revista brasileira de literatura comparada - 08

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Diretoria A B R A L I C 2005/06

Presidente José Luís Jobim (UERJ/UFF)

Vice-presidente Lívia Reis (UFF)

10 Secretário Antonio Carlos Secchin (UFRJ)

20 Secretário João Cezar de Castro Rocha (UERJ)

10 Tesoureiro Roberto Acízelo Quelha de Souza (UERJ)

2a Tesoureira Claudia Maria Pereira de Almeida (UERJ)

Conselho Audemaro Taranto Goulart (PUC/MG)

Eduardo Coutinho (UFRJ)

Gilda Neves Bittencourt (UFRGS)

Ivia Iracema Duarte Alves (UFBA)

Maria Cecília Queirós de Moraes Pinto (USP)

Maria Eunice Moreira (PUC/RS)

Reinaldo Martiniano Marques (UFMG)

Rita Terezinha Schmidt (UFRGS)

Suplentes Márcia Abreu (UNICAMP)

Tania Regina Oliveira Ramos (UFSC)

Conselho editorial Benedito Nunes, Bóris Schnaidermann, Eneida Maria de Souza,

João Alexandre Barbosa, Jonathan Culler, Lisa Bloch de Behar,

Luiz Costa Lima, Marlyse Meyer, Raul Antelo, Silvia no Santiago,

Sonia Brayner, Tania Franco Carvalho!. Yves Chevrel.

ABRALIC c.G,C, 04901271/0001-79 Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Instituto de Letras Rua São Francisco Xavier 524. 11 0 andar - CEP 20559-900 Bairro Maracanã - Rio de Janeiro 1 RJ Fone/Fax: (21) 2587-7313 E-mail: [email protected]

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© 2006 Associação Brasileira de Literatura Comparada A Revista Brasileira de Literatura comparada (ISSN- 0103-6963) é uma publicação anual da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic). entidade civil de caráter cultural que congrega prpfessores universitários. pesquisadores e estudiosos de Literatura Comparada. fundada em Porto Alegre. em 1986,

Todos os direitos reservados, Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida. sejam quais forem os meios empregados. sem permissão por escrito,

Editores José Luís Jobim Lívia Reis Antonio Carlos Secchin João Cezar de Castro Rocha Roberto Acízelo de Souza Claudia Maria Pereira de Almeida

Formatação e Casa Doze Projetos & Edições produção gráfica

Tiragem 2000 exemplares

Revista Brasileira de Literatura Comparada / Associação Brasileira de Literatura Comparada - v,1. n,l (1991), Rio de Janeiro: Abralic. 1991-v, .n,8. 2006

ISSN 01 03-6963

1 , Literatura comparada - Periódicos, I. Associação Brasileira de Literatura Comparada,

CDD 809,005 CDU 82.091 (05)

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Apresentação

Este número especial, contendo o dossiê "ABRALIC: o passa­

do, o presente e o futuro", com a participação de ex-presidentes espe­cialmente convidados, é parte das merecidas comemorações dos 20 anos de atividades ininterruptas da Associação Brasileira de Literatura Comparada, desde a sua fundação em Porto Alegre. Ao longo de duas décadas, a Associação conseguiu transfonnar-se na maior da América Latina, no campo da Literatura, como conseqüência do trabalho con­tinuado de seus associados e de suas sucessivas diretorias.

Como bem ressalta a nossa primeira presidenta, Professora Tania Franco Carvalhal, em texto publicado neste volume, em vinte anos a Associação Brasileira de Literatura Comparada serviu também de mo­delo para instituições congêneres em outros países da América Latina, pois, a partir da ABRALIC, "o movimento associativo ganhou corpo na Argentina, no Uruguai e no Peru e está por alcançar outras regiões sob o estímulo do Comitê de Estudos Latino-americanos da Associa­ção Internacional de Literatura Comparada (AILCIICLA) que tem entre seus objetivos centrais a constituição de novas associações na área que facilitem os contatos entre estudiosos e o intercâmbio inte­lectual entre eles."

O lançamento desta edição no X Congresso Internacional da ABRALIC, realizado entre 31 de julho e 4 de agosto de 2006, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro - em realização conjunta com a Universidade Federal Fluminense e a Universidade Federal do Rio de Janeiro - faz parte de uma celebração da memória do que foi, ao mesmo tempo em que aponta para a construção do que será.

Neste evento, seguimos a prática de organizar simpósios, em que os participantes se agregam de acordo com seus respectivos inte­resses e temas de pesquisa. Foram 75 simpósios, o que sinaliza uma grande vitalidade de nossa Associação. Alguns destes foram coorde­nados por professores estrangeiros ou residentes no exterior, demons­trativo de uma internacionalização crescente de nossas atividades.

O X Congresso Internacional da ABRALIC teve como tema

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o local, o regional, o nacional, o inter-nacional, o planetário: lugares dos discursos literários e culturais, e como subtemas: Lu­gares dos discursos literários e culturais. Construção de identida­des: local, regional, nacional, internacional, étnica, sexual, lingüísti­ca, religiosa, de classe, de grupo. Centro e periferia. Metrópole e colônia. O colonial e o pós-colonial. Herança ibérica e Novo Mun­do. Relações culturais e blocos transnacionais (MERCOSUL e União Européia). Exceção cultural e globalização. Homogeneidade e heterogeneidade. Políticas culturais nacionais e internacionais. In­terseções, compartilhamentos, articulações, singularidades, diferen­ças, assimetrias e hierarquias nos fluxos literários e culturais. Qua­dros de referência da circulação e aquisição do saber cultural e lite­rário. As teorias e seus lugares de enunciação. Modos de ver, modos de julgar, descrições e prescrições.

No desenvolvimento do tema, objetivou-se dar prossegui­mento a um viés de trabalho acadêmico que até o presente momen­to vem contribuindo para o perfil da Associação Brasileira de Lite­ratura Comparada: situar o estudo da Literatura em relação a pro­blemas teóricos fundamentais para a discussão do quadro de refe­rências em que se situam estes estudos, bem como em relação a pesquisas desenvolvidas em outras áreas das Ciências Humanas. Pretendeu-se, ao mesmo tempo, oferecer uma contribuição refle­xiva em relação aos quadros de referência que delimitam fluxos literários e culturais, bem como incentivar a emergência de novas parcerias e projetos entre pesquisadores da área, a partir da reali­zação dos simpósios temáticos.

Por fim, é importante assinalar que participaram como con­ferencistas convidados do X Congresso da ABRALIC os seguin­tes pesquisadores, todos com reconhecida qualificação e produ­ção acadêmica: Ana Pizarro (Universidade de Santiago de Chile), Benjamin Abdalla Jr. (USP), Edson Rosa da Silva (UFRJ), Frank de Sousa (University of Massachusetts Dartmouth), Hans Ulrich Gumbrecht (Stanford University), Lucia Helena (UFF), Luiz Costa Lima (UERJ), Eduardo Coutinho (UFRJ), Pablo Rocca (Universidad de la República - Uruguai), Jean-Marc Moura (Université de Lille), Mabel Moraiía (Washington University), Patrick Imbert (Universidade de Ottawa), Regina Zilberman (PUC-RS), Reinaldo Martiniano Marques (UFMG), Silvano Peloso (Universidade de Roma - La Sapienza).

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Ressalte-se que a publicação em livro dos textos apresenta­dos neste evento (que deve ocorrer no segundo semestre de 2006), a exemplo do que ocorreu com o Encontro Regional da ABRALIC-2005, permitirá a um público mais amplo o acesso ao resultado· deste projeto.

De todo modo, especialmente em uma celebração de 20 anos de existência de uma Associação como a nossa, sempre vêm à baila as questões de que nos ocupamos no passado, junto com as que julgamos relevantes no presente e com as que acreditamos serão importantes no futuro. E é entre estas questões que foram tema de nossas preocupações no passado e as que são, no pre­sente, e serão, no futuro que se fez e se faz a vida da ABRALIC.

José Luís Johim Lívill Reis Antonio Carlos Secchin Jm70 Cezar de Castro Rocha R"oherto Adzelo de Souza Claudia Maria Pereira de Almeida Editores

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Sumário

ABRALlC: o passado, o presente, o futuro

Sob a égide do cavaleiro errante Tania Franco Carvalhal 1 1

A literatura, a diferença e a condição intelectual Benjamin Abdala Junior 19

Literatura comparada: reflexões sobre uma disciplina acadêmica

Eduardo F Coutinho 41 Os confins como reconfiguração das fronteiras

Raul Antelo 59 A dimensão cultural da literatura em Terras e gentes

Evelina Hoisel 83 ABRALIC: sentidos do seu lugar

José Luís Johim 95

Artigos

Censura e crítica: reações de um professor de retórica e poética à leitura de um romance

Márcia Abrell 1 1 3 Presence in language or presence achieved

against language? Hans Ulrich Gumhrecht 1 29

Literatura comparada como forma: escrita e pensamento em Adorno

Joiio Cezar de Castro Rocha 1 39 A rural landscape both anchored and set adrift:

John Updike and the Azores in literature Frank F Sousa 1 57

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10 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n. H, 2006

Resenhas

Ermos e gerais (contos goianos) de Bernardo Élis

AlclIlel10 Bastos 1 76 Antonio Vieira e /'impero universa/e; La C/a vis

Prophetarum e i documenti inquisitoriali, de Silvano Peloso

A1la Lúcia de Oliveira 1 81 Consensual disagreement; Canada llnd the

Americas de Patrick Imbert

Zilâ Bernd 1 86 O exílio do homem cordial: ensaios e revisões

de João Cezar de Castro Rocha

Jaime Ginzburg 189 Joaquim Norberto de Sousa Silva: crítica reunida

org, José Américo Miranda, Maria Eunice Moreira

e Roberto Acízelo de Souza

Luiz Antonio de Assis Brasil 1 92

Apresentação dos autores 1 95

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I Guillén, Claudio. Entre lo uno y lo diverso. Introdu~ción a la literatura comparada. Barcelona: Ed. Tusqucts. 2(Xl5. p.D.

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Sob a égide do cavaleiro errante

Tania Franco Carvalhal (UFRGS)

Vinte anos depois de sua fundação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, a Associação Brasileira de Literatura Comparada consolidou-se plenamente como entidade ca­paz de reunir estudiosos de Literatura e de áreas afins, constituindo­se em um pólo convergente de inquietudes e discussões intelectuais não só no Brasil como em outros países da América Latina. A partir da ABRALIC, o movimento associativo ganhou corpo na Argentina. no Uruguai e no Peru e está por alcançar outras regiões sob o estímulo do Comitê de Estudos Latino-americanos da Associação Internacional de Literatura Comparada (AILC/ICLA) que tem entre seus objeti­vos centrais a constituição de novas associações na área que facilitem os contatos entre estudiosos e o intercâmbio intelectual entre eles.

A presença de comparatistas brasileiros, sua contribuição a estudos em dimensão mundial têm repercutido positivamente. A im­portante Revue de Littérature Comparée, fundada em 1921, dedica­rá um número especial ao Brasil neste ano em que nosso país é ho­menageado na França. Também Claudio Guillén, no prefácio à re­cente reedição de seu livro Entre lo uno y lo diverso (2005), ao aludir à expansão do comparatismo literário em diferentes regiões­na Índia, em Taiwan, Hong Kong, China continental e há muito tem­po no Japão - além da América do Sul, assinala que, nesse último contexto, "é relevante o papel do Brasil"l .

Há, pois, alguns aspectos a considerar a pmtir dessa'i constatações. O primeiro é de que a criação de uma Associação como a Abralic, cuja vitalidade é crescente, respondeu não só à necessidade cultural de um momento dado, mas continua a atender aos interesses de seus a'isocia­dos. O segundo, em decorrência do que se aponta, é que a Abralic, para entender o comparatismo na variedade de suas práticas e no am-

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12 Re\'ista Brasileira de Literatura Comparada. n. X. 200fi

pio campo interdisciplinar a que cOlTesponde, acolheu diversos espe­cialistas, não só de literatura mas de áreas afins, favorecendo o desen­volvimento de múltiplas orientações teórico-críticas. Isso é de impor­tância capital, pois seus congressos, a cada dois anos, se converteram em grandes encontros nos quais se manifestam essas orientações, de­senhando o quadro de tendências críticas mais recentes. Desse modo, os Anais desses eventos se convertem em documento indispensável para se compreender e analisar o panorama intelectual no país. É, por­tanto, em suas publicações que se há de resgatar as diferentes indaga­ções que dominaram a cena intelectual nesses vinte anos e a evolução do pensamento no período. Eles nos revelam que os trabalhos apre­sentados indicam a pluralidade de orientações que caracteriza hoje os estudos comparatistas. Em lugar de significar atomização ou instabili­dade da disciplina, tal variedade é um sintoma de vitalidade e um desa­fio permanente à definição do comparatismo.

Tal fato já seria suficiente para justificar a existência e o cresci­mento da Abralic. No entanto, além de constituir-se um espaço institucional, simbólico e político, como cabe a uma associação desse gênero, enquanto congraçamento de intelectuais, é local privilegiado para o exercício da crítica e da livre expressão. Tenho perguntado, desde o VIII Congresso da Associação, realizado em Belo Horizonte, sobre a natureza do institucional como mediação e a função de associ­ações como a Abralic no ambiente cultural do país. Ou seja, a da sua utilidade, já que ela serve para assegurar a regularidade de funciona­mento da literatura comparada como prática crítica e campo de ensino e de investigação. Além disso, convém acentuar o papel da entidade como instrumento "legitimador" da prática comparatista, isto é, como meio de obtenção do "reconhecimento institucional" da disciplina.

Naquela ocasião, ressaltei também que as práticas que organi­zam a instituição I iterária cooperam para estabelecer o reconhecimen­to crítico e conferem legitimidade aos produtos da instituição na me­dida em que os identificam e discutem os limites dos estudos e os parâmetros para sua avaliação. É portanto no âmbito dos congressos das associações que se expressam as tendências teórico-metodológicas de cada momento na área, que se manifestam os interesses sobre te­mas e corpus como encontro de inquietações intelectuais que não se restringem a uma literatura mas que as ultrapassam e relacionam.

Sabe-se que a natureza "mediadora" das associações não funci­ona apenas em uma única direção. Como espaço de legitimação, uma

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! Carvalhal, Tania Franco. [Org.] Litemtlll'l/ ('(IlIIptlfllt/tI 1/0 MIII/l/o: Qllestiies I! Mé­todos/Litera/llra COl/lptl/'l/(/tI el/ e/ MIII/do: Cue.\·/i/ll/I's .r Méwl/os. Porto Alegre. L&-PM. ICLA, Fundação Vitac, 1997. Há também uma edição dos mesmos textos em franc':s/ingWs [1997].

, Bloch de Behar, Lisa.[Org.] COlllpumtil'e Litem/ure./.\·.\'/Il'S III/d Met/wd.f/La /ittératllre cOIII/Jilrée. Qlle.uiol/s e/ Mé//lIIdes. Montevidco, ICLA, 2000.

• Rama, ÁngeL In: ÁI/1:e1 Rallltl. Li/erattlra e Cu//ura 1/11 AII/é­rica Llltil/tI. [Flávio Aguiar & Sandra Guardini T. Vas­concelos, Orgs). São Paulo. Edusp, 2001, p.47-11O.

Son a égiue do cavaleiro errante 13

associação não é somente a mediação entre as determinações sociais que operam sobre a literatura, mas também o espaço no qual a litera­tura se conforma segundo a lógica da'i mediações. Em outras pala­vras, significa dizer que esse espaço só se compreende integralmente através da análise de sua situação em relação a outros campos sociais. Nesse contexto, as associações estabelecem vínculos dos pesquisado­res entre si, favorecendo a circulação científica e os intercâmbios, re­lacionam as instituições a que pertencem e se articulam ainda com outras associações similares que atuam na mesma esfera de ação. Suas atividades, pOl1anto, não se restringem ao domínio acadêmico, mas têm função política, de natureza integradora e de interação social.

Assim nunca é demais reafirmar que a instituição literária é o campo no qual se realiza toda e qualquer experiência literária e, por extensão, cultural. Abarca, nesse sentido, duas práticas inseparáveis que cooperam para criar uma tensão nos modos de produção da lite­ratura. De um lado, a'i práticas de natureza organizacional reúnem todos os materiais da infra-estrutura técnica e de organização da insti­tuição, de outro, as práticas criativas e imaginativas reúnem os mate­riais do fenômeno estético que se transmitiram em milênios - os códi­gos, normas, gêneros, temas, estilos narrativos e todas as formas artÍs­ticas que permitem a expressão do conteúdo literário. As associações, por sua vez, se estruturam de forma a aglutinar diversas orientações de estudos que adotam como recurso sistemático o método compara­tivo, como o comprovam os estudos reunidos nos volumes Literatura Comparada/lO Mundo; Questljes e Métodos 2 , publ icado em 1997, e C01llparafive Liferafure. Issues and Methods 3 , em 2000.

A informação que obtemos sobre contextos que nos são em geral desconhecidos comprova, mais uma vez, que a noção do literário, em sua conformação e em sua difusão, varia consideravelmente segundo o lugar e a cultura e, portanto, cabe às associações responder a essas va­riantes e facilitar o conhecimento do Outro, próximo ou distante.

Em se tratando do contexto latino-americano é natural que no âmbito da função política que as associações exercem nos venha à memória a reflexão de Ángel Rama sobre as "elites culturais" no antológico ensaio "Dez problemas para o romancista latino-ameri­cano"". Ali o crítico uruguaio ocupa-se com a incorporação social do escritor feita através do que ele designa como "confrarias" ou grupos que o inserem na história cultural, chamando a atenção para a importância "do conjunto dos intelectuais como grupo social".

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Relacionada com a formação de público, processo que rompe com o círculo restrito evitando que os próprios intelectuais sejam simultaneamente produtores e consumidores da criação literária, a constituição de movimentos associativos vai colaborar para que essa ampliação se efetive,

A reflexão sobre a função das associações encontra, então, seus fundamentos menos no campo literário do que nos da antropo­logia ou da sociologia, porque trata sobretudo de relações sociais que nos levam a indagar sobre o sentido de nossas práticas em tem­pos e contextos determinados. Dito de outro modo, trata-se de en­tender que as práticas literárias e culturais têm na esfera social seu lugar específico de exercício e formas particulares de organização.

No discurso de abertura do Colóquio "À partir de Venise: Héritages, Passages, Horizons - Cinquante Ans de L' AILC", reali­zado na Universidade Ca' Foscari daquela cidade, de 22 a 25 de setembro de 2005, procurei igualmente recuperar o sentido da exis­tência de associações literárias em um mundo globalizado. O mo­mento era oportuno, pois comemorava-se o Jubileu da Associação no mesmo local que acolhera o seu primeiro congresso em 1955. O confronto entre o programa do encontro inicial e o deste ano torna­va claro as modificações por que passou a literatura comparada nes­se período. Se antes havia uma concentração de estudos no âmbito europeu, atualmente, o comparatismo atinge expressivo número de regiões e sobretudo a programação do evento procurou questionar as grandes linhas do comparatismo através de três mesas-redondas institucionais. A primeira delas centrou-se na literatura comparada e suas transformações; a segunda enfatizou os estudos regionais e interculturais; e a terceira, as perspectivas futuras da literatura com­parada. Paralelamente, houve sessões temáticas que examinaram as relações entre literatura e cinema, questões de gênero, literatura e tradução, literatura e ciência, identidade/alteridade, cultural/ transcultural, problemas de poética. Enfim, procurou-se analisar a I iteratura comparada em transição, seus métodos, aproximações e conceitos que contribuíram para a disciplina consolidar-se e evo­luir em estreita relação com outras formas de estudo e de compre­ensão do literário.

Percebe-se então que a importância do Colóquio não estava apenas no resgate de um lugar da memória, o do primeiro congres­so. mas na possibilidade de retomar o passado para programar o

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Soh a égide do cavaleiro errante 15

futuro. O Colóquio Veneza 2005 foi uma etapa significativa na construção da memória coletiva.

Daí a necessidade de reexaminar a evolução dos conceitos e a articulação da literatura comparada com outras disciplinas literárias ou não. Um ponto central de nossa reflexão nos dias atuais é, segura­mente, o da renovação dos métodos comparativos diante das modifi­cações introduzidas nos estudos literários nos últimos cinqüenta anos.

De um lado, as novas configurações de mundialização levam a diferentes concepções de literatura universal, integrando os concei­tos de local, nacional, regional, marginal, institucional e mundial. De outro, as contribuições da teoria literária, sobretudo o desenvolvi­mento da noção de texto e de sua produção, modificam nossa ma­neira de considerar o literário e seus procedimentos de construção. Além disso, as noções de difusão, circulação e recepção das literatu­ras nos permitem perceber de forma diferente os processos de apro­priação e de transformação que estão na base desses movimentos. Se o reconhecimento do Outro se torna um dos fatos mais significa­tivos nas relações sociais e humanas, também os estudos da tradu­ção e das práticas mediadoras ganham em importância, pois facili­tam os conhecimentos e os intercâmbios.

A construção de uma memória compartilhada

Se pensarmos na história de nossa disciplina, faz-se necessário sublinhar que ela adquiriu um funcionamento sistemático e tornou­se muito mais do que uma atividade acadêmica discreta e por vezes marginal. Hoje, a literatura comparada tem seu espaço próprio no mundo universitário de vários países e agrada-nos pensar que as as­sociações literárias, como a Abralic e a AILC/ICLA, tiveram um papel fundamental para o seu reconhecimento institucional. O movi­mento associativo, certamente, ajudou o funcionamento da literatu­ra comparada em sua condição de prática crítica e de instrumento legitimador, o que facilitou a difusão da disciplina.

Graças à Abralic, a associações similares e à AILC/ICLA se favorecem os contatos, consolidam-se trabalhos em conjunto e efe­tuam-se trocas de conhecimento, constituindo-se uma comunidade que se organiza e que atua de acordo com aquilo a que a cada etapa se propõe.

Para que servem então as associações literárias, é uma ques-

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16 Revista Brasikira de literatura COIllparada, 11, li, 2(X)6

tão que nos acompanha ao longo do tempo. Sempre cabe examinar como essas associações podem colaborar ao desenvolvimento do campo de estudos e ao estabelecimento de políticas culturais que favoreçam sua expansão. Como podem elas servir ao progresso des­se domínio científico?

Cada vez mais se impõe o interesse em realizar uma espécie de "história comparativa das associações nacionais de literatura com­parada" na qual se examine, em profundidade, a efetiva contribuição que elas têm dado para o desenvolvimento da área e o estabeleci­mento de políticas culturais que favoreçam a sua expansão. Não es­taríamos longe do que propõe Pierre Bourdieu para as disciplinas de ciências sociais em "La cause de la science, Comll1ent I' histoire sociale des sciences sociales peut servir le progres de ces sciences"5 .

Igualmente, se torna relevante para a construção da memória de nossa atuação no tempo a constituição de acervos, com docu­mentação digitalizada, onde seja possível recuperar os percursos associativos, No caso da Abralic. a história da entidade já está sendo resguardada através do Núcleo de Memória e Documentação Abralic, constituído na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, enquan­to a AILC/ICLA tem seus arquivos sediados na Stanford University, nos Estados Unidos,

A natureza "errante" do comparatismo

o XVII Congresso da AILCIICLA, realizado em Hong Kong, em agosto de 2004, cujo tema foi "AI lhc Edge: Borders, Frontiers, Iniliatives", representou a segunda vcz que a entidade se fez presen­te na Ásia, sendo a primeira em Tóquio em 1991. Nada melhor do que esta longa travessia fora dos locais habituais para que fosse evo­cado, na cerimônia de transição de Diretoria, simbolicamente, a per­-.onagem de D, Quixote, de Miguel de Cervantes, da qual se festeja­\'a o 4° centenárid', Procurou-se celebrar a natureza "errante" do cavaleiro que concentra a idéia de uma vida em transformação com uma associação literária que se tem construído nos deslocamentos. :-\, busca infatigável do sonho e a luta pela sua realização, caracterís­tica do livro de Cervantes, justificam o seu emprego para ilustrar a mobilidade da Associação.

Em Veneza, com intuito diferente, o de assinalar as transfor­mações ocorridas no tempo e no espaço, evoquei um outro cavaIei-

, Bourdieu, Piei"!"", In: ;\c/I's d" III re('lierclie {'li .1'1' iCII Cl',I'

s(lcia/cs, 106-107, Paris, lIlars, 1995, p.3-1 O,

" CARVAlHAL, Tania F. "Lc earacti:re crrant el lIlultiple de L' AILC/The ICLA's Div"rsily and Its Itinerant Character", In: (ClA BUllETlN, Rrighalll Young University, v, XXII, n, 2, p, 15-24, 2004

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Soh a égide do cavaleiro errante 17

1'0, Jl cavaliere inesistente, de Ítalo Calvino (1959), herdeiro do an­terior, com uma particularidade: a de não existir. A partir dessa situ­ação irreal, Calvino constrói um romance de cavalaria ao avesso. Nele a epopéia cede lugar à comédia burlesca. Os mitos de cavalaria se decompõem e as tropas do Imperador Carlos Magno se transfor­mam em uma Armata Brancaleone. É nesse aspecto que o relato de Calvino encontra o de Cervantes, que criou um mito contra os mitos e, como observou Augusto Meyer, "um corretor de mitos".

O próximo congresso da Associação Internacional de Literatu­ra Comparada ocorrerá, em 2007, no Rio de Janeiro, com o tema geral "Beyond Binarisms: Discontinuities and Displacement in Comparative Literature". Pela primeira vez, desloca-se a Associação para a América do Sul, dando continuidade a sua errância na valoriza­ção de outros espaços e no reconhecimento do trabalho comparatista que vem sendo realizado pela Abralic nos últimos 20 anos.

Será certamente a oportunidade de evocar um outro cavalei­ro, também aludido no romance de Calvino, o Riobaldo, de Grallde Sertão: Veredas. No texto italiano, a figura de Rambaldo remete à personagem de João Guimarães Rosa não apenas no parentesco do nome, mas no fato de qu.e todos os dois se apaixonam por um outro cavaleiro que somente ao final desvendará ser do sexo feminino.

Do mesmo modo como as associações se articulam e favore­cem as aproximações, o comparatismo contrasta os textos e as per­sonagens em uma reflexão que permite a releitura dos mitos e das lendas, dos gêneros e da idéia de romance até o ponto de se interro­gar sobre o que mudou no mundo e nas relações humanas para que um cavaleiro passe de uma presença que se impõe a sua própria invisibilidade.

Sob a égide do cavaleiro errante, em suas múltiplas variações, a literatura comparada vive a aventura dos tempos e enfrenta, na formulação de perguntas, a sua permanente validação.

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I Saudação aos congrcssislas. In: IV Congresso ABUAUC. Uterolllro e di(erel/("II. AI/llis. São Paulo: ABRALlC. 1<)<)5. p. xxxiii-xxxv.

19

A literatura, a diferença e a condição intelectual'

Benjamin Abdala Junior (USP)

Na sessão de abertura do IV Congresso ABRALIC, realizado na Universidade de São Paulo, articulado em torno do tema Litera­flIra e dUáellça, destacamos o fato de que a situação político-cultu­ral que então vivíamos tornava cientificamente importante que nos­sas pesquisas em literatura enfatizassem suas vinculações supranacionais, como estratégia para fazer face ao vertiginoso pro­cesso de estandardização do mercado globalizador. Relevamos, em especial, perspectivas de estudos comparados que contemplassem diferenças com base nos comunitarismos. Explicitamos o fato de que, para nós brasileiros, eram particularmente interessantes estu­dos voltados para a ampla bacia cultural que nos envolve, contem­plando assim os complexos horizontes culturais ibero-afro-america­nos. A ênfase no comunitarismo cultural seria, assim, uma das estra­tégias de estabelecimento de contrafluxos à unilateralidade do pro­cesso de americanização do mundo, para nos valer dos modelos de leitura de uma sociedade que se organiza em rede e tende à supranacional idade.

A "diferença", que nos conduzia ao tema do congresso, era vista. dessa fOlllla, no contra-pólo dos insulamentos de COITentes críticas que identiticavam diferença com uma espécie de gu~tização. Diferença seria uma forma de propiciar reflexões crítical\ abertas, a pat1ir de margens não hegemônic.ll\, sem confinamento ao local, ao étnico e mesmo ao nacional. Logo, lima perspecti va avessa aos pat1icularismos fechados, tais como se desenhavam, por exemplo, nos movimentos dos negros norte-america­nos. Tratava-se de uma diferença movida pelos embates produtivos de sua própria di versidade e se abtia aos comunitarismos em sua'i vinculações supranacionais, sejam elas culturais, étnicas, de gêneros, etc.

Essa não circunscrição conceitual da diferença às fronteiras

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fechadas de grupos étnicos ou do estado-nação e a tendência da globalização para um mundo sem fronteiras, não obstante, não im­plica desconsiderar a existência concreta desse mesmo estado e seus instmmentos de poder, que continuavam a atuar na vida social. Mais, os estados voltados para o bem-estar de sua rede social poderiam desem­penhar papéis efetivos nessas articulações supranacionais inclinadas ao comunitário. Mesmo em processo de debilitamento, os estados ainda reúnem condições de formular e estabelecer agenciamentos políticos eru favor da sociedade, tornando factível que as fronteiras nacionais pudessem se abrir ou fechar, de maneira a aparar assimetrias dos fluxos da globalização. Evidentemente, seria de se prever que esse jogo com­plexo e problemático, moti vado pelo desejo de constituir formas de so­lidariedade entre os povos, encontraria f0l1es resistências nos interesses contrariados. Para além de presumíveis oposições advindas das corporações hegemônicas, que não deixam de ter suas bases em deter­minados estados, também resistências devidas à continuidade acrítica de hábitos cristalizados, aquietados e imobilistas em sua afeição à condi­ção de subalternidade.

Procurávamos apontar, assim, para uma outra globalização, pau­tada pelo peso da solidariedade comunitária e não aquela do neo-libera­lismo hegemônico, que continua a impor a lei do mais forte. Seria uma globalização solidária, embalada por uma dinâmica tendente a um mun­do, figurado nos sonhos libel1ários, efetivamente sem barreiras. Isto é, sem as barreiras advindas do movimento, perverso em relação aos paí­ses não hegemônicos, dos fluxos avassaladores, de natureza imperial.

Ecologia cultural

o conceito de diferença aparecia-nos associado a uma espécie de ecologia cultural, capaz de propiciar interações sempre renováveis de matérias e campos discursivos diversos. Era esse solo simbólico da diversidade ativa, produtiva, que estava sendo implodido pela massificação dos produtos do shopping cultural da globalização. Di­versidade, assim, não pode ser confundida com o consumo de produ­tos estandardizados, neles embutidos um determinado perfil de consumista. Por ecossistema, estávamos entendendo uma produtiva coexistência contraditória de pedaços de culturas diferentes, em pro­cessos contínuos de interações e mesclagens. Logo, como um ecossistema híbrido que não se afina à previsibilidade dos produtos

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dos shoppings culturais, nem com identidades míticas, construções cristalizadas, imaginadas no passado.

Não há sentido em se procurar rastrear pretensas culturas "pu­ras" em estratégias de depuração, pois qualquer recorte do passado leva-nos, ao contrário, à evidência de que se trata de construções que legitimaram hegemonias sociais e de que tais construções ordenaram o diverso em função de interesses dominantes. Tendo em conta que as configurações culturais são híbridas e apontam para várias temporal idades e espaços, não é possível deixar convergir para elas redes discursivas que têm referenciais locais, regionais e nacionais. Melhor ainda, referenciais comunitários supranacionais, conforme já indicamos anteriormente. A imagem ecológica leva-nos a um sujeito concreto, historicamente situado, e será a partir de seu lócus que pro­curará acessar um mundo que se articula em rede.

Convém ainda ponderar que os indivíduos ou grupos de indivÍ­duos com vínculos presenciais definidos, com sentimento de perten­cer a determinado espaço, constituem a esmagadora maioria da popu­lação. Não pertencem a uma minoritária elite cosmopolita, cuja ideo­logia procura fazer acreditar na universalidade de seulócus privilegia­do. É assim que esse campo intelectual cosmopolita se imagina e pro­cura naturalizar suas perspectivas políticas. Sua lógica desconsidera interações internas, tendendo a assimilar os modelos atticulatórios do capitalismo financeiro como índice de valor.

Ao contrário dessas postulações, há um anseio por um lugar, que é justamente o local físico de onde os indivíduos e grupos de indivíduos acessam ou julgam capazes de acessar o mundo. A partir da considera­ção desse lócus, o método comparatista reúne condições de petmitir evidenciar, em estudos contrastivos, diferenças não apenas entre os pa­íses de nossa contextualidade cultural, mas também as internas a cada um deles. São diferenças identificadas com experiências históricas e di­versidades culturais análogas, que se configuram entre os estados naci­onais enlaçados em rede pelas articulações comunitárias. Há uma rede a envolver Brasil e Moçambique, como se observa no "Poema a Jorge Amado", de Noêmia de Sousa, onde os dois países são aproximados pelas diferenças e aspirações comuns:

"O cais ... O cais é um cais como muitos cais do mundo ... As estrelas também são iguais

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às que se acendem nas noites baianas de mistério e macumba ... (Que importa, afinal, se as gentes sejam moçambicanas ou brasileiras, brancas ou negras?) Jorge Amado, vem! Aqui nesta povoação africana o povo é o mesmo também é irmão do povo marinheiro da baía, companheiro Jorge Amado,

amigo do povo, da justiça e da liberdade"2!

Este poema de 1949, vinculado à atmosfera ideológica dofivn! populaire anti fascista que se iniciou no período entre-guerras, é revelador de como o repertório empenhado que Jorge Amado ajudou a construir, circulou entre os países de I Íngua oficial portuguesa. Pode­se afirmar que o compartilhamento de um repertório cultural com múltiplos pontos de convergência permite a construção de poemas como o de Noêmia de Sousa, onde o local. o nacional e o étnico conflu­em supranacional mente para o comunitário, este imbricado no social.

Em relação às inclinações dos estudos de literatura comparada, afirmam-se assim diferenças que nos aproximam através de traços multíplices de nosso comunitarismo cultural. Ao comparatismo que adveio das circulações literárias decorrentes de hegemonias coloniais e imperiais, necessário para o entendimento de vertentes de nossa cul­tura, procuramos destacar a importância de um comparatismo emba­lado pela solidariedade entre os setores não-hegemônicos de nossa sociedade. Radicavam-se aí facetas de nossa cultura escamoteadas pelas ideologias dominantes. O rastreamento desses traços e das dinâmicas que estabelecem na atualidade seria também repertório para formas prospectivas de nos inserirmos ativamente em termos de política cultural.

Diante da assimetria dos fluxos glohalizadores e do prestígio de seus enredamentos mercadológicos, é que temos reiterado a impor­tância de laçadas comparatistas pela América Latina e pelos países de línguas portuguesa e espanhola. Seriam estratégias tendentes a cons­truir conjuntos de rostos diferenciados, tais como eles se desenharam em nossas experiências históricas. Tais rostos híbridos, onde coexis­tem traços locais, regionais ou nacionais, tenderiam à construção de fronteiras múltiplas, não apenas para ações internas ao estado nacio­nal, mas também externas. Em termos de globalização, essas ações

, SI/ligue lIegro. Luanda: União Jos Escritores Ango-Ianos. IIJXX. p.136.

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A literatura, a diferença e a condição intelectual 23

não deixariam de serem marcadas por modelos de trabalho hegemônicos, cujos produtos enchem as prateleiras dos shopping.\'

culturais, mas a resistência não defensiva em relação às águas desses fluxos globalizadores permitirá ao comunitário não se reduzir a eles. Ao alargar-se do local ao supranacional, ele poderá valer-se da dinâ­mica dos novos fluxos estabelecidos configurando, em termos polí­tico-culturais, blocos que concertem ações interativas comuns.

Hegemonia financeira e fluxos da globalização

o movimento do capital financeiro, na atualidade, é bastante complexo e não permite a simples oposição dicotômica entre padro­nização c diversidade. A hegemonia do capital financeiro opera de forma vertiginosa em fluxos que diminuem continuadamente distân­cias por velocidades. É altamente flexível, enredando e operando em seu favor os produtos industriais. Essa flexibilidade, aliada à recursividade de suas estratégias, deixa a assimetria globalizadora capaz de movimentos surpreendentes, para lucrar de alguma forma, conforme assinalamos num ensaio mais recente:

"A consciência dessas potencialidades mercadológicas - entre a estandardização massificadora e a transformação da diferença em etiquetas predeterminadas - parece-nos ser um dos traços distin­tivos entre o que ocorre na atualidade globalizadora e as perspec­tivas impositivas, tradicionais nos processos coloniais e imperiais dos séculos passados. O novo Império, ao administrar em escala planetária, estreita as distâncias como nunca ocorrera anterior­mente, procurando levar em consideração as margens das dife­renças, sempre de olho no mercado. Procura assim também aten­der a um consumidor mais resistente à padronização, ganhando-o desde as instâncias da produção do bem cultural. Se antes preva­leciam as lógicas produtivas mais circunscritas a possíveis inte­resses nacionais, agora se impõem critérios das corporações supranacionais. Essa inclinação para a transnacionalidade não impede, contudo, que as corporações continuem a ter suas bases em determinados territórios, que regulam, a seu favor, os fluxos econômicos. São esses os novos territórios sacralizados, identifi­cados com o Bem, com a supernação umbilicalmente associada ~IS coq)orações e suas agências de controle. Lá se encontram igual­mente os monumentos da nova ordem e, através de agências como o FMI, a OMe, o Nafta, etc., além - é evidente - de Hollywood e

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sua fábrica de mitos: os paradigmas econômicos e os modelos simbólicos para o conjunto do planeta"" ,

Considerávamos que estratégias puramente nacionais, que em­balaram a modernidade, seriam além de insuficientes, equivocadas do ponto de vista político. Se há perversidade no debilitamento das fronteiras dos estados nacionais por parte do poder imperial e sua economia de mercado, essa fragilidade pode ser importante para a extensão de laços comunitários para além dessas fronteiras. Como estava em nosso horizonte uma perspectiva política confluente com a formação de blocos c de fronteiras de cooperação, não ficaríamos assim restritos apenas às áreas culturais, mas haveria confluência para ações solidárias mais abrangentes. Pensávamos, nomeadamen­te, nas articulações governamentais que estavam sendo desenvolvi­das timidamente nas chamadas cimeiras ibero-americanas e na CPLP - Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. E também nos blo­cos econômicos como o Mercosul, que então engatinhava.

Essas conformações em blocos podem permitir estabelecer campos de resistência ao mundo do capital financeiro, com sua ver­tiginosa lógica do lucro, aliando acumulação do capital e mudança especulativa. David Harvey aponta "princípios gerativos" desse ca­pitalismo:

"Podemos discernir, por trás do fermento da modernidade e da pós-modernidade, alguns princípios gerativos simples que mol­dam uma imensa diversidade de desfechos. Esses princípios, no entanto, fracassam flagrantemente (. .. ) em termos da criação da novidade imprevisível, apesar da capacidade aparentemente infi­nita de engendrar produtos, de alimentar todas as ilusões de liber­dade e de caminhos abertos para a realização pessoal. Para onde que vá o capitalismo, seu aparato ilusório, seus fetichismos e o seu sistema de espelhos não demoram a acompanhá-lo"4.

Diferentemente dessa reduplicação ao infinito dos espelhos, David Harvey opõe a tese de Pierre Bourdieu que destaca a improvização regulada pelos hábitos adquiridos através da experi­ência histórica. São essas condições que estabelecem determinados parâmetros à invenção, estabelecendo limites. Talvez se possa fazer aqui uma observação: quando se fala em experiência histórica não se deve buscá-Ia apenas nos rastros do passado, mas nos gestos, às vezes

\ ABDALAJUNIOR, Benjamin. Frollteims /lltÍltiplas. idellti­

dades plumis:u/II ell.\"l/io .\"obre

/IIestiçage/ll e hibridi.\"/IIo cul­

rum/. São Paulo: Editora SE­NAC São Paulo, 2002. p. I K.

4 COlldirlio pú.\"-III/1de,."a:

UIIIl/ pe.\"quisa .\"/lbre I/.\" /lri­

gell.\" dll /iludI/lira cultllm/. 13. cd. São Paulo: Ediçücs Loyola, 2004. p. 308.

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5 l'(Ie.\'i{/.~ <"IIII/plel/I.\'. Madrid: Espasa-Calpc, IlJ7X. p. 20().

A literatura, a diferença e a condição intelectual 25

sonhadores, que embalaram os percursos. Dessa forma, a busca da diferença pode ser mais ampla e vista como práxis de afirmação da potencialidade subjetiva e não apenas submissão a uma objetividade teoricamente construída ou imaginada. Ou como diz Antonio Macha­do, no Canto XXIX, de Provérhios y cantares:

"Caminante, son tus hueHas el camino, y nada más; caminante, no hay camino, se hace camino ai andar. AI andar se hace el camino, y ai volver la vista atrás se ve la senda que nunca se ha de volver a pisar Caminante, no hay camino, sino estelas en el mar").

No mar da vida, não há um caminho, mas estrelas que orientam o caminhar. Olhar para trás implica ver trajetórias que não se repeti­rão. Nesses caminhos, entretanto, poderíamos acrescentar, é possível divisar formas de práxis, que podem levar a inferir o sentido dos im­pulsos que motivaram atores de outras configurações históricas. As práxis, em suas interações teoria e prática, consubstanciadas em pro­jeto, vão definindo possíveis caminhos para quem não deixa de obser­var estrelas, que se elevam no mar da vida, figurando horizontes.

Agenciamentos comunitários e interações culturais

Refletir sobre a diferença, significava para nós, nos princípios dos anos 90 e continua a significar na atualidade, situá-Ia num pro­cesso de agenciamentos comunitários que têm um solo histórico. No Brasil, esse solo cultural é enfaticamente híbrido, pela presença dos povos ameríndios e africanos, além dos europeus. A pluralidade cultural dos asiáticos (Oriente Médio) também fez sentir seus efeitos desde os tempos coloniais; mais recentemente houve influxos migra­tórios desse continente. Tais interações levaram-nos à consideração de uma diferença cultural complexa, interativa, onde a cultura brasi­leira se alimentava produtivamente de pedaços de muitas culturas, sem deixar de sofrer os efeitos dos imbricamentos com os patterns

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hegemônicos nos fluxos culturais. Logo, seria importante destacar em nossa literatura esses instáveis processos de identificação, em cuja dinâmica se efetuam contínuas atualizações dessas matérias cul­turais complexas. Procurávamos nos afastar, assim, dos espartilhos ideológicos de identidades míticas, voltadas para um passado, que também não deixava de ser uma construção. Na voz de Carlos Drummond de Andrade, em "Camões: história, coração, linguagem", encontramos:

"Dos heróis que cantaste, que restou senão a melodia do teu canto? As armas em ferrugem se desfazem, os barões nos jazigos dizem nada. É teu verso, teu rude e teu suave balanço de consoantes e vogais,

teu ritmo de oceano sofreado que os lembra ainda e sempre lembrará. tu és a história que narraste, não o simples narrador. Ela persiste mais em teu poema que no tempo neutro. universal sepulcro da memória"!>.

Em relação aos estudos comparados. nü:-. limites da língua por­tuguesa, tratava-se de verificar. por cxcmplo, o que existia da cultu­ra portuguesa ou das dos países africanos na literatura do Brasil; da cultura brasileira ou dos países africanos na literatura de Portugal; ou das culturas do Brasil e de Portugal nas literaturas africanas de língua portuguesa. Há um diálogo. embutido nas formas literárias que circulam entre os países de língua portuguesa. E, na circulação dessas formulações do imaginário, podc ser evidenciada, como no poema de DlUmmond, uma visão crítica do repertório que nos envolve.

As formas literárias das culturas de língua portuguesa circu­lam, assim, permitindo uma visão crítica de um imaginário intercambiado. Essa criticidade reúne condições de ser mais apurada pela intersecção de outras experiências históricas. Em DlUmmond, no diálogo entre as culturas brasileiras e portuguesas, há uma apro­priação crítica desse imaginário, desidcologizando o repertório poé­tico de apropriações conservadoras. E a literatura comparada, nesta perspectiva, mais do que o estudo de dois ou mais escritores de

I, Apud ABDALA JUNIOR. Benjalllin. ClIllllieS - él'im (' líricll. São Paulo: Editora Scipione. 1993. p. 62.

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A literatura. a tlireren~'a e a contli~'ã() intelectual 27

diferentes literaturas, dois ou mais textos dispostos lado a lado, se mostra campo fértil para a discussão de uma questão crítica mais abrangente e que envolve as duas culturas. Com o procedimento, partindo da literatura, poderíamos ainda imbricar, em suas formula­ções discursivas e do imaginário, discursos de outras áreas do co­nhecimento e de outros campos artísticos.

A busca da diferença conflui assim para a concepção de heterogeneidade constitutiva, malhas discursivas, também elas tenden­tes ao rompimento de fronteiras estáticas. Mais, pois esse movimento para "fora" deveria ser visto em sua interatividade, conformando um campo intelectual supranacional. A interação e a recursividade são possíveis pela existência desse campo, onde encontramos sujeitos con­cretos capazes de olhar contrastivamente para sistemas nacionais - o seu e os dos países ab,ircados pelos horizontes comunitários.

Potencialidade subjetiva

o comparatismo, com inclinações ao comunitarismo cultural, estava imbuído de um certo utopismo, como indicamos atrás. Uma utopia entendida como um "princípio esperança", para nos valer da formulação de Ernst Bloch. Utopismo concreto, não abstrato, con­cretizado em projetos e motivado pelas potencialidades subjetivas de quem tem sonhos diurnos. Imaginar a constelação de países ibero­afro-americanos, com os pés no Brasil atual, ampliando na medida do politicamente possível redes de articulação com essa inclinação, se nos afigurava um horizonte proveitoso para nossas pesquisas de­senvolvidas no âmbito do comparatismo literário. Parecia-nos fun­damentai relevar essa potencialidade do sujeito (individual ou coleti­vo), procurando interações onde cada participante da interação co­munitária (individualmente ou em grupo) seria levado, pela práxis, a internalizar o fato de que ele seria a razão de ser desse processo interati vo.

A práxis assim entendida reuniria condições de desenhar uma novaperSOll11 inclinada a descartar, do ponto de vista crítico, hábitos arraigados, desde os tempos coloniais. Constituiria ações tendentes a não aceitar importações, como exemplo, à maneira que se fez no passado e continua a ocorrer no presente, das últimas modas críti­cas, sem as devidas contextualizações. Estaria subjacente a ela a consciência de que os "nós" da vida social, diante de uma concepção de

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mundo que se organiza em rede, interagem com muita.;; outra.;; séries discursivas, demandando atualizações situacionais próprias e criativa.;;.

É nas interações desses campos que se afirma a função social da literatura. É por aí, combinando estratégias política.;;, éticas e discursivas, que segundo Renato Cordeiro Gomes, Ricardo Piglia procura

"recuperar resíduos utópicos da literatura. O escritor argentino fala, então, no paradoxo da língua privada da literatura que é o rastro mais vivo da linguagem social. A intervenção política do escritor se define, antes de mais nada, na confrontação com os usos oficiais da linguagem, naquilo que ele chama de "ficções oficiais". Não é à toa, que, ao findar sua conferencia em Havana, ele evoque as "Cin­co dificuldades para escrever a verdade" requeridas por Brecht: ter a coragem de escrever a verdade; ter a inteligência de reconhecer a verdade; possuir a arte de tornar a verdade manejável como uma arma; ter a capacidade de escolher aqueles em cujas mãos a verda­de se torna eficiente; ter a astúcia de divulgar a verdade entre mui­tos, de difundi-Ia. Assim o escritor argentino postula um modo de imaginar as possibilidades de lima literatura futura ou as possibili-dades futuras da literatura'·7. 7"0 intelectual e a cidade das

letras". In: MARGATO, Izahd

A voz do crítico brasileiro soma-se à do argentino Piglia, que está em Cuba e leva a 8recht. Os fios da rede enlaçam-se em nó discursivo compartilhado, diante da-atração das "possibilidades futura.;; da literatu­ra". Envolve essa reflexão o sentimento de peltencimento comunitário, sob os horizontes latino-amelicanos, mticulado ao influxo do campo inte­lectual supranacional da arte empenhada. O porta-voz dessa alte é Brecht, cujo discurso aponta para fOlma<; mais ampla.;; de solidariedade.

Hibridez e solo histórico

Os sentidos da diferença, que embalavam nossas pesquisas, le­vavam-nos a buscar, assim, traços de confluência.;; entre culturas pau­tadas pela hibridez. Nada elas mesclagcns subordinantes, afins ela ide­ologia das elites brasileiras, que vêm do século XIX, onde a mistura era veículo de valorização de suas próprias colorações. Embutida na idéia de miscigenação, estava a tendência à valorização dos padrões étnicos e culturais dominantes. Apontava-se, com "falsa consciência", nas formulações ideológicas que tiveram origem no Segundo Império, para processos de branqueamentos culturais e para fonna" de democrJCia

& GOMES, Renato Cordeiro. Organizadores. O pllpel do illtelectual h(}je. Belo Hori­zonte: Editora UFMG, 2004. p. 127.

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, Obra l'"éticII. Lishoa: Imprensa Nacional-Casa da :Vloeda, 1991. p. 82-83.

. , Obm poética, p. 80-XI.

A literatura, a dil'erelwa e a condição intelectual 29

racial como estratégia .. de manutenção da hegemonia dessa .. elites. Ao contrário dessas formulações, procurávamos apontar a dife­

rença de nosso tecido cultural híbrido e o fato de nossa cultura encon­trar sua dinâmica justamente nesses constituintes diversificados, que não se reduziam a uma síntese monológica. Encontrávamos em nossa mis­tura e nas contradições que nos envolviam. Esse contexto situacional, configurado nas redes comunitárias, poderia interseccionar-se com re­des discursivas de outros sistemas literários, de forma a constituir enla­ces supranacionais mais amplos e complexos, como apontam os seguin­tes versos do poema "Coração em África", de Francisco José Tem-eiro:

"( ... ) de coração em África com as mãos e os pés trambolhos disformes e deformados como os quadros de Portinari dos estivadores do mar e dos meninos ranhosos viciados pelas olheiras fundas das fomes de Pomar vou cogitando na pretidão do mundo que ultrapassa a própria cor da pele dos homens brancos amarelos negros ( ... ) Deixa-me coração louco deixa-me acreditar no grito de esperança lançado pela paleta de Rivera e pelos oceanos de ciclones frescos das odes de Neruda; deixa-me acreditar que do desespero másculo de Picasso sairão pombas que como nuvens voarJo os céus do mundo de coração em África"x.

As referências ibero-afro-americanas articulam-se, no mesmo poema, com redes étnicas que levam aos EUA e à África:

"Mac Gee cidadão da América e da democracia Mac Gee cidadão Negro e da negritude Mac Gee cidadão Negro da América e do Mundo Negro Mac Gee fulminado pelo coração endurecido feito cadeira elétrica (do cadáver queimado de Mac Gee do seu coração em África e sempre vivo floriram flores vermelhas flores vermelhas flores vermelhas e também azuis e também verdes e também amarelas na gama polícroma da verdade do Negro"'! .

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As redes supranacionais, em que o étnico confluiu para o soci­al, não se mostram construídas em abstrato, mas a partir da situação de cada sujeito, tomado em sua dimensão coletiva, sob mediação do campo intelectual e suas ramificações supranacionais. O poeta está na Europa e, com o "coração em África", enlaça o movimento cultu­ral da época, com ênfase nas culturas ibero-afro-americanas e matização ideológica panafricanista. A execução racista de Mac Gee veio a ocorrer em meio do protesto da intelectual idade, não apenas dos EUA, mas de todo o mundo. No poema de Tem'eiro há referên­cia aos blues e aojaz'z, um tópico dos poemas panafricanistas - um "nó", em termos de rede, que se estabelece a partir de um acesso africano. Esta é a situação histórica do após-guerra específica das inclinações não só do poeta, mas também do campo intelectual supranacional de seu tempo, tal como se situava nas margens do Atlântico de língua portuguesa. A diferença de Tenreiro, em relação ao campo articulador, é de que em África estava sua via de acesso para articulações de sentido libertário. Mais do que a afetividade de seu coração, uma postura intelectual.

Os "nós" das redes, como se observa, interseccionam campos discursivos diversos, que se atualizam em situações históricas e so­los determinados, não abstratos, onde atuam atores sociais que têm história e são impulsionados por suas potencialidades subjetivas. Nesse sentido, cada atualização situacional é capaz de estabelecer um fluxo, constituindo uma intersecção que ocorre num determina­do espaço, não apenas virtual. Observemos, para ilustrar possibili­dades estéticas de uma explicitação interseccionista, o poema "Chu­va Oblíqua", de Fernando Pessoa:

"Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios Que largam do cais arrastando nas águas por sombra Os vultos ao sol daquelas árvores antigas

O porto que sonho é sombrio e pálido E esta paisagem é cheia de sol deste lado ... Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol

Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo ...

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'" Obrtl l'0étic'lI. I ó. rCilllp. Org.: Maria Aliele Galhoz. Rio ue Janeiro: Euilora Nova Aguilar, 199X. p. 113.

A literatura, a uirerença e a conuição intelectual

o vulto do cais é a estrada nítida e calma Que se levanta e se ergue como um muro, E os navios passam por dentro dos troncos das árvores Comuma horizontal idade vertical. E deixam cair amarras na água pelas folhas [uma a uma dentro ... ( .. ,) "10

31

"Liberto em duplo", o poeta atual iza conscientemente duas configurações discursivas, de temporal idades distintas: a observada e a sonhada. São imagens sobrepostas, onde o filtro polifacetado do poeta obtém efeitos plásticos dessa intersecção, que se efetiva em movimento, como num cinematógrafo, Manifestam-se, dessa forma. as marcas de um sombrio lócus enunciativo, em contraste com uma paisagem de sol. Embora o poeta português sonhe com um "porto infinito", ele está em 1914, na cidade de Lisboa, sensibilizado pelos movimentos vanguardistas e perspectivas estéticas finisseculares. A sobreposição constitui um nó discursivo para onde confluem essas perspectivas artísticas, sob a atração de um novo perspectivismo. que motivava o projeto literário de Fernando Pessoa.

Em cada um dos nós, conjugavam-se assim malhas discursivas que se encontram num sujeito ou grupo de sujeitos provenientes de um contexto "textual" e também de seus contextos situacionais. De\e ser considerado inclusive o contexto tecno-físico de onde se "fala". fato que demanda uma determinada atualização dessas redes, além dos direcionamentos para onde convergem os fluxos. Tais sujeitos têm os pés num determinado lugar e será a partir dessa posição que circulará sua cabeça. Não se trata, evidentemente, de um local fixo, pois as situações enunciativas são variáveis demandando contínuas reorganizações da experiência histórica.

A administração da diferença

Dessa maneira, as redes discursivas, ao apontarem para o solo nacional, são interativas. Na dinâmica das articulações comunitári­as, implicam recursividade e a vetorização supranacional. Essa incli­nação se faz, não obstante e é importante reiterar, num lócus enunciati vo determinado, sem abstrações. Se um crítico literário tem seu contexto situacional numa universidade norte-americana, por exemplo, ele não pode desconsiderai' () fato de que seu discurso não

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deixa de estar associado a estratégias hegemônicas desse país, que pode inclusive aceitar a capitalização da diferença. Uma diferença evidentemente que se consubstancia em produtos, desde a imagem democrática do país a mercadorias mais diretamente comercializáveis. Haverá, além disso, um "reconhecimento" internacional da institui­ção onde trabalha, que receberá alunos, inclusive dos países não­hegemônicos. A partir dessa situação, serão criadas as condições para convênios interinstitucionais com esses países.

É provável que o fluxo cultural hegemônico, conf~gurado em teorias e correntes críticas, poderá ler um entreposto associado. Se esse porto for efetivamente crítico, é de se presumir que veiculará fluxos de natureza diferente daqueles da estandardização da cultura de massa, mas suas práxis não deixarão de apresentar vetorização equivalente. Sem contextualização das redes discursivas intervenientes na nova situação, o porto corre o risco de ser particu­laridade de um desenho mais abrangente da administração da dife­rença. O lócus, no caso da sublocação, não deixa de estar no centro hegemônico, que imprime o fluxo da rede. Sua hegemonia permite­lhe que tolere a diferença, desde que seja uma diferença administra­da. Através de estratégias de convergência dessa administração, a diferença poderá inclusive dinamizar a rede hegemônica.

O campo intelectual supranacional, construído por esse fluxo assimétrico, na lógica das redes, pode cooptar intervenientes de ou­tros lócus, para além das fronteiras nacionais. A simples aceitação passiva da sublocação evidentemente reproduz acriticamente o mes­mo, descontextualizando-o por desconsiderar ou minimizar redes locais, regionais ou nacionais. Se os intercâmbios são necessários, o intelectual envolvido em redes dessa natureza deve ter consciência das matizações políticas envolvidas. Não apenas implicações políti­cas de ordem geral, mas em função de sua própria práxis, que não pode ser simples reprodutora de conformações já estabelecidas. Uma rede interativa é constituída de sujeitos capazes de produzirem im­pulsos, tornando recursivos os fluxos dominantes.

É importante para a condição do intelectual acadêmico, assim, que esses atores compreendam o sentido político das intersecções situacionais que de forma consciente ou não confluem para seu dis­curso crítico. Estabelecem-se agenciamentos de toda ordem, tor­nando inevitáveis atitudes políticas, onde o convívio entre o hegemônico e as diferenças não pode redundar na neutralização des-

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A literatura. a difcrelH,'a e a condição intelectual 33

sas 1Iltimas. Isto é, em algo parecido com as formulações mitológi­cas da democracia racial brasileira,já mencionada. Democracia efc­tiva pressupõe o convívio ativo de diferenças. A fala construída num ccntro hegelllônico pode ter largo alcance, mas, Ü maneira de Edward W. Said, ela deve ser contrapontística. Se os canais da instituição acadêmica que se situam num espaço geográfico definido podem se aI i mcntar da di fercnça dessa postura intelectual, eles poderão veicu­lar, no mesmo fluxo comunicativo, concepções contra-hegemônicas. É um jogo de sentido político e o intelectual consciente deve conhe­cer suas implicaçõcs. Na universidade, como na vida social em geral.

Os atores de um campo intelectual supranacional efetivamente crítico devem estar atentos para o implícito das formulações hegemônicas. Atualizações críticas, nesse sentido, não podem igno­rar os cruzamentos discursivos de contextos situacionais provenien­tes das relaçõcs de pcrtencimcnto desses sujeitos. Mesmo adotando atitudes críticas como se estivessem em situações psicossociais de migrantes, eles não dialogam em abstrato, mas com culturas diferen­tes, provenientes de experiências históricas que têm suas singulari­dades. E estar nos EUA não é como estar no Brasil ou em qualquer outra parte do planeta, como aparece nos discursos globalizadorcs tendentes ü neutral ização da diferença e ü sublocação do mesmo. Se os óculos críticos advindos dessa circulação cultural podem aguçar a percepção, em função da própriacriticidade eles não podem impli­car convergências ópticas inclinadas à preservação da continuada colonizaç:ão do imaginário nas regiões ou países situados na perife­ria do capital.

Podcr-se-ia afirmar que entre a periferia e o centro há agenciamcntos discursivos motivados pelas articulações de cada nó, que configuram o lócus enunciativo. Centro e periferia não se afigu­ram na prütica como catcgorias estanques, dicotomicamente fecha­das, mas como situações cm tensão, intercorrentes, de natureza hí­brida e contraditória. Ocorre, nesse sentido, a possibilidade de visão mais concreta das diferenças de quem se situa nas margens, cujas perspccti vas podem relevar distonias do centro e o sentido imperial da assimetria de seus fluxos. É imprescindível essa reflexão crítica e uma atitude eticamente responsável para esse sujeito que estü fora do centro hegemônico. Só assim ele não moldará seu rosto com a máscara da subalternidade, aceitando uma diferença imposta. Ao contrário, situando-se como sujeito de scu discurso ele procurará

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34 Revista Brasileira dc Litcratura Comparada. 11. K .. 2006

seus pares comunitários para fazer face à ideologia dominante. Como as situações são misturadas e podem ser vistas em termos de hegemonia, então é possível estabelecer fronteiras de solidariedade, por exemplo, até entre o centro da periferia e a periferia do centro. Há o específico de cada uma dessas situações, mas também possibi­lidades de articulações para reverter fluxos imperiais e estandardizadores que não abrem espaços para as diferenças.

A diferença intelectual e a universidade

Tradicionalmente, é função do intelectual o trabalho de reflexão sobre essas redes de confluências discursivas. Sua própria consciência constitui um lócus enunciativo, de onde ele acessa essas redes. Faz parte de seu papel estabelecer distanciamentos críticos para refletir sobre os sentidos dessas interconexões. Não se trata, contudo, de construir pretensas práticas de não-envolvimento, inclusive aplicando uma espécie de "não" sistemático para todas as situações. Tais atitudes sempre se mostraram simulações, na prática articulações ideológicas tendentes à legitimação da ordem estabelecida. Por outro lado, em oposição a essa negatividade, a positividade iluminista, numa crença quase messiânica na razão, se mostrou problemática. Essa postura pode revelar-se historicamente contraditória. Observe-se, nesse sentido, o que ocorreu durante a modernidade, em algumas formas de apropriação autoritárias ou totalitárias, onde ela foi instrumentalizada como legitimadora de hábitos avessos à razão crítica dessa mesma condição intelectual.

Parece-nos que há a necessidade de dissociar a adesão afetiva, própria das situações de pertencimento comunitário, local ou transnacional, do distanciamento crítico. Há agenciamentos entre essas malhas discursivas - configuradoras de laços de adesão e de distanciamento - que devem ser explicitados pelo intelectual. Afirma­se assim uma diferença que não é aquela proveniente do isolamento, mas de uma participação ativa enquanto práxis social. Isto é, uma situação em que o sujeito, ao exercer sua atividade intelectual, modela não apenas seu discurso, mas também seu próprio rosto.

Estamos focalizando aqui o papel do intelectual, tal como o vemos na universidade. Em princípio, o professor universitário deveria ser um intelectual, como ocorreu desde os tempos de formação dessas instituições. Não é o que ocorre na atualidade, onde a universidade

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II Trad. de Milton Hatoulll. São Paulo: Companhia das Ldras. 2(0). p. 86.

" Represeuti/("Iles do iu­telectlli/l, p. 80.

A literatura. a diferença e a c()ndi~·ã() intelectual 35

formadora do pensamento e voltada para a busca do conhecimento novo distancia-se cada vez mais dessa missão para se tornar uma empresa de serviços. Afasta-se da diferença que questiona e se fixa no saber estabelecido, lócus do pensamento crítico, para se firmar como um centro reprodutor do conhecimento dirigido diretamente para o mercado.

Nessas condições, o papel do intelectual que se limita a programar seus alunos para práticas previsíveis reduz-se a de um profissional prestador de serviços. Em lugar da diferença que realça as contradições de configurações problemáticas, introduzindo a necessidade de reflexão, aparecem posturas simplificadoras que reduzem as configurações complexas do pensamento crítico, associado ü investigação científica, a figurações na forma de bulas pragmáticas para serem aplicadas sem maior reflexão.

Não obstante a profissionalização que envolve as atividades universitürias, com os docentes sendo compelidos a cumprir o rito acadêmico, cada vez mais situando-se como prestadores de serviço, é nelas que se pode construir um espaço para a reflexão crítica e a pesquisa, um "espaço quase utópico", na observação de Said, em Representaçaes do intelectua[1J . Nesses pequenos espaços a diferença intelectual tem condições de se afirmar, não se afinando com o papel do profissional especialista, inclusive na literatura:

"No estudo da literatura, por exemplo, ( ... ) a especialização sig­nificou um crescente formalismo técnico e, cada vez menos, uma compreensão histórica das verdadeiras experiências que realmen­te se concretizaram na composição de uma obra I iterária_ A espe­cialização significa perder de vista o trabalho árduo de construir arte ou conhecimento; como resultado, não se consegue ver o co­nhecimento e a arte como escolhas e decisões, compromissos e alinhamentos, mas somente em termos de teorias ou metodologias impessoais. No final, como um intelectual totalmente especializa­do em literatura, você fica domesticado e aceita qualquer coisa que os chamados grandes especialistas nesse campo pontificam "12.

Não é desejável, em função da reflexão e pesquisa inovadora, que o docente se espartilhe nos paradigmas aceitos, não ultrapassan-: do fronteiras estatuídas. É possível ultrapassar esse ritual do traba­lho seguido por quem procura "ganhar a vida", de maneira a se vol­

tar para a construção de saberes que tenham como horizontes a eman-

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36 Revista I:lrasilcira d.: Literatura Comparada. n. H. 2(X16

cipação e a liberdade dos indivíduos e dos povos. É inerente a sua condição intelectual que ele questione sempre o sentido de suas ações, acessando interconexões na forma de redes, para que não fique res­trito à monologia da especialidade. Sua práxis, assim articulada ul­trapassará o mundo reduzido do especialista. Não cabe, no papel social do intelectual universitário, circunscrever-se a uma função meramente instrumental, como lhe vem sendo imposta pelos siste­mas educacionais. Para além do trabalho rotineiro, sua condi<,:ão de intelectual, não apenas de um profissional especialista, solicita hábi­tos críticos mais largos, que coloquem sempre em discussão ques­tões socialmente importantes.

Em relação ~l situação específica da universidade brasileira, registra-se cada vez mais um declínio desse intelectual empenhado na busca de um conhecimento novo, que reúna condições de reper­cutir na vida social. Nas últimas décadas, ele foi engolido pela ascen­são dessa profissionalização (a universidade entendida como um em­prego, como outro qualquer), háhitos rotineiros. submissão à burocratização e ~l ideologia da competitividade quantificada nas tabulações do rito acadêmico. Essa situação é assim observada por Vera Lúcia Follain de Figueiredo:

"a partir dos anos 70, nas universidades brasileiras, cada vez mais, a produção de um contingente significativo de professores das áreas de ciências humanas e sociais não chega a ter nenhum tipo de interferência no rumo dos acontecimentos no país - vazio que tende a ser preenchido pela hurocracia acadêmica e pelo acirramento de uma competitividade estéril. O próprio papel de multiplicador de idéias, tradicionalmente desempenhado pelo professor, passa a ser menos valorizado, já que, na sociedade de consumo, o espaço da sala de aula perde prestígio como instância capaz de contrihuir de forma decisiva para a formação dajuventude, de conferir legitimida­de aos comportamentos individuais. Por outro lado, isolados da co­municação com a produção intelectual e artística de países "periféri­cos", recebendo informaçõcs scmpre mediadas pelo Primeiro Mun­do, os profissionais da academia são levados a pensar apenas segun­do os padrões ditados pelos centros hegcmônicos lJ ". ""'Exílios.: di:íspnras". In: ()

1'(/1'''' do ill!e1ec!I/(/! floje. p. 146.

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,. A galúx;a da II/temet. Ret7exlies sobre a II/temet. o.~

l/egtÍcios e a sociedade. Trad.: Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorg.: Zahar Editor. 2003. p. 111.

A literatura. a lIiláença e a conllição intelectual

Campos reflexivos compartilhados

"~ .1 I

Não é possível ao intelectual universitário, evidentemente. desconsiderar as dinâmicas sociais e das solicitações de mercado. Se é socialmente necessário que ele estabeleça uma ponte entre sua práxis e as solicitadas por essas demandas, que não o faça de forma acrítica. Uma efetiva inserção de seus alunos no trabalho exige a considera­ção do ensino enquanto práxis: adesão afetiva e distanciamento crí­tico conjugados, tendo como horizonte inscrever não apenas na pele. mas em profundidade, hábitos de busca contínua do conhecimento. Aprender a aprender, aprender com criatividade para apreender o objeto de conhecimento. Para tanto, o professor não pode ser ape­nas um profissional, por mais "produtivo" que seja em termos quan­titativos. Sua condição exige espaço para a reflexão, um campo crítico que se exerça para além das contingentes solicitações de mercado. A vida social solicita gestos críticos mais amplos, só pos­síveis através da compreensão de um mundo de fronteiras interati vas múltiplas.

As reflexões, para o professor universitário que ainda guarda sua condição intelectual, não se estabelecem mais de forma isolada e em ritmo lento, como anteriormente. São dominantes, na atualidade, campos retlexivos compartilhados, em situação de diálogo, quer es­tejam nos laboratórios, quer nas revistas críticas ou científicas que são expressão de redes interativas. Serão verdadeiramente intelectu­ais e não apenas profissionais especializados no serviço de ensinar. aqueles atores pautados por uma interdiscursividade mais ampla. Sua:-­reflexões reúnem condição de serem mais criativas em função dos horizontes configurados por essas redes presenciais ou virtuais. Li­mitar-se às redes virtuais pode implicar uma dominância do indivi­dualismo como forma de sociabilidade, como indicou Manuel Castells1o!. E o compartilhamento em projetos comuns, inclusive abar­cando áreas intercorrentes do conhecimento, cria a possibilidade de dinâmicas que não se conformam com a tendência ensimesmada do especialista. Há entre atores participantes uma diferença produtiva, que converge para o relevo multifacetado do objeto do conhecimen­to. Tais observações, é de se repetir, valem para situações de campo compartilhado, desde os laboratórios até às revistas críticas.

É possível, assim, recuperar a "esperança" na possibilidade de um mundo mais justo e libertário. Não através de autoritárias vozes

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imperativas que apontam monológicos caminhos reveladores, mas de projetos coletivos interativos, que efetivamente possam contri­buir para a atenuação do individualismo contemporâneo. A interatividade dos sujeitos configura-se no objeto construído. Afir­mam-se, assim, relações democráticas, enquanto práxis a envolver sujeito e objeto. São relações com condições de respeitar os ou­tros e que estão ausentes no pretenso respeito à diferença, domi­nante nas sociedades competitivas da atualidade, quando esse res­peito é confundido com indiferença social. As diferenças dos ou­tros são toleradas, na exacerbação individualista, como decorrên­cia do fato de que eles não merecem nenhuma consideração.

No projeto compartilhado, a interatividade instaura um pro­cesso coletivo que torna problemática a própria noção de autoria individual. Se o projeto estiver afeito às circunscrições da corporação capitalista, a propriedade patrimonial de seus resulta­dos já estará definida, de acordo com o pragmatismo do empreen­dimento, pautado pela lógica do lucro. Se vinculados às institui­ções estatais, as pesquisas não precisam de mediação das esferas mercadológicas. Os resultados serão mais facilmente predicados aos atores envolvidos, destacando suas respectivas competências, podendo vir a beneficiar diretamente o conjunto da sociedade. Um trabalho compartilhado, assim entendido, não necessita ter na competitividade um objetivo central. A interação em torno da bus­ca do conhecimento reflexivo ou tecnológico pode propiciar hábi­tos de uma solidariedade ativa, pela convergência do diverso em torno de objetivos comuns. Tal convergência envolve não apenas atores e papéis diversificados, mas também campos discursivos e áreas do conhecimento variadas, o que torna previsível um resultado igualmente de muitas faces, não estanque, também ele em processo.

Sem isolamentos, na discussão de questões socialmente rele­vantes, os intelectuais universitários podem ter, na inserção ativa na vida sociocultural, um corolário de sua práxis. As interlocuções com outros atores, nas redes que lograrem estabelecer, marcarão as possíveis inclinações do campo intelectual, com efeitos variá­veis, dependendo da capacidade impactante de sua malha comuni­cativa. Nessas interações, mesclas de diferenças fazem emergir pro­dutos híbridos, ou fluxos híbridos, em termos de comunicação e de veiculação de configurações do conhecimento. E a esperança, prin­cípio de impulsão inerente ao pensamento utópico, pode se afastar

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A literatura, a direren~'a e a condição intelectual 39

de matizações messiânicas, afins de um discurso pautado pela sin­gularidade reveladora, para figurar como desejo ou aspiração que se consubstancia em projetos compartilhados, colocados agora, fe­lizmente, no plural. Não mais equivocados modelos unitários, mas possibilidades abertas, interativas, balizadas, é verdade, por parâmetros flexíveis, com a abrangência necessária para uma efeti­va democratização, capaz de comutar a ideologia da compe­titividadc, dominante hoje nas esferas sócio-econômicas, pelo prin­cípio de lima solidariedade ativa.

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Literatura comparada: reflexões sobre uma disciplina acadêmica

GODZICH. 1994. p. :!74.

Eduardo F. Coutinho (UFRJ]

Surgida em contraposição aos estudos de literaturas nacionais ou produzidas em um mesmo idioma, a Literatura Comparada traz como marca fundamental, desde os seus primórdios, a noção da transversal idade, seja com relação às fronteiras entre nações ou idi­omas, seja no que concerne aos limites entre áreas do conhecimento. Tal transversal idade, ao assegurar à disciplina um caráter de ampli­tude, confere-lhe ao mesmo tempo um sentido de inadequação à compartimentação do saber que, como afirma Wlad Godzich em seu The Cu/fllre (?lLiferacy, dominou as instituições de ensino no Oci­dente a partir do I1uminismo' ,e projeta a Literatura Comparada em um terreno pantanoso, cujas fronteiras, freqüentemente esgarçadas, tornam difícil qualquer delimitação. Assim, desde a época de sua configuração e consolidação como disciplina acadêmica, as tentati­vas de defini-Ia estendem-se desde os que, iludidos pela idéia da comparação, a vêem como um simples método de abordagem do fenômeno literário, até os que a tomam, no sentido amplo, como área do conhecimento. Deixando de lado qualquer tentativa de apri­sionamento da Literatura Comparada em fórmulas lingüísticas definidoras, teceremos aqui algumas considerações sobre a evolu­ção histórico-conceitual da disciplina, procurando assinalar as ten­dências por que ela vem passando, máxime nas últimas décadas, e suas repercussões em contextos como o brasileiro.

Como o marco diferenciador da Literatura Comparada em oposição ao estudo das literaturas nacionais foi, na era de estabele­cimento do comparatismo, a abordagem de duas ou mais literaturas nacionais ou de produções literárias em idiomas distintos, as tentati­vas de definição da disciplina nessa época acentuam todas elas o seu

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caráter internacional e a familiaridade do estudioso com mais de um idioma. É assim, por exemplo, a definição de Guyard, que orientou durante longos anos o estudo da Literatura Comparada no Ociden­te, bem como a de Pichois e Rousseau, embora em momento bastan­te posterior. Ouçamos primeiro a Guyard, que, em seu livro La littérature comparée (1951), manual construído à maneira do de Van

Tieghem (1931), e do qual mantém o mesmo título, afirma:

"A literatura comparada é a história das relações literárias inter­nacionais. O comparatista se coloca nas fronteiras, lingüísticas ou nacionais, e examina as mudanças de temas, idéias, livros ou sentimentos entre duas ou várias literaturas, O seu método de trabalho deverá adaptar-se à diversidade de suas pesquisas. Um certo equipamento. , . lhe é indispensável. Ele deve ser capaz de ler diversas línguas; e deve saber aonde localizar as bibliografias indispensá veis"2.

A ênfase dada ao cunho internacional ou interlingüístico dos estudos de Literatura Comparada é não só o elemento fu \c ral de todo o texto, refletindo o que veio a ser conhecido como o binarismo desses estudos, dominante na chamada Escola Francesa, como tam­bém é assinalada a importância de o estudioso ser capaz de ler diver­sas línguas, prática que restringiu durante muito tempo o âmbito da

discipl ina, confi nando-a a uma pequena el ite versada em vários idio­mas. Mas observe-se que, além dessa tônica e da referência à neces­sidade de "certo equipamento", expressão de Van Tieghem, reforça­da por Guyard, e que pode ser vista como uma recusa ao impressionismo crítico, a afirmação de que "o seu método de traba­lho deverá adaptar-se à diversidade de suas pesquisas" deixa claro que a Literatura Comparada não é vista pelo autor como um méto­do, mas antes como uma disciplina que dispõe de um ou mais méto­dos de abordagem, suficientemente flexíveis de modo a poder adap­tar-se à diversidade de suas pesquisas.

A definição de Pichois e Rousseau, em manual de 1967, que propositadamente porta o mesmo título dos anteriores, é mais sucin­ta do que a de Guyard e, por influência do momento de sua produ­ção - o período estruturalista -, traz certa ênfase sobre a necessida­de de sistematização dos estudos comparatistas, certa preocupação científica, mas volta a assinalar o seu caráter internacional e i nterl i ngüístico:

'GUYARD, 1<)51. p.12,trad. doA.

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J PICHOIS & ROUSSEAU. 1%7. p. IS5.lrad. A.

'JOST. 1974. p.30.

5 ALDRIDGE. 1969. P. I.lrad. A.).

Literatura comparada: rellexões sobre uma disciplina acadêmica 43

"Literatura Comparada: descrição analítica, comparação metódi­ca e diferencial; Interpretação sintética de fenômenos literários interlingüísticos ou interculturais, através da hi~tória, da crítica e da filosofia, a fim de se compreender melhor a I ileratura como uma função específica do espírito humano"'.

Aqui, contudo, à diferença da definição de Guyard, chama-se atenção para a interpretação do fenômeno literário através da histó­ria, da crítica e da filosofia, entendendo-se assim os diversos discur­sos sobre a literatura, e vê-se a esta última como "uma função espe­cífica do espírito humano", observação que vem ao encontro da tese de um estudioso como François lost, que encara a Literatura como uma espécie de dom muito especial e entende o seu estudo, a Litera­tura Comparada, como uma verdadeira "filosofia das letras", um "novo humanismo"",

Embora a preocupação com o caráter internacional e interlingüístico da Literatura Comparada se encontre também pre­sente na perspectiva da chamada "Escola Americana", observa-se, nas tentativas de definição da disciplina fornecidas pelas figuras que a integram, uma inegável abertura no sentido de admitir-se um estu­do de Literatura Comparada de obras isoladas de literatura, com a ressalva, entretanto, de que tal estudo seja feito por uma perspectiva que transcenda fronteiras nacionais e idiomáticas. Vejam-se nesse sentido as palavas de Owen Aldridge:

"Atualmente há um certo consenso sobre o fato de que a Literatu­ra Comparada não compara literaturas nacionais no sentido de puramente contrastá-Ias umas com as outras. Em vez disso, ela fornece um método de ampliação da perspectiva do indivíduo na abordagem de obras isoladas de literatura -uma forma de voltar­se para além dos limites estreitos das fronteiras nacionais, com o fim de discernir tendências e movimentos em várias culturas naci­onais e observar as relações entre a literatura e outras esferas da atividade humana. .. Em suma, a Literatura Comparada pode ser o estudo de qualquer fenômeno literário do ponto de vista de mais de uma literatura nacional ou em conjunto com outra disci­plina intelectual, ou até mesmo várias.'"

o importante para Aldridge não é o estudo constrastivo de literaturas nacionais, mas o fornecimento de um método que permita

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44 Revista Brasileira de Literatura Comparada, 11. li, 200(,

ao estudioso "discernir tendências e movimentos em várias culturas nacionais", o que o situa em uma perspectiva mais ampla com rela­ção ao binarismo anterior e chama atenção mais uma vez para o fato de que a Literatura Comparada, longe de ser um método, dispõe de um ou mais métodos de abordagem da literatura. Além disso, traz à tona também a questão da interdisciplinaridade, ao destacar o estu­do de qualquer fenômeno literário "em conjunto com outra disciplina intelectual, ou até mesmo várias".

É esta referência à interdisciplinaridade que norteia a defini­ção de Henry Remak, e que constitui um dos principais traços da chamada "Escola Americana":

"A Literatura Comparada é o estudo da literatura além das fron­teiras de um país específico e o estudo das relações entre a litera­tura, de um lado, e outras áreas do conhecimento e crença, como as artes, a filosofia, a história, as ciências sociais, a religião, etc., de outro lado. Em suma, é a comparação de uma literatura com outra ou outras, e a comparação da literatura com outras esferas da expressão humana"('.

A interdisciplinaridade, embora presente desde o processo de configuração da Literatura Comparada como disciplina acadêmica­como se pode observar, por exemplo, pelas palavras de 1. J. Ampere, que, em seu Discurso sohre ([ história da poesia, de 1830, já se referia à "história comparativa das artes e da literatura" (CARVALHAL, p. 9), ou pela tentativa de Philarete Chasles de for­mular alguns princípios básicos-do que ele considerava ser uma "his­tória da literatura comparada" (CARVALHAL, p. 10), partindo para propor uma visão conjunta da história da literatura, da filosofia e da política nos cursos que ministrou em 1840 no College de France-, foi amplamente acentuada pela Escola Americana e desenvolvida em grande escala nessa época no âmbito do ensino universitário.

As definições acima, ou, melhor, tentativas de definição, a des­peito de suas variações, apontam todas na direção da constituição de um campo de atividades suficientemente amplo em que o estudi­oso, servindo-se de uma vasta possibilidade de métodos e técnicas de abordagem da obra ou obras literárias, é capaz de desenvolver sistemas de reflexão sobre essas obras que lhe permitam descrevê­las, interpretá-Ias e avaliá-Ias, bem como organizá-Ias em conjuntos

I, REMAK, 1961, p. 3, trad. A

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Literatura comparada: rellexões sohre uma disciplina acadêmica 45

ou séries espaço-temporais que as distingam umas das outras. Daí a impossibilidade a que se referiu René Wellek de se separar Literatura Comparada e Crítica (WELLEK, 1959, 156) ou de se erigir como compartimentos estanques a esfera da Teoria ou da História e da Literatura Comparada. Os problemas que se podem observar na de­signação "Literatura Comparada" são sem dúvida muitos, a maio­ria dcles relacionados com o método a que o adjetivo "comparada" se refere (daí talvez a confusão em que incorreram alguns estudiosos que o identificaram com um simples método), mas se atentarmos para os diversos sentidos do termo, verificaremos que "comparada" significa também, conforme deixa claro, por exemplo, o O.\ford EJ/glish DictioJ/ary a respeito do termo inglês "comparative", "aqui­lo que envolve diferentes ramos de estudo" (Cit. CLEMENTS, 1978, p. 10), reportando-nos portanto para a idéia da transversal idade que apontamos como traço fundamental da disciplina.

Foi com esse sentido amplo, internacional, interlingüístico e interdisciplinar do termo, que a Literatura Comparada instituiu, em sua fase clússica, sobretudo no período da chamada "Escola Ameri­cana", cinco úreas de investigação, hoje bastante modificadas, mas que serão aqui discutidas por refletirem o espírito que norteou a constituição da disciplina: o estudo de gêneros ou formas, de movi­mentos ou eras, de temas ou mitos, da inter-relação da literatura com outras formas de expressão artística ou outras úreas do conhe­cimento, e finalmente da relação da literatura com os discursos da Teoria, da Crítica e da Historiografia literárias. Tais áreas de investi­gação são, como se pode observar, bastante desiguais, e demons­tram, pela sua própria desigualdade, a tendência formalista da Esco­la Norte-Americana: as três primeiras acham-se voltadas para as obras mesmas c as duas últimas para as relações destas com outras formas de produção, no primeiro caso, e com os discursos sobre a literatu­ra, no segundo. Em todas elas, no entanto, sente-se a preocupaçao de tomar como ponto de partida o texto ou textos literúrios e desen­volver, através de uma reflexão comparativa, formulações ou siste­matizações.

A abordagem por gêneros remonta a Aristóteles com a sua Poética e, apesar das oposições que encontrou ao longo da história da Literatura Ocidental - sobretudo entre os românticos (Victor Hugo) e mais tarde os impressionistas (Croce) -, constituiu durante Illuito tempo uma das formas mais tradicionais dos estudos de Lite-

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ratura Comparada. Ela consistiu na configuração teórica dos gêne­ros a partir do confronto entre obras e em estudos históricos sobre gêneros específicos, mas apresentou mais indagações do que res­postas ao longo de toda a sua trajetória, e é hoje ainda reconhecida exatamente pelos problemas que levantou: a dificuldade de delimi­tação de fronteiras entre as construções de gêneros, a inadequação de qualquer generalização em função das mudanças por que estes passaram ao largo da história literária, e a impossibilidade de traçar­se um percurso claro de sua evolução devido às oscilações que tive­ram, como a sua maior ou menor importância num dado momento histórico ou em certos locais. Essa abordagem por gêneros deu ori­gem a estudos hoje clássicos de Literatura Comparada, como os que estabeleceram distinções, por exemplo, entre a tragédia grega e a moderna, ou os que traçaram a evolução do épico da Antigüidade à era moderna, passando pelos poemas anônimos medievais (Beowou(f; Chanson de Ro!am! e Poema de mio Cid), mas são hoje mais escas­sos e voltados, em sua maioria, para uma perspectiva predominante­mente cultural.

Do mesmo modo que a anterior, a abordagem por mo\'imen­tos ou eras, ou ainda estilos de época e escolas, foi também das mais freqüentes nos estudos tradicionais de Literatura Comparada e trou­xe sem dúvida contribuições fundamentais ainda hoje respeitadas, Ela estudou, acima de tudo, os diversos períodos ou movimentos da história literária, caracterizando-os a partir de temas específicos. cânones estéticos e práticas estilísticas, e deu origem a um amplo leque de cursos que povoaram as universidades ocidentais, como os centrados em torno de um movimento ou era (o período Renascentista, o Romantismo, o Barroco, a era Elizabethana ou a era de Luís XIV), ou de uma escola ou geração (a geração de 98 na Espanha, a Lost Generation americana, a Escola de Minas ou a Es­cola de Frankfurt). Entretanto, aqui também, os problemas levanta­dos por este tipo de estudo foram maiores do que qualquer tentativa de resposta e deram margem a novas investigações do mesmo modo frutíferas. Entre estas destacam-se os estudos que problematizaram questões como a da periodização, das variações nacionais de estilos como o Barroco ou o Modernismo, da existência de obras isoladas ou grupos de obras que anteciparam certos movimentos, como é o caso do Sturm llIU! Drallg, na Alemanha, ou de uma figura como Sousândrade ou Machado de Assis, no Brasil, da existência de movi-

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Literatura comparada: rellexões sohre uma disciplina acadêmica 47

mentos criados por uma figura como Petrarca ou Shakespeare, que atravessaram séculos, e dos estudos de fontes e influências, tão cri­ticados atualmente, mas que renderam farto material no passado. Em todos esses casos, embora a preocupação dominante tenha sido com o elemento estético, ou mais especificamente literário, a Histó­ria e a Filosofia, assim como outras disciplinas, tiveram significativa participação, chamando atenção mais uma vez para o caráter interdisciplinar que o comparatismo nunca deixou de lado.

Se a História e a Filosofia desempenharam um papel relevante no caso em questão, na abordagem por temas ou mitos, ou ainda motivos e assuntos, tanto essas como outras disciplinas, como a Antropologia, a Sociologia, a Psicologia e a Política, tornaram-se indispensáveis se não mais para fornecer o substrato básico para os estudos e impedir qualquer visão impressionista das questões trata­das. Essa abordagem, que constitui toda uma área de estudos co­nhecida como St(dt.~echichte, é talvez a mais abrangente de todas e inclui tópicos abundamentemente explorados pela Literatura Com­parada, como o tema do Fausto na Literatura Ocidental, o tema do D. Juan, o mito do herói, o mito de Édipo, o motivo do suicídio, o tema da utopia, a presença do índio nas literaturas americanas, e inclusive questões que atualmente constituem áreas específicas de estudo, como a questão da mulher na literatura (W01nen Studies), a questão do negro ou de outros grupos étnicos (Afro-Amerciall Studies. ChicllIlO Stltdies, etc.) e a questão do homossexualismo (Gay mlll Leshial/ Stlldies). Aqui também, corno nas abordagens anterio­res, a problcmatização é mais relevante do que qualquer tentativa de afirmação ou busca de solução para os problemas, e o maior deles é sem dúvida a amplitude excessiva do material, que requer rigorosa seleção e preocupação científica, bem como a improvisação de te­mas ou mitos, que deve ser olhada sempre com desconfiança. Como se trata de uma abordagem extremamente rica e criativa, em que a interdisciplinaridade se faz mais evidente, as mudanças por que pas­sam os estudos nessa seara são também bastante mais rápidas.

É evidentemente na abordagem à base da inter-relação da Li­teratura com outras formas de expressão artística ou outras áreas do conhecimento que a transversal idade da Literatura Comparada se faz mais explícita, e é importante lembrar que este tipo de estudo, existente já desde a Antigüidade, ainda que de forma não sistemati­zada, vem cada vez se ampliando mais em nossos dias. Já na época

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"+X Revisla Brasikira de I.ileralura COlllparada.n. X. :!OO(,

de configuração e consolidação da disciplina - o século XIX - figu­ras como Ampcre e Chasles, ao tentarem definir a Literatura Com­parada, buscaram aproximá-Ia, respectivamente, como vimos, de ou­tras formas de cxpressão artística e outras áreas do conhecimento, e a chamada Escola Francesa realizou diversas incursões em ambas as esferas de atividades. Mas no período da Escola Americana a preo­cupação com a interdisciplinaridade foi de tal modo ampliada, que passou a figurar inclusive da maioria das tentativas de definição da disciplina. Na definição de Aldridge, por exemplo, acima menciona­da, o termo "literaturas" chega a ser substituído num dado momento por "culturas nacionais", indicando uma significativa ampliação do âmbito do comparatismo, e verifica-se grande insistência sobre a idéia de comparação entre "mais de uma literatura nacional" e "outra dis­ciplina intelectual, ou até mesmo várias". Além disso, são inúmeros os trabalhos que surgem nessa época sobre as relações entre Litera­tura e Música, Artes Plásticas, Cinema, Dança, e outras searas do conhecimento, como Filosofia, História, Psicologia, Sociologia, Antropologia, Teologia, Política. Biografia e Direito, e tais estudos conferem à disciplina um vigor extraordinário.

A relação entre a literatura e as outras artes, bem como a da literatura e outras áreas do conhecimento vem de tempos os mais remotos, e, se formos traçar um quadro retrospectivo dos Estudos Literários, veremos que ela produziu como resultado frutos impor­talHes, sob a forma muitas vezes de novos gêneros de teor misto. Os exemplos são muitos, mas citem-se a título de amostragem que da associação da literatura com a história resultaram a própria poesia épica, o romance histórico e a biografia ficcionalizada; de sua com­binação com a música religiosa, surgiram os hinos; da relação com a dança, os !Jallels narrati vos; e, com a astronomia, a ficção científica. E lembremos ainda que este proccsso associativo continua vivo, pro­duzindo novos gêneros não menos expressivos que os acima menci­onados, como é o caso, no contexto brasileiro, da associação da literatura com a música popular, que deu origem ao samba-enredo, expressão das mais marcantes da cultura popular do país. Além dis­so, assinale-se ainda que a atuação dessas diversas áreas sobre a literatura e vice-versa sempre roi significativa, não só em nível temático quanto inclusive formal. É o caso, por exemplo, do cine­ma, no século XX, que provocou na literatura a ruptura das dimen­sões tradicionais de tempo e espaço, introduzindo recursos como o

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da simultaneidade, hoje tão corrente na ficção, ou ainda o das artes plásticas, que, sob formas como a do Cubismo, introduziu na litera­tura a noção de superposição de planos, que se estendeu, por exem­plo, de Pie asso a Appolinaire.

Com essa amplitude de material, os estudos nessa esfera do comparatismo formam uma vasta bibliografia que abarca áreas as mais variadas do saber, e, como em todas as abordagens anterior­mente citadas, a problematização aqui faz-se obviamente mais im­portante do que qualquer tentativa de afirmação de pressupostos teóricos delimitadores. Assim, dentre as preocupações que mais in­quietaram os pesquisadores, destaquem-se a da delimitação de cam­pos, da adaptação de uma obra para outra, ou, melhor, da tradução para um outro meio, e da atuação de uma área sobre a outra, através principalmente da utilização de recursos importados daquela. A pri­meira dessas questões deu origem a estudos muito ricos sobre a re­lação entre a palavra e a imagem no cinema e na literatura ou na pintura e na literatura, ou sobre os vínculos existentes entre uma composição musical e outra poética, e deu ensejo a amplas discus­sões sobre a classificação numa esfera ou noutra de letras de música popular ou de formas litero-cinematográficas como o cinéroman de Pasolini ou Robbe-Grillet. A segunda, a da adaptação ou tradução, de obras de uma área para a outra, foi a tônica também de muitos estudos, e teve como grande contribuição a desmitificação da pers­pectiva binária tradicional que considerava sempre a forma adaptada ou traduzida como manifestação menor ou devedora da primeira. A terceira, finalmente, também profícua em trabalhos, tanto quantitati­va como qualitativamente, foi a que abordou o emprego de recursos de uma área na outra, como o uso de recursos musicais ou pictóricos na literatura, e de recursos literários no cinema, nas artes plásticas ou na música.

Mas se nos exemplos acima nos ativemos à esfera das relações entre a literatura e outras formas de manifestação estética, vale lem­brar que também foram ricos e abundantes os estudos que enfocaram a relação entre a literatura e outras áreas do conhecimento, como é o caso da Sociologia, da Filosofia e da Psicologia, ou, mais especifica­mente, da Psicanálise, que chegaram muitas vezes a fornecer um instrumental para a abordagem do fenômeno literário, e se serviram também da Literatura para as suas formulações teóricas, como ocor­reu, por exemplo, com a última, que teve muitas de suas concepções

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básicas extraídas da literatura clássica (os mitos de Édipo, Electra, Prometeu, Medéia, etc.). Não cabe aqui detalhar a atuação de cada uma dessas áreas sobre a Literatura e vice-versa, mas não nos pode­mos furtar a mencionar os diversos gêneros mistos daí surgidos, como o romance filosófico de um Sartre ou Camus, a chamada "narrativa engajada", fortemente influenciada pelo marxismo, ou o romance psicológico de um Svevo, por exemplo, nem muito menos as corren­tes crítico-teóricas oriundas dessa relação, como a corrente filosófi­ca, o marxismo ou a meramente sociológica, e a corrente psicanalí­tica, ou simplesmente de base psicológica, que deu margem a um grande número de leituras, muitas delas bastante interessantes, de obras literárias.

Embora a maioria dos pressupostos da Escola Americana de Literatura Comparada tenham sido fortemente abalados após a dé­cada de 1970, dando lugar a outras tendências distintas e diversas entre si, o veio interdisciplinar por ela amplamente estimulado é um traço que irá permanecer, ainda que com faces diferentes. Assim, em função de contribuições de correntes do pensamento contemporâ­neo como os Estudos Culturais e Pós-Coloniais, a compartimentação do saber que ainda vigorava na época da Escola Americana, exigin­do que um estudo comparatista sobre o tema do incesto ou da revo­lução, por exemplo, fosse abordado por um viés que enfatizasse o literário, e não o psicanalítico ou o sociológico respectivamente -com o objetivo explícito de deixar clara a diferença entre as duas áreas - deixou de ser levada em conta. Do mesmo modo, a questão da adaptação de uma obra de uma esfera artística ou do conheci­mento para outra também deixou de ser vista pela perspectiva biná­ria tradicional, que considerava sempre a segunda como devedora da primeira, e passou a ser encarada como uma outra manifestação, uma tradução criativa da primeira, que com ela dialoga, mantendo a sua singularidade. Na fase clássica da disciplina, havia sem dúvida uma penetração em áreas distintas do conhecimento, mas o Joeus de pertencimento do estudo era deixado claro. Hoje essas fronteiras foram lançadas por terra, e o sentido da interdisciplinaridade se am­plia de tal modo que tende a generalizar-se, sendo muitas vezes subs­tituído pela idéia de cultura.

A relação da literatura com os discursos da Teoria, da Crítica e da Historiografia literárias é uma das questões mais amplas e con­trovertidas no âmbito dos estudos literários e não pode ser conside-

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rada apenas uma das abordagens da Literatura Comparada, como quiseram os estudiosos que a incluíram nessa esfera. Contudo, ela revela uma série de aspectos que nos interessam em particular, máxi­me no que diz respeito à relação do comparatismo com tais discur­sos. Assim, no que concerne à Teoria, comecemos por observar que a Literatura Comparada e a Teoria Literária não se antagonizam em momento algum; antes complementam-se e não podem prescindir uma da outra. Toda teorização sobre uma obra ou obras literárias pressupõe necessariamente uma atividade comparatista, ainda que num plano intertextual não explícito, e todo estudo comparatista sério conflui para uma reflexão de ordem teórica e crítica; caso con­trário, corre o risco de ater-se a mero descritivismo, ou, como diria Wlad Godzich, não há nenhuma abordagem ateOl'ética da literatura.

O problema que se verificou com freqüência nos estudos de Teoria Literária é que a Teoria sofreu uma espécie de inversão epistemológica, afastando-se de seu sentido originário de reflexão sobre textos literários com vistas a uma sistematização (observe-se que em sua etimologia a palavra encerrava os sentidos de "contem­plação", "olhar") e incorporando a idéia da aplicação de modelos que adquiriram foros de universalidade. Essa pretensão, de cunho científico-formalista, atingiu o seu ápice no período do Estruturalis­mo e continua viva ainda hoje, sobretudo na prática universitária. E o grande risco a que ela leva o pesquisador da literatura é o da a­historicidade, uma vez que busca a construção de modelos exempla­res que sejam extensivos a todo tempo e lugar. Tal concepção do discurso teórico não só o afasta da idéia mesma de discurso, que é sempre histórico, como o distancia tanto da obra ou obras que lhe deram origem, quanto, e às vezes de modo abissal, daquelas a que o discurso será aplicado, porque não leva em consideração as suas diferenças contextuais. As teorias surgem num contexto específico e é saudável que migrem para outras paragens, mas, ao fazê-lo, é preciso, como diria Edward Said, em seu ensaio "Traveling Theory", que se reconheçam as diferenças histórico-culturais entre o seu con­texto de origem e o de recepção (SAID, 1983, p. 226).

Além disso, como as teorias têm surgido com mais freqüência nos meios acadêmicos onde os estudos literários acham-se mais de­senvolviclos, e tais meios localizam-se, por razões predominante­mente econômicas, na Europa Ocidental e na América do Norte, elas se baseiam num corpus literário emanado daquele contexto.

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Assim, ao serem universalizadas, as teorias estão automaticamente erigindo as obras que lhe deram origem como modelares e encaran­do todas as demais a que forem aplicadas como secundárias ou infe­riores. O resultado é uma visão profundamente eurocêntrica e monocultural da questão, que toma tanto a literatura européia quan­to sua reflexão teórica como grande referencial canônico e atribui às demais produções provenientes de outras regiões a pecha de periféri­cas. Foi essa prática que constituiu a tônica dos estudos literários na América Latina, especialmente na época áurea do Estruturalismo, e que ainda hoje, a despeito de amplo questionamento por que vem passando, encontra espaço no meio universitário.

Do mesmo modo que a Teoria, a Crítica tampouco se acha em oposição à Literatura Comparada, conforme já assinalou Wellek em seu ensaio "A crise da Literatura Comparada", apresentado no 11 Congresso da Associação Internacional de Literatura Comparada, em Chapel Hill (1958); ao contrário, não há avaliação de obra ou obras literárias que não passe por uma perspectiva comparatista, as­sim como qualquer estudo comparatista requer uma reflexão que englobe os estágios da Crítica - a descrição, a interpretação e a ava­liação. No entanto, aqui também, como no caso da Teoria, o proble­ma reside no caráter universalizante que a Crítica freqüentemente adquiriu, tornando-se um discurso a-histórico e calcado em valores de ordem monocultural. Assim como a Teoria, a Crítica, sobretudo de meados do século XX, ergueu seus pilares sobre um corpus da tradição ocidental, eleito à luz de parâmetros supostamente imutá­veis, que se originaram de reflexões teóricas anteriores, cristalizadas através da história. Servindo-se de pressupostos dessas construções que nunca puderam ser completamente definidos, como as noções de "Iiterariedade" e de "permanência", e respaldando-se em tratados que vão desde a Poética de Aristóteles aos nossos dias, a Crítica então preocupou-se em ratificar os valores estéticos neles apresen­tados, construindo um verdadeiro baluarte - o cânone ocidental -, que passou a instituir-se como a grande referência (COUTINHO, 2003, p. 74-5). A partir de então, toda produção era medida à base da comparação com os modelos que integravam ou o cânone específico das diversas literaturas nacionais ou o cânone ocidental referido, com­posto de representantes das nações mais prestigiadas do Ocidente.

Essa posição da Crítica, hoje bastante questionada pelo seu cunho etnocêntrico - que se tornava ainda mais grave nos contextos

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periféricos, devido à ratificação a que levava dos valores do eixo euro-norte-americano -, não foi, contudo, o único problema que este tipo de discurso acarretou para os estudiosos da Literatura. Ao lado desse, erguia-se também o dos parâmetros de avaliação, ligado ao método ou corrente crítico-teórica escolhido para descrever, in­terpretar e avaliar a obra ou obras em questão. As correntes crítico­teóricas sucediam-se com rapidez e variavam de um contexto para outro, oferecendo possibilidades várias, muitas vezes bem distintas e até contraditórias. Nesse caso, como eleger, entre o leque de opções oferecidas, muitas vezes inclusive condicionadas a um momento his­tórico específico, a abordagem adequada, máxime quando falta, como ao iniciante, a experiência que o irá orientar? A resposta para tal indagação é obviamente mais ampla e diversificada do que a sua própria formulação, e só pode ser apreendida ao pensar-se na rela­ção estabelecida entre o estudioso e seu objeto de trabalho, mas a mera indagação sobre esse fato traz à tona novamente uma questão que nos vem ocupando desde o início: a de que a Literatura Com­parada não tem um método exclusivo de trabalho, mas serve-se ao contrário das diversas possibilidades que a Crítica e a Teoria lhe oferecem.

Existente também desde a Antigüidade, quando esteve, por exemplo, voltada para o estabelecimento de textos do Velho e Novo Testamentos a partir de uma infinidade de manuscritos distintos, a Historiografia literária sempre se instituiu como uma das principais searas de investigação da Literatura Comparada, tendo esta inclusi­ve em seus primórdios sido freqüentemente confundida com ela, em decorrência do predomínio do método historicista à ocasião da con­figuração e consolidação da disciplina. Tal aproximação, se de um lado assinala a importância do caráter histórico dos estudos literári­os, de outro levou a um problema que perdurou durante longo tem­po - o do emprego do método historicista na abordagem do fenôme­no I iterário e a reação a que tal atitude levou em momento posterior, com a onda de correntes imanentistas, que não só relegaram a Historiografia Literária a plano secundário, como chegaram a consi­derar a dimensão histórica como irrelevante ou até mesmo dispensá­vel na apreensão da obra literária. Foi somente do último quartel do século XX para o presente, ou, melhor, na era pós-estruturalista, que a importância do contexto histórico foi resgatada, mas é preciso lem­brar que por uma perspectiva bastante distinta da do historicismo tra-

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5-l Rcvista Brasileira de Literatura Comparada. n. R. 2006

dicionaL Agora, além de o movimento mais freqüente na abordagem do fenômeno literário estar calcado na dialética texto/ contexto, passa­se a levar em conta não só o {ocus histórico-cultural de produção da obra como também o de recepção, e evidentemente a relação estabelecida entre ambos.

Com as transformações sofridas nas últimas décadas, a Historiografia literária voltou a ocupar um espaço privilegiado nos estudos de Literatura Comparada, só que agora os estudiosos da Literatura deixaram de ver a História Literária como o registro acumulativo de tudo o que se produziu ou a simples compilação de temas ou formas, e passaram a encará-Ia como a escritura constante de textos anteriores com o olhar do presente, estabelecendo o que Fernand Braudel designou de uma verdadeira dialética entre o pas­sado e o presente. Conscientes de que os fatos, fenômenos ou acon­tecimentos que irão relatar ocorreram no passado, mas também de que eles próprios são indivíduos historicamente situados, eles cons­troem suas narrações à luz de uma visão comprometida com o tem­po e local de enunciação. ° resultado é que a História Literária passa a ser a história da produção e recepção de textos, e, para o historiador, esses textos constituem ao mesmo tempo documentos do passado e experiências do presente (COUTINHO, 2003, p. 77).

Essa nova visão da Historiografia leva os historiadores da Li­teratura à consciência do caráteretnocêntrico e elitista do discurso historiográfico tradicional e traz como conseqüência, como no caso da Crítica, o questionamento do cânone, aqui representado pela his­tória oficial. Além disso, com o questionamento que vem sendo em­preendido por correntes do pensamento contemporâneo sobre o pró­prio conceito da obra literária, a esfera da Historiografia Literária amplia-se consideravelmente, porque passa a incluir outras formas de discurso até então excluídas. Do mesmo modo que os estudos de História tout COllrt deixaram de restringir-se aos eventos políticos e diplomáticos, passando a incluir as circunstâncias mais amplas que os condicionaram, as pesquisas de História Literária enveredaram também por territórios antes reservados a outros saberes. Agora, ao lado do exame do texto, passa a ter relevância também a análise do campo em que se produziu a experiência literária, e o contexto de recepção da obra é equiparado ao da produção. O desvio de olhar passa a ser uma constante na Historiografia Literária e os mesmos episódios passam a ser relatados por perspectivas distintas. Surge

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7 Cit. CLEMENTS, I <)7X, P. 20<), trad. A.

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também não só uma quantidade de histórias não-oficiais, que vêm pôr em xeque a autoridade da versão canônica, como passam a inte­grar a Historiografia Literária tanto a produção de grupos até então excluídos por essa Vertente, como os chamados grupos étnicos minoritários, quanto ainda outros registros, como o "popular", tra­dicionalmente contraposto ao erudito, Finalmente, passam também a figurar dessa nova historiografia outras espécies de discurso, que se situam na esfera da cultura em geral, explicitando, mais do que nunca, a fluidez das fronteiras interdisciplinares,

As abordagens da Literatura Comparada, tanto as que focali­zam as obras mesmas quanto as que estão voltadas para as suas rela­ções com outras formas de manifestação artística ou outra área do conhecimento, revelam todas elas um leque amplo e variado de estu­dos que, juntos, formam, como pudemos ver, uma disciplina, freqüentemente identificada, não fosse a ênfase sobre a idéia da com­paração ou da transversal idade, com a própria noção de estudos lite­rários. E é nesse sentido que ela é vista em espaços acadêmicos como o francês ou o norte-americano que denominam seus departa­mentos de estudos não especificamente de literaturas nacionais como de Literatura Comparada. Tais departamentos, surgidos em contraposição aos de literaturas nacionais, foram criados exatamen­te para portar a marca da transversal idade e da interdisciplinaridade e para caracterizar-se pela sua amplitude, estando conseqüentemen­te voltados para a assimilação de diversos métodos. Assim, qual­quer restrição a um método ou técnica de abordagem do fenômeno literário era vista como problemática e criticada no âmbito da disci­plina, como podemos ver pelas palavras de Lowry Nelson:

" ... a Literatura Comparada deve guardar-se contra certos mo­dernismos ou modismos. Limitar os estudos literários a certas versões excêntricas ou totalitárias de Freud ou à última revivificação de Heidegger (como nos jogos de palavras filosófi-' cos de Derrida) significa tornar provincianos os estudos literários e deixar de lado suas bases acadêmicas"7.

No entanto, se a restrição a um método ou técnica específico de abordagem do fenômeno literário era contrária ao espírito da Li­teratura Comparada, que tinha sempre a possibilidade de dispor de opções metodológicas distintas, dependendo das circunstâncias es­pecíficas que cercavam cada caso, por outro lado a sua identificação

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tOllt court com a própria área dos estudos literários, sugerida na afirmação acima, implica uma generalização, que foi tida também por vários críticos como problemática, por suprimir a ênfase sobre o caráter de transversal idade que tanto assinalou a evolução histórico­conceitual da disciplina. Não é à toa que Susan Bassnett, em seu livro Comparative Literature: a Critical/llfroductioll, afirma que a resposta mais simples para a pergunta sobre o que é a Literatura Comparada seria a de que ela "envolve o estudo de textos entre culturas, que ela é interdisciplinar e que está voltada para os padrões de relações entre as literaturas no tempo e no espaço."g "BASSNETT, 1993. p. I.

É no sentido mais amplo de disciplina acadêmica, mais próxi­ma do que se poderia chamar de Estudos Literários do que de um simples método, que a Literatura Comparada se desenvolveu no Bra­sil, principalmente após a criação da ABRALIC. Ao longo do sécu­lo XX, diversos estudiosos da Literatura já haviam realizado estu­dos de Literatura Comparada, como é o caso, por exemplo, de figu­ras como Antonio Candido, Afrânio Coutinho, Eugênio Gomes, Augusto Meyer, e Tasso da Silveira, que inclusive publicara, em 1964, um manual à maneira dos franceses com o título de Literatura Com­parada, e a disciplina já era lecionada em algumas universidades brasileiras, como a UFRJ e a USP, na primeira tanto a nível de gra­duação quanto de pós-graduação. Mas o grande impulso que a área tomou data da criação da ABRALIC, e foi também a partir daí que a sua esfera de atuação se ampliou de tal modo, que chegou a ser identificada - pelo menos no nível da associação - com a área dos estudos de Literatura em geral.

Idealizada durante o XI Congresso da Associação Internacio­nal de Literatura Comparada, ocorrido na Universidade de Sorbonne­Nouvelle, em Paris, no ano de 1985, por um pequeno grupo de estu­diosos brasileiros lá presentes - com o objetivo de propiciar, através de um intercâmbio mais dinâmico com os demais pólos de estudos da disciplina, um desenvolvimento verdadeiramente eficaz do comparatismo no Brasil-, e fundada um ano depois em Porto Ale­gre, durante o "I Seminário Latino-Americano de Literatura Com­parada", a ABRALIC veio a se tornar a maior associação de literatu­ra do país, deixando de lado qualquer especificidade e passando a abarcar todo tipo de estudo na área em questão. Hoje a Associação, que já realizou, em seus dezenove anos de existência, nove congres­sos internacionais de grande porte, seguidos da publicação dos Anais,

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e conta com dois veículos importantes de divulgação - o Boletim Contraponto e principalmente a Revista Brasileira de Literatura Comparada, agora em seu oitavo número -, inclui professores e pesquisadores de toda a área de Letras no Brasil e estimula pesqui­sas que se estendem desde as abordagens mais tradicionais da disci­plina até áreas antes situadas à margem dos estudos de Literatura por não lidarem necessariamente com textos considerados literários, como a dos Estudos Culturais.

Esse sentido abrangente que os estudos de Literatura Compa­rada adquiriram no Brasil não constitui evidentemente um caso iso­lado; antes trata-se de uma tendência por que vem passando a disci­plina no contexto universal, decorrente em grande parte do questionamento empreendido nas últimas décadas sobre noções como a da própria "Iiterariedade" e de construções como a "nação" ou o "idioma", pilares tradicionais do comparatismo. Mas nem por isso é Illenos importante, pois indica uma vez mais, e sob uma nova roupa­gem, a preocupação sempre presente com a delimitação da discipli­na. Se os estudos de Literatura Comparada não devem mais ter necessariamente como referência um texto ou textos literários e se não têm de ser necessariamente transnacionais ou trans-idiomáticos, o que então, se poderia perguntar, marcaria a especificidade da dis­ciplina? Não há dúvida de que responder a tal pergunta, numa época que se caracteriza justamente pela diluição de fronteiras disciplina­res, é tarefa no mínimo delicada, mas arriscar novas indagações é também um traço salutar. Assim, concluímos nossa reflexão com a pergunta que pode abrir novos caminhos, mas jamais fechar-se em soluções: se a Literatura Comparada não é sem dúvida um simples método de abordagem do fenômeno literário nem tampouco a área inteira dos chamados Estudos Literários, ainda que mais próxima se situe da última do que do primeiro, é possível ainda encontrar traços que possam, se não defini-Ia com clareza, ao menos sugerir suas fronteiras?

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Os confins como reconfiguração das fronteiras

t Cf. RANCIERE. Jacqucs - li parfi/lia dO.l'ell.l'Íl'e/, 1'~\'féfiClle

po/(ficl/. Trad, Mônica Costa Netto. São Paulo: exo experimental /Editom 34. 2(0): -. E/ illcol/,W'iellfe ".I'fético,

Trad. S, Duluc et aI. Bucnos Aires: Del estante. 2(0): BADlOU. Alain, C/JI/{liáolll'.I',

Trad,E,L.Molina y Vcdia. México: Siglo XXI. 2002.

Raul Antelo (UFSC)

Um rápido exame das tendências axiológicas que operam no campo do comparatismo latino-americano poderia apontar, para iní­cio de conversa, que nele existe, residualmente, um universalismo político, formal e ficcional, inscrito nos marcos da nação, e voltado à regulação das hegemonias ideológicas, enfrentado ao qual temos um outro tipo de universalismo, o universalismo irrepresentável da pós-nação, que se sustenta em paradoxais inclusões excludentes. Po­deríamos, então, registrar, em consequência, como dado novo, a emer­gência de uma universalidade concreta, pós-nacional ou global, com seu corolário ficcional específico, as ações simbólicas unitárias (mercadológicas, segundo a vertente integrada desta tendência) ou pluralistas (que, segundo a visão apocalíptica da mesma, cabe ao Illulticulturalismo). Mas, mesmo assim, constatamos a sobrevivên­cia residual da primitiva universalidade concreta do Estado-nação, cujos efeitos ainda não cessam de registrar-se nos estudos de área. Haveria, entretanto, a meu ver, uma terceira posição, a da sinRltlari­dl/de da literatura que, através de um regime estético) , se oferece como um excesso imanente que motiva uma incessante insubordina­ção contra a hierarquia dada.

Com efeito, uma das saídas da crítica cultural contemporânea, entendida como crítica entre culturas, é a de resgatar um regime estético que proponha um modo de ultrapassamento das decisões de cunho racionalista dos modelos universalistas herdados do alto mo­dernismo. Trata-se, na verdade, de uma alternativa que confronta, de fato, dois modelos de historicidade. Uma história evolutiva, historicista, pautada por rupturas, e uma história circular, hiper­historicista, construída através de reinterpretações. Aposta-se, as-

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sim, em um futuro artístico que é, ao mesmo tempo, um futuro da política, um futuro que, ao enfrentar-se com o presente da não-arte, não deblatera nem esconjura a nova barbárie, remetendo, porém, diretamente ao passado, a seu caráter inacabado e virtual, para assim potencializar a ação, a partir da impotência comprovada na atualida­de. Diríamos, portanto, que é, paradoxalmente, em função do dado anestésico, que se reabre, na crítica (inter-)cultural, a discussão acerca do que se passa e que, ao passar, atua, vindo a configurar o aspecto atual e ativo da presença e da sensibilidade contemporâneas.

Esse modo de encarar a crítica cultural não se baseia em deci­sões de ruptura, porém, reivindica para si decisões de reinterpretação. É o regime de uma relação não tradicional com a própria tradição, em que há co-presença de temporal idades radicalmente heterogêne­as. Já tive ocasião de mapear o campo e destacar que, diante de uma fração entrincheirada na restauração universalista, consolidada pela mediação dos "grandes textos", podíamos registrar outras estratégi­as reinterpretativas que, pelo contrário, valorizavam o conteúdo de massa da obra de arte contemporânea, para melhor devolver-lhe seu caráter transgressivo. Em ambos os casos, por exemplo, lançava-se mão da precursividade da teoria do texto barthesiana mas, nesta se­gunda perspectiva, destacava-se que toda linguagem crítica constrói seu próprio verossímil e que todo verossímil é, por definição, arbi­trário, até se tornar

"inaceptable la pretensión absolutista de la vieja crítica que, natu­ralizando y deshistorizando su verosimil aspira a convertirlo en criterio absoluto de legitimidad y propiedad literario-institucional. La idea de verosimilitud crítica, formalista y convencionalista en tanto es respecto de las propias proposiciones que el sistema dei crítico adquiere su verdad, va a convertirse en algo como un prin­cipio epistemológico para Barthes, tanto en sus intervenciones semiologizantes, como en su crítica dei gusto."~

Apropriando-se, com exclusivismo, do critério de pluralidade, o julgamento crítico universalista forçaria o domínio do estético, até associá-lo com uma veracidade pedagógica, idéia que aparece em alguns textos já clássicos dessa vertente, tais como Occidental Poetics (1990) de Lubomir Dolezel, ls literary history possible? (1992) de David Perkins, O cânOl1e ocidental (1994) de Harold Bloom, Altas literaturas (1998) de Leyla Perrone-Moisés ou mesmo Knowledge

, SARLO. Beatriz (ed) - l:"I IIIlIl/do de Rolal/{I Bar/lIes.

Buenos Aires. Centro Edilor de

América Latina. 19H l.p.23.

Essas idéias de Sarlo rca­

parecem. potencializadas. em "'Los modos de ser Barlhes".

prefácio que da escrevcu para a edição ell1 espanhol de IA/

1'rt'11lIl"lIliO/l dll 1"11/1/(1// (Cr. BARTHES. Roland. La I'/"e­f'"l't/cirí/l de fal/orefa. Trad. P. Willson. Buenos Aires: Siglo XXI. 2(05).

3 Fi;n .. n~lm:lli.ell1"C{)nju.1lue;on World Lileralun:" (Neli" LeI' RCI'iell. nU I. 20(0) parle da

homologia entre sislema li­

terário e capitalismo para afirmar que "the lilerary

world-system is analogous lo Wallerstt:in's capitalisl world­syslem. and Braudcl 's éc()­

I/o/ltie-II/()/Ide hdore him- core. 1X:liphery,scmi-pclipl"k:ly.elc. hul with one major dillerence:

within the capilalisl world­

system the tlo\\' oI' producls is always two-way. some producls

go from the core to lhe periphcry (. .. ): while others. ( ... ) follow lhe

opposite route and go from the periphery to the core. In lhe literary world-system, on the other hand, the tlow is hasically one-way: very strong frolll the core lo the peliphery. very wcak in the opposite direction". essa rua de m:lo-ünica significa que "core literalurcs can inlluencc peripheral ones. at limes very

dt:t:pl y. whereas t he n:verse is

almost ne\'er the case". Por isso

Moretti defende a lese da literatura mundial argumen­tando que "'applying world­systems analysis to Iitcrature Illeans emphasizing lhe unequal slructure within which literature is written: lhe advantages thal very few cultures enjoy. anu the constrainls under which ali the others must work. This asymmetryoflhe literary wor1d­systelll is the key conlribution of world-systems analysis lo literary study - and is also lhe

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point that has encountcred lhe greatest resistance. hecause lots of pcoplc rcfus<) Iü

acknowledge the pow.:r oI' material constrainls o"er cultural production: Ih.: power 01' malte r ovcr spi,il. as il werc". Aquilo que Morclti não assume é que, assim racio­cinando impõe-se. d.: malll:ira normativa. uma queslão dc gênero universal- () romance - e é a pa'lir dessa forma ql!<: se constrói a reflexão sohre a assimetria dos intercâmbios. o que é uma maneira de não questionar a política da forma. É verdade que ele denuncia a hegemonia de um sistema literário nacional ("Nineteenlh centul)' FI~ulL'c is the gl1::~ pamdigm of formal invcnliveness") mas ao mesmo tempo "il's the gr.:al exccption of literary history. You look at nineteenth ccntury B,itain. and immcdialely se.: lhe differenc.:: it's such a kss prohlcmatic society. so much more satisfi.:d wilh itsd r. This is what hegemony hrings ahoul: the US today. so similar lo Victorian Britain in so many ways". Daí sua conclusão: "Nol that world-systems analysis has anything relevant to say ahoul fonn - it docsn't. form is a non­existent concept in historical sociology - but world-syst.:ms analysis makes us und.:rsland that form is not a givcn 01' literary history. it's nol something that can he tak.:n for granted like IVC literary p.:oplc tend to do, but is the rcsult 01' a very specific non-litcrary configuration: formal invenlion thrives in those soci.:ties Ihat belong to the core. but are nol hegemoni.:. or in those that ar.: in the more dynamic 1':111 ofthe semiperiphery. Societies wer.: contradi'ctions are decp. but solutions are imaginahlc". As teses de Moretti, fartament.: apoiadas nas amílises macha­dianas de Roherto Schwarz. apóiam-s.: . .:ntre outros. em ensaios como os d.: Itamar Even-Zohar ("Polysystem

Os confins como reconfiguração das fronteiras 61

(/fui Comitment (2000), de Douwe Fokkema e Elrud Ibsch. A versão "progressista" dessa posição universalista seria a de Pascale Casanova ou Franco Moretti, defendendo, na vira-da de milênio, a literatura mundia I J •

À diferença do universalismo clássico, o princípio de verossi­milhança crítica pós-literária, disseminando a noção de pluralidade, abre mão da unanimidade do "grande texto" e assenta-se, pelo con­trário, na dinâmica das forças. Sob o ponto de vista pós-crítico, na medida em que toda força mantém uma relação essencial com outras forças, ela passa a ser vista como intrínsecamente plural. Não faz sentido, em conseqüência, pensá-Ia em singular, como obra prima ou cânon insuperável: a força é o poder de um sujeito soberano mas é também o objeto sobre o qual esse domínio é exercido. Nesse sentido, uma força é sempre uma relação entre forças, portanto, uma pluralidade. Essa pluralidade, enfim, faz com que uma força sempre seja afetada por outras forças, e em conseqüência, a vonta­de de poder, o desejo de cada força se tornar objeto exclusivo de atenção para si própria, pode ser traduzido como a intenção ambivalente de poder ser afetado e, ao mesmo tempo, afetar as outras forças. Como ações combinadas e complementares, criticar e avaliar equivalem, portanto, a experimentar e problematizar di­versas forças em si.

Mas, ao lado do universalismo pró-literário e anti-culturalista, há outras correntes críticas, no interior do comparatismo, sem res­postas convincentes, a meu ver, para a situação presente. Naqueles críticos em que a hegemonia do modernismo sobrevive colada à marca do nacionalismo, o paradoxo talvez seja ainda mais visível. A posi­ção que eles sustentam é a priori defasada, uma vez que, se já é difícil justificar a sobrevivência de uma comunidade textual, como querem os universalistas, mais árduo ainda é proclamar a existência de uma comunidade nacional. Em função do hiato que se estabelece entre enunciado e enunciação, não é possível esconder que essa crí­ticajá não fala do interior de uma comunidade pré-capitalista e autô­noma, mas, ao contrário, sua posição e legitimidade foram, há mui­to, universalizadas, quando não globalizadas. O paradoxo de uma "dialética da colonização" reside justamente nesse ponto: ela critica as comunidades imaginadas em torno ao ser nacional, mas, ao mes­mo tempo, ela amarra essa dialética ao desejo de uma impossível comunidade por vir. Mais impossível ainda, no caso do Brasil, diante

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da queda de todos os semblantes democráticos, decorrentes dos par­tidos construídos, à maneira ocidental, européia, como representan­tes de classe ou seteres de classe,

Assim como o Oitocentos inventa a máquina, dentre elas, a nação como máquina simbólica, e adquire, portanto, consciência de modernidade, o século dos nacionalismos descobre também, com

Flaubert, a bêtise como não-pensamento do lugar comum. O discur­so nacionalista desempenha, precisamente, essa função de bêtise conceitual já que busca sempre outorgar materialidade a um objeto como a nação, que carece de toda especificidade. A nação é um con­junto de pontos do imaginário que fazem laço social, daí que seu valor mude constantemente. Não é o mesmo o sentido de nação em Alencar, Manoel Bonfim ou Mário de Andrade. De fato, depois de 1945, o conceito de nacional precisa ser pensado, a partir da lição de Gramsci, como Ulll objeto híbrido, 1/acional-popular, que é uma forma de dizer que esse nacionalismo é, na verdade, um nacionalis­mo anti-imperalista.

Já tive ocasião de mostrar de que modo o debate pós-estrutu­ralista francês repercutiu nos ensaios iniciais de um conjunto de es­critores e críticos latino-americanos como Beatriz Sarlo, Leyla Perrone-Moisés-l ou Ricardo Piglia5 . Gostaria, dessa vez, de me de­ter na reflexão de Ernesto Laclau para melhor equacionarmos os desenvolvimentos posteriores de sua teoria da política contemporâ­nea concebida como um populismo incontornável.

Em seu último livro, Beatriz SarJo destaca a relevância de 1970 para captar as forças do presente. "La Argentina no iba a ser la misma a partir de los hechos de mayo y junio de 1970 - diz a analista, em referência ao cri me de Aramburu e pondera, ainda - muchos creyeron que se iniciaba el desenlace de una época que concluiría con una victoria revolucionaria". Mais ainda, diz que, unanimemente,

"se creyó que había sanado la hora de la justicia. Quienes se movían por estas convicciones, no se preguntaron entonees si lajustieia que se había ejereido sobre Aramburu podía reclamar ese nombre. Tampoco se preocuparon por que otros pensaran que esajusticia tenía la forma de una venganza. Sustancialmente, lo que se había hecho estaba bien por razones históricas y políticas. Por eso, la muerte de Aramburu no obligaba a resolver ningún dilema moral, sobre todo porque la idea misma de un problema moral parecía inadecuada para entender eualquier aeto polítieo"lJ.

Studies", in Poelics 7i"/iI.\', spring 1990) ou Emily Apter ("Global TI"lIlI.l"iil/io: The "Invention" of Comparative Literatun" Istanbul. 19.B", Cri/im/II/quiry, n" 2<), 20m).

• Cf. ANTELO, Raul. "Valor e pôs-crítica". In: MARQUES, Reinaldo ct alii. Villores. Ar/e ,\Ier,'"d" I'ol(/icil. Belo HOI;­ZOIllC: Editora da UFMG, 2002: ~~. "Los desafios de la post­crítica". ReI"is/iI de Criticil Culluml. n" 25. Santiago do Chile.nO\'. 2002. p.16-7:-. "A estética do ahandono" In: RESENDE. Beatri~ (ed.) II Fil'('tlo LlIlillo-/\l/lcric({l/(/ 1/0

Século XXI. Rio de Janeiro, Aeroplano (no prelo).

, Cf. ANTELO. Raul. "O anacronismo e a política do tempo". In: FONSECA, Maria Augusta (ed.) Olhilres sol>re o I"OII/III/ce. São Paulo: Nan­quim,no prelo. Ainda a respeito de Piglia, Andrea Giunta nos relembra que "en 1965, en cI únieo número de la revista Li/em/um y Sociedild, Ricardo Piglia intervenía en este largo debate abocándose a una tarea dohle: intcntaba. por un lado, definir cI lugar de la n"o­irquierda argentina, akjada de aquella 'vieja izquierda' a 'Ia qut: entendía como irremedia-bkmente separada dei pueblo bajo la consigna de 'combatir ai nazi-peronislllo': neo-izquicrda que, I;\vorecida por la revolucilÍn cubana, había iniciado una 'dolorosa toma dtO conciencia', replanteando la neccsidad de UH eamino nacional para c1marxismo cnla Argentina. Por otra parte, Piglia quería discutir también la posici6n de esta izquierda en cI terreno cultural. En este

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sentido, allllismo ticmpo que buseaba diferenciarse de sectores dogmáticos quc sistemüticamente descdlaoan a algunos esclitores por su posicilin política, se oponía a toda preceptiva: 'Es luchando por una nucva cultura y no violentando los ('o//le//ido.l· o alienando a la literatura en la inmediatez de lo político como podemos I\.'sponder a la realidad de nuestro tielllpo'. Cf.GIUNTA.Andn::a. 'rllllglll1lill. i//lel'llllcio//lllislI/o Y i'(llrlil·lI. Ane 1I1'/:el//illO ell los mios fí(). Buenos Aires: Paidós, 2001. p.356.

,. SARLO. Beatriz. A i'lIi.rti(l e li ('.rceçtio. Borges, E\'(/ Pel'lí//. II/ol//ollems. São Paulo: Com­panhia das Lelras, 2005. Cito pelo original: LII I'II.I'ití// Y 111 e.rcel'dô//. Buenos Aires. Siglo XXI. 20D3. p.134. Mais adiante Sarlo teoriza as eonsequências teóricas do anacronismo: "Los términos son los siguientl.'s: plimero. eI caso Aramouru cs un hecho excepcio//III que no puede ser asimilado a la sl.'rie de muertes que siguil.'l'On. aunque estü en eI origen lll! la organizaeión que fue responsable dc lIluchas de l.'sas muertes: segundo. el caso Arambul1J es un hecho I'II.I'io//lIl. organizado silllbólicalllcnll.' sobre el ejc de una pasi6n clásica. Ia de la venganza: la cxcepcionalidad pasional dcl caso pone de lIlanifiesto una scnsibilidad que hoy pucdc considerarsc histórica (es decir que ha cUlIlplido un ciclo y ha desaparecido o sólo se Illanifiesta. disilllulada por I:l~ denegaciones y subterfugios de la mala conciencia. l.'ntre quienes mantienen lazos subjetivos con esa sensihilidad de época). Están las condiciones. entonces. para interpretar los hechos y los discursos en el terrello de su cultura. No se t rala de una reconstruccilÍlI ctnognífica basada en lo que los'

Os confins como reconfiguração das fronteiras 63

Justamente nessa época, em meados de 1969, e numa pequena

revista maoísta dirigida pela própria Sarlo, Laclau publica um en­

saio, "Los Nacionalistas". Nele argumenta, simétricamente à Sarlo

de 2005, com relação aos 70, que o conhecimento da década de

trinta é decisivo para uma adequada compreensão da Argentina con­

temporânea. O ensaio é uma vindicação do anacronismo avallf la

lettre. Várias são as causas.

"En primer término porque, con la crisis económica mundial que asiste a su nacimiento, surge el conjunto de condiciones - funda­mentalmente diversas de las predominantes en los setenta anos anteriores - que habían de imperar en el curso de su complejo desarrollo ulterior. Además, constituye la prehistoria deI peranismo, e\ eco más significativo de las tres últimas décadas. Finalmente, si bien en los últimos tiempos nuevos hechos de estructura tienden a modificar la correlación de las fuerzas políticas y las alianzas de c1ase - notoriamente la irrupción dei capital imperialista norteamericano a partir de la década deI cincuenta - estos nuevos hechos debieran operar a partir de los conf1ictos y contradicciones de una estructura previa cuya génesis es preciso rastrear a partir de la década deI treinta".

Portanto, para Laclau, a história do nacionalismo e de suas

transformações internas adquire relevância singular para entender

o novo surto vanguardista dos 70.

"Nadie duda que tuvo una influencia ideológica especialmente significativa en la revolución de 1943 y en el praceso ulterior de génesis deI peronismo, pera nunca se había trazado de él una historia completa y adecuada, que tendiera a rescatar lo esencial de su evolución y diferenciación interna. A esto contribuía la "Ieyenda negra" elaborada por la oligarquía liberal y sus adláteres de izquierda, cuyo virulento antiperonismo tendió a presentar aI gran drama histórico de 1945 como un enfrentamiento entre de­mocracia y fascismo, pera también la actitud de los mismos naci­onalistas, que en algunos casos por ocultar sus simpatíaspolíti­cas por los regímenes de Mussolini e Hitler, en otros - más frecuente -por presentarse como única alternativa aI marxismo, ha contribuido a la cristalización de su pasado en una vacua simbología que oculta su rica historia interna y buena parte de sus logros más significativos y vigentes. La interesada indentificación

por parte de la izquierda liberal de todo el nacionalismo de la

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década de los treinta con la paranoia permanente de un Julio Meinvielle, por ejemplo, no ha encontrado por parte de los nacio­nalistas desmentidos que serían tan justos como posibles".

Analisando, então, um livro, quase um manual, aliás, assinado

pela futura diretora da Latill Americall Studies Assoóatioll , Marysa

Navarro Gerassi, Laclau louva nele "Ia captación de este variado

origen y de esta diversidad de influencia" do fenômeno nacionalista

que lhe permitem isolar

"Ia concepción de que el partero de la historia y el agente de la revolución nacional no lo constituyen las masas sino una élite privilegiada. En la década deI veinte las primeras formas de naci­onalismo fueron antidemocráticas, antipopulares, pero no necesariamente anti I iberales. Se trataba de reformar a la vieja él ite conservadora para hacerla apta a la reconquista de su papel pro­eminente frente aI gobierno de la "chusma radical" y a las luchas reivindicativas deI movimiento obrero - semana trágica de 1919 - así como frente a la marea ascendente en la revolución mundial simbolizada por la Revolución de Octubre. Así, la idea de un Es­tado autoritario se ligaba a un proyecto de reimplantación deI poder oligárquico pero no a un cuestionamiento deI carácter agroexportador de la Argentina y de su dependencia deI imperia­lismo inglés, problemas que sólo surgirían en la década deI treinta, cu ando la crisis económica mundial y la quiebra de la división internacional dei trabajo, revelarían la naturaleza vulnerable y dependiente de nuestra economía".

Nesse sentido, diante do impacto da crise econômica mundial,

o nacionalismo dos anos trinta cinde-se cm duas vertentes. Em pri­

meiro lugar, a do revisionismo historiográfico que "redefine el papel

deI Estado, cuestiona el papel dei imperialismo inglés en la historia

argentina y reivindica el papel de Rosas frente a la oligarquía liberal

y portuaria", enquanto, de outro lado, outros setores mais radicais

"se transforman en el apéndice pm~dillero y provocativo de la oligarquía deI fraude patriótico". Assim,

"hacia fines de la década deI treinta los mejores sectores deI naci­onalismo habían disefíado el modelo abstracto de una revolución que sería industrialista y antiimperialista por su contenido y se apoyaría en el ejército como élite dirigente. Estamos en los

protagonistas hoy recuerdan de aquellos aiios, sino de una intcrrogacilÍn a lo que dijeron e hicicron cn aquelmomelllo: los

hechos de 1970 y su narración en los tres o cuatro allOS siguientes. i.Por qué este call1ino'> Porque interesa

saber. si esto es posibk (aunque Illuy difícil), la versión dei acontecimiento eI/ eI momento de SlI suceder. müs que su realliculacilÍn en una red de recucnjos y de introspecciones

que han sido ineludiblelllcntc tocados por los allos ue la uictadura, las uiversas críticas a la violencia ue la transición uelllocrútica y los saberes hisloriogrúficos que quienes recuerdan los al10s de cOlllienzos ue la décaua uel selenla no pucuen ocluir

cuanuo piensan y hablan. Cuando suceuió eI secueslro de Aralllburu, touos los que hoy recueruan esa época eran muy jóvenes; lo que recueruan está atravesauo por la nostalgia ue una euau especialmente apta para la iuealización. Se recuerua d momento en que la política era t;Uljoven COlllO los militantes. U na rcconstrucción mClllolialística no c;m:ce de intel~s. Sin embm-go, dia no estú en cI centm de hs prcguntas porque aquí no se tratará de ver quê se recuerda sino l'SI! que fue, en sUlllomento, unprl'.I'l'IIIl'. Es intercsante d mouo cn que la mcmoria produce su rasado como una intcrsccciôn entre lo que se recuerda. lo que se permite recordar. lo que se olvida. lo que se pasa cn silencio, lo que cambia de registro y dc tono, incluso ue género n:UTativo. Lo que la mClIloria ofrece tiene la complejidad de una ucronía, en el sentido dc un tielllpo bifronte, hecho de dos tClllporalidades: la dei presente dei relato y la dei pasado de In narrauo, que se actualizan en cI presente de la Icctura. Discrilllinar entre esas tClllporaliuaues cs una emplL'Ç! crítica y rcconstructiva". Cf. SARLO - "I'. ('ir .. p. 136-137.

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Quanto à relevânda do debate cultural dos sessenta para a compreensão do presente, ef. KATZEN~IN, Ines & GIUNTA, .-\ndrea (ed.) - Li.Hel/. Here. :Vow! A/xel//il/e AI'I il/ li/e 1960s: Wrilil/Ms oI' lhe 1\1'(11//­

(;lIrde. New York: The Muscum ofMorem Art,2(X)4e MASOTTA. Oscar. Rel'lllllcilÍl/ el/ eI IIrle.Pol'­ur/, 11IIflflel/il/gs y (/I"/l' de los lIledios ell 111 déclldll dei

sesel//II. Estudo preliminar Ana Langoni. Buenos Aires: EOhasa. 2(Xl4; RIZZO, Patricia.lilslillllodi

7el/lI. EI7>erie1U'ills '68, Mucstrade reconstl1lcción histórica. Bucnos Aires: Fundación Proa, 11)l)X.

'Cf. LACLAU, Erncsto. "Los nacionalistas" in Los /i/Jms. Buenos Aires, a.l, n". I, julho de 1969.

Os l:ont'ins l:OIllO rCl:onfiguração das fronleiras 65

comienzos de la guerra mundial, en vísperas del4 de junio y en la antevíspera dei peronismo,"

Era necessário, entretanto, nos diz Laclau, um passo além, i.e.,

"que el proyecto abstracto de revolución dejara de ser la entelequia que presidiera los actos de una minoría esclarecida y que se trans­formara en una fuerza material por la acción de las masas en las calles. Es lo que ocurrió el 17 de octubre de 1945. A partir de entonces el nacionalismo militar sin pueblo se transformó en la revolución nacional antiimperialista de un país dependiente. ( ... ) En resumen, la melancólica historia dei nacionalismo oligárquico sugiere una conclusión: si el nacionalismo dei país central es expresión dei terrorismo de gran capital monopolista, el naciona­lismo de un país dependiente es progresista y revolucionario, pero sólo en la medida en que sea auténticamente popular y confunda su desti no con el de las masas"7.

Um ano mais tarde, ainda nessa linha de nacionalismo "argeli­

no", Laclau resenha os escritos programáticos de um desses teóri­cos que operaram a passagem do nacionalismo elitista para o nacio­nalismo progressista e revolucionário, o neo-nacionalismo, popular e de massas. Em "EI nacionalismo popular", Laclau valoriza a militância de um escritor em luta contra a restauração nacionalista de élite. Muito embora ainda julgue "ingênua e errônea" a tese de Scalabrini Ortiz, de que "el proceso desencadenado por el golpe de 1955 conducía a restaurar el predominio inglés sobre la economía argentina", com a vantagem de quinze anos de distanciamento com

relação ao precursor, o jovem Laclau tem condições de constatar, pelo contrário, que os investimentos do imperialismo norte-ameri­cano modificaram profundamente a natureza da sociedade argenti­na. E não apenas dela. Destaca, então, a importância de "remontarse a las fuentes de este notorio error de perspectiva que procede, en nuestra opinión, de la limitada concepción que, en la década dei treinta,

elaborara el nacionalismo popular acerca de la dominación imperia­

lista". Analisando, pois, o período 1930-1943, Laclau detecta

"dos formas distintas de enfrentamiento ai sistema oligárquico. Una de ellas, la de los partidos liberales, que tendían a democrati­zar el sistema agroexportador sin cuestionar las bases dei mismo. Así, a lo largo de la década se constituyó entre el radicalismo, la democracia progresista, el socialismo y el comunismo, una "unión

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democrática" más o menos informal que actuaba como oposición interna ai sistema oligárquico, Pero junto a ella el nacionalismo popular - cuyos representantes principales fueron Arturo Jauretche y Scalabrini Ortiz -cuestionó las raíces dei sistema oligárquico­imperialista y planteó, como alternativa a él, el desarrollo indus­trial autónomo. ( . .,) EI antiimperialismo expresado por el nacio­nalismo popular presentaba, pues, dos rasgos centrales: por un lado, la afirmación de la indisoluble unión de intereses entre la oligarquía tradicional y la potencia imperialista dominante; por otro, la consecuente afirmación de que la lucha antiimperialista se confundía con la lucha por la industrialización".

Este último aspecto adquire especial relevãncia após a crise institucional de 200 I, quando, de certo modo, o kirchnerismo reto­ma a velha tese aventada por Scalabrinix . Já em 1970, Laclau consi­derava que essa era a atitude anti-imperialista mais adequada, uma vez que "el capital extranjero no se invertía en industrias sino en el comercio, en las finanzas, en los servicios públicos y en los papeles deI gobierno. En tales circunstancias, las divisas necesarias para un proceso sostenido de industrialización sólo podían proceder de la confiscación de una parte de la rcnta agropecuaria por parte de un Estado nacionalista". E, nesse sentido, apoiado na leitura de Arturo Jauretche, condenava "Ia impostura de aquellos grupos de izquierda que, sospechosamente, se deshacían hacia aquellos afios en improperios contra cl imperialismo norteamericano, en un país do­minado poreI imperialismo inglés".

Laclau, porém, é consciente de que a natureza da exploração imperialista começa a mudar no pós-guerra. "Crece la fusión deI capital británico con el norteamericano, a la vez que se incrementan aceleradamente las inversiones norteamericanas en América Latina. La posibilidad de resurgimiento de un imperialismo inglés agresivo se torna, de más en más, una ficción". Chega-se, assim, a uma situa­ção concentracionária que introduziu

"dos cambios fundamentales en las formas de la explotación im­perialista en Latinoamérica: por un lado, la industrialización - sin aditamentos - no es ya más una bandera de lucha anti imperialista. Por otro lado, se ha resquebrajado la identidad de intereses entre las oligarquías locales y eI imperialismo, ya que la ampliación de mercados necesaria para la expansión de las nuevas industrias monopolizadas requiere cambios estructurales que sólo son

'·· ... existe. allllislIlo tielllpo. un lazo conllín entre eI obrero argentino) cI patrono llIgcntino. Es la necesidad de que la fáhrica exista y subsista. Si la fáhrica argentina es destruida porque lIlolesta con su cOlnpetencia a la fábricaextranjera. d patrono se queda sin su propicdad y cI obrero argentino sin su trahajo. Esa coincidencia es el lazo nacional que une ai patrono y ai ohrero por arriha de sus antaglÍnicos puntos de vista sociales" Apud. LACLAU, Ernesto. "EI nacionalislllo popular" in Los lilJ/os, Buenos Aires. ano I, n".X, Illaio 1970

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Os confins C0l110 reconfigunwão das fronteiras 67

realizables a costa de las oligarquías tradicionales y, además, que la funcionalidad de éstas dentro dei sistema tradicional de exploración procedía de una división internacional deI trabajo que ha perdido vigencia. De ahí que los dos pilares básicos de la concepción anti imperialista que elaborara el nacionalismo popu­lar en la década deI treinta no hayan podido resistir el embate de la nueva situación".

Laclau, de algum modo, toca assim na fratura exposta do libe­

ralismo, que há de se tornar explícita com a ditadura militar, seis

anos mais tarde.

"Si los mismos ejecutores de esa política creían ser los protago­nistas de una restauración - la eliminación de industrias "artificiales" y el retorno a la bucólica Argentina deI Centenario­en los hechos, ai liberalizar la economía en el contexto de una situación mundial sustancialmente modificada, lograron un efecto bien distinto deI imaginado por ellos: la penetración arrolladora deI gran capital monopólico que, en 1966 [porém, de forma bem mais agressiva, dez anos depois], una vez que hubo logrado sufi­ciente fuerza económica y un Ejército dispuesto a actuar como su partido político, desplazó deI poder con un sencillo diktat aI siste­ma de la partidocracia fraudulenta."

Contrário à opção do nacionalismo popular anti-britânico e

pró-norte-americano que, da mesma forma que o getulismo, aposta

na política pendular (apoiar-se no patrão emergente para derrotar o

dominante), Laclau conclui que, apesar dos aspectos favoráveis, é muito difícil uma verdadeira aproximação com os Estados Unidos.

"EI obstáculo es su falta de espíritu político nacional. EI terror (norteamericano) a un bombardeoatómico es hoy la tónica de la política que gira alrededor de su propia seguridad. Sobre ese fun­damento afectivo es difícil y peligroso establecer una relación perdurable y sólida. Pera tampoco es posible oponérsele abiertamente. De todas maneras parece indudable que el precio de cualquier apoyo n0l1eamericano sería indudablemente la concesión de bases -o la seguridad de poder usarias en caso de guerra, en caso de constmirlas nosotros - que traería aparejado obligaciones y compromisos para un futuro bélico, en momentos en que la estrategia norteamericana está enfrentada a perspectivas poco favorables. Jugar a la balanza, pero sin caer es el arte de equilibrio

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68 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n. 8, 2(X16

que no debemos perder de vista en el planteo de nuestras reivindicaciones Ilaciollales."

Laclau, enfim, vê no precursor, Scalabrini, um sujeito "dema­siado auténticamente anti imperial ista como para no comprender que estaba asistiendo a la instauración de un nuevo sistema de dominación". É a pattir, pOltanto, dessa leitura gramsciana do presen­te (dos anos 70) que Laclau elabora sua teoria da hegemonia e, mais importante ainda, que, em momentos em que dominam as teses monistas de um poder centralizado enquanto Império, ele ainda aponte em dire­ção a uma lógica da margem, como desconstrução do iluminismo metropolitano. Um exame um pouco mais pormenorizado de seu últi­mo livro nos ilustra não apenas certas linhas de continuidade com o jovem Laclau de Los lihras (que, a rigor, é uma linha de continuidade entre Jauretche e Kirchner) mas, acima de tudo, o peso que sobre essa reflexão deixou cair uma nova noção de diferença (como substituto do substancialismo identitário) e uma nova noção de sujeito (como sujeito da linguagem e sujeito do desejo), através do debate desconstrucionista e psicanalítico dos últimos trinta anos.

Por isso mesmo, em seu último livro,A razão populista, Laclau pensa o povo como categoria social heterogênea. Sem este atributo, o povo ainda poderia ser concebido tão somente como a forma fenomênica portadora de um núcleo homogêneo e transparente, algo que, sem dúvida, estava no horizonte de Jauretche ou de Manoel Bonfim, de Brizola e de certas correntes do PT, quando, pelo con­trário, o Laclau de 2005 considera a heterogeneidade um princípio indispensável, mas, ao mesmo tempo, irredutível, na medida em que ele garante o excesso. Esse excesso não pode ser controlado através de qualquer manipulação. Entretanto, a heterogeneidade do concei­to de povo não se confunde para o analista com pura e simples pluralidade ou multiplicidade, uma vez que o múltiplo não entra em contradição com a positividade dos elementos constitutivos da cate­goria. Portanto, um dos traços distintivos da heterogeneidade cultu­ral do presente é o fato de ela ser deficiente ou, melhor dizendo, ser uma singularidade falha. Neste sentido, se a heterogeneidade é irredutível a qualquer tipo mais profundo de homogeneidade, não quer dizer por isto que ela esteja simplesmente ausente: ela está presente como aquilo que está ausente. Em outras palavras, a singu­laridade mostra-se através da própria ausência.

A ambivalência percepti va da presença I ausência decolTe, pois,

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do fato de que os elementos do conjunto heterogêneo chamado povo estão sobredeterminados ou mesmo investidos diferencialmente. Desse modo, objetos parciais encarnam, a despeito de sua própria parcialidade, ou melhor, pour cause, uma totalidade elusiva ou re­traída. Em conseqüência, ela exige, dado seu caráter negativo, uma construção social contingente, que Laclau denomina articulação e hegemonia. Nessa construção, é que ele detecta o aparecimento da noção de povo.

Ora, para que este conceito seja possível, é indispensável, em primeiro lugar, conceber o povo como uma categoria política e não como um dado da estrutura social. Para Laclau, a nova unidade de análise já não é, como na sociologia funcionalista, o grupo, como referente natural, mas a demanda, como solicitação discursiva só­cio-política. Vale dizer que o analista propõe uma assimetria entre o conceito totalizador de comunidade (o populus) e o conjunto alta­mente heterogêneo dos marginalizados (a plebs), com a ressalva de que a margem é sempre uma parcialidade que, no entanto, identifica­se a si mesma com a comunidade enquanto todo.

Nessa sutil contaminação entre a universalidade do populus e a parcialidade da plebs, repousa a singuralidade do povo como ator histórico, cuja lógica constitutiva é designada por Laclau como m­UJO populista . Uma vez aceita, então, a heterogeneidade do objeto povo, duas perspectivas impõem-se a seu respeito: a universalidade do singular e a singularidade do universalismo. A própria noção de singularidade é quase um oxímoro: ela perdeu o sentido particular de outrora e se tornou um dos nomes da totalidade. Por isso, a razão populista, que Laclau identifica com a política tout court, quebra com duas formas da racionalidade que instauram o fim da política. Ela rompe tanto com a noção de vanguarda e revolução, que torna supérfluo o momento político, uma vez que reconcilia a sociedade consigo mesma, quanto se afasta da ação comunicativa gradualista, que reduz a política à mera administração de conflitos, o que encerra uma tese progressista da história.

Identificando o caráter parcial da demanda com o objeto a lacaniano, a relação populus / plebs abriga ainda uma tensão irredutível em que cada um dos termos inclui e, ao mesmo tempo, exclui o outro. Essa tensão infinita garante o caráter político da so­ciedade como um conjunto plural de encarnações do populus que já não conduzem a qualquer tipo de reconcialiação final, mas que, pelo

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contrário, justapõem os dois pólos. Não existe, portanto, parcialida­de que simultaneamente não exiba as marcas do universal.

Mas raciocinemos, contrario sensu, em nome da parcialidade do universal. Não importa qual for o conteúdo atribuído à entidade ontológica em questão, sempre poderão se reconhecer nela as mar­cas do investimento, portanto, toda parcialidade, toda singularida­de, indica o ponto em que a universalidade está necessariamente pre­sente no fragmento parcial em questão. Há, com efeito, uma relativa contaminação entre universalidade e particularidade, que traduz a lógicado objeto a e da hegemonia. Esse momento fusional aponta para o horizonte histórico final, que não pode ser cindido nas suas duas dimensões constitutivas, o universal e o particular, que são ain­da as dimensões constitutivas da própria literatura comparada iluminista. Portanto, a história não pode ser concebida como um processo infinito em direção a um objetivo final, ao qual, kantianamente, denominaríamos Idéia regulatória. A história, muito pelo contrário, é um processo descontínuo de formações hegemônicas, que resiste a toda narrativa universal que queira trans­cender sua historicidade contingente. Podemos então traduzir a mes­ma idéia afirmando que o povo, como dizem Copjec e o próprio Laclau, não tem desejo, mas exibe pulsões, o que, em termos deleuzianos, ao menos do Deleuze leitor de Bergson, se traduz na fórmula: "o povo não tem instintos; ele cria instituições".

Em todo caso, para Laclau, a emergência do povo como ator histórico é sempre uma transgressão com relação a uma situação precedente, e neste sentido, ela sempre conota um elemento de tragicidade. Como Édipo, o povo é menos um transgressor vanguardista do que ofundador de uma nova ordem. Diríamos, em resumo, que a posição de Laclau equilíbra-se entre (e, ao mesmo tempo, escolhe como interlocutores a) Zizek, Negri, Hardt e Ranciere.

"Contra Zizek sostenemos que la naturaleza sobredeteminada de toda identidad política no se establece apriorísticamente en un horizonte transcedental, sino que es siempre el resultado de procesos y prácticas concretos. Eso es lo que otorga a la nominación y aI afecto su rol constitutivo. Contra los autores de Imperio pensamos que el momento de la articulación, aunque sin duda es más complejo que lo que fórmulas simples - como la mediación partidaria - preconizaban en el pasado, no ha perdido

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'I Cf. LACLAU. Ernesto. nu' Populisl Rea.l'OlI. London: Routledge, 2003. Cito pela tradução ao espanhol, La /'(oill populista. Trad. Soledad Laclau. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica. 2()05. p.309.

10J A MESON, Fred ri c.

Moderllidade sillgular: ensaio sobre a onlologia do l,re.vl'l/ll'. Trad. Roberto Fr.mco Valente. Rio de Janeiro: Civi­lização Brasileira, 2005.

Os conlins como reconfiguração das fronteiras 71

nada de su relevancia y centralidad. En re\ación con Ranciere, la respuesta es más difícil, ya que compartimos los presupuestos centrales de su enfoque. EI pueblo es, tanto para él como para nosotros, el protagonista central de la política, y la política es lo que impide que lo social cristalice en una sociedad plena, una entidad definida por sus propias distinciones y funciones preci­sas. Es por esta razón que, para nosotros, la conceptualización de los antagonismos sociales y de las identidades colectivas es tan impOltante, y que resulte tan imperiosa la necesidad de ir más aliá de fórmulas estereotipadas y casi sin sentido como ser la 'Iucha de clases' "Y •

Ora, voltando ao ponto de partida, diríamos que, na constru­ção de um lugar para a cultura, a neo-esquerda (em 70 apenas naci­onal, "argentina", em 2005, devidamente internacionalizada, através da academia ou simplesmente das editoras) está nos propondo rela­tos de modernidade que definem o espaço democrático como um exercício da diferença. Não é possível derivar deles uma teoria, mas uma razão populista, isto é um pensamento diferencial, heterogê­neo, um pensamento da dépense do iluminismo racionalista e metro­politano, que atravessa todas as categorias com que se organiza nos­so discurso crítico, a começar de noções tais como literatura, naci­onal ou universal. E isto, óbviamente, fere frontalmente os pressu­postos clássicos da literatura comparada tradicion.al.

Fredric Jameson, em seu recente Modernidade singular'O , nos relembra a propósito que, em se tratando de ler a modernidade, "é impossível não periodizar", ou seja, não podemos dar conta do pre­sente sem lembrar das arqueografias de Laclau, Piglia ou SarJo, nos idos de 70. Mas, ao mesmo tempo, essa periodização nada tem de inapelável, uma vez que ela não nos propõe conceitos. Ela trabalha com categorias narrativas - o presente, o anacronismo, a demanda etc. Portanto, é abusivo, funcionalista, autonomista, para não dizer cerradamente fetichista, propor uma teoria da modernidade. O que podemos propor através, por exemplo, da leitura de Laclau, é um relato de modernidade, relato nacional-popular gramsciano nos 70, acrescido pelo princípio de indecidibilidade ou pela noção de sujeito dividido, em outras palavras, atravessado pela força da diferença, que redefine o relato original da cultura nacional situada (lida) entre as outras culturas.

Assim sendo, se essa ficção da modernidade periférica não pode

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ser organizada em torno de categorias da subjetividade (já que cons­ciência e subjetividade são impossíveis de serem representadas), só podemos ter acesso a situaçiíes de modernidade e, por outro lado, se tão somente situações de modernidade podem ser narradas, é pos­sível dar conta de contatos imanentes ou contingentes da história com uma dada subjetividade, com o que é possível também afirmar que a própria subjetividade é irrepresentável fora dessas condições. Vale dizer, em resumo, que o alvo dessa reconstrução anacrônica ou retrospectiva que estou propondo não é nada além do que uma nar­rativa, uma subjeti vidade, uma periodização enunciada em primeira pessoa, ou, para ser mais preciso, 110 singular" .

Um dos nomes, portanto, que poderíamos atribuir a essa situ­ação de modernidade que vimos analisando é o de reconfiguração de fronteiras (tanto estatais, quanto disciplinares). Essa situação, além de ser uma situação clássica do comparatismo, nos coloca um novo problema teórico que é, simultaneamente, uma nova situação política, a de uma cultura lida entre culturas, i .e. uma contestação do comparatismo convencional. Diríamos, a princípio, que há duas for­mas de conceber a fronteira. Podemos imaginá-Ia como um limes inequívoco, o limite, o contorno que circunda uma forma ideal, ou como uma instância liminar, o limen, isto é, a soleira, a passagem, o penúltimo, aquilo que nos permite reabrir a série. Se na primeira alternativa predomina a cronologia, a segunda nos abre as portas ao anacronismo. Se na primeira nos movimentamos na clausura, no en­cerramento de uma disciplina, na segunda circulamos no interior de um espaço teórico interdisciplinar que nos comunica.

Ora, a situação atual, desinteressada pela posição dualista, metafísica, quando não religiosa, obrigada à alternativa limite x Iime1/, orienta-se, entretanto, a pensar a superposição de ambas as margens, na figura dos confins, aquilo que Agamben, definiria como "Ia personalizzazione di cio che, in noi, ci supera ed eccede"l2 , um espaço (territorial, nacional mas também teórico), onde já não imperam as imagens compactas do modernismo (autonomia, nação, subjetivida­de soberana), mas donde emergem novas imagens ausentes, fruto de contato ou fricção, de impressão ou modelagem, em todo caso, de uma matéria (elusiva) que deixa, tão somente, uma marca, um sinal, que, enquanto enigma, se impõe a nossa leitura e reconstrução anagramáticas. É, de fato, a passagem de uma estética vanguardista ou ab­soluta para uma estética do presente, rnemrnente imanente ou acidental.

"Em uma bela leitura desconstrucionista "de es­quenJa", o crítico norle-ame­ricano Derek Attridge define a singularidade de um objeto cultural como sua diferença em relação a qualquer outro objeto, não importando nela a manifestação particular de regras gerais, e sim o nexo peculiar que mantém com a cultura, percebida como aquilo que resiste ou excede a todas as determinações gerais pré­existentes. A singularidade decorre, portanto, não exa­tamente de um núcleo de materialidade irredutível, ou de uma contingência em relação à qual os esquemas culturais que utilizamos não poderiam penetrar, mas de uma con­figur.lção de propliedades gerais que, ao constituírem aentidade. ultrapassam as possibilidades previstas pelas normas de uma cultura, normas em relação à.~ quais seus membros estão acostumados e através das quais a maioria dos produtos culturais são compreendidos. A singu­laridade, em conseqüência. não é pura: ela é constitutivamente impura, sempre aberta a con­taminações, deslocamentos, acidentes. reinterpretação e recontextualização e ela nem mesmo é inimitável: pelo contrário. é fundamental­mente imitá\'e1. mimética, dando origem, assim, a uma série infinita de réplicas e respostas. Concretamente, portanto, a singularidade, como a a1teridade e a inventiva, não é uma pro­priedade, mas um evento de singularização que ocorre na recepção, Ele não acontece t'ora das respostas dos que com ela se encontram e a constituem. Ela é produzida, não é dada de antemão, e sua emergência é também o início de sua erosão, na medida em que ativa mudanças culturais necessárias para abrigá-Ia. A singularidade não é sinônimo de autonomia, particularidade, identidade. contingência ou especiticidade.

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Nem deve ser pensada ~omo extraordinária, colKeito que se reservaria para entidades que são diferentes de outras sem serem criativas em sua di­ferença. isto é. sem introduzir a altelidade na esfera do mesmo. Uma ohra única, porém não singular. é aquela que pode scr completamente compreendida dentro das normas da cultura. De fato, é o processo de com­preensão - o registro de sua pal1intlar configuração de leis ordinárias - que desvenda a condição do úni~o. Cf. ATTRIDGE. Derek. Til e sillgularil)' oI li/era/lIre. London: Routledge. 2(X)4. p. lí3-64. Silviano Santiago. que já usou o conceito de sillglllar para ler a poesia de Ana Cristina César, desenvolve idéias se­melhantes às de Attridge em O COSIlIO!,O!ilislI1o do !,olm' (Belo HOIizonte: Ed. da UFMG, 2(Xl4).

"AGAMBEN. Giorgio­P rola 11 li Z i () /I i. R o ma. noltetempo. 2005, p.9.

Il RELLA, Franco - "La escritura crítica y eI pensallliento de los ~onfines" in CO/!filles. nOIí, plimiero semestre 1999. p.215.

Os confins como reconfiguração das fronteiras 73

Um dos ensaistas argentinos que, principiante nos 70, porém, crítico agudo da fetichização funcionalista sociológica dessa déca­da, vem ativamente elaborando, como doublê de narrador-ensaísta, uma tentativa de articulação entre a tradição do ensaísmo de inter­pretação nacional, aquele da linhagem Scalabrini Ortiz, com os mes­tres da crítica cultural européia, notadamente da Teoria Crítica, é Nicolás Casullo, através de sua revista Confines (ou, melhor dizen­do, pellsamienfo de los confines). Em 1999, ele publica um ensaio especialmente escrito para a revista pelo crítico italiano Franco Relia, quem, na dedicatória, destaca a concomitância do conceito de cO/111m e o estímulo que este lhe causou em trabalhos que o próprio Relia estava a escrever. Retomando a tradição adorniana de pensar o en­saio, e mesmo a reconfiguração de Foucault (do Foucault da Histó­ria da sexualidade), o autor do já clássico Mili e figure dei moderno nos diz, portanto, em "La escritura crítica y el pensamiento de los confines", que

"el ensayo detiene en el umbral deI olvido lo que emerge en eI mundo y en las formas que hablan el mundo. Detiene en el umbral dei olvido lo que el poder de una razón orientada a una verdad y a lIlI lenguaje quisieran sacrificar. Nos queda sin embargo otro problema por afrontar. Dijimos más arriba que asumir la forma artística como sustituto de la verdad filosófica nos dejaría prisioneros de una parcialidad insuperable. EI ensayo debe supe­rar esta parcialidad,;"o no es ella también, en cuanto singularidad - emergencia e instancias subjetivas - algo que también debe ser salvado dei olvido? EI problema ya fue planteado nada menos que por Kierkegaard en uno de sus primeros trabajos, Johannes Clima cus de omnibus est duhitandum: la singularidad es el único problema deI que vale la pena ocuparse y también el problema deI que la filosofía no está en condiciones de ocuparse. Acaso esto fuera posible en la forma deI relato. EI intento de Kierkegaard de articular una suerte de sinuoso relato a través de la muchedumbre de seudónimos con los que firmó su obra, es precisamente el intento de atravesar las diversas instancias de la subjetividad sin perderse en ella. Yademás, de hacer de esta pluralidad "el palhos de la vida intelectual". I'a estamos en la paradoja: eI palhos como elemento constitutivo de la vida intelectual que debería constituir una barrera de defensa insuperable contra aquél"u.

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7 -+ Re\ista Brasileira de Literatura Comparada, n. 8.2006

Partindo, então, da idéia de que a realidade não é um plano de consistência, mas ela é um extremo, ela é um conflm, Relia, que não ignora a noção de espécie como aspecto ou espelho, focaliza em cheio o quid da questão, tanto teórica quanto política, ao obser­var que

"Johannes no escribió ue relato, sino una especie de relato. Así como Proust, luego de haberse dado cuenta de que ya no le interesaban los paisajes o la belleza estética sino los hombres y sus vidas, define su novela como una "especie de novela". Podríamos ir más aliá y decir que Kierkegaard, como por otra parte ya había notado Lukács, no escribió tratados de filosofía o novelas, sino ensayos. Podríamos decir que la segunda parte de El tiel1lpo recohrado de Proust es el más grande ensayo de nuestro siglo. Pero podemos avanzar todavía un poco más.

La realidad como extremo, la realidad como confín, dijimos. En estos últimos a1i0S, para definir la naturaleza de un pensamiento extendido entre sujeto y mundo, entre real e ideal, entre posible e imposible -los planos que constituyen la realidad en cuanto tal­, se ha recurrido aI penslIlI1iento trágico, es decir aI pensamiento que históricamente ha contenido en sus formas, juntos, a los opuestos "no negociables", no superables, pero de todos modos constitutivos de la trama de la realidad:del sujeto y deI mundo, deI sujeto en el mundo. Hoy podemos dar un paso más aliá, y superar la ambigüedad deI término "trágico", que parece contener en sí algo luctuoso. Ahora tal vez podamos lIamar a este pensamiento el pensamiento deI cO/ltin: el pensamiento que piensa el adentro y el afuera, el aquí y el allá"J~.

Talvez um dos maiores rendimentos teóricos desse conceito de confi111 se leia nos ensaios reunidos por Relia em 2004, em seu livro Pensare per./igure. Freud, P/afane, Ka./ka, il postumano. Nele nos esclarece, por exemplo, que o texto de Kafka "non risolve enigmi: li illumina appunto come enigmi, come inesplicabili". E o próprio Kafka, na vertiginosa exegese da parábola da lei, em O Processo, nos alerta: "non esiste interpretazione che esaurisca le possibilità e che ci metta nel cuore di una verità. Verità e enigma si fronteggiano e si rispecchiano fino a identificarsi: la verità e enigma, la verità e I'enigma". Reversibilidade total, portanto, entre fato e interpreta­ção, entre antes e depois, entre cá e lá. A partir desse pensamento do

" IDEM - ihidem. p. 215-6. Para uma discussão do pensa­mento trágico. ver FINAZZI AGRO. Ettore e VECCHI. Roberto (etl.) - For/l/as l'

mediarties do ,rú!ii('o mo­derno. Uma leitura tio Brasil. São Paulo, UNIMARCO, 2004.

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confim, Relia ensaia uma nova leitura kafkiana.

"Milena ha scriuo di lui che egli "non si e mai rifugiato in un asilo che potes se proteggerlo [ ... ]. Percià e esposto a tutte le cose dali e quali noi siamo aI riparo. E come un individuo nudo tra individui vestiti". Ho indagato la nudità di Kafka e la nudita nei testi di Kafka. Ho cercato di capire cosa significa essere nudi di fronte aI mondo, di faccia all'altro: agli occhi che ti guardano, alie cose stesse che allungano tentacoli sinuosi e invisibili che sfiorano vischiosi la tua pelle, insinuandosi negli allfratti bui deI tuo corpo percon'endo sentieri sconosciuti, fino a sfiorare qualcosa di incognito dentro di te in una sensazione indefinita di ebbrezza, di disagio, di sofferenza, di abbandono, e forse di derelizione. La nudità allora non e solo una condizione ma uno stato dell'essere: si di venta o si ri-diventa essere-nudi. Essere-nudi dà cOSI forma ali' esperienza deI mondo. Una esperienza estrema nella sol itudi ne o nell' aUo erotico, o di fronte alia sofferenza, aI mal e, alia morte".

Ao adotar esta hipótese do Iludo (lembremos que Homo sacer e a análise da Iluda vila que nos propõe Agamben é de 1995), Relia torna-se mais consciente da "estrema responsabilità che e connessa all'arte in genere, e alia poesia e alia narrazione in particolare: testimoniare anche la propria insufficienza, anche la propria crisi, anche i propri limiti". Volta, assim, aos mestres da modernidade­Baudelaire, Melville, Flaubert, Montale, Kertész - para deparar-se com a "nudità ontologica della vita", que Simenon, como relembra o próprio Relia, chamava de "vita necessaria", e considera que, nesses textos, é refutada "Ia metafisica in modo ben piu netto di come appaia nei testi heideggeriani, che mai sono giunti COSI lontano". Mas a constatação, feita em nome do princípio de indecidibilidade, lhe co­loca uma nova questão: "Era questo un punto di arrivo o un punto di partenza?" Seja como for, a nudez, serve-lhe para traçar uma divisó­ria cultural entre culturas, entre Oriente e Ocidente: "E I' assenza deI nudo nella cultura orientale che puo confutare la metafisica occidentale, mentre il nudo in Occidente ne e I'espressione ultima e definitiva". E dela derivam outras novas hipóteses, por exemplo, a de que os autores analisados e as figuras que ele, Relia, abordou em seu estudo pertencem ao cânone da condição moderna.

"Se fosse questione della querelle moderno-postmoderno che ha

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animato cenacoli e salotti culturali, sarebbe questione di poco conto. Ma oggi la discussione si e spostata sollevando prablemi che non possono essere ignorati. Stiamo davvero transitando verso un altra tempo? Ho davvera tracciato con questo libra, con tutti i miei libri, i conjini dei moderno? La contesa si e spostata forse dali' opposizione tra metafisica e vem narmfio in un altro luogo? E diventata la contesa fra il pellsare perfigure della narrazione e dell'arte, che ha assunto nel moderno una responsabilità conoscitiva mai avuta in passato, e un nuovo immaginario, di cui pero paradossalmente non si intravedono immagini"l5?

É evidente que estas idéias de Relia estabelecem um diálogo aberto com as de Agamben. Já assinalei que, em 1995, temos Roma sacer. Em abril desse mesmo ano, num colóquio celebrado em Veneza, na Universidade de Ca' Foscari, um grupo de intelectuais, dentre eles Massimo Cacciari, Jean-Luc Nancy ou o espanhol (e foucaultiano) Miguel Morey, abordaram o tema do colóquio, "For­mas do exílio".

Tomemos, de início, a reflexão de Agamben. Na esteira do que se lê em Homo sacer, o filósofo argumentava na ocasião que para que o súdito medieval se transformasse, na modernidade, em cida­dão, foi necessário o nascimento, i.e., a nuda vita, natural enquanto tal, transformada então, pela primeira vez, no elemento portador imediato da soberania.

"EI principio de nacimiento y el de soberanía, separados en el antiguo régimen (donde el nacimiento daba lugar sólo ai sujet, ai súbdito), se unen ahora irrevocablemente en el cuerpo dei "sujeto soberano" para constituir el fundamento de la nueva Nación-Es­tado. No se puede comprender la evolución y la vocación "nacio­nal" y biopolítica dei estado moderno en los siglos XIX y XX si se olvida que lo que lo fundamenta no es el hombre como sujeto político Iibre y consciente, sino, ante todo, su vida desnuda, el simple nacimiento, que, en el paso dei súbdito ai ciudadano, que­da investida en cuanto tal dei principio de soberanía. La ficción aquí implícita es que el nacimiento se convierte inmediatamente en nación, de modo que entre los dos términos no pueda haber ninguna diferencia. Los derechos se atribuyen ai hombre (o emanan de él) tan s610 en la medida en que éste es el fundamento dei concepto de ciudadano, fundamento destinado a disiparse

" RELLA, Franco - "La Cscl;lura crítica y eI pcnsalllienlo uclosconfines" .op.cit. p.148-150.

'h Cito pelo dossier repro­duzido na revista espanhola Arcilipiélago. Cuadel'llo.l' de crítica de la cultura. Cf. AGAMBEN,Giorgio. "Política deI exílio" in ArcilipiélaglJ, n° 26-7. 1996. p.43.

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directamente en este último (es más: nunca tiene que salir a la luz como tal)."I(,

Isto posto, Agamben decide reconstruir uma arqueografia do conceito de exílio e para tanto remonta à noção de exílio tal como era empregada em Roma e na Grécia. A controvérsia era, então, se o exílio configurava o exercício de um direito ou uma situação penal. Daí, desse paradoxo indecidível, segundo Agamben, conclui-se que o exílio é o regime da nuda vita e, mais ainda, que o exílio é a forma

de pertencimento ao estado de exceção. Embora longa, permito-me

transcrever a passagem que resume as teses de Homo sacer e até prepara as de livros posteriores, como o conceito de testemunho

depois de Auschwitz:

"Parece, pues, que en su figura arquetípica el exilio no es reducible a las dos grandes categorías en las que puede dividirse el ámbito jurídico desde el punto de vista de las situaciones subjetivas, esta es, los derechos y las penas. Así, Cicerón puede escribir: exiliul11 1l01l suppliciu/11 est, sed pet:fi/gill/11 portusque supplicii. EI exilio es refi/gil/m, a saber: ni derecho ni pena. l,Significa esta que es una situación de hecho, desligada en todos los sentidos deI derecho? La hipótesis que quiero exponer es la siguiente: si el exilio parece rebasar tanto el ámbito luminoso de los derechos como el repertorio sombrío de las penas y oscilar entre el uno y el otro, ello no se debe a una ambigüedad inherente a él, sino a que se sitúa en una esfera - por decirlo así - más originaria, que precede a esta división y en la que convive con el poder jurídico-político. Esta esfera es la de la soberanía, deI poder soberano. l,Cuál es, de hecho, el lugar propio de la soberanía? Si el sobera­no, en palabras de Carl Schmitt, es quien puede proclamar el es­tado de excepción y así suspender legalmente la validez de la ley, entonces el espacio propio de la soberanía es un espacio paradójico, que, aI mismo tiempo, está dentro y fuera deI ordenamiento jurídi­co. En efecto, l,qué es una excepción? Es una forma de exclusión. Es un caso individual, que queda excluido de la norma general. Sin embargo, lo que caracteriza a la excepción es que el objeto de exclusión no está simplemente desligado de la ley; aI contrario, la ley se mantiene en relación con él bajo la forma de la suspensión. La norma se aplica a la excepción desaplicándose, retirándose de ella. La excepción es realmente, según una etimología posible deI término (ex-capere), cogida desde fuera, incluida a través de su misma exclusión".

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Essa idéia coincide ipsis litteris com a noção de singularidade falha e até mesmo com a definição de povo de Laclau (a

heterogeneidade está presente como aquilo que está ausente), donde a singularidade mostra-se sempre através de sua própria ausência, e

recolhendo, enfim, uma noção de Jean-Luc Nancy, Agamben nos

propõe

"lIamar halldo [destierro] (deI antiguo término germánico que designa tanto la exclusión de la comunidad como el mando y la insignia deI soberano) a es~a relación entre la norma y la excepción que define el poder soberano, Quien en este sentido es "messo ai balido" [desterrado] no sólo está excluido de la ley, sino que ésta se mantiene en relación con él {/!J-b{/l1dol1al1do[o, Por ello, aI igual que deI soberano, tampoco deI "bwulifo" [desterrado] (en este sentido más amplio, que incluye aI exiliado, aI refugiado, aI apátrida) puede saberse si está dentro o fuera deI ordenamiento, Si esto es verdad, el exilio no es, pues, una relaciónjurídico-polí­tica marginal, sino la figura que la vida humana adopta en eI esta­do de excepción, es [a figura de la vida en SlI ;nmediafa y origi­

naria rel{/ciôn COI1 el poder soherano, Por eso no es ni derecho ni pena, no está ni dentro ni fuera deI ordenamiento jurídico y constituye un umbral de indiferencia entre lo externo y lo interno, entre exclusión e inclusión, Esta zona de indiferencia, en la que el exiliado y el soberano comunican mediante la relación de hando, constituye la relación jurídico-política originaria, más original que la oposición entre amigo y cnemigo que, según Schmitt, define la política, EI sentimiento de extranamiento de quien está en el !J(I/l­do deI soberano es más extrano que toda enemistad y todo sentimiento de extranamiento y, aI mismo tiempo, más íntimo que toda interioridad y toda ciudadanía"17,

o trecho é importantíssimo porque essa idéia de que o exilio não é uma relação jurídico-política marginal, mas a figura que a vida humana adota no estado de exceção - "a figura da vida em sua imediata e originária relação com o poder soberano" - afasta-se, decididamente, da equação trágica da modernidade que lemos, tanto em Sérgio Buarque de Holanda, quanto em Borges ou mesmo no

grotesco de Armando Discépolo, quando se define o cidadão como um desterrado em sua própria terra, Agamben retoma e expande, na ocasião, o conceito de vida dos derradeiros textos de Foucault e

17 IDEM, ihidell/, p.47-8. Derrioa oesenvol vc noção semelhante quanoo argumenta quc "I'insulalité a toujors été un lieu privilcgié mais par 111 mêmc amhigu, Ic boro oes toules les hospilalités, commc oe toutes les violences. L'insularité ( ... ) dessinc un licu dont Ics hordures (s/lOres, sides, h(/lIks) ne partagent aucunc fronlii:re lerreslre, nalUrelle ou aJtiricielle, avec I'aulre; si hien que cel habilal, nalurellemcnl prolégé sur ses bords, voil aussi son corps oésanné, OUVClt, ofielt sur loutes ses 'bordcrlines', livré à loul cc qui, sur ses rivages, peul .Uliver( '(/rril'e', 'iI(/I'I'CII', au scns de la venue aussi hien que oe I'événcmcnl). Le corps o 'un hahilal insulaire scmhle se Jéfendre cl s'exposer plus qu'un autrc.1I s'offre à I'élrangerqu'il accucille, cI c 'eslla politesse el

c' csl I'hospitalilé, il s' opposc à I'élranger qu'il redoule, au guerrier, à I'envahisseur, au colon, el c'est Ic rejet, la fermelure introveltie,llloslililé. A moins que par une ccrtainc ineorporation de l'élranger en soi, il nc fasse son deuil oe l'alUre et de celle Opposilion". Cf. DERRIDA, Jacques. "Faxilexture", Noise, I X/19, Palis, Maeght, 1994, p.7.

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i< Cf. ANTELO, Raul - "La atimidad dei guiün" in Sociedad, Rel'Í.\'la de /a Facu/lad de Ciellcia.\' Socia/I'.\' de /a Ullil'er.\'idad dI' 1/11i'1I0.\'

.. \ire.\', n° 22, Bu.:nos Aires, primavera 2003,1','17-10'1

Os confins como reconfiguração das fronteiras 79

Deleuze. Nada sensível aos dilemas da modernização, que são a base de um pensamento territorial da nação na América latina, Agamben, pelo contrário, argumenta, com implacável pensamento pós-trágico, que esse sentimento de não estar de todo não é nem direito nem pena, ele não está nem dentro nem fora da ordem jurídica e constitui, de fato, a soleira, o limen de indiferença, entre o externo e o interno, entre a exclusão e a inclusão. Admitindo sua hipótese de que esse princípio de estranhamento é mais estranho até que toda inimizade e mesmo que todo e qualquer sentimento de estranhamento mas, simultâneamente, ele é mais íntimo que toda interioridade e toda cidadania, prefiro denominar essa experiência extrema com uma ca­tegoria vinda da psicanálise lacaniana, a extimidade 'x .

É evidente, pelo exposto, que a linha de fuga dessa reflexão de Agamben é o livro de ensaios que Relia publica em 2004, Dali 'esi!io. La creaúone llrtistica come testimonianza. Ora, disse também que, nesse colóquio vêneto, além de Agamben, a retrabalhar conceitos de Nancy, estava Cacciari, quem apresentou uma conferência sobre os paradoxos do estrangeiro. Pouco depois, no final de 2000, Cacciari divulga mais um ensaio, em um dossier sobre a idéia de Europa e suas retóricas, na revista aut-aut, que nos interessa de modo particu­lar. Vale a pena transcrever, por extenso, a passagem em que Cacciari define seu conceito de confll11 porque evidentemente esse conceito foi construído em diálogo com o de Agamben, mas não menos com o pensamento dos C01!fllls de Relia, detonado, por sua vez, pelos colaboradores de Casullo na revista Confines.

"Confine puo dirsi in molti modi. In generale, esso sembra indicare la "Iinea" lungo la quale due d<)minii si toccano: cum-jinis. II con­fine distingue, percià, accomunano; stabilisce una distinzione de­terminando una ad~finitas. Fissato il jinis (e in jinis risuona probabilmente la stessa radice dijigere) "inesorabilmente" si de­termina un "contato". Ma - prima di sviluppare questa idea essenziale, che concresce nel nostro linguaggio - intendiamo per "confine" limen o limes? IIlimen e la soglia, che il dio Limentinus custodisce, il passo attraverso cui si penetra in un dominio o se ne esce. Attraverso la soglia veniamo accolti, oppure eliminati. Essa puo rivolgersi aI "centro", oppure aprire alI' il-limite, a cio che non ha forma o misura, "dove" fatalmente ci smarriremmo. Li­mes e, invece, il cammino che circonda un territorio, che ne racchiude la forma. La sua linea puo essere obliqua, certo (limus),

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80 Revista Brasileira de Literatura Comparada. n. 8,2006

accidentata, ma tuttavia essa bilancia, in qualche modo, il pericolo rappresentato dalle soglie, dai passi, dallimell. Dove batte I'accento quando diciamo confine, limite: sul continuum deI limes, dello spazio di confine, o sulla "porta aperta" dellimen? E tuttavia non puo esistere confine che non sia limen e limes insieme. La linea (Lyra) che abbraccia in sé la città deve esser tanto ben jissata, deve rappresentare unjinis cOSI forte, da condannare colui che ne venga e-lim;llato ai de-li rio. Delira chi non riconosce iI confine o chi non puo esservi accolto. Ma il confine non e maifrontiera rigida. Non solo perché la città deve crescere (civitas augescens), ma perché non esiste limite che non sia "rotto" da limina, e non esiste confine che non sia "contatto", che non stabilisca anche una ad-finitas. Insomma, iI confine sfugge a ogni tentativo di determinarlo univocamente, di "confinarlo" in un significato. Cio che, secondo la radice dei nome, dovrebbe apparirci saldamente fissato (come le erme deI dio Termine ai confini dei campi), si rivela, lllllljine, indeterminato e sfuggente. E cOSI e massimamente per quegli "immateriali" confini che fanno "toccare" conscio e inconscio, memoria e oblio"''J ...

Ora, dizíamos, no início, que, na crítica (inter-)cultural, rea­bre-se a discussão acerca do que, ao passar, atua, vindo a configurar o aspecto atual e ativo da presença e da sensibilidade contemporâne­as. E dizíamos também que essa maneira de encarar a crítica cultural não se baseia em decisões de ruptura, porém, descansa em decisões de reinterpretação, como regime de uma relação não tradicional com a própria tradição, um regime em que há co-presença de temporalidades radicalmente heterogêneas. Ora, uma das colabora­doras de C01~filles, a revista de Casullo, é Josefina Ludmer, cujo pensamento mais recente revela variadas sintonias com Paolo Virno e Giorgio Agamben. Na conferência por ela pronunciada em 2002, no Oitavo Congresso da ABRALIC, em Belo Horizonte, Ludmer apresentou uma belissima reflexão sobre as temporal idades hetero­gêneas do presente, tomando como eixo o ano 200020 • Esse texto faz parte, evidentemente, de um livro ainda em processo. Outras das peças que, certamente comporão a reflexão de Ludmer foram ante­cipadas, justamente, na revista Cm~filles. no ano passado. Em "Territorios dei presente", Ludmer refere-se, em particular, a essa substituição de textos por figuras, ou ao deslocamento sutil de tro­cas e intercâmbios por usos e apropriações, e constata, ademais, que, na literatura latino-americana dos anos 90,

I') Cf. CACCIARI, Massimo -"Nome di luogo: contini" in tll/t­til/I. n° 299-300, Milano. set-dez 2000. p.73-4.

,,, Nessa reconstrução do 200() argentino (que é o 2005 bra· sileiro) Ludmer evoca que estava se colocando, mais uma "cz. com Kant e com Foucault. a pergunta O ql/e é ti 1111111;-

1I;SI/Ii'? em outras palavras, a questão capital da modemidade: "i.cómo pensar un presente en cl que estamos incluidos?i, Qué cs lo que en el presente tiene sentido para una reflexión crítica? C .. ) Me encontraba en Bucnos Aires, en un Estado­nación dei SUl' que había transformado sus estructuras estataks para reformular sus funciones dentro dei orden global. (Es en cl 2000 cuando estalla el sistema político argentino y con la rcnuncia dei vice-presidente comienza a exhibir de un modo explícito sus "nuevos mecanismos" cn forma de corrupción política. en la aceleración temporal. en una carrera contra el tiempo, en d presente eterno dei Impcrio (que no se define como un período histórico sino como la culminación de la historia). y en una especie de lléjll VII.

donde el presente se duplicaba en el cspcc-táculo dei presente. EI 2000 en Buenos Aires parecía ser una específica y compleja configuración de tempof'.llidades; sentíy pensé entonces que el instrumento crítico o categoría simbólica para leerlo tenía que ser "el tiempo". Cf. LUDMER. Joscfina. "Temporalidades dei presente" In: B,,!elíll de! Celltro de Estlldill.f d,' Tellríll y Crílica Lileraria, Universidad Nacional de Rosario, n° 10, dez 2002, p.92-3. E ainda na revista MlII"Rell4 lIIúr!ielles.Belo Horizonte, Buenos Aires, Mar dei Plata, Salvador, n° 2, dez. 2002. p.15-6.

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" Cf. LUDMER, Joscfina. '"Territorios deI prescntc" in COl/fil/e.\", n" 15. Buenos Ain:s. dez. 2004. p.103.

Os conrins wmo rcconriguração das fronteims 81

"han cambiado no tanto lao; imágenes en sí (los mitos yestereotipos, los personajes y los relatos) sino la forma en que se agmpaban, dividían y oponían. Y también la forma en que se usaban. En literatura caen las divisiones tradicionales entre formas nacionales o cosmopolitas, formas dei realismo o de la vanguardia, de la "literatura pura" o la "literatura social", y hasta puede caer la diferenciación entre realidad histórica y ficción. Aunque muchas escrituras siguen usando esas divisiones clásicas de la tradición literaria (la tienen como centro y quieren encarnaria), después de 1990 se ven nítidamente otros territorios y sujetos, otras temporal idades y configuraciones narrativas: otros mundos que no reconocen los moldes tradicionales. Que absorben, contaminan y desdiferencian lo separado y opuesto y trazan otras fronteras. Litemtura urbana y rural, por ejemplo, ya no se oponen sino que mantienen fusiones y combinaciones múltiples. La reorganización dei mundo que operan hoy algunas escrituras implica una caída de fronteras en la imaginaci6n pública, que se reproduce en el plano político y a veces jurídico, mientras se refuerzan las fronteras para los cuerpos desplazados. Ese parece ser uno de los movimientos dei presente. Un doble registro o canon que se reproduce sin fin y hace que las escrituras desdil'erenciadoras convivan con "Ias anteriores", las que refuerzan las fronteras y oponen nítidamente las formas de la tradición. To­das están presentes, funcionando sincrónicamente como en una Exposición Universal que quisiera contar, supongamos, la historia de la literatura latinoamericana. Porque con la presencia deI pasado en eI presente (con la superposición de temporal idades: todas las épocas y lugares se exponen en "Ia Exposición" o en el mismo territorio deI presente), la literatura de hoy (y no sólo la de Amé­rica Latina) cucnta todo el tiempo la historia de la literatura <.:on otras categorías históricas: los estilos y formas que antes se oponían y sucedíun, ahora conviven y se exhiben en synchro, y también se exhiben l'1l.tilsiân. Este régimen de "Exposición universal", que es territorial, produce efectos de sobreimpresión y de ambivalenda, y por lo tanto produce cambios no sólo en la idea de la historia sino en la conciencia histórica. Acompafía otra conciencia histôri­ca donde el antes (todos los antes) está presente en el aquí y ahora de la Exposiciôn, y donde coexisten la desdiferenciación y difercnciación de fronteras (su abolición y ai mismo tiempo Sll

refuerzo) entre formas, géneros y estilos"~'.

A posição de Ludmer nos obriga, pois, a recapitular. Digamos,

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82 Rcvisla Brasikira dl: Lill:ralura COIllparada, 11. X, 200()

então, para concluir, que, a partir do nacionalismo descentrado de Laclau, passando pelas noções de exílio, vida nua, testemunho ou aberto, elabo­radas pelos críticos italianos, até chegarmos à ubíqua Exposiçüo con­temporânea, constatamos, em resumo, o processo de uma idêntica reconfiguração de fronteiras, gerada,f(}rçada, pela noção de confins do pensamento. Talvez seja esse o lugar que ainda lhe reste ocupar a lima Literatura Comparada pós-nacional, se ela não quiser repetir o sé­culo XIX e, com ele, a hêtise como não-pensamento do lugar comum.

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A dimensão cultural da literatura em Terras e gentes

Evelina Hoisel (UFBA)

Ao assumir o impacto do debate que vinha se desenvolvendo nos congressos da Associação Brasileira de Literatura Comparada desde 1990, em Belo Horizonte, a temática proposta para o VI Congresso da Abralic - Literatura C011ljJarada = Estudos Culfu­rais! -, realizado em 1998, na cidade de Florianópolis, estampou com bastante evidência os limiares que interligam a Literatura Com­parada e outras produções culturais, confirmando uma postura te­órico-crítica que pressupõe a interlocução disciplinar, o reconheci­mento de vozes emergentes na cena político-cultural, a multiplicidade, a transdisciplinaridade, a releitura das formações identitárias, a revisão de pressupostos firmados pela modernidade estética no campo das Letras.

O VI Congresso representou o ápice de uma tendência que já se apresentava desde o aparecimento da Abralic, mas que se tornou mais sistemática e contínua a partir do V Congresso, em virtude do próprio tema estabelecido para o evento: Çânolles & contextos. Desde o seu surgimento, no contexto cultural da década de 80, a Abralic impôs aos estudos comparatistas brasileiros uma reflexão bastante fecunda sobre suas perspectivas teóricas e críticas, desviando-se de uma ótica eurocêntrica e fazendo emergirem outros objetos de investigação, como as literaturas latino-americanas. Por sua vez, ao suscitar um questionamento dos cünones literários e artísticos, passa a dar ênfase ao diálogo entre arte e cultura, deslocando o privilégio que sempre se concedeu ü arte em detrimento das demais produções culturais.

Ao incorporar tais questões, a Abralic traz para o seu espaço determinadas tendências e transformações que já se anunciavam no cenário brasileiro com os processos de democratização. Esses

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84 Revista Brasileira dl! Litl!ralura Comparada. 11. X. 2006

processos, já apontados por Silviano Santiago em seu ensaio "De­mocratização no Brasil - 1979-1981: cultura versus arte" (SANTIA­GO, 1988), traçam os contornos do cenário no qual situa-se a Abralic quando foi fundada, em 1984, e passam a delinear determinadas mar­cas de sua atuação ao longo de vinte e um anos de existência l .

Pode-se então verificar em que medida o debate que vinha sendo travado no âmbito da Associação, desde o seu aparecimento, no sentido de preservar o espaço dos estudos especificamente literá­rios contra a prevalência da dimensão cultural, está patente na reali­zação do VII Congresso. Na Abralic, este debate manifesta-se com mais contundência a partir da defesa da manutenção de um espaço disciplinar fechado para os estudos literários, empreendida por fra­ção dos professores e pesquisadores associados, e ganhou grande visibilidade através do ensaio de Leyla Perrone-Moisés, intitulado "Que fim levou a crítica literária?", publicado no caderno "Mais!", da Folha de S.Paulo, em 25 de agosto de 1996, logo após o encerra­mento do V Congresso, no Rio de Janeiro.

Este debate pode ser flagrado de diversas maneiras. Inicial­mente, através do mapeamento dos nÚ'1.leros da Revista Brasileira de Literatura Comparada, como um dos espaços para o questionamento das segmentações disciplinares instituídas no cam­po dos estudos literários em geral- teoria, literatura brasileira, lite­raturas estrangeiras, historiografia literária -, e não da literatura comparada em particular. Uma outra maneira de acompanhar este debate é através dos artigos que trazem para o espaço dos estudos literários elementos da esfera cultural que põem em questão noções como as de cânone e de literariedade. Finalmente, em um terceiro momento, o debate aparece de maneira explícita e coincide com a aproximação entre a Literatura Comparada e os Estudos Culturais, circulando de maneira estampada nos textos de Eneida Maria de Sou­za e de Wander Melo Miranda, publicados no quarto número da Re­vista2 •

Interessa-nos aqui verificar em que medida este debate apa­rece na cena do VII Congresso Internacional da Abralic, realizado em Salvador, Bahia, no ano 2000, e tomamos como pretexto para refletir sobre esta problemática uma matériajornalística que afirma que "o evento apresenta lista de temáticas semelhante a um encon­tro de Ciências Humanas, com um total de 900 trabalhos inscritos.

I Estawlltexlualiza,ãoé detuada por Íris Hoisd na sua dissl!lla,ão (li: IIIl!slrado el'/lilS il/lliscipli-1I0"O.\': wllenles do pl!nsallll!nto clílico eonlemponlm:o na Abmlic. quc traia do deball! disciplinar na Associa,ão. focali/.alldo a diversidade de abordagl!ns. objetos e horizontes tl!lÍrÍl:os abrigados sob a rubrica de Litnatura Comparada.

, HOISEL. ílis de Car\'alho Sú. Cello.\' illdi.\'ciplilllldlls: vellen­tes do pensamento crítico contemporâneo na Abralie. 2003.2004. 115 f. Disserta,ão. (Mestrado em Letras). Instituto de Letras. Universidade Federal da Bahia. Salvador. 20m.

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I MACIEL. Nahima. DilcrcntL'S modos de comparar. Correio Bmsiliel/se. Brasília. jul. 2(X)O Pel~=-

A dimensão cultural da literatura em Taras e gemes 85

Literatura, embora no título do Congresso, é quase disciplina co­adjuvante""'.

É sintomático que a Abralic tenha realizado seu VII Congres­so Internacional na cidade de Salvador-Bahia, no ano 2000. Sob a denominação de Terras e gentes, a proposta do evento elegia como temática um campo de forças múltiplas e contemporâneas, assim distribuídas: 1. poder, colônia, identidade nacional, transnacionalidade; 2. viagem, diásporas, migrações; 3. etnia, gêne­ro, classe; 4. memória e rituais; 5. literatura, mídia e identidades. Por ser a Bahia reconhecidamente um solo fértil para vicejar o apreço pela diversidade e pela pluralidade, o planejamento do VII Congres­so não ignorou também o contexto temporal no qual o evento acon­teceria, considerando principalmente que o ano 2000 foi caracteri­zado como o ano das "comemorações" dos 500 anos do "descobri­mento" do Brasil. Espaço e tempo portanto bastante propícios para uma reavaliação histórica e cultural do país e para uma redefinição dos conceitos de identidade e de nacionalidade, tão presentes na nossa literatura. Esta perspectiva foi assumida pelo VII Congresso, ao pro­por na sua cstruturação os diversos fios temáticos já referidos, e trazendo para o scu espaço, como conferencistas, renomados espe­cialistas nacionais e internacionais sobre multiculturalismo, identi­dade negra, crítica pós-colonial.

De um lado, o título Terras e gentes procurava traduzir uma pluralidade de questões que confirmavam a vertente cultural que já se anunciara nos congressos anteriores e cujos impasses e questionamentos foram expostos pelo Congresso de Florianópolis­Literatura Comparada = Estudos Culturais? Por outro lado, Terras e gentes estampava uma desiera~quização que se estabelecia entre os termos arte c cultura, assumindo explicitamente uma perspectiva antropológica que ultrapassou os limites dos debates acadêmicos e disciplinares, incorporando-se à própria estrutura da programação do VII Congresso Internacional da Abralic, que contou com a parti­cipação de especialistas e pesquisadores das mais variadas proce­dências disciplinares, geográficas e institucionais.

Ao lado disto, também foi deliberação dos organizadores da­quela edição do grande encontro da Abralic deslocar as apresenta­ções e as discussões dos limites estritos da disputa disciplinar- que já havia se desdobrado com ênfase e sofisticação no congresso ante-

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rior. Pretendia-se abrir o espaço da Associação para a emergência das novas focalizações, assegurando, paralelamente, a expressão da tradição consolidada, embora em crise.

O layollt do cartaz de divulgação, reproduzido na capa do li­vro de resumos e, posteriormente, na capa do CD-ROM dos Anais, reforçava e difundia iconicamente a temática de Terras e gentes, onde a figura de urna negra africana, recortada de uma pintura de Rugendas - Negro e negra da Bahia -, invoca a referência histórica e escravista das contemporâneas e sugestivas imagens da baiana hoje consagra­da, com um torso na cabeça, colares, roupa exótica, com expressão fisionômica enigmática, na qual se lê simultaneamente perplexidade, desalento, quase ironia. Esta figura superposta a um mapa antigo, com traçados tênues na sua cartografia, dialoga com a imagem de duas crianças descalças e seminuas, andando abraçadas, sem trajetó­ria definida, sobre um mapa cujas fronteiras não estão nitidamente delineadas e nem demarcadas. Ressalte-se ainda que o desejo de in­tegrar o evento aos signos da baianidade e aos elementos da afro­descendência e da etnicidade - marca histórica e cultural bastante forte no cenário da Bahia - efetivou-se através do espetáculo de abertura do Congresso, realizado no Museu de Arte Sacra, com a participação do grupo afro Ilê Aiyê, amplificado através de outras exposições culturais, como a das fotografias do antropólogo Pierre Verger e a projeção do filme de Sylvio Back, Cruz e Sousa: o poeta do desterro.

No espetáculo de abertura, o contraste entre o espaço sagrado e colonial do Museu e da Igreja de Santa Tereza e o ritmo acelerado da dança e da música africanas, associadas à beleza física dos inte­grantes do I1ê, realçada pela sofisticada tecnologia cênica, dialogava com a antiga edificação barroca do museu, de onde se descortina a Baía de Todos os Santos, lançando estrategicamente os congressis­tas no contexto histórico e cultural- belo e tenso - no qual se desen­rolariam os debates multidisciplinares sobre Terras e gentes: hibridismo cultural, revisitação do passado pelo presente, migrações espaciais e temporais, trânsitos disciplinares. O descortinar da paisa­gem marítima onde aportaram os primeiros colonizadores quando chegaram à Bahia, contemplada pelo olhar dos congressistas duran­te a celebração ela festa ele abertura, misturava-se com outros ingre­dientes da cultura afro, como o acarajé, servido aos participantes

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A dimensão cultural da literatura em Terras e gentes 87

durante o espetáculo do I1ê Aiyê, estampando-se assim evidências fortes da diáspora africana no Brasil e, particularmente, na Bahia.

É importante esclarecer que o I1ê Aiyê é um bloco carnavales­co com mais de trinta anos de atuação, inspirado em antigas tradi­ções africanas e organizado em torno de um projeto cultural que envolve festas, danças, músicas, educação, tendo uma forte dimen­são sociopolítica no cenário baiano pela sua luta contra a discrimina­ção e o racismo. Nesse sentido, não admite a participação de bran­cos ou mesmo mulatos em seu bloco. Este gesto, bastante polêmico, e até considerado por muitos baianos como racista, tem uma reper­cussão política bastante contundente, e pode ser I ido como uma es­tratégia de reversão e desconstrução do movimento de exclusão dos negros. Exclusão que se ampliava através dos próprios blocos de carnaval, vez que, no início da sua história na Bahia - reivindicação da classe média branca e mestiça -, os negros não eram admitidos. Somente na década de 40, com o aparecimento do bloco afro Filhos de Gandhi, os negros passam a desfilar nas ruas de Salvador em blocos carnavalescos.

Desse modo, a inserção do I1ê Aiyê na abertura do VII Congres­so efetuou-se no sentido de trazer para o espaço acadêmico uma ma­nifestação popular com ampla repercussão cultural e sociopolítica no cenário local e internacional, estabelecendo assim um trânsito entre diferentes forças culturais emergentes ou sedimentadas pela tradição.

A cidade de Salvador, enquanto terra da hospitalidade, da pluralidade cultural, da multiplicidade étnica, representa o marco do início de um processo de colonização civilizacional que envolve di­versas raças e culturas, e para o qual o ano 2000 significou um im­portante momento de reflexão histórica, no sentido de promover a redefinição e o remapeamento de uma memória cultural que passa por diversos tempos, espaços, terras e gentes. Foi, por isso mesmo, o cenário que a comissão organizadora do VII Congresso procurou expor em seus diversos planos e perspectivas, integrando a cidade enquanto cena cultural, étnica e histórica aos temas propostos para discussão durante as sessões científicas. Eneida Leal Cunha, em de­claração publicada no caderno "Folha da Bahia", do jornal Correio da Bahia. no dia da abertura do evento, explicita este viés, afirman­do uma "cumplicidade entre a temática do congresso e a cidade de Salvador". Como vice-presidente da Abralic e integrante da comis-

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são organizadora do Terras e gelltes. Eneida Leal Cunha esclarece ainda que, no contexto dos 500 anos, a abordagem "étnico-racial não poderia ser diferente aqui em Salvador".~

Neste sentido, a festa de encerramento do VII Congresso, re­alizada na Praça Tereza Batista, no centro histórico do Pelourinho, inseriu mais uma vez os participantes do evento em outro importan­te território da nossa memória cultural, difundido internacionalmen­te como espaço turístico e emblemático da Bahia Antiga e Centro Histórico de Salvador. Contudo, no passado, o Pelourinho foi o lu­gar onde os escravos eram castigados e, desde essa época, ele tem sido palco de atuantes e divergentes forças políticas, sociais e eco­nômicas, que não desapareceram mesmo depois da sua reconstrução arquitetônica ter suscitado uma mudança de seu papel: de centro boêmio contestador e marginal, exaltado por Jorge Amado, o Pelourinho é promovido a centro cultural da cidade e, como tal, centro turístico que se edifica a partir de um processo de recalque e apagamento de uma história.

As marcas que definem o Pelourinho como lugar de castigo e de tortura dos escravos têm sido apagadas e estrategicamente obliteradas pela indústria turística que sustenta a sua produção e montagem como importante cenário econômico e financeiro da ci­dade. Aliás, o registro desse apagamento é logo percebido e denun­ciado por Paul Gilroy, um dos conferencistas do evento, em entre­vista concedida ao Correio da Bahia em 8 de agosto de 2000, quan­do declara estranhar que a palavra escravidão jamais seja menciona­da no material turístico que se recebe como visitante da cidade de Salvador-Bahia. Alerta Paul Gilroy que a "incapacidade de falar a palavra escravidão não é bom sintoma".5 Em outra matéria, Gilroy volta a denunciar também "as reservas que têm os negros brasileiros de falar sobre a escravidão", c pontuando que "as referências sobre a África dizem respeito a algo que não existe mais"6.

A importância da perspectiva assumidamente cultural do VII Congresso Internacional da Abral ic é confirmada por Silviano Santi­ago, presidente da Associação no biênio 1990 a 1992, e convidado para proferir uma das duas conferências de abcltura de Terras e gen­tes. Na entrevista que concedeu ao jornal A Tarde, intitulada "Con­tra a ditadura do cânone", Silviano Santiago afirma que no âmbito da cultura brasileira - e, assim, no âmbito da própria Abralic - inau­gura-se o diálogo entre literatura e cultura no sentido antropológico

• mLLlNG, LeandlU. Enmnlm de notáveis. Correio li" B"IIi". Salvador, 25 jul. 2(XXI. Folha da Bahia. Cademo 2. p. 7.

, COLLlNG. Leandro. Paul Gilroy: Fui ao banheiro da UFBA e vi a suástica na parede. Correio da Bahia. Salvador. X ago. 2000. Folha da Bahia. Caderno 2, p. 8.

I, LIMA, Neyse Cunha. So­ciedade da traduçào. (j(/~('1(/

Mer .. wuil, Brasília. 4-6 ago. 20eX). Fim de Semana.

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7 RIBEIRO, Carlos. Silviano Santiago: Contra a ditadura do cünone. A Ti/nle, Salvador. :W jul. 2000. Caderno 2.

H RIBEIRO, Carlos. Silviano

Santiago: Contra a ditadura do cünone. A 7;/1111'. Salvador. 20 jul. 2000. Caderno 2.

A dimensão cultural da literatura em Terras e gentes 89

do termo. Ao ser indagado sobre a importância do VII Congresso, destaca como "o título Terras e gentes traduz não só a questão do cosmopolitismo e do nacionalismo, do universal e do particular, como também a necessidade de encarar sem medo as grandes questões humanas do nosso tempo"7.

Trata-se, portanto, de explorar a dimensão cultural da literatu­ra, a qual só poderá se efetivar no momento em que se trouxer à tona o que está recalcado. Caso contrário, não haverá diálogo, como alerta Silviano Santiago, apontando, logo em seguida, para a ne­cessidade do questionamento da idéia de c;ânone literário, uma vez que o cânone é "todo-poderoso e ditatorial". Se a palavra gente é um coletivo e já denota um sentido plural, ao aparecer no título do Congresso com a partícula indicadora de número - gentes - pro­

cura dar conta das diversas expressões culturais que não formam um conjunto unitário reconhecido pelas instâncias autorizadas, como a ditadura do cânone. Afirma Silviano que

"A questão é não colocar a estética de Joyce como ditatorial. Ele é um maravilhoso romancista, mas o que eu faço com os que não são Joyce? Por exemplo, com a literatura das mulheres, dos nc­gros, dos indígenas, e as minorias sexuais? Essas expressões ar­tísticas deveriam ficar para sempre no limbo da história'? Ou dc­vemos resgatá-Ias"x,?

Ratificando esse viés antropológico, a conferência pronuncia­

da por Silviano Santiago na abertura de Terras e gentes, na Reitoria

da Universidade Federal da Bahia, no dia 25 de julho de 2000, tratou do modo como um etnógrafo, Claude Lévi-Strauss, desenvolveu o tema da viagem transatlântica - da Europa ao Brasil- e doméstica­de São Paulo à Amazônia -, considerando os seus equívocos e os seus acertos na interpretação do Brasil. Na sua leitura, destacam-se

as armadilhas da diferença nas quais pode cair o antropólogo que, mesmo alerta, termina incorrendo em preconceitos, não se libertan­

do, no contato com o outro e com a diferença, de seu eurocêntrico quadro de referência.

Ampliando ainda mais esta problemática antropológica, vale

ainda ressaltar que uma das programações culturais de Terras e gell­tes foi a exposição fotográfica de Pierre Vergel', realizada no casarão antigo onde funciona o Conjunto Cultural da Caixa Econômica Fe­

deral, situado na parte antiga da cidade de Salvador. Se para Pierre

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90 Revista Brasikira de Lit<:ratura Comparada. n. X. 2(X)6

Verger as viagens constituem uma reserva de sOllvenirs visuais, a cidade de Salvador foi para ele uma imensa reserva de imagens, ros­tos, corpos, gentes - figuras que compõem a sua vasta produção, primordialmente os seus Retratos da Bahia - expressões que ele captou com a sua Rolleiflex e que tão bem registram iconicamente as questões diaspóricas tratadas em seus livros, com o objetivo de desvelar o fluxo e o refluxo do tráfico dos escravos. Tráfico que Pierre Verger estudou minuciosamente através de suas pesquisas, repensando as relações Brasil-África em seus diversos meandros, mas elegendo as imagens corporais como forma de registrar a cordi­alidade baiana e de representar a sensualidade que ele percebia nos negros que encontrou nos bairros populares de Salvador e que fize­ram com que mergulhasse, através do olhar, nas diferenças culturais.

Diferenças que não são apenas étnicas e religiosas - uma das constantes preocupações de Verger é o culto dos orixás e voduns-, mas que passam também pelo crivo das relações homoeróticas tal a libido que se manifesta através do olhar que capta a beleza dos di­versos rostos masculinos, figuras vivas do desejo. Este aspecto tem sido observado e considerado pelos críticos da produção fotográfica de Pierre Verger ao estudarem a galeria de tipos e a multiplicidade de registros da presença masculina em sua obra. Dessa maneira, a exposição fotográfica do antropólogo foi mais um fio a tecer o cená­rio de Terras e gelltes, integrando-se plenamente às atividades cien­tíficas e à temática do evento, retomando-se ainda por esse viés al­guns dos estereótipos da baianidade - cordialidade, sensualidade, negritude - que a organização do evento pretendia expor e, simulta­neamente, desconstruir.

O jornal Gazeta Mercalltil, pOllCOS dias após o término do VII Congresso, divulga uma matéria em página dedicada à Antropologia (sexta-feira, dia 4, e caderno "Fim de Semana", 5 e 6 de agosto de 2000), intitulada "Sociedade da tradução", destacando as figuras de Stuart Hall e Paul Gilroy. Abaixo das fotos dos dois especialistas sobre multiculturalismo e diáspora negra, inscreve-se a seguinte rubrica: "teses polêmicas em congresso de literatura", evidenciando assim o caráter das discussões trazidas à cena de Terras e gentes. Na repor­tagem, são apresentadas sumariamente algumas idéias de dois dos renomados convidados da Abralic, através das quais se pode perceber como, da ótica desses especialistas, o Brasi I e a Bahia representam uma reserva de questões identitárias e étnicas que precisam ser pensadas.

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A dimclls;]o cultural da litcratura cm Terras e ~ellles 91

Nesta reportagem, Stuart Hall afirma ser o cenário baiano o espaço ideal para se entender o caráter mutante do conceito de iden­tidade cultural, vez que esta jamais se completa, e as culturas nunca são uniformes, ressaltando ainda o modo como as culturas domina­das, desde os primeiros esforços de colonização na Antiguidade, têm deixado indeléveis marcas nos seus invasores. Embora estejam na América mestiça as maiores evidências da dinâmica cultural, a global ização também tem servido para transfigurar o cenário mundi­al. Na perspectiva atual da globalização, salienta Stuart Hall, obser­va-se uma inversão do fluxo original- que se efetuava na direção da metrópole para as margens -, uma vez que a grande mobilidade físi­ca que caracteriza a cena contemporânea traz a periferia para a me­trópole, onde "tudo vai se 'crioulizando"'.

Ao procedermos à leitura dos demais jornais de Salvador ou do país que deram cobertura à realização de Terras e Rentes, verifi­camos que os destaques estão sempre voltados para questões como identidade cultural, etnicidade, diáspora africana e gênero. Foi dessa maneira que os midia colocaram em circulação os "diferentes mo­dos de comparar" - título da matéria do Correio Brasilie1lse, cader­no Pensar -levando para o espaço público alguns questionamentos e polêmicas que foram travadas no âmbito dos congressos anterio­res da Abralic, polêmicas essas assumidas explicitamente pelo con­gresso da Bahia.

Assim, Stuart Hall, Paul Gilroy, Gayatri Spivak, Robert Young. convidados internacionais, e Silviano Santiago são as principais fi­guras postas em circulação, através das matérias que colocam em evidência a temática proposta para o Terras e gentes, fazendo tam­bém alusão ao debate disciplinar, sem contudo se adentrarem em seus diversos meandros. Referenciamos aqui alguns dos principais títulos das matérias: "A Bahia e Hall", focalizando questões de iden­tidade cultural; "Encontro com notáveis", destacando a vertente cul­tural e étnica do VII Congresso e trazendo também depoimento da vice-presidente da Abralic e uma das responsáveis pela organização do evento, Eneida Leal Cunha. Todas estas matérias foram publicadas no Correio da Bahia/Folha da Bahia, durante a realização de Terras e Rentes.

Neste bloco de publicações, está também incluída a entrevista com Silviano Santiago, já citada anteriormente, e publicada no jor­nal A Tarde. Antes do evento, em abril de 2000, o mesmo jornal

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92 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n. X, 2006

Correio da Bahia publicava uma reportagem sobre Stuart Hall intitulada "Papa dos estudos culturais vem a Salvador" e uma entre­vista com Liv Sovik, membro da diretoria da Abralic e integrante da comissão organizadora do vn Congresso, que estampava o título "H ali é um intelectual político sem dogmatismo"" (11 de abril de 2000).

A ressonância das vozes inquietas com a efervescência teó­rico-crítica e cultural que já se anunciara na Abralic em momen­tos anteriores repercute nos bastidores do VII Congresso e vem a público através de algumas matérias jornal ísticas que deram co­bertura ao evento, como a do jornalista do Correio Brasiliense, caderno Pensar, referida anteriormente. Ainda como uma voz que se insurge contra a proposta cultural do Terras e gentes, pode-se destacar a surpreendente entrevista de Affonso Romano de Sant' Anna, publicada no Caderno 2 do jornal A Tarde, que consi­dera o VII Congresso como um modismo, uma "cópia americana ingênua", ignorando o cansaço da despolitização cultural. lO

Apesar das vozes discordantes, Terras e gentes adentrou-se em questões que afirmam o diálogo e o entrecruzamento entre estu­dos literários e estudos culturais, fazendo do espaço limiar e interdisciplinar, já anunciado desde o I Congresso, uma efetiva rede de trocas e de interlocuções que abalam e desconstroem a antiga perspectiva positivista, calcada em um desejo de fixar os saberes através de uma disciplinarização do conhecimento. A própria consti­tuição da Abralic, sempre em trânsito espacial entre as diversas ins­tituições e os territórios geográficos nos quais aporta a cada dois anos, expande-se através dos trânsitos epistêmicos e interdisciplinares, pondo em diálogo as mais diversas formas de saber, fazendo implodir os limites disciplinares.

A partir dessas pontuações, pode-se perceber que o VII Con­gresso foi montado dentro de um campo de forças que caracteri­zou a Associação de estudiosos desde a sua criação, em 1986, mas cujos impasses foram sinteticamente explicitados doze anos de­pois, na pergunta do VI Congresso: Literatura Comparada = Es­tudos Culturais? Ao formular a questão dessa maneira, percebe-se o desejo de equacionar o impasse, de afirmar o múltiplo e a disso­lução das fronteiras entre os saberes. Nesse sentido, vale a pena observar a fala com que o presidente da Abralic, Raul Antelo, abriu o evento, afirmando que ele comportava o "puro e o impuro", não

'I COLLlNG, Leandro. Liv

Sovik: Hall é um intelectual

político sem doglllatislIlo.

Correi" da Bahia, Salvador, II

ahr. ::WOO. Folha da Bahia, p. 5.

10 RIBEIRO, Carlos. Affonso

ROlllano de Sant' Anna: O Brasil é uma lIlaionese que desandou. A 7i".,/(', Salvadnr, 30 jul. 2004. Caderno 2.

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" ANTELO, Raul, Discurso de abertura. In: CONGRESSO ABRALlC: Literatura COI!1-parada = Estudos Culturais". 6 .. !<)<)S. Santa Catarina. AI/ais ...

Santa Catarina: NELlC. !<)<)<).

! CD.

A dimensão cultural da literatura em Terras e gel/tes 93

se mostrando desconfiado perante a "equação que vincula a litera­tura comparada aos estudos culturais"!!.

É assim que o cenário de Salvador-Bahia, no ano 2000, ofe­rece os ingredientes para que as diversas dimensões da cultura se­jam a grande personagem no palco de Terras e gentes. Inicialmen­te, por se tratar de uma estratégia de reversão, não apenas por inverter temporariamente o pólo recalcado para que ele possa vir à tona, conforme nos ensinaram Friedrich Nietzsche e Jacques Derrida, mas, especialmente, pelo convite e estímulo à emergência dos muitos avessos recalcados. Se o VII Congresso privilegiou a vertente cultural, foi como uma estratégia de reversão das classifi­cações instituídas e como um apelo político, intelectual e acadêmi­co ao resgate c à dignificação de uma memória/história recalcada que precisa vir ü tona em suas múltiplas manifestações.

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I Este é um tema recorrente, já que podemos verifkar a sua presença. por exemplo. na fala de Marisa Lajolo, duralllc o ENCONTRO REGIONAL DA ABRALlC 2005, em que da aponta a "inadequação -digamos metonímica - de nossa maior assodação na­cional." Eis a sua objeção: "Esta que hoje nos reline - a ABRALlC-énomeadaap:.u1ir de 1111/(/ das várias vertentes ,ontcmporâneas dos estudos literários, a literatura comparada. Adotamos para o IlIdll. a denominação de 111/111 til' .1'111/.'

l}(Irles. Com isso, não estarcmos lanto invisibilizando tlil"crenles vel1entes dos estudos literários. como tirando - da vertente comparatista deles - sua especilicidade? Ou seja. por quc será que não temos ullla ABRALlT, que seria uma con­trapartida para a ABRALlNT' (In: JOBIM et alii, 20(5)

, O texto completo foi pu­hlicado na Revista Desel/­redil, do Programa de Pôs­Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo t v. I. n. I l.

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ABRALlC: sentidos do seu lugar

José Luís Jobim

Há alguns anos, um colega e amigo meu de São Paulo me disse que, na sua opinião, a ABRALIC deveria ser chamada de ABRALIT (Associação Brasileira de Literatura), já que se teria trans­formado, de fato, na maior entidade agregadora de professores e pesquisadores de literatura no país'. Não pude negar a força deste argumento, mas acrescentei que ela já se constituía na maior da América Latina.

É claro que o adjetivo Brasileira - parte integrante da desig­nação de nossa associação - remete a muitas outras coisas, Por exem­plo: a uma territorialidade, qlle não tem efeitos apenas jurídicos, pois evocar o Brasil implica também um conjunto de relações históricas que os habitantes tiveram e têm entre si e com o lugar que ocupam. no seio deste Estado-nação. Por isto, na minha fala durante o Con­gresso da ABRALIC em Porto Alegre2, elaborei uma concepção de lugar, que acabou sendo uma palavra-chave para os eventos que presidi, no biênio 2004-2006. Vamos a ela.

Um lugaré, antes de mais nada, uma construção elaborada por várias gerações de homens e mulheres que nele habitaram ou porele passaram, e que ajudaram a formular o sentido que tem. Ele é cons­tituído por redes públicas de sentido, formadoras de subjetividade. Nele se constituem interpretações públicas simbolicamente media­das, inclusive sobre o sentido deste lugar e sobre o que significa estar inserido nele. Num lugar, circulam elementos que de algum modo impõcm sentido às experiências singulares dos sujeitos, ele­mentos cm relação aos quais estes sujeitos interpretam suas experi­ências (e os textos que lêem), bem como direcionam suas ações. Em outras palavras, () lugar é sempre fonte de pré-concepções que de

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96 Revisla Brasileira de LilcralUra COlllparada, 11. X, 2006

alguma maneira contribuem para a elaboração de nosso dizer, pois nele se situa o sistema de referências deste dizer - incluindo o uni­verso de temas, interesses, termos etc, -, sistema que sempre já esta­belece um limite dentro do qual nosso campo de enunciação se cir­cunscreve. Lugares têm sempre história, e mesmo o apagamento de certos elementos constitutivos da história do lugar também é decor­rente de razões históricas.

Neste quadro, não há como apagar o fato de que a Associação Brasileira de Literatura Comparada tem sua fala institucional indele­velmente ligada ao lugar Brasil, o que marcaria sua diferença em relação a outras Associações, que f~tlam a partir de outros lugares.

Assim sendo, cremos que não poderá deixar de ser uma tare­fa para os futuros dirigentes da ABRALlC tratarem em seus con­gressos de questões referentes à literatura em nosso país, pois não só o trabalho com a literatura brasileira é marcado por este lugar, mas também o com as chamadas "literaturas estrangeiras" tem esta marca, já que o próprio adjetivo "estrangeiras" tem seu sentido vinculado a umlugarde enunciação que as vê como externas, como pertencentes a outro lugar. Em outras palavras, lecionar Literatura Inglesa na Inglaterra não é a mesma coisa, nem suscita as mesmas questões do que lecionar esta literatura no Brasil, por exemplo.

Hoje, ao falarmos de um contexto em que se operam trocas, transferências, influências, imposições culturais num nível nunca visto em séculos anteriores, muitas questões se colocam. Para a ABRALIC, em função de ser a maior associação de professores de literatura e cultura da América Latina, coloca-se a questão da abordagem não sÓ de temas relevantes para os lugares de onde cada pesquisador se origina, mas também de teorias que visam a explicar tanto os con­textos daqueles lugares quanto os sistcmas dc trocas e transferênci­as culturais dentro dos quais as literaturas e culturas se inserem. Na América do Sul, em particular, é muito importante este papel,já que, ao longo de seus muitos anos de existência, a ABRALIC abrigou um número crescente de pesquisadores de outros países desta área, os quais freqüentemente vêm de lugares em que as condições de traba­lho intelectual são menos favoráveis do que as nossas, no Brasil.

Quando produzimos este número da Revista Brasileira de Li­teratura Comparada, comemorativo dos vinte anos de atuação ininterrupta da ABRALlC, temos como objetivo, antes de mais nada, trazer à cena alguns dos participantes da construção desta associa-

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ABRALlC: scntidos do scu lugar 97

ção científica, neste lugar. No Brasil de hoje, a vida das associações científicas da chamada "Grande Área de Lingüística Letras e Artes" está cada vez mais difícil. Como não temos "patrocinadores" priva­dos - como nas áreas biomédicas, por exemplo -, as verbas para a manutenção de nossas atividades restringem-se a duas fontes: as agências de fomento e nossos associados. Além de o apoio das agên­cias de fomento ser cada vez mais problemático, para piorar o qua­dro, as várias associações de nossa Grande Área ainda competem entre si pelo volume cada vez mais restrito de verbas disponíveis. Um melhor entendimento e racionalização, pelo menos dos calendá­rios e da periodicidade de eventos, seria uma ótima contribuição para o futuro de todas.

Perdidas entre a preocupação com as fontes de financiamento - para os eventos que regularmente produzem - e a produção destes próprios eventos, nossas associações deixam de fazer um papel que lhes caberia: o de discutir o estado geral de seu campo do conheci­mento (no passado, no presente e no futuro) e de intervir em ques­tões que digam respeito a este campo.

Os próprios eventos que produzimos têm servido pelo menos a dois propósitos: I) o de divulgar e possibilitar a publicação de trabalhos acadêmicos; 2) o de fornecer um local privilegiado para encontros presenciais de pesquisadores nacionais e estrangeiros de temas e interesses específicos. Parece que nossa área tem emprega­do a estratégia de usar eventos, entre outras coisas, para estes en­contros presenciais. Não vejo problema em os eventos serem tam­bém um lugar para isto, mas é bom lembrar que o formato dos con­gressos de nossa área não beneficia um possível aprofundamento crítico dos temas e objetos pes.quisados. A estrutura básica de nos­sos congressos consiste em apresentações de cerca de 20 minutos, sem discussão posterior - ou, pelo menos, sem uma discussão que mereça, até pelo tempo a ela dedicado, ser considerada como rele­vante. Como alternativa de curto prazo, para melhorar este quadro, talvez seja interessante planejar eventos nos quais, ao invés de se levarem papers que são lidos sem discussão, se pudesse introduzira prática de disponibilizar os textos antes do evento e, durante o even­to, dedicar-se apenas a discutir o que foi previamente disponibilizado. Cremos que isto levaria, pelo menos, a um maior adensamento geral das argumentações desenvolvidas sobre os diversos temas, pois o debate, inclusive com a verbalização de opiniões contrárias, obriga

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98 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n. li, 2006

ao acuramento de posições. A forma de organização do X Congres­so Internacional da ABRALIC objetivou possibilitar isto: todas as comunicações foram enviadas antes, e os Coordenadores de Simpósios puderam distribuir os textos previamente para todos os participantes de seus grupos, o que permitiu que apenas se discutisse o que já estava publicado, caso se desejasse, em vez de somente ler - como de costume, sem muito espaço para discussão - as comuni­cações elaboradas para o evento. Além disto, os anais completos foram entregues aos participantes, já no primeiro dia do evento.

Um efeito colateral desejável deste debate é a capacitação de nossa área para produzir argumentos ali hoc nos embates por verbas que continuadamente ocorrem nos níveis federais e estaduais, emba­tes onde até as migalhas que nos são destinadas não estão garanti­das,já que são permanentemente postas em xeque por quem batalha até o último centavo por cada espaço de financiamento - isto é, todos os representantes de todas as outras áreas. Esta capacitação poderia fazer, pelo menos, com que nos acostumássemos a partici­par de modo mais efetivo nas questões que nos dizem respeito, o que poderia gerar muitas conseqüências políticas.

Quem sabe, a partir deste novo quadro, nossos ex-alunos po­deriam passar a ter apoio nosso contra os pacotes que periodica­mente descem sobre suas cabeças, vindos de instâncias estaduais ou federais? Quase ninguém da área de Letras se manifestou, por exem­plo, quando surgiram os Parâmetros Curriculares Nacionais, que têm repercussão na vida profissional de nossos discentes. A manifesta­ção de maior repercussão foi a de escritores, que protestaram contra o que viam como exclusão da literatura dos programas. O próprio dirigente da instância do MEC responsável pelo parto desta "criança problema" era professor de literatura portuguesa, e disse à época que havia um mal entendido, porque os PCNs não significavam obrigatoriedade de nada - o que é verdade - e que eram apenas observações de ordem geral e não normativa. No entanto, se consul­tarmos o dicionário, veremos que a palavra "parâmetro" significa "variável para a qual se fixa ou à qual se atribui um valor e por seu intermédio se definem outros valores ou funções, num dado siste­ma". É difícil presumir que o efeito de sentido de um documento com a chancela de uma instância federal de poder e o adjetivo "naci­onal" justaposto não será normativo, ainda que ele se apresente como apenas sugestivo.

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ABRALIC: scnliuos uo scu lugar 99

Outro exemplo recente, em outra esfera, é a reforma curricular dos cursos de licenciatura que, no momento em que escrevo este artigo, se encontra em processo. Em primeiro lugar, trata-se de uma reforma em completa falta de sintonia com o discurso da própria instância federal à qual está ligado o Conselho Nacional de Educa­ção, já que o MEC, no início do atual governo chamou a atenção para o fato de que o país terá um déficit de 200.000 professores nos próximos anos, necessitando, portanto, de formar mais profissionais em menos tempo. Ora, esta "reforma" compulsória significará um aumento de carga horária brutal para os cursos de licenciatura, e, portanto, uma delonga maior na formação dos profissionais que o próprio discurso governamental declara serem necessários ao Bra­sil. Além disto, ela foi uma reforma que pagou um pesado tributo a grupos de interesse ligados à área de "Educação". Coloco as aspas, porque todos nós somos educadores, embora com freqüência ape­nas um certo grupo de profissionais, ligados às faculdades e institu­tos de educação reivindique ser "especialista" em educação. Esta reforma atendeu a este grupo de interesse, buscando inserir compul­soriamente nos currículos de licenciatura um enorme volume de dis­ciplinas de viés pedagógico.

É claro que nós poderíamos nos perguntar se o acréscimo de um enorme volume de disciplinas de viés "pedagógico", de supostos estágios em escolas, de "práticas" vai realmente significar alguma coisa além de um enorme custo econômico para as universidades, social para nossos alunos e real para a população, que vai ter de esperar muito mais tempo para poder ter na escola os profissionais de que necessita. Se há algum efeito positivo - por exemplo, o au­mento de empregos para nosso,S colegas da Educação e para os alu­nos egressos de cursos da área deles, que passam a ter uma reserva de mercado garantida em literalmente todos os cursos de formação de professores - este efeito positivo certamente não é nem para nos­sa área nem para nossos alunos.

Tentando andar na contramão desta ausência nas discussões que dizem respeito a Letras, em nossa gestão optamos por tomar parte na discussão da Nova Tabela das Áreas do Conhecimento, que foi encetada pela atual administração de ciência e tecnologia no país, embora avaliando que esta participação seria, necessariamente, pro­blemática. Por quê? Para começar, porque não houve preocupação - por parte das instâncias federais que produziram e colocaram 011

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100 Revista Bmsileira de Litcratum COlllpar:tda. n. 8, 2006

tine uma "Nova Tabela" no site do Cnpq - de dar condições e tempo para que as associações científicas de nossa Grande Área pudessem discutir ampla geral e irrestritamente com seus respectivos membros um substitutivo. E, como a proposta 011 filie foi elaborada por uma comissão sem nenhum membro indicado por Letras e LingUística (seja por associações científicas, seja por representantes da área na CAPES ou no Cnpq), ela estava em falta de sintonia marcante com nossa realidade concreta.

Foi um desafio tentar produzir um documento comum en­tre quatro associações científicas (ABRALIC, ANPOLL [Asso­ciação Nacional de Pesquisa e Pó~-Graduação em Letras e lin­güística], ABRALIN [Associação Brasileira de Lingüística] e ALAB [Associação de Lingüística Aplicada do Brasil]), e, dadas as circunstâncias, foi uma vitória chegar ao acordo possível (mes­mo lembrando que o possível é sempre menos do que o ideal). O documento comum, desdobramento de uma reunião entre aque­las associações, convocada pela ANPOLL, em São Paulo, foi co­locado on fine no site da ABRALIC, com um e-mail específico para correspondência com a diretoria sobre este assunto, de modo a podermos ter um retorno da própria comunidade a quem repre­sentamos. Aproveito este texto para agradecer o apoio e a con­tribuição de todos que se manifestaram, então.

Como se trata, salvo engano, da primeira atuação política conjunta das associações científicas de nossa Grande Área, tor­na-se mais relevante ressaltar este movimento inédito, especial­mente num momento delicado, em que havia um proposta OIl

tine, no site do Cnpq, extremamente problemática para todos:! . Oxalá possamos também no futuro manter práticas con­juntas de reivindicação, o que certamente nos permitirá ter mais força de reivindicação junto às instâncias responsáveis pelas de­cisões que nos afetam.

Nesta ocasião a ABRALIC, como associação representativa da comunidade de pesquisadores de literatura, adotou dois eixos básicos, para atuar na negociação com a<; outras associações de nossa Grande Área (Lingüística Letras e Artes): a manutenção de "Letms" na titulação da gmnde área e a simetJia em relação às outms área<; de nossa GmndeÁrea.

Consideramos que a proposta de alteração do título vigente da grande área para "Linguagens e Al1es" não era adequada, pelas seguin­tes razões:

.I A título de registro histlÍrico. colocamos em anexo a proposta da "comissão" do Cnpq e o substitutivo das nossas asso­ciaçõcs cicntílicas.

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ABRALlC: sentidos do seu lugur 101

a) eliminava pura e simplesmente a Literatura da titulação,já que o termo "linguagens" não a tem como referente consensual. (Não tinha consistência também a pressuposição de que o termo "artes" englobaria também literatura, já que, historicamente, no contexto de uso das agências de fomento, ele nunca designou isto.)

b) O termo "Letras" estava e está associado tanto a um senti­do da própria área como um todo (quando empregado, por exem­plo, para designar cursos de graduação) quanto a um sentido sinonímico de "literatura", tradicional nas agências de fomento. Não havia porque silenciar esta riqueza histórica de sentidos de ambos os termos, nem existia razão acadêmica relevante para eliminar pura e simplesmente a menção a literatura na titulação da área.

Para terminar, lembramos que, apesar de todas as dificulda­des e percalços ao longo do caminho, a ABRALIC conseguiu atin­gir a marca de vinte anos ininterruptos de atividades, graças ao trabalho de todos que tornaram isto possível. Só isto já é um ótimo motivo para comemorações.

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ANEXO I

Documento da Comissão Especial de Estudos nomeada pelo CNPq, CAPES e FINEP

A Comissão Especial de Estudos nomeada pelo CNPq, CAPES e FINEP para propor uma Nova Tabela das Áreas do Conhecimento apresenta às entidades interessa­das e à comunidade científica esta proposta para discussão.

A Constituição Federal, ao tratar, em seu Artigo 218, da Ciência e Tecnologia, refere-se a áreas de ciência. Entretanto, as agências públicas e a comunidade científica, con­sagraram a expressão áreas do conhecimento.

ATabela das Áreas do Conhecimento adotada por órgãos atuantes em ciência, tecnologia e inovação é um instrumento para organizar informações visando imple­mentar, administrar e avaliar seus programas e atividades. A Tabela orienta os usu­ários dessas agências a situarem suas atividades no quadro geral da produção e aplicação do conhecimento.

A classificação das áreas do conhecimento expressa na Tabela não é concebida para organizar comitês assessores das agências de fomento. Tomando a Tabela como refe­rência, as agências organizam mecanismos de avaliação por pares conforme suas necessidades e possibilidades. A Tabela também não determina a distribuição de re­cursos para o fomento, não impõe revisões em programas curriculares das institui­ções de ensino, não visa alterar a classificação de acervos bibliográficos e documen­tais, não serve para designar atividades profissionais nem é estabelecida para orga­nizar as estatisticas nacionais de ciência e tecnologia. A reclassificação em pauta deve preservar séries estatisticas das agências, facilitar-lhes a coleta de dados, com­patibilizar informações de diferentes entidades e atualizar a terminologia utilizada.

Esta proposta de classificação das áreas do conhecimento reduz os niveis hierárquicos da tabela em vigor, estabelecendo apenas a grande área, área e sub-área, tendo a área como unidade básica de classificação. Para facilitar identificação das atividades inter­d;sciplinares ou multidisciplinares, as especialidades são excluídas da hierarquia.

A presente proposta leva em conta as novidades da produção cientifica e tecnoló­gica, mas evita confusões desnecessárias provocadas por bruscos rompimentos com tradições enraizadas e ainda respeitadas pelos pesquisadores. Além do estudo de tabelas adotadas em outros países e da análise das tentativas anteriores de atualização da Tabela em vigor, a Comissão levou em conta numerosas sugestões recebidas da comunidade cientifica.

Por área do conhecimento entende-se o conjunto de conhecimentos inter-relacio­nados, coletivamente construido, reunido segundo a natureza do objeto de investi­gação com finalidades de ensino, pesquisa e aplicações práticas.

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ABRALlC: scntidos do scu lugar 103

A grande área é a aglomeração de diversas áreas do conhecimento em virtude da afinidade de seus objetos, métodos cognitivos e recursos instrumentais refletindo contextos sóciopolíticos específicos.

Por sub-área entende-se uma segmentação da área do conhecimento estabelecida em função do objeto de estudo e de procedimentos metodológicos reconhecidos e amplamente utilizados.

Por especialidade entende-se a caracterização temática da atividade de pesquisa e ensino. Uma mesma especialidade pode ser enquadrada em diferentes grandes áreas, áreas e sub-áreas.

A listagem das especialidades por ordem alfabética apresenta diversas inconveni­ências e a comunidade deve se posicionar quanto a isso. Uma saída que pode atenuar as inconveniências é segmentar a lista por áreas ou grandes áreas. Mas isso recolocaria o problema da hierarquização. Outra alternativa é alterar a termi­nologia das especialidades de forma a facilitar o enquadramento dos pesquisado­res. A presente listagem de especialidades é uma experiência a ser testada.

Outro problema não resolvido diz respeito à classificação dos estudos ambientais. Na prática, a CAPES já está se referindo às Ciências Ambientais como grande área quando classifica os periódicos. A CAPES relaciona 196 periódicos voltados para assuntos do Meio Ambiente e os programas de pós-graduação neste campo são os que mais crescem entre os programas designados como multidisciplinar. A Comissão aguarda sugestões sobre como proceder.

As novas críticas e propostas serão bem-vindas, desde que endossadas por comitês assessores das agências e associações cientificas. As criticas e sugestões devem ser devidamente fundamentadas. É importante, por exemplo, esclarecer os casos de incongruências, inconsistências e anacronismos terminológicos da presente proposta bem como assinalar lacunas ou omissões quanto às novidades temáticas, à consa­gração de tendências metodológicas, à consolidação de cursos e programas de pes­quisa e à existência de associações de pesquisadores e de periódicos qualificados.

A Comissão solicita que as propostas de criação de novas áreas sejam justificadas e acompanhadas de suas respectivas sub-áreas. A correspondência para a Comissão deve ser enviada para o seguinte endereço: [email protected].

A Comissão concluirá seus trabalhos dia 4 de dezembro de 2005. Assim, receberá críticas e sugestões até o dia 30 de outubro.

Tendo em vista o dinamismo próprio do trabalho científico, a Comissão, em seu relatório final, deverá propor ao CNPq, à CAPES e a FINEP a formação de uma comissão permanente para o acompanhamento periódico da Tabela de forma a que não se repita a grande defasagem hoje verificada.

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104 Revista Brasileira dt: Literatura COlllparada. n. X. 2<Xl6

PRINCIPAIS ALTERAÇÕES PROPOSTAS

1. A grande area designada Outros fica extinta e seu conteúdo distribuído seja como área, subárea ou especialidade;

2. Com exceção das Ciências Biológicas e das Ciências Humanas, a deno­minação das grandes áreas é alterada:

De Ciências Exatas e da Terra para Ciências Matemáticas e Naturais De Engenharias para Engenharias e Computação De Ciências da Saúde para Ciências Médicas e da Saúde De Ciências Agrárias para Ciências Agronômicas e Veterinárias De Ciências Sociais Aplicadas para Ciências Socialmente Aplicáveis De Lingüística, Letras e Artes para Linguagens e Artes

3. Duas grandes áreas têm suas posições alteradas na ordem de apresentação: as Engenharias, colocadas, agora, logo depois das Ciências Matemáticas e Naturais; as Ciências Humanas antecedem, agora, as Ciências Socialmente Aplicáveis.

4. A composição de todas as grandes áreas sofrem mudanças devido, sobretudo, a proposta de criação de 21 novas áreas:

1. Arquivologia

2. Artes Cênicas

3. Artes Visuais

4. Biblioteconomia

5. Bioética

6. Ciências Atmosféricas

7. Contabilidade

8. Dança

9. Engenharia Cartográfica e de Agrimensura

10. Engenharia Têxtil

11. Estatística

12. Geofísica

13. Geolog ia

14. História do Conhecimento

15. Informática em Saúde

16. Literatura

17. Mecatrônica e Robótica

18. Música

19. Neurociências

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ABRALlC: scntiuos uo scu lugar

20. Relações Internacionais

21. Saúde Pública

5. As seguintes áreas mudaram de grande área:

A área Computação passou da antiga Ciências Exatas e da Terra para Engenharias e Computação.

As áreas de Farmacologia e Imunologia passaram das Ciências Biológicas para as Ciências Médicas e da Saúde.

105

6. Visando atenuar o grave problema da classificação da interdisciplina­ridade, a composição de diversas áreas foi simplifica através da criação de sub-áreas capazes de abrigar diversas especialidades. Isso ocorreu, em particular, no caso de áreas que podem abrigar grande número de subáreas. Por exemplo, na área Geologia, passa a abrigar a subárea Geologia Aplicada; na área História, a subárea Histórias Temáticas; na Antropologia, a subárea Antropologias Temáticas.

7. A designação de diversas áreas é alterada devido, principalmente, a des­membramentos. Por exemplo: a antiga área Probabilidade e Estatística é desmembrada em duas áreas; a antiga área Geociências, em três novas áreas: Geologia, Geofísíca e Ciências Atmosféricas.

8. A antiga grande área Lingüística, letras e Artes fica designada Linguagens e Artes. Suas áreas foram ampliadas de 3 áreas para 7, sendo 3 devotadas a Linguagem e 4 às artes. O número de subáreas fica ampliado de 26 para 54.

9. Algumas subáreas tornam-se áreas, por exemplo: Saúde Pública, Biblio­teconomia, Arquivologia, Música e Dança.

10. As subáreas ficam ampliad<ls de 340 para 475. Surgem, portanto, 135 novas subáreas. A designação de quase todas as subáreas é alterada. Diversas subáreas foram redefinidas quanto ao próprio conteúdo, já que surgem por conta do desdobramento de antigas subáreas.

As especialidades, destacadas da ordem hierárquica, foram listadas em ordem alfa­bética. A antiga Tabela listava 865 especialidades; esta proposta contém mais de 1.400. A lista de Especialidades procura preservar, na medida do possível, todas aquelas constantes da Tabela em vigor.

É possível prever muitas alterações nesta listagem a partir das contribuições da comunidade.

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106 Revista Brasileira de Literatura Comparada. n. X. :!OO(i

NOVA TABELA DAS ÁREAS DO CONHECIMENTO Versão preliminar proposta para discussão

8 Grande Área: Linguagens e Artes

Área - Linguagem Teoria da Linguagem Verbal Teoria e Análise do Discurso Teoria e Análise do Texto Linguagem Verbal Não Oral Linguagens Não Verbais Linguagens Sincréticas Teoria e Prática da Tradução Filosofia da Linguagem História das Idéias Lingüísticas

2 Área - Línguas Fonética e Fonologia Morfología e Sintaxe Semântica Lexicologia, Lexicografia e Terminologia Variação Lingüística Mudança Lingüística Uso Lingüístico Aquisição da linguagem Patologias da Linguagem Tratamento Automático das Línguas Língua Portuguesa Línguas Clássicas Línguas Estrangeiras Modernas Línguas Indígenas Outras Línguas

3 Área - Literatura História da Literatura Teoria da Literatura Literatura Comparada Literaturas Vernáculas Literaturas Clássicas Literaturas Estrangeiras Modernas Literatura Infantil

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ABRALlC: sentidos do seu lugar 107

4 Área - Artes Cênicas Fundamentos das Artes Cênicas Dramarturgi-a Teatro Coreografia

5 Área - Artes Visuais Fundamentos das Artes Visuais Pintura Desenho Fotografia Cinema Audiovisual Escultura Cerâmica Gravura Tecelagem Design

6 Área - Música Teoria da Música Regência Composição Musical Práticas Interpretativas

7 Área - Dança Fundamentos da Dança Execução da Dança Coreografia da Dança Têcnicas Corporais

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108 Revista Brasileira de Literatura COlllparada. 11. 8.2006

ANEXO II - Documento da ABRALlC, ABRALlN, ALAB e ANPOLL

Ao Professor Doutor MANUEL DOMINGOS NETO DD.Presidente da Comissão Especial de Estudos para Classificação das Áreas do Conhecimento CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico [email protected]

Assunto: Tabela de Área do Conhecimento Contribuições da Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALlCl. da Associação Brasileira de Lingüística (ABRALlN), da Associação de Lingüística Aplicada do Brasil (ALAB) e da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Letras e Lingüística (ANPOLL)

Prezado Professor

Na qualidade de Associações Científicas representativas na área de LINGüíSTICA LETRAS E ARTES, a Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALlCl. a Associação Brasileira de Lingüistica (ABRALlNl. a Associação de Lingüística Aplicada do Brasil (ALAB) e a Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Letras e Lingüística (ANPOLL) reuniram-se para discutir a Nova Tabela das Áreas do Conhecimento apresentada pelo CNPq e elaborar um substitutivo que contem-piasse melhor as especificidades e as reais necessidades dos pesquisadores atuan-tes nesta área.

Depois de examinar detidamente a Nova Tabela proposta e após ampla consulta à comunidade científica abrangida por estas associações, consideramos que a formu­lação a seguir é a que melhor nos atende. Logo após o substitutivo, encontram-se as justificativas sintéticas.

Grande Área:

Lingüística, Letras e Artes (ABRALlC, ABRALlN, ANPOLL); Linguagens e Artes (ALAB)

1. Área - Teoria e Descrição Lingüística Fonética e Fonologia Morfologia e Sintaxe Semãntica e Pragmática Sociolingüística e Dialetologia Lingüística Histórica Psicolingüística e Aquisição da Linguagem

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ABRALlC: scntidos do scu lugar

2. Área - Teoria e Análise da Linguagem Teoria da Linguagem Verbal Teoria e Análise do Discurso Teoria e Análise do Texto Semiótica História das Idéias Lingüísticas e dos Estudos sobre Linguagem Estudos de Cognição e Linguagem

3. Área - Lingüística Aplicada Ensino e Aprendizagem de Língua Linguagem e Tecnologia Alfabetização e Letramentos Formação de Professores de Língua Linguagem e Práticas Sociais

4. Área - Linguagens e Interfaces Estudos de Tradução Lexicologia, Lexicografia e Terminologia Estudos de Políticas e Planejamentos Lingüísticos Línguas Clássicas Línguas Indígenas Neurolingüística

5. Área - Fundamentos dos Estudos literários História da Literatura Teoria da Literatura Literatura Comparada Crítica Literária

6. Área - Literaturas de Língua Portuguesa Literatura Brasileira Literatura Portuguesa Literatura Africanas de Língua Portuguesa

7. Área - Literaturas de Língua Estrangeira Literaturas Clássicas Literaturas de Língua Inglesa Literaturas de Língua Francesa Literaturas de Língua Espanhola Literaturas de Língua Alemã Literatura Italiana Literaturá Russa Outras Literaturas Estrangeiras Modernas

109

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I 10 Revista Brasileira de Literatura Comparada. n. K. 2(XI6

8. Área - Literatura e Interfaces Crítica Textual Ensino de Literatura

Literatura Infantil e Juvenil Literatura e Leitura Literatura e Ciências Humanas

JUSTIFICATIVA

A Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALlC), a Associação Brasileira de Lingüística (ABRALlN) e a Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Letras e Lingüística (ANPOLL) consideram que a grande área deve manter-se como era (LINGüíSTICA. LETRAS E ARTES), enquanto a Associação de Lingüistica Aplicada do Brasil (ALAB) sente-se contemplada com a nova designação proposta (LINGUA­GENS E ARTES).

Quanto às áreas, todas as associações concordam que se devem alterar as áreas e subáreas propostas, mantendo a simetria que sempre existiu entre LINGüíSTICA e LETRAS, e estabelecendo uma simetria também com ARTES: 4 áreas para cada.

A partir da grande área, apresentam-se oito áreas. Como Associações Científicas das áreas de Letras e Lingüística, não nos manifestamos sobre ARTES, visto que há especificidades envolvidas aí, sobre as quais não devemos nos pronunciar.

Quanto às designações de área, consideramos que é relevante fazer a seguinte subdivisão:

1. Área - Teoria e Descrição Lingüística 2. Área - Teoria e Análise da Linguagem 3. Área - Lingüística Aplicada 4. Área- Linguagens e Interfaces 5. Área - Fundamentos dos Estudos Literários 6. Área - Literaturas de Língua Portuguesa 7. Área - Literaturas de Língua Estrangeira 8. Área- Literatura e Interfaces

Os estudos lingüísticos, considerados a partir de sua tradição, abrangência e multi­plicidade, ficam contemplados nas duas primeiras áreas - Teoria e Descrição lingüís­tica e Teoria e análise da Linguagem - refletindo as formas como a construção do conhecimento em torno da linguagem efetivamente se dá.

A Lingüística Aplicada, por sua vez, tem hoje status diferente de "aplicação da lin­güística", cobrindo campos que vão muito além das reflexões sobre ensino I apren­dizagem de línguas. Ainda que sua designação permaneça, sua condição de área es­pecifica está consubstanciada na natureza das pesquisas, na publicação bibliográfica, na formação de pesquisadores, nos Programas de Pós-graduação existentes no

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4 Ver documento em anexo, para maiores detalhes sobre a im­portância da Lingüística Aplicada.

ABRALlC; sentidos do seu lugar 111

país, no reconhecimento nacional e internacional de sua condição de campo espe­cífico do conhecimento, conforme atesta a existência de associações cientificas nacionais e uma internacional.4

Linguagem e Interfaces procura abranger atividades que, mais explicitamente, estabelecem um diálogo com outras grandes áreas do conhecimento. Nas quatro subareas de Fundamentos dos Estudos Literários (Teoria Literária, Literatura Comparada, História Literária, Crítica Literária), estão concentradas mais densamente as atividades referentes aos pressupostos em relação aos quais a produção de conhecimento sobre a literatura está articulada, e a partir dos quais se pode gerar e enunciar esta produção e tornar inteligivel, em nossa área, o sentido do que se gera e enuncia.

A área designada anteriormente como «Literatura)) está reconfigurada, para contemplar duas outras (Literaturas de Lingua Portuguesa, Literaturas de Lingua Estrangeira), agrupando as literaturas conforme a lingua em que se manifestam e especificando mais as subáreas, de forma a nomear com precisão pelo menos as. literaturas mais presentes, especialmente em termos numéricos, nas Instituições de Ensino Superior. Esta especificação permite o reconhecimento de distinções que não apenas são importantes para a caracterização de subáreas, mas também faci­litam a operacionalização de atividades científicas, didáticas e administrativas nas várias instâncias do sistema científico e educacional brasileiro nas esferas federal, estadual e municipal.

Por fim, a área Literatura e Interfaces contempla uma série de atividades que remetem o pesquisador de literatura para outras grandes áreas do conhecimento

Esperando ver atendidas nossas reivindicações referentes à Tabela de Área do Conhecimento, aproveitamos para reiterar nosso apreço à Comissão Especial de Estudos para Classificação das Áreas do Conhecimento, que apresentou uma proposta e propiciou à Área uma ampla reflexão em torno da produção do conhecimento que se realiza hoje e das denominações que melhor possam descrevê-Ia.

Cordialmente, Professora Doutora Beth Brait Presidente da ANPOLL - Associação Nacional de Pesquisa e Pós­Graduação em Letras e Lingüística

Professor Doutor José Luís Jobim Presidente da ABRALlC - Associação Brasileira de Literatura Comparada

Professora Doutora Tha'is Cristófaro Silva Presidente da ABRALlN - Associação Brasileira de Lingüística

Professora Doutora Maria Luiza Ortiz Presidente da ALAB - Associação de Lingüística Aplicada do Brasil

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113

Censura e crítica: reações de um professor de retórica e poética à leitura de um romance

I Essa pesquisa é parte do Projeto Temático COII/il/hos do

mllllll/Ce 1/0 Brasil: séculos

XVIII e X/X, financiado pela FAPESP. Contou com apoio da CAPES e da FAPESP, que linanciou estágios de pesquisa no Arquivo Nacional da Tom: do Tombo (Lisboa - POIlugal). Conta também com o finan­ciamento do CNPq, sob a forma de bolsa de produtividade em pesquisa.

2 Não havia, na época. uni­formidade e consisiência na designação das obras de prosa de ficção. Em Portugal, até início do século XIX, utilizava-se sobretudo o termo I/orela, que era intercambiável com ml/Illl/ce. collfo. hi,wíria, Para designar o conjunto das obras de prosa liccional utilizan:j o termo ml/Il/l/ce. Há pareceres sohre o gênero produzidos entre meados do XVIII e 1832 - ano clllllue se suspende a censura prévia em POIlugal.

Márcia Abreu (UNICAMP) 1

No mundo luso-brasileiro, imprensa e censura caminharam de mãos dadas durante longo tempo. A partir de 1536, todos os livros a serem publicados em Portugal e, posteriormente, no Brasil, fossem traduções ou composições originais em português, deveriam ser pre­viamente examinados e obter uma autorização formal dos órgãos de censura antes de serem impressos. Se, em alguns períodos, bastava uma autorização, na maior parte do tempo era preciso obter três autorizações para poder levar um livro ao prelo. Impressa, a obra voltava a ser examinada, para que se verificasse se o texto coincidia exatamente com o manuscrito aprovado. Só então ganhava a licença "de correr" e podia chegar às mãos dos leitores. Os livros publica­dos no exterior também estavam sujeitos à censura para que pudes­sem circular em Portugal e seus domínios, necessitando obter licen­ça para passar pelos portos e alfândegas, seja quando pertenciam a uma biblioteca particular, seja quando se destinavam ao comércio.

Vários historiadore~<; debruçaram-se sobre o trabalho dos cen­sores, buscando identificar as formas de atuação dos organismos de censura sobre a circulação de idéias, apresentando a intervenção castradora dos censores e, algumas vezes, mostrando sua limitação intelectual diante das obras que deviam examinar.

Não duvidando do caráter nefasto da censura às idéias, meu objetivo é olhar de um outro ponto de vista para os pareceres prepa­rados pelos censores, flagrando-os no papel de leitores de obras de ficção e buscando captar o registro das formas como leram e inter­pretaram as centenas de obras ficcionais que passaram por Portugal e seus domínios a partir de meados do século XVIIP .

Essa é uma fonte privilegiada por fornecer grande volume de

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114 Revista Brasileira de Literatura Comparada. n. K, 2006

documentos durante longos períodos, atenuando uma das dificulda­des encontradas pelos historiadores da leitura: a excepcionalidade dos registros, que dificulta a generalização das conclusões obtidas a partir de seu exame. Além disso, o material tem interesse, pois os censores eram leitores privilegiados: conheciam quantidade vastíssima de escritos - eram poucos e tinham de ler todos os livros a serem publicadas e todos os que se pretendia pôr em circulação - e liam tanto as obras permitidas quanto as proibidas. Por isso, os censores I iam muito mais romances do que qualquer outra pessoa, já que par­te daquilo lido por eles jamais chegava ao público tendo em vista sua própria intervenção proibindo sua impre~são ou sua circulação.

Mas o que os torna leitores particularmente interessantes é o fato de que registravam, por dever de ofício, suas impressões de leitura, produzindo relatos minuciosos de sua relação com livros.

A legislação censória previa que cabia observar a ortodoxia política (localizando textos ou trechos contrários à Monarquia como um todo, à coroa portuguesa em particular, ou críticos em relação a atos dos reis), religiosa (localizando obras ou passagens contrárias ao cristianismo, elogiosos a outras religiões ou críticos em relação a dogmas cristãos) e moral (localizando escritos que apresentem ou comentem comportamentos morais tidos por inadequados)3 dos li­vros que passavam por suas mãos. Quando se tratava de examinar romances não faltava o que observar, pois eles podem conter atenta­dos à política, à religião e à moral- e, freqüentemente, os contém.

Não havia dificuldades em identificar e condenar problemas de ordem política e religiosa, mas quando se trata de condenar "dis­cursos licenciosos em prosa, ou verso, que afrontam o pejo e a mo­déstia, desbaratam os costumes e pervertem a educação religiosa da mocidade"4 atuava mais fortemente a subjetividade na avaliação e tornava-se mais tênue o limite entre o que era, ou não, ofensivo, o que gerava intensas polêmicas entre os censores).

Um dos temas candentes no debate europeu acerca da prosa de ficção do século XVIII era justamente sua relação com a moral, pois os letrados perguntavam-se sobre os efeitos da leitura de ro­mances sobre o comportamento dos leitores, sobre seu conhecimen­to das coisas do mundo e sobre sua concepção de vida6•

Animavam-se também com debates estéticos, pois faltavam critérios para avaliação dos romances. Se, para o comentário de po­esias e de textos de eloqüência, os eruditos pautavam-se nos trata-

, A esse respeito ver: AL­GRANTI, Leila Maan. "Polí­tica, religião e moralidade: a censura de livros no Brasil de D. João VI (1808-1821)." NEVES. Lúcia Maria Bastos Pereira das. "Um silêncio perverso: censura. repressão e o esboço de uma primeira esfera pública de poder (1820-1 S23). VILLALTA. Luiz Carlos. "Censura literária e inventividade dos leitores no Brasil colonial", todos os 3 publicados em: CARNEIRO. Maria Luiza Tucci (org.). Mil/orillS silel/ciadas: hislliria da cel/sura 1/0 Brasil. São Paulo: Editora da Universidade

de São Paulo I Imprensa Oficial do Estado I Fapesp, 2002. Ver também VILLALTA, Luiz

Carlos. Refiml/i.m/IJ IIl1strado. CeI/-.l'lIm e PrlÍriC/ls de Lei/lira. Tese de Doutorado defendida na Faculdade de Filosofia. Letras e Ciências Humanas da USP soh orientação da Prol" DI" Laura de Mello e Souza. MARQUES. M. Adclaide Salvador. A Real Mesa CCII.wiria <' a CIII/llra Nllciol/III.

aspec/lls dll geogrtlfia clIl/llral por/uguesll 1/0 século XVIII. Coimbra. s/ed, 1963: BASTOS. José Timóteo da Silva. His/lÍrill da Cel/sura II//elee/llal elll

Por/ugal: CI/.wio sobre 11

c(}lIIpreeJl.'il;o do penslImento

por/llgllês. Lisboa: Moraes Editores. 1983,2" edição.

, ReguiamelHação da Censura

Tripartida. 1795. ANTT Leis. Livro 15,1145 e ss

< Segundo Leila Mezan Algranti, "em rdação aos temas políticos e religiosos parecia haver um maior consenso. não havendo muito do que discordar. ou talvez não valesse a pena entrar em conl1ito, pois parece hastante claro que ideologias contrárias ao absolutismo c it Igreja não poderiam ser accitas. O mes mo é vál ido para os autores ou obras que qucs­tionassem as condutas do poder real e dos tribunais religiosos (como a Inquisição). Porém, as

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Censura e crítica: reações de um professor de retórica e poética li leitura de um romance I 15

questões relativas à moral inseriam-se num ten;tôlÍo pouco definido e nehuloso. () que. conseqüentemente. provocava discordâncias [ ... ] Quando as obras tocam em valores morais da sociedade da época. tudo leva a crer que elas ficavam mais sujeitas ao arhítrio pessoal dos censores e. neste ponto, niio havia realmente consenso entre eles." ALGRANTI. Leila Me­zan. "Política. religiiio e moralidade: a censura de livros no Brasil de D. Joào VI (I XOX-1821). In: CARNEIRO. Maria Luiza Tucci (org.). Millllrias silell-ciadas: lIis/lÍria da cel/sura 1111 Brasil. Sào Paulo: Editora da Universidade de São Paulo / Imprensa Oficial do Estado / Fapesp. 2002. pp. II X-119.

,. Sobre a.~ polêmiGl~ suscitadas pelo gênero romanesco ver ABREU. Márcia. Os Call/illlllls dos /in"s. Campinas: t\krcado de Letras/ALBIFAPESP. 2003.

7Sobn~arelaçãoentreo rDlIlancc e as prcceptivas dússicas Vl:f

CANDIDO. Antonio. "O Patriarca" e "Timidez do Romance". In: Educl/("I/II I,ela Noite & OUlros ensaios. São Paulo: Ática. 1989.2" edição.

dos de Poética e Retórica que regulavam a produção e a leitura des­ses escritos, para o exame de romances não havia em que se apoiar, já que o gênero não seguia preceitos clássicos estabelecidos, crian­do enormes polêmicas sobre o valor dos textos7.

O romance é, pois, particularmente interessante, já que sua difusão, a partir do século XVIII, abalou as estruturas do mundo letrado, não apenas por colocar em xeque os parâmetros de compo­sição, leitura e avaliação dos escritos, mas também por possibilitar a profissionalização de alguns escritores, o enriquecimento de alguns editores, o surgimento e expansão de bibliotecas circulantes e associativas. Toda essa movimentação só foi possível porque as obras podiam ser lidas por amplos públicos não requerendo profundos co­nhecimentos das Belas Letras.

Produzindo alterações nas formas de escrita, de produção, de circulação e de leitura, o gênero chamou sobre si muita atenção e fez com que, na Europa, se produzisse grande quantidade de escri­tos - em geral para denunciar seus defeitos estruturais e alertar so­bre os perigos advindos de sua leitura. Em língua portuguesa, ainda que houvesse grande circulação de romances, a quantidade de escri­tos críticos foi muito menor, ganhando alguma consistência somente a partir de meados do século XIX.

Ao avaliar os romances em circulação em Portugal e seus do­mínios, a partir de meados do século XVIII, os censores entram em cheio no debate acerca dos romances, discorrendo ao longo de mi­lhares de páginas sobre a validade e o valor do gênero. Assim, os pareceres por eles produzidos podem ser vistos como registros vali­osos das formas como setores intelectualizados luso-brasileiros rea­giram aos primeiros romances em circulação. Ainda que de difusão restrita aos organismos de censura, os pareceres dos censores, os debates entre eles (em caso de divergência de opinião) e as discus­sões entre censores, autores e editores (devido ao direito de respos­ta concedido aos escritores e seus editores, com o respectivo direito de réplica do censor), podem ser entendidos como uma pré-história da crítica literária em língua portuguesa.

Embora o exame da qualidade estética dos textos não fizesse parte de suas atribuições legais - que consistiam, como se viu, na avaliação da ortodoxia política, religiosa e moral-, alguns agiam em função de um critério não estabelecido nas leis: a "correção literá­ria" dos textos. Tratava-se, como dizia o censor Francisco Xavier de

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116 Revista Brasikira de Literatura Comp;u'ada, n. K, 2006

Oliveira, de identificar e censurar "tudo que poder offender, e desa­creditar à Nacional Literatura"H. Esse critério gerava entusiasmados comentários dos censores, acerca do uso da língua, da qualidade das traduções, do estilo dos textos, de sua estrutura interna, de sua ve­rossimilhança etc.

Um dos casos de maior interesse é o da polêmica travada em torno do livro Lances da ventura, acasos da desgraça e heroismos da virtude9 , romance de grande sucesso em Portugal e no Brasil até o início do século XIX. D. Felix Moreno de Monroyt(), o autor da obra, apresentou pedido para imprimir "oLibro de Novellas que apre­senta", e obteve, em 16 de dezembro de 1796, parecer favorável do

Tribunal do Santo Ofício e, em 23 de janeiro de 1797, do Ordinário.

Pelo Desembargo do Paço foi nomeado, em 25 de fevereiro de 1797, o Professor Régio de Retórica e Poética, Francisco Xavier de Oli­veira, para atuar como censor régio" . E aí começaram os proble­mas, pois o censor localizou diversos e graves inconvenientes no texto l2• Seu parecer principia ironizando o título do romance 13:

"Brinda a nação portuguesa o seu grande apaixonado D. Felix Moreno de Monroi, com esta novela intitulada castelhana e exoti­camente = Lances da ventura, acasos da desgraça e heroísmos da virtude = certo, que não temos faculdades, e que nos faltam as forças, para lhe podermos remunerar tão novo, tão insólito, e tão relevante obséquio, pela qual razão diremos com o nosso Camões

Aquela alta, e Divina Eternidade, Que o Céu revolve, e rege a gente humana, Pois que de ti tais obras recebemos, Te pague o que nos outros não podemos.

Com tudo como = Timeo Danaos, et dona ferentes = nós lhe agra­decemos, mas não aceitamos o seu presente."

Francisco Xavier de Oliveira inicia sua avaliação diminuindo o valor do autor e do livro - ao fazer piada com o título e ao zombar das supostas virtudes da obra - e afirmando suas próprias qualida­des intelectuais - ao citar, sucessivamente, Camões e Virgílio. Logo se vê que as referências do censor não são as mais próprias para a leitura de um romance, pois, diante daquilo que ele reconhece como sendo uma "novela" o que lhe vem à mente são trechos de dois po-

• Francisco Xavier de Oliveira emparecerexarado,eml797,a propósito PtIITllm LexicolI Ltllillo-Lt/.I"ÜIIIII/III. Desembargo do Paço, Repartição da Cone, Estremadura e Ilhas, Maço 1932, caixa 1759.

., MONROY Y ROS, D. Felix Moreno de. Ltmas d" I·ell/llra. "m.m.'· d" llesgraç" e hemi.WlI/J.I" da rir/lllle. NOl·el/a.l" olrereâdas ti Naçtio Por/lIgllela !,ara seu dh·mimel/lo. LislxXl 1793-1797. 8."6 tomos. A obr.l pode serlida em versão fac-similar digi­talizada na Bibliolt:ca Virtual

do site do projeto Caminhus

do Romance no Brasil: séculos XVIII e XIX (httJ!: www.caminhos­doromance. iel.un icamp. I1r/). Agradeço a Bibl ioteca da Ajuda (Lisboa - Portugal) por ter autorizado a divulgação das imagens relativas ao livro penencente a sua coleção.

'fi É difícil encontrar infor­maçiies sobre D. Fclix Moreno de Monroy y Ros. Sobre ele, Innocencio Francisco da Silva não diz nada além de informar que era "hespanhol de nação, mas domiciliario por muitos al1l10S em Lisboa. onde creio que faleceu já no presente seculo." Foi tradutor (Mel//IIdo pralico

!,ara/itlarcolII Deus, lradu~ido tio 11I'.I""alll/lll. Lisboa na Ome. de Domingos Gon~alves 1779. X." de 55 I pág. e I'all/e/la AlIdrel".\". 011 a rir/lId" recolI/pell.wda. No\'e/lll til' Ric//(/rd.wlI .. /radu?ida 1'11/

I'ttlgll/: Lisboa 179 ... X." a tomos.-Nova edição, ibi I K I S. X." 2 tomos.) e autor de lima comédia (ColI/edia lIova ill/i/ttlada: Frederico Se~l/Illlo, Rei de Prussia (3 parle.\"). Lisboa na Offic. de João Antonio Reis 1794.4.°, publicada com as iniciaes D. F. M. de M.).

II Segundo Inocêncio, Francisco Xavier de Oliveira foi "Pro­fessor Regio de Rhetorica e Poetica em Lislxla pela resolução

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Censura e crítica: reações de um professor de retórica e poética à leitura de um romance 117

regia de \O de Novembro de 1771. com exen.;cio no Collegio Real !l: Nobres, e depois no antigo C!o1abe­lecimento d'eslUdos do bairro J' Alfuma. hnpossibilitadoa lin;~, por sua edade e molestia.~ chronic:L~ :lL'OIIl~ !l: cl:l,'UCim, viveu :l~sim alguns annos, m0I1\.11(lo (ao que paJ1"~'C) no Je I X23, ou pouco depois," SILVA InJ1(x:encio F1.U1-cisco da, Diccimllll'io Biblio­g/lll'him PmlllglltZ volllI. pág, 91 Ophir, BibliOla:a Viltl~~ dos IÁ'SCo, hlilllentos POI1ugUCSl:S, 9. 2(X) I.

" Desembargo do Paço. Repartição da Corte. Estre­madura e Ilhas. Maço 1932, caixa 1759. ANTI.

I' Nas citaçiies a.~ abreviaçõcs e junções de palavras foram desmembmdas, assim COIllO foi atualizada a ortogra!ia: a pon­tuação foi mantida tal como estava nos documentos. As traduções não expressamellle atribuídas a outra pessoa são de minha autoria.

., Os versos de C;unQ"S tà7.cm p:ute

do C:U1to Segundo de 0.1' UI.I'ÍlIdl/.l·

(versos 797 a SCXl) e são ditos por V~'Oda Galllaemagr.u.k:cill"l.'nto ao Rei de Mdinde, que a<.'olhc :\ fi'ota lusitana depois de ela ter es­~-apado das annadilhas pre-pamdas pelo rei mouro em Momhaça. A expressão Timeo DtU/(/O.l'l'1 dOlla

lel'('lIle.l· (Temo os gregos mesmo quando trazem presentes) :qxu\!ce na ElleÍl/lI. de Virgtlio. em verso L'OI1l o qual !i: condui o di'iClUSO!l: L:llCcontequebuscavauxl\'CllL\"'(lS troianos a não aceitar o cavalo oferecido pelos gregos.

I; Francisco Xavier de Oliveira cita: "Sans la L:Ulgue, en un mot. I' Auteur le plus divino I Est toujours. quoique il fasse. UI! mécilant Ecrivain.". ou seja. "scm a língua, em Ullla palavra. o autor mais divino/é sempre. façaoquc !izer, um IllaU t.'Sl:ritor"

emas épicos em que se desenvolve o tema das armadilhas oferecidas por inimigos sob o disfarce de presentes l4 •

Estabelecidas suas referências teóricas e sua posição sobre o autor, Francisco Xavier passa a elencar os muitos problemas que identificou no texto. O primeiro deles diz respeito ao manejo da língua portuguesa por parte de um escritor espanhol que, segundo o censor, deveria ter se abstido de escrever em português, "para nos poupar o desgosto de vermos tão depauperada, tão envilecida, e tão barbarizada a nossa abundante, nobre, e assaz polida Linguagem". Mais uma vez, o censor escuda-se com uma autoridade do mundo das letras, citando, em francês, versos de Boileau que advertem para o fato de que mesmo o autor mais divino não passa de um

fraco escritor sem o correto uso da Iíngua l5 .

Na primeira página de seu parecer citam-se três autores clássi­

cos em três diferentes línguas. O censor não parecia disposto a dei­xar que pairassem dúvidas sobre sua competência. Entretanto, se fosse possível reduzir todos os problemas a questões de linguagem, um revisor sanaria os deslizes - verdadeiramente numerosos - em

que incorria D. Félix Moreno. Mas essa era a menor das objeções do

minucioso censor:

"é D. Felix Moreno de Monroi, um péssimo escritor em portugu­ês, e detestável esta sua obra, no que diz respeito à elocução, não só pela corrompida linguagem, mas pelo estilo impróprio, afeta­do, e declamatório, mas todavia em obséquio da verdade direi, que é boa a sua invenção, que me pareceu bela a sua coerência, ordem, e contextura; que tem lugares bastantemente patéticos; que são assaz críticas algumas situações, em que por vezes se acha a sua heroína, das quais felizmente se salva, ou por acaso, ou pelos meios, que lhe subministra a sua admirável constância; que sustenta sem discrepância o caráter, que dá às suas persona­gens; que enfim a sua moral é pura e santa. Contudo posto que esta história seja tão verdadeira como a Vida de Gil Braz, e que todos os fatos, que nela se expendem, só existiram na imaginação do Autor, contudo devia este indispensavelmente guardar a possí­vel verossimilhança; o que muitas vezes deixa de fazer, ou por descuido, ou por ignorância."

Os critérios pelos quais o censor examina o romance provêm, como se vê, da retórica: elocução, estilo, invenção, coerência, 01'-

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dem, contextura, lugar. Tendo em vista os problemas de D. Felix com a linguagem, é natural que a elocução l6 fosse o elemento mais precariamente trabalhado no texto, do ponto de vista do censor, que reclama das corrupções na linguagem, da impropriedade e da afeta­ção do discurso, excessivamente declamatório. Entretanto, admira a invenção 17 , ou seja, ele foi fisgado pelo enredo e pelas personagens criados por D. Felix Moreno, a ponto de expressar sua satisfação pelo fato de a heroína salvar-se de todas as situações difíceis em que se aventura. O exame da moralidade do texto, não sendo um critério retórico, passa quase desapercebido. Curiosamente, essa deveria ser sua principal preocupação, caso se ativesse ao que determinava a lei.

Talvez por ter se envolvido com o enredo, o censor se irrite tanto com os atentados à verossimilhança presentes no texto. Ele parece ter ficado extremamente incomodado com o fato de os per­sonagens Guilhermina e Guido terem saído do Maranhão de navio e, depois de várias peripécias marítimas, terem sido lançados nas prai­as da Polônia - país sem litoral e fora da rota que seguiria um navio à deriva-, ferindo não apenas preceitos genéricos de verossimilhan­ça, mas atentando contra a plausibilidade mais rasteira.

O comportamento e as ações de algumas personagens também lhe parecem inverossímeis. Do seu ponto de vista, o modo de agir do Príncipe Koribut, filho do Rei da Polônia, que abandona sua Pátria e se embrenha nos matos apenas por ter sido abandonado por uma Dama, parece inconcebível. Não apenas a atitude é exagerada, mas também sua duração. Diz o censor que a paixão costuma, realmente, produzir terríveis efeitos, mas que eles cedem e desaparecem com o tempo, por isso parece surpreendente que o Príncipe permaneça so­frendo, com a mesma intensidade, quarenta anos depois de abando­nar seu país: "o caso todavia não é impossível, porém novo de tal sorte, que d'outro semelhante não faz menção a História do mun­do", declara o irônico censor.

Ele também se ressente do pouco rigor com que são tratados os costumes muçulmanos, de forma que lhe parecem totalmente ina­dequados o fato de o Sultão Osman, mouro, ter dado a Guido, cris­tão, o comando de uma fragata turca. Da mesma forma, não seria crível o fato de Guilhermina receber permissão do Sultão para sair do serralho a fim de visitar o suposto túmulo de seu esposo. Menos aceitável ainda seria a fuga da moça do harém acompanhada de Guido.

Mantendo-se fiel aos preceitos retóricos com os quais avalia o

'" A c1ocução. uma das cinco grandes partes da retórica, preside. ao mesmo tempo. a seleção c o arranjo das palavras no discurso, Ao longo da história. o termo foi sendo empregado como equivalentc a estilo.

17 A invenção. a primeira das cinco grandcs p~ules da rct<Íl;ca. diz respeito à escolha da lIlat~l;a a ser tratada no discurso - as coisas das quais se fala - e ao conjunto de procedilllcntos lógico-discursivos que lIloldam o desenvolvimcnto do discurso.

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,.< Adequação do discurso ao lema, à circunstância de sua apresentação e às capacidades do orador.

'v Muito impol1aní se 1;lla um deus ou um herói / Um velho amadurecido ou um etc

texto, o censor, depois de ter criticado a elocução e a verossimilhan­ça, passa a queixar-se da falta de decoro ls na fala das personagens:

"peca contra o decoro da expressão, por não ser conveniente às pessoas a quem o autor a atribui, por exemplo: Osman declaran­do a Guilhermina o extremo, com que a amava, se explica desta maneira = Embora triunfe da minha Soberania esse rasteiro dominador, que generaliza os viventes, essa falsa Divindade, a quem chamam Cupido: sim freche embora &c certo que não há coisa mais impertinente; porquanto assim fala um poeta quando ama por metáfora, e não um Imperador dos Turcos, quando vi va­mente apaixonado por uma sua escrava, lhe faz patente o seu amor; por ser indubitável, que a expressão deve ser conforme ao caráter, e à hierarquia das pessoas; este é o preceito, que nos dá Horacio quando diz:

Intercrit multum diuosne loquatur, an heros Maturusnc senex, an &C"IY

Faltava adequação entre a posição social do sultão e seu dis­curso, assim como era inadequado o discurso para a situação: um

sultão não fala como um poeta e, sobretudo, não fala poeticamente quando quer conquistar uma reles escrava ... Para que não pairassem

dúvidas sobre o acerto da crítica, Francisco Xavier de Oliveira reto­ma o discurso de autoridade, citando trecho da Arte Poética de

Horácio, em que trata do decoro. Os problemas identificados nenhuma relação tinham com ques­

tões de ordem moral, política ou religiosa, as quais deveriam consti­tuir o único objeto de atenção dos censores. Tivesse Francisco Xavier observado o que determinava a lei, seu parecer se restringiria a uma frase, expressa logo no início do texto: "em fim a sua moral é pura e santa". Mas sua preocupação excedia, em muito, as determinações

legais, pois ele imaginava que seu cargo lhe conferia o direito de

zelar pela "nacional literatura":

"Estes são os defeitos principais que achei nesta obra, a qual pos­to que nenhum crédito dê ao seu autor contudo não desacredita a nacional literatura, por ser escrita por mão estrangeira e por isso é tão pouco pura a sua linguagem. Contudo sempre me parece justo, que Vossa Majestade se digne por sua Real Bondade, con­ceder ao suplicante a licença que pede para a fazer imprimir; por-

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que havendo Vossa Majestade sido servida permitir ao autor, que dessa à luz os primeiros tomos desta obra, parece, que o mesmo tem algum direito para alcançar de Vossa Majestade a repetição daquela graça para este derradeiro da sua novela."

Tendo aplicado preceitos retóricos e poéticos na leitura do texto e apresentado implacavelmente todos os seus defeitos, Fran­cisco Xavier abandona os critérios retórico-poéticos quando pensa no interesse da obra para a literatura nacional e no impacto que sua publicação teria sobre a imagem interna e externa da Nação, temas estranhos às preceptivas, que se ocupam de normas de natureza ge­raI e não vinculadas a questões nacionais. Nesse momento, o censor torna-se tolerante ao decidir-se pela autorização da publicação: a obra valia muito pouco, mas, tendo sido escrita por um estrangeiro, não desmerecia a Literatura Portuguesa e, portanto, poderia ser im­pressa - sobretudo porque o autor já havia obtido permissão para publicar os cinco primeiros tomos, parecendo prudente manter-se a graça recebida agora que se tratava da sexta e última parte da obra20•

A mesma benevolência não tiveram seus colegas reunidos na Mesa do Desembargo do Paço. Apresentado o parecer, os proble­mas apontados por Francisco Xavier foram entendidos como sufici­entemente graves para impedir a publicação do livro. Em casos como este, o autor recebia um "Extracto Da Censura", uma súmula do parecer, em que se retiravam ironias mais agudas e trechos provocativos, e se apresentavam, de maneira mais sucinta, as críti­cas às quais o autor deveria responder "em quinze dias que começa­ram a correr da data deste".

Esse direito de resposta, acompanhado do direito de ré­plica do censor, transformava os organismos de censura lusitanos em verdadeiras arenas de debate intelectual e, nesse caso, estético.

D. Felix Moreno de Monroy não hesitou em satisfazer a exigência do Desembargo do Paço e redigiu uma copiosajustificati­va em que respondia, ponto por ponto, às críticas recebidas. Sua estratégia discursiva é oposta àquela empregada por Francisco Xavier de Oliveira. Enquanto o censor abre seu texto diminuindo o valor do autor e tornando explícita sua formação intelectual, o escritor castelhano começa sua resposta de forma humilde e polida:

"É Vossa Majestade servida, na conformidade da Lei sobre o exa­me, e censura dos Livros, mandando-me responder ao extrato junto,

OI) Não foi possível localizar os pareceres relativos aos cinco primeiros volumes.

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dos pontos indicados pelo sábio censor do meu 6" tomo das Nove­las; e na minha defesa seja me lícito dizer, primeiro que tudo, que cingtndo~mecamo devo, determinado por Vossa Majestade, eu não intrometi, nem acho nele proposições, que suponham Doutri­nas, ou princípios errados, ou perigosos em coisas tocantes à Religião, e ao Estado, nem que ofendam a piedade dos fiéis, e às Leis do Decoro Natural, e Civil: longe de mim, Senhora, seme­lhante pensamento; e por isso suplico a Vossa Majestade, que as razões que vou dar em minha defesa sejam bem ponderosamente consideradas, como determina o § 8. da mesma Lei: não pelo sublime, ou útil da Obra, mas sim atendendo ao grave prejuízo das crescidas despesas que tenho feito com os outros tomos, que Vossa Majestade me concedeu imprimir, e cuja obra fica incom­pleta faltando-lhe este 6" tomo, e por conseqüência será nenhuma sua extração."

o escritor alcunha o censor de "sábio" - designação que pro­gressivamente irá se recobrindo de ironia - e se mostra submisso às determinações reais, retirando a sustentação de sua defesa justamente dessa submissão às regras, ao alegar que seus escritos não apresen­tam doutrinas ou princípios equívocos, nem atentam à Religião, ao Estado e às leis civis e naturais. Portanto, está implícito o argumen­to de que a censura recebida foi feita ao arrepio da lei, que não autoriza a examinar o "sublime, ou útil da obra" e sim sua ortodoxia política, religiosa e moral. Se o censor citava autores clássicos para sustentar seus pontos de vista, o escritor cita a lei, descendo à minucia de chamar atenção para um de seus parágrafos. Além da legislação, invoca em sua defesa questão de ordem econômica, chamando a atenção para a absurda situação em que ele e seu editor ficariam caso não fosse autorizada a publicação do sexto tomo da obra, no qual se apresenta o desfecho de um enredo acompanhado pelos lei­tores durante centenas de páginas.

Ainda que coloque em primeiro lugar argumentos de ordem jurídica e econômica, D. Felix não se furta a discutir os problemas de natureza estética observados pelo censor. Sua defesa baseia-se fundamentalmente na alegação de que seu livro é obra de ficção, regida por regra distinta daquelas nas quais se apoiava o censor:

"Seja o primeiro descarga, dever-se considerar este 6" tomo de Novelas, como uma composição arbitrária, como parto do enge­nho, e como um encadeamento de enredos quiméricos fundados

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na minha fantasia, que entusiasmada das fictícias passagens que o entendimento atraiu ü memória, não guardei outra regra mais do que enfeitar as idéias que me sugeriu a mente."

Na concepção do autor, uma obra de ficção é fruto da imagi­

nação e da inventividade, sem estreita e necessária relação com a realidade, compondo-se por meio de uma sucessão de idéias orna­mentadas. Se o censor pretende dar lições de retórica ao autor, este

o paga na mesma moeda, ensinando-lhe o que é ficção:

"O titulo do meu livro. e o seu contexto, desde a primeira até a última página, está mostrando, que nada é certo, que tudo é fabu­loso; logo como pretende o sábio censor, que eu me sujeite üs regras d'uma verdadeira composição, e que não discrepe dos pon­tos da Geografia: então não seria Novela, seria história verdadei­ra. O compositor desta qualidade de obras, tem a liberdade de fingir uma armada dentro d' um pequeno tanque; um homem do tamanho de uma amêndoa; e uma cidade sustentada sobre as on­das no meio do mar &c.; por que o fim da novela é ser pintada com passagens, e objetos interessantes, ainda quando as suas fic­ções sejam inverossímeis. Nas novelas, parece não deve o autor cingir-se aos preceitos sóli­dos da história verdadeira; porque para esta se requerem outras luzes mais elevadas das que eu não tenho; se requerem fundamen­tos sólidos, conforme à dignidade da matéria que trata: deve pin­tar com propriedade a narração dos fatos, ou as memoráveis ações do herói, que lhe serve de objeto, para a sua composição; e faltan­do-lhe alguma d'estas circunstancias não pode desempenhar de algum modo o nome de historiador. Eis-aqui o que eu julgo desne­cessário para a composição de novelas: nesta indubitável certeza, eu passo a satisfazer por pontos as objeções ponderadas pelo sá­bio censor do meu livro, respondendo a cada uma na forma se­guinte" .

Recuperando a velha distinção entre história e ficção - entre o que foi e o que poderia ter sido - e submetendo apenas a história às regras retóricas de escrita, D. Felix Moreno desautoriza as críticas feitas pelo censor, considerando os critérios nos quais elas se fun­dam inadequados ao exame de uma obra de ficção. Na ânsia de de­fender-se e de justificar sua obra, o autor atribui à ficção caracterís­ticas que não são suas. É bem verdade que se podem construir enre-

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Censura e crítica: reações ue um professor ue retórica c poética à leitura de um romance 123

dos e situações distantes da realidade observável, mas isso não auto­riza a abandonar a verossimilhança, criando situações implausíveis­especialmente quando se constrói uma narrativa dentro dos marcos do realismo formal, como parece ser o caso dos La/lces da Velltura.

Ainda que tenha afirmado que "o fim da novela é ser pintada com passagens, e objetos interessantes, ainda quando as suas fic­ções sejam inverossímeis", não quer submeter seu texto à pecha da inverossimilhança, apresentando complicadas justificativas para cada uma das situações destacadas pelo censor, a começar pelas restri­ções feitas às praias polonesas:

"Porém, Senhora, seja-me licito dizer, que ou o sábio censor ou eu, estamos enganados nas regras da Geografia; eu vejo aquele país delineado por muitos autores, e vejo que eles dizem terminar a Polônia pela parte Setentrional até o Mar Báltico, por uma li­nha tirada de Pernau / pela Lituânia / até o nascimento do Rio Duna &"., e pela boca do Voristenes, no Mar Negro, com os Tur­cos; e eis aqui o porquê me pareceu não cometer erro de Geogra­fia, na passagem que faço n'aquele lugar; por que eu não falo de praia, falo d'um rio por onde caminharam todo um dia, até serem deitados de noite por um bote a um sítio ignorado".

Ajustificativacoloca em dúvida os conhecimentos geográficos do censor. assim como põe sob suspeita sua atenção como leitor, que viu uma praia onde havia o leito de um rio. Segundo D. Felix, tudo o que se passa em seu livro é possível, mas não cabe ao autor oferecer detalhes enfadonhos que podem ser facilmente imaginados pelos lei­tores. Detalhes ilTelevantes, sobretudo, pois se trata de ficção:

"Ademais, que julguei ser desnecessária tanta explicação n'um ponto tão insignificante, e por isso a deixei por enfadonha, con­tentando-me com o que digo naquele lugar à página 11; por que deve supor-se que tudo o mais poderia acontecer no tempo que mediou desde que os faço roubados pelo Pirata até o em que che­garam àquele monte: mas por ventura, I permita-se-me dizer I que importa que faltasse na novela esta regra de geografia, ou a quem faz mal () seu erro? Que importa, que as duas figuras imaginadas fossem, ou não transportadas aquele sítio nos ombros d'um mons­tro marinho, ou sobre as asas da ave Fênix, quando de todos os modos se vê, que é ficção pintada à vontade do seu autor, que nesta parte podia fazer figura de Geógrafo-Mor."

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o tema das relações entre o romance, a história e a geografia já havia sido longamente tratado por letrados europeus que viam problemas no fato de a ficção apresentar como reais lugares e fatos imaginários, embaralhando conceitos nas idéias dos leitores, so­bretudo dos jovens. O erudito Charles Porée, por exemplo, acredi­tava que

"os Romances são perniciosos à Literatura; I" porque, por seu contágio, eles estragam a parte da Literatura com a qual eles têm relação; 2". porque, por sua quantidade, eles abafam a inclinação por aquela parte da Literatura com a qual eles não têm nenhuma ligação [",] Concluamos, portanto, que os Romances fazem mal às Belas Letras pois eles não poupam nem a História, nem a Ge­ografia, nem a Poesia, nem a Eloqüência; todas as espécies de Literatura com as quais eles têm alguma ligação"~'.

Para Porée, os romances prejudicam a História ao apresentar, com realismo, falsas narrativas sobre o passado, sobre as origens dos povos, sobre o comportamento de imperadores e reis. A mesma falta de preocupação com a verdade prejudicaria a Geografia, pois lendo romances entra-se em contato com lugares fantasiosos apre­sentados como verdadeiros ou com acontecimentos imaginários lo­calizados em lugares reais, criando confusões que levam a suspeitar da Geografia e a acreditar em romances. O censor Francisco Xavier de Oliveira, provavelmente, subscreveria as reflexões de Porée. Mas para o romancista D. Felix Moreno nada disso era problema.

Para fortalecer sua argumentação, cita várias obras de ficção publicadas em Portugal com autorização da censura em que ocor­rem situações tão ou mais fantasiosas que as suas. Ainda que censor e escritor se valham da mesma estratégia, a citação, suas referências culturais situam-se em campos opostos: enquanto o censor e profes­sor régio aciona um conjunto de preceitos e autores clássicos, o es­critor convoca textos de prosa ficcional.

D. Felix Moreno chama para suas hostes a Crônica do Impe­rador Clar;mulldo, de João de Barros; o Pl/Ilte((o Sacro; o episódio bíblico de Esaú e Jacó; a narrativa de D. Ramiro e D. Urraca; assim como a Crônic{{ dos Imperadores Turcos. Comparando as atitudes de seus personagens com as criações de outras obras ficcionais, jus­tifica cada uma das situações em que o censor viu falta de verossimi­lhança e de decoro. Escrevendo na última década do século XVIII,

" PORÉE. Charlcs. /)e U"ris ql/i ntlgll <fiel/li In rollllllll'SSeS

II/"IIIill '/(/"illl. Pari s: H or­delel, 173/i. Tradução fran­cesa "Discours SUl' les Romans". por BARDOU­DUHAMEL. In: 7i"lIilé .\"lIr 111

1II11J/iêre de lire le.\' lIlI/eltrS tlrec

l/Iiliré. Paris: 1751, vol. 3, p. 13, p.21.

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Censura e crítica: reações de um professor de retôrica e poética à leitura de um romance 125

" Vcr VASCONCELOS. Sandra G. T. A jimlli/ftio do mil/til/cc inglês: ensaios teári('os. Tese de Livre-Docência apresentada à Faculdade de Filosofia. Letras e Ciências Humanas da Uni­versidade de São Paulo. São Paulo: 2000.

D. Felix Moreno não recorre a nenhum dos romances modernos em sua defesa, socorrendo-se da prosa de ficção mais antiga, rejeitada, justamente por sua tênue verossimilhança, pelos letrados setecentistas favoráveis aos romances modernos22 •

Ainda que assegure não haver nenhum deslize em qualquer das passagens, o autor não se arrisca e altera seu texto, cedendo às objeções do censor, tentando obter sua aprovação. Mas não sem reclamar e destilar sutis ironias:

"o único mal que resulta da inverossimilitude destas passagens, é dar o leitor uma grande risada dizendo = forte disparate = mas contudo se o sábio censor entende que está errada esta passagem pelas regras que sabe de Geografia, e a Vossa Majestade parecer não dever ficar na forma expressada no meu livro de novelas, eu a emendo como vai consertada no seu lugar à página II e páginJ 37. [ ... ] pareceu-me não ser erro imaginar também um poder absolu­to naquele Imperador dos Turcos visto que seus Vassalos obede­cem a estes cegamente, e ainda mais me pareceu que o mesmo Sultão imaginário podia nomeá-lo por Grão Vizir, por Pachá de Cem Caudas, e até dar-lhe patente de Almirante-mor das Fraga­tas dos Monarcas das quatro partes do Mundo; por que disto o único mal que se originava era fazerem os leitores escárnio da novela dizendo = segundo disparate = contudo eu já tiro daquele posto de Mandante de Fragata ao cristão, eu lhe dou redonda baixa, e o faço Correio extraordinário como se vê em seu lugar a página 57 e página 58".

D. Félix insiste sempre em referir-se a seu trabalho como "li­vro de novelas", chamando atenção para o caráter ficcional de seu escrito, e toma como interlocutor a Rainha D. Maria I para, por seu

intermédio, atingir o censor. Progressivamente, a resposta de D. Felix

vai se tornando mais agressiva e sarcústica, até o momento em que

ele parece se lembrar do que está em jogo - a publ icação do último tomo de sua narrativa -, resgatando, portanto, o registro humilde e submisso do início. Retomando argumento apresentado no início de sua resposta, insiste na inadequação da censura e reafirma a necessi­

dade de que se siga o que determina a lei. O autor reafirma const,lI1-temente a inadequação do parecer de Francisco Xavier, mas não se arrisca e altera todas as passagens referidas pelo censor.

Seguindo os procedimentos dos organismos de censura, a res-

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posta de D. Felix Moreno foi remetida ao censor para que ele final­mente decidisse sobre a viabilidade da publicação da obra. Se, na confecção do "Extracto da Censura" tomava-se o cuidado de retirar passagens provocativas do parecer, não havia, entretanto, a mesma preocupação quando se tratava de apresentar ao censor a resposta preparada pelo autor, o que esquentava os ânimos. Lida a resposta, diz o censor:

"como Vossa Majestade foi servida mandar da minha censura dar vista ao autor, e ele respondesse aos pontos censurados, com aquela altivez, audácia, e presunção bem própria d'um castelhano, vejo­me agora obrigado a sustentar a minha opinião, e a entrar em combate com um antagonista, de mim bem pouco digno, porquanto eu me apliquei ü literatura em aulas regidas por bons mestres, e ele a aprendeu no teatro, tendo por instituidores a D. Pedro Calderon, a Mureto, a Salazar, e a toda corrompida turba de Po­etas Cômicos, que infeccionaram a Espanha nos Reinados dos três Felipes. Entretanto o autor postergando os preceitos da arte, e dirigindo-se pela sua fantasia, extraviada com a lição daqueles entusiastas ro­mancistas, que critica o judicioso Cervantes no escrutínio da Li­vraria de D. Quixote, manda entregar ao braço secular da Ama para serem condenados à pena de fogo, despreza a verossimilhan­ça, como desnecessária nas obras de mera imaginação tais quais as novelas; o que na verdade é um absurdo desmarcado."

A polêmica intensifica-se, pois Francisco Xavier de Oliveira, sentindo questionada sua autoridade e sua avaliação, acrescenta nova camada de tensão no contato com o autor e seu texto. Às restrições à narrati va, acrescenta agora críticas ao comportamento de D. Fel ix, segundo ele, próprio de um castelhano, colocando em cena a antiga riválidade entre portugueses e espanhóis.

Sendo não apenas censor, mas professor régio de retórica e poética, Francisco Xavier reafirma sua autoridade ao declarar sua maior capacidade de julgar uma obra por ter tido sólida instrução formal acerca dos princípios que regem o fazer artístico, enquanto o autor teria aprendido o que sabe nos pátios de comédia. A associa­ção entre romance e comédia era comum na época, por extensão do preceito clássico segundo o qual a comédia tratava de ações ordiná­rias de pessoas comuns. O censor rejeita não apenas a obra dos comediógrafos espanhóis como fonte de erudição, mas também o

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Censura e crítica: reações de UIll professor de retórica e poética à leitura de um romance 127

,; Segundo Horácio, "os poetas desejam ou ser úteis, ou delcitar. ou dizer coisa.~ ao mesmo tcmlxl agradáveis e proveitosas para a vida. [".] Não se distanciem da real idade as ficções que visam ao prazer: não pretcnda a fábula que se creia tudo quanto ela inVt!ntc, nem extraia vivo do estômago da Lâmia um mcnino que ela 'tinha almoçado." HORÁCIO. Arte I'"étim. São Paulo: Editora Cultrix / EDUSP, 1981, pág. 65. Tradução de Jaime Bruna.

conjunto de obras ficcionais referidas por D. Felix, lembrando que estas mesmas obras já haviam sido destinadas ao fogo por Cervantes em D. Quixote.

Mais irritado do que no primeiro parecer, Francisco Xavier firma o propósito de negar cada um dos pontos da resposta do autor. Logo de início desmonta o argumento que sustentava toda a defesa de D. Felix, a idéia de que em uma obra de ficção tudo pode acontecer:

"Porquanto posto que a novela seja uma história fabulosa, com­posta de diversos acontecimentos da vida humana, contudo o seu tim é o mesmo que o da poesia: instruir e deleitar. Ora, é certo que o incrível, o inverossímil não pode instruir, e só poderá deleitar a crianças. que se embasbacam com histórias da Carochinha."

Mantendo-se fiel às suas referências teóricas, Francisco Xavier parafraseia o princípio horaciano, segundo o qual a finalidade da poesia é instruir e deleitar, sendo necessário observar a verossimi­lhança mesmo quando se trata de história fantasiosa23 • Apoiado em Horácio e Dacier, elabora uma detida exposição sobre a necessidade de se respeitarem as unidades de tempo e de lugar, sobre o conceito de verossimilhança, e sobre as relações entre a poesia épica, a nove­la e a História. Mostrando que sabe jogar no terreno do adversário, comenta as diferenças entre romances de cavalaria e novelas gregas citadas pelo autor, enaltecendo as últimas e criticando os primeiros.

Estabelecida sua autoridade para tratar de matérias ficcionais, retoma cada um dos pontos em que viu inadequação ou inverossimilhança, refuta asjustificativas apresentadas por D. Felix Moreno e reafirma suas críticas. Recusados todos os argumentos do autor, reclama do fato de ele ter insinuado que o censor exorbitava suas funções e conclui:

"Entretanto o autor, mordendo o freio obedeceu à rédea e depois de muita bulha, corrigiu os lugares censurados; e ainda que não tivesse esta forçosa condescendência sempre me pareceria justo que Vossa Majestade, pela sua Real Bondade, lhe concedesse a mercê que suplica."

Depois da réplica e da tréplica, finalmente, o Desembargo do Paço autorizou a impressão do sexto e último tomo dos Lances da Ventura que voltou ainda uma vez às mãos de Francisco Xavier de

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Oliveira para que o cotejasse com o original manuscrito. Em 16 de novembro de 1797, um ano depois de sua apresentação aos órgãos de censura, o último tomo do livro pôde, finalmente, correr.

E foi um grande sucesso. Em 1813, o livro já estava na terceira

edição24 e vendia bem tanto em Portugal quanto no Brasil, para onde era seguidamente remetido, conforme atestam os pedidos de autori­zação para envio de livros de Lisboa para o Rio de Janeiro, submeti­dos aos órgãos de censura portugueses25 • Tendo sido enviado, pela primeira vez, em 1796, tornou-se um dos livros mais procurados quando se tratava de ficção, estando entre as 10 obras para as quais se registra maior quantidade de remessas no período colonial.

Sua presença no Brasil é atestada também pelo fato de ter sido anunciado, em 1811, no Catálogo dos livros li venda na casa do livreiro Manuel Amônio da Silva Serva 26 por 4.000 réis. Não se tratava de publicação barata, pois com essa quantia era possível ad­quirir meia dúzia de livros em 8" como a História de Carlos Magno, anunciada no mesmo Catálogo por 640 réis.

O tempo não fez esmorecer o interesse pelo livro que, em 1821,

continuava anunciado, com um preço ainda mais elevado, no Jornal de Anúncios que oferecia os "Lances da Ventura, 6 volumes 6000"27.

Sinal ainda mais evidente da boa aceitação do livro ocorreu quando da publ icação da Peqlle//({ Chresto1llathia portugueza - pefit recueil d'exfraits el/ prose ef en vers de qllelque.\· aufeurs modemes portugais, placés da11s I'ordre d'ulle d{fficulté progressive2X • O li­vro, que seleciona e apresenta trechos dos mais significativos escri­tos portugueses em prosa e em verso, reproduz passagens dos Lan­ces da Ventura, de D. Felix Moreno de Monroy, como parte dos melhores e mais úteis escritos produzidos em língua portuguesa29 •

Qual não deve ter sido o desgosto do censor Francisco Xavier de Oliveira, ainda vivo quando da publicação da Peque/UI Chrest01natlzia porfugueza, ao ver os La/lces da Ventura represen­tando a literatura portuguesa no exterior. Mas talvez ele não tenha se aborrecido, caso pensasse no quanto o sucesso do livro não terá devido à sua própria atuação, já que suas implicantes intervenções forçaram o autor a rever os originais e a alterar diversas passagens.

Seja como for, a experiência não parece ter sido do agrado de D. Felix Moreno de Monroy, que nunca mais arriscou sua pena na escrita de obras ficcionais.

" Cf. exemplar oa British Lihrary (http://www.hl.uk/): Lal/ces da Vel/lura: Acazos d" Desgr"(",,. e Heroisll/os d" Virlude ... Terceira cdição. Lishoa. I X I 3. Consullado CIll

04 de julho de 2004.

" Para Ulll eSludo sohre a circulação oe livros cnlre Porlugal e Brasil. ver ABREU. Márcia. op. cil.

,,, Calálogo oos livros il venda

na casa do livreiro Manuel Anlônio da Silva Serva em I X 11. Disponível elll www. un i camp .hr/ic IIllle mori a. Consullado em 04 de julho de 2004.

" .Iom,,1 de AI/I/ul/eios. Rio de Jancim: Typographia Regia. N" 2. Typographia Real. O'i/Maio de IX2!.

'" Pequel/" Chreslollllllhia "or/uguela - I'elil Recueil d'exlrails el/ "rose el ell l'ers de quelque.ç "uleur.\' II/odeme., "or/lIg"i,I', "1,,cé,l' dal/s rordr/' d'lIl/e diflicllllé "rogressil'l'. Puhlié par P. G. de Massarellos [Pedro Gahe de Massarello,] Halllhourg, chez F. H. Nesller 180l). 8." gr. de XII-2'i I pág.

,,' Inforlllação oferecida por Inocêncio Francisco da Silva (op.cit.l.

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Presence in language or presence achieved against language?

I These preJllises are laid Ollt and arglled in JIlllch greater detail by JIly recent book: I'roducrioll o(l're.\'ellc(,. What Mcaning Cannot Convcy.

Stanford. 2003 (GcrJllan translation lInder the titlc "Dicsseits der Hennenelltik. Die Prodllktion von Praesenz. Frankf1ll1/M. 2(04). Reganling a possible place ofthis rellection on presence in today's philosophical debates, see JIly essay "Diesseits dcs Sinns. Ueber ei ne nelle SehnslIcht nach SlIbst.mtialitaet," in: Merkur 6771678 (2(Xl5), pp.749-760.

Hans Ulrich Gumbrecht (Stanford University)

"From Language to Logic - and Back," the title of Ruediger Bubner's opening lecture for the Hegel Congress 2005 had a structural similarity to the movement that I propose (and have been invited to) to pursue here, I will start out from language and try to reach something that is not language; then I want to return to language from lhat something which is not language. Instead of "Ianguage," however, that which is not language, in my essay, will be what I have

come to call "presence." I will divide the presentation of this simple back and forth

movement into three parts. The first part contains four premises that willlead us from language to presence l : they are the briefest possible explanation of what I resent and criticize within the hermeneutic tradition (a), which critique will make transparent my conceptions of "metaphysics" and 01' a "critique of metaphysics" (b). These notions

will justify Illy use of the word "presence" (c) and the typological distinction that I pro pose to Illake between "presence culture" and "meaning clllture" (d). The second part of Illy brief reflection will trace a way back (or a variety of ways back) from presence to language, by describing six Illodes throllgh which presence can exist in language or, in other words, six modes through which presence and langllage can become amalgamated (the metaphor of "amalgamation" points to a principally difficult, rather than "natu­

ral" relationship between presence and language). These modes are:

language as presence; presence in philological work; language that can trigger aesthetic experience; the language of mystic experience; the openness 01' language toward the worId; and I iterature as epiphany. Tn the third, retrospective part I will ask whether these six types of

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amalgamation between presence and language have led us to a horizon of questions and problems similar to the one that Martin Heidegger tried to address when, in the later stages of his philosophy, he was using, with ever growing insistence, the metaphorical evocation of language as "the house of Being."

1 When my colleagues, the literary critics and literary theorists,

speak of "language," they normally think of something that requires "interpretation," something that invites us to attribute well­circumscribed meanings to words. Like some other literary critics and, I believe, even more philosophers of my generation (among whom Jean-Luc Nancy may be the most outspoken)2, I have grown weary of this intellectual one-way traffic as it has been based on and upheld by a certain, narrow and yet totalizing understanding of hermeneutics. I also have long experienced the absolutism of ali post-linguistic turn varieties ofphilosophy as intellectually limiting, and I have not found much consolation in what I like to characterize as the "Iinguistic existentialism" ofDeconstruction, i.e. the sustained complaint and melancholia (in its endless variations) about the alleged incapacity of language to refer to the things of the world. Should it really be the core function of I iterature, in ali its different forms and tones, to draw its readers' attention, over and again, to the all-too familiar view that language cannot refer, as Paul de Man seemed to c1aim whenever he wrote about the "allegory of reading"?

These are, in hopefully convenient condensation, the main feelings and reasons that made me become part of yet another movement within the Humanities that has a (perhaps even well deserved) reputation of being "worn out." I am referring to the "critique of Western Metaphysics." At least I can claim that the way in which I use the word "metaphysics" is more elementary than and therefore different from its dominant meanings in contemporary philosophy. When I say "metaphysics," I want to activate the word's literal meaning of something "beyond the merely physical." I want to point to an intellectual style (prevailing in the Humanities today) that only allows for one gesture and for one type of operation, and that is the operation of "going beyond" what is regarded to be a "merely physical surface" and of thus finding, "beyond or below the merely physical surface," that which is

'Scc. above ali. his book: Thc Binh (o Prescl/cc. Stanford 1993 (some other contemporary exalllplcs for this tendency are mcntioned and disclIsscd in: Production of Prescncc. pp. 57-64).

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'For a more fully developed version 01' this typology, see: Pmducl;IIIIII/PreSeIlCl', pp. n­X6.

Presenec in languagc or prescnec aehieved against language'! 131

supposed to really matter, i.e. a meaning (which, in order to underline its distance from the surface, is often calIed "profound").

My departure from "metaphycis" in this very sense takes into account and insists on the experience that our relationship to things (and to cultural artifacts in specific) is inevitably never only a relationship of meaning attribution. As long as use the word "things" to refer to what theCartesian tradition calls "res extensae," we also and always live in and are aware of a spatial relationship to these things. Things can be "present" or "absent" to us and if they are "present," they are either closer to or further away from our bodies. By calling them "present," then, in the very original sense of Latin "prae-esse," we are saying that things are "in front" of ourselves and thereby tangible. There are no further implications that I propose to associate with this concept.

Based on the historical observation, however, that certain cultures, like our own "modern" culture for example (whatever we exactly may mean by "modern"), have a greater tendency than other cultures to bracket the dimension ofpresence and its implications, I have come to propose a typology (in the traditional Weberian sense) between "meaning cultures" and "presence cultures." Here are a few of the (inevitably and without any bad conscience "binary") distinctions that I propose to make3• In a meaning culture, firstly, the dominant form of human self-reference wilI always correspond to the basic outline of what western culture calls "subject" and "subjectivity," i.e. it wilI refer to a body-Iess observer who, from a position of eccentricity vis-à-vis the world of things, will attribute meanings to those things. A presence culture, in contrast, will integrate both spiritual and physical existence into its human self­reference (think, as an illustration, of the motif of the "spiritual and bodily resurrection from the dead" in medieval Christianity). It follows from this initial distinction that, secondly, in a presence culture humans consider themselves to be part of the world of objects, instead of being ontologically separated from it (this may have been the view that Heidegger wanted to recover with "being­in-the-world" as one of his key-concepts in "Being and Time"). Thirdly and on a higher leveI of complexity, human existence, in a meaning culture, unfolds and realizes itself in constant and ongoing attempts at transforming the world ("actions") that are based on the interpretation of things and on the projection of human desires into

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the future. This drive toward change and transformation is absent from presence cultures where humans just want to inscribe their behavior into what they consider to be structures and rules of a given cosmology (what we call "rituais" are frames for such attempts to correspond to cosmological fnllnes).

I will abandon this typology here for I trust that it has fulfilled the function that I have assigned to it within the larger context of my argument: I wanted to illustrate that, on the one hand, language in meaning cultures does co ver ali those functions that modern philosophy of European descent is presupposing and talking about. On the other hand, it is much less obvious what roles language can play in presence cultures (01' in a world seen from a presence-culture perspective). The six types of "amalgamations" between language and presence that I want to refer to in the second section of my text, are intended to present a multifaceted answer to this very questiono

2 The first paradigm is la1lguage, ahove ali spokenlanguage, as

a physical reality and it highlights the aspect in relation to which Hans Georg Gadamer spoke of the "volume" of language, in distinction from its propositional or apophantic contenr'. As a physical reality, spoken language does not only touch and affect our acoustic sense but our bodies in their entirety. We thus perceive language, in the least invasive way, i.e. quite literally, as the light touch of sound on our skin, even if we cannot understand what its words are supposed to mean. Such perceptions can well be pleasant and even desirable­and in this sense we ali know how one can grasp certain qualities of poetry in a recitation, without knowing the language that is being used. As soon as the physical reality of language has a form, a form that needs to be achieved against its status of being a time object in the sense proper ("ein Zeitobjekt im eigentlichen Sinn," according to Husserl 's termi nology), we wi 11 say that it has a "rhythm" - a rhythm that we can feel and identify independently of the meaning that language "carries"5. Language as a physical reality that has form, i.e. rhythmic language, wi 11 fulfi 11 a number of specific functions. It can coordinate the movements of individual bodies; it can support the performance of our memory (think of those rhymes through which we used to learn some basic rules of Latin grammar); and by supposedly lowering the leveI of our alertness, it can have (as

" HlIlIS GCllrg C"d"lIIer: H e rllle 11 (' 11 / i k. A es / lIe / i k. Prok/isclIe PlIi/II.l"llfllIie (ediled by Carsten Dull). 3. Autlagc. Heidelbcrg 2000. p. 63.

'This desniplion is buscd on my essay: "Rhylhm and Me;ming." in: H.U.G I K. Ludwig Pfeiffer (cds.) M"/eri,,/i/i,,.' IIr COIIIIl/lIl/ic,,/ioll. Slunford 1994. pp. 170-186 (original Gcrman version in: M"/eri,,/i/,,e/ der KO/I/II/Wlik,,/iol/. Fmnkfurt/M. 1988. pp. 714-729).

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"See my analysis 01" some old high German channs ('·Th.: Charm of Channs") in: David Wellbcry a.o. (eds.): ;\ Ne\l" Hislo/)' of' Gemllll/ Lilertllllrl'. Camblidge. Mass 2004. pp. I X3-191.

7 The Pmrers of' Phi/%gy. Dynamics ofTexlual Scholarship. Urbana and Chicago 2003 (German translalion lInder lhe lilk "Die MocM der P/Ji/II/ogil'. Ucbereinen verbol',;cnen hnpuls im wissenschaftlichen U mgang mil Texten," Frankfurt/M. 2003).

Prescnce in languagc OI' prescnce achicvcd against languagc? 133

Nietzsche said) an "intoxicating" effect. Certain presence cultures even attribute an incantatory function to rhythmic language, i.e. the capacity of making absent things present and present things absent (this indeed was the expectation associated with medieval charms6 ).

A second, very different type of amalgamation between presence and language lies in the basic practices of philology (in their original function as text curatorship). In a short recent book7, I have argued that - much counter to the traditional image of the philologist - his activities are preconsciously driven by very primary desires that we can describe as desires for (full) presence (and I understand that a desire for "full presence" is a desire without the possibility of fulfillment - which precisely makes it a desire from a Lacanian point of view). Collecting textual fragments, in this sense, would presuppose a deeply repressed wish of, quite literally, eating what remains of ancient papyri or medieval manuscripts. A wish to incorporate the texts in question (to play them like an actor) might underlie the passion of producing historical editions (in ali of their different philological styles) - think of an act as basic as "sounding out" a Goethe poem and discovering that it will only rhyme if you pronounce it with a (more than slight) Frankfurt accent. As they "fill up" the margins of hand-written and printed pages, erudite commentaries, finally, may relate to a physical wish for plenitude and exuberance. It would probably be very difficult (if not impossible) to disentangle, in ali detail, such cases of intertwinedness between presence-drives and scholarly ambitions. But what matters to me, in this context, is the intuition that they do converge, much more than we normally imagine, in many forms ofphilological work.

If you follow, as I tend to do, at least regarding present-day western culture, Niklas Luhmann 's suggestion for a characterization of aesthetic experience (Luhmann, within the parameters of his philosophy, tried to describe what was specific about "communication" within the "art system" as a social system), then ally kind (~llanguage fhat is capable Df triggering aesthetic experience will appear as a third case of the amalgamation between

presence and language. Communication in the art system, for Luhmann, is the one form of communication within which (purely sensual) perception is not only a presupposition but a content carried, together with meaning, by language. This description corresponds to an experience of poems (or of literary prose rhythms) as drawing

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our attention to those physical aspects of language (and theirpossible forms) that we otherwise tend to bracket. Counter to a long prevailing (and still dominating) opinion in literary studies, however, I do not believe that the different dimensions of poetic form (i.e. rhythm, rhyme, stanzas etc.) function in ways that subordinate them to the dimension of meaning (for example, as the so-called "theory of poetic overdetermination" suggests, by giving stronger contours to complex semantic configurations). Rather, I see poetic forms engaging in an oscillation with meaning, in the sense that a reader / listener of poetry can neveI' pay full attention to both sides. This, I think, is the reason why a cultural prescription in Argentina excludes the dancing of a tango whenever the tango has Iyrics. For the choreography of tango as a dance, with its asymmetry between male and female steps, against which harmony needs to be achieved at every moment, the choreography of tango is so demanding that it requires full attention for the music - which state would be inevitably reduced by the interferenceof a text that would divert part of this attention.

Mystical experience and tlle lallguage ofmysticism is my fourth paradigm. By constantly referring to its own incapacity of rendering the intense presence of the divine, mystical language produces the paradoxical effect of stimulating imaginations that seem to make this very presence palpable. In the description of heI' visions, Santa Tere­sa de Avila, for example, uses highly erotic images under the permanent condition of an "as if." The encounter with Jesus, foi' her, is "as if being penetrated by a sword," and at the same time she feels "as if an angel was emerging from heI' body." Rather than taking these forms of expressionliterally, however, literally as the description of something, i.e. of a mystical experience that truly exceeds the limits of languuge, u both secular and analytic view will understand mystical experience itself as an effect of language and of its inherent powers of self-persuasion.

Yet another mode of amalgamation can be described as language being opell toward tlle world of things. It includes texts that switch from the semiotic paradigm of representation to a deictic attitude where words are experienced as pointing to things, rather than standing "for them." Nouns then tum into names because they seem to skip the always totalizing dimension of concepts and become individually attached, temporarily at least, with individual objects. Francis Ponge's thing-poems use and cultivate this potential of language. I recently had a similar impression when I was reading

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'Erwin Schroedingcr: Autobiographical Sketchcs. In: Wlwt i,l' Lili,? Cambridge 1992, pp.165-187.

'I Karl Hcinz Bohrcr: Ploediclikeil. Zum Augcnblick dcs aesthctischcn Schcins. Frankfurt/M. 1981. and: [)er Ab.l'cliied. Thcoric der Traucr. Frankfurt/M. 1996.

Presence in languagc or prcscncc achicved against language'! 135

an autobiographical sketch by the great physicist Erwin Schroedingd' whose obsession with descriptive preciseness seems to have rejected the effect of abstraction that is inherent to ali concepts. Nouns therefore seem attached to individual objects in Schroedinger's text and thus begin to function like names, producing a textual impression that is strangely remindful of medieval charms. In a different way, certain passages in Louis-Ferdinand Céline's noveIs seem to be specifically open to the world of objects. There, the rhythm of the prose copies the rhythm of movements or of events to be evoked and thus establishes an analogic relationship to these movements and events that also bypasses the digital principIe of representation. If texts like Ponge's poems 01'

Schroedinger's autobiographical sketch seem to reach towards things in space, Céline's texts appear open to be affected by and resonate with things.

Finally, whoever is familiar with the 20th century tradition of High Modernity knows the claim, central above ali for the work of James Joyce, that literature can be the place (~l epiphany (a more skeptical description, would once again rather speak ofthe capacity of I iterature to produce "effects of epiphany"). In its theological use, the concept of epiphany refers to the appearance of a thing, of a thing that requires space, a thing that is either absent OI' present. For a conception of language that concentrates exclusively on the dimension of meaning, epiphanies, in this very literal sense, and texts must be separated by a relation of heteronomy. But if we take into account, as I have suggested throughout this series of examples, the phenomenology of language as a physical reality and, with it, the incantatory potential of language, then a convergence between literature and epiphany seems to be much less outlandish. To concede that such moments of epiphany do occur but do so under the specific temporal conditions that Karl Heinz Bohrer has characterized as those of "suddenness" and "i rreversi ble departure" lJ, may be a contemporary way of mediating between our desirc for epiphanies and a modern skepticism that this desire

cannot completely outdo.

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3 Passing through six modes of amalgamation between language

and presence, we have covered the distance between two extremes that the title of my essay tries to pinpoint. We started out by drawing attention to the always given but, within modern culture, systematically overlooked or even bracketed physical presence of language, and we have arrived at the c1aim that language can produce epiphanies, which c1aim evokes an exceptional situation and achievement that has to be wrested, so to speak, from and even against the grain of the normal functioning of language. Certainly, in the growing complexity of our different paradigms, the di fferent relations between language and presence do not obey the structural model of the "metaphysical" two-Ievelledness that distinguishes between "material surface" and "semantic depth," between "negligeable foreground" and "meaningful background," But what could then be an alternative model that allows us to think through the rather tense than harmonious oscillations between language and presence in their variety?

Given that I believe in a convergence between Heidegger's concept of "Being" and the notion of "presence" that I have been using here 'o, I do indeed see a promise in his description of "Ianguage as the house of Being," a promise, however, whose redemption may well end up departing from what Heidegger meant to mean with these words. There are four aspects of his metaphor that I am specifically interested in. Counter to its current understanding, I want to highlight, in the first place, that a house makes more often invisible than visible those who live in it. In this very sense, language is not so much a "window," not the expression of the presence with which it can be intertwined. Neveltheless and secondly, we take a house to be the promise (if not the guarantee) for the c10seness of those who are inhabiting it. Think, forexample, ofthe language ofmysticism. It may not make the divine fully present and it is celtainly not an expression of the divine. But in reading mystical texts some of us feel that they are approaching the divine. What I thirdly and above ali appreciate about the metaphorof"language as the house ofBeing" is its spatial denotation. Different from the c1assical hermeneutic paradigm of "expression" I I and its standard implication that whatever will be expressed has to be purely spiritual, seeing language as "the house of Being" (or as the house ofpresence) makes us imagine that which inhabits the house as having "volume" and thereby sharing the ontological status of things.

111 &'1: Pmdllctio/l o/Presencl'. pp. 65-78.

II See lhe outlines for a hislory of Ihis paradigm in my essay "Ausdruck." In: Karlheinz Barck a .. o. (cds.): Aesthetische Grlll/{l!Je~ri{re. Vol. I. Stuttgal1 2000. pp. 416-431.

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"For such resonanting voiccs. see lhe 2005 special issuc 01' lhe magazine "Merkur," dedicalcd . lo ncw inlelleclual quesls for Realily.

"For more delailed descliplions focusing on lhe exislenlial effecls of new communicalion lechnologies. see lIly essay "GalOrs in lhe Bayoo. Whal we Have Im in Di.9.:nclImu!nlT Fonhcoming in: Joshua Landy I Michael Saler (eds.): The Re· EI/t'lllIl/lmel/l (~,. lhe IVorld: Senl/a/" Magic ;/1 a Ral;/IIwl Age. Berkeley 2006.

Presence in langllagc or prcscnce achieved against langllage'? 137

This does not imply, however, that I llnderstand Heidegger's concept of "Being" as a - perhaps slightly embarrassed - retllrn of the "Ding an sich." Rather, I hold that the concept of "Being" points to a relationship between things and "Dasein" in which "Dasein" does no longer conceive of itself as eccentric, as ontologically separated from the things and their dimensiono Instead of cutting off our rapport to the things, as the "Iinguistic turn" had proposed us to do, "Ianguage as the house of Being," language in its multiple tension­filled convergences with presence, would then be, finally, a medi um in and through which we can hope for a reconciliation between "Dasein" and the objects of the world.

Is it realistic at ali (or simply iIIusionary) to assume that such a reconciliation between "Dasein" and objects might ever occur? I do not feel confident enough to try and answer this questiono But it is worth for me to think about the fact that, in the contemporary cultural situation, I am far from being the only intellectual who asks such a question 12, a question that, only a few years ago, must have looked so utterly mllve that nobody dared to ask it. Now, longing to recuperate an existential c10seness to the dimension ofthings, may well be a reaction to our contemporary everyday. More than ever before, it has tumed into an everyday of only viltual realities, into an everyday where modem communication technologies have given us omnipresence and have thus eliminated space from ourexistence, into an everyday where the real presence of the world has shrunk into a presence on the screen -ofwhich development the new wave of"reality shows" is but the most tautological and hyperbolically helpless symptom13,

For those among us who hold the positions of the Iinguistic tum to be an ultimate philosophical wisdom, this desire for the presence of the world must appear to be a desire against better philosophical insight. But the lack of belief in the possibility for a desire to be fulfilled, does of course not imply that it will necessarily disappear sooner OI' later (and even less does it imply that such a desire is pointless). What could then be a viable relation to language for those who find implausible what I believe, namely that language may become (again?) the medi um of reconciliation with the things of the world? The answer is that they may still use language to point to and even to praise those forms of experience that keep alive our desire for presence. Which of course suggests that it is better to suffer from an unfulfilled desire that to lose desire altogether.

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Literatura comparada como forma: escrita e pensamento em Adorno1

I Devo um agradecimento especial a Thomaz Pereira de Amorim Neto, pela revisão e localização das citaçõcs: sem seu auxílio este ensaio não teria sido concluído. Este ensaio foi escrito sob os auspícios de uma "Bolsa de Pesquisa". concedida pela Fundação Alexander von Humboldt, junto à Freie Universitiit, em Bedim. Agmdeço também ao Professor Joachim Küpper pelo apoio institucional.

1 Para uma apresentação deste modelo, remeto o leitor ao texto de José Luís Jobim "A lcitur.l e a produção textual: lima visão histórica". In: A jJoélim do li/lu/lI-IIIell/o. Niteníi: EDUFF, 1996, p. 13-27.

Um Problema

João Cezar de Castro Rocha (UERJ)

Em ensaio programático, David Palumbo-Liu recordou um caso curioso que pode servir de advertência aos estudos de literatu­ra comparada. Após prestar os últimos exames de doutoramento, necessitando portanto "apenas" escrever a própria tese, uma estu­dante resolveu buscar inspiração no bucólico campus da Universi­dade da Califórnia, em Berkeley. Decidiu subir ao famoso campaná­rio da universidade, talvez com o propósito de descobrir novos ân­gulos para seu trabalho. O ascensorista, possivelmente impressiona­do pela desorientação da estudante, pensou em elevar seu ânimo, perguntando com simpatia: " 'De que exames você está saindo?' Ela respondeu: 'Literatura Comparada'. Após uma breve pausa, ele co­mentou: 'Literatura Comparada, hein? Por que se incomodar? Todo mundo sabe que são diferentes' ". (PALUMBO-LIU, 1995, p. 48.)

O ascensorista talvez tivesse alguma razão, mas nem sempre foi assim. A leitura dos textos que constituem o que denominamos "arte poética" demonstra que o desenvolvimento do método com­parativo não se incluía nas preocupações dos preceptistas clássicos. Afinal, uma vez que pensavam conhecer os procedimentos adequa­dos, a atividade relevante não podia ser a comparação, porém, o julgamento do emprego apropriado de modelos prévios2• Por isso, "os antigos nUl)ea conceberam esta relatividade de toda literatura [pois] esta foi, antes de tudo, aos seus olhos, a expressão das idéias mais gerais, mais permanentes". (TEXTE, 1994, p. 28) Em conse­qüência, a noção de diferença nunca assumiu o papel de protagonis-

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ta em seu teatro de representações. Por efeito de contraste, e para tornar meu argumento mais claro, recordo a seguinte definição do método comparativo: Illd({erellça ti d({erellça que, 110 entanto, éjim­damentaP. O ato comparativo supõe o pleno reconhecimento da diferença, tornando a própria comparação possível. Porém, se a di­ferença atingir proporções que inviabilizem a busca de um denomi­nador comum, então, não apenas a comparação torna-se imprová­vel, mas a própria base comunicativa é ameaçada. Nesse caso, ocor­reria um esgarçamento radical entre sistemas de referência, cujo re­sultado último conduz à surdez recíproca. Portanto, caminhar no fio da navalha entre o próprio e o alheio caracteriza o vigor e, ao mes­mo tempo, o desafio da disciplina literatura comparada. Leo Spitzer definiu esse movimento com rara felicidade, e, embora buscasse de­finir o método filológico da romanística alemã, suas palavras estimu­lam a noção que proponho de "literatura comparada como forma":

"Na comparação filológica, está encarnado um constante trazer do distante para perto e um constante levar do perto para longe. ( ... ) O filólogo alemão, que analisa a cultura francesa, deve poder se apropriar desse francês quase ao ponto de as fronteiras nacio­nais desaparecerem. Ao mesmo tempo, o alemão que procura pe­netrar a cultura alemã deve poder manter uma distância quanto ao objeto estudado, quase como se fosse um estrangeiro - a últi­ma meta é muito mais difícil e rara." (SPITZER, 1997, p. 23)

Essa complexa tarefa tornou-se ainda mais difícil na situação atual dos estudos literários, pois, na ausência de uma base teórica capaz de subsumir o particular a níveis mais gerais de abstração, a diferença, valorizada em si mesma, pode inviabilizar o próprio ato comparativo. O desafio epistemológico implicado pelos estudos cul­turais reside precisamente na valorização substancialista da diferen­ça. Gayatri Spivak identificou o problema. Logo após propor que "identidade é uma palavra muito diferente de essência" (SPIVAK, 1993, p. 4), reconheceu com coragem: "tenho, desde então, reavaliado meu apelo por um uso estratégico do essencialismo. Numa cultura personalista, mesmo no seio dos humanistas, que em geral são espe­cialistas no uso da palavra, é a idéia de estratégia que tem sido es­quecida" (IDEM, p. 5). Portanto, como um primeiro passo, e desde um ponto de vista antes político do que acadêmico, determinadas minorias empregaram com (legítimo) proveito argumentos potenci-

\ Esta fórmula foi OIiginahncntc proposta por David Palulllbo­Liu,"Termos da (in)difercnça: cosmopolitismo. política cultu­ral e o futuro dos estudos dc lite­ratura", In: Cadcmo.\' da Pá.\' / VER.!. 14. 1995. p, 46-62,

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" Preocupação recentemente ex pressa por Tania Franco Carvalhal: "En revanche. en cherchant parfois à écal1cr la lilléralUre, 11 interroger sa place parmi Ics pratiquessymboliqucs et culturelles et à minimiser sa fonction esthétique, les Études culturelles s'éloignent du comparatisme qui présuppose toujours que la lillératun: reste un des tennes de la comparaison". Carvalhal. Tania FI~lIlco: "Vingt­cinq ans de clitique lilléraire au Brésil". Ellmpe. Liflémlllr" t/II /Jrésil. Paris: 2005, 919-920. p. 121.

, Na formulação forte de Adorno: "Se falo da educação após Auschwitz, tenho em mente dois aspectos: primeiro, a edu­cação infantil, sobretudo na primeira infância; depois, o esclarecimento geral. criando um clima espiritual. cultural e social que não dê margem a uma repetição; um clima, portanto, em que os motivos que levaram ao horror se tornem conscientes. na medida do possível". Theodor W. Adorno. "Educação após Auschwitz". Theodo/' At/orno. Organização de Gabriel Cohn. Rio de Janeiro; Ática, 19X6, p. 35-36.

Literatura comparada como forma: escrita e pensamento em Adorno 141

almente essencialistas. Contudo, a médio prazo, tal posição pode transformar o próprio trabalho teórico e analítico em simples apên­dice de interesses institucionais. Como evitar esse constrangimento, preservando a importância do conceito de diferença4 ? Neste texto, proponho uma primeira resposta a essa pergunta através da forma do ensaio, tal como privilegiada por Theodor W. Adorno. Por isso, devo discutir a concepção adorniana do mundo contemporâneo, administrado pela razão instrumental. Busco, assim, relacionar a es­colha do ensaio como forma e os estudos de literatura comparada. Tal escolha exige ainda uma análise do fragmento, como forma de expressão do pensamento adorniano. De imediato, no entanto, re­cordo a crítica de Adorno e Horkheimer à "civilização ocidental", a fim de traçar um paralelo entre suas preocupações e os estudos de literatura comparada.

Alternativas

Publicado pela primeira vez em 1947, escrito em parceria com Max Horkheimer, durante sua permanência nos Estados Unidos, Dialética do Esclarecimento enseja uma leitura contrastiva com dois livros igualmente clássicos. Em 1946, Erich Auerbach publicou sua obra mais importate, Münesis - A representaçüo da realidade na literatura ocidental. Dois anos depois, Ernst Robert Curtius lançou Literatura Européia e Idade Média Latina. Embora motivados por projetos diversos, os dois livros, rapidamente transformados em manuais universitários, procuravam enfrentar os problemas discuti­dos por Adorno e Horkheimer. A bem da verdade, problemas perfei­tamente sintetizados em ensaio posterior de Adorno, "Educação após Auschwitz"5.

Não obstante a improbabilidade do êxito, Auerbach buscava resgatar uma forma de realismo capaz de reconciliar as palavras e as coisas. No entanto, o parágrafo final da obra revelava o incerto da tarefa: "Queira a minha pesquisa alcançar seus leitores; tanto os meus amigos de outrora como também todos os outros, aos quais se des­tina; e que contribua para reunir aqueles que conservaram serena­mente o amor por nossa história ocidental" (AUERBACH, 1976, p. 502, destaques meus). O tom indeterminado da prosa e a evocação da "serenidade" expõem a dúvida do autor no tocante à viabilidade

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da empresa. É verdade que Auerbach sequer poderia conceber a ve­emência da crítica de Adorno e Horkheimer, mas o caráter particular de sua narrativa pode ser mais bem apreciado quando comparado com o tom assertivo do relato de Curtius.

Literatura Européia e Idade Média Latina foi contemporaneamente recebido como uma promessa. A reconstru­ção de temas e de procedimentos através dos séculos projetava uma inesperada ponte, como se a erudição alemã pudesse negligenciar a experiência nazista. A presença de tropos metahistóricos, localiza­dos no passado distante, autorizava a fé no futuro próximo. Nas palavras diretas do autor:

"Meu livro não é o resultado de objetivos meramente científicos, mas da preocupação relativa ü preservação da cultura ocidental. Ele busca elucidar, com métodos novos, o conjunto dessa tradi­ção, no espaço e no tempo. Faz-necessário (e tornou-se possível) demonstrar esse conjunto dentro do ClIOS intelectual do presen­te." (CURTIUS, 1996, p. 27, destaques meus.)

Durante os anos do período nazista, Curtius concentrou-se nos estudos medievais, desenvolvendo uma inteligente estratégia. De um lado, pessoal: o tópico possibilitava afastar-se dos estudos apologéticos desenvolvidos pelos acadêmicos favoráveis ao regi­me. De outro lado, intelectual: a ampliação histórica permitia cons­truir uma unidade mais poderosa do que a divergência representa­da pelos dois conflitos mundiais6 • Para além de circunstâncias par­ticulares, destaca-se um problema comum e, ao menos, duas abor­dagens distintas. O problema refere-se à possibilidade de pensar o sentido da cultura ocidental, especialmente após a experiência do nazismo. As respostas de Auerbach e Curtius supõem uma narrati­va capaz de conjurar a incerteza do futuro pela análise do passado, valorizando a continuidade em lugar da ruptura7 . Vale, porém, su­blinhar a diferença da análise de Auerbach. Recorde-se, por exem­plo, a incerteza que atravessa o Mil11esis; aspecto aliás que não é suficientemente reconhecido. Ora, capítulo a capítulo do livro, o realismo, por assim dizer, nunca se realiza plenamente. O realismo, portanto, não é uma premissa (l priori, mas uma promessa - que nunca se cumpre, vale repetir. O livro poderia ter um novo subtítu­lo: Mimesis - A (incompletude na) representaçüo da realidade na

" Em relação à opção de ClIIlius. ver MichaeI KowaI. OOlntnxluction". EI·.wys 1111 EUHlI'el/1/ Utemlllre.

Emst Roocll CLulius. especial­/Ilente p. xvi-vii.

7 Para U/Il exame inovador desse momento histólico. recomendo os estudos biográficos de Hans UhichGumhrecht. VOII/ Lehcl/ ul/d Sterhel/ der ~ropel/

ROlI/al/i.l·tel/. Car! Vossler. Emsf Rohert CUrtiU.I·, LeI!

Sl'if!.er. EriclJ AuerhaclJ, Wemer Krauss. Munich: Carl Hanser Verlag. 2002.

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N No momento, preparo um longo ensaio dedicado somente a esta hipótese de leitura da obra de Erich Auerbach,

" Santos Dumont, nesse con­texto, desabafou: "( ... ) meu coração ( ... l, hájá quatro anos, sofre com as notícias da mor­tandade terrível causada, na Europa. pela aeronáutica. Nós, os fundadores da locomoção aérea no fim do século passado, tínhamos sonhado um futuroso caminho de glória pacífica para esta filha dos nossos devaneios. ( ... ) prevíamos que os aero­nautas poderiam, talvez. servir de esclarecedores para os Estados Maiores dos Exércitos. nunca, porém, nos veio it idéia que eles pudessem desem­penhar funções destruidorJS noscoml:xtcs. Santos DUlllont". O que eu vi. O que luís retell/o.\". Rio de Janeiro: Tribunal de Contas do Estado da Guana­bara, 1973. P. 16.

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literatura ocidentalx. Em relação a meu argumento, poder-se-ia si­tuar a certeza de Curtius no extremo oposto à crítica de Adorno e Horkheimer; a posição intermedária sendo ocupada pela "serenidade" de Auerbach. Em palavras que, por efeito de contraste, conduzirão à acidez da Dialética do Esclarecimento, Curtius explicitou o impulso totalizante de sua abordagem:

"Graças às fotografias aéreas, a arqueologia atual tem feito des­cobertas surpreendentes. ( ... ) Uma analogia incontestável com esse método é a técnica que aplico neste livro com relação à pesquisa literária. Ao empreender a tentativa de captar numa visão dois séculos ou dois séculos e meio da literatura ocidental, fazem-se descobertas que seriam impossíveis a pattir da agulha de um cam­panário." (CURTIUS, 1996, p. 28)

Ainda que fosse o campanário de Berkeley, bem entendido. A referência à fotografia aérea importa como uma metáfora de inespe­rado alcance. Tal vez nenhum invento tenha expresso com força com­parável à imagem-síntese do avião os dilemas enfrentados por Ador­no e Horkheimer. A princípio, visto como promessa de uma concili­ação (literalmente) acima de divergências particulares, o emprego sistemático da aviação desde a Primeira Guerra Mundial decretou o colapso dessa concepção ingênua, em que avanço tecnológico ne­cessariamente significa "progresso"9. Adorno e Horkheimer opõem­se radicalmente a essa visão. Para o interesse deste ensaio, destaco as implicações da divergência na expressão de seu pensamento. Va­lorizo, pois, a seguinte associação, que conduz à forma da escrita da

Dialética do Esclarecimento (exemplarmente distinta da ambição de Curtius):

"Embora ti véssemos observado há muitos anos que, na atividade científica moderna, o preço das grandes invenções é a ruína pro­gressiva da cultura teórica, acreditávamos de qualquer modo que podíamos nos dedicar a ela na medida em que fosse possívellimi­tar nosso desempenho à crítica ou ao desenvolvimento de temáticas especializadas. ( ... ) Osfragmentos que aqui reunimos mostram, contudo, que tivemos de abandonar aquela confiança." (ADOR­NO e HORKHEIMER, 1985, p. 11, destaques meus.)

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Dialética do Esclarecimento

Em alguma medida, o projeto de Adorno e Horkheimer per­maneceu próximo ao ânimo que motivou Auerbach e Curtius. No caso, a pesquisa de uma base (ou sua ausência) para refletir sobre a cultura ocidental após a experiência das duas guerras mundiais. A bem da verdade, motivo que animou inúmeras produções na época. No entanto, as divergências entre os resultados não poderiam ser

maiores. Por exemplo, em 1947, ao receber o prêmio Goethe, Karl

Jaspers tocou o dedo na ferida. No discurso de agradecimento, "ques­tionou, com delicadeza, a validade da harmônica visão de mundo goetheana (00') como um guia para a Alemanha na época da recons­trução" (Apud KOWAL, 1973, p. xx). A resposta de Curtius foi ime­diata. Numa série de três artigos - "Goethe como crítico" (1948); "Aspectos fundamentais do mundo de Goethe" (1949); "Goethe como administrador" (1951) -, o romanista procurou demonstrar sua pertinência para o cenário contemporâneo Vale a pena destacar uma passagem, extraída do segundo ensaio: "O olhar de Goethe apreen­de a totalidade da natureza e do espírito; e quando traduz sua visão em palavras, consegue transmitir um brilho especial para o objeto. Ao ser refletido no espírito de Goethe, o mundo participa de um ato de transfiguração. O mundo é purificado e elevado" (CURTIUS, 1973, p. 73-74). Ao que tudo indica, Curtius nunca deixou de confi­ar na força alquímica do olhar goetheano, que, apesar do horror nazista, deveria realizar a improvável metamorfose do desencanto em esperança, a fim de preservar o ideal da Weltliteratur.

Aliás, em seu característico estilo, Auerbach reagiu à polêmica quando o debate não estava mais no calor da hora, embora permane­cesse na ordem do dia. No ensaio "Philologie der Weltliteratur", re­conheceu que a concepção goetheana não resistiu à própria difusão, na qual o caráter eurocêntrico do conceito (e não apenas europeu) necessariamente teria vindo à luz pelo previsível efeito de contraste com outras tradições. Nesse contexto, deve-se sublinhar a sutileza do título do ensaio. Na tradução de Marie e Edward Said, lê-se "Philology llnd Weltliteratur". Trata-se de equívoco sintomático: a tradução deveria ser "Filologia da Weltliteratur". Afinal, segundo

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Auerbach, a tarefa do filólogo consiste em encontrar a síntese do conceito de "homem", mas a partir de sua multiplicidade, historica­mente determinada. O filólogo recorre aos vestígios da presença deste "homem do mundo", tal como foi registrado nas obras de "homens em seus mundos". Portanto, e principiando na superfície dos textos, o filólogo reconstrói o elo perdido entre a particularidade da posição de "homens em seu mundos" e a promessa da unidade sintética da "Humanidade". Em outras palavras, o filólogo situa-se a meio cami­nho entre o que já mio é mais e o que nüo é ainda, recordando o movimento do próprio e do alheio, tal como definido por Leo Spitzer.

O título do ensaio, portanto, revela a refinada compreensão de Auerbach, tanto da potência do conceito quanto de sua impossibili­dade no mundo do pós-guerra. A rigor, o trabalho do filólogo prin­cipia no momento em que o fenômeno estudado deixou de ser "na­turalmente" contemporâneo, constituindo terra estrangeira, embora se localize no âmbito do presente. Daí, em si mesmo, o simples título contém o ensaio todo, denunciando que a Weltliteratur já se tornou o passado da cultura. No capítulo final de Mimesis, aliás, Auerbach intuiu um processo, cuja formulação definitiva se encontra no en­saio: os efeitos culturais da padronização em escala planetária - a imagem de um cotidiano danificado, para recordar a expressão de Adorno. Nas palavras de Auerbach, mesmo os eventuais leitores de Mimesi.\', "são em número reduzido, e provavelmente não viverão para ver senão os primeiros indícios da uniformização da simplifica­ção que se anuncia" (AUERBACH, 1976, p. 498). Como se fosse o Brás Cubas dos estudos literários, Auerbach talvez não esperasse mais do que cinco leitores capazes de acompanhar as sutilezas filológicas de suas análises. Tal processo de padronização inviabiliza o caráter prospectivo do conceito goetheano, pois, em lugar de pri­vilegiar a multiplicidade como ponto de partida para o estabeleci­mento de valores universais, exige uma noção diluída de universali­dade. Nesse cenário, diferença alguma parece possível, mesmo a diferença mais banal, já que os opostos são igualados como merca­dorias em potencial. Por fim, Auerbach explicitou o verdadeiro limi­

te do conceito goetheano: sua adesão irrefletida aos valores da cul­tura ocidental. We/tliteratur, portanto, talvez merecesse uma tradu­ção distinta. Em lugar de "literatura do mundo", parece sugerir "li­teratura do lIlundo europeu". Circunstância que ilumina a agudeza da observação: num mundo globalizado, "a noção de Weltliteratur

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realizar-se-ia e, ao mesmo tempo, seria destruída" (AUERBACH, 1969, p. 3).

Por sua vez, Adorno e Horkheimer afastaram-se de qualquer ilusão no tocante a um (desejável) rejuvenescimento de princípios goetheanos! "O que está em questão não é a cultura corno valor, corno pensam os críticos da civilização Huxley, Jaspers, Ortega y Gasset e outros" (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 15). Pelo contrário, a tarefa empreendida em Dialética do Esclllrecimellto re­presentava o primeiro passo de "um trabalho futuro. A maioria deles refere-se a urna antropologia dialética" (IDEM, p. 17). É importante associar essa antropologia à forma do ensaio, o que supõe a crítica de um conceito fundamental - terna da próxima seção.

o Trabalho do Conceito

No capítulo de abertura do livro, "O conceito de Esclareci­mento", urna categoria central emerge: a do próprio conceito. Em princípio, o trabalho do conceito realiza urna necessária operação de traduzibilidade. A característica apresentada corno defi n idora da so­ciedade burguesa - "Ela torna o heterogêneo comparável, reduzin­do-o a grandezas abstratas" (IDEM, p. 23) - define a operação implicada na atividade conceitual. Tal atividade aproxima o distante, mediante urna forma especial de presentificação. O conceito permite que operações concretas tenham corno base princípios abstratos. Recorde-se o escopo antropológico da análise, que associa tarefas tão distantes quanto a troca de produtos por determinada conven­ção monetária e o trabalho do filósofo em busca de representações unitárias de fenômenos múltiplos. Em ambos os casos, cria-se urna espécie de língua franca, através da qual o diálogo refere o que de outro modo permaneceria inapreensível. A seguinte passagem é tes­temunha da dimensão histórica do processo: "As cosmologias pré­socráticas fixam o instante da transição. O úmido, o indiviso, o ar, o fogo, aí citados corno matéria primordial da natureza, são apenas sedimentos racionalizados da intuição mítica" (IDEM, p. 21).

Portanto, na redução de hipóteses diversas a elementos espe­cíficos, ou, de modo mais preciso, a um único elemento propulsor, a operação definidora do conceito já se encontrava em ação. Ora, tra­ta-se de operação indispensável. Max Weber defendeu o mesmo

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raciocí no: "O entusiasmo apaixonado de Platão em A República deve, em última anúlise, ser explicado pelo fato de que pela primeira vez o conceito, um dos grandes instrumentos de todo o conhecimento ci­entífico, foi conscientemente descoberto" (WEBER, 1979, p. 167). Uma leitura apressada, logo, insuficiente, surpreenderia na Dialética do Esclarecimento um processo contra o conceito - embora, por vezes, a veemência das colocações autorize tal leitura. A traduzibilidade permitida pelo conceito não significa um afastamen­to unilateral da concretude a que ele se refere. Pelo contrúrio, a concretude do objeto referido permaneceria inacessível sem a mol­dura conceitual. Ou seja, uma crítica simples do trabalho do concei­to repousa numa concepção essencialista, como se a materialidade de um objeto se manifestasse imediatamente. Heuristicamente com­preendido, o conceito fornece mediações, sem as quais os sentidos permaneceriam "emparedados" por informações em estado bruto. A crítica de Adorno e Horkheimer nada tem a ver com um excesso de conceituação, por assim dizer. Trata-se do oposto: a insuficiência conceitual condenou o Esclarecimento a cumprir precisamente o avesso do que os philosoplzes preconizavam. Vale dizer, "o Esclare­cimento tem que tomar consciência de si mesmo, se os homens não devem ser completamente traídos" (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 15). Os impasses relacionados ao trabalho do conceito ape­nas podem ser superados por um trabalho conceitual ainda mais com­plexo: somente o exame do conceito pode superar o impasse engen­drado pelo emprego irrefletido da operação conceitual. Embora tra­te do ponto nas próximas seções, desde jú assinalo que a força da dialética negativa adorniana reside nessa proposição, metonimicamente expressa no fragmento e no ensaio como forma. Destaque-se ainda o impasse que emerge do emprego irrefletido da operação conceitual:

"No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclare­cimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores. Mas a terra total­mente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal." (IDEM, p. 19)

Compreender o fundo teórico dessa "calamidade" é fundamen-

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tal para minha proposta da "literatura comparada como forma". O trabalho do conceito demanda um duplo movimento. Em primeiro lugar, o afastamento em relação ao particular; afastamento esse que permite reunir um número crescente de objetos definidos antes pela similaridade do que por suas particularidades. No entanto, o se­gundo movimento enseja um retorno refletido ao particular, cuja especificidade será então mais bem percebida na exata proporção em que, no momento prévio, o conceito destacara semelhanças e não diferenças. O conceito ilumina o elemento particular contra o pano de fundo fornecido por sua própria determinação. O trabalho do conceito depende desse duplo movimento, que se encontra na base da dialética negativa e da teoria estética adorniana. O interesse desse movimento para o futuro da literatura comparada pode ser esclarecido mediante a associação com o "duplo quase" do ofício do filólogo, segundo Leo Spitzer, e com a tensão de uma calculada "in­diferença à diferença", na proposta de Palumbo-Liu.

Esclareço minha hipótese, destacando uma perspectiva diver­gente: "Adorno e Horkheimer vêem a origem desses problemas [os impasses do Eslarecimento] no homem que percebe e molda sua relação com o ambiente - o que inclui a natureza e os demais ho­mens -, a partir da razão instrumentalista" (REIJEN, 1992, p. 34). Nessa análise, perde-se precisamente o que mais interessava a Ador­no e Horkheimer: o estudo preciso da operação implicada pela dialética do Esclarecimento, em lugar de um entendimento subjeti­vo, muito mais próximo da interpretação de Curtius. Não se trata de negar romanticamente a funcionalidade operacional da atitude ins­trumentalista, mas de forçá-Ia a uma decidida autoconsciência de seus efeitos: o desastre a que o primeiro parágrafo do livro se refere e que conheceu uma formulação lapidar no ensaio "Educação após Auschwitz": "A educação só teria pleno sentido como educação para a auto-reflexão crítica" (ADORNO, 1986a, p. 35).

A "calamidade" é o resultado da negligência 110 retorno ao particular. A dialética do Esclarecimento, portanto, pode ser assim definida: uma operação conceitual de mão única, em que a abstração primeira é seguida de novas abstrações, em lugar de ser "corrigida" mediante progressivas reaproximações ao particular. Duas opções são aqui possíveis. De um lado, após a abstração inicial, retorna-se à concretude dos objetos, o que revigora o conceito pela necessidade de afiar sua determinação no choque com elementos particulares.

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IH Esclareço que não pretendo discutir o "ensaio" em si. mas sua forma no pensamento adorniano. Por isso. sinto-me dispensado de discutir a longa genealogia do gênero c. so­bretudo, suas inúmeras reto­madas nas últimas décadas.

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De outro lado, o sujeito limita-se ao conceito, procurando uma abs­tração ainda mais homogeneizadora. Em conseqüência, o sujeito perde contato com a concretude dos objetos e, no final do processo, transforma-se em objeto da operação por ele acionada. Na ausência da concretude do objeto, o padrão de medida é o próprio conceito, que assume assim o papel de sujeito. Exatamente como acontece na literatura de Franz Kafka, em que o pesadelo da razão instrumental já se encontrava problematizado. Em O Processo, a rotina do tribu­nal nãoé um meio, mas um fim-o fim dajustiça, não se esqueça. Na literatura brasileira, Machado de Assis subverteu o dilema na figura do Dr. Simão Bacamarte, o alienista que, obcecado por suas teorias, terminou por alienar-se completamente do tema a que deveria dedi­cat·-se. Nesse particular, a ficção de Machado deu o autêntico pulo do gato, pois, ao tornar-se objeto de suas próprias (e infrutíferas) investigações, o Dr. Bacamarte desempenha o papel de involuntária metonímia do processo de objetificação do sujeito. Nessa circuns­tância, a única lógica possível refere-se à autopreservação tautológica dos próprios procedimentos. No diagnóstico de Adorno e Horkheimer: "Hoje, quando a utopia baconiana de 'imperar na prá­tica sobre a natureza' se realizou numa escala telúrica, tornou-se manifesta a essência da coação que ele atribuía à natureza não domi­nada. Era a própria dominação" (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 52, destaques meus).

Por fim, vale observar que a razão instrumental possui uma forma própria de expressão. No caso, narrativas totalizantes em que o mesmo se auto-afirma na progressão contínua de princípios, cuja finalidade é a reduplicação. Eis o aspecto que desejava destacar na Dialética do Esclarecimento. Ora, até mesmo por efeito de contras­te, a dialética negativa e a teoria estética adorniana devem ser relaci­onadas a uma outra forma de expressão, com base no projeto da antropologia dialética. Hora, portanto, de apresentar o fragmento e o ensaio como formas de pensamento 10.

As Palavras e as Coisas

Mais uma vez, vale o truísmo: limito minha leitura da Dialética negativa ao interesse deste texto. Aliás, como agir de outro modo ante uma obra dessa complexidade? Restrinjo-me ao problema do

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trabalho do conceito e da forma de escrita adequada a sua expres­são. Adorno assinalou o ponto cuidadosamente: "Contradição não é o que o idealismo absoluto de Hegel estava destinado a transfigurar: não se trata de essência, num sentido heraclitiano. Contradição indi­ca o caráter inverídico da identidade - o fato que o conceito nüo esgota a coisa concebida" (ADORNO, 1983, p. 5, destaques meus).

Nesse fato, contudo, reside a potência que assegura ao con­ceito a vitalidade almejada tanto pela dialética negativa quanto pela teoria estética adorniana. Ora, se o conceito não exaure o concreto, então, deve-se apurar sua determinação no contraste com o objeto referido. As palavras não esgotam as coisas, mas, ao mesmo tempo, estas não predeterminam aquelas - e a resposta ao dilema não se encontra num anódino meio-termo, porém no atrito constante entre os dois pólos. Tal concepção fecunda a leitura do seguinte fragmen­to de Minima Mora/ia: "Goethe, com a sua clarividência da impos­sibilidade de todas as relações humanas que ameaçava a incipiente sociedade industrializada, tentou, nas novelas dos anos de viagem, apresentar o tato como a informação salvadora entre os homens ali­enados" (ADORNO, 200 I, p. 30).

O contato físico, reduzido à caricatura do tato, antecipa o pro­cesso da dialética do Esclarecimento, que também transforma o re­torno ao particular numa simples formalidade paradoxalmente abs­trata. Por isso, a dialética hegeliana representaria a prova maior da insuficiência desse processo. Ou seja, a dialética não deveria forne­cer um ponto de vista fixo, com base numa tríade sempre disposta a fornecer sínteses. Tal maquinização da dialética repousa na determi­nação de sentido prévia ao ato cognitivo; portanto, num futuro pró­ximo todas as contradições estariam resolvidas e a própria dialética poderia ser honradamente aposentada! A resposta adorniana consis­te em tornar a dialética um princípio de indeterminação constante. Em primeiro lugar, como vimos, mediante uma progressiva abstra­ção, o conceito cria um pano de fundo homogêneo. Porém, por efei­to de contraste, os objetos particulares se destacam com nitidez re­novada. O conceito, assim, deve apurar suas determinações, e, por sua vez, os objetos conhecem um novo grau de particularização. Daí, através da presença de fragmentos e da valorização do ensaio como forma, a escrita de Adorno pretende responder ao desafio do trabalho conceito. Por fim, essa escolha informa a teoria estética, já que um objeto artístico, precisamente por sua irredutível particulari-

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dade, produz uma forma questionadora da tendência abstratizante do conceito (e da teoria). Tal opção conduz ao privilégio da parataxe como forma expressiva e como método analítico: "o dispositivo paratático é desse modo reconhecimento do caráter temporal do conteúdo da verdade ( ... )" (JIMENEZ, 1983, p. 226). Esse caráter temporal atravessa a dialética negativa; afinal, se nenhuma interpre­tação esgota o sentido da obra de Holderlin - o modelo paratático por excelência, na concepção de Adorno -, então, será preciso retornar inúmeras vezes à obra poética. No entanto, em virtude da leitura anterior, cada retorno será qualitativamente diverso. Em lu­gar de uma síntese, a dialética negativa produz uma nova contradi­ção, cuja complexidade exigirá ainda uma nova antítese. Tal mobili­dade produz uma indeterminação conceitual que vale assinalar:

"O momento unificador sobrevive à negação da negação, mas também sem se entregar à abstração como princípio supremo. Ele sobrevive porque não há uma progressão gradual em direção a um conceito geral. A constelação ilumina o aspecto específico do objeto; aspecto que para o procedimento classificador é tanto in­diferente quanto um fardo." (ADORNO, 1963, p. 162.)

Essa passagem é importante para minha perspectiva. Hora, portanto, de relacioná-Ia com a forma de escrita privilegiada por Adorno, associando o conceito de constelação tanto à presença de fragmentos na obra adorniana, quanto à valorização do ensaio como forma.

A forma e a expressão

Principio pelo cotejo de duas citações. Recorde-se o texto com o qual Adorno encerra a Dialética negativa: "A transposição de Hegel do particular em particularidade segue a prática de uma sociedade que apenas tolera o particular enquanto uma categoria, uma forma da superioridade do universal" (IDEM, p. 334). Vislumbra-se aqui a possibilidade de um gênero:

"A corporação acadêmica só tolera como filosofia aquilo que se reveste com a dignidade do universal, do permanente ( ... ) Só se

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preocupa com alguma formação espiritual específica que nela pos­sa exemplificar categorias universais ou, ao menos, como o parti­cular se torna transparente nelas." (ADORNO, 1 986b, p. 115)

A dialética adorniana não demanda um sistema filosófico en­cerrado em suas próprias conclusões. Pelo contrário, deve propiciar a emergência de constelações, ou seja, de reaproximações refletidas ao particular. Desse modo, emergem novos problemas, cujas per­guntas de fato ainda não conhecem respostas, Em lugar da fixidez sistêmica - ou, poderia dizer, do esquecimento da incapacidade do conceito exaurir a coisa concebida -, promove-se o que Adorno de­nominou "o consistente sentido de modernidade" (ADORNO, 1983, p. 5). Tal distinção favorece uma forma de escrita que mantenha a agilidade de um pensamento em transformação permanente. Daí, a valorização adorniana da forma do ensaio e, num aprofundamento dessa opção, o caráter fragmentário que suas obras progressivamen­te assumem tt • Tal opção almeja contaminar o campo da reflexão filosófica com a vitalidade atribuída às obras-de-arte. O ensaio como forma promete o mesmo vigor; afinal, "seus conceitos não se constróem a partir de algo primeiro nem se fecham em algo último. Suas interpretações não são algo filologicamente rígido e fundado ( ... )" (ADORNO, I 986b, p. 168). Já me referi, ainda que muito bre­vemente, à interpretação adorniana da poesia de Holderlin, cuja po­ética estimulou seu pensamento. A análise da obra de Beckett forne­ce outro estímulo. Após identificar a atmosfera existencialista de seus textos, Adorno estabeleceu uma distinção fundamental. No caso, enquanto em Sartre a forma "é de algum modo tradicional, e nunca ousada ( ... ), em Beckett a forma domina a expressão e a transfor­ma" (ADORNO, 1991 a, p. 241). A forma não está subordinada a uma razão prévia ao trabalho da linguagem. Pelo contrário, ela tam­bém é material expressivo. Por isso, se as palavras repentinamente tornam-se "o inglês básico, ou francês ou alemão de palavras indivi­duais" (IDEM, p. 264), essa forma desintegrada de expressão termi­na por expressar criticamente a desintegração das relações intersubjetivas num mundo admistrado. Ao subtrair da forma seu caráter de evidência l1, essa forma renovada força a linguagem à autoconsciência que Adorno exigira do conceito de Esclarecimento. Em seu aparente jogo de absurdos, Beckett denuncia a ilTacionalidade da razão instrumental, pois, como vimos, em lugar de ser um meio

" Não ignoro que a Teoria Eslélil'll tenha sido publicada pustumamente. No entanto. tal fato não explica o caratcr fragmentário da obra. Atinal,já podcmos encontrá-lo na Dialé­lica do Esclarecill/enlo e em Minill/a MOl'lllia. Pelo con­tnirio, é ncccss:.irio com­preendcr a opção de Adorno como busca da expressão adequada a seu pensamento.

I! Penso na caracterização das vanguardas: "uma m1e libel1a de seu caráter de evidência". Theodor W. Adorno. 71,,;ori(' e.vt/";Iique. Paris. Klincksicck. 1989, p.44.

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para a interação, o processo transforma sujeitos em objetos. Nesse sentido, após mencionar que a obra de Beckett traz à luz "( ... ) o negativo do mundo administrado", Adorno concluiu, "nessa medi­da, Beckett é realista". Ou seja, sua literatura obriga a linguagem a dobrar-se sobre o vazio de sentido, num ácido comentário sobre a opacidade de um mundo administrado. Se a poesia de Holderlin es­clareceu a impossibilidade de esgotar o sentido de uma obra, o texto de Beckett produz o efeito que seria criado pela auto-reflexão críti­ca, defendidà por Adorno em "Educação após Auschwitz". No caso, trata-se de enfrentar o sombrio diagnóstico: "Depois da Segunda Guerra Mundial, tudo, incluindo uma cultura revi vida, foi destruído sem que se percebesse: a humanidade continua vegetando, rastejan­do após eventos, cujos próprios sobreviventes não podem realmente sobreviver ( ... )" (ADORNO, 1991a, p. 244).

No-entanto, não basta reconhecer o estado de crise, é necessá­rio desenvolver uma reflexão crítica sobre o pr6prio fenômeno; caso contrário, o simples reconhecimento transforma-se em mais uma ins­tância da mesma crise. Como o método paratático na análise de Holderlin e o destaque da desintegração da linguagem em Beckett, a opção pelo ensaio como forma e a presença crescente de textos frag­mentários pretendiam operar o efeito indispensável de uma forma na qual o conceito é estruturalmente forçado a conviver com seus limi­tes. Numa observação crítica que recorda a celebrada intuição de Jorge Luis Borges, em "Kafka y sus precursores", Adorno estabele­ceu uma inovadora relação:

"É apenas em relação ao ideal que sua poesia se relaciona com a teologia, ela não a sugere. A distância diante dela é o que é emi­nentemente moderno em Hõlderlin. ° Hõlderlin idealista inicia aquele processo que desemboca nas frases vazias do protocolo de Beckett. Isto nos permite hoje em dia compreender Hõlderlin em escalas incomparavelmente mais amplas que outrora." (ADOR­NO, 1991b, p. 108)

Portanto, Beckett e seus precursores, por assim dizer. Tal as­sociação permite apresentar o círculo final de minha hipótese, ou seja, o conceito de literatura comparada como forma precisa incor­porar a tensão estrutural da dialética negativa adorniana. Com base no duplo movimento do concreto ao conceito e deste àquele, num primeiro momento, devemos incorporar criticamente a noção de in-

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d(j'erellça à d(ferença. Posteriormente, devemos assinalar os dife­rentes modos históricos de manifestação e de recepção dofenômeno literário. Parte-se, pois, de uma afinidade fundamental com os estu­dos culturais: o projeto de literatura comparada como forma tam­bém rejeita a definição do literário a priori. Contudo, e nesse aspec­to o projeto que proponho afirma sua especificidade, não se abando­na a pesquisa do literário a posteriori. Reafirmemos o acordo: a ausência de elementos essenciais que autorizem o eterno retorno da literariedade. E explicitemos a divergência: na produção e recepção de discursos, observamos uma constelação de traços comuns que, até mesmo pelo efeito de contraste com outras funções discursivas, podem ser caracterizados como literários a posterior;. Se é verdade que, nas Humanidades, as teorias representam "em primeiro lugar e acima de tudo instrumentos intelectuais", cujo objetivo "é a produ­ção de mapas" cognitivos, compondo um caso especial de "bricolage" (ISER, 2006, p. 5), então, esboçar uma rigorosa cartografia históri­ca dos discursos talvez seja a tarefa futura da literatura comparada como forma.

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A rural landscape both anchored and set adrift:

I For a bibliography 01' texts wnttell by visilors lo lhe Azores, see Miguel Moniz's Az.ores, World Bibliographical Serics, vol. 221, Oxford: Clio Press. 1999.

John Updike and the Azores in literature

Frank F. Sousa (University of Massachusetts. Dartmouth)

Transatlantic traveI writing on the Azores harkens back to the ship log ofthe first documented east-bound crossing, which recorded Columbus's return voyage to Europe in 1493. Most of the writings after Columbus tend to express the dazzle of the traveler's first impression, i.e., a profound sense of wonder or something akin to the sublime, upon sighting the Azores, terra firma, after lengthy traveI in the empty, desolate oceano

This article focuses on one ofthe most aesthetically compelling texts ever written on the Azores expressing this experience of awe­namely, the poem "Azores" by the great American novelist 10hn Updike. The study will also consider other texts on the Azores by authors of note, from Chateaubriand, in 1791, to several twentieth­century poets, including luan Ramon liménez'. Specifically, the article will concentrate on the relationship between sea, ship and island not only from the point of view of the traveler, especially in Updike's poem, but also from the perspective of the islander, particularly as exemplified in the poem "Ilha" by Pedro da Silveira.

In the late eighteenth century, Chateaubriand muses, in volu­me one of his memoirs, that "Il y a quelque chose de magique à voir s'élever la terre du fond de la mer," and compares this experience of being wonderstmck after a long voyage with that of Columbus finding America, in 1492, and Vasco da Gama an'iving in India, in 1498 (204-05).

Less than half a century later, one of the Bullar brothers, who visited the Azores in 1839, reflects on the feeling of imprisonment felt on the ship and the relief that sighting land, the Azares, meant:

" 'Land on the lee-bow, sir,' was the first sound that carne to my earsin this morning's watch; and scarcely could the words of reprieve to a criminal in his condemned ce)) sound more sweetly

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than this short sentence in mine. In the distance, the land looked like a c1early defined c10ud of dense grey mist resting on the horizon. On coming nearer, the prevailing colours of distant green fields and fallow grounds. When about twenty OI' thirty miles from the north-eastern end of the Island of St. Michael's, the view was by contrast grand and stupendous. We had left the tame scenery of the south ofEngland, with its 'pale and white-faced shores,' only three weeks ago; when this morning a wall of lofty mountains, rising abruptly from the ocean, seamed with ravines, glens, and gullies, variegated with bright lights, and the shadows of heavy c\ouds brooding on theirtops, enlivened by scattered white houses, by 'a silent waterfall,' tumbling into the sea from a ledge of rocks, and mingling its smaIl white thread with the surfthat rolled upon the shore, impressed me with an idea of grandeur far above any I had formed ofthe Island of St. Michael's". (15-16)

The sensation of excitement at the discovery, as it were, of the

Azores in the middle of the Atlantic, is also conveyed Thomas

Wentworth Higginson-a nineteenth-century American intellectual

and early supporter of Emily Dickinson who is now largely

forgotten-who visited Faial and Pico for six months in 1855-56:

"Suddenly one morning something looms high and c\oudlike far away, and you are told that it is land .. Then you feel. .. as if this must be some great and unprecedented success, and in no way the expected or usual result of such enterprises. A sea-captain of twenty-tive years' experience told me that this sensation never wore off, and that he still felt as fresh a sense of something extraordinary, at the sight of land, as upon his first voyage". (227)

In Innocents Ahroad (1869), the most celebrated American book of traveI for over one hundred years, Mark Twain describes the familiar

reaction to sighting the Azares, after a long trek in the Atlantic Ocean:

"At three o' clock on the morning of the 21 s[ of June, we were awakened and notified that the Azores were in sight. I said I did not take any interest in islands at three o' clock in the morning. But another persecutor carne ... The island in sight was Flores. It seemed only a mountain of mud standing up out ofthe dull mists of the sea. But as we bore down upon it, the sun carne out and

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made it a beautiful picture-a mass of green farms and meadows that swelled up to a height offifteen hundred feet, and mingled its upper outlines with the c\ouds .... It was the aurora borealis of the frozen pole exiled to a summer land"! (49)

Curiously, the metaphor of the island as ship appears in several authors. lt's as if the traveler on a ship transfers the reality of constant motion inside a vessel to the island, terra firma that bobs up and down in the ocean, seemingly at anchor, and going nowhere, as Mark Twain suggests: "We sai led along the shore of the Island of Pico, under a stately green pyramid that rose up with unbroken sweep from our very feet to an altitude of 7,613 feet, and thmst its summit above the white c10uds like an island adrift in a fog" (61). This image of course fits c10sely with that of Chateaubriand and others who emphasize the massiveness and verticality ofthe islands and the way they seem to spring from the oceano

The Spanish poet Juan Ramon Ramirez, in the prose poem "La Isla Transfigurada" from 1917, expresses something similar upon sighting one of the islands of the Azores after an intensely rainy day: "Malva, de oro y vaga-igual que un gran barco boca abajo sobre el mar concentrado y azul ultramar-, en un oca'iO Amarillo que oman mágica 'i nubes incoloras, gritos complicados de luz, la 'Isla de los Muertos", de Bocklin" (375).

The island as ship also appears in the work of the most celebrated author from the Azores, Vitorino Nemésio. Though born in Terceira, he lived most ofhis life in mainland Portugal but often traveled by boat back to his place of origino Here is the view of the island from a ship in the foremost Azorean novel to date, Mau Tempo no Canal, 1944 (Stormy Isles: An Azorean Tale, 1999): "The bulky mass of São Jorge,

stretching from Point Rosais to Topo, looked like a ship made blue by the very smoke of its passage toward the 'hypothetical island' ofFemão Dulmo ... " (22). And, "Over the revolving, moonlit earth, sheltered from mankind, the roosters seemed to have taken the island of Pico, which looked like a huge, dark massive battleship in the middle ofthe deserted se a" (244-45); finally, "At night, the fifteen large windows of

Dona Maria Josefa de Á vila's Home, lit high up on the mountain, gave

the island ali the seeming of a Iiner anchored in a safe harbor" (365). In 111ll1lagini elle Antille (1937), more specifically the text

"Aterrisagem na Atlântida," the ltalian poet Lionello Fiumi relates the extraordinary experience of finding solid earth in the middle of the

ocean: "Após quarto dias de adeus à Europa e de confidências com

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o Atlântico, quando já o hábito começa a tornar-se uma líquida su­perfície horizontal, eis, repentinamente, um sobressalto de sólido" (191)2, As noted earl ier, the beauty and grandeur of the islands are magnified for the traveler by the preceding unre1enting monotony of the sea voyage. On the one hand, one is also struck by the repetition offeelings related to monotony and dread as a response to the wide­open, deserted sea, and, on the other hand, the excitement and delight that spring from the sighting of the Azores, land, in the middle of the vast oceano

Franco Moretti, in theAtlas (~lthe Europeall Novel 1800-1900, more specifically, the chapter entitled, "Toward a Geography of Literature," argues that "geography is not an inert container, is not a box where cultural history 'happens', but an active force, that pervades the literary field and shapes it in depth" (3). For those who know Azorean literature well, this fact is evident in writers such as Roberto de Mesquita, Vitorino Nemésio and João de Melo, whose poems and noveIs are imbued with a profound sense of geography, space and place, i.e., the archipelago ofthe Azores and its history in the middle of the Atlantic; but this is no less true about literature about the islands written by outsiders. Indeed, the similarities in the way these literary responses to the Azores mimic and reflect each other support the notion that the Azores are not just a geographical feature incorporated into the writing but play an active role in shaping and directing the texts. Updike's poem "Azores" is a good example of geography conditioning a work of literature.

Though much better known for his fiction, John Updike is also the author of seven collections of poetry, the most recent of which, Americana and Other Poems, was published in 2001. In fact, his very first book, from 1958, was a collection of poetry entit1ed The Carpentered Hen and Other Tame Creatures. First published in Harpers Magazine in January 1964, the poem "Azores" was included in Midpoint muI Otlzer Poel1ls, in 1969, and Col/ected Poems, 1953-1993, in 1993. In the 1969 edition it appears under the rubric of "Light Verse," acommon designation that appears in mostofUpdike's collections, used to group poems characterized by wit and charm. However, in Collected Poems "Azores" is moved to the general section usually reserved for his more serious poems. In fact, in the preface to this collection, Updike specifically refers to "Azores" as an example of a serious poem, "derive[d] from the real (the given,

'The P0I1uguese vcrsion 01' th.: text, translaled by Pedro ,L Silveira, is published in Silvcil~I', "Em torno de como três poetas contemporâneos viram os Açores," COl/heci-mel/lo dos Açores I/Irm'és dl/ lileralllra: ('{)lIIl11liCll('jjes llpreSellllldtlS lia

IX Seml/I/I/ de Esllldos dos Açores. Angra do Heroísmo: Instituto Aço-riano da Cultura, 1988. 191-9.5.

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.1 Pedro da Silveira plIblishcd. in translation into P0I111gllCSC. the texts frolll Updike, Fi li 111 i anti Ralllón Jilllinez, with vcry liltlc cOllllllcntary on lhe actllal tcxts.

substantial) world," in other words, a specific place, as opposed to the light verse inspired by "the man-made world of information" (xxiii).

In terms of criticaI attention, "Azores" is mentioned, but only in passing, by the most important critic of Updike's poetry, Donald J. Greiner, in his The Other 101m Updike: PoemslShort StorieslPro­se/Pia)' (42). But in Portugal the poem has been the object of considerable attention, in part, because of its theme, the Azores, and the prominence of the author. It was translated by Jorge de Sena, one of the most important Portuguese poets and literary critics of the twentieth century, and published three times. Sena included it in his anthology of twentieth century poetry, Poesia do Século XX: De TI/011las Hardy a C. V. Cattmzeo (1978), giving as the reasons for the decision, "[a] notável segurança que possui, e [o] seu tema portugu­ês" (473). Sena's excellent translation also appears in a short article by George Monteiro, in 1979, at the end of a text by the Azorean poet and critic Pedro da Silveira, in 1988" and in a collection of poems by Azoreans, in translation, entitled The Sea Within, in 1984. For our purposes here, Monteiro's article, "Os Açores de John Updike e Pedro da Silveira," functions as the point of departure for this study, in that this critic was the first to suggest a possible comparison and a relationship of reciprocity between Updike's poem and Azorean poetry, specifically Pedro da Silveira's "Ilha," published in his book with the suggestive and dramatic title of A Ilha e o Mundo, in 1952.

The ostensibly simple but ultimately complex structure of Updike's poem-which might explain the "assuredness" noted by Sena-and the fact that "Azores" is one ofthe most perceptive works of literature ever written by a traveler to the islands of the Azores, are reasons enough to justify a lengthier and more detailed study. This criticaI reading wiIl caIl attention to the internaI workings ofthe poem and its keen eye for detail, and will also examine it in relation to other texts on the Azores by foreigners and islanders alike that include the motifs of the ship, sea and island.

"Azores" is comprised of nine quatrains, in which the second and fourth lines of each stanza rhyme, abcb. As already suggested, this composition, though apparently simple in its conception, encompasses an astonishing intricacy and a depth and breadth of experience revealed through a close reading. A work so complex

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calls fora detailed commentary on its poetic structure, technique, concepts and nuanced imagery.

In light of the relative brevity of "Azores" and to enhance a close reading here, a complete transcription follows:

Azores Great green ships

themselves, they ride at anchor forever;

beneath the tide

huge roots of lava hold them fast

in mid-Atlantic to the past.

The tourists, thrilling from the deck,

hai I shri 11 y pretty hillsides f1ecked

with cottages (confetti) and

sweet lozenges of chocolate (Iand).

They marvel at the dainty fields

and terraces hand-tilled to yield

the most fruits of vines and trees

imported by the Portuguese:

a rurallandscape set adrift

from centuries ago. The rift

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A rural landscape bolh anchored and seI adrift: John Updike and lhe Azores in lileralure 163

enlarges. The ship proceeds.

Again the constant music feeds

an emptiness astern, Azores gone.

The void behind, the void ahead are one.

The first line is a metaphor identifying the archipelago of the Azores as "Great green ships." The second line, beginning with "themselves," calls attention to the fact that the speaker of the poem is himself located on a ship, a fact that will be confirmed I ater on in the poem, and that determines the point of view of the poetic voice. Continuing with the second line and into the third, we read, "they ride/ at anchor forever;" which suggests an opposition between movement and groundedness, permanence and impermanence, one that will be repeated throughout the poem. That is, the expression "they ride at anchor" brings to mind the bobbing of a ship at se a, along with the implied possibility ofupping anchor and sailing away, while the addition of "forever" ties down, as it were, the metaphoric vessel, along with "anchor," to a specific, limited location and to static, eternal time.

The vertical movement of the "ships" is underscored in the last line of the first stanza in two ways: first, by lhe line, "beneath the tide," the opening words of a sentence that concludes at the end of the next, or second, quatrain. F1II1her, the vel1ical, particularly downward movement, is now suggested by both "beneath" and the space between this line and first line ofthe next stanza. Curiously, the horizontal movement in tension with the vel1ical is already evident in the first quatrain, through the juxtaposition of two elements. One is in the placement of the second and fourth verses (which rhyme) to the right of the first and third, suggesting horizontality. In the other, verticality is evident when one considers that lhe first and third verses can be read sequentially as "Great

green ships" "at anchor forever," while the second and f01ll1h aIso work together, "themselves, they ride" "beneath the tide."

From the objects observed, Updike moves to information in books, to what is hidden under the sea: "huge roots of lava/hold them fastlin mid-Atlantic/to the past." Here the reader learns of the

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geological formation ofthe Azores, once again suggesting verticality, followed by information regarding the place, the geographicallocation of the archipelago. The reference to roots once again calls attention to permanence and stability, while the word "fast", though in the first instance suggests fixedness, has, inevitably, a connotation of movement. The stanza concludes with another explicit opposition that sets the present against the past, developing meanings already suggested in the "forever" of the third line of the poem and the time associated with geological formations.

The third quatrain suggests enthusiasm at the discovery of something completely unexpected and exciting. These verses bring the reader back to the present and reveal the vantage point of the poetic voice, already suggested in the first stanza by "themselves," which works in opposition to the not explicitly stated "ourselves" or "myself." The third stanza reveals to the reader that the speaker is on a ship with tourists (from whom he distances himselt) who view the Azores from the deck: "The tourists, thrilling/from the deck,lhail shrilly pretty/hillsides flecked." By the end of the quatrain, the boat is closer to the islands, as the hillsides have come into clear view. The excitement of sighting and approaching land is captured by the expression "thrilling," suggesting exclamations of exhilaration upon seeing terra firma while also calling to mind, by its phonetic proximity, the trilling, singing of birds, typically found on the coast and around islands. After the initial distant impression of the color green, we now hear the sound, vibrations, and high pitched voices of a crowd of people who, excitedly, "hail shrilly pretty/hillsides f1ecked." Curiously, the poet casts himself here as traveler in subtle opposition to the tourists, a conventional distinction in travelliterature, according to Patrick Holland and Graham Hl1ggan (2).

In the fourth stanza the poet follows the gaze of the tourists introduced in the last lines ofthe third stanza. The festive atmosphere continues with cottages transformed by the imagination into confetti4

("with cottages/(confetti)") followed by the imagined and metaphorical, "sweet lozenges/of chocolate," whose grounding in observed reality, "(Iand)", now comes after, an inversion that curiously mirrors other inversions in the poem. That is, initially "confetti" is the parenthetical description of cottages while the inverse is true in the second half of the stanza, when the phrase "sweet lozenges/of chocolate" precedes the parenthetical referent, "(Iand)", usurping

, In conlrast to the festive and picluresque view Oflhc Azorcs sccn in Updikc's pocm and lhe works of other Iravelers considercd hcre. in John Malcom Brinnin's poem. "Talking to the Azores." similar aspccls of the landscape are transformed into negati ve images, lo wit: "I can 'I believe/ your villages Ihal look like strung-out leeth,/ your dead moon mounlains. your slow smoke-ring clouds" (156-57).

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and inverting the rhetorical progression from reality to metaphor. This transformation suggests a certain reversal of perspective, one that infonns the very structure of the poem while conjuring up a sense of the magical nature of this space called the Azores. The reference to candy calls attention to lhe pleasure of ataste that is sweet, amplifying the visual connection to the landscape, through the brown of the chocolate, with another sensory experience. The next stanza, with appealing imagery, reminds us that the "Iozenges of chocolate" are, actually and specifically, fields that have been recently cultivated, i.e., "the dainty fields/the terraces/hand-tilled." This last reference calls attention to a mode of agriculture from lhe past, to a traditional rural life, from before the development of mechanization associated with the first industrial revolution. lndeed, we are here c\ose to what Northrop Frye would consider pastoral mode or elegiac reverie.

This stanza continues the animation expressed in the third. Here, "They [the tourists] marvel at the dainty fields/and terraces/hand­tilled to yield," lines I mentioned earlier, a view permitted by the ship's movement of approximation to the islands already suggested by the third stanza in its reference to human habitation ("cottages"). lt once again evokes the pleasure oftaste in the word "dainty," which implies, first of ali, smallness and quaintness, but also brings to mind "dainties" or sweets, perfect in their neatness and miniaturization, thereby connoting something doll-like about the landscape.

The sixth stanza, with its "modest fruits/of vines and trees/ imported by/the Portuguese," harkens back to something humble and unpretentiolls and sllggests an historical fact-that these islands in the middle of the Atlantic antedate their colonization by the Portuguese, for the vines and trees are "imported" by them. Now, for the first time in the poem, we learn the nationality of the islands, an identity introduced from an externaI source, sllperimposed, as it were, through colonization and population, on a natural beauty that had existed "forever." This attention to human habitation continues into the seventh quatrain, which refers to the inhabited space that characterizes the Azores, i.e., "a rural landscape" that, in almost Saramagan terms-when one considers his novel The Stone Rqtt­has been "set adrift/from centuries ago," a phrase which seems to contradict the first and second stanzas, in which the islands are seen as anchored and rooted.

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In this stanza we find a reference to the "past" already mentioned in the second quatrain. But here the reference is to human time ("centuries ago") and not geological time ("forever"). The gaze from the ship finds a place lost in time, as the expression "set adriftl centuries ago" suggests, as ifthe islands were emissaries from a time gone by. It is as though the poet views the Azores in present time but that this new-found space in the middle ofthe Atlantic really belongs to the past, suggesting, ever so subtly, the island as mental construct, the mythical island so often present in literature since Classical Antiquity. One is reminded of Yi-Fu Tuan 's argument that the island "symbolizes a state of prelapsarian innocence and bliss, quarantined by the sea from the ills of the continent" (120). In this respect, the poem fits well within a certain tradition of traveI writing characterized by a nostalgia for other times and places, particularly a simpler past, before the encroachment of modernity.

Now the movement observed in the first two stanzas-toward proximity, as the ship approaches the islands-resumes, takes on speed, this time moving away, past the archipelago. The form ofthe poem itself gives emphasis to the rift and distance by opening up a space, i.e., separating the last line ofthe seventh quatrain, "the rift," from the first line of the next stanza, "enlarges." The ship and the poet proceed and "Again the constant/music feeds." This line, which ends the eighth stanza, reminds us ofthe activity and sounds oftourists and ship mentioned in the third quatrain. What is left, as the ship moves beyond the Azores, is "an emptiness astern,/Azores gone" in rear view. The poem concludes with the lines "The void behind, the void/ahead are one," which signals a considerable change in tone in part through the repetition ofthe ominous word "void"s. This shift, though drastic, is foreshadowed by other elements within the poem.

I began this commentary by pointing to the regular rhyme scheme of "Azores," which might suggest a certain perfection, a sense of the poet's Apollonian assuredness and calmness before the nothingness that haunts hlm at every turno Yet, this apparent tranquility is already disturbed in the second line, as previously noted, by its lack of alignment with the first, its placement to the right with a marked indentation. This alternating, constant changing, systematic in every stanza, could once again suggest perfection. But upon a careful reading, one discerns that the apparent symmetry in the rhyme is also broken. In the third, fifth, and ninth quatrains we find imperfect,

, In quite possihly the greatest book on the Azon:s ever wliUcn hy a travclcr, Raul Brandão, in 1926, calls aUention to this scnsc oI' insignificance hefore the sccmingly all-cncompassing Atlantic, charactcrized by "a vasta desolação monótona" (31 ), to which he adds later: "o homem neste momento sente que vale tanto como um cisco para esta coisa ilnensa e negra:' and "um lamento que se prolonga e me enche de pavor­é o nc-grume, o mar imenso e desconhecido, todo o mar" (35).

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slant rhymes, "deck" with "flecked," then "fields" with "yield," and an eye rhyme, "gone" with "one," words that look alike but sound different. These rhymes introduce dissonance, an unpleasant and unexpected combination of sounds, which parallels the shifts in tone throughout the poem. Once again order is broken and the poem brings us e10ser to the imperfection of experienced, lived life. Thus, Updike takes advantage of the aesthetic potential of place by recreating the geographic location ofthe Azares in the midst ofthe enormous ocean, emblem of infinity, eternity and death, as Michael Ferber argues in A Dictionary of Literary Symbols (179-83). He invokes the void, or endless space, and thereby suggests the threat of meaninglessness, the inescapable dread (Angst) inherent in existence. The conelusion cal!s attention to the autobiographical persona of the poem, John Updike, who hilllself was in the Illiddle ofhis life, as suggested in the title of the book Midpoillt anel Other Poems. Just like the Azares in the middle of the Atlantic, Updike experiences the past and future as vague and undefined. In other words, the ocean in the poem becomes a metaphor for the life experience ofthe poet. And the use ofnatural imagery, of islands in the middle of the Atlantic surrounded by sea, cal! to mind the threat of nothingness, of death itself, and life becomes projected in the Atlantic space lived by the poetic persona. However, the sense of lightness that comes through the e1ever rhymes and attractive images keeps the poem from the rarified space oftragedy, and make one consider the possibility that the poem still belongs, to an extent, in the category of "Iight verse," without any negative connotation. Ultimately, in this poem there is a freshness, an ability to surprise, that necessary element of poetry, as Pessoa once remarked, without which there is no great art.

We now turn to an examination of this poem in the context of texts written about the Azares by the islanders themselves, pmticularly those that encompass reference to the sea, ship and island. As we survey these texts a distinction emerges between the texts written by travelers and those written by islanders, a possibility suggested by the contradictory reactions in the poem by Updike, between excitement and delight and Illonotony and dread. Though Updike's poem ineludes a reference to the void, this composition, like those of other travelers, describes the arrival in the Azores as a magical experience

For the islander, on the other hand, the excitement he feels quite often resides in the ship. While ocean-going travelers and

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visitors,as a rule, express relief at sighting the island in contrast to the weariness they feel related to the oppressive vastness and sameness associated with the deserted ocean, the point of view of the islander stresses the narrowness of life on the island, hemmed in by the vast, Iimitless horizon of the sea. Curiously, the traveler on a ship in the open ocean experiences something quite similar to the islander se a­locked, as it were, in the middle of the seemingly endless and monotonous oceano

This view of the island and sea as Iimiting and oppressive is integral to the concept of"Açorianidade," a term coined by Vitorino Nemésio in 1932, derived fromthe term "Portugal idade," which in tum comes from "Hispanidad," that is, the belief in a certain essence associated with a space and a people. In the case of the Azores, some of these elements are the melancholy associated with the aloneness and isolation experienced in the middle of the valit ocean or void. The Azores, by their geographical location and specific history, have developed (the argument by several Azorean writers goes) a different imaginário, one that sets Azorean literature apart from that of mainland Portugal. Eduardo Lourenço, Portugal's premier cultural critic today, expresses this idea succinctly, as follows:

I know-and, ifl didn't know, the historical and mythical reality ofthe Archipelago would remind me af it-that I am not precisely in Viana do Castelo nor in Bragança, which are not defined in the Constitution as autonomous regions ... but in the Azares, a singu­lar territory and reality within the space that is a Portllgllese invention, but to which centuries, distance and men have given a specific identity. (88; translation mine)

This is not far from the concept of literature and geography discussed earlier in reference to Moretti.

The often-referred to "Azorean torpor," aterro coined by an English traveler and assumed by Azorean writers such as Vitorino Nemésio, indelibly marks the writing ofthe authors and poets of this region. But of ali these characteristics, the distinctive culture and Iiterature of the Azores are often defined by the physical place, the experiencing of a tangible location. It is this Azorean sense of place that is often expressed in the literature. It is this lived experience that marks the difference between the externaI gaze onto the island and

t, Not unexpectedly, similar motifs of the island, sea and ship are common in the poetry 01' Cape Verde. Jorge Barbosa's "Poema do Mar," in No Reil/o cle Caliblll/, volume I, concludes with the same sense ofenclosure and desperation:

Este convite de toda a hom que o Mar nos faz para a evasão! Este desespero de querer partire ter que ficar!(98)

And Arnaldo França's poem. "Dois poemas do mar," in the SaIlH! anthology. echoes the poem "Ilha," in the reference to the ship that represents theescape fi'om the limitations ofthe iskmd:

Fugir, deixar no mar o sulco branco da hélice do vapor, que as vagas mansas apaguem. (138)

Just a.~ in other Azorean poems examined above, the conclusion is pcssimistic and defeatist, forthe sense of impotence in converting desire into reality:

Só nos olhos (saudade estranha) a distância perconida, - por percorrer. (139)

The same sentiment pervades Manuel Lopes' "Cais," also in this collection, when he writes:

Nunca puni deste cais e tenho o mundo na mão! Para mim nunca é de mais responder sim cinquenta vezes a cada não.

Por cada barco qUI! me negou cinquenta punem por mim Mundo pequeno para quemlicou ...

Mundo pequeno para qUl!m ficou ... ( 104)

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7 For an English translatilln 01" "Ilha," sec Tile Sell lVirilill: A Selecrioll o(A:oreall Poell/.\', eo. Onésimo T Almeioa. t\Uns. George Monteim, Pmvioence, RI: Gávca Brown, 1984.

the reciprocal gaze from the islands out toward the sea and the ship, which, whether imaginary or real, are seen both as potential connections to the world beyond, including its potential riches, and reminders ofthe islands' inescapable isolation and poverty.

As Updike's poem served to introduce themes and perspectives of the trave ler upon the Azores, an examination of the poem "Ilha" by Pedro da Silveira, published in A Ilha e o Mundo, in 1952 (also in Flli ao mar buscar lar(l1~jas, from 1999, the edition cited here), will model the islanders' use ofthe motifs ofthe island, sea and ship. We will consider this poem within a broader context, which includes other poems by this author and by other islanders.6

Here is the poem:

Ilha Só isto:

O céu fechado, uma ganhoa pairando, Mar, E um barco na distância: olhos de fome a adivinhar-lhe, à proa, Califórnias perdidas de abundância?, (53)

Silveira's composition is, in spite of its brevity, deceptively complex. Comprised offive lines-an unusual isolated line followed by a quatrain with regular rhyme abab-the poem speaks of the Azorean experience of emigration to the United States, with its historical roots in the nineteenth century, having developed into the major pathway to escaping the sense of isolation, insularity, and poverty associated with life on the islands.

The opening line ofthe poem, which ends in a colon, suggests that what follows is subsumed under "Só isto," as if the entire island experience were reduced to what is contained in the quatrain. The very next line, i.e., the first line of the quatrain, "O céu fechado, uma ganhoa," which concludes in the second line with "pairando," calls to mind the notion of no exit, a type of enclosed incarceration, a c1austrophobic space, coupled with the stagnation of hovering, a form of stillness, characterized by a lack of movement in flight, in potentia, as it were, which leaves the heron poised to fly in any given direction or simply to land. The very next word, "Mar," located at the very center of the poem, spatially and thematically, is a sentence

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unto itself, not encumbered 01' limited by any modifier, suggesting the absolute omnipresence of the sea. The phrase that follows, "E um b(irco na distância:", introduces a new moment in the poem, the sudden appearance of a boat, which relieves the void of empty space and represents a call to adventure. (lnterestingly, the boat functions here very similarly to the island in "Azores.") The phrase moves the poem forward while connecting it to what comes before it, with the copulative conjunction "And." Just as occurs with the first line ofthe poem, the second use of the colon suggests an explanation to follow. AIso, "na distância" places the speaker far from the boat, the potential vehicle that would allow for an escape from the enclosed space that is the island. The idiomatic expression that begins the third line of the quatrain, "olhos de fome," which is also a synecdoche for the speaker of the poem, adds dramatic tension and a sense of desperation to the scene. The hungering eyes, imagined as being at the prow, seem to foresee, long for, or loo~ forward to, in space and in time­rendered by the word "adivinhar"-to the Californias of the poetic persona's dreams. But as the word "perdidas" suggests, these mythical places of wealth, "de abundância," that have called Azoreans since the early nineteenth centuryX, are forever lost and unattainable.9 The oxymoronic phrase "Califórnias perdidas de abundância," then, insinuates a desire and longing with no hope for fulfillment. 1O This same bleak tone, with a profound sense of drama and tragedy, is found in other poems by Pedro da Silveira (Fui ao mar buscar la­ranjas, 1999), inc1uding "Último Oeste", where one reads: "A terra acaba aqui .. ./Com ela tudo o que eu intento" (13), and in "Relan­ce": "Sobre a folha azul do mar/vem um vapor e outro vai./-Eu fico a vê-los passando" (14). These poems, from the I 940s, written during the period when emigration to the United States carne to almost a complete halt due to restrictive immigration laws passed by Congress about twenty years earlier, highlight a poignant sense of desperation and imprisonment before the sea".

For centuries the boat was, on the one hand, the means of escape and, on the other, the vehic1e that brought excitement to the island, materiaIs and news of other lands and peoples. The magical experience of seeing the island in Updike's poem is mirrored in the reaction ofthe islanders to the boat in "Dia de Vapor," also by Silveira: "Quando o vapor chegai é como se fosse dia santo na ilha," as the "multidão que fica em terra" has only "olhos ávidos para todos os

'For infonnation 011 the history 01' Azorean immigration to the Unitcd States. induding a chaptcr spccifically dcdicated to

CalifoJllia, see JelTy Williams.I/I

I'ursuit oI' Tlteir Dreilllls: A Hislllly o!Azoreil/lIIll/lIiKmfio/l lo Ilte U/liled Slilfes, 2nd ed, North Dartmouth. MA: University oI' Massachusetts Dartmouth Center for POIluguese Studies and Culture, 2005,

" A sh0l1 story hy Diogo Ivens. "Viagem certa" (1949). in

A/llOloKiil ilçoriil/lil d/l cO/llo iI('/lriil/l/l: séculos XIX e XX. ed. João de Melo, Lisboa: Vcga,

197X, 211-15. in which a group oflaborers toiling in a ficld in the island of São Miguel gaze out 01110 the ocean and spot a ship headed for Amelica,expresses, in the most poignant way, the profound desire to escape, coupled wilh the fl1lstmtion of not being able to do so.

111 The bleakness of the tom! in

Ihis poem contm'its sharply with lhe optimistic gazing out to sea in a poemlike John Mansfield's "Sea Fever," from 1902 (i n TI/e C/ll/ected Poellls /lI l/l/II/ Milsefield, London: W. Heinemann, 1927,27-28), In this poem there is a wonderful, ifna'ivt:, cdcbration oI' the sea-faring adventure as synonymous with freedom. Silveira's poem is pessimistic and tragic, and the gaze out onto the ocean is more pragmatic, having financiai objectives, maybe as a result ofthe povel1y on the island. In other words, "lIha" conveys a profound sense oI' a push away from the ishmd itself, in addition to the pull ofCalifomia. Similar to Mansfield's poem, Katheline Vaz's sh0l1 story "Island Fevcr" (in Fildo lIIlll Ollter Sforie,l', Pittsburgh, UP Press, 1997,75-76), set in Faia!. Azores, also captures a difl'erent sense 01' mystery and marvel aI the possibility 01' boat travd in the wide-open Atlantic.

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A rural lanuscape bolh anchoreu anu seI aurift: Jolm Upuike anu lhe Azores in literature 171

" The nolion 01' the island as prison in Pedro da Silveira and some Cape Verdean pocts is deveIoped by Francisco Cota Fagundes in "Uma visão da oútra margem: a elni-gração Clll A 111111 de o Mundo de Pedro da Silveira," Desla e da oUlra 1I1111"Relll do AlltÍllti('o: eSludos de Iilem-Ium l/çoriwlII e da diúsjlora, Lisboa: Ediçiics Salamandra, 2003. 147-77,

pormenores desse/acontecimento mensal" (A Ilha, 54). This sense of exhilaration and anticipation highlights what William Boelhower suggests in "'1'11 Teach You to Flow': On Figuring Out Atlantic Studies," when he states that the "Atlantic is a dynamic and f1uid space of transit and communication and cargo" (38).

The sensation of angst, melancholy, isolation, solitude and emptiness beforc the wide open ocean expressed in "Ilha" is evident in other Azorean poetry. The poetry of Roberto de Mesquita (1871-I 923)-a Symbolist who, according to Nemésio, was the first to discover the geographical reality of the islands, suggesting that the geography is not only a lived reality but also a poetic construct within a certain historical period-expresses this kind of imagery. In the poem "Dia Santo (Versos dum isolado)," one reads that, "O mar adormeceu desoladoramente,/ Parece-me um deserto .. ./É cada vez mais triste este deserto de água," and two stanzas later, "E vou tal­vez viver, morrer nesta prisão" (195-96). In "O Dólmen," the speaker imagines his situation on the island as comparable to that of the traveler on a boat:

Turva-me o coração, por esta soledade, Uma tristeza vaga, uma melancolia Como a que no mar largo o viajante invade Ao ver só água e céu, do barco em calmaria. (83)

And, indeed, the melancholy and dread expressed in the travelers' texts arise from this situation.

In these Azorean poems, the Atlantic, which provides the opportunity to escape, also represcnts an impediment to any movement away from the island. In Mesquita, as in Silveira, we sense the isolation of the islands, which is made even more poignant by the empty, desert-like oceano Curiously, for the islander, the surrounding islands within view can function as a relief from the sense of nothingness. of isolation, in the same way that the weary traveler on a boat finds comfort and connectedness upon sighting an island. One can observe this in one of the most cited passages on the Azores from the most

celebrated and influential work written by a traveler to the islands. I am referring to Raúl Brandão'sAs ilhas desconhecidas (1926), where one reads the following, as he visits the island of Pico:

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Ao longe vai aparecendo e acompanha-me sempre outra ilha, S. Jorge, estiraçada a todo o comprimento. Já percebi que o que as ilhas têm de mais belo e as completa, é a ilha em frente-o Corvo as Flores, Faial, o Pico, O Pico São Jorge, S. Jorge a Ter­ceira e a Graciosa ... (93)

This reference, which speaks of the wonder of having an island in view from another island, seems to suggest a possibility of relief from the oppression of constantly seeing open, unlimited horizan, i.e., the sea. In a sense, the companion island seen in the islander's outward gaze functions very similarly to the island in the poem "Azores." That is, it breaks the monotony, loneliness and sense of isolation, by connecting the self, in some way, to the other.

The poems examined here suggest different perspectives on the Azares, if not on islands in general. John Updike and the other travelers call attention to the idealized view of island present in much of the Western tradition from Hesiod and Homer on down to the twentieth century, including, to a certain extent, the opinion of a traveler such as Raúl Brandão, in As ilhas desconhecidas. However, the inhabitants of places of isolation such as the Azares seem to take a much dimmer view of the potential for enchantment offered by their Iived-in spaces, as is evident in Azorean poetry from Roberto de Mesquita in the late nineteenth century to a contemporary writer such as João de Melo (cf. the poem, "Olhar com navio dentro" or the essentially bleak novel O meu mundo lU/O é deste reino both from the 1980s and both available in translation I2 ). Nonetheless, the sense of chafing at the narrowness of island life expressed in the Azorean poetry discussed here is, to an extent, a poetic and literary construct that has a specific historical period, as these concerns of isolation and angst are essentially non-existent in poetry written before Mesquita, i.e., from the eighteenth century through almost ali ofthe nineteenth century, as can be gleaned from reading the collection Antologia da poesia açoriana, from 1977, edited by Pedro da Si Iveira. This raises the question ofhow the archipelago's poetry and literature in general are being affected now that traveI to and from the islands has been made easier by modem technology, now that planes have replaced ships as the primary means of transportation, now that the trends of globalization and the long reach oftelevision and the Internet have strengthened the links and shortened the distance between the

" o poema de João de Melo. "Olhar com navio dentro". foi primeiro publicado no primeiro I i vro de poemas do autor: NIII'l'gaçtio da Terra (Lislxla: EJitOlial Vega, 1980). F i g u r a também em The Sea Wi/hil/: A Se/ec/io/! or Azoreall Poellls. cd. Onésimo T. Almeida, trans. George Monteiro. Providence. RI: Gávea Brown. 1984.

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A rural lanusçape nolh an<;horeu anu seI aurifL: lohn Updike and lhe Azores in lileralure 173

islands and the mainland. An extension of my analysis beyond the scope of this paper could lead to an examination of the effect of globalization, the greater degree of mobility, greater movement of ideas, goods and people on contemporary Azorean poets, the younger generation. Does the distance between the Azares and the continents on either side still provoke a sense of anxiety or have other motifs, poetic constructions replaced these maybe worn out metaphors or concerns? Is globalization depriving Azorean writers of a distinctive sense of place, one of their traditional tools, or is writing in great measure dependent on the capacity of the writer's imagination to create his or her own world? Is Doreen Massey, author of Space, Place ({Iul Gellder (1998), correct in saying that "The identities of place are always unfixed, contested and multiple" (9), contrary to the traditional idea of environmental determinism, so often invoked in literary criticism of Azorean authors and suggested at the outset of this article with the passage from Moretti?

It remains to be seen what role geography will continue to play in the composition ofthe self and literature in the Azores, when, as Wallace Stevens wrote, "Poetry is a response to the daily necessity of getting the world right" ( 167).

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176 Revista Brasileira de Literatura Comparada, 11. S, 2(X)6

Ermos e gerais (contos goianos) de Bernardo Élis

Edição organizada por Luiz Gonzaga Marchezan São Paulo: Martins Fontes, 2005

Alcmeno Bastos (UFRJ)

Ermos e gerais (contos goia1los), livro de estréia de Bernardo Elis (1915-1997), em 1944, volta às livrarias em primorosa edição organizada por Luiz Gonzaga Marchezan, professor da UNESP, no­tável especialista em regionalismo.

Na Introdução (MARCHEZAN, 2005, p, IX-XXIXI), Marchezan faz ligeira recensão da fortuna crítica de Bernardo Elis, pondo em destaque os aspectos mais relevantes da obra do contista goiano. Evidencia que se trata não de um escritor que joga todas as fichas no atrativo relativamente fácil do pitoresco interiorano, mas sim de um ficcionista cujo regionalismo "ora se traduz trágico, ora cômico, ora quase fantástico; que migra do sublime presente na na­tureza dos ermos e gerais para a revelação do grotesco na alma sub­terrânea do homem que habita esses lugares". A alternância de dic­ções: trágico, cômico, quase fantástico; o percurso de um extremo a outro dos tons possíveis numa narrativa: do sublime ao grotesco, tudo indica, segundo Marchezan, que a ficção regionalista de Bernardo Elis é irredutível a uma fórmula.

Ainda nesta Introdução, Marchezan apresenta ao leitor, em toques rápidos e precisos, os dezenove contos e a novela "André Louco". A esta é dedicada atenção maior, consentânea com sua ex­tensão e com a relevância que viria a ter no conjunto da obra de Bernardo Elis2 . Não se trata, porém, de simples paráfrases. Além da síntese das estórias, o organizador desta edição agrupa as peças por suas afinidades temático-composicionais, iluminando os traços de maior ressonância. Assim é que os contos são apresentados como relatos de "casos", isto é, como "narrativa falada ou escrita, concisa, que contém uma unidade dramática, concentrada numa única ação".

I Eximimo-nos dc indicar as púginas das dcmais citações desta Introdução por serem de fúcil localização. Quanto il Cronologia c às Notas sohre a prcscnte edição. cncon-tram-sc rcspectivamcl1IC nas p. XXXI­XXXIV c XXXv.

2 Conforme Explicação in­trodut\Íria. Bernardo Elis rcsolvcu reagruparos contos de Erlllos e gero;s (1944) e COIII;II/IIJ.V e descolII;III/lIJs

(1965) em dois volumcs. tomando por hasc o "cspaço riccional". O primciro desses volumes foi publicado em 1975 e ganhou o título de COIII;"h"s

do,\' gera;.\'. O segundo. puhlicado cm 1975. foi intitulado justamente A"dré Louco.

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• Essa Ficha Autobiográfica aparece também na edição de André LOl/co. de 1978. com sensíveis modificaç<ics em relação à versão anterior.

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o emprego de "caso" e não de "causo" apaga qualquer marca de exotismo, alçando os contos à condição de narrativas complexas, que guardam em si ora "fábulas tragicômicas", ora o "mistério", quando sejam "contos lacunares", ótima expressão para designar al­guns relatos oblíquos. Nesses contos, os pontos temáticos são a vi­olência, promovida pelos homens, eventualmente ajudados pela na­tureza; a morte, que "coloca o homem diante de seus limites", e que "nos ermos tem requintes que a intensificam"; o poder, seja o poder dos coronéis, seja o poder do acaso, que define o destino dos ho­mens perdidos na vastidão dos ermos; e o tempo, que nessas "regi­ões afastadas dos centros de decisões" impõe-se aos "heróis sem domínio do seu querer, alheados, apartados do mundo, do desejo". Esses temas são trabalhados de um modo que supera a captação apenas realista de fatos e personagens. Segundo Marchezan, o narrador de Bernardo Elis adota, por vezes, focalizações de corte expressionista (especialmente no conto "O caso inexplicável da ore­lha de Lolô"), que levam ao exagero o grotesco e o insólito, como formas de "representar a degradação de um tempo vivido nos ermos e gerais", e que se avizinham da hesitação do fantástico, ou mesmo superam o fantasmático e chegam ao mórbido. No plano mais imedi­ato da textual idade, Marchezan também alude, se bem que apenas de passagem, ao emprego do coloquialismo, da oralidade, que em Bernardo Elis não é recurso ornamental ou mesmo avalizador da autenticidade das falas atribuídas às personagens.

A posição de Bernardo Elis no quadro do regionalismo brasi­leiro é indiscutível. Ele mesmo indicou sua filiação quando, na Ficha Autobiográfica3 que redigiu, a pedido da editora, para a quarta edi­ção de Verall;co de jalleiro (1965), contou como descobriu a força da ficção regionalista: em 1935 caiu-lhe nas mãos o romance A Bag{fCl!ira (1928), de José Américo de Almeida, consensualmente admikici como iniciador do romance nordestino de 30. Ainda nas palavras de Bernardo Elis: "depois li Zé Lins do Rego: aí senti ne­cessidade de contar coisas como esses contavam e percebi que mui­to havia que contar" (ÉUS, 1978, p. xiv). A adesão ao regionalismo não se fez, porém, apenas por simpatia. Sem prejuízo da espontanei­dade na captação dos aspectos tipificadores do sertão de Goiás, nas­cida do conhecimento vivo que deles tinha o autor, Bernardo Elis tinha elevado grau de consciência do que deva ser literatura regionalista. Marchezan transcreve parte de uma introdução feita

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pelo escritor goiano aos contos de Valdomiro Silveira, quando esta­belece os "dois traços fundamentais" do regionalismo: ser a repre­sentação literária do "Brasil tradicional, não urbanizado" e fundar­se, do ponto de vista lingüístico, "na singularidade dialetal do con­texto, numa linguagem singular-rural". Deste modo, ancorado na oposição entre uma cultura tradicional, rural, não-industrializada e uma outra, não-tradicional, urbana e industrializada, Bernardo Elis fende o Brasil em dois, mas não restringe geograficamente o regio­nalismo, pois afirma que ele pode manifestar-se no "norte, nordeste, sul, leste ou centro-oeste do Brasil". Na verdade, a ênfase está nessa espécie de descompasso temporal, para a qual contribui, é evidente, o afastamento de certas regiões dos centros de decisão política, usu­almente mais próximos do litoral, pelo menos até a criação de Brasília. Na já mencionada Ficha Autobiográfica, Bernardo Elis observava que a situação de "isolamento e inacessibilidade" dos "ermos e ge­rais" já apresentava mudanças, superada pela "integração nacional decorrente, entre outros fatores, da criação de Goiânia e Brasília" (ÉUS, 1978, p. xvi).

Evidentemente, quando foram escritos os contos de Ermos e gerais a paisagem geográfica e humana dos sertões goianos estava longe de sofrer qualquer alteração marcante. Assim sendo, Bernardo Elis pôde alimentar-se diretamente dessa realidade. Mas o importan­te é que, como já ressaltado, seu regionalismo não se esgota na cap­tação do pitoresco. A abertura de "Nhola dos Anjos e a cheia do Corumbá" até poderia induzir a erro, pela fidelidade da escrita ao registro lingüístico da fala da personagem: "- Fio, fais um zóio de boi lá fora pra nóis." (ÉUS, 2005, p.3). Mas a despeito dessas e de muitas outras corruptelas, do léxico muito particular, o texto de Bernardo Élis não demanda glossário, é perfeitamente compreensí­vel para o leitor distanciado da realidade representada nos contos. Dois são os processos discursivos que impedem a redução do texto a interesse tão limitador. A dicção do narrador, habilmente balance­ada entre a adesão lingüística ao universo das personagens, evita tanto o distanciamento do citadino que se debruça sobre o falar "en­graçado" do interiorano, cioso de sua condição de usuário culto da língua, que não pode escrever "errado", quanto a avidez na exata reprodução desse falar diferente, que acaba por tornar criptográfico o texto, vedada sua compreensão ao leitor que não comungue do conhecimento da realidade lingüística ficcionalmente representada.

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Além dessa dimensão textual, a focalização de personagens e situa­ções, como já mencionado, põe à vista do leitor dramas que esca­pam do condicionamento regional.

A título de exemplo, em "Nhola dos Anjos e a cheia do Corumbá", conto de abertura de Ermos e gerais, Quelemente, o pro­tagonista, toma uma decisão drástica: lutando contra as águas revol­tas do rio, sacrifica a própria mãe, velha e entrevada, com quem dividia a frágil jangada na tentativa desesperada de escapar da im­placável correnteza, dando-lhe um pontapé no rosto. Quelemente é levado a isso pela certeza de que, naquela situação, a velha lhe era um estorvo, mas se arrepende, quandopercebe que talvez fosse pos­sível salvá-Ia, sim. Faz uma inútil tentativa de reencontrá-Ia, e o con­to finda com a morte do rapaz, tragado pelas mesmas águas que já haviam levado a velha. Eis uma situação que avança muito além do típico incidente regional, evidenciando a riqueza psicológica da interioridade da personagem. Não é impróprio ver nesse magnífico conto um exemplo acabado de narrativa de horror, composta, po­rém, com elementos de rigorosa verossimilhança, forjado apenas com a captação simples das reações extremadas das personagens ao fata­lismo da força das águas do rio Corumbá, durante uma cheia.

Como esse conto, as demais narrativas situam-se no âmbito de um indiscutido regionalismo. Apenas um, "Cenas de esquina depois da chuva", na verdade, mais o flagrante de uma situação que uma estória com começo, meio e fim, aproxima-se muito da crônica. Nele não há nítidas referências que conduzam a imaginação do leitor à amplitude dos "ermos e gerais". Pelo contrário, somos levados a pensar numa ambientação de pequena cidade, interiorana é verdade, mas de qualquer modo, urbana. A Introdução redigida pelo profes­sor Marchezan, como já ressaltado, não deixa um só dos contos sem uma apresentação sintética, de modo que seria redundante voltar a fazê-lo nesta resenha. Contudo, é impossível passar ao largo de um conto tão exemplar quanto "Noite de São João". Aqui temos a fusão bem acabada de notação melancólica sobre o passar inexorável do tempo - seu Jeremias, numa noite de São João, evoca outra noite, mais de trinta anos atrás, quando se viu encantado com a jovem Anica, a quem jamais teve coragem para declarar-se, e que agora está perto dele, maltratada pelos muitos anos decorridos desde aquela noite, uma outra Anica, velha, gorda, babando durante o sono - e a captação crítica da tipicidade regionalista: "Serviam café com bolo

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de mandioca. O pessoal barulhento, risonho, cercou a fogueira. Um balão começou a subir. Nüo. É mentira. Nüo há halões nos são­joões ana(f'ahetos da roça. O que começou a subir pelo céu, mais belo que balão, foi uma moda de viola. Chorosa, longa, com sabor arrependido de banzo." (ÉUS, 2005, p. 196 - itálicos nossos).

Muito oportuna, portanto, a reedição desse clássico do regio­nalismo brasileiro que resiste ao eventual enfraquecimento da cor­rente pelas vi11udes intrínsecas da escrita de Bernardo Elis.

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Antonio Vieira e /'impero universo/e; La Clovis Prophetorum e i documenti

inquisitorioli, de Silvano Peloso

Viterbo (Itália): Sette Città, 2005

Ana Lúcia de Oliveira (UERJ)

Recentemente lançado pela editora italiana Sette Città, o instigante livro "Antonio Vieira e /'impero universale; La Clavis Prophetartllll e i documenti inquisitoriali" se dedica, principalmente, à Chave dos Prrd'etas, a grande obra profética de Antonio Vieira, inacabada e, em grande parte, ainda inédita. Cabe destacar que seu autor, Silvano Peloso, professor da Universidade de Roma "La Sapienza" e titular da cátedra "Padre Antonio Vieira", além de.di­versos ensaios dedicados ao jesuíta, publicou numeroso~ estudos sobre a literatura de viagem, sobre Gil Vicente e Camões e sobre a literatura novecentista portuguesa e brasileira. Também foi respon­sável pelas edições italianas de Buriti, de Guimarães Rosa, e das Páginas esotéricas de Fernando Pessoa.

A obra de Vieira, pregador de enorme sucesso em sua época, é mais conhecida por seus primorosos sermões, modelo da oratória católica seiscentista, a que ele, no entanto, atribuía um ínfimo valor em relação à C/avi.'! Prophetaru111 , seu livro definitivo, ao qual dedi­cou cinqüenta anos de sua vida, considerando-o uma síntese de seu pensamento religioso, político e filosófico. Assim, o livro mais re­cente de Silvano Peloso se reveste de grande importância no âmbito dos estudos vieirianos por esclarecer uma série de equívocos gera­dos pela controversa e árdua questão das relações entre a História do.fúturo e a Clavis Proplzetaru111 , bem como por analisar, em toda a sua complexidade, os problemas referentes à edição desta última obra, afrontados logo após a morte do jesuíta e ainda não resolvidos defi-

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nitivamente, sobretudo pela grande quantidade de documentos exis­tentes, espalhados em arquivos e bibliotecas da América e da Euro­pa. Tal estudo se torna ainda mais interessante por evidenciar que a Clavis, com suas mirabolantes vicissitudes, constitui o testemunho maior da intrincada rede de intrigas e denúncias de que o jesuíta foi alvo. Além disso, a história de como foram escritos e posteriormente copiados os manuscritos que a constituem apresentlj lances de ro­mance de suspense, com intrigas palacianas entre Brasil, Portugal e Roma, lugares onde o jesuíta passou a maior parte de sua vida.

O ponto de partida da obra é a abordagem do processo inquisitorial sofrido por Vieira a partir de 1663, cuja sentença defini­tiva, de 1667, o acusa principalmente a partir do conteúdo da carta "Esperanças de Portugal, Quinto Império do Mundo" - documento de poucas páginas, datado de 1659, cujo assunto é a ressurreição de D. João IV, a partir de uma interpretação das profecias de Bandarra. Sabe-se que tal carta foi apenas um pretexto para atingir o jesuíta, em um momento, de há muito esperado por seus adversários, em que seu apoio junto à coroa portuguesa estava enfraquecido. Cabe apenas apontar de passagem que o aspecto político-econômico de tal acusação tem suas raízes no empenho de Vieira em favor da co­munidade da diáspora hebraica portuguesa no exterior e dos consi­derados cristãos novos.

No segundo exame do processo, declarando que as censuras inquisitoriais, baseadas numa interpretação equivocada, se referiam a proposições diversas das que enunciara na carta, e que, portanto, suas próprias proposições ainda não haviam sido julgadas em seu sentido correto, o inaciano solicita que lhe seja permitido escrever um texto de defesa, expondo o verdadeiro sentido das mesmas e as autoridades e textos em que se fundava. Além da carta, abre o pro­cesso uma denúncia acerca de um livro que Vieira teria dito que pretendia escrever. Insistindo no argumento de que não escrevera tal livro, mas tinha apenas "pensamentos de livros", ele constrói o prin­cipal eixo da sua defesa: embora o livro cujo significado lhe argúem não exista, escreverá o que nele constaria se tivesse existido; por meio desse engenhoso artifício, se outorga0 direito de legitimamen­te escrever tal livro, como resposta às questões feitas pela Inquisição.

Em 1665, o material heterogêneo levado por Vieira a uma au­diência foi confiscado pelo tribunal. Poucos dias após esse confisco, em uma petição enviada ao Conselho Geral da Inquisição, Vieira

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I A esse n.'spcito. cabe de!>1acarquc Adma Muh:1J1a. com SCUlIlClitlÍrio 1mbalhodc puhlic.u;ão dos autos do processo inquisitorial vieiliano. (Unesp. 1995). é apontada por Pdoso como a plimcira estudiosa a avaliar a importância dcste testemunho de Vieira e a I:llar da H;sliíri(/ do Fl/luH! COIllO de UIIl

título modificado da Cltll';S Pmphellll7ll1l. sem contudoextmir daí lodns as conseqüências,

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explicita toda a sua engenhosa operação: "Provará que para abreviar as ditas matérias, reconhecendo a imensidade delas, buscou traça, método e disposição com que as meter todas em um só discurso que intitula HistrJria do Futuro, que vem a ser um como compêndio de todas as proposições que deve provar sem a confusão e repetições que haviam de ser necessárias se não fossem assim ordenadas e digestas". Sendo a matéria do litígio vastíssima, era necessário redu­zi-Ia, selecionando e reorganizando apontamentos, citações e mate­riais vastos, em um discurso estruturado, ao qual ele atribui - em suas próprias palavras - "o disfarce do título" História do Futuro l .

As observações anteriores deixam entrever o ponto culminante da investigação de Silvano Peloso, tematizado no terceiro capítulo, que se refere às origens do grande equívoco acerca da relação entre a C/avis Prophetaru11I e a História do fi ttu ro , a qual, de fato, não exis­te, como o autor documenta amplamente, a não ser como parte da primeira obra e como estratagema criado para iludir a censura inquisitorial.

No rastro do biógrafo Lúcio de Azevedo, a fortuna crítica vieiriana endossou a tese de que as referências explícitas à Clavis no depoimento aos inquisidores se referiam a uma obra apenas idealiza­da, visto que o jesuíta estaria, antes, se dedicando à escrita da supos­ta História do fiall/"(}. Na contramão de tal tendência, partindo do próprio depoimento de Vieira na segunda audiência do processo, em 1663, na qual ele afirma que há dezoito anos "andava estudando e compondo um livro, que determina intitular C/avis Prophetarum", Peloso cita outras declarações de Vieira nas diversas sessões em que tal processo se desdobrou, que, segundo o crítico italiano, constitu­em "provas incontroversas" confirmando o primeiro testemunho, as quais não foram devidamente observadas pela crítica. Baseando amplamente em cartas e documentos referentes ao jesuíta, o crítico nos comprova que ele iniciou a composição da C/a vis no período entre 1645-46, anos de sua grande missão diplomática na França, na Holanda e na Itália, desenvolvendo-a de modo intermitente pelo res­to de sua vida.

Com a abertura do processo inquisitorial em 1663, Vieira é forçado a retomar a C/avis para tentar concluí-Ia em menos tempo e também para preparar documentos para levar para a sua defesa, pas­sando então ajuntar fragmentos, citações, apontamentos, capítulos inconclusos. Silvano Peloso ainda nos informa que a sentença final

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do processo documenta bem a utilização de escritos compostos há muitos anos, junto com documentos mais recentes preparados em função da sua defesa. Além disso, o exame da ampla correspondên­cia do jesuíta possibilita conhecer inicialmente seu projeto de reto­mar e concluir a Clavis antes de 1666; dada a impossibilidade de atingir tal meta, decide enviar ao menos uma parte significativa da obra ao rei de Portugal~ como estratégia para tentar obter seu apoio em um processo inquisitorial iniciado por motivos políticos mais do que teológico e religiosos, como Vieira bem o sabia.

No decorrer de seus seis capítulos, a minudente investigação do crítico italiano consegue encaixar, pouco a pouco, todas as pe­ças do quebra-cabeças e, desfeita a falsa pista da História do Futu­ro, a Clavis se reconfigura como a única obra profética na qual Viei ra trabalhou em grande pmte de sua vida. Cabe ainda destacar que o vasto material que constitui tal obra inclui diversas pesquisas desen­volvidas em algumas das mais importantes bibliotecas da Europa; debates mantidos com religiosos e expoentes da Companhia em Por­tugal, França, Holanda e Itália; apontamentos, livros anotados e materiais heterogêneos que acompanharam o jesuíta dos dois lados do Atlântico. É impossível, portanto, que todo este conspícuo mate­rial só existisse na mente de Vieira e que ele se decidisse a colocá-lo por escrito apenas sob a urgência do processo inquisitorial. Sem dúvida, esse último acontecimento constitui o estímulo decisivo para reorganizar o vasto material preexistente, disperso mas referido a núcleos temáticos bem definidos, seu objeto de estudo de muitos anos: método e valor da interpretação das profecias, o reino de Cris­to sob a terra, a profecia de Daniel sobre o Quinto Império, a translatio imperii portuguesa. Desmancha-se assim o lugar comum de que a Clavis fosse uma obra que existia apenas na sua mente, tese defensiva usada pelo próprio Vieira como estratagema para prote­ger-se durante o processo do Tribunal, segundo Silvano Peloso nos esclarece.

Os últimos capítulos de Antonio Vieira e L 'impero universale enfocam todos os esforços do inaciano português para publicar sua obra, inclusive o de se declarar disposto a renunciar à sua paternida­de para vê-Ia terminada e publicada, bem como as intrigas e a dispu­ta sobre a sua publicação que a acompanharam mesmo após a morte de seu autor.

Aguardemos, .agora, a publicação da edição crítica da Clavis

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Prophetartl11/, incomensurável trabalho a que Silvano Peloso vem se dedicando nos últimos anos. Em tempos de tantas discórdias e into­lerâncias raciais e religiosas, talvez seja pertinente a leitura da inter­pretação vieiriana acerca da mensagem contida nas profecias bíblicas a partir dos textos de Daniel: presságios de um tempo por vir de harmonia e ordem, um império universal sob o signo da paz e da tolerância entre as religiões e os diferentes povos da terra.

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Consensual disagreement; Canada and the Americas,

de Patrick Imbert (org.) Ottawa: University of Ottawa Press, 2005. 102 p.

Zilá Bernd (UFRGS)

A produção intelectual de Patrick Imbert, escritor, professor e pesquisador da Universidade de Ottawa, tem se caracterizado por um grande comprometimento com as relações culturais e literárias inter-americanas. Seu profundo interesse pelas Américas e pelas trans­ferências culturais o levou a publicar, em 1995, Les discollrs du Nouveau Monde au XIX siix/e au Canadafrançais et en Amérique /atine, e, em 2004, Trqjectoires cu/turel/es transaméricaines " mé­dias, publicité, Iittérature et 11lolldialisation, (340 p.).

Titular da cátedra Canadá: enjeux sociaux et euIturels dans une société de savoir, Patrick Imbel1 desenvolve projetos de pesquisa ambiciosos, estabelecendo laços e constituindo redes de pesquisado­res em diversos países da América Latina, tendo sido o organizador do último congresso da IAS A, realizado em agosto de 2005 em Ottawa.

Sua última publicação reúne um ensaio de sua autoria, intitulado "Canada: Three Centuries in the Americas", um segundo de autoria de Gérard Bouchard, "Figures and Myths of Americas: Blueprint for a Pragmatic Analysis", e um terceiro que leva a assinatura de Daniel Castillo Durante: "Canada on the Rocks! Migrant writing and Alteriry".

Desentendimento consensual! Essa expressão paradoxal resu­me as dinâmicas culturais que levaram o Canadá a assumir um papel importante no âmbito das Américas. E isto graças ao bilingüismo, ao multiculturalismo e simultaneamente graças a seus princípios demo­cráticos como a promoção dos direitos individuais e da sociedade civil. O Canadá no contexto global é também capaz de manter prote­ções sociais do Estado-providência (We(fáre-State), implementando políticas enraizadas no liberalismo econômico aberto aos livres mer-

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cados. Em razão desta capacidade de unir dinâmicas sócio-econô­micas e culturais que, em outras regiões das Américas, são vistas como contraditórias, as perspectivas do Canadá contribuem de modo eficaz para uma reflexão sobre o futuro do continente. Essas pers­pectivas são também particularmente importantes no contexto da globalização que tem como objetivo a legitimação da mobilidade geográfica, cultural e sócio-econômica.

O texto de Gérard Bouchard analisa o contexto no qual rela­ções entre as diferentes regiões das três Américas se estabelecem; seu trabalho como pesquisador é fundamentalmente vinculado ao exercício comparatista entre as nações do Novo Mundo e o que ele chama de povos novos. Embora reconhecendo a heterogeneidade das culturas das Américas e advertindo para o campo minado do comparatismo entre culturas e nações que tiveram um passado colonial com aspectos tão diversificados, reconhece a possibili­dade de estudar a recorrência e o trânsito de figuras e mitos. Evi­dencia em seu trabalho um certo número de tensões, de contradi­ções e de métodos de apropriação identitária que permitem a abor­dagem comparatista sobretudo no que tange aos processos de autonomização em relação às matrizes culturais européias. Os tex­tos de Bouchard não caem jamais no essencialismo nem na visão binária e ingênua da questão dos mitos, apostando sobretudo na definição de mitos alicerçada em sua eficácia, deixando de preocu­par-se em verificar se os ditos mitos americanos são "verdadeiros" ou "falsos".

A preocupação de Daniel Castillo Durante é em relação à diversidade da contribuição da produção ficcional de imigrantes que se vêem confrontados com códigos e normas da nova socieda­de que os acolhe. A diversidade é enfatizada pelo autor, que é pro­fessor na universidade de Ottawa, na análise de romances e ensaios publicados por autores quebequenses e canadenses nascidos no Canadá ou em diferentes países das Américas, como Sergio Kokis, brasileiro de origem, Dany Lafferriere, haitiano emigrado para o Canadá nos anos 1980, e Nancy Huston que, embora nascida na província de Alberta, no Canadá, vive na França há mais de 30 anos. Daniel Castillo Durante, em seu artigo, analisa como os este­reótipos, originados nas sociedades de origem dos imigrantes, se confrontam com os que têm sua origem no Canadá, oferecendo ao leitor uma perspectiva original das literaturas ditas migrantes. Os

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estereótipos se transformam na nova sociedade onde são aplica­dos, levando a inevitáveis "desacordos consensuais" conectando o local e o global.

Para o autor, esse encontro das Américas com o Canadá acon­tece em transição permanente em cidades consideradas transnacionais, como Montreal e Toronto, que se transmutam em laboratórios para a criação de novas solidariedades e de um novo conceito de lar.

O artigo de Patrick Imbert sublinha as relações entre o Cana­dá, as Américas e a globalização. Ele destaca que o "Canadá de­monstrou uma capacidade notável para salvaguardar as proteções sociais do Welfare State (estado providência) ao implementar políti­cas alicerçadas em um liberalismo econômico eficaz aberto aos li­vres mercados. Como resultado, o Canadá conseguiu conectar ten­dências consideradas opostas, em uma tensão eficiente que permitiu, de modo original, o desenvolvimento cultural, social e a expansão econômica". Para o autor, o Canadá nas Américas representa um bom exemplo de cultura baseada no "consensual disagreemellt" que se relaciona com o conceito de vida como 'jogo de soma nula" ("zero­sum game"). Esse modelo contribuiu para o desenvolvimento de um contexto sócio-cultural e econômico adaptado às transformações trazidas pela liberalização das trocas e pelo renovado interesse pelo continente americano expresso tanto pelos próprios americanos como pela comunidade internacional.

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o exílio do homem cordial: ensaios e revisões

de João Cezar de Castro Rocha Rio de Janeiro: Museu da República, 2005. 334 p.

Jaime Ginzburg (USP)

Em um momento em que a função da crítica literária está em debate, o aparecimento do livro O exílio do homem cordial: ensaios e revi.wJes é importante. Chama a atenção a conciliação, sempre difícil de realizar, entre uma erudição rara, clareza de exposição e densidade argumentativa. O autor se compromete com a fidelidade às fontes, recuperando no itinerário de referências e citações os pas­sos realizados na construção das reflexões. O volume inclui artigos anteriormente publicados e trabalhos inéditos. O conjunto dos tex­tos é exposto de acordo com uma arquitetura que motiva a leitura do livro como unidade, ultrapassando as especificidades temáticas dos capítulos.

João Cezar de Castro Rocha é conhecido por trabalhos anteri­ores, dos quais alguns, como o premiado Literatura e cordialidade (1998), fundamentam os pilares em que, em continuidade de um per­curso coerente, com aumento de complexidade, surge O exílio do homem cordial: ensaios e revi.wJes.

Trata-se de um livro em que metodologia e procedimentos não são apenas condições de estudo dos objetos. O livro pede uma atenção dedicada a seu percurso de elaboração. Para usar um termo adorniano, Castro Rocha é um investigador fortemente interessado no estabelecimento de mediações no trabalho de análise e interpre­tação. Longe de reproduzir perspectivas interpretativas consagradas ou se acomodar em modelos críticos previamente reverenciados, o autor tem a coragem, pautada na independência intelectual, de apre­sentar mediações com base em critérios seletivos e organizadores próprios, em razão, como é possível verificar no livro a cada capítu­lo, de desafios propostos pelos textos que elege como objetos.

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Esse trabalho de mediação não é feito sem uma forte consci­ência histórica. Pelo contrário, para Castro Rocha, entram em pauta questões básicas, como as variações de emprego de certas palavras, e as diferentes condições de circulação de publicações, e também olhares abrangentes sobre as grandes linhas de força na vida intelec­tual brasileira, nos séculos XIX e XX. Por isso é possível estender o mérito do livro, para além dos estudos literários, para a reflexão sobre a história da cultura brasileira, em diversos de seus campos de produção. Salta aos olhos o esforço constante do autor em situar cada objeto em um movimento histórico, levando em conta conflitos internos a esse movimento.

Um dos momentos altos do livro, dentro da contundente refle­xão sobre Euclides da Cunha, está no questionamento sobre a leitura de Luiz Costa Lima. Ao avaliar o livro Terra Ignota, Castro Rocha propõe uma articulação entre a clássica avaliação da precariedade do sistema intelectual brasileiro, exposta em Dispersa demanda, e o modo de ler Euclides da Cunha, expondo, por meio da demonstra­ção de um vínculo entre os dois trabalhos de Costa Lima, como a questão dos intelectuais no Brasil se aproxima da avaliação de Cu­nha. Trata-se de prova de que, sendo feito com o necessário rigor, um estudo de um texto crítico pode reverter em amplo horizonte de perspectiva de entendimento de um contexto cultural e intelectual.

Outra parte a destacar é a elaborada e meticulosa discussão sobre Sílvio Romero. Castro Rocha expõe com originalidade e detalhamento as relações entre Romero e Machado de Assis, dan­do inteligibilidade ao movimento de interlocução entre os dois, rompendo com os estereótipos canônicos de percepção do assun­to. Os pesquisadores da obra de Machado encontrarão estímulo na abordagem das relações do escritor com a Revista do Instituto Histórico e Geográfico, em perspectiva também original.

É constante, ao longo do livro, encontrar uma atitude analíti­co-interpretati va que, de modo resumido, tal vez pudesse ser formu­lada como uma conduta que procura romper com esquemas reduto­res, utilizados pela crítica de modo confortável e vicioso, preferindo dar visibilidade a tensões que, perpassando de modo direto ou indi­reto os textos examinados, são constitutivas de problemas persisten­tes na história cultural brasileira. Contrariando o que denomina "nar­rativas dicotômicas", o pesquisador caminha por percursos em que vão surgindo conexões, às vezes inesperadas, entre os textos. Essas

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conexões são articuladas de muitas e diferentes maneiras, evitando sempre a polarização facilitadora e os enquadramentos moralizantes das disputas ideológicas. A estratégia de inserir no horizonte uma reflexão abrangente sobre o homem de letras e a cordialidade no Brasil opera de modo lúcido as passagens dos casos específicos para os juízos genéricos.

Virtude rara na crítica brasileira, Castro Rocha é um pesquisa­dor persistente. Embora, de uma parte para outra do livro, mude o texto ou autor em pauta na reflexão, as questões de fundo vão se integrando em um eixo coeso. Podemos ver sugerido um movimen­to de amarração das partes em algumas passagens. Como na página 271, quando é comentado Tobias Barreto, lemos: "a tarefa crítica somente se realiza se as teorias importadas forem submetidas a uma bem dosada torção conceitual, a fim de dar conta da especificidade da circunstância local". Um fenômeno processual e constante é ob­servado - a adequação, especificada como forçüo, de idéias impor­tadas, dentro do contexto brasileiro. A vida intelectual brasileira se constitui como processo de desdobramento constante de tensões. O livro discute, perpetuando em sua interrogativa conclusão, a dúvida sobre o lugar da cordialidade nesse contexto, dialogando com as profundas incertezas vividas hoje, pela área de estudos literários, sobre os rumos do papel do intelectual e a capacidade transformadora do trabalho crítico. O livro de Castro Rocha traz uma contribuição forte e importante para debates da área, e o desassossego que o move levará, com certeza, à busca de novas mediações.

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Joaquim Norberto de Sousa Silva: crítica reunida

Org. introd. e notas de José Américo Miranda, Maria Eunice Moreira & Roberto Acízelo de Souza

Porto Alegre: Nova Prova. 2005

Luiz Antonio de Assis Brasil Escritor. Professor da PUCRS

Os estudos literários envolvendo o século 19, a par de suas naturais especificidades teóricas e escolares, vão muito além; são reflexões que necessariamente tratam do Zeitgeist desse mesmo sé­culo. Isso lhes dá um alcance inesperado e sempre bem-vindo. Ga­nha a literatura, por certo, ganha a teoria, sim, mas também ganha o melhor entendimento do que foi o espírito oitocentista. É preciso, contudo, atentar para um fato: se são numerosos os ensaios sobre a produção primária dos romancistas, cronistas e poetas, raramente vemos sob exame os textos críticos contemporâneos ao surgimento dessa mesma produção, exceto se os críticos sejam, ao mesmo tem­po, literatos. Nesse último caso, há vários exemplos, a começar pe­los nomes de Machado e Alencar.

A obra Joaquim Norherto de Sousa Silva: crítica reunida, or­ganizada por José Américo Miranda, Maria Eunice Moreira e Roberto Acízelo de Souza, saído pela Editora Nova Prova é, nesse contexto, uma raridade, e dupla raridade. Em primeiro lugar, por debruçar-se sobre a obra de um crítico, coisa rara, entre nós; em segundo, por ser esse crítico apenas conhecido pelos especialistas, embora sua fluen­te colaboração na imprensa. Sublinhando o que disse acima, aparen­temente a Universidade prefere o estudo dos críticos-criadores (ou criadores-críticos), mercê de sua notoriedade, ampla o suficiente para ultrapassar os muros a Academia. Quem não conhece o feroz artigo que Machado escreveu contra Eça em 1878, e publicado na revista carioca "O Cruzeiro?" E as polêmicas de José de Alencar?

Aqui temos uma expansão do conhecimento referente ao sé-

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culo 19 por uma voz que, coetânea dos acontecimentos culturais e versando sobre autores com a obra ainda infieri, representa o alcan­ce a que chegou a crítica no período e serve para dar forma a um pensamento semi-institucional sobre os assuntos literários. Ver-se-á que Joaquim Norbel10 é essa voz que fala de delltro de sua época, mas que também a condiciona, modelando um padrão ensaístico que iria fazer escola junto aos seus afamiliados intelectuais. Não é exa­gero dizer que Joaquim Norberto foi capaz dessa proeza. Se os cri­adores poéticos ou ficcionais tinham, em relação à crítica, uma dedi­cação de meio-turno, Joaquim Norberto é da estirpe de profissionais concentrados a que pertencem, nos dias de hoje, nomes como Wil­son Martins ou Antonio Candido, isto é, que escrevem textos confi­gurados à fácil apreensão por parte do público letrado em geral. Isso lhes dá um frescor que, no caso de Joaquim Norberto, até poderia ser entendido equivocadamente como ingenuidade; nosso autor, en­tretanto, jamais é um ingênuo. Seu estilo, espraiado em metáforas copiosas e caprichosa retórica, revela, ao leitor atento, uma exata compreensão de seu papel; ao fazer crítica, lança raízes reflexivas sobre identidade brasileira ainda em formação - e dê-se o crédito ao Romantismo. Desse modo, sua crítica nunca é apenas o que é: é, também, o cripto-apoio (por vezes transformado em apoio explíci­to) de uma renomada personalidade ao projeto da edificação de um pensamento nacional encabeçado pelo próprio Imperador D. Pedro 11.

Nascido em 1820 e morto em 1891, Joaquim Norberto de Sousa Silva viveu a pleno seu século, e a obra ora resenhada contempla quarenta e dois anos de produção (1850-1892). São textos de revis­tas, livros e edições avulsas, que os organizadores distribuíram em quatro categorias: a) árcades e românticos (com "notícias" sobre Tomás Antônio Gonzaga, Silva Alvarenga, Alvarenga Peixoto, Ál­vares de Azevedo, Antônio Gonçalves Teixeira e Sousa, Laurindo José da Silva Rabelo e Casemiro de Abreu; b) estudos biográficos, em que Joaquim Norberto trata de Bento Teixeira Pinto, Frei Ma­nuel Joaquim da Mãe de Deus, José Bonifácio e Cláudio Manuel da Costa; c) crítica circunstancial, em que são reunidos textos vá­rios, nos quais destaca o discurso por ocasião da morte de Joaquim Manuel de Macedo; e d) escritoras - neste capítulo, Joaquim Norberto ocupa-se, de modo precursor, das vozes femininas na literatura: Rita Joana de Sousa, Ângela do Amafal Rangel, Grácia Ermelinda, Delfina Benigna da Cunha, Bárbara Heliodora e Beatriz de Assis.

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o leitor já deve ter percebido o amplo espectro do trabalho teórico de Joaquim Norberto; alguns desses nomes a história literá­ria veio a consagrar; outros, a mesma história remeteu-os a seus definitivos lugares de esquecimento. Por esta razão, a antologia ora surgida detém, para além de outros, esse grande mérito: o de refor­çar a idéia de que um escritor prova-se ao longo de uma carreira, e que o tempo é a medida de sua importância.

Esta coletânea de ensaios de Joaquim Norberto vem primoro­samente editada, com introdução sobre o autor e suas circunstâncias pessoais e culturais, atualização lingüística e numerosas notas de rodapé, sempre oportunas e esclarecedoras. O livro representa, as­sim, uma relevante colaboração para o conhecimento sobre o nosso País: como se sabe, é a literatura a melhor forma de sabermos o que fomos e, por conseguinte, o que somos e o que seremos.

Depois da leitura, ficamos com a sensação da obra oporlUna, a que discute o momento pretérito mas que, na verdade, dá-nos ele­mentos para entender o momento presente: Joaquim Norberto, em muitas passagens de seus textos, reforça a idéia de que a nacionali­dade é sempre um processo, e desse processo os escritores são parte essencial e necessária.

O passado, no fim das contas, não está tão longe como parece.

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Apresentação dos autores

Benjamin Abdala Junior é Professor Titular de Estudos Com­parados de Literaturas de Língua Portuguesa da USP. Pesquisador I A do CNPq, é representante adjunto da área de Letras e Lingüística na

CAPES, tendo publicado 40 livros, 64 capítulos de livros e 73 artigos em periódicos especializados. Foi presidente da ABRALIC na gestão 1992-1994.

Eduardo F. Coutinho (PhD. - Univ. Califórnia - Berkeley, EUA) é Professor Titular de Literatura Comparada da UFRJ e pesquisador I A do CNPq. Tem sido Professor Visitante em diversas universidades no Brasil e no exterior. É membro fundador e ex-presidente da Associ­ação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC), membro do Comitê Executivo da Associação Internacional de Literatura Compa­rada (AILC) e consultor científico de diversas agências de fomento à

Educação. Sua área principal de pesquisa é a Literatura Latino-Ame­ricana contemporânea. Publicou grande número de ensaios em revistas e periódicos especializados do Brasil e do exterior e é autor e organizador de diversos livros. Seu mais recente livro é Literatura Comparada n(/ América Latina: ensaios (2003), publicado também em espanhol (Co­lômbia, 2003).

Evelina Hoisel é professora Titular de Teoria da Literatura da UFBA, atuando nos cursos de Graduação e Pós-Graduação do Institu­to de Letras e da Escola de Teatro. É Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística. Foi Presidente da Associação Brasileira de Literatura Comparada - ABRALIC - (1998/2000); Di­retora do Instituto de Letras (1996/2000; 2000/2004); Vice-presidente

do Seminário Internacional de Estudos Nemesianos - SIEN (1996/

2000), órgão cultural que integra a Universidade dos Açores, a Univer­

sidade de Lisboa/PT e a UFBA. Sua atuação na pesquisa científica

envolve estudos sobre a obra de José Agrippino de Paula, João Guima­rães Rosa, Judith Grossmann, Silviano Santiago, a poesia de Castro Alves, Manuel Bandeira, Elomar Figueira Melo, publicados através de

livros e periódicos especializados.

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Fraok F. Sousa é Professor Titular de Português e Espanhol na Universidade de Massachusetts Dartmouth, tendo sido fundador e pri­meiro chefe do Departamento de Português daquela Universidade. É também fundador e director do Cenfer for Portuguese Studies mui Cu/ture (1996). Publicou O Segredo de Eça (Lisboa: Edições Cosmos, 1996) e está preparando uma edição crítica de A cidade e as serras, a ser publicada pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda.

Haos U1rich Gumbrecht é Professor dos Departamentos de Li­teratura Comparada, Francês e Italiano, Espanhol e Português da Uni­versidade de Stanford; Professor Associado no Departamento de Lite­ratura Comparada na Universidade de Montréal, Diretor de Estudos Associado na Eco/e des Haufes Ef/ldes en Sciellces Sociale.\' (Paris), Professeur lIttaché au College de Fraflce, e Fellow of fhe American Academy (~t'Arfs & Scie/lces. Além de centenas de artigos em periódi­cos europeus, norte-americanos e latino-americanos, suas publicações mais recentes incluem: Modemizaçao dos Sentidos (São Paulo, Brazil: 34 Letras, 1998), In 1926. Livi/lg af fhe Edge (~t' Time. (Cambridge: Harvard University Press, 1997); trad. Brasileira: Em 1926. Vivendo /lO Limite do Tempo (Rio de Janeiro: Editora Record, 1999); Corpo e forma. Letteratura, estetica, IlOn-ermeneuticll (Milão: Mimesis, 200 I); VOI11 Lehen lIIul Sterhell der g/'(~flen ROII/a/lisfen. Carl Vosslel; Emst Robert Curtiu.\·, Leo Spitzel; Erich Allerbach, Werner Krauss (Munich: Carl Hanser Verlag, 2002); The POl\'ers (~t' Phi/%gy. DY/lamics (d Textual Scholarship. (Urbana and Chicago: University ofIllinois Press, 2003); Production (~t' Presence. WlllIt Mea/ling Canflot Convey. Stanford University Press, 2004.

João Cezar de Castro Rocha é Doutor em Literatura Compara­da pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1997) e pela Uni­versidade de Stanford (20002). Professor de Literatura Comparada na UERJ. Autor de Life/'{/ful'll e cordialidade. O plÍblico e o privado na cultura brasileira (Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998; Prêmio Mário de Andrade, Biblioteca Nacional, 1998) e de O Exílio do homem cordial (Rio de Janeiro: Editora do Museu da República, 2004). Co-autor de René Cirard - Les origines de /a cu/fure. Enfrefiens avec Pierpaolo Antonello et }oiio Cezar de Castro Rocha (Paris: Éditions Desclée de Brouwer, 2004; "Prix Aujourd'hui"). No momento, principia a organi­zação, na "Adamastor Book Series" (University of Massachusetts), de New History ofBrazi/iall Liferature, em dois volumes.

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José Luís Jobim é presidente da ABRALIC (2005-2006) e pes­quisador do CNPq. É diretor do Instituto de Letras e Professor titular de Teoria da Literatura na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, lecionando a mesma disciplina na Universidade Federal Fluminense. Entre suas principais obras publicadas figuram: Palavras da crítica; tendências e conceitos nos estudos literários (Rio de Janeiro: Imago, 1992), Poética do jitndlll11ento (Niterói: Editora da UFF, 1996), Intro­duçüo ao Romantismo (Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 1999), A biblioteca de Machado de Assis (Rio de Janeiro: Topbooks / Academia Brasileira de Letras, 200 I), Formas da Teoria - sentidos, conceitos, políticas e campos de força IIOS estudos literários. (2. ed. Rio de Ja­neiro: Caetés, 2003), Literatura e inforll1lÍtica (Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 2005).

Marcia Azevedo de Abreu é Professora e Vice-Diretora do Ins­tituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP. Fez Pós-Doutorado na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales. Publicou 19 artigos em periódicos especializados, 18 capítulos de livros e foi autora ou organizadora de 8 livros.

Raul Antelo leciona literatura brasileira na Universidade Fede­ral de Santa Catarina. Pesquisador do CNPq, foi Guggenheim Fellow (2004) e Professor visitante em Universidades norte-americanas e eu­ropéias. Presidiu a Associação Brasileira de Literatura Comparada e integra a diretoria da Asociación Espafiola de Estudios Literarios Hispanoamericanos (AEELH). É autor de vários livros, dentre eles, Literatura em Revista; Na ilha de Marapatá; Parque de diversões Aníbal Machado; Algaravia.Discursos de Ilaçüo; Transgressüo & Modernidade; Potências da imagem e Maria COIl Marcel. Duchamp enlos trópicos (no prelo da Editorial Siglo XXI, de Buenos Aires). Em 2005 colaborou em vários livros de ensaios como Lectures d 'une oeuvre: Jorge Luis Borges; Derniere tentatioll de Valery Larbaud: le Brésil; O Grande Terramoto de Lisboa: Ficar Diferente; Candido Portinari y el sentido social dei arte; Arte de posguerra: Romero Brest y la revis­ta Ver y estimar; Olhares sobre o romance; A literatura latino-ameri­cana do século XXI, Viver com Barthes e Céu acima, para um tombeau de Haroldo de Campos. É editor de A alma encantadora das ruas de João do Rio; Ronda das Américas de Jorge Amado; Antonio Candido y

los estudios 11lt;nollmericlll1os e da Obra Completa de Oliverio Girondo.

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198 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n. 8,2006

Tania Franco Carvalhal é Professora emérita da UFRGS onde atua no PPG em Letras como docente e orientadora. Pesquisadora I A do CNPq, foi a primeira presidente da Abralic e atualmente é presiden­te da Associação Internacional de Literatura Comparada (AILC/ICLA). Organizadora do volume "Mario Quintana. Poesias completas" da Edi­tora Nova Aguilar (2005) e da coleção "Mario Quintana" da Editora Globo (2005/2006).

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Aos colaboradores

I. A Revista Brasileira de Literafllra Comparada aceita trabalhos inéditos sob a forma de artigos e comentários de livros, de interesse voltado para os estudos de literatura Comparada.

2. Todos os trabalhos encaminhados para publicação serão subme­tidos ü aprovação dos membros do Conselho Editorial. Eventuais sugestãoes de modificação de estrutura ou conteúdo, por parte do Conselho Editorial, serão comunicadas previamente aos autores.

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Para livros: a) autor; b) título da obra em itálico; c) número da edição, se não for

a primeira; d) local da publicação; e) nome da editora; f) data de publica­ção; g) número da página.

BOST, Ecléa. Memória e sociedade: lel11hrallças de velhos. São Paulo: T.A.Queiroz, 1979, p.31.

Para artigos: a) autor; título do artigo; c) título do periódico (em itálico); d) local

da publicação; e) número do volume; f) número do fascículo; g) página inicial e final; h) mês e ano.

ROUANET, Sérgio Paulo. Do pós-moderno ao neo -moderno. Re­vista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n.l, p. 86-97, jan.lmar., 1986.

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Exemplo: FIG.l, (FIG.2) As ilustrações devem trazer um título ou legenda, abaixo da mesma,

digitado na mesma largura desta. 8. Os autores terão direito a 3 exemplares da revista. Os originais

não aprovados não serão devolvidos.

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