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REVISTA BRASILEIRA DA ADVOCACIA Ano 2 • vol. 6 • jul.-set. / 2017

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revistA BrAsileirA dA ADVOCACIA

Ano 2 • vol. 6 • jul.-set. / 2017

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ADVOCACIAAno 2 • vol. 6 • jul.- set. / 2017

CoordenaçãoFlÁvio luiz yarshell

 

CONSELHO

Ada Pellegrini Grinover (in memoriam), Ana Carolina Brochado Teixeira (BH),Antonio Magalhães Gomes Filho (SP), Calixto Salomão Filho (SP),

Cândido Rangel Dinamarco (SP), Carlos Ayres Britto (DF),Daniel Francisco Mitidiero (RS), Fredie Didier Jr. (BA),

Gustavo Tepedino (RJ), Humberto Ávila (RS),Humberto Theodoro Júnior (MG), Ivan Nunes Ferreira (RJ),

José Rogério Cruz e Tucci (SP), Luiz Guilherme Marinoni (PR),Marcelo Abelha Rodrigues (ES), Melina Girardi Fachin (PR),

Paula Andrea Forgioni (SP), Paulo Cesar Pinheiro Carneiro (RJ),Roberto Rosas (DF), Rogéria Dotti (PR), Viviane Girardi (SP)

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ISSN 2447-9144

revistA BrAsileirA dA

ADVOCACIAAno 2 • vol. 6 • jul.- set. / 2017

DIRETORIA

Presidente - marCelo vieira von adamek

Vice-Presidente - luiz Périssé duarte junior

1º Secretário - renato josé Cury 2ª Secretária - viviane girardi

1º Tesoureiro - mÁrio luiz oliveira da Costa

2º Tesoureiro - eduardo Foz mange Diretora Cultural - FÁtima Cristina bonassa buCker

Diretor Adjunto - rogério de menezes Corigliano

CONSELHO DIRETOR DA AASP

André Almeida Garcia, Eduardo Foz Mange, Elaine Cristina Beltran Camargo, Fátima Cristina Bonassa Bucker, Flávia Hellmeister Clito Fornaciari Dórea, José Alberto Clemente Junior, Juliana Vieira dos Santos, Luiz Périssé Duarte Junior, Marcelo Vieira von Adamek, Mário Luiz Oliveira da Costa, Pedro Ernesto Arruda Proto, Renata Mariz de Oliveira, Renato José Cury, Ricardo de Carvalho Aprigliano , Ricardo Pereira de Freitas Guimarães, Roberto Timoner, Rodrigo Cesar Nabuco de Araujo, Rogério de Menezes Corigliano, Ruy Pereira Camilo Junior, Silvia Rodrigues Pereira Pachikoski, Viviane Girardi.

COORDENAÇÃOFlávio Luiz Yarshell

SUPERINTENDENTE Roger A. Fragata Tojeiro Morcelli

Publicação ofi cial daAssociação dos Advogados de São Paulo - AASP

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CoordenaçãoFlÁvio luiz yarshell

Os colaboradores desta Revista gozam da mais ampla liberdade de opinião e de crítica, cabendo-lhes a responsabilidade das ideias e conceitos emitidos em seus trabalhos.

© edição e distribuição daEDITORA REVISTA DOS TRIBUNAIS LTDA.

Diretora EditorialMARISA HARMS

Rua do Bosque, 820 – Barra FundaTel. 11 3613-8400 – Fax 11 3613-8450CEP 01136-000 – São PauloSão Paulo – Brasil

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reproduçãototal ou parcial, por qualquer meio ou processo – Lei 9.610/1998.

CENTRAL DE RELACIONAMENTO RT(atendimento, em dias úteis, das 8h às 17h)Tel. 0800-702-2433

e-mail de atendimento ao [email protected]

e-mail para submissão de [email protected]

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Impresso no Brasil: [09-2017]Profi ssionalFechamento desta edição: [28.07.2017]

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CoordenaçãoFlÁvio luiz yarshell

Diretora Responsávelmarisa harms

Diretora de Operações de Conteúdojuliana mayumi ono

EditorialAline Darcy Flôr de Souza, Andréia Regina Schneider Nunes, Cristiane Gonzalez Basile de Faria, Diego Garcia Mendonça, Luciana Felix, Marcella Pâmela da Costa Silva e Thiago César Gonçalves de Souza

Produção EditorialCoordenaçãoiviê a. m. loureiro gomes e luCiana vaz Cameira

Líder Técnica de Qualidade Editorial: Maria Angélica Leite

Analistas de Operações Editoriais: André Furtado de Oliveira, Bryan Macedo Ferreira, Damares Regina Felício, Danielle Rondon Castro de Morais, Felipe Augusto da Costa Souza, Felipe Jordão Magalhães, Gabriele Lais Sant’Anna dos Santos, Maria Eduarda Silva Rocha, Mayara Macioni Pinto, Patrícia Melhado Navarra, Rafaella Araujo Akiyama e Thiago Rodrigo Rangel Vicentini

Analistas Editoriais: Daniela Medeiros Gonçalves Melo, Daniele de Andrade Vintecinco e Maria Cecilia Andreo

Analistas de Qualidade Editorial: Carina Xavier Silva, Claudia Helena Carvalho e Marcelo Ventura

Capa: Andréa Cristina Pinto ZanardiAdaptação capa: Brenno Stolagli Teixeira

Equipe de Conteúdo DigitalCoordenaçãomarCello antonio mastrorosa Pedro

Analistas: Ana Paula Cavalcanti, Jonatan Souza, Luciano Guimarães, Rafael Ribeiro

Administrativo e Produção Gráfi caCoordenaçãoCaio henrique andrade

Analista de Produção Gráfi ca: Rafael da Costa Brito

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Palavra do Coordenador

Ainda na esteira das novidades trazidas pelo Código de 2015 e das dúvi-das que elas têm suscitado, acabaram por preponderar este volume da Revista Brasileira da Advocacia os estudos dedicados ao processo civil. Não se trata de orientação deliberada, inclusive porque a composição da obra é resultado menos de opções da Coordenação do que das tempestivas respostas que nos podem dar os autores que se dispõem a colaborar, conforme suas disponibili-dades e conveniências.

Contudo, é importante observar que, dentre esses estudos, alguns deles não são “puramente” processuais. Para ilustrar, um deles buscou relacionar o novo diploma e o processo penal; outro tratou da tutela provisória fundada na evidência, mas foi direcionado ao específico tema da improbidade administra-tiva; outro ainda procurou estabelecer uma ponte – necessária e produtiva – entre o negócio processual que o Código regulou, de um lado, e o instituto da arbitragem, de outro. Aliás, esse exame interdisciplinar está bem ilustrado e representado por artigo que, dando resposta a convite acadêmico (constante de outro trabalho) que fora feito a advogados da área contratual (ou preventiva) para maior interação com os profissionais do contencioso, inaugurou provei-toso diálogo.

No entanto, este volume traz mais que processo civil, com importantes e oportunas reflexões sobre a área de seguros e em matéria societária, dentre outras.

Dessa forma, segue a RBA em sua proposta de levar informação e suscitar debate sobre temas atuais e úteis aos profissionais do Direito e, em particular, da Advocacia.

Flávio luiz Yarshell

Professor Titular na Faculdade de Direito da USP. Advogado.

[email protected]

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sumÁrio

Palavra do coordenadorFlávio luiz yArshell ......................................................................................... 9

doutrina

arbitragem

A arbitragem e o negócio jurídico processual do CPC/15Arbitration and CPC/15 procedural agreements

PAulo osternAcK AmArAl ................................................................................. 19

direito Civil

O pedido de reconsideração nos processos de regulação de sinistroThe request for reconsideration in insurance adjustment process

gustAvo de medeiros melo ............................................................................. 43

direito emPresarial

O ativismo acionário nas sociedades de economia mista brasileirasThe shareholder activism in Brazilian state-owned enterprises

PAco mAnolo cAmArgo AlcAlde ..................................................................... 53

direito Penal

A laborterapia e a crise carcerária brasileiraLabortherapy and the brazilian carcerary crisis

eliAs FArAh ........................................................................................................ 81

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Revista BRasileiRa da advocacia 2017 • RBA 612

direito ProCessual Civil

Os desafios da negociação de atos processuais: uma resposta a Flávio Yarshell

The challenges of negotiating court procedures: response to Flávio Yarshell

AlessAndrA nAscimento silvA e Figueiredo mourão e WAnessA mAgnusson de sousA ....................................................................................... 113

Litigância de má-fé e detração processual

Bad faith claims and procedural legal detraction

Antonio cArlos AguiAr .................................................................................... 127

Incidentes de resolução de demandas repetitivas e o papel dos Juizados Especiais Cíveis no caso do acidente Mariana-Samarco

Group Litigation in repetitive law suits and the role of Small Claims Court in the accident Mariana-Samarco

BiAncA mendes PereirA richter ...................................................................... 143

O novo Código de Processo Civil e os impactos no processo penal

The new Civil Procedure Code and the subsidiary application to criminal procedure

dAnyelle gAlvão ............................................................................................... 169

A tutela de evidência na ação de improbidade administrativa

The evidence protection by courts in administrative impro-bity action

nAtáliA diniz dA silvA ...................................................................................... 185

Tutela provisória de urgência: questionamentos práticos após um ano de vigência do novo Código de Processo Civil

Preliminary injunction: practical issues arising from the first year of the enactment of the new Brazilian Code of Ci-vil Procedure

neWton cocA BAstos mArzAgão ..................................................................... 207

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Sumário 13

A advocacia na era dos precedentes vinculantes: uma análise do contraditório e da ampla defesaAdvocacy in the age of binding precedents: an analysis of the adversarial principle and full and fair opportunity

viviAne lemes dA rosA e WilliAm soAres Pugliese ........................................ 225

normas de PubliCação Para autores de Colaboração autoral inédita ... 247

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Doutrina

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Arbitragem

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AmArAl, Paulo Osternack. A arbitragem e o negócio jurídico processual do CPC/15. Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 19-39. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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a arbitragem e o negóCio jurídiCo ProCessual do CPC/15

Arbitration and CPC/15 procedural agreements

Paulo osternaCk amaral

Doutor e Mestre em direito processual pela USP. Professor do Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar (Curitiba). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP, do Instituto Paranaense de

Direito Processual – IPDP e do Comitê Brasileiro de Arbitragem – CBAr. Autor. Advogado em Curitiba. [email protected]

Áreas do direito: Processual; Arbitragem; Civil

resumo: O presente artigo estabelece um para-lelo entre a arbitragem e o regramento conce-bido no Código de Processo Civil de 2015 para disciplinar os negócios jurídicos processuais. Para tanto, serão examinadas exigências gerais e específicas de cada uma dessas espécies de con-venção processual, com destaque para a posição das partes e dos julgadores.

Palavras-Chave: Autonomia – Negócio proces-sual – Arbitragem – Regramento – Comparação.

abstraCt: This article establishes a parallel be-tween the arbitration and the procedural agree-ments provided in the Civil Procedure Code 2015. To this end, general and specific requirements of each of these species of procedural agreements will be examined, highlighting the position of the parties and the judges.

keywords: Autonomy – Procedural agreements – Arbitration – Rule – Parallel.

Sumário: 1. Mudança de paradigma. 2. Negócio jurídico processual. 2.1. Negócios proces-suais no sistema brasileiro. 2.2. Persistência de negócios processuais típicos no CPC/15. 2.3. Negócios processuais atípicos: art. 190 do CPC. 3. Regras gerais dos negócios jurídicos processuais. 3.1. Objeto do negócio processual. 3.2. Tempo do negócio processual. 3.3. Lugar do negócio processual. 3.4. Alegação de descumprimento do negócio processual. 4. Re-quisitos de validade dos negócios processuais. 4.1. Capacidade. 4.1.1. Capacidade negocial do Poder Público. 4.1.2. A posição do juiz em relação ao negócio processual. 4.2. Licitude do objeto. 4.3. Forma do negócio processual. 5. Controle da validade do negócio jurídico processual. 5.1. Hipóteses de recusa à aplicação do negócio processual. 5.1.1. Nulidade: hipóteses gerais. 5.1.2. Inserção abusiva em contrato de adesão. 5.1.3. Manifesta situação de vulnerabilidade. 5.2. Legitimados para suscitar defeito no negócio processual. 6. Conclu-sões. 7. Referências bibliográficas.

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Revista BRasileiRa da advocacia 2017 • RBA 6

AmArAl, Paulo Osternack. A arbitragem e o negócio jurídico processual do CPC/15. Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 19-39. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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1. mudAnçA de PArAdigmA

A afirmação1 da autonomia do direito processual em relação ao direito ma-terial e o enquadramento do direito processual na categoria de direito público conduziram ao reconhecimento da indisponibilidade das regras sobre processo e procedimento judiciais. Tal natureza indisponível implicava a pouca relevân-cia da autonomia da vontade das partes quanto às regras processuais aplicáveis ao processo judicial. O Código de Processo Civil de 1973 foi concebido sob essa estrutura rígida. Nesse regime, não havia margem relevante para as partes convencionarem acerca das regras processuais aplicáveis ao seu litígio. Tam-pouco estava o juiz expressamente autorizado a alterá-las. As únicas possibi-lidades de se alterar validamente o procedimento pressupunham autorização legal específica. Caso contrário, as regras processuais eram inflexíveis.

O Código de Processo Civil de 2015 alterou profundamente esse paradig-ma. Foram concebidos diversos permissivos legais que autorizam a alteração das regras processuais pelo juiz ou pelas partes. Houve com isso significativa amplitude dos poderes do juiz e das partes em relação à gestão do processo.

Sob a perspectiva do juiz, o CPC/15 permite que ele altere os prazos e a ordem de produção de provas de acordo com as peculiaridades da causa (art. 139, inc. VI), bem como modifique as regras sobre distribuição do ônus da prova (art. 373, § 1º). O objetivo dessas regras é muito claro: garantir que o procedimento seja concretamente adequado aos contornos do litígio e que seja trazido aos autos o material probatório mais robusto possível – o que contri-buirá para a obtenção de uma decisão final o mais justa e adequada quanto possível.

Mas não há dúvida de que o CPC/15 também atribuiu um papel mais ativo às partes.2 Consagrou uma cláusula geral de cooperação no art. 6º, incidente

1. Parte das ideias contidas no presente texto consiste na síntese do que foi aprofundado na 2ª edição da obra Provas: atipicidade, liberdade e instrumentalidade, de minha auto-ria, publicada pela Editora Revista dos Tribunais.

2. Antonio do Passo Cabral afirma que a autonomia das partes no processo não decorre da liberdade contratual do direito privado, porque, em se tratando o processo de um ambiente publicizado, essa autonomia sofre limitações. Para o autor, essa autonomia justifica-se na junção entre o princípio dispositivo, que “estabelece a disponibilidade sobre a cognição e decisão a respeito do direito material” e o princípio do debate, que “atribui às partes autonomia para a condução do procedimento e lhes autoriza abrir mão de direitos fundamentais processuais” (CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 141).

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ArbitrAgem

AmArAl, Paulo Osternack. A arbitragem e o negócio jurídico processual do CPC/15. Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 19-39. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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em todas as fases do processo judicial. Em muitos casos, trata-se de uma po-tencialização do contraditório no âmbito do processo, em que as partes são convocadas a participar de atividades que, à luz do CPC/73, talvez não fosse possível – ou, quando menos, tal imposição não estivesse muito clara. O legis-lador, inclusive, cuidou de identificar algumas situações em que a cooperação das partes seria especialmente relevante, tal como ocorre no caso da desig-nação de audiência para a realização de saneamento “em cooperação com as partes” nos casos de complexidade fática ou jurídica (art. 357, § 3º).

Todavia, a cooperação não foi a única forma concebida para integrar as par-tes às atividades judiciais. O CPC/15 foi além. Consagrou a possibilidade de as partes submeterem à homologação uma convenção sobre “questões de fato” e “questões de direito relevantes para a decisão de mérito” que, caso homolo-gada, “vincula as partes e o juiz” (art. 357, §2º). Com isso, o legislador confe-riu margem relevante para as partes definirem consensualmente quais pontos controvertidos o juiz deverá considerar para proferir sua decisão. Assim, será perfeitamente admissível que as partes optem por excluir do processo alguma controvérsia fática, que não será considerada na solução do litígio. A viabili-dade da definição pelas partes da questão jurídica para a solução do mérito também permite que se exclua a aplicação de alguma norma no caso concreto. Contudo, isso dependerá da disponibilidade do direito material. As partes só poderão convencionar acerca da não aplicação processual de uma regra subs-tancial caso isso seja permitido no âmbito do direito material. Disso decorre a possibilidade de que as partes ajustem que não poderão ser consideradas no momento da decisão, por exemplo, as regras atinentes a prescrição ou a caso fortuito ou a força maior. Como as partes poderiam dispor a respeito de tais temas no âmbito do direito material, identicamente o podem fazer no curso do processo. Repare-se que não se trata propriamente de um ajuste sobre ques-tão processual, mas de definição pelas partes das normas materiais que serão consideradas pelo julgador no âmbito do processo. Muito embora não esteja expresso, o juiz, caso tenha dúvida, deverá intimar as partes para que esclare-çam os termos da convenção que lhe foi apresentada. Afinal, a possibilidade de ajuste acerca de questões fáticas e jurídicas não pode servir de meio para que uma parte obtenha vantagem indevida em razão de descuido do adversá-rio. E isso não equivale a afirmar que o juiz interferirá no conteúdo do ajuste, determinando o que deva ser convencionado. O objetivo será esclarecer a real vontade das partes, de modo a coibir abusos e permitir que sejam atingidos os resultados desejados.

Mas é no art. 190 do CPC/15 que se encontra uma mudança fundamen-tal no processo civil brasileiro. Preenchidos determinados requisitos, as partes

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Revista BRasileiRa da advocacia 2017 • RBA 6

AmArAl, Paulo Osternack. A arbitragem e o negócio jurídico processual do CPC/15. Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 19-39. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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podem convencionar sobre situações jurídicas processuais ou sobre procedi-mento. Com isso, o art. 190 do CPC/15 conferiu a possibilidade de as partes disporem sobre as regras processuais que serão aplicadas para resolver o seu li-tígio. Trata-se de uma profunda alteração de paradigma no âmbito do processo judicial. A autonomia da vontade das partes é significativamente prestigiada, com indisfarçável inspiração na experiência da arbitragem.3 As normas que antes eram consideradas inflexíveis, agora podem ser alteradas pela vontade das partes, observados certos limites. É a consagração da liberdade no âmbito do processo judicial, por meio de negócio jurídico processual.4

2. negócio jurídico ProcessuAl

Entende-se por negócio jurídico processual as declarações de vontade feitas pelas partes, cujo objetivo seja disciplinar algum aspecto da relação jurídica processual ou do procedimento judicial.

2.1. Negócios processuais no sistema brasileiro

Os negócios jurídicos processuais não são uma absoluta novidade em nosso sistema.5

3. NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2015, p. 701; MAZZEI, Rodrigo; CHAGAS, Bárbara Seccato Ruis. Breve diálogo entre os negócios jurídicos proces-suais e a arbitragem. Revista de Processo, n. 237, p. 225, nov. 2014; MACÊDO, Lucas Buril de; PEIXOTO, Ravi de Medeiros. Negócio processual acerca da distribuição do ônus da prova. Revista de Processo, n. 241, p. 463-487, mar. 2015. Marinoni, Arenhart e Mitidiero posicionam-se contrariamente a essa tentativa de trazer para o processo judicial a ideologia e as linhas mestras da arbitragem (MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de processo civil: teoria geral do processo. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2015, v. 1, p. 533).

4. Fredie Didier Jr. inclui o “princípio do respeito ao autorregramento da vontade” en-tre as normas fundamentais do processo civil, explicando tratar-se de princípio que visa “à obtenção de um ambiente processual em que o direito fundamental de autor-regular-se possa ser exercido pelas partes sem restrições irrazoáveis ou injustificadas” (DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. 17. ed. Salvador: JusPodivm, 2015, v. 1, p. 134).

5. Ressalve-se que havia quem não admitisse a existência de negócios jurídicos proces-suais à luz do CPC/73. Por todos, confira-se: KOMATSU, Roque. Da invalidade no processo civil. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1991, p. 140-141.

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ArbitrAgem

AmArAl, Paulo Osternack. A arbitragem e o negócio jurídico processual do CPC/15. Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 19-39. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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A arbitragem, regida pela Lei 9.307/96, tem como um de seus pilares a autono-mia da vontade das partes.6 Isso permite que elas escolham não apenas o árbitro que solucionará o seu litígio, mas também as regras materiais e processuais que serão aplicadas pelo julgador privado. Também se admite que as partes alterem consensualmente regras procedimentais, definam quais meios de prova serão ad-missíveis no processo arbitral e em que ordem tais provas serão produzidas.

A possibilidade de negociação em matéria processual também não era des-conhecida pelo CPC/73. Aquele diploma já contemplava algumas autorizações esparsas de negócios processuais, de que eram exemplos a eleição consensual de foro judicial (art. 111), a suspensão convencional do processo (art. 265, inc. II), a alteração consensual sobre a distribuição de ônus da prova (art. 333, par. único) e o adiamento consensual da audiência de instrução e julgamento (art. 453, inc. I). Só se concebia a convenção das partes em matéria processual nos casos expressamente autorizados pela lei. Ou seja, o CPC/73 só admitia a celebração de negócios processuais típicos.7

2.2. Persistência de negócios processuais típicos no CPC/15

Os negócios processuais típicos persistiram com o advento do CPC/15. Além das hipóteses já existentes ao tempo do CPC/73, o CPC/15 dedicou-se

6. Para Wambier e Talamini, a arbitragem foi a fonte de inspiração para a potencializa-ção dos negócios jurídicos processuais no Código de Processo Civil de 2015: “Se as partes podem até mesmo retirar do Judiciário a solução de um conflito, atribuindo-a a um juiz privado em um processo delineado pela vontade delas, não há porque im-pedi-las de optar por manter a solução do conflito perante o juiz estatal, mas em um procedimento e (ou) processo também por elas redesenhado” (WAMBIER, Luiz Ro-drigues; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil. Cognição jurisdicional (processo comum de conhecimento e tutela provisória). 16. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2016, v. 1, p. 515). Em sentido contrário: MARINONI, Luiz Guilher-me; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso..., v. 1, p. 535.

7. Ainda à luz do CPC de 73, o Tribunal de Justiça do Paraná admitiu negociação pro-cessual acerca da inclusão de fiador no polo passivo de ação de despejo, reformando decisão de 1º grau que havia indeferido o acordo, tendo em vista ser o fiador terceiro à relação jurídica processual: “Agravo de instrumento – Ação de despejo – Transação homologada em juízo que previa a inclusão do fiador no polo passivo da demanda – Decisão que negou a inclusão do fiador sob o fundamento de não existir respaldo legal para tanto – Fiador que assinou o acordo homologado – Negócio jurídico pro-cessual perfeito – Ausência de vícios – Acordo que pode alcançar terceiros à relação processual, desde que cientes e subscritos – Possibilidade de inclusão do fiador – De-cisão” (AgIn 1.271.052-4, 12ª Câm. Civ., rel. juíza Ângela Maria Machado Costa, j. 07.10.2015, DJ 19.10.2015).

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a positivar uma série de outros casos, em que a vontade das partes deverá ser considerada no âmbito do processo. São exemplos de negócios processuais previstos no CPC/15 a fixação de calendário para a prática de atos proces-suais (art. 191, caput, §§ 1º e 2º)8 e a escolha consensual do perito (art. 471).

2.3. Negócios processuais atípicos: art. 190 do CPC

O art. 190 do CPC consagrou uma cláusula geral de negociação.9 Permite que sujeitos capazes celebrem negócios jurídicos processuais, que poderão incidir sobre o procedimento judicial e sobre “seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais” (caput). Tal avença poderá ocorrer antes ou durante o processo. Ca-berá ao juiz recusar a aplicação do que foi negociado caso constate a existência de “nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade” (par. único).

Disso decorre que está na esfera negocial das partes, por exemplo, a ex-clusão de determinado meio probatório no caso concreto, a desnecessidade de fixação de audiências, a definição de instância única para resolver o litígio (pela exclusão do cabimento de recurso) e a estipulação acerca do rateio das despesas processuais.10

Esses breves exemplos são suficientes para evidenciar que o CPC/15 trouxe para o processo judicial uma diretriz já consagrada no âmbito da arbitragem:

8. Enunciado 299 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “O juiz pode desig-nar audiência também (ou só) com objetivo de ajustar com as partes a fixação de calendário para a fase de instrução e decisão”.

9. DIDIER JR., Fredie. Curso..., v. 1, p. 380.

10. Enunciado 19 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “São admissíveis os seguintes negócios processuais, dentre outros: pacto de impenhorabilidade, acordo de ampliação de prazos das partes de qualquer natureza, acordo de rateio de des-pesas processuais, dispensa consensual de assistente técnico, acordo para retirar o efeito suspensivo de recurso, acordo para não promover execução provisória; pacto de mediação ou conciliação extrajudicial prévia obrigatória, inclusive com a correlata previsão de exclusão da audiência de conciliação ou de mediação prevista no art. 334; pacto de exclusão contratual da audiência de conciliação ou de mediação prevista no art. 334; pacto de disponibilização prévia de documentação (pacto de disclosure), inclusive com estipulação de sanção negocial, sem prejuízo de medidas coercitivas, mandamentais, sub-rogatórias ou indutivas; previsão de meios alternativos de co-municação das partes entre si; acordo de produção antecipada de prova; a escolha consensual de depositário-administrador no caso do art. 866; convenção que permita a presença da parte contrária no decorrer da colheita de depoimento pessoal”.

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liberdade às partes para negociar acerca do procedimento judicial e das posi-ções jurídicas das partes. Evidentemente que não se trata de uma liberdade irrestrita. A validade da negociação exige o preenchimento de determinados requisitos (gerais e específicos) e o respeito a certos limites, não se admitindo, por exemplo, negócio jurídico processual que afasta os deveres de colaboração e boa-fé.11

Adiante serão examinados os requisitos para a celebração de negócio jurí-dico processual à luz do art. 190 do CPC/15, fazendo-se um paralelo com as exigências previstas no âmbito da arbitragem.

3. regrAs gerAis dos negócios jurídicos ProcessuAis

Os negócios processuais se submetem aos requisitos genéricos exigidos em qualquer negociação,12 razão pela qual serão inicialmente examinados a partir de seus aspectos gerais, como objeto, tempo e lugar do negócio.

Podem ser realizados em qualquer procedimento, sendo admissíveis, inclu-sive, nos Juizados Especiais.13 Admite-se, também, a realização de convenção processual coletiva.14

3.1. Objeto do negócio processual

O negócio jurídico processual terá por objeto regular – ainda que parcial-mente – uma relação jurídica processual ou o procedimento. Esse será o seu elemento caracterizador: conter estipulação negocial orientada a reger uma situação processual.

O art. 190 do CPC/15 determina que a alteração convencional do proce-dimento destina-se a “ajustá-lo às especificidades da causa”. Essa justificativa para se estipular mudanças no procedimento deve ser interpretada em termos.

11. Enunciado 6 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “O negócio processual não pode afastar os deveres inerentes à boa-fé e à cooperação”.

12. NERY JUNIOR e NERY, Comentários..., p. 701; MARINONI, ARENHART e MITIDIE-RO, Curso…, v. 1, p. 529.

13. Enunciado 413 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “O negócio jurídico processual pode ser celebrado no sistema dos juizados especiais, desde que obser-vado o conjunto dos princípios que o orienta, ficando sujeito a controle judicial na forma do parágrafo único do art. 190 do CPC”.

14. Enunciado 255 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “É admissível a cele-bração de convenção processual coletiva”.

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Afinal, quando as partes firmam um negócio processual antes de o processo ser instaurado, ainda não será possível saber com exatidão quais serão as especi-ficidades do futuro litígio. A mesma dificuldade é sentida com a celebração da cláusula arbitral, pois naquele momento ainda não há litígio.

É perfeitamente possível que as partes tenham convencionado um procedimento simplificado (sem audiências ou provas técnicas, por exemplo) e a causa surgida do contrato mostre-se concretamente complexa e, com isso, incompatível com o que foi estipulado. Disso decorre que o procedimento definido pelas partes deverá ser seguido, mesmo que uma das partes ou o juiz o repute concretamente inadequado às características do litígio. As partes somente poderão deixar de cumprir o que foi negociado (na arbitragem ou no processo judicial) se essa for a vontade de ambas as partes. O juiz e o árbitro só poderão se recusar a cumprir a avença que contenha defeito de nulidade ou que implique situação de desequilíbrio processual.

3.2. Tempo do negócio processual

A definição do tempo do negócio relaciona-se com a data em que ele foi celebrado.

Há duas formas de se convencionar a submissão de um litígio à arbitragem: (i) cláusula arbitral, inserida no âmbito do contrato firmado pelas partes e des-tinada a remeter a árbitros privados a solução de um futuro e eventual litígio; (ii) compromisso arbitral, firmado posteriormente à celebração do contrato e destinado a abranger um litígio concreto entre as partes.

No âmbito do processo judicial, o caput do art. 190 dispõe que o negócio ju-rídico processual pode ser firmado “antes ou durante o processo”. Isso signifi-ca que o negócio processual poderá ser firmado antes de surgir concretamente um litígio ou no curso do processo.

No negócio anterior ao processo, nada impede que se firme um prazo para a vigência do negócio. Expirado o prazo, o negócio é extinto. Contudo, reco-menda-se que o negócio seja celebrado por prazo indeterminado, de modo que ele possa ser validamente aplicado quando surgir o litígio.

Depois de proposta a demanda, o negócio pode ser firmado a qualquer tem-po ou fase processual. Pode inclusive ser firmado durante a realização de um ato processual (p.ex., na audiência de conciliação ou de mediação; na audiên-cia de saneamento e organização) ou celebrado extrajudicialmente e levado aos autos para cumprimento. A única peculiaridade será o natural estreitamento da autonomia das partes caso o negócio diga respeito ao procedimento previsto

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ArbitrAgem

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no tribunal. Mas isso não guarda relação com a natureza das atividades realiza-das em primeiro ou segundo graus de jurisdição. A natureza das atividades será essencialmente a mesma. O estreitamento da autonomia se dará em virtude do reduzido rol de atividades que são desempenhadas no âmbito do tribunal, em comparação com as atividades conduzidas pelo juiz singular.

O momento da celebração do negócio é relevante para se definir qual será a legislação aplicável à avença. A situação se torna ainda mais delicada na hipó-tese de superveniência de lei que interfira diretamente no objeto da convenção processual. A solução para o impasse decorrerá da análise acerca da natureza das normas envolvidas no negócio. Tal análise pode se mostrar concretamen-te difícil, na medida em que o negócio jurídico processual será realizado no âmbito do direito material, mas com o objetivo específico de regular situações internas ao processo.

Assim, se as alterações legislativas se relacionarem a normas de direito substancial, entende-se que permanecerão aplicáveis as regras do momento da estipulação do negócio. Contudo, caso a norma superveniente seja de natureza processual e cogente, ela terá aplicabilidade imediata, repercutirá concreta-mente sobre o negócio e deverá ser observada pelas partes.

A aplicação imediata da lei processual está em harmonia com a proteção constitucional ao ato jurídico perfeito e ao direito adquirido (CF/88, art. 5º, XXXVI). O art. 14 do CPC assegura que a “norma processual não retroagirá e será aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada”.

3.3. Lugar do negócio processual

O lugar do negócio jurídico processual é o local em que ele foi celebrado. Tal como na arbitragem, isso pode ser relevante para fins de interpretação do negócio, em que se observará os “usos do lugar de sua celebração” (art. 113 do CC).15 De forma mais ampla, a definição do local em que o negócio foi celebrado também será concretamente relevante, pois, para qualificar e reger as obrigações, será aplicável a lei do país em que se constituírem (art. 9º do Decreto-Lei 4.657/42).

15. Enunciado 405 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “Os negócios jurídi-cos processuais devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar da sua celebração”.

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3.4. Alegação de descumprimento do negócio processual

A verificação da inobservância do negócio processual depende de alegação pelo adversário.16 Não pode ser conhecida de ofício pelo juiz. Disso decorre que se uma parte descumprir o que ficou acertado na convenção processual e o adversário não se opuser, haverá renúncia àquela estipulação. Tal interpretação é extraível por analogia da regra do art. 337, §§ 5º e 6º, do CPC, que impede o conhecimento de ofício da convenção arbitral e a sua não alegação pelo demandado implica aceitação da jurisdição estatal e renúncia à arbitragem.

Todavia, se houver alegação tempestiva do descumprimento, será lícito ao interessado requerer ao juiz o cumprimento do pactuado, no bojo do próprio processo. Não há necessidade de processo autônomo para se obter tal provi-dência. Constatado o inadimplemento, o juiz determinará a observância ime-diata da regra negocial descumprida.

4. requisitos de vAlidAde dos negócios ProcessuAis

A validade dos negócios jurídicos está condicionada ao preenchimento dos seguintes requisitos: agente capaz; objeto lícito, possível, determinado ou de-terminável; observância da forma prescrita ou não defesa em lei (art. 104 do CC).17 Tais requisitos serão examinados adiante, à luz das exigências específi-cas de validade contidas na Lei de Arbitragem e no art. 190 do CPC.

4.1. Capacidade

O requisito da capacidade destina-se a identificar os sujeitos que detém aptidão para celebrar validamente o negócio jurídico, adquirindo direitos ou contraindo obrigações. O art. 190 do CPC limita-se a exigir que as partes sejam plenamente capazes para que o negócio seja válido. O caput do art. 1º da LA contém regra equivalente, ao determinar que poderão se valer da arbitragem as “pessoas capazes de contratar”. Em ambos os casos, trata-se de requisito de ordem subjetiva para a validade da convenção.

16. DIDIER JR., Curso…, v. 1, p. 391. Enunciado 252 do Fórum Permanente de Proces-sualistas Civis: “O descumprimento de uma convenção processual válida é matéria cujo conhecimento depende de requerimento”.

17. Enunciado 403 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “A validade do negó-cio jurídico processual requer agente capaz, objeto lícito, possível e determinado, ou determinável e forma prescrita ou não defesa em lei”.

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A capacidade das pessoas está disciplinada no Código Civil, de modo que a compreensão da capacidade referida no art. 1º da LA e no art. 190 do CPC deve ser extraída daquele diploma legal. Disso decorre que poderão firmar convenções processuais pessoas físicas, pessoas jurídicas de direito privado e pessoas jurídicas de direito público interno (União, Estados, Distrito Federal, Territórios, Municípios, autarquias, associações públicas).

A capacidade do agente é aferida no momento da celebração do negócio. A capacidade superveniente à prática do ato não é suficiente para suprir a nulida-de. Todavia, a incapacidade que sobrevém ao ato não o inquina de nulidade.18

4.1.1. Capacidade negocial do Poder Público

O Poder Público possui capacidade para firmar negócios jurídicos proces-suais.19-20 A exigência legal de que a parte seja plenamente capaz permite tal conclusão. Caso o direito envolvido no litígio admita autocomposição, nada impede que a pessoa jurídica de direito público celebre um negócio jurídico processual.

Esse é mais um ponto que admite um paralelismo com o que ocorre no processo arbitral. Admite-se que o Poder Público submeta-se validamente a uma arbitragem, desde que estejam preenchidos três requisitos: capacidade contratual (requisito subjetivo) e o litígio verse sobre direitos patrimoniais e disponíveis (requisitos objetivos). Não se questiona mais a capacidade de o Estado participar de arbitragem. Aferida a sua capacidade contratual, estará preenchido o requisito de ordem subjetiva. A discussão eventualmente exis-tente se põe em termos dos requisitos objetivos, especialmente o da disponi-bilidade do direito. No entanto, hoje prevalece a posição de que, ao optar pela arbitragem, o Estado não estará dispondo do direito material ou de sua posição jurídica. Haverá apenas a adoção de um mecanismo, de natureza jurisdicional, que foi eleito consensualmente para solucionar o litígio.21

18. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 350.

19. YARSHELL, Convenção..., p. 70.

20. Enunciado 256 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “A Fazenda Pública pode celebrar negócio jurídico processual”.

21. AMARAL, Paulo Osternack. Arbitragem e Administração Pública: aspectos proces-suais, medidas de urgência e instrumentos de controle. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 81-82.

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Tal como ocorre na arbitragem, não há nenhuma regra que exclua as pes-soas jurídicas de direito público de firmar negócios jurídicos processuais. Mui-to pelo contrário. De um lado, o art. 1º, § 1º, da LA admite expressamente o cabimento de arbitragem pela Administração Pública direta e indireta.22 Por outro lado, o art. 190 do CPC abrange a Administração Pública, na medida em que não há dúvida em relação à capacidade contratual de o Estado contratar e da possibilidade de se envolver em litígios que admitam autocomposição. Aliás, a capacidade contratual do Poder Público é inferida precisamente de sua personalidade jurídica de direito público.

4.1.2. A posição do juiz em relação ao negócio processual

O juiz não é parte no negócio jurídico processual. Tampouco o conteúdo do negócio será submetido à sua homologação.23 Trata-se de ato negocial rea-lizado por partes capazes, que, no âmbito da sua autonomia da vontade, cele-brarão negócio jurídico destinado a regular situações jurídicas processuais ou procedimento. Essa é a regra incidente nas convenções arbitrais, assim como no negócio processual de que trata o art. 190 do CPC/15.

Ressalve-se que o art. 191 do CPC/15 contém regra que autoriza a cele-bração de um negócio processual típico. Permite que o juiz e as partes fixem calendário para a prática de atos processuais, de que é exemplo a prévia defi-nição de data para a realização de audiência. Contudo, em princípio não será possível a fixação de prazo para a prolação da sentença, sob pena de violação da regra que recomenda a observância da “ordem cronológica de conclusão para proferir sentença ou acórdão” (CPC/15, art. 12).24

Essa espécie de negócio processual inclui o juiz como protagonista da aven-ça. O juiz e as partes estão vinculados ao calendário que foi avençado. A altera-ção de tal ajuste será providência excepcional, que precisará ser devidamente justificada (art. 191, § 1º).

22. O § 1º do art. 1º foi incluído na Lei de Arbitragem (Lei 9.307/96) por meio da Lei 13.129/2015.

23. YARSHELL, Convenção..., p. 67.

24. Em sentido contrário, Marinoni, Arenhart e Mitidiero reputam ser possível a defini-ção de calendário para a realização de todos os atos processuais, “inclusive a data para a prolação da sentença” (MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil comentado. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2015, p. 245).

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Como já haverá uma definição prévia e consensual acerca das datas para a realização dos atos objeto do ajuste, “dispensa-se a intimação das partes para a prática de ato processual ou a realização de audiência cujas datas tiverem sido designadas no calendário” (art. 191, § 2º). Afinal, não há razão para cien-tificar a parte acerca da futura realização de ato, cuja data ela própria definiu.

4.2. Licitude do objeto

O negócio jurídico processual deve ser lícito. Isso significa que o objeto da avença deverá ser compatível com a lei, com a moral e com os bons costumes.25 Não é juridicamente admissível que se negociem comportamentos ilícitos.26 Tal diretriz incide em qualquer convenção em matéria processual.

O negócio será cabível quando o processo versar sobre “direitos que admi-tam autocomposição” (art. 190). Trata-se de um requisito objetivo de admis-sibilidade do negócio processual previsto no CPC/15. Mas isso não equivale a afirmar que o conteúdo do negócio poderá versar sobre o objeto litigioso. O objeto do negócio processual se restringirá a regular situações jurídicas pro-cessuais ou procedimento. Não incidirá sobre o direito material discutido no processo (que poderá, até mesmo, ser indisponível).27 A exigência de que a controvérsia admita autocomposição se justifica diante da potencialidade das convenções em matéria processual terem aptidão para influenciar na solução de mérito.28 Disso decorre que caberá um negócio processual caso a solução do litígio possa ser obtida diretamente pelas partes, sem a obrigatoriedade da sua submissão a um método heterocompositivo (tais como o processo judicial e o arbitral).

Um exemplo é suficiente para ilustrar o objetivo da exigência. Imagine-se que as partes pactuem que não será admissível a produção de prova técnica no processo em que se discute um acidente de trânsito. No curso do processo, constata-se a existência de uma controvérsia técnica acerca da velocidade de um dos automóveis no momento da colisão. A alegação de excesso de veloci-dade foi feita pelo réu. A elucidação se mostrou concretamente relevante para

25. RODRIGUES, Silvio. Direito civil: parte geral. 34. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 173.

26. DIDIER JR., Curso…, v. 1, p. 387.

27. Enunciado 135 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “A indisponibi-lidade do direito material não impede, por si só, a celebração de negócio jurídico processual”.

28. DIDIER JR., Curso…, v. 1, p. 387.

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se verificar o responsável pelo acidente e consequentemente quem vencerá a causa. Mas isso exigiria a realização de uma perícia. Contudo, a prova técnica não poderá ser produzida. Essa foi a vontade das partes, contemplada no negó-cio processual. Agora devem suportar as consequências de sua escolha. Diante do estado de dúvida acerca da controvérsia técnica, a decisão será tomada com base nas regras sobre ônus da prova, em que o juiz aferirá a quem incumbia a prova daquele fato relevante, que ao final não ficou comprovado. Julgará então a favor da parte contrária.

Nesse exemplo fica evidente que a convenção das partes em matéria proces-sual repercutiu diretamente no desfecho do processo. A não produção da prova – em virtude do negócio processual – implicou julgamento contrário a uma das partes, precisamente contra a parte que não pôde produzir a prova necessária à comprovação das alegações. Tal solução poderia ter sido convencionada ex-trajudicialmente pelas partes, sem a intervenção do Judiciário. Eis a razão da exigência de que o direito admita autocomposição: a eventual repercussão que a convenção em matéria processual possa ter em relação à decisão de mérito.

O caput do art. 1º da LA, por sua vez, admite que as partes convencionem a arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos “disponíveis”. Tal exigência deve ser bem compreendida. A disponibilidade de que trata a lei de arbitragem não se relaciona com o direito material discutido no processo. Da mesma for-ma que o art. 190, o caput do art. 1º da LA admite o cabimento da convenção processual desde que o litígio não envolva um caso de necessariedade da juris-dição, isto é, que a controvérsia possa ser resolvida diretamente pelas partes, extrajudicialmente. Fala-se, então, em disponibilidade sobre o método de solu-ção do litígio, e não do direito material discutido.

Portanto, o art. 190 não repetiu a mesma fórmula prevista na Lei de Arbi-tragem. E nisso andou bem. A menção à “autocomposição” no CPC/15 torna mais simples a compreensão do cabimento do negócio jurídico processual, muito embora a “disponibilidade” da LA e a “autocomposição” do CPC/15 permitam chegar ao mesmo resultado.

4.3. Forma do negócio processual

É requisito de validade do negócio jurídico observar a forma prescrita em lei ou não incidir na forma defesa em lei (art. 104 do CC). Disso decorre que, como regra geral, a forma do negócio jurídico será livre, isto é, não dependerá de forma especial, salvo quando a lei expressamente exigir (art. 107 do CC).

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ArbitrAgem

AmArAl, Paulo Osternack. A arbitragem e o negócio jurídico processual do CPC/15. Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 19-39. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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Na arbitragem, exige-se expressamente que a convenção arbitral seja firma-da por escrito (art. 4º, § 1º e art. 9º da LA). Logo, será inválida uma cláusula compromissória ou um compromisso arbitral que não observe essa forma.

O art. 190 não exige uma forma específica para a validade do negócio ju-rídico processual. Tampouco veda que o negócio se aperfeiçoe por meio de determinada forma. Isso permite concluir que a forma do negócio jurídico processual é livre.29

Contudo, considerando-se a relevância das estipulações que ele pode con-ter, recomenda-se que o negócio seja formalizado por escrito. Isso será fun-damental para se aferir a real vontade das partes. O negócio poderá ser en-tabulado no âmbito de uma cláusula de um contrato ou sob a forma de uma contratação específica e apartada em relação a um contrato principal.

A forma livre do negócio processual não é infirmada pelo fato de o negócio processual se destinar a regular situações processuais ou procedimento. O ne-gócio poderá ser firmado antes ou durante o processo.

Se a pactuação ocorrer extrajudicialmente – antes ou na pendência do pro-cesso –, o instrumento comprobatório do negócio deverá ser levado aos autos. Mas isso só será possível se ele tiver sido firmado por escrito. Se o negócio foi firmado verbalmente, caberá à parte que o invoca produzir prova (p. ex., teste-munhal) da sua existência, do seu conteúdo, da sua validade e da sua eficácia no âmbito daquele processo.

No âmbito do processo, o negócio processual pode também ser firmado oralmente, durante a realização de uma audiência. Nesse caso, a avença será reduzida a termo ou gravada em suporte confiável. Isso será fundamental para que seja concretamente cumprido o objeto da convenção.

Como regra, não se admite negócio processual decorrente do silêncio de uma ou de mais partes. A manifestação de vontade acerca da avença pro-cessual deverá ser expressa e inequívoca. Em casos muito específicos será admitido o negócio tácito, tal como ocorre na renúncia tácita à convenção de arbitragem.

29. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Convenções das partes sobre matéria processual. Temas de direito processual. 3ª série. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 94. Em sentido con-trário, reputando que as convenções processuais “devem ser formuladas por escrito”, confira-se: CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Convenções em matéria processual. Re-vista de Processo, n. 241, p. 489-516, mar. 2015.

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Revista BRasileiRa da advocacia 2017 • RBA 6

AmArAl, Paulo Osternack. A arbitragem e o negócio jurídico processual do CPC/15. Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 19-39. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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Por fim, a validade do negócio jurídico processual não depende de homolo-gação.30 Produzirá efeitos imediatos em relação à constituição, modificação, ou extinção de direitos processuais (CPC/15, art. 200). Assim, observados os re-quisitos de validade, o juiz deverá dar cumprimento ao que foi pactuado pelas partes. Todavia, nada impede que a parte interessada requeira a homologação judicial do negócio processual celebrado extrajudicialmente, tal como autoriza o art. 57 da Lei dos Juizados Especiais Estaduais (Lei 9.099/95).31 Nesse caso, o negócio jurídico processual assumirá status de título executivo judicial, cujo descumprimento viabilizará regular execução civil, caso se repute necessário.

5. controle dA vAlidAde do negócio jurídico ProcessuAl

Como regra, o negócio jurídico processual deverá ser respeitado pelas par-tes e pelo julgador. Contudo, caso o negócio ostente algum defeito grave pre-visto em lei, impõe-se ao juiz da causa ou ao árbitro que deixe de aplicar a convenção. No caso do processo judicial, serão retomadas novamente as dire-trizes gerais previstas no Código de Processo Civil e demais regras processuais esparsas aplicáveis ao litígio. Na arbitragem, será aplicado o regramento eleito pelas partes ou aquele que os árbitros reputarem mais adequado (desde que isso não desrespeite a vontade das partes validamente manifestada).

5.1. Hipóteses de recusa à aplicação do negócio processual

O juiz controlará concretamente a validade do negócio jurídico processual, recusando-lhe aplicação apenas nas hipóteses de (i) nulidade do negócio, (ii) inserção abusiva em contrato de adesão ou (iii) constatação de que alguma parte se encontra em manifesta situação de vulnerabilidade (art. 190, par. úni-co). O controle poderá ser realizado de ofício ou a requerimento.

O mesmo se passará com o árbitro, que tem a prerrogativa de decidir pri-meiro acerca da sua própria competência (princípio da Kompetenz-Kompetenz), o que abrange a análise acerca da validade, eficácia e extensão da convenção arbitral.

30. BARBOSA MOREIRA, Convenções…, p. 98.

31. Dispõe o art. 57 da Lei 9.099/95: “O acordo extrajudicial, de qualquer natureza ou valor, poderá ser homologado, no juízo competente, independentemente de termo, valendo a sentença como título executivo judicial”.

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ArbitrAgem

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5.1.1. Nulidade: hipóteses gerais

A nulidade do negócio jurídico processual pode ser aferida a partir da dis-ciplina constante do art. 166 do Código Civil, que define em seus incisos as hipóteses de nulidade dos negócios jurídicos.

Quanto aos aspectos formais, haverá nulidade do negócio quando: (I) ce-lebrado por pessoa absolutamente incapaz; (IV) não se revestir da forma pres-crita em lei; (V) for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade. Quanto ao conteúdo, será considerado nulo o negócio que: (II) for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto; (III) o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito; (VI) tiver por objetivo fraudar lei imperativa. Ainda, haverá nulidade do negócio jurídico na hipótese de (VII) a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem co-minar sanção.

O Fórum Permanente de Processualistas Civis aprovou, nesse sentido, enunciado prevendo a aplicação do art. 142 do CPC32 ao controle de validade do negócio jurídico processual, possibilitando-se o decreto de nulidade do ne-gócio em caso de prática de ato simulado.33 Editou, também, o Enunciado 132, dispondo acerca da possibilidade de invalidação do negócio caso se constate que foram realizados com vício de vontade ou vícios sociais.34

Em tais casos, haverá invalidade da convenção arbitral ou do negócio pro-cessual judicial.

Disso decorre que, existindo algum desses defeitos, o negócio jurídico pro-cessual será nulo e o juiz ou o árbitro recusará a sua aplicação. Nada impede, todavia, que o defeito incida apenas sobre parte da avença, hipótese em que o negócio será invalidado somente quanto àquela parcela.

Se a nulidade for do contrato em que o negócio jurídico processual foi inse-rido, isso não necessariamente implicará a nulidade da convenção processual.35

32. “Art. 142. Convencendo-se, pelas circunstâncias, de que autor e réu se serviram do processo para praticar ato simulado ou conseguir fim vedado por lei, o juiz proferirá decisão que impeça os objetivos das partes, aplicando, de ofício, as penalidades da litigância de má-fé.”

33. Enunciado 410 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “Aplica-se o art. 142 do CPC ao controle de validade dos negócios jurídicos processuais”.

34. “Além dos defeitos processuais, os vícios da vontade e os vícios sociais podem dar ensejo à invalidação dos negócios jurídicos atípicos do art. 190.”

35. Enunciado 409 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “A convenção pro-cessual é autônoma em relação ao negócio em que estiver inserta, de tal sorte que a

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5.1.2. Inserção abusiva em contrato de adesão

Em princípio, será válido o negócio processual inserido em contrato de adesão.

A validade da convenção arbitral nos contratos de adesão pressupõe o preenchimento de requisitos específicos, expressamente previstos no art. 4º, § 2º, da LA. Em síntese, a cláusula compromissória só terá eficácia se o ade-rente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição.

O par. único do art. 190 permite que o juiz rejeite a aplicação do negócio jurídico processual caso seja inserido de forma abusiva em contrato de adesão. Não se trata de uma hipótese em que a lei determina a nulidade de pleno direi-to do negócio, pelo simples fato de ter sido pactuado no âmbito de um contrato de adesão. É necessário que tal estipulação tenha sido realizada de forma abu-siva. A abusividade de que se cogita não decorre da possibilidade de uma parte conceber o negócio processual e inseri-lo unilateralmente no contrato de ade-são. O abuso reprimido pela lei relaciona-se ao conteúdo da avença. Não será admissível uma estipulação unilateral que desequilibre a relação processual. Caso o objeto da avença não prejudique a posição do aderente no processo, nada impedirá o seu cumprimento.

Contudo, diante de cláusulas ambíguas ou contraditórias, impõe-se que o ne-gócio processual seja interpretado de forma favorável ao aderente (CC, art. 423).36

De todo modo, tal abusividade deverá ser provada. Caso contrário, persis-tirá a presunção de boa-fé das partes em relação ao pactuado, impondo-se a observância da convenção.

5.1.3. Manifesta situação de vulnerabilidade

A “manifesta situação de vulnerabilidade” relaciona-se com a capacidade ne-gocial do agente, cuja caracterização implica a nulidade do pactuado (art. 190,

invalidade deste não implica necessariamente a invalidade da convenção processual”. Tal interpretação já seria extraível da regra do art. 8º da Lei 9.307/96: “A cláusu-la compromissória é autônoma em relação ao contrato em que estiver inserta, de tal sorte que a nulidade deste não implica, necessariamente, a nulidade da cláusula compromissória”.

36. Enunciado 408 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “Quando houver no contrato de adesão negócio jurídico processual com previsões ambíguas ou contradi-tórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente”.

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ArbitrAgem

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par. único). Nesse caso, haverá nulidade porque o sujeito era incapaz para ce-lebrar o negócio processual.

Repare-se que a desigualdade substancial das partes não será suficiente para invalidar o negócio por incapacidade. Eventualmente, o negócio terá sido fir-mado precisamente com o objetivo de equilibrar a posição das partes no pro-cesso.37 Também é possível que o negócio entre as partes desiguais confira alguma vantagem prática para a parte mais forte da relação, mas sem que isso represente necessariamente uma desvantagem para o vulnerável. Em tese, por-tanto, é plenamente admissível que uma parte vulnerável firme validamente um negócio jurídico processual.

A vulnerabilidade do sujeito em relação ao adversário deve ser aferida con-cretamente.38 Serão então considerados os termos do negócio e as circunstân-cias em que foi firmado. A boa-fé39 e a vontade das partes40 são componentes fundamentais para a análise acerca da “manifesta situação de vulnerabilidade”. O exame a ser realizado deverá centrar-se na existência de um desequilíbrio decorrente das pactuações processuais. Afinal, não será juridicamente admis-sível que o negócio contenha apenas regras favoráveis a uma parte e desfavorá-veis ao adversário. Nesse caso, o negócio será nulo por incapacidade negocial da parte manifestamente vulnerável.

De qualquer forma, na maior medida possível, deve-se prestigiar a liberdade negocial acerca do processo. A proteção ao vulnerável não se presta a restringir a autonomia da vontade das partes. Tampouco a atribuir ao julgador o poder de homologação do avençado. Destina-se a coibir abusos na celebração de ne-gócios processuais e, ao mesmo tempo, garantir que o objetivo pretendido pelas partes seja concretamente atingido.

5.2. Legitimados para suscitar defeito no negócio processual

O controle da validade do negócio jurídico processual pode ser realizado “de ofício ou a requerimento” (art. 190, par. único). Isso significa que não é

37. YARSHELL, Convenção..., p. 69.

38. DIDIER JR., Curso…, v. 1, p. 386.

39. Dispõe o art. 422 do CC: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclu-são do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”. O art. 5º do CPC, por sua vez, consigna que “Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé”.

40. Dispõe o art. 112 do CC: “Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem”.

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AmArAl, Paulo Osternack. A arbitragem e o negócio jurídico processual do CPC/15. Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 19-39. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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indispensável que o controle seja provocado pelas partes ou pelo Ministério Público. O defeito pode ser detectado diretamente pelo juiz. O mesmo se passa na arbitragem, em que qualquer dos envolvidos poderá invocar o defeito. Mas isso não autoriza que o árbitro ou o juiz profira decisão desde logo a respeito do tema. Impõe-se o estabelecimento do prévio contraditório, de modo que as partes possam se manifestar previamente à tomada de decisão a respeito da validade do negócio (CPC/15, arts. 9º e 10; LA, art. 21, § 2º).

6. conclusões

A convenção arbitral consiste em negócio jurídico processual, que confere significativa autonomia às partes para disciplinar situações jurídicas proces-suais e procedimento no âmbito da arbitragem. As mais de duas décadas da Lei 9.307/96 demonstraram que a margem de liberdade conferida às partes na arbi-tragem tem sido utilizada com responsabilidade, trazendo cada vez mais bene-fícios à adequada solução dos litígios submetidos aos árbitros. Com isso, não há dúvida de que andou bem o legislador em transportar para o processo judicial parte desta experiência arbitral vitoriosa. Ao consagrar uma cláusula geral de negociação, o art. 190 do CPC/15 altera o paradigma do processo judicial, pas-sando a conferir significativa autonomia para as partes convencionarem acerca do processo. A experiência dirá se o comportamento das partes no processo judicial será compatível com a margem de liberdade que a lei lhes outorgou.

7. reFerênciAs BiBliográFicAs

AMARAL, Paulo Osternack. Arbitragem e Administração Pública: aspectos pro-cessuais, medidas de urgência e instrumentos de controle. Belo Horizonte: Fórum, 2012.

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Convenções das partes sobre matéria pro-cessual. Temas de direito processual. 3ª série. São Paulo: Saraiva, 1984.

CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. Salvador: JusPodivm, 2016.

CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Convenções em matéria processual. Revista de Processo, n. 241, p. 489-516, mar. 2015.

DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. 17. ed. Salvador: JusPo-dium, 2015, v. 1.

KOMATSU, Roque. Da invalidade no processo civil. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1991.

MACÊDO, Lucas Buril de; PEIXOTO, Ravi de Medeiros. Negócio processual acerca da distribuição do ônus da prova. Revista de Processo, n. 241, p. 463--487, mar. 2015.

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ArbitrAgem

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39

MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil comentado. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2015.

MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de processo civil: teoria geral do processo. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2015, v. 1.

MAZZEI, Rodrigo; CHAGAS, Bárbara Seccato Ruis. Breve diálogo entre os ne-gócios jurídicos processuais e a arbitragem. Revista de Processo, n. 237, p. 223-235, nov. 2014.

NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2015.

RODRIGUES, Silvio. Direito civil: parte geral. 34. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

SANTOS, Marina França. Intervenção de terceiro negociada: possibilidade aberta pelo novo Código de Processo Civil. Revista de Processo, n. 241, p. 95-108, mar. 2015.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007.

WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de proces-so civil. Cognição jurisdicional (processo comum de conhecimento e tutela provisória). 16. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2016, v. 1, p. 515.

YARSHELL. Convenção das partes em matéria processual: rumo a uma nova era? In: CABRAL, Antonio do Passo; DIDIER JR., Fredie. NOGUEIRA, Pe-dro Henrique (coords.). Negócios processuais. Salvador: JusPodivm, 2015.

Pesquisas do editorial

Veja também Doutrina• Breve diálogo entre os negócios jurídicos processuais e a arbitragem, de Rodrigo Mazzei

e Bárbara Seccato Ruis Chagas – RePro 237/223-236 (DTR\2014\17943);

• História e perspectivas da arbitragem no Brasil, de Carlos Augusto da Silveira Lobo – RArb 50/79-94 (DTR\2016\23862);

• Negócios jurídicos processuais atípicos no Código de Processo Civil de 2015, de Fredie Didier Jr. – RBA 1/59-84 (DTR\2016\19865);

• Negócios jurídicos processuais e as bases para a sua consolidação no CPC/2015, de Antônio Pereira Gaio Júnior, Júlio César dos Santos Gomes e Alexandre de Serpa Pinto Fairbanks – RePro 267/43-73 (DTR\2017\1028); e

• Preliminar de arbitragem no CPC/2015: nova lei, antiga celeuma, de Caio Cesar Vieira Rocha e Gustavo Fávero Vaughn – RArb 52/71-97 (DTR\2017\505).

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Direito Civil

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medeiroS melo, Gustavo de. O pedido de reconsideração nos processos de regulação de sinistro. Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 43-50. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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o Pedido de reConsideração nos ProCessos de regulação de sinistro

The request for reconsideration in insurance adjustment process

gustavo de medeiros melo

Doutor e Mestre em Direito Processual Civil (PUC-SP). Professor da Escola Nacional de Seguros (Funenseg) e da Escola Superior de Advocacia (ESA-SP). Membro do Instituto Brasileiro de Direito

Processual (IBDP) e do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS). [email protected]

Área do direito: Civil

resumo: O artigo comenta a tese do STJ firmada sobre pedido de reconsideração dirigido à se-guradora, e examina alguns problemas práticos relacionados com o atual critério de contagem do prazo prescricional nos contratos de seguro.

Palavras-Chave: Contrato de seguro – Indeniza-ção – Reconsideração – Suspensão – Prescrição.

abstraCt: The article comments on the STJs thesis on a request for reconsideration addressed to the insurer, and examines some practical problems related to the current criterion of counting the prescriptive period in insurance contracts.

keywords: Insurance contract – Compensation – Reconsideration – Suspension – Prescription.

Sumário: 1. Introdução. 2. O pedido de reconsideração no processo de regulação do sinistro. 3. O pagamento parcial de indenização e a interrupção do prazo prescricional. 4. Os pedi-dos de reconsideração e de complementação. 5. O Projeto de Lei 29/2017. 6. Conclusões. 7. Bibliografia.

1. introdução

O tema do presente artigo é fruto de uma controvérsia que surgiu no con-tencioso securitário sobre os efeitos do pedido de reconsideração formulado pelo segurado frente à negativa de indenização (ou capital segurado) apresen-tada pela companhia seguradora.

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Revista BRasileiRa da advocacia 2017 • RBA 6

medeiroS melo, Gustavo de. O pedido de reconsideração nos processos de regulação de sinistro. Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 43-50. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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Tentaremos mostrar o panorama jurisprudencial do momento, apontar al-guns problemas daí decorrentes e propor possíveis soluções à luz do Direito vigente e em perspectiva via projeto de lei.

2. o Pedido de reconsiderAção no Processo de regulAção do sinistro

Como se sabe, tão logo tome conhecimento da existência de algum fato possívelmente caracterizável como sinistro, o segurado tem o ônus/obrigação de comunicar a companhia seguradora e tomar as providências imediatas para evitar ou minorar as consequências do acidente, sob pena de perder o direito à indenização (CC, arts. 771 e 787, § 1º).

Esse aviso de sinistro, por sua vez, gera para a seguradora a obrigação de proceder aos trabalhos de regulação como processo administrativo voltado à apuração das possíveis causas do evento, à constatação de cobertura prevista na apólice, à contabilização do prejuízo e eventual liquidação dos danos com pagamento de indenização.1

A regulação do sinistro é um trabalho a ser executado pela seguradora, sob sua integral responsabilidade, tendo inclusive prazo para ser concluído.2 Os segurados, beneficiários e terceiros prejudicados são credores desse importante serviço.

A questão que se coloca nesse momento envolve o problema da prescri-ção. O Superior Tribunal de Justiça, nos anos 90, sob o Código Civil de 1916, estabeleceu um critério de contagem do prazo prescricional que consiste no seguinte:

1. MELO, Gustavo de Medeiros. O ressegurador na lide securitária. Revista Brasileira de Direito do Seguro e da Responsabilidade Civil, São Paulo, 2009, p. 216; TZIRUL-NIK, Ernesto. Regulação de sinistro (ensaio jurídico). 3. ed. São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 93; RODRIGUEZ, Luis de Angulo. O sinistro, sua regulação e liquidação. IV Fórum de Direito do Seguro José Sollero Filho. São Paulo: IBDS, 2006, p. 221 e 228; THEODORO JR., Humberto. A regulação do sinistro no direito atual e no Projeto de Lei 3.555/2004. IV Fórum de Direito do Seguro José Sollero Filho. São Paulo: IBDS, 2006, p. 210; PIZA, Paulo Luiz de Toledo. O risco no contrato de resseguro. Seguros: uma questão atual. São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 185; CAVALCANTI, Flávio de Queiroz Bezerra. Regulação de sinistro no Projeto de Lei 3.555/2004. Revista Brasilei-ra de Direito do Seguro e da Responsabilidade Civil, São Paulo, 2009, n. 2, p. 56.

2. Em regra, o prazo é de 30 dias contados da entrega pelo segurado de todos os docu-mentos necessários ao processo de regulação e liquidação do sinistro (Circular Susep 256/2004, que dispõe sobre a estruturação mínima das Condições contratuais e das notas técnicas atuariais dos contratos de seguros de danos).

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Direito Civil

medeiroS melo, Gustavo de. O pedido de reconsideração nos processos de regulação de sinistro. Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 43-50. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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(...) o prazo começa a contar para o segurado da ciência do fato, suspende-se com o aviso de sinistro e volta a correr (de onde parou) com a negativa de indenização. Isso é o que diz a Súmula 229, ainda hoje com plena aplicação: “O pedido do pagamento de indenização à seguradora suspende o prazo de prescrição até que o segurado tenha ciência da decisão” (conexão com a Súmula 278).3

No entanto, esse enunciado pode gerar problemas adicionais em determi-nadas circunstâncias, porque, diante da negativa de indenização, segurados e beneficiários costumam formular pedido de reconsideração à seguradora, como se fosse um “recurso” de revisão, na tentativa de dialogar com o departamento de sinistros da companhia e eventualmente modificar seu entendimento.

Tal postulação não interfere, não suspende e não interrompe o prazo prescri-cional, consoante interpretação que prevaleceu na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.4 Sem previsão expressa na lei, o pedido de reconsideração é um mero requerimento, sem efeito algum, a não ser a criação de uma nova oportunidade para argumentar e provocar outro pronunciamento da segurado-ra sobre a cobertura.

Assim, a negativa constitui o fato relevante apto a disparar a continuidade do prazo até então “suspenso” pelo aviso de sinistro (segundo a Súmula 229), sem mais interferências extrajudiciais em sua fluência. A partir daí, o segurado dispõe do restante do prazo para exercer sua pretensão indenizatória perante o Poder Judiciário ou algum Juízo Arbitral.

Frente ao pleito de reconsideração, a seguradora pode acolhê-lo para re-conhecer a cobertura, ou rejeitá-lo, reiterando a negativa. Se não fizer uma coisa nem outra, mas decidir retomar ou reabrir os trabalhos de regulação do sinistro, o mais lógico é que o prazo se mantenha suspenso até que ela conclua o procedimento (CC, art. 199, I).

Isso é de extrema importância prática, porque o segurado pode obter mais de uma resposta negativa da seguradora e não se dar conta de que o prazo pres-cricional começou a contar da primeira.

3. STJ, 3ª T., AgRg no REsp 1.525.349-MG, Min. Moura Ribeiro, j. 23.02.2016; 3ª T., AgRg no REsp 1.475.589-MG, Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 18.06.2015; 4ª T., AgInt no REsp 1.367.497-AL, Min. Luis Felipe Salomão, j. 28.03.2017; 4ª T., AgInt no AREsp 338.354-SP, Min. Raul Araújo, j. 02.02.2017.

4. STJ, 3ª T., REsp 247.295-SP, Min. Menezes Direito, j. 29.03.2001; 3ª T., AgRg no REsp 776.070-DF, Min. Humberto Gomes de Barros, j. 23.11.2005; 4ª T., REsp 1.312.098-MT, Min. Luis Felipe Salomão, j. 21.06.2011; 4ª T., AgRg no REsp 968.239-ES, Min. Raul Araújo, j. 18.09.2012;

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3. o PAgAmento PArciAl de indenizAção e A interruPção do PrAzo PrescricionAl

A situação descrita no tópico anterior se refere à hipótese da negativa total de cobertura pela seguradora, quando o prazo volta a fluir de onde havia para-do (Súmula 229/STJ), não sofrendo qualquer interferência diante de eventual pedido de reconsideração.

Entretanto, o mesmo tratamento não é dado pelos tribunais à hipótese do reconhecimento ou pagamento parcial de indenização. Aqui, quando a segu-radora indeniza o segurado em valor inferior ao esperado ou àquele que seria devido, opera-se o efeito interruptivo do prazo prescricional. O Superior Tri-bunal de Justiça tem jurisprudência firme no sentido de que o pagamento ou oferta de valor inferior representa um reconhecimento inequívoco do devedor, a reabrir o prazo prescricional, conforme dispõe o art. 202, VI, do Código Ci-vil,5 o qual passa a contar do zero para o segurado ou beneficiário da garantia.6

O entendimento acima provoca dois problemas. Primeiro, ele não está em harmonia com a Súmula 229 do STJ. De acordo com este enunciado, o aviso de sinistro suspende o prazo que começou a contar com o sinistro, voltando a correr com a negativa da seguradora. No entanto, se houver pagamento parcial, a pretensão nasce por inteiro para disparar o prazo prescricional também por inteiro.

Não há sentido lógico nesse critério de diferenciação. Se a decisão que con-cede indenização a menor constitui um fato jurídico tão importante a ponto de reabrir o prazo em sua totalidade, a decisão que nega qualquer valor indeni-zatório também deveria, com maior razão ainda, constituir o marco inicial da prescrição.

O segundo problema é de ordem prática. Como dito, se a seguradora nega o todo, o prazo prescricional, que estava “suspenso” por força da Súmula 229,

5. CC, art. 202: “A interrupção da prescrição, que somente poderá ocorrer uma vez, dar-se-á: (...) VI - por qualquer ato inequívoco, ainda que extrajudicial, que importe reconhecimento do direito pelo devedor”.

6. STJ, 4ª T., REsp 195.425-SP, Min. Sálvio de Figueiredo, j. 14.12.1999; 3ª T., REsp 486.662-RJ, Min. Menezes Direito, j. 06.09.2005; 3ª T., AgRg no Ag 1.033.535-DF, Min. Vasco Della Giustina, j. 06.10.2009; 4ª T., REsp 882.588-SC, Min. Luis Felipe Salomão, j. 12.04.2011; 4ª T., AgRg no REsp 1.458.717-SC, Min. Marco Buzzi, j. 16.06.2015; 4ª T., AgAg no AREsp 864.307-RS, Min. Luis Felipe Salomão, j. 22.11.2016; 2ª Seção, REsp 1.418.347-MG, Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 08.04.2015.

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Direito Civil

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volta a correr de onde parou. Todavia, se ela reconhece a cobertura e oferece algo ao segurado, esse fato, por si só, reabre o prazo, que passa a contar do zero.

Assim, o entendimento penaliza o segurado com suspensão do prazo diante da negativa total, mas o premia com interrupção do prazo quando do pagamen-to a menor. Na prática dos negócios e dos litígios, a depender dos interesses em jogo, a companhia seguradora pode se ver seduzida a tomar o caminho mais conveniente à sua estratégia empresarial. É mais vantajoso para ela negar o pleito inteiro do que reconhecer em parte a reclamação do segurado.

Em nossa opinião, o problema não está na interrupção do prazo decorrente do pagamento parcial, mas, sim, na ideia de que o prazo prescricional inicia sua contagem com o sinistro. A pretensão do segurado, evidentemente, não nasce com o fato em si, mas somente quando a seguradora lhe nega, no todo ou em parte, o pleito indenizatório, a caracterizar possível violação de direito, nos termos do art. 189 do Código Civil (actio nata).

O verdadeiro fato gerador da pretensão a que se refere a Lei federal é a ne-gativa expressa e escrita da seguradora (CC, art. 206, § 1º, II, b). Até então, não existe ainda pretensão indenizatória com a simples ocorrência do evento, uma vez que a seguradora não violou direito do segurado. Assim, no máximo, o segurado tem pretensão para exigir dela o cumprimento de uma obrigação de fazer, qual seja a de regular o sinistro na forma e no prazo devido.

Em síntese, o erro tem sua origem na Súmula 229 do STJ, razão pela qual as coisas não andam muito bem ajustadas em matéria de contagem de prazo na prescrição securitária.7

7. Há fortes críticas à Súmula 229 do STJ: THEODORO Jr., Humberto. Contrato de seguro. Ação do segurado contra o segurador. Prescrição. In: MARTINS-COSTA, Ju-dith; FRADERA, Véra Jacob de. (org.). Estudos de direito privado e processual civil: em homenagem a Clóvis do Couto e Silva. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2014, p. 151; PIZA, Paulo Luiz de Toledo. Provisão de sinistros ocorridos e não avisados, aviso de sinistro e cômputo do prazo prescricional da pretensão do segurado em face do segurador. Revista Brasileira de Direito Comercial, Porto Alegre, n. 3, p. 32, fev.--mar. 2015; MARTINS-COSTA, Judith. Contrato de seguro e contrato de resseguro. Sinistro complexo e cláusula de interdependência. Defeito no fornecimento. Inter-pretação contratual. A prática (“usos individuais”) e as relações interempresariais. Comportamento posterior das partes. Comportamento deslealmente contraditório e proteção da confiança legítima. Prescrição e pretensão de direito material. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 948, p. 193, out. 2014; TZIRULNIK, Ernesto; CAVALCAN-TI, Flávio de Queiroz B.; PIMENTEL, Ayrton. O contrato de seguro de acordo com o Código Civil brasileiro. 3. ed. São Paulo: Roncarati, 2016, p. 327; MELO, Gustavo de

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4. os Pedidos de reconsiderAção e de comPlementAção

Há ainda uma questão que não pode ser tangenciada na discussão do paga-mento parcial. Normalmente, o reconhecimento parcial de cobertura provoca um pedido de complementação. Esse requerimento, por sua vez, já recebeu de alguns precedentes judiciais um tratamento que ele não merece. O entendi-mento foi o de que o pedido de complementação suspende o prazo de prescri-ção até que a seguradora se pronuncie novamente, porque não se confunde com um simples pedido de reconsideração.8

Com o devido consentimento, não parece válida a distinção feita. Primeiro, o fato relevante apto a interferir na contagem do prazo já aconteceu: o paga-mento a menor que interrompeu sua fluência. Segundo, o pedido de comple-mentação equivale, no fundo, a um pedido de reconsideração. O segurado soli-cita da seguradora um reexame sobre os critérios de apuração do valor, a fim de que ela reconsidere sua oferta inicial e complemente a indenização.

Não há razão para conferir tratamento diferente a duas situações que se equi-valem: (i) pedido de reconsideração de negativa total e (ii) pedido de comple-mentação de negativa parcial. Fazendo aqui uma aproximação com o ambiente judicial, seria o mesmo que dizer que o pedido de reconsideração de uma tutela provisória de urgência não interrompe ou suspende o fluxo do prazo recursal (agravo), exceto se houver concessão parcial do provimento. Não faz sentido.

Nessa perspectiva, o pedido de complementação, em matéria securitária, deve ter a mesma disciplina do pedido de reconsideração.

5. o Projeto de lei 29/2017O Projeto de Lei da Câmara 29/2017, em tramitação no Senado Federal, que

pretende instituir uma lei específica para os contratos de seguro no Brasil (con-tinuação do PL 3.555/2004), propõe uma regra de suspensão para os pedidos de reconsideração, por uma única vez, nos seguintes termos:

Art. 125. Além das causas previstas na Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), a prescrição da pretensão relativa ao recebimento de indeni-zação ou capital será suspensa uma única vez quando a seguradora receber pedido de reconsideração da recusa de pagamento.

Medeiros. Ação direta da vítima no seguro de responsabilidade civil. São Paulo: Contra-corrente, 2016, p. 137-138.

8. STJ, 3ª T., AgAg no REsp 798.957-DF, Min. Nancy Andrighi, j. 14.11.2006; 3ª T., REsp 842.688-SC, Min. Humberto Gomes de Barros, j. 27.03.2007.

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Direito Civil

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A proposta é bem-vinda. Ela estimula o diálogo entre as partes como for-ma de se buscar consenso na discussão da cobertura e do valor indenizatório. Ajuda a evitar litígios.

Além disso, proporciona mais clareza e segurança a esse tipo de pretensão com vida curta (prazos geralmente de um ano). Muitas vezes, as companhias passam meses para responder ao pedido de reconsideração, quando não dei-xam o segurado sem resposta. À medida que o tempo passa e o prazo prescri-cional se aproxima, o interessado se vê na “obrigação” de ingressar em Juízo de qualquer maneira, num cenário de incerteza, só para não perder sua pretensão.

Assim, se aprovada a proposta, os segurados e beneficiários terão direito a um único pedido de reconsideração, de modo que o prazo ficará suspenso até que sobrevenha o segundo pronunciamento, sem mais interferências.

6. conclusões

A jurisprudência do STJ continua firme com a interpretação segundo a qual o pedido de reconsideração não suspende o prazo prescricional da pretensão reparatória do segurado. Pela mesma razão, o pedido de complementação não deve interferir no seu fluxo, uma vez que já houve interrupção do prazo com o fato do pagamento a menor.

As questões envolvendo contagem de prazo de prescrição, em matéria se-curitária, merecem urgente revisão pela Corte Superior, sobretudo o critério adotado pela Súmula 229 do STJ, que confunde o nascimento da pretensão com o próprio sinistro.

7. BiBliogrAFiA

CAVALCANTI, Flávio de Queiroz Bezerra. Regulação de sinistro no Projeto de Lei 3.555/04. Revista Brasileira de Direito do Seguro e da Responsabilidade Civil, São Paulo, n. 2, 2009.

MARTINS-COSTA, Judith. Contrato de seguro e contrato de resseguro. Sinistro complexo e cláusula de interdependência. Defeito no fornecimento. Inter-pretação contratual. A prática (“usos individuais”) e as relações interempre-sariais. Comportamento posterior das partes. Comportamento deslealmente contraditório e proteção da confiança legítima. Prescrição e pretensão de direito material. Revista dos Tribunais. São Paulo, n. 948, out. 2014.

MELO, Gustavo de Medeiros. Ação direta da vítima no seguro de responsabilidade civil. São Paulo: Contracorrente, 2016.

MELO, Gustavo de Medeiros. O ressegurador na lide securitária. Revista Brasi-leira de Direito do Seguro e da Responsabilidade Civil, São Paulo, 2009.

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Revista BRasileiRa da advocacia 2017 • RBA 6

medeiroS melo, Gustavo de. O pedido de reconsideração nos processos de regulação de sinistro. Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 43-50. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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PIZA, Paulo Luiz de Toledo. O risco no contrato de resseguro. Seguros: uma questão atual. São Paulo: Max Limonad, 2001.

PIZA, Paulo Luiz de Toledo. Provisão de sinistros ocorridos e não avisados, aviso de sinistro e cômputo do prazo prescricional da pretensão do segurado em face do segurador. Revista Brasileira de Direito Comercial, Porto Alegre, n. 3, fev.-mar. 2015.

RODRIGUEZ, Luis de Angulo. O sinistro, sua regulação e liquidação. IV Fórum de Direito do Seguro José Sollero Filho. São Paulo: IBDS, 2006.

THEODORO JR., Humberto. A regulação do sinistro no direito atual e no pro-jeto de Lei 3.555, de 2004. IV Fórum de Direito do Seguro José Sollero Filho. São Paulo: IBDS, 2006.

THEODORO JR., Humberto. Contrato de seguro. Ação do segurado contra o segurador. Prescrição. In: MARTINS-COSTA, Judith; FRADERA, Véra Jacob de. (org.). Estudos de direito privado e processual civil: em homenagem a Cló-vis do Couto e Silva. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2014.

TZIRULNIK, Ernesto. Regulação de sinistro (ensaio jurídico). 3. ed. São Paulo: Max Limonad, 2001.

TZIRULNIK, Ernesto; CAVALCANTI, Flávio de Queiroz B.; PIMENTEL, Ayr-ton. O contrato de seguro de acordo com o Código Civil brasileiro. 3. ed. São Paulo: Roncarati, 2016.

Pesquisas do editorial

Veja também Doutrina• Contrato de seguro e contrato de resseguro. Sinistro complexo e cláusula de interde-

pendência. Defeito no fornecimento. Interpretação contratual, de Judith Martins Costa – RT 948/193-246 (DTR\2014\12996);

• Contrato de seguro. Ação do segurado contra o segurador. Prescrição, de Humberto Theodoro Júnior – RT 924/79-107 (DTR\2012\450882);

• O contrato de seguro e a regulação do sinistro, de Humberto Theodoro Júnior – RT 832/67-82 (DTR\2005\174); e

• O direito dos seguros no sistema jurídico brasileiro: uma introdução, de Bruno Miragem – RDC 96/157-196 (DTR\2014\18732).

Veja também Jurisprudência • Conteúdo Exclusivo Web: JRP\2017\24766.

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Direito Empresarial

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AlcAlde, Paco Manolo Camargo. O ativismo acionário nas sociedades de economia mista brasileiras. Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 53-78. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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o ativismo aCionÁrio nas soCiedades de eConomia mista brasileiras

The shareholder activism in Brazilian state-owned enterprises

PaCo manolo Camargo alCalde

Pós-graduado em Arbitragem e International Commercial Arbitration pela mesma instituição. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Editor executivo de Revista.

Cofundador do Instituto Brasileiro de Direito Comercial e Econômico – IBDCE. [email protected]

Área do direito: Societário

resumo: Este trabalho aborda o conceito, os elementos estruturantes e as formas de ma-nifestação do ativismo acionário. Trata-se de um fenômeno objeto de diversos estudos pelo mundo, mas ainda incipiente no Brasil, em que os ambientes econômico e legal levam a maio-res dificuldades aos ativistas do que as encon-tradas em outros países. Ainda que o direito societário brasileiro seja baseado na figura do controlador, mesmo as reformas trazidas pela Lei 10.303/2001 à Lei de Sociedade por Ações e pela Lei 13.303/2016 não são suficientes para tutelar de maneira satisfatória os direitos dos minori-tários nas sociedades de economia mista, que encontram difícil tarefa em suas ações ativistas.

Palavras-Chave: Ativismo – Ativismo acionário – Sociedade de economia mista – Acionista con-trolador – Bloco de controle – Acionistas mino-ritários – Direitos dos acionistas minoritários – Conflito de agência.

abstraCt: This paper deals with the concept, structuring elements and forms of display of the shareholder activism. It is a worldwide studied phenomenon but still incipient in Brazil, where the economic and legal environments lead to major difficulties for activists than those found in other countries. Although Brazilian corporate law is based on the controlling shareholder exis-tence, even the reform of the Brazilian Corpora-tions Law brought by Law 10,303/01 and the re-form brought by Law 13,303/16 are not enough to satisfactorily protect the rights of minority shareholders in state-owned companies, who find difficulty in their activist actions.

keywords: Activism – Shareholder activism – State-owned enterprise – Controlling share-holder – Controlling block – Minority share-holders – Rights of minority shareholders – Agency cost.

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Revista BRasileiRa da advocacia 2017 • RBA 6

AlcAlde, Paco Manolo Camargo. O ativismo acionário nas sociedades de economia mista brasileiras. Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 53-78. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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Sumário: 1. Ativismo acionário. 1.1. Delimitação conceitual e sua paulatina verificação na realidade acionária brasileira. 1.2. Elementos fomentadores de ativismo. 2. Dificuldades do ativismo acionário. 2.1. Noções gerais. 2.2. Agravamento do cenário nas sociedades de eco-nomia mista. 3. Mitigação dos poderes dos acionistas minoritários nas sociedades de eco-nomia mista. 3.1. Conflito de agência entre Estado e acionistas minoritários como fomen-tador de ativismo nas sociedades de economia mista. 3.1.1. Abuso de direito de voto pelo acionista controlador. 3.1.2. Conflito de interesses entre o acionista controlador e a com-panhia. 3.1.3. Extração de benefício particular pelo acionista controlador. 3.1.4. Acionista controlador como regulador. 3.2. Necessário escrutínio dos tipos de minoritários: conflito de interesses microssistematizado. 3.3. Restrita abrangência fática da aplicabilidade das normas protetivas dos minoritários. 4. Lei 13.303/16 e seu impacto ao ativismo acionário. 4.1. Escopo da Lei 13.303/16. 4.2. O acionista controlador na Lei 13.303/16. 4.3. Os admi-nistradores da sociedade de economia mista na Lei 13.303. 5. Conclusão. 6. Bibliografia.

1. Ativismo Acionário

1.1. Delimitação conceitual e sua paulatina verificação na realidade acionária brasileira

O ativismo acionário pode ser conceituado como a postura comissiva dos acionistas minoritários nas sociedades, com o precípuo objetivo de defende-rem seus direitos inerentes à condição de sócios ou algum aspecto atinente à função social da empresa. Exsurge, em regra, nas situações em que os acio-nistas se encontram descontentes com a condução da empresa1 pela adminis-tração da sociedade, seja a diretoria ou o conselho de administração, ou pelo acionista controlador.

Há diversas formas de ativismo acionário2, mas a definição mais comum e que será utilizada neste estudo é a daqueles acionistas que, por meio de mani-festações consubstanciadas de diversas maneiras – desde a negociação direta com a administração até a utilização da via judicial –, tentam alterar as diretri-zes da empresa sem a respectiva mudança de controle da companhia.

1. Entenda-se empresa, neste trabalho, na conceituação por seu “perfil funcional”, sinô-nimo de atividade empresarial. Nesse sentido, cf. ASQUINI, Alberto. Perfis da empre-sa. RDM 104, p. 116. Trad. Fábio Konder Comparato, do original Profili dell’impresa. Rivista del Diritto Commerciale, 1943, v. 41, I.

2. Para melhor compreensão de quais maneiras e motivos o ativismo acionário pode se manifestar em sociedades, cf. GILLAN, Stuart L.; STARKS, Laura T. A Survey of sha-reholder activism: motivation and empirical evidence. Contemporary Finance Digest, 1998, v. 2, n. 3, p. 10-34. Disponível em: [http://ssrn.com/abstract=663523], p. 3-5.

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Direito empresarial

AlcAlde, Paco Manolo Camargo. O ativismo acionário nas sociedades de economia mista brasileiras. Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 53-78. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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Trata-se de um fenômeno que surgiu nos Estados Unidos, aproximadamen-te na década de 30, quando houve frustradas tentativas de investidores institu-cionais se tornarem mais ativos nas companhias3. Apenas em meados de 1980 que o ativismo acionário passou a ter a forma como é conhecida hoje, tendo os fundos de pensão começado a dialogar mais com os administradores das companhias e a utilizar a mídia para a consecução de alguns objetivos por eles almejados4.

No Brasil, essa forma de atuação dos minoritários tem se afamado ao longo dos últimos anos, sendo um conceito relativamente novo em nosso direito societário. O grau de especialização e capacidade prática dos nossos ativistas5, no entanto, ainda está aquém dos minoritários de outros países, em especial dos Estados Unidos, não obstante esteja em constante evolução e seja objeto de diversos estudos atualmente.

O desenvolvimento de nosso mercado de capitais está intrinsecamente as-sociado à evolução desse conceito, que é considerado importante componente da governança corporativa e se coaduna de melhor maneira às sociedades de capital pulverizado em comparação àquelas cujo bloco de controle ou contro-lador seja definido6, conforme será analisado em breve.

1.2. Elementos fomentadores de ativismo

O ativismo acionário não é a única alternativa legada aos minoritários des-contentes com a condução da empresa, de sorte que esses podem tomar três

3. GILLAN, Stuart L.; STARKS, Laura T., op. cit., p. 6.

4. Ibidem, p. 8.

5. Nas palavras de Luís André N. de Moura Azevedo, “enquanto no passado, os prin-cipais ativistas eram pessoas físicas brasileiras (ou pessoas jurídicas controladas por essas mesmas pessoas físicas) e alguns fundos de pensão de estatais, hoje são, princi-palmente, investidores institucionais, dentre os quais fundos de investimentos brasi-leiros e estrangeiros” (AZEVEDO, Luís André N. de Moura. Ativismo dos investido-res institucionais e poder de controle nas companhias abertas de capital pulverizado brasileiras. In: CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de; MOURA AZEVEDO, Luíz André N. de (Coord.). Poder de controle e outros temas de direito societário e mercado de capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 219).

6. O pequeno crescimento do ativismo acionário brasileiro, ainda tímido se comparado ao dos EUA, deve-se ao fato de que não apenas nossas companhias, senão também nosso direito societário, são baseados na figura do controlador. Nosso mercado acio-nário ainda está desacostumado à grande pulverização acionária, fator determinante para o crescimento do ativismo e para verificação de sua maior efetividade.

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orientações distintas: (i) exercerem seus direitos de retirada (exit); (ii) perma-necerem inertes (loyalty); ou (iii) manifestarem suas insatisfações (voice)7.

Esse descontentamento dos acionistas nada mais é do que a materialização do famigerado conflito de agência8, que envolve, via de regra, uma administração cuja volição é viciada e acionistas minoritários que julgam terem seus interesses afetados. Conforme apresentado, a atuação efetiva dos acionistas minoritários (voice) se dá em virtude da insatisfação com os rumos tomados pela adminis-tração da sociedade, o mais das vezes submetida a ingerências do controlador.

Em que pese a baixíssima ou inábil efetividade das condutas procedidas pelos minoritários, restam-lhes pouquíssimas alternativas para buscarem seus objetivos, tais como: (i) proxy machinery9; (ii) negociação direta com a admi-nistração da sociedade10; (iii) utilização de meios midiáticos para influenciar os demais acionistas e investidores e para pressionar a administração de forma indireta11; (iv) ações de responsabilidade12, para reparação de danos; (v) ado-

7. HIRSCHMAN, Albert O. Exit, Voice and Loyalty: Responses to Decline in Firms, Orga-nizations and States. Harvard University Press. Cambridge, Massachusetts, 1971.

8. Segundo Armour, Hansmann e Kraakman: “(...) an ‘agency problem’ – in the most general sense of the term – arises whenever the welfare of one party, termed ‘the prin-cipal’, depends upon actions taken by another party, termed ‘the agent’. The problem lies in motivating the agent to act in the principal’s interest rather than simply in the agent’s own interest” (ARMOUR, John; HANSMANN, Henry; KRAAKMAN, Reinier. Agency Problems and Legal Strategies. In: KRAAKMAN, Reinier, et al. The Anatomy of Corporate Law: A Comparative and Functional Approach. 2. ed. Oxford: 2009, p. 35. Outro relevante trabalho cujo escopo é a análise dos conflitos de agência é: JENSEN, Michael; MECKLING, Willaim H. Theory of the firm: Managerial behavior, agency cost and ownership structure. Journal of financial economics, v. 3, n. 4, 1976, p. 305-360.

9. Nessse sentido, cf. GILLAN, Stuart L.; STARKS, Laura T., op. cit., p. 4; DOUGLAS, William O. directors who do not direct. Harvard Law Review, 1934, v. 47, n. 8, p. 1315; e WARDE JR., Walfrido Jorge. Pérolas aos porcos – o direito de voto e a tutela das minorias: uma história de disritmia regulatória, de vantagens putativas e de su-pervantagens. In: HUYVEN, Luiz Fernando Martins (Org.). Temas essenciais de direito empresarial. Estudos em homenagem a Modesto Carvalhosa. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 1077-1078.

10. GILLAN, Stuart L.; STARKS, Laura T., op. cit., p. 4.

11. Idem.

12. WARDE JR., Walfrido Jorge. Pérolas aos porcos – o direito de voto e a tutela das minorias: uma história de disritmia regulatória, de vantagens putativas e de super-vantagens”. In: HUYVEN, Luiz Fernando Martins (Org.). Temas essenciais de direito empresarial. Estudos em homenagem a Modesto Carvalhosa. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 1077-1078.

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ção de voto múltiplo13; e (vi) indicação de representantes dos minoritários e dos preferencialistas ao conselho de administração e ao conselho fiscal das companhias14, quando não estiverem englobadas pelas demais alternativas.

Não obstante, conforme se verá adiante, tais medidas acabam se verificando frágeis ou, até mesmo, impraticáveis, devido à vulnerabilidade dos acionistas minoritários e dos demasiados conflitos de agência que maculam suas atuações e, consequentemente, seus investimentos. Esses conflitos se fazem presentes nos mais diversos planos dentro da sociedade de economia mista, envolvendo não apenas o acionista controlador e seus administradores, mas também os próprios minoritários.

2. diFiculdAdes do Ativismo Acionário

2.1. Noções gerais

É desconhecido o motivo pelo qual o ativismo acionário é entendido no Brasil como método eficiente de consecução de resultados almejados pelos acionistas minoritários. Em que pese haver crescente abordagem do tema por juristas, investidores e, inclusive, jornalistas, pouco se analisa sobre sua efeti-vidade prática.

Talvez a tentativa de aculturar nossos acionistas para se tornarem mais ati-vos nas decisões sociais tem sobrepujado essa conceituação em detrimento de uma análise pragmática dos efeitos práticos conseguidos. Ou talvez os ignóbeis resultados obtidos sejam encarados como relevantes e satisfatórios. Certo é que carecemos de estudos empíricos bem fundamentados como os elaborados em outros países, a exemplo dos Estados Unidos, Inglaterra e França, para que possamos ter a real noção do nível de inefetividade que o ativismo minoritário incorre no Brasil e quais são seus parâmetros.

Seguramente, a grande maioria dos relevantes estudiosos do Direito de Em-presa indicam haver baixíssima – senão inexistente, para alguns – efetividade do ativismo conduzido pelas minorias15. Ainda assim, os acionistas minoritá-

13. NEGRA, Rita de Cássia Serra. Ativismo minoritário equilibra a relação. Valor econô-mico, Brasil. Disponível em: [www.valor.com.br/opiniao/3159592/ativismo-minori-tario-equilibra-relacao]. Acesso em: 17.10.2014.

14. Idem.

15. BLACK, Bernard S. Shareholder Activism and Corporate Governance in the United States. The New Palgrave Dictionary of Economics and Law. London and Basingstoke: Palgrave Macmillan, 1998, p. 459-465. Além desse, outros notáveis trabalhos desse

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rios, em seus mais variados tipos16, buscam tomar medidas cujo fito é, senão otimizar seus ganhos, minimizar suas perdas. Aqui vale a máxima de que “mais vale tentar e fracassar do que jamais ter tentado”.

Os resultados obtidos através da laboriosa atuação dos ativistas são variados e intrinsecamente dependentes de multifários aspectos, desde a conjuntura econômica do país em certo momento até o tipo de medida tomada pelo acio-nista, sendo, portanto, de difícil mensuração. Além do mais, os estudos acerca do tema podem ter produtos diferentes, a depender de seu objeto específico e da amostra pesquisada. De todo modo, pode-se dizer que apontam preponde-rantemente para a mesma direção, que, a depender da inércia atinente a altera-ções legislativas, tornar-se-ão verdadeiros corolários.

A atuação dos ativistas pode ser analisada, de uma maneira geral, sob os primas de curto e longo prazo. Quanto ao curto prazo, tem-se mostrado muito pouco eficiente, ainda que haja algumas consequências positivas de caráter transitório e paliativo. Esses eventuais resultados positivos são plasmados em votos favoráveis aos seus desígnios, que variam de acordo com o tipo de mi-noritário que agiu – influindo, inclusive, seu passado, sua porcentagem de participação e quantas vezes a proposta foi submetida ao crivo da assembleia ou da administração17.

Quanto aos resultados de longo prazo, que são assim considerados aqueles obtidos de 1 (um) a 5 (cinco) anos da efetivação da medida ativista, a despeito da dificuldade de precisão acerca do nexo causal entre o ato ativista e o resulta-do almejado, também não são salutares, demonstrando baixíssima eficiência18.

Em que pese a imensa quantidade de estudos indicativos da inocuidade do ativismo acionário nas sociedades19, não se pode furtar de observar a existência

autor, que também tratam do tema: BLACK, Bernard S. Shareholder Passivity Reexa-mined. Michigan Law Review, 1990, v. 89, p. 520-608; e BLACK, Bernard S. Agents Watching Agents: The Promise of Institutional Investor Voice. UCLA Law Review, 1992, v. 39, p. 811-893.

16. Conforme analisaremos abaixo, no item 3.2.

17. GILLAN, Stuart L.; STARKS, Laura T., op. cit., p. 22-26.

18. Ibidem, p. 26-28.

19. Nesse sentido, além das já citadas obras de Black e Gillian e Starks, cf. SMITH, M. Shareholder Activism by Institutional Investors: Evidence from CalPERS. Journal of Fi-nance, 1996, v. 51, p. 227-252; e PREVOST, Andrew W.; RAO, Ramesh P. Of What Value are Shareholder Proposals Sponsored by Public Pension Funds? Journal of Busi-ness, 2000, 73, p. 177-204.

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de trabalhos que apresentam justamente o contrário, ou seja, a efetividade do ativismo acionário sob os mais diversos aspectos, inclusive relativos a valori-zações anormais nas ações de companhias em virtude de atividade acionária20. São, contudo, minoria.

2.2. Agravamento do cenário nas sociedades de economia mista

O panorama acionário das sociedades estadunidenses é pulverizado desde o início do século passado21, fato que permite maior intervenção de blocos acionários menores, ensejando até mesmo controle minoritário22 ou controle gerencial23. Mesmo nesses cenários, o ativismo apenas se encontra presente em decorrência do conflito de agência engendrado entre minoritários e o bloco de controle ou os administradores. Quer-se, com isso, dizer que mesmo nas socie-dades de capital pulverizado, o ativismo está fadado ao insucesso.

No Brasil, contudo, a dispersão acionária é fenômeno recente, sendo nosso direito societário fundamentado na ideia da premente presença do controlador ou do bloco de controle estável. Diante desse panorama, a atuação dos acio-nistas controladores sobre as decisões da sociedade, por meio de influência à administração ou diretamente por votos em assembleia, pode resultar em manifesto conflito de interesses aos desígnios dos minoritários e, até mesmo, da empresa, culminando na extração de benefícios privados de suas condições de controladores.

Dessa forma, o ativismo naquelas sociedades cuja dispersão acionária é pe-quena fica limitado ao monitoramento e à fiscalização das condutas dos con-

20. Cf., dentre outros: RENNEBOOG, Luc; SZILAGYI, Peter G. Shareholder Activism Through the Proxy Process. Discussion Paper, Tilburg University, 2009, 41 p. Dis-ponível em: [http://ssrn.com/abstract=1460578]; e STRICKLAND, D.; WILES, K.; ZENNER, M. A Requiem for the USA: Is Small Shareholder Monitoring Effective? Jour-nal of Financial Economics, 1996, v. 40, p. 319-338.

21. Cf. BERLE, Adolf A.; MEANS, Gardiner C. The Modern Corporation and Private Property (with a new introduction by Murray Weidenbaum & Mark Jensen). New Jersey: Transaction Publishers, 2009, p. 47 e ss.

22. “(...) minority control, may be said to exist when an individual or small group hold a sufficient stock interest to be in a position to dominate a corporation through their stock interest. Such a group is often said to have ‘working control’ of the company” (BERLE, Adolf A.; MEANS, Gardiner C., op. cit., p. 75).

23. Sobre o tema, cf. BERLE, Adolf A.; MEANS, Gardiner C., op. cit., p. 78-84. Entre nós, CASTRO, Rodrigo Rocha Monteiro de. Controle gerencial – Coleção IDSA de Direito Societário e Mercado de Capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2010, v 2, p. 102 e ss.

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troladores e dos administradores24, diferentemente das sociedades de capital fragmentado, nas quais os acionistas não seriam necessariamente mais atuan-tes, mas teriam provavelmente melhores resultados, ainda que reflexos.

Um dos principais escopos do ativismo acionário é que a companhia te-nha administradores mais independentes e que conduzam os negócios sociais visando à consecução do objeto social de maneira eficaz, aos desígnios dos sócios – de uma maneira geral –, e da função social da empresa. Todavia, essa tarefa se torna mais difícil quando encarada no âmbito da sociedade de econo-mia mista, já que há a presença de um controlador absolutamente estável e de uma administração objeto de constante intrometimento do controlador.

Ocorre que, no caso da sociedade de economia mista, o controlador é o Es-tado, que a utiliza para implementação de políticas públicas, intervenções na economia e, até mesmo, para manobras políticas25. Sob a prerrogativa de tute-lar o interesse público, o Estado como acionista controlador, o mais das vezes, finda por ignorar vontades e direitos dos acionistas minoritários.

Se nas sociedades de capital pulverizado os acionistas ativistas têm a pos-sibilidade de influenciar os rumos da administração, nas sociedades controla-das por um acionista ou bloco de controle essa hipótese é bastante remota. De todo modo, ainda lhes resta os poderes e direitos de fiscalização e monitora-mento das manobras dos controladores e administradores.

Não obstante, nas sociedades de economia mista essa tarefa é muito prejudi-cada por força de grande número de ações preferenciais sem direito de voto de-tidas por acionistas particulares e da grande intervenção do Estado na adminis-tração das companhias e nos órgãos reguladores. Isso implica em um substan-cial engessamento dos direitos dos acionistas minoritários, que, embora sejam muitas vezes direitos essenciais de acionistas26-27, têm seus alcances mitigados.

24. AZEVEDO, Luís André N. de Moura, op. cit., p. 220 e 258.

25. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 30. ed. São Pau-lo: Malheiros, 2013, p. 195 e ss.

26. São considerados direitos essenciais dos acionistas aqueles elencados no art. 109 da Lei 6.404/76, quais sejam: (i) participação nos lucros sociais; (ii) participação no acervo da companhia, em caso de liquidação; (iii) fiscalização da gestão dos negócios sociais; (iv) preferência na subscrição de valores mobiliários emitidos pela compa-nhia (exceção é a companhia aberta); (v) retirar-se da sociedade, quando aplicável.

27. Além desses, também podemos identificar como direitos essenciais dos acionistas outros que não os do referido art. 109. São eles: (i) direito de promover ação de res-ponsabilidade contra a administração (art. 159, LSA): compete à companhia, porém caso não ajuíze em 3 meses, qualquer acionista poderá promovê-la. Caso delibere-se

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Nesses casos, os minoritários findam por se igualar, em muitos aspectos, a meros credores da sociedade, que também possuem indiscutível interesse nos rumos da empresa, mas titulam direitos subjetivos de crédito líquido e certo. Os minoritários de sociedade de economia mista, por sua vez, possuem inte-resse na empresa, mas titulam apenas o direito de participação proporcional no lucro líquido28, pois na prática têm seus direitos imobilizados.

O campo de batalha em que os minoritários pelejam é extremamente hostil, haja vista haver diversos planos de conflitos de interesse e sistemática inaplicabi-lidade das técnicas protetivas de seus direitos nas sociedades de economia mista.

3. mitigAção dos Poderes dos AcionistAs minoritários nAs sociedAdes de economiA mistA

O poder de controle nas sociedades é essencial para evitar o desgoverno, pois é de suma importância que a sociedade tenha um responsável pelo dire-cionamento da empresa, por meio de qualquer tipo de poder de controle, in-dependentemente de quem o exerça seja acionista, administrador ou terceiro29.

por não promover a ação, acionistas com ao menos 5% do capital social poderão; (ii) direitos de participar nas assembleias e direito de voz (art. 125): acionistas sem direi-to de voto também podem comparecer e participar das discussões; (iii) tag along (art. 254-A, LSA): direito dos demais acionistas em terem a eles proposta a aquisição de suas ações por ao menos 80% do valor pago às ações com direito de voto do bloco de controle; (iv) direito de negociar livremente as ações (art. 36, LSA): podem haver al-gumas restrições de negociação na companhia fechada, mas desde que o acionista que queira vender suas ações não fique sujeito à vontade da administração e dos demais acionistas; (v) direito de requerer a instalação do conselho fiscal e eleger seus mem-bros (art. 161, LSA): caso o conselho fiscal não seja permanente, acionistas com um décimo das ações com direito a voto ou com 5% das ações sem direito de voto podem requerer sua instalação; (vi) direito de requerer a adoção do voto múltiplo e do voto em separado na eleição de administradores (art. 141, LSA): é necessário ao menos um décimo dos acionistas com direito de voto; (vii) direito de requerer judicialmente a exibição dos livros sociais (art. 105, LSA): é necessário 5% do capital social mais apontamento de fatos violadores da legislação ou do estatuto social da companhia.

28. “Equity investors are paid last, after debt investors, employees, and other investors with (relatively) ‘fixed’ claims. These equity investors have the ‘residual’ claim in the sense that they get only what is left over – but they get all of what is left over” (FISCHEL, Daniel R.; EASTERBROOK, Frank. The Economic Structure of Corporate Law. Cam-bridge, Massachusetts/London, England: Harvard University Press, 1991, p. 11).

29. Para melhor análise do Poder de Controle nas sociedades e seus tipos de manifesta-ção, cf. BERLE, Adolf A.; MEANS, Gardiner C., op. cit.; e COMPARATO, Fábio Kon-

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Não se quer, neste trabalho, demonizar o controlador e alçar o minoritário a um patamar que não lhe cabe. A existência de ambos é essencial à sociedade e fomenta a fiscalização recíproca e a busca por melhores formas de governo e técnicas administrativas de maximização dos resultados da empresa sem que sua função social seja afetada.

Os acionistas controladores contribuem com maiores entradas à sociedade e, consequentemente, sujeitam-se a maiores riscos inerentes a um investimen-to em participação societária. Não à toa, têm grande interesse em gerenciarem da melhor maneira que lhes aprouver os retornos inerentes às suas condições de supremacia, o control payoff30. Não é racional que sejam concebidos aos minoritários poderes de controle em detrimento da maioria, pois seria uma afronta ao princípio majoritário e ao risco incorrido, além de um instrumento para cometimento de abusos31.

É evidente, no entanto, o abuso de poder de controle32, plasmado muitas vezes em conflitos de interesses com os minoritários, que não têm seus direitos e prerrogativas legais respeitados. No âmbito da sociedade de economia mista, tal fato se agrava, em decorrência da busca pela satisfação de interesses do Es-tado por intermédio da companhia33.

der. O poder de controle na sociedade anônima. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1976. Esse último autor trata, inclusive, do controle externo (ab extra), consubstan-ciado na atuação de um terceiro, que não compõe qualquer órgão da sociedade (Dire-toria, Conselho de Administração, Conselho Fiscal e Assembleia Geral), mas devido à sua influência econômica sobre essa, finda por ter grande poder de ingerência sobre as decisões e negócios realizados na sociedade, ao ponto de ser considerado um tipo de Poder de Controle, já que se apõe sobre outra forma de controle no interior da sociedade e de direito (ab intus). Nesse sentido, cf. COMPARATO, Fábio Konder, op. cit., p. 27-33.

30. Nesse sentido, cf. OWENS, David; GROSSMAN, Zachary; FACKLER, Ryan. The Con-trol Premium: A Preference for Payoff Autonomy. The American Economic Journal: mi-croeconomics. Pittsburgh, Pennsylvania, 2012.

31. LAMY FILHO, Alfredo. Temas de S.A. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 352-353.

32. “Na prática, como a maioria abusa do seu poder, tem-se então a necessidade de tute-lar a minoria” (BULGARELLI, Waldírio. Regime jurídico da proteção às minorias nas S/A. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 41).

33. Nas palavras de La Porta et. al.: “State control is a separate category because it is a form of concentrated ownership in which the State uses firm to pursue political ob-jectives, while the public pays for the losses” (LA PORTA, Rafael; LOPEZ-DE-SILA-NES, Florencio; SHLEIFER, Andrei. Corporate ownership around the world. Harvard University. Third Draft. August, 1998, p. 9).

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Com efeito, muito embora o controlador tenha direito de supremacia deci-sória sobre os demais sócios, não se pode deixar de notar que deverá exercê-lo de maneira lícita e com boa-fé, não mitigando os direitos dos minoritários, os quais figuram em diversas querelas de conflitos de interesse, além da dificuldade de se fazerem ouvidos e efetivarem seus pleitos.

A proteção aos acionistas minoritários é relevante não para proteger espe-cíficos acionistas, a exemplo de que detém participação social proporcional-mente menor do que um acionista ou grupo de acionistas oposto, mas para se tutelar os direitos concedidos às minorias como um todo. Ou seja, não se visa à proteção de indivíduos por serem minoritários, mas à violação de seus direitos por uma maioria. Os acionistas, de uma maneira geral, são titulares dos mes-mos direitos, devendo ser tratados de forma isonômica34.

A proteção legal aos acionistas minoritários é, outrossim, benéfica para a governança corporativa e para a proteção do capital social estrangeiro investi-do nos mercados de capitais dos países em desenvolvimento35, a exemplo do Brasil, pois traz mais segurança jurídica àqueles que investem em ambientes instáveis.

3.1. Conflito de agência entre Estado e acionistas minoritários como fomentador de ativismo nas sociedades de economia mista

Os conflitos de agência ocorridos entre o Estado como acionista controla-dor das sociedades de economia mista e os acionistas minoritários são causa-dos, via de regra, por: (i) abuso de direito de voto pelo acionista controlador; (ii) conflito de interesses entre o acionista controlador e a companhia; (iii) extração de benefício particular pelo acionista controlador; e (iv) acionista controlador como regulador.

3.1.1. Abuso de direito de voto pelo acionista controlador

A maior celeuma envolvendo o ativismo acionário é, sem sombra de dúvi-das, a engendrada entre o Estado e os acionistas minoritários36. Isso decorre

34. BULGARELLI, Waldírio, op. cit., p. 40 e ss.

35. LA PORTA, Rafael; LOPEZ-DE-SILANES, Florencio; SHLEIFER, Andrei; VISHNY, Robert W. Legal Determinants of External Finance. Working Paper 5879. National Bu-reau of Economic Research, Cambridge: Massachusetts, 1997, p. 1133-1137.

36. GILLAN, Stuart L.; STARKS, Laura T. Corporate Governance, Corporate Ownership, and the Role of Institutional Investors: A Global Perspective. Working Paper 2003-01,

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por força de desígnios muitas vezes opostos, pois o Estado, na qualidade de acionista controlador, não apenas visa ao bem da companhia, senão também à satisfação do interesse público.

O art. 238 da Lei 6.404/76 permite ao controlador “orientar as atividades da companhia de modo a atender ao interesse público que justificou a sua cria-ção”. É, decerto, pacífico que o interesse público secundário37, qual seja aquele que interessa particular e unicamente ao Estado enquanto pessoa jurídica de direito público38, não pode ser levado em conta na administração da compa-nhia, de modo que o referido dispositivo estaria se referindo apenas ao inte-resse público primário (ou propriamente dito), que é aquele que exprime os direitos individuais em caráter público e genérico, os interesses da coletivida-de. Não obstante, ainda que o interesse público primário seja legalmente nor-teador e propósito final da sociedade de economia mista, não pode prevalecer ilimitada e abusivamente sobre o interesse privado dos acionistas minoritários.

A exegese do art. 116 da Lei de Sociedade por Ações permite-nos afirmar que o Estado pode controlar a sociedade de economia mista a fim de que ela cumpra sua função social e o interesse público. No entanto, essa interpretação deve ser restritiva, para que se evite o cometimento de abusos do poder de controle em detrimento dos minoritários e demais credores. O interesse pú-blico inerente à sociedade de economia mista está consubstanciado na própria exploração do objeto social39 e estrategicamente ligado ao Estado. Em outras palavras, a própria constituição da companhia de capital misto pelo Estado internaliza o interesse público primário, sendo que a busca por uma gestão que perpetue as atividades correspondentes ao objeto social é, por si só, de amplo interesse social40.

Lerner College of Business & Economics, 2003, p. 29.

37. Para melhor estudo acerca do interesse público e suas facetas, cf. MELLO, Celso An-tônio Bandeira de, op. cit., p. 65 e ss.

38. Segundo o Código Civil brasileiro: “Art. 41. São pessoas jurídicas de direito público in-terno: I - a União; II - os Estados, o Distrito Federal e os Territórios; III - os Municípios; IV - as autarquias; IV - as autarquias, inclusive as associações públicas; V - as demais entidades de caráter público criadas por lei” (grifos nossos).

39. O objeto social da sociedade de economia mista é, por si só, intangível ao investidor privado, seja pela dificuldade de investimento a longo prazo, seja por cogente dispo-sitivo constitucional.

40. A mera constituição da sociedade de economia mista envolve o interesse público. Por isso, a manutenção das atividades e, consequentemente, do objeto social da socieda-

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Destarte, ações do Estado contrárias aos interesses da companhia e dos mi-noritários devem ser encaradas como abusivas, pois o desvio de finalidade lhes acomete. O voto deve ser carregado não apenas de direitos subjetivos dos acio-nistas, mas também de interesses da companhia, caso contrário haverá abuso de direito de voto.

3.1.2. Conflito de interesses entre o acionista controlador e a companhia

O Estado pode, ainda, possuir interesses conflitantes com a companhia, os quais devem ser analisados após o voto em assembleia geral ser proferido, pois o conflito de interesses na sociedade de economia mista é de natureza material (ou substancial)41-42. Isso porque seria ilógico atribuir-se natureza formal ao conflito de interesses do Estado com a companhia, já que a todo momento se poderiam suscitar prévias indagações acerca de sua parcialidade em face do in-teresse da companhia e consequente beneficiamento advindo de voto futuro43, o que dificultaria ou impossibilitaria o regular exercício das atividades sociais.

de de economia mista, seja ela qual for, já atende à disposição legal de satisfação do interesse púbico.

41. Trata-se de entendimento doutrinário majoritário, o qual é liderado por Erasmo Val-ladão Azevedo e Novaes França, Luiz Gastão Paes de Barros Leães e José Luiz Bulhões Pedreira. Sobe o tema, cf. FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes. Conflito de interesses nas assembleias de S.A. (e outros escritos sobre conflito de interesses). 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, v. 1, 322p; e LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. Estudos e pareceres sobre sociedades anônimas. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1989, p. 9-27. Por outro lado, defendendo a natureza de conflito formal, estão Modesto Carva-lhosa e Calixto Salomão Filho. Cf. FILHO, Calixto Salomão. O novo direito societário. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 104 e ss.

42. Únicas exceções que se fazem ao conflito material são as hipóteses de aprovação do laudo de avaliação dos bens conferidos ao capital social e de aprovação das próprias contas, ambas prescritas no art. 115, § 1º, da Lei 6.404/76, que possuem natureza formal.

43. O entendimento da natureza material do conflito de interesses na sociedade de economia mista é relevante até mesmo para o bom andamento e administração da empresa, pois, caso fosse entendido como conflito formal, sempre que possível e interessante, os minoritários alegariam impedimento de exercício de voto pelo acio- nista controlador por conflito de interesse. A múltipla função de Estado como acionista controlador, regulador e pessoa jurídica de direito público ensejaria, sempre, dúvida quanto a eventuais conflitos de interesse. Por isso esses devem ser analisados ex post, ou seja, após as deliberações, para que se verifique a efetiva ocorrência de voto preju-dicial ou potencialmente prejudicial à companhia.

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Assim, após a votação em assembleia, caso se verifique que houve voto conflitante ao interesse da companhia, a deliberação é anulável, ainda que o prejuízo seja potencial44. Não se pode invocar interesse da companhia para, em detrimento dos demais acionistas e do público relacionado com a companhia, justificar decisões que beneficiem o controlador ou pessoa a ele ligada45.

O mesmo sustentáculo da inaplicabilidade das consequências do conflito de interesse formal na sociedade de economia mista é, contudo, utilizado para refutar alegações de ocorrência de conflito de interesse material, pois é difícil se conceituar o benefício particular do Estado, que muitas vezes é travestido de interesse público primário.

Diante disso, apesar de grande fonte de embates entre controlador e mino-ritários, o ativismo acionário fica ainda mais enfraquecido.

3.1.3. Extração de benefício particular pelo acionista controlador

Embora de mais difícil verificação nas sociedades de economia mista e mui-tas vezes mal conceituada, até mesmo sendo confundida com conflito de inte-resse, encontra-se a extração de benefício particular pelo acionista controlador.

Quando o Estado visa unicamente ao interesse público secundário, estará be-neficiando-se particularmente da companhia, ainda que de maneira lícita. Não poderia, contudo, votar nessas situações, conforme leciona o Erasmo Valladão:

O benefício particular é vantagem lícita, que pode ser outorgada estatutaria-mente, mas que impede o acionista beneficiário de votar, porque representa um favor ou algo aleatório46.

Ocorre que, com a atual conjuntura de governança corporativa nas socie-dades de economia mista, não seria grande surpresa se a extração de benefício privado viesse a partir de voto do acionista controlador, a exemplo de tantas outras atitudes hodiernamente verificadas47. Trata-se de mais um ponto nevrál-gico a ser verificado pelos ativistas minoritários.

44. FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes. Conflito de interesses e benefício par-ticular: uma distinção que se impõe definitivamente dirimir. RDM, ano 51, v. 161/162, jan.-ago. 2012, p. 42.

45. PINTO JUNIOR, Mário Engler. Empresa estatal: função econômica e dilemas societá-rios. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 385.

46. FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes, op. cit., p. 45 (grifos do autor).

47. Mário Engler Pinto exemplifica situação de difícil solução, na qual o Estado declara dividendos superiores ao mínimo estatutário para aumentar o superávit primário das

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3.1.4. Acionista controlador como regulador

Outra querela aventada pelos ativistas é a de que há um grande conflito en-volvendo o Estado enquanto acionista controlador da sociedade de economia mista e como regulador48, pois nesse cenário há inócuas ou paliativas tentati-vas de se fortalecer os direitos dos acionistas minoritários, que se encontram em posição contraposta à do Estado.

A justaposição de funções do Estado é inerente ao cometimento de práticas convergentes ao interesse estatal em ambas as circunstâncias, ou seja, a pro-mulgação de leis e regulamentações serão, via de regra, tendenciosas ao Estado em detrimento dos direitos dos acionistas, que se amiúdam cada vez mais.

É, obviamente, uma situação irremediável e inerente à existência das socie-dades de economia mista, mas não por isso menos nefasta aos acionistas mi-noritários, que utopicamente lutam para conter os desmandos do controlador.

3.2. Necessário escrutínio dos tipos de minoritários: conflito de interesses microssistematizado

Não bastassem os conflitos diretos com o acionista controlador, os ativistas enfrentam, ainda, aquilo que se poderia denominar endoconflito minoritário, no qual os próprios acionistas minoritários possuem desígnios distintos, em virtude de suas origens, influências e poder econômico, e, por isso, não con-seguem formar um bloco uniforme de atuação contrária ao controlador, tendo como consequência uma ficta representação dos minoritários por aqueles que representam a maioria dos minoritários.

A base acionária formada pelos acionistas é composta, basicamente, por fundos de pensão, bancos de investimento, fundos de investimento – forman-do um grande bloco minoritário que poderíamos conceituar como investidores institucionais ou investidores qualificados – e os demais minoritários pessoas físicas e jurídicas – pequenos investidores privados.

contas públicas ou custear programas de governo alheios à companhia. Cf. PINTO JUNIOR, Mário Engler, op. cit., p. 390.

48. Nesse sentido, cf. excelente artigo de Mariana Pargendler, no qual a autora aborda consequências da relação entre Estado e acionistas privados, que vão muito além do mero interesse em políticas públicas em oposição à ânsia pela maximização dos valo-res das ações. PARGENDLER, Mariana. The Unintended Consequences of State Owner-ship: The Brazilian Experience. Theoretical Inquiries in Law, v. 13, 2012, p. 503-523.

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É evidente que os maiores players do mercado de capitais brasileiro são os fundos de pensão, o BNDES49 e o BNDESPAR – investidores institucionais pú-blicos –, e que todos eles possuem grande influência estatal em suas manobras assembleares e administrativas. Muito embora sejam tratados como minori-tários por muitos e fazem uso de seus direitos de voto como se minoritários fossem, é evidente que seus interesses estão alinhados com os do acionista con-trolador e que não poderiam votar ao lado dos minoritários, sob a prerrogativa de possuírem desígnios atrelados a esses50.

Além desse tipo de minoritários, ainda dentro da categoria dos investidores institucionais, poderíamos enquadrar os fundos de investimento51 – investi-dores institucionais privados –, que possuem grande volume de capital inves-tido nas sociedades de economia mista, mas seus interesses muitas vezes são distintos dos investidores institucionais públicos e, até mesmo, dos pequenos investidores privados52.

Há situações em que, mesmo que o interesse do investidor institucional privado indique determinado sentido a ser seguido, ele finda por votar em consonância com o acionista controlador e de acordo com a presente admi-nistração, haja vista não querer correr o risco de atravancar eventual negócio futuro que seu conglomerado financeiro possa celebrar com o Estado ou com a companhia53.

49. Ao contrário do que comumente se pensa, o BNDES – e não apenas o BNDESPAR – também possui participação no capital social de sociedades de economia mista, tais como a PETROBRAS. Para isso, cf. [www.investidorpetrobras.com.br/pt/governanca--corporativa/capital-social]. Acesso em: 15.06.2017.

50. Embora não seja o objeto principal desse estudo, apesar de tratado reflexamente, poder-se-ia até mesmo sustentar que os investidores institucionais públicos formam, ao lado da pessoa jurídica de direito público um bloco de controle.

51. Diferentemente do que ocorre no Brasil, os hedge funds estadunidenses possuem ativa participação acionária nas companhias, sendo, inclusive, objeto de diversos estudos e trabalhos monográficos. Cf. BRAV, Alon; JIANG, Wei; THOMAS, Randall S.; PART-NOY, Frank. Hedge fund activism, corporate governance and firm performance. Journal of Finance, 2008, v. 63, p. 1729-1775; KLEIN, april; ZUR, Emanuel. Entrepreneur-ial shareholder activism: Hedge funds and other private investors. Journal of Finance, 2009, v. 64, p. 187-229.

52. USEEM, M.; BOWMAN, E.; MYATT, J.; IRVINE, C. U.S. Institutional Investors Look at Corporate Governance in the 1990’s. European Management Journal, 1993, v. 11:2, p. 175-189.

53. AZEVEDO, Luís André N. de Moura, op. cit., p. 247.

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Os pequenos investidores privados, por sua vez ficam a mercê de boas ações tomadas pelos investidores institucionais privados, para que possam, junto deles, tomar alguma medida mais enérgica em relação à busca por seus direitos e expectativas. As ferramentas das quais os minoritários podem se utilizar para exercer seu ativismo são menos numerosas e eficientes que as utilizadas pelos investidores institucionais54, pois esses têm maior capacidade financeira para arcar com altos custos que o ativismo pode incorrer, além de possuírem maior acesso à mídia, que é um grande aliado dos minoritários.

Diante desse cenário, é difícil se estabelecer um perfil do minoritário ati-vista, haja vista a miscigenada participação no capital social das sociedades de economia mista, algo que dificulta eventual atuação em conjunto e enseja um conflito de interesses microssistematizado, do qual apenas os interesses dos mais fortes dentre os mais fracos é que prevalecerão. Como consequência, os pequenos investidores privados, que a despeito de possuírem menor partici-pação absoluta são extremamente numerosos, tenderão a deixar de investir diretamente nas sociedades de economia mista e passarão a ser quotistas de fundos de investimento, pois assim terão maiores chances de ganho e possibi-lidade de luta.

3.3. Restrita abrangência fática da aplicabilidade das normas protetivas dos minoritários

Diante do exposto, pode-se afirmar que as normas protetivas dos acionistas minoritários – muitas delas agregadas à Lei de Sociedades por Ações em 2001, pela Lei 10.303 – têm suas abrangências restringidas, mormente para aqueles acionistas que conceituamos neste trabalho como pequenos investidores pri-vados.

Muitos dos mecanismos utilizados pela minoria dependem de participação mínima no capital social, a qual pode, mesmo quando baixa, não ser atingi-da pelos minoritários ativistas55. Outras vezes, sendo atingida tal participação

54. Para aprofundada análise das ferramentas utilizadas pelos ativistas, o alcance de cada uma delas e os tipos de acionistas minoritários, cf. GIRARD, Carine. L’Activisme des Actionnaires Minoritaires au sein du Governement des Entreprises Francaises. 20 de de-zembro de 2001. 312 f. Tese (Doutorado em Administração de Empresas com ênfase em finanças) – Universidade de Borgonha, faculdade de economia e administração de empresas. Borgonha, França.

55. Em indispensável trabalho acerca do ativismo acionário, Luis André Azevedo traz uma tabela indicativa dos percentuais de participação necessários para o exercício das

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mínima, os votos de alguns acionistas podem ser encobertos pelos votos dos demais tipos de minoritários, conforme tratado no item anterior.

Além dessas vicissitudes, a alta taxa de absenteísmo, encontrada em grande escala nas assembleias e envolvendo, via de regra, os acionistas minoritários, é mais um empecilho ao ativismo acionário, já que dificulta o agrupamento dos acionistas. Em que pese a possibilidade de pedidos públicos de procuração – regulados pela ICVM 481/09 – e os votos múltiplos56, suas aplicabilidades não são tão fáceis, tanto pela real falta de interesse de muitos acionistas, que não possuem nenhuma estima pela governança, senão apenas por transacionar ações, quanto pelo quórum mínimo exigido para algumas medidas cabíveis.

Outra técnica utilizada pelo Estado é a pulverização da participação acioná-ria, até o limite legal autorizado57, de ações preferenciais sem direito de voto. Além de conseguir angariar grandes quantias ao capital social da companhia, o Estado consegue se manter no controle empresarial58 sem qualquer contra-posição relevante, ao passo que os minoritários têm seus poderes ainda mais mitigados.

4. lei 13.303/16 e seu imPActo Ao Ativismo Acionário

4.1. Escopo da Lei 13.303/16

Em 2016, em meio a diversos escândalos de corrupção envolvendo empre-sas estatais brasileiras e graves danos a acionistas minoritários das sociedades de economia mista, foi promulgada a Lei 13.303, que dispõe sobre o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e das suas sub-

prerrogativas legais dadas aos minoritários. Cf. AZEVEDO, Luís André N. de Moura, op. cit., p. 244-247.

56. Art. 141 da Lei 6.404/76: “Na eleição dos conselheiros, é facultado aos acionistas que representem, no mínimo, 0,1 (um décimo) do capital social com direito a voto, esteja ou não previsto no estatuto, requerer a adoção do processo de voto múltiplo, atribuindo-se a cada ação tantos votos quantos sejam os membros do conselho, e reconhecido ao acionista o direito de cumular os votos num só candidato ou distri-buí-los entre vários. (...)”

57. Art. 15, § 2º, da Lei 6.404/76: “O número de ações preferenciais sem direito a voto, ou sujeitas a restrição no exercício desse direito, não pode ultrapassar 50% (cinqüenta por cento) do total das ações emitidas”.

58. Para diferenciação de controle societário e controle empresarial, cf. WARDE JR., Wal-frido Jorge. Responsabilidade dos sócios: a crise da limitação e a teoria da desconside-ração da personalidade jurídica. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 277-280.

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sidiárias. Essa recente lei visa a melhor disciplinar algumas práticas de gover-nança corporativas, dentre elas a transparência da administração e das finanças das estatais, tentando mitigar a ingerência do Estado no exercício do controle empresarial59.

O prazo de 24 meses para a completa implementação pelas empresas esta-tais das novas regras impostas60 não permite que apreciemos com maior pre-cisão os reais impactos da nova legislação, todavia podemos analisar a perti-nência e o âmbito de incidência de algumas dessas regras, à luz da realidade da atuação dos minoritários atualmente.

O art. 8º elenca os requisitos de transparência mínimos que deverão ser observados pelas sociedades de economia mista, sendo que os documentos resultantes do cumprimento dessas exigências legais deverão ser publicados na internet, de forma permanente e cumulativa. Entendemos que a publicação de-verá ser feita no site da companhia, para que se mitigue a prática de fraudes e a assimetria de informações; e caso a companhia não possua site, deverá criá-lo.

O inc. I do art. 8º estabelece que as sociedades de economia mista pode-rão perseguir o interesse público ou o imperativo de segurança nacional que justificou sua criação61. Todavia, os membros do Conselho de Administração da companhia deverão elaborar, anualmente, uma carta explicitando os com-promissos de consecução de objetivos de políticas públicas, devendo essa carta discriminar os recursos da companhia que serão empregados para tal finalida-de e os impactos econômico-financeiros da consecução desses objetivos.

Além da necessidade de adequação do estatuto social à lei que autorizou a criação da sociedade e da necessidade de célere divulgação de informações relevantes, outra imposição legal que impacta diretamente os acionistas mino-ritários é a necessidade de elaboração de política de distribuição de dividen-dos. Tal política deverá ser condizente com o interesse público que justificou a criação da sociedade de economia mista, todavia, a inclusão dessa norma em

59. “Art. 6º O estatuto da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias deverá observar regras de governança corporativa, de transparência e de estruturas, práticas de gestão de riscos e de controle interno, composição da adminis-tração e, havendo acionistas, mecanismos para sua proteção, todos constantes desta Lei.”

60. “Art. 91. A empresa pública e a sociedade de economia mista constituídas anterior-mente à vigência desta Lei deverão, no prazo de 24 (vinte e quatro) meses, promover as adaptações necessárias à adequação ao disposto nesta Lei.”

61. Em consonância com o art. 238 da Lei 6.404/76.

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dispositivo legal atinente aos requisitos mínimos de transparência da compa-nhia permite que haja melhor alinhamento de expectativas por parte da mi-noria acionária. A partir do momento que se sabe quais são as prioridades da companhia diretamente impactantes à distribuição de dividendos, os acionis-tas poderão analisar melhor a viabilidade e os riscos de seus investimentos.

Ainda no tocante à transparência, deverão ser divulgadas notas explicativas às demonstrações financeiras atinentes à consecução do interesse coletivo ou de segurança nacional; e políticas de transações com partes relacionadas.

4.2. O acionista controlador na Lei 13.303/16

Sobre o acionista controlador, a Lei 13.303/16 prescreve que esse deverá preservar a independência do conselho de administração no exercício de suas funções, além de dever observar a política de indicação dos administradores e membros do conselho fiscal62.

Ao tratar da ação de reparação de danos causados em virtude do abuso do poder de controle, a nova lei pouco modifica as regras da Lei 6.404/76. Dife-rentemente da Lei de Sociedades por Ações, a Lei 13.303 utiliza a expressão acionista controlador, ao invés de sociedade controladora. Com isso, adapta a disciplina da responsabilização do controlador para o âmbito das sociedades de economia mista e se contrapõe à maneira como a LSA a ele se referia, haja vista ser inadequada e limitada a indicação apenas de “sociedade controladora” e não acionista controlador.

Há outras duas mudanças no tocante à ação de responsabilidade por abu-so de poder de controle. A primeira delas é a inclusão de terceiros que forem prejudicados pelo ato abusivo do controlador como legitimados ativos para o ajuizamento dessa ação específica. Embora o art. 15, § 1º, da Lei 13.303 indique que além do terceiro prejudicado os demais acionistas também pos-suem legitimidade ativa, é importante se observar que esse dispositivo legal está adstrito à regra do art. 246 da Lei 6.404, ainda sendo necessário, portanto, que acionistas com representatividade no capital social menores do que 5% prestem caução pelas custas e honorários advocatícios estimados na hipótese de improcedência da ação.

A segunda mudança é o estabelecimento de prazo prescricional de 6 anos contados da data da prática do ato abusivo para o ajuizamento da respectiva

62. Será abordado no próximo item.

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ação de responsabilidade por abuso de poder de controle, o que permite me-lhor análise sobre os impactos causados à sociedade e aos acionistas.

4.3. Os administradores da sociedade de economia mista na Lei 13.303

Em relação aos administradores da sociedade de economia mista, a Lei 13.303 disciplina a indicação de membros do conselho de administração e diretoria, devendo ser escolhidos cidadãos de reputação ilibada, com notório conhecimento sobre administração de sociedades, experiência profissional, formação acadêmica compatível com o cargo para o qual for indicado e não ser considerado inelegível63.

Há, ainda, vedações à indicação de administradores, disciplinadas pelo § 2º do art. 17, que visam à maior independência da administração em relação ao Estado, que é, direta ou indiretamente, o controlador da sociedade de econo-mia mista.

A lei estabelece que irão compor o conselho de administração da companhia representante dos empregados e representante dos acionistas minoritários. Não há, contudo, inovação alguma, já que a Lei 12.353/10 e a Lei 6.404/76 já disciplinavam isso. A novidade fica por conta da obrigatoriedade de ao menos 25% dos membros do conselho de administração serem independentes.

Os arts. 24 e 25 da Lei 13.303 dispõem que a sociedade de economia mis-ta deve possuir comitê de auditoria estatutário, que funcionará como órgão auxiliar do conselho de administração e a ele se reportará diretamente. São atribuições desse comitê opinar sobre a contratação e destituição de auditores independentes e supervisionar as atividades desses e das áreas de controle in-terno e de demonstrações financeiras da companhia. Esse comitê servirá, ba-sicamente, como um órgão de compliance interno, que objetiva a manutenção do exercício regular de auditoria.

Outro comitê criado pela nova lei está disciplinado no art. 10, que prescreve que a sociedade de economia mista deverá, em seu estatuto social, criar um comitê para verificar a conformidade do processo de indicação e de avaliação dos membros do conselho de administração e do conselho fiscal.

Em que pese a pretensa boa intenção do legislador com a criação deste co-mitê, sua atuação é extremamente limitada, à medida que a própria lei estabe-lece que ele terá competência para auxiliar – apenas isso – o acionista controla-dor na indicação desses membros. Não se especifica como esse auxílio se dará,

63. Cf. art. 17 da Lei 13.303/16.

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Revista BRasileiRa da advocacia 2017 • RBA 6

AlcAlde, Paco Manolo Camargo. O ativismo acionário nas sociedades de economia mista brasileiras. Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 53-78. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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qual a importância dele na tomada de decisões do acionista controlador e nem mesmo quais são as consequências de divergências nas indicações e avaliações.

5. conclusão

O ativismo é uma das posturas que o acionista descontente com a condução da empresa pode tomar no âmbito de qualquer sociedade em que participe do capital social. Se nos Estados Unidos, cujo panorama societário apresen-ta grande pulverização, as consequências do ativismo não têm se mostrado dignas de grandes louvores, no Brasil, onde o controle societário majoritário ainda reina com segurança, amparado por uma boa, porém limitada legislação, o ativismo acionário encontra ainda maiores dificuldades.

A sociedade de economia mista, por sua vez, pode ser considerada como o mais hostil dos ambientes para os acionistas minoritários, pois (i) há um controlador de grande poder intra e extra-societário, com prerrogativas mais amplas do que quaisquer outros controladores; (ii) há flagrante conflito de agência entre os minoritários e o controlador, que exerce diversos papéis, em consequente conflito de interesses; (iii) há conflito de agência entre os mino-ritários e os administradores; (iv) há conflitos de agência entre os próprios minoritários, por haver diversos tipos e com desígnios diferentes; e (v) a atual legislação vigente pouco protege os direitos dos acionistas minoritários, de modo que esses ficam muitas vezes impotentes.

Dessa forma, o ativismo acionário na sociedade de economia mista não produz os efeitos almejados, além de representar efetivo custo àqueles que o exercem. A sistemática legal e prática negocial e administrativa relativas à sociedade de capital misto levam o acionista minoritário a patamar abaixo dos demais credores da companhia, pois titulam o direito à participação propor-cional no lucro líquido, sendo os últimos a receberem o produto de eventual exercício social positivo, mas com seus direitos inerentes à qualidade de acio-nista engessados.

Mesmo com o advento da Lei 13.303 em 2016, poucas mudanças que efeti-vamente pudessem otimizar os direitos dos acionistas minoritários ou o exer-cício de seu ativismo foram implementadas. A lei se apegou à disciplina estabe-lecida pela Lei de Sociedades por Ações, havendo, portanto, poucas inovações que, de fato, interessem às minorias.

Regras atinentes à eleição de administradores e da transparência da atuação dos órgãos da companhia e de suas finanças são, sem sombra de dúvidas, mui-to salutares ao desenvolvimento e, até mesmo, à existência das sociedades de economia mista. No entanto, a um ano da obrigatoriedade de implementação

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Direito empresarial

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das novas regras às companhias previamente constituídas, ainda não podemos afirmar quais serão os reais impactos das novas mudanças para os acionistas minoritários. Pode-se dizer que a lei contemplou alguns dos objetivos do ati-vismo, porém não criou mecanismos para o seu exercício e progresso.

Mesmo com a Lei 13.303, é evidente que se faz necessária melhor disci-plina de proteção aos minoritários nessa espécie de companhia, contudo é de se refletir se os legisladores possuem esse interesse, haja vista serem objetivos muitas vezes contrários aos do Estado, que age sob a roupagem do interesse público. Fato é que as ações dos minoritários têm se mostrado inócuas.

6. BiBliogrAFiA

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Pesquisas do editorial

Veja também Doutrina• A proteção dos acionistas minoritários na alienação do controle de companhias aber-

tas, de Alexandre Wald – RDB 34/345-367, Doutrinas Essenciais de Direito Empresarial 8/43-69 (DTR\2006\777);

• Controle das empresas estatais, de Adilson de Abreu Dallari – Doutrinas Essenciais de Direito Administrativo 6/549-567 (DTR\2013\293);

• Governança corporativa, de Danilo Augusto Ruivo – RDB 56/401-439 (DTR\2012\44745); e

• Os direitos dos acionistas minoritários com as alterações da lei da sociedade anônima, influenciadas pelas bases da governança corporativa, de Adhemar Ronquim Filho – ReDE 20/73-89 (DTR\2016\24307).

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FArAh, Elias. A laborterapia e a crise carcerária brasileira. Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 81-110. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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a laborteraPia e a Crise CarCerÁria brasileira

Labortherapy and the brazilian carcerary crisis

elias Farah

Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Conselheiro honorário do CESA e Conselheiro Nato da ACSP. Advogado.

[email protected]

Áreas do direito: Penal; Processual

resumo: Crise carcerária no Brasil. A laborterapia como alternativa promissora. Regeneração e re-abilitação do presidiário. O efeito contra a rein-cidência do delinquente. Laborterapia carcerária obrigatória, educacional, profissional, transfor-mativa, penitencialismo. Necessidade de nova política criminal. Perigos da reincidência criminal sistemática. Moralização das penas criminais. Lei de Execução Penal e aspectos pedagógicos e cor-recionais. Prestação de serviços à comunidade. Adolescentes infratores. Redução da maioridade. Decisões e manifestações do STF. Violência. Pri-são albergue e aquisição de novo padrão de vida. Audiência de custódia e sua função legal e social.

Palavras-Chave: A crise carcerária brasileira – Extrema gravidade da situação – Riscos do siste-ma atual – A laborterapia como alternativa.

abstraCt: Prison crisis in Brazil. Labor therapy as a promising alternative. Regeneration and rehabilitation of the convict. The effects against the recidivism of the offender. Mandatory, educational, professional, transformative prison labor therapy, penitentialism. Need for a new criminal policy. Dangers of systematic criminal recidivism. Moralization of criminal penalties. The Law of Criminal Enforcement and its correctional and educational aspects. Community services. Juvenile delinquents. Reduction of legal age. Decisions and rulings of the Federal Supreme Court. Violence. Parole and acquisition of a new standard of living. Custody hearing and related legal and social functions.

keywords: Prison crisis in Brazil – Severity of the situation – Current system risks – Labor therapy as an alternative.

Sumário: 1. Explicação introdutória. 2. As prisões antigas e suas tragédias humanas e a mo-derna visão da laborterapia. 3. A laborterapia é o melhor caminho para devolver o presidiá-rio regenerado à sociedade. 4. Penitencialismo: “regras mínimas para tratamento de presos”. 5. A laborterapia e o melhor caminho para devolver o presidiário regenerado à sociedade. 6. O Código Penal e as previsões da sua “exposição de motivos”. 7. O trabalho carcerário e seu comprovado benefício para o preso e para as finanças do estado e da sociedade. 8. A crise carcerária nunca como agora está a exigir a laborterapia. 9. Controle e assis-

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tência à população carcerária em fase de colapso. 10. O remédio da laborterapia com-pulsória, educacional, profissional, transformativa. Penitencialismo. 11. Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Diretrizes para prevenção de crimes. 12. Urge investir no aperfeiçoamento do sistema carcerário antes que ele saia do controle da autoridade. 13. Laborterapia: o perigo social da reincidência sistemática e a moralização das penas cri-minais. 14. Laborterapia: fator ético judiciário e social contra a reincidência. 15. Lei de Exe-cução Penal. Aspectos pedagógicos e correcionais. 16. Prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas. 17. Prestação de serviços à comunidade. caminho recomendado para ressocializar. 18. A laborterapia exige trabalho especializado, persistente, sem impro-visação. 19. Muitos agentes são responsáveis, cada um a seu modo, pela crise carcerária no Brasil. 20. A prisão deve mudar como o progresso mudou as modalidades criminosas. 21. Reabilitação do presidiário, previsão legal no CPP e no CP. 22. Adolescentes infratores e o momento oportuno da laborterapia. 23. A redução da maioridade penal e a urgência da laborterapia. 24. Redução da maioridade e a dúvida social da sua eficácia. 25. Intenções governamentais sobre assistência educacional nas penitenciárias. 26. Conselho Nacional de Justiça e a decisão do Supremo Tribunal. 27. Os primórdios da laborterapia e o progresso da sua aplicação. 28. A laborterapia, embora a sua complexidade, é o caminho mais cur-to para debater o mal. 29. Regulamento Penitenciário Federal e suas previsões possíveis. 30. Ideais inatingidos do “Regulamento Penitenciário Nacional”. 31. Prestação de serviços à comunidade. Art. 46 do Código Penal. 32. Violência doméstica. Programa de recuperação e educação. 33. “Fundação de Amparo ao Preso”: clube de leitura nas prisões. 34. Prisão--albergue. Aceitação do condenado não perigoso a um regime de responsabilidade. 35. O Supremo Tribunal Federal em face da crise carcerária. 36. Presidente do STF faz grave denúncia, que merece ser pensada. 37. A gravidade da crise carcerária e as determinações do Supremo Tribunal Federal. As preocupações do Governo de São Paulo. 38. O Supremo Tribunal adverte da precariedade das prisões. 39. Prisão-albergue. Integração do albergado na sociedade. Aquisição de um novo padrão de vida. 40. Prisão-albergue e os pressupostos objetivos da sua concessão. 41. Prisão-albergue, atividade remunerada, lícita e externa ao presídio. 42. Audiência de custódia e a crise carcerária. Função legal e social.

1. exPlicAção introdutóriA

O autor confessa, com humildade, inicialmente, que não é advogado crimi-nalista e nem especializado em Direito Penal. As considerações que se seguem, sobre Laborterapia Penal, têm por modesta intenção provocar a atenção dos mais doutos para a grave crise carcerária, já às raias da desumanidade, por que passam os presidiários em cárceres de todos Estados brasileiros. O mal reper-cute no aumento da criminalidade e no ruinoso sentimento generalizado e opressor, em toda a sociedade, da escancarada violência urbana. A laborterapia está sendo objeto destas considerações porque admitimos que ela constitua a mais promissora e eficaz alternativa capaz de converter os cárceres degradados em convenientes instrumentos públicos de recuperação de delinquentes, em um cidadão ressocializado, apartado do crime, útil, ordeiro, melhor para a so-ciedade e para seus familiares. Têm, pois, a palavra, os estudiosos da matéria

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Direito Penal

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e das suas complexas entranhas. O autor está apenas cumprindo o dever de acender mais uma luz na escuridão das nossas penitenciárias, chamadas de “masmorras medievais”.

2. As Prisões AntigAs e suAs trAgédiAs humAnAs e A modernA visão dA lABorterAPiA

A história das prisões antigas tem relatos de brutalidades dantescas. Cár-ceres imundos e inabitáveis. Aqueles da Grécia, em crateras abandonadas nas rochas (latomias), para tormentos insuportáveis, que se transformam em po-cilgas pestilentas, inexpugnáveis para fugas. Provocavam nos presos um senti-mento de profundo ódio, porque tinham consciente propósito de produzir so-frimento. Na Idade Média, as prisões laicas eram calabouços subterrâneos, em fortalezas ou castelos, com o preso abandonado, desapiedadamente, sem mí-nima higiene e respeito à dignidade humana. Os registros históricos falam em relação ao período da Idade Média até a Idade Moderna, das famosas prisões da Torre de Londres, a Bastilha, depois tomados para renovação dos valores mo-rais e políticos da Idade Contemporânea. Destinavam-se mais para crimes po-líticos e são muito citadas pela crueldade das construções, nichos torturantes em que o condenado não podia se colocar de pé. Consta que o Papa Clemente XI, em 1704, preocupou-se em que a correção tivesse por finalidade a reforma moral do condenado. O Papa Clemente XII prosseguiu na pregação, tendo construído reformatórios para mulheres. Estudos sobre o assunto mencionam o inglês João Howard (1726-1790), que, impressionado com o sofrimento nas prisões inglesas, sem separação de sexos, crianças, loucos e idiotas, criminosos e bandidos, que então mais se adestravam no crime. Foi então dos primeiros a pregar, em seu livro, por prisões com educação religiosa, trabalho organizado, regime higiênico-alimentar e isolamento noturno. Prosseguiu, nesta pregação, o filósofo Jeremias Bentham. Vários sistemas penitenciários foram propostos, o de “Sistema de Comunidades”, com a vida em comum dos detentos, tido na penalogia universal com uma aberração, com base na regra de que é dever do governante, quando privar uma pessoa da liberdade, procurar regenerá-la mo-ralmente. O “Sistema de Classificação”, em que os condenados são separados em razão do crime, por grupos de crime contra propriedade, contra pessoa, reincidentes etc., com subdivisão de acordo com a idade, profissão, educação, escolaridade, vida, progresso, saúde, estado mental, nível de bens. O “Sistema Filadélfico”, de Guilherme Penn, que prevê o isolamento absoluto, noite e dia, com que se evita o contágio, visando à regeneração. Sabe-se que tal isolamen-to leva o preso ao suicídio, à loucura e à imbecilidade. Mais recentemente

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registrou-se o “Sistema Elmira” (Estado de Nova York), pelo qual os presos praticam ginástica, frequentam a escola cinco dias por semana, recebem edu-cação religiosa, de acordo com a religião, escola profissional, com dezenas de profissões diferentes, pelas quais detentos recebem um vale com valor baseado no grau do seu aproveitamento.

3. A lABorterAPiA é o melhor cAminho PArA devolver o Presidiário regenerAdo à sociedAde

A partir do século XIX, a execução da pena impunha o confinamento soli-tário durante a noite, com trabalho em conjunto durante o dia, obrigando-se a rigoroso silêncio, para vedar comunicações entre os presos e evitar a for-mação de grupos ou de quadrilhas, induzidos a uma melhor visão dos seus deveres sociais e disciplinares. Acrescentou-se, depois, a fixação de créditos pelo bom comportamento, com a abreviação da sua libertação, sendo hoje na forma da liberdade condicional. As causas do crime, em face da evolução das ciências biológicas, antes mero desvio da moral, passaram a ser classificadas como multicausais. Impôs tal nova concepção a recomendar a classificação do detento, dispensando-lhe, por isso, tratamento individualizado. Críticas são feitas contra o desinteresse dos Poderes Públicos em disponibilizar recursos suficientes, que possam garantir a execução de programas educacionais, médi-co-psiquiátricos, psicólogos, com o fim de diminuir a reincidência no crime ou o retorno a outros grupos de delinquentes. Daí a conveniência da laborterapia, que profissionaliza e garanta o retorno do preso à sociedade sem o risco do desemprego ou da miséria pessoal ou familiar. A laborterapia torna o relaciona-mento entre os presos e os serviços internos administrativos menos opressores, causa que gera a rigidez prisional e a consequente resistência à ordem interna, o enfretamento da pressão, formação de grupos, as tentativas do suborno dos funcionários, uso de drogas, motins e até a promiscuidade sexual.

4. PenitenciAlismo: “regrAs mínimAs PArA trAtAmento de Presos”Na mesma entrevista manifestou-se o desembargador do Tribunal carioca,

José Muiños Filho, favorável à redução de maioridade, com o fundamento de que “muitos crimes não são cometidos pelo medo da punição”. Isto é, “vai criar um fator ‘inibidor’ para violência”. Salientou o magistrado que “um ódio momentâneo em uma pessoa de boa índole pode gerar vontade de matar, mas o medo das consequências o inibe à ação”. “Se ele tem capacidade de entender os atos, ele deve responder como criminoso”. Entra aqui a discussão da evidente

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conveniência de os presos serem submetidos a um processo de laborterapia educativa. “A sociedade terá de assumir o ônus da construção de presídios específicos se quer mesmo uma punição mais rigorosa”. O penitenciarismo de-senvolve, em todo o mundo, esforços para conciliar as condições precárias das prisões com os imperativos da humanização. A ONU já adotou resoluções que elaboram “Regras Mínimas para Tratamento de Presos”, de adequada divul-gação, pelas quais há seleção de regras para aplicação geral para todos reclu-sos e regras de categorias diferenciadas. Estas tem atenuantes na segregação, individualização das penas, privilégios compatíveis, trabalho individual e em conjunto, educação, recreação, deixando-o melhor para voltar a conviver em sociedade, pessoal e profissionalmente. O preso é como uma peça desajusta-da dentro da engrenagem social. A ajustagem deve ser feita por especialistas, como psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, sociólogos, professores e ins-trutores vocacionais.

5. A lABorterAPiA e o melhor cAminho PArA devolver o Presidiário regenerAdo à sociedAde

A laborterapia pode estimular o desenvolvimento de terapia de grupo, como parte de tratamento psiquiátrico. Sabe-se que a reformulação dos relaciona-mentos entre os presos, melhor participação no funcionamento do presídio, ampliação dos contatos com a família, o rompimento oprimente do isolamen-to e, finalmente, a prestação de serviços produtivos e sua participação nos resultados são muito mais úteis e educativos do que tornar as prisões apenas mais confortáveis. Mundialmente insatisfatórias as prisões, sendo algumas de-sumanas, em que pese a gravidade dos crimes cometidos pelos detentos. A insatisfação é o germe das fugas, motins, crimes contra guardas, formação de quadrilhas. Por isso as prisões, como forma de castigo, são acoimadas de es-colas do crime. Em face dos crimes hediondos, a sociedade reage na direção da represália, do isolamento, da vingança. Os criminosos e delinquentes são considerados, no subconsciente social, doenças que atormentam a sociedade e a ordem legal, daí o extremo desejo da extirpação cirúrgica do mal. Ocorre que as soluções atualmente adotadas do mero isolamento, castigo, e sentimento de vingança a cada dia mais agravam a situação e as condições das prisões e penitenciárias, o que implica em um ônus pesado para as finanças públicas e, depois de cumprida a pena, devolve para a sociedade um indivíduo revoltado, afastado dos familiares, reincidentemente criminoso, despreparado para sobre-viver na liberdade, estigmatizado pela mácula da prisão e facilmente atraído pela sedução de novos crimes. A laborterapia é o melhor caminho para que o

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presidiário seja devolvido à sociedade, e com uma regeneração conquistada na prisão em menor tempo do que a pena.

6. o código PenAl e As Previsões dA suA “exPosição de motivos”A “Exposição de Motivos” da nova parte geral do Código Penal (Lei 7.209-

84) já advertiu (item 5) que:

(...) a pressão dos índices de criminalidade e suas novas espécies, a cons-tância da medida repressiva como resposta básica do delito, a rejeição social dos apenados e seus reflexos no incremento da reincidência, a sofisticação tecnológica, que altera a fisionomia da criminalidade contemporânea, são fatores que exigem o aprimoramento dos instrumentos jurídicos de con-tenção do crime, ainda os mesmos concebidos pelos juristas na primeira metade do século.

O art. 39 do Código Penal é explícito: “O trabalho do preso será sempre remunerado, sendo-lhe garantidos os benefícios da Previdência Social”, dentro da ampla abrangência do art. 201 da CP, em consonância com o art. 43, IV, do CP: “prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas”, sendo esta “aplicável às condenações superiores a seis meses de privação de liberdade” (art. 46). Este último artigo prevê, em seus parágrafos, que a prestação de serviços “consiste na atribuição de tarefas gratuitas ao condenado”, observan-do-se que os serviços dar-se-ão “em entidades assistenciais, hospitais, escolas, orfanatos e outros estabelecimentos congêneres, em programas comunitários ou estatais”. O condenado deverá ter possuído aptidão para os serviços esca-lados e cumprirá tantas horas de tarefa quantos sejam os dias da condenação. A convivência do condenado criminalmente com o trabalho produtivo, lícito, benfazejo, renumerado, haverá quase sempre de moldar uma consciência me-lhor em relação ao mundo e com as pessoas.

7. o trABAlho cArcerário e seu comProvAdo BeneFício PArA o Preso e PArA As FinAnçAs do estAdo e dA sociedAde

Entre os direitos do homem, integrante dos fatores da sua dignidade, está o trabalho produtivo, útil, que lhe assegura um sentimento benfazejo de se-gurança pessoal e de sua família. Daí a importância da laborterapia na reedu-cação do preso, provendo o hábito da disciplina, o sentido da sua utilidade e a segurança da sua subsistência, quando reconquistar a liberdade perdida. Seguramente é uma forma de fomentar a função ressocializadora da pena e o

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afastamento da ociosidade e da destilação perversa do sentimento de vingan-ça. Dráuzio Varella, em Estação Carandiru, inspirado na vida carcerária, bem ressalta que a “mente ociosa é moradia do demônio; a própria malandragem reconhece”. A sua experiência nesse estudo mostra que o próprio preso prefe-riria cumprir a pena no trabalho, porque o tempo é mais ligeiro e o corpo cansa para um repouso mais eficaz. O trabalho na prisão é útil para o equilíbrio físico e mental. Antes, o trabalho forçado era um acréscimo à pena, hoje se sabe que o trabalho reeduca e restabelece a dignidade perdida. A Constituição (art. 5º, XLVII, c) dispõe que não haverá pena “de trabalhos forçados”, no sentido de retaliação, mas sim na sua função educadora, observados os seus objetivos pedagógicos, revitalizadores da dignidade e da honra perdidas. A ONU, no seu primeiro Congresso (Genebra, 1955), sobre Tratamento de delinquentes, dentre as orientações preconizadas, está a vedação do trabalho penoso, observando-se as aptidões físicas e mentais do preso, de natureza útil, para garantir-lhe, quan-do reconquistar a liberdade, a capacidade de trabalho honesto. São recomenda-ções que o trabalho penitenciário deve, quanto possível, assemelhar-se àquele do mercado regular de trabalho. À similitude desejada incluem-se as garantias e precauções prescritas para a proteção, segurança e saúde. A remuneração será equitativa, retendo-se parte dela para o preso utilizar quando posto em liberdade.

8. A crise cArceráriA nuncA como AgorA está A exigir A lABorterAPiA

A laborterapia pode ser considerada o fator mais relevante nos problemas da vida carcerária do Brasil. O grande ideal deve ser a recuperação dos presos, no universo das prisões, para reintegrá-los à sociedade, ao invés de encarcerá--los como mais uma carga no depósito, que se incha e implode nas rebeliões e na criminalidade reincidente. Os cárceres são sabidamente uma escola de crimes. Quando mais longo o tempo da ociosidade mais escolado no crime estará o preso quando libertado. O encarcerado deve estar convencido de que a ociosidade é perniciosa, e que o trabalho que lhe é imposto tem objetivo educativo para fortalecimento de seu caráter e personalidade, e de que a pro-fissão, que vai aprender e aperfeiçoar, pode trazer-lhe rendimentos honestos e indiretamente beneficiar-lhe a família. É induvidoso que a laborterapia é o melhor caminho a ser adotado. Os estudos penitenciários confirmam, de modo unânime, os comprovados benefícios da laborterapia no combate à ociosidade e na consequente ressocialização do preso. A realidade atual tem surpreendido os responsáveis com a operação da laborterapia em face da expressiva elevação da população carcerária. Inclui-se, nesse drama social, a população carcerária

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feminina, sobretudo decorrente de crimes correlacionado ao tráfico ou con-sumo de drogas de diversas espécies. Como este crime é lucrativo, de fácil execução, o preso é mais impermeável às recomendações naturais e benefícios educacionais da laborterapia. Parecem propensos, em liberdade, a voltar ao esquema criminoso anteriormente urdido, porque sempre ligado a grupos, até internacionais. As penitenciárias e demais presídios de menor escala possuem quadrilhas internas que agem em conjugação com quadrilhas externas, senão também com apoio de policiais corruptos e bem “remunerados”.

9. controle e AssistênciA à PoPulAção cArceráriA em FAse de colAPso

A política de controle e assistência à população carcerária no Brasil está em processo de colapso. Estatística divulgada em reportagem (Folha de S. Paulo, 24.06.2015) informa que o sistema prisional no país dispõe de 376.669 vagas, mas a população prisional é de 607 prisioneiros. O crescimento é de 7% por ano, com liderança de São Paulo, com 497 presos por 100 mil habitantes. A média no país é de 300 presos por 100 mil habitantes. O ritmo crescente indica que, em 2022, a população carcerária do Brasil será de cerca de um milhão de presos, para ser atendida pelas vagas existentes nos 1.424 unidades prisionais do país. As informações foram favorecidas pelo Ministro da Justiça, com levan-tamento feito até junho de 2014. A conclusão do Ministro é a de que a situação é considerada alarmante e está impondo a adoção de alternativas como cum-primento de pena em regime semiaberto, como as penas alternativas. O Mi-nistro da Justiça adverte sobre o risco da agravação da crise com a redução da maioridade penal, que implicaria no aumento de cerca de 40 mil jovens para as já lotadas unidades prisionais. O delinquente, o homicida, o ladrão são a parte enferma da sociedade. A marginalização, o isolamento e a punição é necessária e imperiosa. A controvérsia desta conveniência de política social estaria em saber se o encarceramento puro e simples é o fim buscado para solução do mal. Embora se saiba, de longa data, que o ócio, a opressão, o desencanto pelo futu-ro que se abate sobre o preso, mais embrutece, e cumprida a pena, a sociedade tem de volta um mal muito maior.

10. o remédio dA lABorterAPiA comPulsóriA, educAcionAl, ProFissionAl, trAnsFormAtivA. PenitenciAlismo

A demonstração deste quadro dantesco adverte-nos de que devemos subs-tituir o desejo de vingança pelo dever de tornar o presidiário em uma pessoa esclarecida e útil, para si mesma, e para a sociedade que ele prejudicou. E isto

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é possível mediante a laborterapia compulsória. Aquela educacional, profissio-nal, e transformativa de uma nova visão do mundo, da família, da sua comu-nidade. O Ministro da Justiça declarou, na Câmara dos Deputados que “nos-sas unidades prisionais são verdadeiras escolas do crime. Dentro delas atuam organizações que comandam a violência fora” (Revista Isto é de 24.06.2015). Existe a ciência do penitencialismo, consistente de um conjunto de princípios que regulam a execução da pena privativa da liberdade e sua aplicação a cer-tas espécies de sentenciados. Penitencialismo envolve também um conjunto de métodos e técnicas a serem observadas na direção e na administração dos novos estabelecimentos prisionais, especialmente direcionados à educação ou profissionalização do preso, visando à sua melhor reintegração na sociedade e à sua mais justa visão da vida familiar. Difere da penalogia, com função nor-mativa, inserida dentro do Código Penal, embora, às vezes, se funda, ou con-funda, com penitencialismo. Sabe-se que o tratamento dos criminosos altera-se quanto aos métodos conhecidos: vingança, tortura, pena de morte, trabalhos forçados, isolamento total, educação, reintegração social etc.

11. conselho nAcionAl de PolíticA criminAl e PenitenciáriA. diretrizes PArA Prevenção de crimes

O envolvimento organizado do preso com o trabalho obrigatório, é, à evi-dência, o caminho mais profícuo para si, para sua família, para o Estado que custeia as suas despesas. É também o melhor caminho para a recuperação do presidiário, seja quando ainda cumpre pena, seja quando depois de libertado. Quaisquer que sejam as espécies de regime penitenciário adotado – fechado, de segurança máxima, semiaberto, de segurança média, de segurança míni-ma, com atividades externas, com atividades externas supervisionadas, com ou sem vigilância e outras diversificações e experiências, há de ser imprescin-dível a exigência do trabalho disciplinado, com reconhecimento de se tratar de penalidade útil, digna do mesmo respeito dispensado a todos trabalhadores livres. O Ministério da Justiça mantém um Conselho Nacional de Política Cri-minal e Penitenciária (CNPCP). O órgão atua nas diretrizes para prevenção de crimes, Administração da Justiça Criminal e execução das penas e das medidas de segurança. Juristas pregam para tais entidades a ocupação laboral em áreas agrícolas e na pecuária, para produção de alimentos e frutas para consumo dos próprios detentos, escolas públicas, entidades de assistência, serviços públi-cos gratuitos. A remuneração de tais trabalhos seria destinada ao sustento das suas famílias, sempre prejudicadas pela sua prisão. Esta laborterapia poderia implicar diretamente na profissionalização do preso durante o cumprimento

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da pena. Tais benefícios poupam o preso dos efeitos degradantes das peniten-ciárias, diminuem o risco da reincidência no crime, aceleram o processo de reabilitação.

12. urge investir no APerFeiçoAmento do sistemA cArcerário Antes que ele sAiA do controle dA AutoridAde

O objetivo da prisão albergue inclui a preocupação de evitar a reincidência do preso, detido, às vezes, por delito irrelevante ou sem perigo. A a prisão não seletiva, o preso em convívio com delinquentes mais perigosos, pode levá-lo a voltar à liberdade como um indivíduo revoltado e propenso a reincidir ou praticar outros crimes mais graves. O processo de misturar todos presos, sem seleção, entre primários, individuais sem periculosidade, com todas as demais espécies de delinquentes é o equívoco que acarreta o elevado percentual de 24,4% de reincidentes, conforme pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a pedido do Conselho Nacional de Justiça (agosto/2015), assim considerados os reincidentes que voltam a ser condenados nos 5 anos após o cumprimento da pena. Educar o preso para não reincidir está no pro-grama de reformulação da execução penal. Pesquisas no Sistema Carcerário revelam que a população nos presídios de todo o país cresceu 83 vezes em 70 anos, com 607,7 mil, em 4º lugar, depois da Rússia, China e Estados Unidos, estes últimos com 2,2 milhões de presos. Investir na educação ou recuperação do povo faz parte de um investimento na segurança pública, quando combate a reincidência. Notícia, em agosto de 2015, fala de CPI do Sistema Carcerário, que teria aprovado vinte propostas legislativas para serem apreciadas pela Câ-mara e pelo Senado, contendo melhoria no Sistema Carcerário. Considerando que o Sistema Carcerário brasileiro é precário em todo o país, dentre as pro-postas estaria a que obriga a transferência de recursos do Fundo Penitenciário Nacional (Fumpen) para os Estados e para o Distrito Federal, para aplicar na melhoria nos presídios.

13. lABorterAPiA, o Perigo sociAl dA reincidênciA sistemáticA e A morAlizAção dAs PenAs criminAis

O alarme da mídia sobre violência urbana, que traumatiza a população, se relaciona ao elevado número de assaltos e violências cometidos, em vários locais e formas. Essa reação emocional parte, muitas vezes, da falsa análise das suas fontes de informações. Os assaltantes, quase sempre, possuem ex-tensa ficha criminal, pela prática de diversificados atos criminais. A comoção

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popular, porém, tem a falsa impressão de que seriam dezenas de delinquentes diferentes. E fica instalada a ilusão e consequente pânico, como se existissem ladrões em todas as esquinas. A reincidência no crime é a geratriz do pavor, que atormenta o sentimento de segurança popular. Os registros forenses re-velam a existência de vários milhares de mandados de prisões expedidos no Judiciário e não cumpridos, em todo o país, por falta de espaço nas prisões. Se o criminoso não é punido, condenado ou não, o povo corre o risco de ser submetido ao drama da insegurança civil e à danosa sensação de desamparo social e da impunidade do crime. A autoridade cumpre o mandado de prisão, o preso fica detido por curtíssimo prazo nos precários xilindrós policiais e, de-pois, devolvido à sociedade, está já descrente da severidade das condenações. Se é pequeno delinquente, por curto prazo, ainda assim recebe, na prisão, no-vas lições dos delinquentes mais experimentados e endurecidos – aqueles que atuam como estimulantes do crime e do aperfeiçoamento de como cometê-los com mais “eficácia”. Mesmo depois de libertado, embora mais adulto, sofre o peso da desmoralização, do desnível de seu estado social perante sua comuni-dade e, ao voltar ao trabalho, sente o caminho obstruído pelas dificuldades do reajustamento. As penas substitutivas ou alternativas da prestação de serviços à comunidade e de profissionalização confirmam que a laborterapia pode vir a constituir a moralização do Sistema Penal brasileiro.

14. lABorterAPiA: FAtor ético judiciário e sociAl contrA A reincidênciA

A prisão-albergue ou regime semiaberto surgiu como fator de despenaliza-ção. Esta medida busca também atender à grave crise decorrente da superlo-tação carcerária e da ausência do Poder Público. A prisão-albergue foi adotada primeiramente no Estado de São Paulo, em caráter experimental, mediante provimentos do Conselho Superior da Magistratura. O objetivo invocado foi “proporcionar aos reclusos de cadeias públicas, ou estabelecimentos similares, o exercício de uma atividade profissional remunerada, lícita e externa ao presí-dio, sem qualquer custódia policial”. Miguel Reali Junior destacou que a:

(...) prisão-albergue, além de afastar os malefícios do encarceramento atua rigorosamente no sentido de promover a efetiva reintegração social do con-denando, criando em seu ânimo senso de responsabilidade e consciência do erro cometido (Ciência penal, VI, p. 113).

Foi delegada aos Estados competência subjetiva para estabelecer os requi-sitos objetivos e subjetivos que os condenados deverão preencher para obter a prisão-albergue. Tais medidas se interligam com o intuito da reabilitação como

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providência de política penal e de política penitenciária. Dispõe sobre o as-sunto os arts. 93 a 95 do Código Penal, combinados com os arts. 743 a 750 do Código de Processo Penal. A reincidência é um dos graves efeitos das prisões com o objetivo predominante de castigar, sem outro o componente corretivo--educacional. Só o fato de evitar a reincidência, em si e por si, já é um fator va-lorizante ético-jurídico e social do empenho em laborterapia. O elevado índice das reincidências como um mal oculto, explica este argumento.

15. lei de execução PenAl. AsPectos PedAgógicos e correcionAis

A Lei 7.210, de 11 de julho de 1984 – Lei de Execução Penal – tem por ob-jetivo efetivar, em todo o Território Nacional, inclusive pelos Juízos de Execu-ções dos Estados (arts. 148 a 153; Súmula 192-STJ), as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração so-cial do condenado e do internado. Tais princípios são aplicados sem distinção de natureza racial, social, religiosa ou política. Busca o exercício, pelo Estado, de uma benéfica influência pedagógica e correcional sobre o condenado. A recente Lei 13.167 – 6 de outubro de 2015, altera o disposto no art. 84 da Lei de Execução Penal, para estabelecer critérios para a separação de presos nos estabelecimentos penais. As alterações foram feitas nos §§ 1º, 3º e 4º do art. 84. Os novos critérios são de difícil aplicação, envolvendo presos provisórios, com divisão entre acusados de (I) crimes hediondos ou equiparados; (II) de crimes com violência e grave ameaça e de (III) crimes ou contravenções, diversos dos antes mencionados. Critérios assemelhados aos mencionados serão aplicados aos presos condenados. Por outro lado, ficou definido que “o preso que tiver sua inteligência física, moral ou psicológica ameaçada pela convivência com os demais presos ficará segregado em local próprio”.

16. PrestAção de serviços à comunidAde ou A entidAdes PúBlicAs

A análise crítica da laborterapia se relaciona também com o tema da “pres-tação de serviços à comunidade ou a entidades públicas”, prevista no art. 46 do Código Penal. A lei que dispõe “é aplicável às condenações superiores seis meses de privação da liberdade”, “consiste na atribuição de tarefas gratuitas ao condenado”, e “dar-se-á em entidades assistenciais, hospitais, escolas, or-fanatos e outros estabelecimentos congêneres, em programas comunitários ou estatais”. Adverte a lei que convém observar “as aptidões do condenado”. Esta “prestação social alternativa” está facultada pela Constituição (art. 5º, XLVI, d), ao dispor que “a lei regulará a individualização da pena”, assim como no

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art. 78, § 1º, do CP, ao prever que “no primeiro ano do prazo, deverá o conde-nado prestar serviços à comunidade”. A Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84) regula aspectos próprios do tema nos arts. 148 a 150, para ajustamentos ne-cessários à melhor eficiência dos serviços comunitários, e atinja os objetivos de reabilitação. A lei de proteção do consumidor dispõe, por sua vez, no título “das infrações penais”, que “além das penas privativas de liberdade e de multa, podem ser impostas, cumulativa ou alternadamente”, “a prestação de serviços à comunidade” (art. 78, III). É inegável a salutar influência pedagógica desta faculdade legal e do seu efeito socialmente construtivo. Essa modalidade de pena muito depende do juiz da execução penal, que designará local e forma do trabalho e cuja determinação independe da concordância do condenado. Ocorre, na prática, natural relutância das empresas privadas em aceitar ser-viços de condenados, razão por que tem sido recomendado, como ocorre em outros países, que a prestação dos serviços se dê em empresas estatais ou enti-dades coletivas públicas de trabalho.

17. PrestAção de serviços à comunidAde. cAminho recomendAdo PArA ressociAlizAr

A prestação de serviços à comunidade constitui, na atual crise carcerária, alternativa que deve ser repensada e, quanto possível, implantada. Delitos praticados sem periculosidade, como os de trânsito, passionais, em tumul-tos públicos, tráfico de drogas, devem ser “punidos” com serviços prestados à comunidade, mediante hábil avaliação do juiz competente, ajustado o grau de culpabilidade. A reprovação penal observará justa proporcionalidade do bem jurídico atingido. O referencial para fixação da penalidade respeitará o princípio da legalidade. O cumprimento da pena carcerária hoje causa terrível estigma em certos condenados e a condenação se converte numa violência desumana. A prestação de serviços à comunidade deve ser encarada como um progresso da civilização, em prol do respeito à dignidade humana. Prestação de serviços à comunidade constitui uma solução histórica, que interessa à eco-nomia do Estado; à paz social da comunidade, poupa o condenado do trauma-tizante estigma na passagem pela promiscuidade do cárcere, melhor reabilita o prestador dos serviços e, provavelmente, constitui um alívio aos familiares do condenado. A natural tendência da sociedade civil sobre este tema é a apro-vação dos serviços à comunidade e o condenado tem nesta alternativa maior predisposição em não reincidir no crime. Muitas instigações para reincidências constituem-se em vingança do condenado contra a sociedade, por ter sido jo-gado entre os presos comuns, em algumas prisões que equivalem às masmorras

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medievais. Embora a determinação da condenação a serviços à comunidade dispense a concordância do condenado, admite-se que a concordância, em ca-sos especiais, traria para os serviços prestados à comunidade resultados de maior benefício para o preso e para a sociedade.

18. A lABorterAPiA exige trABAlho esPeciAlizAdo, Persistente, sem imProvisAção

A correta implantação da laborterapia possui procedimentos que exigem trabalho especializado de equipes técnicas, com planejamento junto aos locais em que o trabalho poderá ser prestado e a natureza e grau da influência que o trabalho exercerá sobre o prestador dos serviços. Não é um programa entregue à improvisação, porque envolve pessoas a quem a Justiça aplicou pena crimi-nal, a ser cumprida com rigorosa vigilância para garantia da sociedade. A linha ascendente do aumento de presos encarcerados, que hoje é alarmante, tornar--se-á brevemente dramática, e converterá as prisões em calabouços dantescos de tortura, promiscuidade e desumanidade, na direção oposta da desejada res-socialização. O ideal seria que o Estado, ao invés de construir mais presídios, construísse estabelecimentos produtivos, ocupados por presidiários. A crise carcerária apresenta a taxa inquietadora de que 70% dos presos libertados re-tornam à prisão por reincidência no crime. O fato demonstra que a estrutura penal no Brasil está falha, porque a prevenção, a punição e reeducação do pre-sidiário estão devolvendo à sociedade um delinquente pior do que quando fora detido. Equivale a dizer que quem antes cometera mero desacato à sociedade fez-se reincidente pelo ódio ou vingança, alimentados no cárcere. A crescente violência urbana é a prova disso. Esta agressividade delituosa, com homicídios gratuitos, tende a assumir grau de barbárie com o ingrediente adicionado pelo consumo de drogas ilícitas, do favelamento urbano e da pobreza endêmica, instigada pela impunidade em razão dos presídios lotados. A alternativa prio-ritária é prender o condenado e fazer com que ele retorne à sociedade como um cidadão ressocializado, capaz de ser útil, e não um indivíduo pior e desa-justado.

19. muitos Agentes são resPonsáveis, cAdA um A seu modo, PelA crise cArceráriA no BrAsil

O Sistema Judiciário Penal brasileiro não está estruturado para a labortera-pia e se limita às detenções. Detentos permanecem comumente presos depois de cumpridas as penas por ineficiência do controle dos servidores responsá-

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veis. As prisões poderiam ter a sua população reduzida se o Judiciário adotasse novas alternativas de punição, diferentes da detenção. Setenta por cento das mulheres presas tiveram origem do tráfico de drogas. E atrás dessas detenções está o drama silencioso das suas famílias e filhos, senão também a miséria ma-terial e moral, em suas varias facetas. O ideal seria que o denominado Agente Penitenciário, visto como um policial instruído para manter a ordem ou re-primir a desordem interna, fosse também instruído para se tornar um agente da ressocialização dos detentos. Melhor o governo investir nesta alternativa humanizadora pela ressoacialização, do que investir em novos presídios ou de-pósitos de marginais. É antiga a teoria de que a construção de escolas seria uma forma de esvaziar os presídios. O objetivo da Laborterapia é ressocializar, pro-fissionalizar, aliviar a sociedade do temor da insegurança social. Não atingidos tais objetivos, o cárcere se converte em mero novo estágio na escola do crime. O investimento do Estado em novos presídios poderá tornar-se inútil, e a so-ciedade continua a receber os presos egressos, com novas tendências delituo-sas, mais perigosas e mais aperfeiçoadas. A maioria dos delinquentes detidos apresenta, com frequência, longa ficha de passagens policiais. Essa temerária realidade revela que a reincidência penal no Brasil decorre do fracasso estatal na recuperação de presidiários. Para diminuir a eclosão do mal da reincidência muitos deveriam assumir responsabilidades, entre eles, de algum modo, dele-gados, agentes penitenciários e serviços sociais do Estado.

20. A Prisão deve mudAr como o Progresso mudou As modAlidAdes criminosAs

As estatísticas indicam que, em todos os Estados do Brasil, o número de presos é muito superior ao número de vagas. E nesta grave distorção não es-tão incluídos os menores de 18 anos, detidos em instituições socioeducativas, considerados como “internados”. O mundo mudou, industrial e tecnologica-mente, e por isso mudou a natureza operacional dos crimes. Apesar disso, as prisões continuam cárceres medievais, transformadas em redutos do bandi-tismo, vigiadas por agentes ainda instruídos para a truculência ou para en-frentamento de agressões. O progresso repercutiu nas modalidades “técnicas” do crime. O elemento corriqueiro do crime patrimonial transformou-se em crime organizado, nacional e internacional. A eficiência do crime conta com o emprego de grande poder de fogo e elevados recursos financeiros, que lhes permitem o envolvimento de pessoas influentes ou infiltradas em órgãos públi-cos. A Laborterapia terá no Brasil especial relevância, porque predomina entre os detentos indivíduos sem escolaridade, sem acesso ao trabalho, em estado

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de desemparo social e econômico, com depressão da autoestima, familiarmen-te rejeitados e sem referências positivas na construção de suas identidades. A ciência criminal ou a penalogia não podem mais manter os cárceres como campo de concentração, espécie de depósito de dejetos sociais, sem qualquer orientação pedagógica, educacional, ressocializante e a cada dia mais onerosos para o Estado. A evolução crescente da criminalidade, em todos os segmentos, muito se distancia das antigas medidas mera e precariamente preventivas, que ainda subsistem e sem eficácia. A genealogia da pena privativa da liberdade indica que o afastamento do condenado do convívio social possuía o intuito de privá-lo do conforto da liberdade e o fizesse refletir, na solidão, sobre o gesto criminoso cometido. Essa visão já nos parece equivocada. A prisão deve ter como prioridade persuadir o detento de uma nova realidade de cidadão digno a viver em sociedade.

21. reABilitAção do Presidiário, Previsão legAl no cPP e no cPO Código de Processo Penal dispõe no art. 743 sobre o processo de reabili-

tação do presidiário. Trata-se de procedimento que deve ser requerido ao juiz da condenação depois de cumprida a pena de quatro anos, conforme se trate de condenado primário, ou oito anos, no caso de reincidente, contados em seguida ao término da pena principal ou medida de segurança de detentiva. O requerimento ao juiz deverá atender às condições estipuladas no art. 744. A reabilitação tem por objetivo, depois de cumprida a pena ou na extinção, suspender alguns efeitos penais decorrentes da condenação. Trata-se de medi-da de política criminal, com restauração da dignidade social, que foi atingida pela condição assumida de presidiário. Reabilitação é tratada no art. 119 do CP, complementado pelo art. 120, que dispõe sobre o “Perdão judicial”.

22. Adolescentes inFrAtores e o momento oPortuno dA lABorterAPiA

No Estado de São Paulo existe a Fundação Casa, antiga Febem, para inter-nação de menores e adolescentes infratores. Esse órgão está, também, passan-do pela crise da superlotação e falta de funcionários. O índice de fugas cresce a cada ano, com recorde atingido no meio do ano de 2015, com 487 fugas, nú-mero superior às fugas anuais dos anos anteriores. A exceção foi a rebelião, em 2005, quando ocorreu 775 fugas. As fugas utilizam processos violentos, como reféns funcionários, arrombamentos, barcos, incêndios. Não está excluída a hipótese, admitida pela Corregedoria Geral, de facilitação ilícita de funcioná-rios insatisfeitos. Esses alegam incapacidade funcional de conter a violência

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interna, em face do número insuficiente de funcionários.O Ministério Público

encontrou superlotação em 111 unidades da Fundação Casa entre as 119 exis-

tentes. Consta que a Fundação abriga 10.000 infratores, número que dobrou

na última década. A direção do órgão acusa a retirada de vigilância externa,

antes existente, que estimulou as fugas. Os adolescentes infratores são identifi-

cados, em geral, como filhos da pobreza, do abandono familiar, do desencanto

com as perspectivas do futuro pessoal e familiar. Esse seria o material humano

mais carente dos benefícios que poderiam ser oferecidos com a laborterapia,

aliada à pregação de senso de disciplina, apoio moral e rigorosa catequese so-

bre as vantagens do bom comportamento social.

23. A redução dA mAioridAde PenAl e A urgênciA dA lABorterAPiA

A laborterapia se vincula e se envolve, na sua aplicação, com o complexo

e extenso debate, público e legislativo, sobre a redução da maioridade penal.

Se aprovada no legislativo a redução da maioridade, a adoção da laborterapia

haveria de também estender-se hoje aos infratores de 16 anos. Sobre o tema da

redução da maioridade penal, o CIEE, de São Paulo, realizou um “Seminário

Educação: situação atual e futuro – redução da maioridade penal”. Ficou en-

tendido, como direção recomendada, que é preciso investir prioritariamente

na educação do menor infrator. Bem salientou o presidente do Conselho de

Administração do CIEE, Luiz Gonzaga Bertelli, “o aumento exponencial des-

ses criminosos nas últimas décadas, somado à reincidência, demonstra que

nossas fórmulas não deram certo, seja porque são más, seja porque não as apli-

camos adequadamente”. O Secretário de Justiça de São Paulo enfatizou que o

consumo de droga está na raiz da criminalidade e da violência no país: “80%

dos crimes estão relacionados às drogas, elas são o inferno do nosso século”.

“A Fundação Casa, ligada à Secretaria da Justiça Estadual gasta, com cada in-

terno, nove mil reais por mês”. Tornar mais rigorosa a punição de adolescentes

infratores é propósito que consta de cerca de 40 projetos na Câmara Federal

e no Senado. Nenhum deles foca a laborterapia, que educa e patrimonializa

um valioso bem para toda a vida, com menos custo para o Poder Público. Pa-

dre Antônio Vieira pregava, há muitos séculos, que a educação é como ouro,

porque nunca perde valor. O ídolo Nelson Mandela dizia que “ninguém nasce

odiando outra pessoa. As pessoas aprendem a odiar. Mas se aprendem a odiar,

podem aprender a amar”.

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24. redução dA mAioridAde e A dúvidA sociAl dA suA eFicáciA

O Código Civil de 1916 previa a incapacidade absoluta dos menores de dezesseis anos, repetida a regra no Código Civil de 2002. Ora, a personalidade, a formação comportamental e a capacidade de discernimento de um jovem, até os 16 anos, foi há um século conhecida, antes sendo inferior do que hoje lhe é oferecido ou disponibilizado. Atualmente aos 16 anos o jovem já tem do mundo e dos seus problemas uma visão adulta e madura, capaz de discernir o bem e o mal no seu comportamento. O aumento constatado da longevidade média das pessoas, próximo a 80 anos, graças ao progresso da proteção da saúde, deve, também, provocar a redução da maioridade. O grande jurista e presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, José Roberto Nalini, manifes-tou-se à Folha de S. Paulo (12.07.2015) contrário à redução da maioridade, porque “a juventude não vai se atemorizar com ameaças legais”. Avalia que a vontade popular a favor da redução é uma “forma de responder à sensação de impunidade”, porque “nem tudo que o povo quer é o mais adequado, correto e ético”. Ressalta o ilustre jurista que é viável “ampliar o prazo de internação compulsória”, observada a natureza do crime. Conclui o jurista que “o jovem preso precisaria ter uma formação intensificada, vinculada a um efetivo reapro-veitamento desse indivíduo para ser útil à sociedade”.

25. intenções governAmentAis soBre AssistênciA educAcionAl nAs PenitenciáriAs

A população carcerária vem aumentando de jovens entre 18 e 24 anos, den-tre os quais elevado número de mulheres. A Lei 7.210-84 das execuções penais teve a inclusão, pela Lei 13.163-2015, de dispositivo sobre a assistência edu-cacional nas penitenciárias (arts. 17 a 21-A). O texto legal introduz o Ensino médio, regular e supletivo nos presídios. O ensino deverá integrar o sistema estadual e municipal de educação e terá, em conjunto com a União, os recursos destinados à educação, além daqueles do sistema estadual de justiça ou admi-nistração penitenciária. Há a previsão da adoção do sistema do ensino a distân-cia e de outras tecnologias aplicadas de ensino. O Projeto de Lei 25/1999, da autoria do Deputado Paulo Rocha, foi origem da nova Lei. O fundamento é o aproveitamento do período ocioso de reclusão para a habilitação do preso para o exercício profissional, visando à melhor ressocialização e sustento da sua família e evitar a tentação da reincidência. O autor do projeto teve a esperança de sucesso e fez constar das suas justificativas: “Aí sim, o Sistema Penitenciário estará de fato atingindo os objetivos humanos e sociais que dão sentido a sua existência”. A nova Lei também alterou o art. 84 da Lei das Execuções Penais,

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no sentido de estabelecer novos critérios na divisão ou separação de presos nos estabelecimentos prisionais. O objetivo é aperfeiçoar o processo de res-socialização individual do preso. A divisão dos presos observará a espécie de crime cometido, ou se a prisão é provisória e se o crime tem gravidade, ou se a condenação é definitiva. Até aqui a lei é ótima, necessária e oportuna. Consi-derando, porém, que o objetivo do projeto demorou 15 anos para ser acatado pela legislação, a melancólica indagação continua: de onde virão os recursos que nunca existiram?

26. conselho nAcionAl de justiçA e A decisão do suPremo triBunAl

A Lei 12.106-2009 criou, no âmbito do Conselho Nacional de Justiça, o Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas – o DMF. Os objetivos do novo órgão são amplos e genéricos, entre si correlatos e voltados (art. 1º, § 1º, IV) para “fomentar a implementação de medidas protetivas e de projetos de capacitação profissional e reinserção social do interno e do egresso do sistema carcerário”, assim como (art. 1º, § 1º, VIII), “coordenar a instalação de uni-dades de assistência jurídica voluntária no âmbito do sistema carcerário e do sistema de execução de medidas socioeducativas”. E para cumprimento de tais objetivos foi criado um órgão próprio no Conselho Nacional de Justiça. Fato inédito ocorreu no julgamento pelo STF do Recurso Extraordinário 592.581, em 13 de agosto de 2015, pelo qual determinou “que promovesse [o Governo do Estado] uma reforma geral no Albergue Estadual de Uruguaiana”, antes negado pelas instâncias inferiores. O provimento foi dado pelo STF ao recurso do Ministério Público, então recorrente, sob o fundamento alegado de “que os direitos fundamentais têm aplicabilidade imediata, e que questões de ordem orçamentárias não podem impedir a implementação de políticas públicas que visem garanti-los”. Argumentou mais o MP que:

(...) a proteção e a promoção da dignidade do ser humano norteiam todo ordenamento constitucional, e o Estado tem obrigação de conferir eficácia e efetividade ao art. 5º, inc. XLIX, da Constituição Federal, para dar condições minimamente dignas a quem se encontra privado da liberdade.

27. os Primórdios dA lABorterAPiA e o Progresso dA suA APlicAção

As preocupações na introdução, no Brasil, da laborterapia na execução das penas criminais, passou a existir a partir da Lei 6.416-1977, que alterou o art.

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698 do Código de Processo Penal. Com isto o sursis passou a ter, embora pre-cariamente, como uma das condições, a prestação de serviços à comunidade. A consolidação desses propósitos se deu a partir das Leis 7.209 e 7.210, quando a prestação de serviço à comunidade adquiriu condição de sursis, do livramento condicional e do regime aberto. O Juiz de Direito Gilberto Ferreira, em seu artigo na RT 647/255, resume os atributos e características da prestação de serviços à comunidade como pena alternativa:

1) – é dotada de caráter retributivo; 2) – dotada de caráter intimidativo, geral e especial; 3) – é ressocializante; 4) – é moralizadora do sursis, da sus-pensão condicional e do próprio regime aberto; 5) – contribui para realiza-ção de inúmeras obras sociais, prestando relevantes serviços à coletividade; e 6) – não gera desemprego, nem concorre com qualquer outro tipo de mão de obra renumerado.

E transcreve o referido autor trecho de Bernard Leroy e Pierre Kawer (AJuris 1985), em que:

(...) a participação em um trabalho em benefício da comunidade é um fator de integração social. A pessoa que o executa pode ter sensação de participar de uma tarefa construtiva e útil, e pode ver diretamente o resultado de sua atuação. Finalmente – concluem – para os acusados que conhecem uma lon-ga série de reveses, esta pode ser a primeira ocasião em que lhes é oferecida a oportunidade de uma ação positiva.

Enquanto o delinquente contumaz não puder conhecer, analisar ou avaliar as vantagens de uma melhor ou nova vida mais decente e um futuro mais promissor, ele não poderá ter consciência ou dimensão da inconveniência dos erros cometidos.

28. A lABorterAPiA, emBorA A suA comPlexidAde, é o cAminho mAis curto PArA deBAter o mAl

Laborterapia é uma missão muito difícil para a Administração Pública. É dispendiosa e de custo imprevisível em termos orçamentários. Os especialistas colocam a existência do excesso de presos como um dos obstáculos difíceis de controlar ou superar. As empresas capazes de contribuir para a laborterapia temem se envolver com esta mão de obra imprevisível e de origem suspeitosa. A mão de obra pedagógica para cumprimento de projeto de ressocialização é escassa e pouco simpática à natureza da atividade exigível. Os baixos níveis da escolaridade dos detentos tornam o ensino educativo mais penoso para os res-

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ponsáveis. Os efeitos práticos e ilustrativos do aprendizado são baixos, porque os trabalhos exercidos não são profissionalizantes, o que torna mais dificultoso ao egresso ajusta-se socialmente depois de cumprida a pena. O investimento na educação e ressocialização do detento nos leva à restrita e incompleta ideia de que os benefícios decorrentes da laborterapia se destinam somente à pessoa do detento. A realidade é mais ampla, porque a reabilitação social e profis-sional do detento tem notável significado para sua família e seu futuro. É a exclusão da sociedade de um delinquente, com risco de tornar-se reincidente, mormente se dependente de drogas, talvez mais perigoso, perturbador, cor-ruptor da sociedade e da sua segurança. O bom caminho nesta rota tortuosa da delinquência pode estar na laborterapia programada. Ao egresso, como ocorre com frequência, que faltar opção de sobrevivência ou instrumento de reinte-gração social, terá a volta ao crime como reação irresistível ou será vítima fácil do corruptor. A recrudescência da violência urbana, a lotação desnaturada dos presídios, o temor de que está tomada a sociedade com o desrespeito à vida, as incapacidades dos órgãos públicos de deter o avanço da delinquência, levam--nos a pensar na alternativa da laborterapia como o caminho mais curto, justo e esperançoso.

29. regulAmento Penitenciário FederAl e suAs Previsões Possíveis

Existe um Regulamento Penitenciário Federal (Decreto 6.049/2007) que dispõe sobre o Sistema Penitenciário Federal, constituído pelos estabelecimen-tos penais federais, subordinados ao Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça. Esse regulamento já prevê (art. 6º, VI) como caracterís-tica dos estabelecimentos penais a “existência de locais de trabalho, de ativi-dades socioeducativas e culturais, de esporte, de prática religiosa e de visitas, dentro das possibilidades do estabelecimento penal”. Há previsão (art. 16) de que “para orientar a individualização da execução penal, os condenados serão classificados segundo os seus antecedentes e personalidade”. Destaca o art. 20 que “a assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social, psicoló-gica e religiosa prestada ao preso e ao egresso obedecerá aos procedimentos consagrados pela legislação vigente, observadas as disposições complementa-res deste Regulamento”. O art. 25 prevê que “a assistência educacional com-preenderá a instrução escolar, ensino básico e fundamental, profissionalizante e desenvolvimento sociocultural”. Há preocupação com a nova realidade que o preso enfrentará após o cumprimento da pena ou libertado. Para tanto, o art. 27 dispõe que “a assistência ao egresso consiste na orientação e apoio para reintegrá-lo à vida em liberdade”. Para tanto, o art. 37 dispõe que “constituem

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direitos básicos e comuns dos presos condenados ou provisórios”, numerosos itens, como “II – atribuição de trabalho e sua remuneração”; “V – proporcio-nalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação”; “VI – exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desporti-vas anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena”. Finalmente, o art. 98, pelo qual “todo preso, salvo as exceções legais, deverá submeter-se ao trabalho, respeitadas suas condições individuais, habilidades e restrições de ordem de segurança e disciplina”, e (§ 2º) “terá caráter remuneratório e labor-terápico, sendo desenvolvido na própria cela ou em local adequado”.

30. ideAis inAtingidos do “regulAmento Penitenciário nAcionAl”No “Regulamento Penitenciário Nacional” (Dec. 6.049-07) citado no item

anterior o art. 23 faz previsão de que aos presos existirá uma “assistência psi-quiátrica e psicológica [que] será prestada por profissionais da área, por in-termédio de programas envolvendo o preso e seus familiares e a instituição, no âmbito dos processos de ressocialização e reintegração social”. E também que “a assistência educacional compreenderá a instrução escolar, ensino básico e fundamental, profissionalização e desenvolvimento sociocultural” (art. 25). Entre os direitos básicos e comuns dos presos está a “atribuição de trabalho e sua remuneração” (art. 37, II), assim como o dever de “trabalhar no decor-rer de sua pena” (art. 38, XI). “Todo preso, salvo as exceções legais, deverá submeter-se ao trabalho, respeitadas suas condições individuais, habilidades e restrições de ordem de segurança e disciplina” (art. 98). Esse artigo é com-plementado por três parágrafos que dispõem sobre aspectos pertinentes: “§ 1º Será obrigatória a implantação de rotinas de trabalho aos presos em regime disciplinar diferenciado, desde que não comprometa a ordem e a disciplina do estabelecimento penal federal”; “§ 2º O trabalho aos presos em regime discipli-nar diferenciado terá caráter remuneratório e laborterápico, sendo desenvol-vido na própria cela ou em local adequado, desde que não haja contato com outros presos”; “§ 3º O desenvolvimento do trabalho não poderá comprometer os procedimentos de revista e vigilância [...]”. Conclui-se, porém, que a legis-lação faz previsões promissoras em prol dos presidiários, mas que não têm sido implementadas por desatenção e falta de recursos.

31. PrestAção de serviços à comunidAde. Art. 46 do código PenAl

O art. 46 do Código Penal dispõe sobre prestação de serviços à comunidade, para tarefas conforme as aptidões do condenado. As tarefas serão gratuitas, jun-

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to a entidades assistenciais, hospitais, escolas, orfanatos e outros estabelecimen-tos congêneres, em programas comunitários ou estaduais. O trabalho será de oito horas semanais, preferencialmente aos sábados, domingos e feriados. Tais serviços constituem fator do evidente interesse social, assim como valem como indireta reparação dos danos causados à sociedade pelos ilícitos cometidos. O condenado é intimado pelo juízo onde deverá cumprir a pena, dando-lhe ciên-cia das obrigações e condições que deverá observar, na forma da lei, com desig-nação da entidade ou programa comunitário ou estatal, devidamente creden-ciado ou convencionado. O prazo do serviço a cumprir principiará a contar do primeiro dia de comparecimento. O estabelecimento obriga-se a enviar ao juízo mensalmente relatório circunstanciado sobre o comportamento do condenado.

32. violênciA domésticA. ProgrAmA de recuPerAção e educAção

Durante a prestação dos serviços comunitários poderá o condenado parti-cipar de cursos e palestras ou atividades educativas. A lei prevê que, se o con-denado tiver cometido violência doméstica contra a mulher, o agressor poderá ser obrigado a comparecer a programas de recuperação e reeducação. O juízo deverá ser informado pelo responsável pelos serviços comunitários, a qualquer tempo, sobre as ausências ou faltas disciplinares do condenado. O condenado é obrigado a cumprir, independente da sua anuência, sob a determinação do juízo, a prestação dos serviços comunitários, sob pena de a medida converter--se em sanção privativa de liberdade. Há crítica endereçada contra tais serviços comunitários, sob o argumento de que estaria a caracterizar a imposição à prestação de trabalho forçado, dos tempos da escravidão. No Brasil as entida-des privadas relutam em aceitar serviços de condenados, ainda que gratuitos, mormente se inabilitados para o trabalho designado. Admite-se que tem sido mais eficaz quando prestados em empresas estatais ou entidades coletivas de trabalho. Predomina, no Brasil, pessoas condenadas de nível social ou cultural de baixa ou mediana instrução, ou sem habilitação profissional. Tais pessoas poderiam ser enviadas para prestação de serviços que lhes sejam compatíveis com a respectiva escolaridade, para serviços de limpeza pública, manutenção de parques e estradas, exercíveis nos fins de semana ou feriados, para que não se penalize também com a falta de recursos básicos de sobrevivência.

33. “FundAção de AmPAro Ao Preso”: cluBe de leiturA nAs Prisões

Parcela ponderável dos que lotam os cárceres são presos passíveis de se-rem influenciados no sentido da recuperação e ressocialização, mediante uma

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persistente doutrinação sobre as vantagens de abandonarem ou resistirem à sedução do crime. Os presídios deveriam obrigar a presença desses presidiários selecionados e recuperáveis em auditórios para ouvirem palestras ou séries de temas pedagógicos, direcionados a uma nova visão da vida, da sociedade e dos valores do trabalho e dos seus efeitos benfazejos. Existem projetos que criam clubes da leitura em prisões, com o objetivo de também contribuir para a educação e recuperação do detento. Em 2011 a ideia foi desenvolvida pela Fundap (Fundação de Amparo ao Preso), ligada à Secretária de Administra-ção Penitenciária de São Paulo. Após a leitura, o detento se obriga a elaborar uma resenha, que poderá ser considerada como fator para a redução da pena. O assunto foi levado à discussão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por-que não há previsão legal para a remição do preso. É corrente a afirmação, entre os estudiosos, que a prisão sem doutrinação educativa ressocializante, como mero confinamento punitivo, nada muda no preso, e mantém o risco de aumentar-lhe a indignação contra a sociedade, e que se efetiva, depois, na reincidência delituosa. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) recomendou, em 2013, que a leitura de obras “literárias, clássicas, científicas e filosóficas” fosse incentivada nas prisões. Conta que em quatro presídios federais, o pro-jeto existe desde 2009 e está se desenvolvendo em 16 Estados. A crítica feita à situação atual, sobre a maioria das prisões, é correta: “Presos entram e saem analfabetos”. A Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo diz que a leitura “tem grande capacidade de formação e transformação”. Notícia na Folha de S. Paulo, 02.09.2015, informa que colégios, em Campo Grande, foram reforma-dos “com mão de obra e dinheiro de presos”, no cumprimento de “parte de um projeto regulamentado no ano passado pelo Juiz Albino Coimbra Neto”, isto porque “pelo trabalho, o detento ganha redução de pena”. A Lei 7.210-84, de Execução Penal, traz várias disposições relativas ao “trabalho do condenado, como dever social e condição de dignidade humana, terá finalidade educativa e produtiva” (art. 28). O art. 36 dispõe sobre o trabalho externo, “somente em serviço ou obras públicas realizadas por órgãos da administração direta ou indireta, ou entidades privadas, desde que tomadas as cautelas contra a fuga e em favor da disciplina”. Tal dificuldade deve respeito às limitações da Súmula 40 do STJ.

34. Prisão-AlBergue. AceitAção do condenAdo não Perigoso A um regime de resPonsABilidAde

A preocupação das posições doutrinárias sobre prisão-albergue é a recupe-ração do preso. Miguel Reale Junior resumiu os seus aspectos positivos (Ciên-

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cia penal, v. 1, p. 113/114) ao escrever que “a prisão-albergue, além de afastar os malefícios do encarceramento, atua rigorosamente no sentido de promover a efetiva reintegração social do condenado, criando em seu ânimo senso de responsabilidade e consciência do erro praticado”. O ensejo de o preso não perder os laços profissionais e familiares pode ser considerado fator educador e de ressocialização. É um regime de meia liberdade semelhante ao existente nas colônias penais e agrícolas. No Estado de São Paulo veio sendo aplicado com observância das decisões previstas nos Provimentos XXV-66, LVII-70, XCII-75, conforme a extensão da pena privativa de liberdade e outros requisitos. A Lei 6.416 acolheu a prisão-albergue no Código Penal e o Estado de São Paulo foi pioneiro em legislar, (Lei Estadual 1.819 – 30.10.1978) para adaptação do re-gime de prisão-albergue à nova sistemática penal, com disciplinação dos casos possíveis de concessão e aplicação do benefício. O regime gera justa preocupa-ção por suscitar o risco de confundir-se regime aberto com regime de liberda-de, expondo em demasia a sociedade aos males da delinquência reincidente. A referida Lei conceitua (art. 54): “A prisão-albergue, espécie de regime aberto, tem por fundamento a aceitação, pelo condenado não perigoso, de um sistema de disciplina fundado no sentimento de responsabilidade pessoal”.

35. o suPremo triBunAl FederAl em FAce dA crise cArceráriA

O julgamento pelo STF da ADPF 347, da relatoria do Ministro Marco Au-rélio, teve a adesão dos Ministros Ricardo Lewandowski, Edson Fachin, Luis Roberto Barroso e Teori Zavascki. O Min. Fachin quer que o Conselho Na-cional de Justiça (CNJ) coordene mutirões carcerários, “a fim de viabilizar a revisão de todos os processos de execução penal em curso no país que en-volvam a aplicação de pena privativa”. Barroso insistiu em “que também os Tribunais de Justiça realizem mutirões carcerários”; e “que o Governo Federal encaminhe ao relator, no prazo de um ano, diagnóstico da situação em termos quantitativos e pecuniários, para que a Corte tenha elementos adequados para julgar o mérito da ação”. O Min. Zavascki também concedeu o pedido quan-to ao Fundo Penitenciário, a fim de que não ocorra contingenciamento pelo Poder Executivo. “Aparentemente, o problema está na falta de projetos, e não na falta de dinheiro, mas essa tese eu já ouvi em outras oportunidades, e con-cordo que seja uma medida adequada”. Nessa discussão há de entrar o tema sobre a aplicação do princípio da insignificância penal. Amplamente debatida na doutrina, o assunto ficou destacado, pelo STF, que fixou os critérios vetores para a aplicação do princípio da insignificância na avaliação da pena: a mínima ofensividade da conduta do agente; nenhuma periculosidade social da ação;

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o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; inexpressividade da lesão jurídica provocada. Não há dúvida de que, na complexidade do proble-ma carcerário brasileiro, a análise das prisões, em face desse princípio, vai se deparar com um “balaio de gatos”.

36. Presidente do stF FAz grAve denúnciA, que merece ser PensAdA

O Ministro Ricardo Lewandowski, presidente do STF, publicou (Folha de S. Paulo, 10.05.2015) artigo – “Por um sistema carcerário eficiente” – no qual adverte sobre “a deterioração dos ambientes carcerários e o mínimo de in-vestimento”. A autoridade do articulista e o acerto da sua mensagem merece reprodução de trechos expressivos, como os que seguem. “A sociedade é a principal vítima dessa desordem institucional [...]”; “Levantamentos indicam que os quase 580 mil pessoas que ocupam os presídios, ao custo médio de R$ 2.500,00 por preso, consomem todos os meses mais de R$ 1,4 bilhão”. “As estatísticas desnudam algo estarrecedor: aproximadamente 42% do con-tingente de presos que temos não são de condenados definitivos”. “O fomento e o incentivo à utilização de medidas cautelares alternativas, tornezeleiras ele-trônicas e formas de medição confirmam que é possível manter em liberdade pessoas que não representam perigo à sociedade, sem comprometer o ideário da segurança ou agravar o sentimento de impunidade”. “Não haverá paz so-cial para ninguém se não fizermos da dignidade e do respeito a todos, fora ou dentro de presídios, uma forma de atuação valorizada institucionalmente. É hora de avançarmos nesse plano”. Está demonstrado que “São Paulo possui 40% dos presos brasileiros, embora não possua 40% da população nacional”, disse o governador do Estado, ao ressaltar que cresce o número de 1.040 presos por mês, o que significa a incapacidade de construir tantos presídios quantos bastem para abrigá-los.

37. A grAvidAde dA crise cArceráriA e As determinAções do suPremo triBunAl FederAl. As PreocuPAções do governo de são PAulo

A crise carcerária, no Brasil, pode ser qualificada como gravíssima, e se mede pela realidade exposta na mídia. O agravante está no elevado grau de reincidência em crimes dos presos libertados e na ousadia com que exibem, triunfantes, a certeza da impunidade. No referido julgamento pelo STF, ficou reconhecido que a situação é de calamidade, sendo as penitenciárias brasi-leiras “verdadeiros depósitos de pessoas”, o que impede a ressocialização do preso. A decisão relata que os mais de 600 mil detentos nas prisões brasileiras

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denunciam condições sub-humanas, violadoras do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, com registros temerários de revoltas, conflitos, estupros e até homicídios, incluindo casos decapitação. O STF denunciou, ain-da, que não procede a alegada falta de verba, porque o Fundo Penitenciário Nacional dispõe de verbas da ordem de R$ 2,3 bilhões, mas que faltam projetos e convênios para executá-los. Ou então, falta vontade política para tais inicia-tivas. O Tribunal de Justiça de São Paulo criou o Programa Semear (Sistema Estadual de Métodos para a Execução Penal e Adaptação Social do Recuperando). As audiências de custódia esclarecem que a Justiça deve preocupar-se com quem vai para a prisão, já que a situação delas é desastrosa. As autoridades estão sendo forçadas a inclinar as suas preocupações em torno da superlotação dos presídios, quando a prioridade deveria ser a recuperação e reeducação dos presos, já que há risco de agravar, ainda mais, a reincidência dos presos jovens, que se alastra por todo o país.

38. o suPremo triBunAl Adverte dA PrecAriedAde dAs Prisões

O STF julgou, em agosto de 2015, o ADPF 347, que pleiteou o reconheci-mento de que a população carcerária sofria a violação de direitos fundamen-tais, com lesões a preceitos previstos na Constituição Federal. O relator, Mi-nistro Marco Aurélio, votou pelo provimento parcial da medida liminar. Várias determinações foram feitas aos juízes e tribunais, como aplicação do art. 319 do CPP, sobre prisão administrativa; sobre o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contados do momento da prisão; que considerem o quadro dramático do sistema penitenciário, du-rante o processo da execução penal; que estabeleçam, quanto possível, penas alternativas à prisão e que a União libere recursos acumuladas do Fundo Pe-nitenciário Nacional para serem utilizados nos fins para os quais foi criado. A decisão do STF reconheceu a necessidade do que insistimos nestas conside-rações: determinar a aplicação de penas alternativas entre as quais aquela que possibilite a inclusão da Laborterapia. Diz a decisão:

Os direitos apontados como ofendidos consubstanciam preceitos funda-mentais: dignidade da pessoa humana, vedação de tortura e de tratamento desumano, assistência judiciária e os direitos sociais à saúde, educação, tra-balho e segurança dos presos.

Houve referência à denúncia do Ministro da Justiça que comparou “as pri-sões brasileiras às masmorras medievais”. E menciona mais o quanto:

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(...) as penas privativas de liberdade aplicadas em nossos presídios conver-tem-se em penas cruéis e desumanas. Os presos tornam-se “lixo digno do pior tratamento possível”, sendo-lhes negado todo e qualquer direito à exis-tência minimamente segura e salubre.

39. Prisão-AlBergue. integrAção do AlBergAdo nA sociedAde. Aquisição de um novo PAdrão de vidA

A reforma penal abordou, com amplitude, o regime de prisão-albergue. A modalidade mais conhecida, a denominada liberdade sob prova, isto é, o que exclui total contato com a prisão. O albergado é obrigado a comparecer peran-te uma equipe, integrada por estagiários das áreas de serviço social, psicologia e educação física, direito e pedagogia, supervisionado pelo MP. Inclui visitas fa-miliares ou domiciliares, reuniões com os albergados, outras equipes, cursos e palestras. A finalidade é a integração do albergado na sociedade e participação ativa num novo padrão de vida. Realçar as conveniências humanas da relação com a família, saúde, habitação, educação, trabalhos sociais, lazer, seguran-ça, relações sociais e autodeterminação do albergado dentro da sociedade.A prisão-albergue, como modo de execução da pena do Código Penal, foi intro-duzida pela Lei 6.416, sem entretanto definição ampla. Cada local teria sua regulamentação ou supletivamente, por provimento do Conselho Superior da Magistratura. Propagou-se, como fez a AASP, que deveria ser da competência federal, para seguir padrão único, dentro da mesma sistemática. Veio, então, a Lei Paulista 1.819, que impedia o cumprimento da prisão-albergue fora do Estado. O Estado tem, no caso, competência relativa em caráter suplementar, sem ultrapassar as prerrogativas constitucionais. A dosagem da pena pode ser considerada de curta duração. E teria três faixas: a primeira, de curta duração, não superior a 4 anos; a segunda, quando a pena seja entre 4 a 8 anos; a terceira faixa, que se abre com o 3º estágio (semiaberto, após cumprimento de 1/3 da pena em regime fechado).

40. Prisão-AlBergue e os PressuPostos oBjetivos dA suA concessão

A prisão albergue exige necessariamente atendimento de condições objeti-vas ou formais previstas no Código Penal e na legislação estadual. A condição subjetiva imprescindível é o sentenciado não ser perigoso. A periculosidade se verifica na probabilidade ou risco da reincidência ou já ter revelado torpeza, perversão, malvadeza, cupidez ou insensibilidade moral. O juiz enfrenta, fre-quentemente, justificada dificuldade em ter certeza da periculosidade do agen-te, manifestação a que está legalmente obrigado a fazer. Para tal avaliação o juiz

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pode valer-se de pareceres de colaboradores especializados, como psiquiatra forense ou médico-legista e assistentes sociais. A revogação da prisão-albergue pode ocorrer quando deixarem de ser observadas as regras consideradas essen-ciais, diferentes daquelas facultativas mais rigorosas. A Exposição de Motivos da Lei Paulista 1.819, prevê que, “salvo casos excepcionais, não se permite, senão por uma vez, nova obtenção da prisão-albergue”. A prisão-albergue é considerada solução de caráter administrativo, embora conste que poderá ser concedida em sentença condenatória ou na fase de execução, senão também em julgamento de apelação ou outro recurso. Sob esse enfoque fica a impressão popular de que o sursis perdeu legitimidade. Adquiriu a imagem suspeitosa, equivalente à impunidade. O cumprimento de pena em regime aberto deveria se dar em “casa de albergado”. A Lei 7.210-84, que institui a Execução Penal, determina a criação, em cada comarca, de um Conselho de Comunidade, in-tegrado por quem queira colaborar para a realização dos objetivos da laborte-rapia e melhor vigiar o justo melhor cumprimento da assistência dos presos.

41. Prisão-AlBergue, AtividAde remunerAdA, lícitA e externA Ao Presídio

Duas Leis, 7.209 e 7.210, ambas de 11 de junho de 1984, introduziram substanciais modificações no Código Penal de 1940 e na Lei da Execução Pe-nal, na busca do aprimoramento do Sistema Penitenciário Nacional. O art. 43, I, sobre penas restritivas de direitos, dispõe sobre “prestação de serviços à comunidade”. Mas, aumenta-se que a conclusão foi a de que a missão peda-gógica da prisão é quase uma falácia. Além de não reeducar, corrompe ainda mais, como é comprovado pelo elevado índice de reincidência. O Direito Penal tenta se redimensionar na busca de um instrumento eficaz de recuperação do delinquente. Busca a atual prisão reduzir a aplicação da pena à mera dimensão do castigo, à retorção do mal pelo mal, resquício do talião primitivo. É preo-cupante o crescimento da criminalidade, em proporções superiores de o Esta-do construir prisões. Com isso mais se distancia a capacidade de recuperação social do presidiário ou de humanizar a pena. A prisão-albergue surgiu como fórmula de atenuar a grave crise decorrente da superpopulação carcerária e da carência de recursos humanos e materiais. Foi idealizada como um:

(...) regime semiaberto, denominado “prisão-albergue”, que tem como fina-lidade proporcionar nos reclusos de cadeias públicas, ou estabelecimentos similares, o exercício de uma atividade profissional remunerada, lícita e ex-terna ao presídio, sem qualquer custódia polícia (Resolução 5/1972 – Est. do Paraná Tribunal de Justiça).

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42. AudiênciA de custódiA e A crise cArceráriA. Função legAl e sociAl

O presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, escre-veu (Folha de S. Paulo, 20.10.2015), sob o título “Audiência de Custódia e o direito de defesa”, que, das 607.731 pessoas presas, “41% corresponde a presos provisórios, encarcerados ainda sem culpa formada, sem condenação definitiva (...)”. “As audiências de custódia permitem ao juiz a possibilidade de, frente a frente com a pessoa presa, analisar de forma mais cautelosa as circunstân-cias da prisão”. As autoridades judiciárias estão recomendando a adoção das audiências de custódia em todos os Estados. É uma forma de resguardar o preso contra a sua integridade física e moral. Garante-lhe, ainda, o devido processo legal e ampla defesa, poupando-o da pressão corruptora das facções criminosas, que atuam nas prisões em geral. Os efeitos perniciosos da prisão de pessoas ainda não comprometidas com o crime muito repercutem na inti-midade das famílias dos presos, na sua comunidade, em sua imagem pessoal ou profissional, além de acarretar inútil e ineficaz ônus aos cofres públicos. O Conselho Nacional de Justiça, em parceria com o Ministério da Justiça, Tribu-nais de Justiça Estaduais e o Instituto do Direito de Defesa, vêm pregando pelo país a implantação das Audiências de Custódia. Assim, a condução imediata do preso à presença do juiz, para a avaliação da conveniência da prisão, poderá evitar as condições desumanas, promíscuas e brutais a que ficam relegados os presos, inclusive inocentes, durante meses, até que se conheça a necessidade da prisão ou da libertação, além de aliviar as superlotações das prisões.

Pesquisas do editorial

Veja também Doutrina• Análise estatística da reincidência penal brasileira e a função preventiva especial po-

sitiva da pena privativa de liberdade, de Bruna de Carvalho Santos Pineschi e Daniel Aquino de Sousa – RBCCrim 129/39-67 (DTR\2017\393);

• Poder Judiciário: segurança pública e administração penitenciária, de Cristiane Farias Rodrigues dos Santos – RBCCrim 131/403-445 (DTR\2017\915); e

• Trabalho penitenciário, de Amaro Alves de Almeida Filho – Doutrinas Essenciais Proces-so Penal 6/131-136 (DTR\2012\450378).

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Direito Processual Civil

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mourão, Alessandra Nascimento Silva e Figueiredo; SouSA, Wanessa Magnusson de. Os desafios da negociação de atos processuais: uma resposta a Flávio Yarshell.

Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 113-125. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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os desaFios da negoCiação de atos ProCessuais: uma resPosta a FlÁvio yarshell

The challenges of negotiating court procedures: response to Flávio Yarshell

alessandra nasCimento silva e Figueiredo mourão

Professora na Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas. Advogada do [email protected]

wanessa magnusson de sousa

Advogada do [email protected]

Áreas do direito: Processual; Civil

resumo: Com a promulgação do novo Código de Processo Civil, iniciou-se a difícil empreitada dos profissionais do direito privado brasileiro no sentido de negociar e criar regras para o processo judicial eventual futuro ou para o processo ins-taurado. Há consideráveis elogios (e outros tantos ataques) ao negócio jurídico processual sem que, contudo, tenha-se percebido que os profissionais que militam na área jurídica estejam se empe-nhando para colocar em uso a nova regra que ad-mite a celebração de negócios jurídicos processu-ais. Qual é o melhor momento para se negociar as regras processuais? Quais são os limites objetivos e quais serão os principais obstáculos negociais para o estabelecimento desses negócios? Será esta uma oportunidade para uma maior colabora-ção entre advogados do contencioso e advogados do consultivo? Estas são as questões centrais que este artigo se propõe a enfrentar.

Palavras-Chave: Negócio jurídico processual – Contencioso – Consultivo – Cláusulas contratu-ais – Novo Código de Processo Civil.

abstraCt: The enactment of the New Civil Procedure Code brought up a difficult task to Brazilian legal professionals on private practice: to negotiate and create procedural rules applicable to a future dispute between the parties in and out of a contractual relationship. There have been considerable praises (and critics) to the negotiation of civil procedural rules, even though private law professionals have not effectively addressed the issue to devise the tools of application of the new procedural law that authorizes agreements on civil procedural rules. When is the best time to negotiate procedural rules? What are the objective limits and what will be the main obstacles for doing so? Is this a opportunity for greater integration and collaboration between litigation lawyers and advisory lawyers? These are the central issues that this article intends to address.

keywords: Agreement on civil procedural rules – Litigation – Legal advice – Contractual clauses – New Civil Procedure Code.

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mourão, Alessandra Nascimento Silva e Figueiredo; SouSA, Wanessa Magnusson de. Os desafios da negociação de atos processuais: uma resposta a Flávio Yarshell.

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Sumário: 1. Uma visão holística dos serviços jurídicos. 2. Foco na satisfação de interesses. 3. As inovações do CPC/15.

1. umA visão holísticA dos serviços jurídicos

A inspiração para este artigo veio da provocação bastante contundente e certeira de Flávio Luiz Yarshell, publicada no periódico Carta Forense, edição de maio de 2017, intitulada “Carta de um advogado do contencioso para um colega do consultivo”1.

Em tom informal e até intimista, o renomado processualista lamenta o dis-tanciamento entre os mundos do advogado do contencioso e do consultivo, indicando que particularidades dos universos em que transitam acabam por gerar uma comunicação ineficaz entre ambos. Defende ele que se fosse possível o trabalho em conjunto entre profissionais do consultivo e do contencioso, o resultado seria potencializado com ganhos para ambos e seus clientes comuns.

Mais adiante, Yarshell alfineta com a delicadeza de um lorde inglês (caracte-rística que o persegue desde sempre – a delicadeza, importante frisar) que, ao idealizar cláusulas contratuais para a tutela dos interesses substanciais de seu cliente e que sejam aceitáveis para a outra parte contratante, o advogado do consultivo certamente reflete e considera as implicações que possam decorrer de eventual futuro conflito entre as partes contratantes que possam ser levadas ao Judiciário ou à arbitragem para solução.

Segue ele então apontando sua decepção com a reação (ou, mais precisa-mente, falta dela) por parte dos profissionais do consultivo após o advento do art. 190, do vigente Código de Processo Civil. Viu Yarshell pouca inovação nos contratos no tocante ao negócio jurídico processual, depois de reconhecer as dificuldade de negociações depois de instaurado o processo.

Despede-se na sua carta convidando para um diálogo mais longo (um café, nas suas palavras) entre as áreas do contencioso e do consultivo, pois há mui-tos aspectos a explorar para além daqueles expostos em sua missiva, acreditan-do que há possibilidade de romper com a tradição e inovar.

Ora, a “Carta de um advogado do contencioso para um colega do consul-tivo” merece resposta, seja pela sua oportunidade, seja pelo seu acerto. E, na

1. Disponível em: [www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/carta-de-um-advogado -do-contencioso-para-um-colega-do-consultivo/17551].

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qualidade de autoproclamadas destinatárias da provocativa carta, propomo--nos a respondê-la. E passamos a fazê-lo a seguir.

Prezado Colega do Contencioso:

Da mesma forma que o colega admira o resultado de nosso trabalho, admi-ramos também o empenho e dedicação envolvidos na atuação dos colegas do contencioso e de seus esforços no sentido de fazer prevalecer a melhor inter-pretação (judicial ou arbitral) para as regras pensadas, negociadas e estabeleci-das nos contratos elaborados pelos profissionais do consultivo.

Pode ocorrer que, em razão das diferenças dos universos em que atuamos, haja mesmo a alegada falta de sintonia. Talvez em função de um pensamento tradicional e segregacionista, que nos foi apresentado desde a faculdade, e que nos classifica, dentre outras categorias, em grupos diferentes: o daqueles que atuam para que nasçam os negócios e se façam os acordos e contratos e o ou-tro, daqueles que entram em cena quando cessa a harmonia que possibilitou a consecução desses mesmos negócios, acordos e contratos. No embate sobre a validade ou o descumprimento de contratos, primeiro atuam os elaboradores dos contratos, depois os profissionais que, instalada a demanda judicial ou arbitral, discutem e defendem esta ou aquela interpretação daqueles negócios jurídicos, redigidos e estruturados pelo consultivo.

E assim é que quando a lide se circunscrever a relações contratuais, o ponto de intersecção entre ambos os diferentes grupos, ou “times”, serão os ditos contratos. Como pontuado na sua missiva, nosso principal elo são os contra-tos. Nosso material de trabalho, não raro, é o mesmo. E dada essa identidade, é de se lamentar a falta de sintonia que muitas vezes nos distancia quando, na verdade, nosso trabalho deveria ser complementar.

Portanto, é de se festejar a iniciativa do colega que, ao escrever a carta que ora respondemos, acabou por instigar a reflexão sobre os papéis que deveriam se desempenhados pelos dois “times”.

Não há dúvida de que os colegas do contencioso têm muito a colaborar no processo de elaboração de contratos e estruturação de negócios. Afinal, qual cliente não gostaria que o contrato que tenha por objetivo refletir uma almejada transação fosse estruturado não somente a partir da perspectiva dos advogados da área de negócios, mas também com o crivo de um profissional que esteja habituado a atuar exatamente quando ocorrem os dissensos, as di-vergências entre os contratantes?

Os processualistas têm muito a contribuir para o aperfeiçoamento do de-senho final do contrato (contract design já alcançou o status de disciplina no

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ambiente acadêmico) e, assim, auxiliar a alcançar a completude de trabalho e, em última análise, a satisfação do cliente.

Não seria de se estranhar que o legislador tenha pensado nessa necessária interação entre os âmbitos consultivo e contencioso da prática jurídica ao in-serir no Código de Processo Civil que se acha em vigor, a regra do art. 190, que autoriza as partes a “estipular mudanças no procedimento, para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre seus ônus, poderes, faculdades ou deveres processuais, antes ou durante o processo”.

E apesar dessa iniciativa, ainda é tímido o movimento de inserção de cláu-sulas de negócios jurídicos processuais nos contratos que atualmente circulam nos meios jurídicos. E ainda se percebe baixa sinergia entre as áreas consultiva e contenciosa nos maiores e mais admirados escritórios brasileiros. No entan-to, essa cooperação mostra-se especialmente importante no momento de ela-boração dos contratos e estruturação dos negócios, pois, como bem observado, o momento mais adequado para se alinhar negócios processuais é antes de ini-ciada a lide, quando as partes ainda estão em harmonia e o ambiente permite um diálogo mais pacífico e profícuo.

Ainda assim, nada obstante a novidade legislativa, que de fato incentiva essa operação associada, na maioria das bancas brasileiras de médio e grande porte, fazemos parte de áreas diferentes. Talvez nos falte a visão holística da prestação ao cliente. Como na medicina, também no direito a especialidade é um bem e um mal ao mesmo tempo.

2. Foco nA sAtisFAção de interesses

Percebe-se de fato uma certa indisposição de alguns profissionais da área consultiva para essa integração com os da área do contencioso. Ao mesmo tempo, verifica-se também alguma resistência dos “litigantes” em relação ao negócio jurídico processual.

Desde a promulgação do novo Código de Processo Civil presenciamos os mais acalorados debates sobre os limites e sobre as matérias que podem ser objeto dos negócios jurídicos processuais.

Uma das principais tarefas na definição de quais serão os termos do instru-mento de transação é negociar e defender o estabelecimento de regras contra-tuais que garantam uma posição mais favorável e de menor risco aos clientes. E no desempenho dessa função, o profissional terá como norte a defesa do interesse da parte representada.

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Interesse, na dimensão da negociação, tem significado próprio. E aqui per-mitimo-nos fazer referência aos conceitos de negociação mais conhecidos no mundo, que são os criados pelo Programa de Negociação (PON – Program on Negotiation) da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos.

Os professores Roger Fisher e William Ury foram pioneiros na redefinição do modo de negociar baseado em sete elementos:

(i) comunicação,

(ii) relacionamento,

(iii) interesses,

(iv) opções,

(v) legitimidade,

(vi) alternativas, e

(vii) compromisso.

Em relação aos interesses, são eles definidos como sendo o motivo que leva determinadas pessoas ou organizações a sentarem-se à mesa de negociação na busca de um determinado acordo ou contrato.

Fisher e Ury defendem a clara distinção entre interesses e posições.

Posições são exigências, solicitações e demandas feitas no curso da negociação. Interesses são as razões, necessidades e receios que dão origem às posições assumidas durante a transação.

Dessa maneira, quando uma das partes rejeita determinada cláusula contra-tual proposta na minuta enviada pela outra parte para análise, nesse momento está tomando uma posição. O que a motivou a tomar aquela posição de rejeição é o interesse subjacente.

O contrato ou acordo nada mais é do que um instrumento para a satisfação desses interesses. Assim, ao indagar ao representado qual o interesse na ne-gociação, se a resposta for “fechar o contrato” então claro está que há um tra-balho preliminar a ser feito pelo advogado em relação a esse cliente. Fechar o contrato é uma posição e não um interesse. O interesse é a resposta às seguintes perguntas: “por que se deseja fechar esse contrato?”, “que necessidades serão satisfeitas?”, “que medos serão afastados?”, “que planos ou objetivos serão al-cançados como fechamento do acordo?”.

Dessa maneira, nota-se claramente que antes mesmo de dar início à elabo-ração das minutas contratuais, cabe ao advogado explorar com o seu cliente o que este busca alcançar com a celebração do contrato.

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Em momento posterior, quando iniciar a aproximação com todas as de-mais partes envolvidas no negócio jurídico objeto do contrato ou do acordo, o profissional deverá fazer o mesmo exercício de exploração dos interesses dos demais contratantes.

O descobrimento dos interesses (de todos aqueles que necessariamente de-vam participar do negócio jurídico para sua validade) proporcionará aos reda-tores do instrumento contratual a chave para a elaboração de um documento eficaz para a sua finalidade precípua.

Mas o negociador jurídico vai além dos demais negociadores, na medida que sua atuação não se resume a acertar os termos comerciais e financeiros das tratativas.

Há necessariamente a estreita observância das regras de direito material – e também de algumas de direito processual – para elaboração dos contratos e estruturação dos negócios, vez que a vontade das partes deverá curvar-se aos ditames das leis aplicáveis para que possa ser reconhecida a existência e vali-dade do negócio jurídico.

Ainda assim, há muito mais liberdade quanto à forma na elaboração de contratos quando em comparação com a rigidez das petições e recursos e às regras a que se submetem.

Essas considerações são relevantes para que possamos começar a distinguir os escopos e limitações de cada área de atuação e a partir dessa constatação trilhar os caminhos possíveis para contribuir com a necessária interação entre as áreas consultiva e contenciosa.

3. As inovAções do cPc/15O negócio jurídico processual, na forma do art. 190 do Código de Processo

Civil, é novidade legislativa e, como tal, provoca questionamentos e polêmicas. É novidade não por admitir que se entabule negócio jurídico que tenha objeto processual. A cláusula de eleição de foro, por exemplo, é cláusula de negócio processual típico e é amplamente utilizada. A grande novidade trazida pela nova legislação é a possibilidade de celebração de negócios jurídicos processuais atípicos, possibilidade esta que vem provocando grandes discussões, especialmente entre processualistas.

Esses amplos debates e as consequentes críticas versam menos sobre a ca-lendarização de prazos ou nomeação de peritos – negócios que parecem ra-zoavelmente palatáveis ao entendimento dos pensadores da área de processo – e mais sobre a eventual renúncia de direitos tidos como fundamentais ou cons-

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titucionais ou, ainda, sobre a renúncia de direitos de interesse coletivo ou de ordem pública que alguns negócios jurídicos processuais parecem poder acarretar.

É possível que as partes, no âmbito do contrato, abram mão do duplo grau de jurisdição? É possível que se comprometam a não se denunciarem à lide em eventual demanda proposta por terceiro que se relacione ao objeto do contrato? Em que medida estes negócios se equiparariam à renúncia do direito de petição?

Não são poucos os embates na arena do contencioso sobre o negócio jurí-dico processual.

As controvérsias remetem a 1996, quando promulgada a Lei 9.307/96, que regula o instituto da arbitragem. À época e mesmo durante os anos que se se-guiram, era acalorada a discussão sobre a o caráter da lei de verdadeiro óbice ao acesso ao Poder Judiciário. Várias foram as decisões judiciais a declarar a nulidade da então novel cláusula arbitral até o pronunciamento final da Corte Suprema em favor da sua constitucionalidade. Arrefecidos os ânimos, hoje a arbitragem é meio de solução de disputas amplamente aceito na comunidade jurídica nacional. Aqueles que a ela resistiam e o Poder Judiciário de modo ge-ral passaram a olhar de forma mais amistosa o instituto da arbitragem e, hoje, as discussões sobre a sua legalidade e constitucionalidade foram ultrapassadas.

Esse paralelo serve para ilustrar como o conservadorismo e a resistência ao novo podem, aos poucos, perder força e proporcionar uma visão mais positiva em relação à flexibilidade do sistema normativo diante de uma sociedade em plena mudança e sob a constância das atualizações.

É inclusive nesse contexto de mutação constante que surgem modalidades diferentes de negócios, como os baseados na economia colaborativa ou em plataformas eletrônicas que muitas vezes têm como objeto a comercialização e exploração de ativos que sequer são de propriedade dos contratantes (citem--se, por exemplo, Airbnb, Uber etc).

Diante desse cenário atual, onde os olhos não alcançam o limite possível da criação humana (e da inteligência artificial) para novos negócios, vencer o conservadorismo, mais do que uma obrigação, é uma necessidade.

E em nome dessa necessidade, o trabalho conjunto entre as áreas consulti-va e contenciosa se faz mais premente. Chega mesmo a ser irônico que essas demandas contemporâneas clamem uma volta ao tempo em que os escritórios de advocacia eram mais artesanais e as atividades de consulta e processual eram executadas por um mesmo profissional (como ainda o são em estruturas menores).

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De um lado, os profissionais que laboram diariamente na redação de con-tratos devem fazer um mea culpa e reconhecer que lhes têm faltado crença no instituto do negócio jurídico processual e a iniciativa para inseri-lo nas suas atividades usuais e na estruturação dos negócios.

De outro lado, cumpre aos militantes do contencioso despirem-se da rigi-dez própria dos processualistas e olhar o negócio jurídico processual como ele deve ser, ou seja, como um negócio que busca atender as vontades das partes. O que em verdade teve início com as regras negociadas no contrato ou a adesão aos seus termos.

Compreende-se que muitos dos que criticam o negócio jurídico processual sequer aventavam que tal possibilidade pudesse vir a existir. O ensino do pro-cesso civil na academia sempre se pautou pela estrita observância de regras formais, sob pena de prejuízo insanável ao constituinte. Na década de 80, a grande novidade era o princípio da instrumentalidade do processo. Daí a ca-minharmos para a relatividade das normas processuais é uma distância inima-ginável aos que foram batizados e criados em décadas de cânones processuais rigorosos.

Mas a regra aí está posta. A realidade mais uma vez se impõe. Existe o art. 190 no vigente Código de Processo Civil. E cabe-nos aplicá-lo em harmonia com o nosso sistema jurídico. O que é amplamente possível.

Sob uma ótica menos conservadora e mais negocial, parece-nos bastante viáveis e legalmente fundamentadas, por exemplo, as modalidades de negó-cio jurídico processual que prevejam a desistência de instância ou a proibição de denunciação à lide. Comparativamente, são negócios jurídicos processuais bem menos radicais do que a regra estabelecida na lei que regula a arbitragem, a qual estabelece instância única e obsta a discussão do mérito da decisão arbi-tral no âmbito do Poder Judiciário.

O preceito do Novo Código de Processo Civil contido no art. 200 é outro convite formal a um impulso criativo para o desenho de cláusulas que podem – observados os limites objetivos e subjetivos do instituto – conferir maior po-der à vontade das partes quando seus desentendimentos transbordam para o processo civil.

Exemplos de negócios jurídicos processuais possíveis transitam nos meios acadêmicos, havendo juristas que se lançam a pensar como o instituto pode dar vazão a remédios jurídicos que, por intermédio da vontade contratual das partes, podem corrigir falhas procedimentais existentes.

É escolha interessante do Novo Código de Processo Civil apostar na vonta-de contratual das partes como iniciativa desburocratizante de regras e sistemas

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processuais mantidos – há décadas – e que em certos casos se apresentam sem sentido ou como verdadeiros entraves a acarretar injustificável morosidade no deslinde das causas e da efetividade do provimento jurisdicional.

É possível sugerir uma lista não exaustiva de previsões contratuais que proporcionem a negociação de procedimentos e direitos que permitam composição, previamente à instauração da lide, como por exemplo a calendarização do processo e a desjudicialização de prova testemunhal, com a oitiva das testemunhas nos escritórios dos patronos das partes (como previsto no Common Law estadunidense)

Pode-se cogitar, ainda, a indicação prévia de perito(s) pelas partes, confor-me prevê o art. 471 do Novo Código de Processo Civil; pactos sobre os meios de prova; limite mútuo à fruição de tutelas liminares (de urgência); disposição que limite a impenhorabilidade com relação a certos bens; limitação da ins-tância recursal superior e extraordinária; organização consensual do processo sobre seus pontos controvertidos.

As possibilidades de estabelecimento de negócios jurídicos processuais são vastas.

Dentre os exemplos apresentados, merecem atenção como iniciativa “des-burocratizante” os negócios jurídicos processuais essencialmente procedimen-tais. Especialmente as iniciativas de calendarização do procedimento civil, que sob a previsão expressa do art. 191 poderão ser fruto de comum acordo entre as partes e o juiz constituído, que poderão designar calendário próprio ao seu processo para a prática dos atos processuais, conforme lhes convier.

Não se pode deixar de observar que a calendarização dos procedimentos é negócio jurídico processual cuja eficácia depende do vencimento de alguns desafios extracontratuais como, por exemplo, a viabilidade prática de se ter em trâmite processos com os mais diferentes calendários processuais. É inevitável questionar se o Poder Judiciário, especialmente os cartórios, terão estrutura organizacional para observar ritos particulares, desenhados pelas partes, em lugar de observar uma norma pré-estabelecida e uniforme para todos os feitos.

O questionamento revela que não só as partes e os advogados, mas também o Poder Judiciário, como instituição, deverá empreender mudanças a fim de possibilitar a plena aplicação do art. 190 do Novo Código de Processo Civil.

A limitação do número de testemunhas é outra possibilidade de negócio jurídico processual que pode acelerar o trâmite processual. As partes podem convencionar, por exemplo, que em caso de estabelecimento de litígio judicial o número máximo de testemunhas a serem ouvidas é de seis (três para cada parte).

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Ainda que dependam de adaptações institucionais do Poder Judiciário, é certo que os negócios jurídicos processuais que simplificam os atos do proces-so, poderão, sem dúvida, conferir-lhe celeridade, desburocratizando-o e dei-xando-o mais dinâmico e, principalmente, aliviando a carga de trabalho dos já tão sobrecarregados juízos e tribunais brasileiros2.

Mas não são apenas os negócios relacionados aos atos do processo (ao pro-cedimento propriamente dito) que podem ser estabelecidos pelas partes. Po-de-se pensar, também, em negócio jurídico processual que disponha a exclu-são de determinada matéria de eventual discussão judicial. Por exemplo: no âmbito de um contrato de representação comercial, as partes concordam que eventual litígio relacionado ao contrato não versará sobre a possibilidade de incidência de impostos sobre a base de cálculo das comissões, devendo preva-lecer, neste pormenor, a metodologia estabelecida no contrato.

Veja-se que a cláusula não resulta na renúncia a qualquer direito indispo-nível. Mantém-se o direito de petição, de acesso ao Judiciário, do exercício de ampla defesa, limitando-se tão somente o objeto de eventual lide no que toca à discussão de incidência de impostos sobre a base de cálculo das comissões.

Além da limitação do objeto da lide, é possível estabelecer o já mencionado compromisso de não denunciar a outra parte à lide em eventual processo pro-posto por terceiro em função da execução do contrato, por exemplo. Há vários negócios jurídicos processuais que podem se relacionar não necessariamente aos procedimentos, mas sim aos limites da lide e à intervenção de terceiros e participação de litisconsortes. São negócios que, apesar de não se relacionarem estritamente ao rito, também podem facilitar – e muito – os trâmites de pro-cessos que envolvam controvérsia de alta complexidade, propiciando maior efetividade ao processo.

É preciso ter presente, contudo, que os negócios jurídicos processuais devem passar pelo crivo do juiz que conduz o processo objeto destes negócios. Nesse ponto, é clara a regra do § 1º do art. 190 do Código de Processo Civil:

De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nuli-

2. MÜLLER, Julio Guilherme. A produção desjudicializada da prova oral através de negó-cio processual: análise jurídica e econômica. Tese de Doutorado Pontifícia Universida-de Católica de São Paulo. São Paulo, 2016. Disponível em: [https://sapientia.pucsp.br/handle/handle/19591]. Acesso em: 20.06.2017.

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dade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.

Muito provavelmente sob a luz do § 1º do art. 190 do Código de Processo Civil e em função da presunção de vulnerabilidade do empregado, o Tribunal Superior do Trabalho já determinou que o negócio jurídico processual não será admitido no âmbito da Justiça Laboral. Neste sentido, é a Instrução Normativa 39 do Tribunal Superior do Trabalho:

Art. 2º Sem prejuízo de outros, não se aplicam ao Processo do Trabalho, em razão de inexistência de omissão ou por incompatibilidade, os seguintes preceitos do Código de Processo Civil:

II – art. 190 e parágrafo único (negociação processual);

De todo modo, verifica-se que os critérios para aprovação judicial dos ne-gócios jurídicos processuais não são diferentes dos critérios para ratificação dos demais negócios jurídicos, que tratam de direito material. A identidade de critérios bem revela que se está, de fato, diante de um negócio, de um acordo de vontades que, salvo hipótese de ilegalidade ou abusividade, deverá fazer lei entre as partes. Lei processual in casu.

Admitir a possibilidade de criação, pelas partes, de lei processual é, sem dú-vida, ato revolucionário para o ordenamento jurídico brasileiro. É uma inicia-tiva do legislador que não pode ser desprezada ou esquecida pelos advogados que militam na elaboração de contratos e na estruturação dos negócios.

Na tentativa de tentar entender as razões na demora de se colocar em prá-tica essa possibilidade legal, visto que ainda escassos os exemplos de novos contratos que estipulam regras processuais, damo-nos conta, também, de que o advogado que está afastado do cotidiano dos tribunais em verdade desco-nhece quais seriam os regramentos relevantes a serem inseridos no bojo das minutas que redigem.

Ou seja, aquele que é encarregado de fazer constar nos contratos as cláusu-las que regerão eventual futuro processo judicial pode não ter o conhecimento e a experiência necessários para a estipulação dessas cláusulas.

Daí, porque se confirma a necessidade de um intercâmbio intenso entre os operadores das áreas consultiva e contenciosa para que se possa, com eficácia, colocar em ação o plano do legislador.

Tampouco podem ser mitigados os efeitos buscados pelo inovador art. 190 pelo conservadorismo dos processualistas de raiz formalista, que apresentam resistência por vezes irrazoável a determinados negócios jurídicos.

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Revista BRasileiRa da advocacia 2017 • RBA 6

mourão, Alessandra Nascimento Silva e Figueiredo; SouSA, Wanessa Magnusson de. Os desafios da negociação de atos processuais: uma resposta a Flávio Yarshell.

Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 113-125. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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Os advogados, tanto do consultivo como do contencioso deveriam come-morar a recepção do negócio jurídico processual pelo ordenamento brasileiro, que garante às partes maior liberdade para decidirem de que forma seus confli-tos deverão ser solucionados.

E sem dúvida alguma, o melhor e mais propício momento para essa nego-ciação dos atos processuais se dá nas tratativas de redação do contrato. De-pois de instaurado o processo judicial, as animosidades potencializadas geram obstáculos por vezes intransponíveis. Toda e qualquer sugestão de uma parte é vista com desconfiança pela outra. E há menor risco de exposição do repre-sentado na recusa do que na aceitação da proposta do outro lado. Mais ainda, há a assimetria de objetivos. Quase sempre uma parte pretende que o processo caminhe de forma célere enquanto a outra anseia pela demora do epílogo.

Diante de inovação tão relevante e verdadeiramente revolucionária, é ne-cessário debater e explorar todas as possibilidades do negócio jurídico pro-cessual e bem assim refletir sobre outras modalidades que podem contribuir para a desburocratização do processo, para a redução do aparelhamento do Judiciário e, finalmente, para a maior efetividade do provimento jurisdicional.

O Direito é dinâmico e, para atuar da forma mais eficiente possível, é pre-ciso que seus operadores também sejam igualmente dinâmicos e se aparelhem para os desafios contemporâneos. E nesse aspecto, é interessante observar que a própria redação deste artigo demandou a troca de conhecimento entre arti-culistas que atuam no contencioso e no consultivo3.

E além dos advogados, é imperioso incluir os magistrados nesse movimen-to, pois são eles que lidarão com o negócio jurídico processual e terão de colo-cá-lo em prática, uma vez superada a análise de sua validade.

Vê-se, pois que há muito a explorar sobre o tema e o papel dos seus prin-cipais atores. Mas é chegada a hora de dar um desfecho a esta resposta. Afinal, estamos aqui empolgados com a redação de nosso primeiro contrato de repre-sentação comercial com cláusulas de negócio jurídico processual.

Despedimo-nos, já aceitando o convite para o café, que tão gentilmente en-cerra a sua carta, caro Yarshell, e prevendo que tantos outros virão. Há muito ainda a conversar e mais ainda a colocar em prática.

3. Colaborou na confecção deste artigo o Acadêmico de Direito Gustavo Laudanna Alvoreda.

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Direito Processual civil

mourão, Alessandra Nascimento Silva e Figueiredo; SouSA, Wanessa Magnusson de. Os desafios da negociação de atos processuais: uma resposta a Flávio Yarshell.

Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 113-125. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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Pesquisas do editorial

Veja também Doutrina• Ato-fato processual: reconhecimento e consequências, de Eduardo Luiz Cavalcanti

Campos – RePro 254/75-90 (DTR\2016\19685); e

• Negócios jurídicos processuais e as bases para a sua consolidação no CPC/2015, de Antônio Pereira Gaio Júnior, Júlio César dos Santos Gomes e Alexandre de Serpa Pinto Fairbanks – RePro 267/43-73 (DTR\2017\1028).

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AguiAr, Antonio Carlos. Litigância de má-fé e detração processual. Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 127-141. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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litigânCia de mÁ-Fé e detração ProCessual

Bad faith claims and procedural legal detraction

antonio Carlos aguiar

Doutor e Mestre em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Especialista em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo – USP. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Professor Doutor de Direito do Trabalho da

Faculdade de Direito do Centro Universitário da Fundação Santo André; Professor da Escola Superior da Advocacia Trabalhista de São Paulo; Professor da EPD – Escola Paulista de Direito; Professor convidado

dos cursos de pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie São Paulo. Conselheiro Sindical da Delegacia Regional do Trabalho de São Paulo. Membro do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP). Autor de diversos artigos e dos livros. Atua na área de direito

trabalhista, sindical e gestão de crises, atendendo clientes nacionais e [email protected]

Áreas do direito: Processual; Civil

resumo: O tradicional instituto da litigância de má-fé está absolutamente consolidado na dinâ-mica processual brasileira. No entanto, a aumen-tada complexidade das relações sociais e as no-vas formas e meios de intervenção jurisdicional verificadas na prática forense tornam necessária a abordagem do tema sob perspectiva diversa e ainda pouco desenvolvida. Afinal, até que pon-to aquilo que chamamos de litigância de má-fé efetivamente o é? Como distinguir, conceitual e pragmaticamente, a má-fé de um ato de verda-deira detração (processual)? O presente artigo objetiva eliminar a confusão existente entre os institutos, para que cada um deles seja adequa-damente tratado, consideradas as diferenças e semelhanças existentes entre eles, de modo a se remediar, caso a caso, o vício efetivamente cons-tatado.

Palavras-Chave: Detração – Má-fé – Maledicên-cia – Ética e justiça.

abstraCt: The traditional institute of bad faith claims is fully consolidated in the dynamics of legal procedure in Brazil. However, the increased complexity of social networks and the new ways and means of legal intervention noticed in judicial practice have made it necessary to approach the subject under a different perspective and still underdeveloped perspective. After all, to what extent what we call “bad faith complaint” effectively is what it is? How can we distinguish, conceptually and pragmatically, bad-faith from an actual legal detraction (procedural)? This paper aims at extinguishing the confusion existing between the institutions, so that each of them are properly treated, considered the differences and similarities existing between them, aiming at fixing, case by case, the defect actually found.

keywords: Detraction – Bad faith – Malice – Eth-ics and justice.

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Revista BRasileiRa da advocacia 2017 • RBA 6

AguiAr, Antonio Carlos. Litigância de má-fé e detração processual. Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 127-141. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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Sumário: 1. Introdução. 2. Explicação prévia conceitual: litigância de má-fé não se confunde com detração processual. 3. Da litigância de má-fé . 4. Conclusão. 5. Bibliografia.

Não é segurando nas asas que se ajuda um pássaro a voar. O pássaro voa simplesmente porque o deixam ser pássaro.

Mia Couto1

1. introdução

Chaïm Perelmam2, com argúcia e perspicácia jurídico-intelectual, afirma que “a partir de alguma coisa que é considerada uma consequência, podería-mos tirar uma conclusão referente à existência ou ao valor de outra coisa”, evi-denciando que, por meio daquilo que ele denomina de argumento pragmático, se estabelece um argumento das consequências “que avalia um ato, um acon-tecimento, uma regra ou qualquer outra coisa, consoante às consequências favoráveis ou desfavoráveis”.

O que se apresentará a seguir ilustrará bem o tamanho dessas consequên-cias, haja vista que a participação estatal na substituição direta dos interes-sados para que abram mão da resolução direta e pessoal do conflito, implica seguir e respeitar padrões procedimentais imperiosos a todos os envolvidos: partes e entes estatais.

Ao repassar ao Poder Judiciário o papel de solucionador do conflito, são estabelecidas regras de conduta e comportamento de observância obrigatória pelos partícipes do processo, que se revela todo disciplinado, do princípio ao fim, possibilitando, a um só tempo, que interessados argumentem por meio de palavras, demonstrações e outros meios de prova pertinentes (aceitas pelo formato instituído pelo Estado), para sustentar suas razões de direito na busca daquilo que entendem como correto e, na outra ponta, exigindo-lhes respeito incondicional ao regramento instalado, para que, então e a partir desse cum-primento, ocorra uma prestação jurisdicional adequada.

Daí por que eventual desvio de conduta ao compromisso havido sujeitará o infrator às sanções cabíveis, de acordo com o valor da prática inadequada, fazendo com que sobre ele recaiam efeitos negativos, que vão de penas pecu-niárias até um desfecho desfavorável da sua pretensão.

1. COUTO, Mia. Antes de nascer o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 52.

2. PERELMAN, Chaïm. Retóricas. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 11.

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Direito Processual civil

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Esse reprovável comportamento será aqui examinado sob o enfoque da liti-gância de má-fé, com todos os desdobramentos a ela pertinentes.

Todavia e a partir desse ponto/consequência, se estabelecerá, igualmente, outra observação, por meio de argumentação acerca da existência de diferente valor, que, todavia, possui igual importância e funcionalidade processual e, por-tanto, não pode ser desconsiderado por ocasião da aplicação/entendimento (ou não) da sanção, qual seja a necessidade de um comportamento aguerrido pelas partes e seus patronos na defesa dos seus direitos. Eventual desvio interpretati-vo desta positiva prática será entendido e conceituado como detração processual, em conformidade com os detalhes técnicos que serão então expostos.

2. exPlicAção PréviA conceituAl: litigânciA de má-Fé não se conFunde com detrAção ProcessuAl

No momento que o país vive, no qual opiniões, de todo o gênero, inclusive no âmbito jurídico-legal, se baseiam em atitudes/argumentos de torcedores; no qual, em vez do necessário e imperioso lastro técnico, que deveria pautar o conteúdo de qualquer manifestação jurídico-opinativa, o coro da torcida fala mais alto do que a necessária racionalidade argumentativa no que se refere à compreensão e análise dos mais significativos temas jurídicos, há, obrigatoria-mente e de início, antes mesmo de se adentrar na questão relacionada à má-fé, que se buscar o equilíbrio analítico imprescindível à límpida compreensão da complexidade que envolve a matéria, afastando-se, assim, (pré-)conceitos par-ciais e passionais, com os quais se metamorfoseia um pedaço, transformando-o num inteiro, e, com isso, se legitima a parte, dando-lhe a qualidade representa-tiva do todo, impossibilitando, como consequência, que se enxergue o contor-no completo do desenho posto a exame.

Necessário, ainda e no mesmo sentido, realizar prévia observação: ninguém que defenda o Estado de Direito (e nós somos ferrenhos defensores), é contrá-rio à efetivação de sanções ao abuso de práticas que ponham em xeque a ma-nutenção estrutural dos pilares jurídicos que dão sustentação à Democracia. Convém lembrar e com todas as letras destacar, todavia, que a observação que deve ser dada à questão objeto do presente estudo, ou seja, a litigância de má-fé deve levar em consideração o contexto em que está inserida: o litígio.

É inconteste que o litígio se estabelece exatamente porque já não mais exis-te harmonia e entendimento entre os contentores. A controvérsia e o desen-tendimento são o mote que direciona e gera a disputa judicial. O ânimo para

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disputa entre as partes se concentra na resistência de uma ao pleito da outra, quando não mais conseguem amistosamente chegar a um consenso. A partir deste instante, é que resolvem se valer de um terceiro para auxiliar no desfe-cho do impasse. É quando solicitam ao Estado que dê uma solução ao conflito então instalado, por intermédio de uma prestação jurisdicional, formatada por atores estatais com poderes institucionais para dizer o direito e, com isso, resol-ver a lide. Tal solução, contudo, apresenta limites rígidos; o caminho é pavi-mentado por uma estrada devidamente sinalizada por instrumentos de direção concentrados num ordenamento cogente, o sistema processual, que dá às par-tes a idêntica oportunidade procedimental de demonstrarem, pelos meios de prova, modelos comunicativos e meios de impugnação pertinentes, as razões que as levam a crer que, no conflito que serve de objeto à lide, possuem, sob a perspectiva fático-jurídica, um direito subjetivo que merece ser consagrado. Essa atuação, ademais, como se pode imaginar, não é amistosa, na medida em que cada indivíduo envolvido no processo buscará, de todas as maneiras, um posicionamento estatal que dê certeza e segurança jurídica às suas pretensões.

Tal pronunciamento jurisdicional se materializará por intermédio de uma decisão que apreciará (todo) o arrazoado e avaliará se ele fundamenta aquilo que as partes, de modo contraposto, procuram traduzir como um direito sub-jetivo que deve ser efetivado e chancelado pelo Estado.

Cumpre destacar, além disso, que todo esse conjunto ordenado e concate-nado de atos, ou seja, o instrumento jurídico para alcance da proteção do ob-jeto em discussão (litígio) se perfaz por intermédio de outro direito, o de ação, que não apenas possui respaldo constitucional, mas é tido como um Direito Fundamental.

Conclui-se, consequentemente e por dedução lógica, que o próprio litígio, portanto, goza de prestígio constitucional. A litigância é aceita e reconhecida pelo Estado. Logo, somente o abuso é que deve ser reprimido. Não a litigância em si.

Não se deve confundir, portanto, o pleno exercício, pela parte (ou seu pa-trono, que tem a obrigação profissional e constitucional de defender seu clien-te da maneira mais intensa e portentosa possível), de defesa e opinião com um eventual abuso. O uso da força argumentativa e probatória é inerente à disputa. E, claro, incomoda e traz reações do outro lado. A disputa se caracteriza justa-mente por esse encontro de forças: pelo confronto.

Até porque aquilo que à primeira vista pode transparecer uma atitude ou pessoa inadequada e incorreta pode não o ser, se bem observado, após a reti-

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Direito Processual civil

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rada de véus de preconceitos ou visões distorcidas pela rivalidade preestabele-cida. Aliás, um antigo apólogo chinês, do século III a.C., já exprimia perfeita-mente essa contextualização:

Um homem não encontrava seu machado. Ele desconfiou do filho do vizi-nho e começou a vigiá-lo. Seu comportamento parecia típico de um ladrão de machadinha. As palavras que ele pronunciava eram palavras de ladrão de machado. Todos os seus gestos e comportamento serviam para denunciar o homem que havia roubado o machado. Mas, ao mexer sem querer na terra, o homem reencontra seu machado. Quando no dia seguinte, ele olha nova-mente para o filho do vizinho, este não apresentava nada, nem no andar nem no comportamento, que lembrasse um ladrão de machado3.

Dito isto, é importante que todos os atores do processo (partes, patronos e autoridades judiciais), tenham clareza de que alguma rispidez ou atitude mais aguerrida e elucidativa, na busca de uma prestação jurisdicional completa – que se pode entender como aquela derivada de decisões (realmente) funda-mentadas e da disponibilização de oportunidades efetivas e igualitárias para os partícipes litigiosos –, não é sinônimo de litigância de má-fé, mas, ao contrário, representa, sim, uma litigância, simplesmente, ainda que prostrada numa ati-tude ostensiva, própria de quem representa interesses que não são seus, mas de pessoa (física ou jurídica) que lhe deu uma procuração para representá-lo e, em razão disso, espera uma atuação profícua, geradora de resultados eficazes e eficientes, natural de uma dedicação salutar.

Pensar diferente e agir ou mesmo propiciar modelos de repressão a essa atuação não se prestam à Justiça – ainda que a sanção tenha no seu bojo um viés de boa intenção –, mas, sim, àquilo que denominados de detração proces-sual, que inibe o pleno exercício do direito de ação e ampla defesa constitucio-nalmente garantidos.

Deve-se destacar, por outro lado, que não se está aqui fazendo apologia à deslealdade processual. Essa, por certo, deve ser severamente penalizada. Ser aguerrido não significa guerrear a qualquer custo e sem escrúpulos. Mais ainda:

(...) o processo não é uma guerra. Nele não existe inimigo, mas, tão so-mente, parte contrária. Ocorre que a utilização da já mencionada detração processual funciona como um freio (muitas vezes patrocinado ou avaliza-do pelo Judiciário) que busca inibir a liberdade de atuação das partes na

3. KAPFERER, Jean-Noël. Boatos. O mais antigo mídia do mundo. Trad. Ivone da Silva Ramos Maya. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1983, p. 72.

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condução da defesa plena de seus interesses. Nesse mecanismo inibitório, destaquem-se, insinuações, sem necessariamente, valer-se de inverdades, ganham enorme relevância, até porque “a detração não é, necessariamente, uma mentira. Pode ser verdadeira ou falsa. O que marca a detração é a inten-ção de atacar, de diminuir (...). Depreciar significa elevar a minha posição. Essa é a chave do sucesso do detrator. A infâmia anunciada pelo narrador pode nascer de fato concreto e comprovado. Pode ser invenção absoluta. O objetivo é o mesmo4.

O que efetivamente queremos ressaltar? Simples: deve-se ter uma perfeita clareza de entendimento quanto ao fato ou condição que juridicamente ocorre no momento em que é apontada determinada conduta como inadequada e constituída de elemento de má-fé. Por que isso? Porque poderá alguém (parte) se apresentar processualmente como vítima de um procedimento excessivo da outra, caracterizador de uma conduta de má-fé, ainda que, em verdade, somente o faça com o objetivo de inverter uma situação real, completamente diferenciada, pautada num momento de fragilidade ou mesmo impossibilidade de contra argumentação em que se encontra inserida.

Diante dos efeitos que lhe são processualmente danosos, advindos da con-dução aguerrida da outra parte, abre-se caminho à detração processual, com o objetivo de desqualificar o conteúdo da manifestação jurídica-processual da parte contrária, mesmo que verdadeira seja, por meio da utilização de um ex-pediente detrativo, numa espécie de solecismo, reforçado, por vezes, pela iro-nia. Algo como as clássicas manifestações do Jornalista Herry Louis Mericken (1880-1958), tais como aquela em que afirmava que “uma igreja é um lugar onde senhores que nunca estiveram no céu dizem maravilhas a respeito dele para pessoas que nunca irão para lá”, ou no que diz: “a democracia é a arte de administrar o circo através da jaula dos macacos”, ou, ainda, aquela em que revela e ao mesmo tempo indaga: “o casamento é uma instituição maravilhosa, mas quem gostaria de viver numa instituição?”5.

Resta claro, desse modo, que essa prática, que denominamos detração pro-cessual, é um remédio anestésico à defesa aguerrida, que não pode ser aceita no (e pelo) Judiciário e, muito menos, pela outra parte, então atingida.

O antídoto é não se curvar, até porque a detração processual alimenta-se da maledicência, que é uma arte que se exerce por meio de determinados tipos

4. KARNAL, Leandro. A detração.: breve ensaio sobre o maldizer. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2016, p. 15-16.

5. MERICKEN, Herry Louis. O livro dos insultos. São Paulo: Cia das Letras, 1988.

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Direito Processual civil

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de conduta, como, por exemplo, (i) demonstrar que “não se fala por maldade, mas por vontade de ajudar”; (ii) possuir credibilidade, mesmo que seja uma mentira (não pode fugir do plausível); (iii) a melhor detração é a que insinua mais do que afirma, algo como um floral de Bach do ácido, uma homeopatia do cáustico6. O combate aguerrido, portanto, é o único elixir para enfrentá-la. Não se pode perder o furor e atenção diante do incômodo e desconforto por ela gerados. Ao contrário, a vontade no enfrentamento deve se renovar e fortalecer diante dos obstáculos impostos (e que serão vários).

A detração processual tem várias faces de composição e instalação no pro-cesso. Por vezes, percebe-se seu nascimento de onde não deveria brotar. A tentativa de anestesiar um comportamento volitivo de fazer o melhor provém justamente de onde se espera o seu reconhecimento e não a sua inibição. Va-mos, neste sentido, destacar dois exemplos:

O primeiro tem a ver com recente e emblemático “diálogo” havido entre um advogado e um juiz, ambos de conhecimento e atuação jurídicos notórios, que, no transcorrer de uma audiência – a partir da ausência de sustentação técnica para alcance dos objetivos pretendidos – o uso da ironia, como mecanismo inibitório de uma aguerrida defesa, prevalece por meio da utilização da “força diretiva do processo”, prática totalmente contrária àquela que deve prevalecer, obrigatoriamente, entre juiz e advogados, em conformidade com o princípio da isonomia, cláusula pétrea da Constituição, e a Lei 8.906, que estabelecem que não há hierarquia ou subordinação entre advogados, juízes e outros ope-radores do Direito, devendo prevalecer respeito recíproco entre todos. Vamos ao “diálogo”7:

Sergio Moro: Tem uma frase, ali no item 6: ‘Mencionou, em referência ao diretor [Renato] Duque, que tem compromisso com o PT de ficar no cargo de diretor até solucionar a contratação dessas 21 sondas’. O que o senhor entendeu com essa afirmação? O senhor sabe explicar?

Testemunha: Meritíssimo, eu entendi o que está escrito aqui.

José Roberto Batochio: Pela ordem, Excelência. As testemunhas depõem so-bre fatos, não sobre o que ela acha ou entende. De sorte que fica impugnada a pergunta de Vossa Excelência. E já acrescento: o fato de que o ministro, em algu-mas respostas de Vossa Excelência, a testemunha diz que por ouvir dizer soube

6. KARNAL, Leandro, op. cit., p. 18.

7. Disponível em: [www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI255076,61044-Moro+manda+ advogado+de+Palocci+fazer+concurso+para+juiz+em+audiencia].

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Revista BRasileiRa da advocacia 2017 • RBA 6

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que o ‘Italiano’ era o Palocci, essa defesa insiste no direito de fazer esta pergunta novamente à testemunha (sic).

Sergio Moro: Certo, como ele é destinatário do e-mail, a pergunta é pertinen-te. Então eu reitero a pergunta e depois que eu terminar, eu passo a palavra (...).

José Roberto Batochio: Com o devido respeito, Excelência. Testemunha não pode achar nada, a não ser que haja outro Código de Processo Penal. Porque, de acordo com o Código de Processo Penal brasileiro, testemunha depõe sobre fatos e não opina. De modo que eu não vou aceitar essa violência contra a letra do Código de Processo Penal, com o devido respeito.

Sergio Moro: Tá bom, doutor. Sua questão já foi indeferida. Então, eu reitero a pergunta à testemunha. A testemunha tem conhecimento dos fatos, já que é destinatária da mensagem. Se ela não souber, ela pode dizer que não sabe.

José Roberto Batochio: Mas ela não pode achar, Excelência.

Sergio Moro: Doutor! A sua questão está indeferida, doutor!

José Roberto Batochio: A defesa adverte a testemunha de que ela está proibi-da de depor sobre o que ela acha. A lei impõe que ela deponha sobre fatos.

Sergio Moro: Doutor, o doutor faça concurso para juiz e assuma a condução da audiência, mas, quem manda na audiência é o juiz.

Guilherme Batochio: Vossa Excelência preste exame da Ordem dos Advoga-dos do Brasil. Cada um aqui cumpre o seu papel, tá certo?

Sergio Moro: Sua questão está indeferida, doutor, eu estou perguntando à testemunha. (grifamos).

O segundo exemplo, por sua vez, se verifica em frequentes respostas ju-diciais advindas da oposição de embargos de declaração, também encontra-mos situações relevantes ao que aqui que ora se expõe. Quando simplesmente se procura obter aquilo que constitucionalmente é garantido a todo cidadão: uma decisão devidamente fundamentada. Como se dão as respostas? Elas vêm acompanhadas de penalização! O remédio, para garantia constitucional (de-cisão fundamentada) tem sua composição alterada. De remédio passa a ser considerado “veneno” e chamado de “embargos protelatórios”.

Reconheça-se. Há, sim, aqueles que o são, mas daí a medir todos pela mes-ma régua, partindo-se de uma presunção de má-fé absolutamente abominada pelo direito, vai uma distância longa. De modo a ilustrar esse tipo de medição, esclarece-se ao leitor que atualmente se chega ao absurdo de verificar em várias sentenças uma advertência (sic), expressa e “preventiva”, no sentido de que a oposição “inadequada” de embargos de declaração gerará punição.

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Direito Processual civil

AguiAr, Antonio Carlos. Litigância de má-fé e detração processual. Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 127-141. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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Ora, todo cidadão que se socorre do Judiciário, a partir do exercício consti-

tucional do direito de ação, tem garantido que a prestação jurisdicional, para se

dar de modo completo, venha acompanhada de clareza e transparência, o que

somente será alcançado, por meio da ciência plena quanto à fundamentação

da decisão. Significa dizer que a autoridade jurisdicional possui o poder-dever

de manifestar, clara e expressamente, “depois de produzidas as provas e feitas

todas as alegações, ao final do processo, se ele tinha ou não razão (ou seja, se

o pedido procede ou improcede) e, claro, as razões para que se tenha chegado

a tal conclusão (a motivação da decisão)”8.

Afinal, como retratado pelo Min. Gilmar Mendes em seu voto no julgamen-

to do MS 24.268/04, o cidadão que entra em juízo tem:

a) Direito de informação (Recht auf information), que obriga o órgão julga-

dor a informar a parte contrária dos atos praticados no processo e sobre os

elementos dele constantes;

b) Direito de manifestação (Recht auf Äusserung), que assegura ao defensor a

possibilidade de manifestar-se oralmente ou por escrito sobre os elementos

fáticos e jurídicos constantes do processo;

c) Direito de ver seus argumentos considerados (Recht auf Berücksichtigung),

que exige do julgador capacidade, apreensão e isenção de ânimo (Aufnahme-

fähigkeit und Aufnahmebereitscaft) para contemplar as razões apresentadas9.

Pois bem. Feitos esses esclarecimentos iniciais sobre o que é e representa a

detração processual, passa-se, agora, a tecer comentários específicos com rela-

ção à litigância de má-fé, a fim de se evidenciar o que é e os desdobramentos

punitivos pela sua prática, com a clareza institucional necessária, com a visão

limpa de quaisquer pré-conceitos até então existentes, descartando-se desen-

contros de entendimento, tal como nos avertia o saudoso Lyra Filho, com o

cuidado de que não se pode confundir o biscoito com a embalagem, pois, em

tal caso, acabaríamos comendo a lata, como se fosse a bolacha e tiraríamos es-

tranhas conclusões sobre o sabor, consistência e ingredientes deste produto10.

8. STRECK, Lenio Luiz. Compreender direito: desvelando as obviedades do discurso ju-rídico. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2013, p. 96.

9. Idem.

10. LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. São Paulo: Brasiliense, 2001, p. 65.

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3. dA litigânciA de má-Fé Importante, neste instante, previamente, mesmo, à análise da prática da li-

tigância de má-fé, sua conceituação e efeitos, destacar alguns aspectos impres-cindíveis à compreensão plena do tema, tendo-se como parâmetro os pontos circunspectos acima, relacionados ao exercício pleno de um direito constitu-cional (ação), que não deve ser turvado a partir de nebulosas maledicências. Em outros termos, há de se realizar, a partir de agora, observações pontuais, para bem demonstrar e aplacar um entendimento sereno e periférico-estrutu-ral a respeito do tema. Comecemos por aquilo que lhe é antônimo e sustenta, por isso mesmo, a sua aplicação (devida e correta): a boa-fé.

A boa-fé se encontra entrelaçada, de modo indissociável, à ética. E a Cons-tituição brasileira, a seu turno, traça na base da sua fundamentação um perfil ideológico direcionado, ao reconhecer como fundamento de solidez institucio-nal o Estado Democrático, a privilegiar sua concretização por meio do exercí-cio dos direitos sociais e individuais, pela liberdade, segurança, busca do bem--estar, desenvolvimento, igualdade e justiça, todos como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social11.

Esse destaque ideológico que se confere à justiça, prestigiada como um dos valores supremos da nação, visa, conforme evidenciado por Humberto The-doro Junior, “no campo da prestação jurisdicional, a consagrar, de maneira estável e bem determinada, os fundamentos éticos do processo”12.

Por isso mesmo, os procedimentos judiciais não devem ser tratados como simples instrumentos de justiça formal, mas, sim, como uma garantia muito mais ampla de justiça substancial. Uma garantia fundamental, que não se tra-duz apenas por um procedimento devido (correto, regular no plano formal), mas, sobretudo,

(...) un processo che sia intrinsecamente equo e giusto, secondo i parametri eti-co-morali accettati dal comune sentimento degli uomini liberi di qualsiasi epoca e Paese, in quanto si riveli capace di realizzare una giustizia veramente impar-ziale, fondata sulla natura e sulla ragione. O que é nuclear no processo de hoje é a controvérsia a resolver e o método instrumental para solucioná-la,

11. Preâmbulo da Constituição Federal do Brasil.

12. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Boa-fé e processo – Princípios éticos na repressão à litigância de má-fé – Papel do juiz. Disponível em: [www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/humberto%20theodoro%20j%C3%BAnior(3)formatado.pdf]. Acesso em: 28.02.2017.

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que haverá de assegurar, sempre, “a solução mais justa e útil”. Esse objetivo do processo, dentro do atual Estado Democrático de Direito, não pode, de maneira alguma, tolerar o abuso de direito processual. Nenhuma forma de má-fé é admissível (...). A procrastinação maliciosa, a infidelidade à verdade, o dolo, a fraude, e toda e qualquer manifestação de má-fé ou temeridade, praticados em juízo, conspurcam o objetivo do processo moderno no seu compromisso institucional de buscar e realizar resultados coerentes com os valores de “equidade substancial e de justiça procedimental, consagrados pelas normas constitucionais”. O processo judicial, enfim, tem muito de jogo, competição. Nessa disputa, é claro que “a habilidade é permitida, mas não a trapaça”. Daí a imposição do Código de Processo Civil brasileiro de “deveres éticos das partes e dos procuradores” e a punição severa às suas infrações”13.

A eticidade é, então, qualidade imprescindível da ação, na medida em que ela funciona como instrumento de acesso ao processo mesmo e, mediante ele, à constitucional inafastabilidade do controle jurisdicional sobre o sistema pro-cessual. Ênfase para “incrementar a efetividade da defesa (é através dela que o valor da liberdade se rebela contra possíveis violações)”14.

Para dar eficácia a esse padrão ético, essencial ao Estado Democrático de Direito, ou seja, para materialização de todos os valores que sustentam o viés democrático de nossa sociedade, imprescindível que o Estado não somente tra-balhe com uma prescrição de comportamentos, mas, sobretudo, com a organi-zação de mecanismos que validem seu sucesso no mundo dos fatos, o que se dá por intermédio da instituição de efetiva fiscalização do cumprimento dos va-lores instituídos, bem como uma política de sanção em caso de desobediência.

Essa sanção representa a resposta contrafática ao agir do destinatário; inde-pendentemente do comportamento positivo ou negativo, a norma jurídica opera e produz efeitos. (...) A sanção jurídica, para poder ser aplicada deve sempre estar prevista em uma norma jurídica, ainda que diversa daquela que prevê o comando15. A existência dessa previsão – como o próprio termo indica ela deve estar estipulada cronologicamente antes da ocorrência do

13. Idem.

14. DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. São Paulo: Ed. Re-vista dos Tribunais, 1987, p. 107.

15. Com isso se está assumindo a possibilidade da existência de uma forma de sanção sis-têmica, a qual pode ser buscada, no ordenamento jurídico, em norma diversa daquela que impõe a forma de agir.

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fato concreto ensejador da sua aplicação – atribui a todos os destinatários da norma conhecimento sobre as consequências do descumprimento do co-mando; a previsão não se restringe apenas no estar indicada, mas no estar indicada de maneira específica, particularizada, perfeitamente identificada, a fim de não deixar dúvida para o destinatário do comando16.

O comando indicado acima, particularizando e identificando eficazmente os destinatários, encontra-se expressamente previsto no Código de Processo Civil, mais precisamente perante os seus arts. 79 a 81. Neles se encontram presentes as hipóteses caracterizadoras desta reprovável prática processual e as penalidades inerentes a todo aquele que as comete. O rol previsto no artigo 80 é taxativo em conceituar como ligante de má-fé aquele que

(a) deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato in-controverso; (b) o que alterar a verdade dos fatos; (c) aquele que usar do processo para conseguir objetivo ilegal; (d) o que opuser resistência in-justificada ao andamento do processo; (e) aquele que proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo; (f) o que provocar incidente manifestamente infundado; e (g) aquele que interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório.

Não há dúvidas quanto à total falta de ética existente em todos os repro-cháveis comportamentos assinalados, que, ao invés de darem efetividade ao Estado Democrático de Direito, se prestam à sua falência. Como admitir a ins-tituição impune de uma chicana? Com o perdão da agressividade, não há outra conceituação além de chicana para atitudes que tenham como objetivo provo-car toda uma máquina estatal, como o Judiciário, com pretensões avessas e não previstas em lei ou demandar contra fatos incontroversos. Aqui, não há litígio. Há vingança ou qualquer outro tipo de perversidade social, que, por óbvio, não encontra amparo jurisdicional. O processo, como já exaustivamente explicado, instrumentaliza um canal de busca de justiça; não de vingança.

O mesmo se deve dizer àquele que quer que a mentira ganhe status de ver-dade. A mentira tem razão de ser voltada a enganar, iludir ou ludibriar. Não se pode tolerar uma prática com esse intuito funcional. Em nada contribui à ética. Alimenta, contrariamente, todos os sentidos que lhe são opostos. Logo,

16. HORVATH, Estevão; RODRIGUES, José Roberto Pernomian. Efeitos da modificação de uma decisão judicial em matéria tributária. Revista de Processo, São Paulo, ano 23, jan.-mar. 1998, p. 45.

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deve ser severamente rechaçada toda prática que lhe dê vida, como, igualmen-te, se soma à composição mentirosa o uso do processo para conseguir objetivo ilegal; proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo; provocar incidente manifestamente infundado ou interpor recurso com intui-to manifestamente protelatório, tudo devidamente previsto em lei (art. 80 do CPC, reitere-se).

Presente no processo a litigância de má-fé caberá ao juiz sob cuja presidên-cia e coordenação processual tramitam os autos, de ofício ou a requerimento do interessado, condenar o litigante de má-fé a pagar multa, que deverá ser superior a um por cento e inferior a dez por cento do valor corrigido da causa, a indenizar a parte contrária pelos prejuízos que esta sofreu e a arcar com os honorários advocatícios e com todas as despesas que efetuou (art. 81, caput, do CPC).

Registre-se aqui, que quando forem dois ou mais os litigantes de má-fé, o juiz condenará cada um na proporção de seu respectivo interesse na causa ou solidariamente aqueles que se coligaram para lesar a parte contrária (art. 81, § 1º, do CPC), sendo certo que, quando o valor da causa for irrisório ou ines-timável, a multa poderá ser fixada em até 10 (dez) vezes o valor do salário-mí-nimo (art. 81, § 2º, do CPC), bem como que o valor da indenização será fixado pelo juiz ou, caso não seja possível mensurá-lo, liquidado por arbitramento ou pelo procedimento comum, nos próprios autos (art. 81, § 3º, do CPC).

A repreensão a condutas antiéticas, materializadas pela litigância de má-fé, sedimenta e valoriza os vetores morais que direcionam os valores éticos, so-ciais e solidários inerentes às garantias do acesso à justiça (CF, art. 5º, XXXV) e do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV).

Valores que:

(...) conferem à tutela jurisdicional o seu campo ético, a que há de se sujeitar todo o desenvolvimento do processo, servindo de orientação para o com-portamento de todos os que atuam no cenário judicial, de modo a torná-los solidários na realização da justiça. Mesmo quando posicionados em pontos antagônicos, como se dá entre as partes e seus advogados, a solidariedade exigida pelo princípio ético de justiça, que impõe a observância do dever de veracidade e, sobretudo, de lealdade e boa-fé, deve presidir a regra do jogo processual. Do lado do juiz, esse vínculo moral de solidariedade, o levará a dirigir o processo ‘sob o signo da igualdade, garantindo a liberdade das par-tes, minimizando as diferenças, levando o processo, sempre que possível e prioritariamente, a uma decisão rápida e justa’. Essa moderna visão da ativi-dade processual valorizada pela solidariedade decorrente dos valores éticos

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da boa-fé e lealdade, e do compromisso com o justo, dá maior dignidade ao processo, afastando-o do papel de simples sucessão fria de atos e documen-tos, para transformá-lo em algo palpitante de vida, de anseios, angústias e esperanças17.

4. conclusão

Conclui-se, pois, após tudo quanto supraexposto, que a boa e a má-fé são comportamentos que evocam reflexões, ações e desdobramentos diferencia-dos. Para bem ou para o mal. É importante termos, portanto, nós, estudantes e operadores do direito, um “amuleto constitucional” para afastar as perversida-des da conduta antiética alimentada pela má-fé, valendo-se da diferenciação e da desmistificação das aparências que são apresentadas diuturnamente. “Assim são os demônios. Sabedoria metafísica de Riobaldo: ‘o demônio não precisa existir para haver – a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo’”18.

Diferencie a detração processual da litigância de má-fé, mas seja implacável com ambas. Não se transaciona ética, da mesma forma como não se presume o comportamento antiético. Não se trata de ganhar ou perder, mas de ser leal, correto, íntegro. Meditemos no que disse Riobaldo (Grande Sertões Veredas). Como dito num ditado popular, esse inimigo invisível19, que nos leva ao “peca-do” da má-fé, é pior do que um tigre. O perigo do tigre se resolve com um tiro; ambos, bala e tigre, são existentes. Mas, diante de um não existente, que arma você vai usar? Resposta: no nosso caso, a ética.

5. BiBliogrAFiA

ALVES, Rubens. Sobre demônios e pecados. Campinas: Verus, 2009.

COUTO, Mia. Antes de nascer o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1987.

17. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Boa-fé e processo – Princípios éticos na repressão à litigância de má-fé – Papel do juiz. Disponível em: [www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/humberto%20theodoro%20j%C3%BAnior(3)formatado.pdf]. Acesso em: 28.02.2017.

18. ALVES, Rubens. Sobre demônios e pecados. Campinas: Verus, 2009, p. 30.

19. Ibidem, p. 31.

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Direito Processual civil

AguiAr, Antonio Carlos. Litigância de má-fé e detração processual. Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 127-141. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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HORVATH, Estêvao; RODRIGUES, José Roberto Pernomian. Efeitos da modifi-cação de uma decisão judicial em matéria tributária. Revista de Processo, São Paulo, ano 23, jan.-mar. 1998.

KAPFERER, Jean-Noël. Boatos. O mais antigo mídia do mundo. Trad. Ivone da Silva Ramos Maya. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1983.

KARNAL, Leandro. A detração: breve ensaio sobre o maldizer. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2016.

LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. São Paulo: Editora Brasiliense, 2001.

MERICKEN, Herry Louis. O livro dos insultos. São Paulo: Cia das Letras, 1988.

PERELMAN, Chaïm. Retóricas. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

STRECK, Lenio Luiz. Compreender direito: desvelando as obviedades do discurso jurídico. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2013

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Pesquisas do editorial

Veja também Doutrina• A boa-fé no processo civil e o abuso de direitos processuais, de Rafael Wobeto Pinter –

RePro 253/129-160 (DTR\2016\4313);

• Ética, abuso do processo e resistência às ordens judiciárias: o contempt of court, de Ada Pellegrini Grinover – RePro 102/219-227 e Doutrinas Essenciais de Processo Civil 1|963--972(DTR\2001\206); e

• Litigância de má-fé no novo CPC. Penalidades e questões controvertidas. Respon-sabilidade do advogado, de Bruno Freire e Silva e Marcelo Mazzola – RePro 264/51- -81(DTR\2016\25042).

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richter, Bianca Mendes Pereira. Incidentes de resolução de demandas repetitivas e o papel dos Juizados Especiais Cíveis no caso do acidente Mariana-Samarco.

Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 143-167. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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inCidentes de resolução de demandas rePetitivas e o PaPel dos juizados esPeCiais Cíveis no Caso

do aCidente mariana-samarCo

Group Litigation in repetitive law suits and the role of Small Claims Court in the accident Mariana-Samarco

bianCa mendes Pereira riChter

Mestre em Direito Processual Civil – USP. Pesquisadora visitante – Faculdade de Direito – Universidade de Coimbra, 2012. Professora de Direito Processual Civil – Faculdade de Direito de São Bernardo do

[email protected]

Áreas do direito: Processual; Civil

resumo: O presente artigo analisa os dois inci-dentes de resolução de demandas repetitivas instaurados até o momento envolvendo a polui-ção hídrica em decorrência do acidente ocorrido em novembro de 2015, em Mariana-MG, com o derramamento de resíduos da “Barragem do Fundão” da Samarco-Mineradora, assim como o pedido de suspensão nacional de demandas se-melhantes feito ao Superior Tribunal de Justiça. Para uma análise técnica de tais incidentes pro-cessuais, investiga-se o incidente de resolução de demandas repetitivas em si e a sua aplicação aos Juizados Especiais Cíveis, onde essas deman-das repetitivas têm sido ajuizadas em diversos Estados da federação. Em decorrência de déficits legais, há questionamentos que culminaram com a suspensão de todos os órgãos responsáveis por instaurar e julgar esses incidentes perante os jui-zados no Brasil pelo Conselho Nacional de Justi-ça, o que é estudado detidamente adiante.

Palavras-Chave: Demandas repetitivas – Juiza-dos Especiais Cíveis – Poluição hídrica – Acidente Samarco – Suspensão.

abstraCt: This paper analyses two group litiga-tions in repetitive law suits admitted in the Bra-zilian Law System until this moment, regarding the water pollution originated from the accident that took place in November 2015 in the city of Mariana-MG when the dam known as “Fundão”, property of Samarco, broke down. It also dis-cusses the request made to the Superior Court of Justice to suspend all the law suits in Brazil regarding the same question. For a technical analysis of this subject, the group litigation in repetitive law suits is studied, as well as its ap-plication to the Small Claims Court, where these cases have been brought to. As consequence of lack of proper regimentation, the National Judi-cial Council suspended all the sectors responsi-ble to admit and judge the cases in Brazil, which is studied in detail later.

keywords: Group litigation – Small Claims Court – Water pollution – Samarco accident – Suspen-sion.

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Revista BRasileiRa da advocacia 2017 • RBA 6

richter, Bianca Mendes Pereira. Incidentes de resolução de demandas repetitivas e o papel dos Juizados Especiais Cíveis no caso do acidente Mariana-Samarco.

Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 143-167. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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Sumário: 1. Introdução. 2. Incidente de resolução de demandas repetitivas. 2.1. Conceito. 2.2. Natureza jurídica. 2.3. Pressupostos de instauração. 2.4. Procedimento. 2.5. Aplicação do incidente de resolução de demandas repetitivas aos Juizados Especiais Cíveis. 3. Polui-ção hídrica no acidente Mariana-Samarco. 3.1. Regulamentação do bem ambiental ‘água’ no ordenamento jurídico brasileiro. 3.2. Responsabilidade civil do poluidor ambiental. 4. Instauração de dois incidentes relativos ao acidente Samarco-Mariana: análise casuística. 4.1. IRDR – Espírito Santo. 4.2. IRDR – Minas Gerais. 4.3. Pedido de suspensão nacional ao Superior Tribunal de Justiça. 5. Problemática: suspensão pelo Conselho Nacional de Justiça no âmbito dos juizados do país. 5.1. Conselho Nacional de Justiça. 5.2. Suspensão de órgãos dos Juizados Especiais pelo Conselho Nacional de Justiça. 6. Conclusões. 7. Referências.

1. introdução

O Novo Código de Processo Civil (NCPC), Lei 13.105 de 2015, introduziu no ordenamento jurídico brasileiro o incidente de resolução de demandas re-petitivas (IRDR) entre os seus arts. 976 a 987, visando criar, juntamente com a técnica de julgamento de recursos extraordinários repetitivos, um micros-sistema de julgamento de causas repetitivas em decorrência da proliferação dessas demandas no Poder Judiciário brasileiro. Essa multiplicação de deman-das semelhantes é originada por diversos fatores, tais como a massificação do consumo, a repetição de contratos de adesão por grandes fornecedores, a con-centração da população em grandes centros, dentre outros.

Ocorre que, em novembro de 2015, a “Barragem do Fundão” no subdistrito de Bento Rodrigues, a 35 km da cidade de Mariana-MG, mantida pela Samarco Mineradora, rompeu-se, liberando uma enorme quantidade de rejeitos de mi-neração1, que terminaram por inundar o Rio Doce com resíduos tóxicos que chegaram até o mar.

Em decorrência do acidente, diversas cidades ficaram sem abastecimento de água por alguns dias. O fornecimento de água foi restabelecido, mas não sem a sua qualidade em relação à água ser questionada já que amostras cole-tadas demonstraram um alto índice de mercúrio e ferro na sua composição2.

1. Segundo noticiado no jornal O Globo, foram 62 milhões de m³ em rejeitos de mi-neração. Fonte: Acidente em Mariana é o maior da História com barragens de rejeitos. Disponível em: [https://oglobo.globo.com/brasil/acidente-em-mariana-o-maior-da--historia-com-barragens-de-rejeitos-18067899]. O Globo. Acesso em: 16.05.2017.

2. Época – O Globo. Disponível em: [http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/blog-do--planeta/noticia/2015/11/estes-sao-alguns-dos-danos-ambientais-causados-pela-la-ma-da-barragem-da-samarco.html]. Acesso em: 16.05.2017.

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Direito Processual civil

richter, Bianca Mendes Pereira. Incidentes de resolução de demandas repetitivas e o papel dos Juizados Especiais Cíveis no caso do acidente Mariana-Samarco.

Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 143-167. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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Vários indivíduos afetados propuseram ações judiciais de forma atomizada em face da Samarco, reclamando reparação material e/ou moral pela falta de abastecimento inicial de água e/ou pela baixa qualidade da água em seguida fornecida. Diante do elevado número de demandas judiciais, principalmente perante os Juizados Especiais Cíveis Estaduais, admitiu-se a instauração de dois incidentes de resolução de demandas repetitivas, um no Estado de Mi-nas Gerais e outro no Estado do Espírito Santo. Em razão de peculiaridades procedimentais e materiais, esses incidentes serão comentados separadamente adiante. Concomitantemente, foi feito um pedido de suspensão nacional des-sas causas perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ), ainda não analisado.

Assim, para que esse panorama fático-jurídico possa ser detidamente ana-lisado, estudar-se-á, primeiramente, o novel instituto do IRDR, seu conceito, natureza jurídica, pressupostos de instauração, procedimento e consequências nos limites restritos para que as repercussões dos incidentes já admitidos men-cionados possam ser compreendidas.

2. incidente de resolução de demAndAs rePetitivAs

2.1. Conceito

O IRDR é um novo instituto introduzido no ordenamento jurídico brasilei-ro pelo NCPC dentro da premissa que cerca o novo Código de valorização de precedentes no intento de que os tribunais mantenham as suas jurisprudên-cias íntegras, estáveis e coerentes (art. 926, NCPC)3. Assim, uma vez fixada a tese jurídica através da sistemática estabelecida dentre os arts. 976 a 987, a tese vinculará as demandas presentes que estarão suspensas e as demandas futuras sobre a mesma questão, conforme se compreende da leitura do art. 985, I, em combinação com o art. 927, ambos do NCPC.

Diz-se que o instituto é novo, pois, apesar de ter origens semelhantes em institutos alienígenas e mesmo internos4, a forma como ele foi regulamentado é pioneira no ordenamento jurídico brasileiro.

3. Não se analisarão as consequências para o ordenamento jurídico brasileiro de uma tese jurídica fixada em sede de IRDR por escapar ao objetivo da presente análise. Para tanto, recomenda-se a leitura de MARINONI, Luiz Guilherme. A ética dos precedentes: justificativa do novo CPC. 2. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2016.

4. As origens alienígenas remontam ao Musterverfahren do Direito Alemão e ao Group Litigation Order do Direito Inglês. Internamente, a ideia de julgamento de casos repe-titivos já existia na sistemática dos recursos extraordinários repetitivos (Lei 11.672,

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Diante da multiplicidade de questões semelhantes em processos individuais e coletivos, permite-se, através dessa técnica, que o tribunal fixe tese jurídi-ca, seja envolvendo direito material, seja direito processual. Evitam-se, assim, situações recorrentes no Poder Judiciário brasileiro em que pessoas com con-flitos originados a partir do mesmo contexto fático recebam provimentos juris-dicionais distintos, gerando grave situação de insegurança jurídica e quebra da pretendida isonomia. Portanto, o plano de fundo do IRDR envolve o trinômio segurança-isonomia-celeridade5-6. Esta entra no contexto do acesso à Justiça mencionado adiante, pois é uma das técnicas à disposição dos Tribunais para resolver a mesma questão de direito presente em diversas demandas atomiza-das a partir de um único procedimento, garantindo assim o direito fundamen-tal insculpido no art. 5º, LXXVIII, CF.

Uma vez admitido o incidente pelo colegiado responsável do tribunal, todas as demandas em trâmite na área de jurisdição deste que toquem a mesma ques-tão de direito serão suspensas, sejam elas individuais ou coletivas, para que a tese jurídica possa ser fixada pelo tribunal.

Definida a tese, ela será aplicada a todos os processos suspensos, inclusive nos Juizados Especiais (art. 985, I, NCPC), e a todos os processos futuros, por isso a importância da participação de entidades públicas e privadas na formação da tese. Consequência importante da inobservância da tese jurídica é a possibilidade de cabimento de reclamação (art. 985, § 1º, NCPC), além do cabimento de recurso extraordinário com presunção de repercussão geral (art. 987, § 1º, NCPC).

Dessa maneira, pode-se trazer que:

de 2008). Nesse sentido: LEONEL, Ricardo de Barros. Intervenção do Ministério Pú-blico no incidente de resolução de demandas repetitivas. Revista Jurídica da Escola Superior do Ministério Público, v. 1, p. 173-185, ano 2012, p. 175.

5. Sofia Temer desenvolve mais profundamente a questão da motivação para a criação do IRDR em seu primeiro capítulo, conferir: TEMER, Sofia. Incidente de resolução de demandas repetitivas. Salvador: JusPodivm, 2016, cap. 1.

6. “Quando, em decorrência da própria estrutura homogeneizante da relação jurídica, a individualidade dos litígios cede à massificação, o respeito à igualdade passa de recomendável para imperativo, pena de abalo na credibilidade do próprio Poder Ju-diciário e de estímulo à litigiosidade e à recorribilidade” (ARRUDA ALVIM, Teresa; DANTAS, Bruno. Recurso especial, recurso extraordinário e a nova função dos Tribunais Superiores no direito brasileiro. 3. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2016, p. 540).

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O escopo do IRDR é a tutela isonômica e efetiva dos direitos individuais homogêneos e seu advento traduz o reconhecimento do legislador de que a chamada “litigiosidade de massa” atingiu patamares insuportáveis em razão da insuficiência do modelo até então adotado, centrado basicamente na di-cotomia tutela individual x tutela coletiva.7

Assim, o IRDR não se encaixa nas categorias tradicionais de julgamento de conflitos intersubjetivos ou conflitos coletivos da forma como tratado pelo microssistema processual coletivo, formado pela Lei da Ação Civil Pública (LACP) – Lei 7.347 de 1985 – em conjunto com o Código de Defesa do Con-sumidor (CDC) – Lei 8.078 de 1990. Para tratar com mais vagar acerca disso, abre-se um ponto acerca de sua natureza jurídica a seguir.

2.2. Natureza jurídica

Em relação à natureza jurídica do IRDR, a discussão gira em torno se ele julga causas ou apenas serve para a fixação de teses. Como aponta Sofia Temer:

A definição da natureza do incidente é tarefa complexa, porque a lei não é clara a respeito de um aspecto essencial para determina-la: saber se o inci-dente compreenderá o julgamento da “causa”, ou seja, do conflito subjetivo que levou à sua instauração, ou se apenas haverá a resolução pontual da questão de direito, em abstrato, fixando-se a tese jurídica sem a resolução de conflitos subjetivos.8

Essa definição é importante, pois a partir dela sabe-se se se está diante de uma causa-piloto (julgamento da demanda subjetiva), que deverá ser resolvida pelo tribunal, ou de um procedimento-piloto (fixação de tese jurídica), em que caberá ao tribunal somente a fixação da tese de forma objetiva9.

Em razão de haver julgamento apenas de questões de direito no IRDR, li-mitando a cognição de questões fáticas e de a desistência da causa selecionada como modelo não impedir o prosseguimento do IRDR para a fixação de tese (art. 976, § 1º, NCPC), admite-se aqui que o IRDR tenha natureza jurídica de

7. ARRUDA ALVIM, Teresa; DANTAS, Bruno, op. cit., p. 537.

8. TEMER, Sofia. Incidente de resolução de demandas repetitivas. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 66.

9. Sobre o tema, conferir artigo de Antonio do Passo Cabral. CABRAL, Antônio do Pas-so. O novo procedimento-modelo (Musterverfahren) alemão: uma alternativa às ações coletivas. Revista de Processo, n. 147, ano 32, maio 2007.

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procedimento-piloto, ou seja, serve apenas à fixação de teses. Nesse sentido, ocorrerá uma “cisão funcional da competência para o julgamento de demandas repetitivas”10, sendo a questão de direito comum definida pelo tribunal e, em seguida, a tese será observada em casos semelhantes por todos os órgãos juris-dicionais localizados na esfera territorial do respectivo tribunal.

Portanto, o IRDR, por ser incidente, não gera a instauração de uma nova relação processual, tampouco a sua instauração e julgamento significam a avo-cação pelo tribunal das demandas repetitivas11.

2.3. Pressupostos de instauração

Para que o IRDR seja instaurado, há necessidade de processos com a mesma questão de direito, ou seja, tese jurídica subjacente, seja ela de direito material ou de direito processual (“efetiva repetição de processos”, no texto do art. 976, NCPC), gerando risco à isonomia e à segurança jurídica pelos motivos acima trazidos.

Não há definição pelo legislador de um número mínimo de casos que confi-gurem a efetiva repetição, ficando isso a cargo dos tribunais. Aqui, apontam Te-resa Arruda Alvim e Bruno Dantas que há, além da análise técnica da presença da repetição de casos, o juízo político feito pelo tribunal “[...] consistente em avaliar a conveniência de se adotar, naquele momento cronológico, a decisão paradigmática”12.

Presentes esses requisitos, os legitimados, que são juiz, relator, partes, Mi-nistério Público e a Defensoria, poderão requerer ao presidente do Tribunal a instauração do incidente. O pedido é simples no sentido de não ter relação com as demandas subjetivas que deram causa à repetição. Deve o legitimado, seja ele sujeito parcial ou instituição essencial à função jurisdicional do Estado, demonstrar a repetição e a quebra de isonomia. Poderia parecer contraditório à natureza do instituto poder a parte requerer a instauração do incidente, mas

10. LEONEL, Ricardo de Barros. Intervenção do Ministério Público no incidente de reso-lução de demandas repetitivas. Revista Jurídica da Escola Superior do Ministério Públi-co, v. 1, p. 173-185, 2012, p. 178.

11. No mesmo sentido: ARRUDA ALVIM, Teresa; DANTAS, Bruno. Recurso especial, re-curso extraordinário e a nova função dos Tribunais Superiores no direito brasileiro. 3. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2016, p. 539.

12. ARRUDA ALVIM, Teresa; DANTAS, Bruno. Recurso especial, recurso extraordinário e a nova função dos Tribunais Superiores no direito brasileiro. 3. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2016, p. 539.

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não é. A escolha legislativa se deu em decorrência do fato de as partes serem usualmente as primeiras a notarem a multiplicação de casos semelhantes com a consequente quebra de isonomia e segurança jurídica13.

2.4. Procedimento

Há quem divida o processamento do IRDR em três fases: instauração e ad-missão; afetação e instrução; e julgamento14; e há quem o divida em apenas duas: admissibilidade e mérito15. Por escapar ao objetivo do presente artigo, não se incursionará no procedimento do incidente em comento com tal pro-fundidade. Restringir-se-á a presente análise aos aspectos do procedimento que interessam para o estudo dos incidentes relacionados ao caso Mariana-Sa-marco.

Assim, feito o pedido ou o ofício de instauração do IRDR para o Presidente do Tribunal, passa-se ao juízo de admissibilidade pelo colegiado competente conforme indicado no regimento interno de cada tribunal. Essa previsão legal segue estritamente o quanto disposto no art. 96, I, a, CF, ao determinar que cabe aos tribunais dispor sobre competência e funcionamento de seus órgãos jurisdicionais. No entanto, o legislador de 2015 limitou a escolha desse cole-giado aos órgãos responsáveis pela uniformização de jurisprudência do tribu-nal (art. 978, NCPC).

Como deixa clara a redação do art. 981, NCPC, o julgamento deve ser por órgão colegiado16, avaliando a presença dos pressupostos de instauração do art. 976, conforme explicitado anteriormente.

Admitido o incidente, têm-se importantes consequências: “(a) definição provisória do objeto do IRDR; (b) suspensão da tramitação dos processos que

13. ARRUDA ALVIM, Teresa; DANTAS, Bruno, op. cit., p. 541.

14. TEMER, Sofia. Incidente de resolução de demandas repetitivas. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 101.

15. ARRUDA ALVIM, Teresa; DANTAS, Bruno, op.cit., p. 539.

16. NCPC, art. 981. Após a distribuição, o órgão colegiado competente para julgar o inciden-te procederá ao seu juízo de admissibilidade, considerando a presença dos pressupostos do art. 976.

No mesmo sentido, Enunciado 91 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: Cabe ao órgão colegiado realizar o juízo de admissibilidade do incidente de resolução de demandas repetitivas, sendo vedada a decisão monocrática. Disponível em: [www.dropbox.com/s/i4n5ngh49y1b1f4/Carta%20de%20Florian%C3%B3polis.pdf?dl=0]. Acesso em: 22.05.2017.

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contenham tal questão repetitiva”17. A decisão da (in)admissão do incidente é irrecorrível, salvo a oposição de embargos de declaração. A suspensão dos processos é pelo prazo de um ano, prorrogável18 por decisão fundamentada do relator.

Como a tese jurídica firmada em sede de IRDR terá força de precedente, vinculando os processos pendentes e os processos futuros que tratem da mes-ma questão, importante se faz construí-la da melhor maneira possível para que ela encontre aderência na sociedade. Para tanto, poderá ocorrer a requisição de informações a órgãos públicos, a oitiva de órgãos e entidades interessadas na controvérsia e a realização de audiências públicas. Além disso, o Ministério Público atuará obrigatoriamente como fiscal da ordem jurídica se não tiver sido ele a provocar a instauração do incidente.

Em relação ao processamento do IRDR, convém destacar que:

A paralisação dos processos repetitivos não faz cessar os conflitos indivi-duais estabelecidos no plano empírico. Assim, é perfeitamente possível que, na pendência de julgamento do IRDR, a situação de litígio se agrave em alguma demanda específica ou mesmo ocorra um fato que exija expedita atuação estatal assecuratória ou satisfativa, a fim de evitar que o réu cause lesão grave ao direito ainda em discussão pleiteado pelo autor19.

Assim, durante a suspensão dos processos na origem, as partes podem re-querer as tutelas de urgência ao órgão jurisdicional perante o qual tramita o feito suspenso.

Há ainda a possibilidade de suspensão das demandas com questão de di-reito repetitiva em todo o país através de requerimento ao STJ ou ao STF. Esse tópico será aprofundado adiante quando se tratar do pedido que foi feito ao STJ, concernente ao acidente Samarco-Mariana.

17. TEMER, Sofia. Incidente de resolução de demandas repetitivas. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 120.

18. NCPC, art. 980. O incidente será julgado no prazo de 1 (um) ano e terá preferência sobre os demais feitos, ressalvados os que envolvam réu preso e os pedidos de habeas corpus.

Parágrafo único. Superado o prazo previsto no caput, cessa a suspensão dos proces-sos prevista no art. 982, salvo decisão fundamentada do relator em sentido contrário.

19. ARRUDA ALVIM, Teresa; DANTAS, Bruno. Recurso especial, recurso extraordinário e a nova função dos Tribunais Superiores no direito brasileiro. 3. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2016, p. 543.

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2.5. Aplicação do incidente de resolução de demandas repetitivas aos Juizados Especiais Cíveis

Os Juizados Especiais Cíveis têm previsão constitucional (art. 98, I, CF) e foram estruturados para a autocomposição, julgamento e execução de causas cíveis de menor complexidade. A regulamentação legal para o tema encontra amparo em três leis infraconstitucionais20 que compõem o microssistema dos Juizados Civis.

Enquadram-se os Juizados na primeira onda renovatória de acesso à Justi-ça, como falaram Mauro Cappelletti e Bryant Garth21, na tentativa de eliminar entraves econômicos de acesso à prestação jurisdicional justa e efetiva. Em de-corrência dessa finalidade, há previsões positivadas com este intento, tal como a desnecessidade de capacidade postulatória para demandas de até vinte salá-rios mínimos nos Juizados Especiais Cíveis estaduais.

À medida que as relações sociais e contratuais se padronizaram, inclusive com o aumento do acesso da população de baixa renda a serviços e produtos antes distantes, a procura pela resolução de conflitos perante essas Cortes au-mentou demasiadamente22, fazendo com que exista a necessidade de técnicas de resolução de demandas repetitivas a partir da fixação de teses, como é o instituto ora em análise do IRDR23, que é aplicável aos Juizados por expressa previsão legal do art. 985, I, NCPC:

Julgado o incidente, a tese jurídica será aplicada: I – a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão de direito e que

20. Lei 9.099 de 1995, que regulamenta o Juizado Especial Cível Estadual; Lei 10.259 de 2001, Juizado Especial Cível Federal; e Lei 12.153 de 2009, Juizado da Fazenda Pública.

21. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Trad. Ellen Gracie North-fleet. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1988, passim.

22. Conferir relatório do Conselho Nacional de Justiça. Perfil do Acesso à Justiça nos Jui-zados Especiais Cíveis. Disponível em: [www.cnj.jus.br/files/conteudo/destaques/ar-quivo/2015/06/b5b551129703bb15b4c14bb35f359227.pdf]. Acesso em: 17.05.2017.

23. Sobre o perfil dos Juizados Especiais Cíveis: “Não é outra a proposta dos Juizados. À medida que a sociedade de consumo se fortalece e que as maneiras de se relacionar padronizam-se, os Juizados vêm propor um procedimento mais célere e econômico, primando pelo princípio da efetividade da jurisdição, no tratar de tantas lides idên-ticas que se avolumam nos gabinetes dos magistrados” (BRASIL, Maria Eduarda de Oliveira; DUARTE, Antonio Aurelio Abi-ramia. Os Juizados Especiais Estaduais e o IRDR – por uma busca harmônica dos mesmos objetivos. Disponível em: [www.tjrj.jus.br/documents/10136/1186838/irdr-juizados.pdf]. Acesso em: 17.05.2017).

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tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal, inclusive àqueles que tramitem nos juizados especiais do respectivo Estado ou região;”

Dessa maneira, não resta dúvida quanto ao cabimento do método de fixação de tese jurídica, denominado IRDR, aos Juizados. As questões tormentosas, que se colocam, vão além do seu cabimento, que foi regulamentado, atingindo aspectos deixados de lado pelo legislador de 2015 e que têm trazido várias discussões doutrinárias e problemas práticos aos tribunais.

Como mencionado anteriormente, o IRDR somente pode ser instaurado por tribunal, seja estadual, federal ou superior. A primeira questão espinhosa que se coloca tem relação com a sistemática diferenciada da organização recur-sal dos Juizados Especiais, que não têm seus recursos julgados pelos tribunais locais tradicionais, mas por Turmas Recursais compostas por três Juízes de primeiro grau, com competência para o julgamento do recurso inominado. Pelo fato de as Turmas Recursais não serem tribunais, parece óbvio (apenas parece, como se verá adiante) que elas não possam instaurar qualquer inciden-te de resolução de demandas repetitivas. A interpretação lógica do artigo 985, I, NCPC, retro mencionado, é no sentido de as teses jurídicas serem fixadas pelos tribunais de 2º grau e aplicadas, assim, às causas que também estejam tramitando nas Cortes de Pequenas Causas.

Um dos primeiros pontos já levantados pela doutrina diz respeito à (im)possibilidade de o juiz do Juizado Especial Cível, de ofício, solicitar a instau-ração de IRDR ao Tribunal. Seria isso possível? Acredita-se que sim, pois não se pode estabelecer restrição ao cabimento de um novo instituto onde a lei não o quis24.

Fato é que aparentemente ocorreu uma subversão do microssistema dos Juizados Especiais que jamais contou com a participação dos tribunais locais de 2º grau e agora passa a contar25.

24. BRASIL, Maria Eduarda de Oliveira; DUARTE, Antonio Aurelio Abi-ramia, op.cit., p. 12. “Essa não parece, entretanto, a melhor visão. Em verdade, nunca se mostra o mais sensato fazer restrições onde a lei nada limitou. Dada, inclusive, a importância da matéria objeto do incidente, mais adequada se mostra a corrente que afasta tal requisito não expresso, admitindo o julgamento tão somente do IRDR para formular a tese jurídica.” Apesar de não se concordar com a conclusão final desenhada pelos autores, cabe citar essa conclusão parcial, com a qual se alinha esta autora.

25. “O perigo subjacente nessa previsão é de que haja uma subversão de todo o micros-sistema dos juizados, em que não há a participação dos TJs e TRFs, sendo as turmas de uniformização as responsáveis pela formação dos precedentes” (KOEHLER, Fre-

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Esse fato se deu possivelmente em decorrência da falta de maior reflexão legislativa acerca da vinculação das teses jurídicas firmadas em IRDR pelos tribunais aos Juizados Especiais26, pois o texto conforme aprovado do NCPC somente incluiu a previsão de vinculação em seu último suspiro legislativo. De qualquer maneira, a vinculação existe pelo expresso texto legal e também como decorrência lógica de sua aplicação a essas Cortes em que a repetição de demandas é a sua bandeira. Nesse sentido é o Enunciado 93 do Fórum Perma-nente de Processualistas Civis27.

Outro ponto frágil da aplicação do IRDR à sistemática dos Juizados Espe-ciais tem relação com a possibilidade de instauração e fixação de tese jurídica em sede de IRDR pelo STJ, com a consequente vinculação de todos os Juizados do país. A questão é polêmica em decorrência da impossibilidade de interposi-ção de recurso especial da decisão de turma recursal, como determina o Enun-ciado 203 da Súmula do STJ, ao dizer que “Não cabe recurso especial contra decisão proferida por órgão de 2º grau dos Juizados Especiais”.

É incontestável que o NCPC não se preocupou com as peculiaridades, principalmente recursais, do microssistema dos Juizados Especiais. Frederico Augusto Leopoldino Koehler28 sugeriu, ainda quando o NCPC estava em seu período de vacatio legis, a alteração de seu texto para a adequada regulamen-tação do tema não passar em branco. Entretanto, essa alteração não ocorreu e problemas práticos têm surgido, com a consequente suspensão de todos os órgãos dos Juizados Especiais que estavam processando incidentes pelo Con-selho Nacional de Justiça (CNJ), como se analisará adiante. Para se entender bem os casos que levaram à referida suspensão, convém trazer a lume os fa-tos e a sua correspondente regulamentação jurídica que lhe deram origem: a

derico Augusto Leopoldino. Os problemas e os desafios decorrentes da aplicação do incidente de resolução de demandas repetitivas nos Juizados Especiais. In: REDON-DO, Bruno Garcia; SANTOS, Welder Queiroz dos; SILVA, Augusto Vinícius Fonseca; VALLADARES, Leandro Carlos Pereira (coord.). Juizados Especiais. Salvador: JusPo-divm, 2015, p. 576).

26. KOEHLER, Frederico Augusto Leopoldino, op. cit., p. 575.

27. 93. “Admitido o incidente de resolução de demandas repetitivas, também devem ficar suspensos os processos que versem sobre a mesma questão objeto do incidente e que tramitem perante os juizados especiais no mesmo estado ou região”. Todos os enuncia-dos podem ser consultados no seguinte link: [www.dropbox.com/s/i4n5ngh49y1b1f4/Carta%20de%20Florian%C3%B3polis.pdf?dl=0]. Acesso em: 17.05.2017.

28. KOEHLER, Frederico Augusto Leopoldino, op. cit., p. 582-583.

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poluição hídrica no caso do acidente em Mariana-MG com o rompimento da barragem de “Fundão” pertencente à Samarco, que se passa a analisar.

3. Poluição hídricA no Acidente mAriAnA-sAmArco

3.1. Regulamentação do bem ambiental ‘água’ no ordenamento jurídico brasileiro

A Constituição Federal garante a todos os cidadãos das presentes e das futuras gerações o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equi-librado (art. 225, CF)29, englobando o bem ambiental “água” nesse contexto. A água é indispensável a toda forma de vida e é considerada recurso não reno-vável. Nas palavras de Paulo de Bessa Antunes:

A importância das águas é tamanha que o tribunal mais antigo em funciona-mento no mundo é uma corte voltada para as questões hídricas na Espanha. Na verdade, os conflitos pelo uso das águas são cada vez mais frequentes e intensos e vão desde o nível local até o nível internacional. Questões susci-tadas por populações situadas a jusante dos rios surgem sempre com mais força.30

Não cabe aqui analisar-se toda a regulamentação referente a esse bem am-biental, mas somente aquilo que diz respeito aos casos de poluição hídrica decorrente do acidente em Mariana-MG.

O Código de Águas, Decreto 24.643 de 1934, foi construído a partir da concepção de que “[...] as águas são um dos elementos básicos do desenvol-vimento, pois a eletricidade é um subproduto essencial para a industrializa-ção do País.”31 De forma antecipada à regulamentação constitucional e legal da responsabilização civil, independentemente da esfera criminal, o referido diploma legal determinou que aquele que contaminar águas deve responder civilmente e criminalmente, nos seguintes termos:

29. CF, art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Pú-blico e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

30. ANTUNES, Paulo de Bessa. Manual de direito ambiental. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 194.

31. Ibidem, p. 197.

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Direito Processual civil

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Art. 109. A ninguém é lícito conspurcar ou contaminar as águas que não consome, com prejuízo de terceiros.

Art. 110. Os trabalhos para a salubridade das águas serão executados á custa dos infratores, que, além da responsabilidade criminal, se houver, respon-derão pelas perdas e danos que causarem e pelas multas que lhes forem impostas nos regulamentos administrativo.

No entanto, muitos dos dispositivos do Código de Águas não foram recep-cionados pela CF/88 e a maior parte da regulamentação do tema ficou a cargo da Lei 9.433 de 1997, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos.

Paralelamente, a Lei 6.938 de 1981, que criou a Política Nacional do Meio Ambiente, determina que o estabelecimento de padrões de qualidade ambien-tal é um dos instrumentos para a execução de sua política nacional, cabendo ao Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) instituir padrões relativos à qualidade dos recursos ambientais:

Por seu turno, o Conama editou a Resolução 357/2005, complementada pela Resolução 430/2011, que dispõe sobre a classificação e diretrizes am-bientais para o enquadramento dos corpos de águas superficiais, bem como estabelece as condições e padrões de lançamento de efluentes, classificando as águas em doces (salinidade de até 0,5%), salobras (salinidade acima de 0,5% e inferior a 30%) e salinas (acima de 30%), todas repartidas em 13 classes de destinação no total, ainda havendo uma subdivisão em classes.

Nessa Resolução foram estabelecidos padrões de qualidade da água, sendo curial a realização de exames laboratoriais (grifo da autora)32.

Ainda sobre o direito material relacionado aos incidentes em comento, con-vém que se traga a lume a Política Nacional de Segurança de Barragens, Lei 12.334 de 2010, que são destinadas à acumulação de água para quaisquer usos, à disposição final ou temporária de rejeitos e à acumulação de resíduos indus-triais, segundo seu art. 1º. Considera-se barragem “qualquer estrutura em um curso permanente ou temporário de água para fins de contenção ou acumu-lação de substâncias líquidas ou de misturas de líquidos e sólidos, compreen-dendo o barramento e as estruturas associadas” (art. 2º, Lei 12.334/10). A Lei ainda criou o Sistema Nacional de Informações sobre Segurança de Barragens com informações sobre categoria de risco, dano potencial e volume.

32. AMADO, Frederico. Direito ambiental esquematizado. 4. ed. São Paulo: Método, 2013, p. 336.

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Ao tratar do tema ‘poluição hídrica’, faz-se de fundamental importância di-ferenciar os termos: ‘poluição’ de ‘degradação’. Segundo a Lei da Política Na-cional do Meio Ambiente, degradação é a alteração adversa das características do meio ambiente, ao passo que a poluição é a alteração adversa deste por atividades humanas (art. 3º, Lei 6.938/81). O poluidor, por sua vez, é pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, ainda que indire-tamente, por atividade causadora de degradação ambiental.

Dessa maneira, o recurso ambiental ‘água’ é extremamente importante para o ser humano e para o equilibro ecológico a ponto de o legislador regulamentar diversos aspectos relacionados ao bem. Nas palavras de Édis Milaré:

Os riscos tornam-se realidade quando se verificam os diversos tipos de po-luição das águas. É preciso ir às causas do mal. A vigilância será exercida primariamente sobre as principais fontes de poluição, a saber: [...] mine-ração, [...] além da poluição potencial e indiretamente gerada a partir, por exemplo, de obras de infraestrutura mal gerenciadas.33

Constatado o dano ambiental, o poluidor deve responder por sua conduta criminalmente, administrativamente e civilmente (art. 225, § 3º, CF). Passa-se à análise da sistemática da responsabilidade civil do poluidor ambiental no ordenamento jurídico brasileiro, pois essa é a esfera que levou à discussão nos incidentes de resolução de demandas repetitivas34.

3.2. Responsabilidade civil do poluidor ambiental

Uma vez gerado o dano ambiental, o causador do dano responde nos ter-mos do art. 225, § 3º, CF: “As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.” Além disso, o constituinte ainda dispôs que “aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei”, nos termos do § 2º do art. 225. Assim, a atividade de mineração deve

33. MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. 10. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2015, p. 526.

34. Foge ao escopo desse artigo entrar no tema da responsabilidade penal e administra-tiva do poluidor ambiental. Para tanto, remete-se o autor à obra citada acima de Édis Milaré.

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ser licenciada, constando do procedimento de licenciamento a solução técnica de recuperação do meio ambiente degradado.

Independentemente da técnica empregada para a recuperação do meio am-biente, tendo ocorrido um acidente causador de dano em barragem utilizada por empresa do ramo da mineração, há que se falar em responsabilidade civil. Assim, com a ocorrência do dano ambiental, o poluidor responde de forma objetiva, nos termos do art. 14, § 1º, da Lei 6.938 de 1981:

§ 1º Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o po-luidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente.

O dano ambiental pode ser coletivo, quando causado ao meio ambiente globalmente considerado, levando-se em consideração a classificação dos in-teresses coletivos em sentido lato conforme proposta pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078 de 1990, art. 81, parágrafo único), em difusos e coletivos em sentido estrito, e também pode ser individual. O dano individual, também conhecido por dano por ricochete ou reflexo, atinge pessoas certas e dá ensejo à indenização dirigida à recomposição do prejuízo pessoal. Proces-sualmente, ele pode ser pleiteado de forma coletiva pelos legitimados coletivos do art. 5º da Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347 de 1985) ou individualmente através do processo civil clássico e individual.

Os elementos da responsabilidade civil são: (i) conduta, podendo ser omissiva ou comissiva; (ii) dano; (iii) nexo de causalidade; e (iv) elemento subjetivo.

Por ser objetiva a responsabilidade, não se analisa este último elemento. A responsabilidade objetiva baseia-se, nesse caso, na teoria do risco da ativi-dade (ou do risco criado) com fundamento no art. 927, parágrafo único, CC: “Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.

Para Édis Milaré:

Ao assim dispor, o diploma da cidadania reconheceu campo próprio de in-cidência à teoria objetiva de responsabilidade civil, segundo o cânone da teoria do risco criado, que se fundamenta no princípio segundo o qual se alguém introduz na sociedade uma situação de risco para terceiros deve res-

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ponder pelos danos advenientes, uma vez comprovado o seu liame com a atividade, mesmo lícita, de agente.35

Portanto, têm-se as seguintes consequências da objetivação da responsabi-lidade civil com base na mencionada teoria do risco integral:

(i) prescindibilidade de investigação de culpa; (ii) irrelevância da licitude da atividade; (iii) irrelevância da outorga de autorização, licença ou permissão do Poder Público; (iv) inaplicabilidade de excludentes de responsabilidade, tais como caso fortuito, força maior, culpa exclusiva da vítima ou de tercei-ros e risco de desenvolvimento.

Com base nessa sistemática de responsabilidade, diversos moradores que ficaram sem fornecimento de água por alguns dias e posterior fornecimento de água de duvidosa qualidade em decorrência do acidente em Mariana-MG ingressaram judicialmente de forma individual, pleiteando reparação por da-nos materiais e/ou morais perante os Juizados Especiais Cíveis estaduais, por conta da facilitação do acesso à Justiça que esses órgãos propiciam à popula-ção, como maior oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, nos termos do art. 2º da Lei 9.099 de 1995.

4. instAurAção de dois incidentes relAtivos Ao Acidente sAmArco-mAriAnA: Análise cAsuísticA

4.1. IRDR – Espírito Santo

O primeiro IRDR a ser instaurado relacionado às demandas repetitivas acer-ca do acidente Mariana-Samarco foi no estado do Espírito Santo e suscitado pelos magistrados que compõem a Turma Recursal dos Juizados Especiais da região norte no referido Estado, tendo recebido a numeração 040/2016. Ale-gou-se na decisão de instauração do referido IRDR que:

(...) em síntese, divergências nas decisões das inúmeras ações protocolizadas junto aos Juizados Especiais Cíveis, em especial àqueles vinculados às co-marcas de Colatina e Linhares, que visam a reparação civil decorrente de ato ilícito praticado pela empresa Samarco Mineração S/A, tendo como causa de pedir os danos advindos da falha na prestação de serviços por ela prestados,

35. MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. 10. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2015, p. 420.

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que resultou no rompimento de barragens de rejeitos de Fundão no Estado

de Minas Gerais, interrompendo o abastecimento de água potável nas cida-

des banhadas pelo Rio Doce, bem como na Vila de Regência, Município de

Linhares, onde ocorre o encontro do rio com o mar.36

Dessa forma, determinou-se o sobrestamento de todas as demandas com a mesma questão de direito no estado do Espírito Santo no dia 26 de setembro de 2016. O julgamento deu-se em 10 de março de 2017 no sentido de conde-nar a empresa a pagar indenização no valor de mil reais para cada afetado pela interrupção no serviço de fornecimento de água.

Nesse interregno, o Tribunal de Justiça do Espírito Santo editou a Reso-lução 23/2016, em 11 de novembro de 2016, regulamentando, dentre outros assuntos, o cabimento e o processamento de IRDR nos Juizados do respectivo estado, como deixa claro o seu art. 57:

É cabível a instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas

no âmbito dos Juizados Especiais quando ocorrer, simultaneamente, efetiva

repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão

unicamente de direito e risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica.37

Tal regulamentação chama atenção pelo fato de contrariar o quanto dis-posto no NCPC que determina expressamente que o IRDR somente poderá ser instaurado e julgado por Tribunal, nos termos do art. 977, que obviamente não é o caso da Turma Recursal ou da Turma de Uniformização do sistema dos Juizados Especiais.

A situação é peculiar, pois apesar de a resolução ser contra legem, ela tenta conciliar a sistemática do IRDR à organização dos Juizados, que não recebeu maior reflexão quando da elaboração do novo Código, como apontado ante-riormente. A questão que se coloca é se tribunal local poderia regulamentar tema de forma específica apesar do quanto disposto no texto do NCPC. Vol-ta-se a esse tema adiante quando da análise da decisão do CNJ relacionada a essa questão.

36. TJES. Decisão. Disponível em: [https://sistemas.tjes.jus.br/ediario/index.php/compo-nent/ediario/439633?view=content]. Acesso em: 30.05.2017.

37. TJES. Resolução 23 de 2016. Disponível em: [https://sistemas.tjes.jus.br/ediario/index.php/component/ediario/454474?view=content]. Acesso em: 30.05.2017.

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4.2. IRDR – Minas Gerais

No Estado de Minas Gerais, a situação tem contornos diversos da apresen-tada para o Estado do Espírito Santo. Em terras mineiras, vários indivíduos que têm recebido água em suas casas e em seus trabalhos depois do acidente da Samarco levaram ao Poder Judiciário, através dos Juizados Especiais Cíveis, demandas contra a Samarco com relação à baixa qualidade da água distribuída.

Diante da multiplicação de demandas individuais versando sobre os mes-mos fatos, a Samarco requereu a instauração de IRDR ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), alegando que os Juizados não teriam competência para o julgamento dessas ações que necessitariam de prova pericial complexa, a qual é incompatível com o procedimento sumaríssimo das Cortes de Pequenas Causas. Dessa maneira, a questão de direito semelhante a todas as demandas tem relação com o direito processual e envolve a necessidade de prova pericial ou não para essas demandas repetitivas.

O incidente foi admitido38, em 20 de março de 2017, em razão da quebra da isonomia já constatada, pois em alguns casos ocorreu a condenação da Sa-marco sem a prova pericial e, em outros, houve a extinção do processo sem julgamento de mérito por necessidade de produção desta.

Portanto, todos os processos que envolvam a mesma questão de direito, a necessidade ou não da prova pericial complexa quanto à qualidade da água fornecida, ficarão suspensos até o TJMG resolver a questão em sede de IRDR.

Importa destacar que o incidente foi admitido pelo TJMG da forma como regulamentado pelo NCPC.

4.3. Pedido de suspensão nacional ao Superior Tribunal de Justiça

Da forma como concebido, ou seja, para evitar violações à isonomia e à segurança jurídica, entendeu-se necessário criar formas de os Tribunais Su-periores, STF e STJ, participarem desses incidentes ainda na fase inicial de processamento do IRDR, evitando a demora na interposição e processamento de um recurso extraordinário em sentido lato.

Dessa maneira, o legislador incluiu os §§ 3º e 4º ao art. 98239, NCPC, per-mitindo aos legitimados para a instauração do IRDR a provocação dos Tribu-

38. Processo 1.0105.16.000562-2/001 – TJMG.

39. NCPC, art. 982, § 3º: “Visando à garantia da segurança jurídica, qualquer legitimado mencionado no art. 977, incisos II e III, poderá requerer, ao tribunal competente para

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nais Superiores para que a suspensão dos processos em curso possa se dar em âmbito nacional, evitando-se, assim, decisões contraditórias nacionalmente.

Interessante destacar o quanto determinado pelo mencionado § 4º que per-mite ao indivíduo que não teve seu processo suspenso, por ele não tramitar na esfera territorial do tribunal local, solicitar ao Tribunal Superior a suspensão das demandas nacionalmente, trazendo importantes reflexões acerca do inte-resse recursal no processo civil de acordo com o NCPC40.

Assim, diante desse contexto legislativo, o STJ recebeu pedido para suspen-der todos os processos que discutam danos causados pelo acidente ambiental em Mariana-MG e que tramitem em varas cíveis ou em Juizados Especiais de todo o país, pois mais de 100 mil ações já foram levadas ao Poder Judiciário com a mesma causa de pedir. O pedido foi distribuído ao Ministro Paulo de Tarso Sanseverino em maio de 2017.

5. ProBlemáticA: susPensão Pelo conselho nAcionAl de justiçA no âmBito dos juizAdos do PAís

5.1. Conselho Nacional de Justiça

O CNJ, segundo o art. 92, CF, é um dos órgãos do Poder Judiciário. Ele foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro em 2004, com a Emenda Cons-titucional 45, que implementou a chamada “Reforma do Poder Judiciário”.

Assim, não se trata de um controle externo deste Poder. É um órgão in-terno, ainda que na sua composição existam pessoas estranhas à estrutura do próprio Judiciário, conforme determina o art. 103-B, CF, estabelecendo que a sua estrutura é composta de quinze membros com mandato de dois anos, sendo admitida uma recondução. A presidência do CNJ cabe ao Presidente do STF. Os demais membros são nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pelo Senado Federal.

conhecer do recurso extraordinário ou especial, a suspensão de todos os processos individuais ou coletivos em curso no território nacional que versem sobre a questão objeto do incidente já instaurado”.

“§ 4º Independentemente dos limites da competência territorial, a parte no processo em curso no qual se discuta a mesma questão objeto do incidente é legitimada para requerer a providência prevista no § 3º deste artigo.”

40. DUARTE, Zulmar. Interesse recursal e o novo CPC: sucumbência jurídica. Disponível em: [https://jota.info/colunas/novo-cpc/interesse-recursal-e-o-novo-cpc-sucumbencia- juridica-29052017]. Acesso em: 02.06.2017.

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A competência do Conselho é para a fiscalização da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, conforme especificado pelo art. 103-B, § 4º, incisos, CF.

Interessante pontuar que a expedição de atos regulamentares pelo CNJ não viola a separação de Poderes, como já entendeu o STF:

Constitucional. (…) Conselho Nacional de Justiça. Atribuições. Art. 103-B da CF. Expedição de atos regulamentares. (…). I – O art. 103-B da Constitui-ção da República, introduzido pela Emenda Constitucional 45/2004, dispõe que o Conselho Nacional de Justiça é órgão com atribuições exclusivamente administrativas e correicionais, ainda que, estruturalmente, integre o Poder Judiciário. II – No exercício de suas atribuições administrativas, encontra-se o poder de “expedir atos regulamentares”. Esses, por sua vez, são atos de co-mando abstrato que dirigem aos seus destinatários comandos e obrigações, desde que inseridos na esfera de competência do órgão. III – O Conselho Nacional de Justiça pode, no lídimo exercício de suas funções, regulamentar condutas e impor a toda magistratura nacional o cumprimento de obriga-ções de essência puramente administrativa. (…) (MS 27621, Rel. p/ acór-dão: Min. Ricardo Lewandowski, Pleno, j. 07.12.2011).

Além disso, em face das resoluções normativas exaradas pelo CNJ é possível ainda o cabimento de ação direta de (in)constitucionalidade41.

Uma das atribuições do CNJ que é digna de nota em razão de ter relação com o caso ora em comento é a listada no art. 103-B, § 4º, II, CF, que dita caber ao CNJ:

II – zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provo-cação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuí-zo da competência do Tribunal de Contas da União; (grifo da autora).

Assim, os atos administrativos do Judiciário podem ser revistos pelo CNJ de forma que a lei seja devidamente cumprida. Feita essa breve contextualização acerca das atribuições do CNJ, cabe analisar a decisão liminar concedida pelo Conselheiro Henrique Ávila, suspendendo todos os órgãos que julgam repeti-tivos no âmbito dos Juizados Especiais do país a seguir.

41. Nesse sentido: ADC 12 MC, Rel. Min. Carlos Britto, j. 16.02.2006.

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5.2. Suspensão de órgãos dos Juizados Especiais pelo Conselho Nacional de Justiça

No fim de abril de 2017, o Conselheiro Henrique Ávila do CNJ concedeu liminarmente o pedido de suspensão da Resolução 23 de 2016 do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, mencionada anteriormente, em um pedido de provi-dências. Consequentemente, todos os órgãos que julgam demandas repetitivas nos Juizados Especiais restaram suspensos. A decisão ainda será submetida ao Plenário do CNJ42.

Além de suspender a resolução mencionada, a decisão determinou a expe-dição de ofícios aos 26 Tribunais de Justiça locais e aos 5 Tribunais Regionais Federais para que suspendam quaisquer órgãos recursais responsáveis por jul-gar incidentes de resolução de demandas repetitivas eventualmente criados.

A decisão baseou-se no texto de lei do NCPC, que determina que a instau-ração e o julgamento de IRDR somente se deem por tribunais, como explicado anteriormente. A possibilidade de instauração de IRDR pelo Tribunal e pelo Juizado, na mesma base territorial, poderia gerar conflito lógico de teses jurí-dicas para uma mesma população, trazendo situação de insegurança jurídica e quebra de isonomia, situações que a criação do instituto do IRDR procurou evitar.

Segundo noticia o CNJ:

(...) é fundamental que seja impedida a criação desses sistemas de uniformi-zação de jurisprudência nos juizados, devido ao prejuízo caso toda a estru-tura for criada, nos tribunais do país, com a remoção e designação de ma-gistrados para esses novos órgãos, estabelecimento de estrutura física com dispêndio de energia e recursos financeiros, elaboração de jurisprudência e, ao final, a solução do CNJ for pela impossibilidade de instalação.43

Até que se delibere se a Resolução do TJES está de acordo com o NCPC, todos os órgãos criados especialmente para o julgamento de IRDR no âmbito dos Juizados Especiais deverão ficar sem funcionar. A decisão do CNJ não influencia nos incidentes já julgados pelos órgãos agora suspensos nem nas ações individuais que cuidaram ou cuidam do tema, pois não cabe ao CNJ

42. Até o momento de elaboração deste artigo, não havia sido.

43. Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: [www.cnj.jus.br/noticias/cnj/84649-limi-nar-suspende-recursos-repetitivos-nos-juizados-especiais]. Acesso em: 05.06.2017.

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richter, Bianca Mendes Pereira. Incidentes de resolução de demandas repetitivas e o papel dos Juizados Especiais Cíveis no caso do acidente Mariana-Samarco.

Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 143-167. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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interferir sobre o exercício em si da jurisdição pelo Poder Judiciário, como exposto acima.

6. conclusões

De tudo o quanto exposto, pode-se concluir que:

O IRDR foi criado para resolver situações em que a segurança jurídica e a isonomia estão comprometidas pelo fato de serem dadas soluções diversas a uma mesma questão de direito contemplada em um grande número de proces-sos, principalmente individuais, mas também coletivos.

Ele somente pode ser instaurado e julgado, com a fixação de tese, por tri-bunais. A tese será aplicada por todos os órgãos jurisdicionais do respectivo tribunal, incluindo os Juizados Especiais.

Os Juizados Especiais têm uma sistemática recursal diferenciada em relação à Justiça Comum. Seus recursos são julgados por Turmas Recursais. Os tribu-nais locais e o STJ nunca tiveram ingerência sobre questões dessas Cortes de Pequenas Causas.

O legislador de 2015 preocupou-se em resolver a repetitividade de ques-tões perante os Juizados, mas sem regulamentar essa peculiaridade recursal relevante.

Diante da ocorrência do acidente Samarco-Mariana no fim de 2015 e da repetição de danos ambientais individuais nas regiões afetadas, dois incidentes foram admitidos: em Minas Gerais e no Espírito Santo.

O TJES editou a Res. 23/2016, regulamentando, dentre outros temas, a fi-xação de teses em IRDR para os Juizados por Turmas Recursais e Turmas de Uniformização.

Houve pedido de providências para o CNJ com pedido liminar que resultou na suspensão da referida resolução e de todos os órgãos dos Juizados respon-sáveis por julgar IRDR no Brasil.

Consequentemente, um instituto novo que ingressou no ordenamento ju-rídico brasileiro com a promessa de resolver situações de insegurança jurídica acabou por desaguar em um complexo de relações jurídico-processuais ainda indefinido, trazendo grande incerteza para a comunidade jurídica e para os jurisdicionados.

Tal situação foi ocasionada pela falta de maior reflexão e debate acerca da extensão do IRDR aos Juizados Especiais, trazendo o efeito reverso do preten-dido.

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Direito Processual civil

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Aguarda-se a decisão do CNJ oportunamente com o objetivo (e a esperan-ça) de que a situação criada pela Res. 23/2016 seja afastada, pois se corre o risco de que teses jurídicas díspares sejam aplicadas na mesma esfera territorial a depender do órgão jurisdicional do caso.

7. reFerênciAs

REFERÊNCIAS ELETRÔNICAS E SITES INSTITUCIONAIS:

BRASIL, Maria Eduarda de Oliveira; DUARTE, Antonio Aurelio Abi-ramia. Os Juizados Especiais Estaduais e o IRDR – por uma busca harmônica dos mes-mos objetivos. Disponível em: [www.tjrj.jus.br/documents/10136/1186838/irdr-juizados.pdf]. Acesso em: 17.05.2017.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Perfil do acesso à Justiça nos Juizados Especiais Cíveis. Disponível em: [www.cnj.jus.br/files/conteudo/destaques/arquivo/2015/06/b5b551129703bb15b4c14bb35f359227.pdf]. Acesso em: 17.05.2017.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Disponível em: [www.cnj.jus.br/no-ticias/cnj/84649-liminar-suspende-recursos-repetitivos-nos-juizados-espe-ciais]. Acesso em: 05.06.2017.

DUARTE, Zulmar. Interesse recursal e o Novo CPC: sucumbência jurídica. Dis-ponível em: [https://jota.info/colunas/novo-cpc/interesse-recursal-e-o-novo--cpc-sucumbencia-juridica-29052017]. Acesso em: 02.06.2017.

Enunciados FPPC. Disponível em: [www.dropbox.com/s/i4n5ngh49y1b1f4/Car-ta% 20de%20Florian%C3%B3polis.pdf?dl=0]. Acesso em: 17.05.2017.

ÉPOCA – O Globo. Disponível em: [http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/blog- do-planeta/noticia/2015/11/estes-sao-alguns-dos-danos-ambientais-causa-dos-pela-lama-da-barragem-da-samarco.html]. Acesso em: 16.05.2017.

JOTA UOL. Disponível em: [https://jota.info/justica/cnj-suspende-resolucao-do -tj-es-sobre-irdr-20042017]. Acesso em: 16.05.2017.

O GLOBO. Acidente em Mariana é o maior da História com barragens de rejeitos. Dis-ponível em: [https://oglobo.globo.com/brasil/acidente-em-mariana-o-maior--da-historia-com-barragens-de-rejeitos-18067899]. Acesso em: 16.05.2017.

TJES. Decisão. Disponível em: [https://sistemas.tjes.jus.br/ediario/index.php/component/ediario/439633?view=content]. Acesso em: 30.05.2017.

TJES. Resolução 23 de 2016. Disponível em: [https://sistemas.tjes.jus.br/ediario/in-dex.php/component/ediario/454474?view=content]. Acesso em: 30.05.2017.

TJMG. [www.tjmg.jus.br/portal/imprensa/noticias/processos-contra-a-samar-co-nos-juizados-especiais-serao-suspensos-1.htm#.WRscwmjyvIU]. Aces-so em: 16.05.2017.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMADO, Frederico. Direito ambiental esquematizado. 4. ed. São Paulo: Método, 2013.

ANTUNES, Paulo de Bessa. Manual de direito ambiental. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2013.

ARRUDA ALVIM, Teresa; DANTAS, Bruno. Recurso especial, recurso extraordi-nário e a nova função dos Tribunais Superiores no direito brasileiro. 3. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2016.

CABRAL, Antônio do Passo. O novo procedimento-modelo (Musterverfahren) alemão: uma alternativa às ações coletivas. Revista de Processo, n. 147, ano 32, maio, 2007.

CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1988.

KOEHLER, Frederico Augusto Leopoldino. Os problemas e os desafios decor-rentes da aplicação do incidente de resolução de demandas repetitivas nos Juizados Especiais. In: REDONDO, Bruno Garcia; SANTOS, Welder Queiroz dos; SILVA, Augusto Vinícius Fonseca; VALLADARES, Leandro Carlos Pe-reira (coord.). Juizados Especiais. Salvador: JusPodivm, 2015.

LEONEL, Ricardo de Barros. Intervenção do Ministério Público no incidente de resolução de demandas repetitivas. Revista Jurídica da Escola Superior do Ministério Público, v.1, p. 173-185, 2012.

MARINONI, Luiz Guilherme. A ética dos precedentes: justificativa do novo CPC. 2. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2016.

MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. 10. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2015.

TEMER, Sofia. Incidente de resolução de demandas repetitivas. Salvador: JusPo-divm, 2016.

Pesquisas do editorial

Veja também Doutrina• Análise da relação entre o novo incidente de resolução de demandas repetitivas e o

microssistema dos Juizados Especiais, de Aluisio Gonçalves de Castro Mendes e Odilon Romano Neto – RePro 245/275-309 (DTR\2015\11012);

• Incidente de resolução de demandas repetitivas no Novo Código de Processo Civil, de Eduardo Cambi e Mateus Vargas Fogaça – RT 243/333-362 (DTR\2015\7914);

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richter, Bianca Mendes Pereira. Incidentes de resolução de demandas repetitivas e o papel dos Juizados Especiais Cíveis no caso do acidente Mariana-Samarco.

Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 143-167. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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• Incidente de resolução de demandas repetitivas: projeções em torno de sua eficiência, de Guilherme Puchalski Teixeira – RT 251/359-387 (DTR\2016\64);

• O incidente de resolução de demandas repetitivas do Novo Código de Processo Civil, de Aluisio Gonçalves de Castro Mendes e Sofia Temer – RT 243/283-331 (DTR\2015\7913); e

• O incidente de resolução de demandas repetitivas e os Juizados Especiais, de Frederico Augusto Leopoldino Koehler – RePro 237/497-506 (DTR\2014\17954).

Veja também Jurisprudência• RDA 76/301 (JRP\2014\4571).

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gAlvão, Danyelle. O novo Código de Processo Civil e os impactos no processo penal. Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 169-183. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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o novo Código de ProCesso Civil e os imPaCtos no ProCesso Penal

The new Civil Procedure Code and the subsidiary application to criminal procedure

danyelle galvão

Doutoranda e Mestre em Processo Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Advogada.

[email protected]

Áreas do direito: Processual; Penal

resumo: O objetivo deste trabalho é analisar os impactos do novo Código de Processo Civil no processo penal, com especial enfoque no trata-mento dado à aplicação subsidiária em alguns temas: citação do acusado para tomar conheci-mento sobre a ação penal, identidade física do juiz, motivação das decisões judiciais, substitui-ção das testemunhas e recursos.

Palavras-Chave: Processo civil – Novo Código de Processo Civil – Aplicação subsidiária – Processo penal – Identidade física – Motivação – Substi-tuição de testemunha – Recurso.

abstraCt: The objective of this work is to analyze the impacts of the New Code of Civil Procedure in the criminal process, with special focus on the treatment given to the subsidiary application in some subjects: notification of the accused, motivation of judicial decisions, physical identity of the judge, substitution of witnesses and appeals.

keywords: Civil procedure – New Civil Procedure Code – Subsidiary application – Criminal proce-dure – Physical identity – Motivation – Substitu-tion of witness – Appeal.

Sumário: 1. Introdução. 2. Citação pessoal do acusado. 3. Citação por hora certa. 4. Citação da pessoa jurídica nas hipóteses de crime ambiental. 5. Princípio da identidade física do juiz. 6. Motivação das decisões judiciais. 7. Substituição de testemunhas pelas partes. 8. Interpo-sição de recurso antes da publicação da decisão. 9. Recursos especial e extraordinário. 10. 10. Bibliografia.

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gAlvão, Danyelle. O novo Código de Processo Civil e os impactos no processo penal. Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 169-183. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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1. introdução Entrou em vigor, em março de 2016, o novo Código de Processo Civil.

Além das inúmeras discussões sobre as alterações no âmbito processual civil, a entrada em vigor da novel legislação ensejou a reflexão sobre a influência das modificações no processo penal.

O art. 15 do novo Código de Processo Civil1 não elenca o direito processual penal dentre as matérias com aplicação subsidiária e supletiva das suas dispo-sições. No entanto, tal possibilidade é garantida pelo art. 3º do Código de Pro-cesso Penal que dispõe sobre a admissão de “interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito”. Trata-se, portanto, de possível aplicação subsidiária e supletiva, mas apenas quando o Código de Processo Penal for omisso ou não dispor a respeito da questão.

Desta forma, o presente estudo, sem o objetivo de esgotar o tema, visa abor-dar algumas destas modificações trazidas pelo novo Código de Processo Civil e seus reflexos na seara criminal, tais como: citação pessoal do acusado; citação por hora certa; citação da pessoa jurídica nas hipóteses de crime ambiental; princípio da identidade física do juiz; motivação das decisões judiciais; substi-tuição de testemunhas pelas partes; interposição de recurso antes da publica-ção da decisão e recursos especial e extraordinário.

2. citAção PessoAl do AcusAdo

Sabe-se que o Código de Processo Penal não estabelece limites quanto ao local, data ou horário para ser realizada a citação, dispondo (art. 797) que po-derá, inclusive, ser realizada no período de férias, domingos ou feriados.

Por sua vez, o novo Código de Processo Civil (art. 244) enumera algumas situações que a citação não deve ser realizada, salvo “para evitar perecimento do direito”:

(...) quando a pessoa alvo da citação estiver em ato de culto religioso; nos 7 (sete) dias seguintes ao falecimento de cônjuge, companheiro(a) ou qual-quer parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral até segundo grau; nos 3 (três) dias seguintes ao casamento do citando; dos doentes em estado grave.

1. Art. 15. Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente.

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gAlvão, Danyelle. O novo Código de Processo Civil e os impactos no processo penal. Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 169-183. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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Diante da ausência de previsão específica sobre as vedações à realização da citação, por força do art. 3º do Código de Processo Penal, como anteriormente dito, entende-se que as disposições do novo Código de Processo Civil podem ser aplicadas no âmbito penal. Afinal, como questionam Ricardo Silvares e Ronaldo Batista Pinto “por qual motivo se citaria um réu durante o enterro de seu pai? Ou em plena lua de mel?”2.

3. citAção Por horA certA

A Lei 11.719/2008 fez alterações importante no Código de Processo Penal e deu nova redação ao art. 362, estabelecendo a possibilidade de realização de citação por hora certa quando o acusado se oculta para não ser citado. Es-tabelece atualmente o artigo que o “oficial de justiça certificará a ocorrência e procederá à citação com hora certa, na forma estabelecida” pelo Código de Processo Civil (de 1973).

Considerando a remissão expressa do artigo legal à legislação processual ci-vil, a entrada em vigor do novo Código impacta no processo penal diretamen-te. Agora, o procedimento para realização da citação por hora certa, inclusive a conduta do Oficial de Justiça, deve ser aquele previsto nos arts. 252 e 253 do novo Código de Processo Civil3.

Isto porque o art. 1.046 do novo Código de Processo Civil dispõe expressa-mente que “as remissões a disposições do Código de Processo Civil revogado, existentes em outras leis, passam a referir-se às que lhes são correspondentes neste Código.”

De qualquer sorte, é importante destacar que o Supremo Tribunal Federal, em 2012, reconheceu a repercussão geral da citação por hora certa nos autos de Recurso Extraordinário 635.145, sob a relatoria do Ministro Marco Aurélio (tema 613). Quando do julgamento do mérito do recurso em agosto de 2016, o Tribunal Pleno reconheceu a constitucionalidade da diligência, prevista no

2. SILVARES, Ricardo; PINTO, Ronaldo Batista. Novo CPC e seus reflexos no âmbito pro-cessual penal. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 76. Os autores ressalvam tal posiciona-mento em relação ao cumprimento dos mandados de prisão, cuja essência demandam cumprimento imediato.

3. A menção à modificação no procedimento da citação é encontrada em MASI, Car-lo Velho. Influências do novo CPC no processo penal. Disponível em: [https://canal-cienciascriminais.com.br/influencias-do-novo-cpc-no-processo-penal]. Acesso em: 12.06.2017.

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gAlvão, Danyelle. O novo Código de Processo Civil e os impactos no processo penal. Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 169-183. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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art. 362 do Código de Processo Penal, nos casos em que o acusado se oculte para não ser citado4.

Até que haja pronunciamento do Supremo Tribunal Federal e a formação de precedente vinculante sobre a matéria, a citação por hora certa, mesmo no processo penal, deve ser realizada nos termos dos arts. 252 e 253 do novo Có-digo de Processo Civil.

4. citAção dA PessoA jurídicA nAs hiPóteses de crime AmBientAl

Por previsão constitucional (art. 225, § 3º), e de acordo com a legislação específica (art. 3º, Lei 9.605/98), é possível que as pessoas jurídicas sejam res-ponsabilizadas criminalmente pela prática de crimes ambientais. Durante al-gum tempo, o Superior Tribunal de Justiça discutiu a (im)possibilidade de processamento apenas da pessoa jurídica, sem a acusação da pessoa física su-postamente responsável pelo ato ilícito. Superada tal questão, pelo menos no âmbito jurisprudencial, remanesce a dúvida quanto à citação da pessoa jurídi-ca para ciência da acusação criminal.

O novo Código de Processo Civil parece dirimir tal questão, que até o pre-sente momento não encontra solução na legislação processual penal. Isto por-que os incisos do art. 75 da legislação civil elencam quem são os legitimados a representar a pessoa jurídica em juízo: a pessoa jurídica, por quem os respec-tivos atos constitutivos designarem ou, não havendo essa designação, por seus diretores (inciso VIII); a sociedade e a associação irregulares e outros entes organizados sem personalidade jurídica, pela pessoa a quem couber a admi-nistração de seus bens (inciso IX); a pessoa jurídica estrangeira, pelo gerente, representante ou administrador de sua filial, agência ou sucursal aberta ou instalada no Brasil (inciso X) e o condomínio, pelo administrador ou síndico (inciso XI).

No tocante à União, Estados, Distrito Federal e Municípios, passíveis tam-bém de incriminação criminal no âmbito ambiental, o mesmo artigo legal (in-cisos I a III) estabelece que serão representados em juízo, respectivamente pela

4. Sobre o tema, afirmaram SILVARES, Ricardo; PINTO, Ronaldo Batista. Novo CPC e seus reflexos no âmbito processual penal. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 79 sobre o mencionado recurso, antes do julgamento do seu mérito: “se discute a constitu-cionalidade da citação da hora certa, sob o fundamento de violação dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, uma vez que, segundo o recor-rente, ‘o acusado tem o direito de ser pessoalmente informado da acusação que lhe é imputada’ para, assim, poder exercer plenamente sua defesa”.

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Direito Processual civil

gAlvão, Danyelle. O novo Código de Processo Civil e os impactos no processo penal. Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 169-183. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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Advocacia-Geral da União, por seus procuradores, ou por seu prefeito ou pro-curador.

De qualquer sorte, é importante ressaltar que a previsão sobre a legitimi-dade de representação em juízo não enseja a responsabilização do legitimado como pessoa física no âmbito criminal. Como afirmado, trata-se de disposição que disciplina – apenas e tão somente – quem poderá tomar ciência da acu-sação em nome da pessoa jurídica e representá-la em juízo em eventual ação penal por crime ambiental.

5. PrincíPio dA identidAde FísicA do juiz

Até 2008, quando o Código de Processo Penal foi alterado, muito se dis-cutiu se a legislação processual penal deveria, tal como fazia a civil, prever o princípio da identidade física do juiz5.

A reforma deu nova redação ao art. 399 do CPP, incluindo o § 2º, para esta-belecer que “o juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença”, previ-são bem semelhante a contida no Código de Processo Civil de 1973 (art. 132)6.

Sobre a aplicação do regramento do processo civil no processo penal, o Supremo Tribunal Federal já dispôs que as exceções previstas no art. 132 do Código de Processo Civil de 1973 são aplicadas subsidiariamente ao processo penal. Senão vejamos trecho de ementa:

O Supremo Tribunal Federal assentou que o princípio da identidade físi-ca do juiz, positivado no § 2º do art. 399 do Código de Processo Penal, não é absoluto e comporta as exceções do art. 132 do Código de Proces-so Civil, aplicado analogicamente no processo penal por força do seu art. 3º (RHC 120.414/SP, 2ª Turma, Relator o Ministro Teori Zavascki, DJe de

5. Celso Limongi afirma que o Código de Processo Civil anterior era muito elogiado pela previsão e a alteração ocorrida em 2008 para incluir, no processo penal, a iden-tidade física do juiz, serviu para modernizar esta legislação. LIMONGI, Celso. O novo Código de Processo Civil e sua influência no processo penal. Disponível em: [www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI228317,101048-O+Novo+Codigo+de+Processo+Ci-vil+e+sua+influencia+no+processo+penal]. Acesso em: 12.07.2017.

6. Sobre o princípio da identidade física do juiz e a modificação no Código de Processo Penal, vide BADARÓ, Gustavo. A regra da identidade física do juiz na reforma do Có-digo de Processo Penal. Disponível em: [http://badaroadvogados.com.br/a-regra-da-i-dentidade-fisica-do-juiz-na-reforma-do-codigo-de-processo-penal.html]. Acesso em: 12.07.2017.

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Revista BRasileiRa da advocacia 2017 • RBA 6

gAlvão, Danyelle. O novo Código de Processo Civil e os impactos no processo penal. Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 169-183. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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06.05.2014). (STF – 2ª T. – AgReg em ARE 839.680 – rel. Dias Toffoli – j. 02.09.2016 – DJe 27.09.2016).

No entanto, o novo Código de Processo Civil suprimiu a disposição da identidade física do juiz. Conforme expõem Ricardo Silvares e Ronaldo Batista Pinto, o processo eletrônico e a facilidade de acesso a todo o conteúdo dos autos, inclusive aos depoimentos prestados em juízo, justificou a opção do legislador em suprimir a previsão sobre a identidade física do juiz. Afirmam os autores, ainda elencando as razões do legislador, que

(...) de sorte que o contato visual e direto do juiz com a prova, que o torna capaz de sentir as reações das testemunhas e do réu, tão caros na formação da sua convicção, restariam preservados com a adoção do processo eletrôni-co e a gravação em vídeo e áudio dos depoimentos, não mais e justificando, no âmbito cível, a manutenção desse princípio7.

A realidade trazida pelo novo Código de Processo Civil não altera o pano-rama processual penal, já que a aplicação subsidiária daquela legislação deve ocorrer apenas quando o Código de Processo Penal for omisso, o que não se verifica neste tema, já que, como dito, o art. 399, § 2º, prevê expressamente a identidade física do juiz8.

6. motivAção dAs decisões judiciAis A Reforma do Judiciário, nome dado à Emenda Constitucional 45/2004,

incluiu no art. 93, inciso IX, da Constituição Federal a imprescindibilidade da

7. SILVARES, Ricardo; PINTO, Ronaldo Batista. Novo CPC e seus reflexos no âmbito pro-cessual penal. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 56.

8. Carlo Velho Masi também sustenta a inaplicabilidade do novo Código de Processo Civil, mas justifica pela importância da identidade física do juiz para o pleno exercí-cio da ampla defesa: “tal supressão é preocupante e, no processo penal, totalmente inaceitável, na medida em que não resta dúvida de que o magistrado que colheu pessoalmente a prova é o mais indicado a decidir o mérito do processo, dando ple-na concretização ao princípio constitucional da ampla defesa” (MASI, Carlo Velho. Influências do novo CPC no processo penal. Disponível em: [https://canalcienciascri-minais.com.br/influencias-do-novo-cpc-no-processo-penal]. Acesso em: 12.06.2017. Com posicionamento idêntico, tem-se LIMONGI, Celso. O novo Código de Processo Civil e sua influência no processo penal. Disponível em: [www.migalhas.com.br/dePe-so/16,MI228317,101048-O+Novo+Codigo+de+Processo+Civil+e+sua+influencia+-no+processo+penal]. Acesso em: 12.06.2017.

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motivação de todas as decisões judiciais. O legislador ordinário, para conferir maior efetividade ao dispositivo constitucional, inovou ao elencar expres-samente, no novo Código de Processo Civil, hipóteses em que considera a fundamentação das decisões judiciais insuficiente (art. 489, § 1º).

Como consta na Exposição de Motivos do novo Código de Processo Civil,

(...) se, por um lado, o princípio do livre convencimento motivado é ga-rantia de julgamentos independentes e justos, e neste sentido mereceu ser prestigiado pelo novo Código, por outro, compreendido em seu mais esten-dido alcance, acaba por conduzir a distorções do princípio da legalidade e à própria ideia, antes mencionada, de Estado Democrático de Direito9.

Como já dissemos em outra oportunidade,

(...) sua principal inovação está em descrever, além dos elementos constitu-tivos da sentença, as espécies de fundamentação consideradas inadequadas ou insuficientes para permitir às partes, demais membros do Poder Judiciá-rio e a sociedade, a correta compreensão do como e por que o juiz chegou àquela conclusão10.

Conforme a doutrina, este artigo legal não estabelece novos requisitos da sentença, já previstos no caput do art. 489, mas estabelece a “formação de uma verdadeira barreira contra fundamentações de cunho genérico”11.

Isto porque não serão consideradas fundamentadas as decisões que se limi-tem a indicar, reproduzir ou parafrasear ato normativo, sem qualquer expli-cação da relação com a causa (inciso I); que empreguem conceitos jurídicos

9. BRASIL, Congresso Nacional. Senado Federal. Comissão de Juristas Responsável pela Elaboração de Anteprojeto de Código de Processo Civil. Disponível em: [www.sena-do.gov.br/senado/novocpc/pdf/Anteprojeto.pdf]. Acesso em: 12.06.2017.

10. GALVÃO, Danyelle da Silva; PEIXOTO JUNIOR, Hélio; LOBO, Ricardo. O art. 489 do novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015) e suas implicações no direito processual penal. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 971, p. 290, set. 2016. No mes-mo sentido, tem-se MASI, Carlo Velho. Influências do Novo CPC no processo penal. Disponível em: [https://canalcienciascriminais.com.br/influencias-do-novo-cpc-no--processo-penal]. Acesso em: 12.06.2017.

11. CUNHA, Rogério de Vidal. O dever de fundamentação no NCPC: Há mesmo o dever de responder todos os argumentos das partes? Breve análise do art. 489, § 1º, IV, do NCPC. In: VASCONCELLOS, Fernando Andreoni; ALBERTO, Tiago Gagliano Pinto. O dever de fundamentação no Novo CPC. Análises em torno do art. 489. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 291/292.

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indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso (in-ciso II); invoque motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão (inciso III); não enfrente todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador (inciso IV); limite-se a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus funda-mentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos (inciso V); deixe de seguir enunciado de súmula, juris-prudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento (inciso VI).

De acordo com a doutrina de José Rogério Cruz e Tucci, quando tratou anteprojeto do novo Código de Processo Civil, “os aludidos novos dispositivos legais acerca do dever de motivação, inseridos no Projeto do CPC, reforçam a ideia de que a moderna concepção de ‘processo justo’ não compadece qualquer resquício de discricionariedade judicial”12.

É bem verdade, como já afirmamos anteriormente, que “embora o Código de Processo Penal não trate expressamente de diversos pontos elencados no art. 489 do NCPC, em especial o contido em seus parágrafos, a jurisprudência e doutrina na área processual penal já debatiam e acolhiam suas teses”13.

De qualquer sorte, como sustenta a doutrina especializada, conclui-se pela possibilidade, senão necessidade, de aplicação subsidiária das previsões do art. 489 do novo Código de Processo Civil na seara criminal14.

De acordo com Celso Limongi, a previsão do art. 93, inciso IX, da Consti-tuição Federal, somada às do art. 489 do novo Código de Processo Civil afas-

12. CRUZ E TUCCI, José Rogério. Garantias constitucionais da publicidade dos atos processuais e da motivacão das decisões no projeto do CPC (análise e proposta). Doutrinas Essenciais de Processo Civil. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011, v. 6, p. 412.

13. GALVÃO, Danyelle da Silva; PEIXOTO JUNIOR, Hélio; LOBO, Ricardo. O art. 489 do novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015) e suas implicações no direito processual penal. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 971, p. 308, set. 2016.

14. MOREIRA, Rômulo de Andrade. O novo Código de Processo Civil, a fundamentação das decisões judiciais e o processo penal brasileiro. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/37330/o-novo-codigo-de-processo-civil-a-fundamentacao-das-decisoes-judi-ciais-e-o-processo-penal-brasileiro. Acesso em: 12.06.2017; GAJARDONI, Fernando da Fonseca. Impactos do Novo CPC no processo penal. Disponível em: http://jota.uol.com.br/impactos-do-novo-cpc-no-processo-penal%C2%B9. Acesso em: 12.06.2017 e SILVARES, Ricardo; PINTO, Ronaldo Batista. Novo CPC e seus reflexos no âmbito pro-cessual penal. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 107.

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tam a aceitação de fundamentação singela e incompleta e, assim, “desde já sentença criminal sem os requisitos previstos no art. 489 do novo Código de Processo Civil é nula e desde já os tribunais devem assim decidir”15.

Como sustenta Carlos Velho Masi, o dever de motivar adequadamente as decisões “é válido para o processo civil, quem dirá para o penal, onde o risco é o cerceamento da liberdade ou a expropriação do patrimônio pelo Estado e, conse-quentemente, muito mais fundamentadas deveriam ser as decisões judiciais”16.

Neste sentido é a jurisprudência recente do Superior Tribunal de Justiça, pois tem reconhecido a aplicação analógica do artigo ao processo penal, nos termos do art. 3º do CPP (STJ – Decisão monocrática – AgInt em HC 070.939 – rel. Rogério Schietti Cruz – j. 17.06.2016 – DJe 23.06.2016).

7. suBstituição de testemunhAs PelAs PArtes A Lei 11.719/2008, antes mencionada, revogou o art. 397 do Código de

Processo Penal que estabelecia a possibilidade de substituição da testemunha quando não localizada. Como sustentam Ricardo Silvares e Ronaldo Batista Pinto, “a despeito da mencionada revogação do dispositivo legal, não há mo-tivo que impeça a substituição da testemunha”, visando assegurar a direto à prova das partes (acusação e defesa)17.

Agora, ante a ausência de disposição expressa sobre a matéria no Código de Processo Penal, entende-se que as hipóteses previstas no art. 451 do novo Código de Processo Civil podem ser utilizadas, de maneira exemplificativa e

15. LIMONGI, Celso. O novo Código de Processo Civil e sua influência no processo pe-nal. Disponível em: [www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI228317,101048-O+No-vo+Codigo+de+Processo+Civil+e+sua+influencia+no+processo+penal]. Acesso em: 12.06.2017.

16. MASI, Carlo Velho. Influências do novo CPC no processo penal. Disponível em: [https://canalcienciascriminais.com.br/influencias-do-novo-cpc-no-processo-penal]. Acesso em: 12.06.2017. E continua o autor: “Reportar-se exclusivamente ao artigo de lei; uti-lizar decisões padronizadas ou com argumentos válidos para qualquer caso; valer-se de conceitos indeterminados (ex.: ordem pública), sem explicar em que medida eles encontram cabimento no caso em análise; deixar de enfrentar as alegações trazidas pelas partes quando estes puderem mudar a decisão; ou invocar jurisprudência que não tenha similitude ao caso, são expedientes que passam a ser vedados ao juiz penal, ante as mudanças do CPC”.

17. SILVARES, Ricardo; PINTO, Ronaldo Batista. Novo CPC e seus reflexos no âmbito pro-cessual penal. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 121.

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não taxativa como se prevê no âmbito processual civil, para permitir a substi-tuição da testemunha. São elas: o falecimento da testemunha, a enfermidade que impossibilite de depor ou quando houver mudança de endereço e não for localizada.

8. interPosição de recurso Antes dA PuBlicAção dA decisão

O Código de Processo Penal, no seu art. 578, estabelece regramento para a interposição dos recursos no seguinte sentido: “o recurso será interposto por petição ou por termo nos autos, assinado pelo recorrente ou por seu represen-tante”.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal entendia como intempesti-vo o recurso interposto antes da publicação da decisão:

A considerar que o prazo para a interposição de agravo regimental é de cinco dias, como disposto no art. 557, § 1º, do Código de Processo Civil e no art. 317 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, a contar da publicação da decisão recorrida, dúvidas não remanescem a respeito da intempestividade do presente recurso, por ter sido protocolizado antes do início do prazo recursal (STF – 1a T. – AgReg em HC 94.159 – rel. Cármen Lúcia – j. 16.09.2008 – DJe 23.04.2010).

E ainda:

O entendimento desta Corte é no sentido de que o prazo para interposição de recurso se inicia com a publicação, no órgão oficial, do acórdão que jul-gou os embargos declaratórios, uma vez que estes interrompem o prazo para interposição do extraordinário (STF – 2a T. – AgReg em AI 820.070 – rel. Joaquim Barbosa – j. 07.12.2010 – DJe 01.02.2011 – LEXSTF v. 33, n. 386, 2011, p. 211-217).

Em decisão mais recente, aquela Corte alterou seu posicionamento, enfati-zando a importância da instrumentalidade do processo e a consequente neces-sidade de analisar os institutos de modo mais favorável ao acesso à Justiça e à efetividade dos direitos materiais (STF – Pleno – AgReg ED ED EDv ED em AI 703.269 – rel. Luiz Fux – j. 05.03.2015 – DJe 08.05.2015).

O novo Código de Processo traz novo panorama para o tema, já que esta-belece, no seu art. 218, § 4º que “será considerado tempestivo o ato praticado antes do termo inicial do prazo”.

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Considerando que o Código de Processo Penal apenas trata dos prazos re-cursais e da forma de interposição, entende-se que a nova disciplina trazida pelo novo Código de Processo Civil deve ser aplicada analogicamente ao pro-cesso penal, garantindo-se maior prestígio, no sentido da decisão recente do Supremo Tribunal Federal, à instrumentalidade do processo.

9. recursos esPeciAl e extrAordinário O novo Código de Processo Civil revogou os arts. 26 a 29 da Lei 8.038/90,

que estabelecia sobre os recursos especial e extraordinário. Agora, a matéria passou a ser prevista nos arts. 1.029 e 1.030 do novo Código, além da previsão constitucional quanto às hipóteses de cabimento (arts. 102, inciso III, e 105, inciso III, ambos da Constituição Federal).

A revogação da mencionada legislação, até então aplicável ao processo civil e processo penal, impõe a aplicação subsidiária do novo Código na seara crimi-nal, sob pena de extinção dos recursos aos Tribunais Superiores.

Assim, não restam dúvidas de que todas as disposições sobre os recursos especial e extraordinário são aplicadas ao processo penal18. O prazo de inter-posição é de 15 dias, conforme disposição do art. 1.003, § 5º do novo Código de Processo Civil, que estabeleceu prazo igualitário para todos os recursos previstos no seu bojo, excetuados os embargos de declaração.

A interposição dos recursos especial e extraordinário será nos termos do art. 1.029 do novo Código de Processo Civil, em petições autônomas com a exposição do fato e do direito, demonstração de cabimento e razões do pedi-do, tal como já ocorria na égide da legislação anterior. Quanto ao protocolo e às contrarrazões, como afirma Nelson Nery Junior, “as regras válidas para o CPC/73 ainda são as mesmas”19.

A previsão sobre o juízo de admissibilidade pelo Tribunal ad quem foi re-vogada pela Lei 13.256/2016, ainda durante a vacatio legis do novo Código, assim, permanece inalterado o local do juízo de admissibilidade, mas com a necessária observância dos requisitos de motivação previstos pelo art. 489 da mesma legislação.

18. Sobre o procedimento dos recursos especial e extraordinário, vide CABRAL, Antonio do Passo; CRAMER, Ronaldo (Org.). Comentários ao novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 1545/1553.

19. NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 2238.

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Os arts. 1.032 e 1.033 trazem inovação interessante que, ao nosso ver, devem ser aplicadas sem ressalvas ao processo penal, tal como as disposições gerais an-teriormente expostas. O art. 1.032 prevê que o relator, no Superior Tribunal de Justiça, quando entender que o recurso especial versa sobre questão constitu-cional, deverá conceder prazo de 15 dias para o recorrente se manifestar sobre o tema e demonstrar a existência de repercussão geral. Então, os autos serão remetidos ao Supremo Tribunal Federal que realizará juízo de admissibilidade e, eventualmente, julgará o recurso especial como extraordinário.

Como sustenta Alexandre Freire ao comentar o artigo legal, “embora ine-xista expressa disposição, por imposição de modelo cooperativo, é imprescin-dível intimação da recorrida para se manifestar a respeito dos novos argumen-tos deduzidos pelo recorrente”20.

Por sua vez, o art. 1.033 traz previsão inversa, dispondo que nos casos do Supremo Tribunal Federal considerar como reflexa a ofensa à Constituição contida no recurso extraordinário, por pressupor a revisão da interpretação de lei federal ou de tratado, encaminhará o recurso ao Superior Tribunal de Justiça para julgamento como recurso especial.

Alexandre Freire, ao comentar o artigo legal, aduz que o relator “se limitará a enviar o recurso especial para o Superior Tribunal de Justiça, pois inexiste previsão de repercussão geral da questão federal”21.

Estas duas previsões legais inovadoras refletem uma maior preocupação com o aproveitamento e rendimento dos processos22. E como dito por Celso Li-mongi, “o Novo Código Processual preocupa-se com o excesso de formalismo, que impede o conhecimento de recursos e culminam por denegar justiça”23.

Mudança significativa, que também deve ser aplicada no processo penal, ocorreu em relação aos recursos cabíveis em caso de inadmissibilidade dos recursos especial e extraordinário. Inicialmente, o art. 1.042 do novo Código

20. Apud CABRAL, Antonio do Passo; CRAMER, Ronaldo (Org.). Comentários ao novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 1550.

21. Ibidem, p. 1551.

22. Alexandre Freire, tratando do art. 1.032, afirma que o dispositivo “privilegia a ideia de conferir maior rendimento ao processo” (CABRAL, Antonio do Passo; CRAMER, Ronaldo (Org.). Comentários ao novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Foren-se, 2016, p. 1550).

23. LIMONGI, Celso. O novo Código de Processo Civil e sua influência no processo penal. Dis-ponível em: [www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI228317,101048-O+Novo+Codigo+-de+Processo+Civil+e+sua+influencia+no+processo+penal]. Acesso em: 12.06.2017.

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de Processo Civil previa o cabimento de agravo em algumas hipóteses (seus incisos).

No entanto, antes da sua entrada em vigor, o mencionado artigo legal foi alterado pela Lei 13.256/2016 para dispor que caberá o recurso de agravo con-tra a decisão do presidente ou do vice-presidente do tribunal recorrido que inadmitir recurso extraordinário ou recurso especial. Trata-se de regra geral, cuja exceção é prevista no mesmo artigo legal.

Quando a decisão que inadmitir o recurso for fundada na aplicação de en-tendimento firmado em regime de repercussão geral ou em julgamento de re-cursos repetitivos (art. 1.030, § 2º), o recurso cabível será o agravo interno previsto no art. 1.021 do mesmo Código.

Questão a ser discutida, especialmente quanto a aplicação ao processo pe-nal é o prazo de interposição do recurso de agravo do art. 1.042. O revogado art. 28 da Lei 8.038/90 dispunha que o recurso de agravo de instrumento con-tra a decisão que inadmitia os recursos para os Tribunais Superiores deveria ser interposto no prazo de 5 dias. O mesmo prazo foi previsto, após discussões perante o Supremo Tribunal Federal, na Súmula 699, cuja redação é “o prazo para interposição de agravo, em processo penal, é de cinco dias, de acordo com a Lei 8.038/1990, não se aplicando o disposto a respeito nas alterações da Lei 8.950/94 ao Código de Processo Civil”.

O novo Código de Processo Civil estabelece prazo único para todos os re-cursos processo civil (15 dias – art. 1.003, § 5º), sendo certo, portanto, que o recurso de agravo em recurso especial ou extraordinário deverá ter interposto naquele prazo. No entanto, até que haja revogação expressa da Súmula 699 do Supremo Tribunal Federal, entende-se que o prazo para o processo penal será de 10 dias24.

Conclui-se, portanto, que são aplicáveis ao processo penal todas as dispo-sições sobre os recursos especial e extraordinário, e respectivos agravos para impugnação da decisão que inadmite o recurso, exceto o prazo de 15 dias para a interposição do agravo contra a decisão denegatória (art. 1.042 do novo Có-digo de Processo Civil).

24. Com posicionamento diferente, tem-se COELHO, Pedro. Agravo em REsp ou RE no novo CPC e seus impactos no processo penal. Disponível em: [http://blog.ebeji.com.br/agravo-em-resp-ou-re-no-novo-cpc-e-seus-impactos-no-processo-penal]. Acesso em: 12.06.2017: “importante registrar que nos parece que devemos conferir uma leitura mais restrita à Súmula 699 do STF (revogação parcial), haja vista a previsão legal no NCPC de prazo específico e mais elástico para o agravo em REsp ou RE”.

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Revista BRasileiRa da advocacia 2017 • RBA 6

gAlvão, Danyelle. O novo Código de Processo Civil e os impactos no processo penal. Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 169-183. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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10. BiBliogrAFiA

BADARÓ, Gustavo. A regra da identidade física do juiz na reforma do Código de Processo Penal. Disponível em: [http://badaroadvogados.com.br/a-regra-da--identidade-fisica-do-juiz-na-reforma-do-codigo-de-processo-penal.html]. Acesso em: 12.06.2017.

CABRAL, Antonio do Passo; CRAMER, Ronaldo (Org.). Comentários ao novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2016.

COELHO, Pedro. Agravo em REsp ou RE no novo CPC e seus impactos no processo penal. Disponível em: [http://blog.ebeji.com.br/agravo-em-resp-ou-re-no-no-vo-cpc-e-seus-impactos-no-processo-penal]. Acesso em: 12.06.2017.

COELHO, Pedro. O Novo CPC e os (importantes) reflexos no processo penal. Dis-ponível em: [http://blog.ebeji.com.br/o-novo-cpc-e-os-importantes-reflexos--no-processo-penal]. Acesso em: 12.06.2017.

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Direito Processual civil

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Pesquisas do editorial

Veja também Doutrina• A fundamentação das decisões judiciais e sua natureza (não) discricionária, de Márcio

Bellocchi – RePro 268/99-115 (DTR\2017\1338);

• Julgamento colegiado em primeiro grau de jurisdição de crimes praticados por organi-zação criminosa e o princípio da identidade física do juiz, de Marco Antonio de Barros – RT 933/565-579 (DTR\2013\3796);

• Motivação das decisões judiciais, de Erik Frederico Gramstrup e Rennan Faria Krüger Thamay – RePro 267/89-127 (DTR\2017\1030); e

• Princípios dos recursos no CPC/2015, de Alberto Gossom Jorge Junior – RT 967/317-335 (DTR\2016\4657).

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SilvA, Natália Diniz da. A tutela de evidência na ação de improbidade administrativa. Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 185-205. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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a tutela de evidênCia na ação de imProbidade administrativa

The evidence protection by courts in administrative improbity action

natÁlia diniz da silva

Mestre em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Graduada em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Extensão em Arbitragem Internacional pela American University –

Washington College of Law. Membro do Centro de Estudos Avançados de Processo Civil (Ceapro), Membro do Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAr). Professora Convidada no curso de Pós-Graduação

da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo/SP. Advogada. [email protected]

Áreas do direito: Processual; Administrativo

resumo: O presente trabalho analisa a nature-za da tutela de evidência prevista no Código de Processo Civil e a medida de indisponibilidade de bens prevista no art. 7º da Lei de Improbidade Administrativa. O objetivo é investigar se o con-ceito de tutela de evidência se harmoniza com o decidido pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial 1.366.721/BA.

Palavras-Chave: Tutela de evidência – Código de Processo Civil – Improbidade Administrativa.

abstraCt: This paper analyzes the nature of the evidence protection by Courts provided in the Civil Procedure Code and the measure of unavailability of assets provided in article 7 of the Law of Administrative Improbity. The goal is to investigate whether the concept of evidence protection by Courts harmonizes with that decided by the Superior Court of Justice of judgment of Special Appeal 1.366.721/BA.

keywords: Evidence protection by Courts – Civil Procedure Code – Administrative improbity.

Sumário: 1. Introdução. 2. A Lei de Improbidade Administrativa: interesses e bens tutelados. 3. A tutela de evidência no novo CPC e sua interface com a Lei de Improbidade Administra-tiva. 4. A jurisprudência do STJ sobre a decretação da indisponibilidade de bens e a tutela de evidência do CPC/2015. 5. Conclusão. 6. Bibliografia.

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Revista BRasileiRa da advocacia 2017 • RBA 6

SilvA, Natália Diniz da. A tutela de evidência na ação de improbidade administrativa. Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 185-205. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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1. introdução

Este artigo pretende analisar as decisões proferidas pelo Superior Tri-

bunal de Justiça (STJ) que se decidiu pela possibilidade de se bloquear

bens antecipadamente, fundamentado no art. 7º da Lei 8.429/1992 (Lei de

Improbidade Administrativa – LIA), sem que fosse necessário comprovar

a existência de periculum in mora ou fumus boni iuris, requisitos típicos da

tutela cautelar.

Será analisado especialmente o acórdão do Recurso Especial (REsp)

1.366.721/BA que definiu que a medida de indisponibilidade de bens se fun-

damenta única e exclusivamente na tutela de evidência, não sendo necessário

demonstrar qualquer dilapidação patrimonial ou urgência no pedido.

Tal decisão foi proferida em 2014 em sede de recurso especial repetitivo

antes mesmo da regulamentação da tutela de evidência no CPC promulgado

em 2015.

A pergunta que cabe agora é: com a regulamentação da tutela de evidência

na nova legislação processual esse entendimento ainda se demonstra o mais

correto?

Aqui será adotada a premissa da aplicação complementar e subsidiária do

Código de Processo Civil à Lei 8.429/92, isso porque mesmo que a referida Lei

tenha definido requisitos próprios para o processamento da ação, ela mesma

faz remissão ao CPC ao dispor que a ação adotará o rito ordinário (art. 17) e as

medidas de urgência serão também reguladas pelo Código de Processo1.

Dessa forma, também entende-se que ao aplicar o art. 7º da LIA e dispor

que se trata de tutela de evidência, o intérprete da lei deve ler este dispositivo

em conjunto com o que está disposto no art. 311 do CPC/2015.

Isto posto, este artigo debruçará sobre a natureza do pedido de indisponi-

bilidade (art. 7º da LIA) e da tutela de evidência, se tais institutos se harmo-

nizam, bem como se o entendimento do STJ de 2014 está alinhado com o que

dispõe o CPC.

1. SILVEIRA, Ana Cristina de Melo; GOMES JÚNIOR, Luiz Manoel. O novo Código de Processo Civil e algumas reflexões iniciais acerca das implicações na ação de impro-bidade administrativa. Revista de Processo. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, ano 40, n. 250, dez. 2015.

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Direito Processual civil

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2. A lei de imProBidAde AdministrAtivA: interesses e Bens tutelAdos

Infelizmente, o Brasil é conhecido tanto nacionalmente quanto internacio-nalmente pelos escândalos de corrupção e pela sua política amigável interna-mente que protege corruptos, amigos e oligarquias2.

Na tentativa de melhorar esse cenário e imagem do Brasil vários mecanis-mos de combate à corrupção são criados pelo legislador, mecanismos estes de prevenção quanto de repressão3.

Esse artigo tratará especificamente da Lei de Improbidade Administrativa (LIA) e a medida de indisponibilidade de bens prevista no art. 7º da referida Lei.

A LIA atua como forma repressiva de combate à corrupção tanto a agen-tes públicos quanto privados, é um mecanismo que vem sendo amplamente utilizado pelo Ministério Público e pelos Estados como forma de punição e também como forma de ressarcir eventual prejuízo causado pelo ato ímprobo4.

Assim, antes de passar especificamente para a problemática central deste artigo, é importante fazer um panorama breve do bem que é tutelado e prote-gido por essa lei.

A LIA estabelece normas de direito material e processual, definindo sanções aos funcionários públicos que tenham cometido ato de improbidade adminis-trativa, como também aos particulares que tenham induzido, concorrido ou se beneficiado do ato ímprobo5.

Os arts. 9º ao 11º da LIA definem o que se entende como ato de improbidade administrativa a justificar a imputação da penalidade (tipicidade). Os atos descritos nos dispositivos legais estão todos relacionados ao enriquecimento ilícito, prejuízo ao erário e atentar contra os princípios da Administração Pú-

2. O livro clássico Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, estuda sociologica-mente tal fenômeno que permeia a sociedade brasileira.

3. Para ver mais a respeito: COSTA, Susana Henriques da. Os Tribunais Superiores no debate jurídico sobre a improbidade administrativa. In: GALLOTTI, Isabel et al. (Coord.). O papel da jurisprudência no STJ. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais.

4. FRIDRICZEWSKI, Vanir. Provimentos urgentes e ações civis públicas de improbida-de administrativa – Considerações sobre a efetividade do processo. Revista Bimestral de Direito Público. São Paulo: Fórum, v. 84, 2014.

5. Art. 3º As disposições desta lei são aplicáveis, no que couber, àquele que, mesmo não sendo agente público, induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta.

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blica. A prática de algum desses atos podem levar a aplicação das penalidades descritas no art. 12 da LIA.

A LIA ainda estabelece um procedimento especial para o processamento da ação de improbidade administrativa, com uma fase anterior. Em razão do seu caráter punitivo é necessário que sejam comprovadas inicialmente a existência de indícios do ato ímprobo ou ao menos as razões fundamentadas da impossi-bilidade de apresentação das provas inicialmente6.

Sobre esse tema, com relação ao agente privado que seja réu em ação de improbidade administrativa ainda seria necessário comprovar a prática de um dos três atos descritos no caput do art. 3º da LIA, quais sejam: (i) induzir, (ii) concorrer e (iii) se beneficiar. Não se admitindo nesse caso uma mera respon-sabilização objetiva, mas, pelo contrário, seria necessário investigar a intenção do agente, ou seja, se teve ou não a intenção na prática do ato ímprobo.

Nesse sentido é o entendimento de Fábio Medina Osório ao afirmar que “a improbidade administrativa envolve, modo necessário, a prática de condutas gravemente culposas ou dolosas, inadmitindo responsabilidade objetiva”7.

Os atos descritos nos arts. 9º a 11 têm como objeto a proteção do patrimô-nio pecuniário público e da probidade administrativa.

O art. 1º, § 1º8 da LIA define o que se entende por patrimônio público, que nada mais é do que o patrimônio pertencente à administração direta, indireta, fundação e entes em que o Estado tenha participação.

6. Art. 17 (...) § 6o A ação será instruída com documentos ou justificação que contenham indícios suficientes da existência do ato de improbidade ou com razões fundamentadas da impossibilidade de apresentação de qualquer dessas provas, observada a legislação vigente, inclusive as disposições inscritas nos arts. 16 a 18 do Código de Processo Civil.

7. OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da improbidade administrativa. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2007, p. 291. A reforçar esse entendimento: FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Atos de improbidade administrativa. São Paulo: Atlas, 2007, p. 80; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 25. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 899-900.

8. Art. 1º Os atos de improbidade praticados por qualquer agente público, servidor ou não, contra a administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, de Território, de empresa incorporada ao patrimônio público ou de entidade para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com mais de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita anual, serão punidos na forma desta lei. Parágrafo único. Estão também sujeitos às penalidades desta lei os atos de improbidade praticados contra o patrimô-nio de entidade que receba subvenção, benefício ou incentivo, fiscal ou creditício, de órgão público bem como daquelas para cuja criação ou custeio o erário haja con-

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Direito Processual civil

SilvA, Natália Diniz da. A tutela de evidência na ação de improbidade administrativa. Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 185-205. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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Já com relação ao conceito de probidade administrativa há uma discussão na doutrina, uma vez que muitos autores definem como uma espécie da mora-lidade administrativa, em que esta última seria gênero9.

Assim, percebe-se que o objeto de proteção da ação de improbidade admi-nistrativa é tutelar o próprio interesse público, e busca punir o ente público ou privado que tenha atentado contra os princípios da probidade administrativa e evitar que novas condutas ocorram.

A LIA decorre expressamente do disposto no art. 3710 da Constituição Fe-deral (CF) e do tratamento especial que o legislador constituinte deu aos prin-cípios da probidade administrativa.

Por essa razão que a LIA hoje é um instrumento sério e importantíssimo para o combate à corrupção no país.

Contudo, como ocorre em muitas outras ações de procedimento ordinário no sistema brasileiro o momento da execução da sentença é sempre crítico, não conseguindo realmente satisfazer a sentença e o valor condenatório que eventualmente tenha sido fixado. E essa situação ocorre quer seja por altera-ções no cenário econômico (crises financeiras que levam à quebra de empresas que antes eram solventes) ou mesmo dilapidação patrimonial para evitar o cumprimento da sentença.

Assim, para evitar a frustração ao final do processo, o art. 7º da LIA previu a possibilidade de se tornarem indisponíveis bens de titularidade dos réus no valor que assegurem o ressarcimento do dano ou o acréscimo patrimonial re-sultante do ato ímprobo:

Art. 7º Quando o ato de improbidade causar lesão ao patrimônio público ou ensejar enriquecimento ilícito, caberá a autoridade administrativa res-ponsável pelo inquérito representar ao Ministério Público, para a indisponi-bilidade dos bens do indiciado. Parágrafo único. A indisponibilidade a que se refere o caput deste artigo recairá sobre bens que assegurem o integral

corrido ou concorra com menos de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita anual, limitando-se, nestes casos, a sanção patrimonial à repercussão do ilícito sobre a contribuição dos cofres públicos.

9. COSTA, Susana Henriques da. Os Tribunais Superiores no debate jurídico sobre a improbidade administrativa. In: GALLOTTI, Isabel et al. (Coord.). O papel da juris-prudência no STJ. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais.

10. Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legali-dade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte;

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ressarcimento do dano, ou sobre o acréscimo patrimonial resultante do en-riquecimento ilícito.

Quanto à finalidade da medida de indisponibilidade de bens a doutrina en-tende que essa providência é necessária para garantir o cumprimento da futura sentença a ser proferida11. Por outro lado, há intenso debate sobre a natureza dessa medida, se seria de urgência (antecipada ou cautelar) e, portanto, com todos os requisitos intrínsecos a esse tipo de tutela, ou se seria medida de na-tureza de evidência.

O STJ já discute esse tema há anos e a partir do ano de 2012 mudou drasti-camente seu entendimento para afirmar que tratar-se-ia de tutela de evidência e, portanto, não mais seria necessária a comprovação de dilapidação patrimo-nial ou qualquer outro requisito de urgência. Segundo o STJ o caput do art. 7º apenas exige a comprovação da prática do ato ímprobo que tenha resultado em lesão ao ptrimônio público ou enriquecimento ilícito. Esse tema foi fixado em julgamento do Recurso Especial Repetitivo 1.366.721/BA.

O acórdão foi prolatado antes mesmo da previsão da tutela de evidência no Código de Processo Civil, que somente ocorreu a partir do ano de 2015. Por-tanto, esse trabalho investigará se esse entendimento do STJ se alinha com o conceito de tutela de evidência previsto na nova legislação processual.

3. A tutelA de evidênciA no novo cPc e suA interFAce com A lei de imProBidAde AdministrAtivA

A tutela de evidência prevista no Código de Processo Civil de 2015 em seu art. 311 está inserida no Livro IV da legislação processual que trata especifica-mente sobre as tutelas provisórias.

Apesar de existirem algumas críticas sobre o modo como o CPC tratou esse tema, a ideia de se reunir as tutelas de urgência (cautelar e antecipada) e de evidência em um mesmo capítulo se fundamenta em uma característica em comum: a provisoriedade.

11. AMBRIZZI, Tiago Ravazzi. Notas sobre a indisponibilidade de bens na Lei Geral de Improbidade Administrativa. Revista de Processo. São Paulo: Ed. Revista dos Tribu-nais, ano 39, n. 229, mar. 2014. O autor ainda faz referência a larga doutrina que estuda especificamente a finalidade da medida de indisponibilidade de bens e a sua natureza.

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Direito Processual civil

SilvA, Natália Diniz da. A tutela de evidência na ação de improbidade administrativa. Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 185-205. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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Porém, apesar de reunidas no mesmo Livro, a tutela de urgência (cautelar e antecipada) e da evidência têm natureza totalmente diversas. A primeira dife-rença que se pode notar é que na tutela de evidência não é exigido o requisito da urgência da tutela, pelo contrário, o que fundamenta o deferimento dessa tutela é a evidência do seu direito, assemelhando-se, em certa medida, ao man-dado de segurança. Não há dúvida de que a certeza para a concessão da tutela de evidência deve ser muito mais forte do que o fumus boni iuris e a verossimi-lhança das alegações.

Luiz Fux, em seu livro que trata especificamente sobre o tema antes mesmo da previsão do instituto no sistema pátrio, assim define o direito evidente:

O problema se põe no plano fático, sobre ser evidente ou não o direito de-

monstrado ao juízo para viabilizar a tutela sumária não cautelar, de satisfati-

vidade plena e por vezes irreversível. Os fatos, como sabido, são levados ao

juízo através das provas, razão pela qual, quando se fala em direito evidente,

diz-se direito evidenciado ao juízo através das provas. Esse caráter é um mis-

to de atributo material e processual. Sob o ângulo civil, o direito evidente é

aquele que se projeta no âmbito do sujeito de direito que postula. Sob o pris-

ma processual, é evidente o direito cuja prova dos fatos sobre os quais incide

revela-os incontestáveis ou ao menos impassíveis de contestação séria12.

A prova, portanto, é um elemento essencial para o deferimento da tutela de evidência. Esse instituto originalmente é baseado no référé provision ins-tituto francês previsto no Código de Processo Civil francês, mas que surgiu primeiramente na própria jurisprudência francesa. Trata-se de procedimento de cognição sumária, que pode ser instaurado antes ou durante o curso do processo e cuja função é regular uma situação jurídica de maneira provisória, outorgando um título executivo e independente de ação principal13.

O instituto da tutela de evidência foi incluído na nova legislação processual e o art. 311 estabelece algumas hipóteses específicas em que deve ser concedi-da a tutela de evidência:

12. FUX, Luiz. Tutela de segurança e tutela de evidência (fundamentos da tutela antecipada). São Paulo: Saraiva, 1996, p. 30.

13. BONATO, Giovanni. Il référés nell’ordinamento francese. La tutela sommaria in euro-pa – studi a cura di Antoni Carrata. Napoli: Jovene Editore, 2012; DOUCHY-OUDOT, Mélina. Procédure civile. 4. ed. Paris (França): Gualino/Lextenso éditions, 2010.

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Art. 311. A tutela da evidência será concedida, independentemente da de-

monstração de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo,

quando: I – ficar caracterizado o abuso do direito de defesa ou o manifesto

propósito protelatório da parte; II – as alegações de fato puderem ser com-

provadas apenas documentalmente e houver tese firmada em julgamento de

casos repetitivos ou em súmula vinculante; III – se tratar de pedido reiper-

secutório fundado em prova documental adequada do contrato de depósito,

caso em que será decretada a ordem de entrega do objeto custodiado, sob co-

minação de multa; IV – a petição inicial for instruída com prova documental

suficiente dos fatos constitutivos do direito do autor, a que o réu não oponha

prova capaz de gerar dúvida razoável. Parágrafo único. Nas hipóteses dos

incisos II e III, o juiz poderá decidir liminarmente.

Como se observa da leitura do dispositivo legal há diversas hipóteses que autorizam a concessão da tutela de evidência, mas todas têm em comum a ne-cessidade de prova documental forte que convença o juiz para a sua concessão.

Existindo prova documental suficiente e convincente o juiz pode deferir o pedido liminar, conforme posto no artigo de lei, e isso leva consequentemente à inversão do ônus da prova e do tempo do processo, pois quem passará a ar-car com a demora do processo será o réu e não mais o autor. Essa inversão faz todo sentido, uma vez que se trata de produção dinâmica da prova e caberá ao réu comprovar, não apenas documentalmente, o fato impeditivo, extintivo ou modificativo do direito do autor14.

Ainda, é importante atentar que a concessão da tutela de evidência também está intrinsecamente ligado ao conceito de apresentação de pelo autor de uma “contestação não séria” ou como Luiz Guilherme Marinoni afirma que “a defe-sa seja infundada ou inconsistente”15.

14. “Tal técnica de tutela faz com que o réu, e não o autor, suporte o tempo necessário para a demonstração do fato impeditivo, modificativo ou extintivo. Trata-se de uma decisão marcada por uma cognição sumária e parcial, em que o tempo do processo, necessário para a declaração dos fatos modificativos, extintivos e impeditivos, deixa de ser ônus do autor e passa a ser ônus do réu, ou seja, daquele que tem necessidade do prosseguimento do processo para que se desenvolva a fase instrutória” (MARI-NONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, v. IV, p. 228.

15. MARINONE, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, v. IV, p. 234.

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SilvA, Natália Diniz da. A tutela de evidência na ação de improbidade administrativa. Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 185-205. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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O art. 809, § 2º, do Código de Processo Civil francês prevê que a tutela de evidência pode ser concedida caso a contestação apresentada não seja séria, mas o que é esse conceito?

A ideia de contestação não séria é um conceito abrangente e difícil de ser explicado, mas que está intrisecamente ligado à evidência do direito do autor, ou seja, o juiz terá de investigar o mérito da questão e, consequentemente a evidência do direito do autor. Não há um conceito único e definido sobre o que seria a “contestação não séria” a autorizar o deferimento da tutela de evidência, mas sim, é uma questão que deve ser analisada no caso concreto pelas provas apresentadas pelas partes e pela valoração e análise do juiz16.

Aproximando tal conceito aos institutos que já existem no sistema pátrio pode-se afirmar que se assemelha, em certa medida, a prova inequívoca e ve-rossimilhança das alegações, uma vez que é essencial a análise do direito con-trovertido, a valoração das provas trazidas pelo autor, bem como a avaliação dos argumentos trazidos pelo réu.

Porém, a evidência vai além da prova inequívoca e verossimilhança das ale-gações, exigindo um grau de certeza do magistrado sobre o pedido formulado pelo autor muito maior.

Obviamente se sabe que provavelmente o juiz não terá certeza sobre o di-reito da parte, mas somente sobre os fatos narrados pelas partes. Como ensina Calamandrei a busca pela verdade real é utópica e dificilmente será alcançada, mas o que se quer dizer é que o juiz ao outorgar a tutela de evidência deve ter um grau de certeza próximo ao da tutela final (que ocorre em processo de cognição exauriente) e que o conjunto probatório fornecido pelas partes, tan-to do autor e do réu, foram o suficiente para convencê-lo a outorgar a tutela jurisdicional17.

16. É importante relembrar que o instituto do référé foi criado inicialmente pela juris-prudência francesa: “Di creazione giurisprudenziale, poi recepita a livello legislativo questa nozione si ricollega all’antico divieto di ‘faire préjudice au principal’ (di ar-recare pregiudizio al mérito della controvérsia) oggi scomparso daí testi legislativi e con la problemática ad esso connessa” (JOMMI, Alessandro. Per un’efficace tutela sommaria dei diritti di obbligazione. Il référé provision. Rivista de Diritto Civile. Pa-dova: Cedam, 1997, n. 1. gennaio/febbraio, anno XLIII, p. 127, nota 24).

17. “Não existe verdade, pois esta se encontra no campo do impossível. A verdade varia de acordo com a subjetividade de cada um. A certeza seria a manifestação subjeti-va de uma pessoa a respeito de um dado ou de um acontecimento, de modo que a verdade poderia surgir para esta pessoa, mas não para os utros ou para todos. Esta certeza, contudo – mesmo porque a subjetividade do próprio sujeito cognoscente

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Os incisos do art. 311 traçam os requisitos para a concessão da tutela de evidência, primeiro serão analisados os incisos I e IV do referido dispositivo legal, e, posteriormente, o inciso II.

Os incisos I e IV estabelecem que para a concessão da tutela de evidência deve estar presente o abuso de direito, prova documental ou inexistência de apresentação pelo réu de prova que não tenha gerado dúvida razoável (a con-testação não séria do direito francês).

O abuso de direito (inciso I do art. 311) já existia no CPC/1973 no art. 273, inciso II e trata-se de técnica de punição do réu pelo seu comportamento no processo, não está baseada na prova documental ou na evidência do direito, mas sim é uma forma de repreender o réu pela sua conduta durante o processo.

Já o inciso IV está diretamente relacionado à produção probatória do autor que comprove o seu direito e também do réu que ao apresentar uma defesa que não seja “capaz de gerar dúvida razoável”.

A ideia aqui é que já existindo prova suficiente para convencer o juiz a tutela poderá ser concedida e que consequentemente o réu não terá prova o suficiente para afastar a convicção já formada pelo juiz. Nesse sentido, vejam os comentários de Marinoni e Arenhart especificamente sobre o tema:

Sublinhe-se que a relação entre direito evidente e defesa infundada ou in-consistentae não permite definir um grau de conficção suficiente. Não obs-tante, é certo que os casos em que os fatos constitutivos são admitidos ou são provados por meio de documento têm maior capacidade de permitir a formação de convicção suficiente à tutela de evidência. Isto, é claro, no que diz respeito ao pressuposto “direito evidente”, na medida em que a fragili-dade da defesa está relacionada com a alegação de fatos impeditivos, modi-ficativos ou extintivos ou com a negação dos fatos constitutivos ou mesmo dos seus elementos secundários18.

pode mudar –, não existe nem existirá como absoluta, sequer àquele que em um dia a afirmou. Toda certeza, pois, não passa de mera probabilidade. O juiz, entretanto, deve procurar encontrar, por assim dizer, a ‘certeza do caso concreto’, a certeza acerca da afirmação de um fato. Falamos em certeza sobre a ‘afirmação’ porque o fato não pode ser qualificado de verdadeiro ou falso. O fato só adquire significação no mundo cultural ou jurídico a partir do momento em que é afirmado. A respeito da afirmação do fato, portanto, é que o juiz deve formar sua convicção de ‘certeza’” (MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela antecipatória e julgamento antecipado. Parte incontroversa da demanda. 5. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002, p. 52).

18. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, v. IV, p. 258.

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Ainda, tal inciso também está relacionado com a ideia de que “o tempo do processo deve ser suportado pela parte que necessita da instrução da causa19”, isso porque se o autor demonstrou a incontrovérsia do seu direito e compro-vou as suas razões não há porque ele arcar com o custo da demora do processo, mas sim que o réu arque com esse tempo natural do processo20.

Por fim, o inciso II do art. 311 dispõe que a tutela de evidência pode ser con-cedida nas hipóteses em que os fatos podem ser comprovados documentalmente e houver tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou súmula vinculante.

Como alertam Marinoni e Arenhart, o dispositivo legal confundiu alguns conceitos. Se a questão fática está amparada em documentos e há entendimen-to das Cortes Supremas favorável é o caso de julgamento antecipado e não de tutela de evidência, e ainda, se as razões do autor estiverem integralmente comprovadas via documental não haveria razão para se utilizar do entendi-mento fixado pelos Tribunais Superiores, que serviria apenas como retórica para auxiliar no julgamento antecipado. Uma vez mais aqui, o ônus também será do réu em afastar os argumentos do autor21.

Fixado o conceito de tutela de evidência segundo o CPC/2015 passa-se en-tão a análise de como esse conceito se encaixaria dentro da lógica da ação de improbidade administrativa e, especialmente sob a ótica do art. 7º da LIA.

O § 6º do art. 17 da LIA dispõe que a ação de improbidade deve ser ins-truída com documentos que comprovem o mínimo de eventual prática de ato ímprobo.

O procedimento especial das ações de improbidade, em razão de seu caráter punitivo, prevê uma fase prévia de processamento e recebimento das ações (art. 17, § 8º da LIA22), esse mecanismo serve para filtrar ações manifestamen-

19. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, v. IV, p. 259.

20. Marinoni e Arenhart discorrem longamente sobre esse ponto nos comentários ao art. 311 e lembram do princípio escrito por Chiovenda “la durata del processo non deve andare a danno dell’attore che ha ragione”. In: MARINONI, Luiz Guilherme; ARE-NHART, Sérgio Cruz. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, v. IV, p. 263.

21. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, v. IV, p. 271.

22. § 8o Recebida a manifestação, o juiz, no prazo de trinta dias, em decisão fundamenta-da, rejeitará a ação, se convencido da inexistência do ato de improbidade, da impro-cedência da ação ou da inadequação da via eleita.

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te improcedentes e que podem causar danos à imagem do réu, caso ele espere o final da ação para que se declare a improcedência da ação. No entanto, em estudo realizado por Susana Henriques da Costa verificou-se que somente em 8% das ações ajuizadas são extintas nessa fase inicial.23

Nota-se que a intenção da lei foi justamente criar um filtro para que evitasse que ações desnecessárias e claramente improcedentes tivessem continuidade.

Por outro lado, vê-se que parece ser regra a decretação da indisponibili-dade dos bens, com fundamento no art. 7º da LIA, ainda mesmo nesta fase preliminar da ação de improbidade, com a prolongação dessa medida ao longo do processo. Ou seja, o réu mesmo antes do recebimento da ação de improbidade já vê os seus bens bloqueados e assim permanecerá até o final do processo, o que pode demorar anos a depender da produção probatória.

O STJ definiu que a aplicação da medida de indisponibilidade de bens é independente do regime de urgência, mas sim que está baseada na evidência do direito e, portanto, não é necessário que o autor comprove qualquer dilapi-dação patrimonial.

Assim, aplicando os conceitos de tutela de evidência aqui traçados, princi-palmente no que se refere à prova suficiente para convencer o juiz e a ausência de contestação séria (inciso IV) o que seria a tutela de evidência no contexto da lei de ação de improbidade? E a produção probatória na ação de improbidade, que geralmente é complexa, se concilia com a ideia de tutela de evidência? E

23. Susana Henriques da Costa ao fazer análise quantitativa das ações de improbidade no STJ assim afirma: “O mecanismo de controle previsto pela Lei de Improbidade Admi-nistrativa se desenvolve como um filtro de demandas manifestamente irregulares ou improcedentes. Com relação a equívocos processuais, diga-se de passagem, o meca-nismo é redundante, porque o previsto pelos arts. 282 a 284 do CPC já serve como instrumento de correção de demandas formalmente malpropostas. A especialidade da Lei de Improbidade Administrativa é a possibilidade de indeferimento liminar de mérito, naqueles casos em que, prima facie, o juiz já reconheça a inexisência do ato de improbidade administrativa. Assim, o réu não estaria sujeito à demanda de cunho sancionatório e, muitas vezes, danosa à sua imagem, que se mostrasse manifestamen-te improcedente. A Lei de Improbidade Administrativa permite que se obste a admis-sibilidade da inicial, por motivo de fato ou de direito, que faça com que o magistrado conclua pelo não enquadramento da conduta do réu às hipóteses por ela previstas. Trata-se, sem dúvida, de controle bastante amplo, que, como visto acima, serviu de motivação para parcela das decisões de improcedência analisadas (8%)” (COSTA, Su-sana Henriques da. Os Tribunais Superiores no debate jurídico sobre a improbidade administrativa. In: GALLOTTI, Isabel et al. (Coord.). O papel da jurisprudência no STJ. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, p. 557).

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o mais importante, a inversão do ônus probatória se harmoniza com a impro-bidade administrativa, considerando que se trata de procedimento de natureza sancionatória?

Passa-se, assim, a analisar a jurisprudência do STJ e, principalmente o re-curso especial repetitivo que definiu que está implícito no próprio art. 7º a ideia de evidência, não sendo necessário, portanto, comprovar qualquer urgên-cia para a decretação da medida de indisponibilidade de bens.

4. A jurisPrudênciA do stj soBre A decretAção dA indisPoniBilidAde de Bens e A tutelA de evidênciA do cPc/2015

O Recurso Especial Repetitivo 1.366.721/BA fixou o entendimento juris-prudencial de que o art. 7º conteria o periculum in mora na expressão: “assegu-rar o integral ressarcimento do dano”. Assim, não seria necessário comprovar qualquer dilapidação patrimonial, pois a medida de indisponibilidade, prevista no art. 7º, tem a intenção de justamente evitar essa situação24.

O argumento utilizado pelos Ministros é que o art. 7º da LIA não exige o requisito da urgência, mas somente a comprovação de que o ato de improbidade administrativa teria causado lesão ao erário ou enriquecimento ilícito. Ainda afirmam que aplicação da medida de indisponibilidade de bens não significaria uma presunção da culpabilidade do agente e que essa medida ainda não possuiria caráter sancionatório, haja vista a natureza das penalidades impostas pela LIA.

Veja trecho transcrito do acórdão do Recurso Especial 1.319.515/ES de rela-toria do Ministro Mauro Campbell Marques e transcritos no corpo do acórdão do Recurso Especial Repetitivo 1.366.721/BA:

Ocorre que, no caso da medida cautelar de indisponibilidade, prevista no art. 7º da LIA, não se vislumbra uma típica tutela de urgência, como des-crito acima, mas sim uma tutela de evidência, uma vez que o periculum in mora não é oriundo da intenção do agente dilapidar seu patrimônio visando frustrar a reparação do dano e sim da gravidade dos fatos e do montante

24. Trecho do voto do Ministro Herman Benjamin no Recurso Especial 1.115.452/MA: “a indisponibilidade dos bens visa, justamente, a evitar que ocorra a dilapidação pa-trimonial. Não é razoável aguardar atos concretos direcionados à sua diminuição ou dissipação. Exigir a comprovação de que tal fato esteja ocorrendo ou prestes a ocorrer tornaria difícil a efetivação da Medida Cautelar em foco e, muitas vezes, inócua” (Dis-ponível em: [www.stj.jus.br]).

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do prejuízo causado ao erário, o que atinge toda a coletividade. O próprio legislador dispensa a demonstração do perigo de dano, em vista da redação imperativa da Constituição Federal (art. 37, § 4º) e da própria Lei de Im-probidade (art. 7º). A referida Medida Cautelar constritiva de bens, por ser uma tutela sumária fundada em evidência, não possui caráter sancionador nem antecipa a culpabilidade do agente, até mesmo em razão da perene re-versibilidade do provimento judicial que a deferir. (...) O periculum in mora, em verdade, milita em favor da sociedade, representada pelo requerente da medida de bloqueio de bens, porquanto esta Corte Superior já apontou pelo entendimento segundo o qual, em casos de indisponibilidade patrimonial por imputação de conduta ímproba lesiva ao erário, esse requisito é im-plícito ao comando normativo do art. 7º da Lei 8.429/92. Assim, a Lei de Improbidade Administrativa, diante dos velozes tráfegos, ocultamento ou dilapidação patrimoniais, possibilitados por instrumentos tecnológicos de comunicação de dados que tornaria irreversível o ressarcimento ao erário e devolução do produto do enriquecimento ilícito por prática de ato ímprobo, buscou dar efetividade à norma afastando o requisito da demonstração do periculum in mora (art. 823 do CPC), este, intrínseco a toda medida cautelar sumária (art. 789 do CPC), admitindo que tal requisito seja presumido à preambular garantia de recuperação do patrimônio do público, da coletivi-dade, bem assim do acréscimo patrimonial ilegalmente auferido.

O entendimento do Ministro, com todo o respeito, não se alinha com o conceito de tutela de evidência como exposto, isso porque ele afirma que o periculum in mora seria inerente ao referido dispositivo legal, pois estaria pro-tegendo o patrimônio público (objeto de proteção da Lei de Improbidade Ad-ministrativa) e que não seria necessária prova da dilapidação do patrimônio, mas somente a gravidade dos fatos em que o réu é acusado já seria o suficiente para a decretação da medida de indisponibilidade de bens. Isso justificaria a concessão da tutela, pois se basearia na evidência do direito trazido pelo autor.

Alguns conceitos foram utilizados de forma equivocada e tratados como se tivessem a mesma natureza. Como exposto no item 3 a tutela de evidência é diversa da tutela de urgência, justamente por prescindir do conceito da urgên-cia para seu deferimento e se basear na prova trazida pelo autor e não afastada pelo réu.

É interessante notar que o acórdão do STJ na realidade aponta um problema grave, que é o receio de não cumprimento de futura sentença, em razão de dilapidação patrimonial, como forma de justificar a antecipação da tutela. Ou seja, para evitar que no futuro a sentença não seja cumprida e, consequentemente, o erário público e no final o próprio interesse da sociedade sejam desrespeitados, antecipa-se a tutela bloqueando liminarmente os bens

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dos réus, sem que para isso seja necessário comprovar dilapidação patrimonial ou qualquer outra razão fundamentada nos requisitos das medidas de urgência.

Dessa forma, a tutela de evidência foi uma saída para um problema real en-frentado pelo Poder Judiciário, qual seja, o de não cumprimento das sentenças em ação de improbidade.

Contudo, será que tal medida se mostra a mais adequada e correta? Não estaria o STJ buscando solucionar um outro problema que é o do cumprimento das decisões judiciais de forma tortuosa? A medida de indisponibilidade do art. 7º baseada exclusivamente na evidência não feriria o direito de defesa do réu?

A resposta a essas perguntas parece óbvia, o STJ (e não somente ele, mas o Poder Judiciário como um todo) enfrenta um problema gravíssimo que é a satisfação das sentenças e, para resolver tal problema, subverteu a lógica da tu-tela de evidência, misturando inclusive com os conceitos de tutela de urgência.

Tal medida até pode ter boas intenções, mas pode levar a perigosa ideia do “processo do autor” em que o simples fato de ser réu em uma ação já traz a pecha de culpado e todo o estigma que essa posição processual carrega.

É necessário examinar se realmente é cabível a tutela de evidência na ação de improbidade administrativa, e para isso tem-se que ponderar todos os requisitos expostos no item 3 deste artigo no caso concreto, a prova da prática do ato ímprobo deve ser evidente e a defesa apresentada pelo réu deve não ser convincente o suficiente.

No entanto, é sabido que grande parte das ações de improbidade exige pro-dução probatória complexa, que envolvem documentos, testemunhas e perí-cias técnicas, principalmente se estiverem fundamentadas nos arts. 9 e 10 da Lei de Improbidade Administrativa, em razão da dificuldade de comprovação de enriquecimento ilícito e prejuízo ao erário.

Assim, como seria possível ao autor comprovar já prima facie a prática do ato ímprobo que autorizasse a concessão da tutela de evidência?

Com todo o respetio, mas a decisão e o posicionamento adotados pelo STJ na realidade pretendem consertar um problema de efetividade por linhas um pouco tortuosas e dando uma interpretação equivocada ao conceito de tutela de evidência.

A esse respeito, vale transcrever trecho do voto do Ministro Napoleão Nu-nes Maia que discorre exatamente sobre a diferença entre tutela de evidência e tutela de urgência e as razões pelas quais entende que é necessário comprovar a urgência para aplicação da medida de indisponibilidade de bens do art. 7º da Lei de Improbidade:

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14. Todavia, registre-se, com a mais respeitosa vênia, que não há de se con-fundir a denominada tutela de evidência com a tutela cautelar, esta cabível na ação de improbidade, uma vez que aquela (a tutela de evidência) somente ocorre quando a relação jurídica material se mostra desenturvada de dúvi-das, isto é, na esmerada posição de incontestabilidade. 15. O pedido cautelar lastreia-se em juízo de plausibilidade, e não de evidência, mormente quan-do a constrição abarca a totalidade dos bens do acionado e ainda pendente a demonstração da ocorrência do alegado dano e a sua extensão. 16. Já a tutela de evidência assemelha-se àquela prestada na ação de mandado de segurança, na qual se pressupõe a defesa de um direito certo e incontestável (expressão do Constituinte de 1934), ou seja, suscetível de prova imediata e demonstração contundente. No caso da ação de improbidade não há como se afirmar que a medida de indisponibilidade dos bens seja uma tutela de evidência, pois, além de não ser medida de caráter definitivo, não se admite a existência de prova documental incontestável a respeito do ato de impro-bidade, uma vez que, tratando-se de Direito Sancionador, imprescindível a investigação probatória, de modo que a responsabilidade do acusado não pode ser presumida: pelo contrário, o que se presume é a sua inocência.

O posicionamento do Ministro Napoleão parece mais adequado, uma vez que estabelece a diferença crucial entre tutela de urgência e tutela de evidên-cia e explica exatamente porque o art. 7º da LIA não deve ser lido como se a evidência estivesse implícita no dispositivo legal.

Como dito pelo Ministro, trata-se de direito sancionador e a presunção deve ser de inocência e não o contrário, assim, para ser aplicada qualquer medida de constrição de bens é necessário comprovar os requisitos da tutela de urgência.

Não se desconhece a dificuldade em executar muitas sentenças, não somen-te as de ação de improbidade administrativa, mas isso não justifica a deturpa-ção de um instituto e, pior, isso não justifica voltar a uma ideia de processo do autor em que basta ser réu para ser taxado como culpado e já ter seus bens bloqueados até o julgamento final do processo.

A lógica não está correta e atenta contra os princípios da razoabilidade, do devido processo legal e da presunção de inocência. O juiz não se pode deixar levar por uma sede de promover justiça a qualquer custo, mas sim deve obser-var os princípios que regulam o processo, as provas dos autos e estar sempre atento à condução processual25.

25. A esse respeito ainda vale transcrever trecho do voto do Ministro Napoleão Nunes Maia proferido no mesmo acórdão: “21. Deve-se assinalar que os atos de improbidade noticiados na ação civil pública são inegavelmente graves – ou são mesmo absoluta-

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A medida de indisponibilidade de bens, apesar da sua natureza eminente-mente cível, está inserida dentro da LIA que prevê a aplicação de penalidades de natureza muito próxima da penal, isso porque a depender do tipo em que o réu se enquadra ele pode ser condenado à perda dos seus bens, ressarcimento integral do dano, perda da função pública, suspensão dos direitos públicos, pa-gamento de multa, proibição de contratar com o Poder Público. Resta evidente que o procedimento da LIA é muito mais próxima do direito processual penal e penal, do que propriamente do direito civil e tal se justifica justamente pelo bem protegido, qual seja, a probidade administrativa e o patrimônio público26.

A importância dada a esses bens justifica a penalidade aplicada, mas tam-bém leva, consequentemente, à aplicação de outros princípios de direito pro-cessual penal, tal como a impossibilidade de inversão do ônus da prova (ou até mesmo a adoção do ônus dinâmico da prova), isso por se tratar de proce-dimento sancionatório de natureza penal, o ônus deve estar a cargo do autor, sob pena de se deixar ao réu o pesado encargo de ter que realizar uma prova diabólica27.

mente graves – e merecem, sem dúvida alguma, a repressão e a censura jurídicas por meio a atuação judicial, mas, no exercício e no desempenho dessa relevante ativida-de, deve o Magistrado respeitar, em todos os casos, por mais graves que sejam, os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade, do devido processo legal e da pre-sunção de inocência, insculpidos superiormente no ordenamento jurídico. 22. Aliás, o desafio da jurisdição moderna – máxime em sede sancionadora – é precisamente o de realizar as tarefas da repressão às ilicitudes sem descambar para a inobservância das garantias processuais das pessoas processadas, embora ceder a essa tentação seja uma ideia que ronda permanentemente, como um fantasma, o exercício da jurisdição repres-siva, inclusive (ou sobretudo) no âmbito penal, onde as ilicitudes são mais agressivas e ofendentes dos mais altos valores socialmente prezáveis. 23. Anote-se que, no contexto da jurisdição cautelar (seja genérica ou específica), para o deferimento de medidas liminares ou antecipatórias, deve o Julgador assegurar-se que estejam presentes os seus requisitos autorizadores, quais sejam, o periculum in mora e o fumus boni iuris, pois se trata de providência que tem finalidade exclusivamente preventiva, não veicu-lando, portanto, qualquer eficácia dotada de definitividade; nos casos de restrição à disponibilidade de bens patrimoniais de qualquer espécie, seria desnecessário dizer que a tutela cautelar, dada a sua provisoriedade, não carrega qualquer eficácia expro-priatória” (Disponível em: [wwww.stj.jus.br]).

26. PINTO, Marcos Vinícius. Reflexões sobre improbidade administrativa, ônus da pro-va, modelos de constatação e nota sobre o NCPC. In: BEDAQUE, José Roberto do Santos et al. (Coord.). Garantismo processual: garantias constitucionais aplicadas ao processo. São Paulo: Gazeta Jurídica.

27. PINTO, Marcos Vinícius. Reflexões sobre improbidade administrativa, ônus da pro-va, modelos de constatação e nota sobre o NCPC. In: BEDAQUE, José Roberto do

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Revista BRasileiRa da advocacia 2017 • RBA 6

SilvA, Natália Diniz da. A tutela de evidência na ação de improbidade administrativa. Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 185-205. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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Nesse sentido, o entendimento de Marcos Vinícius Pinto:

Ao considerar o raciocínio aqui erigido, não se entende cabível a inversão do ônus da prova em improbidade administrativa em prejuízo do réu. A própria doutrina já ressaltou que às ações que pugnam pela aplicação da LIA ‘se aplica o princípio da presunção de inocência esculpido no art. 5º, LVIII, da CF/88, que se estende às sanções administrativas no geral’. Assim, não ocorre a inver-são do ônus da prova nas ações de improbidade. A exemplo do que ocorre no processo penal, ao autor da demanda de improbidade administrativa incumbe todo o ônus da prova. Não tendo o réu qualquer encargo probatório, qualquer julgamento que o condene pela inobservância de seu (inexistente) ônus viola a regra do in dubio pro reo. Assim, ‘inverter o ônus da prova significaria adotar a regra oposta: in dubio pro societate, ou expresso em outros termos, in dubis contra reum. Invertido o ônus, o réu poderia ter de fazer prova acerca de fato negativo (ex. Que não cometeu o dano ou que para ele não concorreu), o que constituiria, em hipótese, verdadeira probatio diabolica e denotaria desi-gualdade probatória entre as partes’. Esse também seria o fundamento para impedir a aplicação de eventual distribuição dinâmica do ônus da prova ou qualquer outra técnica que atribua ao réu esse pesaroso encargo.

Destarte, por se tratar de medida de natureza muito próxima da penal a aplicação do instituto da tutela de evidência não parece o mais correto, haja vista que ele justamente inverte o ônus da prova e da demora do processo em desfavor do réu. Caberá ao réu comprovar que não praticou o ato ímprobo, o que, muitas vezes, pode ser uma prova de difícil ou impossível comprovação.

Por fim, como afirmado pelo Ministro Napoleão no corpo do acórdão do recurso especial repetitivo, o pedido de indisponibilidade do art. 7º da LIA tem natureza de tutela de urgência, haja vista que mesmo não estando previsto o requisito da urgência no caput do dispositivo legal, trata-se de medida cons-tritiva patrimonial que visa assegurar o cumprimento final da sentença a ser futuramente prolatada e, portanto, é necessário comprovar os requisitos espe-cíficos inerentes à tutela de urgência.

5. conclusão

Nos últimos anos, o Superior Tribunal de Justiça consolidou o entendimen-to de que seria tutela de evidência o pedido de indisponibilidade de bens ba-

Santos et al. (Coord.). Garantismo processual: garantias constitucionais aplicadas ao processo. São Paulo: Gazeta Jurídica, p. 378-379.

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Direito Processual civil

SilvA, Natália Diniz da. A tutela de evidência na ação de improbidade administrativa. Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 185-205. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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seado no art. 7º da LIA. O critério da evidência já estaria implícito no próprio dispositivo legal, não sendo necessário comprovar qualquer dilapidação patrimonial ou outro requisito de urgência para que fosse decretada a indisponibilidade de bens.

No entanto, analisando o conceito de tutela de evidência previsto no Có-digo de Processo Civil ele não parece harmonizar com o entendimento posto pelo STJ.

O instituto da tutela de evidência, com clara referência ao référé provision do sistema francês, não está baseado na urgência ou no perigo da demora, mas na evidência do direito requerido pela parte e isso se comprova através da prova e da não apresentação de contestação séria pelo réu (inciso IV do art. 311). A ideia da tutela de evidência é antecipar a tutela a quem tem razão fazendo com que o réu, que não conseguiu afastar os argumentos apresentados pelo autor, suporte o ônus probatório e do tempo da duração do processo. Aqui é necessário reforçar, a prova é essencial para a concessão dessa espécie de tutela provisória.

Por outro lado, a LIA tem natureza muito próxima do direito processual penal quando analisadas as penalidades previstas e que podem ser aplicadas, assim, a lógica daquela ciência deve ser aqui também utilizada.

Como dito, a tutela de evidência inverte o ônus da prova e da duração do processo em desfavor do réu, tal raciocínio não pode ser utilizado no processa-mento da ação de improbidade, sob pena de se deixar a cargo do réu o ônus de realizar prova contra si mesmo e, muitas vezes, prova diabólica.

O posicionamento do STJ, com todo o respeito, parece equivocado. Bus-ca muito mais resolver um problema de efetividade por caminhos tortuosos, aplicando um instituto que não tem cabimento dentro da própria lógica da improbidade administrativa.

O art. 7º da LIA trata de medida de indisponibilidade de bens baseada na urgência, ainda que tal requisito não esteja escrito no caput (a evidência tam-bém não está), é claro que devem ser seguidos os requisitos próprios desse tipo de tutela, uma vez que tal procedimento visa bloquear bens do patrimônio de uma pessoa, bem como em razão da sua natureza de processo sancionador.

Não se está aqui a defender que a indisponibilidade de bens não pode ser ado-tada pelo Poder Judiciário, pelo contrário, ela deve ser utilizada, mas não banali-zada, devendo observar os ditames da lei processual e se restringir aos casos em que comprovada a urgência que justifiquem a adoção de tal medida excepcional.

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Revista BRasileiRa da advocacia 2017 • RBA 6

SilvA, Natália Diniz da. A tutela de evidência na ação de improbidade administrativa. Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 185-205. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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6. BiBliogrAFiA

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Direito Processual civil

SilvA, Natália Diniz da. A tutela de evidência na ação de improbidade administrativa. Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 185-205. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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Pesquisas do editorial

Veja também Doutrina• A tutela provisória do novo Código de Processo Civil e sua aplicação na ação de im-

probidade administrativa, de Luiz Manoel Gomes Jr. e Thiago Buchi Batista – RePro 260/131-167 (DTR\2016\24002);

• Apontamentos para a tutela provisória (urgência e evidência) no novo Código de Processo Civil brasileiro, de Antônio Pereira Gaio Júnior – RePro 254/195-223 (DTR\2016\19680);

• As hipóteses de tutela de evidência previstas no novo CPC, de Leonardo de Souza Naves Barcellos e Julia Lins das Chagas Lima – RePro 254/225-233 (DTR\2016\19690);

• Notas sobre a indisponibilidade de bens na Lei Geral de Improbidade Administrativa, de Tiago Ravazzi Ambrizzi – RePro 229/305-334 (DTR\2014\695); e

• O novo Código de Processo Civil e algumas reflexões iniciais acerca das implicações na ação de improbidade administrativa, de Ana Cristina de Melo Silveira e Luiz Manoel Gomes Junior – RePro 250/341-362 (DTR\2015\17063).

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mArzAgão, Newton Coca Bastos. Tutela provisória de urgência: questionamentos práticos após um ano de vigência do novo Código de Processo Civil.

Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 207-224. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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tutela Provisória de urgênCia: questionamentos PrÁtiCos aPós um ano de vigênCia do novo Código de ProCesso Civil

Preliminary injunction: practical issues arising from the first year of the enactment of the new Brazilian Code of Civil Procedure

newton CoCa bastos marzagão

Mestre em Direito Processual pela Universidade de São Paulo (USP). Membro do IBDP (Instituto Brasileiro de Direito Processual), do Ceapro (Centro de Estudos Avançados de Processo), do Cesa

(Centro de Estudos das Sociedades de Advogados) – Comitê de Ensino Jurídico e Relações com Faculdades e da AASP. Advogado.

[email protected]

Áreas do direito: Processual; Civil

resumo: O presente trabalho tem por escopo listar – e tentar dirimir – as principais dúvidas práticas verificadas no dia a dia forense nesse primeiro ano de vigência do CPC/2015 no tocan-te à tutela provisória de urgência nas suas duas modalidades: antecipada e cautelar.

Palavras-Chave: Tutela provisória – Novo CPC – Aspectos práticos – Apanhado geral – Sete ques-tionamentos.

abstraCt: This study aims to list – and try to solve – the main practical questions identified in this initial year after the enactment of the Brazilian new Code of Civil Procedure regarding the preliminary injunctions.

keywords: Preliminary injunction – New Brazilian Code of Civil Procedure – Practical issues arising from it – Overview – Seven questions addressed.

Sumário: 1. Introdução: breve recapitulação histórica para contextualização do atual sis-tema das tutelas de cognição sumária. 2. Objeto do presente estudo. 3. Da fungibilidade entre tutela cautelar e tutela antecipada (art. 305, parágrafo único). 4. Da possibilidade de aditamento da causa de pedir na hipótese da tutela provisória antecipada antecedente. 5. Da possibilidade de estabilização da tutela antecipada incidental e da tutela cautelar (antecedente ou incidental). 6. Da (des)necessidade de se recorrer da decisão que defere a tutela antecipada antecedente para evitar a sua estabilização. 7. Da natureza do pro-vimento do § 1º do art. 304. 8. Da possibilidade de haver pedido cautelar antecedente à tutela executiva, ante a locução contida no parágrafo único do art. 307. 9. Da possibilidade do requisito da “probabilidade do direito”, necessária à concessão da tutela provisória de urgência, ser preenchido com base em precedentes. 10. Bibliografia.

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Revista BRasileiRa da advocacia 2017 • RBA 6

mArzAgão, Newton Coca Bastos. Tutela provisória de urgência: questionamentos práticos após um ano de vigência do novo Código de Processo Civil.

Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 207-224. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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1. introdução: Breve recAPitulAção históricA PArA contextuAlizAção do AtuAl sistemA dAs tutelAs de cognição sumáriA

Ordinariamente, a lide estabelecida entre dois litigantes que se socorram do Judiciário deve ser dirimida por provimento jurisdicional de cognição exau-riente, não só por que a aprofundada análise das questões trazidas pelas partes torna mais provável um pronunciamento judicial conforme o Direito, mas tam-bém por incutir nos jurisdicionados um maior sentimento de justiça – o que inegavelmente contribui para a pacificação social.

O exercício da cognição exauriente demanda, contudo, tempo – e o tempo é, como bem ressalta o Professor Dinamarco1, o “inimigo dos direitos”. Para debelar o deletério efeito que o tempo teria sobre o direito das partes, tanto os ordenamentos dos quais o nosso se originou2 como os precedentes diplomas processuais que aqui vigeram3 sempre previram, com maior ou menor grau de sofisticação e tecnicismo, a possibilidade da entrega de um provimento com base em cognição sumária.

O Código de Processo Civil de 19734, por exemplo, previa, em sua redação original, a possibilidade de a parte manejar medidas cautelares para evitar a ocorrência (ou perpetuação) de “lesão grave ou de difícil reparação” ao seu direito5. Os requisitos para a concessão da conhecida decisão acautelatória

1. DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 8. ed. São Pau-lo: Malheiros, 2016, v. I, p. 256. Sobre os funestos efeitos do tempo sobre o processo, a magistral obra de CRUZ E TUCCI, José Rogério. Tempo e processo: uma análise empírica das repercussões do tempo na fenomenologia processual civil e penal. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1997.

2. Para um aprofundado exame dos antecedentes históricos dos provimentos de cogni-ção sumária, remetemos o leitor às duas obras de Luiz Carlos de Azevedo e José Rogé-rio Cruz e Tucci: (i) Lições de história do processo civil romano. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2001 e (ii) Lições de história do processo civil lusitano. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2009.

3. Para um delineamento sobre o desenvolvimento do instituto da cognição sumária nos diplomas processuais que antecederam o atual Código de Processo Civil, a referencial obra de BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Tutela cautelar e tutela antecipada: tute-las sumárias e de urgência (tentativa de sistematização). 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

4. Limitamos nossa digressão histórica apenas ao Código Buzaid por uma questão de espaço e pragmatismo.

5. Redação do artigo 798 do CPC de 1973.

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Direito Processual civil

mArzAgão, Newton Coca Bastos. Tutela provisória de urgência: questionamentos práticos após um ano de vigência do novo Código de Processo Civil.

Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 207-224. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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inaudita altera parte deixavam claro que a preocupação do legislador estava mesmo centrada no fator “tempo”: para obter o provimento in limine a parte deveria comprovar a presença do fumus boni iuris e do periculum in mora. Sem periculum, não havia espaço para a aludida liminar6.

Verificando que as cautelares atendiam apenas parte dos anseios dos jurisdi-cionados e que seu uso estava sendo, por incompletude sistêmica, desvirtuado pela praxe forense7, o legislador realizou, por intermédio da Lei 8.952/1994, uma profunda reforma no Código Buzaid. Pelo sistema engendrado pela citada Lei8, o processo civil brasileiro passou a contar com três espécies de provimen-tos fundados em cognição sumária: além da tutela cautelar, que foi mantida (art. 796), foram integrados ao ordenamento a tutela antecipada baseada na urgência (art. 273, I) e a tutela antecipada de evidência (art. 273, § 6º).

Com as reformas de 1994 e 2002, portanto, estabeleceu-se uma dicotomia no tocante às tutelas fundadas em cognição sumária – de um lado apresenta-vam-se as tutelas antecipadas (de urgência e de evidência) e de outro as tutelas cautelares: aquelas destinavam-se a satisfazer, desde logo (ainda que preca-riamente), a pretensão do autor, enquanto estas tinham por escopo assegurar o resultado útil do processo por intermédio de medidas conservativas9. Nas palavras de Dinamarco e Bruno Lopes:

(...) são cautelares as medidas com que a ordem jurídica visa a evitar que o passar do tempo prive o processo de algum meio exterior que poderia ser útil ao correto exercício da jurisdição e consequente produção, no futuro, de resultados úteis e justos (fontes de prova ou bens suscetíveis de constrições,

6. Ou seja, o litigante que, a despeito de se encontrar com um “bom direito” não es-tivesse premido pelo tempo, não poderia obter uma decisão liminar em seu favor – pois o sistema das cautelares autorizava o juiz a intervir antecipadamente apenas se houvesse risco de perecimento (rectius, lesão) do direito.

7. Os jurisdicionados, à mingua de regras que previssem (e regulassem) o que hoje conhecemos por provimentos antecipatórios de tutela, se socorriam das cautelares tanto para pleitear medidas que garantissem o resultado útil do processo (tutela cau-telar stricto sensu) como para solicitar medidas que, no fundo, acabavam por permitir o gozo, ainda que provisório, do próprio direito perseguido em Juízo (tutela anteci-pada). Nesse sentido: BAPTISTA DA SILVA, Ovídio Araújo. Curso de processo civil. 4. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2000, v. 2, p. 67.

8. Posteriormente complementado pela Lei 10.444/2002.

9. ALVIM, Arruda. Novo contencioso cível no CPC/2015. São Paulo: Ed. Revista dos Tri-bunais, 2016, p. 179.

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mArzAgão, Newton Coca Bastos. Tutela provisória de urgência: questionamentos práticos após um ano de vigência do novo Código de Processo Civil.

Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 207-224. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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como a penhora); e são antecipação de tutela aquelas que vão diretamente à vida das pessoas e, antes do julgamento final da causa, oferecem a algum dos sujeitos em litígio o próprio bem pelo qual ele pugna ou algum benefício que a obtenção do bem poderá proporcionar-lhe. As primeiras são medidas de apoio ao processo, e as segundas às pessoas10.

O novo Código de Processo Civil11 agrupou essas várias espécies de tutelas fundadas em cognição sumária sob a rubrica “tutela provisória”, dedicando um Livro inteiro (o Livro V) ao tema. Dentro do gênero “tutela provisória”, houve a subdivisão das espécies de acordo com três critérios:

(a) primeiramente, em razão da necessidade ou não de demonstração de “perigo de demora da prestação da tutela jurisdicional”, a tutela provisória pode ser “de urgência” ou “de evidência” (art. 294, par. ún.); (b) em segun-do lugar, em função do momento em que é postulada, a tutela provisória pode ser “antecedente” ou “incidental” (art. 294, caput); e, por fim, (c) le-vando-se em conta a aptidão da tutela provisória em permitir ao beneficiário fruir o bem da vida objeto do litígio ou não, ela pode ser “antecipada” (rec-tius, satisfativa) ou “cautelar” (art. 294, caput)12.

2. oBjeto do Presente estudo

O presente trabalho tem por escopo listar – e tentar dirimir – as principais dúvidas práticas13 verificadas no dia-a-dia forense nesse primeiro ano de vi-

10. DINAMARCO, Cândido Rangel; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria geral do novo processo civil. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 27.

11. Lei 13.105/2015.

12. SICA, Heitor Vitor Mendonça. Doze problemas e onze soluções quanto à chamada “estabilização da tutela antecipada”. In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos; APRI-GLIANO, Ricardo de Carvalho; HECKER DA SILVA, João Paulo; VASCONCELOS, Ronaldo; ORTHMANN, André (coords.). Processo em jornadas. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 418 e 419.

13. Pensamos, com o enfrentamento destas questões práticas, contribuir para a comple-mentação do excelente estudo teórico feito por Heitor Sica antes do novo diploma entrar em vigor (SICA, Heitor Vitor Mendonça. Doze problemas e onze soluções quanto à chamada “estabilização da tutela antecipada”. In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos; APRIGLIANO, Ricardo de Carvalho; HECKER DA SILVA, João Paulo; VASCONCELOS, Ronaldo; ORTHMANN, André (coords.). Processo em jornadas. Sal-vador: JusPodivm, 2016).

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Direito Processual civil

mArzAgão, Newton Coca Bastos. Tutela provisória de urgência: questionamentos práticos após um ano de vigência do novo Código de Processo Civil.

Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 207-224. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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gência do CPC/2015 no tocante à tutela provisória de urgência nas suas duas modalidades: antecipada e cautelar. O exame da tutela de evidência, não menos instigante e importante, será realizado em futura oportunidade14.

Trataremos, pois, nesse enxuto estudo, de abordar as seguintes questões práticas15:

1. A fungibilidade entre a tutela provisória de urgência cautelar e a tutela provisória de urgência antecipada, prevista no art. 305, parágrafo único, tam-bém ocorre no sentido inverso?

2. O autor pode aditar a causa de pedir na hipótese da tutela antecipada antecedente (art. 303, § 1º, I) ou tal aditamento somente é admitido em sede de cautelar antecedente (art. 308, § 2º)?

3. A estabilização da tutela (textualmente prevista para as tutelas antecipa-das antecedentes) também pode se operar nas tutelas antecipadas incidentais ou nas tutelas cautelares (sejam elas antecedentes ou incidentais)?

4. Mostra-se imprescindível, para que se impeça a estabilização da tutela, a interposição de recurso? Poderia a parte empecer a tal estabilização por inter-médio de mera petição (ou qualquer forma de manifestação), dirigida ao juiz da causa?

5. Qual seria a natureza do provimento do § 1º do art. 304, que extingue o processo?

6. Considerando o disposto no parágrafo único do art. 307 (que remete ao procedimento comum), mostra-se possível formular pedido cautelar antece-dente quando o pedido principal é de execução?

7. O requisito da “probabilidade do direito” necessário para a concessão da tutela provisória de urgência pode restar preenchido com base em precedentes favoráveis ao direito do requerente da medida?

14. Deixamos, aqui, contudo, desde logo destacados dois excelentes estudos sobre a tu-tela de evidência: BODART, Bruno Vinícius da Rós. Tutela de evidência. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2015 e CINTRA, Lia Carolina Batista. Tutela antecipada fundada na evidência no novo Código de Processo Civil. In: BEDAQUE, José Roberto dos Santos; CINTRA. Lia Carolina Batista; EID, Elie Pierre (coords.). Garantismo pro-cessual – garantias processuais aplicadas ao processo. São Paulo: Gazeta Jurídica, 2016.

15. As questões aqui enfrentadas foram levantadas em discussões internas no âmbito do Ceapro (Centro de Estudos Avançados de Processo) como preparativo para o Con-gresso a ser realizado dia 23.06.2017.

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Revista BRasileiRa da advocacia 2017 • RBA 6

mArzAgão, Newton Coca Bastos. Tutela provisória de urgência: questionamentos práticos após um ano de vigência do novo Código de Processo Civil.

Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 207-224. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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3. dA FungiBilidAde entre tutelA cAutelAr e tutelA AnteciPAdA (Art. 305, PArágrAFo único)

Iniciando o enfrentamento das questões propostas no precedente capítulo pela ordem lá listada, cumpre-nos examinar se a fungibilidade existente entre a tutela provisória de urgência cautelar e a tutela provisória de urgência anteci-pada, prevista no art. 305, parágrafo único, também ocorre no sentido inverso. Em outras palavras, cumpre-nos responder se tendo a parte formulado em juí-zo um pleito de tutela antecipada, poderá o magistrado, verificando a natureza cautelar da pretensão, receber e processar o feito nos moldes do procedimento cautelar.

No nosso sentir, a resposta deve ser positiva. Não vemos o “silêncio do legislador”, que deixou de inserir na parte da tutela antecipada regramento semelhante ao existente na tutela cautelar (notadamente o art. 305, parágrafo único), como proposital16. Vale lembrar:

(...) ao introduzir, por intermédio da Lei 10.444/2002, o § 7º no artigo 273 do antigo Código Buzaid, o legislador também havia previsto, pelo menos literalmente, uma “via de mão única” em termos de fungibilidade17 – e em tal ocasião doutrina e jurisprudência se negaram a interpretar o aludido “silên-cio” como proposital. Com efeito, diversos julgados18 e reiterada doutrina19 sustentaram a fungibilidade nos dois sentidos naquele momento histórico, sendo totalmente desarrazoado aplicar, agora, solução diversa, dada a simi-litude das situações.

16. Não haveria, aqui, pois, o chamado “silêncio eloquente”.

17. § 7º Se o autor, a título de antecipação de tutela, requerer providência de natureza cautelar, poderá o juiz, quando presentes os respectivos pressupostos, deferir a medi-da cautelar em caráter incidental do processo ajuizado.

18. Dentre os quais podemos citar o REsp 889.886/RJ, 2ª T., Rel. Ministro Humberto Martins, j. 07.08.2007, DJe 17.08.2007 e REsp 627.759/MG, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 25.04.2006, DJe 08.05.2006.

19. Por todos: Cândido Rangel Dinamarco, ao enfática (e corretamente) afirmar que “não há fungibilidade em mão única de direção”, de modo que o referido § 7º autorizaria “o juiz, amplamente, a receber qualquer pedido de tutela urgente, enquadrando-o na categoria que atender adequada, ainda que o demandante haja errado ao qualificar o que é cautelar como antecipação, ou o que é antecipação, como cautelar” (DINA-MARCO, Cândido Rangel. Nova era do processo civil. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 61).

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mArzAgão, Newton Coca Bastos. Tutela provisória de urgência: questionamentos práticos após um ano de vigência do novo Código de Processo Civil.

Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 207-224. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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Vamos além:

(...) entendemos que a admissão da fungibilidade de “mão dupla” tem ainda mais razão de ser nos dias atuais, dada a paridade instituída pelo novo CPC entre os procedimentos da cautelar e da tutela antecipada20. Não fosse (i) pela paridade de procedimentos entre um e outro21, o que facilita a concessão de uma tutela no lugar da outra ou (ii) pelo “precedente” interpretativo dado pela doutrina e jurisprudência à Lei 10.444/2002, no mínimo (iii) a desburocrati-zação do processo e a eliminação do excessivo formalismo, valores indubita-velmente buscados com o novo Código, conduziriam a tal conclusão22.

No nosso entender, portanto, o magistrado deverá, sim, receber como cau-telar um pleito formulado (equivocadamente) como antecipatório de tutela23, intimando a parte a fazer os ajustes necessários na peça exordial – dado que a despeito da similaridade de procedimentos, existem direitos e/ou faculdades processuais distintos entre os arts. 303 e 30524.

20. Nesse sentido, a lição de Rogéria Dotti: “saliente-se que tanto a tutela de urgência satisfativa quanto a cautelar serão prestadas nos mesmos autos do pedido principal, independentemente de novas custas processuais e sem a necessidade de duplo pro-cedimento. (...) O mesmo se diga em relação à unificação dos requisitos legais para a concessão das duas formas de tutelas de urgência (art. 300). (...) Assim, nos termos do Código de Processo Civil de 2015, os requisitos para a concessão de provimento cautelar ou antecipatório são os mesmos” (DOTTI, Rogéria. A estabilização da tutela antecipada no CPC de 2015: a autonomia da tutela sumária e a coisa julgada dispen-sável. In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos; APRIGLIANO, Ricardo de Carvalho; HECKER DA SILVA, João Paulo; VASCONCELOS, Ronaldo; ORTHMANN, André (coords.). Processo em jornadas. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 903 e 904).

21. Perceba, leitor, que usamos propositadamente o termo “paridade”. De fato, os proce-dimentos da tutela antecipada e da tutela cautelar encontram-se inegavelmente apro-ximados no novo CPC. Isso, contudo, não quer dizer que sejam iguais, uniformes.

22. Concordando conosco: YARSHELL, Flávio Luiz. Tutela provisória. In: YARSHELL, Flávio Luiz; MEDEIROS NETO, Elias Marques; PUOLI, José Carlos Baptista; COÊ-LHO, Marcus Vinicius Furtado. O novo Código de Processo Civil: breves anotações para a advocacia. Brasília: OAB, Conselho Federal, 2016, p. 41.

23. Mesmo por que a doutrina ainda diverge (e, ao que parece, sempre divergirá) sobre as hipóteses que se caracterizam como antecipação de tutela e as que se caracterizam como cautelar. Nesse sentido, Cássio Scarpinella Bueno: “nem sempre é simples dis-tinguir até onde vai o ‘assegurar’ e onde começa o ‘satisfazer’ (e vice-versa)” (Manual de direito processual civil. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 259).

24. Dentre os quais, a mero título de exemplo: o direito à estabilização da tutela, que não se aplica à tutela cautelar (como veremos adiante).

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4. dA PossiBilidAde de AditAmento dA cAusA de Pedir nA hiPótese dA tutelA ProvisóriA AnteciPAdA Antecedente

A segunda indagação que formulamos no item “2” – e que agora pretende-mos responder – diz respeito à possibilidade do autor também aditar a causa de pedir na hipótese da tutela antecipada antecedente (art. 303, § 1º, I25), vez que existe previsão expressa para aditamento da causa de pedir apenas para a cautelar antecedente (art. 308, § 2º26).

A resposta, aqui, é ainda mais enfática do que a proposta no item anterior:

Sim! O direito de a parte aditar a causa de pedir vem expressado no artigo 329, I27 – e pode ser exercido até a citação do réu. Como, no caso da tutela antecipada antecedente, o réu só será citado após a complementação prevista no aludido artigo 303, § 1º, I, o autor pode, sim, aditar a causa de pedir.

O simples fato de o art. 303, § 1º, I não fazer expressa remissão à possibili-dade de a parte aditar a causa de pedir28 – conjugado com o fato de o art. 308, § 2º, expressamente autorizar o demandante a aditar a causa de pedir em sede de tutela cautelar antecedente –, não autoriza o operador do direito a interpre-tar ser vedado o aditamento da causa de pedir no procedimento da tutela an-tecipada antecedente. Salvo melhor juízo, o legislador só fez constar, de forma expressa, autorização para que o autor pudesse alterar sua causa de pedir no caso da cautelar antecedente por que neste procedimento, quando o autor for apresentar o “pleito principal”, o réu já terá – via de regra – sido citado29.

Ou seja, existe expressa disposição no art. 308, § 2º, para excepcionar a regra do art. 329, I, vez que no procedimento da tutela cautelar antecedente existem duas citações. Tal comando legal, contudo, não projeta quaisquer efei-

25. I – o autor deverá aditar a petição inicial, com a complementação de sua argumenta-ção, a juntada de novos documentos e a confirmação do pedido de tutela final, em 15 (quinze) dias ou em outro prazo maior que o juiz fixar.

26. § 2º A causa de pedir poderá ser aditada no momento de formulação do pedido principal.

27. Art. 329. O autor poderá: I – até a citação, aditar ou alterar o pedido ou a causa de pedir, independentemente

de consentimento do réu.

28. O dispositivo, como visto na nota de rodapé acima, fala apenas em “aditar a petição inicial [e não a causa de pedir], com a complementação de sua argumentação”.

29. Valendo aqui lembrar que no procedimento cautelar o réu é citado para contestar o pleito “liminar” (artigo 306).

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tos para o jurisdicionado que vier a formular pleito de tutela antecipada ante-cedente – que poderá, sim, aditar a causa de pedir ao apresentar o aditamento/complementação do art. 303, § 1º, I.

5. dA PossiBilidAde de estABilizAção dA tutelA AnteciPAdA incidentAl e dA tutelA cAutelAr (Antecedente ou incidentAl)

Como terceiro ponto a ser abordado em nosso estudo, devemos investigar a possibilidade de a estabilização prevista para a tutela antecipada antecedente (prevista no art. 304) se estender também à tutela antecipada incidental e às cautelares (antecedente ou incidental).

Não vemos como aplicar o instituto da estabilização da tutela aos provi-mentos cautelares (sejam elas antecedentes ou incidentais), e isso por uma simples razão:

(...) as tutelas cautelares se destinam à mera conservação de situações jurídi-cas com vistas à preservação da utilidade do processo, não outorgando, pois, ao seu beneficiário, a fruição de qualquer bem da vida. Não tendo o autor, com a liminar porventura obtida em sede cautelar, alcançado a satisfação (ainda que precária) do seu direito, inexistiria razão – como de fato inexiste – para se falar em estabilização. Nesse sentido, inclusive, o Enunciado 420 do FPPC: “não cabe estabilização de tutela cautelar” 30.

Agora, seria possível a estabilização da tutela antecipada incidental? A des-peito de o dispositivo legal que trata da estabilização (art. 304) não prever ex-pressamente tal possibilidade, importantes vozes doutrinárias se posicionaram pela sua admissão31, argumentando, em suma, que (i) a extensão da estabiliza-

30. Com o mesmo entendimento a majoritária doutrina, aqui representada por GAJAR-DONI, Fernando da Fonseca. Teoria geral do processo – comentários ao CPC de 2015 – parte geral. São Paulo: Método, 2015, p. 895.

31. Defendendo a aplicação “irrestrita” da estabilização da tutela antecipada incidental: THEODORO JUNIOR, Humberto; ANDRADE, Érico. A Autonomização e a estabili-zação da tutela de urgência no projeto de CPC. Repro, v. 206, abr. 2012. No mesmo sentido, Leonardo Ribeiro: “a melhor interpretação, segundo pensamos, é aquela que confere a maior eficácia possível ao instituto, admitindo-se, assim, a estabilização mesmo no caso de tutela antecipada deferida incidentalmente” (RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva. Tutela provisória: tutela de urgência e tutela da evidência – do CPC/1973 ao CPC/2015. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2015, p. 220). Como meio termo, defendendo a aplicação em “algumas hipóteses”, NEVES, Daniel Amorim Assump-ção. Manual de direito processual civil. 8. ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 450 e 451.

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ção para a tutela antecipada incidental seria sistematicamente coerente e que (ii) institutos congêneres em sede de Direito Comparado admitiram essa hipótese32.

Ousamos, sempre com a devida vênia, discordar: o legislador fez uma opção, autorizando a estabilização apenas nos casos de tutela antecipada antecedente. Não nos parece, pois, ser exegeticamente recomendável (rectius: possível) que o operador do direito estenda a posição de vantagem processual decorrente da estabilização a uma situação não prevista em lei. Estaríamos, caso prolon-gássemos as hipóteses de estabilização a situações não albergadas pela norma processual, avançando na seara legislativa – o que é não só desaconselhável, mas, sobretudo, vedado.

A opção legislativa pode até ser criticada por não ser sistemática, por não observar a disciplina do instituto em ordenamentos jurídicos afins ao nosso33, mas não pode ser ignorada ou vilipendiada. Salvo melhor juízo, não se pode beneficiar o autor34, concedendo-lhe uma vantagem processual em hipótese não prevista em lei, principalmente quando essa “vantagem processual” dá azo à sedimentação de uma situação de direito material.

6. dA (des)necessidAde de se recorrer dA decisão que deFere A tutelA AnteciPAdA Antecedente PArA evitAr A suA estABilizAção

A quarta dúvida consignada no capítulo “2” deste estudo diz respeito à ne-cessidade de o réu ter de imprescindivelmente recorrer da decisão concessiva da tutela antecipada antecedente para evitar a sua estabilização.

32. Notadamente o référé francês e a tutela sumária do direito italiano (art. 669, octies do Codice di Procedura Civile).

33. Comungamos, pois, das considerações feitas por Rogéria Dotti: “Não só durante os debates legislativos, mas mesmo após a publicação da Lei 13.105/2015, parte da dou-trina passou a defender essa ampliação da estabilização justamente para alcançar a tutela antecipada incidental e a tutela de evidência. Essa parece ser a melhor opção em termos de economia processual e coerência do sistema. Afinal, justamente diante da grande probabilidade de reconhecimento do direito do autor, deveria se permitir a técnica da estabilização, evitando-se dessa forma o prosseguimento do feito. Lamen-tavelmente, porém, o Código de Processo Civil restringe o instituto à tutela satisfativa antecedente” (DOTTI, Rogéria. A estabilização da tutela antecipada no CPC de 2015: a autonomia da tutela sumária e a coisa julgada dispensável. In: LUCON, Paulo Hen-rique dos Santos; APRIGLIANO, Ricardo de Carvalho; HECKER DA SILVA, João Pau-lo; VASCONCELOS, Ronaldo; ORTHMANN, André (coords.). Processo em jornadas. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 907 e 908).

34. Ou, como revés da moeda, prejudicar o réu.

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Arruda Alvim é textual ao afirmar que sim:

(...) a redação do dispositivo [art. 304, caput] é bastante clara, e parece ser adequada uma interpretação restritiva para impedir que outras manifesta-ções do réu que signifiquem a quebra da sua inércia e a impugnação da decisão que concedeu a medida podem evitar a extinção do processo. (...) Não serve, para impedir a estabilização, mero requerimento; é necessário recurso (...)35.

Discordamos do posicionamento adotado pelo emérito Professor da PUC/SP. A tônica do novo CPC – fundada na simplificação de procedimentos36, di-minuição do número de recursos37 e julgamento por amostragem38 – parece não coadunar com essa interpretação de obrigatória interposição de recurso com o único escopo de impedir a estabilização de uma tutela.

Muitas vezes o réu pode não querer recorrer de uma dada decisão por ter plena ciência de que, neste momento em que a cognição ainda é sumária, a iminência do dano ao direito do autor “pesa” em seu desfavor, sendo muito mais provável que o Tribunal mantenha a decisão agravada. Isso, contudo, não quer dizer que o réu concorde com a estabilização do provimento antecipató-rio ou que queira abrir mão de discutir a justiça da referida decisão em sede exauriente. Um exemplo pode melhor ilustrar a hipótese aventada:

(...) uma operadora de telefonia pode preferir não se insurgir, via Agravo de Instrumento, contra uma decisão antecipatória de tutela que tenha obstado a inscrição do nome de um dado consumidor nos órgãos de proteção ao cré-dito, pois sabe que em sede de cognição sumária a iminência de dano para o consumidor “joga” em seu desfavor. A ausência de interesse em recorrer nesse dado momento processual não quer dizer que ela (operadora de te-lefonia) esteja abrindo mão do direito de negativar o tal consumidor caso,

35. ALVIM, Arruda. Novo contencioso cível no CPC/2015. São Paulo: Ed. Revista dos Tri-bunais, 2016, p. 185 (observação entre colchetes não consta do original). No mesmo sentido, (i) MEDINA, José Miguel Garcia. Novo Código de Processo Civil comentado. 4. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2016, p. 517; (ii) CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. São Paulo: Atlas, 2015, p. 165 e (iii) AMARAL, Guilherme Rizzo. Comentários às alterações do novo CPC. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2015, p. 407.

36. Artigos 190, 191, 337, II, 339, 343, 441, 453, § 1º, 455, 459, entre vários outros.

37. Rol taxativo do artigo 1.015, por exemplo.

38. Artigos 976 e 1.036.

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após o encerramento da instrução probatória, venha a provar a higidez da dívida discutida em juízo.

Em nosso sentir, portanto, qualquer manifestação do réu que inequivoca-mente demonstre ao juiz que ele não concorda com a estabilização da tutela será suficiente para que empecer a estabilização no caso concreto. Obviamen-te, essa manifestação (seja ela uma simples petição, seja ela um pedido de reconsideração protocolado em primeiro grau, seja o mero comparecimento à audiência de conciliação/mediação) deverá ocorrer dentro do prazo preclusi-vo de 15 dias úteis (que é o prazo previsto para a interposição do recurso de agravo de instrumento) – pois será esse o hiato temporal que o juiz da causa utilizará para aferir se houve, ou não, a aceitação tácita do réu. Essa posição parece ser a que mais se coaduna não só com o a lógica do novo CPC, mas também com o princípio da economia processual – afinal de contas, obrigar a parte demandada a recorrer apenas para empecer a estabilização de uma tute-la é indubitavelmente antieconômico. Em abono à opinião aqui defendida, o sempre pertinente escólio de Cássio Scarpinella:

(...) qualquer manifestação expressa do réu em sentido contrário à tutela provisória antecipada em seu desfavor deve ser compreendida no sentido de inviabilizar a incidência do art. 304. (...) Destarte, desde que o réu, de alguma forma, manifeste-se contra a decisão que concedeu a tutela provi-sória, o processo, que começou na perspectiva de se limitar à petição inicial facilitada pelo caput do art. 303 (...) prosseguirá para que o magistrado, em amplo contraditório, aprofunde sua cognição e profira oportunamente deci-são sobre a “tutela final” (...)39.

7. dA nAturezA do Provimento do § 1º do Art. 304Considerando o fato de que a decisão antecipatória de tutela, quando defe-

rida em caráter antecedente40 e caso não “recorrida”41 se estabiliza, a doutrina passou a se questionar qual seria a natureza do provimento que, nos termos do § 1º do art. 304, põe fim ao processo.

39. BUENO, Cássio Scarpinella. Manual de direito processual civil. 3. ed. São Paulo: Sarai-va, 2017, p. 273 e 274.

40. Vide o precedente capítulo “5”.

41. Vide o antecedente capítulo “6”, com todas as observações sobre a (des)necessidade de se recorrer para evitar a estabilização.

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Diferentemente dos precedentes questionamentos até agora enfrentados, os processualistas vêm se posicionando de forma uníssona no sentido de que o referido provimento tem natureza de sentença terminativa (art. 485). E não poderia ser diferente, pois de sentença de mérito definitivamente não se tra-ta – seja por que as partes, com suas condutas, “liberaram” o juiz de proferir decisão sobre o meritum causae, seja por que estamos diante do fenômeno da autonomização da tutela sumária42.

À guisa de um inciso específico, entendemos que a sentença terminativa do § 1º do art. 304 deve ser prolatada com arrimo no inciso X do art. 48543, caben-do, inclusive, a condenação do réu no dever de reembolsar custas e despesas processuais e arcar com os honorários sucumbenciais (que deverão, contudo, ser fixados com parcimônia, tendo-se em conta o antecipadíssimo encerramen-to do feito).

Em sentido contrário ao defendido aqui no texto, com relação ao reembolso das custas e despesas processuais, o Enunciado 18 da Enfam:

(...) na estabilização da tutela antecipada, o réu ficará isento do pagamento das custas e os honorários deverão ser fixados no percentual de 5% sobre o valor da causa (art. 304, caput, c/c o art. 701, caput, do CPC/2015).

Não temos como concordar com o referido Enunciado, que transporta para o instituto da tutela provisória mecanismo premial da ação monitória. Como bem salienta o Professor Heitor Sica:

42. Fenômeno esse já verificado, por exemplo, no direito italiano, como bem explicam Giuseppe Tarzia e Achille Saletti: “La riforma del 2005, modificando l’art. 669 octies c.p.c., ha innovato per questo profilo, escludendo che la misura cautelare richieda sem-pre e necessariamente, per mantenere efficacia, l’instaurazione della causa di merito e il sucessivo impulso della stessa, fino a giungere alla pronuncia sull’esistenza del diritto cautelato. Le misure cautelari, doppo la riforma, si attengiano diversamente rispetto al giudizio di merito: mentre talune, onde non perdere efficacia, continuano a postulare una decisione sul merito della controversia, altre sono state affrancate da questo vinco-lo, acquisendo una valenza autonoma, indipendentemente dalla decisione sul merito, che può mancare” (Il processo cautelare. 5. ed. Wolters Kluwer, Cedam, 2015, p. 84).

43. No mesmo sentido de nossas conclusões: “a decisão que concede a tutela antecipada não se confunde com a sentença que, depois dela, extingue o processo. Se a primeira é indubitavelmente uma decisão de mérito, a segunda certamente não o é, já que não acolhe ou rejeita qualquer pedido do autor, limitando-se a extinguir o processo. A sentença nesse caso é terminativa, devendo ser fundada no art. 485, X, do Novo CPC” (NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. 8. ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 455).

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(...) quando se trata de técnica de estabilização, a ausência de recurso não implica satisfação do autor, mas apenas a formação de título para a execução definitiva, de modo que não se poderia premiar o réu que deu causa à ins-tauração do processo (...)44.

8. dA PossiBilidAde de hAver Pedido cAutelAr Antecedente à tutelA executivA, Ante A locução contidA no PArágrAFo único do Art. 307

Considerando o quanto disposto no parágrafo único do art. 30745 – que re-mete os jurisdicionados ao procedimento comum após a contestação do pedido liminar formulado pelo autor –, mostra-se possível apresentar pedido cautelar antecedente quando a pretensão “principal” for de execução de título extraju-dicial?

A resposta tem de ser positiva. Não só por que conclusão em sentido con-trário seria assistemática, mas principalmente por que retiraria dos credores importantíssimas ferramentas de constrição patrimonial em caso de urgência (arresto e sequestro, por exemplo46). A menção a “procedimento comum” do parágrafo único do art. 307 deve ser interpretada cum grano salis, sendo indu-bitável que o legislador quis, com a tal locução, apenas e tão somente indicar que, uma vez contestado o pleito liminar, o processo seguirá tramitando na forma que ordinariamente for cabível ao caso concreto. No caso de uma tutela cautelar que anteceda uma pretensão exercitável via processo de conhecimen-to47, observar-se-á o procedimento do art. 318 e seguintes. Sendo, por outro

44. SICA, Heitor Vitor Mendonça. Doze problemas e onze soluções quanto à chamada “estabilização da tutela antecipada”. In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos; APRI-GLIANO, Ricardo de Carvalho; HECKER DA SILVA, João Paulo; VASCONCELOS, Ronaldo; ORTHMANN, André (coords.). Processo em jornadas. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 426 e 427.

45. Parágrafo único – contestado o pedido [liminar] no prazo legal, observar-se-á o pro-cedimento comum.

46. Figuras que, curiosamente, encontram-se listadas no artigo 301, mas não se encon-tram disciplinadas no vigente diploma processual. Quem quiser, a partir do CPC de 2015, fazer uso do sequestro ou do arresto como medida assecuratória deverá buscar os requisitos para a concessão de tais medidas no CPC revogado (artigos 822 e 813, respectivamente)? Ou estará o juiz, à mingua de requisitos expressamente fixados em Lei, livre para deferir um arresto ou sequestro sem se atentar a quaisquer parâmetros?

47. Um pleito declaratório, constitutivo ou condenatório.

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Direito Processual civil

mArzAgão, Newton Coca Bastos. Tutela provisória de urgência: questionamentos práticos após um ano de vigência do novo Código de Processo Civil.

Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 207-224. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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lado, uma tutela antecessora de uma pretensão executiva, observar-se-á o pro-cedimento regulado pelo art. 771, simples assim.

De mais a mais, importante destacar que em diversos dispositivos legais o legislador teve o cuidado de indicar que o procedimento comum aplica-se sub-sidiariamente ao procedimento executivo48, de modo que não vemos qualquer empecilho atrelado à locução consignada no parágrafo único do art. 307.

9. dA PossiBilidAde do requisito dA “ProBABilidAde do direito”, necessáriA à concessão dA tutelA ProvisóriA de urgênciA, ser Preenchido com BAse em Precedentes

Os precedentes, assim entendidos os pronunciamentos reiterados, sedi-mentados e uniformes dos Tribunais sobre determinadas questões de direito49, podem sim, por se constituírem fonte secundária do direito pátrio, preencher o requisito da “probabilidade do direito”, previsto no art. 300 para a concessão de tutela provisória de urgência.

Assim, a parte que conseguir demonstrar a existência de julgados reiterados e relativamente estáveis dos Tribunais em favor da sua tese poderá, sem som-bra de dúvidas, pleitear a concessão da tutela provisória de urgência.

Obvio que os “precedentes”50 formados a partir da técnica de julgamen-to por amostragem/em bloco51 também são hábeis a preencher o requisito da “probabilidade do direito”, mormente se considerado seu caráter vinculativo – com maior ou menor grau, a depender da técnica aplicada. O que se quer des-tacar, contudo, nesse enxuto tópico, é que não apenas esse tipo de “preceden-te”, tão em voga agora, dará azo ao preenchimento do requisito legal. Julgados reiterados dos tribunais (inclusive locais, a depender do caso), mesmo que não

48. Por exemplo, nos parágrafos únicos dos próprios artigos 318 e 771.

49. Conceito fixado por TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2004, p. 242: “o precedente, para cons-tituir jurisprudência, deve ser uniforme e constante”.

50. Colocamos o temo “precedente” entre aspas pois os pronunciamentos exarados como resultado da aplicação das técnicas de julgamento em bloco/por amostragem (IRDR, assunção de competência, recurso Especial repetitivo etc.) não se configuram como precedentes stricto sensu (embora possam irradiar um dos efeitos do precedente, que é a vinculação obrigatória, de precedentes – de fato – não se tratam).

51. Os casos repetitivos do artigo 928, o incidente de resolução de demandas repetitivas (artigo 976) e o incidente de assunção de competência (artigo 947).

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Revista BRasileiRa da advocacia 2017 • RBA 6

mArzAgão, Newton Coca Bastos. Tutela provisória de urgência: questionamentos práticos após um ano de vigência do novo Código de Processo Civil.

Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 207-224. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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dotados de força vinculante, deverão ser, sim, considerados para o preenchi-mento do requisito “probabilidade do direito”, constante do art. 300 do Diplo-ma processual. Afinal de contas, por certo uma tese que vem referendada por reiterados julgados tem uma “alta probabilidade” de vir a ser acatada no caso concreto. Nesse sentido, e valemo-nos da sempre valorosa lição do Professor José Rogério Cruz e Tucci:

(...) cabe aos magistrados outorgar aos precedentes dos Tribunais Superiores revestidos da marca da definitividade o valor e a influência aptos a orientar os órgãos inferiores e não desrespeitar, sem justificativa plausível, a função nomofilácica àqueles atribuída pela Constituição Federal52.

10. BiBliogrAFiA

ALVIM, Arruda. Novo contencioso cível no CPC/2015. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2016.

AMARAL, Guilherme Rizzo. Comentários às alterações do novo CPC. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2015.

AZEVEDO, Luiz Carlos de; CRUZ E TUCCI, José Rogério. Lições de história do processo civil romano. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2001.

AZEVEDO, Luiz Carlos de; CRUZ E TUCCI, José Rogério. Lições de história do processo civil lusitano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

BAPTISTA DA SILVA, Ovídio Araújo. Curso de processo civil. 4. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2000, v. 2.

BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumárias e de urgência (tentativa de sistematização). 3. ed. São Paulo: Ma-lheiros, 2003.

BODART, Bruno Vinícius da Rós. Tutela de evidência. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2015.

BUENO, Cássio Scarpinella. Manual de direito processual civil. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. São Paulo: Atlas, 2015.

CINTRA. Lia Carolina Batista. Tutela antecipada fundada na evidência no novo Código de Processo Civil. In: BEDAQUE, José Roberto dos Santos; CINTRA, Lia Carolina Batista; EID, Elie Pierre (coords.). Garantismo processual – ga-rantias processuais aplicadas ao processo. São Paulo: Gazeta Jurídica, 2016.

52. TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2004, p. 277.

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CRUZ E TUCCI, José Rogério. Tempo e processo: uma análise empírica das re-percussões do tempo na fenomenologia processual civil e penal. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1997.

DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2016, v. I.

DINAMARCO, Cândido Rangel. Nova era do processo civil. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.

DINAMARCO, Cândido Rangel; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria geral do novo processo civil. São Paulo: Malheiros, 2016.

DOTTI, Rogéria. A estabilização da tutela antecipada no CPC de 2015: a auto-nomia da tutela sumária e a coisa julgada dispensável. In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos; APRIGLIANO, Ricardo de Carvalho; HECKER DA SILVA, João Paulo; VASCONCELOS, Ronaldo; ORTHMANN, André (coor-ds.). Processo em jornadas. Salvador: JusPodivm, 2016.

GAJARDONI, Fernando da Fonseca. Teoria geral do processo – comentários ao CPC de 2015 – parte geral. São Paulo: Método, 2015.

MEDINA, José Miguel Garcia. Novo Código de Processo Civil Comentado. 4. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2016.

NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. 8. ed. Salvador: JusPodivm, 2016.

RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva. Tutela provisória: tutela de urgência e tutela da evidência – do CPC/1973 ao CPC/2015. São Paulo: Ed. Revista dos Tribu-nais, 2015.

SICA, Heitor Vitor Mendonça. Doze problemas e onze soluções quanto à cha-mada “estabilização da tutela antecipada”. In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos; APRIGLIANO, Ricardo de Carvalho; HECKER DA SILVA, João Pau-lo; VASCONCELOS, Ronaldo; ORTHMANN, André (coords.). Processo em jornadas. Salvador: JusPodivm, 2016.

TARZIA, Giuseppe; SALETTI, Achille. Il processo cautelare. 5. ed. Wolters Kluwer, Cedam, 2015.

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mArzAgão, Newton Coca Bastos. Tutela provisória de urgência: questionamentos práticos após um ano de vigência do novo Código de Processo Civil.

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Pesquisas do editorial

Veja também Doutrina• A estabilização da tutela de urgência no novo CPC: aspectos procedimentais e análise

crítica, de Guilherme Antunes da Cunha e Sheila Melina Galski Schio – RePro 263/259--286 (DTR\2016\24934);

• A tutela provisória de urgência do CPC de 2015 na perspectiva dos diferentes tipos de periculum in mora de Calamandrei, de Cassio Scarpinella Bueno – RePro 269/271-290 (DTR\2017\1804);

• Da – Suposta – Provisoriedade da tutela cautelar à “tutela provisória de urgência” no novo Código de Processo Civil brasileiro: entre avanços e retrocesos, de Alexandre Freire Pimen-tel, Mateus Costa Pereira e Rafael Alves de Luna – RPC 3/15-40 (DTR\2016\20464); e

• O sentido de antecedente e a estabilização da tutela provisória antecipada, de Roberta Dias Tarpinian de Castro – RePro 265/153-176 (DTR\2017\418).

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roSA, Viviane Lemes da; PuglieSe, William Soares. A advocacia na era dos precedentes vinculantes: uma análise do contraditório e da ampla defesa.

Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 225-246. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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a advoCaCia na era dos PreCedentes vinCulantes: uma anÁlise do Contraditório e da amPla deFesa

Advocacy in the age of binding precedents: an analysis of the adversarial principle and full and fair opportunity

viviane lemes da rosa

Professora Visitante da Pós-Graduação em Direito Processual Civil da ABDConst. Mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Advogada.

[email protected]

william soares Pugliese

Doutor e Mestre em Direito pelo PPGD-UFPR. Professor Substituto de Direito Constitucional e Teoria do Estado da UFPR. Professor do Programa de Mestrado do Centro Universitário do Brasil (Unibrasil).

Coordenador da Pós-Graduação em Direito Processual Civil da ABDConst. Advogado. [email protected]

Áreas do direito: Processual; Civil

resumo: O presente estudo objetiva a análise da relação entre o contraditório, a ampla defesa, a atuação dos advogados e os precedentes. A aná-lise do significado de precedente é importante porque é variável conforme o local e o momen-to histórico. No Brasil, atualmente, há inúmeras divergências sobre os precedentes, mas para os fins deste trabalho, o precedente vinculante será entendido como decisão anterior vinculante. O contraditório deve ser substancial e os juízes de-vem efetivamente analisar os fundamentos tra-zidos pelas partes, o que denota a importância da atuação dos advogados que exercerão papel argumentativo e interpretativo dos precedentes para demonstrar sua (in)aplicabilidade ao caso sob julgamento, levando o sistema de preceden-tes a sério e contribuindo para a observância de direitos fundamentais.

Palavras-Chave: Precedente – Contraditório – Ampla defesa – Advogado – Argumentação.

abstraCt: The present study focuses on the analy-sis of the relationship between the contradictory, the full and fair opportunity, the role of the law-yers and precedents. The analysis of the meaning of precedent is important because it is variable according to place and historical moment. In Bra-zil, there are many divergences about precedents, but for the purposes of this paper, the binding precedent will be understood as a binding ear-lier decision. The contradictory must be substan-tial and the judges must effectively analyze the grounds brought by the parties, which denotes the importance of the action of the lawyers who will exercise argumentative and interpretative role of precedents to demonstrate their applicability or inapplicability to the case under judgment, taking the precedents system seriously and contributing to the observance of fundamental rights.

keywords: Precedent – Adversarial principle – Full and Fair Opportunity – Lawyer – Argumentation.

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Revista BRasileiRa da advocacia 2017 • RBA 6

roSA, Viviane Lemes da; PuglieSe, William Soares. A advocacia na era dos precedentes vinculantes: uma análise do contraditório e da ampla defesa.

Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 225-246. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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Sumário: 1. Introdução. 2. Por uma definição de precedente. 3. O que faz de uma decisão um precedente?. 4. Como o contraditório e a ampla defesa se relacionam com o papel argu-mentativo dos advogados no sistema de precedentes brasileiro. 5. Considerações finais. 6. Referências Bibliográficas.

1. introdução

O Código de Processo Civil de 2015 positivou relevantes questões que vi-nham sendo defendidas pela doutrina brasileira. Dentre elas, (i) a importância dos precedentes (art. 927); (ii) a necessidade de efetiva e completa fundamen-tação das decisões judiciais (art. 489); (iii) a importância da coerência, integri-dade e consistência da jurisprudência (art. 926); (iv) o modelo cooperativo de processo (artigo 6º); (v) o contraditório substancial (arts. 7º, 9º, 10 e 11); (vi) a coisa julgada sobre questões prejudiciais (art. 503, § 1º); (vii) a coisa julga-da em benefício de terceiros (art. 506); (viii) a tutela da evidência (art. 311); (ix) o procedimento e hipóteses de cabimento da reclamação (art. 988); (x) a imprescindibilidade de boa-fé dos sujeitos processuais (art. 5º); entre outros vários pontos de extrema importância para o ordenamento jurídico brasileiro.

Na busca de maior segurança jurídica, isonomia aos jurisdicionados, coe-rência, integridade e consistência das decisões judiciais, previsibilidade e efe-tiva prestação jurisdicional, inúmeros dispositivos foram incumbidos de racio-nalizar e aperfeiçoar o sistema de precedentes brasileiro. Interligando de forma essencial o contraditório, a ampla defesa, a cooperação, a fundamentação das decisões judiciais e a criação e aplicação dos precedentes, o legislador acabou por redefinir a atuação dos advogados no processo.

Quando o Código de Processo Civil prevê a necessidade do contraditório substancial, impõe aos magistrados que concedam às partes a oportunidade de efetivamente serem ouvidas e terem os seus argumentos analisados no mo-mento decisório. Além do próprio juiz, que poderá levar argumentos para o debate entre as partes, caberá aos advogados formular alegações que deverão ser enfrentadas no julgamento.

Em se tratando da (in)aplicabilidade de um precedente ao caso sob jul-gamento, o esforço argumentativo e interpretativo dos advogados será ainda maior:

(...) deverão efetivamente demonstrar por quais motivos o precedente deve ou não ser aplicado (distinção ou superação). Por sua vez, o juiz deverá justificar suficientemente a (in)observância desses fundamentos em sua de-cisão, sob pena de nulidade ou reforma desta.

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Direito Processual civil

roSA, Viviane Lemes da; PuglieSe, William Soares. A advocacia na era dos precedentes vinculantes: uma análise do contraditório e da ampla defesa.

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Sabe-se que o papel dos advogados em um sistema de precedentes não se es-gota no contraditório e na ampla defesa. A título de exemplo, pode-se mencio-nar que o recurso elaborado pelo advogado é fundamental em um sistema de precedentes, pois permite que os argumentos e debates sejam levados às Cortes superiores, possibilitando a formação de novos precedentes ou a superação de precedentes. No entanto, esse assunto é tema para uma outra conversa.

O presente estudo tem por objeto analisar a relação entre os precedentes, o contraditório, a ampla defesa e o papel dos advogados, de modo a verificar como a observância efetiva do contraditório e da ampla defesa por parte dos magistrados, aliada a uma atuação responsável e argumentativa por parte dos advogados pode trazer benefícios para a ordem jurídica. Para tanto, preci-samos começar pela definição do que entendemos por “precedente”.

2. Por umA deFinição de Precedente

Precedente é conceito relativamente recente, ao menos na ciência jurídica brasileira. Por um longo período, esta noção era apenas uma referência à tra-dição jurídica anglo-saxã, conhecida especialmente pela explicação da obra de René David.1 Recentemente, uma série de obras publicadas em português vêm se aprofundando e defendendo a aplicação de precedentes no Direito brasileiro.2

1. Vale recordar que a França é um dos sistemas jurídicos que ainda refuta a validade e a força dos precedentes, de modo que a argumentação de um autor que tem esta origem deve ser considerada com cautela.

2. Ver, por exemplo, DIDIER JR., Fredie; ATAÍDE JR., Jaldemiro Rodrigues de; CUNHA, Leonardo Carneiro da; MACÊDO, Lucas Buril de (orgs). Precedentes. Salvador: JusPo-divm, 2015; MARINONI, Luiz Guilherme (org.). A força dos precedentes. 2. ed. Salva-dor: JusPodivm, 2012; MACÊDO, Lucas Buril; PEIXOTO, Ravi; FREIRE, Alexandre (org.). Processo nos tribunais e meios de impugnação às decisões judiciais. Salvador: JusPodivm, 2015; BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz. Precedentes judiciais e se-gurança jurídica: fundamentos e possibilidades para a jurisdição constitucional bra-sileira. São Paulo: Saraiva, 2014; MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Sistema brasileiro de precedentes: natureza, eficácia, operacionalidade. São Paulo: Ed. Revista dos Tribu-nais, 2014; MACÊDO, Lucas Buril de. Precedentes judiciais e o direito processual civil. Salvador: JusPodivm, 2015; MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 4. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2016; MARINONI, Luiz Guilherme. O STJ enquanto Corte de precedentes: recompreensão do sistema processual da corte su-prema. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2013; MARINONI, Luiz Guilherme. A ética dos precedentes: justificativa do novo CPC. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2014; MARINONI, Luiz Guilherme. Julgamento nas Cortes Supremas: precedente e decisão do recurso diante do novo CPC. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2015;

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roSA, Viviane Lemes da; PuglieSe, William Soares. A advocacia na era dos precedentes vinculantes: uma análise do contraditório e da ampla defesa.

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Para além disso, alterações na Constituição da República Federativa do Bra-sil e na legislação ordinária, bem como atos normativos editados pelo Conse-lho Nacional de Justiça e tribunais, têm confirmado essa necessidade e suscitado em juízes, promotores, advogados e estudantes o interesse na figura.

No Brasil, o tema dos precedentes vem amadurecendo. A doutrina brasileira diverge sobre inúmeras questões atinentes aos precedentes:

(i) sua definição; (ii) quais modalidades decisórias configuram precedentes; (iii) o que é preciso para que tais decisões sejam consideradas preceden-tes; (iv) quando uma decisão pode se tornar um precedente; (v) quais os efeitos de um precedente; (vi) como aplicar precedentes; (vii) como, porquê e quando superar precedentes; (viii) quando não aplicar um pre-cedente; (ix) se o Brasil efetivamente possui um sistema de precedentes; (x) quais as consequências disto; (xi) como funciona ou deveria funcio-nar o sistema de precedentes brasileiro; (xii) se precedentes são fontes do direito; (xiii) qual o grau de vinculatividade de um precedente; (xiv) se a existência de precedentes é um benefício ou um problema à ordem jurídi-ca; entre outras várias questões.

Além disso, é preciso ter em mente que “precedente” não significa o mesmo para todos os ordenamentos ou culturas jurídicas. Há diferentes concepções do que é um precedente e, principalmente, como deve ser operacionalizado. Nesse sentido, Thomas da Rosa de Bustamante3 afirma que os diversos orde-namentos utilizam os precedentes de diferentes formas na argumentação jurí-

NOGUEIRA, Gustavo Santana. Precedentes vinculantes no direito comparado e brasi-leiro. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2015; PEIXOTO, Ravi. Superação do precedente e segurança jurídica. Salvador: JusPodivm, 2015; ZANETI JR., Hermes. O valor vincu-lante dos precedentes. Salvador: JusPodivm, 2015; ROSA, Viviane Lemes da. O sistema de precedentes brasileiro. 2016. 349f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2016; PUGLIESE, William. Precedentes e a Civil Law brasileira: Interpretação e aplicação do novo Código de Processo Civil. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2016; BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do precedente judi-cial: a justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012. Registre-se, por outro lado, a crítica de Nelson Nery Jr e Rosa Maria de Andrade Nery à adoção de precedentes no Brasil (NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2015, p. 1837 e s.).

3. BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. A dificuldade de se criar uma cultura argumen-tativa do precedente judicial e o desafio do novo CPC. In: DIDIER JR., Fredie et al. Precedentes. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 293.

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Direito Processual civil

roSA, Viviane Lemes da; PuglieSe, William Soares. A advocacia na era dos precedentes vinculantes: uma análise do contraditório e da ampla defesa.

Revista Brasileira da Advocacia. vol. 6. ano 2. p. 225-246. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

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dica, o que não significa que não os observem. De mesmo modo, José Rogério Cruz e Tucci4 sustenta que o precedente é dotado de diferentes eficácias em cada sistema jurídico.

A doutrina brasileira não chegou a um consenso sobre a disciplina dos pre-cedentes. Há várias teorias sobre os precedentes e os sistemas de precedentes, tanto no Brasil quanto em outros países. Mesmo naqueles ordenamentos em que há uma tradição de aplicação de precedentes, a sua disciplina não é com-pletamente consensual. E também não é permanente: as concepções sobre os precedentes vêm mudando, e exemplo disso é o novo Código de Processo Civil brasileiro, que demonstra uma preocupação e valorização muito maior dos precedentes do que o Código de Processo Civil de 1973.

As decisões judiciais e suas forças vinculantes, a sua caracterização como precedentes e as consequências disso são questões que sofrem mudanças em razão de diversos fatores. Diante disso, vê-se que não é possível formular uma definição universal sobre precedentes, aplicável a qualquer época, em qualquer ordenamento e sob quaisquer circunstâncias. A crítica de Michel Miaille ao idealismo jurídico5 aplica-se perfeitamente aqui:

(...) não se pode pensar simplesmente em “precedente”, uma figura univer-sal, abstrata e permanente, dotada de significado em si mesma. Precedente é um instituto que assume diversas formas em diferentes locais e momen-tos históricos, podendo ser estudado científica e criticamente apenas após a compreensão desse fato.

Para podermos estudar os precedentes, precisamos partir de alguma defini-ção. É preciso enfrentar o tema e traçar um significado, ainda que provisório e inicial. Assim, em uma definição inicial, voltada especificamente para o orde-namento brasileiro e neste momento histórico, precedente pode ser visto como uma decisão anterior que serve de modelo para decisões posteriores.6 Pode-se

4. CRUZ E TUCCI, José Rogério. Parâmetros de eficácia e critérios de interpretação do precedente judicial. Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil, n. 54, p. 12, maio-jun. 2013.

5. Sobre o tema, ver MIAILLE, Michel. Introdução crítica ao direito. São Paulo: Editorial Estampa, 2005.

6. Tradução livre de: precedents are prior decisions that function as models for later deci-sions. (MacCORMICK, Neil; SUMMERS, Robert. Introduction. In: MACCORMICK, Neil; SUMMERS, Robert (ed.). Interpreting Precedents: a comparative study. Dart-mouth: Ashgate, 1997, p. 1).

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acrescentar que o precedente é uma decisão cujos limites superam os de um único caso, tornando-se paradigma para a resolução de outros casos semelhantes.

Nesta linha, só há sentido falar em precedentes quando se observa que uma decisão é dotada de determinadas características, “basicamente a potencialida-de de se firmar como paradigma para a orientação dos jurisdicionados e dos magistrados”.7 Portanto, um precedente é uma decisão, mas com algumas ca-racterísticas adicionais.8 A questão é definir que características são essas.

3. o que FAz de umA decisão um Precedente?Afinal, o que é capaz de transformar uma decisão prévia em um preceden-

te? Atualmente, a doutrina e a jurisprudência não respondem essa pergunta de forma unânime. Assim como se diverge a respeito do que é um precedente e sobre qual a sua eficácia, também se conflita a respeito dos “requisitos”, por assim dizer, para configurar um precedente ou para ser aplicado como tal.

Em um primeiro momento, pode-se apontar como elementos que colabo-ram para o desenvolvimento de um precedente que a decisão tenha sido pro-ferida por um tribunal cuja competência territorial se estenda por todo o ter-ritório nacional (tais como o Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça, o Tribunal Superior do Trabalho, o Tribunal Superior Eleitoral e o Supe-rior Tribunal Militar) ou ao menos por um estado ou região (como os tribunais estaduais e os tribunais regionais federais).

Além disso, depreende-se da função de servir como paradigma que a deci-são seja adequadamente fundamentada, de modo que dela se possam extrair os critérios a serem aplicados para os casos futuros. Nesta linha, a doutrina brasileira tem se posicionado no sentido de que os precedentes firmados pelos tribunais superiores devem ser observados pelos demais órgãos do Poder Judi-ciário.9 A título de exemplo, as decisões previstas no rol do art. 927 do Código

7. MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2010, p. 215.

8. Nesse sentido, partindo da definição de Eduardo Talamini acerca do efeito vinculan-te como eficácia anexa, Viviane Lemes da Rosa afirma que precedente vinculante é decisão judicial dotada de efeito vinculante. (ROSA, Viviane Lemes da. O sistema de precedentes brasileiro. 2016. 349f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2016, p. 72).

9. MITIDIERO, Daniel. Cortes Superiores e Cortes Supremas. 2. ed. São Paulo: Ed. Revis-ta dos Tribunais, 2014.

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de Processo Civil são vinculantes, no sentido de que são obrigatórias.10 Com as devidas particularidades, é essa a posição de Luiz Guilherme Marinoni11 e Daniel Mitidiero.12

Ao expor as razões pelas quais as decisões passadas são relevantes para o Direito, Neil MacCormick sintetiza as vantagens de uma teoria dos preceden-tes em três motivos. O primeiro é uma razão de justiça:

(...) “se você deve tratar igualmente casos iguais e diferentemente casos dis-tintos, então novos casos que tenham semelhanças relevantes com decisões anteriores devem (prima facie, pelo menos) ser decididos de maneira igual ou análoga aos casos passados”.13 Em segundo lugar, e como decorrência do primeiro motivo, está a ideia de um sistema jurídico imparcial, que apli-ca a mesma justiça a todos. O Estado de Direito pressupõe que as mesmas regras e soluções orientem a decisão, independentemente do juiz da causa, e requer que “se evite qualquer variação frívola no padrão decisório de um juiz ou corte para outro”.14 O terceiro motivo é a economia de esforço, pois a definição de um resultado dispensa juízes e advogados de repetir os mesmos argumentos, sobre as mesmas circunstâncias, para os mesmos casos. Assim, “uma vez decidido após análise cuidadosa, um caso deve ser tratado como se tivesse sido resolvido de uma vez por todas, a não ser que se possa demons-trar ter surgido um elemento especial que exija reconsideração”.15

Existem três partes neste conceito que devem ser examinadas. A primeira parte é a que exige que a decisão apta a se tornar um precedente exiba uma “análise cuidadosa”. É imprescindível que o precedente contenha argumentos que respondam às teses alegadas pelas partes e que convença os interessados de que a decisão faz sentido.16 Vale dizer: um precedente deve ser racional e

10. Para uma síntese do posicionamento atual da doutrina, ver ROSA, Viviane Lemes da. O sistema de precedentes brasileiro. 2016. 349f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2016.

11. MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 4. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2015.

12. MITIDIERO, Daniel. Precedentes: da persuasão à vinculação. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2016.

13. MACCORMICK, Neil. Retórica e o Estado de Direito. São Paulo: Elsevier, 2008, p. 191.

14. Idem.

15. Idem.

16. Sobre o tema, seria possível consultar extensa bibliografia a respeito da fundamenta-ção. Sugere-se, como ponto de partida: MACCORMICK, Neil. Retórica e o Estado de

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juridicamente justificável. Os argumentos e fundamentos utilizados na decisão devem estar de acordo com o Estado de Direito e necessitam ser racionalmente justificáveis.

Um segundo ponto é que, afirmar que “um caso deve ser tratado como se tivesse sido resolvido de uma vez por todas”, significa tratá-lo com grau de definitividade, inclusive para casos semelhantes que surjam após a decisão do anterior. Sob outra ótica, é atribuir um efeito geral e abstrato para decisões do Poder Judiciário, de modo que não se admita nova discussão sobre a razão de decidir, impedindo outros juízes ou tribunais de se opor à decisão quando se depararem com caso idêntico ou semelhante.

Pode-se dizer, com segurança, que a decisão brasileira com efeitos vincu-lantes que melhor demonstra o significado deste elemento do conceito são as que julgam procedentes ações declaratórias de inconstitucionalidade – ou seja, decisões que declaram, pela via direta, a inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo. A declaração de inconstitucionalidade que pronuncia a nulidade da lei, sem modulação, não admite qualquer tipo de situação excepcional. Qual-quer situação deve ser decidida como se a lei não tivesse existido, respeitando--se, quando muito, o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. Os demais casos, ainda não protegidos pelas previsões constitucionais acima referidas, devem ser apreciados sem qualquer consideração do texto declarado inconstitucional.

Essa modalidade de precedente no direito brasileiro denota uma problemá-tica, visto que a sua superação, em princípio, não é possível. Quando a lei é declarada inconstitucional em controle direto de constitucionalidade, conside-ra-se retirada do ordenamento jurídico, inexistente. Logo, não é possível que o Supremo Tribunal Federal volte a considerá-la, a analisá-la, mesmo diante de um novo quadro fático ou de uma mudança da sociedade, em que a lei pode-ria, em tese, mostrar-se constitucional. No entanto, a atuação legislativa pode resolver esse impasse:

(...) se mudanças na sociedade e outros fatores de relevância afastarem a inconstitucionalidade de uma lei assim declarada, a elaboração de nova lei

Direito. São Paulo: Elsevier, 2008; MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil. 3. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2017, v. 1; LUCCA, Rodrigo Ramina de. O dever de motivação das de-cisões judiciais: Estado de Direito, segurança jurídica e teoria dos precedentes. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2016; STRECK, Lenio. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.

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idêntica pelo Poder Legislativo mostra-se capaz de solucionar o problema,

podendo, obviamente, ser alvo de novo controle de constitucionalidade.17

A capacidade de tomar decisões definitivas, sem qualquer exceção, não é algo factível no Direito e não é uma qualidade que gera algum resultado intrin-secamente positivo. Até mesmo a vinculação do Estado e dos cidadãos à lei, à luz do positivismo, não produziu o resultado esperado, o que levou Ronald Dworkin, por exemplo, a sugerir que o próprio Direito é um conceito inter-pretativo.18

A certeza e a definitividade, em termos que não admitem qualquer exceção, produzem mais dificuldades do que benefícios. É por isso que o próprio Mac-Cormick, ao definir o que entende por efeito vinculante, admite exceções para “demonstrar ter surgido um elemento especial que exija reconsideração” – o que configura a terceira parte de seu conceito. É por isso também que parte da doutrina sustenta que os precedentes podem causar um “engessamento” do direito e mostra-se contrária à sua adoção como fonte do direito.19

Em resumo, pode-se cogitar (i) que um precedente dependa somente da concessão de efeito vinculante pela legislação; (ii) que simplesmente se trate de uma decisão pretérita de Corte Suprema; (iii) que o órgão prolator deva ser hierarquicamente superior; (iv) que o conteúdo da decisão seja racional-mente justificável; (v) que a decisão denote respeito e congruência para com os direitos fundamentais da ordem jurídica; (vi) que alguma regra secundária permita ao Judiciário que profira decisões com eficácia vinculante; (vii) que seja possível identificar a ratio decidendi entre os fundamentos do acórdão da Corte; (viii) que a decisão tenha sido proferida em processo que observou o devido processo legal; (ix) que tenha havido participação da sociedade nos debates da questão sob judice; ou mesmo que um precedente exija tudo isso e ainda outras coisas mais.

17. ROSA, Viviane Lemes da. O sistema de precedentes brasileiro. 2016. 349 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2016, p. 303.

18. Ver, por exemplo, DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1977 e MACEDO JR., Ronaldo Porto. Do xadrez à cortesia: Dworkin e a teoria do direito contemporânea. São Paulo: Saraiva, 2013.

19. No entanto, acredita-se que a crítica do engessamento do direito pode ser afastada se pensarmos, dentre outros fundamentos, no fato de que os precedentes são passíveis de superação.

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Ou, assim como defende Radin em uma visão mais formalista do stare de-cisis, pode-se acreditar que um precedente deve ser seguido apenas porque se trata de uma decisão pretérita:

(...) se um tribunal segue a uma decisão anterior, por considerar ter sido pronunciada por uma autoridade, porque é a decisão certa, porque é lógica, porque é justa, porque está de acordo com o peso da autoridade, porque tem sido geralmente aceita e cumprida, porque garante um resultado benéfico para a comunidade, então para Radin não se trata de uma aplicação do stare decisis. Para que a aplicação da decisão anterior seja considerada o cumpri-mento da regra do stare decisis, a decisão anterior deve ser seguida porque é uma decisão anterior, e por nenhum outro motivo.20

Existem inúmeras concepções sobre o que faz de uma decisão um prece-dente e o que justifica a força vinculante de uma decisão judicial. Ainda, há que se ter em mente que um precedente detém diferentes eficácias: pode ser vinculante (de observância obrigatória) ou meramente persuasivo (de obser-vância facultativa). O que faz de uma decisão um precedente vinculante ou um precedente persuasivo?

O presente trabalho não se propõe a esgotar a análise de todas essas con-cepções ou de chegar a uma resposta final a respeito do que faz de uma de-cisão um precedente, justamente em razão da complexidade, importância e considerável extensão dessa análise. Embora não se desconheça os inúmeros estudos e divergências a respeito do que pode caracterizar um precedente, aqui pretende-se apenas levantar a relevância do contraditório e da ampla defesa para a aplicabilidade e justificação de um precedente, para, após, demonstrar a importância da atuação dos advogados em face desse panorama.

Neste momento, já se pode vislumbrar como é significante o papel do ad-vogado em um sistema de precedentes. Encontrar um possível precedente e argumentar para demonstrar sua aplicabilidade ao caso concreto sob julga-mento é um trabalho regularmente realizado pelos advogados. Esse trabalho é absolutamente essencial em um sistema de precedentes, pois passa pelo conhe-cimento dos precedentes existentes no ordenamento para, após, analisar sua ratio decidendi e justificar como a semelhança fática justifica a sua observância.

20. BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz. Stare decisis, integridade e segurança jurídica: Reflexões críticas a partir da aproximação dos sistemas de Common Law e Civil Law na sociedade contemporânea. 2011. 264 f. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universida-de Católica do Paraná, Curitiba, 2011, p. 176.

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Trata-se de um esforço argumentativo considerável e que contribui para o de-senvolvimento do direito e para o aumento da força dos precedentes.

4. como o contrAditório e A AmPlA deFesA se relAcionAm com o PAPel ArgumentAtivo dos AdvogAdos no sistemA de Precedentes BrAsileiro

A ampla defesa e o contraditório são direitos fundamentais, previstos no art. 5º, LV, da Constituição Federal: “aos litigantes, em processo judicial ou ad-ministrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.21

Sustenta-se que esta previsão aperfeiçoa outro direito fundamental, qual seja, o devido processo legal, seja em sua vertente formal, seja em sua vertente material.22 Para Luiz Guilherme Arcaro Conci, as garantias da ampla defesa e do contraditório têm como um de seus efeitos o entendimento de que “não há que se falar em justiça sem que se ouça as partes envolvidas e lhes dê os recursos admitidos pelo direito em sua plenitude para comprovarem seus ar-gumentos”.23

Com fundamento na escola alemã, o Min. Gilmar Mendes apresenta sua concepção de ampla defesa no desdobramento de três direitos.24 O primeiro é o direito à informação, que obriga o órgão julgador a informar à parte contrária

21. Apesar do entendimento de que o contraditório é garantia de todas as partes e a am-pla defesa é direito do demandado, que se contrapõe ao direito de ação do demandan-te, o texto fará remissão ao conjunto “contraditório e ampla defesa”, até porque não é objetivo do presente trabalho a distinção entre os dois direitos fundamentais. Para além disso, ver-se-á, no item seguinte, que MacCormick se utiliza da “ampla defesa” para tratar de temas associados, no Brasil, ao contraditório. Assim, o tratamento dos direitos como um conjunto também respeita as expressões escolhidas pelo professor escocês.

22. Sobre o devido processo legal, ver SIQUEIRA CASTRO, Carlos Roberto. O devido processo legal e os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Rio de Janeiro: Forense, 2010.

23. CONCI, Luiz Guilherme Arcaro. Artigo 5º, incisos LIV ao LVII. In: BONAVIDES, Paulo; MIRANDA, Jorge; AGRA, Walber de Moura (coord.). Comentários à Constitui-ção Federal de 1988. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 219 (215-223).

24. MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais de caráter judicial e garantias constitucionais do processo. In: MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 592.

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os atos praticados no processo e sobre os elementos dele constantes. O segun-do é o direito de manifestação, que assegura ao defendente a possibilidade de manifestar-se oralmente ou por escrito sobre os elementos fáticos e jurídicos constantes do processo. Por fim, o terceiro direito é o de ver seus argumentos considerados, que exige do julgador capacidade de apreensão e isenção de âni-mo para contemplar as razões apresentadas. Ademais, para Gilmar Mendes, do direito de ver os argumentos considerados decorre o dever judicial de funda-mentar as decisões e de conferir atenção e considerar, séria e detidamente, as razões apresentadas pelas partes.

Com objetivo semelhante, André Ramos Tavares sustenta que “todo ato ou fato produzido ou reproduzido no processo por qualquer de suas partes deve dar ensejo ao direito da outra de se opor, de debater, de produzir contraprova ou fornecer sua versão, ou interpretação daquele ato ou fato apresentado”.25

Vê-se, assim, que a doutrina reconhece como uma das principais faces da ampla defesa o direito de se manifestar acerca dos elementos fáticos e jurídicos discutidos na causa, e que cabe aos magistrados apreciar esses argumentos.

Marinoni e Mitidiero sustentam que a existência de precedentes vinculan-tes admite que o contraditório e a ampla defesa possam ser vistos como direito de influência, na medida em que afirmam que, por força da previsão constitu-cional do art. 5º, LV, da Constituição Federal, “a regra está em que todas as de-cisões do juízo se apoiem tão somente em questões previamente debatidas pe-las partes”.26 O raciocínio vai ainda mais além: “é absolutamente indispensável tenham as partes a possibilidade de pronunciar-se sobre tudo que pode servir de ponto de apoio para a decisão da causa, inclusive quanto àquelas questões que o juiz pode apreciar de ofício”.27

Embora seja bastante discutível que essa regra denote rol taxativo,28 o Có-digo somente autoriza expressamente que uma decisão seja proferida sem a prévia oitiva da parte contrária em três hipóteses:

25. TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 754.

26. SARLET, Ingo; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 761.

27. Idem.

28. Cite-se aqui, apenas a título exemplificativo, as decisões que deferem a penhora onli-ne de valores. Essa modalidade decisória restará inviabilizada se houver o contraditó-rio prévio à decisão. Ao mesmo tempo, essas decisões não se encaixam em nenhuma

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(i) tutela provisória de urgência; (ii) tutela de evidência com fundamento nos incisos II e III, do art. 311; e (iii) decisão que determina a citação do réu para pagar a quantia em dinheiro em ação monitória. Note-se que o art. 9º do Código de Processo Civil29 não prevê o julgamento de procedência ou improcedência no caso de aplicação de precedente vinculante.

Isto leva à conclusão de que, dentre outros efeitos, o magistrado não pode julgar o caso com fundamento sobre o qual as partes não tenham tido a opor-tunidade de se manifestar previamente. Este ideal se consolidou no art. 9º do Código de Processo Civil. Se todas essas afirmações forem levadas em conta e representarem mais do que ideias lançadas no papel, sua aplicação e relação com a teoria dos precedentes se revela evidente.

Se partirmos do pressuposto que um precedente é uma fonte primária do direito – como visto, há muita divergência a respeito –, ele não se diferenciará da lei perante o ponto de vista do juiz. Vale dizer: se lei e precedentes são fon-tes primárias do direito, em tese, o juiz fará uso de qualquer dos dois se aplicá-vel ao caso concreto sob julgamento, mediante fundamentação e interpretação. Logo, tanto a ratio de um precedente quanto uma normativa poderiam con-sistir em “normas de ordem pública” em determinados casos, capazes de ser aplicadas pelo juiz de ofício. Isso não significa, no entanto, que essa aplicação de ofício não será precedida do devido contraditório, como o legislador fez questão de ressaltar ao instituir o art. 10 do Código de processo Civil.30

Nesse norte, a aplicação do art. 985 do Código de Processo Civil31 não é automática e não pode se dar pelo uso indiscriminado da tese jurídica

das hipóteses do artigo 9º do Código de Processo Civil, o que demonstra que referido artigo deve servir como baliza, mas não como regra absoluta.

29. Art. 9º Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida.

Parágrafo único. O disposto no caput não se aplica: I – à tutela provisória de urgência; II – às hipóteses de tutela da evidência previstas no art. 311, incisos II e III; III – à decisão prevista no art. 701.

30. Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em funda-mento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.

31. Art. 985. Julgado o incidente, a tese jurídica será aplicada: I – a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão de

direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal, inclusive àqueles que tramitem nos juizados especiais do respectivo Estado ou região;

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firmada como precedente no julgamento dos casos repetitivos ou em qualquer instituto previsto do art. 927 do mesmo Código. Ao contrário, uma vez ciente de uma decisão que pode ser aplicável ao caso, deve o magistrado abrir às partes a oportunidade de se manifestar a respeito da decisão que se considera precedente. A manifestação das partes a respeito do precedente invocado pode tratar ao menos de três temas: a inexistência de um precedente (a decisão por alguma razão não é um precedente), a distinção entre o caso que deu origem ao precedente e o caso em tela (distinguishing) e a superação do entendimento firmado pelo precedente (overruling).

Importam aqui as ideias de derrotabilidade ou excepcionalidade na ótica de Neil MacCormick. Para tanto, na esteira do autor citado, é necessário ingressar no aspecto pragmático dos processos. Como se sabe, as partes, privadas ou públicas, devem provocar o Poder Judiciário para obter a tutela dos direitos por elas invocados. Porém, não basta que o autor demonstre, com provas e ar-gumentos, que tem razão. O Estado de Direito confere àqueles contra quem se exerce a ação o direito de negar o que é alegado. Aos réus também se concede o direito de apresentar contraprovas e de contestar, por qualquer dos caminhos que a argumentação se mostra razoável, “a correção e a relevância dos funda-mentos jurídicos que sustentam o pleito ou acusação contra eles”.32 Para reali-zar a análise das alegações e das provas, do direito e dos fatos, exige-se a figura de um juiz imparcial que presida o processo sob um ideal de dialeticidade, para que conclua e justifique os pontos em questão e decida. É nesse contexto que se insere a derrotabilidade.

MacCormick imputa a Hart e seu “The ascription of responsibility and rights”33 sua inspiração para o tratamento do tema.34 O ensaio, renegado pelo professor de Oxford, foi resgatado por outros juristas que revelaram a impor-

II – aos casos futuros que versem idêntica questão de direito e que venham a tramitar no território de competência do tribunal, salvo revisão na forma do art. 986.

32. MACCORMICK, Neil. Retórica e o Estado de Direito. São Paulo: Elsevier, 2008, p. 310.

33. HART, Herbert L. A. The ascription of responsibility and rights. In: RYLE, Gilbert; FLEW, Antony (ed.). Proceedings of the Aristotelian Society. Oxford: Blackwell, 1948--1949, v. 49, p. 171-194.

34. O professor escocês reconhece que seu tratamento da derrotabilidade pode ser toma-do como uma introdução ao tema, sem aprofundamentos no âmbito da lógica. Para uma análise neste segundo sentido, ver: SARTOR, Giovanni. Defeasibility in Legal Reasoning. In: BANKOWSKI, Zenon; WHITE, Ian; HAHN, Ulrike (org.). Informatics and the foundations of legal reasoning. Dordrecht: Kluwer Academic Press, 1985, p. 119-167.

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tância do tema para a discussão jurídica do final do século XX. Em síntese, a ideia da derrotabilidade está em reconhecer que existem condições “ordinaria-mente necessárias e presumivelmente suficientes para a validade ou solidez de arranjos jurídicos”,35 mas que esses arranjos podem ser afastados pela ocorrên-cia de circunstâncias anômalas.36 Constatar a existência da derrotabilidade é reconhecer que situações jurídicas podem ter uma aparência de validade mas, no entanto, podem estar sujeitas a algum tipo de intervenção que as invalide.37

A forma mais simples de se demonstrar esse fenômeno é pelas hipóteses que MacCormick denomina de “derrotabilidade expressa”: “alguém poderia pensar numa regra sobre um direito D, regra que expressamente prevê as con-dições positivas para atribuir D a uma pessoa apropriada, mas que também sujeita a concessão desse direito a algumas exceções ou ressalvas”.38 No Brasil, tem-se uma série de exemplos de derrotabilidade espressa, como as hipóteses que excepcionam a prática de ilícitos civis nas hipóteses de legítima defesa e exercício regular de direito – nos termos do artigo 188, I, do Código Civil. A legítima defesa e o exercício regular de direito, assim como o estado de ne-cessidade, também são casos de exclusão de ilicitude no Direito Penal, e por isso valem como exemplos de derrotabilidade expressa também nesse âmbito. Pode-se acrescentar, ainda, as situações de modulação dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade como casos expressos de derrotabilidade das decisões com efeitos vinculantes, no Brasil.

A compreensão da derrotabilidade expressa facilita a exposição, mas ela não é o caso mais interessante deste tema. Na verdade, a explicitação das exceções

35. MACCORMICK, Neil. Retórica e o Estado de Direito. São Paulo: Elsevier, 2008, p. 310-311.

36. “Um exemplo de uso corrente é o de uma lei sobre testamento, escrita de maneira bas-tante estrita, que uma corte interpretou como inaplicável ao beneficiário após este ter atirado no testador, seu avô, para impedi-lo de alterar o testamento. A razão para isso foi que, mesmo em face dos termos categóricos da lei, a corte considerou correto limitar a aplicação da regra de modo a deferir a um princípio jurídico mais amplo, segundo o qual ninguém deve ser capaz de fundamentar um pleito jurídico em um fato que é resultado de sua própria torpeza, ou beneficiar-se de sua própria infração” MacCormick se refere, aqui, ao já comentado Riggs v. Palmer (MACCORMICK, Neil. Retórica e o Estado de direito. São Paulo: Elsevier, 2008, p. 311).

37. “Em outras palavras, o arranjo (ou seja lá o que for) em questão é excepcionável (defeasible), e os eventos invalidantes provocam a exceção (defeasance)” (MACCOR-MICK, Neil. Retórica e o Estado de Direito. São Paulo: Elsevier, 2008, p. 311).

38. MACCORMICK, Neil. Retórica e o Estado de Direito. São Paulo: Elsevier, 2008, p. 311-312.

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afasta justamente o que há de mais importante na presente discussão. Isso leva Neil MacCormick a estabelecer uma segunda categoria de derrotabilidade, ou defeasibility, a qual denomina de “implícita”.39 Esta categoria afeta todas as instâncias das instituições jurídicas, pois permite a identificação de exceções não previstas nas regras. É por isso que elas importam para o contexto deste item e para a prática a partir de precedentes.

Para MacCormick, “os princípios e os valores implícitos de tal sistema in-teragem com as disposições mais específicas encontradas nos textos legisla-tivos ou nas rationes mais precisamente definidas dos precedentes”.40 Esses princípios são especialmente relevantes no momento em que as decisões são tomadas, pois integram a fundamentação dos atos judiciais. Sendo assim, a derrotabilidade implícita costuma ser exercida e verificada nos atos do Poder Judiciário. Na prática, são os tribunais que constroem hipóteses implícitas de aplicação ou de afastamento das regras – e o fazem com recurso aos princípios, valores, e outros parâmetros de interpretação. Isto leva MacCormick a afirmar que sempre “há o risco de que aquilo que está expresso no Direito possa ser superado por alguma condição não-expressa que possa implicitamente sobrepujar o que está expresso, dados os princípios ou valores em jogo”.41

Uma regra cuja derrotabilidade é facilmente demonstrada é a do art. 3º do Código Civil de 2002. O dispositivo prevê que “são absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos”. Apesar da regra não prever qualquer exceção, é reconhecido o fato de que menores de 16 anos podem praticar atos que surtem efeitos jurídicos, especialmente quando têm o condão de concretizar situações jurídicas exis-tenciais.42 Note-se, porém, que essas exceções sempre têm alguma relação com

39. MACCORMICK, Neil. Retórica e o Estado de Direito. São Paulo: Elsevier, 2008, p. 313.

40. A versão original da obra citada, assim como sua tradução, incluem no texto acima a qualificação de “vinculante” (binding) aos precedentes. No entanto, a expressão foi deliberadamente deixada de lado, no contexto acima, para evitar confusão com o que se entende por vinculante na própria tese. Como será exposto mais adiante, para MacCormick, os precedentes vinculantes podem ser excepcionados por meio da argumentação. Como o Brasil adotou a noção de decisões e súmulas vinculantes, essa classificação não se aplica. (MACCORMICK, Neil. Retórica e o Estado de Direito. São Paulo: Elsevier, 2008, p. 313).

41. MACCORMICK, Neil. Retórica e o Estado de Direito. São Paulo: Elsevier, 2008, p. 313.

42. “Eventualmente, porém, os atos praticados pelos menores de 16 anos (inciso I, art. 3º, do Código Civil) podem surtir efeitos jurídicos, quando disserem respeito à con-cretização de situações jurídicas existenciais, se o incapaz demonstra discernimento

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outro fundamento jurídico, na maior parte das vezes ligado a princípios ou va-lores que perpassam o ordenamento. No exemplo acima, trata-se da dignidade da pessoa humana. Há que se ter, assim, uma intermediação da excepcionalida-de com a argumentação desenvolvida pelas partes e pelo magistrado.

A derrotabilidade implícita tem relação direta, portanto, com o caráter ar-gumentativo e interpretativo do Direito. Só há sentido falar nessa hipótese de excepcionalidade ao se constatar o esgotamento da técnica dos enunciados normativos43 e a insegurança no que toca à previsibilidade das decisões judi-ciais em casos difíceis.44

De qualquer modo, cabe também a ressalva de que o ônus de demonstrar a derrotabilidade é da parte interessada em afastar a incidência da norma ou de um determinado entendimento dos tribunais.45 Seja pelas provas, seja pelos argumentos, a parte que pretende afastar a incidência de uma regra deve for-mular o problema e, por meio de argumentos compatíveis com o ordenamen-to jurídico, demonstrar que outra resposta é possível. A exceção implícita se constata no momento em que o Poder Judiciário – e não o Legislativo – frustra as expectativas de previsibilidade a respeito de um determinado direito. Repi-

suficiente para tanto. Exemplo interessante pode ser lembrado com a declaração de vontade do menor para fins de adoção, valendo lembrar, inclusive, no que tange aos maiores de 12 anos de idade, que a própria legislação (CC, art. 1.621) exige a sua expressa concordância para o deferimento da colocação em família substituta” (FA-RIAS, Christiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: Parte geral e LINDB. 12. ed. Salvador: JusPodivm, 2014, v. 1, p. 312).

43. “A atual visão sobre a defeasibility conecta-se a uma visão relacionada sobre o proble-ma onipresente da formulação ou articulação do Direito (law). O problema é, sob um aspecto, dos limites à acuidade ou ao esgotamento nas formulações do Direito (law), e, sob outro aspecto, da confiabilidade das inferências derivadas das afirmações ex-pressas por meio das quais o Direito é formulado. O Direito (law) precisa ser formula-do em termos gerais, mas as condições genericamente formuladas são sempre capazes de omitir referência a algum elemento que pode se tornar o fato operativo-chave num dado caso” (MACCORMICK, Neil. Retórica e o Estado de Direito. São Paulo: Elsevier, 2008, p. 315-316).

44. MACCORMICK, Neil. Retórica e o Estado de Direito. São Paulo: Elsevier, 2008, p. 321.

45. “Seria absurdo se uma parte, confiando nas condições expressamente previstas (mes-mo que apenas presumíveis) das regras presentes numa lei, num precedente ou em ambos, tivesse o ônus de primeiro imaginar e então de expressamente refutar todas as condições possivelmente excepcionadoras (defeating) que poderiam tornar sua pre-tensão inoperante. O ônus precisa recair sobre alguma outra parte interessada, ou algum agente público, para levantar uma contestação efetiva e relevante” (MACCOR-MICK, Neil. Retórica e o Estado de Direito. São Paulo: Elsevier, 2008, p. 316-317).

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ta-se, portanto, que a derrotabilidade implícita é matéria que depende direta-mente da formulação dos argumentos jurídicos dos tribunais, e, portanto, da atuação dos advogados.

A complexidade da teoria da derrotabilidade não se reflete na prática. Admitir que a derrotabilidade pode ser constatada nas regras e nos preceden-tes e que este fenômeno decorre da garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa implica dizer que as partes têm o direito de, constatando a existência de um precedente contrário à tese que defendem, argumentar e requerer o afastamento da decisão ao caso em tela. Este pedido tem como fun-damento o art. 489, § 1º, VI, do CPC, que exige do magistrado que pretende julgar de forma contrária a um precedente o seguinte recurso argumentativo: “demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento”.

Constatada a existência de precedente que pode ser aplicado ao caso, cabe ao magistrado exercer seu dever de contraditório e ampla defesa e oportunizar às partes que se manifestem a respeito da decisão. Evidentemente, uma das partes poderá requerer a aplicação do entendimento. Por outro lado, a outra parte terá o ônus de demonstrar que os casos – do precedente e o atual – são faticamente distintos ou que o entendimento firmado pelos tribunais superio-res pode ser juridicamente superado.

Em resumo, a parte que pretende afastar a incidência de um precedente vinculante pode distinguir os casos e argumentar que a solução de um não deve ser a solução do outro ou pode demonstrar que o precedente necessita ser superado, porque não reflete mais os valores da sociedade, porque está eivado de nulidade, entre outros fatores que acarretem a superação do precedente.

Evidentemente, a parte que se encontra do lado contrário ao do precedente tem menores chances de ter um julgamento a seu favor. Isto não quer dizer, porém, que essa possibilidade não existe. A existência do precedente deve ser considerada para a realização de acordos, para a não interposição de recursos e até mesmo para o reconhecimento da procedência do pedido, a depender da situação jurídica processual. No entanto, esse precedente não pode ser tomado como fundamento para negar o direito fundamental de influenciar a tomada de decisão, ou seja, a existência de um precedente supostamente aplicável ao caso, por si só, não justifica uma decisão livre de contraditório e ampla defesa por parte do magistrado. Em razão disso e da caracterização como direitos fundamentais que pautam o exercício da jurisdição, o contraditório e a ampla defesa necessitam ser garantidos antes de se aplicar um precedente.

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É preciso compreender que a atuação dos advogados ao manifestarem-se acer-ca de um possível precedente aplicável ao caso é importante e seus fundamentos devem ser efetivamente enfrentados no momento decisório, de modo a garantir um contraditório substancial e a ampla defesa e, por conseguinte, contribuir para o desenvolvimento da argumentação jurídica e para a força dos precedentes.

Esse é um dos motivos pelos quais a crítica do “engessamento” do direito pelos precedentes está equivocada:

(...) um precedente nunca deverá ser aplicado de forma cega, surda e irrefle-tida. Fundamentar uma decisão com base em um precedente não é aplicar um texto perfeito e acabado, dotado de significado único e completo. Um precedente não se basta. Em primeiro lugar, não se sabe se uma decisão é efetivamente um precedente e, em segundo lugar, se poderia ser aplicada ao caso sob julgamento. Essas constatações são fruto da interpretação e da argumentação. Julgar com base em um precedente é, primeiramente, efeti-vamente ouvir as partes e levar em conta os seus fundamentos para, após, argumentar racional e juridicamente, por meio da interpretação, a aplicação ou não dos fundamentos levantados pelos advogados.

É por isso que não se pode dizer que a observância de precedentes poderá facilitar a atividade das partes ou do juiz. Trabalhar com precedentes é bastante complexo e trabalhoso, pois o advogado necessita adentrar profundamente na análise do caso concreto e nas razões que justificaram a tomada de decisão, para poder extrair a razão de decidir, para encontrar o verdadeiro preceden-te. Somente após esse estudo, poderá argumentar como há semelhança sufi-ciente ou identidade com o caso concreto sob julgamento para defender que esse precedente é aplicável. Enquanto isso, o advogado da outra parte deverá empreender um esforço ainda maior para demonstrar porque não se trata de um precedente vinculante (por exemplo, pela ausência de efeito vinculante da decisão sob aquela determinada jurisdição), a distinção entre os casos ou a superação do precedente.

Veja-se que nada disso é possível sem um grande esforço argumentativo por parte dos procuradores. O advogado contrário à aplicação da decisão levantará em sua manifestação os argumentos relevantes para a distinção ou a supera-ção do precedente. E os fundamentos arguidos por ambas as partes deverão ser analisados pelo magistrado ao julgar a (in)aplicabilidade do precedente, por força do contraditório substancial, da cooperação no processo, da efetiva entrega da prestação jurisdicional, da imprescindibilidade da fundamentação para a validade das decisões judiciais, entre outras garantias fundamentais que embasam o ordenamento jurídico.

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Por fim, tem-se que a atuação dos advogados implica em outro ponto fun-damental para o sistema de precedentes: o próprio precedente torna-se mais forte quanto maior o número de fundamentos discutidos e abordados na deci-são. Logo, quanto maior a participação dos advogados por meio do contradi-tório substancial, trazendo argumentos e defendendo determinadas interpreta-ções, melhor tende a ser a decisão judicial que necessita observar e justificar o (não) acolhimento de todos esses fundamentos para ser válida. Assim, quando o contraditório substancial é forte em um processo, maiores as chances de que, surgindo um precedente a partir da decisão da Corte, esse precedente leve em conta um maior número de fundamentos e a decisão seja, portanto, mais con-sistente e completa.

5. considerAções FinAis

O presente artigo teve o objetivo de demonstrar que o direito fundamental à ampla defesa e ao contraditório apresenta importância ímpar no funciona-mento do sistema de precedentes brasileiro e que o papel do advogado nesse contexto assume grandes proporções.

Por maior que seja a força de uma decisão, até mesmo aquelas proferi-das pelos tribunais superiores, a compreensão dos efeitos dos precedentes não pode deixar de lado o direito de cada indivíduo de influenciar uma decisão que lhe diga respeito. Neste sentido, a ampla defesa e o contraditório devem ser lidos em conjunto com o art. 489, § 1º, VI, do Código de Processo Civil, que permite ao magistrado distinguir os casos ou demonstrar a superação do en-tendimento. Isto significa, portanto, que cada indivíduo tem o direito de alegar que seu caso é diferente daquele que foi apreciado em um precedente ou que a decisão do precedente pode ser aprimorada.

As hipóteses de defesa quando se constata a existência de um precedente, seja ele vinculante ou persuasivo, são e devem ser reduzidas. Não faz sentido tratar um caso já conhecido pelo Poder Judiciário como um caso absoluta-mente novo. Isso decorre das noções de congruência, coerência, integridade, isonomia e segurança jurídica que permeiam o sistema de precedentes brasi-leiro. Apesar disso, julgar esses casos como se as partes não tivessem direito ao devido processo legal, restringindo suas oportunidades de manifestação e de argumentação, para além de violar inúmeros dispositivos do Código de Proces-so Civil, é incompatível com o Estado Democrático de Direito.

Do respeito por parte do magistrado ao direito das partes ao contraditório e à ampla defesa, surge o direito de manifestação dos advogados das partes, que realizarão esforços argumentativos e interpretativos para demonstrar por quais motivos o precedente deve ou não ser aplicado e, por conseguinte, deverá o

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magistrado enfrentar todos esses fundamentos em sua decisão, de forma com-pleta, racional e juridicamente justificável, sob pena de nulidade e/ou reforma pelos recursos cabíveis.

Também é preciso ter em mente como o contraditório e a ampla defesa – e também a atuação dos advogados – influenciam decisões que poderão formar precedentes. Se em um processo há contraditório substancial, tende a ser maior o número de argumentos com os quais a Corte formadora de um precedente vai se deparar no momento de decidir, ocasionando um aumento do esforço na fundamentação da decisão judicial e sua maior completude e consistência. Logo, o contraditório e a ampla defesa exercidos pela atuação dos advogados, além de consistirem em direitos fundamentais de observância obrigatória, con-tribuem também para a força dos precedentes que serão futuramente aplicados.

Disso se extrai que um sistema de precedentes levado a sério por todos os sujeitos processuais – agindo em cooperação – contribui para a observância dos direitos fundamentais das partes, para a atuação digna e eficaz dos advo-gados, para uma melhor e mais completa fundamentação das decisões judi-ciais, para a interpretação dos precedentes e desenvolvimento do Direito pelo debate, argumentação e interpretação. Do respeito aos direitos fundamentais (do contraditório e ampla defesa) das partes surgem oportunidades para que os advogados, por meio de sua argumentação e interpretação, cooperem com o juiz para a formação de uma decisão mais fundamentada, que levará em conta um maior número de fundamentos e, portanto, para uma melhor prestação jurisdicional, mais efetiva, completa e consistente.

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• Vinculação a precedentes e livre convencimento judicial, de José Wellington Bezerra da Costa Neto – RePro 266/447-480 (DTR\2017\613).

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parágrafos: o próprio <ENTER> já o determina. Como fonte, usar a Times New Roman, corpo 12. Os parágrafos devem ter entrelinha 1,5; as margens superior e inferior 2,0 cm e as laterais 3,0 cm. A formatação do tamanho do papel deve ser A4.

8. O curriculum deve obedecer ao se-guinte critério: iniciar com a titulação acadêmica (da última para a primeira); caso exerça o magistério, inserir os da-dos pertinentes, logo após a titulação; em seguida completar as informações adicionais (associações ou outras ins-tituições de que seja integrante) – má-ximo de três; finalizar com a função ou profissão exercida (que não seja na área acadêmica). Exemplo: Pós-dou-tor em Direito Público pela Università Statale di Milano e pela Universidad de Valencia. Doutor em Direito Pro-cessual Civil pela PUC-SP. Professor em Direito Processual Civil na Facul-dade de Direito da USP. Membro do IBDP. Juiz Federal em Londrina.

9. Os Conteúdos Editoriais deverão ser precedidos por um breve Resumo (10 linhas no máximo) em português e em outra língua estrangeira, preferencial-mente em inglês.

10. Deverão ser destacadas as Palavras--chave (com o mínimo de cinco), que são palavras ou expressões que sinte-tizam as ideias centrais do texto e que possam facilitar posterior pesquisa ao trabalho; elas também devem apare-cer em português e em outra língua estrangeira, preferencialmente em in-glês, a exemplo do Resumo.

11. As referências bibliográficas deverão ser feitas de acordo com a NBR 6023/2002 (Norma Brasileira da Associação Bra-

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Normas de Publicação Para autores de colaboração autoral iNédita 249

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sileira de Normas Técnicas – ABNT – Anexo I). As referências devem ser citadas em notas de rodapé ao final de cada página, e não em notas de fi-nal. Não aceitamos sistema referência autor/data.

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13 As referências legislativas ou jurispru-denciais devem conter todos os dados necessários para sua adequada identi-ficação e localização. Em citações de sites de Internet, deve-se indicar ex-pressamente, entre parênteses, a data de acesso.

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Contrato e raCionalidadeContraCt and raCionality

mArcoS cáPrio FonSecA SoAreS

Mestre em Sociologia pela UFRGS. Advogado.

Área do direito: Civil; Processual; Consumidor

resumo: O presente artigo é fruto de pesquisa empírica levada a cabo junto aos acórdãos do TJRS, especificamente em matéria contratual. Aqui, trago as conclusões obtidas no âmbito dos contratos abrangidos pelo Sistema Financeiro de Habitação. Delimitei a racionalidade jurídica nutrida pelos desembargadores de referido Tribunal ao procederem às tomadas de decisões neste tema. Após precisar o conceito central deste trabalho (racionalidade), exponho e analiso os dados obtidos junto aos acórdãos coletados, promovendo uma classificação dos atores jurídicos consentâneo o teor argumentativo invocado na fundamentação dos votos, ocasião em que a nova teoria dos contratos passa a ser contextualizada em meio a um processo de transformações pelas quais vem passando o direito privado como um todo.

Palavras-Chave: Cláusulas gerais – Juros – Revisão contratual – Racionalidade – Rematerialização.

abstraCt: The present article is a result of empiric research mode next to judgements of Tribunal de TJRS, specifically in contractual subject. Here, I bring the conclusions got among the contracts embroced by the “Sistema Financeiro de Habitação”. I delimited the juridical racionality sustained by magistrates of the abovementioned Tribunal when they took decisions on this matter. After precising the main concept of this work (racionality), I expose and analyse data got next to judgements collected, promoting a classification of the juridical actors according to the armentative contents evoked in the fundamentation of votes, occasion where the new theory of contracts starts to be contextualized in a process of transformations by which private law is passing as a whole.

keywords: General clauses – Interest – Contractual review – Racionality – Rematerialization.

Sumário: 1. Introdução – 2. A racionalidade jurídica e o contexto atual do direito privado: 2.1 A matriz weberiana; 2.2 Reflexões contemporâneas – 3. A mudança paradigmática no direito privado brasileiro – 4. A pesquisa empírica: o caso do SFH – 5. Considerações finais – 6. Bibliografia.

1. introdução

Nononononononononononononononononononononononononononononononono-nononononononononononononononononononononononononononononononononono-

nonononononono.

6. BiBliogrAFiA (exemPlos)albergaria, A. Cinco anos sem chover: história de João Louco. Recife: Sertão, 1999.

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