixas, em agosto de 1998. Patrícia Decia (1998, p.l), repórter da Folha, noticiou o ingresso do ficcionista na coluna literária do jornal, ocasião em que comen­tou com mais ênfase o projeto da Ilustrada, referendando-o com Walt Whitman: "quanto mais leitores tocando no tecido do texto, mais prazeroso e completo é o ato literário". A repórter também entrevistou NolI (1998, p.l), que expôs, literariamente, suas in­tenções:

Eu quero ter o direito também de fazer pequenas liturgias, pe­quenos momentos de. elevação a partir do barro da história. Não acho que ° homem seja anjo, mas é bom a gente exercitar esse desejo de superação, de transcendência.

A palavra liturgia, no grego, significa função pública. E é isso mesmo. Noll (1998, p.l) acredita na função pública da sua ficção, textos com "coisas que dizem respeito à vida cotidiana da grande maioria das pessoas". Essa função pública na ficção de João Gilber­to Noll está nos valores que o escritor reitera, presentes, visíveis, agora, no projeto gráfico de Mínimos, Múltiplos, Comuns l , na interdiscursividade, valores com a equivalência de denominadores comuns, que perpassam seus 338 hipotextos orientados por uma lógica editorial. Segundo o autor, poderemos ler narrativas que tri­lham valores bíblicos, "divididos em cinco grandes conjuntos que pressupõem uma cronologia da Criação: Gênese, Os Elementos, As Criaturas, O Mundo e O Retomo". (NOLL, 2003, p.23). Bispo da

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madrugada compõe As Criaturas, que, segundo o contista, consti­

tui, ao lado dos cento e setenta do mesmo segmento, o

[ ... ] mais complexo entre os conjuntos. Parte da uma definição dos Corpos, que se mostram Despidos; depois unidos carnal­mente como Amantes; unidos perante a lei e a sociedade em Casamento; constituídos em Famílias; gerando Crianças; re­partindo espaço e destino com os Animais; vagando e povoan­do o mundo como Andarilhos; penando de escapar à fúria dos vencedores como Fugitivos. Os corpos são Feridos e cobrem­se de cicatrizes; recuperam-se ou não como Convalescentes; e colocam-se à parte do mundo e das coisas, viventes do outro plano, como Artistas. (NOLL, 2003, p.23)

Como se lê, o corpo mostra-se como o lugar de resistência do sujeito, que não cede e defende sua emoção. O corpo, na fic­ção de Noll, constitui-se numa macrofigura - a figura maior que se envolve com um conjunto de situações que motivam a narrati­va. Ele constitui-se num motivo que se combina com outros e que dão apoio temático ao conto, no caso: o corpo como o lugar de vigor físico, que se esvai; o corpo como o lugar da ira, que se anuncia; o corpo como o lugar que aproxima, de forma grotesca, o homem do comportamento animal. João Gilberto Nolljoga ima­gens contra imagens, numa situação em que elas substituem o contato do homem com o outro, Com uma narrativa ultracurta, o ficcionista quer um clímax e procura, para isso, movimentá-la com situações de vigor físico e emocional, o que reverbera na metáfo­ra do corpo, o lugar, a figura dessas manifestações. Abaixo, o conto anunciado para análise:

De madrugada me ajoelhei na beira do rio. Sentia-me sangrar. Procurei pelas pernas, peito, barriga, pescoço, cabeça: nada. Pensei: "É hoje ou nunca, vou sim, eu vou matar". Voltei para casa e a primeira coisa que fiz foi não acender a luz. Peguei as cobertas, de pé me enrolei nelas. Eu era um bispo, um rei, um indigente em trapos. Havia outra alma ali, meu filho pequeno. Ele ressonava. Em minutos amanheceria e eu faria café. Passei as unhas pela parede fria, como se querendo me testar. Ao acor­dar, a criança me contava sempre o mesmo sonho: cobria com uma toalha de mesa o amigo albino sob o sol do meio dia. (NOLL, 2003, p.216).

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:' hipotexto de Noll

A palavra configuração, que desde o início nos orienta nos fundamentos desse artigo, chama-nos atenção para dois aspectos: o primeiro, atinente ao aspecto visual do texto, sua mancha; o segundo, o propósito do texto, sua forma, que ele sustenta, pre­ponderantemente, com figuras. A configuração, quer de um hiper ou de um hipotexto, está, de maneira nodular, na idéia de texto: uma seqüência de enunciados encadeada e tramada. Texto é trama, como nos lembrou Ricardo Piglia. A partir dessa condição fundante do texto, poderemos divisar, então, suas diferenças nos registros da sua comunicação, no seu suporte, na configuração do suporte.

Um hipotexto é um texto muito curto. A brevidade, quer para a prosa ou para a poesia, provoca numa narrativa uma forte tensão interna. A brevidade intensifica, no caso de uma narrativa em prosa, uma coerção interna para o estabelecimento da sua tra­ma. Bispo da madrugada tem, como vimos, 112 palavras, que nos envolvem numa circunstância emblemática que invade o destino de uma personagem frenética, sem identidade, perdida na sua in­dividualidade, sem que o seu pensamento delirante esteja voltado para um acontecimento. Não houve, para a narrativa, um aconte­cimento; não há sequer a pressuposição de um acontecimento. O conto narra uma situação, algo localizado.

Bispo da madrugada é um conto de situação; elíptico, multiforme, polissêmico. A elipse, que omite as seqüências do acontecimento, instala o enigma, sua atmosfera. Exige a partici­pação do leitor, que, em rápidas cenas, lê o enfraquecimento de um sujeito: de um pai, esgotado, exausto. O filho, a segunda per­sonagem, encontra-se em situação oposta: tranqüilo, desperto de um sono. O pai é um errante, irado; o filho, fixo num único sonho, um solidário. Deparamo-nos com uma tensão que condensa, da parte do pai, vazio, fracasso e, da do filho, redenção, salvação, plenitude. Defrontamo-nos, sempre, com condensações e elipses; indefinições, como a figura do tempo: madrugada, momento en­tre a meia noite e as seis horas da manhã; tempo fluido: corrente, espontâneo. Ou como na figura espacial do rio que flui e de forma semelhante como o sangue que a personagem sente correr em profusão, pelas pernas, peito, barriga, pescoço, cabeça. As figuras espaciais mostram-se externas e internas. Externas quando à beira do rio e internas, quando focam o interior da casa. A casa encon­tra-se fechada. Pai e filho encontram-se com a proteção das co-

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bertas e da casa. O pai, de esgotado, irado, à beira do rio, agora, no interior da casa, dividido - um bispo, um rei, um indigente. O filho, enquanto dorme e sonha no seu quarto, uno - um princípio de vida unificado, de individualidade, de personalidade, de cons­ciência, de solidariedade. O filho encontra-se tranqüilo e ressona numa cama. Inspira no pai, que fará café ao amanhecer, um alen­to. O pai crava as unhas na parede: certifica-se. O sonho do filho será sua certeza sob a luz do sol do meio-dia; num gesto de soli­dariedade para o desamparo de seu pai. Nesse sonho, o filho co­bre um albino com uma toalha, como o pai, dentro da casa, cobre­se com uma coberta. Na elipse, na condensação, uma oposição possível - o desamparo de um diante do amparo do outro. O pai encontra-se em desamparo, na beira do rio ou em casa; o filho, em casa, enquanto dorme e sonha, ampara, ajuda, auxilia, socorre.

A leitura de um hipotexto é intrincada e intensa. Ler (do latim legere ou do grego analegein) significa escolher. Ler, nesses sentidos, é interpretar, atribuir sentido, sentir alguma coisa que é reconhecida pela leitura: algo singular e que exige, do leitor, uma descrição da ação lingüística que produz o texto, numa determi­nada situação que pressupõe um gênero, um tipo de discurso me­diador da construção de um tipo de conhecimento. O leitor preci­sa entender o texto, saber o que está lendo e compreender algo importante e atinente à demanda de uma narrativa: ela não tem tamanho, constitui-se de um enunciado total.

Do enunciado total que é uma narrativa, o conto, do latim computu, é uma conta, um cômputo, um número (uma represen­tação de cada um dos quadros ou cenas de uma narrativa, de um espetáculo; representação de uma grandeza mensurável; repre­sentação de um conjunto dado), preciso, harmônico, regular na cadência e disposição de suas palavras. Nesse sentido, conto tem o significado semelhante a canto. Há, em ambas as composições, a modulação de uma voz que, no caso do conto, narra, mas tam­bém, como no canto, entoa, dentro de um tom (contínuo ou descontínuo), com escalas (consonantes ou dissonantes).

A comparação que fazemos entre as manifestações do can­to e do conto tem uma sintonia com a poética de João Gilberto Noll. A natureza da forma da sua narrativa em prosa, conforme entrevista que concedeu a Miguel do Rosário, passa pela musicalidade, apreendida, desde a sua infância, tanto na audição

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da composição musical, como na leitura da poesia. NoU, nessa entrevista, revela-nos que é mais leitor da poesia do que da prosa e que, ao. escrever, vê-se "arrastado por ritmos, realmente por ritmos, por voltagens musicais ... ". (NOLL, 2004, pA) Dessa maneira, Gilberto Noll (2004, p.5) definirá, nessa mesma entre­vista, a sua prosa como "uma prosa poética" e que está "radicalizando cada vez mais isso". Acreditamos que a edição de Mínimos, múltiplos, comuns, de 2003, contempla aquela radicalização referendada na entrevista concedida para Miguel do Rosário em 2004 e sinaliza para os anos em que o autor exerci­tou-a na Folha de S. Paulo.

Desse modo, uma prosa com o ritmo da poesia, em primeira pessoa, diante de um temário que celebra situações convulsivas vividas pelas suas personagens, possibilita a João Gilberto NoU construir uma atmosfera em que o,poético aproxima-se do mítico e permite que a narrativa represente, conforme o autor, "uma certa pulsão por um ethos". (2004, p.8)

Juntamos às considerações uma reflexão sobre o conceito de conto, o de enredo também nos será interessante. Pode-se ressaltar do conceÍto de enredo uma diferença entre uma situa­ção inicial e uma final da narrativa. O conto de enredo é modu­lado numa escala dissonante, a fim de que seu enunciador cons­trua um tom descontínuo entre começo, meio e fim, uma relação de causa e efeito, um princípio de causalidade. Já o conto de atmosfera é modulado dentro de uma escala consoante, num tom contínuo, a fim de que sua enunciação elabore uma consonância entre o seu início e o seu final. Um enredo mostra-nos descontinuidade; uma atmosfera, continuidade, circularidade. No enredo a ênfase transita entre seqüências (e entre elas um episó­dio será fundamental, terá seu desenlace). O conto de atmosfera fixa-se num estado, numa situação em que temos a atmosfera, o ambiente, a situação de uma ação.

O conto que lemos configura-se como um conto de atmos­fera, distante da estrutura do conto de desenlace; trabalha a narra­tiva de forma vaga, diluída, indefinida; as seqüências da sua narra­tiva não se opõem, elas se neutralizam. O procedimento de neutralização sustenta o conto de atmosfera, numa relação de agre­gação entre seqüências; a proximidade entre seqüências é imedia­ta, sem mediação. Essa é a relação única de aproximação entre

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suas situações; o seu objetivo é diluir contrastes e evitar um desen­lace. O conto de atmosfera tende a narrar, mais e precisamente, um estado mental, um estado de espírito, do que uma ação genérica. Esse conto, como um enunciado total e no modo de tensionar essa totalidade, qualifica sua narrativa de maneira caótica, heteróc1ita; faz paralelos, coordenações; intercalações, transições, regressões, seguindo o fio da narrativa e os perfis das personagens.

Voltemos agora a nossa atenção à função do narrador de Bispo da madrugada. O narrador é o organizador da ação narra­tiva; é a voz que narra. Nesse conto, temos um narrador e perso­nagem que organizam, com palavras e imagens, a verdade textual; é como se sua presença afastasse a do sujeito da enunciação, sem­pre implícita, mas, muitas vezes, forte, mais organizadora, mais racional. O narrador do conto é semi-onisciente: não invade a mente da personagem, com quem contracena, na busca de explicações para os acontecimentos. Não temos, como vimos, um aconteci­mento. O que é que aconteceu? Esse narrador capta emoções, sensações simultâneas.

Bispo da madrugada, como lemos, constitui-se num conto estranho. Trata-se de uma narrativa sem herói e sem adjuvante, em torno de algo que ocorre, de maneira única e persiste. O continuum do mundo, do ponto de vista do protagonista, não se deixa recortar. A percepção das coisas do mundo, pelo sujeito, no conto de atmosfera, é contínua. O sujeito, assim, não chega, com o que percebe, a uma concepção do mundo. Como exprimir as áreas do inconsciente num conto ultracurto? A construção de uma inconsciência não admite uma expressão verbal direta e, assim, de maneira indireta, dedutiva, leremos, em Bispo da madrugada, como que dados do inconsciente expressos, com elipses, condensações, como índices de uma sintaxe do inconsciente, por meio do solilóquio.

O solilóquio procura exprimir emoções, sensações - a vida interior da personagem fundida à exterior. Ele conforma interpe­lações deliberativas (um jogo, não necessariamente explícito, en­tre perguntas e respostas). A palavra base que nomeia solilóquio é colóquio. Colóquio define-se como a fala entre dois. Solilóquio é uma palavra derivada de colóquio; significa fala de um só, fala de alguém consigo mesmo, monólogo. Na verdade, no monólogo, alguém é interlocutor da própria fala - um arranjo literário, uma

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figura, algo sem lógica - traduz, representa, uma condição do homem, de solidão. Situa-se num nível menos profundo da cons­ciência. Pode aparecer combinado com o monólogo interior. O solilóquio, por sua vez, procura exprimir emoções, sensações - a vida interior relacionando-se com a exterior. Bispo da madruga­da configura-se com o veio do solipsismo, na movimentação de um eu em única realidade do mundo; de um eu que tem nas suas condições subjetivas a única forma da realidade; de um narrador sem interlocutor. As ações estranhas não se justificam do ponto de vista do reconhecimento; não as reconhecemos pela nossa memória de leitura, nem as reconhecemos pelos antecedentes da narrativa, derivados da própria intriga. Nos acontecimentos ve­rossímeis e necessários, o contexto exerce um controle na coe­rência do texto. Pode ser uma coerência de temas e figuras, em que o tema suporta a rede de figuras; o que é próprio de um texto que trama, tece relações. Em um texto tramado por meio de ações estranhas, a continuidade fica à mercê de si mesma e formula a sua própria condição paradoxal. Em uma narrativa estranha, a personagem não sabe compreender o que ocorre e nem alterar tal situação. O seu adversário não é conhecido e, portanto, não pode ser reconhecido. O estranho é algo que ocorre "fora da ação", da ação verossímil, sem necessidade. O necessário consiste no que é inevitável, requerido, forçoso; o que não pode deixar de ser; uma condição imposta, normativa, que impede escolhas; a necessidade é fundamental. O necessário é o oposto do voluntário, daquilo que procede livremente.

O jornalista José Castello (2003a, p.74), em dois momen­tos, observa a chamada nova geração de escritores brasileiros, que João Gilberto NoU integra. No primeiro momento, nas pági­nas da revista Bravo, e no início de suas observações, enfatiza:

As melhores ficções são aquelas que parecem desprovidas de laços com o seu tempo e com o seu meio, provocando o des­conforto de destoarem tanto dos hábitos dos intelectuais ilus­trados como das expectativas amestradas do leitor comum.

José Castello, nesse artigo, comenta a maneira como, entre os novos ficcionistas, há aqueles que não se reconhecem como parte de uma "nova geração" que não fazem manifestos ou experimentalismos. Apresentam-se, antes, como uma geração sem

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tendência e que, simplesmente, elaboram uma narrativa tensa e tendente para o inesperado, o novo, uma nova realidade, uma su­pra-realidade. O segundo momento das observações de José Castello (2003b, p.l0-13) ocorreu onze meses depois, no jornal Valor, em que ele retoma o mesmo viés da questão acerca da lite­ratura contemporânea. Notamos que essa última discussão é mais densa, e alinha-se às ponderações já destacadas de Ricardo Piglia. Para o jornalista, o "novo realismo" domina a produção da prosa brasileira atual, e, sobre ele, observa:

Lidar com a realidade não é tarefa fácil para ninguém, não só para os escritores. Até porque a realidade é muito mais com­plexa e enigmática do que supõem essas paisagens simplificadas e superficiais mostradas pelo "novo realismo".

Nas circunstâncias dessa afirmação, Castello considera João Gilberto Noll um escritor:

[ ... ] interessado nesse abismo que separa o sujeito da realida­de, [e que] prefere, ao contrário [daqueles "de paisagens simplificadas"], agarrar-se à potência dos sentimentos e à ener­gia dos estados primitivos. (Castello, 2003b, p.l 0-13)

Com José Castello depreendemos que João Gilberto Noll produz uma ficção a partir da realidade, delimitando suas perso­nagens no campo do imaginário humano, ocasião em que as ence­na em situações de crua realidade.

Divisamos, assim, nesses dois artigos de José Castello, com base em seu ponto de vista sobre o literário e em sua impressão sobre o texto de João Gilberto Noll, que a nova narrativa não copia objetos, mas substitui a referencialidade ordinária por outra, extra­ordinária, por um novo conjunto de significantes. Ou, conforme o ficcionista, João Gilberto N 011 (1999, p.l 00) j á observara:

Eu gosto de ver a matéria objetiva, de um corpo determinado. Eu preciso ver um personagem, um corpo com ânimo. Esses personagens estão um pouco desvinculados de uma instituição que possa centrá-los. São muito perdidos. Por isso, eles preci­sam andar à cata dessa coisa que não os faça pura evasão ( ... ) O que me encanta na existência é a forma. Isso não deságua no

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o hipotexto de Noll

formalismo, na palavra como artefato. O que gera a palavra, poética ou não, é o drama, a incapacidade do homem de dar um sentido mais vertical à existência.

o próprio autor, posteriormente, manifestou-se contrário à tendência realista: "Eu não sou um escritor realista. Eu sou um escritor de linguagem, é a linguagem que move os conteúdos, que estrutura os conteúdos". (NOLL, 2004, p.6) O realismo de João Gilberto NoU está na modulação da sua narrativa, no seu tom que sustenta uma situação em movimento. A narrativa de NoU tende, assim, a partir do papel do indivíduo na ficção, a redirecionar o quadro da referencialidade, alterando a maneira usual da repre­sentação, mudando o caráter da composição da subjetividade, à maneira de abordagem da subjetividade. O imaginado ajusta-se à forma em que é imaginado, na disposição em que é imaginado, para ficarmos com Gianotti (2005, p.3):

o referente, o imageado, nasce, pois, desse jogo que, às ve­zes, trabalha com semelhanças, mas cujo valor estético não depende delas.

Segundo Gianotti (2005, p.3), desde a Antigüidade, "a ima­gem tem sido posta como aquela faculdade de ter presente uma coisa ausente", uma figura à procura da referência. Algo que te­mos bem distante da estratégia ficcional de Noll (1999, p.lOl):

Não tenho pendor para as grandes narrativas. Gosto do misté­rio. O mistério humaniza. Não é uma perdição para as forças sociais, as forças da luz. Eu quero luz, também, como todo indivíduo. O meu movimento não é antiiluminista.

NoU, entre os novos ficcionistas, não se afasta da compre­ensão da realidade, da tentativa de apreendê-la; busca, porém. visualizá-Ia, incorporá-la à realidade humana, labiríntica, visceral e tal estratégia passa pelo perfil do intelecto da personagem. pelo seu nível de percepção da existência e pela representação da sua consciência, da sua subjetividade. A diegésis, assim, mais que a mimese, dá a direção da trama.

No conto de Noll em questão, mostram-se os assombramentos de uma personagem diante da serenidade da ou-

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tra. Sombra e luz - figuras alegóricas da verdade; nelas, o mundo sensível aparece como alegoria de um conteúdo espiritual "imper­ceptível". Conforme afiançou José CastelIo, nessa alegoria, João Gilberto NoU mostra o "abismo que separa o sujeito da realida­de", próxima da "potência dos sentimentos e à energia dos esta­dos primitivos" e distante de "paisagens simplificadas e superfici­ais". (2003, p.lO-13)

Percebemos, dessa maneira, pela ficção de NoU, que qua­dros novos do mundo são pensados e nos ampliam as imagens que temos do mundo. A mímesis, como vemos, não mais se realiza como a expressão que presentifica, representa, algo que está au­sente, reconhecido pelo processo da leitura. Essa ficção de João Gilberto NoU elimina a revelação e afirma a percepção. Na narra­tiva, parece-nos, a memória nada revela. É o casual que desenca­deia os processos de consciência e constitui-se na forma de apro­ximação do texto com a realidade imediata, a maneira como o mundo interior da personagem transparece no mundo exterior.

Há um veio, um caminho, mostrado no engendramento do conto que, ao nosso ver, passa sim por um novo realismo, ao lado de um novo naturalismo. O naturalismo está na transcrição de uma realidade imediata, no imediatismo, no instintivo, na deter­minação do imediatismo, que propicia, no texto em análise, o apa­recimento, por exemplo, da ira, dos estados primitivos. A rea­lidade, assim, é sonho, esquizofrenia, visões, o objeto misterioso da ficção. O realismo de João Gilberto NolI realiza-se com o ob­jetivo de vasculhar o obscuro. E, assim, o tempo faz-se perpétuo, contínuo, tenso, como na lírica.

O conto analisado e os demais de Mínimos, múltiplos, co­muns, mostram construções, configurações que buscam novas referências, novas figuras, um novo "imageado", como quer Gianotti. Os hipotextos de NoU expressam situações múltiplas, dispostas em unidades temáticas, por meio de uma ação intensa da interdiscursividade e num estilo vigoroso, excessivo, elabora­do. Dessa maneira, com imagens tensas, ambíguas, narram-se si­tuações transcendentes que aproximam os momentos da história aos momentos do discurso. A própria obra como medida e à pro­cura de um leitor? Borges, Cortazar, Bioy Casares fizeram contos curtos com esses parâmetros. João Gilberto NoU não é o primeiro na ousadia. Aqui também, conforme observa João Alexandre Bar-

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o hipotexto de NoU

bosa (2003, p.17): "a experiência que se representa é também, ou sobretudo, uma experiência de leitura". Essa referência, dedicada à crítica da literatura atual, ajuda-nos a explicar a narrativa de Noll- a teatralização de gestos, o momento do impulso biológico do corpo, os movimentos entre o homem e o mundo - como a representação dos:

[ ... ] os movimentos de inadequação através dos quais o poético se expande na criação de um espaço e de um tempo capazes de romper com os estreitos limites de uma diacronia evolutiva de causa e efeito. (2003, p.15)

A originalidade na construção dos textos de João Gilberto N 011 está na busca de um efeito casual, com intensidade e brevida­de; sua originalidade está, enfim, em tensionar a narrativa para o imprevisto. Vêm-nos à lembrança, como numa situação diametralmente oposta às de No11, as intenções literárias de Edgar A11an Poe. O tom poético procurado por NoU não é o da melanco­lia, preferido por Poe. Além disso, o estranho, nas narrativas de NoU, habita o sujeito e permanece fora do seu alcance. Poe, que tudo prevê, constrói a estranheza de uma dada situação dentro de uma combinada unidade de efeito, para a impressão do seu leitor. O estranho, nas narrativas de No11, habita o sujeito e permanece fora do seu alcance. A originalidade de João Gilberto No11 está em elaborar o imprevisto, com imagens diluídas que traz do mundo, apagadas da sua referencialidade. Desse modo, NoU afasta-se do mimético. A representação do mundo no seu texto faz-se pela sobreposição de observações sobre o observado, porém, por meio de imagens imprevisíveis, constituídas por metáforas sem previsibilidade, que elidem a cadeia do sentido para o seu reco­nhecimento, distanciando-se da retórica de "atualização de uma diferença" (COSTA LIMA, 2000, p.303), a que reconhece, para o leitor, aquela diferença.

As imagens que João Gilberto NoU traz do mundo para a literatura são verdadeiramente singulares e não procuram "a equi­valência subjetiva de uma cena externa e objetiva" (COSTA LIMA, 2000, p.24), ou conforme as intenções do autor: "O que me inte­ressa é o gesto, é a projeção de coisas sobre as quais não tenho tanto controle assim" (NOLL, 1998, p.102).

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Referências

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COSTA LIMA, Luiz. Mímesis: desafio ao pensamento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

DECIA, Patrícia. João Gilberto Noll estréia hoje coluna "Relâmpagos". Folha de S. Paulo, São Paulo, 24 ag. 1998. Ilustrada, Coluna Literatura, p.l.

ILUSTRADA passa a publicar coluna literária todos os dias: reportagem local. Folha de S. Paulo. Ilustrada, São Paulo, 26 set. 1997, p.l.

GIANNOTII, José Arthur. O construtor de inversões. Folha de S. Paulo, São Paulo, 22 maio 2005. Caderno Mais, p.3.

NOLL, Gilberto. Bispo da madrugada. Folha de S. Paulo, São Paulo, 20 dez. 1998. Ilustrada, Coluna Relâmpagos, p.8.

NOLL, Gilberto. Bispo da madrugada. In: -. Mínimos, múltiplos, comuns. São Paulo: Francis, 2003.

NOLL, Gilberto. O boxeador da ficção [setembro 1999]. Entrevistador: Michel Laub e Pedro Maciel. Bravo, São Paulo, v.2, n.24, p.98-113, set.1999.

NOLL, João Gilberto. A literatura é muito perigosa. Entrevistador: Miguel do Rosário. Arte e política, Rio de Janeiro, ano 7, n.20, p.4-8, 2004. Disponível em: <www.arteepolitica.com.br>. Acesso em: 15 maio 2006.

PIGLIA, Ricardo. Piglia discute relação entre literatura e verdade [agosto 1990]. Entrevistador: Marco Chiaretti. Folha de S. Paulo, São Paulo, 11 ago. 1990. Letras, F 3.

PIGLIA, Ricardo. Crítica Y jicción. Buenos Aires: Editorial Planeta Argentina, 2000.

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Outras Palavras:o Catatau de Paulo Leminski em três tempos

Marília Librandi Rocha (UESB)

Este texto versa sobre o romance Catatau (1975), de Paulo Leminski (1944-1989), tendo em vista discorrer sobre o modo como o experimentalismo de vanguarda insere-se e, simultanea­mente, desloca a tradição do narrador de prosa de ficção no Brasil desde sua constituição no século XIX. Busca-se saber de que modo um romance como Catatau liga-se à tradição do narrador oitocentista corrompendo-a por dentro, minando seus pressupos­tos, ao mesmo tempo em que os re-atualiza. Um desses pressu­postos, talvez o principal, respondia pela adequação de uma fic­ção atrelada à documentação e que se legitimava por sua mestra, a História, pelo desejo de fundar um país, a busca da cor local e a descrição da paisagem baseada nos relatos dos viajantes estran­geiros (cf. SUSSEKIND, 1990). O mesmo viajante, que constitui a imagem do narrador de romance no Brasil oitocentista como paradigma do conhecimento e descrição do país, também se en­contra aqui só que posto do avesso. "No Catatau", diz Leminski, "quase nada acontece. No sentido da narrativa do século XIX, claro. No plano da linguagem e do pensamento, acontece quase tudo" (Leminski, 1975, p.11). No livro, Leminski ficcionaliza Renê Descartes, que foi oficial da Guarda de Maurício de Nassau e poderia ter integrado, juntamente com naturalistas como Marcgravf e pintores como Franz Post e Albert Eckhout, a comitiva que acom­panhou o Príncipe em sua vinda ao país na época do domínio holandês no Nordeste (1630-1654).

Como uma floresta tropical de palavras que não compõe proposição válida segundo o critério de Verdadeiro ou Falsa, mas uma simultaneidade de frases que se autodesfazem, unidas emjus

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taposição mais do que na subordinação de sintagmas como "Pen­so, logo existo", não há, em Catatau, o "logo", pois nele o lagos cartesiano delira e ensandece: "muito baralhado esse negócio brasílico!" (LEMINSKI, 1975, p.63), o que, de outro modo, man­tém a figuração de um Novo Mundo em oposição ao Velho. As­sim, o livro abre com o famoso ergo sum, imediatamente corrigi­do para "aliás, Ego sum Renatus Cartesius, cá perdido, aqui presen­te, neste labirinto de enganos deleitáveis" (LEMINSKI, 1975, p.13).

Em um livro que se quer todo espacial, este estudo, como abordagem inicial de pesquisa, tem o intuito de mostrar que em Catatau se cruzam três temporalidades distintas: 1) a do século XX, em um livro escrito entre 1966 e 1975, no Brasil, segundo os parâmetros da vanguarda do Concretismo, filiado às experi­mentações de James Joyce, Guimarães Rosa, Haroldo de Cam­pos, e retomando a linha do projeto modernistaJantropofágico de Oswald de Andrade; 2) a do século XVII, com o tema da presença fictícia de Descartes em Pernambuco, o texto parodia o pensamento clássico, sua ordem geral dos signos, sua mathesis e taxinomia, para defender a idéia de sua impossibilidade em terras locais; 3) entre esses dois tempos - os séculos XX e o XVII - queremos mostrar que o livro de Leminski desfaz em negativa as bases que constituíram o narrador de ficção no Bra­sil no século XIX, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, mantém, com outra palavras, os mesmos pressupostos românti­cos de um país edênico, lugar incomum, terra "em branco"; ques­tões essas que discutiremos a partir dos estudos de Flora Sussekind, O Brasil não é longe daqui (1990), e de Roberto Ventura, Estilo Tropical (1991). De modo que, no livro, as di­versas temporalidades não apenas se cruzam, mas coincidem: "Se nossas épocas coincidirem, nossas conversas serão contínu­as" (LEMINSKI, 1975, p.l11), o que conduz à indagação: "A que época atribuir nossos tempos" (LEMINSKI, 1975, p.38).

Podemos também dizer que em Catatau ocorre o confron­to de duas epistemes que o romance encenaria: a episteme do século XVII europeu, que tem Descartes como pilar e que se caracteriza pela confiança na representação e no cogito, e a episteme que na passagem do XVIII para o XIX inaugura a "cri­se da representação", segundo M.Foucault (1966), e que se es­tenderia até uma obra de vanguarda e experimentalismo dos anos

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Outras palavras: O Catatau de Paulo Leminski em três tempos

de 1970 no Brasil, a qual acentua ou desloca a crise da represen­tação numa incursão pela linguaviagem.

o viajante em trânsito, ° pensamento em transe

Renatus Cartesius, personagem, encontra-se sentado à som­bra de uma árvore do horto de Maurício de N assau no palácio de Vrijburg (1642): "a cidade livre, a Olinda batava, onde em Pernambuco (paranimabuca, em tupi), Nassau organizou o pri­meiro zôo e horto botânico só com plantas e animais tropicais" (Leminski, 1975, p.13). Fumando uma "erva de negros" e com uma luneta a seu lado, o pensamento claro e distinto do filósofo perturba-se, dissolve-se e aquece-se sob o sol dos trópicos. A ra­zão dorme ou sonha e o que ele vê são monstros, como diz paro­diandoPascal, "O silêncioetemo desses seres tortoseloucos me apavora" (LEMINSKI, 1975, p. 15).

Comer esses animais há de perturbar singularmente as coisas do pensar. Palmilho os dias entre essas bestas estranhas, meus sonhos se populam da estranha fauna e fIora: o estalo de coi­sas, o estalido dos bichos, o estar interessante (LEMINSKI, 1975, p. 15)

Descartes aguarda Artyczewski (1592-1656), general da Companhia das Índias Ocidentais, que só aparece ao final do li­vro, embriagado.

o ilusionismo solipsista (ego-trip) do personagem-Cartésio é o fiel retrato, em termos de realismo, do estado de espírito do colonizado, um homem fragmentado, desconexo, perplexo, atô­nito: alienado (Leminski, 1989b, p.212)

Descartes perde a razão e se metamorfoseia nos animais que observa. Assim, se "A bicharada, com que começa o Catatau, emblematiza o pasmo do Europeu (esse desbestializado)" (LEMINSKI, 1989b, p.212) , no livro o personagem se toma literalmente besta:

Sinto em mim as forças e formas deste mundo, crescem-me hastes sobre os olhos, o pêlo se multiplica, garras ganham a

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ponta dos dedos, dentes enchem-me a boca, tenho assomos de fera, renato fui. Se papai me visse agora, se mamãe olhar para cá!" (LEMINSKI, 1975, p.36)

Assim, se para o Descartes real o que diferencia os homens dos animais é serem aqueles "capazes de arranjar em conjunto diversas palavras, e de compô-las num discurso pelo qual façam entender seus pensamentos; e que, ao contrário, não existe outro animal, por mais perfeito e felizmente engendrado que possa ser, que faça o mesmo" (DESCARTES, 1637, Livro 5, p.61), Leminski faz entrar em curto-circuito essa capacidade: vingança contra o cartesianismo, sua lógica e a da colonização. Assim também, se para Descartes "a razão é um instrumento universal, que pode ser­vir em todas as espécies de circunstâncias" (DESCARTES, 1637, Livro 5, p.60), para Leminski trata-se de defender a tese contrária.

Uma frase de Oswald de Andrade, no Manifesto Antropófa­go: " ... nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós", pare­ce estar na base de Catatau. A intenção do livro, nas palavras do autor, é : "mostrar como, no interior da lógica todo poderosa, esconde-se uma inautenticidade: a lógica não é limpa, como pre­tende a Europa, desde Aristóteles. A lógica deles, aqui, é uma farsa, uma impostura. O Catatau quer lançar bases de lógica nova". (LEMINSKI, 1989b, p.211).

Segundo a Grammaire génerale et raisonnée (1660) e La logique ou l'art de penser de Port-Royal (1662), como aplicações do pensamento cartesiano, toda proposição representa o pensamento que já é representação da apreensão do mundo, portanto, represen­tação da representação, que caracteriza a idade clássica e sua con­fiança no cogito. Em oposição a essa concepção de transparência da linguagem em relação a um pensamento que a língua deve ape­nas traduzir sem interferir nem perturbar, Leminski compõe um li­vro no qual a proposição, ao invés de representar o pensamento, o dilui, o desfaz, o liquefaz. Cada frase é um desmentido da anterior. Não há o desenvolvimento de uma idéia em uma cadeia de proposi­ções compondo parágrafos, mas uma sucessão de provérbios, fra­ses-feitas desfeitas, citações, paródias, idiotismos, estrangeirismos. ::\ão há sequer uma língua única no livro, mas uma mescla:

Seu polilingüismo é o reflexo do polilingüismo do Brasil de então onde se praticavam as línguas mais desencontradas: o

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tupinambá da Costa e centenas de idiomas gês/tapuias, diale­tos afros, português, espanhol e, em Vrijburg, cosmopolita, holandês, alemão, flamengo, francês, iídisch e até hebraico (LEMINSKI, 1989, p. 212)

Tudo no livro colabora para a confusão babélica em oposi­ção à clareza. Nesse sentido, Leminski compõe um não-livro, como uma coleção de frases que pode ser lida em qualquer seqüência, texto cibernético ou hipertexto.

o não-livro para não leitores

o livro se abre com uma inversão: ao invés da tradicional "Captatio Benevolentiae", o autor repele os leitores com uma "Repugnatio Benevolentiae": "Me nego a ministrar clareiras para a inteligência deste catatau que, por oito anos agora, passou muito bem sem mapas. Virem-se". Propõe-se, assim, como o oposto da clareza e do bom senso, recusando o leitor comum visado por Des­cartes em seu Discours de la méthode pour bien conduire sa raison, et chercher la verité dans les sciences, escrito em francês para po­pularizar o método em 1637. Esse propósito manifesto de repelir os leitores insere-se n.o projeto do livro escrito para poucos, no dilema de leitores recusados-e-buscados, "ego-trip" como é qualificado, no qual a comunicação com o outro (quer este outro seja o estran­geiro, o nativo, o "civilizado", o "bárbaro" ou o próprio leitor) atin­ge um estado de entropia: "Mensagem afetada de elevado coefici­ente de ininteligibilidade, a legibilidade no Catatau está distribuÍ­da de maneira irregular" (LEMINSKI, 1989b, p.213). Como diz ainda o próprio autor, a informação absoluta, sempre nova, acaba por produzir redundância, logo, informação nula, daí "que a expec­tativa permanente no Catatau acaba por se tornar um estado 'mo­nótono' (caógeno)" (LEMINSKI, 1989b, p.210).

No Catatau, a expectativa é sempre frustrada. O leitor jamais sabe o que deve esperar: rompe-se a lógica e as passagens de frase para frase são regidas por leis outras que não as normas da sintaxe discursiva 'normal' . Existe literalmente um abismo de frase para frase, abismo esse que o leitor deve transpor como puder (como na TV, entre ponto e ponto) (LEMINSKI, 1989b, p.21O).

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Na segunda edição de Catatau, em 1989, Leminski classifi­ca seu livro como um "romance-idéia" aproximando-o, assim po­demos entender, de um tratado filosófico. Como efeito de leitura, diria que o livro parece ser mais interessante para estudar como "idéia" do que para ler como "romance". Mesmo assim, está mais próximo de um "projeto de prosa" do que da forma de um "poe­ma em prosa", como define Haroldo de Campos: "Uma prosa que pende mais para o significante do que para o significado, mas que regurgita de vontade fabuladora, de apetência épica, de estratage­mas retóricos de dilação narrativa" (CAMPOS, 1989, p.217,18), e completa: "de um comedimento neobarroco, de um ensaio de liquefação do método e de proliferação das formas em enormida­des de palavra, é que se trata" (CAMPOS, 1989, p.214).

Trata-se, diz Leminski, "de um caso textual de 'possessão diabólica': um texto 'clássico' é possuído por um monstro 'de vanguarda'" (LEMINSKI, 1975, p.211), chamado Occam (Ogum, Oxum, Egum, Ogam). Quando ele aparece no texto, as letras das palavras se alteram, mudam de lugar, "aconstrece": "Occam, aca­ba lá com isso, não consigo entender o que digo, por mais que persigo". (LEMINSKI, 1975, p. 18)

Ficção/história

Foi como professor de História do Brasil, durante uma de suas aulas, que Leminski teve a idéia que orienta o livro.

Referi que, na Europa, o Príncipe Maurício cercava-se de um séqüito de ilustres. O filósofo francês René Descartes (que, à moda do tempo, latinizava o nome para Renatus Cartesius) era fidalgo da guarda pessoal de Maurício. De repente, o estalo: E SE DESCARTES TIVESSE VINDO PARA O BRASIL COM NASSAU, para a Recife/Olinda/Vrijburg/Freiburg/ Mauritzstadt, ele, Descartes, fundador e patrono do pensamento analítico, apoplético nas entrópicas exuberâncias cipoais do trópico? (LEMINSKI, 1975, p. 207)

Catatau compõe-se assim como uma ficção que refaz a his­tória dos holandeses no Brasil e sua interpretação incorpora na materialidade da escrita o fracasso desse empreendimento, pois é a fala dissonante do personagem que faz desabar a razão cartesiana,

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assim como desabou o projeto batavo nos trópicos.

Deste modo, os Estados Gerais tinham planejado fazer do Bra­sil uma república muito rica, bela e poderosa, sem as lutas que ali se verificam presentemente. Pretendiam tomar-se o povo mais florescente e estimável do mundo ( ... )". "( ... ) por fim, pensando ter tudo ganho, tinham perdido tudo. (MOREAU, 1651, p.88).

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° governo de Maurício de Nassau no Recife (1637-1644) é tido como a Idade de Ouro do domínio holandês, correspondendo aos seis anos de paz relativa (1641-1645) dentre os vinte e quatro anos da guerra do açúcar (cf. MELLO, 1975, p.13). Por quê esse episódio histórico, o poder holandês que se estende do Ceará ao São Francisco durante vinte e quatro anos se reveste de importân­cia e interesse para o caso que aqui nos interessa, o de sua incorpo­ração pela ficção? Destacamos dois aspectos. Primeiro, a questão do "nativismo". Segundo a historiografia, o domínio holandês e os problemas envolvidos na guerra do açúcar favorecem uma primeira organização especificamente brasileira, manifesta numa guerra de guerrilha que termina por expulsar os recentes invasores. O episó­dio estaria assim na origem de um sentimento nativista posterior, pois que só tomará corpo a partir de 1710 com a guerra dos masca­tes, como analisa estudo de Evaldo Cabral de Mello (1975). Assim, se a resistência inicial aos holandeses é marcadamente européia, com tropas portuguesas, castelhanas e italianas, a guerra de restau­ração assumirá características brasileiras, com 2/3 de índios e ne­gros como parte do efetivo luso-brasileiro, sendo financiada pela sociedade colonial do Nordeste. Como diz José Guilherme Merquior comentando o estudo de Evaldo Cabral de Mello:

tanto o custeio da guerra quanto o recrutamento e abastecer das tropas, o seu comando e a sua estratégia se tomarão crescentemente locais e nativos. Exibindo com plena minúcia fundamentos materiais, econômicos, logísticos e tecnológicos, desse abrasileiramento da campanha contra o invasor, EeM realiza uma autêntica sociologização do nexo, que a historiografia precedente apontara sem demonstrar, entre o domínio holandês e o sentimento nativista. (MERQUIOR apud MELLO, 1975).

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Podemos dizer que ao ficcionalizar Descartes nos trópicos como emblema da colonização batava, Leminski opera, no tex­to, uma "guerra de guerrilha" contra o pensamento cartesiano, minando-o na estrutura de sua fala ininterrupta, e a questão do nativismo, importante para a prosa de ficção que se fixa no sé­culo XIX, acaba por ser incorporada, pelo avesso, com outras palavras, no Catatau, como discutiremos adiante.

De outro lado, trata-se de um episódio histórico que se caracteriza como uma possibilidade não realizada: e se os holan­deses tivessem sido vitoriosos e permanecido no Brasil? Nesse sentido, arriscamos dizer que o romance de Leminski dá corpo ficcional à análise de Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil (1936), em relação ao fracasso do projeto da Nova Holanda, ("Seu empenho em fazer do Brasil uma extensão tro­pical da pátria européia sucumbiu desastrosamente ( ... )", HOLANDA, 1936,p.34). Dentre os motivos elencados por Sér­gio Buarque para esse fracasso estariam o pouco "contato ínti­mo e freqüente com a população de cor" (HOLANDA, 1936, p.34), as dificuldades fonéticas dos idiomas nórdicos para os índios e negros e a pouca aceitação do protestantismo:

o insucesso da experiência holandesa no Brasil é, em verdade, mais uma justificativa para a opinião, hoje corrente entre al­guns antropologistas, de que os europeus do Norte são incompa­tíveis com as regiões tropicais (HOLANDA, 1936, p.34).

Assim também se manifesta Leminski em relação ao pro­jeto de seu livro: "O Catatau é o fracasso da lógica cartesiana branca no calor, o fracasso do leitor em entendê-lo, emblema do fracasso do projeto batavo, branco, no trópico". (LEMINSKI, 1989b, p.216). Como disse Antonio Risério: "Fracassou, por motivos vários, a colonização holandesa, o projeto-Nassau. Leminski dá conta de um outro fracasso: pensar o Brasil em pensamento europeu" (RISÉRIO, p.220, 1976).

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A "Sensação de não estar de todo" e o "Estilo tropical"

A partir dos estudos de Flora Sussekind e de Roberto Ven­tura desenvolveremos algumas hipóteses na leitura de Catatau. Em seu estudo O Brasil não é longe daqui (1990), Flora Sussekind assinala os "retornos em diferença da imagem do viajante na pro­sa brasileira" (SUSSEKIND, 1990, p. 155). Seu estudo parte dos anos de 1830 e 1840, mostrando como o narrador de ficção no Brasil se institui como um narrador-viajante, um narrador­cartógrafo, baseado em dois gêneros não ficcionais: o relato de viagens e o paisagismo ("sobretudo o que tematiza vistas e exube­râncias tropicais", SUSSEKIND, 1990, p.20). Esse narrador, li­gado ao anseio de fundar uma literatura nacional diversa da euro­péia, tem como modelo e "certidão de verdade" o olhar do via­jante estrangeiro, o do naturalista que classifica o que vê e o do paisagista que desenha e mapeia. Como ela demonstra, esses nar­radores-cartógrafos sofrem uma primeira transformação entre 1869 e 1880, "em direção às máscaras do historiador e do cronista de costumes" (SUSSEKIND, 1990, p. 155), e seu estudo conclui-se com a análise da viagem auto-reflexiva dos narradores de Macha­do de Assis, que desarmam as idéias fixas de natureza e cor local. Encerrando-se aqui, não deixa, contudo, de apontar para outras transformações históricas desse narrador ligado à viagem:

E, na prosa modernista dos anos 20 deste século - vide Macunaíma, Memórias sentimentais de João Miramar, Serafim Ponte Grande, Pathé Baby - se reinterpretariam viagens e nar­radores-em-trânsito. Assim como fariam em fins dos anos 60 textos tão diversos como Quarup, de Antônio Callado, e Panamérica, de José Agrippino de Paulo; na década de 70, o "Descartes com lentes" perdido no Brasil holandês do Catatau, de Paulo Leminski, ( ... ) e um livro que se autodefine como uma "ao léu viagem" como Galáxias, de Haroldo de Campos ( ... ) (SUSSEKIND, 1990, p. 154,155).

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o livro de Leminski apresenta uma ego-trip, o pensamento­fala de Descartes ininterrupto; um viajante estrangeiro em terra recém-conquistada e que tenta descrevê-lo e compreendê-lo; a descrição da fauna local compondo um bestiário. No entanto, o que ocorre é uma inversão: o novo mundo impede as construções

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do velho mundo, sendo necessário um outro pensar-dizer, de modo que o autor desconstrói os pressupostos que orientaram a consti­tuição do narrador de ficção no Brasil oitocentista a partir mesmo de suas bases.

Ao chegar ao Novo mundo cabe ao sujeito nomeá-lo, descrevê-lo mapeá-Io, transformar a natureza em "civilização", desenhar, pintar, escrever sobre essa terra em branco (cf. SUSSEKIND, 1990, p. 13). Trata-se do papel do conquistador nos livros de viagem, modelos da prosa de ficção que "passa a se oferecer não propriamente como literatura, mas como mapa unificador, tratado descritivo, paisagem útil" (SUSSEKIND, 1990, p.22). Nessa prosa de ficção estará sempre presente, a partir do pensamento de Ferdinand Denis, "a crença na força selvagem da natureza nos trópicos" (SUSSEKIND, 1990, p.27). Assim, mais do que relato, tem-se o inventário, a classificação naturalista, a expedição científica, a paisagem pitoresca a ser estudada: "Se ao viajante cabe narrar, fixar tipos e quadros locais, ao naturalista caberia classificar, ordenar, organizar em mapas e coleções o que se encontra pelo caminho" (SUSSEKIND, 1990, p.45).

Como vimos, Leminski define seu livro como "sem mapas", opondo-se, portanto, à imagem do narrador-cartógrafo-e-paisagis­ta, assim como ridiculariza o "desejo de ao mesmo tempo represen­tar e colecionar a paisagem" (SUSSEKIND, 1990, p. 119), quan­do, por exemplo, citando Marcgravf e Spix, faz Descartes dizer:

Por eles, as árvores já nasciam com o nome em latim na casca, os animais com o nome na testa ( ... ), cada homem já nascia escrito em peito o epitáfio, os frutos brotariam com o receituá­rio de suas propriedades, virtudes e contraindicações. (LEMINSKI, 1975, p. 34)

o instrumento óptico, a luneta, que acompanha o persona­gem Cartésio em Catatau, também figura nos relatos analisados por Flora: "essa verdadeira representação hiperbólica do olhar armado do viajante naturalista que é o telescópio. Como se vê em Spix e Martius. Ou à luneta, como se vê na tela O morro de Santo Antônio no Rio de Janeiro (1816), de Nicolau Antônio Taunay" (SUSSEKIND, 1990, p. 126). No caso de Catatau, a luneta está presente quando faz aumentar as próprias letras do texto em mai­úsculas, no entanto, mais cega o personagem do que o esclarece:

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"E os aparelhos óticos, aparatos para meus disparates?"; "Esta lente me veda vendo, me vela, me desvenda, me venda, me revela. Ver é uma fábula - é para não ver que estou vendo"; "A figura é figurada. Desvidro-me. Não representa o que apresenta. Em ou­tras palavras, são outra coisa." (LEMINSKI, 1975, p. 16, 17,19).

Para opor-se à racionalidade matemático-cartesiana, Leminski cria, assim, um personagem que é como um viajante que perde totalmente os parâmetros de sua cultura de origem, sofren­do uma espécie de "bloqueio" e "trauma". Ao identificar o que ela chama de a "sensação de não estar de todo", Flora cita dois exem­plos que encontram paralelo no livro de Leminski: o livro de Júlio Veme, O eterno Adão, no qual os náufragos sobreviventes che­gam em um continente desconhecido, mas, ao invés de civilizá-lo, "não são os 'náufragos' que conquistam o continente descoberto; é este que parece lentamente devorá-los" (SUSSEKIND, 1990, p. 14). Assim também em Quarup, de Antonio Callado, o persona­gem que finca a bandeira nacional no centro do país é coberto por milhões de saúvas, imagem esta retomada ao final de Catatau: "e as formigas me comendo e me levando em partículas para suas monarquias soterradas" (LEMINSKI, 1975, p.205).

"Livro-limite", na expressão de Haroldo de Campos, a hi­pótese que lançamos é a de que Catatau seria o ponto extremo desse modelo analisado por Flora, seguindo uma linha que se ini­cia nos decênios de 1830 e 1840. Transgressão máxima desse modelo, o livro ainda se encontra dentro do mesmo paradigma, como se o rompimento total não deixasse de ser também o ponto de chegada dessa tradição. Dubiedade que faz o sucesso/fracasso do livro. Nesse sentido, o fracasso programático é coerente, pois trata de desfazer pelo avesso os postulados que orientaram a fic­ção no Brasil. Dúbio, porque, ao negar com tanta radical idade essa tradição, acaba, de outro modo, por afirmar o que nega, ou seja, apesar de sua força contestadora, o livro mantém em outras bases noções como a de "natureza exuberante", território à parte não domesticável, e, inclusive, a idéia de um "estilo tropical". Como mostra o estudo de Roberto Ventura (1991), aliás contem­porâneo do de Flora, "A crítica e a história literárias brasileiras foram marcadas, até 1910, pelas noções de raça e natureza. As origens do 'estilo' literário eram atribuídas à ação diferenciadora do meio ambiente ou da mistura étnica" (VENTURA, 1991, p.18).

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Assim Araripe Júnior, em 1888, escreve sobre o estilo tropical, a partir da adaptação do naturalismo no Brasil, dizendo:

Emigrando para o Brasil, o naturalismo não podia deixar de passar por uma migração profunda. Zola, neste clima, diante desta natureza, teria de quebrar muitos dos seus aparelhos para adaptar-se ao sentimento do real aqui. (JÚNIOR, 1888, apud VENTURA, 1991, p. 17, 18)

Não poderíamos traduzir essa mesma frase para o caso de Catatau, alterando apenas os nomes?

Emigrando para o Brasil, o cartesianismo não podia deixar de passar por uma migração profunda. Descartes, neste clima, diante desta natureza, teria de quebrar muitos dos seus aparelhos para adaptar-se ao sentimento do real aqui.

Ou seja, não se trata da mesma idéia com outra roupagem? E ainda diz Araripe: "A nova escola, portanto, tem de entrar pelo Trópico de Capricórnio, participando de todas as alucinações que existem no fermento do sangue doméstico, de todo o sensualismo que queima os nervos do crioulo" (JÚNIOR, 1888, apud VEN­TURA, 1991 ,p.I8). Também não é de alucinação e delírio que se trata no caso da ficcionalização de Descartes, sofrendo a influên­cia do meio no corpo de seu pensar, como revelam as poucas frases pinçadas a seguir? "Este mundo é o lugar do desvario, a justa razão aqui delira"; "Este calor acalma o silêncio onde o pensamento não entra, ingressa e integra-se na massa" ; "Nestes climas onde o bicho come os livros e o ar de mamão caruncha os pensamentos" (LEMINSKI, 1975, p.17, 28), dentre muitas ou­tras que poderiam ser citadas.

Ainda seguindo o pensamento de Araripe Júnior, ele assim define a tropicalidade do estilo: "há estilo que resista, há correção que se mantenha? O [estilo] tropical não pode ser correto. A cor­reção é o fruto da paciência e dos países frios; nos países quentes, a atenção é intermitente" (JÚNIOR, 1888, apudVENTURA, 1991, p. 18). Assim também é intermitente a fala de Descartes em Catatau: "Pensamento, aqui, é susto";"Tudo o mais que sei não cabe no que digo, já não há mais o que eu havia dito, já há só o

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que nunca se soube. Os sintomas. Os sintomas de tudo, os siste­mas totais." (LEMINSKI, 1975, p.19).

Retomando a hipótese levantada: com toda a inversão demolidora que faz Leminski, não se trata, mesmo que do avesso, de propor a mesma coisa? A idéia de uma radical diferença dos trópicos em relação à Europa? O verso e reverso de uma mesma moeda-idéia? Não se trata ainda de uma obsessão pela natureza exuberante? A mesma que está na "constituição do narrador de ficção na prosa romântica brasileira e de algumas de suas trans­formações históricas" (SUSSEKIND, 1990, p.19)? Portanto, o li­vro de Leminski insere-se como transformação histórica desse mesmo modelo inicial, só que problematizando-o em negativa. Se à prosa de ficção romântica cabia o desejo de mapear o Brasil, o que faz Leminski é apagar as linhas do mapa, buscando não um começo histórico, mas a origem entendida como originalidade absoluta, apagando todas as escritas calcadas na lógica e no modo europeu de apreensão do Novo Mundo. Espécie também ele de Marco Zero.

Assim, não haveria também em Catatau a afirmação de uma "essência original", não da nacionalidade, mas de uma noção de território à parte, trópicos indomáveis, não domesticáveis, região inconsciente na qual consciência alguma pode dar conta, como um resto, um resquício a perturbar a razão? Espécie de pensa­mento selvagem versus o cogito cartesiano, ou o cogito cartesiano confrontado com o pensamento selvagem, bricoleur, a destruir a lógica dos viajantes invasores. Ao mesmo tempo, o livro foi es­crito entre 1966 e 1975, em pleno período de ditadura, nesse caso, seu desejo de falência manifesta, seu afastamento voluntário dos leitores, sua ilegibilidade programada, não se ligariam também a um projeto de contestação política? Espécie da autofagia da lite­ratura que se devora a si mesma até desaparecer do mapa ou fazer desaparecer qualquer mapa. Se, antes, busca-se a nacionalidade, aqui parece haver o desejo voluntário de perder-se, sumir do mapa, tornar-se inencontrável.

Busca-se apagar os rastros do já dito, re-fundar uma terra em branco, justamente o inverso do desejo que movimentava os narradores de ficção nos decênio de 30 e 40 do século XIX, como a imagem em negativa desse anseio fundador, cartográfico, des­critivo, de expedição científica. Tudo vai abaixo em Catatau

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(onomatopéia também para queda). Mesmo assim, com todo esse grau de negativas, ainda se trata de uma transformação desse mesmo narrador-viajante, situando-se nesse paradigma, apesar de apontar pra um ponto de não-retomo: o que escre­ver depois disso?

A falência programática do livro, a nosso ver, viria de um dilema não resolvido em uma tensão que permanece: a de um livro de vanguarda que repete com diferença as bases da prosa de ficção no Brasil e que propõe um rompimento radical com a re­presentação de moldes românticos, realistas, naturalistas, mas que, paradoxalmente, mantém seus pressupostos, tais como a natureza exuberante ou a influência do clima. O dilema não resolvido viria da junção ou justaposição de desconstrução formal unida a uma ideologia conservadora de um mesmo ideal romântico. Por não poder mantê-las juntas - a rebeldia, a paródia, a descontrução e a manutenção de um mesmo ideal do avesso - sem gerar um choque auto-contraditório, coerente também ele com a proposta do livro, o fracasso faz-se inevitável, podendo então ser lido como um caso­limite, de fato, da ficção do estilo tropical chegada a um ponto de não-retomo.

A par do atrativo pela idéia-mor do livro: a dissolução do pensar cartesiano em solo e selva tropical e do cômico da situação em que coloca Descartes, a par desse interesse e amor que o livro desperta em nós, leitores, digamos assim, nativos, como uma vin­gança tropical-concretista-antropofágica, ele se manteria ainda nas categorias do pensamento romântico. Quer dizer, há um efeito misto na leitura de Catatau, ou naquilo que no livro podemos tentar ler já que ele mesmo se apresenta sem mapas nem coorde­nadas, de atração e recusa. Aqui também "a sensação de não estar de todo" atinge a leitura e este texto.

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Referências

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I FUENTES, 2000, p.7

Narrar ou perecer: Sérgio Sanfanna e Ricardo Piglia, sobreviventes

Ângela Maria Dias (UFF)

A tradição inaugurada na literatura brasileira por Machado de Assis, nas memórias de Brás Cubas, o seu "defunto autor", dramatiza a escrita como leitura mesclada e desrespeitosa de vari­ado repertório, bem distante falacioso horizonte de objetividade do preceituário realista. Desde o Pentateuco, passando por Xavier de Maistre até, muito particularmente, "a forma livre de um Sterne", este primeiro romance moderno da literatura brasileira, como divisor de águas entre o romance oitocentista anterior e a descen­dência que, então, funda, proclama a "loucura da leitura" como a maior evidência de nossa radical impossibilidade de ser realistas e ou professar a crença num mundo objetivo acima de qualquer suspeita ..

"Autor incerto de incerto romance"! ,Brás Cubas funda uma realidade trôpega e deslizante, na qual a "louca leitura" da vida pelo privilégio da morte, como ponto de vista, transforma-a num espetáculo desmesurado, arbitrário e absurdo. Tal "ambivalência na relação entre a verdade e a ficção", radicalizada pela síndrome da condição colonizada de nossa cultura, permanece, desde en­tão, no horizonte do romance hispano-americano, como a mais radical estratégia de modernidade: o exercício autoconsciente da forma como invenção técnica capaz de problematizar a realidade e desestabilizar o dogmatismo do que é.

Hoje, no início do século XXI, a invasão do real pelas ima­gens da última revolução tecnocientífica renova e aprofunda a persistente pergunta ibero-americana sobre quem somos nós. É que ao bovarismo estrutural gravado em nosso inconsciente cole­tivo pela História, como bem o reconhece Ricardo Piglia, se soma um outro:

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••• O bovarismo é uma chave do mundo moderno: a fonna em que a cultura de massas educa os sentimentos. Existe uma me­mória impessoal que define o sentido dos atos e a cultura de massas é uma máquina de produzir lembranças e experiências2 • 2 PIGLIA, 1980, p.48

Partindo da borgiana concepção da memória como citação múltipla e renovável, numa infinita espiral de traduções, Piglia concebe sua literatura também na contracena entre a heterogeneidade de uma herança híbrida e o vazio de uma tradi-ção amnésica e falhada. A cidade ausente3 , a este respeito, é ab- 3 Idem, 1997

solutamente modelar. Na contrapartida à máquina da cultura de massas em sua aliança às ficções do imaginário do Estado, o es-critor concebe uma espécie de poderosa alegoria da narrativa como espaço de resistência e de desrealização das trampas do poder.

Numa homenagem à Macedonio Fernández - "el escritor de la nada" - precursor de Borges, Piglia fabula o universo de uma estranha Buenos Aires conflagrada pelos "efeitos ilusórios"4 4 Ibidem, p.80.

de uma máquina replicante, capaz de "tornar viva a memória" e a lembrança da mulher amada, através da produção de um relato desdobrável e infindo, "que retoma eterno como o ri05". A at- 'Ibidem,p.126.

mosfera onírica e fantasmagórica do implausível confronto entre a máquina de Macedonio e as "ficções eletrônicas6 " do Estado fi Ibidem, p.117.

dissemina um clima irrespirável, numa cidade em que "os contro-les (são) contínuos", "a última palavra (é) sempre da polícia" e, estranhamente, "todo mundo concorda em sonhar o mesmo so-nho", vivendo "confinado numa realidade diferente"7 . 7 Ibidem, p.73.

Assim, a narração em 3a pessoa do périplo de Júnior oferece uma estranha sucessão de enredos nos quais o jornalista itinerante, obsedado por enfrentar-se com o passado, entra e sai dos relatos e em que também o leitor submerge, em meio à inconsistência geral dos enredos e dos personagens. A incerteza da seqüência narrativa, plena de interseções e recorrências, reitera-se pela pró­pria incerteza do narrador impessoal que, provavelmente, será a própria máquina desarranjada, com a palavra na última etapa do relato: "Eu sei que me abandonaram aqui, surda e cega e meio imortal, se pudesse apenas morrer ( ... ) deixar de ser esta memória alheia, interminável, construo a lembrança e é SÓS". 8Ibidem,p.137.

Enquanto resposta à política e à televisão, espelhos em que

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caras e mais caras aparecem e se olham e se perdem, a máquina é concebida pelo seu criador, segundo o "princípio construtivo" me-

9 Ibidem,p.116. diante o qual, "tudo é possível, basta encontrar as palavras"9 . A busca do passado para preencher o vazio do próprio nome,

faz de Júnior uma espécie de detetive, tão perdido e atônito quan­to o leitor, e transforma a narrativa numa investigação, já que

10 Ibidem,p.129. "todo relato é policiapo" e tudo aquilo que escapa à "tendência II Idem, 1980,p.54. generalizada de uniformizar a experiência 11" merece ser

criminalizado. Justamente esta íntima conexão entre narrativa e poder se explicita na última parte do romance, quando a máquina interditada reconhece:

A narração ( ... ) é uma arte de vigias, sempre estão querendo que as pessoas contem seus segredos, dedurem os suspeitos, falem dos seus amigos, dos seus irmãos. Então, ( ... ) a polícia e a assim chamada justiça fizeram mais pelo avanço da arte do

12 Ibidem,p.129. relato que todos os escritores ao longo da história12 •

A despossessão pela linguagem ou a linguagem como má­quina de despossessão, além de atualizar nossa história autoritá­ria, enseja a reflexão sobre a porosidade das mentes e corações às máquinas, na medida em que o espelho midiático invade e formata todas as cenas. Entretanto, se "a árvore do bem e do mal é a árvo­re da linguagem", tal ambiguidade fundamental, ao manifestar "a

13 Ibidem,p.l04. forma incerta da realidade"13 ,pode confundir ficção e confissão ou ainda embaralhar os limites entre narrar e ser narrado.

Não é outro o motivo do peculiaríssimo romance de Sérgio 14SANT'ANNA, 1997. Sant' Anna, Um crime delicado 14 .. Sua trama de "escorpião

encalacrado", fazendo deslizar as fronteiras entre arte e vida, re­presentação e experiência, crítica, criação ou mistificação, bem po­deria merecer como epígrafe mais uma das falas da Máquina de Macedonio sobre o vínculo entre narrativa, identidade, e investiga­ção: "Todo relato é policial ( ... ) Só os assassinos têm alguma coisa

15 PIGLlA, 1997, p.130. para contar, a história pessoal é sempre a história de um crime"15 . A intrigante história do crítico de teatro Antonio Martins

16SANT'ANNA,1997,p.22. escrita por ele como "peça de natureza quase processuaJl6" para defender-se da acusação de estupro, e entender-se "intelectual, afetiva e criticamente" constitui, sem dúvida, um eloqüente teste­munho da ambigüidade entre confissão, culpa e encenação.

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Seu envolvimento com Inês, mulher estranha e manca, mo­delo de um artista plástico de meia idade, desencadeia uma "nar-rativa autobiográfica 17" que, apesar de invocar para si "a meticu- l7lbidem, p.85. losidade e os rigores da escritaI8 ", termina por reconhecer a ver- 1" Ibidem, p.l04. dade como "ideal fugitivo e inalcançável"19 . 19 Ibidem, p.l26.

Qual um detetive, o narrador dispõe-se ao relato, na "busca apaixonada .( ... ) da verdade20 ", através de uma auto-investigação 20 Ibidem, p.30. fluida e escorregadia, vazada numa espécie de estilística da inde-cisão. Primeiro porque sua própria experiência com Inês começa sob a aura do esquecimento e da privação de sentidos: "Sofro de amnésia parcial, às vezes quase total, depois que bebo em exces-so, e era preciso rastrear o final da noite para verificar se meus temores eram mais justificados do que a euforia21 ". Depois pela 21 Ibidem, p.22. relação indefinida e ambivalente entre Vitório Brancatti e sua modelo, projetada numa obra, espécie de instalação performática, que constitui um absorvente work in progress, capaz de engolfar Inês, e o próprio narrador-crítico com ela envolvido.

Apaixonado pela "modelo e personagem da pintura22 ", An- 22 Ibidem, p.103 tonio Martins, após envolver-se em nebulosos eventos que termi-nam por levá-lo a julgamento pela acusação de estupro, resolve dedicar-se à "narrativa autobiográfica", conduzida como "uma investigação interrra23 ", em que, segundo ele, "mais do que 23 Ibidem, p.27. (se)defender de acusações controvertidas e tortuosas, tent(a) ex-plicar-(se) e entender-(se), intelectual, afetiva e criticamente24 ". 24 Ibidem, p.102. Acontece que, conforme a todo o momento o reconhece o crítico, sua "escrita minuciosa25 "jamais consegue matizar sentimentos 15 Ibidem, p.97. contraditórios , ou o íntimo "caos de emoções26 ". O poço sem 26 Ibidem, p.95. fundo da própria subjetividade é segundo ele, "uma caixa ilimita-da27 " ou ainda o "palco interior", de um teatro onde culpas reais "Ibidem, p.20. OU imaginárias e afetos díspares podem duelar sem trégua, numa proliferação incessante de hipóteses e possibilidades.

Nesta intrincada correlação, um "texto cheio de curvas", "pleno de interrogações28 " encena a mística da subjetividade como 28 Ibidem, p.50. fingimento, na própria medida em que, a cada passo, se debruça sobre a reversibilidade entre experiência e representação, ou ain-da entre memória e imaginação. Assim o biombo da tela-instala-ção de Vitório Brancatti é, de certa forma, a metáfora deste relato que, como ele, constitui um anteparo, mais capaz de velar do que esclarecer a experiência através da escrita. Como bem o reconhe-

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29 Idem.

I A leitura que aqui desenvolvo baseia-se livremente nas interpretações de Antonio Quinet, em seu livro citado na bibliografia, e no célebre Foucault de As palavras e as coisas.

ce O crítico-narrador, no seu infindável "mise en abime":

Percebo como a escrita nos distancia, quase sempre, das coisas reais, se é que existe uma realidade humana que não seja a sua representação, ainda quando apenas pelo pensamento, como numa peça teatral a que não se deu a devida ordem, aliás inexistente na realidade29 •

o caráter ambíguo e construído da confissão como ficção começa sugerido desde as composições das capas, concebidas por João Baptista da Costa Aguiar, como uma montagem de dois qua­dros. Na primeira capa, o "Pigmaleão e Galatéia" de Jean-Léon Gérôme, contornado por grossa moldura de um dourado acobreado, contém, substituindo o adorno cênico do fundo, o emblemático "As Meninas" de Velásquez. A quarta capa reproduz este último quadro, também contornado por moldura idêntica à da primeira capa, e contendo ao fundo, no lugar da imagem refle­tida do casal real espanhol, o quadro de Gérôme.

A mútua implicação entre essas duas célebres pinturas cons­titui o cerne do universo ficcional desta novela, habilmente conduzida para diluir fronteiras e desterritorializar premissas so­bre a suposta distância entre arte como invenção e vida como experiência concreta. A obra de Gérôme trata do mito sobre a paixão do criador por sua criatura, a estátua da bela mulher, então animizada por artes da deusa Afrodite. Por sua vez, o quadro de Velásquez constitui um clássico metacrítico l , espécie de "tuming paint" em que o barroco pensa a perspectiva clássica e representa a representação, na medida em que encena a divisão do sujeito e a dispersão da interioridade através da duplicação do pintor. Assim, o pintor-sujeito, em seu auto-retrato, no nível do quadro desdo­bra-se explicitamente como um duplo: o pintor diante de sua tela, olhando em frente, a observar seus modelos, o casal real do lado de fora da tela; e no ponto de fuga, ao fundo do quadro, seu pri­mo, Don José Nieto Velásquez,. Mas, além disso, o pintor tam­bém se projeta para fora do quadro, situando-se no ponto infinito, à direita do espectador, numa diagonal com o pintor que é visto na tela, como o pintor-sujeito que a olha. A dramatização é abissal, já que o sujeito dividido comparece vendo o quadro, sendo visto vendo o quadro ou ainda, numa infinita seqüência, vendo-se ser visto vendo o quadro e por aí sucessivamente.

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Por outro lado, a cena pictórica desborda-se num outro que é simultaneamente modelo e espectador imaginário. Trata-se do casal real, incluído no quadro como imagem difusa, refletida no espelho ao fundo, para quem, supõe-se, toda a cena está montada. O entrecruzamento de olhares e pontos de vista - do pintor que olha de fora a própria tela, dos reis, ao mesmo tempo modelos e espectadores e, portanto, lugar-tenente de quem contempla a obra - figura, numa leitura psicanalítica, o inapreensível do sujeito no campo escópico, dividido entre o ver e o olhar, o pensar e o ser, como significante sempre elidido e continuamente diferido.

A importância da montagem dessas telas, nas duas capas do livro reside na figuração que oferecem do jogo impalpável opera­do pela narração entre verdade biográfica, memória e ficção, num constante deslizamento indecidível entre arte e vida. Da mesma forma que as telas deslizam de seu suporte, invadindo o mundo do espectador, e transtornando os limites entre construção pictórica e existência, no enredo do romance, a obra de Brancatti confun­de-se com a vida do pintor e sua figurante, absorvendo o crítico, com ela envolvido e por fim incluído na obra.

Nesse sentido, o momento em que Antonio Martins, o críti­co-narrador, se depara, pela primeira vez, com o quadro de Brancatti é emblemático .

... mostrava Inês, sentada num tamborete, atrás do biombo ne­gro, capturada no ato de vestir ou despir um penhoar ou quimono, de modo que se via um de seus seios - um belo, firme e pequeno seio - enquanto sua perna rija se descobria inteira­mente, por estar naturalmente esticada, deixando que se entre­visse, mais acima, a penugem de seu sexo. Sobre a borda do biombo, num naturalismo ostensivo, estavam jogadas uma calcinha e um sutiã. Tive um choque, porque era exatamente a materialização da minha fantasia na manhã posterior à bebe­deira, e que, portanto, deixava o terreno da fantasia para entrar no da realidade30 •

A visão da tela pelo narrador-personagem, não só relativiza as fronteiras entre o impreciso da recordação e a suposta nitidez da vivência, mas, sobretudo, concretiza a idéia da fantasia como um quadro que o sujeito pinta para responder ao enigma do dese­jo do Outro2 • No momento em questão, o quadro pintado de

30 Ibidem, p.55.

2 Leia-se a respeito do valor cênico da fantasia o capítulo "Quadro da fantasia" de Um olhar a mais ver e ser visto na psicanálise de Antonio Quinet

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31 Ibidem, p.119.

Brancatti revela-se inteiramente confundido ao quadro mental composto pelo crítico, na névoa da noite anterior, em profundo êxtase desejante por Inês.

Nesse sentido, o caráter cênico da fantasia, tomado como endereçamento ao Outro, fundamenta a narração do crítico tanto em sua constante fática de apelo ao leitor, quanto na própria con­cepção do narrador sobre o caráter teatral da subjetividade como "palco interior", ou ainda na inter-relação estreita através da qual conjuga e compreende as linguagens artísticas, como a literatura que produz, o teatro e a pintura.

Assim a natureza híbrida da obra de Brancatti, entre a pin­tura, a representação teatral ou perforrnática, bem como a ambi­güidade de que se reveste como produto das relações particulares vividas entre a modelo e o artista, amplia-se pela inclusão, em seu âmbito, do próprio relato de Antonio Martins, conforme ele mes­mo o reconhece:

E se eu pretendia - embora meus atos e atitudes perante a jus­tiça não pudessem assegurar-me disso - ser absolvido, era em meus termos, que incluíam essa posse conquistada de Inês, ele­vando-me da mera condição de fantoche manipulado pelo pin­tor e sua modelo à de ator consciente dentro da obra, apesar de eu não ter uma certeza cabal disso, procurando iluminá-lo um pouco melhor em minha própria obra: este relato3l •

Por sua vez, o próprio relato, no espelhamento que promo­ve entre suas múltiplas dimensões - a crítica, autobiográfica e a ficcional - pode tornar-se, da mesma forma que a obra do pintor que o inspirou, passível de desconfiança, como uma espécie de engenhosa mistificação. É ainda a loquacidade do próprio narrador que o reconhece:

... não poderá uma obra ser ao mesmo tempo péssima e provocativa, vulgar e estimulante, tomando relativo, para não dizer inútil, todo juízo de valor? O que, por sua vez, remetia e remete a uma outra pergunta: não poderá uma peça crítica tor­nar-se uma obra de criação tão suspeita e arbitrária quanto A modelo de Vitório Brancatti?

O paradoxo da arte diante do ecletismo pós-moderno, em

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sua fome de celebridades instantâneas e descartáveis em que lixo e purpurina se misturam, aqui vem sintetizado pelo histrionismo do crítico-narrador, hábil em efeitos especiais e labirintos retóricos. A má-consciência dos torneios e o brilho da argumentação, afiada em jogos antitéticos e afeita ao absurdo, na cooptação do leitor, escora-se no reconhecimento de que, neste final de século, "as fronteiras dos valores acabaram por se diluir32 ", e os parâmetros 32 Ibidem, p.90.

escasseiam. Daí, a radical estetização da vida cotidiana e a escorregadia

confusão entre as construções artísticas ou midiáticas e o efeito de realidade que produzem. Quando a vida é invadida pelo simu­lacro, o chão da experiência falseia e o desejo passa a ser siderado pela imagem, desrealizando o mundo à sua volta .. Como na inusi­tada des-experiência de Antonio Martins:

... eu verificava magnetizado, que, com o deslocamento da luz, a tela, o estudo, a instalação, a peça, enfim, de Brancatti, com a muleta, ia adquirindo, independentemente do valor que se lhe pudesse atribuir, cor, vida, movimento, sob a luminosidade do dia agonizante ( ... ) que, aos poucos, em seus estertores, aca­bou por incidir também em nós, em Inês, como se a modelo e personagem da pintura que eu vira na exposição houvesse salta­do da obra para estar em meus braços, naquele cenário com seus móveis e adereços, fazendo de nós imagens de um quadro em movimento, uma cena para dentro da qual eu fora tragado ... 33 33 Ibidem, p.103.

Aqui, ao invés do nascimento de Galatéia da tela para a vida, tem-se, ao contrário, a absorção de seu amante, um Pigmaleão rebaixado, ao quadro da fantasia que os engolfa e desmaterializa. O narrador, feito imagem de si mesmo, acolhe nos braços a Galatéia que não criou e, por isso mesmo - "tanto autor quanto mero ator"34 - passa a considerar o processo criminal a que é subme- 34 Ibidem, p.106.

tido como "um processo estético, um jogo de xadrez35 ", entre ele 35 Ibidem, p.121.

e o pintor. Por sua vez, Brancatti, porque "dera à luz um enigma plástico e pictórico, ao colocar o real sob suspeita num tipo de obra total", termina por desrealizar a vida como "teatro", afinal, tão bem consumado com a interlocução do narrador-rival.

Piglia, ao palmilhar teoricamente o caminho ficcionalizado por Sant' Anna, reconhece que "em mais de um sentido o crítico é

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o investigador e o escritor é o criminoso", o que o leva a pensar o romance policial como "a grande forma ficcional da crítica literá-

36 PIGLIA, 1994, p.72. ria"36 Neste "crime delicado", a própria identidade indecisa do narrador-crítico, manifestada em sua escrita confessional e sinuo­sa, coleciona os atributos. Ele será tanto o detetive que investiga, quanto o criminoso que escreve.

Não é por outro motivo que, apesar da absolvição judicial, 37SANT'ANNA,1997,p.27. na "investigação interna"3? que se auto-impõe, Antonio Martins

conclui pela própria culpa, "uma culpa visceral e atávica, um ver-]R Ibidem, p.118. dadeiro pecado originaPS ". Com mal disfarçado prazer, o narrador

assume, não só a imputação de "estuprador da arte", como tam-39Ibidem,p.l31. bém ajornalística caricatura de "vampiro" que lhe fazem39 .

E mais, como bom personagem de romance noir, ainda se-4°PIGLIA, 1994, p 78. gundo a lógica apontada por Piglia40 , o narrador-detetive, quanto

mais investiga, mais crimes produz. É assim que, despedindo-se dos leitores, não se peja em confessar a ativa participação que passa a ter na instalação itinerante e então, internacionalmente famosa de Brancatti, considerada pelo próprio crítico como "vul-

41 SANT'ANNA,1997,p.1l8 garidade \'oyeurística"41 .

Aos desavisados informo que à entrada da instalação itinerante de Vitório nunca se deixa da afixar cópias do material de im­prensa sobre o caso Inês, com traduções para o alemão, o in­glês e o francês. Desses recortes, naturalmente, além dos retra­tos do artista e sua modelo, constam alguns deste crítico, inclu­sive a foto que o capturou no instante em que contemplava a pintura de Brancatti em Os Divergentes. E também a caricatu-

42 Ibidem. ra do crítico enquanto vampiro42 •

43 PIGLIA, 1997, p.l14.

De um lado, ambivalente e sinuosa, a máquina de Antonio Martins, ao contrário da de Macedônio, no romance de Piglia, procura esquecer o desalento diante da constatação de que:

Um relato não é outra coisa senão a reprodução da ordem do mundo numa escala puramente verbal. Uma réplica da vida, caso a vida fosse só feita de palavras. Mas a vida não é feita só de palavras, infelizmente também é feita de corpos, ou seja, dizia, Macedonio, de doença, de dor e de morte43 .

De outro, pelo brilho retórico, ou ainda pelo verniz de cinis-

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mo que a envolve, a máquina crítica de Antonio Martins mobiliza o arsenal da mistificação pós-moderna, e em sua fútil tagarelice, termina por mimetizar o bovarismo das ficções eletrônicas, infenso ao penoso reconhecimento da finitude que, certamente daria às palavras um outro peso, bem diferente do que hoje têm.

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Transcriar, transubstanciar: a homenagem dos "cinco sentidos" de Haroldo de Campos a

Giuseppe Ungaretti

Maria Luiza Berwanger da Silva (UFRGS)

Iluminadas iluminuras ungarettianas (CAMPOS, 1977, p.81). Esta a imagem lapidar com que Haroldo de Campos, poeta,

crítico, tradutor e teórico da tradução configura a poética de Giuseppe Ungaretti, poeta italiano cuja permanência no Brasil, de 1936-1942, revitalizou o imaginário nacional.

Sob esta síntese lúcida de Haroldo, dois caminhos cruzam-se que encontram na tradução o lugar da memória residual de duas lín­guas, duas estéticas, duas culturas. Desdobrá-las, distendendo-Ihes as fronteiras geográficas, textuais e simbólicas, em gesto que, ao traduzir, reinventa e transcria, eis o que guarda intacto o fundo do olhar do tradutor brasileiro Haroldo de Campos e de que a recente publicação: Ungaretti - Daquela Estrela à Outra faz-se amostragem exemplar.

"Si l' amitié projette son espoir au-delà de la vie, un espoir absolu, un espoir incommensurable, c'est par ce que l'ami est [ ... ] son double idéal, son autre soi-même, le même que soi en mieux", diz Jacques Derrida em Politiques de ['Amitié (1999, p.20), fi­xando na amizade literária o arquivo inapagável dos fios e das imagens a retecer, das afinidades desenhadas entre os dois poetas-tradutores. Aproxima-os a visualidade, o efeito da luz como "paisagem primordial" do mundo a ser decifrado; como se a produtividade do ato tradutório restituísse à poeticidade do ver a emergência da palavra poética, ampliada e ressimbolizada. As­sim, "Iluminadas iluminuras ungarettianas" tanto remetem ao re­gistro de uma amizade memorável, quanto traçam o caminho a

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ser percorrido por Haroldo de Campos na retradução de Ungaretti para o contexto brasileiro. Percebe-se, neste sentido, que a pró­pria dedicatória em italiano a Haroldo como epígrafe à Daquela Estrela à Outra: "AI caro Haroldo de Campos / per ricordo di / qualche momento / passato insieme / ad amare la / poesia sempre / nuova e sempre / poesia" (Giuseppe Ungaretti, San Paolo, 12/5/ 1967), já demarca para Haroldo o conceito da poesia auto-referencial que tenta nomear o indizível, pela luminosidade do olhar que atravessa, redescobre e relocaliza o corpo da letra sobre o branco da página, da poesia, em uma palavra, que impri­me no ato de transladar o de transcriar. "Faz, na aérea paisagem com que eu possa / Ressilabar as ingênuas palavras" (WATAGHIN, 2003, p.l59), confessa um poema de Ungaretti para demarcar a força poética da reconfiguração.

Em espaços rompidos, em distâncias redimensionadas, em novas cartografias redesenhadas pelo brilho das estrelas, disper­sas em novas constelações, nesta difração luminosa captada do poeta italiano, o tradutor brasileiro percebe a imagem do "Odi Melisso" de G. Leopardi, fundo textual em que Ungaretti mescla à poeticidade da luz a do escutar, mesclas e ressonâncias de som e de cor que evidenciam para o tradutor a musicalidade do exercí­cio de "ressilabar", na base do projeto poético nomeado de Ungaretti: marcas aproximam-se mas não se diluem no trânsito de alteridades revisitadas. "A alteridade é, antes de mais nada, um necessário exercício de autocrítica" (CAMPOS, 1983, p.125), afirma, de forma contundente, Haroldo, sublinhando a produtivi­dade do Outro para o Mesmo como decifrador de línguas, lingua­gens e imaginários vislumbrados pelo olhar que se volta sobre a própria intimidade. Singular este retorno do sujeito sobre si mes­mo do qual Haroldo recolhe do texto estrangeiro os grãos semi­nais com que reescreverá e ampliará o significado original.

Leitor-crítico maior dos poetas modernistas representati­vos do Movimento Antropofágico, compreendera o tradutor bra­sileiro que a travessia da leitura articulada pela devoração do Outro mostra ao Mesmo, (ao tradutor visto como Mesmo), o ajuste e a aclimatação de imaginários como marca primeira da subjetividade que vê e que se vê concentrando na paisagem uma das figurações exemplares da intimidade lírica. (Exemplar, na medida em que a paisagem se faz solo comum, território sensível onde o texto tra-

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Transcriar, transubstanciar: a homenagem dos "cinco sentidos" de Haroldo de Campos a Giuseppe Ungaretti

I Refiro-me, especialmente, ao legado do pensamento francês sobre o ato tradutório sintetizado pelo desejo de distanciamento e pela recusa da "fidelidade" em tradução. Poetas-tradutores e tradutores franceses, como Paul Valéry no ensaio Traduction en vers des Bucoliques de Virgile (1944), a própria obra Sous l'invocation de Saint Jérôme de Valéry Larboud (1946), a reflexão luminosa de Maurice Blanchot em L'amitié (1971), Henri Meschonnic com a Poétique du tradu ire (1999), síntese dos demais percursos tradutórios deste autor, do mesmo modo La Communauté des traducteurs de Yves Bonnefoy (2000), paralelas à contribuição definitiva de lacques Derrida para a tradução de textos e de imagens nas Tours de Babel celebrada em "Ni passeurs ... ni passants", esta amostragem exemplar constitui marcas evidentes do núcleo duro da reflexão haroldiana sobre o exercício tradutório como transcriação.

2 "Teremos [ ... ] em outra língua, uma outra informação estética, autônoma, mas ambas estarão ligadas entre si por uma relação de isomorfia: serão idênticas enquanto linguagem, mas, como os corpos isomorfos, cristalizar-se-ão dentro de um mesmo sistema" (Apud CAMPOS, Haroldo de (1992). Da tradução como criação e como crítica. In: Metalinguagem e Outras Metas. São Paulo: Perspectiva. p.31-32).

duzido, tradutor e discurso tradu tório harmonizam-se em vozes que se consolidam na recepção crítica da tradução, hoje ).1

Em Haroldo, a busca obstinada do visual, manifestando-se no desejo de "ir más allá", incide na própria necessidade de dessimbolizar ou desconstruir para ressimbolizar ou reconstruir o novo, o diverso, o múltiplo captados do movimento da travessia, no caso em questão, da Itália-brasileira de Ungaretti. Se o atra­vessar recompensa a prática do olhar com o desenho de "para­gens" (DERRIDA, 1999), estes espaços sulcados não só rememoram a territorialidade do Mesmo (do texto na língua ma­terna do tradutor), mas também relocalizam e o fazem gravitar em configurações, línguas e imaginários outros.

Transblanco intitula-se o poema de homenagem de Haroldo de Campos a Octavio Paz, em jogo intertextual que estabelece com o poema Blanco do poeta mexicano, mediante este fio do atravessar, "transluminação", denomina Haroldo a esta operação que prolonga e difrata o poema Blanco:

Numa tradução como esta, que se passa entre línguas tão pró­ximas e aparentemente solidárias como o espanhol e o portu­guês os avatares obsessivos do mesmo se deixam, não obstante, assaltar pelos azares pervasivos da diferença [ ... ] é que pulsa, passional, para além da resignada tradução servil [ ... ], a voca­ção dialógico-transgressora de toda tradução que se proponha responder a um texto radical entrando no seu jogo também pela raiz: arraigando-se nele e desarraigando-se num mesmo movi­mento de amorosa duplicidade (PAZ; CAMPOS, 1994, p.185-186).

Assim, Transblanco legitima o conceito da tradução transcriadora como ato crítico (ou transcrítico), posição que rei­tera ao longo de sua produção, entretanto já presente na reflexão inaugural de Metalinguagem e Outras Metas (de 1967), mas que reescreverá ao longo de sua produção teórico-crítica.2 Dito de outro modo: tradução e transcriação constituem duas atividades convergentes na produção haroldiana, "[nela] a intertextualidade se converte em intervivencialidade", diz Emir Rodríguez ~lonegal (1986), para assinalar em Haroldo a produtividade do eixo tradu­ção / intertextualidade / crítica para o transcriar. Mas é na tradu­ção dos versos A Alegria (1914-1919) de Giuseppe Ungaretti,

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único conjunto, dentre os demais apresentados, que se faz acom­panhar de notas críticas, nas quais Haroldo sistematiza as reconfigurações transcriativas por ele efetivadas. Substituições lexicais, de rimas e ampliações do significado constituem a base das operações assinaladas para acentuar o efeito musical; como se a musicalidade modulasse, retraduzindo, o visual insuperável. Neste sentido, uma figura desta prática tradutória se desenha em A Ale­gria, a qual, tomando como ponto de partida a brevidade e o despojamento dos versos de Mattina, "M'illumino d'immenso", figuram a inundação do sujeito lírico pela luz que o difrata sob forma de movimentos intermitentes.

Luz voltada sobre si mesmo e, ao mesmo tempo, luz de forte irradiação, Haroldo percebeu com uma clareza surpreen­dente esta dupla figuração do visual em Ungaretti, expressando a busca do sentimento de fraternidade: "De que regimento / irmãos? / Palavra que treme / na noite / Folha neonata / No ar de espasmo / involuntária revolta / do homem presente à sua / fragilidade / Fraternidade" (WATAGHIN, 2003, p.47). É justamente esta per­cepção dilatada do luminoso que evidencia para Haroldo a substi­tuição de "m'illumino" no poema Mattina, "m'illumino d'immenso" por "Deslumbro-me de imenso" (WATAGHIN, 2003, p.57), deslumbrar-se como condensação e expansão ilimitadas da luz e da clarividência no espaço da subjetividade.

Com igual lucidez o tradutor-brasileiro também percebeu que a celebração do fraterno, no poeta italiano, deixa-se articular pelo desejo de compor uma comunidade simbólica de forte resis­tência poética à melancolia existencial. "Balaustrada de brisa / para apoiar noite adentro / a minha melancolia" (WATAGHIN, 2003, p.4I). Concebido por esta poeticidade da luz prismática, o "recueil" intitulado A Alegria representa o arquivo do lirismo ungarettiano, tal como uma voz seminal soprando ao tradutor Haroldo o poder de escuta do Outro, filtrando-lhe ressonâncias e ecos do imaginá­rio estrangeiro. Assim, os demais livros de Ungaretti, traduzidos e apresentados nesta última publicação de Haroldo de Campos, tais como Sentimento do Tempo, O Caderno do Velho e Últimos Dias, configuram-se à propagação luminosa que encontra, em A Ale­gria, a matriz poética do ato tradutório. Nela, a angústia de expri­mir o inexprimível, atenuada pela própria nomeação deste confli­to do dizer pelo recurso à transcriação, garante a retração do

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3 CAMPOS, Haroldo de; CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio (1987). Teoria da Poesia Concreta: Textos Críticos e Manifestos 1950-1960. São Paulo: Brasi­liense.

intraduzÍvel do texto original. Agregar, substituir e deslocar sinte­tizam o esforço da voz tradutora do Mesmo para diminuir o efeito de estranhamento provocado pelo imaginário do Outro; como se a ilusão de decifrar uma língua distante devolvesse ao tradutor o prazer do eterno retorno ao texto primeiro, mas retorno revitalizado. Restituir ao Mesmo a certeza crescente e ininterrupta de avançar e de penetrar na paisagem cifrada de Ungaretti através do efeito do visual, eis, em uma palavra, a própria "alegria" da operação tradutória como transcriação experimentada por Haroldo de Campos. Vista deste ângulo, a tradução do poema Perfections du Nair, escrito em francês por Ungaretti, permite ao leitor evi­denciar uma reconfiguração singular da transcriação.

Se imagem desdobrada da Alteridade a reinventar, Perfei­ções do Negro aproxima-se do projeto visual da poesia concreta brasileira3 por marcas tipográficas múltiplas, se rumor ou musicalidade quase inaudível propõe ao leitor-tradutor o desafio de tornar convergente a dispersão gráfica sobre a página, median­te a escuta de uma paisagem matricial articuladora do diálogo tecido e retecido com A Alegria, então este poema sinaliza para a transcriação o itinerário de uma sublimação captada da poeticidade da ausência: certas representações visuais permitirão ao tradutor brasileiro a retradução dos bastidores desta visualidade. Conheci­dos e desconstruídos os mecanismos de fabricação das imagens deste poema como lugar disseminador do nascimento do poético em Ungaretti, Peifections duNoirentrecruza o traço da visualidade ao da negatividade:

ecos ruídos

nos chegam às vezes

estamos tão longe de tudo

(WATAGHIN, 2003, p.IOS)

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sem morada sem família

sem família sem amores

sem amigos sem lembranças

sem esperança o que vem fazer aqui

(WATAGHIN, 2003, p.113)

Reduz o espaço a uma pedra, a apenas uma pedra da qual o impacto sobre o sujeito, gerado pelo ato de ser lançada no rio, provoca o movimento de mergulho na interioridade. Mas é nos versos de conclusão, na identificação do sujeito a pedra deixada à margem do rio e recuperada por alguém, que a transpoetização efetuada por Haroldo de Campos, manifesta-se:

il est nu comme la nuit

comme une plerre au/it d'unfleuve

polie comme une pierre

de volcan

rongée quelqu'un l'a cuellie

dans sa fronde

ou suis-je tombé

mettez I doncl de côté cet objet

perdu

(WATAGHIN, 2003, p.114)

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nu como a noite como uma pedra

no leito de um rio polida

como uma pedra de vulcão

roída

onde fui eu tombar

alguém a colheu em suafunda põe de lado

este objeto perdido

(WATAGHIN, 2003, p.115)

Nestes versos, a supressão do articulador "donc", na passa­gem do francês para o português, reconfigura o texto de Ungaretti: a presença do "donc" no texto original, significando a tomada de decisão de não mais recuperar o objeto perdido, uma vez o sujeito transmutado em pedra e jogado ao rio, esta decisão é subvertida pela ausência do "donc" no texto traduzido, imprimindo no sim­bolismo da pedra o traço de objeto de memória que remete ao lugar de nascimento do poema. Peifeiçães do Negro, deste modo, concede ao leitor um certo efeito de continuidade do momento liberado da ordem do tempo e do espaço: redesenha a fisionomia do sujeito-pedra, transformando-o em grão textual e forma dan­çante captados da visualidade. Decifra, de certo modo, o enigma da paisagem lírica ao mostrar o dentro à exterioridade, respon­dendo ao conflito da expressão poética figurada por Eterno, pri­meiro poema de A Alegria: "Entre uma flor colhida e o dom de outra o nada inexprimível" (WATAGHIN, 2003, p.23). Embora breves, estes versos permitem vislumbrar o grau zero do dizer o indizível, cifrando-se no prazer de resgatar, pela tradução, a potencialidade da palavra poética de ressignificação inesgotável. A suavidade, contudo, modula o processo tradu tório da poesia ungarettiana por Haroldo: compreende o tradutor, que toda práti­ca do transcriar inicia pela percepção e pelo exame dos eixos arti-

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culares do texto a traduzir. Deste modo, princípios como o da indeterminação como traço do inexprimível, o do "efeito de fratu­ra abissal", assim denominado pelo próprio Ungaretti, para mar­car tonalidade ou mudança de intensidade agregada a uma palavra em determinada linguagem e, sobretudo, a configuração do frag­mento como gênero e como imagem da significação poética múl­tipla, estes traços da poeticidade ungarettiana encontram a resso­nância perfeita na página retraduzida por Haroldo, traços que dão a ver, na prática, a composição de "formas significantes em um horizonte móvel, num virtual ponto de fuga" no rastro da "dispersion volatile de Mallarmé" (CAMPOS, 1987, p.60); como se a leitura simbólica do fazer poético demarcasse para Haroldo o caminho do transimaginar, ou, como o dirá em uma nota introdutória a uma obra compartilhada com seu irmão Augusto de Campos: "Traduzir e trovar são dois aspectos da mesma realida­de. Trovar quer dizer achar, quer dizer inventar. Traduzir é reinventar [ ... ] O caráter concluso da obra feita fica provisoria­mente suspenso e o fazer reabre o seu processo, refaz-se na di­mensão nova da língua do tradutor" (CAMPOS, 1987, p.56).

Trata-se de visualizar a operação transcriativa como uma das formas de retrair, relativizando, o efeito de estranhamento experimentado pelo tradutor. Assim, resistir ao impacto da dis­tância a ser atravessada entre duas línguas, dois imaginários e duas subjetividades de sentidos apenas insinuados no texto a ser traduzi­do, eis o primeiro gesto que o ato de transcriar concede ao Mesmo e ao Outro. Se desbabelizado e transgredido, todo texto estrangei­ro provoca a ilusão da completude, difratado e ampliado restitui ao texto original aquele efeito de sublimação de que se reveste toda cumplicidade, no fundo inapagável de duas memórias aproximadas. Mais ainda, entrelaçá-las, tomando-as "metáfora viva" da poética do dom e da doação mútua, eis o segundo gesto a que remete o exercício da transcriação de Ungaretti por Haroldo de Campos.

Plenitude tradutória ou novos itinerários que o prazer do texto ressimbolizado vislumbra para o leitor-tradutor? Amostragem exemplar de uma paisagem transcriada, Daquela Estrela à Outra, como última publicação de Haroldo de Campos, não só transparece este "bonheur du traducteur", mas também tece, a seu modo, um diálogo singular com a produção poética e crítica haroldiana. Vis­ta deste ângulo, a intersecção de La Educación de los Cinco Sen-

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4 Ver referência e citações em SANTAELLA, Lúcia. Trans­criar, Transluzir, Translu­ciferar: a teoria da tradução em Haroldo de Campos. In: MOTTA, Leda Tenório da (Org.) (2005). Céu acima: para um "tombeau" de Haroldo de Campos. São Paulo: Pers­pectiva I FAPESP. (Coleção Signos, 45). p.221-232.

tidos (tradução, 1990), imagem-síntese da poética de Haroldo com artigos periodísticos (Para além do princípio da saudade, Folha de São Paulo, 1984, e A transcriação do Fausto, Folha de São Paulo, 1981, entre outroS)4 já traz em gérmen o projeto da pro­funda ressonância onde partes e fragmentos reflexivos harmonizam-se transiluminando-se reciprocamente_ E, em voz que nomeia, mostrando, os lugares teóricos, críticos e poéticos por que faz transitar seu processo de transimaginação, a matriz haroldiana rememora a presença francesa, por vezes inconfessa; convoca-a por constituir a constelação de marcas, traços e sinais colhidos da tradução/retradução do Coup de dés de Mallarmé, ver­dadeira arte tradutória com que Haroldo brinda a poesia brasileira: recorta da lembrança francesa o próprio dom da visualidade transgredida pela poética da escuta, dos modos de escuta a que a escritura da Educación de los Cinco Sentidos lhe permitiu ascender.

Visto sob a transparência francesa, se a recente publicação de Paul Ricoeur, intitulada Sur la traduction (2004), sublinha a superação do sentimento do "deuil" pelo tradutor, inserindo-se, pois, este intelectual na comunidade de pensadores-transcriadores franceses, considerados como "réelles présences" da reflexão de Haroldo de Campos já evocadas, é, contudo, na leitura simbólica e cristalina de Paul Ricoeur pela crítica uruguaia Lisa Block de Behar (2005) que a operação tradutória de Ungaretti por Haroldo encontra a luz e a legitimação definitivas:

Si uma obra puede cambiar el curso deI mundo, tal vez no seria demasiado exagerado afirmar que también una palabra puede cambiar el discurso deI mundo o el discurso, tout court. Y, en esta situación de hoy, esa palabra sería travesía o los movimientos que su acción implica. Ambivalente o contradictorio, el término no puede sustraerse a ciertas duplicidades lexicológicas que no eluden los pliegues, que no ocultan una significación excéntrica - o varias - que se presta a la preferencia de un estatuto literario privilegiado y que la pluralidad deI diccionario avaIa (BEHAR, 2005, p.99-1 00).

Por sua vez, esta imagem do "atravessar" como figura do transcriar guarda, retida, em seu núcleo, um outro grão do pensa­mento (sempre iluminado e iluminador) de Lisa Block de Behar, expresso ao longo de sua produção teórico-crítica e sintetizado

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na obra sobre Haroldo de Campos, Don de poesía (2004), sob sua organização, quando diz na Introdução:

Sus escritos teóricos afines a su obra poética, las convergencias de sus transcreaciones, la caligrafía ideogramatical que confi­gura la visualidad y verbalidad en una misma emergencia relevan la previsión profética que Haroldo, el poeta que sabe, emblematiza en escritura en un verso que se ve: "escrever é uma forma de 'ver'" (BEHAR, 2004, p.20).

Dom do visual, pois, como dom da tradução poética, em Mestre Haroldo, o incessante desejo de legar ao nacional e ao transnacional este "don du poeme" faz retornar a La Educación de los cinco sentidos, onde Le don du poeme, ao evocar um poe­ma de Mallarmé, configura a sedução de abrir o próprio ouvido deixando-se invadir pelo ouvido do Outro:

un poema comienza allí donde termina: el margen de la duda súbito inciso de geranios ordena su destino

[ ... ]

domo de signos: y el poema comienza mansa locura cancerígena que exige estas Iíneas aI blanco (allí donde termina) (CAMPOS, 1990, p.73)

Se o diálogo estabelecido com Mallarmé constitui o solo comum da atividade tradutória tanto de Giuseppe UngarettP quan­to de Haroldo de Campos, a travessia do texto ungarettiano pelo poeta-tradutor brasileiro e a conseqüente confluência na página mallarmaica desenham um espaço outro, além dos laços de ami­zade, um território do imaginário em que duas poéticas revitalizam-se pela certeza do texto do Outro transcriado. No fundo das "Iluminadas iluminuras ungarettianas", a luz concentrada como

5 Ver: Conferências e ensaios críticos de Giuseppe Ungaremi, compilados por: WATAGHIN, Lucia. Raz[jes de uma poesia. São Paulo: EDUSP, [s.d.].

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medida da distância entre estrelas, expressa a singularidade do gesto de transubstanciar como homenagem maior que Haroldo de Campos doa ao poeta italiano, a quem dedica o poema Transideração:

Transideracão Ungaretti conversa com Leopardi 1984

Um leão: ruivando arde -na voz do leão - Leopardi (céu noturno em Recanati) virando constelação: Odi, Melisso ... E o leão resgata a um fausto de estrelas caídas, a lua jamais cadente e a Ursa, magas centelhas. Depois, o leão (a Leopardi tendo dado o que lhe cabe) passa a medir o infinito ou desmedi-Io: do longe daquela estrela (tão longe) ao longe daquela estrela. (CAMPOS, 2003, p.194).

Neste poema, a evocação de Leopardi tanto celebra o fio memorial da paisagem ungarettiana, quanto a transgride. No ver­so final, o gesto de "medir o infinito" significando a passagem de constelações nomeadas e conhecidas (asa, Ursa Maior) a desco­nhecidas retoma ao Don du Poeme da Educación de los Cinco Sentidos. Em Transideración, Haroldo investe no gesto de "atra­vessar" o ato de transcriar para "medir el infinito", representando, através deste ato, não só a figura do tradutor-ressimbolizador ou "le maitre secret de la différence des langues" como o vira Maurice Blanchot (1971), mas, sobretudo, como aquele que, ao emprestar seus "cinco sentidos" à visualidade da paisagem transiderada pela dança de estrelas como dança de palavras: "O tradutor de poesia é um coreógrafo da dança interna das línguas tendo o sentido [ ... ] não como meta linear de uma corrida termo-a-termo, [ ... ], mas

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como um bastidor semântico ou cenário pluridesdobrável dessa coreografia móvel" (p.230), dá a ver, além da homenagem, no texto transcriado ou transubstanciado, o lugar de transferências estéticas e culturais.

Céu acima: para um "tombeau" de Haroldo de Campos (2005) como a mais recente publicação no Brasil, composta por uma constelação de vozes nacionais e transnacionais, restitui ao transcriador Haroldo a própria homenagem que este tradutor bra­sileiro prestara a Ungaretti. O prefixo "trans" de "transcriação", simbolizado pelo título "Céu acima", recolhe o poema que lhe dedica o poeta paulista Horácio Costa, discípulo dileto de Haroldo de Campos, a continuidade da "transideración" inapagável:

- Conecta com isso. E é uma pedra.

- Conecta com isso. É terra.

- Conecta com isso. É nuvem. Tem a forma do dragão.

- Conecta com isso. É onda. Tem a forma da onda.

- Conecta com isso. É chip. Parece Shangri-Iah.

Não é sílica. Nem silêncio. Nem palavra. Conecta com isso" (COSTA, 2005: 307).

Iluminadas iluminuras horacianas.

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Referências

BEHAR, Lisa Block de. Contradictorias aventuras y desventuras de la travesía. Revista Brasileira de Literatura Comparada, Porto Alegre: Abralic, n.7, 2005, p.91-101.

CAMPOS, Haroldo de. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 1977.

--o Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira. Boletim Bibliográfico, v.44, n.14, 1983, p.107-125, jan.-fev.

--o Da tradução como criação e como crítica. In: --o Metalinguagem' e Outras Metas. São Paulo: Perspectiva, 1992.

--o Da transcriação: poética e semiótica da operação tradutora. In: SANTAELLA, Lúcia; OLIVEIRA, Ana Cláudia. Semiótica da Literatura. São Paulo: EDUC, 1987. (Série Cadernos PUC, 28). p.53-74.

--o La educación de los cinco sentidos. Trad. de Andrés Sánchez Robayna. Barcelona: Ambit Serveis Editorial, 1990.

--o Ungaretti: O Efeito de Fratura Abissal. In: WATAGHIN, Lucia (Org.) Ungaretti - Daquela estrela à outra. Trad. de Haroldo de Campos e Aurora F. Bernardini. Cotia: Ateliê Editorial, 2003. p.187-195.

CAMPOS, Haroldo de; CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio. Teoria da Poesia Concreta: Textos Críticos e Manifestos 1950-1960. São Paulo: Brasiliense, 1987.

COSTA, Horácio. A fronteira do dizer. In: MOTTA, Leda Tenório da (Org.). Céu acima: para um "tombeau" de Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva / FAPESP, 2005. (Coleção Signos, 45) p.306-307.

DERRIDA, Jacques. Politiques de l'Amitié. Paris: Seuil, 1999.

MOTTA, Leda Tenório da (Org.). Céu acima: para um "tombeau" de Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva / FAPESP, 2005. (Coleção Signos, 45).

PAZ, Octavio; CAMPOS, Haroldo. Transblanco. São Paulo: Siciliano, 1994.

SANTAELLA, Lúcia. Transcriar, Transluzir, Transluciferar: a teoria da tradução em Haroldo de Campos. In: MOTTA, Leda Tenório da (Org.) Céu acima: para um "tombeau" de Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva / FAPESP, 2005. (Coleção Signos, 45) p.221-232.

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WATAGHIN, Lucia COrg.). Ungaretti - Daquela estrela à outra. Trad. de Haroldo de Campos e Aurora F. Bernardini. Cotia: Ateliê Editorial, 2003.

--o Razões de uma poesia. São Paulo: EDUSp, [s.d.].

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As ironias da ordem em Carlos Drummond de Andrade e Fernando Pessoa

Maria Esther Maciel (UFMG)

o que não está ordenado de um modo definitivamente provisório o está de modo provisoriamente definitivo.

(Georges Perec)

A palavra inventário designa, como se sabe, a "rela­ção dos bens deixados por alguém que morreu", "o documento ou papel em que se acham relacionados tais bens", "lista discrimi­nada, registro, relação, rol de mercadorias, bens, etc.", e, em sen­tido lato, "descrição ou enumeração minuciosa de coisas". Para além das demarcações do dicionário, é possível ainda identificar uma afinidade explícita do termo com as palavras "inventolinven­ção" (coisa imaginada, criada, feita, engendrada), o que o levaria a se aproximar - por vias oblíquas - também dos campos do fazer poético e ficcional.

É precisamente enquanto combinatória desses senti­dos possíveis da palavra que se pode falar de uma "poética do inventário" na poesia de Carlos Drummond de Andrade, visto que esta se presta tanto ao gesto taxonômico de inventariar coisas quanto o de inventar formas poéticas alternativas, híbridas, a par­tir de suas inúmeras listas, catálogos, recenseamentos e enumera­ções. E mais: de reinventar ironicamente os dispositivos institucionalizados de classificação, evidenciando que os sistemas de organização das coisas e do conhecimento - não obstante aten­dam à necessidade humana de dar sentido à multiplicidade e ao caos do mundo - são também mecanismos legitimados pela lógica burocrática do mundo moderno e contemporâneo, com a função de ordenar, controlar, hierarquizar e rotular nossa vida cotidiana. Sob esse prisma, são exemplares os poemas drummondianos que recriam - por vias muitas vezes insólitas - inventários jurídicos, receitas e bulas de remédio, instruções para uso de produtos, ca­dastros e listas administrativas, apólices, classificados das páginas

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amarelas, levantamentos estatísticos e descrições imobiliárias, com o propósito de criticar tais formas de controle e, ao mesmo tem­po, desestabilizá-Ias pela força da poesia.

Soma-se ainda a esse exercício irônico que Drummond faz das classificações um outro gesto taxonômico, de ordem um tanto distinta: o de registrar/catalogar as coisas e lembranças do passado, conferindo-lhes o papel de "testemunhos" (aqui, no sen­tido arqueológico do termo) de um tempo irrecuperável, de modo a fazê-las durar, como diria Jorge Luis Borges, "para além do nosso esquecimento". Isso confere a muitos dos inventários e ca­tálogos drummondianos também um traço afetivo, dado que eles acabam por compor uma espécie de narrativa íntima da história do próprio poeta e de seus diversos "eus" ou personagens poéti­cos. Nesse sentido, pode-se dizer que tais inventários configurari­am o que Philip Blom, no livro Ter e manter- uma história íntima de colecionadores e coleções, chamou de "teatro da memória, uma dramatização e uma mise-en-scene de passados pessoais e coletivos, de uma infância relembrada e da lembrança após a mor­te". 1 Isso porque eles garantem a permanência dessas lembranças ao fixarem em um espaço comum os objetos que as evocam.

Um olhar diacrônico pela vasta produção poética de Drummond permite-nos identificar esses procedimentos em vári­as fases de sua poesia, o que atesta o impulso catalogador drummondiano como uma das linhas de força de sua obra. Já em Alguma poesia, de 1930, o levantamento de objetos que circun­dam existências ou definem paisagens íntimas de pessoas se faz ver, como no poema "Família", no qual a listagem de todos os elementos que fazem parte do universo prosaico de uma famíl ia é o que justifica a existência das próprias pessoas da casa. Papa­gaio, gato, cachorros, galinhas, móveis, aparelhos, cigarros, bi­lhetes integram o espaço da casa, convertidos em referências vi­tais de um pequeno grupo composto de três meninos, duas meni­nas, uma cozinheira, uma copeira e "uma mulher que trata de tudo". Procedimento esse que, em A rosa do povo (1945), se mostra de maneira mais clara, haja vista a enumeração caótica de tudo o que, segundo o poeta, define o presente do mundo de "homens partidos", no poema "Nosso tempo"; a bela seqüência dos traços que restam do medo, do asco, dos gritos gagos e da rosa, em "Resíduo"; os registros administrativos da "Noite da repartição",

lBLOM, Philipp. Ter e manter - uma história íntima de colecionadores e coleções. Trad. Berilo Vargas. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 219.

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As ironias da ordem: Carlos Drummond de Andrade e Pemando Pessoa

2GOODY.Jack.The domestication of the savage mind. Cambridge: Cambridge University Press. 1995. p.74-111.

dentre outras enumerações de coisas e palavras variadas. Isso, para não mencionar o rol de palavras do poema "Isso é aquilo", de Lição de coisas (1962), que coloca em evidência a lista como um dispositivo taxonômico importante, capaz de reforçar o cará­ter paratático da linguagem poética.

Vale lembrar que o ato de inserir palavras, objetos, animais, eventos e nomes de pessoas em listas foi uma das primeiras práti­cas taxonômicas de que se tem notícia nas civilizações alfabetiza­das, figurando como o procedimento arquivista mais elementar advindo da influência da escrita nas operações cognitivas. Como explica Jack Goody2 , a história documentada dos primeiros sécu­los das culturas escritas mostra que as listas floresceram exata­mente nesse período, tomando a forma de longas tiras feitas de madeira, pedra, argila, pedaços de pano ou qualquer outro mate­rial sólido, nas quais eram gravadas as palavras em série, com diferentes propósitos: desde a simples nomeação das coisas até um levantamento mais exaustivo destas. Listas administrativas, funerárias, literárias, religicsas e lexicais são encontradas em vári­as culturas antigas, sendo que algumas já funcionam como uma espécie de protodicionários ou enciclopédias embrionárias. Mui­tas cobriam um vasto campo de observações astronômicas, climá­ticas, medicinais. Outras, de caráter lúdico ou didático, já consis­tiam no levantamento de nomes de pessoas ou coisas começados com uma determinada letra do alfabeto.

Ao adotar a estrutura de lista/catálogo em alguns de seus poemas, como o "Isso é aquilo", Drummond confere um sentido lúdico ao ato de listar, ao mesmo tempo em que deste subtrai a dimensão meramente pragmática, de ordenação, inserindo-o no espaço móvel e cambiante da poesia. Além disso, cria uma confi­guração alternativa para o poema, assentada em princípios paratáticos e que tem no jogo continuidade/descontinuidade a sua base. Se toda lista é contínua, isso acontece porque enumera, apre­senta as palavras em seqüência. Mas por não oferecer nexos sintá­ticos entre as palavras listadas, caracteriza-se também pela descontinuidade. Seus traços constitutivos são, portanto, parado­xais, como aponta ainda Goody, ao arrolar em um parágrafo as principais características de uma lista:

A lista aposta mais na descontinuidade do que na continuidade;

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ela depende de um lugar físico, de uma local; ela pode ser lida em diferentes direções, de cima para baixo, de baixo para cima, da esquerda para a direita e vice-versa; ela possui um começo bem marcado e um fim preciso, ou seja, uma margem, uma borda, como uma tira de pano. E o que é mais importante, ela estimula a ordenação dos itens de que se compõe, através de números, pelo som inicial, por categoria, etc. Além disso, a existência de margens, externas e internas, traz grande visibili­dade para as categorias, ao mesmo tempo em que as toma mais abstratas3•

Pode-se dizer que a lista, como dispositivo paradoxal, foi usada de diferentes formas por Drummond em A falta que ama (1968) -livro em que a poética do inventário (em todos os sentidos

apontados no início deste texto) se dá a ver de forma mais explícita.

Basta citarmos o poema "Bens e vária fortuna do padre Manuel Rodrigues, inconfidente'''' ,que apresenta uma espécie de assemblage de objetos, ou como disse José Guilherme Merquior, "um ready­made lírico tipicamente surreal-modernista", em que a listagem dos bens materiais de um clérigo ("inimigo da Rainha / a perpétuo degre­do condenado") mantém as coisas em um estado de concretude irô­nica, para não dizer inusitada, como se pode ver no fragmento de um dos dois inventários dos bens do padre inconfidente:

3 manustérgios 1 corporal 1 brinco com olhinhos de mosquito 2 sanguinhos 3 amitos 1 casaca de lemiste forrada de tafetá roxo 1 ângulo 3 tomos de Cartas de Ganganelli 2 chapinhas de ouro de pescocinho 4 manípulos 2 casulas 1 lacinho de prata com pedras amarelas 1 leito grande de pau preto torneado 1 mantelete 1 bacia grande que terá de peso meia arroba 1 dita pequena de urinar 1 tomo de Obras Poéticas de Garção ( ... ) (p.357)

'Idem,p .. 81.

"Todas as citações de poemas de Drununond foram extraídas de: ANDRADE, Carlos Drununond de. Poesia eprosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1988.

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'ARTIERES, Philippe. Arquivar a própria vida In: Arquivos pessoais. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro: Ed. FGV, vol. 11, n°. 21,1998, p.3. Disponível em: http://www.cpdoc.fgv.br/ revistaJarQ/234.pdf (última consulta: 30/03n006).

Sem dúvida, se o conjunto dos bens do padre diz algo de quem os possui, dado o sabido poder que as coisas têm de evocar nossas referências e gostos particulares, a seleção e a ordenação dos objetos na lista funcionam como formas de arquivamento da própria existência do "personagem", j á que, como apontou Philippe Artieres em suas reflexões sobre a constituição de arquivos parti­culares, "a escolha e a classificação dos acontecimentos determi­nam o sentido" que se deseja dar a uma vida.5 Por outro lado. a estranheza das palavras que nomeiam muitos dos objetos da lista acaba por funcionar como elemento de humor, capaz de abalar a função pragmática (ou burocrática) do inventário, inserindo-o na esfera da invenção.

Em muitos outros poemas de livros subseqüentes ao AJalta de ama, há inumeráveis listas de objetos, como a dos trastes "para não serem consertados" (tamborete, marquesa, catre, selins, ca­çambas, embornais, cangalhas, etc.) em um compartimento de uma loja fechada, no poema "Depósito"; o extenso rol de coisas (que vão de sedas ajornais e rondós parnasianos) que constitui o que o poeta chama, não sem certa ironia, de "Império Mineiro"; os arte­fatos que circundam e definem a "vidalvidinha" de uma solteiro­na; a lista das mais de cem namoradas mortas no poema "Retrolâmpago de amor visual"; além da série de selos de uma coleção (no poema "O prazer filatélico"), a qual é capaz de per­manecer apenas até que chegue ao colecionador "o tédio de pos­suir". Registre-se ainda o poema "Escaparate", de Boitempo (1968) no qual a relação de objetos dispostos sobre um armário sugere toda a atmosfera de doença que predomina no quarto antigo de alguém na iminência da morte:

Sobre o escaparate preto o vidro de óleo de rícino a caixinha de cápsulas o copo facetado e a colher inclinada. Sobre o escapara te o relógio de algibeira o bentinho vermelho e o terço da aflição a chama

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da vela de espermacete vigiando no castiçal de prata. Dentro do escaparate o ágate expectante do penico.

Em volta do escaparate a negra cólica da noite - Estou morrendo. (p.490-491)

No caso específico desse poema, o inventário de coisas atesta a vida (e também a morte) do sujeito que as possui ou a que elas se subordina, reiterando, por vias poéticas, aquilo que Jean Baudrillard afirmou a propósito dos objetos de uma coleção, ou seja, que os "distintos do modo como deles fazemos uso em um dado momento, representam algo muito mais profundamente re­lacionado à subjetividade 6. O que, inclusive, já havia sido, muito antes, atestado por Walter Benjamin em seu famoso ensaio sobre a arte de colecionar, ao mostrar que o colecionador é aquele que instaura "uma relação com as coisas que não põe em destaque o seu valor funcional ou utilitário, a sua serventia, mas as estuda e as ama como o palco, como o cenário de seu destino" 7. Creio ser esta a relação de Drummond com muitos dos objetos que ele ar­rola em sua poesia, como se estes tivessem a potencialidade de narrar uma vida, a qual também pode ser compreendida pelo uso ou desuso que se faz dela. E é nesse sentido que caberia aqui uma breve referência ao escritor francês Georges Perec, exímio "cole­cionador", para quem os objetos da vida cotidiana narram a histó­ria das pessoas e lhes servem de memória.

Afeito a verbetes de enciclopédia, levantamentos estatísti­cos, glossários, dentre outras modalidades c1assificatórias, Perec - que foi um dos mais ativos integrantes do grupo francês OULIPO (Ouvroir de Littérature Potentielle), surgido nos anos 60 -reinventou esses procedimentos em seus romances, a partir de critérios incomuns de ordenação. Além disso, desenvolveu uma instigante teorização não-convencional dos sistemas de classifica­ção no livro Penser/Classer, evidenciando "o quão tentador é o afã de distribuir o mundo inteiro segundo determinados códigos capazes de reger o conjunto dos fenômenos" 8, embora saibamos que "lamentavelmente não funciona, nunca funcionou, nunca fun­cionará". Ou seja, ele reconhece o fascínio do ato de classificar ao

6BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. Trad. Zulmira Ribeiro Tavares. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 94.

'BENJAMIN, Walter. Desem­pacotando minha biblioteca. Obras escolhidas 11 - Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 28.

• PEREC, Georges. Penser/ classer. Paris: Éditions du Seuil, 2003, p. 153.

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9 Idem, p. 190.

IOPEREC, Georges. A vida -modo de usar. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

IICf. MACIEL, Maria Esther. A memória das coisas: ensaios de literatura, cinema e artes plásticas. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004, p. 97-\09.

mesmo tempo em que proclama a instabilidade dos critérios classificatórios. Mas admitir tal instabilidade, segundo ele, "não impedirá que sigamos durante muito tempo classificando os ani­mais pelo seu número ímpar de dedos ou por seus chifres ocos" 9 .

E é a consciência desse paradoxo que o leva a adotar o humor e a ironia para subtrair da classificação suas funções utilitárias, liber­tando-a para usos imaginativos.

No romance Vida modo de usa rIo ,o escritor conta a vida de seus personagens a partir das coisas que os rodeiam, detalhando tudo o que define e compõe o prédio que habitam, além de se valer de vários recursos taxonômicos como base da narrativa. Cadeiras, armários, cabides, estantes, livros, cômodas, objetos de arte, relíquias, malas, latas, utensílios domésticos, produtos de lim­peza, dentre inúmeros outros artefatos que confirmam o triunfo da civilização da propriedade e do consumo, são exaustivamente listados e descritos por ele, compondo um inventário que - pelo excesso de ordem - acaba também por perder sua própria eficácia ordenadora diante da proliferação excessiva dos objetos e deta­lhes. Para o escritor, se, por um lado, a vida foi reduzida a manu­ais de instrução, as coisas, por outro, em seu poder de se integrar ao mundo humano, são capazes também de funcionar como regis­tro sólido e incontestável de nossa presença na terra. O que, como já foi dito, também se confirma na poesia de Drummond.

Aliás, a descrição de objetos cotidianos que constituem o espaço de uma casa ou de um edifício também se faz presente em vários poemas drummondianos, como já tive a oportunidade de mostrar em um ensaio de 2004"\1 . Sob esse prisma, vale a pena citar aqui o poema "Torre sem degraus", um poema em prosa que encerra o A falta que ama, totalmente estruturado enquanto uma sucessão de fragmentos enumerados, cada um correspondendo ao andar do prédio que nos é apresentado. Lembrando, ainda que obliquamente, o edifício de Perec, a torre infinita de Drummond funciona como um catálogo de objetos, pessoas, animais, aconte­cimentos, textos, documentos, dentre outras coisas, aparentemente organizado pelos caracteres numéricos. Entretanto, o absurdo que dele emerge acaba por arruinar' a ordem da enumeração, conver­tendo-a em uma espécie de "deri va aleatória", para usar aqui uma expressão de Flora Sussekind.

Classificar converte-se, assim, em uma forma paradoxal de

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o poeta burlar os próprios procedimentos legitimados de classifi­cação, já que para ele, se as coisas podem ser postas em ordem segundo certos princípios reconhecidos cientificamente, elas po­dem também deixar-se reger internamente por uma "ordem muda", movida por regras estranhas ou regra nenhuma.

É preciso desconfiar das classificações, ele parece...,-os di­zer. Sobretudo quando elas são colocadas a serviço do poder eco­nômico e político, como os classificados de jornais e pág:nas ama­relas, os recenseamentos, os anuários estatísticos e as fichas cadastrais. Isso se explicita em poemas como "Jornal de serviço­leitura em diagonal nas 'páginas amarelas' , composto de nove lis­tas de produtos à venda, sejam eles pessoas (a exemplo dos "peri­tos em exames de documentos ou em imposto de renda"), sejam doenças, condimentos, máquinas e fogos de artifício. Em "Recei­tuário sortido", é a vez das receitas médicas, com listas lúdicas e irônicas de remédios para os tensos, insones, píssicos e ansiosos do Brasil moderno. O tom pragmático, próprio dos boletins metereológicos e estatísticos, é o que predomina também em "Diamundo - 24h de informação na vida do jornaledor", em que são arrolados nomes e temperaturas de várias cidades do mundo, índices de poluição, anúncios imobiliários, indicadores econômi­cos, censos de casos de afogamento, previsões astrológicas, numa nítida alusão paródica aos clichês taxonômicos dos diários, bole­tins e informativos institucionais do mundo contemporâneo.

Inventariar aqui todos os poemas em que Drummond burla, com suas classificações paradoxalmente antitaxonômicas, os dis­cursos oficiais e os clichês do discurso burocrático-institucional seria um trabalho exaustivo. O fato é que ele, ao construir sua poética do inventário, não deixa de se inserir em uma instigante linhagem de escritores modernos/contemporâneos, como Borges, Calvino e Perec, que se valem dos sistemas de classificaçã%rde­nação para criarem seus próprios anti-sistemas, os quais desestabilizam a própria lógica ordenadora que os define. Uma linhagem na qual poderia se inserir também, em certa medida, o português Fernando Pessoa que, ao adotar ostensivamente em seus ensaios e contos esquemas de c,.tegorização científica, converte o excesso de ordenação no que Philip Blom chamaria de "caóticas conflagrações de curiosidades". 12 Para não falar nas listas heteróclitas que compõem os longos poemas de Álvaro de Cam-

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l' BLOM, Philipp. Ter e manter - urna história íntima de colecionadores e coleções. Trad. Berilo Vargas. Rio de Janeiro: Record, 2003, p.1 07.

13 PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1982, pp. 706-708.

pOS, que à feição da poesia de Walt Whitman, estariam naquela categoria definida por Leo Spitzer como enumeração caótica. Aliás, ao criar toda a sua constelação heteronímica, com descrições, de­marcações, mapas e classificações, não estaria Pessoa também criando um inventário dos outros de si mesmo?

No que se refere especificamente à sua prosa, é impressio­nante a proliferação de dispositivos classificatórios metodicamen­te ordenados em caracteres alfanuméricos e com divisões/subdi­visões em várias categorias. Em praticamente toda a sua teorização do Sensacionismo, esse aparente rigor na formulação dos pressu­postos estéticos do movimento se impõe, como que dando um revestimento científico, racional, a idéias e dizeres muitas vezes insólitos e paradoxais. O que se repete de forma mais explícita no Heróstrato, um verdadeiro tratado sobre a celebridade, o talento e o gênio, cheio de tipologias, divisões e tripartições que, pelo acúmulo, acabam por beirar a desordem, como, por exemplo, a classificação que ele faz dos homens célebres, considerando os tipos frustrados e os tipos imperfeitos. Mas é no interessantíssimo fragmento "Um paranóico com juízo" 13, tido como um texto pre­paratório da "novela policiária" O caso Vargas, que o rigor exces­sivo das categorizações é levado aos limites (ou deslimites) do llOllsense. Com o propósito de descrever e analisar a patologia de um criminoso, Pessoa constrói o retrato de um assassino, com base em uma detalhada pesquisa taxonômica do comportamento humano, que inclui:

"(1) Tipo de inibição: a) receio (não), b) moral (não), (c) fra­queza de vontade (sim). (2) Fraqueza de vontade: (a) da vonta­de impulso (sim), (b) da vontade de inibição (não), (c) da von­tade de coordenação (não) - disposição às avessas destas (isto é, b, c, a). (3) Fraqueza da vontade do impulso de fraqueza: (a) por debilidade mórbida, como no idiota ( ... ) (b) por debilidade constitucional, como no vadio ... (c) por excesso de atividade mental. ( ... )" (p. 706-707)

As subdivisões se seguem vertiginosamente, apresentando modelos de "atividade mental que produz a falta de vontade de impulso", tipos gerais de concentração, tipos de concentração emotiva, de emoção repulsiva, de emoção defensiva, etc., até che­gar a uma espécie de emoção que "tem o temperamento paranói-

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co no fundo com o ocasional na superfície". 14 E o narrador expli­ca esta última categoria como "um paranóico inteiramente lúcido, isto é, tem todos os característicos da paranóia, menos o delírio central, que de fato constitui a paranóia." E, entre parênteses, acres­centa: "(Se me é permitido usar de um paradoxo, direi, em con­clusão desta série de raciocínios, que o autor deste crime é um paranóico com juízo)" .15 Os limites desse texto inclassificável -que aparece como um "conto de raciocínio", mas prescinde de um enredo e se furta às demarcações do gênero narrativo - se cir­cunscrevem unicamente a essa classificação inusitada, a qual aca­ba por instaurar o caos dentro da própria ordenação que a define. Em decorrência da proliferação dos detalhes e subdivisões, as pró­prias categorias científicas (ou falsamente científicas) perdem a eficácia enquanto procedimento taxonômico e revelam sua inevi­tável arbitrariedade. Assim, movido pelo "demônio da classifica­ção", Pessoa opta por categorias que se sucedem, mas sem que delas o leitor deduza com claridade nenhuma idéia de sistema. É nesse sentido que, em oblíqua convergência com a poética drummondiana do inventário, Pessoa atesta ironicamente o dizer de Walter Benjamin, segundo o qual "toda ordem é uma situação oscilante à beira do precipício" 16. Ou - poderíamos acrescentar, parafraseando Perec - que a ordem e a desordem, em seus limites, não deixam de ser duas palavras que designam por igualo acaso.

14 Idem, p. 708.

!5 Idem, p. 708.

16 BENJAMIN, Walter. Desem­pacotando minha biblioteca. Obras escolhidas II - Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 28.

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• Esse artigo faz parte da pesquisa de pós-doutorado financiada pela Capes em 2003/ 2004.

I Como não há, em Português, um correspondente para "heritage film", o termo será conservado no original inglês. A palavra "heritage", entre­tanto, está sendo traduzida, no texto, por "patrimônio".

2 Um objeto, costume ou qua­lidade que perdura por muitos anos dentro de uma nação, grupo social, ou família, considerado importante e de valor, e pertencente a todos os membros.

3Existe uma organização britânica, a "National Heritage", cuja responsa-bilidade é destinar recursos da National Heritage Memorial Fund aos museus e outras instituições, com o fim de ajudá-los a adquirir obras de arte e edificações de interesse histórico, ou conservá-los em boas condições. O dinheiro usado vem da Loteria Nacional do Reino Unido.

Lendo e re-escrevendo o passado: Shakespeare apaixonado*

Tha"IS Flores Nogueira Diniz (UFMG)

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Esse trabalho visa estudar as relações entre o filme de John Madden, Shakespeare in Love - traduzido no Brasil por Shakespeare Apaixonado - e o passado histórico da Inglaterra, o que o caracteriza como um "heritage film"l ,

Segundo o Longman Dictionary of English Language and Culfure, o termo" heritage" significa "an object, cus tom or quality which is passed down over many years within a nation, social group, or family, and is thought of as something valuable and important which belongs to all its members"2, De acordo com essa defini­ção, qualquer coisa estaria situada dentro do conceito de "heritage", Em 1983, quando o contexto deixava implícito que o que se que­ria preservar eram monumentos, grupos de construções e locais de valor universal, importantes do ponto de vista da História, da Arte ou da Ciência, uma outra conceituação, proposta pela First National Heritage Conference, estabeleceu que o termo deveria referir-se ao que a geração passada preservou e transferiu para a nossa geração do presente, e que um grupo significativo da popu­lação deseja transmitir para a do futuro. A partir de então, o termo ganhou reconhecimento oficial, sendo a criação de duas entidades - a Historic Buildings and Monuments Commissionfor England ou "English Heritage" e a National Heritage Memorial Fund -exemplo concreto desse reconheciment0 3 •

O que se vem preservando para as gerações posteriores tor­nou-se um dos objetos de interesse da sociedade moderna. Gasta­se muito tempo hoje olhando para trás, na tentativa de recapturar o passado, muitas vezes considerado superior ao caótico mundo atual. Esse interesse, uma espécie de nostalgia, deu origem ao

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desenvolvimento da "heritage industry", ou "indústria do patrimônio histórico", cuja atividade, que vem se tornando lucra­tiva desde os anos 70, propiciou a multiplicação dos museus, a popularização dos "Centros de Tradição" em locais históricos, o entusiasmo crescente pela recuperação de velhas máquinas, e um aumento visível das visitas anualmente realizadas a abadias, man­sões e re-construções do passado. Sua posterior adoção pelo tu­rismo e lazer serviu como um meio de renovação e valorização das atrações turísticas.

O objetivo do estudo da "heritage" é investigar a maneira pela qual o passado está sendo usado, apropriado e consumido na cultura contemporânea. Sua abrangência vai desde os desenhos animados do Pato Donald, as expectativas dos visitantes de mu­seus, a representação da "Englishness" nas eleições de 1996, até a formação da identidade nacional e a preocupação com o currículo das escolas. Entre as inúmeras iniciativas tomadas na Inglaterra para esse fim, estão a reconstrução do teatro The Globe, em local próximo ao seu lugar de origem, e o projeto de reconstrução do The Rose. Algumas outras, menos visíveis, se resumem na mu­dança de enfoque das obras de arte, entre elas, os filmes.

O cinema inglês nas duas últimas décadas se concentrou numa espécie de cinema baseado no filme de costumes, compro­metido com a maneira como a herança e a identidade da Inglater­ra, ou a chamada "Englishness", deve ser compreendida. Esses filmes, encenados no passado, em reconstruções de período deta­lhadas e visualmente espetaculares, contam a história da vida e do passado da Inglaterra (HIGSON, 2003, p. 1). Nos anos 80 e 90, diferenciados pelo assunto, fonte, pessoal de produção e elenco, e com ênfase na identidade cultural nacional, foram rotulados de "heritage films". O termo emergiu, pois, num contexto cultural particular recente para servir a um propósito especial: a mercantilização do passado, produto de uma economia que veio a se denominar "indústria do patrimônio histórico".

Segundo estudiosos, o termo "heritage film" refere-se ao cinema de costumes, produzido nos últimos 20 anos, baseado em clássicos populares, inclusive Shakespeare. Mesmo não sendo originários de obras literárias, os filmes assim denominados re­correm a uma herança cultural popular que inclui figuras e mo­mentos históricos, e também música e pintura. Normalmente pro-

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4Veraesserespeito: HIGSON, 2003; MONK, 2002.

'Ver bibliografia adequada: HIGSON, 2003; MONK, 1995; MONK, 2002; VINCENDEAU, 200 1; MURPHY, 2000.

duzidos com orçamento elevado, por diretores famosos que usam no elenco astros também famosos, apresentam trabalho elabora­do de câmara e iluminação e recorrem a muitas mudanças de ce­nário, a design de interior bem pesquisado, e à música clássica ou nela inspirada. A mise-en-scene abundante expõe a burguesia ou aristocracia. Para Vincendeau (2001), esse tipo de filme não cons­titui propriamente um gênero. Exceto pela presença de vestuário da época, não se define por uma iconografia unificada, nem por um tipo definido de narrativa ou de efeito, podendo incluir ele­mentos de outros gêneros como comédias, números musicais e características góticas ou de romance. Apesar dessa variedade, "heritage film" se transformou em um termo crítico que tem des­pertado debates importantes4 •

Com base na definição provisória acima, compilada a partir de trabalhos de alguns estudiosos5 , pode-se classificar o filme de John Madden como um "heritage film" por várias razões. Primei­ro, porque retoma, em versão mais moderna, o estilo dos filmes de época, revigorando-o e procurando atrair novas audiências. Segundo, porque, em vez de simplesmente investigar o passado, tem como objetivo principal celebrá-lo. Finalmente, porque o fil­me está recheado de alusões visuais e textuais, ao descrever as­pectos da era elizabetana, particularmente o teatro, com seu per­sonagem principal, Will/William Shakespeare.

No filme, são usadas várias estratégias para retomar o pas­sado, entre elas, a reconstrução do cenário, as citações a obras anteriores, a atualização de figuras históricas e, principalmente, a referência aos mitos em tomo da figura do dramaturgo.

O cenário do filme permite aos espectadores uma reconstituição impressionante da cidade no século XVII, especifi­camente da margem do Tâmisa, com seus teatros e habitantes. Os produtores descartaram a filmagem em Stratford-upon-Avon e construíram sua versão da Londres de 1593, num jardim ao fundo dos estúdios. Os cento e quinze homens que trabalharam na cons­trução do cenário levaram oito semanas para edificar os dezessete prédios, incluindo dois teatros, um bordel, uma taverna, uma pra­ça e o sótão onde vivia Shakespeare. São realmente esplêndidas essas réplicas de ruas, estalagens e teatros que recapturam, de maneira bastante viva, o alvoroço da Londres de Shakespeare. Outros locais onde as filmagens aconteceram foram o Broughton

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Castle em Oxford, para a mansão de Viola, o Hatfield House, para o Palácio de Greenwich e o Great Hall, em Middle Temple, para o Banqueting Hall, em Whitehall. Por outro lado, as cenas no Tâmisa foram todas filmadas no próprio rio, e a praia, onde Viola consegue chegar sobrevivendo ao naufrágio, ao fim do fil­me, é a de Holkham, em Norfolk6 • Assim, construções e locais de valor universal importante do ponto de vista da História foram convincentemente usados na modernização dos fatos.

A segunda estratégia para a retomada do passado é a alusão a obras anteriores. Para realizá-la, Madden estiliza várias cenas, apropriando-se de aspectos de coreografia, cenário e interpreta­ções de filmes anteriores. A citação do filme de Laurence Olivier, Henry V (1944), se dá quando uma tomada panorâmica nos leva até os detalhes do teatro, que vão surgindo gradualmente, fazen­do-nos reconhecer o The Rose, teatro irmão do The Globe. Entre as cenas do filme de Franco Zeffirelli, Romeu e Julieta, (1968), a escolhida foi a do memorável salão de baile, onde os jovens se encontram pela primeira vez. Porém a mais efetiva é a que dá início ao filme de Trevor Nunn, Twelfth Night, (1996), que retrata o naufrágio do navio a caminho do Novo Mundo, cena inserida ao final de Shakespeare Apaixonado. Ela sugere que a continuidade da verdadeira história do casal de amantes se encontra na comédia Twelfth Night, que Will, a mando da Rainha e na tentativa de tor­nar Viola imortal, se propõe a escrever. "Você jamais envelhecerá para mim, nem murchará, nem morrerá (Norman 150)" diz Will 'a amada, antes de se despedirem. "Escreva-me bem", (NORMAN, 1999, p. 151) responde Viola, chorosa. Nesses exemplos, o ato de metanarração lembra ao espectador o lugar que a obra de Madden ocupa na tradição fílmica, "criando nele um senso de prazer irôni­co, pela redução da distância entre a audiência e o texto". (DA VIS , 2004, p. 156) O mesmo prazer é causado por outras imagens, alusões textuais de natureza visual. A audiência não pode deixar de pensar, por exemplo, nos fantasmas de Macbeth e Hamlet, quando Lord Wessex, na catedral, vê o que ele pensa ser o espec­tro de Christopher Marlowe. Do mesmo modo, o episódio em que Richard Burbage é atingido por uma caveira, durante a briga no teatro, leva o espectador a recordar-se do monólogo "Alas, Poor Yorick", de Hamlet7 .

Além dessas imagens, linhas de diversas peças - Hamlet,

6ANONYMOUS. In: Heat, 1999, p. 10-11.

7Yer a esse respeito: GRAHAM, 1999.

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Lendo e re-escrevendo o passado: Shakespeare apaixonado

'Para um estudo sobre todas as citações a obras de Shakespeare no filme, ver: ALBERGE, 1999 e também KLETI, 200 I

9 Para um estudo dessa passagem no filme, ver: ROTHWELL,1999.

Antônio e Cleópatra, Romeu e Julieta - e alusões a seus persona­gens são incorporadas, em contexto bem diverso ao de origem, como convém a uma obra pós-modernista que abdica da respon­sabilidade tradicional de diferenciar os níveis de culturas e textos. Temos "a plague of both your houses", palavras de Mercutio, na boca do pregador, referindo-se, não às casas Montechio e Capuletto, como em Romeu e Julieta, mas aos dois teatros, Rose e Curta in. Outras, ainda fora de contexto, merecem ser mencio­nadas: "To be in love, where scorn .... nights (L i)" e "What light is light... ofperfection (IH, i)", ambos de Two Gentlemen ofVerona; "Doubt the stars are fire, doubt that the sun move" e "Words, words, words", ambos de Hamlet (H, ii), e "Give me to drink mandrágora", de Anthony and Cleopatra8 •

Entretanto, sobressaem e assumem papel crucial no filme o "Soneto 18" e alguns trechos inteiros de Romeu e Julieta. Embo­ra Shakespeare tenha dedicado o referido soneto ao seu patrono, no filme, Will o dedica a Viola. Sua inclusão determina o tema do filme: os amantes, mesmo obrigados a se separar pelo casamento de conveniência, permanecerão inseparáveis para sempre, miste­riosamente unidos, através do milagre da arte9 •

So long as men can breathe, or eyes can see, So long lives this, and this gives life to thee. ("Sonnet 18", 13-14)

Os trechos de Romeu e Julieta, incorporados às falas dos personagens do filme/atores da peça, fluem em dois níveis dife­rentes, o real (diegético) do filme, e o literário, da peça que está sendo ensaiada/encenada. De acordo com o filme, a peça Romeu e Julieta tomou sua forma final graças à Musa de Will, a jovem e nobre Viola, amante devotada do teatro, que trabalha em cena e atrás dela, dando origem a uma verdadeira comédia existencial surgida dessa interação entre a "vida real" - dos personagens do filme - e a emocional- dos personagens da peça que Shakespeare vai criando. Quando Will e Viola encenam Romeu e Julieta no palco, estão apenas consumando, em termos estéticos, o que vêm fazendo já há algum tempo no quarto. É como se Will traduzisse para o palco do The Rose o love affair que acontece na vida real, e alimentasse, no palco, o amor que ele sabe impossível. O roteiro

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se vale da montagem, ao intercalar, durante as falas, cenas da vida e do ensaio, sugerindo a relação entre o amor arrebatador e a criação artística. Assim composto, o script se beneficia da estraté­gia pós-moderna de citação e pastiche em alusões textuais e visu­ais que emprestam ao filme uma sensação de déjà-vu, que apela para o desejo da audiência pelo reconhecimento cultural.

Trazer para o presente fatos e figuras históricas, a terceira forma pela qual o filme tenta recapturar o passado, pode ser ob­servada logo na seqüência inicial, quando uma tomada panorâmi­ca vai até o interior do teatro. Após exibir os detalhes da réplica­o telhado de palha, as galerias com os assentos para os espectado­res abastados, o palco com suas portas para os bastidores, os al­çapões, os dois pilares de suporte do telhado do palco, e o chão empoeirado da arena - a câmara focaliza finalmente um cartaz impresso, já rasgado e manchado, onde se lê:

7 &8 de setembro ao meio dia O sr. Edward Alleyn e o grupo Admiral's Men No Teatro The Rose, Bankside A Lamentável Tragédia do Agiota Vingado (NORMAN, 1999, p.7)

Essa introdução funciona quase como parte de um workshoplO sobre o teatro elizabetano, referindo-se ao horário dos IOA idéia de "workshop" apa­

espetáculos, à localização dos teatros e a um deles especificamen- rece no artigo de Mary Murphy.

te, a um grupo de teatro e a um de seus atores mais famosos. A essa tomada se segue uma outra, onde a câmara, em movimento rápido através do palco, chega aos bastidores, onde o dono do teatro, Henslowe, está sendo torturado, É como se fosse uma con-tinuação da "oficina" de teatro, quando os espectadores são infor-mados sobre os preços cobrados. No desenrolar do filme, outras figuras e fatos da época elizabetana ainda são indiretamente apre-sentados: Burbage, o ator famoso, Chamberlain, o outro grupo de teatro, o modo de composição em equipe, sugerido pelo papel de Christopher Marlowe e da própria Viola, a proibição para mu-lheres se apresentarem no palco, origem de muito do humor no filme, o fechamento dos teatros por causa da peste e outros. Esses sugerem, a princípio, que o filme seja realmente baseado em fatos históricos. Entretanto, quando o personagem Will que encarna William Shakespeare é apresentado, vestindo umajaqueta de couro,

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"Segundo dados históricos, a colônia da Virgínia, assim nomeada em alusão à rainha Elizabeth, foi fundada em 1607, por John Smith.

11 Para uma atualização sobre o estado das pesquisas sobre Shakespeare, consulte MC­DONALD,2001.

13 Em um de seus artigos, Groatsworth of Wit,Greene exortava seus contemporâneos, Marlowe, Lodge e Peele a parar de escrever para os atores, e estendia sua crítica a Shakespeare, acusando-o de pavão vaidoso e plagiador.

l4Em seu livro, Pierre Pelllliless, his supplicatioll to the Devil, Nash faz referência a Talhot, o heróideHenryVJ.

tentando soletrar seu nome, jogando papéis amassados na cesta de lixo e desenhando o título do filme, percebemos algo ahistórico, o que é confirmado pelo close-up numa caneca com a inscrição: "Lembrança de Stratford-upon-Avon". Assim, apesar de tratar de fatos históricos, o filme também apresenta incorreções e incon­gruências, numa mistura de fato e ficção, como convém a uma obra pós-moderna. Como exemplos de incorreções e anacronis­mos, citamos o "psicanalista" estilizado, Dr. Moth, "consultando" Will; o barqueiro que se diz escritor; o garçon do bar, anunciando o prato do dia, totalmente contemporâneo, "pé de porco tempera­do com vinagre de zimbro, servido com uma panqueca de trigo sarraceno" e o fato de o pretendente à mão de Viola ter planta­ções de fumo na Virgínia, antes mesmo que a colônia na América tenha sido fundada 11 •

Quando consideramos a simultaneidade desses dois aspec­tos-minúcia no tratamento dos fatos históricos e anacronismos­fica claro que o filme estabelece uma relação dialética original entre passado e presente, relação recorrente ao longo do filme, mas principalmente na referência que faz à biografia de William Shakespeare e aos mitos que circundam sua existência.

O dramaturgo nasceu em Stratford em 1564. A construção, em estilo Tudor, apontada como o lugar de seu nascimento, foi comprada pelo pai e legada ao filho. Hoje, recuperada para servir à "indústria do patrimônio histórico" e constituindo um emblema para os problemas da biografia de Shakespeare, ainda permanece em Halley Street aberta à visitação. A maioria das pesquisas apon­ta que Shakespeare viveu em Stratford até 1585. Não existem relatos sobre os sete anos que se seguiram, até sua chegada a Londres por volta de 1592, quando os teatros públicos estavam começando a florescer. É possível que, nesse intervalo, ele se te­nha juntado a um grupo de atores que percorria as províncias e assim tenha aberto seu caminho para o mundo do teatro centrado em Londres l2 • A partir de 1592, sua presença é registrada numa cena de teatro em Londres, o que indica ter ele estado ativo por algum tempo. Além disso, algumas poucas provas de sua atuação estão contidas no ataque a Shakespeare em um folhetim dessa data, pelo famoso escritor Robert Greenel3 , e também na referên­cia ao herói da peça Henrique VI, feita pelo dramaturgo e panfletário Thomas Nashe l4 • Essa escassez de registros, por sua

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vez, incentivou a criação de mitos em torno da figura de William Shakespeare como escritor e como homem. Estimulado pela qua­se total ausência de dados biográficos relacionados a esse período denominado "the lost years", o cineasta/roteirista ficou seduzido pela esfera da invenção e deu asas à imaginação, permitindo um tratamento livre aos mitos, sem ferir a autenticidade histórica. Entre os mitos a que alude o filme, destacam-se o mistério de sua sexu­alidade e a controvérsia sobre a autoria das obras 15.

O mistério sobre a sexualidade de Shakespeare é um dos principais mitos que rondam a figura do dramaturgo. Entre suas obras, apenas os sonetos sugerem detalhes amorosos e sexuais, que podem ser interpretados como referências a sua vida pesso­a1 16 • Logo aços o fechamento dos teatros devido à peste, os poe­mas Venus and Adonis e The Rape oi Lucrece, dedicados ao con­de de Southampton, patrono de Shakespeare, foram publicados. A lenda diz que o conde recompensou-o com 1.000 libras. A natu­reza do relacionamento entre o poeta e o patrono não é muito clara. Porém, qualquer que sejam os termos da ligação, esse fato dá um colorido aos mitos sobre a sexualidade de Shakespeare. A seqüência dos 154 sonetos, segundo historiadores, se divide em dois grupos, de 1 a 126 e de 127 em diante. Nos últimos sonetos, a voz poética confessa sua paixão por uma jovem infiel, a Dark Lady, cuja identidade permanece envolta em mistério. A primeira série, porém, é dedicada a um jovem, que alguns estudiosos iden­tificam com o Conde de Southampton. Se ele não for o jovem desses sonetos, quem seria? Existem controvérsias acerca desse assunto e questões relacionadas são acompanhadas por outras, sobre a ordem dos poemas, as circunstâncias da publicação, as tendências sexuais do poeta e, sobretudo, a especulação a respei­to da narrativa: a seqüência representaria poeticamente as experi­ências vividas por pessoas reais?

O tema da sexualidade de Shakespeare tornou-se tabu a ponto de estudiosos tentarem escondê-lo. Em seu artigo, Margreta De Grazia explora esse tema mostrando as adulterações feitas nos sonetos para "por um fim a esse segredo, alterando o sexo da pessoa amada e assim convertendo uma paixão homossexual ig­nominiosa em uma paixão respeitável heterossexual, mesmo que adúltera (36)".

O filme também participa da tradição de enterrar o "segre-

" Para uma referência aos outros mitos que rondam a figura do dramaturgo, ver: ROSENTHAL,1999.

16 Algumas peças contêm detalhes amorosos que, entre­tanto, não podem ser tomados como referências à vida pessoal do escritor.

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do de Shakespeare", mudando o destinatário do Soneto 18. No filme, esse destinatário é Viola e não o jovem a quem, na verdade, ele foi dedicado. Embora Viola esteja vestida de homem no mo­mento em que lê o poema, o filme deixa ambígüa a possibilidade de homossexualidade do poeta, ao retratá-lo como umjovem co­mum, perdidamente apaixonado pela linda e rica Viola De Lesseps. Assim, apesar de algumas alusões a esse mistério, como a atração de Will por Thomas Kent - Viola disfarçada - que culmina com um beijo no barco, o amor retratado no filme se assemelha ao manifestado nos últimos sonetos, permitindo assim que a ambi­güidade, parte do charme do filme, persista.

As narrativas míticas que se acumularam através dos sécu­los levaram muitos a descartar os fatos que os pesquisadores esta­beleceram sobre a vida de Shakespeare em Londres e Stratford. Embora não se saiba muito sobre o homem, o que se conhece sobre a obra torna convincente a história do filho de Warwick que vai para Londres quando jovem e encontra seu caminho no mun­do teatral, encenando, escrevendo e produzindo peças e poemas que capturaram a imaginação do mundo. Assim, ao acreditar nas narrativas coloridas e sentimentais que se referem aos anos que se seguiram à sua morte- que ele fazia discursos inflamados, que deixou Stratford fugido, que começou a trabalhar em Londres cuidando de cavalos e só mais tarde se juntou à companhia de teatro e se tornou seu principal dramaturgo-é possível dar uma face humana e celebrar a figura desse autor oriundo de uma cultu­ra e um passado distantes. Porém dois fatos recentes entram em consideração quando discutimos a questão da autoria. Primeiro, um volume, que merece ser examinado quanto à legitimidade, publicado pelos que propõem que o Conde of Oxford seja o autor da obra de Shakespeare. Segundo, a reformulação recente do con­ceito de autoria, que nos lembra, a todo momento, que as obras de arte são produtos não do gênio de escritores individuais mas da cultura que produziu esse escritor.

Embora não se negue a existência de Shakespeare em seu papel como ator, questiona-se seu papel como escritor. Será que aquele homem do povo, com pouca instrução, seria capaz de pro­duzir os textos que ele produziu? O argumento usado é que seria necessário alguém com cultura universitária para escrever as obras que tratavam do abuso do poder real, da hipocrisia política, da

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vaidade da Corte, da loucura dos monarcas e até de regicídio. Esse questionamento preconceituoso resultou na proposição de candidatos mais adequados para figurar como autores das obras que lhe são tradicionalmente atribuídas. Muitos nomes foram co­gitados, desde Christopher Marlowe até a própria Rainha Elizabeth, porém Francis Bacon e Edward de Vere, o conde de Oxford, são os favoritos. O que eles têm em comum é serem ambos aristocra­tas e, conseqüentemente, mais cultos. O mito diz que o Conde Oxford, por ser um aristocrata, não permitia que seu nome apare­cesse à frente do teatro popular e que Shakespeare teria sido seu "testa de ferro". Porém, assim como há argumentos em favor de Oxford como autor, outros negam essa autoria. O principal deles é sua morte ocorrida em 1604, anterior à produção de Macbeth e de The Tempest, escritas respectivamente em 1606 e 1611 e cujos en­redos dependem de eventos ocorridos também depois da sua mor­te: a invenção da pólvora (1605) e a circulação de panfletos sobre o Novo Mundo (1610). Quanto a Francis Bacon, escolhido no século XIX como o "verdadeiro" autor das obras, apesar da fundação de um jornal onde as obras eram meticulosamente estudadas com o fim de se encontrar pistas secretas que levariam a origem das peças a Bacon, não se chegou a uma conclusão convincente. Essa discus­são ainda se encontra inconclusa nos meios acadêmicos.

O acontecimento que alimentou ainda mais essa questão foi a reviravolta sobre o conceito de autoria, ocorrida nas últimas três décadas, que trouxe mudanças na teoria e na crítica, afetando o estudo da literatura. A imagem romântica do artista como um gênio individual e transcendente foi substituída por um modelo de autoria mais amplo, baseado na cultura. Tem-se dado muita aten­ção às filiações institucionais e sociais do escritor, com o objetivo de identificar as condições e detalhes de sua participação numa comunidade discursiva. Sob essa nova luz, produções literárias de um autor como Shakespeare, por exemplo, são vistas como con­dicionadas e determinadas pelas ações das forças históricas e so­ciais, o que descarta as noções simplistas de autoria e de respon­sabilidade artística. No passado, os estudiosos tentavam identifi­car os livros que o escritor teria lido ou os debates de que teria participado. Hoje descarta-se a noção de influência artística e con­sidera-se, juntamente com as teorias relativas à re-escrita embuti­da em todos os textos, que são as figuras políticas e as práticas

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sociais específicas que contribuem para a criação do texto literá­rio, mesmo quando essa relação não seja evidente. Essa é a análi­se que faz o "New Historicism". Essa corrente crítica procura en­contrar a reciprocidade entre o campo cultural e o artefato literário. Nesse sentido, tenta investigar como o texto dramático trabalha para transformar a cultura que o produz, insistindo na dispersão da responsabilidade pela criação da obra de arte. O autor toma-se um canal para o fluxo das forças culturais. Essa evanescência da agên­cia individual coincide com uma verdade sobre o teatro: a sua natu­reza colaborativa, princípio pertinente a muitas áreas artísticas, cujo produto final resulta de um processo que envolve escritores, copistas, atores, censores, audiência e até a imprensa.

O filme participa também desse debate na medida em que apresenta a peça que está sendo escrita como um trabalho colaborativo. É Christopher Marlowe que, numa conversa de bar, dá suporte ao argumento de que foi ele o autor da maioria das peças, sugerindo o tema: "Romeu é ... italiano. Sempre se apaixo­nando ( ... ) Até que ele conhece a filha do seu inimigo. Seu melhor amigo morre em duelo com um irmão ou parente de Ethel" (NORMAN, 1999, p. 36). A cena sugere ainda que os dramatur­gos auxiliavam e criticavam as obras uns dos outros, num verda­deiro trabalho de equipe. Ned Alleyn, o ator, propõe a inserção de uma nova cena, entre o casamento e a morte de Julieta. Nesses e em vários outros momentos do filme, o processo colaborativo de criação é ilustrado e implicitamente defendido. Mas o filme partici­pa ainda da idéia de um autor evanescente. Quando Will começa a escrever a cena da sacada, suas linhas são declamadas em voice­over enquanto somos transportados alternadamente para o quarto de Viola e para o palco, durante o ensaio.O modo como essas cenas se fundem sugere a indefinição dos limites entre a arte e a vida. Para o casal, as linhas vão adquirindo um sentido duplo, à medida que o poeta escreve a história de ambos. Assim como Romeu e Julieta, Will e Viola estão condenados a se separar tragicamente, o que é pré-figurado quando Viola, ao ler as linhas de Romeu, ao fim da seqüência da montagem, reconhece tristemente:

Receio que ... Por ser noite, tudo isso não passe de um sonho. É bom demais para ser verdade. (NORMAN, 1999, p. 87)

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Diferentemente da maioria dos filmes denominados filmes de Shakespeare, que prioritariamente traduzem para o meio cine­matográfico o texto das peças, o filme de John Madden tenta ser uma biografia dos "anos perdidos" da vida do dramaturgo, à qual são acrescentados elementos de imaginação e invenção para a for­ma em que se dá o processo de criação artística durante esses anos. Mas, a despeito de contemplar essa visão romântica, o filme sutilmente volta-se para a questão contemporânea de que todo texto é produto de um processo complexo de criação, realização e transmissão, mesmo que exista um autor solitário escrevendo. Na realidade hoje conta menos quem escreveu as peças do que o fato de que essas foram escritas e são admiradas.

Seguindo a tendência que imprimiu uma mudança nos fil­mes históricos, tornando-os parte da "indústria do patrimônio his­tórico", Shakespeare Apaixonado também tentou criativamente re-escrever o passado, usando, nessa escrita, os artifícios de intertextualidade e de pastiche, com o objetivo de criar novas for­mas de história para contar a história não conhecida do "homem do milênio".

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Luuondo, 40 anos: a força ds palavras mais velhas

Laura Cavalcante Padilha (UFF)

Ler Luuanda, para mim, significa realizar um exercício de prazer e gozo. Sempre que retomo esta obra de José Luandino Vieira, não posso conter uma espécie de assalto inte­rior pleno de emoção e arrebatamento. Por outro lado, meu imaginário leitor acaba, também sempre, por entrecruzar Luandino e Barthes, dois autores que, a meu ver, sabem, como poucos, organizar linguajeiramente a festa de prazer do texto. Em tal festa, no caso específico do ficcionista angolano, as palavras, as frases, o trabalho discursivo, para além do relato, são os principais convidados. Vale a pena citar textualmente, já agora, o misto de poeta e ensaísta francês, que é Barthes, para dizer que, com Luuanda, "corro, salto, ergo a cabeça, torno a mergulhar" (1977, p. 19). Nasce daíum impasse fundante: o que escrever, se tudo se faz, nessa minha leitura tão "colada", um ato de puro gozo e prazer estético? Nada que penso ou digo parece servir. O texto não se deixa prender; escapa como ser­pente esperta que resiste a qualquer investida de captura. Assim, vou tentar sair do impasse, correndo atrás da cobra, sempre mais rápida do que eu, procurando, nessa quase caçada, depreender um pouco das cores de Luuanda, seus sinais, sua "significância", enfim (BARTHES, idem).

Em princípio, para comemorar os quarenta anos da publi­cação da obra, embora com certo atraso, creio ser pertinente lembrar ter sido LUllanda publicada em 1964 em Angola, rece­bendo, então, o Prêmio Mota Veiga na então colônia. Também em Portugal, em 15 de maio de 1965, é atribuído à obra o Gran­de Prêmio de Novelística pela Sociedade Portuguesa de Escri-

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tores, prêmio este retirado quando se conhece a identidade da­quele que se assinava Luandino Vieira. No dizer de Manuel Ferreira, então "se inicia a montagem da gigantesca encenação político-repressiva que vai desenvolver-se, em todas as frentes, contra a atribuição do Prêmio e a Sociedade Portuguesa de Escri­tores." (1980, p. 112). Como sabemos, a Sociedade é dissolvida em 21 de maio do mesmo ano, por ato do Ministro da Educação do governo fascista português.

Luuanda, desde sua aparição, em 1964, representa uma rup­tura na série literária angolana, primeiramente, no que concerne à espacialidade física e simbólica nela figurada, ou seja, a da cidade de Luanda. Tal cidade deixa de ser um espaço colonial branco, para transformar-se em um lugar angolano por excelência, como tão bem analisa Tania Macêdo. Sua areia vermelha se faz metonímia explícita do sangue da própria terra que em suas veias geográficas corre, de modo mais rápido e tenso, nesse momento político em que, citando Macêdo, "a colônia começa a tornar-se sujeito de sua história" (2002, 70).

De outra parte, a ruptura também - ou sobretudo - se dá no universo discursivo, quando, com grande senso de seu ofício ar­tístico, Luandino cria um texto que - se se faz uma abordagem de leitura mais ligeira - parece muito simples, em termos de expres­são lingüística, mas, na verdade, representa um produto literário altamente sofisticado, em termos de elaboração estética. Por tal exercício discursivo, a territorialidade física da cidade amada se transmuta em uma territorialidade humana por excelência. De novo, recorro a Barthes para melhor explicitar que os três contos da obra criam, no leitor, um efeito de fruição estética que "faz vacilar [suas] bases históricas, culturais, psicológicas [ ... ], a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem." (1977, p. 22)

O presente gesto de leitura, partindo desses pressupostos, se debruçará sobre os caminhos imagísticos e discursivos de Luuanda tentando pensar, de um lado, a questão espacial e, de outro, a estética.

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Luuanda 40 anos: a força das palavras mais velhas

1. Uma cidade e a resistência do fio da vida

Desde o século dezenove, o imaginário de alguns autores buscou os locais não urbanos como uma forma de reforço identitário. Pela projeção ficcional desses locais, os produtores artísticos procuraram resgatar a força simbólica dos modos de vida autojustificativos do sujeito etno-cultural e sócio-histórico angolano, contrapondo-os aos do sujeito metropolitano, tanto ét­nica, quanto sócio-culturalmente.

Há um missosso recuperado por Óscar Ribas, "Quimalauezo" (1961, v.1, p. 41-64), bastante revelador do sentido desse jogo espacial. Nele, Lau, o protagonista, filho de um soba, é obrigado a ir para Luanda por determinação do governador europeu, en­cantado com sua beleza. Todas as ações subseqüentes se originam nessa mudança forçada da personagem para o espaço do outro no qual recebe novo tipo de educação, sem jamais, contudo, esque­cer suas ancestrais tradições, como revela sua volta ao "Sobado dos Estéreis". Esse conhecimento e a força da ficção oral, a que Lau sempre recorre, se tornam os elementos responsáveis por sua vitória contra a pérfida madrasta. Misogenias à parte, o missosso significa um modo de resgate da importância do saber ancestral nas comunidades de origem.

Podemos levantar, ainda, vários outros exemplos desse re­forço identitário. Lembro, a propósito, a negra quissama cantada por Cordeiro da Matta (1889), cuja sedução é totalmente distinta daquela das "européias damas". Também Ndreza, depois trans­formada em Nga Mutúri, na narrativa de Alfredo Troni (1882), vem do interior, sendo obrigada a desfazer-se de seu "lindo pente­ado seguro pelo ngunde e tacula [ ... ] tirando-lhe as missangas e os búzios e todos os enfeites" (1973, p. 34). Assis Júnior centrali­za as ações de O segredo da morta (1935) no Dondo, enquanto Castro Soromenho escolherá a Lunda para palco de contos e ro­mances por ele escritos, às vezes até em forma de reescrita de lendas ou narrativas tradicionais.

António Jacinto, por sua vez, estabelece, com Vôvô Bartolomeu (1952), um corte entre sua criação estética e o modo de representação colonial, seja pela estória contada, seja pela lin­guagem nova que a sustenta. No entanto, ele permanece ainda "apostando" na força espácio-simbólica do mundo rural, em oposi-

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ção ao que se dá nas cidades litorâneas, cobertas pelas marcas da cultura do colonizador. Por isso mesmo, as ações se passam em uma senzala e Luanda é mostrada como um espaço branco e em branco na narrativa. Por sua vivência em tal espaço, não resgatada diretamente, tia Mariquinhas, a lavadeira, se trans­forma em uma assimilada "com a mania de pessoa fina e a dizer que já não sabia kimbundo". E continua o texto, afiando a lâ­mina de sua faca:

Uma vez começou de chover e a tia Anica disse: - Eué! Nvula uiza! e a tia Mariquinhas repreendeu: - Ai dona! Não fala assim, na língua de pessoa se diz: está chovar! (1979, p. 25)

o trabalho de recomposição imagística de Luandino Vieira em Luuanda, de certo modo na esteira do conto de Jacinto, con­siste, justamente, em recobrir o corpo da cidade-sede da então colônia, com outros sinais, sempre postos de lado pelos mode­los estéticos hegemônicos da colonialidade política e literária. Transforma a cidade num espaço coberto pelos "máximos si­nais" da alteridade, aqui usando uma expressão de Lourentinho, sua personagem em outra obra (1981, p. 23). Também João Vêncio, dirá, sem rodeios, a seu mudo interlocutor, na prisão onde se dá a longa conversa, base do projeto discursivo articulador da própria ficcionalidade:

Muadié: eu gramo de Luanda - casas, ruas, paus, mar, céu e nuvias, ilhinha pescadórica. Beleza toda eu não escoiço. Eu digo: Luanda - e meu coração ri, meus olhos fecham, sôdade. (1987, p. 81).

Nasce, nessa geografia imaginária feita de "casas, ruas, paus, mar, céu e núvias, ilhinha pescadórica", desde Luuanda, uma es­pécie de nova ancoragem simbólico-cultural cujo motor é um gesto, mais que tudo, amoroso. Por ele, no caso da coletânea, a própria palavra nomeadora do lugar de pertença do sujeito ganha uma espécie de prolongamento gozoso, com a letra dobrada pela qual se suplementa. Não é apenas Luanda, mas Luuanda. Aninha-se, nessa repetição da letra, as marcas do amor por tudo que na cida-

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Luuanda 40 anos: a força das palavras mais velhas

I Todas as citações de Luuanda são da edição brasileira de 1982 e, a partir de agora, só serão marcadas as páginas da obra.

de descalça se institui e a constitui, a começar pelos elementos de uma natureza animizada cujas ações, sentimentos, formas de ser, enfim, duplicam os traços característicos dos seres humanos que, na comunidade formada na obra, ela ampara e sustenta.

A nuvem, por exemplo, é mostrada, na abertura de "Estória da galinha e do ovo", como tendo "braços" e com "malucas fi­lhas"; a "mulemba velha" possui até "barbas compridas"; os relâm­pagos "riem" igualmente "compridos e tortos [ ... ] falando a voz grossa de seus trovões" (1982, p. 99)1 . A natureza ganha vida hu­mana, pelas palavras mais velhas que lhe descobrem os segredos, assim como Beto e Xico, no mesmo conto, o fazem com relação à fala dos animais, seguindo o que lhes ensinara o velho Petelu. É o que nos mostra seu entendimento do código não-verbal da galinha Cabíri, recuperada nesta cena de tradução que resgato:

E então Xico, voz dele parecia era caniço, juntou no amigo e os dois começaram cantar imitando mesmo a Cabíri, a galinha estava burra, mexendo a cabeça, ouvindo assim a sua igual a falar mas nada que via . ... ngêjile kua ngana Bina Ala kiá ku kuata kua ... kua ... kua ... kuata, kuata! (p. 108)

A vida humana em expansão transforma a paisagem da ci­dade, dela fazendo um espaço quase sacralizado, daí a ligação fundante entre os tempos, erigida pelos contos. O "antigamente", em todos os sentidos, é percebido como o útero onde o presente se gera e, para além disso, a gênese de qualquer promessa de futu­ro. Vale citar o geógrafo e humanista brasileiro Milton Santos, quando enfatiza a vida e seu poder de transformação infinito:

É a sociedade, isto é, o homem, que anima as formas espaciais, atribuindo-lhes um conteúdo, uma vida. Só a vida é passível desse processo infinito que vai do passado ao futuro, só ela tem o poder de tudo transformar amplamente. (2004, p. 109)

Essa cadeia temporal da vida, assim posta por Santos, se metaforiza e ganha especial relevo imagístico em Lllllanda, mais exatamente no conto intitulado "Estória do ladrão e do papagaio". Tal estória, por sua dimensão discursiva e por seu arcabouço

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temático - ao deixar apenas a representação da vida em direto do musseque e escolher o espaço da prisão como principal cená­rio ~ confere ao texto um dos seus simbólicos e ideológicos ali­cerces. No conto, tal alicerce se projeta na imagem do "cajuei­ro", metáfora do fio jamais partido da vida. Por isso mesmo, ou seja, por sua resistência e teimosia em renascer sempre, apesar de todas as violências e tentativas de destruição por que passa, "o pau de caju" se faz o

"fio da vida que [ ... ] mesmo que está podre não parte. Puxan­do-lhe, emendando-lhe, sempre a gente encontra um princípio num sítio qualquer, mesmo que esse princípio é o fim doutro princípio." (p. 52)

A crença na possibilidade de transformação e na força da indestrutibilidade do "fio da vida" enlaça a obra, dela própria fa­zendo, no todo, uma palavra mais velha. Tal palavra indica a ne­cessidade de movimento da parte do leitor, convocado a buscar, ele também, a raiz dos casos contados sob os quais se esconde a violência da agressão do dominador europeu, empenhado, desde sempre, em cercear Angola, não a deixando viver a aurora de sua própria liberdade. A resistência do "pau de caju" e das outras ár­vores espalhadas nas terras da própria textualidade de modo qua­se obsessivo - mulembas, sape-sape, acácias, mandioqueiras, paus de fruta, etc. - se fazem a marca por excelência da territorialidade cartograficamente expressa em letra e papel e, também, uma for­ma de resistência do próprio imaginário recuperado pela ficção.

Os contos, de maneira recorrente e quase física, nos fazem ver essas velhas árvores, obrigando-nos a pensar no que se escon­de sob a terra, sempre mãe, na cosmogonia banta. Por isso, somos convidados por Luandino, pela voz do narrador dos seus casos, a pensar no e com o cajueiro, a fim de entender que ninguém mata o fio da vida. Para tanto, temos de deixar

o pensamento correr no fim, no fruto, que é outro princípio e [ir] de encontro aí com a castanha, ela já rasgou a pele seca e escura e as metades verdes abrem como um feijão e um peque­no pau está nascer debaixo da terra com beijos de chuva. O fio da vida não foi partido.

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E O texto continua, com empenho, a exercitar a ancestral sabedoria, marca da cultura de Angola:

se querem outra vez voltar no fundo da terra pelo caminho da raiz, na vossa cabeça vai aparecer a castanha antiga, mãe es­condida desse pau de cajus que derrubaram mas filha enterra­da doutro pau. (p. 52)

Eis aí uma possível epígrafe ou mote para Luuanda, por sua vez também uma espécie de longa epígrafe das obras de Luandino que lhe sucederão. O corpo ideológico dos textos se sustenta na metáfora da castanha, projetada também para Angola nesse mo­mento histórico em que, na luta por sua libertação, ela pode ser lida como uma "castanha antiga, mãe escondida" da "árvore", só na aparência cortada, mas igualmente "filha enterrada doutro pau". É isto que Luuanda encena: a certeza da renovação da força incontrolável da vida humana e política de uma nação por vir. Vejamos um pouco como e/ou por quê.

Comecemos pelo rosto marcado de duas velhas: Xíxi e Bebeca, cuja pele - principalmente a do rosto - é pintada como "seca e escura", como a da castanha de caju. Por essas duas mulhe­res-castanha, tanto em "Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos", quanto em "Estória da galinha e do ovo", mostra-se a energia e a inteireza do fio da vida. Não por acaso ambas as velhas são plasmadas artis­ticamente de uma mesma forma, ou seja, como uma espécie de guardiãs comunitárias, cuja magreza do corpo esconde a corpulên­cia da solidariedade; da fé no futuro; da confiança na amizade; do sentido coletivo e do empenho na afirmação do amor pela terra, pela sua terra angolana. Elas são, respectivamente, para além de castanha, o sape-sape e o ovo, este, no caso, primeira fonte da vida.

O sape-sape é descrito assim: "sem mais água, só mesmo com a chuva é que vivia e sempre atacado no fumo preto das cami­onetas" (p. 25). Elas, como ele, enfrentam a privação e o ataque de uma ordem social injusta, demonstrando, a exemplo da árvore,

coragem e força para pôr uma sombra boa, crescer suas folhas verdes sujas, amadurecer os sape-sapes que falavam sempre a frescura da sua carne de algodão [ ... ] guardando na sua som­bra massuícas pretas de fazer comida de monangambas (idem)

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A sombra por Xíxi e Bebeca projetada, como a do sape­sape, era "boa, fresca, parecia era água de muringue" (idem). Por isso mesmo, as duas vavós são peças importantes na organização dos seus espaços do viver nos quais representam e defendem as leis das autoridades locais, em detrimento das estabelecidas pelo poder branco vigente. De outra parte, são os cimentos da arga­massa discursiva formadora do edifício da própria textualidade, organizada, ela também, como um exercício da sabedoria mais velha de Luandino Vieira, seu criador.

Por outro lado, Vavó Xíxi e Dona Bebeca são a possibilida­de de instauração de um futuro, cuja marca pode ser encontrada em seus risonhos e gozonos rostos. Elas são o ovo onde a vida igualmente se guarda, como na castanha de caju. Enquanto esta se gera, rebenta e reproduz dentro do ventre da terra, o ovo o faz, ora dentro de Cabíri, a "humana" galinha também protagonista dos casos, amiga dos miúdos Beto e Xico, ora dentro do útero de Bina, cujo corpo de mulher é o duplo explícito daquela mesma terra. Xíxi e Bebeca, empenhadas na manutenção do fio da vida nunca partido, carregam dentro de si a teimosia da castanha, a coragem do sape-sape e a força simbólica do ovo.

Não por acaso, a descoberta do grande ovo carregado por Bina é feita por Xico, uma daquelas crianças a quem caberá bus­car, africanamente, o futuro, como ensina o missosso antigo e reensina Dario de Melo na modernidade de seu conto renovador do texto dos antigamentes - Quem vai buscar o futuro? (1986).

Vavó Bebeca, por sua vez, como alguém que traz em si o "ovo" da esperança e fé na vida, sorrindo, no quase fechar-se da narrativa e "segurando o ovo na mão dela, seca e cheia de riscos dos anos, o entregou para Bina", respeitosamente perguntando à dona da galinha "- Posso, Zefa? ... ". Nesse momento, o leitor vê os "olhos admirados e monandengues de miúdo Xico" fazerem a grande descoberta, ou seja, que "a barriga redonda e rija de nga Bina, debaixo do vestido, parecia era um ovo grande, grande ... " Cp. 123). Eis o ovo da vida, pois, a mostrar-se como outro fio jamais partido.

Os três contos de Luuanda funcionam metaforicamente como uma espécie de rito de iniciação pelo qual os neófitos leito­res, sobretudo se não angolanos, como no presente caso, ingres­sam nos segredos e mistérios comunitários. Tais segredos e misté-

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rios foram sempre elididos na visão dos antigos senhores da letra, com seu saber redutor. Como ensina Camões, tais senhores mos­traram-se sempre perplexos diante da estranha gente cujos costu­mes, leis e reis se fizeram absolutamente enigmáticos, desde o tempo dos navegantes por ele cantados. Não por acaso tais navegantes se perguntam sobre tal gente, em um dos primeiros encontros dos dois grupos étnicos, nas costas de Moçambique, encontro assim sintetizado pelo poeta:

- Que gente será esta? (em si diziam) Que costumes, que lei, que rei teriam? (1972, I, 45. p. 71)

É nesses costumes, nessas leis e, não em reis, mas na força dessas rainhas mais velhas, que Luandino, como um mestre da cerimônia de iniciação dos seus textos, faz seu leitor imergir. Por isso mesmo, a relação entre mais velhos e mais novos é um dos traços mais expressivos nos três contos, como se sabe: Vavó Xíxi e o seu neto Zeca Santos; Dosreis e Garrido e mesmo, na inversão dos papéis, Xico Futa e Dosreis ou Garrido e João Miguel, inver­são surgida sempre que um mais novo demonstra sabedoria maior que um mais velho. Também o traço ressurge na interação de Vavó Bebeca com as mulheres do musseque, principalmente Zefa e Bina, e, mais que tudo, em sua relação e na de Vavô Petelu, no conto apenas referenciado, com a semente do futuro representada pelos miúdos Beto e Xico.

Evidencia-se, na estética da privação, base imagística dos três contos, a presença utópica da esperança tão bem metaforizada por tais mais novos e pelo sol que sempre atravessa os espaços textuais e copula, às vezes, com o vento, às vezes com o mar. Os mais novos são duplos desse sol e devem ser iniciados para fazer frente aos tempos marcados pelas chuvas, ventanias e ribombar dos trovões, como se dá na abertura da obra com o primeiro con­to em que "sai", metonírnica e metaforicamente, não apenas a chuva avassaladora, mas "o grande trovão" a fazer tremer "as fracas paredes de pau-a-pique e despregando madeiras, papelões, luandos". Depois dele, chega "o brilho azul do raio que nasce no céu, grande teia d' aranha de fogo" Cp. 6). Tal raio nos faz lembrar aquele que, caindo na cubata onde se guardara o milho, para livrá­lo da chuva, destrói, em Vôvô Bartolomeu, o sonho do narrador,

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mostrado como um mais novo no corpo da estória. O importante, e Jacinto reforça isso, é não se dobrar frente aos obstáculos inter­postos entre o sujeito e seus sonhos, daí a necessidade de se man­ter acesa a chama da esperança.

Também a chuva devastadora, nos passos da trajetória iniciática dos três contos de Luuanda, a exemplo do que ocorre no de Jacinto, cessa. No segundo deles, tal chuva se transforma em "chuva de cacimbo" (p. 82), a entrar pelas janelas da prisão de modo suave e fresco. Por sua vez, o vento deixa de ser uma ame­aça, para transformar-se em "vento frio do cacimbo [que] corria às gargalhadas, com os papéis pelo musseque fora" (p. 76). No último conto, de modo amigo e apaziguado, esse mesmo vento ressurge "a soprar devagar as folhas das mandioqueiras" e igual­mente "devagar e cheio de cuidados e amizade, [ ... ] o vestido gasto [de Bina] contra o corpo novo" (pp. 123 - 124).

Enfim, a hora é de paz, pois o leitor já compreendeu. De certo modo iniciado, ele não teme mais a violência do primeiro vento. Acredita que a esperança, angolanamente, não se deixa morrer e a fome, a miséria, a privação perderão a força no mo­mento da chegada do sol da liberdade. O espaço espremido e tor­to das ruas e cubatas dos musseques, na geografia instigante do texto - Rangel, Sambizanga, Lixeira, Braga, São Paulo, Marçal, etc. -, a exemplo do cajueiro, não será destruído pela ordem erigida na Baixa, espaço somente referido no texto e entremostrado como despido das cores da vida vivida com alegria, não obstante toda a falta e privação.

Os meninos, por sua vez, já sem suas fogueiras, ainda dis­põem da sombra amiga das velhas árvores e aprendem a lingua­gem das gentes e dos bichos de sua terra. De nossa parte, nós, leitores, como eles, pelo menos no tempo histórico da enunciação do texto, entendemos ser possível sonhar, acreditando na veraci­dade do vôo de uma galinha, cuja gordura não a impede de ir em busca do canto amigo de um companheiro a chamá-la. Picando e arranhando fundo os braços-grade da ordem outra, repressora por excelência, do venal sargento, Cabíri nos ensina que, pela resis­tência ao dominador, se pode voar "na direção do sol" Cp. 122).

Hoje, quase cinqüenta anos depois do momento de escrita do texto (segundo conversa com Luandino), aprisionados nos bra­ços-grade da globalização neoliberal, não podemos deixar de lem-

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brar O verso de Drummond - "E agora, José?" (1955, p. 196). Perguntamos, então, ao outro José, angolano: Cabíri continua a voar? Xíxi e Zeca Santos podem pescar o peixe hoje para comê-lo amanhã? Beto e Xico construíram o futuro? E Garrido, Dosreis e Xi co Futa? Por onde andarão? Teimosamente, só a esperança es­condida na castanha, no sape-sape e no ovo será capaz de, revi vida, poder responder.

2. Uma festa linguajeira e sua beleza fàrra

Não é preciso explicar onde busquei a expressão "beleza forra". João Vêncio é o seu "dono", doando-a, a nós, leitores, na frase pela qual expressa seu medo de rebentar o fio, não mais da vida, mas da construção da estória, pensada como a resultante de uma parceria autoral entre ele e seu letrado companheiro de prisão:

Ia rebentando o fio - a missanga espalhava, prejuizão. Que eu não dou mais encontro com um muadié como o senhoro para orquestrar as cores. Comigo era mistura escrava; no senhoro é a beleza forra (1987, p. 81)

Desse segundo fio que, como o da vida, não se pode deixar partir, gostaria de falar brevemente e de modo bastante esquemático. Trata-se do fio da escrita artística ou da elaboração estética da obra, pensada, também ela, na esteira das imagens re­correntes da castanha, do sape-sape e do ovo, como uma possibi­lidade de interligação de cada princípio com seu fim e vice-versa. Essa interligação se dá quando o artista inventa cada nova frase, palavra, imagem, sonoridade, ou mesmo busca o exato movimen­to dos sentidos expressos na e pela obra artística. A escrita assim concebida transforma-se também em árvore, fazendo-se forma de resistência frente à fala impositiva do outro, muitas vezes empe­nhado em "derrubá-la" por total desconhecimento da eficácia es­tética de sua força ancestral. Ela é, sobretudo, a responsável pelo nascimento de outra forma de vida, a ficcional.

O discurso literário de Luandino, por ser árvore, oferece a sombra sob a qual nos assentamos nós, seus leitores. Como artis­ta, voltando a Barthes, já agora em seus Fragmentos de um dis­curso amoroso, ele faz "da forma um conteúdo" (1981, p. 132).

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Nasce, por esse seu gesto, a "beleza forra", tal como pensada por Vêncio, superando-se, assim, qualquer possibilidade de escravi­dão ou aprisionamento. Volto a lembrar o cajueiro, já agora pro­jetando, para o fio da vida narrativa, o que se dá com o outro fio, o da vida humana. Para se construir tal fio, já sabemos - "É preciso dizer um princípio que se escolhe: costuma se começar, para ser mais fácil, na raiz dos paus, na raiz das coisas, na raiz dos casos, das conversas" (p. 54). Tanto na vida, como na ficção. No caso desta última, tal como a concebe VênciolLuandino, ela se esconde no mágico encontro do "fio" e das "missangas" e na possibilidade de ambos se acamaradarem, dando origem àquele "colar de cores amigadas" que é a obra, tal como nos chega às mãos e aos olhos.

A meu ver, para conseguir seu "arco-íris" de palavras, Luandino aciona dois movimentos que passam, respectivamente por dois procedimentos discursivos distintos, assim como por dois - às vezes até mais - códigos lingüísticos. Tais procedimentos e códigos se atravessam e se suplementam, combinando, de um lado, no plano discursivo, as cores das missangas, que só o literário conhece e sabe orquestrar, com o fio da oralidade no qual tais missangas se sustentam. De outra parte, o atravessamento encon­tra sua raiz no manejo da língua portuguesajá acamaradada com as línguas nacionais, em uma clara e nova demarcação do limite das fronteiras entre dois códigos que, durante muito tempo, se fizeram astros excludentes e em franca rota de colisão.

Pelo encontro quase genesíaco da ancestralidade angolana da voz com a modernidade européia da letra, também o passado se convoca em Luuanda para alimentar o presente e assegurar o futuro. O texto, como um todo, se faz uma maka, seguindo a classificação de Chatelain (1964). Nela se encadeiam casos e ca­sos e mais casos. Forma-se, desse modo, um elo instigante de contos contados ou de textos "falados ouvidos vistos", para usar uma expressão de Manuel Rui (1985). Tais estórias se aninham no colo da letra literária, criando um texto suplementado por diver­sos tempos, matrizes, memórias, saberes. O narrador da escrita como que veste a pele dos contadores de sua terra, ritualizando seu dito artístico pelas palavras mais velhas que sua própria sabe­doria põe em circulação. A raiz dos casos, das conversas, enfim, o fio da vida narrativa lá estão, intratáveis, sustentados pela voz que tudo semeia e sedimenta, como castanha partida de cuja casca

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seca e escura nasce o pau de caju do texto literário, arquiteturalmente tão bem edificado pela letra em festa:

Minha estória. Se é bonita, se é feia, os que sabem ler é que dizem. Mas juro me contaram assim e não admito que ninguém que duvida de Dosreis, que tem mulher e dois filhos e rouba patos [ ... ] E isto é a verdade, mesmo que os casos nunca tenham passado. (p. 96-97)

A "verdade" assegura o caráter de maka do contado, na melhor tradição da oralidade. Por sua vez, o fato de os aconteci­mentos nunca se terem passado garante a eficácia da ficção, cum­prindo-se a tradição literária do ocidente. Entre esses dois parâmetros discursivos, Luuanda com seus contos se equilibra, ela mesma um "papagaio" sem poleiro fixo ou a sombra amiga de um sape-sape sob o qual nos abrigamos, nós, seus leitores, para ouvir as estórias de um "mais velho" contador que sabe como poucos inventar estórias sobre estórias.

Quanto à questão da língua, penso que Luandino, como Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas (1968), por exem­plo, dobra a língua em que o texto se escreve, o português, fazen­do-a aceitar o uso da terra, única forma possível para que esta terra ela própria possa falar nos textos. Dá-se, em todos os senti­dos, uma forma de tradução, como fazem Beto e Xico com a língua de Cabíri. Conforme eu mesma afirmei, em ensaio de 1988, mas só publicado em 1995, Luandino tenta recuperar o fio partido da imposição da fala alheia, a fim de também torná-la sua. Nesse afã, desimobiliza sua fala artística, fazendo com que nós, seus leito­res, vejamos, ouçamos, sintamos os cheiros e os tatos dessas pala­vras engravidadas fono-morfo-sintática e semanticamente no corpo de sua textualidade. O quimbundo se faz o sêmen que possibilita a criação nova, genesiacamente concebida como diferença.

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Como sua personagem João Vêncio ensina, surge, então, de acordo com o já afirmado, uma "beleza forra", construída por esse atravessamento linguajeiro no qual tudo serve para extrair a macia sumaúma das palavras próprias e alheias. Há uma cena nar­rativa, no segundo conto, recuperada pela memória de Xi co Futa, que dá bem a dimensão desse atravessamento de línguas e da cri­ação literária luandina, pelo que o autor se faz, novamente, uma

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espécie de experiente mestre de cerimônias do rito iniciático que só o bom texto literário é capaz de poder assegurar.

Eis a cena: quando o auxiliar da cadeia de Luanda, Zuzé, segundo o relato de Xi co Futa, chegava às celas pela manhã, cum­primentava os presos, dizendo, dentro da melhor norma da língua portuguesa: "- Bom-dia, meus senhores!" E completa o amigo de Dosreis:

Nem nazekele kié-nazeka kiambote, nem nada, era só assim a outra maneira civilizada como ele dizia, mas também depois ficava na boa conversa de patrícios e, então, aí o quimbundo já podia assentar no meio de todas as palavras, ele até queria, porque falar bem-bem português não podia (p. 44)

A citação recupera de forma explícita, não, como querem tantos, o "drama" lingüístico do colonizado, mas a natureza de sua fala própria, construída pelo atravessamento de seu legado lingüístico ancestral e a língua trazida pelo outro, quando viu concretizado seu afã de singrar os mares nunca dantes navegados, chegando à África e à América, dentre outros lugares. As línguas européias viajantes se encontraram com o quimbundo, o umbundo, o ronga, o macua e também com o tupi, o quéchua, o guarani e tantas outras guardadas no cofre das memórias culturais dos povos de origem.

O trabalho estético de Luandino - na esteira de outros que o precederam em Angola, desde Cordeiro da Matta em "Kicôla!"; passando por Viriato da Cruz com "Makezú" ou mesmo José Craveirinha, em Moçambique, com o seu "Hino a minha terra" -consiste em revolver, na quinda simbólica, as missangas, j á agora lingüísticas, misturadas em denso e festivo colorido. Com elas, entrecruzadas, em alegres jogos linguajeiros, o já senhor da letra encontra os elementos de que necessita para criar os colares das estórias produzidas por esses mesmos prazeirosos jogos. Acamaradam-se as línguas, como se dera com a voz e a letra e tudo se harmoniza, apontando o caminho da esperança.

Para concluir essa minha corrida atrás de uma tão ágil ser­pente colorida e esperta, chamada Luuanda, só me resta dizer que José Luandino Vieira consegue, nesta e em outras obras por ele assinadas, desenhar, com palavras, um belo e surpreendente arco­íris, imagem que parece encantá-lo de modo especial. Esse arco­íris se inventa com os seguintes elementos: a maestria do artista

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da vida real; a sabedoria dos narradores criados por ele; a força, a coragem e a solidariedade dos seus seres de papel chamados per­sonagens e, soldando tudo, o amor por sua terra, Angola, metonimizada por Luanda, talvez, pura e simplesmente, o amor do amor. Terminamos, por isso, com Vêncio, dizendo de Luuanda, de Luandino Vieira: esta obra é "beleza forra"! E ponto final.

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Dom Quixote: Utopias André Trouche e Lívia Reis, (orgs.)

Niterói: EdUFF, 2005.

Rodrigo F. Labriola (UERJ)

Poucas palavras estão hoje tão depreciadas de sentido como "Quixote" ou "Utopia": ao que parece, durante as Celebrações Centenárias o mercado simbólico sofre um surto inflacionário que atinge com singular virulência a cultura li vresca. Depois dessa emis­são incontrolada de significantes, geralmente certas obras literárias remanescem ainda mais longínquas do que já eram para os leitores não especializados. Tudo isso, caso fosse admissível uma teoria da economia política dos signos ... Mas talvez seja tempo de nos afas­tar dos modelos econômicos sobre-impressos à literatura em dire­ção de outras configurações capazes de agir melhor sobre esse fe­nômeno de esvaziamento nos discursos do cotidiano. Daí o desafio implícito no título da compilação Dom Quixote: Utopias, organiza­da por André Trouche (UFF) e Lívia Reis (UFF). Sem aditamentos nem prevenções, essas poucas palavras previsíveis ganham uma nova complexidade quando considerarmos a forma e o conteúdo do li­vro, neste caso feliz e inextricavelmente relacionados.

Com o apoio da Prefeitura de Niterói, a edição se apresenta cuidada tanto nos textos como na reprodução das imagens que complementam alguns dos capítulos. Não se trata, porém, de uma obscena edição de luxo para glorificar costumeiros atos de gover­no ou de verbas universitárias. A tentativa é refletir sobre a obra de Cervantes sem apagar nem sua escrita nem seus possíveis leito­res contemporâneos. Nesse sentido, um acerto indiscutível é a inclusão, no mesmo nível dos trabalhos críticos, de quatro frag­mentos chaves do Dom Quixote em espanhol, e também das suas respectivas traduções livres para o português, a cargo de Magnólia Brasil Barbosa do Nascimento (UFF), Antonio Esteves (UNESP-

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Assis), Susana Planas (UFF) e Heloisa Costa Milton (UNESP­Assis). A presença das duas línguas deve ser destacada se levar­mos em conta o apoio governamental à edição e a sua esperável distribuição nas bibliotecas escolares, pois indica uma vontade não de uma mera difusão mas da procura do ensino efetivo do espa­nhol no Brasil. Os claros comentários dos tradutores que seguem aos fragmentos de Cervantes reforçam este objetivo, porque se é verdade que a boa literaturajá não é de ninguém mas da memória ou da tradição, então toda língua pode também ser uma forma extremada das literaturas. Certamente, recuperar o Dom Quixote é uma ilustre compensação da banalidade de certos materiais di­dáticos; mas, por outro lado, as traduções junto ao original pro­põem uma hipótese problemática para a tecnocracia lingüística: que a vitalidade de uma língua depende em grande medida do contato com as outras e, sobretudo, da sua apropriação literária. A liberdade para traduzir, e o conseqüente sinal aberto para que muitos leitores amadores se atrevam a realizar suas traduções, constituem de fato uma prazerosa indústria para produzir ou re­encontrar sentidos na própria língua, abalando o vazio dos luga­res-comuns. Ler não é outra coisa senão isso; nesse ponto, a cul­tura audiovisual ainda leva fraldas, ou pior.

De maneira complementar, outro mérito da compilação é não ocultar as tensões decorrentes do caótico estado da questão em torno da significação atual do Dom Quixote e das utopias. Percebe-se em todos os autores a preocupação por esse assunto para além das homenagens oportunistas. Por isso, os textos críti­cos trabalham por vezes enfoques teóricos que resultam contradi­tórios entre si, mas a vantagem do livro reside precisamente nessa pluralidade, que libera o leitor e o autoriza a escolher alguns de­les, ou quiçá nenhum. Entre (s temas mais relevantes para a lite­ratura comparada se encontram as múltiplas relações do Quixote com a obra de Machado de Assis, grande leitor de Cervantes. Maria Augusta da Costa Vieira (USP) mapeia com rigorosidade a recep­ção do.Quixote no Brasil, e sua síntese evidencia a necessidade de aprofundar os estudos das conexões entre o manco de Lepanto e o bruxo do Cosme Velho, ainda pouco exploradas pela crítica. Embora limitado aos problemas de gênero, o trabalho de Eurídice Figueiredo (UFF) serve a tal propósito e adiciona ao quadro a perspectiva de Flaubert. A mexicana María Stoopen Galán (UAM)

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analisa a ficção e a língua no Quixote a partir dos discursos sobre o corpo e a subjetividade, não sem estimulantes surpresas: conse­gue driblar as fartamente repetidas (e maiormente mal lidas) cita­ções de Michel Foucault e Norbert Elias. Por sua vez, a atualidade irrompe por duas vias diferenciadas nos textos de Gustavo Bernardo Krause (UERJ) e Márcia Paraquett (UFF). No primeiro, o ceticis­mo se alia à ironia em defesa da ficção: é possível que cada metáfo­ra quixotesca carregue a semente estéril de sua própria destruição (como nas Vanguardas), mas o âmago da literatura goza e faz gozar disso, entanto o discurso da política a aproveita para fins medío­cres: o presidente venezuelano Chaves, e também outros políticos, são prova disso segundo o autor. Por sua vez, o texto de Márcia Paraquett estuda com singular ênfase o paradigma de recepção con­temporâneo fora da literatura, seguindo o modelo da análise do discurso. As suas observações sobre uma charge do desenhista N ani arriscam uma leitura política do (último?) escândalo no governo do presidente Lula em tomo do ex ministro Palocci.

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Menção aparte exigem os artigos de Lygia Rodrigues Vianna Peres e de Paulo Bezerra, ambos professores da UFF, devido a sua originalidade. A primeira descreve a "memória literária" do personagem de Dom Quixote, que dependendo das circunstâncias e das impressões visuais ao longo da história vai lembrando frases que poderia ter lido na sua biblioteca ou ouvido dos romances populares; assim, Alonso Quijano (em tanto leitor fanático) com­partilha com Cervantes "a memória como registro específico da expressão literária". A conclusão é instigante: o Quixote é um de­lírio motivado pelo temporal e simultâneo esquecimento do autor e dos seus personagens. Quanto ao trabalho de Paulo Bezerra, a figura de Sancho Pança é focalizada à luz da carnavalização de Bakhtin. O deslocamento da leitura para o parceiro lhe permite estabelecer os diferentes tipos de diálogo do fidalgo com os ou­tros, inclusive com o apócrifo de Avellaneda. O jogo de duplica­ções reconstrói com sucesso a figura do Quixote como um perso­nagem artificial, plural e polifônico, afastado dos estereótipos tanto da loucura como do heroísmo.

Cada um dos textos do livro, por vias diferenciadas, tenta trazer para terra o problema das utopias. Isto é: procura que Dom Quixote seja um livro destinado à atividade civil da leitura, e que os leitores pensem sobre o mundo que os rodeia e nas suas possi-

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bilidades. Esse seria um bom exercício para fazer também em ou­tros casos, como o daquele homem que em 1965 escreveu "otra vez siento bajo mis talones el costillar de Rocinante" no início de uma carta dirigida a seus pais, antes de ir rumo à Bolívia. A ele devemos, também, adjudicar uma leitura da obra de Cervantes talvez bem mais sutil do que cremos.

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Conceitos de literatura e cultura Eurídice Figueiredo (org.)

Juiz de Fora: Editora UFJF, Niterói:EdUFF, 2005.

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Maisa Navarro (Universidade Federal do Pará)

o propósito deste livro é o mapeamento de conceitos identitários e literários que surgiram desde as vanguardas e transi­taram pelas Américas até o final do século XX a fim de lhes rastrear o sentido, a origem e, sobretudo, o entrecruzamento e a superposição de noções. Esses conceitos atentam para realidades culturais às vezes semelhantes, às vezes diferentes, e foram cria­dos e utilizados por teóricos e críticos em várias partes do conti­nente americano e no Caribe.

Resultado de um amplo trabalho de pesquisa desenvolvida pelo Grupo de Trabalho (GT) da ANPOLL, o livro "Relações lite­rárias interamericanas", organiza-se em forma de um glossário em que constam 20 ensaios, referentes a 20 conceitos fundamentais do comparativismo interamericano. Os conceitos e os respectivos autores são os seguintes:

Americanidade e Americanização - Zilá Bernd Antropofagia - Heloísa Toller Gomes Barroco e neo-barroco - Heloísa Costa Milton Boom e pós-boom - André Trouche Crioulidade e crioulização - Magdala França Vianna Entre-lugar - Nubia Hanciau Heterogeneidade - Graciela Ortiz Híbrido, hibridismo e hibridização - Stelamaris Coser Identidade cultural e identidade nacional- Eurídice Figueiredo e Jovita Maria Gerheim Noronha Indigenismo - Silvina Carrizo Literaturas migrantes - Maria Bernadette Porto e Sonia Torres

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Mestiçagem - Silvina Carrizo Negritude, negrismo e literaturas de afro-descendentes -Eurídice Figueiredo, Maria Consuelo Cunha Campos, Ana Beatriz Gonçalves e Márcia Pessanha Multiculturalismo e pluriculturalismo - Arnaldo Rosa Vianna Pós-colonial - Eloína Prati dos Santos Pós-moderno - Giséle Manganelli Fernandes Realismo mágico e realismo maravilhoso - Antonio Roberto Esteves e Eurídice Figueiredo Regionalismo - Dilma Castelo Branco Diniz e Haydée Ri beiro Coelho Textualidades indígenas - Cláudia Neiva de Matos Transculturação e transculturação narrativa - Lívia de Freitas Reis

Trata-se, portanto, de uma obra de referência, que conta com a participação de especialistas das várias literaturas nas qua­tro principais línguas das Américas (inglês, espanhol, francês e português), que podem dar conta da circulação destes conceitos, com as referências bibliográficas das fontes, as diversas significa­ções que eles foram assumindo ao longo do tempo e do espaço percorridos. Muitas destas noções tentam definir o estatuto da cultura americana e, sobretudo, latino-americana, às vezes mais particularmente a literatura dos países das Américas em oposição à literatura européia. Os termos têm origens diversas, ora antro­pológicas, ora literárias, ora midiáticas.

O estudo das literaturas nacionais, de maneira estanque, às vezes impede a compreensão de que tendências surgidas em um país ou área lingüística têm correlação com outras muito mais amplas que atingem outras regiões da América e especialmente da América Latina. Assim, as interrelações que os autores dos dife­rentes ensaios revelam na presente obra devem suscitar outros desdobramentos a fim de se possam detectar os movimentos por que passam as literaturas do continente. Os autores ressaltam que, como um pensamento se inscreve na história de cada país, é preci­so ter o cuidado de, ao usar um conceito surgido em outro espaço de enunciação, refazer todo o seu percurso a fim de não homogeneizá-Io, eliminando as nuances que constituem a riqueza e a produtividade que ele tinha em seu surgimento.

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A literatura comparada no Brasil pode tirar partido das con­tribuições que os estudos culturais e pós-coloniais proporciona­ram, sobretudo nas pesquisas sobre as questões identitárias, naci­onais e transnacionais.

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Jacques Derrida: pensar a desconstrução Evando Nascimento (Org.)

S. Paulo: Estação Liberdade, 2005.

Carla Rodrigues (PUC-RJ)

Numa entrevista que se manteve inédita até a sua morte, realizada pelo jornal francês Le Monde} e publicada em caderno especial póstumo, o filósofo Jacques Derrida responde à questão que atravessou todo seu pensamento: o que é a desconstrução? Ele diz: "Se eu quisesse dar uma descrição econômica, elíptica da desconstrução, eu diria que é um pensamento da origem e dos limites da questão 'o que é?', a questão que domina toda a histó­ria da filosofia. Cada vez que se tenta pensar a possibilidade de 'o que é', de colocar uma pergunta sobre essa forma de questão, ou de se interrogar sobre a necessidade dessa linguagem dentro de uma certa língua, uma certa tradição, isso que se faz nesse mo­mento não se presta senão a um certo ponto da questão 'o que é"'2. Em outra entrevista, é a psicanalista Elisabeth Roudinesco quem afirma: "Às vezes tenho a impressão de que o mundo atual se parece um pouco com o senhor e seus conceitos, que nosso mundo está desconstruído e que se tomou derridiano a ponto de refletir, como uma imagem num espelho, o processo de descentramento do pensamento, do psiquismo e da historicidade que o senhor contribuiu para pôr em prática"3 O raciocínio de Roudinesco indicaria que a desconstrução não seria obra de Derrida, mas algo que, como o próprio filósofo afirma, acontece. Esse acontecimento, no entanto, não se daria sem traumas.

É em tomo do acontecimento da desconstrução que gira a coletânea Jacques Derrida: Pensar a desconstrução, organizada por Evando Nascimento e editada em 2005 pela Estação Liberda­de. O principal texto do livro é o inédito "O perdão, a verdade, a reconciliação: qual gênero?", íntegra da conferência4 do filósofo

I A entrevista foi realizada em 30 de j unho de 1992. Em edição especial póstuma, o jornal publicou apenas a resposta para a pergunta: "o que é a desconstrução". Le Monde, 12 de outubro de 2004, p. 3.

2 "Si je voulais donner une description économique, elliptique de la déconstruction, je dirais que c' est une pensée de I' origine et des limites de la question 'qu'est-ce que? .. .' ,Ia question qui domine toute I'histoire de la philosophie. Chaque fois que I' on essaie de penserla possibilité du 'qu'est­ce que? .. .', de poser une question sur cette forme de question, ou de s'interroger sur la nécessité de ce langage dans une certaine langue, une certaine tradition, etc., ce qu' on fait à ce moment-Ià ne se prête que jusqu' à un certain point à laquestion 'qu'est-ceque? ... "'. Tradução minha.

J DERRIDA, Jacques e ROUDINESCO, Elisabeth. De que amanhã ... Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p. 11.

4 Conferência proferida durante o Colóquio Internacional "Jacques Derrida 2004: pensar a desconstrução - questões de política, ética e estética", realizado na Maison de France, no Rio de Janeiro, em agosto de 2004, e promovido pela UFJF em parceria com o Consulado Geral da França.

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5 DERRIDA, Jacques. Papel­máquina. São Paulo: Estação Liberdade, 2004, p. 348.

no colóquio internacional realizado no Rio de Janeiro em agosto de 2004, dois meses antes de sua morte. Derrida foi um pensador engajado. Sobretudo, um filósofo interessado nas questões con­temporâneas. Foi esse interesse que o levou, ainda em meados da década de 1980, a acompanhar o processo de fim do apartheid na África do Sul e suas conseqüências. A partir de 1994, ano em que Nelson Mandela instituiu a Comissão de Verdade e Reconcilia­ção, que pretendia alcançar a "verdade" como condição para o perdão, Derrida acompanhou de perto o funcionamento da co­missão sul-africana, parecendo particularmente interessado no mecanismo de vir à tona, identificando aí um movimento oposto ao do recalque que tudo esconde e oprime.

Ainda que em contextos diferentes, as reflexões de Derrida remetem o leitor brasileiro para a inegável pertinência do seu pen­samento sobre o perdão num país como o Brasil, que escondeu a escravidão e o racismo de tal forma que é imensa a quantidade de pessoas que crê firmemente viver num país sem discriminação ra­cial. Derrida interroga os objetivos da comissão sul-africana: tra­zer à tona o trauma e promover a reconciliação, ideal no qual ele localiza uma expectativa de transcendência (p. 61).

Numa discussão sobre as condições de possibilidade do per­dão, Derrida mais uma vez desloca o foco. Ao invés de perder-se no debate sobre o mérito do perdão, afirma que só se pode perdo­ar o imperdoável. É desse paradoxo que surge a possibilidade de responsabilidade em relação ao perdão. Num diálogo. filosófico amplo, que vai de Kant a Hegel, Derrida guia o leitor pelos cami­nhos da desconstrução também na política, o que remete à ques­tão sobre o tipo de contribuição que o pensamento da desconstrução tem a dar no questionamento sobre os impasses da vida contemporânea.

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Conciliar o pensamento dessa desconstrução que acontece e que aponta os limites da questão "o que é?" com prática política era um desafio para o filósofo, como ele mesmo explicou: "Ob­tendo êxito de maneira irregular, mas nunca o bastante, tentei, portanto, ajustar um discurso ou uma prática política às exigênci­as da desconstrução. Não sinto um divórcio entre os meus escri­tos e os meus engajamentos, apenas diferenças de ritmos, de modo de discurso, de contexto, etc." S Os engajamentos a que ele se refere são sua militância contra a pena de morte, sua defesa dos

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sem-documento, sua adesão à causa das minorias como mulheres, homossexuais, e sua luta contra o apartheid, essa que o levou a escre­ver sobre a experiência dos tribunais de perdão da África do Sul.

Na exploração da desconstrução a que o livro se propõe desde seu título, o texto de abertura, "O perdão, o adeus e a he­rança em Derrida: atos de memória", assinado pelo organizador Evando Nascimento, serve de ótimo fio condutor para quem de­seja caminhar pelo pensamento de Derrida. Uma forma de dar as boas-vindas aos que estão chegando agora, mas também um desbravamento pelo trabalho do filósofo em relação a questões contemporâneas. Evando nos guia pelas trilhas, pelos rastros que nos levam ao último Derrida, aquele que esticou até o limite sua definição para filosofia: "Pensar em ação, fazendo algo". 6

Hospitalidade e acolhimento

Jacques Derrida: Pensar a desconstrução também é uma demonstração do acolhimento que o pensamento de Derrida teve no campo da Literatura. São dezenove artigos que, de alguma forma, estão relacionados ao tema. O livro agrupa textos por afi­nidade temática: "Políticas da desconstrução", "Desconstrução, hospitalidade e tradição de pensamento", "Derrida e a tradução" e "Querer acreditar. Nas mãos do intelecto". É do pioneiro Silviano Santiago, a quem cabe o mérito de ter sido um dos primeiros a trazer a leitura de Derrida para os departamentos de Letras no Brasil, nos idos da década de 1970, um texto que explora a différance derridiana como a subversão de uma letra. O incômo­do a que, acrescentado à palavra francesa différence, impede a diferenciação entre o vocábulo escrito e falado, confundindo as regras que deveriam separar claramente phoné e escrita. Esse in­cômodo Santiago identifica também na proposta de responsabili­dade, trabalhada por Derrida sobretudo em Donner la mort,? e discutida por Santiago em "O silêncio, o segredo, lacques Derrida". Também no campo das Letras estão artigos como "Aquele que desprendeu a ponta da cadeia", de Leyla Perrone-Moisés, que aproxima Derrida do pensador francês Roland Barthes, e o belo trabalho de Kathrin Holzermayr Rosenfield sobre Machado, Rosa, Musil e Clarice Lispector.

'Entrevista publicada em httpJ /indymedia.aI12all.org/ mail.php?id=83l23. Endereço consultado em 20 de maio de 2005.

'DERRIDA, Jacques. Donner la morl. Paris: Galilée, 1999.

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8 DERRIDA, Jacques. This strange institution called Iiterature: interview. In: ATTRIDGE, Derek (Ed.) Jacques Derrida: acts of literature. Nova YorkJLondres: Routledge, 1992.

9 NASCIMENTO, Evando. Derrida e a literatura. Niterói: EdUFF, 1999, p. 274.

10 DERR1DA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002.

11 DUQUE-ESTRADA, Paulo Cesar. Derrida e a escritura. In: DUQUE-ESTRADA, Paulo Cesar (Org.). Às margens da filosofia. Rio de Janeiro: Editora PUC-RJlEdições Loyola, 2002.

É verdade que Derrida soube retribuir a atenção merecida nos departamentos de Letras. Detrida definiu a literatura como o lugar onde se pode dizer tud08 , o lugar mais interessante do mun­do, talvez mais interessante do que o mundo. Menos por preten­der criar algum fetiche em torno da literatura9 e mais para salva­guardar o espaço literário como esse lugar de abertura. Quando diz que "o sujeito da escrita é um sistema de relações em cama­das: da lousa mágica, da psique, da sociedade, do mundo" e que, "no interior dessa cena, a simplicidade pontual do sujeito clássica é impossível de ser encontrada lO ", Derrida está mais uma vez ti­rando o fundamento do solo no qual deveriam florescer conceitos sólidos para a compreensão do mundo. No entanto, na Literatura, pode-se afirmar que esse abalo é parte constituinte, o que seria uma das razões para a valorização que Derrida faz da Literatura como lugar de abertura.

Esse descentramento que destacou na escrita ou na psicaná­lise, o filósofo tentou espalhar para o campo do político até o limite máximo, sempre propondo deslocamentos. Seria seguro afirmar que são justamente esses deslocamentos, esses reenvios de sentido que fazem com que Derrida seja mais lido nos departamentos de Letras ou entre os teóricos da Psicanálise do que na Filosofia? O livro é uma demonstração de como esse processo também se deu no Brasil - e é importante ressaltar que o fenômeno se reproduz em todos os países do Ocidente que se puseram a ler Derrida.

Entre os vinte e um artigos publicados, há apenas um filóso­fo brasileiro, o professor da PUC-RJ Paulo Cesar Duque-Estrada. A solidão filosófica poderia indicar um certo apego da Filosofia ao pensamento da verdade como fundamento, numa perspectiva que Derrida trabalhou para desconstruir. É em "Derrida e a crítica heideggeriana do humanismo" que Duque-Estrada explora o pos­tulado humanista de volta ao sujeito. O autor lembra que Derrida desconstrói a noção de identidade para substituí-la por identifica­ção, esta mais próxima de um processo, de um movimento, de um devir permanente que nunca se dá completamente, do que a rigidez da identidade fixa, própria e apropriada. Para Derrida, o que forma uma identidade é aquilo que já a desloca, num processo que se re­pete indefinidamente ll . Já naqueles que reivindicam a volta ao su­jeito da tradição haveria o desejo de ancorar a questão do ser em portos supostamente mais sólidos do que os indecidíveis derrianos.

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Duque-Estrada demonstra que a desconstrução está sendo posta sob suspeita Cp. 247) porque, no seu descentramento do sujeito, é acusada de não ter nada de substancial a oferecer diante de um quadro político marcado pelo recrudescimento do fundamentalismo religioso, pela violência urbana crescente, pela globalização que tudo entrega às mãos invisíveis do mercado. A crítica da insistência no humanismo, que Derrida'2 identifica in­clusive no pensamento de Heidegger, poderia ser o ponto fraco no qual os postuladores da volta ao sujeito percebem a desconstrução como o pensamento que "não tem nada a dizer." No entanto, Du­que-Estrada lembra que a clausura pode estar no pensamento que insiste no homem Cp. 254).

Ainda no âmbito da filosofia, é no artigo "Mal de hospitali­dade", da filósofa portuguesa Fernanda Bernardo, que o leitor encontrará de maneira precisa a ligação entre desconstrução e hospitalidade, para demonstrar como o acolhimento ao estrangei­ro, ao outro que se apresenta a partir da desconstrução, a esse outro que emerge quando a desconstrução acontece, como esse incondicional sim ao estrangeiro, essa hospitalidade a todo e qual­quer outro que "define a desconstrução como movimento de pen­samento" (p. 193).

Etapas e deslocamentos

Há quem pretenda dividir o pensamento de Derrida em duas etapas - a primeira, a da descontrução do signo, presente em tex­tos do final da década de 1960, dos quais Gramatologia (1967) é o mais exuberante. A categoria compreenderia também A différance (1968), Afarmácia de Platão e A Disseminação, ambos de 1972. Já o último Derrida seria aquele filósofo que ousou abarcar na sua obra questões políticas contemporâneas e, por isso, teria vindo ao Brasil, meses antes de morrer, falar sobre pena de morte e perdão. A divisão, creia-se nela ou não, serve os críticos tanto do primeiro quanto do último Derrida. De uma proposta de desconstrução que estaria apenas "lendo textos de outro modo", ele teria passado a discutir temas supostamente alheios à filosofia. Por isso, perguntam os filóso­fos dogmáticos, para usar uma expressão derridiana, o que perdão tem a ver com a filosofia e com a questão primeira - "o que é"?

Quando, em Gramatologia, Derrida começa a questionar o

12 DERRIDA, lacques. os fins do homem. In: DERRIDA. largues. Margens dafilosofia Campinas: Papirus, 1991, p 161.

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signo como portador de uma unidade natural entre significante (palavra) e significado (sentido), põe também em questão a tradi­ção metafísica que estaria implicada na idéia de que a linguagem carrega a possibilidade de expressão de uma verdade transcendental. Ao desfazer a estrutura binária significante/signi­ficado, ele aponta para o "caráter arbitrário do signo" e questiona a existência da ligação natural entre significante e significado, o que equivale a suspender esse conjunto de supostas oposições entre sensível/inteligível, dentro/fora, presença/ausência. Daí em diante, há um longo caminho a percorrer até chegar à abordagem política do "último Derrida", que parte da ausência de fundamen­tos para identificar violências, que joga com os indecidíveis para questionar verdades, mesmo - ou principalmente - aquelas ditas em nome do Bem.

Pode-se reconhecer que Derrida foi um pensador em ação, que trilhou o tênue fio entre desconstrução e prática política. Com isso, teria ele contaminado o pensamento filosófico, desviando-o da questão "o que é"? Ao questionar os limites dessa pergunta tão cara à filosofia, Derrida abriu-se à perspectiva de não apenas não ter as respostas prontas, mas ousar dizê-lo. Pensar a desconstrução é um livro que, no seu espectro amplo de abertura a diferentes leitores de Derrida no Brasil e no exterior, monta um mosaico de como o pensamento da desconstrução acontece, para além do jogo de ausência/presença do último Derrida entre nós.

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História. Ficção. Literatura. Luiz Costa Lima

São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

Sérgio Alcides (UFOP)

História. Ficção. Literatura, como outros livros de Luiz Costa Lima, parte de uma questão aparentemente simples, por trás da qual o teórico surpreende todo um labirinto de conexões e impasses da maior relevância para diferentes setores das chama­das "humanidades". Foi assim com seus primeiros estudos sobre a mímesis dos gregos: seria ela o mesmo que a sua contrapartida no mundo romano, a im ita tio , subordinada ao primado do real? E assim foi com a trilogia do Controle do imaginário: que estatuto é reservado ao ficcional na modernidade, em face do tipo de razão triunfante no Ocidente?

Desta vez a questão de partida está ligada a uma constatação: tem sido superficial demais, desde a Antigüidade, a reflexão com­parativo-contrastiva entre a história e a poesia. A carência de um aporte teórico mais conseqüente a esse respeito adquiriu aspectos de emergência desde os anos 1970, quando veio à tona com toda a força a polêmica sobre a dependência da escrita da história fren­te a procedimentos e recursos ficcionais (tais como a narrativa e as figuras de linguagem). Costa Lima tem participado do debate há mais de uma década - mas só agora apresenta uma versão cabal e mais desenvolvida de seus argumentos.

O título do livro já dá boas indicações do posicionamento do autor: como termos separados por pontos, história, ficção e literatura não se confundem, nem são intercambiáveis. As três partes da obra teorizam sobre os termos separadamente, tratando das especificidades de cada um, mas sem deixar de investigar suas relações com os outros dois.

O longo prefácio procura expor a questão e apresentar uma

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espécie de roteiro seguido pelo teórico na sua abordagem. É pro­vável que esta venha a ser a parte do livro mais consultada nos cursos universitários, sobretudo na área de história (pelo menos num prognóstico talvez otimista demais). No contexto de um de­bate que já dura mais de trinta anos, escassamente conhecido no Brasil, esse texto apresenta uma das críticas mais conseqüentes e originais já feitas à obra de Hayden White, o autor de Metahistory (1973). Por meio da análise literária de textos historiográficos clás­sicos, o teórico americano procurou demonstrar que a escrita da história se constitui mais propriamente numa série de ficções ver­bais, cujo conteúdo é tão inventado quanto achado, e que têm mais em comum com a literatura do que com as ciências.

É importante frisar que a crítica de Costa Lima nada tem de reacionária - como tem sido, em geral, a pequena recepção da obra de White no Brasil. Longe de fazer tabula rasa do chamado linguistic tum que inspirou o trabalho de White nos anos 1970, Costa Lima ressalta vários aspectos favoráveis trazidos por essa virada de perspectiva epistemológica. Ao invés de negar in limine toda e qualquer contribuição que venha dessa corrente, como tem feito, por exemplo, Carlo Ginzburg, Costa Lima dialoga com ela e assim encontra seus reais limites. Para além destes se encontra o campo teórico novo, no qual ele procura fundar sua reflexão.

Para retomar a distinção entre história e ficção, o autor cha­ma a atenção para as "metas discursivas" de cada gênero, e ainda acompanha a concepção de Reinhart Koselleck de uma camada pré-verbal a ser considerada na escrita da história. Em outros momentos deste livro, ficará clara a maior proximidade de Costa Lima com autores alemães do que com os americanos também na área da teoria da história - assim como, na teoria literária, ele nitidamente se identifica, desde finais dos anos 1970, com a cons­telação de autores formados sob o impacto da "estética da recep­ção", de Hans Robert Jauss - sobretudo Karlheinz Stierle e Wolfgang Iser; a este último, presta um importante tributo na se­gunda parte do livro.

É também marcante nesse prefácio o trio de apoio teórico que Costa Lima montou - totalmente inesperado e original- para enfocar toda obra: um artigo esquecido de William J ames ("The Perception of Reality", de 1889), outro de Alfred Schütz ("On Multiple Realities", de 1954) e a obra capital de Erving Goffman

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sobre a "análise por molduras" (de 1974). Partindo de três auto­res "fora de moda", ele traça uma maneira própria de considerar a "construção social da realidade" (livrando-nos da rotina de Berger e Luckmann a esse respeito). O leitor que conhecer bem a obra de KoseIleck (ou a de Jauss, neste caso), não terá dificuldades em notar como Costa Lima lê aqueles três autores de um ângulo "ale­mão", fortemente marcado pela nova hermenêutica - sendo o melhor sinal disso o uso recorrente da dupla de categorias experi­ência/expectativa, à qual se recorre para explicar, por exemplo, o conceito de frame ("moldura") do canadense Goffman.

Em J ames, Costa Lima busca uma interessante definição de "crença" como estado emocional de conhecimento da realidade que estabelece as condições para o consentimento e assim provo­ca a "cessação da agitação teórica". Para se acrescentar aos mui­tos sinais de ceticismo espalhados pela obra de Costa Lima, ele conclui: "o oposto da crença não é a descrença, mas sim a dúvi­da". Esse indício, aparentemente banal, ganhará maior importân­cia à medida que o leitor vai se dando conta do cerne do livro, que diz respeito ao contraste entre o ficcional e o historiográfico. Seja como for, o artigo de J ames afasta desde o princípio a reflexão do teórico brasileiro de qualquer ranço positivista: "a fons et origo de toda a realidade", afirma o americano, "é subjetiva, somos nós mesmos". Para quem ainda supõe ser possível trabalhar em ciên­cias sociais dentro de parâmetros teóricos mais simplórios, será inquietante acompanhar a conclusão desse pensamento, segundo a qual "a própria palavra 'real' é, em suma, uma fímbria". Ao que Costa Lima acrescenta: "Ser, do ponto de vista humano, a realida­de uma fímbria significa que não a vivenciamos como um territó­rio contínuo, apenas reconhecido a partir de seu registro pelos órgãos dos sentidos". E continua: "Quando, portanto, nos dize­mos que realidade é o que se põe diante de nós e provoca reações, empregamos uma tosca lógica a posteriori, pois convertemos em experiência passiva o que, na verdade, depende da participação ativa da subjetividade".

A contribuição encontrada em Schütz serviu para dar mais consistência, como objeto teórico, a essa fímbria heterogênea sub­jetivamente construída. Para tanto, recorreu-se à concepção des­se sociólogo acerca das "províncias finitas de significação" que cada um estabelece, na vida prática, diante das próprias experiên-

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cias, gerando um "estilo cognitivo" específico. A realidade, assim, torna-se ainda mais fragmentária- desde a "fímbria" subjetiva até as "províncias" intersubjetivas. Goffman ajuda Costa Lima a aprofundar ainda mais o problema, através das "molduras" delineadas por cada interação discursiva na vida cotidiana, que trazem implícitos um conjunto de expectativas e um padrão sele­tivo de percepção do mundo e dos outros. Isso desvia Costa Lima da hipervalorização da retórica que vem ganhando espaço em di­ferentes domínios, como a economia, a história e os estudos lite­rários. "Indiretamente", argumenta ele, "Goffman nos ensina que a retórica nos acompanha em cada situação do cotidiano. Portan­to, que não será por ela que poderemos definir uma situação discursiva".

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Toda essa problemática percorrerá o restante do livro sub­terraneamente; o autor não precisa mencioná-la para nos relembrar de que as três partes de História. Ficção. Literatura nela se enra­ízam. A primeira destas é a que traz mais novidades para o conjun­to da obra de Costa Lima, que aqui se consolida também como um teórico da história. O objetivo, em linhas gerais, é fixar as especificidades da escrita da história, sem deixar de insistir sobre os seus débitos literários. "Preocupar-se com a construção do texto não supõe considerar-se a verdade (alétheia) uma falácia conven­cional; a procura de dar conta do que houve e por que assim foi é o princípio diferenciador d". escrita da história. Ela é a sua aporia". Esse trecho introduz o conceito mais surpreendente de todo o livro: aporia, como concepção de verdade uniforme e sem fissuras, tida por auto-evidente e sempre idêntica a si própria, puro objeto do reino dos fatos, independente de observação ou participação subjetiva. Superado o primado positivista do real, a linha de dis­tinção entre a história e a ficção não passa mais pela distinção entre o documental e o imaginado, o factual e o fingido, mas sim pela reivindicação de verdade que sustenta uma, aporética, ao passo que a outra se isenta desse padrão pré-lingüístico e é, por isso, mais porosa.

A surpresa aqui está tanto na formulação, por sua originali­dade, quanto na terminologia adotada. Estudioso de filosofia (que, aliás, tende ao trabalho do filósofo cada vez mais, pelo menos desde Mímesis: desafio ao pensamento, do ano 2000), Costa Lima certamente conhece a fortuna do termo aporia. Entre os diálogos

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socráticos de Platão, são chamados de aporéticos justamente os inconclusos, nos quais a discussão se encerra sem que os interlocutores cheguem a uma conclusão firme sobre o tema em pauta. Sem falar no famoso poema de Carlos Drummond de Andrade, "Áporo", em que um inseto cava a terra em busca de uma improvável saída. Maior defensor do ficcional entre os teóri­cos da literatura pós-estruturalistas, Costa Lima parece mais uma vez alinhar-se aos céticos ao escolher esse vocábulo para modelar um conceito: ele, por si só, põe em questão os privilégios da ver­dade. Essa impressão é reforçada pela circunstância de a aporia, conforme a argumentação do autor, ser mais rígida sobretudo na crença (sendo o contrário desta, como vimos com a ajuda de William James, a dúvida).

Dentro desses referenciais, a primeira parte se inicia com uma cerrada revisão do debate acerca de autores que, na Grécia Antigüidade, foram chamados de "historiadores": Heródoto e Tucídides. Estrangeiro em campo minado, Costa Lima não escon­de suas preferências por M.1. Finley e F. Hartog,justamente aqueles que, entre os especialistas em história antiga, têm sido os mais polêmicos. Desde o início vem à tona uma preocupação que atra­vessará o livro inteiro, mesmo as duas partes seguintes, com o temperamento refratário dos historiadores, em geral, frente a quais­quer discussões teóricas, resultando numa espécie de positivismo naif que é freqüentemente "alfinetado" pelo autor: seus maiores inimigos são "o arraigado positivismo dos historiadores, que não aceitam sequer discutir a aporia da verdade", "a marca objetivista do padrão positivista", "o infantilismo positivista dos historiado­res", "a dificuldade dos historiadores de se libertarem da camisa de força que se tornou a objetividade". Se rejeita a redução da história à ficção, devido ao apoio daquela na aporia veraz, o teó­rico não deixa de questionar a inscrição da verdade no domínio do factual, pura e simplesmente. Com isso, ele retoma um dos temas recorrentes de sua obra desde pelo menos O controle do imaginá­rio (de 1984), que é a crítica ao substancialismo inscrito na con­cepção de fato.

Por outro lado, em contraste com os pressupostos do linguistic turn, Costa Lima postula a existência de um nível pré­verbal de experiência onde possa radicar a premissa de verdade dos historiadores. É o que o autor chama de "história crua", aque-

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la onde está imersa a vida. Ela é assim designada - quem sabe?­talvez por não ter ainda sofrido a cocção discursiva. Ou, por ou­tro lado, pela crueza dos afetos humanos, sobre os quais ela avan­ça; num livro que se inicia com as interrogações e as perplexida­des de Heródoto e Tucídides sobre as guerras da Antigüidade, e escrito num tempo em que as paixões bélicas reaparecem em pri­meiro plano, é compreensível que Costa Lima reconheça uma "marca amarga": "a história crua caminha sobre a violência". Deve estar ligada ao mesmo amargor a hipótese de a ojeriza historiográfica relacionar-se com os seus compromissos frente ao Estado-nação. E a conseqüência prática - ou ética - da teoria de Luiz Costa Lima se resume num trecho de síntese sobre toda a primeira parte do livro: "O que esta seção tem afirmado, portan­to, é a necessidade de, reconhecendo-se a aporia específica da história, dar-lhe um tratamento flexível, submetê-la a um uso po­roso". Antes, o autor já tinha observado que é próprio da aporia o risco de se enrijecer contra o autoquestionamento, com a tendên­cia ao dogma. A tarefa por excelência do historiador, portanto, não será a montagem dessa superfície sem poros e veraz, mas, ao contrário, a "abertura de horizontes". O que faz lembrar o conhe­cido ditado segundo o qual "o passado é um país estrangeiro". Mas, como nos ensina este Costa Lima teórico da história, para viajar nele é necessário bem mais do que um passaporte ou um diploma de bacharel.

A segunda parte trata da ficção. Novamente, o autor come­ça pelo começo: na Grécia, primeiro com Homero, depois com a 'tragédia. Um destaque do primeiro capítulo é o tratamento dado a Aristóteles (aliás já discutido em menor profundidade na seção anterior), como um pensador tão seminal no campo das idéias estéticas quanto falhado, por ter sido, na visão de Costa Lima, mal compreendido e banalizado por seus continuadores: sua for­tuna, afinal, terá s;do um infortúnio. A discussão também é origi­nária do Controle do·imaginário, manancial de toda a obra madu­ra do autor, que tem se revelado praticamente inesgotável e ne­cessita de urgente reedição (o primeiro volume da trilogia teve uma reedição revista, mas os outros dois não). Se no livro anteri­or o tema aristotélico revisto foi o conceito de verossimilhança, além do de mímesis, agora o interesse maior recai sobre a tragédia e o conceito de catarse.

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Nessa mesma parte o autor se aprofunda em distin­ções finas, por exemplo entre o real e a realidade, a ficção e a mímesis, o fictício e o ficcional. Reaparece aqui o problema da retórica; para Costa Lima, a redução das teses aristotélicas a um conjunto de preceitos retóricos foi "um desastre" - e, pode-se concluir, a reificação desses preceitos pela crítica literária atual se arrisca a repetir os efeitos desse antigo mal-entendido. Buscando um roteiro próprio, Costa Lima prefere conduzir a discussão so­bre obras marcantes da Antigüidade latina - tais como a Eneida, de Virgílio, e as Metamorfoses, de Ovídio - a partir da relação entre poesia, verdade e imaginação. Os especialistas em literatura antiga talvez se sintam enciumados. Costa Lima verá em Virgílio a tentativa de denegar a ficção, marcada pelo vínculo do seu poema com a glorificação do império romano. Ao passo que as Meta­morfoses tomam explicitamente o partido da imaginação: "O re­sultado é a retórica pôr-se a serviço do ficcional". E, assim como a mímesis tem a propriedade de selecionar valores de uma deter­minada sociedade, inscritos no tempo, destinando-os à outra temporalidade da obra de arte, o ficcional "traz em si incrito o real": mais do que uma representação ou um reflexo dele, a ficção é aquilo que o captura sob a forma de discurso, podendo assim agir sobre ele. Fica evidente o caráter disruptivo e potencialmente subversivo do ficcional.

A seção termina, depois de uma discussão sobre a obra de Wolfgang Iser, com um capítulo inteiramente dedicado à análise crítica - a partir dos pontos teóricos até aqui levantados - de um longo diálogo entre Otaviano Augusto e o personagem principal do romance A morte de Virgílio, de Hermann Broch. Está em cau­sa precisamente o tema latente em todo o percurso de Costa Lima: a quem pertence a poesia? ao poeta? ao Estado? No trecho anali­sado, o imperador procura evitar que o vate moribundo destrua o seu poema épico que glorificava o Império.

A terceira parte é a menos ambiciosa do livro, mas é ela que "amarra" todas as pontas deixadas pelas anteriores - o que talvez já sinalize algo de relevante acerca da sua palavra-chave, "litera­tura". Esta, para Costa Lima, não se confunde com ficção. A pró­pria dificuldade de definir o conceito, que o autor estuda na sua raiz, em F. Schlegel, Mme. de Stael e Chateaubriand, serve-lhe de apoio para investir teoricamente sobre esse próprio vazio. A lite-

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ratura passará a ser o discurso aberto, que comporta o heterogê­neo, o híbrido e o ainda não formulado, e cuja característica sen­sível é o que o autor chama de "espessura da linguagem". Esse traço vago - mas por definição infenso ao tipo de enrijecimento que se cristaliza em aporia - justificaria que obras inscritas origi­nalmente no campo das ciências sociais, como Os sertões e Casa grande & Senzala, uma vez perdida a sua vigência, sejam incor­poradas ao acervo da literatura. Assim como na seção anterior o teórico se faz de crítico e enfrenta A morte de Virgílio, aqui é a vez de o material teórico formulado encontrar uma atuação crítica acer­ca das Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, obra na qual Costa Lima encontrará uma "abstinência de ficcionalidade" que, no entanto, revela uma concepção de literatura mais complexa do que mostra o mesmo escritor em sua obra de imaginação, limitada, se­gundo o crítico, pela subordinação da ficção à realidade.

O último capítulo, na verdade um apêndice, consta de um ensaio de Costa Lima sobre Os sertões - tema de seu livro mais próximo deste, a meu ver, que é Terra ignota, sobre a obra de Euclides da Cunha. O autor adverte que, nesse ensaio, a meio caminho entre um livro e outro, as questões que gerariam Histó­ria. Ficção. Literatura já estão em preparo, embora não inteira­mente formuladas. Em Terra ignota (de 1997), as relações entre história e literatura são o tema de um dos dois apêndices (sendo o outro um dos textos mais importantes e menos comentados de Costa Lima, "O pai e o trickster", sobre o contraste das condições sociais e intelectuais de produção do saber e da literatura em mei­os "metropolitanos" ou "marginais").

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História. Ficção. Literatura será visto como um marco im­portante de amadurecimento dentro da obra de Costa Lima. To­mara que o traduzam logo para alguma língua mais conhecida do que o português, para que as contribuições originais que ele con­tém possam fazer algum eco - inclusive no Brasil (pois faz parte das nossas síndromes esse efeito "bumerangue" da projeção inter­nacional). Entre nós, talvez desperte mais interesse nos departa­mentos de letras do que nos de história (sendo exceção entre estes o da PUC-RJ, onde o autor leciona). É pena, porque os maiores beneficiários deste livro serão os historiadores menos "engessados" nos preconceitos do seu métier.

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Apresentação dos autores

Ana Cláudia Viegas é professora adjunta de Literatura Brasileira da UERJ e de Teoria da Comunicação e Teoria da Ima­gem da PUC-Rio. Publicou, além de artigos diversos, o livro Bliss & blue - segredos de Ana C. (São Paulo: Annablumme, 1998). Desenvolve, atualmente, pesquisa em torno das relações entre a Literatura Brasileira contemporânea e os media eletrônicos e di­gitais.

Andréa Borges Leão é doutora em Sociologia pela Uni­versidade de São Paulo e professora do Programa de Pós-gradu­ação em Educação Brasileira da Universidade Federal do Ceará. Em 2005, realizou estágio pós-doutoral na École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, sobre a formação das cole­ções literárias infantis da Livraria Garnier. Sua última publicação é : LEÃO, Andréa Borges. Universos da devoção, sabedoria e moral: as Bibliotecas Juvenis Garnier (1858 e 1920). In: Revista Educação em Revista N. 43. Belo Horizonte: Faculdade de Edu­cação da UFMG, 2005.

Ângela Maria Dias é professora de Literatura Brasileira, Teoria Literária e Literatura Comparada da UFF & Pesquisadora do CNPq. Ensaísta e crítica literária, desde os anos 80. Publica­ções recentes: Estéticas da crueldade (Coordenação e Organiza­ção com Paula Glenadel), Ed.Atlântica/2004; "Barthes e a foto­grafia: Por uma fenomenologia do afeto". In: GLENADEL, Paula & CASA NOVA, Vera. Viver com Barthes.Rio de Janeiro, 7Le­tras, 2005.

Délia Cambeiro é professora de língua e literatura italiana da UERJ.

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Edson Rosa da Silva é Professor Titular de Língua e Lite­ratura Francesa da UFRJ, Pesquisador do CNPq, Membro do Comitê Assessor de Letras e Lingüísticajunto ao CNPq, e especi­alista da obra de André Malraux, sobre a qual defendeu tese de doutoramento na UFRJ (1984) e escreveu inúmeros artigos em revistas nacionais e estrangeiras.

Joana LuÍza Muylaert de Araújo, professora de Teoria Literária e Literatura Brasileira do Instituto de Letras e Lingüísti­ca da Universidade Federal de Uberlândia e do Mestrado em Teo­ria LiteráriaJUFU, é Coordenadora do Programa de Pós-gradua­ção em Letras - Mestrado em Teoria Literária.

Laura Padilha é professora da UFF, pesquisadora do Cnpq, ex- vice-presidente da ABRALIC e ex-presidente da ANPOLL. Autora, entre outras, das obras: Entre voz e letra (Niterói/Lisboa: EDUFFlNovo Imbondeiro, 1995/2(05); Novos pactos, outras fic­ções. (Porto Alegre/Lisboa: Ed. PUC-RGS /Novo Imbondeiro, 2002.

Luiz Gonzaga Marchezan é professor assistente-doutor de Teoria da Literatura do Departamento de Literatura da UNESP, na FCL do Campus de Araraquara. Organizou, com a Profa. Dra. Sylvia Telarolli, dois volumes: Ce1las literárias: a narrativa em foco e Faces do 1larrador, ambos editados pelo Laboratório Edi­torial da UNESP de Araraquara, em convênio com a Cultura Aca­dêmica, da Editora da UNESP, lançados, respectivamente, em 2002 e 2003. Em 2005, apresentou a edição de Ermos e gerais, de Bernardo Elis, pela Editora Martins Fontes.

Maria de Lourdes Patrini-Charlon é professora do De­partamento de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Suas publicações mais recentes inc1uemA renovação do conto - emergência de uma pratica oral. São Paulo: Cortez Editora, 2005.

Maria Esther Maciel é professora de Teoria da Literatura da UFMG. Doutora em Literatura Comparada, com Pós-Douto­rado pela Universidade de Londres. Autora, entre outros, dos li­vros As vertigens da lucidez: poesia e crítica em Octavio Paz (1995), Vôo Transverso: poesia, modernidade e fim do século

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xx (1999), A memória das coisas - ensaios de literatura, cinema e artes plásticas (2004) e O livro de Zenóbia (ficção, 2004). Tem vários trabalhos publicados em revistas brasileiras e estrangeiras

Marília Librandi Rocha é Professora de Teoria da Litera­tura na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada, USP.

Maria Luiza Berwanger da Silva é professora do Progra­ma de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Além de artigos em periódicos, publicou Paisa­gens Reinventadas (Traços Franceses no Simbolismo Sul-Rio-Grandense). Porto Alegre: UFRGS, 1999.

Marisa Lajolo é atualmente professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie e professora titular de Teoria Literária da Unicamp. Coordena o projeto temático" Monteiro Lobato (1882-1948) e outros modernismos brasileiros" (http://www.unicamp.br/ iel/monteirolobato) que tem apoio da Fapesp e do CNPq. Entre seus livros listam-se: Coma e porque ler o romance brasileiro e Monteiro Lobato - um brasileiro sob medida. Mais recentemente, organizou a publicação dos postais que Monteiro Lobato enviou à noiva entre 1906 e 1908 (Quando o carteiro chegou).

Patrícia Kátia da Costa Pina é professora Adjunta de Li­teratura Brasileira da Universidade Estadual de Santa Cruz-UESC, em Ilhéus, na Bahia. Organizou o resgate e a publicação do livro Vindiciae, de Lafaiete Rodrigues, pela UERJ, em 1998, sob o tí­tulo Vindiciae: em defesa de Machado de Assis; publicou o livro Literatura e jornalismo 110 oitocentos brasileiro, em 2002, pela EDITUS. Organizou, também pela EDITUS, a revista Literatta, em 2002.

Pierre Rivas é professor de Literatura Comparada na Uni­versidade de Paris, e especialista nas relações literárias entre França, Portugal e Brasil. Suas publicações mais recentes incluem: Diálo­gos interculturais. São Paulo: HUCITEC, 2005.

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Regina Zilberman é Doutora em Romanística pela Universi­dade de Heidelberg, Alemanha; Professora Titular na Faculdade de Letras, da PUCRS; Pesquisadora IA, CNPq. Publicações, entre ou­tras: Estética da Recepção e História da Literatura (Ática); Fim do livro, fim dos leitores? (Ed. Senac); A literatura infantil na escola (Global); Como e porque ler literatura infantil brasileira (Objetiva).

Rogério Lima é Coordenador do Programa de Pós-Gradu­ação em Literatura da Universidade de Brasília e autor de capítu­los de livros e artigos publicados em periódicos, especialmente sobre o mundo digital e as relações entre literatura e informática.

Sandra Guardini T. Vasconcelos é Doutora em Teoria Li­terária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo. Professora Associada de Literaturas de Língua Inglesa na Univer­sidade de São Paulo, desenvolve nos últimos anos pesquisa sobre as relações entre os romance inglês dos séculos XVIII e XIX e o romance brasileiro do século XIX. Além de vários artigos e capí­tulos de livros publicados no Brasil e no exterior, é autora de Pu­ras Misturas. Estórias em Guimarães Rosa (1997) e de Dez Li­ções sobre o Romance Inglês do Século XVIII (2002).

Socorro de Fátima Pacífico Vilar é professora da UFPB desde 1987. Atualmente faz estágio de pós-doutorado na PUCRS, com projeto relacionado aos jornais paraibanos. Desenvolve pesqui­sas na área de História da Leitura e História da literatura. Publicou Primeiras leituras e outras histórias, pela EDUFPB e A invenção de uma escrita: Anchieta, osjesuítas e suas histórias, pelaEDPUCRS.

Tha'is Flores Nogueira Diniz é professora adjunta de Lite­ratura Comparada e Literaturas de Expressão Inglesa na Faculda­de de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais e especia­lista em tradução intersemiótica e teatro contemporâneo. Suas áreas de pesquisa incluem a relação entre a literatura e as outras artes, especialmente o cinema, estudo sobre mitos e sobre a intermidialidade. Fez seu doutorado na UFMG e na Indiana University at Bloomington, nos Estados Unidos, obtendo o título em 1994. Fez seu pós-doutorado em Londres, no Queen Mary College, University ofLondon em 2004.

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1. A Revista Brasileira de Literatura Comparada aceita traba­lhos inéditos sob a forma de artigos e comentários de livros, de interesse voltado para os estudos de literatura Comparada.

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Para artigos: a) autor; título do artigo; c) título do periódico (em itálico); d)

local da publicação; e) número do volume; f) número do fascículo; g) página inicial e final; h) mês e ano.

ROUANET, Sérgio Paulo. Do pós-moderno ao neo -moderno. Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n.1, p. 86-97,jan./mar., 1986.

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