revista brasileira de literatura comparada - 03

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ISSN-Ol 03-6963

A Revista Brasileira de Literatura Comparada (lSSN-0l03-6963) é uma publicação anualda Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), entidade civil de caráter cultural que congrega professores universitários, pesquisadores e estudiosos de Literatura Comparada, fundada em Porto Alegre, em 1986.

DIRETORIA DA ABRALIC - 1994-1996 Presidente: Eduardo F. Coutinho (UFRJ); Vice-Presidente: Beatriz Resende (UFRJ); Secretária: Angela M. Dias (UFRJ); 28 Secretária: Heloísa Toller Gomes (UERJ); Tesoureira: Pina Coco (PUC-RI); 28 Tesoureira: Lídia do Valle Santos (UFF).

CONSELHO DA ABRALIC - 1994-1996 Benjamin Abdala Júnior (USP); Edson Rosa da Silva (UFRJ); Eduardo A. Duarte (UFRN); Eneida Leal Cunha (UFBA); Laura C. Padilha (UFF); Leyla Perrone-Moisés (USP); Regina Zilberman (PUC-RS); Rita T. Schmidt (UFRGS); Vera Lúcia Andrade (UFMG); Suplentes: Danilo Lobo (UNB); Sérgio Prado Bellei (UFSC).

CONSELHO EDITORIAL Benedito Nunes, Bóris Schnaidermann, Dirce Cortes Riedel, Eneida Maria de Souza, Haroldo de Campos, João Alexandre Barbosa, Jonathan Culler, Lisa Block de Behar, Luiz Costa Lima, Marlyse Meyer, Raúl Antelo, Silviano Santiago, Sonia Brayner, Tania Franco Carvalhal, Yves Chevre!.

Os conceitos emitidos em artigos assinados são de absoluta e exclusiva responsabili­dade de seus autores.

REDAÇÃO E ASSINATURAS Abralic - Associação Brasileira de Literatura Comparada Faculdade de Letras - UFRJ Av. Brigadeiro Trompowsky, s/n - sala F-326 Cidade Universitária - Ilha do Fundão 21941-590 Rio de Janeiro, RJ Te!.: (021) 590-0212 r. 284/279 Fax: (021) 280-3141

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Page 5: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

© 1996. Associação Brasileira de Literatura Comparada. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados, sem permissão por escrito.

Editoração Eduardo F. Coutinho Beatriz Resende Angela M. Dias Heloísa Toller Gomes Pina Coco Lídia Santos

Produção gráfica Rodrigo Rocha Coutinho

Composição Carlos Alberto Herszterg

Produção editorial e gráfica In-Fólio - Produção Editorial, Gráfica e Programação Visual Ltda. Rua das Marrecas, 36 - grupos 40\ e 407 - Rio de Janeiro Te!.: (021) 533-0068 e 533-2337 - Fax: (021) 533-2898

Tiragem 1.200 exemplares

Apoio CNPq/FINEP

CIP·BRASIL. CATALOGAÇÃO·NA-FONTE

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

R349 Revista brasileira de literatura comparada. - N. I (1991) - Rio de Janeiro :

Abralic, 1991 - v.

Anual Descrição baseada em: N. 3 (1996) ISSN 0103-6963

1. Literatura comparada - Periódicos. I. Associação Brasileira de Litera­tura Comparada.

96-1200 CDD 809.005 CDU 82.091(05)

Page 6: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

Apresentação

Com o intuito, já visível em seus números anteriores, de instaurar um verdadeiro intercâmbio entre os diversos centros nacionais e estrangeiros onde se estuda a Literatura Comparada e de interferir de modo mais eficaz no debate cultural da atualidade, a Associação Brasileira de Literatura Compa­rada lança o terceiro número de sua revista. Este volume reúne ensaios que fornecem um retrato das diretrizes tomadas pela disciplina em seu momento mais recente e buscam desencadear uma reflexão aprofundada sobre as ques­tões que a vêm ocupando.

Além do debate em torno de problemas teóricos do comparatismo, publi­camos textos voltados para temas como o do nacionalismo, da identidade cultural e do diálogo de culturas. assim como outros interessados na discus­são sobre novas formulações e um novo estatuto para a Historiografia e a Teoria Literárias. O debate sobre o papel do Brasil no contexto latino-ameri­cano. bem como sobre a produção cultural do continente, também ocupa boa parte das atenções.

A diferenciada procedência e os múltiplos campos de pesquisa dos cola­boradores comprovam a amplitude e a importância da ABRALIC. A disposi­

ção dos ensaios, procurando respeitar a diversidade dos interesses, resulta numa seqüência relativamente aleatória. As associações e enlaces ficam por conta do leitor.

A Comissão Editorial

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Sumário

Does Eyptology Need a "Theory of Literature"? Hans Ulrich Gumbrecht

Encontros e desencontros narrativos Eduardo Portella

Hacia una historia literaria postmoderna de América Latina

Mario Valdés

Literatura e nação: esboço de uma releitura Luiz Costa Lima

As velocidades brasileiras de uma inimizade desvairada: o (des)encontro de Marinetti

e Mário de Andrade em 1926 Jeffrey T. Schnapp e João Cezar de Castro Rocha

Literatura comparada e literaturas estrangeiras no Brasil Tania Franco Carvalhal

Literatura comparada. literaturas nacionais e o questionamento do cânone

Eduardo F. Coutinho

o romance latino-americano do pós-boom se apropria dos gêneros da cultura de massas

lrlemar Chiampi

Necessidade e solidariedade nos estudos

09

23

27

33

41

55

67

75

de literatura comparada Benjamin Abdala Júnior 87

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La creatividad artística de la mujer: Como agua para chocolate

María Elena de Valdés 97 o leitor, de Machado de Assis a Jorf!e Luis Borf!es

R;gina Zilber:wn 1 07 o histórico e o urbano: sob o sif!no do estorvo

Renato Cordeiro Gomes 1 21 Teoria da literatura: instituição apátrida

Heidrun Krieger Olinto 1 31 Romance e História

Letícia Malard 143 o enigma da fusão ficção/crítica sobre tradução:

rasura de limites? Célia Maria Magalhães 151

Transcodificação e metateatralização no teatro de Nelson Rodrigues

Fred M. Clark 1 59 Identidade nacional e sociedade multicultural

Silvano Peloso 165 A nação e as narrações híbridas: literatura

hispânica dos Estados Unidos Sonia Torres 1 71

As sombras da nação Luís Alberto Brandão Santos 1 79

A passante e o "choque": a experiência da fugacidade no cinema e na literatura

Suzi Frankl Sperber 1 87 EI Síndrome de Merimée o la espafiolidad

literaria de Alejo Carpentier Luisa Campuzano 1 99

Page 9: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

Does Egyptology Need a "Theory of Literature"?

Hans Ulrich Gumbrecht

Would Egyptology as a discipline (or, more precisely, would a part of the

discipline called "Egyptology") fare better if it intensified its intellectual exchange with the "theory of literature"? The question is more complex than

it may appear at first glance - and this is true for a number of different reasons. Above ali, it is far from being obvious, at least it is far from being

obvious to me, what the scholarly community of the Egyptologists needs or

wants, and it is equally difficult to say what exact!y the heterogeneous

enterprise of literary theory can offer today. Secondly, as both Egyptology

and literary theory are institutions (or "discourses") with their particular

histories, there is no guarantee that these two institutions/discourses will converge in that kind of dialogue or exchange whose possibility is already taken for granted in the question of whether Egyptology needs a theory of

literature. A naNe approach would presuppose that Egyptology and theory of literature are nothing but the absorption of phenomenal fields (Ancient Egyp­

tian culture and Literature) by scholarly discourses which, somehow in­

evitably, belong to the same categoricallevel. In reality, however, an infinity of possible perspectives and functions may shape the mediation between any

field of objects and the scholarly discourses referring to it (a scholarly

discourse, for example, could conceive of itself as offering the interiorization

of [more or less] practical skills, or as a contribution towards the constitution

Page 10: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

10 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

of a national identity, or as participating in the exploration of possible func­tions of the human mind) - so that an unproblematic encounter between discourses like those of Egyptology and literary theory (on the basis of an

identical or at least similar relationship to their objects) is very unlikely.

This is why, if we are serious about finding an answer, we must begin by contextualizing the question of whether Egyptology needs a theor)' of litera­ture. We will therefore take a closer look at the historical circumstances that accompanied the emergence and the development of both Egyptology (I) and of literary theory (2) in order to identify possible epistemological and discur­sive asymmetries (3) between them, asymmetries which ma)' potentiaUy

complicate their dialogue. While such a contextualization wiU indeed enable us to come up with an answer or, ralher, with a series of answers to our key question, these answers will remain obliqlle because. as we wiU see, the relationship between Egyplology and literar)' theory proves to be not a par­ticularly easy one. The contemporary slale of Egyptological research offers highly interesling results to lhe disciplines in its scholarly environment (4)

but, on the other hand, literary theory has a tendency today, stronger perhaps than ever before, of suggesting a thorough historization of the concept of "literature". Once we know which specific varieties of literature literary theory is actuaUy dealing with, this may generate serious scepticism about the applicability of results coming from literary theory to a culture as remote

from the occidental tradition as that of Ancient Egypt. (5) But, then, turning around the initial question, should one not at least say that literary theory

needs Egyptology? The answer is, once again, complex (6) - for it depends on how we determine the tasks and functions of literary theory. One expecta­tion, however, remains stable within and despite such considerable com­plexities. With literary theory or withoUI it, Egyplologists wiU find fascinated readers inside and outside of the academic world.

1

It is almost uncanny to read that, several centuries ago, lhe sites of lhe pyramids were "a favorite riding, hunting and tournament ground for lhe

social and military elites of Muslim Egypt" and that, for the longest time. the worldview of Islam attributed dangerous magic int1uences to the remainders of that remote culture which nobody could understand because nobody could decipher its writing. Even those Ancient Greek authors who had accumulated such an impressive body of knowledge about the history and the institutions of their neighboring empire gave Egypt a "marginal position" within their own mappings. From the angle of the Christian tradition, final1y, the pyramids and their world were, so to speak, in a relation of half distance because, on the one side, motifs from Egyptian narratives, mediated through

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I. See the entry "Mummies", in: GUMBRECHT, Hans UIrich. In 1926. An Essay on Histori­cal SimuItaneity. Cambridge,

Ms., 1997, XX-XXX.

Does Egyptology Need a "Theory of Literature"? 11

Coptic texts, found entry into many apocryphal stories but, on the other side, these motifs never reached the canon of the Gospel. At no other moment since its final disappearance during the times of the Roman Empire, have Ancient Egypt and its texts indeed been as close and, even on a popular leveI, so well explained as during our century within western culture. If the obsession with looking into Tutankhamen's face and the egyptomania of the 1920s were perhaps the most intense moments of this presence,I the volume of knowledge made available and the intensity of our historical understanding have dramatically increased over the past decades, while the place of Ancient Egypt within educational curricula and publishing programs seems to be as

stable as ever.

There is no need to insist that alI of this would not have been possible without the stunningly successful history of "Egyptology" as an academic

field of research. For it belongs to our general cultural knowledge that the origins of Egyptology (with more irrefutable evidence than those of most other disciplines) go back to an initial event and to an initial achievement,

i,e" to Napoleon's expedition to Egypt between 1798 and 1801, which led to

the disco\'ery of the stone of Rosette and to the deciphering of the hieroglyphs. in 1822. by Champollion. In contrast. it is much less evident

than for the disciplines focussing on national cultures what really motivated the Egyptologists of the first generation in their heroic labor of transcribing,

translating, and editing texts. Occasionally, we can reconstruct an individual

reason for such enthusiasm, like Charles Wycliff Goodwin's and François­

Joseph Chabas' ambition to prove wrong the interpretation of certain papyri

as a testimony for the Israelites' exodus from Egypt. On the whole, however, it appears to be symptomatic that early Egyptologists, in their large majority, were amateur scholars. During several decades, there was no obvious need

nor interest on the States' side to institutionalize Egyptology as an academic

discipline. It is not untypical, in this respect, that, towards the end of the 19th

century, the University of Berlin became a center for the systematization

(mainly consisting in writing grammars and dictionaries) of the work produced by the first generation of Egyptologists. Nowhere was the academic ideal of "covering" the full horizon of known cultures and of all the available cultural materiaIs more rigorously pursued, even in the absence of an im­

mediate political interest, than in Prussia and, since 1871, in the Germany of

the Second Empire. By 1927, it probably was quite a normal expectation that

an ambitious editorial project like the Handbuch der Literaturwissenschaft

(which in fact was rather a manual of literary history than of literary studies in general) would contain a chapter on Ancient Egyptian literature.

This chapter in the Handbuch der Literaturwissenschaft, written by Max

Pieper and published under the title "Di e aegyptische Literatur", together

with a review article by Alfred Herrmann, illustrates an important bifurcation

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12 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

within the history of Egyptology. While Pieper used texts labeled as "Iitera­

ture" with the mere intention of gaining access to the history of Ancient

Egyptian culture, Herrmann insisted on the task of analyzing the complete corpus ofEgyptian literature from the angle of a form-oriented reconstruction of Iiterary genres. This divergence between Pieper and Herrmann might be long forgotten, if it were not for the publication, in 197.t. and for the success of an essay in which Jan Assmann proposed a recourse to the then mueh debated (but already more than fifty years old) theones of the Russian Formalists. The intention was, once again, to de'-elop a concept of "litera­ture" compatible with a specific sub-group within the total corpus of Aneient Egyptian texts.2 What particularly fascinated Assmann in this context was the Formalists' idea of purely relational definitions for the "Iiteratures" within each specific culture and each historical period. definitions of literature that were meant to depend entirely on the difference between the "literary" texts and their particular discursive environments. The discussion of Assmann's

proposal within Egyptology seems to have led to a much less theoretically conscious concem with "literariness", to a concern also that has not always resisted the temptation of using substantialist (non-historicized) sets of criteria in order to determine which Old Egyptian texts should be regarded as "literary". Altogether, it was surprising for me to discover such an intense

debate about textual classifications and about textual forms generally referred to as "aesthetic" within a discipline whose broad success has always been based on its contributions to our knowledge of cultural history. 8ut what is surprising must not necessarily be problematic or even illegitimate.

2

Different from Egyptology, the field of !iterary studies (as an assembly of academic disciplines that inc1ude, each, the historiography of a national literature in an European language, the practice of literary interpretation. and debates about a theory of literature) does not have a clear-eut. consensual reference when it comes to narrating its historical origino On the other hand,

it is easier for literary studies than it is for Egyptology to understand why the disciplines gathered under its umbrella found strong support from the State's side and why they were thriving all over the 19th century in most European countries.3 A point of departure for narrating the history of Iiterary studies could be the then new divergence and the fast widening gap between norma­tive conceptions of society and gap brought in to being, as a new cultural space to which, at least theoretically, every citizen had access, the sphere of leisure. Leisure was constituted by activities that either fostered the iIIusion of enjoying those privileges which the normative image of society promised to everyone (without fulfilling this promise in everyday life), or it offered

2 Der literarische Text im al­

ten Aegypten. Versuch einer

Begriffsbestimmung_ In: OIZ 69:117·26,1974.

J. See GUMBRECHT, Haos UI­

rich. Un souffle d'Allemagoe

ayaot passé. Friedrich Diez,

Gaston Paris, and lhe Origins

of National Philology. In: Ro­mance Philology 40:1-37,

1986; Idem The Future of Li­terary Studies? In: New Lifera­

ry History 26:499-519 (Sum­mer 1995); REAnINGS, BiII. The Uoiversity in Ruins. Cam­bridge, Ms., 1996.

Page 13: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

.. See GUMBRECHT, Hans UI­

rich. Medium Literatur forth­

coming in: FASSLER, ManfredJ

HALBACH, W u I f I KONITZER

Ralph, eds.: Mediengeschich­

te(n). München 1997, XXX­

XXX.

Does Egyptology Need a "Theory of Literature"? 13

forms of experience suggesting that the perceived gap between everyday-life and the self-glorifying image of society did not "really" exist. During the decades of European Romanticism, the writing and the reading of literature became a part of this sphere of leisure. Reading literature was regarded as a kingsway towards the interiorization of the normative image of society, and literary studies were created as an institution that supported the discourses of literature in fulfilling their new function of mediating between everyday experience and the official social utopia.

This occurred under two different modalities. Wherever the bourgeois Reforms were reactions to a situation of defeat and of national humiliation (like in Gemlany), the normative conception of society drew its values, its

images, and its metaphors from a glorified, mostly medieval past which, from

a (for us problematic) 19th century perspective. appeared almost naturally to be a national past. Under such circumstances. literary history and the editing of texts from the "national" past became a concem, in addition to the produc­tion of textual interpretations for the orientation of non-professional readers. In those cases, however, in which the bourgeois Reforms or Revolutions

occurred without a nationally humiliating event, like in England or in France

(at least before 1871), the normative image of society consisted in an ideal notion of Makind which presented itself as universal - but which, today, we

can easily identify as composed by specifically European (and often even:

nationally specific) values. A crucial condition for this framing of an

academic discipline was an - again - historically specific concept of "litera­

ture" which literary studies, in their early beginnings, projected indis­

criminately to the different periods of literary history.4 This concept presup­posed that any literary text was the product of an inspired individual author's intention and agency (i.e. the emanation of a "genius"); that literary authors,

without personally knowing their readers, were always close, in the texts they

wrote, to the reader's most intimate thoughts and desires; that neither the

writing nor the reaeling of those texts was informed by any concrete interest

anel that, therefore, their generalized semantic status was that of fiction; that phenomena ofform played a more important role for literary texts than within any other type of discourse. Later, it became an increasingly accepted - and often feareel - expectation that literary texts had a criticai or even a "subver­sive" potentiaL

Three important contrasts between the disciplinary development of

literary studies and the early stages of Egyptology have become evident from this short description. Firstly, no specific concept of literature, neither im­

plicitly nor explicitly, plays a foundation for Egyptology. Secondly, as claims for a continuity between Ancient Egyptian culture and the present of the

western nations have never been made, Egyptology, unlike literary studies,

does not participate in any functions of social or political legitimation. This,

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14 Revista Brasileira de Literatura Comparada, nO 3

thirdly, must have been a main reason why, despite the complexity of the

tasks implied and despite the ear1y date of its foundational events, the process

of professionalization and the academic institutionalization of Egyptology occurred with a considerable delay compared to literary studies. From the point of view of the unquestioned status and the social impact of the dis­cipline, the 19th century was probably the great age of literary studies, in particular of literary history. The discipline underwent a first serious crisis,

especialIy in those countries which had folIowed the German model of academic institutionalization. during the first decades of our century - and the emergence of the subfield called "literary studies" was a direct reaction

to this crisis. What became problematic. in a changing epistemological en­vironment and under the traumatic impact of the first World War, were those idealized concepts of the nation and of Mankind which. fram their beginning,

had been the most important horizons of reference for the literary disciplines. As these horizons began to vanish, literary scholars saw themselves con­fronted with a number of questions that had been implicitly answered (or should one rather say: that had been successfulIy silenced) by the disciplinary practice during the 19th century. These questions have ever since constituted the field of literary theory - and what has guaranteed their survival was the fact that they never found definitively satisfying answers. The first of these questions concerned the function of literary studies (now that this function could no longer consist in its contribution towards the mediation between the everyday experience and the normative image of society). The second new

question carne fram the need for a metahistorical definition of literature with

which to circumscribe the field of literary studies (previously, the romantic notion of literature had been taken for granted in this context and, in addition, there had been a tendency to attribute the status of "literature" to any text that could be used in the function of mediating between the normative image of society and everyday experience).5 FinalIy, it was now no longer obvious how

the history of literature would relate to other lines of historical development

(before, alI different histories had been seen as converging in the one norma­

tive concepts of the nation or of Mankind).

These three questions were primordial, for example, within Russian Formalism which is generalIy regarded as the first "theory of literature" deserving this name. But there was another new form of practice emerging within literary studies which reacted to the crisis of the discipline. This practice, particularly influential among some of the most outstanding Ger­man scholars of the 1920s,6 did not develop a self-referential discourse as programmatic as that of Formalism and is theret"ore more difficult to identify. It presupposed a shift from discourses presenting national histories of litera­ture as linear developments towards a paradigm ot" comparison between chronologicalIy parallel segments within different nationalliteratures. Such

5 This is the reason why the

medieval corpora wi thin the

different European national li­

terature always incJude texts.

such as prayers. recipes, con­

tracts etc., that we can by no

means associate with our mo­

dern concepts of "literature".

". See GUMBRECHT, Hans UI­rich. Karl Vosslere noble Ei­

neamkeit. Über die Ambiva­

lenzen der 'inneren Emigra­

tion'''. In: GEISSLER, R./Popp.

W., eds.: Wissenschaft und

Nationalsozialismus. Essen,

1988, 275-298; id: Pathos of

the Earthly Progress'. Erich

Auerbach's Everydays. In: LE­

RER, Seth, ed.: Literary Histo­

ry and the Chalenge of Philo­

logy. Stanford, 1996, 13-35.

Regarding the emergence of

the discipline of Comparati ve

Literature, see PALUMBO-LIu,

David: Telmos da (in)diferen­

ça: Cosmopolitismo, Política

Cultural e o Futuro dos estu­

dos da Literatura. In: Cader­

nos da Pás/Letras. Rio de Ja­

neiro, 14:46-62, 1995.

Page 15: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

7. In this regard, it is interes­ting to know that the editor of the above/mentioned Hand­

bueh der Literaturwissens­ehaft was Oskar Walzel, one of

the most influential represen­

tatives ofthe eomparative (and eultural-historieal) approaeh

in literary studies. See e.g. his: Vom Geistesleben des 18. und 19. J ahrh underts. Lei psi g,

1911 (trans. into English in 1932.) André Jolles' extraordi­

nary book, Einfache Formen, (Halle, 1930), whose impact

on Egyptology is mentioned

by Schenkel, belongs ioto the same historieal eontext.

R. This, I suppose, must be the

main reason for the scepti­

eism, artieulated by Wolfgang Schenkel, regarding the possi­

bility for Egyptologists to wrÍ­te a "History of Egyptian Iite­fature".

Does Egyptology Need a "Theory of Literature"? 15

comparing become a way of reconstructing certain features that characterize specific periods within European culture. Literary history, in this context, turned into cultural history. It seems that Egyptology responded to both of the new paradigms which carne out of the crisis of literary studies, to literay theory and to the new discourse of cultural history. But the moments of highest intensity in these responses inverted the order in which the new paradigms had emerged. While the model of cultural history probably reached its greatest influence within Egyptology during the 1920s, (contem­porary to its culminating moment in literary studies),7 the broad reception of the Formalists began only fifty years later, simultaneous to their enthusiastic rediscovery within literary studies.

But it is perhaps less important for us to reconstruct the details of similar historical filiations than to emphasize those insights resulting from our brief juxtaposition of the histories of Egyptology and of literary studies (including literary theory) which directly concern the key problem oftheir epistemologi­cal compatibility. Without always taking it into account, literary studies have been based, since their beginning, on a highly specific concept of literature, a concept which is unlikely to have any more than rough parallels within Ancient Egyptian culture.8

Emerging from chronologically close but culturally very different con­texts, it is not surprising that the academic disciplines of Egyptology and of literary studies have developed different political concerns, different intellec­tual paradigms, and different discursive models. Literary theory, in specific, is an academic subfield whose questions and whose accomplishments depend direct1y on a particular moment in the history of literary studies. There is no guarantee, to say the least, that the results of literary theory can ever be successfully transferred and applied to any disciplinary field outside literary studies.

3

Such very general considerations about possible asymmetries between Egyptology and literary studies become more concrete as soon as one com­pares some of the specific conditions and difficulties under which Egyp­tologists do their work with the practice ofthe historian of western literatures. One of the most striking contrasts is that between an extreme scarcity of documents available for Ancient Egyptian culture and, on the other hand, an abundance of primary texts with which even the medievalists among literary historians are struggling today. If Egyptologists must ask the question, for example, whether any equivalent to a literary discourse existed during the Ancient Kingdom, if a specialist counts a total of between twenty or thirty distinguishable traditions for literary texts during the Middle Kingdom, and

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16 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

if the work of editing and translating in a field as important as that of the

demotic texts is still in its initial stage, then the observation of any kind of

historical development within Ancient Egyptian literature, due to such scar­city of sources, has a highly hypothetical status - and the reconstruction of

any intertextual networks is perhaps simply impossible. Egyptologists are

certainly aware of the consequences which this situation has for the status of

their discourses - up to the point where such awareness has become a

key-component in the intellectual identity of their discipline. This challenge coming from the discipline's precarious documentary basis is aggravated both by the lack of any meta-commentaries and concepts, within Ancient

Egyptian culture, regarding the texts characterized as "literary", and by the

fragmentary character of most of the textual sources that we possesso The

state of the discipline's archive and the distance that separates us, on different

leveIs, from Ancient Egypt confront the Egyptologist with hermeneutic chal­

lenges that could hardly be any tougher - and any more elementary. At the same time and for the same lack of centextualizing knowledge, the highest leveIs of hermeneutic sophistication often remain inaccessible for the Egyp­

tologist. As long as it is unclear whether or not a specific textual passage must

be read as a metaphor and whether another one is a euphemism for a sexual

detail or a phrase without any sexual connotations, as long as the Egyptologist's task is often reduced to "translating what he does not under­stand", concerns like those, for example, of deconstruction or of critique génétique are quite secondary.

Other limits and problems of Egyptology havc to do with the multiple

writing systems which Ancient Egyptian culture developed and with the materiality ofthe media which it used. Given the strictly consonantic charac­ter of these writing systems, there is no hope for us to ever imagine the sound qualities of Ancient Egyptian texts, which of course makes particularly

precarious the analysis and even the identification of lyrical texts. On the

other hand, one may suppose that the role played by the form of graphemes

in the construction of texts, including the constitution of their content, must

have been quite different from the reduced importance typically attributed to graphemes within our - logocentric - western culture. But above all the multiplicity of the writing systems and of the material media belonging to Ancient Egyptian culture makes highly problematic the assumption that

Ancient Egyptian literature constituted a unity. We know that, at least statis­

tically, certain relationships of preference existed between determinate tex­tual genres and the different writing systems (i.e. monumental hieroglyphs, cursive hieroglyphs, hieratic writing, and demotic writing). The picture be­comes even more complex - and even more potentially heterogeneous - if one takes into account, as a third leveI of reference, the different materiaIs on which texts (in different letters) were written - such as walls, papyri, wood

Page 17: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

Y. From a similar perspective,

!iterar) slUdies have discus­

sed. during recent years, whe­

ther the emergence of the con­

cept and of the forms of Iitera­

ture to which we are used in

westem cultures was flot a re­

sult of the institutionalization

af the printing press. See

SMoLKA-KoERDT,Gisela/ SPAN·

GENBERG, Peter-Michaell TILL·

MANN.BARTYLLA, Dagmar,

eds.; Der Urspring van Litera­

ture. Medien/Rallen/Kammu­

nikationsituationen zwischen

1450 und 1650. München,

1988.

Does Egyptology Need a "Theory of Literature"? 1 7

tablets, and ostraka. Finally, at least during the New Kingdom, situations of diglossia introduced the simultaneous existence of historically different layers of language as a further complexifying dimensiono Of course Egyp­tologists thematize all these problems, with special emphasis given, it seems, to the functions and generic restrictions of monumental hieroglyphs. But two overarching questions - highly interesting questions from the perspective of contemporary literary studies - still remain to be addressed. The first of these questions - the one emphasizing historical difference - is whether a more systematic approach to the phenomenal leveIs of the writing systems and of the material media would not generate new insights into the institutionaliza­tion of and the distinction between different communicative forms, especially between those communicative forms that remain without self-reference in Ancient Egyptian culture and must therefore be recuperated inductively.9 Which are the gemes, for example, that only materialized in monumental writing? The second question is a self-reflexive question regarding the present state of lhe Egyptological debates. If we make an association between the western concept of literature, logocentrism, and a lack of attention dedi­cated to what Derrida calls the "exteriority of writing", could we then say that the Egyptologists' fascination with the (inevitably homogenizing) concept of "literature" necessarily implies the risk of losing out of sight the dimensions

of the writing systems and of the media?

4

To emphasize, as the previous section did, that Egyptogists are con­fronted with difficulties and tasks unknown to literary critics and historians

of Iiterature, with tasks also that sometimes seriously Iimit their possibilities of understanding and of historical reconstruction, does of course not mean that Egyptology has nothing to offer to its neighboring disciplines. The contrary is the case. Whenever Egyptologists, in their analytical practice, have not been relying on the universal validity of certain patterns generalized within western cultures, they have produced insights that are the more impor­tant for the historians and theorists of literature as they are all highly counterintuitive. In their majority, these insights focus on the pragmatic conditions for lhe production and reception of texts in Ancient Egypt. Of particular interest are the manifold and complementary observations regard­ing the status of writing and of writing competence. Based on the fact, trivial for Egyptologists, that the quantitatively most important source for texts from

Ancient Egypt are indeed tombs, the logical consequence that texts not having to do with tombs constitute the exception has made questions about the functions of these "other texts" particularly productive. These questions drew new attention to the - only vaguely institutionalized - social situation

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of Aneient Egyptian sehools and generated the thesis that knowing how to read and how to write (and, with it, the eapacity of "inhabiting" a eertain

number of highly eanonized texts) was synonymous with "being an Egyp­tian". As soon, however, as we aecept this suggestion, the historie aI reference of "being an Egyptian" is reduced to a smalI elite within that culture, more

precisely to "the titled and official classes". If papyri were the most frequent­ly used material medium facilitating this process of socialization, it is ob­vious that the royal inscriptions in monumental hieroglyphs fulfilled different functions. Above alI, they were meant to impose a specific impact on the beholders and their behavior, and they thus became part of "the state's

memorial of elite values". In the context of similar reflections and reconstructions, Egyptologists

rely on the concept of "genre", especially on an interpretation of "genre" coming from Protestant theologylO which presents each recurrent textual form as shaped by a specific "Sitz im Leben". Such attention given to the frame conditions under which texts were produced and used has greatly differentiated the understanding of the relationship between power and reli­gion in Ancient Egypt. The knowledge of certain texts and their content was indeed an essential condition for the pharaoh's power. To read those texts meant to reenact a set of ideological models. Within Egyptian culture, such constant commemoration of certain values constituted a necessary function that was covered by the broad corpus of didactic texts. For, typically, Egyp­tian gods were not expected to provide cIear-cut distinctions between sins and virtues, and they therefore left a void regarding ethical orientation - which theology in and by itself could not easily filI. A particularly interesting genre, a genre with a very different - but also religious - origin is that of autobio­graphy. Without any exceptions, its early manifestations were dedicated to what was the central project in every Egyptian's life: the reassurance of a­spiritual and, in a certain sense, also material - survival after one's physical death. This wish, which transcended the mere hope of being remembered by one's posterity, this wish for "real presence" (and the allusion to a key-motif ofmedieval theology is deliberate here) explains why we find early autobio­graphies as hieroglyphic inscriptions carved into widely visible stelae that were erected in public places. While such early examples of autobiography always render a highly conventional and highly idealized image ofthe person in question, the genre ended up coming much cIoser to our modern expecta­tions of an individualized and individualizing account. This historical deve­lopment culminates in the fictional narrative about the life of Sinuhe, the perhaps most unusual and (according to our modem criteria) the most "lite­rary" text within Ancient Egyptian culture. That such changes on the leveI of genre-typical content went along with a development of the generic functions appears from certain changes, occurring over the centuries, in the mediatic presentation of autobiographical writing. But as c10se as the forms and

10. See J AUSS. Haos Robert. 1beorie der Gattungen und Li­teratur des Mittelalters. In:

DE!.BoUIU.A, Maurice, ed. Grundiss der rornanischen Li­

teraturen des Mitte1alters. Hei­delberg, 1972. Vol. I, 107-

138. esp. 129-134.

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Does Egyptology Need a "Theory of Literature"? 19

functions of certain Egyptian genres may come to certain patterns of the western tradition, important and interesting differences remain. A particularly striking case is the concretization of the function of entertainment within the Egyptologists' debates. Often, "entertainment" seems to have responded to the need of calrning the pharaoh's temper - which, at the Egyptian court, meant much more than just pleasing or flattering the ruler. For the pharaoh's temper, perhaps even his melancholy (if we may use this word despite its historically very specific meaning), constituted situations of concrete danger for the courtiers and even for the members of the royal family. Being inter­preted as part of a cosmologícal disorder, the pharaoh's temper was never reduced to just being the symptom of an unp1easant individual disposition.

One of the most fascínating aspects within the pragmatics of Ancient Egyptian texts (a topíe that hterary historians should more systematically explore) regards the question of authorship. While most texts are not related to any name at alI. Egyptologísts are certain that. in the cases of those two genres whose texts are quite regularly attributed 10 individuaIs, i.e. in the case of didactic Iiterature and in that of autobiography. the name-references do not correspond 10 our modem criteria of authorship. Regarding the autobiogra­phies, there is no reason to believe that those in whose name they were written - in the first person - were those who actually composed the texts. If it is characteristic for didactic texts that they present themselves as the work of individuaIs (mostly of individuaIs that had lived in a chronologically remote

age), we tend to believe that, with a few exceptions, these attributions were invented because they gave the texts that specific aura of dignity which we associate with wisdom. The sum of such observations regarding the question of authorship suggests that we need to rethink the entire problem for the context of Ancicnt Egyptian culture. This rethinking has indeed already begun. Egyptologists have thus come to postulate that, from the point of view

of authorial agency, the pharaoh may have been regarded as the only and universal author of ali texts - not unlike the god of the Christian Middle ages for whom the Latin word "auctor" was reserved. Others think that the role of authorship may have corresponded, at least for the majority of the texts transmitted, to the owners of monumental tombs.

5

The topic, predominant within the pragmatics of Ancient Egyptian cul­ture, of the intricate and seemingly ubiquitous relationships between those texts which Egyptologists define as "literature" and the different forms of

religious practice brings us back to the main question with which this essay is confronted. It is the question (now more abviaus in its complexity) af whether ane can successfuly apply certain definitians af "literature" and

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20 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

other results of Iiterary theory to Ancient Egyptian culture. Let us discuss one

more example. Together, literary and theological texts constitute "the

majority of our evidence" for the existence of myths during the Middle

Kingdom. This precisely explains the impression that aesthetic functions and

functions of magic were often intertwined, and that, although any kind of

magic implies strong claims of referentiality, fictional texts could be used in

contexts of magic practice. In the case of this interesting discursive con­

figuration, too strong an emphasis on the "literariness" of certain texts and, as its consequence, an isolation of these "literary" texts from the rest of the Egyptian corpus could imply the risk of missing - or even of losing - insights

into those phenomena of cultural alterity by which the neighboring dis­

ciplines of Egyptology and the non-academic readership are so particularly

fascinated. Conversely, a not sufficiently skeptical application of the concept

of literature may also run the risk of producing effects of homogenization and

impressions of homogeneity that are as problematic as the effects of isolating literature from its discursive environment. Therefore, Egyptologists who seek a dialogue with the most recent debates in literary studies should pay specific

attention to its present tendency of developing distinctions between different

leveIs of mediality, to a tendency, that is, which has opened up new perspec­

tives of internaI differentiation and historization within the field of western

literatures. 1l For it is Iikely that the application of this aspect to Ancient Egyptian culture could, in turn, generate insights of paradigmatic value for Iiterary studies. The functional differentiation between different writing sys­

tems in Ancient Egypt, for example, appears to be more complex and, at the

same time, more systematized than in any of the western Iiteratures. In contrast, analyses about the degrees of "poeticity" represented by certain Egyptian texts or investigations regarding their status as "artworks", as im­pressive as their argumentations may sometimes look, will always be accom­panied by doubts about their historical and cultural appropriateness.

At the end, an outsider cannot quite repress the question what is at stake

in the Egyptologists' contemporary fascination with a concept of literature

adopted from literary theory - if so much seems to be at risk. Doubtlessly, this fascination must be motivated and guided by some intuitions which the outsider, for a sheer lack of reading competence, is not capable of sharing. In the interest of a fruitful intellectual exchange between the disciplines, it

would certainly be helpful to make more explicit these intuitions which have led to the be\ief that \iterature, in the western sense of the word, was a part of

Ancient Egyptian culture. But is it too simplistic to go one step further and ask whether, in addition, the concern 01' a small group of specialists not to lose the contact with the ongoing debates in the neighboring disciplines may have played a role in Egyptology's shift to "literariness"? On the one hand, it can only be in the interest of the scholars of modern Iiteratures that Egyptologists

11 See, as evidence for this

concern. a number of the con­

tributions to GUMBRECHT,

Hans Ulrich / PFEIFFER, K. Ludwig, eds.: Materialities of

Communication. Stanford,

1994.

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12. See After Leaming fiom History, lhe introductory chap­ter to my forthcoming book: In 1926. An essay on Historical SimuItaneity, Cambridge. Ms., 1997.

13. See, for a complex discus­sion, \sER, Wolfgang. Key ConceplS of Currrenl Lilerary Theory and lhe Imaginary, and Toward a Lilerary Anthropo­logy, in: Prospecting. From Reader Response lo Literary Anthropology. BaItimore, 1989,215-35,262-84.

14. See GUMBRECHT, Hans UI­rich. Everyday-World and "Life-World" as Phi1osophical Concepts. A Genealogical Ap­proach, in: New Uterary His­

tory 24:745-61, 1993/94.

Does Egyptology Need a "Theory of Literature"? 21

have and foster such concems. On the other hand, however, literary scholars

would be disrespectful of their colleagues in the field of Egyptology if they did not openly and (if neeessary) critically react to the results which their interest for literary theory has produced_ From the point of view of the ongoing discussion in literal)" studies. theorists of literature are under the

obligation to wam Egyptologists against the possible emergence of what one may call "epistemological anefaets"_ against historical reconstructions, that

is, which are visibly shaped by problematie asymmetries between the

theoretical concepts used and the cultural phenomena analyzed. At the same time, we should insist that the intellectual tradition of literary theory has far

more to offer than just definitions of literature that pretend to be of metahis­

torical and transcultural value. If, as I would argue. there is nothing wrong

with the traditional Egyptological habit of reading texts primarily as histori­

cal documents, then we can conclude that the development of cenain motifs

which dominated in the Egyptologists' dialogue with liter~ studies during

the 1920s would have a greater intellectual potential than the continued

insistence on the Formalist and Structuralist agenda_ After alI. this agenda is

not as modem as it may look. What was rediscovered and partly re\Ísed by

literary studies - and by Egyptology - during the 1970s goes back. in its

epistemological origins, to the turning of the century.

6

Ancient Egyptian cuIture is so remote from our present-day concerns that

we cannot easily hope or even claim to "learn" anything immediately useful

from it. 12 Becoming familiar with Egyptian eulture will nOl pro\"ide us with

solutions for everyday problems nor contribute to the legitimation of institu­

tions existing in the present. This lack of a primarily e\Ídent "usefulness"

may be one reason why it has become a temptation, especially within the

European academie contexto to integrate the results of Egyptological research

into the larger framework of a "historical anthropology". Historical anthropology (if I understand the eoncept correctly)13 seeks to juxtapose and

to systematize a broad variety of historically and culturally different forms of human behavior and its manifestations, with the ultimate goal of rendering a

picture of the potential and of the limits implicit to the human mind - and

perhaps also to the human body. From this perspective, the notion of a

"historical anthropology" comes close to Edmund HusserJ's concept of "life­

world" - especially to its sociological interpretations. 14 While historical

anthropology as a possible context thus offers a function to Egyptological research - however vague and purely academic this function may be - one

should not completely repress, at least within the contemporary epis­

temological situation, a c.ertain dose of skepticism: Does historical anthropol-

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22 Revista Brasileira de Literatura Comparada, na 3

ogy not inevitably imply the problematic presuppostion that something like a common denominator of "the human" must exist? And do we not run the risk of reducing the fascinating alterity of a culture like that of Ancient Egypt if we oblige ourselves to constantly compare and compatibilize it, under the pressure of such an "anthropological" framework, with phenomena belong­ing to different cultures? While such reservations are hard to eliminate, there is of course also the danger, on the other hand, of endlessly indulging in the exotic otherness of Egyptian culture. This would be the danger of "orientaliz­ing"15 Ancient Egypt, the danger of an attitude as inacceptable, from an epistemological point of view, as the tendency towards uncritical and bound­less totalization which is inherent to the paradigm ofhistorical anthropology.

In cultural moments like ours, where the validity of the most venerable forms of practice, with their under1ying presuppositions and values, is no longer self-evident, we are condemned (or should we rather say: we are blessed with the opportunity) to speculate about possible preconscious fas­cinations that condition our choices and our behavior. In this .sense, it has been said,16 that what we call "historical culture" may be driven by a desire to speak to the dead. There is no other field which illustrates this thesis more convincingly than the institutionalized relationship between contemporary culture, academic and popular, and the culture of Ancient Egypt. If we are only ready to admit that, at least for the time being, we have no better - honest - reason for our fascination with Ancient Egypt (and for our fascination with so many other cultures of the past) than the desire to speak to the dead, then it becomes evident that our view of Ancient Egypt relies on a strong aesthetic component. Such an insight - or has it more of a confession? - causes a remarkable shift in the significance of our initial questiono For the answer to this question, the answer to the question whether Egyptology needs theory of literature, would then no longer depend on our inclination- or reluctance -to identify the texts of Ancient Egypt as "literary". Rather, we would have to deal with the problem of whether we want to acknowledge "as literary" the texts produced by the discipline of Egyptology. If wc do so, we inevitably transform the question about the usefulness of literary theory for Egyptology from an object-related question into a self-reflexive problem. And there is certainly reason to believe that some of the very best texts written by Egyp­tologists manifest and facilitate such an aesthetic approach towards the past.

15. Despite ao exuberaol varie­

ty of interpretations aod appli­

cations, one Slill feels obliged lO refer lo lhe genealogical ori­

gin of lbis concepl, SAID, Ed­ward W. Orientalism. New

York.I978.

1<. See. for example. Stephen Greenblatt's contribulion lO VEESER. H. Aram. ed.: The

New Historieism. New York. 1989

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Encontros e desencontros

narrativos

Eduardo Portella

Edward W. Said montou um sistema comparativo de considerável teor críti­co, que desdobra contrastes e confrontos, disjunções e confluências, no inte­rior de uma opção pluridisciplinar promissora. Isto vem acontecendo mais declaradamente, e com maior amplitude, desde o seu controvertido livro Orientalism (1978). E se acentua e se desgarra no universo narrativo de Culture and Imperialism (1992). O autor aparece como o comparatista escru­puloso que, mediante cortes transversais criteriosamente programados, con­fronta representações nacionais e transnacionais, recorrendo a referências éticas e estéticas conhecidas, mas a todo instante revisitadas. Despreconcei­tuosamente.

Said compara literaturas, inscrevendo a sua vontade comparatista no interminável horizonte da cultura. E assim ele igualmente coteja culturas e civilizações. O seu Oriente-Expresso, jamais desativado, percorre diferentes províncias textuais, tanto ao Norte quanto ao Sul. Com o firme propósito de desprovincianizar. A premissa é a de que o "cânone orientalista" por nós adotado não oculta nunca a sua procedência absorventemente ocidental.

A lente bifocal de Edward W. Said o permite enxergar, com razoável precisão, os desenlaces e os enlaces que ao longo da história, escrita enviesa­damente por ocidentais e não-ocidentais, vem reunindo, mesmo que de forma inamistosa, a cultura e o imperialismo. Ele põe a própria biografia, a sua

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diáspora pessoal, o discernimento ágil, a serviço de reconstruções possíveis, desde que elaboradas para além dos reducionismos persistentes, das colisões inúteis, das polaridades monolíticas. Começa por constatar que "o vínculo entre cultura e política imperial é assombrosamente direto". Por isso deve ser

entendido em toda a sua pluralidade.

Edward Said, no seu livro Cultura e Imperialismo (São Paulo: Compa­

nhia das Letras, 1995), desloca o eixo habitual, ou apenas explícito, desse sistema de trocas desiguais, e passa a considerar, e explorar criticamente, o fervor e a febre colonizadora de certas instâncias que, do ponto de vista da dominação, vinham sendo subestimadas ou simplesmente esquecidas. É o caso da narrativa, do relato romanesco, de Joseph Conrad a Rudyard Kipling, a Graham Greene, a Albert Camus, a V.S.Naipaul, a García Márquez, a

Salmon Rushdie, e dos discursos edificantes, acompanhados de alguma res­sonância proveniente de Jean-François Lyotard e Michel Foucault. Said não esconde nem censura o desempenho expansionista da alta literatura. Obras emblemáticas das relações crispadas entre império e cultura são convocadas a testemunhar. Edward Said prioriza o romance como espaço interpretativo.

Sem deixar de recorrer a Verdi, a Yeats, a Césaire, a Amilcar Cabral, a Fanon, a Lukács. Talvez os seus mais assíduos companheiros de viagem, certamente os mais próximos de nós. Ele utiliza textos de temperaturas sensivelmente contrastivas, permanecendo longe, bem longe, da "lista de Schindler" às avessas, que Harold Bloom, em hora menos feliz (The Western Canon, 1994)

resolveu nos impor.

A experiência imperial, no ângulo da crítica da cultura e da criação

narrativa, parece ganhar uma transparência jamais alcançada pelas discipli­nas isolacionistas, que se dedicam a dividir o conhecimento em compartimen­tos estanques, e se mostram insensíveis à ambivalência das situações simbó­licas. Edward Said, recorrendo a uma espécie de razão narrativa, combina, mescla, reprograma, abordagens aparentemente distantes. Até mesmo con­ceitos como o de "imperialismo" - idéia-chave do seu livro -, ele o discute no interior do paradoxo, por acreditar na força da contrapartida, na ida e volta profícua de vencedores e vencidos. Sem deixar de denunciar a estupidez e a ilusão da superioridade excludente, marca identitária dos impérios ascenden­tes, Said chega a uma conclusão que, se retirada do contexto mais amplo do seu longo ensaio, seria certamente chocante e inaceitável: "O imperialismo consolidou a mescla de culturas e identidades numa escala global". As visões separatistas ou nativistas se esgotaram porque nunca souberam entender essa complexidade. A dominação ultramarina dispunha dessa dupla face, desse espelho partido, que a narrativa colonizadora deu forma, em meio a intermi­náveis contradições. Com uma sutileza que afasta a exasperação, Said aponta igualmente as derrapagens graves de críticos do colonialismo como Tocque­ville e Gide. O colonizador bárbaro, para esses libertários tão estimados, é

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Encontros e desencontros literários 25

sempre a nação, ou o império, concorrente. A voracidade dos conquistadores não poupa sequer os parceiros da aventura ocidentalizadora.

A argumentação de Edward Said privilegia o papel do romance na em­presa e consolidação dos impérios ocidentais modernos, destaca a narrativa como elemento determinante no processo de decisão imperial. Jane Austen,

a silenciosa cartógrafa de Mansfield Park, mapeia, com rara nitidez, os limites excludentes do império. O rolo compressor da ficção européia da opulência passa por cima das frágeis aspirações independentistas. A avalan­che da cultura metropolitana, à medida que se propaga, na África, na Ásia, na América Latina e Caribe, procura apagar qualquer vestígio da ancestralidade local, rica e perturbadora. É uma história muito conhecida, e nem sempre bem sucedida. Essa história ainda não terminou. Porque nem o declínio moral do

império, nem as suas promessas paradisíacas, devem ser confundidas com o

precipitado "fim da história".

O implacável exercício da razão narrativa, na palavra mais irônica de

Conrad, ou mais descontraída de Kipling, em ambos os casos tendenciosas,

expõe, com semelhante vulnerabilidade, o dispositivo da dominação. Os slogans que Conrad difundiu, como "a insolente cabeça negra", faziam parte da carta de princípios do poder imperial. A absolvição de Conrad, pela

tolerância estética de Said, nem sempre se revela convincente. Como o seu

Marlow, Conrad "nunca é direto": ironiza as práticas metropolitanas, porém

sem se chocar diante da crueldade, e sem jamais conceder aos "nativos" o direito à liberdade. O elogio imperturbável do imperialismo confirma o seu

eurocentrismo congênito, sem precisar onde começa e termina a narrativa do poder e o poder da narrativa. É verdade que o percurso de Cultura e Imperia­lismo passa pelo reconhecimento de que "a própria narrativa é a representa­

ção do poder, e sua teleologia está associada ao papel global do Ocidente".

As representações abertas, e por isso mais sinceras, de Conrad, e as mais

dissimuladas, e talvez menos sinceras, de Flaubert, apontam nessa direção. Mas a questão está mal colocada. A questão é saber o que fizeram eles de suas

respectivas sinceridades. E só a linguagem pode responder a essa interpela­

ção.

Edward Said não consegue conviver com as simplificações do "naciona­lismo redutor" e, ainda segundo as suas palavras, com as "polaridades reifi­cadas do Oriente versus Ocidente". Nem por isso se entrega à mera impugna­

ção do nacionalismo, preferindo levar em conta alguns desempenhos

específicos. Nenhuma amnésia pode esquecer a função de alavanca histórica,

exercida pelo nacionalismo nos povos não-ocidentais, e na hora da descolo­

nização. O que fica difícil é ad!TIitir-se que o cânone nacional, conduzido através do território minado do imperialismo, esteja autorizado a entrar no jogo perigoso do nacionalismo insular e revanchista. De modo algum. O caminho que se abre terá de ser radicalmente integrador. O programa que

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26 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

fixou culturas superiores, raças inferiores, diferenças torturadas, "o mito do nativo indolente", e depois do trabalhador "desorganizado", é o mesmo que feriu de morte civilizações milenares, e que vem bloqueando a passagem de alternativas culturais plausíveis.

O "estudo das histórias" (o plural aqui é deliberado), proposto por Said,

e acompanhado evidentemente de possibilidades argumentativas atentas à dinâmica da alteridade, estaria habilitado a retirar a identidade da prisão, mesmo que somente domiciliar, na qual foi encerrada pelas filosofias da consciência. Sob este aspecto o imperialismo e o nacionalismo parecem falar o mesmo idioma. Ambos deixaram que tomasse corpo, ao redor deles, o contra-senso ou a perversão identitária. Cresceu um tipo de identidade com­pacta, fechada e avessa a qualquer modalidade de contatos e, mais ainda, de permutas. No primeiro movimento desse dissídio, onde agem imposições e transferências indesejáveis, encontra-se, segundo Cultura e Imperialismo, "a noção fundamentalmente estática de identidade que constituiu o núcleo do pensamento cultural na era do imperialismo". Já não é impossível surpreen­

dê-Ia envolvida pelo falso moralismo de discursos disfarçados e contudo

beligerantes. Na segunda vertente do desacordo, irrompe o nacionalismo heróico, agora bastante extenuado, incomodamente circunscrito nas autopis­tas da nova ordem global. O quadro de proscrição do outro, da diferença, da alteridade, permanece quase inabalável. Talvez um pouco mais sofisticado. A degeneração da diferença ignora que quem se perde do outro, perde-se de SI mesmo.

Edward Said, americano-árabe, árabe-americano, está situado em um

posto de observação muito especial. Ele está situado na sua condição cultural, divergente, convergente - enfim, intercultural. Ainterculturalidade é o óbvio, o modo de ser próprio da cultura, híbrida, plural. Desbarbarizada. Já houve tempo em que bárbaros eram aqueles que desconheciam a língua do outro. Bárbaro agora é o que ignora a cultura do outro. É neste sentido que os

imperialistas, de todos os sotaques, todas as cores, todas as geografias, são os novos bárbaros. Espera-se que os seus serviços venham a ser dispensados, até a entrada do terceiro milênio.

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Hacia una historio literaria postmoderna

de America Latina

Mario J. Valdés

Cada época cultural se autodefine aI buscar una redescripción deI pasado que tenga sentido como explicación deI presente. La nuestra se distingue por su escepticismo radical sobre los valores recibidos; se ha manifestado por un rechazo completo de la historia oficial, de la narrativa de fundamento. No me interesa aquí entrar en una discusión sobre la postmodernidad en todos sus múltiples aspectos sino sólo y únicamente sobre las características de la historiografía Ilamada "la nueva historia", es decir, la historiografía postmo­derna.

Como punto de partida podemos afirmar que ninguno de nosotros se encuentra en la posición extrema de crear un mundo nuevo. Un aspecto ineludible de nuestra condición de seres humanos consiste en haber nacido en un mundo ya formado por las decisiones, por los actos y, principalmente, por la expresión de nuestros predecesores. El pasado es un conjunto de narraciones de datos, acontecimientos y hechos que han sido altamente valo­rizados y, por lo tanto, como narraciones valorizadas, siempre se tienen que rehacer y, más que nunca, cuando se ha pretendido reconstruir el pasado objetivamente.

La segunda observación fundamental es que nunca reconciliamos valo­res de la misma manera en que organizamos y utilizamos a las cosas deI mundo. Las cosas llevan una mediación práctica mientras que los valores se

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manifiestan por mediación ideológica, por lo tanto, la supuesta objetividad historio gráfica no sólo carece de fundamento sino que encubre la relación hermenéutica entre el historiador y el pasado, es decir, la mediación de valores.

Como he dicho, nuestra época ha demostrado un gran interés en la emancipación de los valores recibidos. En términos filosóficos tal interés contiene no poca ingenuidad, y aunque esa hermosa ilusión deI punto de vista objetivo está perdida, en su lugar ha surgido la idea también insostenible de um relativismo absoluto. Estoy de acuerdo que nada sobrevive deI pasado salvo a través de una reinterpretación en el presente, pero esta reinterpreta­ción se apodera de la objetivación y distanciamiento y los hechos se elevan por medio de los valores vivientes aI rango de ser un texto. De este modo la distancia valorativa se convierte en una distancia productiva como un factor de mediación en la reinterpretación deI pasado.

La historia en general, y la historia literaria en particular, es un proceso de mediación por el cual se supera incesantemente la antinomia deI pasado y el presente. La historia literaria presenta un caso ejemplar para realizar nuestro interés en la emancipación de los valores culturales y a la vez nos permite cuestionar la identidad que hemos también recibido.

EI conflicto entre valores Iiterarios recibidos y valores nuevos puede exponerse sin duda en un relativismo ilimitado el cual sería antihistórico y haría imposible toda tarea de reinterpretación deI pasado. Pero, aI contrario, si el conflicto de valores se sitúa dentro de la realidad material de la produc­ción cultural histórica, se establece un marco de explicación. Estos valores por medio de su encarnación en el marco empírico de la vida se nos presentan como acción vital, acción que fue, modos de ver y sentir que se han consu­mado.

La obra literaria, en contraste aI documento de archivo, siempre es actualidad que invita allector/historiador a revi vir las experiencias y aconte­cimientos figurativos. He aquí el gran valor de la historia literaria como laboratorio de la historiografía. En el meollo de la historia literaria está la antinomia deI acontecimiento de producción original y el acontecimiento de recepción contemporánea. La historia literaria postmoderna abarca ambos acontecimientos y los relaciona dialécticamente dentro de un marco común a ambos, el cuadro material de producción que fija la distancia. Sin embargo, esta solución de las condiciones materiales hace más severo el problema perenne de selección y enfoque de datos, ahora enormemente ampliado. Si se van a tomar en cuenta las condiciones económicas, sociales y políticas dentro de una geografía y demografía determinada, no corremos el riesgo de ahogar­nos en un mar de datos y perder de vista la obra literaria? Está claro que es necesario tener esquemas de focalización sobre la obra cultural más altamen­te valorizada que es la literatura.

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Hacia una historia !iteraria postmoderna de America Latina 29

La historia literaria es una transacción perpetua entre el proyecto de narrar el pasado a través de su situación material y el de constituir una comprensión que tenga sentido en el presente. Nuestra respuesta es la de enfocar a la obra literaria dentro de la comunidad de producción y de recep­ción. Esta transacción es delineada aI enfocarse el historiador en los centros culturales y sus instituciones. Si rompemos este círculo viviente entre la literatura y la comunidad y sus instituciones culturales, toda postulación deI acontecimiento literario de producción y recepción está condenado a seguir siendo una impresión vacía o una exigencia ideológica, aun cuando el histo­riador anuncia que participa en esa búsqueda común de nuestra época de la emancipación de los valores hechos.

La narración deI acontecimiento literario seguirá siendo una historia parcial, limitada y reductiva mientras se limite a reafirmar los valores deI pasado que mejor se acomoden con los valores deI historiador. Buscamos una narratividad histórica abierta. Nuestro proyecto de una historia literaria de América Latina tiene que desenvolver múltiples explicaciones, intercambios que apunten singularmente hacia la comprensión parcial y que, en conjunto, emprendan el diálogo múltiple que lleva la comprensión hacia la intersubje­tividad.

Esta multiplicidad de explicaciones narrativas produce una dialéctica de diversas voces en intercambio que mantiene la historia literaria en un estado dialogal abierto. Bien se puede observar que es esto lo que ocurre dentro de la comunidad de comentaristas y es verdad. Sin embargo no ocurre en la historia literaria por falta de coordinación y de colaboración.

La mediación de la historia literaria abierta es una mediación práctica ya que se hace manifiesto lo que se logra en la crítica contemporánea, es decir, un campo contestatorio sobre los valores literarios con la diferencia que en este caso se hará sobre siglos de creación cultural y su presencia actual.

Reesumiré ahora el plan de una historia literaria abierta; tiene tres gran­des componentes: l. la deI marco material de producción cultural; 2. los esquemas de comunidades e instituciones culturales; 3. el intercambio narra­tivo de explicaeión.

Este proyecto histórico es el resultado de afios de trabajo por un equipo dirigido por Djelal Kadir y yo. Hemos empezado con las ideas de la escuela de Annales en Francia y, en especial, con la obra de Fernand Braudel; el segundo paso ha sido participar en la discusión filosófica que mantuvo Paul Ricoeur sobre la historiografía francesa y que posteriormente se publicó en el segundo tomo de Temps et récit. A la vez, habíamos llevado una nutrida discusión con Angel Rama hasta su muerte en 1983. Rama insistía en la necesidad de leer el texto literario en su contexto social y político para poder realizarIo en toda su complejidad de producción. Yo le daba la razón, per o sin dejar de insistir que no podíamos encerrar aI texto en una prisión circunstan-

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30 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

cial de nuestra hechura, y así es como nacióla idea dei hipertexto histórico partiendo de la historiografía de Braudel con su marco material, las premisas de contextualización de Rama y la crítica de Ricoeur sobre la narratividad histórica.

Si se puede marcar un principio claro de este proyecto fue en la reunión que tuvimos ocho colegas y yo en Bellagio en 1993 (Lisa Block de Behar, Daniel Chamberlain, Beatriz Garza Cuarón, Vlad Godsich, Djelal Kadir, Mary Louise Pratt, Silviano Santiago y Maria Elena de Valdés) y discusiones con muchos más desde entonces como Georges Baudot, Claude Fell, Miguel León Portilla, etc.

A continuación presentaré el esquema de nuestro proyecto de historia literaria de América Latina. El primero de los tres volúmenes lo titulamos "La formación de culturas literarias en América Latina". Este volumen está divi­dido en dos partes: primero, "Fondo empírico de la cultura literaria", y, segundo, "Lo excluído o marginalizado en las historias literarias". La primera parte recoge las coordenadas de geografía, lingüística, demografía y accesi­bilidad social a la cultura literaria. La segunda parte entabla las grandes exclusiones de las historias literarias de América Latina que son las culturas prehispánicas, la cultura africana, la participación de la mujer y la cultura popular. Ambas partes, juntas, establecen el marco de todo el proyecto y, a la vez, afiaden las variantes demográficas y sociales ausentes en quinientos afios de historiografía.

EI segundo volumen se titula "Estructuras y modalidades de las literatu­ras en América Latina" y si el primer volumen llevó el peso de fijar el marco material, éste, segundo volumen responde a la diversidad social de nuestra América. Está subdividido en cinco partes: 1. Instituciones culturales, 2. Modelos literarios transnacionales, 3. La literatura y las otras formas cultura­les, 4. Los centros culturales de América Latina, y 5. La representación de fundamento en América Latina.

En conjunto las cinco partes reúnen los esquemas sociales de producción literaria a través de la historia. Las instituciones que han facilitado y pertur­bado la creación literaria dentro de las comunidades que reflejan, todas tienen su propia historia, a veces abiertas hacia otras culturas pero también con sus épocas de relativo aislamiento. Estas historias que suelen ser de consumo local o de especialización, pero aI estar contextualizadas y coordinadas en un atlas de producción literaria despliegan sus puntos de contacto y de diferencia y, especialmente, sus relaciones en los proyectos grandes de identidad cultu­ral, fundamento nacional y transnacional.

El tercer volumen contiene las narraciones de historia !iteraria. Consiste de tres partes colaborativas también: 1. Cinco siglos de transculturación literaria: textos como acontecimientos históricos; 2. La cultura !iteraria de

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Hacia una historia \iteraria postmoderna de America Latina 31

América Latina en el siglo veinte; y, finalmente, 3. una apreciación de América Latina como construcción de su literatura.

Un texto literario, como ya he dicho, no es un objeto sino un aconteci­miento histórico tanto de producción como de recepción y este acontecimien­to, como todo acontecimiento histórico, se hace y se rehace por sucesivos historiadores, pero en nuestro caso la historia que se narra es la historia de la identidad cultural en dos continentes, puntualizada por los éxitos y los fraca­sos de la aventura humana que se refleja en su creación imaginativa.

El segundo ensayo histórico, también colaborativo, de este volumen toma una perspectiva de plazo más breve; se concentra en las obras de mayor impacto en el siglo veinte que es el siglo de la globalización de las comuni­dades latinoamericanas y también el de la cuantificación masiva de la cultura popular. Las normas de comunicación, de producción y recepción de la obra literaria que habían sido leyes de los sistemas expresivos desde el siglo dieciseis, en poco menos de medio siglo han cambiado completamente. El siglo veinte es el siglo de la modernidad y de su desengano.

El último ensayo de esta historia literaria responde a la pregunta sobre la validez deI conjunto. i,Qué es América Latina, ya que no responde ni a geografía ni política ni historia común? La respuesta, como ha dicho Cornejo Polar, Iris Zavala y otros, es que América Latina es una ficción. Primero fue una fantasía etnocéntrica y eurocéntrica y ahora, a quinientos anos después deI encuentro, empieza a ser una reinvención propia que también es ficción, pero ficción propia como lo es una autobiografía. La historia literaria de América Latina es una autobiografía.

La narración histórica en este proyecto se distingue por ser un itercambio coordinado de diversidad enfocada. Este procedimiento mantiene tanto aI compromiso reflexivo hermenéutico como aI texto abierto. Y el sistema de marco y esquema en que se encuentra la narración histórica ofrece la posibi­lidad de poder leerse como un hipertexto empezando de múltiples puntos y forjando líneas narrativas nuevas debido aI procedimiento de múltiples refe­rencias entre el marco, los esquemas y las narraciones.

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Tradução da comunicação apresentada ao Colóquio "Pe­

tits récits. Identités en ques­tions dans les Amériques",

realizado na Université de

Montréal (11-13 de abril,

1996).

'. KANTOROWICZ, E. H. The

KinX :\. two Bodies. A Study in

Medieval Political Theo!o!:y

6' ed. Princeton, N.J.: Prince­

ton Univ. Press, 1981 (I' ed.: 1957).

2 BOUHOURS, D. Entretiens

d'Artiste etd'Eux'me. Ed. cil.:

Paris: Éd. Bossard, 1920 (l"

ed.: 1671).

'. SCHMllT, C. L'ldée de raison

d'État selon Friedrich Meinec­

ke. Trad. Franc. in trad. de Carl

Schmitt: Parlamentarisme et

démocratie, Paris: Seuil, 1988

(I' ed.: 1926).

Literatura e nação: esboço de uma releitura

Luiz Costa Lima

Os termos "Estado-nação" e "literatura", na acepção moderna do segundo, são temporalmente desiguais: no século XVI, já estava constituído o disposi­tivo simbólico, jurídico e político, que se preparava desde o XII,I justificador do poder do Estado, ao passo que o conceito moderno de literatura, como exploração e expressão do infinito contido na subjetividade individual, só se formula nas décadas finais do século XVIII alemão, sobretudo por Friedrich Schlegel e Novalis. Esse décalage contudo não impediu que os Estados nacionais soubessem, bem antes do fim do XVIII, desde que se enfrentassem com outros Estados nacionais, esgrimir a literatura como uma de suas armas. Assim, do mesmo modo que os ingleses exaltavam sua literatura face ao modelo francês, na França, o teórico barroco Doménique Bouhours, ao afir­mar "nossa língua só muito sobriamente usa hipérboles, pois estas são figuras inimigas da verdade; nisso ela se atém a nosso humor franco e sincero, que não pode tolerar a falsidade e a mentira",2 contrapunha o verso francês "legítimo" à cornucópia do barroco castelhano. Na competição pela hegemo­

nia européia, primeiro França e Espanha, depois Inglaterra e França, usavam das armas de que pudesem dispor para retirar do adversário a primazia. E, assim, muito embora "a velha razão de Estado pensasse abstratamente [ ... ] (e) postulasse uma natureza humana sempre idêntica a si mesma",3 o Estado nacional começou a se apropriar da literatura antes mesmo de ela se apresen­tar como o território próprio e por excelência do sujeito individual.

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34 Revista Brasileira de Literatura Comparada, na 3

As conseqüências dessa apropriação seriam demasiado ricas para que

fossem exploradas em curto espaço. Estendamo-nos apenas sobre uma das conseqüências, ainda não bastante concretizada. Ela concerne ao que temos chamado o "controle do imaginário". Sumariamente, haveria de se considerar que a relevância concedida pelo Estado à literatura nacional não implicava

apenas que as belas-letras devessem seguir a prática geral das leis senão que

ainda deveriam obedecer uma legislação especificamente a elas referente. O

que vale dizer: havia uma legislação geral, dirigida a todos os vassalos, portanto especificamente política, e uma legislação particularizada, uma po­lítica poética. Da primeira se encarregavam os juristas, da segunda, os auto­res dos tratados de poética.

A importância da distinção estará em, diferenciando os dois corpos de leis, evitar que se entenda o controle do poético como mera decorrência da

vigência de uma legislação centralizada, que, em conseqüência, exigisse do pesquisador e do analista apenas um conhecimento histórico geral. No caso da política poética, entravam em cena categorias - a questão do tempo na peça teatral, o uso da linguagem, com as restrições não só ao popular como ao uso regional e/ou dialetal, o privilégio de certos recursos em detrimento

doutros, a obediência aos limites da verossimilhança. etc - que não eram do interesse e competência dos juristas. A leitura dos poetólogos italianos, franceses e ingleses dos séculos XVI e XVII nos leva a dizer que, bem antes

de a literatura assumir sua caracteri::.ação moderna, já estavam modelados seus critérios de controle. Acrescente-se marginalmente: embora o termo "controle" seja empregado no sentido negativo de restrição e mesmo de

exclusão, ele não se confunde com censura. Explícita, a censura serve de mediação entre as duas legislações. Melhor dito, a censura constata a plena atualização de uma norma política no campo do poético. O controle ao invés implica uma interdição extra; como se dissesse: não basta ser um bom e leal

vassalo para que já se tenha um digno poeta.

Essa dupla legislação se mantêm quando o Estado-nação se apropriar da

literatura em sua acepção moderna, i.e., quando o romantismo, no período da restauração européia, conseqüente à queda de Napoleão, deixar de ser alemão para se tornar europeu. Essa passagem não se define como a de uma mera propagação. Muito ao contrário. Nos Frühromantiker, mormente em Frie­drich Schlegel, notava-se a copresença de dois critérios, não totalmente superponíveis, de caracterização do poético. O primeiro mais rico, revolucio­nário e de mais curta duração, é sintetizado no fragmento 206 dos Athendum Fragmente: "Semelhante a uma pequena obra de arte, um fragmento deve ser totalmente separado do mundo em volta e pleno em si mesmo como um ouriço".4 A obra poética é considerada por um ponto de vista a ela exclusivo, independente de qualquer serviço que se lhe emprestasse; armada de espi­nhos, comparável a um ouriço, plena em si mesma, ela recusa se legitimar por

.. SCHLEGEL, F.: Athenaum

Fragmente, in EICHNER, Hans,

org. Friedrich Schlel!el. Kri­

tische Ausf,:ahe seiner Werke.

vol. lI: Charakterisken und

Kritiken /. Munique, Pader­

born, Viena: Verlag F. Seho­

ningh e Thomas Verlag, 1797.

Page 35: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

Literatura e nação: esboço de uma releitura 35

qualquer culto, religioso ou político, a que então se dobrasse. Dentro dessa acepção, a obra de arte corresponderia, sem que Schlegel expressamente o reconhecesse, à "finalidade sem fim", ao interesse sem interesse que, na 3" Crítica kantiana (1790), designava a experiência propriamente estética.

O segundo critério, ao invés, ressalta o que a obra poética diz das pessoas e das relações interpessoais. A obra poética era então indicativa, para utilizar­mos a expressão irônica que Hegel empregava contra os românticos, da "bela alma" ou ainda, nos termos de Schlegel, da "intuição intelectual da amizade" (AF, fragmento 342), i.e., de alguém que soube empregar seu talento explo­rador dentro de si mesmo. Ao passo que o primeiro critério destacava a propriedade interna do poético, sua altiva autonomia, o segundo acentuava a capacidade auto-modeladora do criador.

Não superponíveis, mesmo desarmônicos entre si, esses dois critérios

sofrerão destinos opostos no romantismo normalizado, i.e., aquele que se di­funde sob a restauração. O romantismo normalizado pode ser definido como aquele que ajusta a idéia de expressão individual ao espírito do povo, nele incluindo o poeta, cuja obra refletiria o estágio de civilização alcançado por seu país. Sob ele, não há lugar para que se tematize o poema-ouriço. Em troca, identificando o poema como efeito da fonte "sujeito individual", o romantis­mo normalizado legitima a indagação que considera o poema efeito de uma

causa chamada nação. Para tanto, se impunha apenas uma fácil operação lógica: o sujeito individual, no caso o poeta, era tomado como parte do todo a que pertencia, a nação, cujo modo de ser refletiria. Eis então asseguradas as condições de prestígio da literatura nacional, daí a legitimação universitária da literatura, enquanto nacional. A literatura então se torna, ao longo do XIX, o veículo por excelência da Bildung, no duplo sentido da palavra: formação e educação. O Estado-nação que se preza exibe entre seus títulos um elenco de escritores, difundido por antologias e apreciações biográfico-interpretati­vas. É um das tarefas do Estado a propagação da literatura enquanto nacional.

Esse retrospecto é particularmente interessante à reflexão contemporâ­nea na América Latina. E isso por uma série de razões:

(a) no sentido moderno do termo, a literatura que se introduziu tanto na América Hispânica como na Portuguesa teve como estímulo e ponto de partida o romantismo normalizado. Por isso, de imediato, a idéia do poema­como-ouriço ou era desconhecida ou veio a ser confundida com o princípio posterior do "l'art pour l'art", considerado, como enfatizam os críticos lati­no-americanos do XIX, algo próprio de nefelibatas, de desenraizados, algo em suma nocivo sobretudo para as nações nascentes;

(b) no início de nossa autonomia política, a literatura esteve preocupada em exprimir um estado nacional, ou seja, o estado de coisas da sociedade do país e em servir de porta-voz da peculiaridade de seu povo. Ora, e aqui vale a pena que nos estendamos um pouco, como as realizações humanas eram

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36 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

pouco salientes e dada a importância que em toda a América Latina teve a divulgação das pesquisas do naturalista Alexander von Humboldt, especial­

mente a sua palavra teve especial ressonância. Destaque-se a respeito passa­gem do Voyages aux régions équinoxiales du Nouveau Confinent:

A natureza agreste ou cultivada, risonha ou majestosa, apresenta em cada zona um

caráter individual. As impressões que nos deixa variam ao infinito, como as emoções

que produzem as obras de gênio, segundo os séculos que as engendraram e a diversi·

dade de línguas a que devem uma parte de sua formosura. Só se compara com justeza

o que depende das dimensões e das formas exteriores: pode-se pôr paralelamente o

cume colossal do Monte Branco e as montanhas do Himalaia, as quedas d'água dos

Pirineus e as Cordilheiras; mas estes quadros comparativos, úteis no que se refere à

ciência, mal dão a conhecer o que caracteriza a natureza na zona temperada e na zona

tórrida. À beira de um lago, em uma vasta selva, ao pé destes cumes cobertos de neves

eternas, não é a grandeza física dos objetos o que nos infunde uma secreta admiração.

O que fala à nossa alma, o que nos causa emoções tão profundas e tão variadas evade-se

de nossas medições tanto como as formas da linguagem. Cuando as belezas da natureza

são sentidas ao vivo, teme-se entorpecer essa fruicão comparando aspectos de diferente

caráter".5

A extensa transcrição se justifica porque nela se formula com toda clareza onde se poderia nuclear a procurada particularidade das novas litera­turas: a natureza é capaz de produzir impressões semelhantes às obras dos gênios; a comparação das cenas da natureza tropical com a doutros continen­tes apenas cientificamente é válida e justificada. Do ponto-de-vista do sujei­to-que-sente, a comparação prejudica sua fruição. Em palavras diretas: Hum­boldt, o naturalista, justifica a saliência que a descrição da natureza terá para o escritor latino-americano. Tendo sempre por pressuposto o leitor de alma sensível, o realce das cenas da natureza asseguraria às literaturas latino-ame­ricanas a condição para que pudessem ter um lugar ao lado das literaturas maduras. Se estas se particularizariam pelos gênios que pudessem convocar, as latino-americanas se diferenciariam pela singularidade de sua natureza. A descrição da natureza ensinaria ademais aos autores, em um tempo em que avançam as ciências descritivas, a privilegiar a observação. Se esta falta, é o conjunto da obra que desmorona. Assim, por exemplo, o influente Sílvio Romero demolia a obra de Machado de Assis sob o argumento de que: (é) "um autor para quem o mundo exterior não existe de modo algum em si, que não lhe procura reproduzir nem os acontecimentos usuais, nem o aspecto pitoresco, ou os agregados sociais, ou os seres vivos, tais quais esses todos e esses indivíduos se apresentam ao conhecimento normal".6 Seu pretenso humorismo seria uma mera imitação e seu pessimismo, falso porque "nós, os brasileiros, não somos em grau algum um povo de pessimistas" (idem, 104). Menos importa saber se Romero adquirira esse pressuposto da leitura de Humboldt ou dos contemporâneos de sua preferência. Em qualquer dos

5. HUM BOLDT, A. von. Voya,!,'es

aux ré,!,'ions équinoxiales du

nouveau continent, fait en

1799,1800,1801, /802, 1803

ef 1804. Trad. ao castelhano de

Lisandro Alvarado, Viaje a las

regiones equinociales dei nuc­

vo continente. 5 tomos. Cara­

cas: Monte Ávila Editores,

1985 (I' ed.: 1816-31).

". ROMERO, S. Machado de As­

sis. 2' ed. Rio de Janeiro: José

Olympio, 1936 (I' ed.: 1897).

Page 37: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

7 No caso específico do Bra­si!. este papel legitimador foi exercido por Ferdinand Denis, conforme ROUANEr, M. H. Es­

plendidamente em berço es­plêndido. A fundação da lite­ratura nacional. São Paulo: Siciliano, 1991.

'. HENRIQUEZ URENA, P. Confe­rencias, in Horas de estudio (1910), inc!. em Obra crítica. México: Fondo de Cultura

Económica, 1981

Literatura e nação: esboço de uma releitura 37

casos, foi Humboldt quem legitimou na América Latina o destaque da natu­reza e, daí, o privilégio reservado para a observação;7

(c) privilegiada era a expressão literária que então fosse descritiva, realista e, ao mesmo tempo, sentimental e altissonante. Note-se, ademais: esses valores se mantêm muito além da vigência do romantismo normalizado. Sílvio Romero, por exemplo, já escreve fora da ambiência romântica e, no entanto, mantém uma curiosa comunidade com os valores de procedência romântica. Não parece exagerado chamar-se a atenção para a continuidade dos valores com que se tem apreciado a literatura na América Latina. Henrí­

quez Ureiia tinha razão, no início do século, em destacar os hábitos de nossos

públicos para essa continuidade. Seriam eles "tan lentos para darse cuenta dei valor de un serio empeno como rápidos para dejarse deslumbrar por el

esplendor sonoro".8 Na verdade, porém, essa é apenas uma parte da razão. Da outra parecem responsáveis os professores de literatura, que ou incorpo­

ram e transmitem valores distintos como simples modismos ou conseguem estabelecer um estranho hibridismo desses outros valores com os que já inoculara a tradição, neutralizando-os e mantendo permanente o tradicional;

(d) como também viria a suceder na Europa do XIX, privilegiado dentro destes parâmetros, o texto literário rompia o intercâmbio com a filosofia e, em troca, privilegiava a história e a sociologia nascente. Radicaliza-se assim

o fosso que separava as duas concepções do poético, presentes nos Fragmen­

tos de Schlegel: ao passo que elas próprias eram contemporâneas do inter­câmbio intenso entre os Frühromantiker e o idealismo alemão - não esque­çamos que Schelling e Hegel foram companheiros de Holderlin e, durante certo tempo, privaram com os Schlegel, que, de sua parte, junto com Novalis, através da admiração por Fichte, estavam próximos de Kant - a concepção

que se difunde com o romantismo normalizado e assegura a aproximação da

literatura com a nação não só privilegia a história, a diacronia factualmente traçada, e logo depois a sociologia, como exclui o investimento filosófico,

salvo a estética, matéria contudo reservada para os estudantes de filosofia;

(e) o descritivismo resultante da ênfase na história literária e estimulado pelo rompimento do intercâmbio com a filosofia, incentivado na América

Latina pela razão analisada em (c), ao se associar, na segunda metade do

século, ao evolucionismo de raiz biológica (darwinista), motiva entre nós a

busca de essencialismos nacionais (a mexicanidade, a argentinidade, a brasi­

lidade, etc), que reforçam as visões homogêneas da cultura. Não ser reconhe­

cido por sua respectiva "essência" parecia não só provar que se estava diante

de um imitador, como justificar a exclusão do panteão da nacionalidade. Tal essencialismo demonstra por si só a continuidade e então o conservadorismo

dos valores com que se tem julgado a literatura na América. Sem tal continui­dade, não se explicaria que Borges ainda fosse oportuno ao ironizar o culto

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38 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

nacionalista: "El culto argentino deI color local es un reciente culto europeo

que los nacionalistas deberían rechazar por foráneo";9

(f) o privilégio que o século XIX latino-americano reservou à literatura

e que foi mantido pela primeira metade do século atual estabeleceu pois, para ela, limites bem restritos. A boa literatura era aquela que, conforme ao padrão descritivo-realista, se revelasse acessível a interpretações alegorizantes - a obra literária como ilustração de um estado de coisas - e, como tal, utilizá­

veis, para empregar a expressão do agora esquecido Althusser, pelo "aparelho ideológico" do Estado. Os críticos mais recentes poderão discordar face à configuração efetiva dos Estados de que são cidadãos; poderão portanto ser de direita ou esquerda, sem que isso afete sua disposição alegorizante.

São estas as linhas básicas do quadro histórico que hoje nos cabe repen­sar. Digo hoje porque as núpcias entre o Estado nacional e a literatura deixaram de existir. O próprio afã teorizante que tem marcado os estudos

literários, a partir dos anos de 1960, não s~ explica sem a ruptura das condi­ções que condicionaram aquelas núpcias. Enquanto dominou a cadeia "sujei­to individual - criador, sujeito nacional-Estado", sendo o Estado, de sua parte, tomado como a cabeça do corpo nacional, julgava-se a literatura não precisar de teorização. A teorização estava de antemão assegurada e seus instrumentos eram o fato histórico, os condicionamentos sociais, se não a

evolução nacional. A condição de "ouriço" da obra poética fora desarmada e a linguagem tomada como simples meio que, bem indagado, mostraria a transparência das coisas. Qualquer questionamento da linguagem enquanto tal era identificado com o formalismo - não por acaso um termo que, na crítica literária, se impusera a partir da repressão stalinista. E isso não se dava apenas entre latino-americanos ou entre críticos de estatura mediana. Mesmo em um ensaísta da extrema qualidade de Erich Auerbach a relação entre sociedade e literatura era vista como uma rua de mão única: a obra representa o que a sociedade mostra. Identificar-se, como fazem alguns, a resistência à

teorização com o esforço de descolonização do Terceiro Mundo é apenas manter a cadeia retórica em que se formula o extremo conservadorismo de nossos estudos literários. Ao invés de aderir a esse programa, seria fecundo aprofundar-se a via aberta pelo comparatista Wlad Godzich. Em ensaio de há poucos anos, Godzich demonstrava o quanto as "literaturas emergentes" poderiam contribuir para a superação de impasses que sufocam os estudos literários metropolitanos. Seria para tanto indispensável que, a partir da Terceira Crítica kantiana, fosse reindagada a questão do sujeito. Ao passo que a história literária tradicional parte do suposto de um sujeito individual constituído e metaforicamente identificável com o sujeito nacional, o juízo estético antes permite "a delimitação de um campo de experiencialidade - ou seja, de constituição do sujeito - não redutível à mesmidade (sameness) [ ... ]".\0 Isso, acrescente-se de passagem, não se confundiria com reiterar a

9. BORGES, J. L. EI Escritor ar­

gentino y la tradición. in Dis­cusión, ine!. em Prosa comple­

ta. 2 vols. Barcelona: Brugue­

ra, 1980 O' ed.: 1932).

lO. GODZICH, W. Emergent Li­

leralure and lhe Field of Com­

paralive Lileralure, in The Culture of Uteracy. Cambrid­

ge, Mass.: Harvard University

Press, 1994.

Page 39: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

11 SCHWAB, G. Suhjects wi­

thout Selves. Transitional Texts in Modern Fiction. Cam­bridge, Mass.: Harvard Uni­versity Press, 1994.

Literatura e nação: esboço de uma releitura 39

"morte do homem" mas sim em trabalhar em favor de uma concepção plástica do sujeito. ll Os discursos que, a exemplo do literário, não trabalham com conceitos são, por isso mesmo, privilegiados quanto à verificação de como se forma um campo, i.e., uma particularidade expressiva (particularidade que não se confunde com uma unidade que reuniria os eleitos e justificaria a exclusão dos prófugos). Em vez de uma relação de monocausalidade, em que

a sociedade nacional funciona como causa que determina o efeito-autor, o campo ultrapassa a dicotomia sujeito-objeto e, portanto, a via de mão única que também marca a tradição dos estudos históricos e sociológicos. Desse modo a recusa do essencialismo nacionalista não suporia a adesão a uma

prática "cosmopolita"; implicaria sim o repúdio de uma idéia de Estado-na­

ção e de literatura que traz consigo a manutenção de uma concepção hegemô­

nica, decorrente de uma "conceitualização hegeliana de acordo com a qual as

novas literaturas são Yistas como representatiovas de estágios menos madu­ros das literaturas canônicas" (Godzich. 291).

Em suma. não se trata de repudiar o essencialismo porque particularista

ou porque politicamente comprometido. O elogio da heterogeneidade tam­

bém supõe o privilégio de uma particularidade. Mas de uma particularidade

plural e não da que unifica sob o manto do Estado-nação. É ademais explici­

tamente um programa político. Se este não se contenta em manter implícita a teoria que o respalda é porque considera que toda teoria pronta se converte em dogma. Por fim, particularmente na América Latina, a teoria não é contra

a História, embora não se confunda, nem a seu objeto, com ela e tampouco

permaneça "iluminista", na proposição de normas universais, ou "românti­

ca", na exaltação do infinito individual. Pois esta História que não se dispensa mantém próxima a si o questionamento próprio à filosofia.

A tão propalada globalização do mundo, na verdade equivalente à cen­tralização do poder em alguns instituições bancárias, é contemporânea à

redução do poder dos Estados-nacionais. Isso, por um lado, se correlaciona à

reconhecida perda de prestígio da literatura. Por outro, entretanto, permitiria

que se repensasse a literatura fora de caminhos que foram traçados a partir de

uma conjuntura já não existente (o prestígio da cultura nacional pelo Estado, a concepção factualista da história, a idéia da sociologia como ciência das causalidade sociais, a inquestionabilidade do próprio modelo da ciência clás­

sica). O que nos falta para isso? A pergunta se impõe porque na reflexão

latino-americana raríssimos são os ecos de um requestionamento do fenôme­

no literário. Ao que parece, temos preferido esperar que outros respondam

por nós.

Rio, março, 1996

Page 40: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03
Page 41: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

Gostaríamos de agradecer a

Yasushi Ishii e a Sylvia Saítta

por valiosas informações refe­

rentes à passagem de Marinetti

na Argentina. A Heloísa Toller

Gomes agradecemos o interes­

se pelo texto e por ter tornado

possível a sua publicação em

português.

'. li banchetto futurista di Tu­

nisi, in MARIA, Luciano de,

org. Una sensibilità italiana in Egito. Milão: A. Mondadori,

1969,325.

2. MARIA, Luciano de, org. Ma­rinetti e il Futurismo in Teoria e invenzione futurista. Milão:

A. Mondadori, 1983,619.

As velocidades brasileiras de uma

inimizade desvairada o (des)encontro de Marinetti e

Mário de Andrade em 1926

Jeffrey T. Schnapp João Cezar de Castro Rocha

Sucesso illcrÍ\'el cachecol do Marinetti para ,'enda em lojas dança do Marinetti roupas

do Marinetti colares e bastiies do Marinetti impermeável do Marinetti Repercuss6es

em todas as cidiuies brasileiras. I

Triunfal explosão do futurismo na América do Sul com minhlLf 35 conferências-decla­

maçiJes ( .. .) O escritor Antonio Salles concluiu na Revista do Brasil: "Precisamos

esquecer mesmo 1I0SS0S melhores escritores. Como Jeová, o futurismo cria um novo

mundo a partir do nada. Devemos recontar o Tempo, começando a história no alIO da

graça da aparição de Marinetti. "2

Em registros semelhantes, o fundador do futurismo preservaria a memória da primeira fase da viagem que o conduziu à América do Sul. Aliás, uma ambiciosa viagem comercial que, no curso de quase dois meses, levou Mari­netti e sua esposa, Benedetta, do Rio de Janeiro a São Paulo e Santos, sem contar com o ciclo de conferências realizado em Buenos Aires e Montevidéu, Encenada em grandes teatros, divulgada como um espetáculo, representada como uma campanha militar, inspirada no modelo das lendárias serate futu­riste, as "conquistas" da turnê eram comunicadas ao público de todo o mundo e, em especial, ao italiano na forma de exaltados telegramas, enviados como notícias de um campo de batalha imaginário: Marinetti obteve extraordinário

triunfo sendo delirantemente aplaudido, noitada culminação espiritual pro­pagandística triunfo Marinetti, Marinetti fala futurismo aplaudido êxito completo retransmitir a Paris ...

A realidade da viagem, contudo, foi muito mais complexa, pois Marinetti se viu no centro de debates políticos e culturais cujas sutilezas e idiossincra­sias necessariamente escapavam ao seu controle e, sobretudo, à sua com-

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42 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

preensão. Ora recebido com inesperado entusiasmo, ora rejeitado com estu­dada indiferença tanto pelo público quanto pelos intelectuais; celebrado

como um herói cultural e denunciado como um incômodo passadista; ubíquo

na imprensa, ao menos no Rio de Janeiro, onde teve presença constante até

no rádio; o futurista foi, por fim, um alvo fácil para manifestações favoráveis

ou contrárias ao fascismo. A onipresente visibilidade de Marinetti terminou por precipitar divergências já então evidentes no movimento modernista.

Além das cicatrizes que a viagem de Marinetti ajudou a expor no meio intelectual brasileiro, traços mais permanentes podem ser surpreendidos na própria obra do italiano. Antes de 1926, a geografia imaginária de Marinetti

permanecera circunscrita aos limites do exotismo oitocentista francês. No entanto, o futuro reservaria um lugar especial às suas impressões de viagem. Afinal, como o futurista sempre fez questão de repetir, ele possuía "uma

sensibilidade italiana nascida em Alexandria, Egito". Nesta cartografia parti­

cular, Marinetti representava a si mesmo como a materialização das fantasias técnico-primitivas que informam seus textos "africanistas" - Mafarka le futuriste (1910), Gli indomabili (1922), Il tamburo difuoco (1922). O ideal de fusão do primitivo com o moderno e do africano com o europeu na

invenção de um paraíso tropical e modernista convertia o Brasil num territó­

rio perfeito para um imaginário colonizador. Território colonizado por Mari­netti em Velocità brasiliane, um poema composto por palavras-em-liberdade e até agora inédito, embora Marinetti o tenha parcialmente apresentado na primeira conferência realizada no Rio de Janeiro.3

Neste ensaio, apresentamos uma versão preliminar (e muito reduzida) das pesquisas que estamos desenvolvendo sobre as viagens de Marinetti à América do Sul em 1926 e 1936, com especial destaque para a primeira delas.4 Estimulados pelos trabalhos pioneiros de Annateresa Fabris e de Sylvia Saítta, buscamos reconstruir o contexto, a estrutura e o conteúdo destas viagens, utilizando, além de fontes já conhecidas, documentos inédi­tos.5 Na década de 20, a cena intelectual latino-americana mantinha uma relação ambígua com o futurismo. 6 Num primeiro momento, o termo sinteti­zava um conjunto indiscriminado de fenômenos associados à modernidade. Sentido reforçado pelo próprio Marinetti, ao imaginar que sua chegada ao Rio de Janeiro provocaria a explosão de produtos com uma nova marca: "Mari­netti" - cachecóis, roupas, colares, bastões e casacos. Com a aproximação dos anos 30, a ambigüidade progressivamente se reduziu a um sentido mais rígido e quase sempre negativo. De um lado, novas correntes culturais desa­fiavam o posto de vanguarda ocupado pelo futurismo desde 1909. De outro lado, sua crescente identificação com o fascismo e o ultra-nacionalismo engendrava fortes restrições, como Marinetti pôde experimentar na reação do público em São Paulo, Santos e Buenos Aires. Por fim, no próprio cenário latino-americano, a década de 20 presenciou a disputa entre o impulso cos-

3. No espaço deste ensaio, não

poderemos reproduzir o poe­

ma. No livro que estamos pre­

parando, contudo, Velocità

brasiliane ocupará um lugar

central.

4 Para uma versão mais deta·

Ihada da viagem ao Brasil,

com breves referências aos

desdobramentos argentino e

uruguaio. o leitor pode consul­

tar nosso ensaio "Brazilian Ve-

10C/t1e.\: On Marinetti's 1926

Trip to South America", no nú­

mero especial sobre o futmis­

mo in Sowh Central Review /

Fali, 1996. Neste ensaio, apre­

sentamos uma edição crítica

do poema de Marinetti.

5. Sobre a viagem de Marinetti

ao Brasil em 1926, ver FABRIS,

Annateresa. O futurismo pau­

/i.~ta. Hipóteses para () estudo

da cheliada da vanliuarda ao

Brasil. São Paulo: Perspecti­

va, 1994,217-259. De Annate­

resa Fabris, o leitor deve tam­

bém consultar Futurismo;

uma poética da modernidade,

São Paulo: Perspectiva. 1987.

Sylvia Saítta reconstruiu o

impacto (e o não-impacto)

da presença de Marinetti em

Buenos Aires in Marinetti

enBuenos Aires. Entre la polí­

tica y el arte, Cuadernos His­

panoamericanos 539/540:

161-69, Maio-Junho 1995.

6. Nelson Osorio Tejada des­

creve a recepção inicial do fu­

turismo na América-Latina. La

recepcián deI Manifiesto Futu­

rista de Marinetti en América

Latina, in Revista de Crítica

Literaria Latinoumericana

15: 25-37,1982.

Page 43: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

7. Marinetti realizou esta proe­

za no célebre manifesto Le Fu­turisme mondial, in Le Futu­

ris me. Revue Synthéthique Il­

/ustrée, 11 de janeiro de 1924,

1-2.

8. Martín Fierro, 8 de julho de

1926,5.

As velocidades brasileiras de uma inimizade desvairada 43

mopolita das primeiras vanguardas e a orientação autóctone na busca de modelos autônomos de modernização. Estes fatores transformaram o sempre ansioso espírito cooptador de Marinetti numa ameaça cada vez mais incon­veniente_ Por exemplo, na década de 20, o futurista tentara caracterizar como seus "seguidores" autores tão diversos como Blaise Cendrars, Jean Cocteau, Drieu la Rochelle, Jorge Luis Borges, Vicente Huidobro, Mário de Andrade, Yan de Almeida Prado e muitos outros'? Para recontar a viagem de Marinetti, estaremos questionando tanto a versão triunfalista do futurista quanto os mitos defensivos elaborados por escritores contemporâneos ao evento e crí­ticos literários. No contexto brasileiro, escritores e críticos têm sido unânimes em considerar a visita de Marinetti um autêntico fracasso_ Contudo, uma análise mais detida de documentos disponíveis em arquivos até agora pouco

pesquisados ou desconhecidos sugere uma história muito distinta. Uma his­

tória que esclarece o papel central desempenhado pelas circunstâncias da vida literária local na criação da memória, logo, na percepção futura da visita de Marinetti. Em alguma medida, esta história "despolitiza" a reação à presença de Marinetti, revelando que, em boa parte das críticas suscitadas pelo italiano, o que estava em jogo era sobretudo a definição da persona

pública que um escritor deveria assumir. É claro que não pretendemos negar ou mesmo camuflar as implicações políticas da aproximação do futurismo com o fascismo; ora, na viagem de 1936, por ocasião da reunião do Pen Club, em Buenos Aires, Marinetti foi expulso do encontro devido ao seu agressivo proselitismo. Entretanto, os problemas de ordem política têm servido aos críticos literários como um autêntico passe-partout: basta evocá-los e todas

as interrogações logo encontram uma resposta "satisfatória". Para formular perguntas novas, precisamos situar a questão política numa dimensão apro­priada. A única forma de fazê-lo consiste em resgatar a concretude do coti­diano dos lugares visitados por Marinetti. Esta concretude tanto se relaciona aos eventos comuns do dia-a-dia quanto às relações entre os homens de letras e suas conexões com a imprensa e com os ambientes mais formais, como as academias ou associações similares. Por fim, os documentos consultados em

nossas pesquisas revelam que, do ponto de vista comercial, a viagem de Marinetti foi um grande êxito. Êxito também em outra esfera, como foi reconhecido pelos editores da revista argentina de vanguarda, Martín Fierra: "o simples fato de que Marinetti tenha insistido em anunciar ao grande público e aos jornais populares a beleza da vida moderna - para nós um lugar

comum que praticamos há muitos anos - é em si mesmo uma inovação".8

Uma inovação cujo êxito popular tanto gerou novas alianças quanto destruiu antigas, contribuindo para a eventual rejeição do futurismo no cenário latino­americano.

Principiaremos nossa análise com uma breve menção a um aspecto

jamais examinado com o cuidado necessário: o lado financeiro da viagem.

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44 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

Afinal, o motivo determinante da visita de Marinetti foi, em primeiro lugar,

puramente comercial. Mas privilegiaremos o relacionamento entre Marinetti

e Mário de Andrade, sem dúvida o motivo "secreto" tanto da recepção tumul­

tuada que esperava o italiano em São Paulo quanto da chave de interpretação

que Mário criou e que os críticos literários têm fielmente reproduzido.

I. O grande circuito

.. .foi-se o tempo em que Marinetti era milionário. Ele poderia chegar de Tóquio e de

imediato partir para Madri. Os ingressos para o teatro eram gratuitos. Agora, ao

contrário, Marinetti necessita produzir9

Eu tive a satisfação de empreender uma grande turnê na América do Sul com um

empresário que pagava um salário e lucrava com a minha voz, permitindo ao mesmo

tempo que eu também lucrasse. 11)

Na década de 20, Marinetti enfrentava sérias dificuldades financeiras

resultantes de fracassos editoriais e de uma série de batalhas legais iniciadas com o processo contra o Mafarka le futuriste (1910). Ao mesmo tempo, o

futurista lutava para manter a visibilidade de seu movimento. já na segunda década de existência. Os desafios a serem vencidos eram muitos. A Primeira

Guerra Mundial provocara a morte de importantes colaboradores - Boccioni

e Sant'Ellia. Além disto, dissenções significativas se multiplicaram - Palaz­

zeschi, Folgore, Papini, Carrà, Severini e Sironi. Novas correntes culturais

passaram a disputar o espaço artístico europeu - a ascensão de novos objeti­vismos, purismos e classicismos. Por fim, a progressiva hegemonia de nacio­

nalistas conservadores no governo de Mussolini representou uma potencial ameaça ao caráter inicialmente disruptivo das idéias futuristas. No entanto, o

Congresso Futurista, realizado em Novembro de 1924, assim como as home­

nagens prestadas a Marinetti em toda a Itália marcaram a renovação do

movimento e sua reabsorção pela ordem fascista. Esta reabsorção foi conso­lidada em publicações como Futurismo e fascismo (1924), I nuovi poeti futuristi (1925) e ainda na mudança realizada por Marinetti e Benedetta, em

1925, de Milão a Roma. Era esta a situação de Marinetti quando ele foi abordado pelo empresário brasileiro Niccolino Viggiani com uma proposta

tão inesperada quanto prometedora. Afinal, se o amanhã do futurismo parecia incerto no cenário europeu, na América Latina ele continuava sendo um importante ponto de referência, embora extremamente polêmico. Ademais, países como Brasil e Argentina pareciam ideais para receber o futurista, pois o claro interesse pelos debates sobre modernização cultural se associaria à presença de uma expressiva comunidade italiana, em geral um bom público para espetáculos teatrais e para companhias de ópera compostas por artistas

9. GOBElTI, Pira, Marinetti, il precursore in Il Lavom di Ge­

nova, 31 de janeiro de 1924.

/O MARINETII, F.T., Per la

inaugurazione de lia Esposi­zione Futurista della Casa dei

Fascio in Universifà Fascista - Lezioni, Bolonha: Casa dei

Fascio, 1927,4. Este discurso

foi proferido em 20 de janeiro

de 1927 e representa um im­

portante (ainda que hiperbóli­co) testemunho de Marinetti

sobre a viagem à América do

Sul.

Page 45: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

11. Yale Beinecke - Arquivo

Marinetti, série m, caixa 53,

pasta 1978.

12. Ver: KOIFMAN, Georgia,

org. Literatura de idéias. Car­

tas de Mário de Andrade a

Prudente de Moraes

Neto./924/36. Rio de Janeiro:

Nova Fronteira, 1985, 193. Na

verdade, o livro foi lançado

após a partida de Marinetti e

contém onze manifestos pre­viamente publicados e urna sé­

rie de reproduções de traba­

lhos futuristas. Neste livro, o

manifesto que mencionava

Mário de Andrade e Yan de

Almeida Prado, "Le Futurisme

mondial", foi republicado.

Graça Aranha apenas escreveu

o prefácio do volume - uma

reprodução do discurso de re­

cepção que o brasileiro fez a

Marinetti em sua primeira con­

ferência no Rio de Janeiro, em

15 de maio de 1926. Este pre­

fácio - "Marinetti e o futuris­

mo" - está republicado in Cou·

TINHO, Afrânio, org. Graça

Aranha. Obra Completa. Rio

de Janeiro: Aguilar, 1968,863-

866.

\3 Duas exceções podem ser

encontradas no Jornal do Co­

mércio. Em 9 de maio, o anún­cio esclarecia o título da confe­

rência: "Futurismo"; em 16 de

maio, o leitor encontraria mais informações: "Amanhã - Se­

gunda-feira, 17, A despedida

de MARINETII. Preços usuais".

(De fato, a conferênca foi rea­

lizada em 18 de maio).

As velocidades brasileiras de uma inimizade desvairada 45

italianos. O próprio Viggiani era um especialista neste tipo de promoção. Em 16 de dezembro de 1925, Marinetti assinou o seguinte contrato:

o poeta F T. Marinetti compromete-se a empreender uma turnê de conferências (mini­

mum de oito conferências), incluindo Rio de Janeiro, São Paulo, Montevidéu e Buenos

Aires, com início previsto para Junho de 1926. O Sr. Viggiani compromete-se a

organizar as mencionadas conferências nos melhores teatros daquelas cidades C .. )

estando implícito que sete dias é o período mínimo de permanência em cada cidade

(para assegurar o êxito das conferências através de entrevistas, etc ... ). O Sr. Viggiani

compromete-se a pagar a FT. Marinetti 20% do lucro líquido obtido com a venda de ingressos .11

Portanto, além de lucrar com a voz dos outros, Viggiani também permitia aos outros lucrar com a própria voz. Neste sentido, os 20% prometidos a Marinetti parecem ter sido a quantia geralmente oferecida em turnês organi­zadas por empresários como Viggiani. De um lado, tal sistema estava baseado na habilidade do empresário em obter o máximo de visibilidade para seu artista. De outro lado, caberia ao artista entreter o público e criar fatos capazes de atrair a atenção da mídia. O empresário também se responsabili­zou pelas despesas de viagem em primeira classe do casal Marinetti, assim como por todos os detalhes organizacionais necessários para o sucesso da iniciativa, além das despesas de hospedagem e a concessão de um generoso per diem.

Mas, afinal, quem era exatamente Niccolino Viggiani? Ao contrário do que Antonio Candido imaginou, Viggiani não foi "o editor do livro de Graça Aranha, Futurismo - Manifestos de Marinetti e seus companheiros", uma antologia apontada equivocadamente como a razão da visita do italiano. 12

Viggiani era o diretor de uma companhia teatral que levava o seu nome e cujas apresentações tinham lugar no Teatro Lírico do Rio de Janeiro. Ele era um importante empresário teatral, conhecido por organizar visitas de artistas europeus, especialmente, italianos. Para compreender a importância dos eventos promovidos por Viggiani, basta consultar a seção de espetáculos, por exemplo, do Jornal do Comércio. Os anúncios da "Companhia Niccolino Viggiani" ocupavam quatro ou cinco vezes o espaço dedicado aos eventos das demais companhias. Baseado nestes anúncios, Viggiani buscou fixar um padrão idêntico para as conferências de Marinetti, divulgadas como mais uma entre as promoções do empresário. Num mesmo espaço, o leitor encontraria o anúncio de atrações musicais e teatrais ao mesmo tempo em que saberia das conferências do italiano. Aquelas, apresentadas em tipos destacados e com razoável minúcia descritiva; estas, apresentadas em tipos mais discretos, incluindo apenas o nome do poeta e a data da conferência. ° A diferença gráfica, contudo, não implicava uma distinção qualitativa, na verdade, ela apenas sugeria uma diferença quantitativa. Para o poeta e para o empresário

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46 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

o recital de uma famosa cantora lírica e a conferência do futurista podiam ser anunciados no mesmo espaço pois representavam formas similares de espe­táculo. A diferença realmente significativa dependeria do número de ingres­

sos vendidos, isto é, do lucro obtido.

De fato, Viggiani não poderia reclamar do lucro proporcionado por Marinetti. As seis conferências realizadas no Brasil- duas no Rio de Janeiro, três em São Paulo e uma em Santos - renderam para o empresário a soma de

trinta contos e quinhentos e quarenta e três mil-réis, dos quais perto de seis

contos destinaram-se a Marinetti. 14 Embora o salário mínimo brasileiro tenha sido oficialmente estabelecido em 1941, segundo cálculos de A Classe Ope­

rária, um jornal militante da década de 20, a média do salário, em 1925, correspondia a 250 mil-réis. Ou seja, em seis conferências, Marinetti produ­ziu o equivalente a dois anos do salário de um trabalhador comum. 15 Ao que tudo indica, o futurista pensava nesta quantia ao declarar à imprensa argenti­na que tinha ficado "muito satisfeito com [sua] estada no Brasil, cujos resul­

tados ultrapassaram todas as expectativas".16 Não é nosso objetivo detalhar

o aspecto financeiro da viagem, contudo, vale a pena registrar que, em sua segunda fase, Marinetti realizou ao menos doze conferências - onze na Argentina, das quais nove em Buenos Aires, e apenas uma no Uruguai. Do total arrecadado com a venda de ingressos, Marinetti obteve 1.373 pesos. Uma soma inferior à obtida no Brasil em um número menor de conferências,

mas ainda assim uma quantia razoável se considerarmos que, em 1926, o salário anual de um professor de escola secundária no mais alto nível de qualificação equivalia a 3.300 pesos.1 7 De qualquer modo, em carta enviada a seu irmão, Alberto Cappa, Benedetta reconhecia que a segunda fase da viagem não podia ser comparada com a estada no Brasil, ao menos no que se refere aos lucros de seu marido: "Grande successo. gloria. gloria. Come sempre pocchissimo successo finanziario".18 Inversamente. este comentário

revela um aspecto fundamental da viagem de Marinetti. sistematicamente negligenciado ou ignorado pelos críticos literários.

11. Uma inimizade desvairada

Volto encantado do Brasil. O Rio de Janeiro, sobretudo, suscitou-me impressões vivas

e extremamente agradáveis, Senti nesta cidade minha sensibilidade despertada física

e intelectualmente, da forma mais amena e festiva ( ... )

Intelectualmente surpreendeu-me encontrar no Rio um intenso movimento literário

e artístico, tendo a seu serviço formosas inteligências e capacidades muito acima do

comum. O futurismo é compreendido e defendido por uma legião de escol, igualmente

brilhante na prosa e no verso. Graça Aranha e Ronald de Carvalho primam entre esses

precursores da arte nova ( ... )

Malgrado a tempestuosa recepção que recebi em São Paulo, esta cidade deixou-me

também excelentes impressões ( ... )

14 A documentação referente

ao número de ingressos vendi­dos e à porção correspondente a Marinetti pode ser consulta­da in Yale Beinecke - Arquivo

Marinetti, sélie m, caixa 53. pasta 1978.

15 Uma situação invejável, A C/asse Operária 12, 18 de ju­lho de 1925. Apud PINHEIRO,

Paulo Sérgio & HALL, Michael M., orgs. A C/asse operária no

Brasil. 1889-/930. Documen­

tos. Vo!. 11. Condiç"es de vida

e de trabalho, relaç"es com os

empresários e o Estado. São

Paulo: BrasBiense, 1981, 131.

16. Desde ayer es nuestro hués­

ped Felipe T. Marinetti, La Prensa, 8 de junho de 1926, 14.

17 Liliana Pascual, San José

de Flores /920-/930. La Edu­

cacirin, Buenos Aires: CIS -Instituto Torcuato di Tella, 1977, 19 ff. Devemos esta in­formação a Yasushi Ishii.

IX Carta a Alberto Cappa. Get­ty Center - Arquivo Marinetti,

acesso # 850702, série 111, cai­xa 8. pasta 160.

Page 47: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

19. O Jornal, II de julho de 1926. Apud BARBOSA, Fmncis­co de Assis, org. Raízes de Sér­gio Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Rocco, 1989, 79-

83.

20. Em especial, Da Montevi­

deo a Buenos Aires con F.T.

Marinetti, Giornale d'Italia, Buenos Aires, 8 de junho de 1926. Nesta entrevista, Mari­

netti sintetizam suas impres­

sões sobre os intelectuais bra­

sileiros, retomando-as parcial­

mente na entrevista com Sérgio Buarque.

21. O relacionamento de Ma­

nuel Bandeira com o casal Ma­

rinetti foi mais próximo do que

em geral se reconhece. Presen­

te em quase todas as ocasiões

públicas importantes durante a

permanência de Marinetti no Rio de Janeiro, Bandeira ainda

levou o casal para longos pas­

seios de automóvel na cidade, em especial ao Jardim Botâni­

co. Marinetti dedicou quatro

páginas de seu diário a esta vi­

sita (516-519). Mário de An­

drade reagiu com rapidez ao

encantamento de Bandeira.

Em cana a Prudente de Momis

Neto, enviada em 31 de maio

de 1926, Mário não procurou

disfarçar sua contrariedade:

"O que não compreendo nada

é o entusiasmo e a paciência

do Manú, desconfio que foi

por vontade de carregar nos

sonhos eróticos dele a bene­

detta (sic) Croce tão pouco

cristã", in Georgina Koifrnan

(ed .. 195.). Adiante, citaremos

uma outra cana, agora enviada

a Luís da Câmam Cascudo em

que o entusiasmo de Bandeira

é uma vez mais condenado.

22. Telegrama enviado em 23 de maio de 1926. VaIe Beinec­

ke - Arquivo Marinetti, série

m, caixa 7, pasta 76.

2.1. MARINETI1, ET., Taccuini. 1915/1921, org. Alberto Ber­

tone (ed.), Bolonha: li MulillO,

529.

As velocidades brasileiras de uma inimizade desvairada 47

Encontrei em São Paulo uma vanguarda de intelectuais que muito honram as letras brasileiras. Conservo grata recordação da cintilante grei de futuristas paulistanos. Destaco. sobretudo. Guilherme de Almeida e a Sra. Olívia Penteado. 19

Esta foi a última entrevista concedida por Marinetti em 1926, na véspera do seu regresso à Itália. Entrevista menos concedida do que produzida, pois coube ao italiano a iniciativa de procurar Sérgio Buarque na redação de O Jornal. Com uma última aparição pública, Marinetti encerrou suas atividades de auto-promoção, previstas no contrato assinado com Viggiani e, na verda­de, marca registrada do futurista. Se houve uma surpresa não foi quanto às observações, próprias de qualquer turista e que Marinetti já fizera na impren­sa argentina,20 mas quanto aos nomes destacados .pelo futurista como repre­sentantes da vanguarda brasileira. Graça Aranha e Ronald de Carvalho como "precursores da nova arte" no Rio de Janeiro? Por que não? Marinetti nunca descuidou do ritual da reciprocidade, buscando deste modo construir uma vasta rede de "aliados", capaz de assegurar o futuro de seu movimento. Graça Aranha foi um perfeito anfitrião, brindando o italiano com um discurso

encomiástico no Teatro Lírico e facilitando todos os seus contatos para uma maior divulgação das conferências de Marinetti. Por exemplo, Ronald de Carvalho apresentou a conferência radiofônica que, na noite de 22 de maio, reuniu no estúdio da Rádio Sociedade personalidades como o vice-presidente Estácio Coimbra, inúmeros deputados, Manuel Bandeira21 e Graça Aranha, entre outros literatos. Na descrição de um telegrama pontualmente enviado na manhã seguinte: "público seleto considerável ( ... ) brilhante discurso inau­gural poeta ronaldcarvalho (sic) sobre grande impacto artístico político do futurismo italiano marinetti (sic)."22

É, pois, compreensível a última homenagem prestada por Marinetti a seus novos "aliados" no Rio de Janeiro, local onde ele teve a melhor recepção

de toda a viagem. A verdadeira surpresa, contudo, estava reservada à "cinti­lante" menção a Guilherme de Almeida e Olívia Penteado. Considerá-los como os legítimos representantes da vanguarda paulista parece equivocado mesmo para os que desconhecem o diário que Marinettimanteve durante sua turnê à América do Sul. No dia 29 de maio, por exemplo, o futurista foi recebido na casa de Olívia Penteado para conhecer seu famoso "salão moder­nista". Marinetti descreve algumas das telas "da senhora Penteada Telles (sic)

... apaixonada pela vanguarda e pelo futurismo", sem esquecer de mencionar os personagens que ali se encontravam: "um Russo que imita Delaunay e Leger. Nas outras paredes, quadros vanguardistas de Tarsilla de Amar (sic) De Garro (italiano) e Reis. Encontro Mário de Andrade, Guilherme de Almei­da".23 Além de declamar poesias, Marinetti assistiu a performances dos dois poetas brasileiros, Guilherme de Almeida foi retratado em seu diário de uma forma nada brilhante: "delicado, refinado, elegantíssimo, rosto e corpo de

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48 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

uma velha símia equipada com parisianismo e Mallarmé declama com ardor

e virilidade de gestos sua poesia sobre a Aurora".24 Como os erros de orto­

grafia e a referência ao decadentismo dos versos terão esclarecido, Marinetti

não viu grandes atrativos em Guilherme de Almeida e Olívia Penteado. Portanto, o destaque que eles ganharam na entrevista mencionada tem um alvo secreto. Um alvo que o futurista tentava acertar com a arma que ele manejava melhor: a publicidade. Marinetti buscava atingir Mário de Andra­

de, excluindo-o da seleção dos vanguardistas, do mesmo modo que, em 1924,

ele tentara seduzir o brasileiro, mencionando-o na improvável lista do "futu­rismo mundial". Nesta batalha de bastidores reside o pano de fundo das observações de Marinetti. Na entrevista concedida a Sérgio Buarque, o italia­no agiu como um perfeito "passadista". O fundador do futurismo escolheu como aliados personagens que os historiadores literários terminariam por considerar secundárias no cânone do movimento modernista. No entanto, Marinetti intuiu muito bem que, em 1926, a questão principal era a escolha

de margens. Por exemplo, no dia 26 de maio, Marinetti anotou em seu diário:

Menotti dei Picchio (sic), literato futurista atualmente deputado diretor do Correio

Paulistano.

( ... )

Del Picchio há dois anos (si c) fez com Aranha Carvalho Bandeira Andrade de

Almeida Prado a semana modernista futurista no Teatro Municipal.

Hoje está brigado com Andrade atacou o último livro de Almeida. Chega Mário de

Andrade25

Apesar dos erros de ortografia e cronologia, estas linhas revelam um atento observador. Em 1926, o movimento modernista estava prestes a assu­

mir faces tão diversas quanto o número de facções que estiolariam a unidade responsável pela eclosão da semana de 1922. Grupos de tendência esquerdis­ta, grupos de inclinação fascista e até apolíticos então emergentes encontra­riam expressão em revistas que divulgariam suas plataformas. Além da dis­puta ideológica, outras lutas eram travadas. Disputava-se o exíguo público

com o mesmo interesse com que, muito em breve, boa parte da geração modernista encontraria respaldo em cargos oficiais. Este processo aprofun­dou uma ruptura semântica cujas primeiras manifestações antecedem 1922. Então, a fórmula a que Marinetti recorreu para definir a Semana de Arte Moderna ("semana futurista modernista"), embora já problemática, poderia ter sido empregada para efeitos propagandísticos. No entanto, em 1926, tal fórmula apenas criaria constrangimentos. Esta mudança atesta anos de esfor­ços por parte de alguns membros do movimento para a superação da imagem de iconoclastas que a Semana impusera. Guilherme de Almeida optou pelo caminho mais fácil, ingressando, em 1930, na instituição preferencialmente visada pelas críticas dos modernistas, a Academia Brasileira de Letras. Ou-

24 Idem. ibidem.

25 Idem. 524.

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2ó. Ver FABRIS, Annateresa, op.

cit., 266-68; NUNES. Benedito.

OSlVald Canihal. São Paulo:

Perspectiva. 1979.

27. Sobre o diálogo de Oswald

com Cendrm's, CAMPOS. Harol­

do de, Uma poética da radica­

lidade. in OSlVald de Andrade.

Poesias reunidas. São Paulo:

D/FEL. 1966.32-35; AMARAL.

Aracy. Rlaise Cendrars no

Brasil e os modernista.\'. São

Paulo: Livraria Mattins Edito­

ra, 1968.85-95.

2R. ANDRADE. Oswald de. O

meu poeta futurista, in Boi\,

VENlURA. Maria Eugenia, org.

Estética e política. São Paulo:

Editora Globo. 1991. 22-25. Este texto foi originalmente

publicado no Jornal do Co­

mércio (São Paulo) em 21 de

maio de 1921.

As velocidades brasileiras de uma inimizade desvairada 49

tros participantes da Semana, mais sutis ou menos inclinados aos rituais da

Academia, apostaram no modelo do intelectual como arquiteto da moderni­dade da nação. Neste contexto, a ruptura semântica cristalizou-se. O termo ''futurismo'' passou a designar uma condenação indiscriminada, logo, su­perficial, contra toda e qualquer manifestação do passado. O termo "moder­nismo ", entendido como a face positiva da reação contra estruturas arcai­cas, passou a designar formas novas de identidade cultural, profundamente identificadas com a essência da nacionalidade. Esta ruptura constituiu um

dos elementos determinantes da acolhida que Marinetti teve. Com efeito, ela

pode ser observada tanto em debates intelectuais quanto em charges e inúme­

ras paródias em verso e prosa publicadas na imprensa diária. Nos debates, a

ruptura é explicitada formalmente. Nas charges e inúmeras paródias de pala­

vras-em-liberdade com descrições satíricas das conferências de Marinetti, a

penetração popular daquela ruptura se esclarece. Por exemplo, um leitor do

Jornal do Comércio que consultasse a seção de espetáculos, em 9 de

maio de 1926, encontraria um anúncio de meia-página, cujo mote prometia:

"A EPIDEMIA DO JAZZ: UM FILME FUTURISTA - UMA HOMENAGEM AO ESPÍRITO

MODERNO. Asupremaciado absurdo! Do ilógico! Do incoerente!" Embora a

carga semântica dos termos ainda não esteja diferenciada com nitidez, o

absurdo, o ilógico e o incoerente são atributos do filme "futurista", adjetivo

que resume uma parte do "espírito moderno", mas que não o esgota. Em

palavras diretas, Marinetti, o criador do futurismo, desembarcou na América

do Sul após a consumação do tempo: tivesse ele chegado em 1924, como seu

equívoco sugere (Há dois anos [realizou-se] a semana modernista futurista"),

provavelmente o rumo de sua viagem teria sido outro.

Ao menos vale a pena imaginar uma possibilidade: se a viagem realmente

tivesse ocorrido em 1924, o autor de Zang Tumb Tumb poderia então ter

encontrado quem talvez desempenhasse um papel mediador fundamental. Du­

rante a permanência de Marinetti no Brasil, Oswald de Andrade estava no

exterior, tendo apenas retornado no mês seguinte ao da partida do italiano. As

afinidades de Oswald com o futurismo remontam a 1912, em sua primeira

viagem a Europa, quando ele leu com interesse o Fundação e Manifesto do Futurismo, publicado pelo Le Figaro em 20 de fevereiro de 1909; um texto cujo

impacto sobre suas concepções não deve ser ignorado.26 Em seu período forma­

tivo, o principal diálogo de Oswald de Andrade foi com as vanguardas francesas

e, sobretudo, com Blaise Cendrars. 27 No entanto, entusiasmado com a Paulicéia

Desvairada, de Mário de Andrade, Oswald não encontrou maior elogio que

considerar seu autor, "o meu poeta futurista".28 A afinidade realmente impor­

tante diz respeito à compreensão oswaldiana da natureza auto-promocional da

indústria cultural contemporânea. Oswald, na melhor tradição futurista, provo­

cava abertamente seus adversários, inspirando críticas semelhantes às que fo­

ram endereçadas a Marinetti em 1926. Na visão de Oswald de Andrade, a

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50 Revista Brasileira de Literatura Comparada, na 3

prática artística dos modernistas se completava na encenação de seu papel social e este poderia, se exercido com a dose necessária de artifício, tornar-se uma outra forma de apresentação da arte moderna. Por isto, um encontro de Marinetti com Oswald de Andrade, ainda que fictício, teria chances reais de oferecer ao futurista um importante e fecundo interlocutor.

Num outro plano, a presença de Mário de Andrade deve ter parecido a Marinetti uma desagradável surpresa. Mário construiu sólidas alianças atra­

vés de uma minuciosa e quase obsessiva correspondência que deve ter incluí­do a maior parte dos jovens promissores da geração de autores pós-1922. Os efeitos práticos deste sistema epistolar eram múltiplos. Para compreendê-los, precisamos privilegiar os possíveis vínculos institucionais nele implicados, em lugar de limitar nossa interpretação às vicissitudes pessoais dos missivis­tas.29 Através de sua correspondência, Mário pôde coreografar e mesmo coordenar eventos, além de praticamente modelar o horizonte intelectual de

escritores iniciantes. Por fim, nas cartas pontualmente enviadas, e que recor­dam os inúmeros telegramas expedidos por Marinetti, Mário assumiu o papel de cronista da literatura brasileira. Este papel foi o mais importante, pois permitiu a Mário estabelecer-se como uma espécie de criador da memória da cultura nacional, uma ponte entre a idade heróica do modernismo e as gera­ções posteriores.

Portanto, não teria sido apenas um gesto inconseqüente o que levou Mário de Andrade a enviar para Marinetti uma cópia de Paulicéia Desvairada com a dedicatória: "A F.T.Marinetti / com (sic) viva simpatia e ammirazio­ne".30 Marinetti, com um olho posto numa futura aliança, respondeu com rapidez e no já citado manifesto "Le Futurisme mondial" alinhavou numa lista ecumênica de "futuristes sans savoir, ou futuristes déclarés" ( ... ) De Andrade, D' Almeida Prado (sic)".31 O alcance do gesto dependia do axioma fundamental da lei da reciprocidade: "só me interessa o outro como um outro aliado". Deste modo, um pouco antes da chegada de Marinetti em 1926, Yan de Almeida Prado recordou que "um belo dia chegou-me comunicação de outro empresário com aviso que Marinetti ia empreender turnê na América do Sul e contava naturalmente com o meu auxílio".32 Mário de Andrade também recebeu mensagens de Viggiani, mas com ele a causa do empresário estava perdida desde o começo. O gesto de Marinetti desagradou a Mário de Andrade. Além disto, sentimentos antifascistas e uma crescente inclinação nacionalista, associados a simples ansiedade sobre a repercussão da visita do italiano na cena intelectual brasileira tornaram Mário abertamente hostil à presença de Marinetti. Hostilidade que transparece sob a face irônica de uma breve nota enviada a Prudente de Moraes Neto:

Chego no Rio a bordo do Zelandia. Vá me esperar no cais pra combinar tudo. Não sei pra que Hotel vou. Arranje pois pra estar no cais e me abraçar. Vou buscar o Marinetti.

29. Silviano Santiago, em pa­

lestra realizada na Universida­

de de Stanford, destacou esta

perspectiva.

lO. Apud FABRIS, Annateresa,

op. cil .• 218.

li. MARINETTI. F.T.. Le Fututis­

me mondial, in Le Futurisme.

Revue Synthéthique Illustrée,

11 de janeiro de 1924, 2. As

dúvidas referentes à identida­

de do "De Andrade" foram sa­

tisfatoriamente resolvidas por

Annateresa Fabris, OI'. cit., 217-18.

12 PRADO, J.F. de Almeida,

O Brasil e () colonialismo eu­

ropeu. São Paulo: Companhia

Editora Nacional. 1956, 392, nossos itálicos.

Page 51: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

D KOIFMAN, Georgina, org.,

191.

14 ANDRADE, Mário de, Blaise

Cendrars, Revista do Brasil,

março, 1924, in EULÁLIO, Ale­

xandre, org., A Aventura Bra­

sileira de Blaise Cendrars.

São Paulo: Edições Quíron,

1978, 160.

Jj. MARINElTI, F.T., Le FutUlis­

me mondial, in Le Futurisme.

Revue Sv1lthélhique Illustrée,

11 de janeiro de 1924, I.

lO. PRADO, J.F. de Almeida, op.

eit., 396.

17 Mário de Andrade publicou

a "Carta aberta a Graça Ara­

nha" em 12 de janeiro de 1926,

em A Manhã. Nesta carta, Má­

rio contestava a pretensa lide­

rança de Graça Aranha e che­

gava a duvidar do modernismo

do autor de Espírito moderno,

insinuando que Aranha apenas

aderira ao movimento moder­nista movido por interesses pessoais.

18 VERISSIMO DE MEU), org.,

Cartas de Mário de Andrade a

Luís da Câmara Cascudo.

Belo Horizonte, Vila Rica, s/d,

63. A carta foi escrita em 4 de

junho de 1926.

As velocidades brasileiras de uma inimizade desvairada 51

Quá! Quá! Quá! O Viggiani é que paga. Quá! Quá! Quá! Sinão eu não ia. Quá! Quá!

Quá! Buscá o Marinetti. Quáquá! Quá! Quá! (Isto é fia modinha).33

A reserva inicial de Mário com vanguardistas europeus que vinham conquistar eldorados é bem conhecida. Por exemplo, na Revista do Brasil, na edição de março de 1924, por ocasião da primeira visita de Blaise Cendrars ao Brásil, após escrever um longo e favorável ensaio, Mário não resistiu a um duvidoso jogo de palavras. Cendrars quase foi impedido de ingressar no país, pois, em virtude das novas leis de imigração, sua condição física o tornava incapacitado para o trabalho. O braço que o suíço perdera na Primeira Guerra Mundial o tornou alvo da sugestão: na verdade, Blaise Cendrars seria Sans­Bras. O artigo de Mário explicitava a equivalência:

As autoridades de Santos quiseram impedir-lhe o desembarque, por que era mutilado.

Tudo se arranjou, Felizmente para nós, que possuiremos o poeta por algum tempo. Mas

o ato policial me enche de sincero orgulho. Que vem fazer entre nós os mutilados? O

Brasil não precisa de mutilados, precisa de braços. J.I

A fonte de Mário pode ter sido o manifesto do "Futurisme mondial",

publicado em janeiro de 1924. Nele, Marinetti anunciava o "futurista" Cen­

drars inaugurando o duvidoso jogo: "Voici le Sans Fil Blaise Cendrars, filmeur de rêves negres, émetteur des Radios, écraniste solaire du monde entier".35 Na imagística futurista, o Sans-Fil equivale à explicitude da suges­tão andradina. Igualmente direto, Yan de Almeida Prado creditou o incidente a determinada característica de Mário, "ao qual aborrecia o aparecimento de

outro pontífice no seu arraial".36 No caso de Marinetti, não se tratava de um

outro qualquer, mas do próprio criador do futurismo. Por isto, a reação de Mário foi imediata e o debochado "quá! quá! quá!" anunciou a calculada frieza com que Marinetti seria tratado. Mário ironizava tanto a "generosida­

de" de Viggiani quanto a ingenuidade do italiano que esperava encontrar um "De Andrade" e um "D' Almeida Prado" prontos para o papel de fiéis escu­

deiros do futurista. Afinal, por que o empresário pagaria as despesas de Mário? Certamente porque sua participação asseguraria à chegada de Mari­netti um considerável valor no marketing das conferências. Sobretudo após a "Carta aberta a Graça Aranha" que tanta polêmica ocasionara.3? Reunir os dois líderes do modernismo brasileiro na recepção ao criador do futurismo

representaria um verdadeiro evento. Aliás, um evento cujo interesse fez com que criativos jornalistas incluíssem um Mário de Andrade virtual em suas

narrativas. Antes que tal versão se transformasse em fato, Mário se viu forçado a reagir: "Os jornais falaram que fui no Rio esperá-lo. É mentira, não fui não. Pretendi ir depois desisti e estou convencido que fiz bem" ,38 pois o inimigo maior da performance futurista era tanto a indiferença hostil quanto

o aplauso educado. Em "La voluttà di esser fischiati", este princípio já havia

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52 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

sido tematizado: as apresentações futuristas são batalhas que convidam à

vaia, à reação violenta por parte do público.39 Quanto maior a violência desta reação, maior o êxito da se rata futurista. Talvez porque durante muitos anos

tenha convivido com Oswald de Andrade, Mário compreendia tal estratégia

com perfeição. Estava, portanto, preparado para a disputa. Faltava apenas o

encontro com o adversário. Numa carta a Luís da Câmara Cascudo, Mário

descreveu o confronto:

Depois dele estar já três dias em S. Paulo é que fui visitá-lo. Não podia deixar de ir

embora esse fosse meu desejo porque desde a Itália e desde muito que tem sido gentil

pra comigo. Fui e a primeira coisa que falei pre ele é que tinha deixado de ir à conferência porque discordava dos meios de propaganda que estava usando. Ficou sem

se desapontar e pôs a culpa no empresário. E falou falou dizendo coisas que eu já sabia

e me cansando. Me despedi e espero que se tenha desiludido de Mário que ele

imaginava futurista ( ... ) A segunda vez que o vi foi num chá no salão moderno de Dona

Olívia Penteado. Esteve absolutamente chato. Não o procurei mais e meio que banquei

o indiferente. Me contaram que ele foi embora indignado conosco. É milhor assim. No

Rio foi apreciadíssimo dos modernos e teve as honras que não me parece merecidas de

ser apresentado no teatro pelo Graça e na conferência do rádio pelo Ronald. Não posso

compreender o entusiasmo que tiveram por ele. principalmente o Manuel Bandeira."411

Como resposta ao interesse demonstrado pelos cariocas, Mário encon­

trou a fórmula adequada para neutralizar o italiano: a indiferença. Por fim,

num esforço adicional para diminuir o entusiasmo de Bandeira, Mário enviou

uma carta ao amigo, na qual anunciava a estratégia que empregaria em seu duelo com Marinetti:

Inda não vi o homem e parece que de despeito ele afirmou no teatro que os futuristas

do Brasil estavam todos no Rio de Janeiro (. .. ) mas amanhã, quarta, irei visitá-lo. Si

não quiser me receber, milhor, porque evitará a discussão que havemos de ter, pois vou

disposto a falar sinceramente o que penso do procedimento dele aqui e que não fui ao

teatro porque não estou disposto a assitir espetáculo de vaias mais ou menos prepara­

das.41

Num primeiro momento, Mário reagiu à presença de Marinetti deixando de comparecer aos eventos públicos organizados por Viggiani, evitando as­sim sua identificação com o líder futurista. Vale dizer, para Mário pouco importava se as vaias eram ou não combinadas, o importante era cercar o evento com um eloqüente silêncio. Num segundo momento, através de uma correspondência enviada a todo o Brasil, ele tomou a si a responsabilidade de descrever e avaliar a visita de Marinetti. Deste modo, além de reforçar sua posição de liderança, Mário construía a memória de futuras gerações. Por fim, Mário procurou desacreditar o papel fundador de Marinetti através de uma sutil armadilha lógica, expondo o paradoxo que cedo ou tarde toda

39 MARINETII, F.T., La voluttà

di esser fi schiati. in MARIA. Luciano de, org., Guerra sola

igiene dei mondo (1915). Teo­

ria e invenzione futurista, Mi­lão: A. Mondadori, 1983.

40. VERfsSIMO DE MELO, org.,

63-64. Para apresentar os dois encontros de Mário com Mari­

netti em ordem cronológica, alteramos a ordem original dos

parágrafos da carta de Mário

de Andrade.

4'. BANDEIRA, Manuel, org.,

Cartas a Manuel Bandeira.

Mário de Andrade, Rio de Ja­neiro: Edições de Ouro, sld,

135.

Page 53: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

42. ANDRADE, Mátio de. Táxi e

crlJnicas no Diário NaciofUlI.

Org. Telê Porto Ancona Lo­

pez, São Paulo: Livraria Duas

Cidades, 1976, 192. A crônica

de Mário de Andrade foi publi­

cada pela primeira vez in Diá­

rio Nacional, II de fevereiro

de 1930.

43. FABRIS, Annateresa, op. cit.,

219.

44 ANDRADE, Mário de. A Es­crava que não é [saura, in

Ohra Imatura (Ohras comple­

tas de Mário de Andrade), São

Paulo: Livrmia Martins Edito­

ra, 1960,215, nossos itálicos.

45 Idem, 260-62.

46 Idem, 239-40.

47. GRAÇA ARANHA, Mminetti e

o futurismo, in COUllNHO,

Afrânio, org., Graça Aranha.

Ohra Completa. Rio de Janei­

ro: Aguilar, 1968,863-866.

As velocidades brasileiras de uma inimizade desvairada 53

vanguarda deve enfrentar. No caso de Marinetti, o paradoxo pode ser assim enunciado: o criador do futurismo exigia o reconhecimento de seu gesto fundador, ou seja, o criador do futurismo buscava legitimar sua posição

presente por meio de um evento passado. Logo, se Marinetti afirmara que os verdadeiros futuristas brasileiros estavam no Rio de Janeiro, segundo Mário, os verdadeiros futuristas italianos eram todos ex-futuristas. No primeiro encontro dos dois, ocorrido em 26 de maio, no Hotel Esplanada de São Paulo, Mário sugeriu este ponto duas vezes. "Ficamos assim meio sem vida, ele

respondeu com certa má vontade às perguntas que eu fazia sobre Folgore e Palazzeschi, meus carinhos italianos do momento".42 Pelo visto, o gosto de

Mário era bastante seletivo e, neste caso, privilegiava autores que se afasta­

ram de Marinetti. O italiano, se conhecesse melhor a cena brasileira, poderia ter respondido à altura insinuando uma possível predileção por Menotti deI

Picchia e Graça Aranha ... Como último golpe, Mário presenteou Marinetti com um exemplar de A Escrava que não é [saura (1925), acrescentando uma

dedicatória "Para FT. Marinetti / o agitador futurista". Annateresa Fabris

considerou a atitude incoerente: "Para alguém que discordava dos métodos de atuação do homenageado L .. ) os termos da dedicatória não podem deixar de soar surpreendentes".~·; ~o entanto. o conteúdo do Ii\TO contém uma série

de provocações diretamente dirigidas contra Marinetti. Por exemplo, Folgore

é descrito como "porventura o maior e certo o mais moderno do grupo

futurista italiano" .44 Além de exaltar as qualidades poéticas de Palazzeschi,

Mário transcreve integralmente "La Fontana Malata".45 O golpe decisivo,

contudo, é a seguinte avaliação da obra de Marinetti:

Marinetti criou a palavra em liberdade. Marinetti aliás descobriu o que sempre existira

e errou profundamente tomando por um fim o que era apenas um meio passageiro de

expressão. Seus trechos de palavra em liberdade são intoleráveis de hermeticismo, de

falsidade e monotonia.4fi

A dedicatória do livro deve pois ser lida pelo avesso. Ao escrever

"FT.Marinetti / agitador futurista", menos do que um elogio, Mário estava

de fato recusando a opção: "FT. Marinetti / poeta futurista". Para concluir­mos nosso argumento, devemos ressaltar que, neste refinado jogo de xadrez,

Marinetti pode ter sido um simples instrumento. Na verdade, o verdadeiro

alvo dos ataques de Mário era Graça Aranha. Denunciado na "Carta aberta"

como um "passadista" disfarçado em trajes modernos, Aranha buscou recu­

perar sua posição de liderança no papel de anfitrião do criador do futurismo.

No discurso inaugural da primeira conferência de Marinetti na América do

Sul, em 15 de maio, Aranha teceu seus argumentos com cuidado: "Marinetti

iniciou e organizou a ação libertadora ( ... ) Diante desta grandeza, como é pueril discutir-se se o futurismo de Marinetti já é passadismo."47 Nos próxi-

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54 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

mos parágrafos, Aranha analisou a cena brasileira, sugerindo um padrão idêntico para a avaliação de seu papel histórico de organizador da Semana de Arte Moderna. Mário respondeu de imediato a este astuto lance, aceitando a primeira parte do raciocínio, porém invertendo suas conseqüências. Graça

Aranha bem poderia ser o Marinetti brasileiro. No entanto, dado o princípio de "tal pai, qual filho", se Marinetti era menos moderno que Folgore e menos futurista que todos os ex-futuristas, logo, Aranha era inevitavelmente um "passadista". Na esfera pública, Mário evitou contatos com Marinetti. Na esfera privada, ativou seu sistema epistolar para contar uma versão própria dos fatos e, assim, diminuir a importância do italiano. Com esta dupla estra­tégia, Mário neutralizou as ações planejadas por Graça Aranha.

Um inesperado peão num jogo de xadrez cujos verdadeiros mestres eram Mário de Andrade e Graça Aranha e cujo prêmio era a liderança simbólica do movimento modernista, Marinetti optou pelas alianças possíveis numa situa­ção difícil. Ele excluiu Mário da seleção de vanguardistas brasileiros, substi­tuindo o poeta de Paulicéia Desvairada por Guilherme de Almeida e Olívia Penteado; além de reforçar seus laços com Graça Aranha e Ronald de Carva­lho. Podemos agora retornar ao segundo encontro de Mário e Marinetti, desta vez escutando a versão do italiano: "Declamo Bombardamento. Mário de Andrade um tipo rude alto com aspecto de bom negro branco declama suspirosamente e leitosamente um de seus llOflImos".-t8 O "ex-aliado" do manifesto do "Futurisme mondial" reaparece como um poeta decadente, uma antítese do espírito moderno. Depois deste segundo encontro, Mário e Mari­netti não se viram em nenhuma outra ocasião. O brasileiro não foi mais convidado para as aparições públicas do italiano e, claro, ele não compareceu às duas últimas conferências de Marinetti. No entanto, a vitória final coube a Mário de Andrade. Graça Aranha nunca recuperou a posição de liderança por ele desempenhada em 1922. Marinetti apenas retornou ao Brasil em 1936 e mesmo assim sem maiores conseqüências. Por fim, através de um perfeito sistema epistolar e de uma constante colaboração jornalística, Mário de Andrade transformou sua versão dos fatos na memória das futuras gerações. Uma conquista que Marinetti, o criador do futurismo, não poderia senão desejar para o seu movimento.

48 MARINETII, F. T. Taccuini. 1915/1921, org. Alberto Ber­

lone org., Bolonha: 11 Mulino,

529.

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Uma primeira versão deste

texto constituiu palestra que

fiz no Curso de Pós-Gradua­

ção em Língua e Literatura In­

glesa do Departamento de Le­

tras da USP, São Paulo, em

abril de 1995.

1 CANDIDO, Antonio. Palavras

do homenageado In: 1" Con­

liressoABRAUC: Anais. Porto

Alegre: UFRGS. 1989. Texto

reproduzido In: Recortes. São

Paulo, 1993.

Literatura comparada e literaturas estrangeiras

no Brasil

Tania Franco Carvalhal

Nas palavras iniciais que proferiu ao ser homenageado no I Congresso da ABRALIC, em Porto Alegre(1988), Antonio Candido, ao dizer que a "orga­nização associativa dos especialistas era sinal de maturidade e com certeza ajudaria a Literatura Comparada brasileira a entrar na era do funcionamento sistemático", observou que até aquele momento ela tinha sido "uma atividade

universitária ainda discreta e frequentemente marginal, quase sempre subpro­

duto das disciplinas de literaturas estrangeiras modernas".l

Interessa-nos pensar a que aludiria Antonio Candido ao final do parágrafo quando identifica, no início da institucionalização acadêmica da prática com­paratista no Brasil, uma estreita vinculação entre ela e as literaturas estrangeiras modernas. Certamente estaria a lembrar de trabalhos pioneiros em literatura comparada que foram desenvolvidos no âmbito universitário sob forma de teses acadêmicas e não mais como resultado de um comparatismo "espontâneo e difuso" que, segundo ele, teria caracterizado os estudos críticos brasileiros, dotados em geral de "ânimo comparatista". Ânimo concretizado na referência constante a modelos externos, tomados inclusive como critério de valor, como

se sabe, pois os estudos de literatura nacional (como aliás a própria produção literária brasileira) caracterizavam-se por manifestar através da constante refe­

rência ao estrangeiro, ainda no dizer de Candido, "uma espécie de comparatis­mo não intencional, elementar e ingênito".

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56 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

Entre os trabalhos oriundos da experiência com literaturas estrangeiras

estão aqueles que o próprio crítico menciona no mesmo texto: o de Keera

Stevens, sobre viajantes ingleses em Portugal, o de Carla de Queiroz em

Literatura Italiana sobre Metastásio e os árcades brasileiros. o de Marion

Fleischer, em Literatura Alemã, sobre obras publicadas nessa língua no Rio Grande do Sul, o de Onédia de Carvalho Barbosa. em Literatura Inglesa, sobre traduções de Byron no Brasil, e o de Maria Alice Faria. em Literatura

Francesa, sobre Musset e Álvares de Azevedo.

Como se vê, aparecem já nessa breve referência de Antonio Candido

cinco literaturas estrangeiras que. na USP. motivaram estudos comparativos sistemáticos entre a nossa e aquelas literaturas. sobretudo no campo da recepção literária ou de análises pontuais entre dois (às vezes mais) autores

de duas literaturas. Eis, portanto, numa perspectiva histórica. o quadro que

desenha com nitidez a inclinação dos estudiosos de literaturas estrangeiras no

Brasil para estudos que propiciem um aproveitamento simultâneo de dois

campos de trabalho: o da literatura brasileira (que integra a formação do pesquisador brasileiro) e o da literatura estrangeira, na qual ele se especializa. Esse quadro, que poderia ser apenas inicial, se tem confirmado desde então por inúmeros trabalhos em diferentes universidades brasileiras, particular­

mente naquelas em que há mestrados e doutorados em literatura comparada:

na própria Universidade de São Paulo, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, na Universidade Federal de Minas Gerais e na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Nesta última, por exemplo, tive a oportunidade de orientar a tese de Doutorado em Literatura Comparada (a primeira a ser defendida no Doutorado em Letras da UFRGS, em dezembro de 1993) de Maria Marta Laus Pereira Oliveira, professora de francês da Universidade

Federal de Santa Catarina, sobre a recepção da obra de Proust na crítica brasileira e também a tese de Maria Luíza Brandão da Silva, professora de literatura francesa na UFRGS, sobre a leitura de intertextos franceses no simbolismo sul-rio-grandense. Tive igualmente a ocasião, no recente concur­

so para Professor Titular de literatura norte-americana da UFMG, de apreciar

o excelente estudo de Ana Lúcia Gazolla sobre as viajantes anglo-americanas

no Brasil no século XIX, intitulado "Mulheres à deriva". Os exemplos pode­riam se multiplicar e eles são aqui mencionados para identificar a origem desses trabalhos e a tendência geral e permanente dos professores de litera­turas estrangeiras na universidade brasileira a se ocuparem com pesquisas de natureza comparatista. Tal incidência aponta para uma "inclinação natural"

dos estudiosos de literaturas estrangeiras aos estudos comparatistas. Devido a essa inclinação natural (ou habilitação natural), a ABRALIC, desde sua constituição, pôde contar entre seus associados com expressivo número de professores de literaturas estrangeiras, pois habituado a lidar com duas ou

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Literatura comparada e literaturas estrangeiras no Brasil 57

mais línguas, literaturas e culturas, adquire esse pesquisador uma dupla competência, necessária a estudos dessa natureza.

Essas rápidas considerações nos permitem dizer que tais estudos não podem, hoje, ser mais considerados como subprodutos das disciplinas de literaturas estrangeiras modernas, como os designou Antonio Candido, tendo por base o quadro histórico inicial. Na verdade, oriundos do trato com literaturas estrangeiras, eles se têm convertido em parte essencial não só das atividades de ensino e pesquisa das literaturas estrangeiras no Brasil como dos estudos de literatura comparada aqui desenvolvidos. Tendo em vista as orientações comparatistas mais recentes, eles assumem uma importância decisiva. Sobretudo quando se ocupam com as análises de produção/recepção literárias a partir de uma concepção de polissistema, tal como a definiu Itamar Even Zohar I In: Papers in Historieal Poeties, Tel Aviv, 1981), e com estudos intra e interculturais nos quais a tradução tem um lugar central, sem falar das investigações que se caracterizam como "cross cultural studies" e que in­cluem os estudos sobre viajantes e cronistas. Nesse contexto, os estudos interliterários e interculturais ganham uma grande relevância. Trata-se, pois, não só de sensível acréscimo de uma incidência numérica em trabalhos dessa

natureza mas de um avanço certamente qualitativo nos estudos realizados nesses campos e que se identificam, particularmente, pela adoção de novos pressupostos teóricos e metodológicos, antes não disponíveis.

Mas, cabe indagar, por outro ângulo embora ainda no mesmo contexto, o que faz com que um professor de literatura estrangeira entre nós adote, com tanta frequência, a orientação comparatista.

A resposta pode vir rápida, pois não é difícil perceber que se trata, ainda e sempre, de peculiarizar uma atuação a partir do lugar onde o pesquisador se situa (ou seja, o loeus da enunciação). Quer dizer, um professor de literatura estrangeira no Brasil, por mais especializado que seja em períodos, tendên­cias, gêneros ou autores estrangeiros (Shakespeare ou o drama burguês fran­

cês, por exemplo) sabe que, em lugar de restringir-se apenas àquela literatura estrangeira, poderá contribuir decisivamente para o conhecimento que desen­volve se tomar uma perspectiva que lhe é particular e que só um pesquisador com a dupla formação que possui (em literatura brasileira e estrangeira) pode assumir. Assim, estudar a recepção de Shakespeare ou de Proust no Brasil significa contribuir para o conhecimento desses autores num ângulo diverso dos estudos empreendidos por pesquisadores europeus, quer dizer, examiná­los sob o ângulo da reação que eles provocaram em contextos diversos ao de suas origens e da multiplicidade de leituras que eles são capazes de suscitar. Mas significa também observá-los com uma visibilidade particular e colabo­rar para um entendimento mais eficaz da literatura/cultura que os acolhe. Significa, ainda, indagar sobre as razões pelas quais determinado autor (seja ele importante ou não na literatura de origem) repercute e se difunde em outro

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58 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

contexto literário e cultural,com maior ou menor sucesso. Estudos compara­tivos dessa ordem, que levam em conta a produção/recepção das obras,

respondem a uma necessidade contextual, a urgências específicas de cada espaço determinado. A estratégia que define "o lugar de onde se fala" é tão significativa que se converteu em objeto de reflexão para muitos estudiosos e, poder-se-ia mesmo dizer, em uma espécie de categoria crítica.

Em texto publicado na Revista de Crítica Literária Latinoamericana n° 40, 1994, pp. 363-374, e elaborado como instrumento de trabalho para a JALLA 95 (realizada em Tucumán, Argentina, em agosto de 1995). Walter Mignolo, ao tratar dos processos de globalização, indaga como esses proces­sos afetam as práticas culturais. E pergunta: " De que maneira as línguas ligadas aos impérios (Espanhol, Português, Francês, Inglês), e as práticas

culturais nessas línguas impõem formas de pensamento que tratamos de impor a práticas culturais em outras línguas (Aymara, Quechua, Hebreu,

Árabe, Chinês, etc)?" É certo que o autor está ocupado com espaços e línguas muito específicas e não similares às dos povos colonizadores mas, de qual­quer modo, sua reflexão valoriza a noção de contexto, "o lugar desde onde se pensa, fala e escreve". Por isso, indaga: "De que maneira viver e pensar nos Andes é distinto de pensar e viver em Manhattan? Como articular o lugar de onde se é (falo de processos educativos, não de processos biológicos e administrativos) e o lugar onde se está na produção cultural?" Enfim conclui que "pensar a produção, a literatura, o discurso (colonial ou nacional) nesses termos, nos convida a repensar fundamentalmente as categorias com que temos estado trabalhando, nos últimos 30 anos, nos estudos literários."

Ana Lúcia Gazolla. em dois estudos intitulados respectivamente "Pers­pectivas em estudos comparativistas de literatura brasileira e americana" e "Decentering Narcissus: Comparing Literature In (and From) the Third World" observa que "no trabalho de crítica literária e em nossos cursos na Universidade, o caminho parece ser o estudo comparativo das várias literatu­ras e da brasileira, quando se afirmarão simultaneamente - por contraste -características peculiares a cada uma, mitos nacionais, diferenças e seme­lhanças", para concluir que se deva "buscar no confronto das estratégias e dos sentidos por elas projetados, via comparação e contraste dos textos, nosso entre-lugar (Ana Lúcia adota a expressão usada por Silviano Santiago em artigo conhecido) cultural, nossa marca, nossa cicatriz". 2

Os estudos de recepção literária, como o de Munira Mutran sobre Joyce no Brasil ou os que se ocuparam de autores como Whitman ou Baudelaire em nosso país, são exemplares nesse caso, bem como aqueles que tomam o caminho inverso, quer dizer, centram suas análises na obra de autor nacional examinando como nele repercutem os influxos estrangeiros. Estou a pensar nos trabalhos reunidos por Leyla Perrone-Moisés no número 1 da Coleção Documentos da série Estudos Brasil-França sobre as "Relações culturais

2 GAZOLLA, Ana Lúcia. In:

Quarta Semana de Estudos

Germânicos. Anais. Belo Ho­

rizonte: Imprensa da UFMG,

I 986,p.25.

Page 59: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

Literatura comparada e literaturas estrangeiras no Brasil 59

França-Brasil: influências e convergências" (novembro de 1991). Trata-se de "Osman Lins, marinheiro de primeira viagem", de Sandra Nitrini, de "Bilac

em Paris", de Antonio Dimas, "Veredas do indianismo: a contribuição de Denis", de Maria Cecília de Moraes Pinto, e de "Leituras Francesas de

Manuel Bandeira", de Davi Arrigucci Jr., por exemplo. De certo modo, esses estudos mais recentes substituem os tradicionais estudos de influências (vin­

do mesmo a inclui-los) e aqueles que se ocupam com a fortuna crítica de uma

obra. Como se sabe, com a ênfase teórico-crítica desviada do autor e do texto em si mesmo para o leitor, os estudos de recepção/transmissão ganharam

outra relevância. De um lado, a história literária tende a ser construída, nO

futuro, pelos significados e/ou interpretações dadas aos textos por diferentes

leitores e públicos, tanto sincrônica como diacrônicamente, nOS termos das

condições que produziram as modificações de significados. De outro, a re­

cepção literária tende a ser estudada no contexto da recepção simultânea de

outros textos, não literários, verbais como não-verbais, além dos códigos

culturais e sistemas de valores sob os quais os leitores basearam sua recepção

dos textos.

Já H.R. Jauss, em seu ensaio "Estética da recepção e comunicação

literária", apresentado no Congresso da AILC em Innsbruck, 1979, e publi­

cado em 1980, apontava para o fato de que a estética da recepção - Escola de

Constanza - foi se transformando, a partir de 1966, em uma "teoria da

comunicação literária". Quer dizer, a noção de recepção passa a ser entendida

em duplo sentido: 1. de acolhida (ou de apropriação) e 2. de intercâmbio. A

recepção define-se, então, como ato duplo que inclui o "efeito produzido pela

obra de arte" e "o modo como o público a recebe". Assim, conforme Jauss, a

tarefa de representar a história das literaturas como um processo de comuni­

cação implica em reconstruir "o repertório ativo" da compreensão nas rela­

ções de recepção e de intercâmbio literários. Admitir a possibilidade de

constituição de um repertório ativo, por sua vez, implica reconhecer que todo

ato de recepção pressupõe uma escolha, e uma parcialidade com relação à

tradição. Uma tradição literária formada necessariamente em um processo

que supõe duas atitudes opostas: a apropriação e a rejeição, isto é, a COnser­

vação do passado e sua renovação. Em outros termos, uma tradição construí­

da pelos procedimentos de memória e esquecimento.

Esses pressupostos, que correspondem a uma alteração de paradigma nOS

estudos comparatistas, têm certamente consequências metodológicas. A fa­

lência da concepção linear nO processo construtivo da tradição nega a causa­

lidade stmples de filiações, antes atribuidas à fonte e ao modelo. Além disso,

a concepção dialética da historiografia literária leva à descoberta de relações

comunicativas ocultas e à constituição de um repertório de tipos e formas de

recepção extremamente diferenciados: a reminiscência, a sugestão, o emprés­

timo, a imitação, a adaptação e a variação. Nessa linha de reflexão, encontra-

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60 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

mos as propostas de organização tipológica dessas apropriações elaboradas

pelo eslovaco Dioniz Durisin desde 1975, as categorias gerais, ou transcen­

dentes - tipos de discursos, modos de enunciação, gêneros literários, etc. -

das quais resulta cada texto singular, expostas por Gérard Genette, em Pa­limpsestes - La littérature au second degré (1982), ou a análise das apropria­

ções textuais feita por Antoine Compagnon em La seconde ma in ou le travail

de la citation (1979), ou ainda a teoria hermenêutica de Harold Bloom, que

substitui o mito literário dos precursores por um registro de categorias, em

sua perspectiva do "mal entendido criativo", o "creative misreading", de A

Map of Misreading, até a elaboração ensaístico-ficcional de Jorge Luis Bor­

ges, em "Kafka y sus precursores", "Pierre Ménard, autor deI Quixote" e

outros textos borgesianos.

Para a prática comparatista, as repercussões dessas novas concepções são

evidentes: desvalorizam-se as relações de fato (identificadas e comprováveis)

substituindo-as por relações de valor; ocorre a falência dos paralelos, pois

toda a comparação necessita de um "tertium comparationis", isto é, de uma

norma teórica que cabe descobrir via reflexão hermenêutica; enfatiza-se

menos a "fonte" e mais o processo de apropriação/transformação a que o

novo texto a submete; neutralizam-se as noções de originalidade, de prece­

dência, de antecipação; equilibram-se, no juízo valorativo, os textos, dando­

se maior importância à rede de relações que eles estabelecem entre si e com

os demais, anteriores ou simultâneos.

Atualmente, a literatura comparada vale-se dos avanços das várias teo­

rias literárias para repensar critérios e noções consideradas básicas a esse tipo

de estudo.'

Recepção e tradução na prática comparatista

Aproximar, por exemplo. as concepções da hermenêutica às da literatura

comparada poderia parecer. à primeira vista, exagerado. Suas gêneses são

efetivamente diferentes. Sabe-se que a Iitératura comparada é um dos frutos

do positivismo de Comte e da concepção do universo como sendo uma

sequência de fatos positivos. Daí a incidência, no paradigma comparatista

tradicional, do determinismo tainiano, do primado das relações causais, da

tendência à classificação científica. Por outro lado, a hermenêutica moderna

tem suas origens justamente na reação anti-positivista. Dilthey, tanto quanto

Scheiermacher, concebeu as diferenças entre os métodos das ciências natu­

rais e os métodos da história, contrastou a explicação da compreensão e,

sobretudo, considerou essa última como um processo individual e subjetivo. Mas é justamente no campo dos estudos de recepção literária, freqüentes no

3, Procurei examinar a at1icu­

lação entre as diversas teorias

e as práticas comparatistas em

artigo intitulado "Teorias em

Literatura Comparada" e pu­

blicado na Revista Brasileira

de Literatura Comparada, n°

2. editada recentemente. Tratei

de apontar, naquele texto, as

diversas tentativas nos anos 80

de formular "teorias em litera­

tura comparada" (H.G. Ru­

precht. 1985. Adrian Marino,

1988. E.Miner. 1990) além do

pensamento mais disperso de

uma literatura "planetária", tal

como o formula Etiemble. Ali,

procuro acentuar que as diver­

sas teorias repercutiram tam­

bém diversamente na prática

da literatura comparada mas

todas contribuiram para o afi­

namento de noções, para a efi­

ciência do instrumental ,malí­

tico e para que a literatura

comparada permanentemente

Page 61: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

se indague sobre sua própria definição. Do mesmo modo,

no n° 114/115 da Revista Tem­po Brasileiro (1993), procurei analisar a articulação do con­

ceito teórico da intertextuali­dade com as relações interlite­

rárias que têm sido um campo de atuação tradicional dos

comparatistas. Explorei, inclu­

sive, a leitura de Claudio Ma­

nuel da Costa feita por Sergio

Buarque de Holanda em Capí­

lulos de Literatura Colonial

(1991 l, obra organizada por

Antonio Candido, na qual as

noções de fontes e modelo são

exemplarmente entendidas e

aplicadas. Vale aqui retrans­

crever urna de suas observa­

ções. Ao comentar as reper­

cussões do tipo de estudo de

"fontes", B. de Holanda obser­

va: "Não são as 'influências'

recebidas, através de sua evo­

lução, por um detenrunado es­

critor, o que importa verificar

num esforço dessa natureza,

nem saber as razões particula­

res que o teliam levado aesco­

Iher este ou aquele 'anteceden­

te literário' - pois a verdade é

que tais escolhas se prendiam

tanto quanto possível, naque­

les tempos, a convenções e pa­

drões comumente aceitos e de­

pendiam, em muito menor

grau do que hoje, de um crité­

rio pessoal -, nem ainda che­

gar a um julgamento inequívo­

co de valor. Mas justamente

pelo fato de nos apresentar a

existência quase obrigatória

daqueles 'antecedentes' uma

escala de referências mais ou

menos fixa. temos maiores

probabilidades de, partindo dela, ganhar acesso ao que

constitui mais propriamente a

parte do autor em sua obra e ao

que h~a, nesta, de verdadeira­

mente orgânico e intrínseco."

Ressalta nas palavras de

Sergio Buarque de Holanda

aqui recortadas uma com­

preensão da noção de influên­

cia que já é moderna. Isso por-

Literatura comparada e literaturas estrangeiras no Brasil 61

comparatismo contemporâneo, que a dimensão hermenêutica dada pelo lei­tor/receptor interessa e aproxima as duas orientações.

Se as relações entre emissor-receptor estão hoje praticamente alteradas, é o receptor agora que é o sujeito determinante, fundamental e seletivo de todo o processo interliterário, A função da recepção em literatura comparada tem entretanto seus aspectos específicos, o que faz com que a noção mesma de recepção seja aí determinada de forma um pouco diferente. Em primeiro lugar, a recepção integra os estudos comparatistas como elemento das rela­ções interliterárias, Assim, os estudos pontuais de recepção podem (e devem) ser integrados para que se obtenha o conhecimento global das relações inter­literárias em diferentes momentos. Caberia, pois, converter esses estudos em objeto de reflexão comparatista, ou seja, articular as recepções de Byron, Whitman, Joyce (para ficarmos em autores de expressão inglesa) na indaga­ção do que nos dizem sobre a crítica e o polissistema literário brasileiros. São muitas as propostas de trabalho nesse campo. Além da que mencionei, deve­se evocar a de "recepção comparada", que analisa a repercussão de um dado autor em contextos culturais diversos. Além disso, há que distinguir nos estudos de recepção em literatura comparada aqueles que se ocupam da análise das formas explícitas da recepção (levando em conta as edições, as

críticas, as resenhas, as traduções, etc.) e assim tendo sua atenção centrada nas condições de compreensão e de interpretação da obra, e os que tendem às formas implícitas, quer dizer, mais complexas e criativas que são tratadas

como processos intertextuais de produção literária. As orientações mais atuais e correntes nesse campo são analisadas por Yves Chevrel no trabalho "Les études de réception", inserido em Précis de Littérature Comparée (Pa­ris, PUF,1989) organizado pelo autor e por Pierre Brune!. Nesse ensaio,

y'Chevrel ocupa-se com questões de métodos, indagando se haveria uma

especificidade nos estudos comparatistas de recepção que os distinguiriam de estudos não comparatistas? Em outras palavras, ele estaria respondendo a R.Wellek que no capítulo 5 de sua Teoria da Literatura (1949) afirmava não haver diferença metodológica entre analisar "Shakespeare na França" e "Sha­

kespeare na Inglaterra do século XVIII". Para Chevrel, "os métodos compa­ratistas partem da hipótese (que não exclui outras perspectivas) que uma obra não pode ser considerada como um absoluto, mas também em suas diferentes concretizações e em suas relações possíveis; por outro lado, uma perspectiva comparatista pressupõe que um encontro de duas culturas permite colocar em evidência certos elementos que não apareceriam se o estudo fosse conduzido

no interior de uma só cultura." Daí retirar ele dois argumentos, que marca­

riam a especificidade dos estudos comparatistas de recepção: 1. toda uma parte da documentação será constituída por transformações de textos (que é necessário estudar com uma metodologia apropriada): traduções, adapta­ções ... ; 2. a recepção de um texto estrangeiro se verifica também, em boa

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62 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

parte, através do discurso crítico que ele motiva. Ora, esse discurso, confron­tado precisamente ao estrangeiro que se trata de introduzir, de tornar acessí­vel (mesmo que seja eventualmente para combatê-lo) não se pode servir dos mesmos meios que aqueles de que dispomos para falar de uma obra homogê­

nea à tradição cultural do público ao qual ela se dirige. Chevrel usa como exemplo: "Quando Fontane reage, a propósito de Schiller ou de Storm, ele procede, parcialmente, a uma investigação de sua própria herança; quando ele se interessa por Zola, é antes de tudo para compreender como uma outra literatura é possível" (p. 190). Temos aqui, portanto, enfatizada a perspectiva mencionada antes de que a atitude comparatista pressupõe não só meios mas objetivos diferentes daqueles utilizados para o estudo desenvolvido no inte­rior de uma única literatura.

Ao final do ensaio de y'Chevrel é ainda acentuada a relação entre estudos comparativos de recepção e interdisciplinaridade, sendo mencionadas a so­ciologia, a psicologia, as teorias da informação e da comunicação, além da história tout court, como possibilidades de encontros metodológicos em estudos comparatistas de recepção.

Certo é que igualmente os estudos da estética da recepção incidem em outras tradicionais orientações dos estudos comparatistas como a imagologia, pois recepção literária e representação do Outro não podem ser estudadas separadamente. Também incide no estudo dos mitos. que permite, como diz o autor, "aux études de réception, qui n' excluent ni la minutie des recherches, ni les vastes perspectives, de se situer à leur place dans l' exploration de l'imagerie des hommes".

É nesse contexto que também os estudos de literatura em tradução - cujo desenvolvimento tem sido crescente - se incluem na prática comparatista. Na verdade, a reflexão sobre a teoria da tradução - escassa durante muito tempo - colaborou decisivamente para essa aproximação. Durante muito tempo considerada a "prima pobre" ou "les belIes infideles", a tradução custou a ser considerada não só uma atividade possível como também a adquirir impor­tância na constituição do polissistema literário. A expressão bem conhecida de Itamar Even Zohar identifica a literatura como um sistema de sistemas no conjunto dos quais a literatura em tradução se integra como um fator relevan­te de transformações. Assim, várias questões tornam-se possíveis: por que algumas culturas traduzem mais do que outras? por que se traduz mais em certos períodos e menos em outros? Que tipo de texto consegue ser mais traduzido? Qual a relação entre o estímulo à tradução e a produção literária de uma literatura dada? Parte-se do princípio de que o ato de traduzir realiza uma ação mobilizadora do polissistema literário que a acolhe, sendo também um gesto responsável. Como observou Yves Chevrel no item "Littérature en traduction et systeme d' accueil" de seu pequeno mas utilíssimo La Littératu­re Comparée (Paris, PUF, 1989): "traduire, éditer une traduction, n'est pas

que refere-se ao modelo como

antecedente, julgando-o ne­

cessário e natural, e, além dis­

so, ocupando-se mais com "a

parte do autor na sua obra" ou

com as assimilações nela pro­

duzidas com as repercussões

do antecedente. É nisso, pois,

que autores como ele - que foi

professor de literatura compa­

rada - ou como Augusto

Meyer ou Olto Maria Car­

peaux, que também explora­

ram os estudos de "fontes" de

forma criativa e atual em mui­

tas passagens, podem nos for­

necer subsídios para uma pers­

pectiva de análises desse tipo

que sejam adequadas e pró­

prias à nossa maneira de olhar

e de ver.

Inclino-me, portanto, a as­

sociar a leitura de nossos críti­

cos, naquilo que eles nos po­dem dar em sua prática com­

paratista e nas reflexões que

sobre ela fizeram, com os co­

nhecimentos fornecidos pelo

avanço do pensamento teóri­

co, dominante a partir dos anos

60.

Page 63: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

Literatura comparada e literaturas estrangeiras no Brasil 63

seulement envisager une opération d' ordre linguistique, c' est aussi prendre une décision qui met en jeu un équilibre culturel et social: traduire la Bible a été, et reste, une opération d'ordre idéologique et politique" (p. 18).

Arguida por uns como prática desejável e possível, na qual a noção de "fidelidade" foi por muito tempo defendida, a tradução custou a se libertar dos estigmas que lhe destinavam um papel secundário na produção literária. A metáfora feminina de "les beBes infideles" é sintomática de uma posição subalterna. Lori Chamberlain chamou a atenção para a sexualização da ter­minologia que envolve a tradução: fidelidade é uma noção implícita em

casamentos, contratos que se celebram entre a tradução (como mulher) e o

original (como o marido, o pai ou o autor).(y'''Gender and the Metaphorics ofTranslation", In: Lawrence Venuti (ed) Rethinking Translation, 1992). Daí também a expressão "tradutore traditore" que se difundiu amplamente alu­dindo à idéia da tradução como transformação negativa, traição da fidelidade devida ao original.

Atualmente, a tradução, reconhecida em seu valor intrínseco e como

elemento de difusão literária e prática legitimada, tem sido um elemento essencial aos estudos comparatistas, como também os estudos de cartografia e de relatos de viajantes. Contribuem todos para a construção de uma história cultural que se escreve em diferentes dimensões e modulações, as quais

podem ser contrastivamente comparadas e que ocultam, muitas vezes, dados

substantivos sobre uma época. Assim o entende Susah Bassnett que, em seu recente Comparative literature - A CriticaI Introduction (1993), enfatiza a

importância do estudo das traduções na prática comparatista, querendo mes­mo quase que reduzir essa última a esse procedimento produtivo, ao qual atribui a designação de "IntercuItural Studies". Para ela, "mapear, viajar e

traduzir não são atividades transparentes. São atividades bem definidas e

localizadas, com pontos de origem, de partida e de destinação."

Portanto, não só interessa analisar os textos traduzidos em si mesmos,

como procedimentos literários e manifestações culturais, mas também na interferência que provocam no polissistema que os acolhe. A tradução de um

texto, observa Yves Chevrel na obra já citada, "est rarement indépendante du

systeme qui est destiné à I' accueillir." O comparatista ilustra sua afirmação com os fatos de que Desdêmona não morre no Othelo montado em Hamburgo

em 1776 e que as discussões que Goethe descreve, em Wilhelm Meister (1795-1796), sobre as maneiras de interpretar Hamlet testemunham que um texto estrangeiro é suscetível de ser manipulado sem pudor. Para ele, o

tradutor oscila entre duas possibilidades: a da tradução "adequada" (que respeit;l ao máximo a natureza estrangeira do texto original e que pode ir até

à transcrição pura e simples) e a tradução "dinâmica", que integra ao máximo

o texto traduzido na tradição do polissistema de chegada.

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64 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

As considerações de Chevrel encontram perfeita complementação no ensaio de Antonio Candido sobre os tradutores de Baudelaire ("Os primeiros baudelairianos") em A Educação pela noite & outros ensaios (1987) no qual ele identifica "uma certa deformação" nas primeiras traduções brasileiras, justificando-as ao dizer que elas agem "como as que em toda influência literária tornam o objeto cultural ajustado às necessidades e características do grupo que o recebe e aproveita" (p. 25).

Assim, a "deformação", que seria um critério negativo de avaliação, passa a ser entendida como natural e necessária, pois ela "funciona de manei­ra construtiva, dadas as condições locais" (p. 37), segundo ainda o autor. E continua: "a exacerbação de sexualidade que os moços efetuaram a partir do texto d'As flores do mal foi umafelix culpa."

Isso explica que toda tradução seja resultado de uma escolha, opção consciente diante de uma necessidade do polissistema que se decide, volun­

tariamente, nutrir. O sub-sistema da literatura em tradução concretiza, por sua

vez, o conjunto dessas necessidades e das escolhas que as exprimem. Estudá­las, pois, no sentido da contribuição que prestam ao polissistema, é tarefa do comparatista. Ele estará contribuindo para o conhecimento das literaturas postas em confronto e, por isso, deverá ter presente características que as especificam. Pode-se ilustrar esse fato com uma observação de José Paulo Paes em ensaio sobre a tradução de Tristram Shandy. o famoso romance de Laurence Sterne de forte repercussão em Memórias Póstllmas de Brás Cubas,

de Machado de Assis, como se sabe. Ao tratar dos pronomes de tratamento e suas implicações na tradução que elabora. Paes contrasta o texto de Sterne com outros de mesma época (1728) e observa. em "Sob o Signo de Judas ou Digressões de um Tradutor de Sterne", que. "na questão da comparatividade de textos contemporâneos de diferentes línguas, há um outro ponto a ser considerado numa estratégia de tradução, qual seja o desigual ritmo de desenvolvimento das várias literaturas nacionais. O romance inglês do século XVIII, pelo vigor do seu realismo, pela agilidade da sua linguagem narrativa e pelo amplo público ledor que conseguiu aliciar para as suas produções, estava indubitavelmente na vanguarda da literatura européia. Perto dele, a apoucada ficção portuguesa da mesma época, mofina e retardatária, fazia triste figura, já que a prosa de ficção propriamente dita, como estilização do sermo vulgaris, só iria começar a surgir em língua portuguesa no século seguinte. Portanto, apesar de publicado quase à mesma altura d'As Aventuras de Diófanes e do Peregrino da América, o Tristram Shandy tinha no mínimo dois séculos de avanço sobre eles, para nos limitarmos ao ritmo de desenvol­vimento histórico da prosa de ficção, sem cogitar, por absurdos, de quaisquer juízos de valor". (In: Tradução & Comunicação, n° 4 19-30, julho, 1984).

Como se percebe, o movimento é dialético: do texto traduzido ao texto original permeia urna série de questões que o conhecimento literário escJare-

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Literatura comparada e literaturas estrangeiras no Brasil 65

ce. Pelo que permite de lisibilidade mesmo na operação que a origina, a tradução é fator não apenas de difusão de textos em processos interliterários mas é também um elemento iluminador dos procedimentos criativos e recep­tivos.

Vale lembrar que os estudos comparativos binários caracterizavam-se por excluir as traduções, preconizando sempre a leitura no original. Reinte­grá-las significa admitir um outro fator na comparação ou o seu desdobra­mento não exclusivamente atento a apenas dois polos da indagação mas a outros mais como as alterações textuais, introduzidas na tradução como leituras possíveis daqueles textos.

Como se percebe, dilatam-se os campos de atuação do comparatista e, nessa ampliação. pelo menos nas formas que aqui foram enfatizadas, a con­tribuição do especialista em literaturas estrangeiras se torna substantiva. Tendo em vista essas duas dimensões - a formação de uma dupla competên­cia (pelo menos dos que seguem uma licenciatura dupla) e a necessidade inerente de falar de um determinado lugar, de um "horizonte" próprio e específico - esse especialista é um comparatista por excelência. Porque, na verdade, ser comparatista não é atitude que se assuma no começo mas no fim de um percurso de formação: não nascemos comparatistas mas nos tornamos comparatistas, aproveitando nesse campo de estudo as experiências múltiplas adquiridas no trato com mais de uma literatura e a inclinação manifesta para trabalhos que exijam largas perspectivas e análises transnacionais. É nesses trabalhos que iremos formular novas categorias críticas que nos permitam

caracterizar como nosso o comparatismo que praticamos.

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Literatura comparada, literaturas nacionais e o

questionamento do "'" canone

Eduardo F. Coutinho

Qualquer revisão crítica da Literatura Comparada em seu desenvolvimento histórico leva de imediato à percepção de que a disciplina sofreu, de meados dos anos 70 para o presente, considerável transformação, que poderíamos sintetizar, sem riscos de reducionismo, na passagem de um discurso coeso e unânime, com forte propensão universalizante, para outro plural e descentra­do, situado historicamente, e consciente das diferenças que identificam cada

corpus literário envolvido no processo da comparação. Embora essa transfor­mação se tenha originado dentro do grande eixo dos estudos comparatistas, formado pela Europa Ocidental e a América do Norte, e se deva em boa parte à voga da Teoria Literária nesse período, máxime pela importância que adquiriram correntes do pensamento como o Desconstrutivismo, a Nova História e os chamados Estudos Culturais e Pós-Coloniais, ela teve como corolário o deslocamento do foco de atuação da disciplina para pólos até então tidos como marginais nesta seara, como a China e a Índia - na Ásia -, a África e a América Latina. É esta transformação verificada no seio do comparatismo tradicional e as implicações daí decorrentes, sobretudo no que diz respeito ao contexto latino-americano, que serão investigadas neste tra­balho.

Marcada no início por uma perspectiva de teor historicista, calcada em princípios científico-causalistas, decorrentes do momento e contexto históri-

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68 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

co em que se configurara, e em seguida por uma óptica predominantemente formalista, que conviveu, entretanto, com vozes dissonantes de significativa relevância, a Literatura Comparada atravessou seu primeiro século de exis­

tência em meio a intensos debates, mas apoiada em certos pilares, de tintas

nitidamente etnocêntricas, que pouco se moveram ao largo de todo esse tempo. Dentre estes pilares, que permaneceram quase inabalados até os anos 70, é impossível deixar de reconhecer a pretensão de universalidade, com que se confundiu o cosmopolitismo dos estudos comparatistas, presente já desde suas primeiras manifestações, e o discurso de apolitização apregoado sobre­tudo pelos remanescentes da chamada "Escola Americana", que dominou a área nos meados do século XX. O primeiro expressa-se pelo anseio de que, a despeito da diversidade e multiplicidade do fenômeno literário, é possível

constituir-se um discurso unificado sobre ele e de que a Literatura é uma

espécie de força enobrecedora da humanidade, que transcende qualquer bar­

reira; o segundo condensa-se em afirmações como a de que a Literatura Comparada é o estudo da Literatura, independentemente de fronteiras lin­güísticas, étnicas ou políticas, e que não deve portanto deixar-se afetar por circunstâncias de ordem, entre outras, econômica, social ou política.

Conquanto estes dois tipos de discurso apresentem, na superfície, varia­ções, eles encerram, no íntimo, um forte denominador comum - o teor hegemônico de sua construção - e foi sobre este dado fundamental que se baseou grande parte da crítica empreendida a partir de então ao comparatismo tradicional. Em nome de uma pseudo-democracia das letras, que pretendia construir uma História Geral da Literatura ou uma poética universal, desen­volvendo um instrumental comum para a abordagem do fenônemo literário, independente de circunstâncias específicas, os comparatistas, provenientes na maioria do contexto euro-norte-americano, o que fizeram. conscientemen­te ou não, foi estender a outras literaturas os parâmetros instituídos a partir de reflexões desenvolvidas sobre o cânone literário europeu Ce por europeu entenda-se o cânone constituído basicamente por obras literárias das potên­cias econômicas do oeste do continente). O resultado inevitável foi a super­valorização de um sistema determinado e a identificação deste sistema - o europeu - com o universal. Do mesmo modo, a idéia de que a literatura deveria ser abordada por um viés apolítico - fato hoje sabidamente impossí­vel - o que fazia era camuflar uma atitude prepotente de reafirmação da supremacia de um sistema sobre os demais.

O questionamento dessa postura universalizante e a desmitificação da proposta de apolitização, que se tornaram uma tônica na Literatura Compa­rada a partir dos anos 70, atuaram de modo diferente nos centros hegemôni­cos e nos focos de estudos comparatistas que poderíamos chamar de periféri­cos, mas em ambos estes contextos verificou-se um fenômeno similiar: a aproximação cada vez maior do comparatismo a questões de identidade

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Literatura comparada, literaturas nacionais e o questionamento do cânone 69

nacional e cultural. No eixo Europa Ocidental/América do Norte, o cerne das preocupações deslocou-se para grupos minoritários, de caráter étnico ou sexual, cujas vozes começaram a erguer-se cada vez com mais vigor, buscan­

do foros de debate para formas alternativas de expressão, e nas outras partes

do mundo clamava-se um desvio de olhar, com o qual se pudessem enfocar as questões literárias ali surgidas a partir do próprio [oeus onde se situava o

pesquisador. A preocupação com a Historiografia, a Teoria e a Crítica literá­

rias continuou relevante nos dois contextos mencionados, mas passou-se a

associar diretamente à praxis política cotidiana. As discussões teóricas volta­

das para a busca de universais deixaram de ter sentido e seu lugar foi ocupado por questões localizadas. que passaram a dominar a agenda da disciplina: problemas como o das relações entre uma tradição local e outra importada,

das implicações políticas da influência cultural, da necessidade de revisão do

cânone literário e dos critérios de periodização.

Este descentramento ocorrido no âmbito dos estudos comparatistas, ago­

ra muito mais voltados para questões contextualizadas, ampliou em muito o cunho internacional e interdisciplinar da Literatura Comparada, que passou a

abranger uma rede complexa de relações culturais. A obra ou a série literárias

não podiam mais ser abordadas por uma óptica exclusivamente estética;

como produtos culturais. era preciso que se levassem em conta suas relações

com as demais áreas do saber. Além disso, elementos que até então funciona­

ram como referenciais seguros nos estudos comparatistas, como os conceitos

de nação e língua, foram postos por terra, e a dicotomia tradicionalmente

estabelecida entre Literaturas Nacionais e Comparada foi seriamente abala­

da. A perspectiva linear do historicismo cedeu lugar a uma visão múltipla e

móvel, capaz de dar conta das diferenças específicas, das formas disjuntivas

de representação que significam um povo, uma nação, uma cultura, e os

conjuntos ou séries literárias passaram a ter de ser vistos por uma óptica

plural, que considerasse tais aspectos. Categorias como Literatura Chicana,

Literatura Afro-Americana ou Literatura Feminina passaram a integrar a

ordem do dia dos estudos comparatistas e blocos, como Literatura Oriental,

Africana ou Latino-Americana, instituídos pelos centros hegemônicos, reve­

laram-se como constructos frágeis, adquirindo uma feição nova, oscilante em

conformidade com o olhar que o enformasse.

O desvio de olhar operado no seio do comparatismo, como resultado da

consciência do teor etnocêntrico que o dominara em fases anteriores, empres­

tou novo alento à disciplina, que atingiu enorme efervescência justamente

naqueles locais até então situados à margem e agora tornados postos funda­

mentais no debate internacional. Nesses locais, onde não há nenhum senso de

incompatibilidade entre Literaturas Nacionais e Literatura Comparada, o

modelo eurocêntrico até então tido como referência, vem sendo cada vez

mais posto em xeque, e os paradigmas tradicionais cedem lugar a construções

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70 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

alternativas ricas e flexíveis, cuja principal preocupação reside na articulação

da percepção dos produtos culturais locais em relação com os produtos de

outras culturas, máxime daquelas com que a primeira havia mantido vínculos

de subordinação. O desafio levantado por críticos como Edward Said e Homi

Bhabha ao processo sistemático instituído pelas nações colonizadoras de

"inventar" outras culturas alcança grande repercussão, ocasionando, em lo­

cais como a Índia, a África e a América Latina, reivindicações de constituição

de uma História Literária calcada na tradição local, cujo resgate se tornara

indispensável. O elemento político do comparatismo é agora não só assumido

conscientemente, como inclusive enfatizado, e surge uma necessidade impe­

rativa de revisão dos cânones literários.

Central dentro do quadro atual da Literatura Comparada, a "questão do

cânone", como tem sido designada, constitui uma das instâncias mais vitais

da luta contra o eurocentrismo que vem sendo travada nos meios acadêmicos,

pois discutir o cânone nada mais é do que pôr em xeque um sistema de valores

instituído por grupos detentores de poder, que legitimaram decisões particu­

lares com um discurso globalizante. Um curso sobre as "grandes obras", por

exemplo, tão freqüente em Literatura Comparada, quase sempre esteve cir­

cunscrito ao cânone da tradição ocidental (na realidade, à tradição de alguns

poucos países poderosos do oeste europeu, que mantinham uma política cultural de cunho hegemônico), e sempre se baseou em premissas que ou

ignoravam por completo toda produção exterior a um círculo geográfico

restrito ou tocava tangencialmente nessa produção, incluindo, como uma

espécie de concessão uma ou outra de suas manifestações. As reações a esta

postura têm surgido de forma variada, e com matizes diferenciados depen­

dendo do local de onde partem. Nos países centrais, é obviamente mais uma vez da parte dos chamados "grupos minoritários·' que provêm as principais

indagações, e, nos contextos periféricos, a questão se tornou uma constante,

situando-se em alguns casos na linha de frente do processo de descolonização

cultural.

Ampla, complexa e variada, a questão do cânone literário extrapola

nossos objetivos neste trabalho, não podendo ser apreciada com o cuidado que requer, mas mencione-se que ela se estende desde a exclusão de uma

produção literária vigorosa oriunda de grupos minoritários, nos centros hege­

mônicos, e do abafamento de uma tradição literária significativa, nos países

que passaram por processos de colonização recente, como a Índia, até proble­

mas relativos à especificidade ou não do elemento literário, dos padrões de avaliação estética e do delineamento de fronteiras entre constructos como Literaturas Nacionais e Literatura Comparada. Com a desconstrução dos pilares em que se apoiavam os estudos literários tradicionais e a indefinição instaurada entre os limites que funcionavam como referenciais, o cânone ou

cânones tradicionais não têm mais base de sustentação, afetando toda a

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Literatura comparada, literaturas nacionais e o questionamento do cânone 71

estrutura da Historiografia, da Teoria e da Crítica literárias. Como construi­rem-se cânones, seja na esfera nacional, seja na internacional, que contem­plem as diferenças clamadas por cada grupo ou nação (entendendo-se este termo no sentido amplo utilizado por autores como Homi Bhabha), e como atribuir a estas novas construções um caráter suficientemente flexível que lhes permita contantes reformulações, são perguntas que se levantam hoje a respeito de terreno tão movediço. E é possível, se indagaria também, institui­rem-se cânones com margens de flexibilidade, que não viessem a cristalizar­se, tornando-se novas imposições? Seriam estes ainda cânones?

Perguntas como estas encontram-se quase sempre sem resposta na agen­da do comparatismo, sobretudo após o desenvolvimento dos chamados Estu­dos Pós-Coloniais e Culturais, que atacaram, com força jamais vista, o etno­centrismo da disciplina. A crítica a este elemento, expresso por meio de um discurso pretensamente liberal, mas que no fundo escondia seu teor autoritá­rio e totalizante. já se havia iniciado desde os tempos de Wellek e Etiemble, e se lançarmos uma mirada ao espectro de atuação da Literatura Comparada, veremos que ela sempre aflorou de maneira variada ao longo de sua evolução. Contudo. na maioria dos casos. essa crítica se manifestou à base de uma oposição binária. que continuava paradoxalmente tomando como referência o elemento europeu. Conscientes de que não se trata mais de uma simples inversão de modelos, da substituição do que era tido como central pela sua antítese periférica, os comparatistas atuais que questionam a hegemonia das culturas colonizadoras abandonam o paradigma dicotômico e se lançam na exploração da pluralidade de caminhos abertos como resultado do contacto entre colonizador e colonizado. A conseqüência é que ele se vê diante de um

labirinto, hermético, mas profícuo, gerado pela desierarquização dos elemen­

tos envolvidos no processo da comparação, e sua tarefa maior passa a residir

precisamente nessa construção em aberto, nessa viagem de descoberta sem marcos definidos.

Marcados profundamente por um processo de colonização, que continua vivo ainda hoje do ponto de vista cultural e econômico, os estudos literários na América Latina sempre foram moldados à maneira européia, e basta uma breve mirada a questões como as que vêm sendo consideradas aqui de Histo­riografia, Teoria e Crítica literárias para que tal se torne evidente. No caso da primeira, é suficiente lembrar a periodização literária, que sempre tomou como referência os movimentos europeus, e mais recentemente também norte-americanos, e encarou os latino-americanos como meras extensões ou

adaptações dos primeiros. No caso da Teoria, cite-se a prática dominante de importação de correntes emanadas do meio intelectual europeu, que adqui­riam caráter dogmático e eram aplicadas de modo indiscriminado à realidade literária do continente, sem levar-se em conta em momento algum as diferen­ças de ordem histórica e cultural que distinguiam os dois contextos. E,

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72 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

finalmente, no âmbito da Crítica, mencionem-se os parâmetros de avaliação,

que sempre se constituíram à base das chamadas "grandes obras" da tradição

ocidental (leia-se "européia"), e miraram as nossas como manifestações me­

nores, cópias imperfeitas dos modelos instituídos. O cânone ou cânones

literários dos diversos países latino-americanos eram constituídos por crité­

rios estipulados pelos setores dominantes da sociedade, que reproduziam o

olhar europeu, primeiramente ibérico, à época da colônia, e posteriormente,

após a independência política, de outros países, mormente a França.

Embora, como contrapartida à sua própria condição colonial, a América

Latina já tivesse desenvolvido, ao longo de todo esse tempo, uma forte

tradição de busca de identidade, tanto na própria literatura quanto na ensaís­

tica, o comparatismo que se produzia no continente continuava, de maneira

geral, preso quer ao modelo francês de fontes e influências, quer à perspectiva

formalista norte-americana, que lhe imprimia esterilidade e ratificava sua

situação de dependência. Com as mudanças, entretanto, efetuadas dos anos

70 para o presente, ele parece ter renascido das cinzas, e é hoje um dos focos

de maior efervescência nos estudos latino-americanos. Associando-se à preo­

cupação com a busca de identidade, agora já não mais vista por uma óptica

ontológica, mas sim como uma construção passível de questionamento e

renovação, a Literatura Comparada na América Latina parece ter assumido

com firmeza a necessidade de enfocar a produção literária a partir de uma

perspectiva própria, calcada na realidade do continente, e vem buscando um

diálogo verdadeiro no plano internacional. Assim, questões como a do cânone e da história literária adquirem uma nova feição e os modelos teórico-críticos

relativizam-se, cedendo lugar a uma reflexão mais eficaz.

A reestruturação do cânone ou cânones das diversas literaturas latino­

americanas vem ocupando a cena com grande intensidade no meio acadêmico

latino-americano, onde se clama cada vez mais a necessidade de inclusão de

uma quantidade de registros até então marginalizados pelo discurso oficial: o

das línguas indígenas ainda vivas, como o quíchua e o guarani, o da produção

em créole do Caribe francês, o chamado popular, presente. por exemplo. no

corrido mexicano ou no cordel brasileiro, e a tradição oral ou compilada. como a das lendas indígenas dos maias. Além disso, vem sendo argumentado

que não podem ficar à margem produções como a das minorias hispânicas radicadas nos Estados Unidos, como os chicanos e os portorriquenhos e

cubanos, ou os franceses do Québec, nem muito menos as vozes das "mino­

rias de poder" dentro do próprio continente, como as dos grupos feministas, que têm desempenhado papel de relevo no processo de releitura crítica da

cultura latino-americana. Do mesmo modo, a necessidade de constituição de uma nova historiografia literária, isenta das distorções tradicionais, em que a noção de "grande literatura" ou até mesmo de "literatura" tout court, seja problematizada, se faz cada vez mais premente, bem como a urgência de se

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Literatura comparada, literaturas nacionais e o questionamento do cânone 73

desenvolver uma reflexão teórica, que tome como ponto de partida ou de referência o corpus literário do continente.

Todas estas questões, que abordam as diferenças latino-americanas, re­velam a ineficácia da transferência de paradigmas de uma cultura para outra. A própria idéia de "literatura nacional", concebida no meio acadêmico euro­peu com base em noções de unidade e homogeneidade, não pode ser aplicada, de maneira desproblematizada, à realidade híbrida do continente latino-ame­ricano, onde, por exemplo, nações indígenas. como a Aymara, vivem dividi­das por fronteiras políticas instituídas arbitrariamente. Qualquer concepção monolítica da cultura latino-americana vem sendo hoje posta em xeque e

muitas vezes substituída por propostas alternativas que busquem dar conta de seu caráter híbrido. Estas propostas, diversificadas e sujeitas a constante escrutínio crítico, indicam a pluralidade de rumos que o comparatismo vem tomando no continente, em consonância perfeita com as tendências gerais da disciplina, observáveis sobretudo nos demais contextos tidos até recentemen­te como periféricos. A Literatura Comparada é hoje, máxime nesses locais,

uma seara ampla e movediça, com inúmeras possibilidades de exploração, que ultrapassou o anseio totalizador de suas fases anteriores, e se erige como um diálogo transcultural, calcado na aceitação das diferenças.

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A primeira versão deste texto

foi apresentada em agosto de 1994 no XIV Congresso da Associação Internacional de Literatura Comparada (Ed­

monton, Canadá), como palie

do projeto do grupo de pesqui­

sa interdisciplinar sobre "Re­

cylcages culterels". Ao coor­denador desse GP, Walter Mo­

ser (Univ. Montréal), agradeço

as sugestões de sua leitura crí­

tica.

o romance latino-americano do

pós-boom se apropria dos gêneros da cultura

de massas

Irlemar Chiampi

Para Antonio Dimas

Quem diria, os gêneros espúrios invadiram a seara da alta literatura. Tudo começou com Manuel Puig, com a publicaçao de Boquitas pintadas (1969), título tirado da letra de um fox-trot cantado por Carlos Gardel para uma narração povoada de lances melodramáticos e oferecida em "entregas" ao

leitor, como um folhetim, cada uma delas epigrafada com versos de tango.

Puig havia criado não só um epitáfio para o grande romance do boom, mas uma koiné estética mediante a promiscuidade do nobre trabalho experimental com a breguice do discurso emotivo veiculado pela música popular.

Desde então, a ficção latino-americana vem desenvolvendo uma bem sustentada apropriação dos gêneros que os meios massivos consagram, o povo consome e a elite abomina: foto e radionovela, zarzuela, romance sentimental ou "cor-de-rosa", histórias de detetive, musicais, cinema B, fil­mes policiais; e o repertório inesgotável da música popular, em cujos sub-gê­neros o Caribe é campeão: guaracha, bolero, danzón, rumba, cumbia, salsa ... Mais reconhecíveis pelos termos despectivos de "música brega", "filmeco", "subliteratura", "bolerão", "dramalhão", esses gêneros massivos aparecem reutilizados ou reciclados en La tía lulia y el escribidor (1977), do peruano

Mario Vargas Llosa; El beso de la mujer arana (1976), Pubis angelical (1979) entre outros romances do argentino Manuel Puig; Sólo cenizas halla-

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76 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

rás (1980) do dominicano Pedro Vergés; Bolero (1983), do cubano Lisandro

Otero; La guaracha deI Macho Camacho (1976) e La importancia de llamar­

se Daniel Santos (1989), do porto-riquenho Luis Rafael Sánchez; Celia Cruz,

reina rumba (1981) do colombiano Umberto Valverde.

O lixo cultural, cuja presença a cultura hegemônica foi tolerando na época moderna desde que se mantivesse em territórios bem definidos - onde o contágio não ameaçasse a pureza das expressoes culturais genuinas e nobres, as do Folclore e da Arte, o popular e o erudito -. parece experimentar

dias de glória que transcendem sua condição de resíduo. Reciclado por narradores pertencentes ao cânone literário. seu reaproveitamento e refuncio­nalização em obras prestigiadas lhe outorga um novo status dentro da cultura pós-moderna da América Latina. Os tópicos dos gêneros massivos não são utilizados como meros temas, ou vistos com distância ou visão de fora, mas como referências culturais enraizadas na mentalidade dos personagens; a estrutura melodramática dos relatos sentimentais é recuperada em complexas

situações de registro experimental; os tics obsessivos do gosto massivo pon­tuam os diálogos, os sonhos e o fluxo de consciência dos personagens; os clichês, a cafonice, os convencionalismos discursivos de baixa extração são "naturalizados" no discurso da narração que remete a uma voz autorial da alta

cultura.

Tudo leva a crer que a reciclagem desses sub-produtos, surgidos com o

impacto da modernização no continente, significa muito mais do que alguma nostalgia parasitária ou modismo retrô. Os romancistas latino-americanos dos anos 70-90, ao fazerem uma leitura seletiva e interessada desses discursos que acompanharam o desenvolvimento urbano e as grandes mudanças socio­econômicas da América Latina, descobrem que por trás da simplicidade de uma trama melodramática, do machismo de um tango ou da ingenuidade de uma letra de bolero, há mensagens subliminares que atestam as crises e os conflitos sociais da modernidade no momento mesmo do seu surgimento.

Mas essa explicação insinua apenas o contorno socio-histórico mais geral da reciclagem do repertório melodramático. Para dar conta da trama de relações interculturais que permeiam a tendência a reciclar os gêneros mas­

sivos no romance latino-americano atual, é preciso reconhecer pelo menos quatro aspectos que asseguram o seu perfil de produto pós-moderno:

1. Trata-se de um fenômeno característico do postboom, isto é, ocorre na ficção do continente depois da experiência moderna de renovação e ruptura dos anos 50 e 60 que teve no realismo maravilhoso o foco privilegiado de sua invenção poética. Compenetrado pelo ideologema da mestiçagem, isto é, a compreensão de que a não disjunção dos elementos contraditórios é o que caracteriza a cultura latino-americana, o realismo maravilhoso (de um Car­pentier, um Asturias, um Rulfo) desenvolveu, numa linguagem de alta expe-

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1 CHIAMPI, Irlemar. El realis­

mo maravilloso. Forma e ideo[of.:ía en la novela hispa­

noumericana. Caracas: Monte

Avila, 1983 (I' ed.: 1980).

2 GARCIA CANCLlNI, Néstor.

Culturas híbridas: estrage­

gias para entrar y salir de la

modernidad. México: Grijal­

bo, 1989.

1. BOURDIEU, Pierre. La Jistinc­

tion. Critique social du juge­

ment. Paris: Minuit, 1979.

o romance latino-americano do pós-boom .. , 77

rimentação com as formas narrativas, uma interpretação totalizante da iden­tidade latino-americana; I o entendimento dessa identidade consistia em per­ceber que a multitemporalidade da nossa cultura favorecia uma lógica binária (tradicional vs moderno), na qual a mestiçagem cultural produzia-se pela não disjunção do moderno/urbano com os mitos de origem e a tradição autóctone. Não se tratava de uma visão estanque do culto e do popular, como pretende a mais recente teoria da arte ao contrapor a cisão moderna à hibridação posmoderna,2 mas de um conceito de hibridação articulado pela mencionada matriz binária (isto é só podiam misturar-se o erudito e o popular autóctone), numa perspectiva americanista que excluia a cultura de massas. A alta moder­nidade do romance realista-maravihoso tentava remeter, pois, à genuinidade

da cultura popular. cuja pureza tentava se salvar às pressas ante o impacto da modernização acelerada já nos anos 50. o fator de originalidade e legitimida­de do nosso modo de ser na História.

2. Os narradores do postboom fazem a crítica dessa modernidade literária, já pelo fato de assumir a cultura de massas como expressão legítima do imagi­nário social; colocam-na, na verdade, no lugar antes ocupado pela cultura popular, posto que nela identificam um capital simbólico} cuja representati­vidade socio-cultural se traduz nos discursos e saberes que os grupos subal­ternos detêm e nos quais expressam o seu imaginário.

3. O trabalho de apropriação dos gêneros massivos não supõe o abandono da expressão erudita ou "alta" e muito menos da experimentação formal; não se trata tampouco de "rebaixar" a sua proposta estética, na tentativa de conquis­tar o consumidor desses gêneros para a leitura da obra literária. Os romances do postboom têm a prosa tão elaborada quanto a dos seus congêneres moder­nos e suas narrativas têm estruturas tão complexas quanto às do boom.

4. As reciclagens pós-modernas na AL recusam a perspectiva centralizante e

autoritária que a mirada da alta cultura projetava sobre a popular. Se o sujeito interpretante moderno era quem conferia valor, legitimidade e sentido ao discurso popular, o sujeito (se é que esta entidade ainda existe) pós-moderno recusa a postura totalizante para operar conexões, promover zonas de conta­

to, indicar mestiçagens do massivo com o erudito sem estabelecer hierarquias de valor estético.

Mesmo considerando que a mentalidade politicamente correta (pouco

arraigada na AL) tende a legitimar socialmente o diferente e excluído, é certamente uma tarefa bastante delicada a operação de resgate e inserção do repertório melodramático na linguagem narrativa do romance com destinatá­

rio culto. Trata-se, não simplesmente de citar ou criar um pastiche dos materiais existentes, mas de operar a mixagem de linguagens, de modo a

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78 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

tornar verossímil e aceitável, do ponto de vista estético para o consumidor de

textos literários, a apropriação do resíduo e sua transferência para o circuito alto de produção cultural. Pode-se dizer que essa tarefa inverte aquela que os meios massivos sempre realizaram para tornar digeríveis para o consumidor popular as obras do circuito alto.4 Os textos que realizam esse efeito de maneira convincente adotam claramente estratégias experimentais de hibri­dação de discursos, mediante a tomada de fragmentos que ora se justapõem, superpõem ou mesclam, desencadeando um curto-circuito das temporalida­des e culturas que se expressam nas linguagens convocadas. É nesse sentido de níveis de consumo cultural (alto x popular-massivo) que falaremos aqui de relações interculturais e de multitemporalidade no romance latino-ameri­cano.

Quero ilustrar esse processo com o exemplo da reciclagem do repertório melodramático do subgênero musical "bolero", operada no romance La im­

portancia de llamarse Daniel Santos. 5 O trabalho experimental do porto-ri­quenho Luis Rafael Sánchez nos servirá para indicar como duas estratégias básicas de transcodificação são acionadas para expor os materiais - da alta literatura e da canção popular - ao que descreveremos com o conceito de despragmatização: produção textual em que os materiais reciclados são des­pojados de seu contexto original para serem inseridos em um novo contexto, no qual ganham outra função, mediante a alteração da relação destinador/des­tinatário. 6 Se consideramos que os materiais disponíveis à reciclagem exis­tem de modo sistêmico numa dada cultura,7 isto é, como partes de um código

ou sistema de signos específico (cinema, pintura, música, publicidade, etc)­com suas regras e convenções que fixam as relações entre o significante e o significado e que são comuns ao emissor e ao receptor - a despragmatização supõe sempre uma transcodificação. Logo, as perdas e ganhos processadas pela transcodificação é o que nos mostrará até que ponto a reciclagem literá­ria altera a percepção dos códigos originais, valendo-se da memória inscrita nos resíduos reaproveitados para gerar, com a infonnação estética nova, o ideologema que se propõe a desconstruir a cultura latino-americana.

A despragmatização do bolero

Luis Rafael Sánchez apresenta o seu romance como "narrativa híbrida y

fronteriza, mestiza, exenta de las regulaciones genéricas" (DS:16), na qual se narra a lenda de Daniel Santos, famoso cantor porto-riquenho, falecido recen­temente e de grande projeção no âmbito hispânico do continente, desde os anos 40. A forma do romance é reivindicada, assim, como a de um "pósgéne­ro" (DS: 16) e bem compenetrado com a técnica do videoclip (imagens rápi­das, ausência de história, presença da música): uma série de fragmentos

4. Em, Umberto. Apocalípti·

cos e integrados. São Paulo:

Perspectiva, 1970 (I' ed.:

1964).

S. SANCHEZ, Luis Rafael. La

importancia de llamarse Da­

niel Santos. México: Diana,

1989. Daqui por diante, como

OS.

6 Formulamos esse conceito a

partir de uma anotação de

Wolfgang Iser relativa à dupla

deformação, no texto que cita

e no que é citado, criada por

Joyce no Ulysses: "The very

fact that the Iiterary allusions

are now stripped of their con­

text makes it clear that they are

not intended to be a mere re­

production - they are, so to

speak depragmatised and set

in a new context." (IsER, Wolf­

gang. The Acl of Readinl!. A

Theory o(Aeslhetic Response.

Baltimore: John Hopkins

Univ. Press, 1978).

7 L01MAN, IUli. Semirítica de

la cultura. Madri: Cátedra,

1979.

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o romance latino-americano do pós-boom... 79

distribuídos em três partes, sendo a primeira os relatos-reportagem com indivíduos de diferentes cidades da América Latina, que teriam conhecido o ídolo popular; a segunda se compõe de reflexões\comentários do narrador sobre a sua fama artística e sua mitologia como grande Macho latino-ameri­cano; a terceira contém historias diversas das vivências sentimentais dos ouvintes de Daniel Santos que aguardam ser "bolerizadas". Todas as partes estão tematizadas e musicalizadas pelo bolero - o "bolerão" tradicional- que integra uma faixa significativa de consumidores de música popular, aquela que o mote do romance repete e repete: "La América amarga, la América descalza, la América en espanol".

A performance do narrador - que obviamente inventa as entrevistas, as reportagens e as histórias ouvidas (cf DS: 15) para parodiar as chamadas "novelas-testimonio" - é a de um virtuoso: por um lado, forja a fala popular dos supostos entrevistados com notável verossimilhança, ao ponto de imitar a entoação das vozes regionais, os tics da elocução, as gírias e modismos peculiares de uma geografia que vai de Guayaquil e Cali a Caracas, do México e Managua a Santo Domingo e San Juan, do Panamá a Manhattan; por outro, nos comentários que sucedem às pseudo-entrevistas, exercita-se como um narrador culto, de vanguarda, com a erudição adequada a um conhecedor do ofício da escritura moderna e da experimentação literária. É a reciclagem das letras de boleros clássicos da musicologia popular latino-ame­ricana que faculta a hibridação dessas linguagens distanciadas socialmente. A passagem do código musical para o literário está tão bem ajustada ao propósito de transcodificar as linguagens culta e popular, que às vezes tor­nam-se imperceptíveis as junções dos materiais heterogêneos.

Vejamos as modalidades que realizam esta despragmatização do bolero:

a) deslocamento o código musical-melodramático do seu contexto popu­lar-massivo para inseri-lo no código culto da enunciação do romance.

O uso da letra do bolero como epígrafe dos fragmentos que formam a

narrativa usurpa o lugar privilegiado da citação de grande autoria nas obras modernas. Em vez de um verso de um põeta ou filósofo reconhecido, o relato dos amores desordenados de Daniel Santos vem, convenientemente, encabe­çado pelos versos de "Obsesión" de Pedro Flores, um dos quais diz: "Amor es el consuelo de la vida\ la única, magnífica ilusión" (DS:20).

Os versos, retirados do seu contexto original, procuram enobrecer as muitas "anarquías genitales" que caracterizam a vida de Santos. A transcodi­ficação, neste caso, supõe que o "contexto original" seja composto de uma série de subcódigos anulados ou neutralizados pela escritura novelesca: a voz do cantor\cantora que o som da "vellonera" - a vitrola ou fonógrafo -reproduz e que é obtido pela ficha que aciona o aparato eletrônico; junto a este, desvela-se a mulher\homem abandonado ou solitário, que traz a alma em frangalhos; o espaço público urbano que o som da "vellonera" invade (abun-

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80 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

dam os nomes desses lugares no continente: boliche, toldo de carnaval,

paganías, hostería, taberna, cevecería, cantina, ratonera, cebichería, burdel, hotelitos, entre outros; cf DS: 14-15 e 18-(9); os destinatários típicos das letras tristes dos boleros, os proletários e marginais (a nomenclatura para os pobres é generosa na AL: hampones, gentuza, gentucilla, plebe, chusma, morralla, broza, "el inefable lumpen" DS:90-91). Isentos dos sub códigos da emissão e da recepção que a matéria "cantada" supõe, os versos bolerescos funcionam como filosofemas que pontuam as conexões dos relatos, para sugerir significados nobres e engrandecer as paixões, tornando a sedução e a perdição pela sensualidade verdadeiros movimentos anímicos que transcen­dem a mera carnalidade.

Em outros casos, trata-se de usar a epígrafe boleresca de modo inverso, para "rebaixar" a excessiva dignidade da linguagem literária. Dois fragmen­tos que invocam as profundas reflexões de um "bardo inglês" e de um "bardo argentino" sobre a importância do nome aparecem intercalados por versos da patética letra de "EI preso" (DS:94-95). Se com Shakespeare e Borges o leitor

permanece no plano da metafísica, com as lamúrias do prisioneiro é arrojado para o universo mais banal dos sentimentos como a solidão e a culpa. Pode-se notar por esse exemplo que a despragmatização, ao reorientar o leitor na percepção dos conteúdos, dissolve a oposição entre o objeto aurático e não aurático;8 essa oposição, que pôde sustentar a concepção moderna dos obje­tos artísticos e não artísticos, foi-se neutralisando cada vez mais na era pós-industrial desde que a reprodutibilidade técnica tornou secundária a

demanda da unicidade.

São numerosos os exemplos da transcodificação que despragmatiza a percepção convencionalizada do bolero como expressão banal ou ridícula. As letras de bolero, sempre retiradas do seu contexto pragmático, adquirem nova função no enunciado narrativo, em um processo de incorporação que pode­mos denominar como REPRAGMATlZAÇÃO. Elas podem servir, dessa maneira, para predicar um personagem ("Besaba como si fuera esta noche la última vez"; "chupaba el lunar que una y Cielito lindo tienen junto a la boca" DS:34); figurar um estado psicológico ("su alma sangrante tefiÍa el aguar­di ente dei Cauca con oscuros desenganos") etc. É, no entanto, em certas mixagens dos códigos popular e culto onde se pode observar como o deslo­camento do resíduo melodramático descondiciona a percepção:

EI asuntito con Salira lo redujo a borracho de oficio. Migas lo hizo. Mas miga

enamorada, De eso sabrá Dios. (DS:44)

Aqui, um fragmento do memorável bolero "Sabrá Dios" é reciclado em um sintagma criado pela paródia dos versos finais e solenes ("polvo serán, mas polvo enamorado"), do soneto barroco de Quevedo "Amor constante

K. BENJAMIN, Walter. A obra de

arte na era de sua reprodutibi­

lidade técnica. Trad. J.P. Roua­

net, em Ohras escolhidas. 3' ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. Vol. I, 165-96.

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o romance latino-americano do pós-boom... 81

más alIá de la muerte". Neste caso, temos o duplo movimento de perda e ganho na economia da reciclagem: os "restos" do soneto são rebaixados de sua dignidade de alto modelo literário, ao tempo que o resíduo do bolero, que pontua emoções baratas, é elevado em seu significado. Evidentemente, a operação de repragmatizar esses resíduos requer a afinidade intrínseca dos códigos nivelados: ambos, o musical e o literário, inscrevem-se na cultura dos sentimentos. cujas cifras a memória dos hispano-americanos retém.

Os deslocamentos dos signos bolerescos vão além da despragmatização de suas unidades informativas. O trabalho da reciclagem apropria-se também das estruturas melódicas e tonais características por suas repetições e recor­rências para imprimir à prosa a sensualidade de um ritmo dançável:

Como paloma inofensiva, como huella huérfana de pasos. como melindre y reticencia - símil con símil insinuándola. (DS:1l3)

Beber, beber, beber en los calibres de Cali la cálida. (DS:34)

Le digo Narciso en un ojo de agua, las hojas junto ai ojo enojándolo, el enojo

equivocándolo. Le digo Eros erogenándose. (DS:76)

Aqui, a bolerização da prosa tem o toque paródico de outro aspecto da pragmática do bolero (a dança pelo par amoroso), mas não deixa de ser notável que a experimentação com a linguagem da prosa narrativa em nada se diferencie do que seria um típico produto de vanguarda. Por isso, o fato de estetizar o relato mediante o uso das paronomásias - tão caras à invenção poética da alta modernidade - revela, uma vez mais, a proposta de dignificar

a música popular e de abrir o seu território para novas explorações.

b. deslocamento do código culto da literatura para inserir-lo no enun­ciado melodramático do romance

Esta modalidade de reciclagem consiste em aproveitar diversos resíduos da tradição literária para transcodificá-Ios na narrativa, mediante a desprag­matização do seu efeito estético "alto". Temos, claro está, uma inversão da apropriação dos materiais residuais da cultura popular-massiva anteriormente descrita. Porém, deve-se assinalar que essa reciclagem inclui-se no projeto amplo de despragmatização do sub-gênero melodramático, ou melhor, supõe

que a experimentação de deslocamento do bolero já tenha condicionado o

leitor para que este possa absorver o rebaixamento das referências cultas.

Neste ponto, cabe perguntar: o que pretenderia oferecer como experiên­cia de leitura (e consumo) um texto que cita fragmentos de obras e autores canônicos como se fosse material espúrio? Vejamos se podemos ensaiar uma resposta a partir de alguns exemplos dessa modalidade de reciclagem, nos

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quais indico pelas cursivas os resíduos literários e entre colchetes os autores e obras de onde foram extraídos:

el bolero que acoge su garganta obtendría los ribetes de la fonua ideal, la fundición

perfecta, los pausados giros de un aire suave. (OS:18-19) [Rubén Oario, do põema

"Era un aire suave ... " de Prosas profanas]

El pasó por mi vida sin saber que pasaba y le labrâ cerco y prisitin mifantasía. (OS:33)

[Sor Joana Inés de la Cruz, do soneto "Que contiene una fantasía contenta con amor

decente"]

estaban filmando una épica con hombres necios que acusais a la mujer sin razón para

ellucimiento de Maria Antonieta Pons o Rosa Carmina( ... ) (OS:50) [idem, da sátira

filosófica "Hombres necios ... "]

piei que un día se otoõó; piei otoõaI que se atareó en la compra de torsos embadumados

con el verso azul y la cancilÍn profana( ... ) (DS:58) [Rubén Oarío, do põema "Yo soy

aquél que ayer no más decía", de Cantos de vida)' esperanza]

requetepeor, se camavaliza con falsos silogismos de colores (OS:82) [Sor Juana lnés

de la Cruz, do soneto "Procura desmentir los elogios que a un retrato de la põetisa

inscribió la verdad, que se lIama pasión"].

los boleros son corrientes puras, aguas cristalinas. (OS:99) [Garcilaso de la Vega, da

"Égloga primera"]

para revi vir la cita que parece una violeta ya marchita en ellibro de recuerdos dei ayer

( ... ). Para que puedan escribirse los versos má.v tri.vtes esta noche. (OS:IOI) [Pablo

Neruda, de um põema de Veinte poemas de amor y una cancilÍn desesperada].

Macho es Oaniel Santos que cuanta mujer paIpó vive quemada por el no se sabé clÍmo

de sus besos, dice el sensacionalismo. (OS: 123) [Tirso de Molina, da obra teatral Don

Juan Temirio o EI convidado de piedra).

Otra vez Marisela está vestida ( ... ) Contra el oro brunido de su cabello el sol relumbra

en vano ( ... ) (OS: 156) [Góngora, do soneto "Mientras por competir con tu cabello")

Esta seleção requer alguns comentários: as citações não são fidedignas, pois apresentam várias alterações dos textos originais; todas são familiares para o leitor de cultura média da literatura em língua espanhola; as escolhas recaem em autores consagrados e obras de tema amoroso; todos os fragmen­tos da alta literatura são inseridos em enunciados narrativos nos quais os personagens, as situações, os objetos e comportamentos, expressões verbais ou fatos referidos provêm do universo popular-massivo, no qual a não-genui­nidade e mesmo a marca do Kitsch estão presentes.

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" JAMESON, Fredric, Reifica­

tion and Utopiain Mass Cultu­

re, SiKnatures oI' lhe Visihle, New York: Routledge, Chap­

man and Hall, 1979, p, 9-34,

o romance latino-americano do pós-boom", 83

A despragmatização a que são submetidos os textos literários neste caso - como a que se efetua pela tomada sinedóquica de suas partículas - eviden­cia até que ponto o seu uso contínuo ou consumo excessivo desgastam a sua aura e facultam o seu nivelamento com outros restos e resíduos culturais,

Ora, nessa disposição dos códigos literário e musical, torna-se irrelevan­te preservar a diferença do erudito e do popular; sua identidade e legitimidade ficam comprometidas pelo contágio, Por isso, a reciclagem despragmatizado­ra já não admite que os fragmentos enxertados retornem para seu estrato original, sem estarem afetados, contaminados um pelo outro. A reciclagem, em outras palavras, torna irreversível a bolerização da literatura, como torna­ra literárias e modernas as letras arcaicas e kitsch dos boleros. Aliás, o próprio sujeito-reciclante, ao intitular um dos fragmentos iniciais do romance, parece ter insinuado a generalização da disponibilidade dos materiais da cultura de elite e de massas para ingressar em um sistema híbrido de signos: "Trozos y restos aprovechables de los materiales descartados" (DS:33).

Melodrama: catarse do moderno

Se o colapso da distinção entre a cultura de elite e cultura de massas é o fenômeno mais marcante da pós-modernidade,9 as reciclagens dos gêneros melodramáticos por autores latino-americanos treinados em técnicas sofisti­cadas de narração, oferece um campo privilegiado para observar a crise da concepção modernista de arte e a nova reordenação dos capitais culturais pela hibridação, para usar aqui a linguagem econômico-sociológica (CANCLINI,

181). Nessa crise e reordenação, as culturas mestiças e pós-coloniais, que tiveram que conviver ao longo de sua história com a dualidade opressora hegemônico\ subalterno - e que tiveram, portanto, que desenvolver estraté­gias "antropofágicas" de sobrevivência, de ambos os lados, diga-se - querem reivindicar, juntamente com a valorização do popular-massivo, o direito ao melodrama, a legitimidade do sentimentalismo ou, como diz Luis Rafael Sánchez, a "Iegalización de la cursilería" [a legalização da cafonice].

Mas o que, afinal, torna aceitável que materiais desde sempre considera­dos espúrios, alienantes, adulterados (em nossos países pela intelectualidade de esquerda e direita) possam, de repente, reverter o seu conteúdo? Em outras palavras, que razão estética e que forma de adesão ideológica são demanda­dos pela reciclagem? Sem poder avançar aqui uma resposta geral, válida para expressões não-literárias, penso que são necessárias duas condições para a

aceitabilidade desses resíduos na reciclagem.

Uma é que a reciclagem se apresente como operação crítica na combina­tória dos materiais, de modo a selecioná-los de acordo com as conveniências políticas e éticas pós-modernas. Exemplarmente: o bolero tem que aparecer

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destituído daquele relaxamento alienante ou hedonismo apolítico, de modo

que à sua dignificação literária (que lhe dá status literário, corno vimos) corresponda o compromisso com algo nobre e maior, ainda que dentro da cultura dos afetos. Em outras palavras, exige-se que a repragmatização se dê

corno novo contrato entre destinador e destinatário, no qual subentende-se

que o papel das emoções deriva da falência do projeto utópico da esquerda

na América Latina.1°

Nesse sentido, é notório que romancistas corno Manuel Puig ou Luis Rafael Sánchez reciclam os gêneros massivos em oposição à teoria frankfur­tiana sobre a indústria cultural no capitalismo, segundo a qual, os bens culturais são sistemática e programadamente explorados com fins comerciais para induzir ao relaxamento, à distração, à diversão. I I Para esses escritores

latino-americanos, um bolero ou um filme B (corno os que Puig utiliza em El

beso de la mujer arafía) são sim produtos dessa indústria e, corno tais, portadores do elemento kitsch; mas eles parecem estar longe de ser urna resposta à mecanização capitalista ou à mercantilização ou, ainda, urna com­pulsão desesperada para escapar da mesmidade das coisas por urna "promes­se de bonheur". Se mesmo na esfera socialista da América proliferam as ati­tudes apologéticas ao Kitsch, segundo a fina análise de Desiderio NAVARRO,12 isto significa, talvez, que eles são capazes de produzir plenamen­te a catarse no leitor. Quando Sánchez compara as reações de um ouvinte hipotético dos anos 30 - ante urna emissão radial com discursos políticos de Lázaro Cárdenas, no México, ou Haya de la Torre, no Peru com as que ele experimenta ante a "vel\onera" onde explode um bolero na voz de um "ne­grito sabrosón" (DS:121) - seria injusto dizer que a emoção que este suscita possa equiparar-se àquela "paródia da catarse" que Adorno viu no kitsch. O marginalizado social que nesta situação libera a sua sentimental idade vive "el drama dei reconocimiento y la lucha por hacerse reconocer, la necesidad de recurrir a múltiples formas de la socialidad primordial (el parentesco, la solidaridad yecinal. Ia amistad) ante el fracaso de las vías oficiales de insti­tucionalización de lo social. incapaces de asumir la densidad dê las culturas populares.'·!.1

A segunda condição tem a Yêr com a nê":êssidade - já no âmbito dê uma política do texto - de reciclar resíduos culturaIs. abandonados pela moderni­dade estética e reconhecidos corno integrados ao conceito de identidade cultural latino-americana. Os melodramas que pcrmeiam os relatos de Puig, de Otero ou Vergés não seriam reutilizáveis se não fossem passíveis de constituir um ideologema da integração ou unificação da América Latina. Nessas reciclagens não há divertimento, pura experimentação de laboratório estético para verificar a reação dos componentes. É preciso que os resíduos iluminem de alguma maneira as contingências do presente político e aportem traços diferenciais da cultura latino-americana. Nisto é paradigmático o caso

In SANTOS, Lídia. Des héros et

des larmes. Le Kitsch et la cul­

ture de mas se dans les romans

des Cara'lbes hispanophones et

le Brésil. Éludes littéraires,

vol. 25, 3, Hiver 1993.

11. HORKHEIMER, Max, ADOR­

NO, Theodor. Dialectic ot En­

li!(htenment. Trad. John Cum­

ming. New York: 'lbe Seabury

Press, 1972 (I' ed.: 1957).

12 NAVARRO, Desiderio. EI

kitsch nuestro de cada día.

Uniôn [Havana], 2:22-28,

abr.-jun. 1988.

lJ MARTIN BARBERO, Jesús. De

los medias a las mediaciones.

Comunicaciôm, cultura y he­

!(emonía. México: G. Gili,

1987.

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14 ACOSTA, Leonardo. EI bole­

ro y el Kitsch. Letras Cubanas [Havana], 9:58-76, jul.-set., 1988.

15 CASTILLO ZAPATA, Rafael. Fenomeno!ol{Ía dei holero.

Caracas: Monte Avila, 1990.

16. SARLO, Beatriz. El imper;o de los sentimienfos. Narrac;o­

nes de ôrc;ulaciôn periódica

enArlientina 1917-1927. Bue­nos Aires: Catálogos, 1995.

o romance latino-americano do pós-boom... 85

do bolero, cujo capital simbólico, ao ser manuseado pelos pesquisadores,

revela a categoria da genuinidade "popular", 14 incompatível, a meu ver, com

as formas da sua difusão como fenômeno de massas. Resgatado como popu­lar, o bolero já não é mais Kitsch; passa a ser "originário", anterior à interna­

cionalização e comercialização, próprio dos meios proletários e sub-proletá­rios. Sua origem mestiça é reconhecida por seu legado verbal e melódico -

de raiz hispânica - e por seus ritmos e instrumentações, de herança negrói­

de. 15 Outra categoria que o legitima na constituição da identidade cultural

provém da sua estrutura dramática, na qual se narra um conflito amoroso e se

elabora a dor pela ausência\ abandono do(da) amante. Por sua rede de símbo­

los que tece modelos da relação amorosa, torna-se um rito coletivo, uma

"práctica estética comunitaria", cuja função pragmática principal é a de con­

solar os amantes, amparar e confortar pelas penas de amor. (IDEM: 33). Como

"almacén simbólico", pois, o bolero traduz, por suas raízes autóctonas, por

sua ritualidade coletiva, a experiência sentimental latino-americana. Torna­

se, enfim, identitário pela neutralização de sua própria historicidade. Mas há

ainda um fator identitário que torna mais ainda atraente o repertório melodra­

mático para as reciclagens do escritor latino-americano pós-moderno.

A busca de figuras arcaicas, de formas marginalizadas pelo progresso e

pelas grandes utopias, a reivindicação do ex-cêntrico e periférico responde a

uma necessidade de elaborar o luto pelo fim da modernidade. Tanto os filmes

B de Hollywood, como os folhetins radiais, a difusão do bolero e do tango,

como os romances sentimentais em grandes edições - tudo o que contribuiu,

enfim, para construir na América Latina o "império dos sentimentos"16 são

testemunhos do impacto da modernização e da expansão do capitalismo no

continente. O surgimento dos meios massivos (o rádio, o registro fonográfico,

o cinema) com a expansão urbana: o cosmopolitismo e a vida noturna dos

cabarés, dancings. casinos e teatros foram acompanhados pela necessidade

de refúgio contra a fúria destrutora do presente.

Reciclar permite (re lexperimentar os desajustes e os fracassos que os

Grandes Relatos provocaram em sua implantação nos mundos periféricos.

Não por acaso, o primeiro bolero que se compôs no continente foi em

1885, a mesma data que a historiografia literária reconhece como início

modernismo hispano-americano. Intitulava-se "Tristezas".

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Necessidade e solidariedade nos

estudos de literatura comparada

Benjamin Abdala Junior

1

Desde sua publicação, em 1612, A tempestade, de William Shakespeare,

tem sido objeto de interpretações contraditórias. Na efabulação dessa grande

parábola da colonização, Próspero, o sábio duque que se asilou numa ilha

centro-americana, ali encontrou Caliban, personagem grosseira e disforme.

O duque - com comportamento similar ao de um "déspota esclarecido" -, ao

se apropriar de suas terras e o escravizar, aculturou-o nos valores da "civili­

zação". Ensinou-lhe a sua língua ... Depois, Caliban - um ingrato, na perspec­

tiva de Shakespeare - vai-se valer do conhecimento dos valores veiculados

pela língua para colocar-se contra o colonizador.

Como se sabe, "Caliban" é anagrama de "Canibal" - um antropófago.

"Canibal", deriva de "Caribe", que, por sua vez, vem de "Caraíba". Os caraíbas

foram os habitantes da região que se opuseram à colonização européia, estig­

matizados, por isso, como bárbaros. Shakespeare, ao se apropriar do ensaio

"Dos canibais", de Montaigne, de 1580 (traduzido para o inglês em 1603),

distorceu sua fonte iluminista. Montaigne afirmava nesse texto que "nada há de

bárbaro nem de selvagem nessas nações ( ... ) o que sucede é que cada um chama

barbárie o que é estranho a seus costumes". Shakespeare, ao associar anagra-

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maticamente sua personagem com o canibal, um escravo selvagem e disforme,

não deixou de adotar, ele próprio, uma atitude canibalesca.

Entre as muitas releituras de A tempestade, figura a de Renan, que em seu

texto Caliban, seqüência de A Tempestade (1878), identifica de forma nega­

tiva Caliban com o povo da Comuna de Paris - uma imagem estigmatizada.

Em oposição à matização negativa do Caliban de Renan, vieram as leituras de latino-americanos e africanos que. no decorrer do século XX, identifica­ram simbolicamente essa personagem. de forma positiva, com os valores emergentes do povo. Próspero. nessas novas leituras. seria então um déspota

esclarecido europeu, como apontamos acima: Miranda. sua linhagem; Cali­ban, o povo colonizado: Ariel. o intelectual sem laços com a vida, a serviço de Próspero. A imagem de Caliban. além disso. veio a se aproximar da perspectiva teórica do cubano José Martí, que enfatizava a condição mestiça

da América Latina.

Se toda cultura é mestiça, nas terras de Caliban essa situação é ainda mais essencial pelo fato de a mesclagem cultural ser mais recente. Na América

Latina, há uma maneira de ser mestiça que envolve as culturas ameríndias, africanas e européias. Essa mestiçagem essencial, mas não sintética, traz-nos um estatuto crioulo - a crioulidade -, uma forma plural de nos imaginarmos, com repertórios de várias culturas.

A partir dessa potencialidade subjetiva e objetiva - a possibilidade de nos imaginarmos numa bacia cultural onde a crioulidade é essencial - podemos fazer figurar em nossos horizontes uma comunidade cultural ibero-afro-ame­ricana. Logo, não uma figuração utópica em abstrato, mas como um "sonho diurno", na expressão de Ernst Bloch - uma potencialidade objetiva e que pede o concurso de nossa subjetividade, isto é, de nossa potencialidade subjetiva, de nosso desejo, para nos situar dentro dessa perspectiva crioula.

Não há futuro, em termos de identidade, figurarmo-nos como espelho de Próspero, imitando sua imagem. Mais: para o europeu, a América e a África começam na Ibéria, igualmente marcada pela mestiçagem cultural das ex-co­lônias dos países peninsulares. Na Ibéria certas elites desconsideram sua maneira de ser mestiça para se espelharem em Próspero, como também tem ocorrido na América Latina e na África. A situação de dependência envolve a todos nós e precisamos desenvolver estratégias para reverter esse quadro que se agrava a todo momento. É necessário, pois, que descentremos perspec­tivas: vamos observar as nossas culturas a partir de um ponto de vista próprio.

Teríamos assim um descentramento de ótica de Caliban, afim da perspec­tiva antropofágica do Modernismo brasileiro, para morder as culturas de Próspero e as culturas africanas e ameríndias. Inversão de perspectivas, exemplificada pelo cubano Roberto Fernandes Retamar da seguinte forma: quando um europeu quer ser simpático aos centro-americanos, ele chama o "Mar das Caraíbas" de "Mediterrâneo americano", algo semelhante se nós

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Necessidade e solidariedade nos estudos de literatura comparada 89

chamássemos - a partir de um descentramento de perspectiva - ao Mediter­râneo de o "Caribe Europeu".

Esse descentramento solicita uma teoria literária descolonizada, com critérios próprios de valor. Em termos de literatura comparada, o mesmo impulso nos leva a enfatizar estudos pelos paralelos - um conceito mais amplo que o geográfico e que envolve simetrias socioculturais. Assim, os países ibéricos situam-se em paralelo equivalente ao de suas ex-colônias. Ao comparatismo da necessidade que vem da circulação norte/sul, vamos pro­

mover, pois, o comparatismo da solidariedade, buscando o que existe de próprio e de comum em nossas culturas. Vemos sobretudo duas laçadas, duas perspectivas simultâneas de aproximação: entre os países hispano-america­nos e entre os países de língua (oficial) portuguesa.

Voltando à imagem de Caliban, podemos nos valer do romance Caetés, de Graciliano Ramos, para exemplificar processos de apropriação dentro das lite­raturas de língua portuguesa. Nessa narrativa, Graciliano (em cujo horizonte de expectativas estava Eça de Queirós), calibaniza a estrutura de A ilustre casa de Ramires, do ficcionista português. Apropria, entre outros, o procedimento nar­rativo do romance embutido dentro do romance. Como em A ilustre casa de Ramires, o romanCe que João Valério (a personagem narradora de Caetés) escreve é, na verdade, a história vivenciada por ela, analogicamente. Essa estrutura será retomada por Graciliano Ramos ainda depois, em São Bernardo.

Os índios caetés, por sua vez, são recorrência histórica antropofágica: eles devoraram o Sardinha português. Uma boa parte da maneira de ser de Portugal está em nós, sob matização tropical. É por isso que Portugal, por sua vez, irá se apropriar do repertório literário do Modernismo brasileiro, em especial no romance, como ocorreu com o chamado Neo-Realismo portu­

guês. Na literatura brasileira, os escritores desse país descobrem um Portugal que não existe na literatura além-Pireneus.

Um olhar simétrico ocorreu com os escritores africanos dos países de

língua (oficial) portuguesa. Ao reimaginarem suas nações - um projeto polí­

tico e cultural-, encontraram em nossa literatura uma maneira de ser em que eles próprios Se viam. Isto é, descobriam as marcas da crioulidade cultural que nos envolvem e o descentramento de ótica que interessava aos seus projetos político-culturais. Ao buscarem a identificação simbólica com a Mátria (a "Mamãe-África", profanada pelo colonialismo), dão as costas à simbolização da Pátria (o poder paterno colonial), encontrando algumas de suas marcas na Frátria brasileira.

2

O romance A jangada de pedra, de José Saramago, presta-se para a discussão do caráter nacional português, em faCe de uma dupla solicitação: a

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90 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

recente integração na Comunidade Econômica Européia (ao que tudo indica, como nação periférica) e a singularidade que leva o país a identificar-se, ao lado da Espanha, com suas ex-colônias.

O romance de José Saramago serve-nos igualmente de núcleo simbólico, por envolver temas como o da imaginação utópica, da memória e das relações culturais entre os países de língua portuguesa e de língua castelhana. A jangada de pedra proporciona uma "viagem" que permite, assim, que se sonhe com uma comunidade não apenas dos países de língua portuguesa, mas dos países ibero-afro-americanos. Organizado em torno de estratégias geopo­líticas e associado à situação histórica pós-Abril, esse romance permite re­pensar a cultura portuguesa em face da dupla solicitação apontada: a integra­ção européia e a singularidade peninsular. Esta singularidade liga-se às perspectivas que marcaram a história de Portugal: a atlanticidade, a iberici­dade e a mediterraneidade.

Tais horizontes históricos, no centripetismo e no centrifugismo de suas formas de apropriações e de difusões, acabaram por estabelecer uma comu­nidade cultural ibero-affo-americana. Numa sociedade internacional atraída pela dinâmica dos comunitarismos entre os povos que os leva para novos reagrupamentos determinados por afinidades culturais. creio que é importan­te a efetiva implementação de estratégias político-culturais que nos permitam (re )imagimar essa constelação de países. Nessa comunidade (previsão de 645 milhões de falantes do português e do castelhano para o início do século XXI), Portugal, Brasil e os países africanos de língua oficial portuguesa constituiriam assim um pólo da paridade histórica que nos envolve em rela­ção aos países hispânicos - uma paridade similar, mas que pretende menos conflituosa, do que aquela que marcou a história de Portugal e da Espanha.

Vejamos a simbologia de A jangada de pedra, de José Saramago, que aponta para o imaginário que nos singulariza em relação à Europa - um imaginário simbolicamente "infernal", mestiço, crioulo, no sentido que esta­mos desenvolvendo, e que se opõe à pureza das imagens "celestiais" da tradição cultural dos centros hegemômicos europeus.

Em epígrafe a esse romance, o ibero-americano Alejo Carpentier opõe ao ceticismo a perspectiva de que "Todo futuro es fabuloso". Tão fabuloso na efabulação desse romance que esse futuro, na vida como na arte, torna-se avesso ao pragmatismo cético da Europa. Um "futuro fabuloso" próprio de um momento de fratura, onde "principia a vida" (p. 18), que por natureza calibânica opõe-se à convenção, à rotina e ao estereótipo de Próspero. Viver, nessa perspectiva, é criar, desenredando fios de velhas meias, como as de Maria Guavaira. "Todo futuro es fabuloso", diz Carpentier. Tão maravilhoso, diríamos, que permite uma efabulação - fabula ficcional de ação política -que, num direcionamento temporal inverso, permite a atualização, na jangada de Saramago, de matéria sonhada para amanhã ou depois.

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Necessidade e solidariedade nos estudos de literatura comparada 91

Esse deslocamento temporal operado pelo jogo artístico não nos traz imagens literárias à deriva, mas imagens-ação que aportam no presente da escrita literária, impulsionando-a por "mares nunca dantes navegados". São imagens-ação políticas que motivam uma nova épica, agora social, num movimento dialético que é, ao mesmo tempo, partida e encontro. Desprende­se a península de uma situação convencional de apêndice europeu para, no faz-de-conta ficcional, encontrar-se consigo mesma. Quando se encontra em sua identidade, a jangada ibérica é capaz de movimentos surpreendentes, já que não se (con)forma ao cais europeu, para ela "cético" e "rotineiro", onde aportou há muito tempo. "Mudam-se os tempos" e a "vontade" (Camões)

aponta para outras perspectivas, para driblar, pelas laterais do jogo ficcional, um outro jogo, geopolítico, que acaba por nos enredar a todos.

A matéria geopolítica, em torno da qual se processa a estratégia discur­siva dominante de A jangada de pedra, constitui, assim, um espetáculo artístico. Mostra-nos Saramago, mais uma vez, que o poético não está nas

coisas, no objeto, como observou Carlos Drummond de Andrade. O poético

instaura-se pelo trabalho artístico do referencial político. Vem dele a imagem­ação (e a imaginação) política capaz de concentrar séculos num único mo­mento - momento mítico que chama a si devir histórico e raízes nacionais. Tal concentração do tempo no momento da criação ficcional fratura o imagi­nário convencional a ponto de a calosidade dos Pireneus não impedir o

deslocamento espacial da península - um deslocamento, na certa ... "vagabun­

do", aos olhos rotineiros que a enunciação atribui aos franceses. Como diz o

filósofo popular José Anaiço, o que conta ao final das contas é o momento, e este, no sonho diurno de José Saramago, é ibérico.

O excepcional da ficção subverte padrões de referência e critérios de

verdade. O momento é de ruptura e reencontro, repetimos, para que o tempo

rotineiro não prossiga em suas mesmices. A concentração fantástica do tempo - própria das concretizações utópicas - provoca novas ondas internas com­

pelindo a viagem de Dois Cavalos, automóvel e parelha, e seus ocupantes. São eles levados pelas vagas invisíveis do s(c)isma da terra a uma estranha

viagem de autoconhecimento e de reconhecimento da península. Ao nível de

pressupostos virtuais, as vagas exteriores, no Atlântico, devem sensibilizar os novos mundos ibero-americanos, mundos que também emergem das regiões abissais. Talvez o mensageiro dessas regiões infernais, o misterioso cão Cérbero, ao não explicitar suas intenções, queira enredar, na verdade, o leitor,

tal como escolheu ao acaso as personagens do romance. A perspectiva de

nova unidade que ele procura trazer como expressão do vir-a-ser imaginado,

não se circunscreve apenas à Ibéria, abrange também a América Latina e as

nações africanas de língua oficial portuguesa. Dado o recado, a península

estaciona, aguardando a contrapartida dessas nações atlânticas.

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92 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

Dentro da nova lógica do maravilhoso infernal sonhado, o negativo

emerge e se torna positivo. E Cérbero, que também pode ser chamado de

"Cão Constante", salta do romance Levantado do chão para A jangada de

pedra. Na verdade, ele está em múltiplos lugares para exercer com eficácia

sua ação demoníaca. "No reino deste mundo", do lado de cá do risco de Joana Carda, não nos pintamos com colorações negativas. talvez porque menos com

menos, como dizem, dá mais. Nós nos assumimos. Não ocorre assim a

predicação ética negativa do registro do inferno. como acontece na mitologia

clássica ou na Divina comédia. de Dante. A no\a viagem pelas terras infernais

à procura de uma nova identidade nacional nada tem de divina, embora seja

maravilhosa e profundamente humana. Em seu horizonte. a velha ética reli­

giosa da referência clássica ou italiana. monoteísta ou politeísta. acaba por

ser comutada pela nova ética político-social.

A estratégia discursiva dominante do romance leva a península a girar

sobre si mesma, em movimentos misteriosos que escapam à lógica estabele­

cida. Uma tática, certamente, para fugir dos centros catalizadores europeus e norte-americanos. São movimentos que eles não dominam, misteriosos. Es­

ses movimentos escapam ao racionalismo tecnocrático de curto horizonte.

Entretanto, ao nível do destinatário, esse jogo criativo conforma um espaço

de reflexão pelo efeito da mensagem que se "levanta do chão". Essa manifes­

tação do futuro fecunda a todos e a tudo, não só as personagens femininas. Em gestação está a própria península ibérica que, como criança prestes a

nascer, também dá suas cambalhotas. E, com traquinagens dessa natureza,

que escapam ao senso comum, começa a operar em seu interior ampla trans­

formação política, econômica e cultural.

Cria-se, assim, na ficção de A jangada de pedra, imagens-ação identifi­

cadas com o devir emergente no útero aquático. Tudo, repetimos, por obra da concentração do tempo histórico num único momento - "momento principal"

- que permitiu a expressão do futuro desejado. Importa, qualitativamente,

esse momento estranho, que escapa à compreensão do conjunto das nações

européias. Aí o inferno ibérico só consegue sensibilizar, subversivamente, os

jovens, logo sufocados em sua rebeldia pela autoridade paterna.

No útero aquático, o "novo" ibérico estaciona numa região geopolítica que não é de calmarias. Como a jangada se alimenta de matéria temporal, a parada é estratégica, como indicamos. Envolvida no útero, ela espera onde

aportar, sem calosidades como as das regiões pirenaicas. Para tanto, países infernais da condição mestiça, da mesma forma que os da Ibéria, também

precisam jogar suas pedras no oceano comum, como o fez Joaquim Sassa. Na água esbatida, terão origem círculos concêntricos de vagas, em expansão. Os vários círculos nacionais, por certo, deverão se encontrar, transformando regiões de turbulências em novos círculos mais amplos, para dessa forma o

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Necessidade e solidariedade nos estudos de literatura comparada 93

conjunto confluir para a nossa maneira de ser mestiça - nós: ibéricos, africa­nos, ibero-americanos.

Como se vê, a fantasia de Joaquim Sassa - uma das personagens do romance - tem uma dimensão maior. Um lance aparentemente fortuito é realçado, pela força do imaginário político, numa onda fabulosa. Fruto da concentração do tempo, ela procura propagar-se como um mar vital mais amplo, que pode envolver, em especial, também brasileiros e africanos de língua oficial portuguesa. São espaços abertos que ficaram do lado de cá do risco de Joana Carda, enfatizamos. Se para o europeu tradicional a África começa nos Pirineus, a jangada aponta para uma situação mais infernal ainda para o pensamento preconceituoso: aí começam também as Américas e a Ásia.

Apropriando-nos, a nossa maneira, de Fernando Pessoa, em cujas águas também navega subversivamente a jangada como contexto, o contexto de Própero, invertendo perspectivas, podemos afirmar, finalizando, que em opo­sição ao que o europeu considera miticamente como "nada", podemos nós, infernais. historicizar/dialetizar o mito, situando-o como "tudo". O que para

ele é "nada", para nós é "tudo". Isto é, a nossa própria identidade, não apenas imaginada como um rito mítico, mas conquistada na práxis. Como uma jangada num mar vital, a utopia, da mesma forma que na efabulação maravi­lhosa de Saramago, também aqui deve aportar - o futuro se fazendo presente - a comunidade cultural ibero-afro-americana.

3

A identidade crioula permite-nos assim sonhar com uma comunidade ibero-afro-americana. Ao nível oficial, já foram realizados dois encontros de presidentes da República, o último realizado na Bahia. Como sempre, ao final dos eventos. surgem documentos que são cartas de boas intenções. Contra a implementação de medidas mais concretas colocam-se os dois pólos hegemô­

nicos de atração: os Estados Unidos e a C. E. E. É sintomático que os jornais e demais mídias têm procurado ridicularizar esses encontros antes mesmo de suas realizações. Faz parte da ideologia dos Prósperos neoliberais descartar como ultrapassado tudo aquilo que escapar ao controle supranacional do liberalismo. Se o texto de Shakespeare foi escrito no momento em que o liberalismo era um sonho burguês, agora os Prósperos tornaram-se os donos

do mundo. E a utopia neoliberal é colocada como ponto de chegada, não só para a burguesia como para o conjunto da sociedade. Para a ótica neoliberal é chegado assim o momento (o seu momento) de paralisar a história.

Dessa forma, por decreto indeterminado e não sabido dos meios de

comunicação, respaldados pelas expectativas dominantes da intelectualidade

dos países situados ao norte do Equador e, como sempre, reproduzidos ao sul

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94 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

- o espelho de Próspero -, tem-se enfatizado, a convicção de que no mundo

atual já não há mais espaço para o pensamento utópico. A vida contemporâ­

nea, reduzida à ênfase na esfera do privado, já seria manifestação de uma

liberdade plena e ponto de chegada da democracia. Ainda mais, a nova

situação descartaria sonhos de plenitudes, situadas como abstrações sem

sentido real. Pior, esses figurinos procuram imbricar os sonhos de plenitudes

que percorrem a história de nova civilização com o autoritarismo. Os sonhos

de plenitude, para essas formulações, além de quimeras, seriam avessos à

liberdade individual.

Na verdade, entendemos que o próprio postulado de hipertrofia do priva­

do não deixa de ser utópico, pois aponta para um mundo sem fronteiras para

o indivíduo, no domínio da vida econômica, social, política e cultural. Neste

momento de abolição de fronteiras, em que se esboroam os estados nacionais,

o indivíduo emerge como espetáculo, um espaço individualista. A própria

história não mais teria razão de existir, já que o momento presente - diríamos

nós, como espaço de configuração utópica, que a ideologia neoliberal não

reconhece enquanto utopia - traria em si um repertório cultural a-histórico,

podendo associá-lo em combinações de objetos ao gosto dos indivíduos,

libertos, assim, da preocupação com o devi r. A vida seria um eterno presente

- liberal e democrático.

Como qualquer utopia, essa aspiração é ideológica - um conjunto de

idéias-força, no sentido genérico de ideologia -ligado aos sonhos do libera­lismo. Um sonho libertário, entendemos, associado à perspectiva de um

grupo social. Nesse sentido, a ideologia é manifestação cultural de "falsa

consciência": a materialização desse sonho não seria apenas uma aspiração

de grupo liberal, mas de todos os indivíduos - o sonho de um grupo espraian­

do-se para toda a sociedade.

A essa perspectiva, podemos opor uma outra, no campo de nossa compe­

tência - uma outra idéia-força que não se situa apenas num depois. São

virtualidades comuns aos países localizados ao sul do Equador da nuestra américa mestiza e que nos permitem participar do sonho diurno da integração

ibero-afro-americana. Em termos de literatura comparada, este sonho se

materializa no comparatismo da solidariedade, que, na situação brasileira, se

concretiza em laçadas dirigidas à América Latina e aos países de língua

portuguesa.

Esse comparatismo da ordem da solidariedade deve levar a uma circula­ção mais intensa de nossos repertórios culturais. Se circunstâncias históricas

têm-nos colocado à evidência da necessidade do comparatismo norte-sul para

o estudo de nossas apropriações calibanescas, o momento atual - em face da ênfase universal na procura de afinidades culturais - direciona-nos para o

contrapolo dialético da tendência globalizadora.

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Necessidade e solidariedade nos estudos de literatura comparada 95

Talvez fosse o caso de irmos um pouco além (não muito, para que a dialética seja operacional). Os repertórios culturais de nossa condição mesti­ça (crioula) têm, na sua maneira de ser, uma universalidade cosida de dentro, que dá vez ao diferente. A globalização massificadora, ao contrário, é unidi­recional e procura paralisar o outro, inclusive nos centros de hegemonia. É em razão dessa tendência que o comparatismo histórico norte-sul, ao sul do Equador, da ordem da necessidade, tem dado lugar, ao comparatismo da solidariedade. As afinidades sociais de grupos minoritários têm permitido uma circulação transnacional que não segue os parâmetros da globalização estandardizada.

Entretanto - e para fecho desta exposição -, entendemos que o momento solicita a marcação de nosso solo crioulo, com a universalidade de sua maneira de ser. Essa mesma maneira de ser, aberta, sem xenofobismo, convi­

da os outros, ao norte do Equador, a descobrirem o que em nós existe como marcas de suas identidades - uma identidade historicamente também mode­lada a partir desses centros. Enfatizamos nosso descentramento de perspecti­vas - descentramento equivalente ao reivindicado pelo grupos de resistência à estandardização dos países não periféricos -, convidando-os também a se imaginarem, de forma equivalente, dentro da universalidade crioula - uma universalidade que se faz para frente, enlaçando carências, mais do que por referência exclusiva ao passado.

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I. ESQUIVEL, Laura. Como

agua para clUJco/ate. Nt1\Ie/a

de entregas mensuales con re­

cetas, amores, y remedios cu·

sem.l" México: Planeta, 1989.

___ , guionista. Como

agua para chocolate. Dir. Al­

fonso Arau. Prod. Alfonso Arau. Con Lumi CavalOS, Marco Leonardi. México, 1991. 114min.

2 Los libros de cocina mexica­nos dei siglo diecinueve a me­nudo eran escritos y cosidos a mano y pasaban de una gene­ración a otra. Yo tengo la suer­te de haber heredado uno. Las recetas y los remedios casems están presentados en una nar­rativa junto con historias que vienen ai caso a causa de la

receta de turno. En los Estados Unidos la primem edición de The foy of Cookinl! (New

York: Bobbs, 1931) de Irma S. Rombauer seguía esta Iradi­ción. Desafortunadamente, su hija, Marion Becker (I 963), ha

descontinuado la narrativa.

3. GALVÁN, Mariano. Calenda­

rio para las senoritas mexica· nas. México: Imprenta de Ma­riano Murguía, 1838.

La creatividad artística de la mujer: Como agua

para chocolate

Maria Elena de Valdes

Para Tânia Franco Carvalhal y

Maria Lúcia Rocha-Coutinlw

Como agua para chocolate es la primera novela de la escritora mexicana Laura EsquiveI (1950-). Publicada en 1989 en espafíol, para 1992, aI estre­narse la película deI mismo título, ya se había traducido a casi todas las lenguas europeas. 1 Como el guión cinematográfico también fue escrito por Esquivei, tanto la novela como el film ofrecen una excelente oportunidad para examinar el juego entre la representación visual y verbal de la mujer.

El estudio de las imagénes visuales y verbales debe comenzar con el entendimiento que tanto la novela y, en menor grado, la película trabajan como parodia de un género. El género es la versión mexicana de literatura de mujeres publicada en entregas mensuales, junto con recetas, remedios case­ros, patrones de costura, poemas, exhortaciones morales, ideas para decorar el hogar y el calendario de fies tas religiosas. En breve, este género en el siglo diecinueve es el precursor de lo que se conoce como las historias de amor de revistas de mujeres.2 Alrededor de 1850 estas publicaciones en México se conocían con el nombre de "Calendarios para sefioritas."3 Ya que la casa y la iglesia eran el espacio privado y público de toda seiíorita educada, estas publicaciones representaban la contraparte escrita para la socialización de la mujer y, como tales, son documentos que conservan y transmiten la cultura de la mujer mexicana en un contexto social y un espacio cultural particular para mujeres por mujeres.

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98 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

Fue alrededor de 1850 que la narrativa empezó a tomar una parte promi­nente; primero, con descripciones de excursiones para la familia, narraciones morales, o recetas de cocina. Para 1860 la novela en episodios seguía a la receta de cocina o a la excursión recomendada. Historias de amor de mayor elaboración empezaron a aparecer con regularidad hacia 1880. El género no era considerado como literatura por la crítica literaria debido a las tramas por episodios, el sentimentalismo y los personajes estereotipados. Para el princi­pio deI siglo toda mujer que leía, era o había sido lectora ávida deI género. La cultura literaria mexicana, dominada por hombres, no ha prestado atención a la realidad de que estas novelas estaban narradas con palabras propias de inferencias y referencias a la cocina y la vivienda, desconocidas de manera completa por los hombres.

Más alIá de las tramas sencilIas había una intrahistoria de la vida cotidia­na con las múltiples restricciones impuestas a la mujer de esta clase social. La caracterización seguía la forma de vida de estas mujeres y no su indivi­dualidad, con las resultas que las heroínas eran las sobrevivientes, las que habían tenido una vida lIena a pesar de la institución deI matrimonio que, en teoría si no en práctica, era una forma de esclavitud perpetua donde la mujer pasaba de servir a su padre y hermanos a servir a su marido e hijos, junto con sus hijas y las mujeres deI servicio. La narrativa de esta esfera de mujeres se concentraba en cómo transcender estas condiciones de vida y expresarse en relaciones amorosas y con creatividad.4

Las posibilidades creativas para la mujer mexicana eran a través de la cocina, la costura, las labores bordadas y, por supuesto, la conversación, contar historias y dar consejos.5 Había algunas mujeres para las que escribir era una extensión natural de la conversación; si se conocen los códigos sociales de estas mujeres se puede leer estas novelas como un modo de vida dei siglo diecinueve en México. EI reconocimiento que Laura Esquivei hace de ese mundo y su lenguaje es parte de la herencia de mujeres con coraje que crearon una cultura de y para la mujer dentro de la reclusión social dei matrimo ni 0. 6

Como agua para chocolate es una parodia de la literatura popular de mujeres dei siglo diecinue\'e. dei mismo modo que DOIl Quijote es una parodia dei género conocido como novela de caballerías. Ambas eran expre­siones de cultura popular y creaban un espacio único para una parte de la población. La definición de parodia que uso es la de la representación de una realidad modelo, que es en sí una representación particular de una realidad. La representación paródica expone las convenciones dei modelo y pone en evidencia sus mecanismos a través de la coexistencia de los dos códigos en el mismo mensaje.7 Por supuesto que para que la parodia funcione a su más alto nivel de representación doble, tanto la parodia como el modelo paródico deben estar presentes en la experiencia de lectura. Esquivei crea esa dualidad

4. La crítica feminista estadou­

nidense Elaine Showalter re­

conoció hace quince anos que

la situación cultural de la mu­

jer tiene que ser el punto de

partida para cualquier conside­

ración estética de su obra. Es­cribe que las mujeres han sido

consideradas como "camaleo­

nes sociológicos" que aceptan

la elase, estilo de vida y cultura

de sus familiares varones, pero

que se puede discutir que las

mismas mujeres constituyen

una subcultura dentro deI mar­

co de la sociedad y que han

estado unidas por valores, con­

venciones, experiencias y con­

ductas que afectan a cada indi­

viduo (V SHOWALTER, Elaine.

A Lilerature oI' Their Own.

Princeton: Princeton Univ.

Press, 1982, 3-36.

5. EI esfuerzo de la artista esta­

dounidense Judy Chicago de

concientizar a las mujeres so­

bre el trabajo estético que pro­

ducen en 8US propias casas ha

sido revolucionaria. La novela

de Laura EsquiveI está escrita

como un reconocimiento me­

xicano de esta forma artística

de mujeres. Judy Chicago es­

cribe: "Una cena donde las tra­

diciones de la familia son pa­

sadas de generación a genera­

ción como el mantel hecho por

la amada abuela y guardado

con cuidado. Una cena donde

las mujeres proveen un am­

biente de comodidad. un arre­

glo elegante. y una comida nu­

tritiva y estéticamente agrada­

ble. Una cena donde las

mujeres logran que los invita­

dos estén cómodos y facilitan

la comunicación entre todos.

Una cena, una obra tradicional

de mujeres, que requiere tanto

de generosidad como de sacri­

ficio personal" (V CHICAGO,

Judy. Emhmiderinl! Our Heri­

talle. Garden City, NJ: DOll­

bleday, 1980,8-21; mi trad.).

6. La novela y la película han

recibido numerosas resefias al-

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rededor dei mundo. Cada críti­co encuentra puntos de com· paración a la cultura local y, de modos diversos, expresafasci­

nación o desrnayo a lo que él o

ella lIama el realismo mágico

de la novela o la película. Cla­

ro que realismo mágico es una

categoría inventada por críti­

cos que no son de nuestra América Latina. Las di men­

siones de la realidad latinoa­

mericana son parte de la tradi­

ción oral y la ereación híbrida

de extrema heterogeneidad. La mejor reseiía latinoamerieana

que yo he leído es la de Car­

men Ramos Eseand6n (Receta y femeneidad en Como al:ua para chocolate. fem.15.102 (1991): 45-48.

7 BEN-PORAT, Ziva. Method in

Madness: Notes on the Strue­

ture of Parody, Based on MAD TV Satires. Politics Toda)' 1:245-72, 1979.

". SOUSTELLE, Jaeques. La vida cotidiana de los aztecas. Tr. Carlos Villegas. México: Fon­

do de Cultura Económiea,

1970.

La creatividad artistica de la mujer 99

de diversas maneras; primero, intitula su novela, Como agua para chocolate, que es no sólo en sí parte deI código lingüístico que quiere decir agua aI punto de hervir, y que se usa en México como símil para describir una ocurrencia o una relación que es tan tensa, caliente y extraordinaria que sólo se compara aI agua ardiendo que se necesita para la preparación de esa mexicanísima bebida que data deI siglo trece: chocolate.8 Segundo, el subtítulo, tomado directamente deI modelo: "Novela de entregas mensuales con recetas, amores y remedios caseros." EI título y el subtítulo cubren el modelo y la parodia. Tercero, la lectora se encuentra aI abrir el Iibro, no con un epígrafe de una autoridad culta sino que con un proverbio tradicional mexicano: "A la mesa y a la cama, una sola vez se llama." EI grabado que decora la página es la tradicional estufa de cocinar deI siglo diecinueve. La cuarta y más explícita técnica paródica es que EsquiveI reproduce el formato de su modelo a través deI texto. Cada capítulo lleva el mes, la receta deI mes y la lista de los ingredientes. La narración que sigue es una combinación de instrucciones directas de cómo preparar el plato deI mes, mezclada con una relación de los amores en los días de la tía abuela de la narradora.

La narración pasa de primera persona a la voz de tercera persona de la narradora omnisciente. Cada capítulo termina con la información que la historia continuará y un anuncio de cuál será la receta deI mes siguiente, es decir, el siguiente capítulo. Estos elementos que siguen aI modelo no son mera decoración. Las recetas y su preparación así como los remedios caseros y su aplicación son parte intrínseca de la historia. Por lo tanto, hay una relación simbiótica entre la novela y su modelo en la experiencia de lectura. Cada una se nutre de la otra.

En este ensayo me interesa profundizar sobre la forma de vida deI sujeto humano, específicamente cómo se desarrolla el sujeto femenino en y a través de la lengua y su significación visual en el contexto específico de lugar y tiempo. Las imágenes verbales de la novela utilizan un elaborado sistema significativo de la lengua como un mundo hecho, una vi vencia. La imagen visual que expande la narrativa aI principio deI film, pronto toma su propio lugar como un sistema significante, no lingüístico, nutriéndose de su propio repertorio de referencialidad, y establece un modelo diferente deI sujeto humano que aquel elucidado sólo por la imagen verbal. Mi intención es examinar el sistema significante novelístico y el modelo así establecido y luego seguir con el sistema significante cinemático y su modelo.

La voz narrativa o el sujeto hablante en la novela, se caracteriza a sí misma, como Emile Benveniste ha sefíalado, como la presencia viva que habla. La voz narrativa comienza en primera persona, hablando en el espafíol mexicano de conversación coloquial de una mujer deI norte de México, cerca de la frontera de los Estados Unidos. Como toda habla mexicana, está clara­mente marcada por un registro e indicadores socioculturales de la clase

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100 Revista Brasileira de Literatura Comparada, na 3

media. mezclando el uso coloquial con el espano!. El punto de entrada es

siempre el mismo, una mujer dirigiéndose a otras, diciéndoles cómo preparar el platillo que está recomendando. Mientras cocina, es natural que la cocinera

haga interesante la sesión contando una historia inspirada por la preparación

previa de esta receta. Sin esfuerzo pasa de instructora culinaria en primera

persona a narradora de historias, cambiando a tercera persona y, gradualmen­

te, se apropia deI tiempo y lugar y refigura un mundo social.

Surge una imagen verbal de la mujer perteneciente a la clase media rural:

debe ser fuerte y más inteligente que los hombres que se supone la protegen. Debe ser piadosa, esposa y madre. Tiene que tener sumo cuidado en sus relaciones sentimentales y, de gran importancia, debe de estar en control de todo en su casa, lo cual quiere decir, esencialmente, la cocina y el dormitorio, es decir, comida y sexo.

Hay cuatro mujeres en la familia: Elena, la madre, y sus tres hijas:

Rosaura, Gertrudis y Josefita, llamada Tita. La manera de vivir dentro de los

límites de este modelo está demostrada primero por la madre que se piensa la reencarnación deI modelo. La interpretación de Elena deI modelo es de control y dominio completo de toda su casa y de todos en su casa. Está representada a través de un filtro de asombro y temor, ya que la fuente

narrativa es el diario-recetario de cocina de Tita, que lo empezó a escribir en

1910 cuando tenía quince anos, y que ahora nos es transmitido por su sobrina nieta. Las imágenes visuales que caracterizan a Mamá Elena deben entender­se como las que tiene de ella su hija menor, Tita, quien desde pequena ha sido transformada en su sirvienta persona!.

Mamá Elena está presentada como una mujer autosuficiente. fuerte, con autoridad absoluta sobre sus hijas y sirvientes. especialmente Tita, quien

desde su nacimiento ha sido destinada a la soltería porque tiene que cuidar y dedicarse totalmente a su madre mientras ésta viva. Mamá Elena cree en guardar las regIas, sus regIas. Aunque sigue las normas de su sociedad e iglesia, secretamente ha tenido una relación adúltera con un mulato y su segunda hija, Gertrudis, es el fruto de esa relación. Esta transgresión de las normas de conducta permanece escondida de todos, aunque hay rumores,

pero Tita sólo descubre que Gertrudis es su media hermana después de la muerte de su madre. La tiranía impuesta sobre las tres hermanas es el modelo rígido, disenado sin clemencia por Mamá Elena y cada una de las tres hijas responde a su manera.

Rosaura, la mayor, nunca duda de la suma autoridad de su madre y la obedece a ciegas; después de su matrimonio con Pedro se convierte en una insignificante imitación de Mamá Elena. Le falta la fuerza y la determinación de Mamá Elena y trata de compensar esta falta invocando el modelo de su madre como la autoridad absoluta. Por lo tanto, trata de vivir su vida reme-

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9 EI trabajo previo de Laura

EsquiveI había sido como

guionista cinematográfica. Su guión para la película Chido

Guan, el Tacos de Oro (1985)

fue nominado para un Ariel en

México, premio que ganó

acho afios después por Como

uKua para chocolate.

La creatividad artistica de la mujer 101

dando a Mamá Elena, pero no logra más que una débil imitación ya que ella misma no tiene autoridad alguna,

Gertrudis, la segunda de las tres hijas, no reta a su madre pero responde a sus propias emociones y pasiones de una manera directa, no apropiada a su situación social. Esto la lleva a fugarse de su casa y de la autoridad de su madre. Después escapa deI prostíbulo donde había ido a dar y se une aI ejército revolucionario llegando aI grado de general, toma un subordinado como amante y después marido. Cuando regresa aI rancho de su familia va vestida como hombre y da órdenes como un hombre.

Tita.la más jo\"en de las tres. se queja de las regIas arbitrarias de su madre pero no puede escapar hasta que temporalmente pierde la razón. Tita puede sobrevivir ya que transfiere su amor. alegría. tristeza e ira a la preparación de la comida. Las emociones y pasiones de Tita son el ímpetu para su expresión y acción pero no a través de las normas acostumbradas de comunicación sino que a través de la comida que prepara. Por lo tanto, puede consumar su amor con Pedro a través de su arte culinario:

Tal parecía que en un extraiío fenómeno de alquimia su ser se había disuelto en la salsa

de rosas, en el cuerpo de las codornices. en el vino y en cada uno de los olores de la

comida. De esta manera penetraba en el cuerpo de Pedro, voluptuosa, aromática,

calurosa, completamente sensual (57).

Está claro que esto es mucho más que comunicación a través de comida, o un afrodisiaco, ésta es una especie de transubstanciación sexual por la cual la salsa de pétalos de rosa y las codornices se han convertido en el cuerpo de Tita.

Es así como la lectora, o ellector, lIega a conocer a estas mujeres como personas, pero sobre todo se involucra con el sujeto deI pasado que habla, representada por la sobrina nieta que transmite su historia y su arte culinario.

La lectora recibe comida verbal para la refiguración imaginativa de la respuesta de una mujer aI modelo que se le ha impuesto por un accidente de nacimiento. EI cuerpo de estas mujeres es el lugar habitado. Las cuestiones esenciales de salud, enfermedad, prefiez, parto y sexualidad están atadas directamente en esta novela a las necesidades físicas y emocionales deI cuerpo. EI preparar y comer es la representación simbólica deI vivir y ellibro de cocina de Tita da a su sobrina Esperanza, y a la hija de ésta, la creación de un espacio propio de mujer en un mundo hóstil.

La adaptación fílmica no sólo ha sido escrita por la autora de la novela, sino que en este caso el escribir este guión de la película representa un regreso de Laura EsquiveI aI género más practicado por ella antes de escribir la novela.9 Hay muchas indicaciones de factores cinematográficos en la novela sobre todo de numerosos cortes y fade-outs de la historia que dan prominen-

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102 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

cia a la preparaci6n de comida. Ellenguaje visual de la cámara es intruso y puede envolver a su sujeto en un lenguaje visual que es el de un voyeur, o

puede reemplazar la referencialidad verbal y envolver aI vidente por comple­to en una corporalidad concreta. Por ejemplo, la prirnera escena aI comenzar la película llena la pantalla con una cebolla que se está cortando y que sumerge ai vidente en la preparaci6n de comida de una manera que ninguna palabra hablada puede igualar por su efecto inmediato. De igual manera, las numerosas escenas enfocadas en preparar, servir y comer los alimentos, elevan el dominio de la presentaci6n de preparar comida y comerIa tanto a una de consumo y ritual social. Podemos hacer un contraste de estas imágenes y este énfasis en la alegría, sensualidad y hasta lujuria de comer la comida mexicana de la cocina de Tita con las escenas de los monjes comiendo en El

nombre de la rosa de AnnaudlO o con la carne cru da en el refectorio deI monasterio donde el énfasis reside en la negación deI cuerpo a través de

moritificaciones. Por otra parte, la película La fiesta de Babete de Gabriel Axelll contiene los dos polos opuestos entre gratificaci6n y mortificaci6n deI cuerpo. Las dos hijas deI pastor protestante substituyen a la vida con la práctica religiosa y comen para castigar aI cuerpo; de repente, están expuestas ai refinamiento de comida como arte, placer y gratificaci6n. En el film Como

agua para chocolate la preparaci6n de la comida está expresada visualmente y el consumo de la comida se ve en la cara de los que comen, pero hay que enfatizar que hay una gama completa de efectos aquí que van deI extasis a la nausea.

Quizás la diferencia más grande entre la novela y el filmo está en que hay en la película un intertexto que evoca el cuento de hadas de Cenicienta aI usar las apariciones fantasmales de la madre y aI hacer que su muerte sea el resultado deI as alto aI rancho por los revolucionarios. En la novela ella muere mucho después deI ataque y languidece en una casi Iocura, convencida de que Tita la está tratando de envenenar. AI recortar en el film la muerte de Mamá Elena a un episodio violento y hacer que su espectro regrese a amenazar a Tita hasta que Tita pueda renunciar su herencia, el film hace de Tita una especie de Cenicienta, víctima de abuso personal. En la novela la rigidez y frialdad de Mamá Elena es ante todo sociocultural y no especialmente dirigi­do a Tita como víctima.

El intertexto visual en lenguaje de cuento de hadas crea un subtexto efectivo en la pelicula subrayando la opresión de la protagonista y su trans­cendencia mágica. En vez de la madrina hada, Tita tiene la voz de Nacha, la cocinera de la familia que la ha criado desde su nacimiento entre los aromas y sonidos de la cocina. En lugar de la transformación deI vestido de gala y carroza para ir aI baile deI principe, Tita puede hacer el amor a través de la comida que prepara; sin embargo, también puede provocar tristeza y una aguda incomodidad. Tita logra que Pedro no tenga relaciones sexuales con

10. The Name of lhe Rose. Dir.

Jean-Jaeques Annaud. ltalia­

Alemania-Francia, 1986. 130

mino

11. Babená Feast. Dir. Ga­

briel Axel. Dinamarca, 1987.

102min.

Page 103: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

La creatividad artistica de la mUJe~ 103

Rosaura aI asegurarse que ésta esté gorda, tenga mal aliento y expida olores nauseabundos. La primera aparición fantasmal de Mamá Elena ocurre una hora después deI principio de la película y Mamá Elena tiene aquí la ventaja aI amenazar maldecir aI hijo que se supone Tita espera. La confrontación final entre Tita y el fantasma ocurre diez minutos después de la primera aparición. Tita vence aI fantasma aI revelar que sabe que Gertrudis es ilegítima y aI declararle a Mamá Elena que la odia por todo lo que no ha sido para el1a.

EI lenguaje visual deI film logra invocar imágenes de provocación, desprecio y abuso que no están en la novela. A media película hay cinco minutos en que vemos a Tita servir personalmente a Mamá Elena. Tita es la única que debe asistirla en su bafio y en su aseo personal. EI abuso despótico de Tita por Mamá Elena está claramente invocando la imagen de la madrastra

cruel. La intermediaria mágica no es la bel1a hada en traje de gala sino que es la viejecita arrugada, Nacha, que dió a Tita el amor que Mamá Elena le negó. La cara y voz de Nacha guian a Tita. Es Nacha la que le dice que use las rosas que Pedro \e regaló para preparar la salsa de pétalos de rosa para las codorni­ces. Y es Nacha quien prepara la a\coba para la consumación deI amor entre Tita y Pedro aI fin de la película.

Las fuerzas mágicas de Tita están todas relacionadas con la preparación de los alimentos, la excepción siendo la kilométrica cubierta de cama que el1a teje en sus largas noches de insomnia. La cocina de Tita controla el modo de vivir de los habitantes de su casa porque la comida que el1a prepara como una extensión de el1a misma se consume por todos. La culminación de este proceso de comida como arte y comunicación es comida como tomunión. La transubstanciación de las codornices en salsa de pétalos de rosa en el cuerpo de Tita es aI mismo tiempo parte de la doctrina de la iglesia católica romana en que la hostia de comunión se convierte en el cuerpo y sangre de Cristo pero, a un nivel más profundo, es la realidad psicológica de todas las mujeres que han alimentado a un bebé. Cuando el bebé Roberto pierde a su nodriza,

es Tita quien lo alimenta aunque no ha parido. Sus pechos se l1enan de leche no sólo porque el1a hubiera querido ser la madre de este bebé de Pedro, pero porque la criatura necesita comer y el1a es la proveedora de alimentos.

La vidente deI film desarrolla su capacidad expresiva aI mismo tiempo que aumenta su experiencia afectiva. Las mujeres mexicanas que ven la película y, hasta cierto punto, las mujeres latinoamericanas reviven una historia de familia. Esto pasa no sólo por los fuertes lazos culturales entre las mujeres de América Latina en este siglo, que tanto la novela como la película presentan, sino que también y quizás principalmente por el uso mesurado deI modelo paródico. EI intertexto de revistas de mujeres y los amores, pruebas y tribulaciones narradas en las historias que publicaban son utilizadas por Laura EsquiveI como un código discursivo que trasciende diferencias regio­nales. Los registros sociales, las formas de dirigirse a otros, ellenguaje de las

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104 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

mujeres, se pierde un poco en la traducción a otras lenguas, ya que como aI cocinar el substituir ingredientes cambia el sabor. La representación de las mujeres en esta novela y película toca esa reserva de significado que es el cuerpo humano descrito, visto y, en un nivel más profundo, comprendido como el origen de la identidad.

Las ideas de Giles Deleuze sobre ellenguaje de represión sexual aumen­tan considerablemente el peso de una segunda lectura de la relación entre Mamá Elena y Tita. La dominante imposición de la madre de una rotina y trabajo contínuo en la casa, tiene el resultado superficial de desexualizar la situación tan cargada que se crea cuando Pedro y Rosaura comienzan su vida de casados en el rancho con Mamá Elena y Tita. La obsesión de Pedro por el cuerpo de Tita y el sentimiento de Tita de ser una mujer castrada, crea la tensión sexual. La sexualidad nunca está reconocida, denotada o manifestada. Es sólo una alusión, una chispa de deseo aI pasar cerca el ser amado, pero en esta casa toma un lugar más importante que en otra casa donde estuviera reconocida. Lo más que se niega la sexualidad, lo más que la energía de desexualización tiene que aplicarse. Lo más que las actividades de Tita se visten con una febril sexualidad simbólica lo más que la lectora se fija con atención en todos los gestos, todas las indicaciones que sefialan la atracción sexual, deseo, pasión, obsesión y, finalmente, fuego. Por lo tanto, se puede proponer que Mamá Elena, muy a su pesar, es la incitadora de la sexualiza­ción de las acciones de Tita y lleva la atracción primordial de un joven hacia una jovencita a convertirse en obsesión. Por su parte, Tita trata de escapar de la condena de castración impuesta por su madre. Lucha por escaparse aI sublimar su deseo a través de su cocinar, de alimentar con su pecho a su sobrino Roberto y, cuando esto le es negado, a fugarse temporalmente a través de la locura. Puede salir de la maldición castrante después de la muerte de su madre y comprender la represión sexual de Mamá Elena de la cual ella fue la infeliz víctima.

La separación de la comida de la fisiología deI cuerpo humano tiene su paralelo cuando se niega la sexualidad cuyo resultado es negar que las funciones sexuales deI cuerpo también son naturales. Este rechazo deI cuerpo es el hilo que une a la novela. Desde su nacimiento Titaha sido predestinada por su madre a ser negada las funciones sexuales normales: no podrá hacer el amor, tener un hijo, alimentarlo, sentir afecto íntimo y, mucho menos, placer. Las razones de Mamá Elena son en parte conveniencia propia y en parte, se puede suponer, venganza por su propia frustración sexual. Desde su adoles­cencia hasta su muerte Tita se revela contra esta condena. Transmite la sensualidad de una joven enamorada a la comida que prepara, aI ambiente que crea alrededor de sí. La preparación de la comida está directamente ligada a su sexualidad negada. Cuando descubre que sus pechos se han llenado de leche, en contra de la fisiología deI cuerpo, no comprende cómo es que puede alimentar a la criatura, pero sí sabe que ha tenido uno de los más profundos

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12. Un reciente estudio de Gas­

tón Lill sobre la película ofre­

ce una interesante interpreta~

ción neomarxista. Aunque las

generalizaciones que hace so­

bre la muy particular configu­

ración de la estructura de las

elases sodales mexicanas. y

de las relaciones raciales, son

obvias factores demográficos,

Lillo ignora tres puntos bási­

cos acerca de la película que,

creo yo, por completo mitigan

su opinión negativa: 1) el

guión cinematográfico es una

adaptación de la novela y usa

técnicas narrativas cinemato­

gráficas para presentar una

historia de vida y no una épica

de la revolución mexicana; 2)

la novela es una parodia de la

literatura de mujeres deI sigla

diecinueve aI mismo tiempo

que da un ímpetu a la recupe­

ración de un espacio para la

mujer; y 3) el modo de vida en

la frontera entre México y los

Estados Unidos desde el perío­

do de 1850 hasta el tiempo de

la narrativa (1895-1934) era

uno de constante ir y venir en­

tre los dos lados de la frontera

por las miles de familias que

habían sido arbitrariamente se­

paradas por la frontera y por

muchos nuevos residentes de

ambos países. Es sólo en los

anos posteriores a la segunda

guerra mundial cuando la

frontera se ha convertido en

una barrera. (Ver LILLO, Gas­

tón. El recielaje deI melodra­

ma y sus repercusiones en la

estratificación de la cuJtura.

Archivo.l' de la filmoteca.

16:65-73,1994.

La ereatividad artistiea de la mujer 105

placeres, sólo sobrepasado por el acto sexual. Cuando prepara el banquete para el bautizo de su sobrino lo hace con tanto amor que la comida llena a todos los que la comen eon un sentido poderoso de alegría, La fragancia deI cuerpo de Tita no es sólo el rico olor deI jazmín sino que está mezclada con los aromas de la comida,

Por último, aI fin de la película, Tita se da cuenta que Pedro muere de la emoción deI orgasmo sexual que acaba de sentir y deI que ella no había participado por haberse frenado ante la poderosa sensación y siente remordi­miento. Entiende entonces que comiendo los fósforos que lohn Brown le había dado y pensando de cada momento sensual en que su cuerpo ha tocado el de Pedro. podrá reconstruir el orgasmo que había resistido. Uno por uno se come los fósforos y recuerda un beso, una caricia y, lentamente, el acto sexual da a su cuerpo sensaciones hasta que el orgasmo explota en ella. Esta mastur­bación que enlaza la memoria sensual con comer, culmina en una especie de climax amoroso.

Mujeres de otras culturas ~ otras lenguas pueden tener una relación de empatía con Tita, su cocina. su amor y su vida. Hombres de otras culturas, y sobre todo mexicanos y latinoamericanos en general, tendrán la mayor difi­cultad en sentir la experiencia de la película. y son los que más tienen que aprender. Tienen que ganar acceso aI código expresivo de las imágenes verbales y visuales que son los códigos intrahistóricos de sus madres, esposas e hijas. Si no pueden lograr acceso aI sistema expresivo no tendrán acceso a la experiencia afectiva de estas vidas. La imagen de alimentar el cuerpo, tanto en la novela como en la película, nos provee con los medi os de articular la experiencia de cocinar, comer, hacer el amor, dar nacimiento, etc. en modos antes insospechados y, por lo tanto, permite a los hombres vislumbrar la realidad de la mujer.

La recuperación feminista de creatividad artística dentro de los límites de la casa, y especialmente la cocina y el dormitorio, no está presentada por Laura Esquivei con un argumento ideológico, pero más bien como un palimp­sesto intertextual que es la marca dei arte postmodeno.1 2

Quiero concluir con tres observaciones deI arte feminista postmoderno: I) éste no es un movimiento de protesta sino que es una celebración deI espacio propio de la mujer que puede haber estado escondido en el pasado pero ahora está abierto a todas y todos; 2) aI centro deI postmodernismo está la constatación de creatividad en la lectora y lector y és to hace de la intertex­tualidad el medi o de proveer un contexto interpretativo, en el caso de Esqui­veI es la cocina y el dormitorio de nuestras abuelas; 3) la crítica feminista ha trascenpido la necesidad de ir de cacería entre los numerosos misóginos dei patriarcado, en nuestra etapa postfeminista el reto es celebrar la creatividad de la mujer en el dominio completo de la aventura humana, desde las llama­das artes decorativas a las bellas artes y la ciencia.

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1. MACHADO DE ASSIS. Confis­sões de uma viúva moça. In: Contos fluminenses. São Pau­lo: Mérito, 1959. p. 187.

2. BORGES, Jorge Luis. Um lec­tor. Elogio de la sombra. In:

Borges, Jorge Luis. Obras

completas. Buenos Aires: Emecé Editores, 1974. p.

1016.

3. JAUSS, Hans Robert. Litera­

tur;:eschichte ais ProvokaÚon. Frankfurt: Suhrkamp, 1970. ZILBERMAN, Regina. Estética

da Recepção e HistlÍria da Li­

teratura. São Paulo: Ática,

1989.

4. [SER, Wolfgang. Der Akt des

Lesens. Theorie ãsthetischer

Wirkung. München: Fink,

1976.

o leitor, de Machado de Assis a Jorge Luís Borges

Regina Zilberman

Estudo ou romance, isto é simple.'~ntl' um livro de verdades, um episódio singela­

mente contado, na confabulação ínmrw dos espíritos, na plena confiança de dois

coraçíies que se estimam e se merecem.

Machado de Assisl

Que otros se jacten de las páginas que hall escriro;

a mi me ellorgullecen las que he leído.

Jorge Luis Borges2

A ascensão da Estética da Recepção, ao final dos anos 60 e durante os anos 70, conferiu maior transparência teórica ao exame dos processos de leitura pressupostos pelos textos literários, Numa de suas vertentes, aquela liderada por Hans Robert Jauss, a Estética da Recepção encarou o problema da leitura desde o ponto de vista das repercussões que uma dada obra alcança ao longo do tempo, seja enquanto impacto sobre o público, seja enquanto ação sobre a criatividade de outros escritores, Com isso, propiciou a emergência de novas teses sobre a História da Literatura e a Literatura Comparada, pois deixou de ver a primeira como seqüência ininterrupta de fatos estéticos ordenados cronologicamente e a segunda como influência de uma tradição artística sobre outra) Noutra vertente, que tem Wolfgang Iser como seu principal porta-voz, a leitura constitui o modo de ser de uma obra literária, que só se realiza quando absorvida e decrifrada por seu destinatário; eis por que ela trata de prever seus modos de compreensão e interpretação, delineando o leitor implícito que tem em vista, papel transferido ao leitor real, a quem compete concretizá-lo na prática,4

De um modo ou de outro, a Estética da Recepção alterou a perspectiva com que se passou a encarar as relações entre narrador e leitor e forneceu novos elementos para se refletir sobre o caráter comunicativo da obra literá­ria, Mais importante é que ela relativizou compartimentações tradicionais, ao

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108 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

liberar as obras de suas determinações de época ou de lugar. Em outras

palavras, propôs que, ao invés de se pensar as criações literárias na sua relação com seu período ou espaço geográfico de produção, como faz a

História da Literatura ao associar as obras às regiões onde foram escritas ou ao momento quando foram publicadas, procure-se examiná-Ias enquanto

resposta a uma questão fundamental: como pressupuseram elas a comunica­

ção com seu interlocutor principal, o leitor? Aresposta a essa pergunta supera as condições de produção de um texto, pois todos supostamente querem dialogar com o público; e supera igualmente as delimitações de época e lugar, porque outra ambição da obra literária é permanecer válida. quer dizer, legível, para além de seu tempo e do espaço geográfico em que foi concebida e realizada.

Machado de Assis e Jorge Luís Borges foram dois escritores que se depararam com essa questão e tematizaram-na em seus textos. Concebem

uma imagem do leitor, mas também introduzem-na na tessitura do texto. Ao fazê-lo, revelam que estavam interessados em manter vivo e aceso o diálogo com o leitor, o que aponta para o caráter social de suas obras. Com isso, desfazem a crítica de que muitas vezes foram alvo, acusados de se afastarem de questões políticas marcantes no tempo em que viveram ou até de assumi­rem posições conservadoras. Ao fertilizarem seus textos com uma proposta criativa e multifacetada de comunicação com o leitor, propõem outro modelo de participação social. Simultaneamente, resolvem um problema candente da cultura latino-americana, que, por decorrer do processo de colonização euro­péia e tender a reproduzi-Ia, pesquisa de modo obsessivo sua originalidade, Eles revelam que o encontro da autenticidade da literatura não consiste na representação da nacionalidade ou das peculiaridades locais, contrapostas às que migraram do Velho para o Novo Continente. Consiste, isto sim, na proposta de um confronto com o leitor. agudizando suas percepções e fazen­do-o entender a literatura, por extensão. o mundo que o circunda, indepen­dentemente do representado no texto ser conhecido ou ter componentes realistas. Eis por que se analisam duas criações desses escritores. o poema "Pálida Elvira", de Machado de Assis, e o conto "Tema dei traidor y dei héroe", de Jorge Luís Borges, que têm em comum não apenas a tematização da relação entre o leitor e a obra ou o leitor e a vida. mas também o fato de que rejeitam os princípios da mimese nativista. Lidando com figuras fictícias de tempos e espaços distantes, estão próximos porque seu objeto somos nós mesmos, seus leitores reais.

O poema "Pálida Elvira", publicado em 1870, no livro Falenas, consti­tui-se de 97 estrofes, cada uma contendo oito versos decassílabos, num total de 776 linhas. 5 Nele, um escritor, misto de poeta e pesquisador de manuscri­tos antigos, apresenta a história de Elvira, moça que, com o tio, o velho Antero (p. 184), habita numa casa, junto à encosta de um outeiro (p. 181), à beira de

5 MACHADO DE ASSIS. Pálida

Elvira. Falenas. In: Machado

de Assis. Poesias. São Paulo:

Mérito. 1959. p. 180-212. To­

das as citações provêm dessa edição; indicaremos apenas as

páginas onde se encontram. O

poema foi publicado original­

mente em 1869. no Jornal das

F amflias, revista patrocinada

pela editora Garnier; no ano de

1870, Machado de Assis in­

cluiu-o no volume de poesias

que denominou Falenas.

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o leitor, de Machado de Assis a Jorge Luís Borges 109

um lago. O poema é narrativo e, ao longo dos seus versos, conta o romance da moça e de Heitor, poeta que aparece em casa de Antero, promete casar com a sobrinha, seduz a jovem e foge. Depois de muito vagar pelo mundo, Heitor retoma, para descobrir que Elvira morrera, mas lhe deixara um filho. Descon­solado, o rapaz se atira às águas do lago e morre. A última estrofe, logo após referir o suicídio de Heitor, é interrompida, porque o manuscrito, fonte de informações do narrador, termina abruptamente. Diz a estrofe:

Pouco tempo depois ouviu-se um grito,

Som de um corpo nas águas resvalado;

À flor das mgas veio um corpo aflito.

Depois ... o sol tranqüilo e o mar calado.

Depois ... Aqui termina o manuscrito,

Que ora em letra de fôrma é publicado,

Nestas estrofes pálidas e mansas.

Para te divertir de outras lembranças. (p. 212)

Esta estrofe, a de número CVII, encerra um diálogo encetado no primeiro verso do poema. Aqui, o narrador se dirige à leitora amiga (p. 180), em que supõe de imediato uma série de sentimentos e sensações, pois situa a abertura no texto no horário crepuscular, quando ( ... ) no ocidente / surge a tarde esmaia­da e pensativa e vem apontando a noite, e a casta diva / [sobe] lentamente pe lo espaço.(p. 180) Que o cenário se apresente nesses termos é importante, porque determina as condições para a leitora entender a interioridade de Elvira, prota­gonista da narrativa a seguir. Porque essa é uma hora de amor e de tristeza, a leitora pode voar às lúcidas esferas, e então entender Elvira

Que assentada à janela, erguendo o rosto,

O V()o solta ti alma que delira

E mergulha IlO azul de um céu de agosto;

Entenderás então porque suspira,

Vítima já de um íntimo desgosto,

A meiga virgem, pálida e calada,

Sonhadora, ansiosa e namorada. (p. 181)

Assim, a última frase do poema encerra o diálogo começado na primeira; mas, ao mesmo tempo, dá-lhe outro sentido. O narrador invoca de início uma leitora amiga que, diante da natureza sugestiva, divaga e se alça a vôos poéticos, as lúcidas esferas citadas na segunda estrofe, razão pela qual pode

compreender Elvira e se comunicar com a personagem, estabelecendo uma ponte com ela, condição primeira para o acompanhamento e leitura da histó­ria subseqüente, apresentada pelo narrador amistoso. Este, porém, ao final, apresenta outra faceta de sua amizade: ele deseja distrair o leitor, afastando-o de outras lembranças. Confessa ter composto um texto ilusionista, que, se faz

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110 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

voar, como fazem a leitora e Elvira, também retira-as do contato com a realidade imediata, talvez menos desejável, porém mais dura.

Eis a contradição aparente do poema de Machado de Assis, nascida da proposta do texto, qual seja, o diálogo entre o narrador e o leitor. Este tipo de interlocução não é exclusivo desta obra, estando presente em outros escritos de Machado de Assis, autor que amplia as possibilidades de representação de situações de leitura numa obra literária.

Uma dessas possibilidades diz respeito à apresentação de cenas de leitu­ra, como ocorre em vários dos Contos fluminenses,61ivro coetâneo de "Pálida Elvira". Nesse, ou nas novelas publicadas no período e não aproveitadas naquela coletânea, as personagens, se não são leitoras exemplares, têm suas preferências demarcadas, Paulo e Virgínia sendo a mais constante e mais característica, como se verifica no trecho abaixo, extraída de um dos textos mais antigos de Machado de Assis, o conto "Questão de vaidade", de 1864:

Na sala. sobre a mesa. estava um livro aberto. Eduardo procurou ler o que era;

levantou-se e foi saciar a curiosidade. Era Paulo e Virgínia Um lenço marcado com

a.firma de Sara. atirado sobre aspllhas abertas. para marcar a página. indicava quem

estivera lendo a obra-prima de Saint-Pierre.7

Outra técnica de Machado de Assis leva-o a seguidamente invocar o leitor de seu próprio texto, estabelecendo com ele afinidade e parceria, segundo um companheirismo que coloca a ambos, narrador e leitor, acima da média das personagens e, por conseqüência, acima da situação concreta representada no texto, que, pelo seu realismo, está muito próxima da expe­riência existencial do público do escritor. Essa familiaridade pode ser verifi­cada no mesmo "Questão de vaidade", em que o narrador imagina uma cena em que ambos, ele e o leitor, este um indivíduo perspicaz e apto para sofrer uma narrativa de princípio afim, compartilham um ambiente comum, íntimo e qualificado para a apresentação de histórias, ficcionais ou verídicas:

Suponha o leitor que somos conhecidos velhos. Estamos ambos entre as quatro

paredes de uma sala; o leitor assentado em uma cadeira com as pernas sobre a mesa.

à moda americana. eu a.fio comprido em uma rede do Pará que se balouça voluptuo­

samente. à moda brasileira. ambos enchendo o ar de leves e capriclwsasfumaças. à

moda de toda gente.

Imagine mais que é Iloite. A janela aberta deixa entrar as brisas aromáticas do

jardim. por entre cujos arbustos se descobre a lua surgindo em um límpido horizonte.

Sobre a mesa ferve em aparelho próprio uma pouca de água parafazer uma tintura

de chá. Não sei se o leitor adora como eu a deliciosa .fiJlha da Índia. Se não. pode

mandar vir café e fazer com a mesma água a bebida de sua predileção.

Ora. como é noite, e como não hajam cuidados para nós, temos ambos percorrido toda

a planície do passado, apanhando afolha do arbusto que secou ou a ruína do edifício que abateu.

6. Contos fluminenses reúne

contos que Machado de Assis

publicou no Jornal das Famí­

lias, da Garnier, entre 1865 e

1869. O livro foi lançado em

1870.

7 Machado de Assis. Questão

de vaidade. In: Machado de

Assis. Histrírias românticas.

São Paulo: Mérito, 1959. p.

30-31.

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o leitor, de Machado de Assis a Jorge Luís Borges 111

Do passaiÜJ vamos ao presente, e as nossas mais íntimas confidências se trocam

com aquela abundância de coração própria dos m()Ços, dos namorados e dos poetas.

Finalmente, nem o futum nos escapa. Com o mágico pincel da imaginação traçamos

e colorimos os quadros mais grandiosos, aos quais damos as cores de nossas esperan­

ças e da nossa confiança.

Suponha o leitor que temos feito tudo isto e que nos apercebemos de que, ao terminar

a nossa viagem pelo tempo. é já meia-noite. Seriam horas de dormir se tivéssemos

sono. mas cada qual de nús. a\'ivado o espírito pela conversação, mais e mais deseja

estar acordado.

Então o leitor. que é perspica: e apto para sofrer uma narrativa de princípio a .fim.

descobre que eu também me entrego {UJ5 contos e novelas. e pede que IheflJrje alguma

coisa do gênero.

E eu para ir mais ao encontro iÜJS desejos do leitor imaginoso. não lhe forjo nada.

alinhavo alguns episódios de unia histôria que sei. história verdadeira. cheia de

interesse e de vida. E para melhor convencer o meu leitor vou tirar de uma gaveta

algumas cartas em papel amarelado. e antes ck começar a narrativa. leio-as. para

orientá-lo no que vou lhe contar.

O leitor arranja as suas pernas. muda de charuto. e tira da algibeira um lenço para o

caso de ser preciso derramar algumas lágrimas. E. feito isto. ouve as minhas cartas e

a minha narrativa.

Suponha o leitor tudo isto e tome as páginas que mi ler como uma conversa à noite.

sem pretensão nem desejo de publicidade. (p. 7-9)

"Pálida Elvira" e "Questão de vaidade" partem da mesma situação ini­cial: narrador e leitor estabelecem uma relação amistosa e igualitária, condi­ção para a audição da história. Além disso, o leitor está posicionado num ambiente apropriado ao entendimento da narrativa, o que, somado ao privilé­gio de se equiparar ao narrador, confere-lhe superioridade.

"Questão de vaidade", contudo, não se encerra pela ruptura indicada a propósito de "Pálida Elvira". Depois de encerrar a história, diz o narrador à guisa de conclusão:

CONCLUSÃO

Depois de contar e.vta história. o leitor e eu tomamos a nossa última gota de chá ou

café. e deitamos ao ar a nossa última fumaça do charuto.

Vem rompendo a aurora e esta vista desfaz as idéia.v. porventura melancólica.v. que

a minha narrativa tenhafeifo nascer. (p. 89-90) .

Eis aí a primeira razão para a ruptura: enquanto que o narrador de "Questão de vaidade" faz o relato para um ouvinte masculino, o de "Pálida Elvira" escreve para uma leitora amiga. Além disso, ele vai aos poucos desfazendo essa amizade por estabelecer mediações que o distanciam da destinatária do texto. A primeira dessas mediações foi referida: decorre da divisão de papéis sexuais, sendo que leitores homens e leitoras mulheres comportam-se de modo diferente, e a leitura conforme o modelo feminino não aparece como aconselhável.

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112 Revista Brasileira de Literatura Comparada, nD 3

A leitora feminina, a quem se dirige o narrador. é aquela capaz de entender Elvira. Mas, ao contrário do leitor perspicaz e apto de "Questão de vaidade", que, junto com o narrador, analisa personagens e situações relata­das,8 a leitora de "Pálida Elvira" só pode entender a protagonista por se identificar a ela, por ter vivido situações semelhantes, portanto, por experi­mentar o assunto pelo lado emocional. Essa concepção de leitura é tão forte no texto, que se reproduz na sua interioridade: também Elvira é leitora, e leitora de Lamartine, o mesmo que amou uma Elvira e escreveu o poema "Le Lac", inspirador dos sentimentos manifestados pela personagem do poema de Machado de Assis:

Sobre uma mesa havia um livro aberto;

Lamartine, o cantor aéreo e vago,

Que enche de amor um coração deserto;

Tinha-o lido; era a página do Lago. Amava-o; tinha-o sempre ali bem perto,

Era-lhe o anjo bom, o deus, o orago;

Chorava aos cantos da divina lira ...

É que o grande poeta amava Elvira! (p. 182)

A trajetória posterior de Elvira é determinada por essa circunstância: admiradora de Lamartine, apaixona-se por um poeta, o jovem Heitor que aparece em sua casa e conquista seu coração. A situação é prevista antes de que o rapaz apareça, pois a atitude da moça perante o amor é determinada pela sua leitura predileta:

Elvira! o mesmo nome' a moça os lia.

Com lágrimas de amor, os versos santos.

Aquela ete'f"l e lânguida harmonia

Formada com suspiros e com prantos;

Quanto escutava a musa da elegia

Cantar de Elvira os mágicos encantos,

Entrava-lhe a voar a alma inquieta,

E com o amor sonhava de um poeta.

Ai, o amor de um poeta! anUir subido!

Indelével, puríssimo, exaltado,

Amor eternamente convencido,

Que vai além de um túmulo fechado, E que através dos séculos ouvido,

O nome leva do objeto amado,

Quefaz de Laura um culto, e tem por sorte

Negrafoice quebrar nas mãos da morte. (p. 183)

A identificação é a atitude que pauta a leitura de Elvira, criando-lhe expectativas para o futuro e fazendo-a entender o mundo e as pessoas a partir

8. No conto Questão de vaida­

de, são comuns expressões do

narrador dirigidas ao leitor,

como a que se encontra na p. 37: Perguntará o lei/or como é

que um homem de tão bom

senso como Pedm Elói pare­

cia tão amigo de Eduardo.

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o leitor, de Machado de Assis a Jorge Luís Borges 113

dos livros consumidos. Não é outra, porém, a atitude da leitora de Machado: também ela, conforme previa a abertuda do poema, continua compreendendo o desenrolar da história de Elvira desde suas experiências pessoais, facultan­do a aproximação entre as duas criaturas, a protagonista e a leitora, com a conseqüente identificação. Sem esse tipo de afinidade, não há meios de se decifrarem os acontecimentos presenciados no texto, só assim pode-se saber por que, visto pela primeira vez o poeta Heitor, a jovem por ele se apaixone perdidamente:

E trava-lhe da mão, e brandamente

Leva-o junto d'Elvira. A moça estava

Encostada à janela, e a esquiva mente

Pela extensão dos ares lhe vagava.

Voltou-se distraída, e de repente,

Mal nos olhos de Heitor o olharfitava,

Sentiu ... Inútilfllra relatá-lo;

Julgue-o quem não puder exp 'rimentá-lo.

Entra a leitora numa sala cheia;

Vai isenta, vai livre de cuidado:

Na cabeça gentil nenhuma idéia,

Nenhum amor no coração fechado.

Livre como a andorinha que volteia

E corre loucamente o ar azulado,

Venham dois olhos, dois. que a alma buscava.

Eras senhora? ficarás escrava' (p. 189-190)

Tanto a leitora de Machado, interlocutora do poema "Pálida Elvira", quanto a leitora de Lamartine, a Elvira do poema, não estabelecem o devido distanciamento entre o lido e o vivido. O leitor masculino age de modo diferente, e a definição dessa segunda atitude de leitura corresponde a outra das mediações entre o narrador e a leitora amiga, determinantes da ruptura verificada ao final do texto.

Igualmente o leitor masculino atua nos dois planos construídos pelo poema, um deles sendo o do diálogo entre o narrador e seu destinatário, o outro sendo o das personagens, elas igualmente leitoras. Portanto, "Pálida Elvira" pressupõe também ser lido por representantes do sexo masculino; estes, todavia, não são genéricos, como a leitora amiga, mas primeiramente profissionais da leitura, vale dizer, críticos literários. Eis por que quando o

narrador se dirige ao leitor homem refere-se à sua atividade, como no trecho

a segUIr:

Não me censure o crítico exigente

O ser pálida a moça; é meu costume

Obedecer à lei de toda a gente

Que uma obra compije de algum volume. (p. 182)

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114 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

ou ao fato de dominar as regras de poética, circunstância própria ao leitor mais qualificado como é o leitor profissional:.

( ... ) Perdão, leitores.

Eu bem sei que é preceito dominante

Não misturar comidas com amores; Ip. 1851

o mesmo se passa no âmbito da história narrada: Antero, o tio de Elvira,

em casa de quem vive a moça e onde chega o jovem Heitor. é

Erudito etilôsofo pn!fundo,

Que sabia de cor o vel/w Homero,

E compunha os anais do Novo Mundo;

Que escrevera uma vida de Severo,

Obra de grande tomo e de alto fundo;

Que resumia em si a Grécia e Lácio,

E num salão falava como Horácio; (p. 184)

É O mesmo Antero quem diz a Heitor que um bom poeta é hoje quase um mito (p. 189), frase que o coloca no mesmo paradigma do leitor-homem

sisudo, que rejeita obras como a que o narrador lhe oferece agora:

( ... ) Neste lance

Se o meu leitor é já homem sisudo,

Fecha trallqüilamente o meu romance,

Que niio sen'e a recreio nem li estudo; (p. 183)

Homens sisudos, críticos exigentes. eruditos não são leitores de "Pálida Elvira". Aproximam-se do texto por exigência da profissão ou do gosto. mas se afastam dele porque a obra não corresponde às suas expectativas. Não serve para o estudo, é demasiadamente fiel ao cânone do gênero. falta-lhe a densidade dos clássicos - preocupações, todas essas. da leitura mas.::ulina. Aqueles não são parceiros para um texto dessa natureza. par.::eria a ser transferida para a mulher, mas, ao fim e ao cabo, indesejada pelo narrador. A presença da ironia é a última das mediações empregadas. a que deixa a leitora amiga fora do campo das pretensões do narrador.

Que a ironia recorta o texto sugerem-no as citações anteriores, onde se verificam o uso exagerado da linguagem empolada do Ultra Romantismo, o excesso de exclamações e a presença de personagens estereotipadas, como a virgem pálida, o sedutor leviano e depois arrependido e o tio severo, porém acolhedor. Porém, ela se aplica com mais intensidade, sobretudo quando o narrador desconstrói as regras de composição de narrativas sentimentais. Procedimentos diferentes possibilitam a realização dessa tarefa, como o fato de o narrador conferir chão materialista à história e às personagens:

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o leitor, de Machado de Assis a Jorge Luís Borges 115

(. .. ) Eu não vi, nem sei se algum amante

Vive de orvalho ou pétalas deflores;

Namorados estômagos consomeml

Comem Romeus, e Julietas comem. (p. 185)

Ou a confissão de que apenas segue a nonna da poética do gênero escolhido para desmascará-la, confonne acontece na cena em que, logo após ter aureolado o poeta Heitor, comenta:

Demais, era poeta. Era-o. Trazia

Naquele olhar não sei que luz estranha

Que indicava um aluno da poesia.

Um morador da clássica montanha,

Um cidadão da terra da harmonia,

(. .. ). Um poeta! e de noite! e de capote!

Que é isso, amigo autor? Leitor amigo,

Imagina que estás num camarote

Vendo passar em cena um drama antigo.

Sem lança não conheço D. Quixote

Sem espada é apócrifiJ um Rodrigo;

Herói que às regras clássicas escapa,

Pode não ser herói, mas traz a capa. (p. J 88)

Ou ainda a observação de que precisa controlar seu discurso para não perder a atenção do leitor, sinal evidente de que tem pleno domínio sobre a matéria ficcional:

Resumamos, leitora, a narrativa.

Tanta estrofe a cantar etéreas chamas

Pede compensaçüo, musa insensiva,

Quefatigais sem pena o ouvido às damas.

Demais, é regra certa e positiva

Que muitas vezes as maiores famas

Perde-as uma ambição de tagarela;

Musa, aprende a lição; musa, cautela! (p. 198)

Todos estes são sintomas de que o escritor conhece as regras do fazer literário e pode desarticulá-las, sem perder de vista os objetivos de sua escrita, Ao mesmo tempo, indicam que, embora ele represente, dentro e fora do relato, leitores possíveis, não espera que seu leitor implícito se identifique

com esses modelos,

Com efeito, nem a leitora amiga, nem o homem sisudo parecem se situar no horizonte das expectativas de leitura de "Pálida Elvira", Da primeira o narrador se despede antes de a história terminar, porque, quando isto aconte­ce, ele já tem outro sujeito leitor em mente; do segundo o narrador espera o

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abandono, pois, como o romance (. .. ) não serve a recreio nem a estudo, o

"homem sisudo" condena tudo; / Abre um volume sério, farto e enorme, / Algumasfolhas lê, boceja ... e dorme. (p. 183) "Pálida Elvira" não se dirige nem a um, nem a outra, e sim àquele que, conhecendo as regras do gênero

ultra-romântico sentimental e de aventuras, não mais acredita nelas, podendo

então se distanciar o suficiente para se divertir com os efeitos obtidos por

quem as critica e desconstrói. O poema foi efetivamente escrito para divertir de outras lembranças, como proclama o último verso. isto é. para afastar do conhecido e abrir caminho para novas experiências.

Com isso, Machado contradiz igualmente a norma de leitura que está na

base do comportamento da leitora amiga e de Elvira: a leitura não está aí para

facultar a identificação e, assim, impedir o distanciamento que diverte e

conscientiza. Leituras daquela espécie são virtualmente condenáveis, e não é

para leitores desse tipo que Machado deseja escrever. Mas, como também não

pode evitar os leitores disponíveis, sintetizados na leitora amiga, no homem

sisudo e no crítico exigente, mostra que quem o lê - seja que for - não segue

esse caminho, estando, pelo contrário, na direção certa desejada pelo escritor. A identificação é substituída pela pedagogia, e o leitor converte-se no bom

aluno que vai acompanhar as pegadas designadas pelo mestre de leitura.

Outra é a proposta apresentada por Jorge Luís Borges em "Tema dei traidor y dei héroe", conto, pertencente à coleção de Ficciones, publicada em

1944, em que se discute, por outro percurso, o lugar da leitura na vida das sociedade. O narrador se apresenta em primeira pessoa no parágrafo inicial

do relato, para indicar que está imaginando escrever um texto com o argu­

mento que resume a seguir. Conforme o plano ainda em esboço, um outro narrador, Ryan, bisneto do conspirador, mas heróico, Fergus Kilpatrick, quer escrever a biografia do bisavô. Aexecução do plano depende do deciframento do enigma relativo ao assassinato de Kilpatrick, eliminado en la víspera de la rebelión victoriosa que había premeditado y sofíado.9

Ryan se detém nos eventos que precederam o assassinato de Kilpatrick,

ocorrido num teatro, como os anúncios para não estar presente naquele local, os indícios de que seria traído, os presságios inexplicáveis racionalmente. O narrador crê encontrar aqui um paralelismo entre a história do bisavô e a de César, sendo induzido a supor una secreta forma dei tiempo, um dibujo de

líneas que se repiten (p. 497). À teoria de que a história se repete a si mesma acrescenta outra: a história copia a literatura, pois outros eventos ocorridos na noite do crime reproduzem cenas de tragédias de William Shakespeare. Ryan conclui: Que la historia hubiera copiado a la historia ya era suficien­temente pasmoso; que la historia copie a la literatura es inconcebible ... (p.

497).

A investigação, contudo, não encerra nesse ponto: Ryan se volta à bio­grafia de James Alexander Nolan, el más antiguo de los compafíeros del

'. BORGES, Jorge Luis. Tema

deI traidor y deI héroe. Ficcio­

nes. In. Borges, Jorge Luis.

Obra.l· completa,. Buenos Ai­

res: Emecé Editores, 1974. p.

496-498. Todas as citações

provêm dessa edição; indica­remos apenas as páginas onde

se encontram.

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o leitor, de Machado de Assis a Jorge Luís Borges 11 7

héroe (p. 497), e descobre que ele fora intérprete de Shakespeare e tradutor de Júlio César para o gaélico. Por ocasião da morte de Kilpatrick, havia sido incumbido de descobrir e revelar o traidor que se escondia entre os rebeldes irlandeses. Nolan denuncia o próprio Kilpatrick com provas irrefutáveis, e Kilpatrick não nega que tenha traído seus companheiros; pede apenas que seu castigo não prejudique a pátria. A solução surge de uma idéia de Nolan, que concebe o assassinato de Kilpatrick num teatro, para que o traidor, até aí figura idolatrada pelos irlandeses, morresse como um herói e não prejudicas­se a rebelião. Para executar a idéia. Nolan precisa de um roteiro, encontrado no enemigo inglés William Shakespeare (p. 498):

Repetió escenas de Macbeth, de Julio César. La pública y secreta representación

comprendiá varios días. El condenado emrá en Dublill. discutiri, obrá, rezá, reprobá,

pronunciá palabras patéticas y cada UIIO de esos actos que refZejaría la gloria, habia

sido prefijado por Nolan. Centenares de actores colaboramn con el protagonista; el

rol de algunosfue completo; el de otros. momentâneo. Las cosas que dijeran e hicieran

perduran en los libros históricos, en la memoria apasionada de Irlanda. Kilpatrick,

arrebatado por ése minucioso destino que lo redilll{a ." que lo perdia, lilás de una vez

enriquecúi con aclOS y palabras improvisadas el texto de su juez. As{fue desplegán­

dose en el tiempo el populoso drama, haSIll que el 6 de agosto de 1824, en un palco de

.funerarias cortinas que prefiguraba el de Lillcolll. 1111 balaZl! anhelado entrá en el

pecho dei traidor y dei héroe, que apenas pudo articular. entre dos efusiones de brusca

sangre, algunas palabras previstas. (p. 498)

As investigações de Ryan não o levam apenas a descobrir que a morte de Kilpatrick consistia numa soma de punição e consagração, fornecendo à revolução emergente as personagens imprescindíveis ao sucesso: o herói vitimado e o criminoso não identificado, fator fundamental para incendiar a revolta contra o povo opressor, o inglês. Aprofundando a pesquisa, verifica

que um lugar fora deixado para ser preenchido no futuro, o do próprio

investigador que se deparasse com a verdade:

Ryall sospeclw que el autor los intercalá para que una prsona, en el porvenir, diera

con la \·erdad. Compreellde que él tambiénfárma parte de la trama de Nolafl ... (p. 498)

Talvez por essa razão resolva contrariar o roteiro e silenciar el descubri­

miento, publicando un livro dedicado a la gloria dei héroe (p. 498); mas o narrador conclui, encerrando o relato: también eso, tal vez, estaba previsto.

(p.498).

À semelhança do poema de Machado de Assis, o conto de Borges cons­

trói-se sobre dois planos. Em "Pálida Elvira", os dois planos dividiam-se

entre os leitores, o da leitora amiga, com quem dialogava o narrador, e o de Elvira, admiradora de Lamartine. No "Tema dei traidor y dei héroe", os planos repartem-se entre dois narradores; um emprega a primeira pessoa e

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confessa estar projetando um argumento que ya de algún modo me justifica,

en las tardes inútiles (p. 496); o segundo é 'Ryan, mais comprometido que o outro, porque ambiciona redigir a biografia do heróico bisavô e resolver os

enigmas que cercam seu assassinato. O primeiro narrador deixa claro que seu

argumento lida com dados fictícios, tanto que, no início do segundo parágra­

fo, ainda não decidiu onde e quando situará a ação; escolhe a Irlanda e a data

de 1824 para comodidad narrativa (p. 496). Ryan. por seu turno, está con­vencido de que lida com um fato histórico, verídico, empanado por um

enigma cujo deciframento lhe cabe, deixando-o ainda mais nítido para seus

leitores, patriotas como ele e admiradores da sorte de seu país.

A descontinuidade entre os dois narradores repete um processo de "Páli­

da Elvira", não ao nível da leitura, mas ao nível da narração: ambos os narradores anônimos, o do poema de Machado e o do conto de Borges, tal

como se apresenta no parágrafo inicial, desacreditam o fato relatado a seguir,

gerando a intranqüilidade do leitor, que, por isso, se distancia do narrado. O

segundo narrador do conto de Borges, o bem intencionado Ryan, se propõe,

contudo, a interpretar a história, reexaminando o passado de seu país desde o

ponto de vista dos heróis. A revelação surpreende-o duas vezes: descobre que o roteiro veio da literatura, mais especificamente de Shakespeare, compro­vando até a veracidade da famosa frase do dramaturgo inglês, extraída do

mesmo Macbeth que serviu de inspiração a Nolan: Life 's but a walking

shadow, a poor player / That struts and frets his hour upon the stage / And

then is heard no more: its a tale / Told by an idiot, full of sound and fury, /

Signifying nothing. IO E descobre que mesmo o papel, que desempenharia mais de cem anos depois, estava previsto. tanto ao tentar recusá-lo enquanto pesquisador da verdade, quanto ao render-se à sua execução. ajudando a propagar o mito.

O conto lida com um tema caro às histórias nacionais para desmascará­lo. Como Machado, Borges está desconstruindo um enredo conhecido, arma­

do pelo Romantismo. Em "Pálida Elvira", trata-se de desmontar clichês sentimentais; no conto de Borges derruba-se o mito do herói, sobretudo àqueles que servem às causas libertárias e patrióticas. O escritor argentino vai

até mais longe, pois não é difícil constatar no trecho citado acima, relativo ao

projeto de Nolan, o pano de fundo oferecido pelo mito de Jesus de Nazaré, que, como Kilpatrick, entra na cidade sagrada, Jerusalém, para ser aclamado e, depois, sacrificado, procedimento que colaborou sobremaneira à deifica­ção do herói do Cristianismo. II

O processo como os escritores procedem à desconstrução é igualmente significativo: Machado e Borges revelam como se forjam os mitos, indicando que sua fonte é a literatura. Seja ao seguir regras da poética dos gêneros sentimentais, seja ao buscar na tragédia um modelo de comportamento a

10 SHAKESPEARE. William.

Macheth. In: Shakespeare,

William. Tral!edies. Londres:

Dent Everyman's Library,

1964. p. 477.

li, Se quiséssemos, podería­

mos ir ainda mais longe: a

cena que Borges põe nas mãos

de Nolan contém traços holy­

woodianos, conforme o cine­

ma narrou a história de Jesus,

ao se referir a cenfenares de

aclores que coluhoramn OJn el protagonista (p. 498).

Quando o naITador indica que os livros históricos repetiram

las cosas que dUeron e hicie­ron, a referência se estende aos

Evangelhos, supostamente re­

produtores fiéis e confiáveis,

mas igualmente endeusadores,

das palavras de Cristo.

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o leitor, de Machado de Assis a Jorge Luís Borges 119

seguir, de um modo ou de outro é da ficção que provêm as referências necessárias à organização da sociedade.

Em "Pálida Elvira", a identificação determinava o comportamento das duas leitoras indicadas no texto: tanto a leitora amiga como a protagonista retiravam das leituras exemplos de atitudes e visão de mundo, através dos quais pautavam suas relações com a sociedade. Em "Tema deI traidor y deI héroe", é a sociedade como um todo que regula seu comportamento desde as leituras feitas. Não apenas isso: um grande leitor - no caso, Nolan - organiza

a sociedade para que ela se reconheça como tal. Não houvesse ele forjado um mito, a revolução nem aconteceria, muito menos seria bem sucedida. A história enquanto sucessão de eventos é caótica ou traiçoeira, a tale told by an idiot, full of sound and fury, signifying nothing. É preciso que um sentido

lhe seja atribuído, e este é buscado na ficção, único lugar onde os fatos têm

ordem e significação.

Não é, pois, a história que rege nossas ações, e sim a fantasia, berço da

literatura. Igualmente esse roteiro está previsto no conto de Borges: o narra­dor primeiro, ao contrário de Ryan, não pesquisa o passado, e sim in venta um argumento, que, diz ele, escribiré tal vez (p. 496). A observação inicial, que

a princípio, parece contrariar a veracidade do relato, acaba, conforme uma leitura circular, por reafirmá-Ia, pois, a se acreditar no relato, a imaginação é que fornece os fatos históricos e dá-lhes substância. É por criar o que vai

acontecer que o acontecido mostra-se verdadeiro. Mas o texto que leremos

ainda não redigido, porque o narrador no momento apenas cogita escrevê-lo

no futuro. Tal como Nolan, o narrador não lida com o passado, mas projeta o

futuro; entretanto, o porvir não consiste num vir-a-ser, e sim numa nova

compreensão do que aconteceu, descoberta que, da sua vez, não altera a

versão dos eventos já consagrada pelo tempo. Tanto o narrador primeiro quanto Nolan sabem o que acontecerá: aparecerá Ryan, cujas investigações propiciarão conhecer o que verdadeiramente sucedeu, mas que não ousará

contrariar o mito, não apenas deixando-o como está, mas ainda corroboran­

do-o.

Outra vez a narrativa confirma pressupostos que aparentemente negava.

Enquanto investigava, Ryan chegou a suponer una secreta forma deI tiempo, um dibujo de líneas que se repiten (p. 497). A seqüência do relato parece desmentir essa suposição, pois a repetição se devia à apropriação do roteiro

sugerido pelas tragédias de Shakespeare. A conclusão do conto, contudo, leva

o leitor a retomar a abertura, e, nesse revisão, verificar que o futuro é

unicamente escrita, escrita que se debruça invariável e incansavelmente sobre

o passado. As linhas do tempo dão voltas contínuas, e o porvir consiste na

eterna retomada, para endossá-los, dos mitos cristalizados pelo tempo.

É enquanto planejadores do futuro que Nolan e o narrador se confundem

e se identificam. Nolan é, porém, também o leitor que extraiu da ficção

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modos de comportamento para os homens e formas de organização para a sociedade. Como a leitora amiga e Elvira, encontrou na arte possibilidades de experiência traduzidas em atos concretos. Ao contrário dele, o leitor do "Tema deI traidor y deI héroe" fica sem alternativas de ação, embora cons­

ciente de que o fluxo da história pouco lhe diz, em contraposição à literatura, de onde retira tudo, a começar pela desconfiança perante o mito e os relatos do passado.

Machado e Borges estão empenhados em desarticular as convicções de seus leitores; mas fazem-no confiando em que a leitura exerça seu papel, o de estabelecer o diálogo primordial sem o qual a literatura não subsiste, muito menos sua produção poética e ficcional. Eis aí a aposta que lançam, que os aproxima no tempo e que assinala a afinidade de ambos diante do universo do leitor.

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I. BARRÉ, François. Préface.

In: La ville: art et architecture

en Eurol'e, 1870-1993. Paris:

Centre Georges Pompidou,

1994. p.12.

2 SARLO, Beatriz. Modernidad

y mezcla cultural. El caso de

Buenos Aires. In: BELuzzo,

Ana Maria de Moraes, org.

Modernidade: vanguardas ar­

tísticas na América Latina.

São Paulo: Memorial da Amé­

rica Latina: UNESP, 1990.

p.32.

o histórico e o urbano Sob o signo do estorvo

duas vertentes da narrativa brasileira contemporânea

Renato Cordeiro Gomes

À maneira de epígrafe, evocam-se dois textos que servem de baliza para uma reflexão sobre duas vertentes da narrativa brasileira contemporânea. São

eles o "Prefácio", assinado por François Barré, do magnífico catálogo da exposição La ville: art et architecture en Europe, 1870-1993, realizada em 1994, no Centre Georges Pompidou, em Paris; e o ensaio "A geração pós-per­dida", de Ivana Bentes, publicado no caderno Idéias, do Jornal do Brasil, em 1991.

A apresentação de Barré afirma, em forma de síntese, o que a exposição

revelou: a cidade e suas questões determinam nosso cotidiano e dá forma aos

nossos quadros de vida; é nosso presente turbulento e nossos velhos medos.

Tornou-se ela, para a maioria de nós, o estabelecimento humano, nossa morada incerta. 1 É uma grande questão desde a abertura dos tempos moder­nos. Um problema, uma paisagem inevitável, uma utopia e um inferno, a

cidade é pensada enquanto espaço físico, mito cultural, condensação simbó­lica e material de mudança, e constitui-se, hoje, um debate pós-modeno, pois

sabe-se que a era das cidades ideais caiu por terra. 2 As megalópolis contem­porâneas em crise levam a colocar sob suspeita as certezas da modernidade. Morada incerta e inevitável, o mundo moderno, ainda mais quando visto da periferia em relação aos centros hegemônicos, é representado ficcionalmente sob o signo do estorvo. De tal maneira se adere à armadura urbana que mal

se sabe o que é cidade e o que é indivíduo. A cidade conjuga-se ao impasse:

identidades instáveis circunscritas pela história em turbulência.

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122 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

\"0 ensaio "A geração pós-perdida",3 Ivana Bentes traça um difícil retra­

to da situação atual do Brasil, em que o lugar da nova geração é "uma

verdadeira zona de limbo, num purgatório que é a cara do país". Entre o

apocalipse iminente e algo de novo, essa geração corre o risco de ver aborta­

dos os seus projetos ainda em gestação. Aborto. aliás. que não é novidade,

pois vem sendo marca indelével em nossa história.

Pela dificuldade trazida pelo não distanciamento histórico. a ensaísta

constrói o seu "instantâneo", mapeando questões "desse momento em que

estamos atolados". Emblematicamente, abre sua exposição com uma epígrafe

do poeta Augusto dos Anjos (1884-1914): "Um urubu pousou na nossa sorte".4 A simbologia da ave agourenta atravessa o texto e aponta para o

pessimismo que reveste nossas expectativas. E corrói as esperanças do futuro.

onde estariam as possibilidades das utopias que criamos do Modernismo dos

anos 20 às eleições diretas de 1989 e que "preduziram obras significativas

dentro de um regime de mal-estar secular e exuberante miséria". Sempre

definido pelo que não é, o Brasil "nunca teve passado, nunca formamos uma

'civilização', e no presente sempre esteve meio mal, entretanto já teve futuro. Só teve futuro aliás, que agora está ameaçado de perder" dizia Ivana Bentes,

em 1991.

Embora esperanças sejam renovadas com o Plano Real, estes tempos de

economia e culturas globalizadas não neutralizam nossa perpétua crise de

identidade o que é agravado, no presente ainda precário desta era pós-moder­na, pela perda dos projetos totalizantes e dos grandes récits legitimadores. Se nossas utopias do século XX tentaram dar conta de uma definição de Brasil, ufanista ou crítica, o esvaziamento das certezas de que "o destino do homem era colonizar o futuro" ,5 permite. antes. falar de distopia. No seu artigo, Ivana

Bentes emprega o conceito numa acepção médica: "situação anômala de um órgão, em geral congênita", nos diz o dicionário do Aurélio: e re\'este-o ainda

com a perda da capacidade de crer o que seria uma doença que destrói as imunidades de nosso "romântico e saudável delírio de onipotência". tentativa de totalização, portanto. Essa distopia, acrescento. é. antes. "o lugar. estado

ou situação hipotética em que as condições e as qualidades de vida são

penosas", nos diz o dicionário Webster. As hipóteses negativas, entretanto, concretizaram-se nas circunstâncias brasileiras condicionadas pelas trans­

formações radicais na configuração mundial, que confirmam nosso lugar na periferia do capitalismo. Globalização e neoliberalismo não acabaram com as noções de "centro" e "periferia", como se pode crer apressada e acriticamente.

Nessa zona de penumbra, a identidade nacional com seus traços híbridos fica ainda menos delineada. E parece coincidir com o retorno de Macunaíma derrotado, na rapsódia de Mário de Andrade, mas sem mitificação possível. Sem retorno aos modelos modernistas, é desses escombros, porém, que a

'. BENTE.~. Ivana. A geração

pós-perdida. Jornal do Brasil: Idéias Ensaios. Rio de Janeiro.

6 out 1991, pA-6. As citações

deste texto vêm indicadas en~

tre aspas, sem qualquer outra

referência.

4 O verso foi adaptado ao con­

texto do artigo. O OIiginal é:

"Ah! Um urubu pousou na mi­

nha sorte!" e refere-se à ~'Mi­

nha singularíssima pessoa" (Y.

2) do eu-poético. Pertence ao

soneto "Budismo moderno".

Ver: ANJOS, Augusto dos. Eu e

outras poesias. 30a ed. Rio de

Janeiro: Livraria São José,

1965. p. 84 A I' ed. é de 1912.

5. PAZ, Octavio. Os filhos do harro. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 1984. p. 191.

Page 123: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

6 Citado na reportagem O

grande salto para a história.

Jornal do Brasil: Idéias Li­

vros. Rio de Janeiro, 21 seI.

1991. p. 6-8.

7 A Editora Lê, de Belo Hori­

zonte, criou a coleção "Ro­

mances da História", em que

publicou, em 1991, entre ou­

tros, os livros F()~{) verde, de

Duílio Gomes; A harca dos

amantes, de Antônio BalTeto;

A dança da serpente, de Se­

bastião Martins. Outras edito­

ras como a Companhia das Le­

tras, a Siciliano, a Rocco, a Rio

Fundo vêm investindo no gê­

nero.

". Citado na reportagem "O

grande salto para a história"

indicada na nota 6.

(). SANTIAGO, Silviano. Apesar

de dependente, universal. In:

Vale quanto pesa. Rio de Ja­

neiro: paz e Terra, 1992, p. 17:

"O intelectual brasileiro, no

século XX, vive o drama de ter

de reCOlTer a um discurso his­túrico que o explica mas que o

destmiu, e a um discurso an­

tropo!ô/?ico, que não mais o

explica, mas que fala do seu

ser enquanto destruição ( ... ).

o histórico e o urbano 123

literatura, hoje, procura retirar os elementos que dramatizam a situação de impasse, "vasculhando entre os detritos de utopias passadas, tentando não uma reconstituição de ilusões perdidas já que não chegou a vivê-Ias plena­mente, mas catando nesse monte de ferro velho ainda incandescente, e que não pára de crescer, algumas peças que possam ser reaproveitadas" segundo as palavras de Ivana Bentes que realoco, aqui, estendendo-as à narrativa de

ficção.

Neste contexto, duas linhas parecem se intensificar na prosa de ficção

dos anos 90, dando prosseguimento a tendências que despontaram nos anos 80: o romance histórico e o romance urbano, ambos ligados ao momento de crise, para dramatizar o presente precário_

O romance histórico, que vem ganhando fôlego a partir da publicação de

Boca do inferno (1989), de Ana Miranda, afasta o olhar do complexo presente

do País e volta-se para o passado, a fim de detectar aí mitos, heróis, traços característicos, que nos ajudem a ver-nos, hoje, Temos uma tradição a ser

resgatada e preservada e que, em sua continuidade, pode fornecer elementos de (re)construção de nossa identidade abalada, num momento em que não

estamos coincidindo com nós mesmos. O mineiro Paulo Amador, autor de Rei

branco, rainha negra em que retoma a saga de Xica da Silva, enfatizando o

papel da mulher na Diamantina do século XVIII, afirma que um país em crise precisa procurar seus mitos de moralidade e reencontrar seus heróis.6

Neste revival, que tem tido boa acolhida da crítica e do público, levando

as editoras, de olho no mercado consumidor, a aumentar o número de títulos

do gênero,7 vê-se o resgate da memória nacional ligado a uma certa desespe­

rança quanto ao futuro do país, na opinião de Luiz Schwarz, da prestigiosa

Editora Companhia das Letras, que praticamente inaugurou a onda com o primeiro romance de Ana Miranda. Esta escritora conheceu sucesso imediato

e lançou, em 1991, seu segundo livro, O retrato do rei, dramatizando a Guerra

dos Emboabas entre mineiros e paulistas, nas Minas Gerais do século XVIII,

episódio minimizado pela história oficial. Desprezando os limites rígidos do romance histórico, a autora declara que "ideologicamente, só tenho um limi­

te: escrever sobre temas brasileiras, Sinto-me participando de um processo de busca da identidade nacional", 8

Essa busca se dá, portanto, pela força da ficcionalização, tentando não apag'ar as diferenças que foram abolidas pelo discurso dos vencedores. Re­

corre-se ao discurso da história, para ficcionalizá-Io, na investida de explicar

a nossa constituiçã09 (nossa identidade). Resgatar pela memória o que o

esquecimento apagou parece ser a pedra de toque desses romances que, pós-modernamente, desconfiam das utopias e dos mitos gerados pelo pro­

gresso_ Se o futuro se vai esvaziando, corroído pelo presente agourento do "urubu", não se trata de reconstruir as ilusões perdidas, mas recolher do

passado algumas peças que possam ser reinventadas. Reinvenção que rima

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124 Revista Brasileira de Literatura Comparada, na 3

com ficção, que ganha força na medida em que "a história como ciência

perdeu a credibilidade, em decorrência do refluxo do marxismo e do materia­lismo histórico", 10 afirma o historiador Joel Rufino dos Santos, também ele autor do romance histórico Crônicas de indomáveis delírios (Ed. Rocco,

1991 ).

Certa ou não a declaração pouco nuançada de historiador, a verdade é

que revela um momento de crise da sociedade brasileira que não pode mais contar com esse grand récit que legitimasse aquela credibilidade. Certamen­te, tem razão Teresa Cristina Cerdeira da Silva. quando constata que "o modelo do que hoje ainda podemos chamar de romance histórico, ou de romance que tem na história o seu outro, seu objeto de desejo. se alterou muito, até porque a História se modificou. O fasCÍnio da leitura da Ilollvelle

histoire é um fator que influencia a vaga do gênero".

Desta forma, o viés que essas narrativas elegem, são as ligações. os nós. entre a literatura e a mímesis da História, tentando ler os claros que a História oficial deixou. Tecem uma história outra de que não exclui os vencidos e o cotidiano até então desprezado. De maneira muitas vezes alegórica, lêem as ruínas do passado na mira do olhar do presente. Lêem no passado as ruínas do agora. História e memória imbricam-se. Os relatos extraem um momento do passado, para perturbar a sua tranqüilidade, para redimi-lo, desreca1can­do-o através da lembrança. E ainda mais: frente a um presente esfacelado nas cidades ilegíveis, onde o homem fragmentado pelas vivências de choque fecha-se no individualismo exacerbado, perdida a possibilidade da experiên­cia válida para a comunidade, II voltam-se esses relatos para o passado em busca da possibilidade da narrativa. Nostalgia da história, da estória, de ter o que contar parece ser o signo com o qual pretendem preencher o vazio do presente. Se este é anunciado pelo "urubu". que se torne pelo menos "mobi­lizado", para a citar a imagem de João Cabral (poema "0 urubu mobilizado". de A educação pela pedra, 1965).

É sintomática, deste ponto de vista, a retomada da fabulação que. nesses romances, se concretiza numa narrativa concatenada em continuidade e qua­se sempre em linha reta, emprestando sentido aos fatos. Privilegiando a ação, estabelecem relações de causa e efeito e ainda relações de contexto (social, econômico, político etc.).12

O romance histórico, assim, revela-se como uma tendência da narrativa brasileira contemporânea, dramatizando episódios mais pontuais, mais cir­cunscritos, de nosso passado, em busca de traços da identidade nacional, problemática em momento de crise. Reinventa-se o passado, fonte da fabula­ção, procurando-se articular sentidos capazes de explicar o País.

Enquanto esse gênero afasta seu olhar da arena do presente, a outra a do romance urbano dirige seu foco central justamente para o agora, para o espaço urbano que revela, de maneira mais clara, os impasses da crise. A

Somos explicados e destruí­

dos. somos constituídos, mas

já não somos explicados".

10 Esta declaração, bem como

a de Teresa CIistina Cerdeira

da Silva foram lidas na repor­

tagem. "O grande salto para a

história", indicada na nota 6.

11. BENJAMIN, Walter. O narra­

dor. Considerações sobre a

obra de Nikolni Liskov; A cri­

se do romance. Sobre Alexan­

derplatiz, de Doblin; Expe­

riência e pobreza. In: Ohras

escolhidas I: magia e técnica,

arfe e política. São Paulo: Bra­

siliense, 1985.

:~. SA"'TIAGO. Silviano. A gar­

galhada imprevista diante da

morte. Jllmal da Tarde. São

Paulo, 8 abril 1989.

Page 125: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

13. Ver a respeito da cultura

neo-individualista no contexto

pós-moderno os seguintes tex­

tos de Gilles Lipovetsky, de

que aproveito aqui formula­

ções:

LIPOVETSKY, Gilles. Espace

privé, espace public à l'âge

postmoderne. In: BAUDRIL­

LARD, Jean et a!. Paris: Esprit,

1991.

____ . L'àe du vide:

Essais sur l'individualisme

contemporain. Paris: Galli­

mard,1983.

14 A título de exemplos, ver as

seguintes obras que dramati­

zam essas questões: de João

Gilberto Noll (Bandoleiros;

Rastros de verão; Hotel Atlân­

tico; O quieto animal da es­

quina, Harmada); de Sérgio

Sant' Anna (A Senhorita Simp­

son; Breve histária do e,\1Jíri­

to; O monstro); de Caio Fer­

nando Abreu (Onde andará

Dulce Veiga:; Os draglies não

conhecem o paraíso); de Ru­bem Fonseca (A grande arte;

Vastw' emoçtJes e pensmnen­

tos imperfeitos, O romance ne­

gro).

15 TORRES, Antônio. Um táxi

para Viena d'Áustria. São

Paulo: Companhia das Letras,

1991. As ci tações deste ro­

mance indicadas entre aspas,

com as páginas entre parênte­

ses, remetem a esta edição.

o histórico e o urbano 125

sociedade brasileira, hoje eminentemente urbana (75% da população vivem nas cidades), em processo acelerado de massificação e pauperização, vê-se refletida no mundo caótico e violento das grandes cidades. Os romances dramatizam a crise da cidade e suas marcas sociais e cuturais. Aí, o homem urbano contemporâneo. num universo cada vez mais rarefeito, busca a iden­tidade individual. numa sociedade de trânsito engarrafado.

Se, por um lado. assistiu-se. em nível internacional, a mudanças radicais e velozes. que puseram em xeque as '"verdades" da modernidade; por outro lado, no Brasil. verificou-se. sobretudo a partir dos anos 70, o desenvolvi­mento da sociedade de consumo, que condicionava valores e comportamen­tos sociais ligados ao modo de vida impulsionado pelo reino dos objetos, de conforto e de lazer de massa, pano de fundo para o surgimento de uma nova cultura individual." Em meio ainda aos embates de um projeto moderno com que o discurso oficial pretende vencer o nosso perpétuo atraso, ao mesmo tempo que se ancora em estruturas arcaicas, vivemos, em contraste (continua­mos a "terra de contrastes" como nos viu Roger Bastide, no seu clássico livro dos anos 50), com marcas do neo-individualismo das sociedades pós-moder­nas: a fragmentação individualista do corpo social, que redunda no consumis­mo privado, na retração individualista, na atomização dos seres, no hedonis­mo, no narcisismo, na esterilização das crenças e dos dogmas comuns. Ao lado da miséria, acentuam-se, nas cidades sobretudo, a imprecisão sistemáti­ca da esfera privada, a erosão das identidades sociais, a desestabilização acelerada das personalidades, a desconfiança e o desinteresse pelo ideológico e pelo político. Num espaço-entre, na interseção, num ponto de encontro, vive o Brasil a crise que se arrasta e reflete-se contundentemente na cacofonia das cidades. 14

Essa tela, aqui ligeiramente esboçada, parece oferecer os núcleos de tensão que as narrativas urbanas contemporâneas dramatizam. Neste sentido, é sintomática a imagem central do último romance de Antônio Torres, Um

táxi para Viena d'Áustria (1991).15 O protagonista, Watson Rosavelti Cam­pos, o Veltinho, migrante nordestino que veio para São Paulo e depois para o Rio de Janeiro em busca de sonho da modernidade, enfrenta, como publicitá­rio desempregado, a situação-limite, a crise, na realidade precária da grande cidade. O livro abre-se com "um indivíduo descendo apressado pelas escadas do edifício n° 3 da rua Visconde de Pirajá, Ipanema, aqui no Rio de Janeiro" (p. 7). Ele acabara de assassinar um amigo, o escritor decadente Cabralzinho,

que não via há 25 anos. Está fugindo; "( ... ) foi salvo da curiosidade pública e

privada por um caminhão da Coca-Cola que capotou há instantes ali na

esquina, justinho onde a rua Canning desemboca na Gomes Carneiro, bem no calcanhar desta nossa Visconde de Pirajá". (p. 11). Caos; rua bloqueada por engradados, garrafas, cacos. Entra num táxi, cujo rádio toca a "Missa em dó maior", de Mozart. Sente-se cansado. "Toca em frente" diz. Para Viena

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126 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

d' Áustria, onde há música nas ruas. Adormece. Mas está literal e metaforica­

mente numa encruzilhada.

A situação inicial que poderia gerar um romance policial, não se cumpre como tal. Funciona, antes, como núcleo complexificador que metaforiza o

Brasil engarrafado. Adotando um narrador móvel que transita entre primeira

e terceira pessoas, a narrativa centra-se no personagem encurralado dentro do

táxi, simultaneamente réu e investigador, que busca as raízes perdidas, ao

mesmo tempo que tenta dar um rosto ao país. Mais do que uma escolha espacial, Antônio Torres optou por uma situação de inércia. em contradição com o progresso da modernidade que atraía o personagem publicitário (iden­tidade agora corroída pelo desemprego). Inércia de trânsito parado que pro­

voca uma escolha de ordem existencial ligada à vivência do tempo. Nesta

inércia, o que dinamiza o personagem, na falência de seu projeto burguês. é

a mistura de vozes do passado e do presente. Busca, por aí, "saídas transver­

sais para si e para o mundo da cidade". A descontinuidade entre passado e

presente passa, então, a reger a dinâmica do mundo interior do protagonista,

projetando-se na estrutura fragmentada da narrativa que real oca citações,

efetua colagens e procede por cortes, num universo impossível de totalização.

O herói, ou antes o anti-herói, vencido, um eu à deriva, desenraizado na grande cidade, está tragicamente só. Vê esgarçaram-se os laços familiares, do clã (seu passado, como lugar de origem, na província, é apenas uma lembran­

ça partida e vazia, sem dimensão no presente), perde os amigos, perde o

emprego. E acabara de matar um homem. "Um urubu pousou na sua sorte"'.

"Não chegamos porque não partimos". diz o motorista do táxi, quando o

personagem acorda. Acorda para a realidade imediata. Caótica. A busca e a fuga ficam aí sem resposta. Viena d' Áustria é o sonho impossível: "longe é

qualquer lugar perto do paraíso". (p. 117). Mas ele está ali, no encontro de Copacabana e Ipanema. Aí, está o homem brasileiro exilado na urbanidade.

É um sobrevivente que assimilou a destruição urbana produzida pelas metró­

poles, onde sua personalidade está desestabilizada, gerando uma retração

individualista que esteriliza os projetos coletivos e utópicos. Embora tenha memória e nostalgia e busque através delas dar um sentido à História e à sua historia, ele está encurrulado no agora, nas dobras do cotidiano dificílimo.

Ele tornou-se um assassino, e o "assassinato é a metáfora mais adequada para o impulso aniquilador e predatório da cultura contemporânea". 16 Resta-lhe,

romanticamente, na situação de impasse, o sonho individualista de fuga para um lugar imaginário, "para um lugar tão longe que nem Deus sabe onde fica" (p. 180) que é como se fecha a narrativa. Não desconfia que "o indivíduo em busca de um lugar imaginário termina em cenários erguidos em meio a ruínas". I? Já que ruínas articulam o personagem, a cidade e o país, só daquele lugar imaginário e improvável, ele pode vislumbrar um horizonte. Este mo­mento final sintetiza o individualismo do protagonista, única ética possível

16 PEIXOTO. Nelson Brissac.

Cenário,\' em ruínas: a realida­

de imaginária contemporânea.

São Paulo: Brasiliense, 1987.

p.220.

17 Idem. ibidem, p. 225.

Page 127: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

1". Idem, ibidem, p. 25.

19. BUARQUE, Chico. Estorvo.

São Paulo: Companhia das Le­

tras, 1991. As citações deste

romance indicadas entre as­pas, com as páginas entre pa­

rênteses, remetem a esta edi­

ção.

20. CARONE, Modesto. Entre­

vista à FolluJ de S. Paulo: Le­

tras, I fev, 1992, p. 4, em que

tece considerações sobre a obra de Kafka, aqui estendidas

ao romance de Chico Buarque.

o histórico e o urbano 127

num mundo em ruínas, num mundo de suspeitos e traições, 18 num mundo que perdeu as coordenadas éticas.

Neste mesmo paradigma, situa-se Estorvo (1991 ),19 o romance de Chico Buarque, lançado com eficiente estratégia de marketing, permanecendo me­ses nas listas dos mais vendidos. Deste ângulo, frustou a expectativa de grande parte do público que esperava encontrar uma história facilmente digerível, como pensa serem as canções do famoso compositor da música popular brasileira. O livro funciona como um verdadeiro estorvo em relação

à cultura de massa, como acontecera em 1969 com peça Roda viva que,

através da montagem revolucionária do diretor José Celso Martinez Correa, rompeu com a imagem de "bom moço" que vinha se criando, no início da carreira do compositor, sobretudo com o sucesso da canção "A banda". Sua

obra, entretanto, com incursões também pelo teatro, traz as marcas de sua geração que amadureceu sob a truculência da ditadura militar e que pretendeu

intervir, alterar os rumos da história do país. O recente romance, neste

diapasão, é também desejo de denúncia, contudo não mais no sentido das soluções totalizadoras e utópicas, apontando para o cumprimento pelo menos satisfatório dos destinos da Nação. É, antes, a denúncia de nossas impossibi­lidades, do encurralamento em que estamos metidos, da crise brasileira vista de dentro, através de um "olho mágico".

"Para mim é muito cedo, fui deitar dia claro, não consigo definir aquele

sujeito através do olho mágico" (p. 11) assim se abre a narrativa, com o

protagonista tentando, do lado de dentro, regular a vista para identificar um homem estranho que lhe bate à porta. Tematizando de saída a questão da identidade e do olhar, a narrativa coloca em cena um personagem "fugindo ao contrário" de alguém que ele não sabe quem é e nem por que foge.

Instalado no presente, este personagem-narrador em primeira pessoa centra a

narrativa no que está vivendo. Seu olho-câmera capta o que' está no seu

campo de visão, ou a partir do que vê, o que supõe, presume, hipoteticamente

(cf. os verbos no futuro do presente ou do pretérito e os modalizantes: talvez, parecer, presumir, dever, poder, como se fosse etc). Supõe-se perseguido pelo

estranho homem de barba que o procura. "Esse narrador anti-onis-ciente ou

melhor, insciente, é a formalização de um estado do mundo onde o indivíduo perdeu a noção de totalidade".2o Dá-se, em consequência, o rebaixamento do

horizonte da narrativa que se torna obscura. As fantasmagorias do persona­gem sinalizam a perda de clareza do indivíduo em relação ao rumo da

existência nas tramas do mundo administrado, para usar a expressão de

Adorno. Este mundo é aqui representado emblematicamente pelo homem de

barba, o delegado de polícia revelado no final da narrativa, símbolo de um

superpoder que determina a existência individual de maneiras invisíveis. O

personagem-narrador mescla, assim, realidade e imaginário e, porque perde a capacidade de totalização, trabalha com recortes, fragmentos, ditos por uma

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128 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

fala que não é afirmativa, que abdica de toda certeza, de todo projeto utópico. O relato que dramatiza uma falta, vive de uma falta de lógica, de mudança, de transformação o que corrói a causalidade de uma possível linha horizontal produtora de sentido. Na trama sempre falta alguma coisa, falta chão que

lhe dê sentido (nesta ótica, é exemplar a imagem dos pés do amigo que o protagonista não consegue visualizar em sua memória, a que se sobre­põe os pés mortos e, portanto, inúteis, do professor de ginástica assassinado (cf. p. 76-77).

O campo de visão, concretizado na linguagem pela redundância dos verbos ver e olhar, elimina o horizonte, ausente até a lembrança ("na lem­brança não entra o horizonte" p. 76). O personagem cola-se aos fatos, sem distanciamento. A abertura do ângulo de visão indica a intensidade dos sinais dos estranhamentos que o acaso lhe apronta no circuito da fuga. Neste circuito, busca entender o que está acontecendo, mas não é um narrador detetive, não investiga pistas, vestígios, não é aquele que descobre. Se assim fosse, a partir do enigma estampado na cena inicial, se instauraria uma linha

de romance policial que, afinal, não se cumpre (o que é deceptivo para o leitor imbuído dessa expectativa).

Os fatos que vão compondo o (des)enredo, tornam-se cada vez mais rarefeitos, perdem a densidade e encaminham-se para a indeterminação, que, sem dúvida, é o signo que circunscreve o protagonista. É um personagem sem nome, em processo de desagregação. Todos lhe perguntam quem ele é. Se se pode recompor traços de sua biografia (classe média urbana, carioca, pai militar autoritário, mãe viúva, irmã com casamento milionário, um casamen­to desfeito, o rompimento com o amigo, etc), o passado não se dimensiona no presente, como conseqüência, e perde a densidade, vira barulho, ruído, a exemplo do que diz quando procura a ex-mulher: "tudo o que falamos antes virou barulho, fica difícil retomar a conversa" (p. 36); ou quando relembra o amigo: "ouço puramente a sua voz, lisa de palavras" (p. 42). Fica entre a ordem burguesa e a marginalidade, entre o desequilíbrio psicológico progres­sivo e o desajuste social. "Não pertencendo a nenhum setor da sociedade, o protagonista é definido existencialmente e socialmente; ele é um bosta, um estorvo", como afirmou Augusto Massi.21

A fuga, sem causas determinadas, é o que movimenta o entrecho. Ela se dá no labirinto da cidade, em suas margens, nos seus arredores. A cidade do Rio de Janeiro tem sua presença implícita, implicada, na fonte ou na base da mensagem, antes que em seu conteúdo. Embora não seja nomeada, aparece numa cartografia dinâmica, ligada às necessidades da trajetória do persona­gem, sem as referências topográficas e geográficas de cartão postal que tradicionalmente marcam o Rio. São essas "necessidades da fuga, com suas pressas e vagares, que filtram o sentimento da cidade", como observou Roberto Schwarz.22

21. MASSI, Augusto. Resenha

sem título do romance de Chi­

co Buarque publicada na re­

vista Novos Estudos CEBRAP São Paulo, 31 out, 1991; 193-

198.

22 SCHWARZ, Roberto. Sopro

novo. Veja. São Paulo, 7 ago.

1991, p. 98-99.

Page 129: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

23. GENETlE, Gérard. Vértige fixé. In: Figures. Paris: Seuil, 1966, p. 89.

24. BENJAMIN, WaIter. Paris,

capitale du XIX' .• iec/e. Le li­vre des passages. Paris: Cerf,

1989. p. 536.

25. NUNES, Benedito. Estorvo é

o relato exemplar de uma fa­lha. Folha de S. Paulo: Ilus­

trada. São Paulo, 3 ago. 1991, p.3. - SANT' ANNA, Sérgio. Narrati­va tensa. Jornal do Brasil:

Idéias Livro .•. Rio de Janeiro, 3 ago. 1991, p. 3.

26. ScHWARZ, Roberto. Op. cil.

27. Do texto de José Cardoso

Pires que apresentou o livro, 110

lançamento em Lisboa, nov 1991. A citação foi recolbida na Folha de S. PaultJ: Ilustrada.

São Paulo, 1600v. 1991, p. 3.

o histórico e o urbano 129

A maneira com que o personagem se relaciona com o espaço é provisó­ria, indicando a não-permanência. Instala-se ele no campo cambiante do provisório, num jogo sempre recomeçado. Caminha em círculos, sempre entrando e saindo de algum lugar, indo e vindo da cidade e do sítio da família, na região serrana próxima ao Rio; vaga pelas ruas. Experimenta as aventuras da desordem, buscando os caminhos de antigamente, que nada resolvem: são sem saída. Vaga em labirinto (pela cidade e pelos discursos): "esta região desorientadora do ser em que se reagrupam, numa espécie de confusão rigorosa, os signos reversíveis da diferença e da identidade".23 Signos, que caem, aqui, na indeterminação. Enquanto o personagem busca, é obrigado a proceder a mudanças súbitas de direção, a retomadas, retornos. O labirinto é paradoxalmente a cidade aberta com sua flexibilidade, sua imprevisibilidade; e, ao mesmo tempo que lhe é familiar, torna-se sob seus olhos desconhecida, obscura, numa palavra, labiríntica. Principalmente, para ele que foge, que hesita, que perdeu os fios das certezas: "o labirinto é a pátria daquele que hesita" e cai numa errância monótona, já dissera Walter Benjamin.24 Este jogo paradoxal do aberto e do fechado anula as oposições entre o campo e cidade: o sítio da família é uma espécie de "waste land", onde penetrou a violência através de grupos organizados, do tráfico de drogas, da tecnologia de sucata, conforme se lê no texto de Augusto Massi.

Nesta mesma perspectiva de indefinição, de contornos não nítidos, "a tônica do romance não está no antogonismo, mas na fluidez e na dissolução das fronteiras entre as categorias sociais" (observação de Roberto Schwarz), diferente, por conseguinte, da linha de força que vincou o romance dos anos 30 e foi retomada nos anos 70, ou no teatro do próprio Chico Buarque.

Como o romance citado de Antônio Torres, Estorvo quer captar também o homem brasileiro exilado na urbanidade, encravado no agora, num tempo de crise, que anula o passado e corre o risco de perder o futuro, que aponta par'a o pior, O protagonista, emblema de uma sociedade desagregada e sem projetos, busca a si mesmo, sua identidade, mesmo sendo seu movimento inconsequente.25 Acena final do suicídio-assassinato revela sintomaticamen­te "a disposição absurda de continuar igual em circunstâncias impossíveis",26 como metáfora do Brasil contemporâneo.

O romance de Chico Buarque, "uma peregrinação alucinada em deman­da de raízes perdidas através dum percurso existencial povoado de assombro e de solidão",27 em que tudo dá errado para o protagonista, não veio para explicar o Brasil; funciona, antes, como um estorvo que num solo histórico, aponta para a perturbação de uma identidade, Parece demonstrar que, em

tempos "pós-modernos", para além dos populismos, já não há lugar para a

"ópera do malandro", para o urubu macunaimicamente malandro da festa no céu. Demonstra que a instabilidade urbana determina nosso cotidiano: o presente turbulento por onde campeia a violência circunscreve a cidade

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130 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

enquanto nossa morada incerta. Morada incerta que é um "agora" precário a ser substituído por outro agora igualmente precário, quando a modernidade perde fé em si mesma; o presente faz a crítica do futuro e passa a desalojá-lo, e ganham força os conflitos de ordem cultural.

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Teoria da literatura: instituição apátrida

Heidrun Krieger Olinto

o artista plástico coreano Nam June Paik, figura emblemática das contra­dições radicais na cena atual da produção cultural da vídeo-arte, precisou de uma década para realizar um projeto de dimensão grandiosa e de efeito mágico e perturbador. A sua obra de vídeo-arte Hight Tech Allergy, exposta pela primeira vez em 1995, na retrospectiva do artista organizada pelo museu de arte de Wolfsburg, não só emprestou brilho especial ao evento, mas marca de forma fascinante uma espécie de point of no return para o processo de

criação artística e para os hábitos de compreender e apreciar obras de arte contemporâneas em geral.

Uma parede gigantesca de três metros de altura e de dez metros de largura, montada com mais de duzentos aparelhos de televisão ligados, ocu­pou o salão central do museu, oferecendo-se ao espectador como janela monumental e fantasmagórica para o mundo. Uma visão de simultaneidades velozes - de imagens, cores, movimentos, luzes e sons. Alucinantes. Essa instalação caleidoscópica de seqüências instantâneas de microfragmentos superpostos, substituídos em frações de segundos e imperceptíveis ao olhar atento, fascina pela possibilidade de estimular ao extremo percepções inte­lectuais e impressões sensoriais, tanto no instante pontual quanto na sucessão prolongada, por mais paradoxal que isso possa parecer. Fenômenos sem contornos, maleáveis, num fluxo cambiante, ganhando vida pela mescla

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132 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

impressionante de ofertas mediáticas, nomeáveis apenas pelo artifício da interrupção do movimento. Dizíveis, em suma, pelo falso gesto de congelar o ímpeto seqüencial no tempo.

Mas é justamente essa impossibilidade de captar e cristalizar a experiên­cia e, ao mesmo tempo, o desejo de integrá-la numa construção de sentido

sem minimizar o seu efeito de inapreensível complexidade que mobiliza o fruidor contemporâneo em sua aflição de compreender.

High Tech A lle rgy , neste conjunto, se presta de modo exemplar para situar o difícil e fascinante circuito comunicativo daqueles que transitam nos espaços de produção, transmissão; recepção e análise crítica dos fenômenos ainda chamados de artísticos. Hoje ninguém sabe de que se trata e, não obstante - ou por causa disso -, se multiplicam escolas. teorias, métodos, hipóteses interessantes e plausíveis (ou não), na ânsia de ofertar quadros,

instrumentos e conceitos para cercear algo oscilante que escapa à descrição de valor estável.

No âmbito da teoria da literatura a motivação temática de parte conside­rável de estudiosos gira em torno da construção de teoremas do múltiplo e do heterogêneo, desalojando o interesse por identidades a favor de diferenças, paradoxias, contingências.

Uma das várias coletâneas publicadas em 1995, de "textos fundamentais para a compreensão sistemática e propedêutica de categorias imprescindíveis para o estudo atual da literatura", inicia-se com uma afirmação sintomática e contundente dos organizadores. Segundo Fohrmann e Müller, o objeto da ciência da literatura não existe simplesmente. Ao contrário, ficou evidente para a disciplina que a sua tarefa básica devia ser o constante processo de redesenhar o(s) campo(s) do(s) objeto(s) de sua reflexão. Uma tarefa de risco que alterna sentimentos de "felicidade e pavor".! A promessa de encanto pela constante inovação reflexiva assusta pelo impossível desenvolvimento de um saber cumulativo, linear. Desde os anos 70, a consciência aguda da falta de confiança em fundamentos está, para uns, associada à insuportável sensação de perda e provisoriedade. Já outros, militantes no cenário dos estudos da literatura, sentem-se estimulados pela oportunidade de infindáveis observa­ções e auto-reflexões acerca das práticas de uma disciplina que. de modo geral, ainda se entende como teoria da literatura, ciência da literatura, literary criticism, de acordo com os lugares geográficos, nacionais e culturais de sua atuação.

As dificuldades situam-se, assim, entre o discurso oscilante sobre litera­tura, os pressupostos epistemológicos, metateóricos, teóricos e metodológi­cos, e a necessidade simultânea de parar o fluxo e propor classificações, construções de sentido, pelo menos para pequenos momentos de duração. Os novos acentos mostram de modo claro que as alternativas propostas no mercado teórico, ainda que não permitam homogeneização, favorecem o

I. FOHRMANN, Jürgen e MÜL­

LER, Harro, orgs. Literaturwis­

senschaji. Munique, Fink,

!995.

Page 133: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

2 PECHLlVANOS, Miltos, RIE.

GER, Steffen, SlRACK e WEITl,

Michael. EinJuhrung in die Li­

teractunvissenschaji. Weimar: Metzler, 1995.

Teoria da literatura: instituição apátrida 133

entendimento do fenômeno literário como convenção comunicativa e/ou ação social específica,

A multiplicidade das questões sugeridas desafia práticas tradicionais a partir do instante em que o comportamento sensocomunal da disciplina se afasta da idéia de que o seu campo possa ser definido exclusivamente a partir de objetos precisos ou propriedades substanciais, Segundo os autores citados - e não só eles - o universo da teoria da literatura, transferido para a unidade fundante texto-contexto, torna-se especialmente desafiante quando ensaia

definições de fronteira entre arquivos próprios e alheios. Construções de sentido dependem dessas opções momentâneas cristalizadas por convenções consensuais que esboçam possíveis limites (Fohrmann e Müller, 9).

Enquanto teóricos, estamos à procura de teorias - uma superteoria? - que

saiba lidar com soluções efêmeras e de alta complexidade e que saiba circular

com desenvoltura entre o campo de categorias arquivadas e o espaço de processos móveis, inacabados. Nada fácil. A contracapa da coletânea permite uma antevisão do que está por vir. As já mencionadas "categorias indispen­

sáveis para o estudo da literatura" apontam sintonias com teorias sistêmicas,

desconstrutivistas e pós-estruturalistas, apropriando-se de conceitos e termos

do campo da comunicação, da evolução de sistemas artísticos, da mídia; menciona questões relativas à função autoral, diferença, forma e retórica, seleção e processo, auto-referência, metalinguagem, psicanálise, gender, ob­servação de segunda ordem e ética.

O que esperar de tudo isso?

Outro exemplo, uma coletânea também publicada no ano passado, ilustra

uma situação dramática semelhante. Einführung in die Literaturwissenschaft (Introdução à teoria da literatura), organizada a quatro mãos, dedica-se, no prefácio, à demarcação de possíveis fronteiras para literatura, ciência e teoria.

Nas páginas iniciais, lêm-se afirmações como estas: ciências são determina­

das pelo seu objeto e pelas técnicas de adquirir e transmitir conhecimento

sobre ele. Além disso, são determinadas pela sua função social e por seu lugar

institucional; no caso da ciência da literatura, em instituições como universi­

dades, além de editoras, revistas especializadas e bibliotecas, sem esquecer

dos seminários e congressos. Mas o que será o seu objeto? Dele fazem parte apenas as belas letras ou também as letras triviais? Apenas literatura ficcional ou também literatura específica? Seu campo de interesse abrange só os textos

clássicos ou os mais recentes? E o que dizer sobre meios como o teatro, cinema, televisão e vídeo? Ou, colocando o problema em nível diferente: para

que serve tudo aquilo que se ensina e aprende a respeito? Será que uma

prática cultural (em fase de extinção?) encontra nesse espaço a sua última

reserva? Será que um pensamento crítico oferece indispensáveis motivações

para a ret1exão, ou será que as tecnologias da sociedade informatizada e

voltada para o lazer se preparam para ocupar o seu lugar?2

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134 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

Uma mescla de indagações - esboços de esclarecimentos que confun­dem. Problemas que, em sua maior parte, tocam questões de debate constante na esfera da cultura.

Nos anos 70, ainda era possível que um manual de teoria da literatura em forma de antologia, como Issues in Contemporary Literary Criticism,3 se

áuto-apresentasse, em seu prefácio, como "an iiltroduction ... designed to help the student become aware of what is at stake in a criticaI discussion, oI what issues are in play, so that he may better be able to engage in that process of colaboration which, as several critics included here affirms, is singular to the activity of literary criticism" (pp. vii). Duas décadas depois, essa mesma expectativa não fundamenta o horizonte dos que militam profissionalmente nos campos dos estudos literários.

O livro Compara tive Literature in the Age of Multicllltllralism, editado em 1995 por Charles Bernheimer,4 e idealizado como relatório encomendado pela American Comparative Literature Association para situar a disciplina Literatura Comparada nos anos 50, 60 e 70, oferece uma ante visão da carto­grafia atual a partir do próprio e sugestivo título. Enquanto os relatórios anteriores creditavam o conceito de literatura comparada na era pós-guerra a uma nova perspectiva internacionalista que abrangia contextos mais amplos tanto na articulação de motivos, temas e tipos, quanto na compreensão de gêneros e modos (pp. 39), na verdade, segundo Bernheimer, a ótica ampliada não ia além da Europa e da linhagem da alta cultura européia. Neste sentido, o estudo comparado da literatura tendia a fortalecer uma identificação entre estados-nação e comunidades imaginadas em função de identidades nacio­nais e lingüísticas. Essa noção de literatura comparada, de vocação tradicio­nalmente internacionalista, sustenta paradoxalmente o domínio de algumas -poucas -literaturas nacionais européias. É a Europa vista como lar de origi­nais canônicos e as "outras culturas" ocupando territórios periféricos. Uma segunda e deliciosa ambigüidade. detectada por Bernheimer. revela-se na conduta cautelosa "we must be alert!" (pp. 40). face ao crescimento de programas interdisciplinares. Se, por um lado. esse desenvolvimento é bem­vindo, por outro, teme-se o excesso. "The crossing of disciplines involve a relaxing of discipline" (pp. 40). Na avaliação de Bernheimer. esses estudos se deitaram em berço contraditório. "Just as comparative literature serves to define national entities even as it puts them in relation to one another, so may also serve to reinforce disciplinary boundaries even as it transgresses them" (pp.41).

Uma terceira ameaça aos valores fundantes da literatura comparada foi sentida na transformação progressiva dos Departamentos de Literatura Com­parada - e dos Departamentos de Inglês e de Francês em geral - em arenas para o estudo "of (literary) theory". O tom ansioso que transparece no relató­rio de 1975 sinaliza simultaneamente a reação assustada e uma evidência:

3 POLlETIA, Gregory T., org.

[ssues in Contemporarv Lite­

rary Criticism. Boston: Little

Brown and Company, 1973.

4 BERNHEIMER, Charles. Com­

parative Ui/erature in the Al.'e

of Multiculturalism. Baltimo­re: Johns Hopkins UP, 1995.

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Teoria da literatura: instituição apátrida 135

"the field was coming to look disturbingly foreign for some of its eminent authorities" (41). Numa retrospectiva de hoje, esses horizontes ampliados se tornaram quase imperceptíveis e ingênuos os perigos entrevistos.

Para o relatório dos anos 90, um empreendimento "exciting and instruc­tive", foram escolhidos "top scholars" variados de diversas instituições, cujos interesses e campos de pesquisa abrangiam desde teoria e estudos literários do século XIX, crítica feminista com ênfase em narrativa e genealogia do renascimento a partir da ótica do feminismo e dos estudos culturais, black studies e teoria crítica, estudos étnicos e literatura americana nativa, história intelectual e literária, literatura latino-americana, literatura medieval com ênfase em iconografia e música, até questões referentes a colonialismo e pós-colonialismo (pp. ix). O objetivo declarado: levantar controvérsias e não tentar encontrar "a confortable middle ground" neste processo de auto-análi­se da disciplina em busca de uma identidade "at the end of the century" (pp. x). Se o resultado final oferecia um painel de diferenças, pelo menos havia um consenso surpreendente quanto às direções a serem escolhidas pela disci­plina.

Uma análise do perfil do estudioso no espaço das letras revela, no mínimo, uma conduta repleta de ansiedades. As suas leituras privilegiadas situam-se hoje, provavelmente, no campo da sociologia, antropologia, psica­nálise, história e filosofia e os debates mais incandescentes travam-se em torno de questões teóricas e não de textos literários. A própria identidade da literatura como objeto de estudo virou um problema e se transformou em questão política. Quando, em 1969, aconselhava-se aos estudantes de Har­vard que substituíssem a bíblia de seus estudos literários, até então o livro Theory of Literature, de Warren e Welleck, pela leitura de Nietzsche, Freud e Marx, iniciava-se, nos Departamentos de Letras, nos Estados Unidos, um processo responsável pela mudança dos estudos retóricos, intrínsecos da literatura, para a investigação de sua situação contextualizada, seja do ponto de vista psicológico, histórico ou social. Desde então, não pára de crescer um repertório de questões relativas às relações entre literatura e experiência, estética e ideologia, gender e poder. Um conjunto de discursos variáveis sobre diferenciação social e interação conflitante e sobre a inserção de formas literárias em histórias coletivas e estruturas ideológicas contribuiu, entre outros, para o desenvolvimento de uma nova área - a de estudos coloniais e pós-coloniais.

No presente momento, o campo se apresenta tão fragmentado numa multiplicidade de perspectivas teóricas diversas que o termo "contextualiza­ção" se transformou em senha para os discursos mais influentes sobre litera­tura. "History, culture, politics, location, gender, sexual orientation, class, race - a reading in the new mode has to try to take as many of these factors as possible into account" (pp. 8). A política atual do multiculturalismo,

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1 ~6 _' Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

pleiteando uma revisão do cânone em vista do reconhecimento de grupos culturais marginalizados e de tradições expressivas e da inclusão tanto de culturas étnicas minoritárias quanto de culturas não ocidentais de um modo geral, supõe, ainda, a construção de cânones não apenas representativos da

cultura européia elevada, mas igualmente da diversidade de produções literá­

rias "throughout the world" (pp. 8).

Essas questões, em seu conjunto, demandam posturas atentas e flexíveis do observador num cenário de extrema contextualização e globalização por um lado e, por outro, num espaço que estimula a curiosidade pelo miúdo. Em todo o caso, a situação favorece um pensamento dinâmico cosmopolita, transcultural. Um conselho de Bernheimer: "we don't need to be experts in

everything we teach, as long as we don't pretend to be and our effort to

understand is in good faith. But neither should we act as tourists, having read a few guidebooks to faraway places" (pp. 13). Em tese, é uma afirmação sem dúvida aceitável; na prática, contudo, seria viável? Pessoalmente creio que o estudioso da literatura tropeça hoje feito bêbado numa paisagem vulnerável,

sem horizonte à vista, a mochila carregada de boa fé e má consciência.

A disciplina, representada hoje por uma comunidade científica de tama­nho incalculável, inventa e redistribui em caráter permanente os nós da imensa rede-cenário onde perambulam os seus membros, em trânsito. Uma parte da desordem gigantesca da casa se auto-expressa de modo palpável na forma, na organização e no estilo privilegiados dos manuais de teoria da literatura, que se transformaram, cada vez mais, em coletâneas de ensaios de autoria e temática múltiplas. Trata-se de produtos que sinalizam previa e simultaneamente o descompromisso com filiações duradouras. atestando a substituição da voz autoral particular pelo consenso/dissenso de subgrupos de uma comunidade sem identidade.

Por outro lado, circulam exemplos de autoria explícita e assumida sem

que o discurso teórico se tornasse menos apátrida e sem que perdesse a sua feição de "shifty or sloppy ecletism", como diria Jonathan Culler ao tentar caracterizar o "normal criticism" atual, indefinível por paradigmas precisos e fora da matriz disciplinar. 5

Dois exemplos podem ilustrar essa situação. O primeiro refere-se a Halo Calvino, que estava preparando seis conferências, a convite da universidade de Harvard, para o ano letivo de 1985-86. O título em inglês dado por ele ao ciclo de palestras era Six memos for the next millennium. As palestras nunca chegaram a acontecer; Calvino morreu antes e a última sequer foi escrita.

Feitas de divagações, memórias, trechos autobiográficos, essas confe­rências tematizam a crise contemporânea aguda da linguagem e identificam as qualidades que orientam as atividades dos escritores e da literatura pela leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade, consistência. Em uma perspectiva superficial, são vistas como precioso legado do milênio do livro

5. CULlER, Jonalhan. Criticism

and its Instilutions: the Ameri­

can University. In: AlTRIDGE,

D. el aI. Post-Srructuralism

and the Quesrion ol History.

Cambridge: Cambridge Univ.

Press. 1987, p. 82-98.

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6. CALVINO, ltalo. Seis propos­

tas para () próximo milênio.

São Paulo: Compauhia das Le­

tras, 1990.

7 Eco, Umberto. Seis passeios

pelo.\' bosques da ficção. São

Paulo: Companhia das Letras,

1994.

Teoria da literatura: instituição apátrida 137

para a geração do ano 2000. Assim pelo menos o querem orelha e contracapa que apresentam o livrinho de cento e poucas páginas como testamento artís­tico de um dos protagonistas literários desse fim de milênio.6 Sendo o primei­ro escritor italiano a ser convidado a participar desse ciclo tradicional, Calvi­no preparou-se para a tarefa com a responsabilidade especial de representar uma tradição literária de séculos. Assim, a primeira das seis - ou melhor, cinco - propostas, com o título de "Leveza", baliza-se em figuras consagra­das da filosofia, da ciência e da literatura, fazendo desfilar, desordenadamen­te, em vinte e seis páginas, nomes tais como Ovídio, Lucrécio, Kundera, Boccaccio, Cavalcanti, Dante, Emily Dickinson, Henry James, Shakespeare, Cervantes, Rabelais, Cyrano de Bergerac, Jonathan Swift, Newton, Giordano Bruno, Luciano de Samósata, Ludovico Ariosto, Leopardi, Galileu, Voltaire, Leibniz, Pitágoras. A conferência explora caminhos novíssimos ou antigos, estilos e formas no universo infinito da literatura, articula o imaginário da literatura com diferentes ramos da ciência, destacando mensagens do ADN, impulsos neurônicos, quanta, neutrinos e informática, fazendo com que rea­

lidades físicas coexistam ao lado de fábulas mitológicas. Desliza para terre­nos da antropologia e da etnologia, incluindo mulheres, bruxas e a Santa Inquisição. Aponta, ainda, a Morfologia do conto de Propp e oferece o resumo de uma história curta de Kafka, O cavaleiro da cuba.

Matéria misturada confusamente ao sabor do acaso, como o próprio Calvino classifica o conteúdo de Voyage dans la lune, de Bergerac:

Há demasiados l/os illlrillcalldo-se em um discurs01 Qual deles devo puxar para ter

em IIUlos a cOllclusão' Há o .fio 'lue elllaça a lua, Leopardi, Newton, a gravitação

univerSal e a lnitação .... Há o fio de Lucrécio, o atomismo, a filosofia do amor de

Cavalcanti, a magia do Rellascimmto, Cyrano ... E há o fio da escrita como metáfilra

da substância l'ull'erulellta dOl/lundo (1990: 3íi e 39).

o segundo exemplo diz respeito a Seis passeios pelos bosques da ficção de Umberto Eco (1994),7 outro conferencista convidado por Harvard. Se

dermos crédito à orelha do livro, ainda que sem assinatura, trata-se de um pensador "inteligente" do mundo contemporâneo, examinando-o de diversos ângulos com incrível mobilidade de pensamento. Um pensador capaz de retroceder até às origens da narrativa ocidental para, em seguida, comentar o uso do tempo num filme pornográfico ou a maneira como o consumo de Coca-Cola afeta nossos hábitos de ler e pensar.

Com uma erudição repleta de humor, Eco discorre sobre modos de recepção nos contos de fada, nos romances policiais, nos noticiários de

jornais, em cartas de leitores, na literatura dos séculos XIX e XX, com o fascínio de quem está contando uma história. Pensador original, em busca de parâmetros coerentes para dimensionar o mundo, ele sabe, também, estimular o interesse do grande público, casando a rigorosa formação acadêmica com

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138 Revista Brasileira de Literatura Comparada, na 3

a experiência de romancista. O autor consegue traduzir questões "delicadas" em termos que nos tocam diretamente, transformando-nos em viajantes pelos caminhos do bosque da ficção. A metáfora do bosque para o texto narrativo coloca em destaque o papel do leitor e do teórico profissionais, compelidos a

tomar atitudes perante opções infindáveis. numa alusão direta ao "Jardim dos caminhos que se bifurcam" de Borges.

Nas vinte e cinco páginas do primeiro capítulo. "Entrando no bosque" (1994: 7-31), tropeçamos novamente na parada descontrolada de nomes e assuntos ligados à linguagem e à literatura que alinham - em torno da figura do leitor e do processo de leitura - E.A.Poe, Julio Verne, Lawrence Sterne, Carolina Invernizio, Kant, J ane Austen, Fernando Pessoa, Dostoievski. Salin­ger, Nerval, Swift, Wittgenstein, Joyce, Iser, Calvino, Melville, Agatha Chris­tie, Georges Poulet, Homero, Perrault, Grimm, Shakespeare, Flaubert, Eliot, Wayne Booth, Barthes, Todorov, E.D. Hirsch, Riffaterre, Genette, Foucault, Chatman, Fillmore, Pagliatti.

Ainda que Eco admita que o formato preciso do repertório do saber solicitado pela leitura de um texto permaneça no campo da conjetura, ele próprio, não há dúvida, aprecia o leitor de "competência enciclopédica" máxima (pp. 120). Ou seja, o profissional da academia, de quem se cobra uma cultura de dois milênios de tradição ocidental. Esse estudioso institucional não se permite encontros desarmados.

As perguntas que se impõem, em função dos exemplos dados, podem ser formuladas da seguinte forma: afinal, que produtores e consumidores são esses, que se comportam com tamanha voracidade e obsessão? Que compul­são é essa, que obriga a desfraldar no espaço exíguo de poucas páginas uma cultura de dois milênios de tradição. sequer compreensível, nessa forma compactada, para os próprios companheiros acadêmicos - ainda que esse fato permaneça na esfera dos segredos inconfessáveis entre pares? Diga-se de passagem, parceiros que militam, como se supõe, em campos de interesse pelo menos parcialmente comuns.

O mais escandaloso, nessa situação, é que esses livrinhos se transforma­ram em citação quase obrigatória para estudantes e profissionais de letras, fascinados com as sínteses ofertadas por belas figuras metafóricas e pelas paisagens exóticas que circulam nessas páginas, em que o encanto se estende à leitura da miscelânea de nomes e textos velozmente citados.

Em outras palavras, as nossas práticas intelectuais aproximam-se perigo­samente dos hábitos de turistas apressados, referidos por Bernheimer como "having read a few guidebooks to faraway places", em busca de pequenos souvenirs palpáveis e, ao mesmo tempo, suficientemente curiosos e em moda, para merecer um olhar fortuito quando passam a coabitar as nossas estantes, ao lado de livros nunca lidos porque disponíveis na forma sintética de dois, três parágrafos em nossos "guias turísiticos", repletos de citações oblíquas.

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X. ROBERTS, T. J. An Aesthetics

ol1unk Fiction. Athens: Geor­

gia U.P., 1990.

Teoria da literatura: instituição apátrida 139

Por outro lado, o que fazer? O que fazer, quando, diante do número cada vez maior de opções, desaparece no horizonte das possibilidades do intelec­tual a faculdade de julgar, de situar-se no equilíbrio justo entre o excesso de dados e o desejo por algum tipo de racionalização?

Volto a afirmar, portanto, que o profissional da área de letras não se pode permitir encontros desarmados. A sua investigação requer compromissos com a elaboração de sistemas categoriais e demanda, ainda, um grau elevado de conhecimentos arquivados de forma ordenada e hierárquica, articulados em sistemas conceituais coerentes. Esse acadêmico que transita no espaço da curiosidade científica aproxima-se do seu objeto de estudo acompanhado por determinada competência, avalizada pelos pares em função da dimensão do seu repertório de conhecimentos arquivados, tanto em relação a textos ficcio­

nais quanto em relação a textos teóricos e textos acerca de textos literários. Neste sentido, o leitor especializado - distinto do amador que passeia pela literatura de modo distraído - enxerga na paisagem da ficção vizinhos inte­lectuais, preferências filosóficas, escolas, querelas estéticas, paixões políti­cas. Ele homenageia com a escolha a sua própria curiosidade profissional de querer conhecer técnicas narrativas singulares, propostas temáticas inovado­ras, a inserção do livro na produção conjunta de uma autor, ou na tradição vigente.

O especialista produz comentários sobre textos literários, em outras

palavras, cria o texto variorum. Todos os textos são percebidos na companhia de outros, incontáveis. Nesta ótica, o romance do século XVIII não se entende como sistema que produzia romances escritos no espaço daquele século, mas como objeto variorum, como megatexto que abrange tanto os romances daquele período, quanto os comentários produzidos a partir de então. No caso dos clássicos o cenário abrange séculos de explicações, análises e controvér­sias críticas e teóricas que, de algum modo, são cobrados e validam, ou não,

a competência do crítico e do teórico que milita na esfera institucional do

profissional acadêmico.

Esse cenário não tem transparência para o leigo. Não faz parte de suas expectativas aprofundar o conhecimento de trabalhos críticos clássicos sobre Shakespeare, por exemplo, tais como explicações sobre alusões bíblicas, análises das condições de produção e recepção das obras, dos gêneros e estiros e conceitos de época; análises que nos últimos anos ofereceram pers­

pectivas novas sobre suas peças; os diferentes instrumentos metodológicos usados; manuais, monografias sobre direito, medicina e botânica; obras de

historiografia, livros sobre precursores e contemporâneos de Shakespeare, tratados sobre a estrutura de seu teatro, biografias; o conhecimento dos próprios textos em diferentes edições, formatos e combinações, com ou sem comentários, prefácios, introduções, apêndices, posfácios. Em resumo: "ma­terial para satisfazer a gulodice de uma vida inteira".8

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140 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

Esse hipertexto composto por, virtualmente, tudo que se escreveu e se

escreve "acerca" de Shakespeare e a sua obra permanece invisível ao olhar

amador. Quando este, por exemplo, conversa com um especialista sobre King

Lear, os dois falam, certamente, de textos diferentes. Para o acadêmico o

texto "palimpsesto", um caleidoscópio de todas as variantes da peça, incluída

a cadeia interminável de enunciados seculares sobre ela pelos mais conside­

rados - e até obscuros - comentaristas, pode transformar-se em deleite que

supera, talvez, o interesse pela leitura da própria peça teatral.

Não deveria espantar, então, que, segundo levantamento estatístico, es­

tudiosos americanos de literatura inglesa publicaram, em um ano, 544 traba­

lhos sobre Shakespeare.9 Mas espanta! Ainda que, certamente, não seja sufi­

ciente para saciar o apetite do crítico e do teórico. Se articularmos essa

informação com um dos anuários das atividades profissionais na área dos

estudos literários, publicados regularmente pela Modem Language Associa­

tion, teremos uma idéia do tamanho e da complexidade desse campo. O

relatório assinala, em cinco volumes, quase três mil Ítens diferentes, distri­

buídos entre notas, edições, artigos, coletâneas, monografias e livros, reco­

nhecendo, em ordem alfabética, a vigência das seguintes abordagens teóricas

da literatura: estruturalista, feminista, filosófica, hermenêutica, lingüística,

marxista, narrativista, neo-historicista, pós-estruturalista, pós-modernista,

pragmática, psicanalítica, psicológica, reader-response criticism, recepcio­

nal, retórica, semiótica e sociológica (Roberts, 1990: 235).

Consensual ou não, essa profusão de etiquetas, supostamente compondo

a cartografia atual dos estudos de literatura, perturba. Ao menos o leigo. O

especialista, em estado de graça, delira. Será?

Gostaria de acreditar que não. Se por um lado este novo espaço multiop­

cional mobiliza o teórico institucional para travessias interdisciplinares e

transdisciplinares, por outro, não só o próprio objeto de estudo mas, igual­

mente, o campo da sua investigação tornou-se opaco. Ele não sabe mapear e

arquivar a hiperabundância de ofertas e torná-las disponíveis para uma atua­

ção eficaz.

A questão pode então ser formulada mais ou menos da seguinte forma:

como esse profissional das letras se comporta - e deveria, ou poderia se

comportar - no cenário da nossa cultura mosaica diante da informação em

excesso e da sua própria falta de tempo. da incapacidade de assimilação e

construção de sentido, de algum modo, compreensível? A pergunta refere-se

tanto ao produtor quanto ao leitor teórico dessa cultura e à sua circulação num

espaço profissional particular: a academia. Será que ainda existe alguma

possibilidade, algum compromisso ou sequer desejo de querer transformar essa produção cultural em conhecimento arquivável e disponível em nossa

memória, quando solicitada, conferindo-lhe deste modo alguma utilidade?

9 RESCHER. N. The State Df

Northamerican PhiJosophy

Today. Review o{ Methal'hy­

sics. 46, Jun., J 993.

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Teoria da literatura: instituição apátrida 141

Se ainda acrescentarmos às tendências interdisciplinares a internaciona­lização e globalização quase total dos bens culturais, estaremos diante de uma situação de intransparência radical. Portanto, a questão urgente que se impõe para o intelectual - e, de modo geral, para o produtor, leitor e teórico desse repertório cultural enciclopédico - será a seguinte: que tipo de socialização e profissionalização seria necessário para permitir o equilíbrio entre desdenha­

do generalismo e desprezível minimalismo, ou dito de outro modo, para evitar o ridículo entre os extremos de saber nada sobre tudo ou conhecer tudo sobre nada?

É nesse ponto e nesse momento de hipercomplexidades extremas que se deveriam atualizar as discussões sobre os estudos da literatura, procedendo­

se a uma ret1exão renovada sobre as relações entre escrita, leitura, teoria e práticas de vida.

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1 NINA, Marcelo Della. O

grande salto para a História. Jornal do Brasil. Idéias. Rio

de Janeiro, 21 de setembro de

1991. p. 6-8.

Romance e história

Letícia Malard

Em urna reportagem intitulada "O grande salto para a História", Marcelo Della Nina entrevista algumas pessoas - professores de literatura, escritores e editores - sobre o boom, na década de 90, de romances pautados em fatos históricos. I Meus propósitos neste texto são, com o objetivo de ampliar o diálogo quatro anos depois, comentar o que disseram essas pessoas, e, corno desdobramento, especular sobre relações, tanto as perigosas quanto as segu­ras, entre Literatura e História.

Paulo Amador, autor de Rei branco, rainha negra, romance que narra a vida de Chica da Silva, declarou que o novo romance histórico tem três razões de ser: a necessidade de se procurarem mitos de moralidade e de se reencon­trarem heróis num país em crise; o comportamento do leitor - que entende o romance histórico, gosta dele e não tem vergonha de dizer que o está lendo; a saída do impasse entre a chatice do nouveau roman e o best-seller america­no de baixa qualidade.

A questão da crise do País apontada por Amador - o Brasil do empeach­

ment de Fernando Collor - poderia ser estendida para o mundo da globaliza­ção pós-queda do Muro de Berlim, urna vez que a atual corrida a fontes históricas para transformação em matéria romanesca é universal. A literatura reproduziria, dessa maneira, o que se passa na vida político-social em suas tentativas de buscar mitos de moralidade no passado e reencontrar heróis.

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144 Revista Brasileira de Literatura Comparada, na 3

Sem entrar no mérito dos acontecimentos, nota-se que, por esse caminho,

tanto na Literatura quanto na Vida, ao invés de se construir o novo está-se tentando reconstruir o velho. Ou, em muitos casos. o velhíssimo. Vejamos um exemplo universalista: A cidade russa de São Petersburgo, que já se chamou

Petrogrado e depois Leningrado, volta a ter o nome cristão primitivo. Apagou­

se-lhe não só a memória urbanística, das mais belas do planeta (edificada por

Pedro, o Grande, de quem herdou o nome em 191.+). como também a política

(recebeu Lenin na volta do exílio, nela se iniciou a Revolução de Outubro e

foi palco da resistência popular antinazista durante a Segunda Guerra Mun­dial). No que se pretendeu voltar às raízes identitárias atrayés da restauração

do nome primitivo, acabou-se por trazer para a atualidade. junto com o nome, todos os signos nele inscritos: São Petersburgo, nome que eyoca a era de

esplendor dos czares e da nobreza - em especial a do sanguinário Nicolau II

- era em que grassava a miséria entre o povo, a níveis insuportáveis. Nesse

talvez falacioso reencontro da identidade perdida, Leningrado passa a ser.

dentro de São Petersburgo, aquele resíduo de infelicidade referido por Marco

Polo ao Grande Khan. No imaginário dos petersburgueses, os símbolos de Leningrado foram recalcados. Dela só restam cinzas recolhidas por algum

Marco. Jamais poderá ser reconstruída nem recordada, diria ele.2 E a editora

Ars Poética não perdeu tempo: em 1992, traduziu para o português o romance então de vanguarda Petersburgo, de Andrei Biéli, cuja última edição em russo era de 1928.

Essa reconstrução do velho é uma faca de dois gumes e tem seus reflexos

na literatura. Reencontrar heróis do passado (que passado?), visando a esque­

cer crises, pode corresponder não só a uma saudável busca de identidade, como também à crença liberal saudosista de que existe uma nação concebida como de todos e/ou para todos. No caso do citado romance de Paulo Amador, de que gosto muito e que foi escrito especialmente com vistas à instituição escolar, teme-se que muitos professores desavisados induzam os estudantes

a enxergarem no livro, já a partir do título, uma convivência entre raças

idealizada porque sem preconceitos, e, o que é pior: historicamente existente

desde o Brasil-Colônia.

Quanto ao gosto do leitor graças à clareza do texto (do romance histórico em geral), a seu entendimento e o orgulhar-se de estar lendo episódios ficcionalizados de nossa história, não há o que discutir. Acrescentaria, ainda,

outro motivo: A preferência por esse tipo de literatura poderia corresponder à rejeição de narrativas inventadas do nada, (ainda que se tenha como certo que toda narrativa se constitui em transformação das que a antecederam) ou seja: os leitores comuns estariam perdendo o interesse por ficções originárias do imaginário/imaginação de um sujeito individualizado. Na era da mídia e da produção para o mercado altamente sofisticadas, os juízos de valor se pulverizam como nunca, os limites entre a boa e a má literatura estão obscu-

2. Referência ao diálogo entre

o viajante e o imperador. sobre

a inexistência das cidades des­

critas pelo primeiro, em: CAL­

VINO, Ítalo. As cidades invisí­

veis. São Paulo: Companhia

das Letras, 199 L p. 58.

Page 145: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

]. Vale a pena mencionar mais

alguns desses romances recen­

tes "coloniais" e sua temática:

O retrato do rei, de Ana Mi­

randa (a Guerra dos Emboabas

e o desaparecimento do retrato

de D. João V); Boca de chafa­

riz, de Rui Mourão (a Ouro

Preto da lncontidência contra­

ponteada com a de hoje); A

harca dos amantes, de Antô­

nio Barreto (o amor de Tomás

Antônio Gonzaga e Maria 00-rotéia Joaquina de Seixas);

FO/io verde, de Duílio Gomes

(Fernão Dias Paes Leme); A dança da serpente, de Sebas­

tião Martins (Bárbara Helio­

dora); JoseJa do Furquim, de

Vem Telles (a conquista e o

povoamento de Minas Gerais

no século XVIII); Nassau,

sanf.:ue e amor nos trápicos

(sobre os antecedentes da in­

vasão Holandesa de 1630 à morte de Maurício de Nassau),

Tiradentes (a trama da maço­

naria para salvar o herói da for­

ca) e Ville/ia/inon (os franceses

no Rio de Janeiro em 1555 e

seu vice-almirante Villegag­

non) - os três de Assis Brasil;

1591, a Inquisição na Bahia e

outras histórias, de Nelson

Araújo.

Romance e história 145

recidos. Qualquer um tem o direito democrático de produzir ficções (fazer literatura) e ser bem ou mal sucedido apenas em termos de jogadas mercado­lógicas e/ou comunicacionais. Os exemplos pululam por aí. Qualquer um de nós tem até o direito de, da nossa residência, por telefone, decidir pelo voto entre alternativas e no instante, como será o final de uma narrativa escrita pelo roteirista de TV. E para vê-l~ no ar minutos após o nosso voto.

Assim, a história que qualquer um se julga no direito de inventar ou nela intervir pode estar deixando de ser interessante, de despertar a curiosidade dos outros, pois cada indivíduo acaba sendo "capaz" de produzir ficções (para não dizer poesia) e, nesse aspecto, todos se igualam. O ato de fazer literatura "do nada" se banaliza, e parte-se em busca do consagrado pelo coletivo, com base no real/socialmente mitificado/ historicamente vivido - a História lite­rarizada.

Quanto à preferência do leitor pelo romance histórico como substituto do

best-seller norte-americano ruim, creio que deva ser encarada de outra ma­neira. Em minha opinião, os públicos é que são diferentes. Os leitores de romances históricos tendem mais para o acadêmico, o institucional escolar e o midel/lr. A eSSeS. seguramente o referido best-seller não agrada.

José Orlando Pinto da Cunha, da Editora Lê, que tem uma coleção chamada "RomanCes da História", informa que o projeto editorial partiu da verificação de que a biografia tinha boa aceitação e, portanto, a romanceada teria mais ainda.

Convém observar que esses romances foram encomendados a escritores de renome, alguns nunca tendo escrito romances. como foi o caso de Paschoal Motta, que publicou na coleção o supertrabalhado Eu, Tiradentes. E quando foram feitas as encomendas? Por ocasião das comemorações do bicentenário

da Inconfidência Mineira. Suas temáticas voltam-se preferencialmente para episódios e personagens ligados ao movimento, possuindo uma nítida cono­tação didático-pedagógica, de celebração, para atingir a uma significativa fatia do mercado. Somente a Editora poderia fornecer dados avaliativos sobre o sucesso do projeto, ontem e hoje, pois já tem romances em segunda edição,

Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, reconhecendo a internaciona­!idade do boom, lembra que, no Brasil, foi o Boca do Inferno de Ana Miranda que abriu as portas para essa espécie de romance. Reconhece também que a espécie intenta o resgate da memória nacional, o qual talvez esteja ligado a certa desesperança quanto ao futuro do País.

O que se poderia indagar é qual memória nacional tais romances estão

resgatando, para vinculá-los à desesperança futura. Via de regra, seus heróis

tipicamente brasileiros são heróis fracassados. Dentre os episódios históricos romanceados predominam os do Brasil-Colônia; portanto, fazem parte da opressão/repressão política, e muitos de seus personagens são agentes do poder repressor.3 Nesse sentido, o romance viria ratificar e historicizar a

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146 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

desesperança e, ao invés de resgatar a memória nacional, serviria de conso­lação à desesperança do presente e até mesmo a do futuro. No final das contas, talvez se esteja, mais uma vez, reconstruindo o velho ao invés de construir o novo ...

AProfa. Teresa Cristina Cerdeira da Silva. pesquisadora de José Sarama­

go, diz que o romance histórico se liga ao fascínio pela leitura da Nova História, que tem nesta o seu Outro, o seu objeto de desejo.4 E também por razões políticas: O Brasil passou por épocas em que pensar a História seria­mente foi impossível. Agora, o resgate está sendo feito. tanto pela História quanto pela Arte.

A fala de Cristina da Silva relaciona psicanálise e política. O nosso Outr%bjeto desejante é imune a juízos morais porque vivido no imaginário, na fantasia. Nesse campo, tanto posso viver a infeliz noiva pré-romântica

Marília de Dirceu quanto a rainha louca Maria L Entretanto, esse encanta­mento pela Nova História apreendida na leitura de romances corre o risco de conduzir o leitor a equívocos, na medida em que ele possa tomar como reais, e documentadamente acontecidos, fatos ou suas interpretações que não pas­sam de ficções literárias que recheiam os episódios históricos. Esquecendo-se de que historiador é uma especialização profissional que não se confunde com a atividade do escritor que pesquisa. Do ponto de vista político, a plena democracia permite hoje pensar a História através de diferentes manifestaçõ­es culturais e artísticas, sem patriotadas ufanistas como nos regimes anterio­res. Nesses, o obscurantismo não somente confundia o factual com o ficcio­nal, tomando romances e contos como retratos fiéis da realidade que não podia ser (d)enunciada, como também determinava os limites dos enunciados e enunciações literários através da censura prévia. Hoje, na democracia plena, corre-se o mesmo risco da mistura. Contudo, sem qualquer censura.

O historiador e autor de um romance histórico, Ioel Rufino dos Santos,5 emite uma opinião de destaque. Diz ele que a História como Ciência perdeu a credibilidade, dado o refluxo do marxismo e do materialismo histórico no mundo, bem como a falta generalizada de estudos precisos de sociologia sobre o Brasil. Daí as pessoas procurarem narrativas "verdadeiras", que preencham as lacunas deixadas pelas Ciências Humanas.

Sem discordar da avaliação de Rufino dos Santos, não vejo como vincu­lá-la ao sucesso do romance histórico, pois somente uma parcela mínima de seus leitores tem consciência de perceber as relações de causa e efeito apon­tadas pelo historiador-romancista. Da mesma forma, a falta de estudos socio­lógicos não atinge à quase totalidade dos leitores. Portanto, eles não estariam trocando leitura científica por ficção que aborda o mesmo tema.

Do exposto, pode-se perceber que os entrevistados revelam ter um ponto comum: o alto cacife do romance histórico se justifica na busca da identidade

4. Lembro que, segundo Peter

Burke, não é fácil definir cate·

goricamente a Nova História.

Entretanto, ele a distingue da

antiga história por seis pontos.

A Nova História: I. Interessa·

se por toda a atividade huma­

na, e não apenas pela política;

2. Preocupa-se com a análise

das estruturas, e não dos acon­

tecimentos; 3. Oferece uma vi­

são de baixo, isto é, das pes­

soas comuns e suas experiên­

cias das mudanças sociais, em

contraposição à visão de cima

da antiga história, que só privi­

legia os grandes homens; 4.

Examina outros tipos de evi­

dência, e não somente os docu­

mentos; 5. Enfatiza a plurali­

dade causal; 6. Valoriza a sub­

jetividade em detrimento da

objetividade. (BuRKE, Peter.

Abertura: A Nova História,

seu passado e seu futuro. In: ___ , org. A escrita da

História, São Paulo: UNESP,

1991. p. 7-37.

5, SANTOS, Joel Rutlno dos.

C/1)nica de indomáveis delí­

rios. Rio de Janeiro: Rocco,

1991. O romance tematiza Na­

poleão exilado na Ilha de San­

ta Helena influindo na Revolu­

ção Pernambucana de 1817 e

na Rebelião Malês da Bahia.

Page 147: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

6 Os romrulces estudados to­':ill1: Uhirajara, de José de

.... Iencar: Caetés, de GraciJiano

Ramos; Eu. Tiradentes, de

Poschoal Motta; A dança da

,c'1}(!1l1e, de Sebastião Mar­

uns; A descoberta da América

"elos turcos, de Jorge Amado.

Outros textos literários que

serviram de apoio: Iracema,

de José de Alencar; Boca do Inferno, de Ana Miranda; Rei

hmnco, rainha ne~ra, de Pau­

lo Amador; A harca dos aman­

tes, de Antônio Barreto; Ber­

nahé, Bernahé!, do uruguaio

Tomás de Mattos e Ruhaiayat,

de Omar Khayyam.

7. Outras questões relativas

ao tema estão esboçadas em

MALARD, Letícia. Tiradentes, o

Super-Homem. In: ___ ,

org. A ficção mineira hoje:

Romances da Inconfi­

dência. Belo Horizonte:

Cadernos de Pesquisa do

NAP'I.lFALE/UFMG, n° 18,

novo 1994, p. 7-20.

Romance e história 147

nacional. Como essa identidade é construída nesses textos, na ótica do autor. e como ela é recebida pelo leitor, é coisa que está à espera de pesquisas.

Essas questões opinativas sobre as causas do novo romance histórico conduzem necessariamente a um desdobramento no âmbito da Literatura Comparada: as relações entre Literatura e História. Ou, por outra: como, porque e para que os romancistas transformam o factual em ficcional. Em curso que ministrei na pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Minas Gerais no segundo semestre de 1994, foram analisados cinco roman­ces, com a perspectiva de detectar os procedimentos pelos quais os escritores se apropriaram de situações concretas do possível no terreno da micro-histó­ria, ou de fatos registrados pela macro-história do Brasil-Colônia, para pro­duzirem romances onde se articulam História e Ficção, com efeitos e funções bem delineados. 6 Esses efeitos e funções foram definidos da seguinte forma:

• A recuperação histórico-antropológica do Brasil ágrafo pré-cabralino em José de Alencar, visando à fixação dos pilares da construção da naciona­lidade no período imediatamente posterior à Independência Política.

• A permanência de um eu indigenizado no ofício de um sujeito-escritor, nas Alagoas dos princípios do século XX, em Graciliano relendo Alencar, com a intenção de retratar a fixação do primitivismo indianista nas mentali­dades regionais.

• A celebração histórico-literária da vida do herói máximo da História do Brasil- Tiradentes - em Paschoal Motta, com vistas ao didatismo da História através da Literatura, como parte de um projeto editorial comemorativo do bicentenário da Inconfidência Mineira.?

• A construção da figura de Bárbara Heliodora, amante/esposa do incon­fidente Alvarenga Peixoto, integrada no mesmo projeto do anterior e também visando ao didatismo do "bom" feminino: a perfeição da filha, da amante, da esposa, da mãe e da companheira política,

• A invenção de Adma, "turca" feia, matriarca e castradora de toda uma

família, porém comerciante - objeto do desejo matrimonial de dois imigran­tes árabes que buscam o enriquecimento fácil na zona cacaueira, mulher que se transforma após a entrega amorosa. O "romancinho", conforme o designa Jorge Amado, também faz parte de um projeto editorial coletivo de celebra­ção do quinto centenário da chegada de Colombo à América. Tendo sido escrito para tradução em várias línguas e para leitura em vôos internacionais, a narrativa trata de nova descoberta/conquista da América, pela via da paró­dia, da comicidade e do erotismo.

Observamos como a construção de uma identidade nacional perpassa pela constante presença do indianismo, de que todos "descendemos"; pela frustrada conjuração mineira, na medida em que se renega o português que nos descobriu e explorou; e pela imigração, que nos ensinou a trabalhar e contribuiu com o aumento de nossa riqueza. O discurso dessa identidade

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148 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

coloca a etnologia a serviço da política e do expansionismo de outros mundos

sobre nossa terra e nossa gente, fazendo com que o Brasil, com os primeiros e os últimos brasileiros, esteja em eterno processo de "descobrimento". 8

Vejamos, a título de exemplo, o caso do indianismo via síntese crítico-analí­

tica dos romances de Alencar e de Graciliano.

No caso de Ubirajara: Apesar de não ter designado o seu romance de "histórico" e sim de "lenda", talvez pelo fato de reconhecer a impossibilidade

de se fazer romance histórico stricto sensu focalizando sociedades ágrafas, Alencar inventa uma narrativa intermediária entre a História e o Mito, utili­zando-se dos estudos antropológicos à disposição em sua época. 9 Literarizan­do os antecedentes da História do Brasil, incorporando linguagens e arquéti­pos das comunidades primitivas da América, o escritor constrói uma narrativa em que, além de mitificar o elemento autóctone que participará mais tarde da

constituição da "raça" brasileira, prepara o terreno para o estabelecimento

pacífico da colonização, culminando com a união harmoniosa das três raças

formadoras da Nação.

O herói Ubirajara conquista e pacifica o território inimigo, unindo duas nações indígenas mediante a aliança matrimonial com duas mulhe­res, uma de cada nação.Essa inventividade histórica anterior ao achamento da terra acaba por legitimar ideologicamente a colonização iniciada de ime­

diato, em que o herói português, simbolizado em Cabral, conquista a terra achada e lhe impõe a sua cultura mediante a aliança da miscegenação, para dar origem a uma "raça" sem a marca da violência do colonizador nem do colonizado. 10

No caso de Caetés: relendo os carapetões de Alencar e Gonçalves Dias aprendidos na escola primária, Graciliano/João Valério, nos primórdios do

modernismo antropofágico em suas repercussões no Nordeste. desvela a permanência da mentalidade caeté na sociedade brasileira. A micro-história possível da cidade de Palmeira dos Índios corre entrecruzada com o romance histórico impossível dos Caetés. Ao tentar. inutilmente, escrever a história dos índios que habitaram a região desde o período pré-cabralino, Valério, o escritor frustrado, acaba escrevendo a versão moderna desses índios - os habitantes da cidadezinha - da qual é protagonista incapaz de assumir a alteridade caeté, ainda que a anteveja em outras personagens. ll

Na leitura de Luiz Costa Lima, Graciliano se coloca na encruzilhada do imaginário com o documental. Há poucas passagens em Caetés em que o escritor ultrapassa a mera documentação das aflições do medíocre narrador (a da náusea e do grotesco da procissão, p. ex.), diz Costa Lima. Se o romance (de Graciliano e de Valério) fracassa, é devido ao veto ao ficcional, à incom­petência para vi ver a alteridade do caeté. 12

Assim, a miscegenação idealizada pacificamente, porque através de alianças (que ficará mais evidenciada em Iracema, apesar de preparada me-

S. Só falta aparecerem roman­

ces "econômicos", de desco­

blimento do paraíso dos juros

para os capitais especulativos,

como se está presenciando

nesta metade de década 90.

9. Viu-se a influência de O

Brasil e a Oceania, de Gonçal­

ves Dias. na configuração dos

índios.

lO. Para uma análise nessas

coordenadas comparada com

Iracema, aindaquernuito mar­

cada pelo estruturalismo, ver

MALARD. Letícia. Relações en­

tre o homem e a tena no ro­

mance de Alencar. In

Escritos de literatura hrasilei­

ra. Belo Horizonte: Comuni­

cação. 1981. p. 99-113.

11. A configuração das perso­

nagens do romance dentro do

romance como índios caetés

está em MALARD, Letícia. En­saio de literatura hrasileira:

Ideologia e realidade em Gra­

eiliano Ramos. Belo Horizon­

tel São Paulo: ltatiaia/EDUSP.

1976. p. 30-41.

12 LIMA, Luiz Costa. Gracilia­

no Ramos e a recusa do caeté.

In: Sociedade e discurso .fie­

eional. Rio de Janeiro: Guana­

bara. 1986. p. 220-42.

Page 149: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

Romance e história 149

taforicamente em Ubirajara, com a união das tribos sacramentada pelo ma­trimônio com as duas mulheres, uma de cada tribo) é desconstruída por Graciliano. Sua personagem/escritor, mesmo incompetente para viver a alte­ridade do caeté conforme Costa Lima, reconhece a tatuagem do selvagem inscrita indelevelmente na "alma" do palmeirense (do brasileiro), tal como as digitais de sua identidade. João Valéria, que no final do romance se reconhece como um caeté de olhos azuis, que fala um português ruim, é a metáfora do brasileiro vivenciando na fantasia, plenamente, sua identidade: "civilizado" na aparência e "selvagem" (indianizado) na essência. Logo, no grau zero da miscegenação, se se entende ser esta muito mais que um mero ultrapasse da união sexual procriativa.

É claro que o dito acima não passa de construções/desconstruções ficcio­nais da ciência (antropológica), pois essa é uma das funções da Literatura. Se é certo que. nos parâmetros da realidade, somos seres absolutamente "civili­zados". os Tupis estão para nós como os Vikings estão para os escandinavos. Só a Literatura é livre para dizer isso.

Page 150: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03
Page 151: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

I. BORGES, Jorge Luis. Fifç"es.

Trad. Carlos Nejar. 5' ed. São

Paulo: Globo, 1989.

'. SIMON, Sherry. Rites of Pas­

sage: Translation and its In­

tents. In: The Mussudassets

Review. Springl Summer,

1990.

'. NAIPAUL, V S. The Enigma

ofArrivul, New York: Vintage

Books, 1987.

.. MURRAY, David. Forked

Tangaes: Speech, Writing &

Representation in North Ame­

rican Indian Texts. London:

Pinter Publishers, 1991.

o enigma da fusão ficção/crítica sobre tradução: rasura de

limites?

Célia Maria Magalhães

Podemos começar seja com aficção, seja com o documentário. Mas, com qualquer um

que se comece, inevitavelmente vamos nos deparar com o oatro.

(Jean-Luc Godard)

É uma característica dos textos literários pós-coloniais, especificamente os

romances e contos, a reflexão teórica sobre tradução, Só para dar dois exem­

plos, entre tantos, podemos nos referir ao conto de Borges, "Pierre Menard,

autor do Quixote", I já bem explorado pelos teóricos como fonte de teorização

sobre tradução, e ao romance da escritora canadense, Nicole Brossard, enti­

tulado Le désert mauve, sobre o qual há uma análise recente feita por Sherry

Simon,2 da qual o resultado é uma teoria de tradução, que se afasta dos

modelos tradicionais globalizantes e se aproxima de um recorte metonímico

no pensamento sobre tradução literária.

Enquanto o texto ficcional parece caminhar em direção à reflexão teóri­

ca, parece haver, do lado do texto teórico, um movimento inverso, em direção

à ficção. Os textos de teoria de tradução têm apresentado, assim como os

prefácios da tradução literária brasileira, características próprias ao texto

literário. Para abordar esta questão, meus pontos de partida serão o romance

de V. S. Naipaul, The Enigma of Arrival,3 e o texto introdutório do livro de

David Murray.4

No romance de Naipaul, o narrador só se insere como personagem

principal após descrever com riqueza de detalhes e nuances de cores não

apenas o jardim de Jack, que dá o título ao primeiro capítulo, mas também

toda a paisagem e a vida de uma pequena área rural no Condado de Wiltshire.

Page 152: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

152 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

próxima a Salisbury. No segundo capítulo, ele ganha a força de personagem principal do romance, descrevendo uma longa viagem, cujo passageiro é ele

enquanto sujeito pós-colonial, em seus deslocamentos entre a Índia, onde

nasceu, a ilha de Trinidad onde cresceu e foi educado sob a colonização

inglesa, e a Inglaterra, para onde foi, ainda jovem, estudar para ser escritor.

Um fato importante, logo no início do segundo capítulo, impulsiona o narrador/escritor a escrever sobre a sua experiência de vida: uma nova forma

de escrever, sem deixar de se colocar enquanto sujeito desterritorializado, ou como ele próprio diz, sem "esconder-me da minha experiência", ou sem

"esconder minha experiência de mim mesmo" (p. 288). Ao examinar livros

numa biblioteca da cidadezinha rural onde vive na Inglaterra, depara com um

livreto de reproduções das pinturas de Giorgio de Chirico; entre elas, uma lhe

chama mais a atenção, talvez por causa de seu título, que de uma maneira

poética se referiria a alguma coisa em sua própria experiência. É a reprodução

da tela O enigma da chegada, cujo título foi dado pelo poeta surrealista

Apollinaire e sobre a qual o narrador nos diz:

o que era interessante na pintura. ( ... ). era que - de novo. talvez por causa do título­

ela mudava na minha memória. O original (ou a reprodução no Livreto da Pequena

Biblioteca de Artes) era sempre uma surpresa. Uma cena clássica, mediterrânea, na

Roma antiga - ou, pelo menos assim eu a via. Um cais; ao fundo, por trás dos muros

e portões (que parecem figuras recortadas), o alto de um mastro de uma embarcação

antiga; numa rua deserta do outro lado, em primeiro plano, duas figuras, ambas

indistintas, uma talvez a pessoa que chegou, a outra talvez um nativo do porto. A cena

é de desolação e mistério: fala do mistério da chegada. Falou disso para mim, como

também para Apollinaire. (p. 98)

o quadro de Chirico faz o narrador lembrar-se imediatamente de sua

própria chegada à área rural em Wiltshire, os quatro dias de brumas e chuvas em que tudo ainda era muito nebuloso para ele. Ele passa a imaginar a história que poderia escrever inspirando-se no quadro de Chirico. O tempo da história seria o período clássico; o local, o Mediterrâneo, e a narrativa não teria

preocupações com estilo de período ou com a explicação histórica deste. O

narrador chegaria a esse porto clássico, por um motivo ainda a ser definido,

passaria pela figura embaçada no cais, através de toda a desolação, vazio e silêncio, e entraria, por um dos portões, numa cidade que logo o engoliria, com seu barulho e movimento de vida; na sua imaginação, como uma cena

de bazar indiano. Ele teria vindo numa missão que lhe traria aventuras e encontros, mas, gradativamente, se apossaria dele um sentimento de pânico, de ter vindo para nada, sem missão alguma, de estar perdido. Ele tentaria voltar para o cais, mas não saberia como, até que, num momento de crise, ele entraria por um dos portões e chegaria ao porto da chegada, sentindo-se a

Page 153: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

5 ALEXANDRIAN, Sarane. O

Surrealismo. Trad. Adelaide Penha e Costa. São Paulo: EDUSP, 1976.

6, PASSERON, René. Histoire de

la peinture surréaliste. Libra­rie Générale Française, 1968.

7 CAVALCANTI, Carlos. Como

entender a pintura moderna.

S' ed. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1981.

o enigma da fusão ficção/crítica sobre tradução 153

salvo, num mundo familiar à sua memória. Mas a vela e o barco já não

estariam mais lá e não haveria mais como retornar.

O narrador, com sua leitura do quadro de Chirico, está nos falando de sua

própria experiência como sujeito pós-colonial, em busca de sua própria

identidade, dividida entre sua cultura de origem e a cultura que lhe foi

imposta. Esta cultura, por sua vez, o faz construir uma imagem idealizada do

seu espaço e do espaço do outro, o que lhe dá a sensação de que nunca está

no lugar adequado, ou que tal espaço, uma vez apreendido, deveria ser

imutável. Por exemplo, quando ele, aos dezoito anos, sobrevoa pela primeira

vez a ilha de Trinidad, rumo à Inglaterra, a imagem que tem da ilha é

totalmente diferente daquela que ele tinha antes: de uma imagem de pobreza

e desorganização, a ilha, para usar suas próprias palavras, é "como uma

paisagem num livro. como a paisagem de um país de verdade". Por outro

lado. quando ele reconhece na paisagem da área rural onde, vinte anos depois,

vive na Inglaterra. a paisagem das pinturas de John Constable, seu desejo, a

princípio. é que essa paisagem se mantenha imutável para que ele possa ter,

em sua memória, uma imagem do porto seguro.

Naipaul se inspira em um dos "enigmas" de Chirico para escrever a sua

obra. Segundo Sarane Alexandrian: 5

Chirico é o pintor do silêncio; descreve o momento da espera "em que tudo se cala" e

se paralisa, diante de um presságio ou de uma aparição que se anunciam. O seu

universo está no limiar do acontecimento. Encerra nas suas linhas calmas e harmonio­

sas o medo e a curiosidade do que vai acontecer. (p. 60)

É por isso que, ainda de acordo com Alexandrian, a Chirico, para conce­

ber seus "enigmas", bastam elementos simples, tais como "um relógio, uma

estátua vista de costas, uma sombra furtiva e os cheios vazios de uma arqui­

tetura para a composição de quadros assombrados". Para autores como René

Passeron,6 apesar de os títulos de seus quadros terem sido dados por seus

amigos poetas, especialmente Apollinaire,

"( ... ) como negar que eles convenham ao mundo de expatriação através do qual Chirico

coloca suas questões sem resposta? A ausência de resposta é simbolizada pelos perso­

nagens-fantasmas de muitas composições que convidam à análise psicológica.".

(p.45)

É ainda de acordo com o mesmo autor que Chirico, como Rimbaud e

muitos outros, "não conseguiu fazer face ao absurdo, naquele ponto onde

todas as contradições se resolvem no vazio da interrogação sem resposta".

Chirico inspirou os surrealistas franceses que, segundo Carlos Cavalcanti: 7

"( ... ) também conferiram aos simples objetos quotidianos significação estra­

nha, mergulhando-os numa atmosfera de mistério e absurdo". (p.I78)

Page 154: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

154 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

Chirico também inspira o narrador de Naipaul para contar sua história,

pois como desterritorializado, ele também se vê sempre no limiar dos acon­

tecimentos, no limiar dos espaços geográficos. mas. paradoxalmente. ele não

se cala; ao contrário, procura respostas para a sua identidade pós-colonial

híbrida. Ele também procura resposta para sua identidade dividida entre o

homem e o escritor. Conforme observa Suzana Schild:8

Com a identidade dispersa entre a formação por rituais indo-asiáticos. a vIvência na

ilha caribenha, e a Inglaterra adotada, V. S. Naipaul debatia-se também entre os

contornos mal delimitados entre o homem e o escritor, entidades sentidas como

separadas, e que apenas vez por outra se intercomunicavam".(. .. ) "Apesar da angústia.

Naipaul não tem pressa na chegada: chega devagar descrevendo com minúcias cami­

nhos, vegetação e paisagens."

Diferentemente de Chirico, Naipaul procura encontrar a resposta para

seu problema de identidade dispersa entre múltiplos espaços, Ele faz isso,

usando para escrever, as técnicas que John Constable usava para retratar as

paisagens inglesas: descreve, com ricos detalhes de cores a vegetação e a

paisagem da área rural perto de Salisbury, Conforme considerações de vários autores, Constable introduz, na pintura da paisagem, uma técnica nova, a de

aquarela e pintura ao ar livre, rompendo com os padrões acadêmicos anterio­res, com o objetivo de retratar cada mudança provocada pelos efeitos de luz

e sombra na natureza:

"Do ponto de vista sensorial, ele (Constable) exprimirá rigorosamente as afinidades do

artista com a natureza, suscitará também a criação de uma técnica própria; enfim, ele

sugerirá problemas específicos que, ao longo de todo o século XIX, vão se opor às

tradições acadêmicas", ( .. ,), ele prova a necessidade de fixar a mobilidade essencial

que aí (na natureza) descobre. Uma existência melancólica o leva a comover-se sobre

a fuga do tempo, com o propósito de o eternizar. Estas são as inclinações que penniti­

rão a Constable fazer viver uma paisagem. e então descobrir uma técnica nova para

servir uma estética que inauguraria na pintura uma das fonnas de Romantismo" 9

(p. 45)

Diz ainda Gina Pischel lo sobre a obra de Constable:

Em Constable, existe um espírito quase caseiro, de submissão humilde à natureza;

espírito que, num breve trecho de área rural inglesa ou de suas praias o levará a

descobrir "motivos" infinitos de inspiração, "Dois dias, ou duas horas, nunca se

assemelham. A partir da criação em diante, nunca existiram duas folhas idênticas",

dizia ele. E, úmida e fresca, sob céus luminosos e com as distãncias que a atmosfera

torna diversas umas das outras, esta mobilidade da Natureza é aquilo que ele apaixo­

nadamente retratará, esquecendo o mundo. Cp. 134)

8. SCHILD, Suzana. Um autor

procura seu porto seguro. In:

Idéias/Livros. Jornal do Brasil.

12/3/94, p.5.

\J. LES GRANDS SIECLES DE LA

PEINTURE: le dix-neuvieme si e­ele. Geneve/Paris/N. York:

Edilions Albel1 Skira, 1951.

10. PrsCHEL, Gina. História

Universal da Arle. 2' ed. V. 3.

Trad. Raul de Polillo. São Pau­

lo: Cia Melhoramentos de SP.

1966.

Page 155: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

li. SÉRULLAZ, Maurice et a!.

Enc.:yclopédie de l'lmpression­

nisme, Paris: Somogy, 1974.

12 SCHILO, Suzana. Opus Cit.

O enigma da fusão ticção/crítica sobre tradução 15)-

Parece que fica claro que a nova técnica que Constable introduz na arte da pintura tem como fundamento a participação intrínseca do sujeito/pintor

no registro das mutações inerentes à natureza: o pintor observa, ao ar livre,

todas as nuances de cores e luz e as retrata de acordo com uma sensibilidade

que lhe é própria, Constable é considerado por autores, tais como Maurice

Sérullaz ll et ai, como um dos precursores do impressionismo que, no dizer

desses autores:

É um "sistema de pintura que consiste em traduzir puramente e simplesmente a

impressão tal qual ela é experimentada materialmente". O artista impressionista "pro­

põe-se a representar os objetos a partir de suas impressões pessoais sem se preocupar

com as regras geralmente admitidas." (p.7)

É a resposta que Naipaul encontra para resolver a questão da identidade

dispersa entre espaços e entre o homem e o escritor: deixar Huir o seu sujeito,

com todo o hibridismo de culturas, na sua experiência de vida, retratando de

acordo com impressões multi facetadas, os espaços miscigenados das culturas

pós-coloniais. E se ele encontra o porto seguro que procura, este porto é um

espaço. no meio da Inglaterra. onde ele "entrelaça. ( ... ), presente e passado,

Trinidad. Índia e Inglaterra ( ... I". conforme nos diz Schild. 12

O resultado do romance de ~aipaul é que. para os "sujeitos traduzidos",

nas palavras de Salman Rushdie. não é possível a volta à origem pura, nem o

encontro de um espaço/alvo imutável. Uma das provas disso é que, em

Trinidad, no ritual de despedida da irmã morta, o pândita que conduz a

ceriminônia "( ... ) equaciona o Hinduismo - especulativo, multifacetado, de

raízes animistas - com as fés reveladas do Cristianismo ( ... )" (p. 348). Ou o

fato de ele usar um Gita com traduções inglesas, e nos intervalos do ritual e

das canções de alguns versos famosos em Sânscrito, ele fazer uso dessas

traduções inglesas, sendo explicada a sua atitude da seguinte forma pelo

narrador: "( ... ), usando uma palavra ecumênica (assim penso eu), ele disse

que "compartilhava" Gitas. As pessoas lhe davam Gitas; ele dava Gitas para

as pessoas". (p.349).

O porto seguro de Naipaul é esse espaço compartilhado, ambivalente, de

Gitas em Sânscrito e em inglês e de equacionamentos de religiões. Este

também é o espaço em que melhor se coloca a tradução: num espaço ambígüo

entre o mesmo e o outro, numa "interzona" em que se misturam identidades

e culturas.

Há várias outras ligações entre a narrativa da obra de Naipaul com a

pintura, entre elas, destacarei apenas mais uma, apenas para reforçar o ponto

de que o estilo da pintura paisagística de Constable torna-se um meio de

comunicação com o mundo exterior. O senhorio da área rural onde vive o

narrador/escritor de N aipaul, que nunca é visto claramente por este, pois sofre

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156 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

de acedia, comunica-se com o primeiro através de poemas que escreve e que representariam uma forma de boas-vindas. Ele deixa crescer no jardim das casas de campo uma hera que recobre, especialmente a sua casa, simbolizan­do o seu afastamento do mundo exterior. Entretanto, ao se curar, ele passa a

se comunicar com o narrador através de desenhos

( ... ) estranhamente fluentes, praticados, fáceis, como se tivessem sido feitos muitas

vezes antes, como se viessem de um segmento daquela vida passada da qual meu

senhorio tinha acabado de se recuperar: desenhos do tipo de Beardsley, de outra época, com linhas longas e encaracoladas e pequenas áreas pontilhadas enfatizando as gran­

des áreas brancas. (p. 254)

Todas as ligações com a pintura apontadas na obra de Naipaul permitem­

nos dizer que se trata do gênero de romance denominado künstlerroman que, de acordo com Solange Ribeiro de Oliveira,13 abrange:

( ... ) qualquer narrativa onde uma figura de artista ou uma obra de arte (real ou fictícia)

desempenhe função estruturadora essencial, e, por extensão, obras literárias onde se

procure um equivalente estilístico calcado em outras artes ( ... ) (p. 5).

A autora reforça essa mesma idéia quando conclui que "a "leitura" de um quadro, C .. ,), pode resumir toda a estruturação de um romance C ... )" Cp. 9), acrescentando que:

( ... ) o esforço da leitura - da própria obra ou da alheia - pode indicar também a busca

do conhecimento, a elaboração do mundo pela mente. Ou, alternativamente, a obra de

arte transforma-se em metáfora do romance. (p. 9)

A obra de Naipaul parece encaixar-se, introduzindo algumas alterações de sinais, em todas as alternativas de künstlerroman apontadas pela autora: a tela de Chirico inspira o narrador/escritor na escritura da história de sua vida, viagem em busca da identidade e espaço dispersos, e que, segundo ele, tem muitos pontos em comum com a leitura que ele faz do quadro do pintor. Podemos dizer, então, que a pintura serve como ponto de partida para o romance; ponto de partida que será refletido e mudado ao longo da narrativa. Conseqüentemente, usando, para escrever, a técnica paisagística que Consta­ble usava para pintar no século XIX, ele está também procurando, na narra­tiva, um equivalente estilístico de outra arte, ao mesmo tempo que sugere, como resposta para o enigma homem/escritor, o impressionismo mais que o surrealismo como fonte de iluminação, Ao mesmo tempo, a tarefa de ler a obra dos pintores mencionados está estreitamente ligada ao processo de auto-conhecimento, de busca de identidade e espaço pelo narrador. Por fim, a tela de Chirico, procurando traduzir o mistério que circunda momentos de

13. OLIVEIRA. Solange Ribeiro

de. Literatura e Artes Plásti­

cas: o künstlerroman na ficção

contemporânea. Ouro Preto:

UFOP, 1993.

Page 157: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

14 MURRAY, David. Opus Cit.

o enigma da fusão ficção/crítica sobre tradução 157

nebulosidade e indefinição de impressões, tais como a chegada a um lugar distante, pode ser considerada não como metáfora, mas como metonímia do

romance, Para tal consideração, é interessante uma análise da capa do roman­

ce. Se, no caso de O quarto fechado, de Lya Luft, Oliveira sugere que a tela

imaginária lida pela personagem principal, transforma-se na metáfora do romance, portanto constituindo o espaço integral da capa deste, no caso do

romance de Naipaul, há apenas uma reprodução pequena da tela de Chirico, à direita da capa. Em parte, talvez, tentando "reproduzir" a pequena reprodu­

ção que o narrador viu no livreto da biblioteca, mas também, certamente, para

mostrar o papel apenas parcial que essa obra e os preceitos filosóficos subja­

centes a ela têm para o narrador na busca de sua identidade.

Partindo das várias alternativas de tipos de künstlerroman, levantadas

por Oliveira, vamos chegar também ao texto introdutório de Forked Tongues:

speech, writing and representation in North American Indian Texts, de David

Murray.14 O autor faz a leitura de um quadro de Frederic Remington O

intérprete acenou para o jovem, que ilustra um relato, entitulado O caminho

de um índio, no qual as relações entre Índios e brancos são retratadas de forma característica, apagando-se a figura mediadora do intérprete, a respeito do qual sabemos apenas que se trata de um mestiço e nada mais. O quadro é

insólito, continua o autor, pois ao mesmo tempo que faz do intérprete o centro

de atenção, desloca o ponto de interesse do intérprete para o jovem para o

qual o primeiro acena. Murray equaciona essa leitura da tela de Remington

com a curiosa postura do intérprete que, só a custa do apagamento de sua

identidade, consegue ser o centro das atenções. Um dos objetivos principais

do seu livro é:

( ... ) demonstrar as formas complexas e vmiadas pelas quais o processo de tradução,

cultural e lingüístico, é obscurecido ou apagado numa ampla variedade de textos que

dizem representar ou descrever os índios, e que pressupostos culturais e ideológicos

subjazem tal apagamento. (p. I)

A partir disso, a proposta de Murray é focalizar o mediador ou o intér­

prete e não quem ele aponta, ou seja, é concentrar-se nas várias formas de

mediação cultural ou lingüistica que permeiam os encontros de culturas, reduzindo o perigo de tornar o espaço que há entre os dois lados num abismo

intransponível, em outras palavras, de transformar as diferenças em outrida­

de. Assim, o autor se propõe a analisar as várias vozes presentes nos textos

que objetivam a representação da cultura indígena norte-americana, rejeitan­

do a obliteração da diferença e da mediação, ênfase de um universalismo

etnocentrista, e procurando analisá-la dentro de um constante jogo com as

unidades e continuidades interculturais.

Page 158: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

158 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

Talvez ainda seja prematuro concluirmos que a obra de arte, no texto de Murray, tenha tidO função estruturadora essencial ou que resuma a estrutura­ção do livro, mas pode-se constatar que é um elemento básico, cuja leitura

serve como ponto de partida para suas reflexões sobre os vários tipos de representações da cultura indígena e os pressupostos ideológicos que as permeiam. Ademais, o texto de Murray pode estar lançando as sementes para uma escritura de textos teóricos nos moldes de uma escritura que pretende a rasura de limites entre o poético e o científico. Oliveira l5 observa a respeito do künstlerroman:

A presença marcante do künstlerroman na literatura brasileira e européia contemporâ­nea certamente se relaciona com o confronto, no mundo moderno, entre a arte e a ciência. Dois modos de ver o mundo parecem travar um diálogo - e um duelo - na obra

de alguns dos mais eminentes escritores do século: a visão do artista e do cientista.

No caso do texto de Murray, parece-nos não apenas a tentativa de esta­belecer um diálogo entre os dois mundos, mas ta~bém de mostrar o caminho de mão dupla que pode haver entre ficção e teoria: se é possível teorizar ficcionalizando, também o é ficcionalizar teorizando.

As palavras de Liliane Papin,l6 que estuda a importância da metáfora para a arte e a ciência, entre outros temas, também são esclarecedoras da questão e nos remetem às palavras de Jean-Luc Godard,l7 em epígrafe neste texto:

"A lingüística, a pintura, a crítica literária, a literatura e a física estão se encontrando

numa encruzilhada, enquanto, antes, tinham seguido caminhos paralelos. C .. ) Como

disse Roger Jones em Physics as Metaphor (Minneapolis: University of Minnesota

Press. 1990, -: "somos todos poetas e o mundo é nossa metáfora". (p. 9)

15. OLiVEIRA, Solange Ribeiro

de. Opus Cit.

16 PAPIN, Liliane. Apud: OLi· VEIRA, Solange R. de. A tradu­ção intersemiótica: a questão da representação. Trabalho apresentado no I Congresso de Ciências Humanas das Uni­versidades Mineiras, São João deI Rey, maio de 1993. (no prelo)

17 GODARD, Jean-Lue. Apud: TRIGO, Luciano. Vampiro. São Paulo: Iluminuras, 1993. p. 5

Page 159: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

I. ELAM, Keir. The Semiolics oI

Theatre and Drama. Londres

& N. York: Methuen, 1980.

2 HONZL, Jindlich. A mobilio

dade do signo teatral. In

GUINSBURG, J., COELHO NETTO.

J. Teixeira e CARDOSO, Reni

Chaves, orgs. São Paulo: Pers·

pectiva, 1988, p. 125-47. (O

artigo foi escrito em 1940).

Transcodificaçãoe metateatralização no

teatro de Nelson Rodrigues

Fred M. Clark

o dramaturgo concebe e constrói seu mundo ficcional com palavras, isto é, dentro do código verbal. A representação teatral, a concretização pelo diretor do texto escrito em espaço e tempo determinados, constitui uma transcodifi­cação, uma vez que é uma transferência (ou tradução) de signos do código verbal (escrito) para um conjunto complexo e complicado de múltiplos códi­gos ou subsistemas de signos teatrais. Desta transcodificação nascem os

mundos possíveis do palco.

Dentro da própria representação podem operar outras transcodificações. São estas transcodificações teatrais que interessam aqui, essas associadas ao "fator da mobilidade" (ou "a regra transformacional" da representação tea­trai, 1 noção caracterizada pelos estruturalistas do Círculo de Praga. Honzl (1940)2 explica que qualquer veículo sígnico no palco (acessório, ilumina­ção, movimento, etc.) pode significar qualquer classe de fenômeno, i.e., no signO' teatral as relações entre veículo sígnico e referente não são fixas, são variáveis: " ... no teatro ... a transformabilidade é a regra, e seu caráter especí­fico" (Honzl, 141). O mundo possível do palco pode ser construído através do fator espacial, arquitetural ou pictorial, ou pode emergir por meio dos gestos e/ou do código verbal. Segundo Elam (15), a transcodificação ocorre no espetáculo quando "uma unidade semântica específica (uma porta, por exem­pio) é evocada através do sistema lingüístico ou gestual e não através do

Page 160: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

160 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

sistema arquitetural ou pictorial". Quer dizer, uma informação que é geral­

mente veiculada por um código é repassada para os espectadores através de

outro.

Kowzan (1968)3 formulou uma taxonomia para o signo teatral composta

de 13 sistemas, entre os quais a linguagem verbal, o tom, a mímica facial, o

gesto, o movimento, a maquilagem, o penteado, o vestuário, o acessório, o

cenário, a iluminação, a música e o ruído. O teórico refina a sua tipologia,

classificando esses signos em termos de auditivos e visuais, de tempo e espaço, e em relação ao ator, i.e., se são localizados no ator ou fora dele. A

sistematização de Kowzan dos fenômenos semi óticos teatrais ainda é a mais

fundamental no estudo dos sistemas sígnicos do palco. Mas, como no caso de qualquer redução de uma unidade complexa a categorias específicas, há

problemas inerentes ao seu estudo. Outros teóricos. percebendo as falhas da

classificação de Kowzan, acrescentam outros sistemas sígnicos, para incluir

a arquitetura da própria casa de espetáculo (Elam 1980: 50; Esslin)4 e o

próprio espectador (Van Zyl).5 Segundo Issacharoff,6 um dos problemas no

trabalho de Kowzan é a inobservância do fenômeno da interrelação simultâ­

nea dos signos dos vários sistemas do espetáculo. A representação teatral,

através do dinamismo criado pela mobilidade do signo, faz do palco um

conjunto intersemiótico ("uma verdadeira polifonia informacional", como

diz Barthes7 em que uma multiplicidade de signos dos vários sistemas exis­

tem e coexistem simultaneamente, com signos significando não só dentro de

seu próprio sistema mas também dentro de outros.

Para ilustrar a noção da transcodificação teatral usarei a taxonomia

elaborada por Kowzan e buscarei exemplos concretos da peça Bonitinha mas

ordinária (1962) de Nelson Rodrigues.8 Neste texto o dramaturgo retoma

vários temas prediletos de seu teatro, especificamente a decadência e desin­tegração da família patriarcal. Como diz uma personagem em certo momento

da peça:

Toda família tem um momento, um momento em que começa a apodrecer ... Pode ser

a família mais decente, mais digna do mundo.

Nelson focaliza a fragilidade desta instituição monolítica da sociedade

brasileira para explorar temas mais abstratos e universais que sempre definem

suas obras dramáticas: a instabilidade da percepção humana que resulta em uma realidade cheia de ironias e caracterizada, no mundo textual, por um contraste constante entre o real e o imaginado. Daí o elemento metateatral

que sublinha seus mundos ficcionais: o seu teatro tira a máscara e se mostra como teatro, ao mesmo tempo em que Nelson tira a máscara da família

patriarcal e revela sua hipocrisia e instabilidade.

3 KOWZAN, Tadeusz. Signos

no teatro - Introdução li se­

miologia da mle do espetácu­

lo. In GUlNSBURG, 1., COELHO

NETTO, 1. Teixeira e CARDOSO,

Reni Chaves, orgs. São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 93-123.

4 ESSLlN, Martin. Tlle Fie/d oi Drama. Londres: Methuen.

1987.

5 VAN ZYL, John. Towards a

Socio-Semiotic of Performan­

ce. Semiofic Serne, 3 (2): 99-

111,1979.

6. IssAcHAROFF, Michael. Dra­

ma and the Reader. Poelics To­

da)', 2 (3): 255-63, 1981.

7 BARTHES. Roland. Criticai

Essa.l's. Trad. Richard Ho­

ward. Evanstone: Northwes­

tem University Press, 1972.

8. RODRIGUES, Nelson. Teatro

completo. Vol. IV. Rio de Ja­

neiro: Nova Fronteira, 1989.

Page 161: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

Transcodificaçã0 e metateatralizaçãe no teatro de Nelson Rodrigues 161

o mundo ficcional do texto focaliza o mundo de ilusões de duas mulhe­res (Ritinha e Maria Cecília) que vivem atrás da máscara imposta pela sociedade tradicional. Ambas vivem uma mentira; Ritinha ostenta a fachada pública de uma pobre professora que trabalha para que as suas irmãs possam se casar virgens. Maria Cecília vem de uma família rica que insiste em que ela, mesmo tendo sido violada, se case. Criando um triângulo relacional, entra a personagem Edgard, que trabalha para o pai de Maria Cecília (o Df. Werneck). Edgard é selecionado (comprado) para se casar com Maria Cecília, mas é Ritinha a quem ele adora. O dilema de Edgard é o seguinte: ou se casa com Maria Cecília, sabendo que é comprado, ou se casa com Ritinha, saben­do que ela é prostituta. No final, ele foge com Ritinha, ao saber que a violação de Maria Cecília é uma mentira, que foi planejada por ela mesma, que ela não corresponde à imagem de menina pura projetada pelo pai.

O desmascaramento das duas mulheres é realizado através de um recurso bastante comum no teatro rodrigueano: o flashback que constitui uma repre­sentação dentro da representação, com um espectador textual - aqui, Edgard - chegando a saber a verdade ao mesmo tempo que o espectador extratextual. Esses recursos são realizados em parte pela transcodificação que enfatiza

sobremaneira a metateatralidade do texto.

No Ato I1I, Edgard observa a cena em que Maria Cecília é violada. Uma porção do palco é transformada em outro palco enquanto o espaço é usado para a narração visual do estupro, a partir da perspectiva de Maria Cecília. O dramaturgo usa a luz em vez de acessórios para definir o espaço físico-tem­poral:

Maria Cecília encaminha-se para uma área de luz. Peixoto aparece. Evocação do

episódio. (298).

Pouco depois Edgard e o espectador sabem> que a versão é puro teatro,

que não passa de mentira.

A verdade sobre a vida de Ritinha é revelada da mesma maneira. Um espaço do palco é aproveitado para uma narração em que o espectadcu vê que Ritinha foi explorada pelo chefe de sua mãe e que esta se torna, logo em seguida, prostituta com o objetivo de sustentar a família. Edgard fica em um lugar no palco enquanto Ritinha se afasta para outro espaço onde represental

o passado. O fato de que o espaço dela constitui uma representação é afirma­

do duas vezes quando Ritinha, sem sair do lugar demarcando o passado,

abandona a ação daquele espaço temporal e fala com Edgard no presente:

"Sem sair do lugar, Ritinha vira-se e começa a falar para Edgar" (304); "Vira-se então para Edgard sem sair do lugar" (305). Neste caso o espectador percebe Edgard como espectador dentm do texto, e os dois aprendem nova

informação sobre a vida de Ritinha.

Page 162: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

162 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

A transcodificação define dois recursos específicos que são usados na

representação, recursos que, ao mesmo tempo, revelam o statlls ficcional do texto: a construção da cena pelos atores e o uso de projeções em uma tela no palco. Os dois são usados várias vezes, constituindo uma cadeia através do

texto que constantemente rompe qualquer ilusão realista no palco. manipu­

lando o espectador entre dois códigos nem sempre opostos: o código teatral

(que o leva para mundos imaginários, i.e., o ficcional) e o metateatral (que

leva para o real, i.e., o mundo extratextual). Emerge no texto um realismo não visto em obras tradicionais, um realismo mais amplo para capturar as com­plexidades da realidade caótica e ambígua do século XX.

Em vários momentos do texto, o dramaturgo abandona o cenário natura­lista e a representação realista (cf. Elam 13: "A representação dramática

realista ou ilusionista limita rigidamente a mobilidade da relação sígnica: no

teatro ocidental geralmente presumimos que a classe de objetos é significada por um veículo sígnico reconhecível, de alguma maneira, como membro da classe"), criando o mundo ficcional com acessórios imaginários através da pantomima. O movimento cênico do ator e o cenário, que constituem siste­mas sígnicos independentes na classificação de Kowzan, substituem os siste­

mas - o pictorial e/ou o arquitetural - que geralmente seriam colocados na cena. No Ato I, os atores representando Ritinha e Edgard criam a cena em que as duas personagens viajam em um jipe:

Ritinha e Edgard se dirigem para duas cadeiras. que vão funcionar como se fossem o jeep. Os dois vão mover as cadeiras para dar ilusão de velocidade. curva, solavancos,

etc. O suposto jeep parte aos trancas. (261)

As duas cadeiras pertencem ao sistema do cenário. mas aqui perdem o seu valor representacional normal quando os atores as arranjam lado a lado como as poltronas dum automóvel, e fazem os gestos de entrar nele. Com seus corpos simulam os movimentos do carro. O código verbal é usado para completar a cena. As personagens discutem a velocidade do jipe:

Ritinha: P'ra que essa velocidade? Edgard: Gosto de correr. (261)

Na estréia da obra no Rio em 1962, o diretor usou um jipe verdadeiro no palco, o que levou um crítico a notar que teria sido melhor seguir as instru­ções originais do dramaturgo. Como disse Fausto Wolff: "Não vi necessidade de colocar um jipe, que mais parece um carro alegórico, em cena, quando poderia ter resolvido o problema com duas cadeiras e mímica".9 O uso do objeto real destruiria em parte o efeito metateatral realizado através da mími­ca, modificando a perspectiva do dramaturgo sobre a realidade, e assim o

9. MAGALDI, Sábato. Nelson

Rodrig ues: DramaturK ia e en­

cenaç"es. São Paulo: Perspec­

tiva/EDUSP, 1987.

Page 163: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

10 BRECHT, Berto1d. Brecht on

Theatre. WIUET, John, org. N.

York: HiII and Wang, 1964.

Transcodificação e metateatralização no teatro de Nelson Rodrigues 163

realismo particular criado aqui e em outros textos rodrigueanos. Parece que Antunes Filho, diretor da produção em São Paulo em 1974, entendeu isso quando obedeceu a didascália do texto. Sábato Magaldi comentou o seguinte sobre a produção de Antunes: "O propósito da montagem era dinamizar o texto. Na encenação original. no Rio, por exemplo, usava-se um jipe para o passeio dos protagonistas. Aqui, como o ator era o senhor do palco, ele usava o que estava a mão - duas cadeiras" (Magaldi, 153).

O outro recurso é aquele que cria uma fusão e contraste entre o teatro e o cinema (e não estou considerando aqui as características cinematográficas da peça já comentadas por vários críticos: cf. Magaldi, 43; 154). A resenha de Bárbara Heliodora sobre a produção de 1962 critica o uso de projeções; Heliodora insinua que o recurso foi imposto no texto pelo diretor e que, neste caso, não realizou o efeito usual:

Nelson Rodrignes usa o método característico do expressionismo, as cenas muito

curtas, pulando de um lugar para outro etc., etc., e Martim Gonçalves usa o outro

método comum ao expressionismo, ou seja, as projeções devem ser ligadas a um certo

critério, geralmente o de intensificar (dramaticamente) certas ações de maior signifi­

cado ... O resultado dessa confusão é que o filme não se integrou totalmente com a

ação. (in Magaldi 1987: 147)

Kowzan associa a projeção ao sistema de iluminação, mas diz que seu papel semi ótico ultrapassa aquele da luz, e ele indica que o filme realmente pertence a outro código artístico: "O emprego da projeção no teatro contem­porâneo toma formas bastante variadas: ela se tornou um meio técnico de comunicar signos pertencentes a sistemas diferentes, e mesmo situados fora deles" (1978: 113). O recurso constitui um experimento interessante no teatro

de Nelson Rodrigues; não serve simplesmente para intensificar a ação, mas também para criar o estranhamento, o que possivelmente explica a confusão

de que fala Heliodora. Este efeito, ao distanciar o espectador do palco, enfatiza o status ontológico do texto, descobrindo o palco como espaço

ficcional, i.e., como teatro. Brecht usou projeções na sua primeira produção de Mãe coragem, com a intenção de criar essa distância que romperia qual­quer identificação pessoal entre espectador e o que acontecia no palco: "As projeções não são simplesmente recursos mecânicos ... não servem para aju­dar o espectador mas para dificultar a sua percepção; impedem a sua empatia completa, interrompem o seu envolvimento automático. Transformam o im­

pacto em um impacto indireto",1o Brecht queria que seu espectador pensasse,

que meditásse sobre o texto, especificamente sobre os aspectos políticos.

O texto rodrigueano insiste em que os espectadores reconheçam o status ficcional do palco, fazendo com que estes meditem sobre o mundo extratex­tual, sobre a sua complexidade e sobre as fronteiras frágeis entre o real e o

Page 164: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

164 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

imaginado. Nelson focaliza essas fronteiras quando visualiza a história atra­

vés da ação viva e das projeções de uma maneira muito sutil: ele contrasta o

recurso cinematográfico, que na 'Sua única dimensão plana na tela parece

ficcional, com a multidimensionalidade da ação viva do palco, com pessoas

vivas em ações fisicamente verdadeiras. Por exemplo, há uma cena em que

as personagens são representadas na tela enquanto os atores representando as

personagens aparecem no palco: "Projeção de D. Ivete e Edgard no tanque.

Na frente da tela os dois vão viver, com gestos, a cena do tanque" (271).

Produz-se uma situação irônica na medida em que os dois aspectos - filme e ação viva - são parte de uma estrutura ficcional, i.e., a representação."

A projeção metateatraliza o texto, mas ao mesmo tempo funciona como parte integrante da representação de uma maneira prática, servindo à evolu­

ção da história. Através das projeções, o diretor cria o cenário em termos de

espaço, e.g., "Projeção do edifício de Edgard" (271); dentro da cena cria-se

a sensação de movimento: "Na tela, sucessão de paisagens, como se o carro é que estivesse em movimento" (296). A projeção significa deslocamento da ação de um lugar para outro, e, às vezes, envolve um outro código, e.g., na

cena citada acima onde D. Ivete e Edgard representam a cena que está

projetada na tela ("os dois vão viver, com gestos, a cena do tanque"), e na

seguinte onde o filme na tela cria o cenário do cemitério e a pantomima cria

um acessório (o jipe): "Na tela o portão do Cemitério São Francisco Xavier. Edgard e Ritinha saltam do jeep" (288). As projeções servem para dramatizar certos momentos da ação, como na cena do suposto estupro de Maria Cecília, e na cena em que os espectadores vêem Maria Cecília e Peixoto mortos: "Na tela, o rosto ensangüentado de Peixoto. Maria Cecília corre pelo palco com os crioulões atrás. Na tela, a cara de Maria Cecília desfigurada pelo pavor. E,

no palco, o negro alcança e domina Maria Cecília" (299); "Projeção - No assoalho Maria Cecília e Dr. Peixoto mortos" (323). A projeção se torna signo

simbólico no final da representação quando os protagonistas, Edgard e Riti­

nha, fogem para o futuro: "Na tela, o amanhecer no mar" (326).

O uso da transcodificação retoma uma tentativa iniciada em Vestido de

noiva, de 1943, de criar um realismo bastante amplo para capturar as realida­des do século XX. Através dos vários recursos que transcodificam os signos teatrais, o dramaturgo rompe com a representação realista tradicional. O

espectador não recebe passivamente o mundo ficcional do texto. O palco se torna um espaço em que espectador e ator coparticipam ativamente na criação

do mundo ficcional. Ao enfatizar o aspecto metateatral na representação, a transcodificação faz com que o espectador oscile entre os códigos que defi­nem o teatro como arte e aqueles que definem a realidade extratextual, realidade nem sempre definível em termos concretos e específicos, e nem sempre separada facilmente da realidade textual.

Page 165: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

Texto preparado para a mesa­

redonda "Globalização, Iden­

tidades Nacionais e Culturas", do "Encontro de Cultura Bra­sileira", realizado em Brasília de 5 a 11 de novembro de

1995.

Identidade nacional e sociedade multicultural

Silva no Peloso

Na Itália, o conceito de multiculturalismo está presente no debate cultural e

político há pouco tempo, como conseqüência das mudanças em curso numa sociedade que se está tornando cada vez mais multiétnica e multirracial. Isto não significa, porém, que ela se esteja tornando automaticamente multicultu­ral. O adjetivo, que não é sinônimo obviamente dos precedentes, indica uma

sociedade em que as culturas de raças e etnias diversas possam ser conside­

radas igualmente dignas e possam interagir entre si para produzir novos

resultados culturais. A palavra portanto alude, mais do que a uma realidade de fato, a um objetivo ainda difícil de se alcançar, e não só na Itália. As Américas no conjunto, e o Brasil em particular, onde a vida mesma da sociedade se realiza como simultaneidade de civilizações, culturas e tradi­ções diferentes, constituem, há quatrocentos anos, um extraordinário labora­

tório multicultural, que nos últimos anos foi objeto de estudos importantes, desenvolvidos com metodologias e fontes de pesquisa inovadoras e originais.

O ponto de partida comum será o reconhecimento de que a sociedade

moderna cada vez mais se configura, por um lado como um conjunto de mercados e de técnicas culturalmente neutras e, por outro, como um conjunto

muito diversificado de orientações culturais. Neste sentido, não haverá um

risco intrínseco na aceleração tipicamente moderna dos intercâmbios entre as culturas, na multiplicação dos contactos, na superabundância de comunica-

Page 166: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

166 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

ções? Da complexa interação entre homens e máquinas que elaboram infor­

mações parece delinear-se uma espécie de Super Ego (não num sentido

psicanalítico, mas no sentido da física moderna mesmo) determinado pela

profunda e contínua extensão das conexões eletromagnéticas, das redes tele­

máticas e dos pacotes de informações. Este cenário prefigura, num futuro não muito distante, o surgimento de um "cérebro planetário", um Ego total, rico,

sem dúvida, de contradições e de conflitos que caracterizam a nossa existên­

cia individual e de grupo, mas configurado também como uma espécie de

autoconsciência global que, segundo um jovem físico e matemático america­

no, Frank J. Tipler,1 poderia representar "um momento da evolução de Deus".

É a teoria do "ponto ômega": um modelo físico de Deus, a descrição de uma divindade que não contradiz as leis da física e da biologia, mas, pelo contrá­

rio, representa o coroamento final delas. O universo, segundo Tipler, não é

imóvel; transforma-se continuamente, evolui, passa da matéria inanimada à

vida, e esta se torna sempre mais complexa até produzir os seres humanos.

Ao mesmo tempo, esta evoulução consiste num aumento contínuo de infor­mação, ou seja, numa entidade imaterial, enquanto os seus substratos mate­riais (entre os quais os seres humanos) se modificam de acordo com as

condições físicas do universo. Cada espécie, segundo a teoria de Tipler, vem

sendo substituída por outra capaz de codificar mais informações, e a história

do nosso planeta representa apenas uma minúscula porção da futura história

da vida no universo. Cada um de nós, portanto, seria somente uma molécula de um deus que está nascendo. Se o universo é infinito, também o é a sua construção, e, portanto, aquela do deus que com ele se identifica. Trata-se de

um incessante aumento de informação sempre mais desmaterializada. Se

existe uma conclusão, teoriza o modelo matemático elaborado por Tipler, talvez esta corresponda a uma singularidade final, ao fim do universo. É um

ponto além do espaço e do tempo que representará a definitiva autorrealiza­ção de Deus: o Ponto Ômega, justamente.

Mas além da solução apresentada como hipótese nesta singular mistura

de física, filosofia e religião, um pouco à Orwell, resta o problema de uma

dicotomia, aparentemente insolúvel, entre identidade cultural e cosmopolitis­

mo, entre defesa intransigente dos valores absolutos do etnocentrismo e um multiculturalismo geral e sem limites, que acaba, por isso mesmo, por relati­vizar toda experiência cultural, limitando as potencialidades de cada uma. Já em 1955, Claude Lévi-Strauss, no seu Tristes tropiques,2 falava de "entropo­logia", fundindo os dois termos antropologia e entropia para representar uma

realidade em que, à multiplicidade dos contactos e das relações entre etnias,

civilizações e culturas diversas, corresponde uma perda do potencial inova­dor ocasionada pela diversidade e por um nivelamento de situações culturais muito diferentes. Em poucas palavras, o reino da Coca-Cola, do hambúrger e do McDonald's convive, em todo o mundo, com o desaparecimento progres-

I TIPLER, Frank 1. The Omega

Point Theory: a Model of an

Evolving God. In: Phvsics,

Philosophy and Theolo~y.

RUSSELL, Robert J., STOEGER,

Williarn R. & COYNE, George

v., orgs. Vaticano: Vatican Ob­

servatory, 1988.

2 LÉVI-STRAUSS, C1aude. Tris­

tes fropiques. Paris: Plon, 1955.

Page 167: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

~. TODOROV, Tzvetan. Nous et

le" au!re". La réJlexion Jean­çaise sur la diversité humaine.

Pmis: Seuil, 1989, p. XVIl.

.. LE PICHON, Alain & CARO­

NIA, Letizia, orgs. SMuardi ve­nuti da lontano. Milão: Bom­piani,1991.

5. Idem, Prefácio de Umberto Eco, p. 7-10.

6 LÉVI-STRAUSS, Claude. Op.

cit., p. 466.

Identidade nacional e sociedade multicultural 167

sivo das etnias menos protegidas (as últimas tribos de índios na América do Sul) e com as várias diferenciações culturais no interior de uma mesma sociedade (cultura popular, arte, tradicões locais). Hoje, há quarenta anos de distância, não se pode dizer que a questão levantada por Lévi-Strauss tenha perdido a atualidade; muito pelo contrário, ela se impõe dramaticamente como um dado fundamental ainda por resolver na perspectiva de um desen­volvimento equilibrado das relações mundiais. Como preservar uma diversi­ficação cultural que se mantenha no contexto de princípios universalmente aceitos, defendendo, ao mesmo tempo, as várias identidades nacionais e culturais? Eis o verdadeiro desafio da sociedade multicultural, o principal problema que o milênio em término entrega ao futuro.

Com certeza será preciso, antes de tudo, pôr em prática aquele "diálogo"

de que fala Tzvetan Todorov em Nous et les autres. La réflexion française sur la diversité humaine3 e que se configura simultâneamente como um diálogo com os contemporâneos e, através da história, da literatura e da arte, com autores de outros tempos e de outras as latitudes. O objetivo só poderá ser, evidentemente, o aprofundamento da própria tradição, da própria identidade cultural, em suma, da própria "diversidade", numa relação constante com todos os outros contextos. Não só porque para participar do diálogo precisa­mos de uma "língua nossa", mas também porque o "olhar do outro" é funda­mental para nos identificarmos, para a definição da nossa própria identidade.

É numa perspectiva como esta que se situa uma experiência realizada na Itália, em Bolonha, no ano de 1988, quando uma organização internacional, "Transcultura", convidou estudiosos chineses e africanos para desenvolver uma pesquisa sobre hábitos e costumes daquela cidade. Os resultados foram depois discutidos no âmbito de um congresso internacional e publicados em 1991 no volume Sguardi venuti da lontano.4 No prefácio, Umberto Eco fala dessa experiência como exemplo de "antropologia recíproca", realizada no momento em que ela é verdadeiramente possível. Ultrapassando a aventura

exótica ou a provocação, que parecem constituir antecipações desse tipo de antropologia, como a ficção científica ou as Lettres persannes de Montes­quieu, o projeto de um conhecimento e de uma descrição recíproca só agora pode concretizar-se. Os diversos povos do mundo, por estarem mais próxi­mos, estão verdadeiramente em estágio de compreender a própria diversidade recíproca.5

Não sabemos se as palavras de Umberto Eco são demasiadamente otimistas. O que realmente parece é que a experiência, além de algumas divertidas observações (a descrição das adegas de Bolonha como grutas em que se bebe água vermelha; o estranho costume dos europeus de ficarem nus na proximidade do mar, etc.) levanta questões interessantes. Será finalmente possível superarmos aquela antropologia que Lévi-Strauss definia como "re­morso do Ocidente"6 numa perspectiva nova que aceite o desafio da especu-

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168 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

laridade? E sobretudo confrontarmo-nos com modelos etnográficos diversos

dos nossos: por exemplo, com esquemas de representação radicalmente dife­

rentes, como aqueles nascidos no âmbito da tradição oral?

Além das soluções parciais e incompletas dadas a problemas que não

podem ser resolvidos a curto prazo, esta é com certeza uma das perspectivas

que mais será preciso desenvolver nos próximos anos. Nesta direção, situam­

se algumas iniciativas que se vêm destacando no âmbito dos estudos ítalo­

brasileiros. Aludo, por exemplo, ao importante volume Novamente retrovato.

Il Brasile in ltalia 1500-1995,7 fruto de uma pesquisa de mais de dez anos

realizada por uma equipe coordenada por Luciana Stegagno Picchio, e de que

eu mesmo participei. Ela consistia na pesquisa e catalogação, em diferentes

disciplinas, de tudo o que foi publicado na Itália sobre o Brasil, num panora­

ma que se estende das cartas de Américo Vespúcio ao Modernismo, ao futebol

e às telenovelas. O volume representa, portanto, um grande repertório do que

tem sido a imagem do Brasil na Itália ao longo dos séculos, reunindo, ao

mesmo tempo, contribuições de especialistas de áreas diferentes num traba­

lho comum, baseado numa metodologia, que, utilizando uma definição recen­te, poderíamos chamar de "complexa". Tendo investigado pessoalmente, no

âmbito deste trabalho, os primeiros documentos que se referem ao Brasil,8 as

cartas de Américo Vespúcio, através das quais o imaginário europeu e não só

o italiano conheceu o Brasil- observe-se que a Carta de Pero Vaz de Cami­

nha, considerada um segredo de Estado, ficou confinada por três séculos nos

arquivos portugueses -, tive a possibilidade de considerar a importância deste

"olhar outro" para uma realidade que foi recriada e reinventada por meio de

estereótipos destinados a perpetuar-se até os nossos dias.

Se é verdade, como escreveu Oswald de Andrade,9 que, com as cartas

de Vespúcio (de que há um testemunho direto na Utopia -1516 -de Thomas

More) se inicia o que ele designa de "ciclo das utopias", importante tanto para

a Europa quanto para o Brasil, é por isso mesmo fundamental voltar a

investigar aquele período com uma metodologia inteiramente renovada, so­

bretudo em vista das comemorações do quinto centenário do descobrimento

do Brasil, que coincide com a abertura do novo milênio. Será preciso antes

de mais nada evitar as duas maiores falhas evidenciadas nas recentes come­morações sobre Cristóvão Colombo: a exaltação acrítica e a condenação

indiscriminada. Acima de tudo, deve-se evitar o uso de critérios interpretati­vos vinculados à contemporaneidade e à sua lógica de política cultural basea­da em esquemas generalizadores. Continuar a falar, por exemplo, em coloni­

zação européia, tomando por base a oposição Europa vs. Novo Mundo, ou em viajante europeu, etc., só tem sentido na medida em que se opera uma delimitação de campo. Numa etapa posterior, tal delimitação deverá ser substituída por análises bem mais articuladas e aprofundadas, uma vez que a colonização portuguesa é bem diferente da espanhola ou da holandesa e que

7. STEGAGNO PICCHIO, Luciana et alii. Novamente retrovato. II

Brasile in Italia. 1500-1995.

Roma: Presidenza deI Consi·

glio dei Ministri, Dipartimento per l'Infonnazione e I' Editora,

1995.

8. PELOS O, Silvano. 11 Mondo Nuovo di Amerigo Vespucci. In: Idem, p. 18-21.

". ANDRADE, Oswa1d de. A marcha das utopias. In: Do Pau-Brasil e a utopias. Rio de Janeiro: Civilização Brasilei­ra, 1970, p. 147.

Page 169: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

10 PELOS O, Silvano. 11 viaggio

a Roma come evocazione e metafora nella tradizione bra­

siliana. In: Ejjetto Roma: il Vhlf.a?io. Roma: Bulzoni,

1995, p. 83-100.

11 TOURAINE, Alain. La società

delIe mille etnie. In: L' Uni/à.

Roma, 23 jan. 1995, p. 2.

Identidade nacional e sociedade multicultural 169

o viajante italiano trabalha com modelos mentais e culturais diferentes dos utilizados pelo viajante alemão ou inglês, O panorama histórico, cultural e

literário só tem a ganhar com uma análise que leve em consideração o

multiplicar-se das situações e dos pontos de vista, expressões de um contexto

cada vez mais variado e complexo: uma metodologia multicultural, que pressupõe, por sua \'ez, um trabalho intedisciplinar realizado por equipes

formadas por especialistas de diferentes áreas.

É neste âmbito e visando a estes objetivos, bem como calcada neste

horizonte teórico, que a Associação Cultural Italo-Luso-Brasileira, dirigida

por Sonia N, Salomão e com sede em Viterbo, a cidade de Pedro Hispano,

está coordenando uma pesquisa voltada para o estudo e a catalogação de

documentos brasileiros de cunho histórico-literário sobre a Itália, Trata-se de

uma iniciativa na linha do que já chamamos de transcultura ou de antropolo­

gia recíproca, Os primeiros resultados deste tipo de trabalho estão sintetiza­

dos num ensaio que publiquei este ano em Roma, em colaboração com o

Istituto di Studi Romani, intitulado "Il viaggio a Roma come evocazione e

metafora nella tradizione brasiliana",lo que reúne os mais variados testemu­

nhos: desde o do padre Antônio Vieira, que viveu e pregou em Roma, passan­

do pelos da corte do papa Clemente X e da rainha Cristina da Suécia, nos anos

de 1669 a 1675, e pelos de Gonçalves de Magalhães, que lá morreu em 1882,

até os de Cecília Meireles, que nos deixou belos poemas sobre os munumen­

tos da cidade, produtos de uma viagem realizada em 1953, e finalmente os de

Murilo Mendes, que em Roma morou por quase vinte anos,

Vale a pena tornar a sublinhar, mais uma vez, que a construção de uma

sociedade verdadeiramente multicultural passa pela solução do falso dilema

que obriga a escolher entre um etnocentrismo autoritário e um multicultura­

lismo sem limites. O cerne da democracia consiste, hoje, no reconhecimento

de que é possível redescobrir alguns conceitos universais comuns, mesmo

possuindo-se valores culturais muito diferentes, com a condição de que seja

reconhecida esta diversidade, isto é. o direito à existência de coletividades

culturais, étnicas, religiosas. morais. diversas umas das outras, A realização

da própria identidade nacional e cultural, construída através da valorização

da memória histórica no sentido amplo da palavra, portanto, não só não

constitui obstáculo ao processo de aproximação ao "outro", ao "diverso",

mas, muito pelo contrário, representa o único caminho para chegar até ele.

Vale a pena concluir com as palavras de Alain Touraine: "A integração só tem

sentido se é totalmente associada ao reconhecimento do outro, não na sua

diferença, mas na sua igualdade comigo mesmo, enquanto capaz, tanto como

eu, de dar sentido a uma experiência que associa a razão científica e técnica

à memória de uma cultura e de uma sociedade",ll

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Page 171: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

1 GARCIA CANCLlNI, Néstor.

Consumidores e cidadãos.

Conflitos multi culturais da

globalização. Rio de Janeiro:

Editora UFRJ, 1995, p. 120.

A nação e as narrações híbridas

Literatura hispânica dos Estados Unidos

Sonia Torres

wasfun runnin' 'round descalza

playing hopsco!ch

correr sin pisar líneas

Evangelina Vigil

Neste breve espaço, desejo discutir o modelo de "nação", baseado no

conceito de unidade, em contraposição às práticas discursivas empregadas na

produção literária, que desconstroem o discurso totalizante por meio de

textos híbridos, Embora a tendência a se narrar o multiculturalismo das

nações seja crescente, ainda podemos observar que nos conflitos interétnicos

e internacionais, encontramos tendências que se obstinam em conceber cada

identidade como um núcleo sólido e compacto de resistência; por isso,

exigem lealdades absolutas dos membros de cada grupo e satanizam os que

exercem a crítica ou a dissidência. A defesa da pureza se impõe em muitos

países em oposição às correntes modernas que buscam relativizar o especí­

fico de cada etnia e nação afim de construir formas democráticas de convi­

vência, complementação e governabilidade multiculturaf.!

'Como ponto de partida para minha discussão, pincei dois exemplos de

doutrina fundamentalista de "nação", no discurso de dois porta-vozes de

países do centro, O primeiro deles é um artigo recente, publicado no jornal

inglês The Sunday Times. Nele, seu autor lamenta a corrupção da língua

inglesa pelos jargões tecnológicos, pela linguagem de computador e, last but

not least, pelos norte-americanos, através do cinema e da mídia de uma

maneira geral. Ele transcreve, ainda, as palavras de um representante da

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172 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

hegemonia inglesa, o Príncipe de Gales, em apoio à campanha English 2000

do Conselho Britânico:

We must act now to ensure thal English, and Ihat to my way ofthinking means English

English, maintains its position as the world language well into the next century2

A insistência em defender uma língua-pátria "pura" e inadulterada surge

quando as discussões sobre identidade nacional encontram-se ancoradas à

idéia de unidade, que, por sua vez está diretamente associada à preocupação

com a supremacia. O referido artigo revela (embora não "diga" explicitamen­

te) que, uma vez dissolvido o Império Britânico, e perdida a hegemonia

conseguida através da colonização, os ingleses passam a perceber que sua

língua-mãe tornou-se "vítima de seu próprio sucesso". O que - significativa­

mente - não é abordado uma única vez é a própria situação interna da

Inglaterra: a presença de uma população cada vez mais numerosa de sujeitos

pós-coloniais que, lançando mão da língua inglesa para se expressarem,

subvertem-na, no entanto, com interferências de sua cultura de origem. A

questão nacional e o próprio conceito de nação adquirem contornos interes­

santes neste caso, porque o conflito parece surgir do fato de a Inglaterra

querer proclamar sua exclusividade hegemônica.O que parece subjazer ao

lamento pelo triste destino da língua de origem (já em si um conceito com­

plexo, visto que ele se encontra fortemente ligado ao mito de "autenticidade")

é um sentimento de ansiedade ante o deslocamento do poder econômico para

outra nação que não seja a Inglaterra. No caso, o que causa ruídos nos

ofendidos e reais ouvidos ingleses é o poder dos EUA - um impérialismo sem

colônias, dirigindo fluxos de capital, mercadorias, armamentos e a mídia em

escala global. O último recurso que sobra para o antigo império é agarrar-se

ao que lhe aparece como tábua de salvação - a língua inglesa "autêntica" -

na tentativa de assegurar o mito de unidade da nação como força simbólica.

Mas pensar a nação como totalidade homogênea revela-se complexo e pro­

blemático, uma vez que a Inglaterra hoje se encontra "invadida" por uma

vasta onda de "imigrantes" pós-coloniais. Nas palavras de Stuart Hall,

.. .in this very moment of the attempted symbolic restoration of the great English

identities Ihat have mastered and dominated the world over three or four centuries,

there come home to roost in English society some other British folks ( ... ) Just in the

very moment when they decided they could do without us, we ali took the banana boat

and carne right back home. We turned up saying "You said this was the mothercountry.

Well, I just carne home". We now stand as a permanent reminder of that forgotten,

suppressed, hidden history ( ... ) There we are, inside the cuIture, going to their schools,

speaking their language, playing their music, walking down their streets, looking like

we own a pari of the turf, looking like we belong.3

2. MILLAR. Peter. Why we will

soon be lost for words. Tile

Sundav Times. 2 abro 1995. p.

lO e 12.

] HALL, Stuart. Ethnicity:

Identíty and Ditlerence. Radi­

cal America, 23 (4): 9-20,

1991. p. 17-18.

Page 173: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

.. ci!. por J. Ca!it,,, Declaring

Eng!ish the Otlieia! Language:

Prejudice Spoken Here. Har­

vard Civil Ri"hls-Civil Liher­

ties Law RevielV, 24:321

(1989). Al'ud FLORES, Juan &

YúDICE, George. Living Bor­

ders/buscando America. So­

cial Text, 24 (2): 8, 1990.

S. BHABHA, Homi, org. Nafion

IInd Narrarion. Londres: Rou­

tledge, ! 993.

•. id., ihid., p. I.

A nação e as narrações híbridas 173

Paralelamente, podemos observar fenômeno parecido ocorrendo nos EUA, o país que está sendo atacado como sendo o culpado pela última coisa que ainda poderá garantir a posição hegemônica do English English "até o próximo século". A fim de garantir a posição hegemônica do American English até não se sabe quando, os norte-americanos atacam o uso do espa­nhol, que, já considerado segunda língua em nível nacional, constitui ameaça constante à segurança e unidade dos EUA, As palavras de Terry Robbins, ex-chefe de "English operations" na Flórida atestam esta afirmativa:

There are misguided persons, specifically Hispanic immigrants, who have chosen to

come here to enjoy our freedoms, who would legislate another language, Spanish, as

co-equal and co-legal with English ( ... ) If Hispanics get their way, perhaps someday

Spanish could replace Engish entirely ( .. ) We ought to remind them, and better still

educare them to the fact that the Cnited States is 11111 a n/olllirelnatiof/4 (o grifo é meu)

Ao afirmar que os EUA não são uma nação mestiça, Robbins parece preferir ignorar que os mexicano-americanos, por exemplo, da mesma forma que os imigrantes pós-coloniais ingleses, sentem-se "em casa" ao atravessa­

rem a fronteira entre o México e os EUA, visto que, para a maioria, trata-se de um retorno às suas terras ancestrais, conquistadas pelos norte-americanos. Ele também fecha os olhos, oportunamente, para o fato de que inúmeros dos imigrantes que lá se encontram, "gozando de (suas) liberdades", fogem de suas terras natais em conseqüência da política externa neocolonialista norte­americana.

A fim de tentarmos compreender melhor essas contradições internas das nações liberais modernas, gostaria de referir-me, neste ponto, à obra de Homi

Bhabha, Nation and Narration. 5 Nela, o autor observa que as nações, da mesma forma que as narrativas, perdem suas origens nos mitos do tempo e apenas realizam seus horizontes no nível do imaginário (Bhabha baseia-se fortemente na obra de Benedict Anderson, lmagined Communities, mesmo

quando discorda dela). Acrescenta ainda que, embora tal imagem da nação

aparente ser romântica e excessivamente metafórica, é dessa tradição de pensamento político e linguagem literária que surge a nação como idéia poderosa no Ocidente.6 Assim, "nação" seria apenas um espaço de significa­ção cultural. Espreitando por trás desse espaço existe uma ambivalência entre dois níveis de discurso: o pedagógico e o per formativo ("performative"). No

primeiro, o povo é visto como presença histórica a priori, como mero objeto pedagógico; no segundo, o povo como imagem de totalidade sofre a interfe­rência da sua significação como signo diferenciador, do sujeito enquanto distinto do outro, ou do espaço de fora. Apesar da certeza com que os historiadores tradicionais falam das "origens" da nação como sinal de "mo­

dernidade" de sua sociedade, a tamporalidade cultural da nação inscreve uma

realidade social muito mais complexa: ao mesmo tempo em que a nação é

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174 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

construída, ela vai sendo desconstruída por interpretações sucessivas, cujas contradições mútuas demonstram a ausência de qualquer "centro originário". A nação toma-se um espaço marcado internamente pela diferença cultural e pelas histórias heterogêneas de povos conflitantes, autoridades antagonistas e espaços culturais em constante tensão.7

Examinemos um trecho do conto "Bien Pretty",8 da autora chicana

Sandra Cisneros, em que duas amigas discutem a decisão de uma delas (a narradora) de ir morar no Texas, um estado emblemático da conquista terri­torial, da expansão de fronteiras e de conflitos sangrentos pela posse de terras norte-americanas - um estado que outrora pertenceu ao México, tendo sido independente durante um breve período, e, finalmente, incorporado ao terri­tório dos EUA; uma verdadeira fronteira em perpétuo movimento, por onde sempre transitaram os mexicanos, em um movimento incessante de ir-e-vir, e que deu origem ao mito e à popular balada de fronteira sobre Gregório Cortez, aquele que teria combatido os Texas Rangers, los Rinches, "com apenas uma pistola na mão".9

"TEX-as, whal are you going to do there?" Beatriz Soliz asked this, a criminallawyer

by day, an Aztec dance instructor by night, and my c\osest comadre in ali the world.

Beatriz and I go back a long way. Back to the grape·boycott demonstrations in front Df

the Berkeley Safeway. And I mean thefirst grape strike.

"I thought l'd give Texas a year maybe. At least that. !t can't be lhat bad."

"Ayear!!! Lupe, are you crazy? They stilllynch Meskins down there. Everybody's

got chain saws, gun racks and pickups and confederate flags. Aren 't you scared?"

"Girlfriend, you watch too many John Wayne movies".

To tell the truth, Texas did scare the hell out of me. Ali I knew about Texas was it

was big. It was hol. And it was bad. Added to this, was my mama's term teja-NO-te

for tejano, which is sort oflike "Texcessive", in a redneck sort of way. "!t was one Df those teja·NO·tes that started it", Mama would say. "You know how they are. Always

looking for a fight". (p. 141-142)

o diálogo das duas comadres modernas parodia "remember the alamo", oferecendo uma versão chicana e feminina da historiografia do mexicano­americano desde os conflitos de fronteira até as greves dos trabalhadores rurais, os braceros, sugerindo uma longa história de resistência, que iria desaguar no Movimento pelos Direitos Civis dos anos 60. O imaginário das personagens está povoado de imagens que subvertem a história oficial, abrin­do, desta forma, um espaço para que a margem possa narrar sua versão da nação.

Se o povo de determinada nação é a articulação do movimento ambiva­lente entre o pedagógico e o performativo descrito por Bhabha, a própria nação deixa de ser o signo de modernidade sob o qual as diferenças culturais são homogeneizadas, em uma visão horizontal da sociedade. A nação, ao contrário, revela, em sua representação ambivalente e vacilante, a etnografia

1. ido Ihid., p. 298-299.

X. OSNEROS, Sandra. In: WII­

man Hollerinl( Creek (and Ot­her Stolies). N. York: Random

HOllse, 1991, p. 137-165.

". Refiro o leitor à obra de Américo Paredes, With His Pistol in His Hand: a Bordel'

Ballad and its Hero. 8' ed. Austin: U of Texas P, 1990 onde o antropólogo chicano

analisa a popular balada de fronteira.

Page 175: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

lO BHABHA, OI'. cit., p. 300.

11. BHABHA, Homi. IntelTOga­

ting ldentity. ICA Documents

6. Londres: Institute of Con­

temporary Arts, 1987, p. 6.

A nação e as narrações híbridas 175

de sua própria historicidade e a abre a possibilidade para outras narrativas de seu povo e suas diferenças - o que Bhabha chama de "dissemi-nação".1O Sendo assim, as narrativas produzidas por culturas em oposição ao cânone não somente assinalam como apagam as fronteiras totalizadoras, tanto reais quanto imaginárias, de discursos essencialistas como os que foram apresen­tados como exemplo na abertura deste estudo. A obra de Bhabha nos ajuda a pensar de que forma, ainda, a língua, utilizada como estratégia neoconserva­dora, a fim de garantir uma suposta homogeneidade cultural, pode também servir de instrumento para criticar concepções monolíticas de "nação". No caso específico da população hispânica dos EUA, que emprega o Spanglish

como prática cultural, observamos que a identidade do sujeito de origens hispânicas da América do Norte é buscada dentro do double bind gerado pela tensão entre duas culturas das quais ele/ela faz parte - uma anglo-americana, outra latino-americana. Sendo assim, sua linguagem dissemina-se em línguas e tradições híbridas que determinam seu lugar de fala como sendo outro, em oposição ao do espaço monocultural. O code-switching, mudança de código

lingüístico, praticado ao longo das narrativas dos chamados latinos assinala

a heterogeneidade sócio-histórica da própria América do Norte.

No mesmo conto de Sandra Cisneros, podemos observar, além do espa­nhol mesclado com o inglês, a função de duplo da narradora:

Ay! to make love in Spanish, in a matter as intricate and devout as la Alhambra. To have

a lover sigh mi vida, mi preciosa, mi chiquitita, and whisper things in that language

crooned to babies, that language murmured by grandmothers, those words that smelled

like your house, like flour tortillas, and the inside of your daddy's hat, like everyone

talking in the kitchen at the same time ( ... ) That language. (p. 121)

A duplicidade da narradora demonstra sua própria ambivalência em relação à sua cultura de pertencimento: ela se encontra dentro, e ao mesmo tempo fora da cultura mexicana, fato que marca tanto a possibilidade quanto a impossibilidade de identificação total com a cultura de origem. Somente

através da compreensão dessa ambivalência, do "desejo do Outro", podere­mos evitar a adoção fácil da noção de um outro homogêneo, como quer a culltura hegemônica. O momento vivido pela narradora de "Bien Cute" coincide com o que Homi Bhabha descreve como o momento de interrogação da identidade:

( ... ) the encounter with Identity occurs at the point at which something exceeds the

frame of the image, eludes the eye, evacuates the self as site of identity and autonomy

and - most importantly - leaves a resistant trace, a stain of the subject, a sign of

resistence. We are no longer confronted with an ontological problem of being but with

the discursive strategy of the 'moment' of interrogation; a moment in which the

demand for identification becomes, primarily, a response to other questions of signifi­

cation and desire, culture and politics. 11

Page 176: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

176 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

Ao fazer com que sua narradora interrogue a identidade, através da referência ao espanhol - uma das línguas que (in)formam sua história, e

portanto uma das formas possíveis de identificaçãolidentidade. Cisneros traz

para a esfera pública precisamente o momento descrito acima. em que "a necessidade de identificação torna-se. primeiramente. uma resposta a outras

questões de significação e desejo, cultura e política". Juan Flores e George

Yúdice observam que

Language ( ... ) is the necessary terrain on which Latinos negotiate valuc and attempt to

reshape the institutions through which it is distributed. This is not to say that Latino

identity is reduced to its linguistic dimensions. Rather, in the current sociopolitical

structure ofthe United States, such matters rooted in the 'private sphere', like language

( ... ), sexuality, body, and family definition ( ... ) become the semiotic material around

which identity is deployed in the 'public sphere',12

Sem sacrificar o hibridismo de tradições que constitui sua identidade, o sujeito latino procura inscrever-se como um norte-americano cujo lugar de fala possui elementos lingüísticos e culturais que ainda não foram ouvidos. No poema "AmeRícan",13 Tato Laviera não somente afirma sua condição como americano de origem porto-riquenha, como também abre uma nova perspectiva, através do jogo com a palavra "American", para o conceito de americano. Sua visão de "americano" não é uma proposta de fechamento, como quer o modelo monocultural do centro; ela propõe, antes, uma América "sendo inventada":

( ... )

we gave birth to a new generation

AmeRícan salutes ali folklores,

european, indian, black, spanish,

and anything else compatible:

C.) AmeRícan,

AmeRícan,

AmeRícan,

defining myself my own way any way many

ways Am e Rícan, with the big R and the

accent on the í'

like the soul gliding talk of gospel boogie music!

speaking new words in spanglish tenements,

fast, tongue moving street comer "que

corta" talk being invented at lhe insistence

of smile!

Em seu poema intitulado "Asimilao",14 Laviera demonstra que o sin­

cretismo lingüístico-cultural não é uma forma de integração (assimilação) ao espaço hegemônico, e sim uma estratégia de ressignificação, através de articulações outras, sistematicamente ignoradas pelo mainstream norte­americano:

12 FLOR'" &: YÚDrCE. O". á/.,

P 61

n. LAvrERA, Tato. AmeRícan.

Houston: Arte Público Press.

1.981. p. 94-95.

14 id .. ihid., p. 54.

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A nação e as narrações híbridas 177

assimilated? Qué assimilated"

brother, yo soy asimilao,

así mi la o sí es verdad

tengo un lado asimilao ..

you see, they went deep ........... Ass

oh . . ....... they went deeper ....... SEE

oh, oh ......... they went deeper ..... ME

but the sound LAO was too black

for LATED, LAO could not be trans/med, assimilated"

no, asimilao, mela0,

it became a black

spanish word but

we do have asimilados

perfumados and by the

last count even they

were being asimilao

how can it be anal yzed

as american? ( ... )

Jogando com o som das palavras asimilado/assimilated, Laviera mostra

a impossibilidade de integração ao centro, pois para este ele é invisível: SEE

ME. Como o Homem Invisível de Ralph Ellison, ele escapa ao olhar de uma

sociedade que teima em não vê-lo. Nas palavras de Laviera, "o som LAO foi

negro demais para eles". Seu "lado asimilao" é seu lado negro: graças à

intluência africana em Porto Rico, a pronúncia da palavra espanhola "asim­

milado" passou a ser pronunciada "asimilao", Portanto, como "assimila­

ted/asimilao", com seus diversos "lados", pode ser analisado como (nor­

te )americano, dentro de uma tradição que concebe a identidade como um

objeto da visão acabado, totalizante? É esta a pergunta que o poeta nuyorican

parece se fazer.

Vimos, nas obras selecionadas como exemplo, que os escritos dos norte­

americanos de origem hispânica freqüentemente lançam mão do embrica­

menta de elementos culturais, históricos e lingüísticos norte-americanos

(EUA) com os de seus países de origem, rearticulando-os de forma a narrar

uma nação outra, que sugere contextos histórico-culturais que incluem tanto

a experiência indígena ou de povo conquistado em sua própria terra (no caso

dos chicanas) quanto a africana (no caso de autores e autoras do Caribe). A

utilização de "padrões de interferência", como o emprego do Spanglish como

prática discursiva torna-se um mecanismo poderoso de resistência ao atual

apego neo-imperial com a etnicidade monoglóssica, como pudemos observar

nos exemplos de discursos dos "guardiães" dos países do centro, para quem

o "outro" representa ameaça constante à suposta experiência "comum" da

nação. O outro - assim como a "nação" - não constitui, no entanto, um todo

homogêneo. E, assim, para concluir, gostaria de lembrar a existência de um

paralelo a ser assinalado entre as vozes contra-hegemônicas trazidas para este

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178 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

estudo e os discursos literários dos países periféricos. Porque apontam a crise

das centralidades, tanto os textos produzidos dentro das margens do chamado

Primeiro Mundo, quanto aqueles produzidos no (ainda) chamado Terceiro Mundo, desestabilizam a tentativa de se estabelecer uma idéia monocultural

de nação, em um novo contexto globalizado, onde as nações já não são

espacialmente delimitadas, e tampouco seus cidadãos compartilham uma

mesma experiência ou identidade nacional. Ao contrário, acredito terem

nossas nações periféricas um diálogo a ser travado com o Terceiro Mundo que habita, hoje, os países do centro. Nos escutando uns aos outros, e unindo nossas vozes "outras" talvez possamos desobstruir o caminho que aponta

uma perspectiva de via única gerada pela tradição etnocêntrica e pelo rumo

neoconservador que vem tomando a globalização, com a disputa dos respon­sáveis pela manutenção do status quo do centro por quem vai ser o "primeiro"

no próximo milênio.

Page 179: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

I. Cf. TABUCCHI, Antonio. No­

turno indiano. Trad. Wander

Melo Miranda. Rio de Janeiro:

Roeco, 1991, p. 7. Daqui por

dhmte como NI.

As sombras da nação

Luiz Alberto Brandão Santos

Na nota introdutória de Sotumo indiano, Antonio Tabucchi afirma que, em

seu livro, procura-se uma sombra. 1 Essa procura se dá através da viagem do

narrador que cruza, com seus inúmeros deslocamentos, uma paisagem desco­

nhecida e misteriosa: a paisagem da Índia. A Índia surge como um espaço

onde todas as referências - sociais, econômicas, políticas e, sobretudo, cultu­

rais e simbólicas - são imprecisas e fugidias. Buscar uma sombra, mover-se

nesse espaço indefinido significa, assim, instaurar uma discussão sobre as

possibilidades de delineamento de uma identidade.

No presente texto, também procuro uma sombra. Elejo também a Índia

como um espaço de deslocamento, um espaço teórico para a investigação de

uma concepção de nação. Seguindo a trilha de estudiosos como Benedict

Anderson, Eric Hobsbawm e Homi Bhabha, que questionam o conceito de

nação enquanto um conceito uno, homogêneo, totalizador, inserido numa

visão histórica linear e contínua, me proponho a pensar a nação a partir de

suas margens. Investigar não apenas a luminosidade grandiloqüente que

emana dos discursos que estabelecem a identidade nacional como uma essên­

cia atemporal e originária, mas também as sombras que emergem, nos inters­

tícios da luz, quando se passa a conceber a nação exatamente como uma

construção discursiva, como uma comunidade imaginada.

Page 180: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

180 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

Entre a luz e a penumbra, inicio minha viagem, juntamente com o

narrador de Noturno indiano, penetrando na paisagem dessa estranha Índia:

o ônibus atravessava uma planície deserta e uns poucos vilarejos adormecidos. Depois

de um trecho de estrada nas colinas, cheio de curvas fechadas, que o motorista tinha

enfrentado com uma desenvoltura que me parecera excessiva, agora percorríamos retas enormes, tranqüilas, na silenciosa noite indiana. Tive a impressão que era uma paisa­

gem de palmeiras e arrozais, mas a escuridão era muito profunda para dizê-lo com

segurança e a luz dos faróis atravessava rapidamente o campo apenas durante alguma

sinuosidade da estrada. (Nr, p. 55)

Assim como os faróis do ônibus que corta a paisagem indiana, o olhar do narrador, que conduz nosso olhar de leitor, percorre dois espaços distintos.

Há um espaço iluminado, de visibilidade plena e nítida, onde a luz se difunde

de modo uniforme e retilíneo. Nas grandes retas, o caminho trilhado e o

caminho a trilhar apresentam-se enquanto unidade de \'Ísão. O passado, o

presente e o futuro da viagem se encadeiam no mesmo desenho, na mesma

linha que os interliga.

Esse espaço pode ser associado à concepção tradicional de que os movi­mentos da História se efetuam sempre enquanto continuidade, enquanto

teleologia, enquanto relação imediata e direta de causa e efeito. Dentro dessa

concepção, a idéia de nação aparece imersa naquilo que Benjamin denomi­

nou de tempo homogêneo e l'azio,~ um tempo horizontal no qual a um presente pleno corresponde uma visibilidade eterna e total do passado e uma perspectiva progressiva e progressista do futuro. Nesse tempo, o presente surge sempre como forma-mãe, em torno do qual se reúnem e se diferenciam o futuro e o passado. Passado e futuro seriam, assim, meras modificações de

um presente essenciaJ.3

É a idéia de um tempo homogêneo e vazio que permite que a nação seja

concebida, por um discurso pedagógico, enquanto uma realidade imemorial (a nação ou, pelo menos, o sentimento do nacional, sempre existiu) e ilimita­da (a nação, como fronteira concreta ou como força simbólica, sempre exis­tirá, projeta-se para um futuro infinito).

Entretanto, há um outro espaço que margeia o percurso retilíneo da luz,

há uma outra paisagem que se esquiva à visibilidade pretensamente absoluta. Esse espaço de penumbra vem à tona quando a linearidade do deslocamento cede espaço à sinuosidade da estrada. Nesses momentos fugidios e rápidos, fragmentos de uma outra História se iluminam. Imagens que só emergem através de lampejos, de vislumbres, exatamente porque devem sua existência à descontinuidade da visão.

A esse universo de sombras que se recusa à totalização da plenitude da luz corresponde uma outra temporalidade. Deslocado o historicismo, explo­dido o continuum da História,(Benjamin, p. 230) a temporalidade surge como

2. BENJAMIN, Walter. Sobre

o conceito da História. In:

___ . Magia e técnica,

arte e política; ensaios sobre

literatura e história da cultura.

Trad. Sergio Paulo Rouane!.

São Paulo: Brasiliense, 1987,

p.229.

'. Cf. DERRIDA. Apud BHABHA, Homi K. DissemiNation:

Time, Narrative and tbe Mar­

gins of lhe Modero Nation. In:

___ , org. Nat;on and

Narrat;on. Londres, N. York:

Routledge, 1990, p. 293.

Page 181: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

4 Cf. ANDERSON. Bencdict.

Na~'ii(} e consciência nacional. Trad. Lólio Lourenço de Oli­

veira. São Paulo: Ática. 1989.

r 14-6.

As sombras da nação 181

uma forma disjuntiva de representação, sem uma lógica causal centrada.

Passa-se a pensar a História com um conjunto de temporalidades diferenciais.

Desse modo, rompe-se a pressuposição de que há um momento em que as histórias culturais se unem em um presente imediatamente legível. Nessa

perspectiva, a cultura nacional se articula como uma dialética de várias temporalidades - moderna, colonial, pós-colonial, nativa, etc.(Bhabha, p. 303). No esgarçamento do tempo linear, coloca-se em xeque o caráter homo­

gêneo da nação e o discurso da coesão social moderna.

Observando "a orla escura da vegetação à margem da estrada" (N/, p. 63)

ou "o escuro da vegetação que crescia atrás do hotel" (N/, p. 97), o mundo de

sombras deixa entrever as características de uma outra concepção de nação.

Assim como os faróis do ônibus criam um caminho de visibilidade retilínea,

a nação é uma comunidade política imaginada - imaginada não no sentido de

falsa, mas de uma construção discursiva.

Assim como os faróis delimitam um campo de luz que se opõe a uma

faixa de penumbra, a nação é imaginada como limitada e soberana, com

fronteiras finitas e bem demarcadas. Porém, as curvas do caminho provocam

desvios de luz, e as fronteiras se cruzam, se indeterminam, se interpenetram.

Assim como o trajeto tranqüilo do ônibus, nas longas retas, sugere uma

homogeneidade de percurso, a nação é imaginada como uma comunidade

harmônica, como o exercício de um companheirismo profundo e horizontal.4

No entanto, a inevitabilidade das curvas, que introduzem na luz a desconti­nuidade das sombras, revela relações conflituosas. Na incongruência dos

caminhos tortuosos, o linear e o sinuoso se conjugam agonisticamente.

No capítulo final de Noturno indiano, presenciamos o seguinte·diálogo:

- Pensei que uma pessoa como você achasse que na vida é preciso ver o mais possível.

- Não - ela disse convicta -. é preciso ver o menos possível (N/, p. 89).

Um olhar que vê menos. que se subtrai da luminosidade preestabelecida

para penetrar no universo difuso. mas sempre presente, das sombras. Talvez

seja esse o olhar necessário para se observar a nação a partir de suas margens.

Obser\'ar de que modo é a partir da negação das sombras que a luz impera e,

simultaneamente. obser\'ar de que modo as sombras continuamente se insi­nuam nas minúsculas frestas da luz.

Verificar, enfim. as diversas maneiras de luz e sombras mutuamente se

traduzirem. Ou, ainda, segundo Bhabha, como se articulam o caráter pedagó­

gico - no qual os povos são apresentados enquanto objetos históricos de uma

pedagogia nacionalista - e o caráter perjormático da nação - no qual os povos

se apresentam enquanto sujeitos de um processo de significação nacional.

Verificar como se dá o embate entre a temporalidade contínua, acumulativa

do pedagógico (o ver mais) e a estratégia recursiva, repetida, infiltradora do

Page 182: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

182 Revista Brasileira de Literatura Comparada, nO 3

performático (o ver menos)(Bhabha, p. 297). A cultura nacional passa a ser

entendida, assim, como um espaço litigioso, performático da perplexidade dos vivos no meio das representações pedagógicas da plenitude da vida (Ibid.,

p.307). Em O fio do horizonte, de Tabucchi, uma massa de nuvens subitamente

envolve o farol e as gruas do porto, dissolvendo-os em névoa. 5 A mesma e ligeira névoa que cobre, em certos momentos. o mar e a costa. Da cidade, entretanto, essa névoa não é notada. Só é possível percebê-la deslocando-se até a periferia (FH, p. 35).

Entre o enigma e o óbvio

"A Índia é misteriosa por definição". afirma o narrador de Noturno indiano. Assim, a busca do delineamento de uma identidade, pessoal e nacio­nal, nesse espaço desconhecido que é a Índia, configura-se enquanto tentativa de resolução de um enigma. Entretanto, à medida que as pistas vão sendo

seguidas, os rastros sendo trilhados, toma-se cada vez mais aguda e presente a consciência de que tal enigma é um enigma sem solução.

Também em O fio do horizonte, a personagem central, procurando re­compor uma história obscura, tentando reconstruir um passado que assegure existência para um morto de identificação impossível, somente pode seguir indicações precárias e levantar hipóteses não comprováveis. O caráter dete­tivesco desse empreendimento tende a patentear, exatamente, que nenhum ponto final pode ser atingido, que nenhuma verdade essencial pode ser revelada.

O que se torna nítido é que a "arte do enigma" (N/, p. 42) não é o forte desse narrador e dessa personagem. Que o mundo das sombras jamais pode ser completamente iluminado.

Da mesma forma, pode-se afirmar que o conceito de nação também é um conceito enigmático. Qualquer pista que, a princípio, parece levar a uma delimitação precisa do significado do termo nação acaba por se revelar, numa análise mais minuciosa, cercada de incertezas. Segundo Francesco Rossolil­lo, "o conteúdo semântico do termo, apesar de sua imensa força emocional, permance ainda entre os mais confusos e incertos do dicionário políticO".6 Essas imprecisões derivam do fato de também serem imprecisas as idéias comumente arroladas como determinantes da concepção de nacionalidade.

É o caso da idéia de "laços naturais", intimamente associada à idéia de "raça". Como assinala Rossolillo, "não é preciso demorar muito para de­monstrar que o termo "raça" não possibilita a identificação de grupos que possuem limites definidos e que, de qualquer forma, as classificações "ra­ciais" tentadas pelos antropólogos - mediante critérios que variam para cada

5. TABUCCHI, Antonio. O fio do horizonte. Trad. Helena Do­mingos. Lisboa: Difel, s.d., p.

21. Daqui por diante como FH.

6, ROSSIOILILLO, Francesco. Nação. In: BOBBIO, Norberto et a!. Dicionário de político. 2' ed. Brasília: UNB, 1986, p.

795.

Page 183: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

'. Cf. RENAN, Ernest. What is a Nation'I In: BHABHA, Homi K.,

org'. NlItion and Narration.

Londres, N. York: Routledge,

1990,p.19.

X. PESSOA, Fernando. Ohra

poética. 9' ed. Rio de Janeiro:

Nova Aguilar, 1986, p. 73.

As sombras da nação 183

pesquisador ou estudioso - de maneira alguma coincidem com as Nações

modernas" (Ibid., p. 796).

Também é insuficiente a associação entre nação e língua, pois basta

lembrar que "muitas Nações são plurilingües e muitas línguas são faladas em

várias Nações, que além disso, o monolingüismo de determinadas Nações,

como a França ou a Itália, não é algo original nem espontâneo, e sim, pelo

menos em parte, um fato político, fruto da imposição a todos os membros de

um Estado" (Ibid. p. 796). Esse caráter de imposição - que também se aplica

à noção de uma homogeneidade de costumes - coloca em dúvida a concepção

de uma nacionalidade espontânea, como a de Ernest Renan quando fala de

uma "vontade de viver juntos", de um "plebiscito diário".7

Assim sendo, procurar desvendar o enigma que envolve o termo nação

através da crença em um parâmetro fixo e absoluto significa enredar-se em

outros enigmas insolúveis. Ao se lançar um fecho de luz sobre uma região

obscura, novas sombras se insinuam. Isso porque, como propõe Bhabha, a

nação deve ser pensada enquanto narrativa, enquanto uma forma de repre­sentação da vida social. A verdade que se esconde sob o conceito de nação

revela-se, fundamentalmente, como uma verdade ideológica, em que a ideo­

logia é entendida a partir de uma concepção discursiva. Apesar de não menos

concreta e atuante, é uma verdade sempre mutável e escorregadia. Se a nação,

enquanto poderosa idéia histórica, possui uma inegável força simbólica, é

preciso lembrar que essa força se assenta em uma "unidade impossível"

(Bhabha, p. 1).

É dentro dessa perspectiva de impossibilidade de decifração de uma

verdade essencial ou de revelação plena de uma identidade nacional e pessoal

que se pode ler a citação, em Noturno indiano, do trecho do poema "Natal",

de Fernando Pessoa. Possuindo, significativamente, alterações em relação ao

texto original, significativamente traduzido, já que é recitado, em inglês, por

um indiano, e apresentado na língua do narrador - o italiano -, o trecho citado

diz: "A ciência cega lavra inúteis glebas, a fé louca vive o sonho do seu culto,

um novo deus é só uma palavra, não creias nem procures: tudo é oculto" (NI, p.5'+).

No questionamento da pretensão de um conhecimento absoluto, seja

através da racionalidade da Ciência seja através do fervor religioso da Fé,

revela-se a imprecisão do próprio sentido de Verdade. Em outro trecho do

mesmo poema, lê-se: "A Verdade nem veio nem se foi: o Erro mudou".8

Entretanto, pelo fato de os discursos de nação se constituírem enquanto

discursos pedagógicos, enquanto ideologia, o conceito de nação freqüente­

mente se apresenta como um conceito natural, como um conceito óbvio.

Afinal, pode-se dizer, todos nós sabemos o que é uma nação. Nessa afirmati­

va, o caráter enigmático da nação, ou seja, a impossibilidade d~ se ter acesso

à essência do sentido de nacional se rende à pressuposição dessa essência.

Page 184: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

184 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

Decretada a obviedade do nacional, estabelecida a crença de que tudo possui

uma "evidência definitiva", (FH, p. 20) torna-se desnecessário investigar o

modo como se constrói a sua significação.

Em Noturno indiano, a conjugação entre luz e sombra, entre a sensação

de enigma e a sensação de obviedade na percepção do espaço da Índia - e,

conseqüentemente, do próprio espaço de uma identidade nacional e indivi­

dual - se dá em diversos níveis.

Em alguns momentos, o que se ressalta é o sentido de exotismo da

paisagem. Vivenciando um tipo de "turismo de luxo",(NI. p. 87) em que a

cabine do trem é "quase um aquário",(NI, p. 36), o narrador pode lançar seu

olhar apenas como um olhar distanciado, um olhar de fora. Através desse

olhar, o que há de enigmático na paisagem reveste-se de uma luminosidade

predeterminada. A Índia que se vê é a Índia que se quer I'e,-: uma Índia opaca,

uma Índia já vista. O exotismo funciona como uma operação teatral que

garante a segurança de mistérios programados, que simula o enigma através

de recursos óbvios, como o porteiro, no Taj Mahal. "travestido de príncipe

indiano, de faixa e turbante vermelhos" e "outros empregados também fanta­

siados de marajá" (NI, p. 31).

Porém, para além das "pesadas cortinas de veludo verde" que "desliza­

vam doces e macias como um pano de boca de um teatro" (NI, p. 31), para

além das luzes enganosas do exotismo. a presença incômoda e obscura dos

corvos anuncia outras Índias. Com seus bicos sujos que carregam e espalham

pedaços de cadáveres, os corvos "não respeitam o 'direito de admissão'

vigente no Taj Mahal". Desafiando a vigilância dos polidos empregados do

hotel, revelam a Índia dos problemas higiênicos, dos ratos, dos insetos, das

infiltrações dos esgotos:(NI, p. 30) a Índia das sombras.

Para um olhar mais atento, o que a presença insistente dos corvos sinaliza

é que o Taj Nahal não é somente um hotel. É, na realidade, "uma cidade

dentro da cidade" (NI, p. 31). O espaço da nação passa a ser visto, dessa

forma, não mais apenas como a delimitação de fronteiras externas, mas como

um espaço marcado, fundamentalmente, pela "liminaridade interna" (Bhab­

ha, p. 300). O caráter uno da identidade cinde-se pela diferença que se instala

internamente. As margens da nação não estão do lado de lá de suas fronteiras,

mas no seu próprio cerne. As narrativas pedagógicas que se fundam enquanto

limites totalizadores se vêem confrontadas a contranarrativas que explicitam e rasuram esses limites.

Assi.m, a ameaça da diferença deixa de ser apenas uma questão relativa

a um outro povo (ou a uma outra identidade, a uma outra nação) e passa a ser

uma questão relativa à própria "outridade" do povo-enquanto-um (ibidem, p.

30 I), da identidade enquanto heterogeneidade, da nação enquanto conjunto

antagônico de significações. Na paisagem óbvia, plenamente iluminada,

Page 185: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

As sombras da nação 185

emergem, subrepticiamente, paisagens residuais e enigmáticas. Sobre o cená­rio límpido do Taj Nahal, sobrevoa a sombra dos corvos.

A coruja que voa no crepúsculo

Em Noturno indiano, a percepção de que a identidade se estabelece em um espaço situado entre o narrar e o ser narrado se dá, exatamente, na Índia

- esse lugar em que os homens se confundem com o pó, com meros nomes

que se perdem na quantidade infinita de papéis de um arquivo morto. Esse

lugar que exige, como adverte o médico do hospital de Bombaim, que se

abandone o "luxo excessivo" das "categorias européias",(NI, p. 20) que se pare de conceber "o Ocidente cristão como o centro do mundo" (NI, p. 65).

O que é necessário para se repensar o conceito de nação é, portanto, uma mudança de categorias. Tal mudança se efetua quando se percebe que o

controle da narrativa que constitui o sentido de nacional não é monológico, quando a nação passa a ser encarada enquanto conjunto heterogêneo de

significações ambivalentes.

Instalando-se a identidade enquanto jogo de narrativas, a Índia - esse

país feito de propósito para se perder (NI, p. 20) - deixa vir à tona, sobretudo,

a ambivalência particular que assombra a idéia dc nação: as certezas da

narrativa-pedagogia daqueles que escrevem e postulam a seu respeito e a

perplexidade das narrativas-performances daqueles que efetivamente a vi­vem (Bhabha, p. I).

Investigar a nação a partir de sua margem implica a quebra do binarismo

que opõe dentro e fora, identidade e alteridade. nacional e estrangeiro. Ao se

pensar que "o 'outro' nunca está fora ou além de nós", mas que "emerge

forçosamente dentro do discurso cultura]"' (ibid. p. 4), inaugura-se uma pers­

pectiva internacional. Ao se considerar a nação enquanto espaço de circula­

ção de narrativas, uma perspectiva trallsnacional é criada.

Em certa passagem do li\To. o narrador de Noturno indiano se lembra de suas antigas aulas dc astronomia. Nelas, aprendeu que "quando a massa de

uma estrela agonizante é superior ao dobro da massa solar, não existe mais

estado de matéria capaz de deter a concentração, e esta procede ao infinito;

nenhuma radiação sai mais da estrela, que se transforma assim em um buraco negro" (SI. p. 79).

Se no estado de adensamento absoluto as estrelas nada irradiam, desem­

bocando em buracos negros para onde converge toda a luz, talvez seja mais

interessante pensar a nação não mais como concentração de significações que

se agregam ou que se anulam, mas como negociação dinâmica de senti­

dos, Como dispersão de sombras, divergência de significações, Como disse­

miNação.

Page 186: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

186 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

Hobsbawm sugere que não é impossível se pensar no declínio do nacio­

nalismo e do Estado-nação. A partir desse declínio. "o 'ser' inglês, ou irlan­dês, ou judeu, ou uma combinação desses todos" passa a ser sentido como "somente um dos modos pelos quais as pessoas descrevem suas identidades, entre muitas outras que elas usam para tal objetivo, como demandas ocasio­

nais".9 O próprio fato de os historiadores estarem fazendo progressos nesse

campo de estudos indica que o fenômeno já passou de seu apogeu. Nesse

sentido, Hobsbawm lembra que "A coruja de Minerva que traz sabedoria. disse Hegel, voa no crepúsculo. É um bom sinal que agora está circundando ao redor das nações e do nacionalismo" (ibid. p. 215).

Como um "amante de percursos incongruentes" (NI, p. 7), é esse vôo e esse sinal que o leitor de hoje pode rastrear no universo da literatura contem­

porânea.

9. HOBSBAWM, Eric J. Naç"es e

nacionalismo desde 1780;

programa, mito e realidade.

Trad. Maria Celia Paoli e Anna

Maria Quirino. Rio de Janeiro:

Paz e Terra, 1991, p. 215.

Page 187: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

1. Citizen Kane é filme de Or­

son Welles de 194 I, conside­

rado um dos melhores filmes

de todos os tempos. Tem cinco

narradores (o narrador pro­

priamente dito; o noticioso

"News an the March", com

seu olhru' jornalístico neutro e

sensacionalista; e os entrevis­

tados pelo jornalista Thomp-

50n, que procura o sentido se

"Rosebud", palavras do leito

de morte de Kane, na esperan­

ça de encontrar uma chave re­

veladora do sentido da exis­

tência de Kane. São: Thatcher,

o tutor-banqueiro de Kane;

Bemstein, amigo de Kane e

colaborador do jornal "'The In­

quirer"; Leland, amigo de in­

fância e colaborador de Kane,

com o qual Kane briga quando

da crítica feita a Susan Alexan­der enquanto cantora lílica e

atliz; Susan Alexander, segun­

da mulher de Kane; e Ray­

mond, o mordomo de Kane.

2 Proust, MareeI. À la recher­

cite du ternl'.\·l'erdu. Texte éta­

bli et presenté par Pierre Cla­

rac et André Ferré. Palis: Gal­

limard, 1960. VaI. I, p. 115.

A possante e o "choque" A experiência da fugacidade no

cinema e na literatura

Suzi Frankl Sperber

J acques Bourgeois compara Citizen Kane,1 de Orson Welles a A la Recher­

che du Temps Perdu, de Proust e sugere que Welles consegue exprimir mais do que a ação, no cinema: que ele realiza o tour de force de visualizar uma

sensação.

Il semble que cette voie de la visualisation de la sensation puisse donner au cinéma

I 'indépendance artistique.

Uma sensação será mesmo visualizável? Compararei a visualização com

a verbalização da sensação. Proust descreve a sensação do hábito:

Et ti partir de cet instant, je 11' avais plus un seul pas li júire, le sol marchait pour moi

dalls ce jardin ou depuis si longtemps mes actes avaient cessé d'être accompagnés

d'attention v%ntaire: l'habitude veflait de me I'rendre dans ses bras me portait

jllSqll' au li! comme lln petit enfúnt2

Tentarei visualizar cinematograficamente esta sensação. A imagem do

solo que corre diante dos olho~, velozmente, me produz não a sensação do hábito, mas a da velocidade, porque a câmara tenderá a apresentar um movi­mento real registrado tecnicamente pela câmara, em que a fugacidade do objeto adviria do movimento. A imagem proustiana é poética. Sua concepção

Page 188: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

188 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

do hábito é lírica e acalanta, enquanto que a imagem de hábito que ficou para

o intelectual que leu Benjamin, Adorno, Marcuse e Eco é do costume como

deletério, destruidor quase que de neurônios, capaz de transformar o ser

humano em uma massa amorfa. A anestesia da atenção voluntária deixou de

ser vista como fenômeno normal da consciência humana. para ser rejeitada

com horror. O estopim foi o horror diante do obnubilamento ideológico

oCOITido durante o nazismo e fascismo. A continuação do medo diante dos

efeitos negativos do hábito e da repetição decorreu de se ter considerado o ser

humano como fundamentalmente bom, num passado definido como referên­

cia, e a doutrinação nazista e fascista exxcencialmente como fenômeno de

manipulação das vontades.

Quando Proust indica as modificações de visão de uma mesma persona­

gem no tempo, referindo-se a Albertine, aproxima seu rosto e tem diante de

si não uma, mas dez Albertines que beija. Cinematograficamente possíveis,

ainda que talvez seu valor metafórico não seja facilmente decodificável pelo

espectador, as imagens diferentes da mesma pessoa deveriam, no entanto, a

fim de serem entendidas como mudanças, ser bem diferentes uma da outra,

se representadas no cinema em montagem feita de superposiçoões (o que a

maquilagem e o penteado permitem). A metáfora, que precisa de seu tertiunz

comparationis, se proliferaria em um efeito cumulativo de função metafórica

reduzida, pelo menos mais reduzida do que no texto literário.

Tomarei outro exemplo para prosseguir na comparação entre cinema e

literatura, este longo porque tem sua unidade e não pode ser truncado. Trata­

se do momento em que Charles Swann ouve uma peça de Vinteuil, no salão

dos Verdurin. 3

O trecho indica as sensações de Swann e faz concomitantemente uma

descrição musical precisa da partitura ouvida.

Et (avait déjà été IUI grand plaisir quand, au dessous de la petite ligne du violol!.

mince, résistante, deTLfe. directrice ...

As sensações de Swann são descritas como podem dar-se na mente

humana: imagens misturadamente concretas e abstratas, de detalhes precisos

ou de contornos imprecisos, sempre fragmentárias, às vezes vagas:

Il avait vu tout d'un coup chercher à s'élever en un clapotelllem liquide. la lIlasse de

la partie de piano, multifilrme. indivise, plane et entrechoquée colI/me la mauve

agitation desflots que charme et bémolise le c/air de [une. Mais â III! I/loment donné.

sans pouvoir nettement distingue r un contour, dOllner 1lI1 I/om â ce qui Iui plaisait.

charmé tout d'un coup, il avait cherché à recuei/lir la phrase 011 l'harmonie - il ne

savait lui même - ... "

J. Et (avait déjà éré Ulllirand

p/aisir quando au des."'us de /lI

petite ligne du vio[on, minee,

résistante, dense et directrice, il avait vu tout J'un COU!, cher­

cher à s'élever en un clapote­

ntellr liquide. {li masse de {li

partie de piano, l1lu[t(torme,

indivise. plane ef entrecho­

quée comme la I1l11UVe a~itll­

!ion des .flor,\' {jlfe charme e!

hémo/ise le dai,. de {filie. Mais

cl Ull mamellf l/(}lIllé. salts pIJU­

\"oir IJettemellf disfinj{uer un

("ontmo; Jonner un nom à ce

qui lui plaisait, charmé (ou!

d'l/11 coup. il avait cherché li

recuei/lir la I'hrase ou /'hur·

monte - il ne sava;! lui-même - qui passai! et qui lui avait

ouvert plus lar;.:emen! ['âme,

comme certa ines odeurs de 1"0-

ses circulant dans l'air humide

du sOlr ont la proprié!é de di·

later nos narines, Peut·être

est-ce paree qll'il ne silvai! pas la musique lJU 'il avait pu

Page 189: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

éprouver une impression aussi

umfuse, une de ces impres­

sions qui sont peut-être pour­

tant les seule.\' purement musi­

cales, inatendues, entierement

oriKitwles, irréductihles à tout

autre ordre d'impress;ons.

Une impression de ce Kenre,

pendant un instant. est pour

ainsi dire sine materia. Sans

doute les notes que naus en­

tendol1s alors. tendent dêjà,

selon leu r hauteur et leur

quantité, à couvrÉr devant nos

yeux des surfaces de dimen­

stons variées, à tracer des ara­

hesques, à nou.\' donner des

sensa!ions de larReur. de té­

nuité, de stahilité, de CIlprice.

Mais les note.\' sont êVllnouies

avant que ces senslltions

soient as.\'ez .f()rmêes en nous

pour ne pas être suhmerKêes

par celles qu' éveillent déjà les notes suivantes ou même si­

multanées. Et ceUe impressiol1

continuerait à envelopper de

sa liquidité et de son ':frmdll"

les motilv qui par instant en

émerRent, à peine discerna­

hles, pour plonl(er aussitôt ef

disparaitre, connus seulement

par le plaisir particulier qu 'ils

donnent, impossihles à décri­

re, à se rappeler, li nommer,

ineJlahles - si la mémoire,

comme Ur! ouvrier qui lravail­

le à étahlir desfándatiol1s du­

ruhles ali milieu des .flo!s, en fahriqllant pour nous desfac­

similés de ce.\' phrases .fi/Riti­

ves, ne nous permettait de les

comparer à ceiles qui leur suc­

cédent ef de les difjerencier.

Ainsi. à peine la sensatlon dê­

{icieuse que Swann avai! res­

sentie était-elle expirée, que sa

mémoire lui en ava;t jt)/~rni

séance tenante une transcrip­

tion sommaire el provisoire.

mais sur laquelle il avait jeté

les yeux tandis que le morceau

continuait, si hien que, quand

la même impression était tout

d'un coup revenue, elle n'était

déjà plus insaisissahle. 11 s' en représentllit I'étendue, les

A passante e o "choque" 189

É talvez possível comparar cinematografia à massa musical ou ao maru­lho líquido. A comparação seria um tanto forçada, porque a imagem cinema­

tográfica pode ser apreendida como uma realidade mais contundente que a imagem literária. ainda que a imagem literária possa despertar outras associa­ções, diluidoras da nitidez da imagem formada em nosso cérebro. Além de que a cena imaginada acima levaria o espectador de um filme a supor que a associação entre música e marulho líquido estaria sendo feita pela persona­gem e não pelo narrador; que ela estaria pronta, acabada, e não provocaria o

mesmo tipo de associações no espectador. E como comparar uma massa musical à "agitação malva das ondas"? que "encanta o luar"? e, sobretudo, que "bemoliza" o luar?? O equivalente cinematográfico para a tomada de consciência da personagem no momento de uma percepção depende de um tempo mais longo que o fluxo normal do cinema, limitado, apesar de tudo, por leis mais rígidas de audiência e de mercado, e limites mais estreitos de

tempo e custos de realização,

Ou ainda, como descrever uma impressão sine ma teria por meio de imagens?

Sans doute les notes que flOUS entendons alors, tendent déjà, selofl leur hauteur et leur

quantité, à couvrir devant nos yeux des Sllrfaces de dimeflsions variées, à tracer des

arabesques, à nous donner des .sensations de largeur, de ténuité, de stabilité, de

caprice.

Ao descrever emoções com palavras, partindo do mais abstrato para o mais concreto, Proust prepara-nos para aceitarmos a imagem mais concreta em contraste com a sua imaterialidade, levando-nos a perceber música atra­

vés da imagem literária. Quando Proust diz: "à naus danner des sensatians

de largeur, de ténuité, de stabilité, de caprice" nossa alma se expande, se

atenua, se inquieta e salta - e ouvimos uma frase vaga, sem sabermos de que

compositor - e não temos imagens diante dos olhos. A descrição dos motivos, apesar de indicada como impossível, nos é sugerida por Proust:

impossibles à décrire, à se roppeler. à nommet: ine{fables - si lamémoire, comme un

ouvrier qui travaille à étabfir desf,mdations durables au mifieu desflots, enfabriquant

pour nous defac similés de ces phrasesfugitives, ne flOUS permettait de les comparer

à celles qui leur succedent et de les di{ferencieJ:

Tais cenas só são possíveis porque filtradas pela memória, A memória

serviria para fixar o inefável, através da comparação com outros estados

d'alma. Como reage o cinema?

Ainsi, li peine la sensatjon délicieuse que Swann avait ressentie était elle expirée, que

sa mémoire lui en avaitfóurni séance tenante une transcription sommaire et provisoi-

Page 190: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

190 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

re, mais sur laquelle il avait jeté les yeux tandis que le morceau continuai!, si bien que

quand la même impression était tout d'un coup revenue, elle fl'était déjà plus insaisis­

sable. Il s' en représentait l' étendue, les /?roupements symétriques, la /?raphie, la valeur

expressive; il avait devant lui ceUe chose qui n 'est plus de la musique pure. qui est du

dessin, de l' arehitecture, de la pensée, et qui permet de se rappeler la musique.

Esta última frase lembra o problema da criação de Coleridge:

Could I revive within me

Her symphony and son/?,

To sue h a deep delight 'twould win me,

That with musie loud and [ong,

I would build that dome in air.

Proust cria imagens que despertam a imaginação e sensibilidade dos

leitores, captando o inefável através da intuição - referida a alguma experiên­cia pessoal. A música - evocada através de palavras - suscita um conheci­

mento vago, desprovido de formas físicas ou pensamentos racionais. Introduz

em nossa mente um desenho, forma arquitetônica ou pensamento sugeri dores de música. Nossa imaginação é obrigada, pelas palavras do autor, a fazer ato de criação por nossa parte. Desta forma, Proust realiza um ato social, o de obrigar seu receptor are-criar (e a se rever em sociedade) vivificando e transformando a obra em equivalente sensível para ele.

No cinema é possível executar uma partitura como música incidental de um filme. O que não acontece é que esta música e a sensação sugerida se convertam em equivalente verbal imediato para nós, assim como se converte em imagem imaginada pelo leitor o trecho equivalente descrito em A la Recherche du Temps Perdu. Entretanto, tanto a música pode sugerir-nos sensações ricas e profundas, como a imagem e a banda sonora podem estar elaboradas com o cuidado que produz a função poética. Arremedando Jakob­son, a função poética no cinema também se define como projeção do princí­pio de equivalência do eixo da seleção sobre o eixo da combinação: as unidades mínimas, colocadas em relação de equivalência, são a imagem estatizada como todo e em seus detalhes; seu movimento e a música e/ou palavras audíveis. Em verdade o poético e o belo permanecem inefá\'Cis e sua enunciação colinda com o silêncio. Lembro-me de 8 1/2. de Fellini. de O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman. Em 8 1/2 a memória também recupera os momentos de poesia do passado. No presente cita-se Mallarmé: "Ti ricordi delta pagina bianca di Mallarmé?" diz o jornalista ao cineasta que será entrevistado.

Até que ponto contribui para o poético a irrealidade, o sonho, a fantasia? A lembrança purifica a imagem lembrada de detalhes desnecessários, carre­gando-a da sensação revi vida: o que já não é lembrança simples, mas se

;:roupemenfs symétriques, la xraphie, la valeur expressive;

il avait devanf lui cefte chose

qui n'es! plus de la musique

pure, qui esrdu dessin, de I'ar­chitecrure, de la pensée, el qui

permel de se rappelerta musi­

que, Cette jáis il avair disrin­

,guée nettement une phrase

s 'élevanl pendanr quelques instants au-dessus des ondes

sonOrf:s. Elte [ui avait proposé

aussrftÍr dex voluptés parficu­

liêres, dom II n 'avaitjamais eu

['idée arwIl de ['enrendre,

t!Oflt ti sentai! que ricn arare

qu'elle ne IJI!llrraif te.\' [uifaire

cOflllaitre, ef li (lI'aif éprouvé

pour eiie comme ullamour in­

conflU,

D'un n'r/Inle lenf elle le di­

rh:eait iei d'ahord, puis lã,

puis ailleurs. \'ers un honheur

nohle, ininrelliRihle et I'récis. Et fou! d'un coup, au point ou

elle étai/ arrivéc c/ d 'OLf il sc

préparait ã la suirre, apres

une pause d'uII illstant, hru.\'­

quement eile chan~eait de di­

ree/ion, ef ((1I1l mouvemen/

nouvcau, p/li.\" rapide, menu,

mélancolique, incessan/ c!

doux, elle i 'entra/nait avcc

clle l'ers dn /u:rspectives in­

COlllllle.\ PlIi.\" elle disparut. Il souhlllta passionémen/ la re­

\'oir rOle tmisii:me.fáis. E/ elle

repana en elfet, mais san.\' lui

/Jti.rler plus claremenf, en tui

l clll.'{lllt même une volup/é

mOlfls pn~t(}nde, Mais, renfré

che:. lu i, II eut hesoln d'elle: il

érult comme un homme dan.\' la

\'ie de qui une pllssante qu 'da

aperçue un nwmcnt vient de

faire entrer I'imaxe J'une

heauté nouvelle qui donne à sa

pmpre sensihilité une valeur

plus );rande, sans qu 'il sache seulement s 'U pourra revoir

jamais celle qu 'ir aime déià er dont il if?nore ju.\'qu'au nom.

(Prous!: I, 208-210).

Page 191: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

4, O cineasta polonês Kryszrof

Kieslowski, em recente entre­

vista concedida à revista

Newsweek, diz: Imagine trying

to film the sentence: "He be­

gan to come to see her leS5 end

less, until he stopped coming

altogether." This is a phrase

that oeeurs often in literature.

But you can 't film it. because

it speacks 01' time. of a relan­

tionship betwecn two people.

Newsweek, 15 de moi o de

1995, p. 56.

5 Vide nota I .

A passante e o "choque" 191

localiza dentro do campo de relativa irrealidade que é a vida interior. Esta recupera as imagens carregadas de símbolos - sinônimos de irrealidade - para a realidade contingente, imanente, como em 8 1/2 ou O Sétimo Selo, A combinação dos dois elementos, (realidade contingente - e imediata - e irrealidade) conferem uma grande liberdade, permitindo que crie em nós uma unicidade de ordem imaginatiya, a qual nos proporciona uma clareza maior e a consciência das raízes do ser - poesia. O cinema pode despertar em nós o sentimento poético, deixando aos espectadores a tarefa da poetização em si, que na literatura, porque as palanas têm menos força de presente do que as imagens, deve cumprir-se integralmente dentro do texto, sem deixar de exigir da imaginação dos leitores a análise da imagem, sua decomposição em nós, para voltarmos, em seguida, a senti-Ia.

D'un r."filme lenr elle le dirigeair iei d'abord, puis là, puis ailleurs, vers un bonileur

noble, 11ll1l1elhglble er précis. Et tout d'un coup, au point ou elle était arrivée et d' ou

ti se préparair à la suivre, apres une pause d'un instant, brusquement elle changeait

de d/recrion, et d'un mouvement nouveau, plus mpide, menu, mélancolique, incessant

er dOlLt, elle l'entra/nair avec elle vers des perspectives inconnues, puis elle disparut.

Não só trechos como os que tomamos seriam de difícil representação cinematográfica,4 No restante da obra, a ação efetiva mostra-se insatisfatória para Proust. Os momentos têm um encanto muito menor quando vividos, que quando revistos pela memória, diz ele, Quando Marcel joga o jogo do anel com Andrée, Albertine, Rosemonde e outras jovens, em Balbec, não experi­menta encantamento, No entanto, Marcellembrar-se-á mais tarde deste epi­sódio com um fascínio muito superior ao da realidade vivida e representada por palavras,

A diferença de formas de apreeensão da realidade é de expressão cine­

matográfica ainda mais difícil. No entanto, em Citizen Kane, a diferença de ambiente entre as cenas do noticioso e as dos relatos, em Xanadu, por

exemplo, é indicativa de que é possível apresentar esta diferença, no cinema, segundo o olhar que lhe é lançado no tempo - pela câmara-narrador propria­mente dita, ou por outro espectador, isto é, um dos entrevistados por Thomp­son,5 Bernstein, em seu relato, apresenta um Kane eufórico, mas em que já pesa uma ameaça de opressão, Evidentemente esta impressão é o resultado de considerações posteriores ao momento vivido, em que não haveria cons­ciência possível, porque a defasagem seria inexistente, Como o relato é posterior ao acontecido, o acontecido, apesar de a imagem cinematográfica

ter força de presente, e,stá carregado da análise que lhe é posterior, sendo esta

expressa não por palavras, mas pela iluminação, pelas angulações, pela posi­ção da câmara e pelos ambientes já sobrecarregados e fechados, que oprimem a personagem principal. O foco narrativo é capaz de fixar algo, na imagem como todo, que recupera plenamente, para o cinema, as características do

Page 192: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

192 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

signo visual (cuja apreensão, quando estático, seria global), mas que cscapam

ao espectador quando vê a imagem em movimento, ao mesmo tempo lincari­

zada e fragmentada pela narrativa. Então recupera a imagem, projetando-a

numa série associativa que apreende a consciência dais personagem/ns em

uma linguagem de função poética. O foco narrativo, ao recuperar a memória,

é fator de poesia, tanto na literatura, como no cinema. E será capaz de

representar a experiência.

A representação da experiência, ou mesmo da vivência, apresentada

como distinta da primeira, sempre precisará de meios diferentes no cinema

que na literatura, já que o signo lingüístico é fundamentalmente convencio­naI, descontínuo, mediato e heterogêneo, feito de partes combináveis e asso­ciadas na descrição de cada cena, enquanto que o singo visual é analógico,

contínuo, imediato e homogêneo, isto é, feito de cenas apreendidas global­

mente, de difícil análise em bloco, ao contrário da linearidade do signo

lingüístico. No cinema encontramos um signo visual híbrido, feito de carac­

terísticas do signo visual, modificadas por características do signo lingüísti­

co: a sucessão representada pelo movimento e a expressão dentro de uma narrativa, que, mesmo sendo cinematográfica, segue uma linha de relato que

precisa de um cixo mínimo de ordenação, indicativo das relações de causa e

efeito, que dependem da cronologia, ou da sucessão.6 Como o signo visual tende a ser apreendido globalmente, a expressão de uma sensação dependerá

de diferentes fatores. Um pode ser a representação de seqüências com carac­terísticas da cena diferentes do resto do filme, como é o caso da primeira seqüência do Cidadão Kane, francamente numinosa, representativa do trata­mento da psique humana como misteriosa e sagrada a um tempo - e como que proibida à percepção dos afoitos. Outro exemplo é a representação da

fantasia e da lembrança em cenas de 8 112, como a cena da fonte. com a atriz Claudia Cardinale (fantasia), ou as cenas com a personagem Saraghina Ilem­brança), ou as da sauna (irrealidade). Outro, ainda, é todo o filme Sonhos. de Akira Kurosawa, em que o universo onírico está na base de todo o relato.

De qualquer maneira, algo é certo e inevitável. A literatura sugere asso­

ciações - mas explicita pela palavra impressões. pensamentos. símbolos,

sonhos e fantasias, enquanto que o cinema sugere. sim. também. mas deixará para o espectador a tarefa de conversão das cenas em formas verbais discur­sivas - a menos que estas apareçam como discurso interior explicitado, o que torna o filme chato, além de empobrecido. Só o nível de relações de persona­gens entre si fica de decodificação mais fácil - sempre que o pressuposto de interpretação aceite os limites de conhecimento humano, os limites de memó­ria. É que os diálogos permitem a explicitação de emoções e lembranças. Outros níveis de relações são de decodificação mais difícil, a não ser que tematizados na trama. Os problemas que colocam a questão da identidade pessoal podem ser apreendidos, no cinema, através das relações inter-pes-

('. Roland Barthes diz que a Sll­

~essào dá a ilusão da crono­

logia. isto é, de que aquilo

que antecede é causa do que

sucede

Page 193: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

'. Proust m; 885.

A passante e o "choque" 193

soais, como é o caso de filmes de Kurosawa como Ran, ou como Harakiri. Claro que a dimensão metafísica (ou mística) do ser humano é a de represen­tação cinematográfica mais difícil.

Tel nom lu dans un livre autrelóis, contient entre ses syllabes le vent rapide et le soleil

brillant qu'i!faisait quand nous le lisions. De sorte que la littérature qui se contente

de "décrire des choses", d'en donner seulement un misérable relevé de lignes et de

surlaces, est celle qui tout en s' appellant réaliste, est la plus éloignée de la réalité,

celle qui nous appauvrit et nous attriste le plus, car elle coupe brusquement toute

communication de notre moi présent avec le passé. dont les choses gardaient I' essence,

et I' avenir, ou elles nous incitent à la gouter de Ilouveau. C' est elle que I' art digne de

ce Ilom doit exprimer, et s'i! y échoue, on peut encore tirer de son impuissance un

enseignement (tandis qu'on n'en tire aucun des réussites du réalisme) à savoir que

cette essence est en partie subjective et incommunicable.7

Este é o projeto mais ambicioso da literatura. Os projetos cinematográ­ficos ambiciosos buscarão a representação dos aspectos que, no ser humano, se relacionam com o histórico e o social. A psique humana é representada e se manifesta nas relações com o outro.

A passante e o choque

A descrição dos efeitos da música no ouvinte privilegiado que é Swann, em A la Recherche du Temps Perdu, percorre sinestesicamente diversos órgãos de sentidos, até serem todos enfeixados no amor desconhecido, em sentimentos fortes, plenos, mas o seu tanto indescritíveis, indefinidos, vincu­lados fundamentalmente à experiência estética, ou, em outras palavras, à

experiência do belo:

D 'UII rythllle lellt elle le d/riRemt ici d·abord. puis là, puis ailleurs, vers un bonheur

nob!e, illilltelligible et précis. Et to//t d'un coup, au point ou elle était arrivée et d'ou

il se préparait ti la mi\Te. apres //lIe pause d'un instant, brusquement elle challReait

de directioll, et d' lIlI mo//vemellt lIouveau, plus rapide, menu, mélancolique, incessant

et dow:, elle I'elltraillait avec elle vers des perspectives inconnues.

Assim é que Proust introduz o topos da passante, topos que recorre em manifestações diferentes e de épocas diversas. Baudelaire dedica um poema a passante, estudado por Benjamin, O mesmo topos aparece no cinema, Tem a ver com a tentativa de fixação do momento fugaz de apreensão da beleza física ou estética, que provoca sentimentos desta espécie de amor deconheci­do do qual fala Proust. Como um dos problemas na passagem da literatura para o cinema é a representação da memória, trabalharei mais de perto com

Page 194: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

194 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

a evocação de um tema comum à literatura e ao cinema, e do que ele por sua

vez evoca.

Não é incomum, na ficção, que um tema recorra em manifestações

diferentes e de épocas diversas. É o caso da passante. Baudelaire dedica um poema à passante. Proust fala na passante:

Mais rentré chez lui, il eut besoin d'elle: il était comme un homme dans la vie de qui

une passante qu'i/ a aperçue un moment vient de faire entrer /'image d'une beauté

nouve/le qui donne à .Ia propre sensibilité une valeur pias grande, sans qu'j[ sache

seulement s'j/ pourra revoir jamais celle qu'U aime déjà et dont il ignore jasqu'au

nom.

o mesmo tema é mais desenvolvido pelo próprio Proust, na "splendide jeune filIe inconnue, à la cigarette, de Saint-Pierre-des-Ifs".8 Também apare­ce em Citizen Kane, nas palavras de Bernstein a Thompson - o jornalista encarregado de fazer a investigação sobre Kane, a fim de descobrir o sentido da palavra pronunciada no leito de morte: Rosebud. Neste trecho do filme, a fim de transmitir a impressão de contornos vagos mas marcantes da experiên­cia, Welles imobiliza a imagem e faz Bernstein evocar a cena através das palavras. A expressão fisionômica de Bernstein serve para salientar a melan­colia e pujança da fixação da imagem na memória, carregada dos sentimentos revividos.

Para Proust a lembrança da passante não é uma referência de "vivência". Ao contrário, é uma experiência preciosa de amor e de beleza, apesar de fugaz. A fugacidade é circunstancial. A experiência é definitiva.

Quando Bernstein lembra a jovem de branco sua voz está comovida; seu olhar intenso transcende o presente e o relato revela como a circunstância fugaz pode dar profundidade e sentido à vida humana. A plenitude não reside nos grandes acontecimentos: "It is easy to make money when all you want is to make money", diz Bernstein. O essencial é invisível aos olhos, já o disse Saint Exupéry ... A rememoração do efeito produzido pela visão da jovem de branco, feita com amor, saudade, intensidade, emoção controlada pela mu­dança radical de assunto e de atitude me lembra um trecho literário de emoção similar, em que o narrador recorda a beleza natural, que trai o amor intenso contido e oculto. É quando Riobaldo descreve a natureza local, traindo seu amor por Diadorim:

Lua de com ela se cunhar dinheiro. Quando o senhor sonhar, sonhe com aqui/o. Cheiro

de campos com .flores, .filrte, em abril: a ciganinha. roxa, e a nhiíca e a escova,

amarelinhas ... Isto - no Saririnhém. Cigarras dão bando. Debaixo de um tamarindo

sombroso ... Eh, frio! [ ... l. Lembro. deslembro. Ou - o senhor vai - no soposo: de chuva-chuva. [ .. .] Por esses longes todos eu passei. com pessoa minha no meu lado, a gente se querendo bem. O senhor sabe? Já tenteou s{~frido o ar que é slIudmle? Diz

R. Prous! 11, 883.

Page 195: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

9. ROSA, João Guimarães. Grande Serfiio: Veredas. Rio

de Janeiro: José Olympio, 1963: p. 27.

10 BENJAMIN, Walter, HORKHEI. MER, Max, ADORNO, Theodor e

HABERMAS, Jürgen, Textos es­

colhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 38-9.

!!. Acumular "impressiJes du­

radouras comofundamento da

menu5ria" de processos estl­

muladores é reservado, segun­

do Freud, a "outros sistemas".

que devem ser tidos como di­

versos da consciência. Segun­

do Freud, a consciência como

tal não acolheria traços mne­

mônicos. Teria, ao invés, uma

função diversa e importante:

servir de proteção contra os es­

tímulos. "Para () organismo

vivo, a defesa contra os esti­

mulos é uma tarefa quase tão

importante quanto a sua re­

ceprão: o or;:anismo é dotado

de um quantum próprio de

ener;:ia, e deve fender sobretu­

do a proteger as formas parti­

culares de enerKia que nele

operam do influxo nivelador, e

A passante e o "choque" 195

que tem saudade de idéia e saudade de coração .. Ah. Diz-se que o governo está

mandando abrir boa estrada rodageira, de Pirapora a Paracatú, por aí. .. Y

A experiência de Riobaldo-narrador distingue a "saudade de idéia e a saudade de coração", Seria o equivalente da diferença entre experiência e vivência? A "saudade de coração" contamina a linguagem do trecho acima, que fala da natureza selvagem como bela, mas não da "beleza" exótica tal como pode ser vista pelo homem urbano e sim da beleza revelada pela

pontuação, pela escolha das palavras, pelo tom poético e pela interrupção que revela o sofrimento da saudade. Enquanto isto, a "saudade de idéia" contami­na a visão de mundo.

Benjamin analisa o poema "La passante", de Charles Baudelaire,

"O significado do soneto numa.frase é o seguinte: a aparição quefascina o habitante

da metrópole -longe de ter na multidão somente a sua antítese, somente um elemento

hostil- é proporcionada a ele unicamente pela multidão. O êxtase citadino é um amor

não já à primeira vista, e sim à última .. É uma despedida para sempre que, na poesia,

coincide com o instante do enlevo. Desse modo o soneto apresenta o esquema de um

choc, ou melhor, de uma catástrofe que atingiu juntamente com o sujeito também a

natureza do seu sentimento. O q/Je contrai convulsivamente o corpó - "crispé comme

un extravagant" é dito na poesia - não é afelicidade de quem é invadido pelo eros em

todos os recantos do seu ser; mas antes um quê de perturbação sexual que pode

surpreender o solitário. " 10

Benjamin considera que a passante provoca um choque que não corres­ponde ao amor. A emoção amorosa, afetiva, teria sido substituída pela pertur­

bação erótica.

A experiência da fugacidade - e da perda - tem sido apresentada no cinema por filmes tipo Short Cuts, de Robert Altmann. Esta é uma fugacidade epidérmica, .que repete impressões, mas não deixa senão rastros. É uma seqüência de choques (utilizando um vocabulário benjaminiano ll ) - à manei­

ra de Rastros de Verão, de João Gilberto Noll - que não abre espaço para

outro tipo de consciência a não ser o sentimento de perda diante da busca da

profundidade e plenitude, da beleza e do amor, decorrente da fugacidade, ~ão níveis diferentes de experiência diante do mesmo fenômeno da fugacidade.

O sentimento de perda é profundo, ancestral no ser humano, e ligado ao anseio da plenitude. O sentimento de medo, de dor e o recobrimento do choque provocador da perda podem ser responsáveis pela perda da memória,

ou pelo registro de curta duração, Mas isto é outra coisa. Segundo Freud, é origem dos atos falhos, reveladores de que o aspecto oculto, silenciado -

aparentemente extinto - está em plena ebulição. O que Freud considera sobre a neurose traumática l2 - excepcional e patológica - é levado por Benjamin para o campo da normalidade e da ocorrência habitual, contanto que aplicado à "estupidez das grandes massas" e não ao poeta (ou ao crítico?), que perde-

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196 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

ram a auréola, mas não a cabeça. Por medo do novo, da coletividade que Benjamin vê ser manipulada pelo governo nazista de então, Benjamin cons­trói, como mostra Lowy, uma utopia voltada para o passado. O passado é bom e puro - pleno - sendo o presente perigoso, vazio e pobre. A modernidade passa a ser a cifra investida do susto de Benjamin diante do que vê ocorrer em seu país: a Alemanha de Hitler. A reação dos concidadãos passa a ser vista

pelo viés ideológico-político, não havendo espaço para considerar a renova­ção das formas e linguagens estéticas como uma necessidade da arte, tal como o entende Adorno.

É bom lembrar que o fenômeno cultural do qual trata Walter Benjamin independe de características especiais e diferentes de cinema e literatura. E que a análise de Benjamin, da década de 30, volve o olhar impregnado no susto do momento político sobre uma obra publicada 100 anos antes (Fleurs du mal, de Charles Baudelaire), quando tanto a experiência da modernidade como mesmo o volume da "multidão" eram completamente diferentes que os que podemos viver hoje, ou que era possível na Alemanha da década de trinta.

Os estados mentais (tipos diferentes de consciência, sentimentos, pensa­mento, evocação, vida intelectual) são de apresentação cinematográfica pos­sível através de palavras (como na referida cena em que Bernstein lembra a jovem de branco), servindo a imagem do relator para criar uma mediação com o estado mental descrito pelas suas palavras. A imagem apresentada é de outra ordem do que o enunciado e leva o espectador a conhecer, através das palavras, um estado de consciência que não se explicita pela fisionomia (imagem) - suscitando no espectador uma imagem imaginária mais pene­trante que a imagem real, como se o espectador tivesse recebido um impacto, com esta imagem, semelhante ao do narrador, algo que corresponde a um choque, mas que leva a percepção para o campo da experiência. Porque, como diz Merleau-Ponty. nenhuma consciência constituinte pode saber da pertença de uma consciência a um mundo "pré-constituído". 13

Le regard eSI /e dép/oiement d'une IllImllJ/lie /ocalisée Iraduisanl /es liens entre sa

localisafion particuliere el sa cible. c 'est-lÍ-dire I 'élendue fonciérement totale de

l'univers:

"Si je veux m' enf'ermer dans un de mes sem et que, par exemple, je me projette tout

entier dans mes yeux et m 'abandonne au bleu du ciel, je n' ai bienfôf plus conscience

de regarder ef, au moment ouje voulais mefaire fout enfier vision, le ciel cesse d'êfre

une "perception visuelle" pour devenir mon monde du moment, " 14

A citação de Merleau-Ponty indica que a percepção do mundo não depende de um movimento - ou de impulsos - externos, mas antes de uma tomada de consciência pessoal, interna, decorrente da capacidade de doação plena a um dos órgãos dos sentidos. A passagem da percepção visual particu­lar e tópica para converter-se em um todo em si, em mundo, depende de um

conseqüentemente destrutivo,

das energias demasiado gran­

des que operam no exterior",

A ameaça proveniente dessas

enerKülS é uma ameaça de

choes. Quanto mais normal e

corrente for () re/?istro dos

choes. tanto menos explica a

natlfreza dos choes traumáti­

cos pela "ruptura da proteção

contra (I.'i estímulos". O xiKni­

.ficado do espanto é, seRundo

essu tf:'oria. a "ausência da

predisf1osi~'Ü() pura a angús­

tia ", Al'uJ BE"JAMIN, Walter. HORKHEIMER, Max, ADORNO, Theodor e HABERMAS, Jürgen,

Textos e,\'CIIlhidlis, São Paulo: Abril Cultural, 1980: p, 33.

Enfim, segundo Benjamin a

sensação da modernidade leva

à "dissolução da aura nu 'ex­

periência', () choc".

12 A investigação de Freud ti­

nha como ponto de pmtida um sonho típico das neuroses trau­máticas, Ele reproduz a catá-,­

trofe pela qual o paciente foi

atingido. Segundo Freud, so­nhos desse tipo tentam "reali­

zar a posteriori () controle do

estimulo desenvolvendo a an­

gústia cuja omissão foi a cau­

sa da neurose traumática",

Apud Benjamin (): 33,

U, MERLEAU-PONTY, Mamice.

Signes. Paris: Gallimard,

1960, pp, 86-7,

14, MERLEAU-PONTY, Maurice.

Phénomenologv de la percel'­tism, Paris: Gallimard, 1989 p, 260,

Page 197: Revista Brasileira de Literatura Comparada - 03

A passante e o "choque" 197

ato de vontade e da consciência do próprio olhar, a fim de suspender a contingência e a singularidade.

Uma amplificação destas é mais facilmente transmissível por palavras, do que por imagens, porque as imagens se apresentam ao espectador como realidade - externa à consciência. Mas foi só fazendo a comparação entre literatura e cinema, e tomando como exemplo o filme de Orson Welles, que nos demos conta de que aquilo que parece ser mera vivência, fruto de choque, conforme Benjamin, pode ser vivido como experiência profunda e mesmo fundamental. Os níveis de consciência humana podem ser diretamente afeta­dos por contingências históricas - mas não é obrigatório. Assim, o cinema nos leva a suspender o determinismo na concepção das relações entre ser humano e meio; nos leva a entender que as mudanças e transformações no ser humano são possíveis ao longo de sua existência. Nada é. Tudo está.

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'. CABRERA INFANTE, Guiller­mo. Tres tristes tigres. Barce­lona, Sei x-BarraI, 1968, p. 341.

2. NERUDA, Pablo. Confieso

que he vivido. Memorias. Bar­celona: Seix-Barral, 1974, 175-76.

EI Sindrome de Merimée o la espanolidad literaria

de Alejo Carpentier

Luisa Campuzano

Cuando a fines de los sesenta un personaje de Tres tristes tigres llamó a Alejo Carpentier "eI último novelista francés que escribe en espanol", I o Neruda, a comienzos de los setenta se refirió a él como "un escritor francés",2 en ambas afirmaciones había, sin dudas, mucha mala intención y alguna inquina política, cierta influencia de la lectura aún cercana de El siglo de las luces (1962) y un gran apego a la ficha biográfica - su padre era bretón - y a los defectos, de pronunciación deI autor, quien como Cortázar, arrastraba la erre, y había residido muchos anos en Francia, Pero también eran evidentes un desconocimiento u olvido voluntario de aspectos esenciales de su obra y de su vida - por ejemplo, que había vivi­do mucho más tiempo en Venezuela -, los que el curso de los anos y la sucesión de novelas y ensayos que publicaría en los setenta, o de distintos textos de otros tiempos puestos de nuevo en circulación, se encargarían de reforzar.

Entre estos aspectos. esenciales de sus textos y también de su biografía,

uno de los menos desestimables - que de haber sido capaces de distinguirlo sus detractores podría haber contribuido con más agudeza que el prontuario policiaco a la construcCÍón deI presunto "atfancesamiento" carpenteriano -es precisamente esa suerte de "síndrome de Merimée" - la "moda espano la" que también padecieran Corneille, Moliere, Lesage -, que lo afecta en casi

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toda su obra, lo que parafraseando un importante estudio de Juan Marinello sobre José Marti,3 tan paradójicamente aquejado deI mismo mal, me gustaría llamar la "espafíolidad literaria" de Alejo Carpentier, demostrable en diversos registros de su hacer y a la que quiero acercarme de un modo forzosamente muy parcial, a través de un inventario comentado de sus escenarios espafíoles y de sus encuentros de todo tipo con el más universal de los hijos de Espafía: Miguel de Cervantes; para luego detenerme, siquiera brevemente, en la significativa presencia de éste en algunos textos deI cubano.

Siendo la complejísima dialéctica de las relaciones deI Viejo y el Nuevo Mundo una de las preocupaciones sustantivas de Carpentier. - el motivo deI viaje es uno de los más frecuentes de su narrativa, y Espana. un escenario privilegiado en el constante ir y venir de sus personajes y sus ideas. Campo de batalla donde pelear las guerras más justas contra los franceses. contra los fascistas - y por ello en ocasiones escenario metonímico de los combates que no se dan - guerra de independencia a comienzos deI XIX - o que se han congelado - revolución izquierdista de los anos 30 - en su patria; crisol de razas, de culturas, de credos; espacio alternativo, especular, deI Caribe, su otro Mediterráneo; punto de partida de todas las aventuras posibles e imposi­bles, Espafía, desde los pasos de los Pirineos hasta el puerto de PaIos, desde la frontera portuguesa hasta las Islas Baleares, de Prudencio a San Juan, de Lope de Vega a García Lorca, de Flandes aI 2 de mayo, de Goya a Picasso, de Antonio Cabezón a Manuel de Falla, desde los emigrados de Bayona hasta las Brigadas Internacionales, es uno de los grandes temas de reflexión de Carpentier.

Como amplio escenario y bien documentado contexto temporal, Espana aparece en cinco de sus novelas y dos de sus relatos, con lo que constituye, fuera de Cuba, el más frecuentado de los espacios y los tiempos narrativos de Carpentier. Procediendo cronológicamente, de acuerdo con la fecha de publi­cación de los textos, me propongo esbozar un somero inventario de su presencia en la narrativa deI cubano, el cual no será más que un indicio superficial de la dimensión profundamente significativa de su alcance, cifra­do en un vasto conocimiento de su historia, sus letras y su arte.

En "Semejante a la noche" (1952), uno de los personajes que se preparan a partir hacia una empresa bélica, de sangre y rapifía disfrazadas de heroísmo, que en el relato se repite desde los tiempos de Troya hasta los de la Segunda guerra mundial, es un espafíoI de comienzos deI siglo XVI que se apresta a embarcar rumbo a la conquista de América.

En "EI camino de Santiago" (1958), un tambor de los tercios de Flandes a quien la peste le ha hecho prometer aI santo patrón de los ejércitos espafíoles que irá como peregrino a Compostela, es desviado de su ruta por las copas; y en Burgos se deja conquistar por el deseo de ir a las Indias, hacia donde sale después de recibir eJ permiso oficial en Sevilla. Tras una desafortunada

l. Cf. sobre este tema MARI·

NELLO, Juan. Espanolidad lite­

raria de José Marti. Dieciocho

ensa)'os martianos. La Ha­bana: Editora Política, 1980;

VITIER, Cintio. Espana en Mar­

tí. Casa de las Américas, 35

(198): 4-13, enero-marzo

1995; y En un domingo de mu­

cha luz. Cultura, historia y li­teratura espano las en la ohra

de José Martí. Salamanca: Ed.

Universidad de Salamanca,

1995.

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El Sindrome de Merimée o la espano!idad !iteraria de Alejo Carpentier 201

estancia en la paupérrima Habana de comienzos deI sigla XVI y una tempo­rada no menos desastrosa en un palenque de cimarrones deI interior de la Isla, vuelve el romero arrepentido a Espafia, pasando por las Islas Canarias, y de nuevo en Burgos y en Sevilla, y convertido en indiano, trasmite a otros el deseo de viajar a las nuevas tierras.

En El siglo de las luces.la novela de 1962 que tematiza la trayectoria de la Revolución francesa en el Caribe, el desconsuelo y la rabia de Sofía y Esteban, los protagonistas cubanos defraudados por ella, encuentran un espa­cio de acción en la sublevación de los madrilefios contra los bonapartistas el 2 de mayo de 1808. A manera de epílogo, su capítulo final se desarrolla en un Madrid aI que Ilega Carlos, el hermano sobreviviente, con la intención de indagar por su destino, de descifrar el sentido de sus últimos afios y de recoger

sus pertenencias.

EI tercer capítulo de Concierto barroco (1974) narra las divertidas an­danzas de un rico mexicano hijo de espafioles y de su criado, un negro cubano, por el Madrid de comienzos deI siglo XVIII, y el viaje que los lleva de esta ciudad a Barcelona.

La consagración de la primavera (1978), novela en la que Carpentier aborda, después de afias de intentos frustrados, el tema de la Revolución cubana, se inicia en la Valencia de 1937 a la que él concurriera como delegado aI 11 Congreso internacional de escritores antifascistas en.defensa de la cul­tura, y que ahora transitan sus personajes envueltos en los fragores de la Guerra civil espanola.

En El arpa y la sombra (1979), su última novela, la segunda de sus tres partes, que en extensión equivale a las dos restantes, se ocupa de la larga preparación de Cristóbal Colón, moribundo, para enfrentar a su confesor y, en última instancia, a su Hacedor. El escenario es Valladolid en los primeros anos deI sigla XVI, pero el mundo referido por el memorioso recuento deI Almirante recorre sus itinerarios espanoles durante el último tercio deI sigla

precedente.

AI morir, el24 de abril de 1980, Alejo Carpentier dejó casi terminada una novela, Verídica historia cuyo protagonista también es un personaje históri­co, Pablo Lafargue, el mulato de Santiago de Cuba, fundador de la Interna­cional y yerno de Carlos Marx. Uno de sus capítulos, publicado por la revista Casa de las Américas en su entrega 177, de noviembre-diciembre de 1989, se desarrolla a comienzos de la década de los 70 del sigla pasado y en un Madrid aI que llegan el protagonista y su esposa tras un largo viaje en ferrocarril desde la frontera de Francia.

Pero este interés de Carpentier por Espana no sólo se pondrá de relieve en sus tiempos y escenarios espanoles, en los cronotopos estrictamente ibéri­cos que ocupan tan gran dimensión en su mundo narrado, sino también en otros momentos y espacios de su obra, por las citas, alusiones, parodias y, en

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fin, el gran caudal de intertextualidad de procedencia hispana que en ella se

aprecia de modo tan evidente que ha sido motivo de estudios de distintos

especialistas, como Frederick A. de Armas, que ha abordado la huella de Lope

y de Los trabajos de Persiles y Segismunda en ella; de Sharon Magnarelli y

Rita Gnutzmann, que han indagado en torno a sus relaciones con la picaresca; de Daniel Pageaux, que ha trabajado sobre lo que llamó su Espana novelesca; de Ignacio Díaz, que se ha referido a distintos registros de su hispanidad en

Los pasos perdidos; de Manuel Aznar Soler, que ha investigado acerca de la experiencia personal deI autor en tiempos de la Guerra Civil Espanola y su transformación literaria; de Julio Rodriguez Puértolas. que ha coleccionado y estudiado sus crónicas espanolas; de Roberto González Echevarría que nombró su gran libro sobre nuestro novelista con un título de Lope de Vega: El peregrino en su patria; y de Rita de Maeseneer, que en un importante Iibro

aún inédito, dedicado a las citas en Carpentier, ha cuantificado y analizado el

sentido de esta fructífera relación intertextual.4

Mas entre todos los autores de la lengua espanola el más presente en los textos deI cubano es Cervantes, con quien tiene, a lo largo de toda su vida y en toda su obra, una profunda vinculación que se proyecta y amplifica en el tiempo, esa otra dimensión que obsesivamente recorren los personajes de Carpentier, devanándola en todos los sentidos, intentando reconstruir, recu­perar la imposible isocronia de un Continente en que coexisten todas las edades dei hombre. Por eso Alejo Carpentier, tan amigo de viajar a los orígenes, de bucear en el pasado, como de encontrar lo circular, lo cíclico, la eterna espiral en el transcurso humano, decía en 1978, aI final dei discurso con que agradeciera el premio más alto de la lengua, el "Miguel de Cervan­tes", que había sido el primer hispanoamericano en alcanzar, estas palabras que develan la profecía ai mismo tiempo solemne y lúdrica de un destino marcado con piedra blanca, de un destino cumplido para nuestra común riqueza: "De nino yo jugaba aI pie de una estatua de Cervantes que hay en La Habana [ ... ] De viejo hallo nuevas ensenanzas, cada día, en su obra inagota­ble ... "; y esta devoción por el mayor escritor dei idioma - que como veremos, para él tenía timbres de gloria mucho más universales - se manifestó, a 10 largo de los anos, en todos los registros de su vasta obra: composición musical y musicología, periodismo, crítica, ensayística, narrativa, promoción cultu­ral, en los que asumió, por lo demás, los matices y las funciones que su impresionante cultura, su fértil imaginación, su afán de servir y el don supremo deI talento lo Ilevaban a privilegiar en cada ocasión.

Casi toda la obra de Cervantes, las figuras más polémicas de la exégesis cervantina, la variadísima gama de manifestaciones artísticas inspiradas por el Quijote - ballets, dfamas, óperas, filmes, poemas sinfónicos - merecen su atención. eon ellas coincide, polemiza, crea; se las apropia o las repudia, de modo tal que no seria hiperbólico considerar que un estudio de la presencia

4. ARMAS, Frederick de. Lope

de Vega y Carpentier. Aclas

dei Simposio Internacional

de ESludios Hispánicos.

Budapest: Ed. de la Academia

deCiencias, 1978, p. 363-373.

___ . Metamorphosis as

revolt: Cervantes' Persiles y

Sigismunda and Carpentier's

EI reino de esle mundo. Hispa­

nic Review, 49, (3): 297-3 16,

1981; MAGNARELLI, Sharon.

"EI Camino de Santiago" de

Alejo Carpentier y la Picares­

ca. Revista lheroamericana,

40, (86): 65-86. enero-marzo

1976; GNUTZMANN, Rita. Lo

picaresco y el punto de vistaen

El recurso del mélodo de Alejo

Carpentier. In CRIADO DE VAL,

org. La picaresca. Oríf.(enes,

textos y estructuras. Madrid:

Fundación Univ. Espanola, 1979, p. 1151-58; PAGEAUX,

Daniel. La Espana novelesca

de Alejo Carpentier. In Mélan­

ges ojJens a Maurice Molho.

Paris: Ed. Hispaniques,

1988, 11, p. 353-64; DIAZ,

Ignacio. Alejo Carpentier y

la conciencia hispánica. In

Cahrera Infante y otros escri­

tores latinoamericanos. Méxi-

co: UNAM, 1991, p. 99-107;

AZNAR SOLER, Manuel. "Alejo

Carpentier y la Guerra Civil

Espaiíola: hacia La ('onsilKra­

ciôn de la primavera. Escritu­

ra, [Caracas] 9, (17-18): 67-

90, 1984; RODRIGUEZ PUERTO­

LAS, Julio, org. Rajo e/ .úRno

de la Ciheles. CrlÍnicas sohre

Elpafia v los espalioles. 1925-

1937 [de Alejo Carpentier].

Madrid: Nuestra Cultura, 1979; GONZALEZ ECHEVARRIA, Roberto. Alejo Carpentier:

El pereKrino en su patria.

México: UNAM, 1993;

MAR,ENEER, Rita. Cervantes y

Carpentier: una relectura múl­

tiple. (Capítulo VII de un libra

inédito sobre intertextualidad en la obra de Alejo Carpentier, ed. dactilografiada, 1994,

pp.88-98).

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5. RAMON CHAO. Alejo Carpen­tier: una literatura inmensa In CARPENrIER. Alejo. Entrevis­tas. La Habana: Letras Cuba­nas. 1985, p. 220-27.

6. CARPElmER. Alejo. Numan­cia. Carteles. La Habana: 22 ago. 1937. p. 22-25.

7. CARPENTIER, Alejo. La músi­ca en Cuha. La Habana: Letras

Cubanas. 1988. p. 5 I.

El Sindrome de Merimée o la espafio!idad !iteraria de Alejo Carpentier 203

de Cervantes en Carpentier, aI margen de su propio valor tendría el de trazarnos un retrato bastante completo deI novelista cubano. Pensando en esto último, seguiremos un orden cronológico en la presentación y comentario -que sólo de esto se trata - de nuestro tema, en el que forzosamente habrá que espigar los aspectos o los hechos de mayor interés, remitiendo, para los que sólo hemos podido rozar. a la bibliografía carpenteriana recopilada por Ara­celi García Carranza y a sus preciosos índices.

No deja de ser significativo que la primera vez que Carpentier trabaja con Cervantes, lo hace como músico y. ai parecer. con mucho éxito. Es en París, en 1937, es decir. en medio de la Guerra Civil Espanola, cuando el entonces joven actor y director Jean Louis Barrault monta en el "Théatre Antoine" la Numancia. Es en esa ocasión cu ando Alejo Carpentier compone, a lo que sabemos. su única partitura, "escrita [ha dicho él en los setenta] premonito­

riamellte. para gran aparato de percusión y voces humanas [ ... ] como hacen hoy muchas gentes de las nuevas generaciones".5 En agosto de 1937, pocas semanas después dei estreno, decía Carpentier en una de las crónicas que escribía desde Paris para la revista habanera Carteles:

Me atrevo a afirmar que con Numancia hemos planteado la cuestión de la música de

acompaí'íamiento dramático sobre bases nuevas, con un resultado cuya novedad ha sido

seiialada por toda la cótica parisiense ... fi

Traído de regreso a Cuba por el inicio de la Segunda Guerra Mundial, hace en 1940 una adaptación para la radio dei Quijote, y más adelante será también la música la que lo acerque a su autor, a través de las investigaciones que emprende para la preparación de La música en Cuba (1946), el importan­tísimo libro que le encargara el Fondo de Cultura Económica de México en 1944. Estas búsquedas lo conducen ai estudio de los cantos y las danzas nacidos en La Habana y otros puertos dei Caribe en los siglos XVI Y XVII,

de la mezcla de sones europeos y africanos. Como lo atestiguan muchas de

sus páginas, encuentra su rastro en los escritores espanoles de la época: en los entremeses, en Lope de Vega, en muchos otros poetas de los Siglos de Oro, donde descubre los batuques, los zarambeques, las chaconas que "De las Indias a Sevilla/[han] venido por la posta",?

El celoso extremefío, la ejemplar noveleta cervantina, que no dejará de citar, a lo largo de toda su vida, como fuente de su conocimiento sobre aspectos tan importantes de la historia de nuestra música como lo son su diseminación y su recepción en Espana, le proporcionará, además, el modelo de los dos personajes protagónicos de "EI camino de Santiago" (1958) y algunos de sus motivos, los cuales se van a repetir, con insistencia que he subrayado en otra ocasión, en Concierto barroco (1974) y La consagración

de la primavera (1978). Tanto en el relato como en las dos novelas hay un

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negro músico y un blanco, que en los dos primeros textos es, además, un

indiano: el Indiano con mayúscula y todo. Como Luis, el negro músico de EI

celoso extremefío, Golomón, acompanante deI primer Indiano, el de "El c'amino de Santiago", y Filomeno, acompanante deI segundo Indiano, el de

Concierto barroco - y acaso descendiente deI primer Golomón, puesto que

éste es su apellido -, son también músicos, como lo será Gaspar Blanco, el

mulato trompetista de La consagración de la primavera. Ellos y los senores

blancos a los cuales acompanan viajan de América a Europa y de Europa a América trazando el mapa de las relaciones temporales y espaciales entre el Viejo y el Nuevo Mundo, ese tema fundamental en Carpentier; y descubrien­do ai mismo tiempo, con la perspectiva que ofrece la lejanía, que su identidad

ya no es la dellinaje europeo cultivado por sus progenitores, o la deI gueto

racial fabricado por sus amos, sino que poseen una nueva identidad, tanto

nacional (los blancos), como universal (los negros).

Durante los muchos anos en que mantuvo una sección fija, "Letra y

Solfa", en EI Nacional de Caracas, ciudad en la que reside desde 1945 hasta 1959, Carpentier se ocupa en numerosas ocasiones de Cervantes. Cronista de cuanto libro se publica sobre su obra, censor de los abominables filmes con

que se traiciona la esencia deI Quijote, estudioso de las relaciones de las

Novelas ejemplares con el surgimiento de los relatos largos, juez de la música que inspiran las hazanas deI pobre hidalgo, Carpentier es sobre todo el cantor de las glorias dei Quijote, aI que tanto en estas páginas como en las inconta­bles entrevistas en las que dedica amplias y profundas reflexiones a Cervan­

tes, le otorga el sitio cimero entre todas las creaciones \iterarias. En una de esas crónicas compara la recepción que tiene el Quijote en todo el mundo con la que merecen las obras de Shakespeare, Dante, Milton y Goethe, y tras

analizar, con detenimiento digno de páginas menos efímeras, "las razones que lo hacen universalmente inteligible", concluye asegurando: "Este es un privilegio que ni siquiera Homero podría arrebatarle".8

Es por eso que, de regreso definitivo a Cuba en 1959, lo recomienda

como el primer libro que debe publicar la recién inaugurada Imprenta Nacio­nal, y que cuando salen a la calle los cien mil ejemplares de aquella memo­rable edición, idea un medio que sólo a él podía ocurrírsele para promover su adquisisción y lectura: la puesta en escena, primero en la Sala Covarrubias

dei también flamante Teatro Nacional, y después en todos los escenarios dei país, dei Retablo de Maese Pedro, la ópera de cámara de su amigo Manuel de

FalIa, dirigida por el cubano Vicente Revuelta, con un programa cuyo texto redacta y que hasta en las ilustraciones de cubierta y reverso de cubierta, con fotografías de Falia tomadas en Venezuela, evidenciaba que había sido fra­guado por Carpentier. La entrada para el espectáculo consistia, por supuesto, en la compra deI Quijote.

8. CARPENTIER. Alejo. El libro

sin fronteras. El Nacional, [Caracas], 19 sept. 1956; a

la cabeza deI título: "Letra y

solta".

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9. CARPENTIER, Alejo. Don Quijote sale olra vez ai camino

para satisfa= deudas no sal­dadas. México en la Cultura [Mexico I, 19 jul. 1960, p. I, 4.

\O CARPENTlER, Alejo. Un nue­

vo Retablo de Maese Pedro. EI Nacional [Caracas], I Sepl.

1960.

El Sindrome de Merimée o la espafiolidad literaria de Alejo Carpentier 205

La publicación de los cuatro tomos lo entusiasmó de tal modo que envió dos colaboraciones sobre el tema a La semana de México, suplemento cultu­ral de Novedades, y a El Nacional de Caracas. En la primera daba cuenta de la emoción con que se había inclinado sobre galeradas olientes a linotipo, él que desde los diecisiete anos. cuando entró en la redacción deI diario haba­nero La Discusión. siempre había andado por imprentas de periódicos e imprentas de libros. para ver "salir [ ... ] de la máquina inteligente inventada por Mergenthaler. metido entre corondeles. pasado a pruebas corrientes, un texto que se iniciaba con [unas] líneas por todos sabidas: En un lugar de la Mancha, de cuyo nombre 110 quiero acordarme ... ".9

La segunda, la crónica de El Nacional. digna de una cita más amplia, relaciona la publicación deI Quijote can la puesta en escena deI Retablo:

Una nueva concepción escénica de la ópera de cámara de Manuel de FalIa es ofrecida,

actualmente, en esta cervantina Habana dei Quijote pregonado en calles y plazas.

- jEI quijo! ... jEI quijol. .. Alzase el pregón, ininteligible para quien no pueda ver la

mercancía pregonada, en todas las calles de La Habana.

- jEI quijo! ... jEI quijo! ... jA veinticinco kilos [centavos]! Sorprendido se asoma el

forastem a su ventana y descubre que lo que así se ofrece es nada menos que ellibro

donde se narran las andanzas dei ingenioso hidalgo don Ouijote de la Mancha ... iO

EI cuatro de abril de 1978, en el paraninfo de la Universidad de Alcalá de Henares, cuando recibe el premio "Miguel de Cervantes", Carpentier pronuncia uno de los más hermosos y sagaces elogios deI autor deI Quijote. He revisado las páginas de la prensa espafiola y aun francesa en que se reproduce, completo, su discurso; y las frases con las que es presentado o comentado no dejan de subrayar el donaire, la erudición y el saber de un texto evidentemente dictado por la emoción, por el sentir, en el que la sinceridad de lo que se dice rotura el camino de la palabra. Y es que esta palabra viene de ~trás, de sus viejos artículos, de sus ensayos, de toda la papelería propia y ajena en la que por cerca de media siglo ha ido dejando testimonio de su admiración por Cervantes aI tiempo que maduraba juicios y apreciaciones sobre su obra. Juega Carpentier con sus tiempos, con el hoy y el ayer, el entonces y el ahora; baraja sus lugares, éste y todos los demás, el acá y el alIá,

para poblar de personajes literarios un mundo que ha nacido con Cervantes, un mundo que le debe aI Quijote esa cuarta dimensión, la de la fantasía, sin la cual ya no podríamas, no sabríamos vivir.

Pero, como decíamos aI principio, es en su narrativa, como era de esperar; donde Cervantes y, en particular, el Quijote tienen una importancia y un tratamiento mucho más perdurables.

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En el prólogo famosísimo de El reino de este mundo. novela con la que Carpentier reinicia en 1949 su tránsito por el género que había abandonado hacía cerca de veinte anos, Cervantes encabeza, con un epígrafe tomado de Los trabajos de Persiles y Segismunda, lo que será uno de los documentos más importantes de la nueva narrativa latino americana, la exposición de la teoría carpenteriana de lo real maravilloso americano.

En Los pasos perdidos (1953), la gran novela de la selva en que se adentra el protagonista narrador, un latinoamericano que desde hace muchos anos vive en una capital deI Primer Mundo, donde casi ha olvidado su lengua materna y ha ido perdiendo sus contornos, el comienzo deI Quijote. rememo­rado a duras penas en el trayecto que lo conduce a su destino. comienza a devolverle sus esencias.

Con El recurso dei método (1974) se abre un nuevo cicIo en la novelística de Carpentier, y hoy podemos decir que en toda la novelística hispanoameri­cana - pienso en la narrativa deI I1amado postboom - en el cual el humor alcanza una singular dimensión y la textura literaria, siempre densa, ostenta un dialogismo más evidente, en muchos casos polémico o irónicamente paródico. Por las características que acabamos de apuntar, en casi todas las novelas de este período tendrán el Quijote, sanefa sanctorum de la parodia, y en sentido general, Cervantes, un lugar más importante que el que de modo explícito o implícito ocupaban en el resto de la producción narrativa de Carpentier.

En El recurso ... buena parte deI tono, deI "espíritu de la época", deI escenario, de los personajes y hasta de los procedimientos son tomados de Proust - como la crítica no ha cesado de subrayarlo desde los dias de aparición de la novela -; aI tiempo que, invocados por el autor como musa propicia, los manes de la picaresca rondan todas las peripecias de la trama. Pero el Quijote, a su vez, desempena un papel nada desdenable, que he estudiado en un trabajo más amplio que, como prefiero repetirme que citar­me, ahora voy a glosar.

Comparado el capítulo inicial de El recurso ... con los seis primeros deI Quijote, es posible encontrar cierto paralelismo, ciertos armónicos que cons­tituyen mucho más que meras coincidencias. En sentido general, en ambos textos se presenta la caracterización de un personaje que, de inmediato, se lanzará a la acción en medio de inacaIlable vocerio. "Aquí, aquí, valerosos cabalIeros", grita don Quijote aI comienzo de ese séptimo capítulo que lo lIevará a cargar contra molinos de viento; "jCono de madre! jHijo de puta!", aúlIa el Primer Magistrado, cuando descubre que deberá dejar París para sofocar un nuevo levantamiento.

AI igual que la presencia y funciones de dona Tolosa y dona Molinera en la modestísima venta podrían corresponderse con las de las fantasiosas pupi­las de Madame Yvonne en el burdel de lujo; y la graciosa manera que tuvo

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don Quijote en armarse caballero podría encontrar remedo en la matinal llegada deI barbero y el sastre a la mansión de la Rue de Tilsitt; no cabe duda de que la paternalista inspección que hace el Ilustre Académico a la biblioteca deI Primer Magistrado es una desternillante y funcional parodia deI donoso y grande escrutinio que el cura y el barbero hicieron en la Iibrería deI ingenioso hidalgo.

En ambos casos la revisión de las lecturas de los protagonistas afina en grado sumo su caracterización. Ya sabíamos que Alonso Quijano se había dado a leer libros de caballería con tanta afición y gusto que só 1 o se intere­saba en ellos; ya conocÍamos. por los cuadros y esculturas que adornaban sus salones, que el dictador lo era de la especie "ilustrada", vale decir, afrancesa­da. Pero ahora sabremos hasta qué punto son lo que se nos ha venido diciendo

y, además, hasta qué punto marchan o no con las letras de su tiempo.

Como es de sobras conocido, el escrutinio dei Quijote proyecta la visión de Cervantes sobre la literatura que le es contemporánea tanto más que sobre

la precedente; es, junto con los capítulos XLVII y XLVIII de la primera parte, presentación de su crítica y de su poética, aunque estén en boca dei cura o dei canónigo. Mas las opiniones dei Académico y deI dictador no son, en abso­luto, las opiniones de Carpentier, sino que representan, en todo el esplendor de su estulticia, los pareceres de dos voceros autorizadísimos de la "cultura oficial" de dos porciones dei mundo en las que los acontecimientos que están

por ocurrir - Primera Guerra Mundial, Revolución Rusa -, y que son incapa­ces de prever, producirán grandes cambios. En estas páginas sería imposible glosar el contenido de ese inefable diálogo. Pero me gustaría afiadir dos cosas que no dije cuando lo estudié, y como tal vez nunca más retome el tema - con los afios una aprende que hay que irse despidiendo de proyectos - debo, por lo menos, enunciarias ahora. Y son, en primer lugar, el dialogismo evidente entre las páginas de El recurso ... , el escrutinio dei Quijote y el escrutinio de

esa memorable, inconclusa, enigmática, paródica novela, muy visitada y

revisitada por Carpentier, que es Bouvard)' Pécuchet, en la cualla huella de Cervantes es tan ostensible; y, en segundo lugar, la existencia - descubierta por Maeseneer - de una primera versión de este escrutinio carpenteriano, llena, por lo demás, de una notable carga de ese erotismo que nuestro autor comienza a desplegar en los textos de los últimos afios de su vida, en su relato "EI derecho de asilo" (1972), en el que José Emilio Pacheco encontrara también el adelanto de lo que será el estilo y la perspectiva irónica dei novelista cubano a partir de El recurso dei método (1975).

EI Embajador que precedió ai titular de la misión donde se aloja el

protagonista de "EI derecho de asilo" se había dedicado a demostrar una tesis delirante, según la cual todos los prodigios que aparecen en las novelas de caballería habían sido hallados en nuestras tierras por los conquistadores. Por eso la residencia estaba llena de libros de caballerías a los que la esposa dei

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Embajador llamaba "plomos". AI igual que Cervantes en el escrutinio deI

Quijote, el asilado salva a Tirante el Blanco, pero no por las mismas razones que lo hace el cura, es decir, por su realismo, porque en esta novela "comen los caballeros, y duermen y mueren en sus camas, y hacen testamento antes

de su muerte", 11 sino por su humor y por la presencia en ella de un erotismo

tan contagioso, tan singularmente psicagógico, que le consigue el amor de la

Embajadora (Maeseneer, 96).

Por otra parte, y en un registro totalmente distinto, resulta deI mayor interés el aprovechamiento que hace Carpentier deI Quijote en Concierto barroco, texto que presenta motivos y personajes de El celoso extremeiío -

como ya vimos -, tiene las dimensiones de algunas de las Novelas ejemplares, y cuyos escenarios extremos, las lacustres ciudades de México y Venecia, de

tanta importancia, más que por su paralelismo, por su función especular, en

la estructura profunda deI relato, ya habían sido contrastadas de modo admi­rable por Cervantes en Ellicenciado Vidriera, y antes por Francisco Cervan­tes de Salazar y Bemal Díaz deI Castillo.

Situados en el contexto de la hilarante pero no menos severa requisitoria que exhibe esta noveleta - a la que Carpentier llamaba su Summa theologica,

porque en ella había concentrado todos sus barroquismos - contra todo el arsenal temático de las letras europeas, desde los c1ásicos hasta Voltaire - a cuyas disímiles apelaciones intertextuales en distintos textos narrativos de

Carpentier me he referido en otros trabajos -, resulta evidente que sólo el Quijote se salva de la chacota universal y que su presencia aquí no só I o va a ser alusiva, irónica, humorística, sino que va a orientar la lectura de la novela en momentos esenciales, lo que se advierte desde los capítulos 11 y 111, cuando, por una parte, el mexicano censura en los mismos términos en que el caballero manchego reprendía ai joven ayudante de Maese Pedro, el modo que tenía Filomeno de contar la historia de su bisabuelo Salvador Golomón; y por otra parte, cu ando el narrador, tras informamos que en su viaje de Madrid aI Levante el seíí.or trató de entretener a su criado narrándole la lucha de un hidalgo loco contra unos molinos - lo que para el negro es un absoluto contrasentido -, nos describe Barcelona siguiendo a Carpentier palabra a palabra. Estas ai parecer jocosas e inocentes citas sin comillas, sin referencia ai autor o ai texto de donde se han tomado, se ven súbitamente actualizadas y justificadas en los capítulos VII y VIII, como lo ha demostrado Maeseneer (91-95), cu ando el mexicano, tras asistir ai ensayo de la ópera Motezuma de Vivaldi y ver todas las modificaciones, escamoteos y falsas interpretaciones a que se somete en ella la historia de su país, asume su condición no ya de criollo, sino de mexicano, y dice a su criado: "De haber sido el Quijote deI Retablo de Maese Pedro, habría arremetido a lanza y adarga, contra las gentes mías de cota y morrión",12 es decir, contra los espaíí.oles, a cuyo linaje se había sentido muy orgulloso.de pertenecer hasta ese momento. En Cervantes,

11. CERVANTES Y SAAVEDRA.

Miguel. Ohras completas.

Madrid: Aguilar, 1946, p.

1137.

12 CARPENTIER, Alejo. Con­

cierfo harroco. México: Siglo

XXI, 1974, p. 76.

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U CARPENTIER, Alejo. Verídica

Historia. Casa de las Améri­

cas, 30 (I77): 28-46, nov./dic.

1989.

El Sindrome de Merimée o la espano!idad !iteraria de Alejo Carpentier 209

como se sabe, el retablo de Maese Pedro plantea el problema de la confusión de la ficción y de la realidad por parte dei Quijote, que no sblo protesta por el uso de campanas en un escenario presuntamente moro, sino que confunde los títeres con seres vivos. En Carpentier, como pone de relieve la autora antes citada, la recuperación de la discusión sobre ficción y realidad - en este caso histórica - tiene un sentido muy especial, como hemos visto, ya que conduce ai protagonista no sólo a la impugnación dei estatuto ficcional dei texto que se representa - lo que es muy importante para el autor, para el desarrollo de sus ideas en torno a la visión europea de América, a la manipu­lación de su historia -, sino también a asumir su nacionalidad, a descubrir el sentido de la historia de su país, presente en el cuadro de las grandezas que exhibe orgullosamente en la sala de recepciones de su palacio de Coyoacán y cuya significación no había podido develar hasta ahora.

En La consagración de la primavera la presencia de Cervantes es fugaz, apenas el pretexto para una de las tantas chanzas de Gaspar Blanco, contrafi­gura de Enrique, el protagonista, en el que no cabe duda de que, como en

Filomeno, algo hay de Sancho - su sabiduría popular, sus pies bien puestos sobre la tierra - además de su ya comentado parentesco con el Luis de El

celoso extremefío. En El arpa y la sombra (1979), donde hay constantes alusiones a un retablo de maravillas, reaparece Ellicenciado Vidriera, invo­cado por el Invisible, la sombra de Cristóbal Colón. Per o en la Verídica

historia, la novela que Carpentier dejó inconclusa, parece que el Quijote tenía algo importante que decir, o, por lo menos, que insinuar; porque uno de sus personajes secundarios, Anselmo Lorenzo, en el que yo insisto en encontrar

a un descendiente de Aldonza Lorenzo, ai contarles a Pablo y a su mujer, Laura, la visita que hiciera unos meses antes a Marx, les dice que Jenny, la mayor de las hijas dei pensador, como él, políglota, ai conocer su nacionali­

dad, le alcanza un libro de la biblioteca y le pide que lea algunos fragmentos

"para oírlos en boca de un espanol y, ai verlo algo vacilante en escoger un

pasaje dei Quijote, le puso ante los ojos el Discurso a los Cabreros".13 Di~curso que, como todos conocemos, vuelve a contamos, desde la voz de un loco y para los sordos oídos de unos ignorantes, la historia de esos Siglos de Oro contados por Hesíodo, por Virgilio, por Tibulo y eternamente persegui­dos por la humanidad:

Dichosa edad y siglos dichosos aquellos a quien los antiguos pusieron nombre de

dorados, y no porque en ellos el oro que en esta edad de hierro tanto se estima, se

alcanzase en aquella venturosa sin fatiga alguna, sino porque entonces los que en ella

vivían, ignoraban las dos palabras de "tuyo" y "mío". (1151)

Mas esta cita, que ai ser recontextualizada en este espacio connota, proyecta y amplifica el credo político de Carpentier, alcanza resonancia

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210 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

mayor si tomamos en cuenta que ya en otra de sus novelas, en El arpa y la

sombra, nuestro autor había recordado las primeras líneas deI discurso deI

Quijote a los cabreros para identificar esc "más allá geográfico, ignorado

aunque presentido por los hombres desde «Ia dichosa edad y siglos dichosos

a quien los antiguos pusieron el nombre de dorados»",14 con el vasto mundo descubierto por Cristóbal Colón, escenario propicio para el cumplimiento de todas las utopías.

14 CARPENTIER, Alejo. EI arp"

.\' la sombra. La Habana: Le­

tras Cubanas, 1985. p. 49.

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Colaboradores deste número

Hans Ulrich Gumbrecht, Professor Titular de Literatura Comparada da

Universidade de Stanford (EUA). Autor de diversos livros, dentre os quais

Eine Geschichte der Spanischen Literatur, Making Sense in Life and Litera­

ture e In 1926. An Essay on Historical Simultaneity e organizador de várias

coletâneas de Literatura Comparada.

Eduardo Portella, Professor Titular de Teoria Literária da Univ. Federal do

Rio de Janeiro. Autor de diversos livros de Teoria e Crítica literárias, dentre

os quais Dimensões I,lI e lII, Literatura e realidade nacional, Teoria da

comunicação literária, Fundamento da investigação literária, Vanguarda e

cultura de massa, O intelectual e o poder, Brasil à vista e A revolução possível. Fundador e Diretor da Revista Tempo Brasileiro. Foi Ministro da Educação e é membro da Academia Brasileira de Letras.

Mario Valdés, Professor de Estudos Ibero-Americanos e Literatura Compa­

rada da Universidade de Toronto, Canadá. Foi Presidente da Modem Langua­

ge Association of America (MLA) e coordenador de diversos projetos na

Associação Internacional de Literatura Comparada (AILC). Tem vários livros

publicados, dentre os quais A Ricouer Reader: Rejlection and Imagination e

World Making: a Study of the Literary Truth Claim. É também memb~o da

Royal Society of Canada e da Mexican National Academy of the Language.

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212 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

Luiz Costa Lima, Professor Titular de Literatura Comparada da Univ. do Estado do Rio de Janeiro. Autor de diversos livros de Teoria e Crítica Literá­rias, dentre os quais Por que Literatura, Lira e antilira, Estruturalismo e

Teoria da Literatura, A metamorfose do silêncio, A perversão do trapezista,

Mímesis e modernidade, Dispersa demanda, O controle do imaginário, So­

ciedade e discurso ficcional, O fingidor e o censor, A aguarrás do tempo,

Pensando nos trópicos, Limites da voz e Vida e mímesis.

Jeffrey T. Schnapp, Professor de Francês, Italiano e Literatura Comparada da Universidade de Stanford, EUA. Autor de diversos livros, dentre os quais The Transfiguration of History at the Center of Dante 's Paradise e Staging Fascism: 18 BL and the Theater of Masses for Masses.

João Cezar de Castro Rocha, Doutorando na Universidade de Stanford (EUA). Organizador do volume Interseções; Imaginação, Materialidade, Re­des de Comunicação, no prelo.

Tania Franco Carvalhal, Professora Titular de Teoria e Crítica Literárias da Univ. Federal do Rio Grande do Sul. Autora de diversos livros, dentre os quais A evidência mascarada, Literatura Comparada, Um crítico à sombra

da estante e Literatura Comparada: textos fundadores(col. Eduardo F. Cou­tinho). Foi primeira Presidente da ABRALIC (gestão 1986-88). membro do Comitê Executivo da Associação Internacional de Literatura Comparada (AILC) e Presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação em Letras e Lingüística (ANPOLL).

Eduardo F. Coutinho. Professor Titular de Literatura Comparada da Univ. Federal do Rio de Janeiro. Autor de diversos livros, dentre os quais The Process of Rel'italizatioll of lhe Language and Narrative Structure in the Fictioll of 1. Cortázar & G. Rosa, The "Synthesis Novel in Latin America, Em

busca da terceira margem: ensaios sobre o Grande sertão: veredas e Litera­

tura Comparada: textos fundadores (cal. Tania Franco Carvalhal). Foi Vice­Presidente da ANPOLL, e atual membro do Comitê Executivo da Associação Internacional de Literatura Comparada (AILC) e Presidente da ABRALIC.

Irlemar Chiampi, Professora Titular de Literatura Hispano-Americana da Universidade de São Paulo. Suas publicações incluem os livros O realismo maravilhoso, A expressão americana - José Lezama Lima e Barroco e Mo­dernidade (no prelo), além de diversos ensaios.

Benjamin Abdala, Professor Titular da Universidade de São Paulo. Autor de diversos livros, dentre os quais Literatura, História e Política, A escrita neo-realista, História social da Literatura Portuguesa e Tempo da Literatura Brasileira. Foi Presidente da ABRALIC (gestão 1992-94).

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Colaboradores deste número 213

María Elena de Valdés, Professora de Literatura Hispano-Americana da Univ. de Toronto (Canadá). Suas recentes publicações incluem Approaches to Gabriel García Márque: 's One Hundred Years of Solitude, New Visions of Creation: Feminist l/lllo\'atiolls ill Literary Theory e Latin America as its

Literature.

Regina Zilberman, Professora de Teoria Literária da Pontifícia Univ. Cató­lica do Rio Grande do Sul. Autora de diversos livros, dentre os quais Simões Lopes Neto, São Bernardo e os processos da comunicação, Do mito ao romance, Érico Veríssimo e a Literatura Infantil, A Literatura no Rio Grande do Sul, Estética da Recepção e História da Literatura, Literatura Infantil Brasileira: História & histórias e A literatura infantil na escola.

Renato Cordeiro Gomes, Professor de Brasileira da Univ. do Estado do Rio de Janeiro e do Depto. de Comunicação da Pontifícia Univ. Católica do Rio de Janeiro. Autor de diversos ensaios e do livro Todas as cidades, a cidade.

Heidrun Krieger Olinto, Professora de Teoria Literária da Pontifícia Univ. Católica do Rio de Janeiro. Suas publicações incluem A palavra culpada,

Histórias de literatura, A ciência da literatura empírica e Leitura e leitores.

Letícia Malard, Professora Titular da Univ. Federal de Minas Gerais. Autora de diversos livros, dentre os quais Ensaio de Literatura Brasileira: Ideologia

e realidade em Graciliano Ramos, Escritos de Literatura Brasileira e Hoje tem espetáculo: Avelino Fósco[o e seu romance.

Célia Maria Magalhães, Professora de Língua e Literatura Inglesa da Univ. Federal de Ouro Preto. Suas publicações incluem o livro Filosofia, Ideologia e Ciência Social e diversos ensaios.

Fred Clark, Professor Titular e Sub-Reitor da University of North Carolina,

Chapel Hill, EUA. Suas publicações incluem diversos ensaios e os livros

Impermanent Structures: Semiotic Readings of Nelson Rodrigues' Vestido de noiva, Album de família e Anjo negro e Spectator Character Text: Semiotics Readings of Nelson Rodrigues 'Theater.

Silvano Peloso, Professor Titular de Língua e Literatura Portuguesa na Uni­versidade de Roma "La Sapienza". Suas publicações incluem os livros Me­

dioevo nel Sertão, Amazzonia, mito e letteratura deI mondo perduto, La voce

e il tempo, O canto e a memória. História e utopia no imaginário popular

brasileiro e Pagine esoteriche.

Sonia Torres, Professora de Literatura Norte-Americana da Univ. Federal Fluminense. Tem diversos ensaios publicados e foi tradutora do romance de Steven Lukes, The Curious Enlightenment.

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214 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

Luís Alberto Brandão Santos, Professor de Teoria da Literatura da Univer­

sidade Federal de Minas Gerais. Tem diversos artigos publicados em revistas

e periódicos especializados.

Suzi Sperber, Professora de Teoria Literária e Literatura Brasileira da UNICAMP. Suas publicações incluem diversos ensaios e os livros Signo e

sentimento e Caos e Cosmos.

Luisa Campuzano, Ensaista e Professora da Universidade de La Habana (Cuba). Autora de diversas publicações, dentre as quais os livros Breve

esbozo de poética preplatónica, Las ideas [iterarias en el Satyricom (Premio de la Crítica, 1984) e Quirón o dei ensayo y otros eventos. Membro da Diretoria da Casa de Las Américas, onde dirigiu o Centro de Investigaciones

Literarias e atualmente coordena o Programa de Estudios de la Mujer.

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Aos colaboradores

1. A Revista Brasileira de Literatura Comparada aceita trabalhos inéditos sob a forma de artigos e comentários de livros, de interesse voltado para os estudos de Literatura Comparada.

2. Todos os trabalhos encaminhados para publicação serão submetidos à aprovação dos membros do Conselho Editorial. Eventuais sugestões de modificação de estrutura ou conteúdo, por parte do Conselho Editorial, serão comunicadas previamente aos autores.

3. Os artigos devem ser apresentados em três vias, texto datilografado em espaço duplo, com margem, além de dados sobre o autor (cargo, áreas de pesquisa. últimas publicações, etc.).

4. O original não deve exceder 30 páginas datilografadas; os comentários de livro,. em torno de 8 páginas.

5. As notas de pé de página e referências bibliográficas devem ser restritas ao mínimo indispensável.

6. As notas de pé de página devem ser apresentadas observando-se a seguinte norma: Para livros: a) autor; b) título da obra (sublinhado); c) número da edição, se não for a primeira; d) local de publicação; e) nome da editora; f) data da publicação; g) número da página.

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T.A.Quei­roz, 1979, p. 31. Para artigos: a) autor; b) título do artigo; c) título do periódico (sublinhado); d) local de

publicação; e) número do volume; t) número do fascículo; g) página inicial e final; h) mês e ano. ROUANET, Sergio Paulo. Do pós-moderno ao neo-moderno. Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n° I, p. 86-97, jan./mar., 1986.

7. As ilustrações (gráficos, gravuras, fotografias, esquemas) são designados como FIGURAS, numerados no texto, de forma abreviada, entre parênteses ou não, conforme a redação. Exemplo: FIG. 1, (FIG. 2)

As ilustrações devem trazer um título ou legenda, abaixo da mesma, datilografa­do na mesma largura desta.

8. Os autores terão direito a 3 exemplares da revista. Os originais não aprovados não serão devolvidos.

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E sta revista foi produ­

zida por In-Fólio, Produ­

ção Editorial, Gráfica

e Programação Visual

LIda, na Rua das Marre­

cas, 36 - grupos 401 e

407, Rio de Janeiro, no

terceiro trimestre de

mil novecentos e no­

venta e seis , para a

Associação Brasileira de

Literatura Comparada.

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