resta um eu mesmo · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho...
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RESTA UM
EU MESMO
danilo arnaldo briskievicz
RESTA UM
EU MESMO
danilo arnaldo briskievicz
o que resta é o poema
restarão entre as coisas
os nomes de cada coisa
por entre os pensadores
ficarão entre as couves
o fertilizante de cada colheita
perpetuando a fraqueza
deixarão entre os sentimentos
as dores e sabores de cada boca
efetivando a paixão
resta um
eu mesmo
nas coisas
do mundo
forno de pastora
para acelerar o coração
vento de forno de pastora
o sopro mais quente
aquece por dentro
medida
o cachorro mede da ponta do nariz
à ponta do rabo um cumprimento
que se estende ao infinito de um lado
ao lado segundo a matemática
o cachorro não está nem aí
para a matemática
venda
“vendo essa esquina”
dizia o anúncio
na movimentada
rota do bairro
compraram a esquina
hoje há um prédio
na esquina
vendida
abalo
um abalo sísmico em cada entranha da alma
como se debaixo de todos os porões ainda eu
sobrevivesse aos devaneios da terra marcada
pela transitoriedade abalada
eu estou abalado nas estruturas
não como uma árvore depois da chuva
a chuva depois passar por todas as árvores
se esconder vaga no rio encanado da cidade
a cidade que me consome
e não me deixa ser eu mesmo
nem diante do espelho trago
cada imagem do dia há dias desfeita
estou tão puramente entregue ao entregue
esperando dele venha senão o sorriso
da novidade não me incomodaria
a novidade não cruza a rota da tristeza
estrela
quando um grande amor
acaba
uma estrela morre no espaço
mas o universo não pára
por causa disso
bem sei
virada
tirar a roupa do tempo
de cada molécula e me ver
outro depois do tempo
ao seu lado
virar a página do tempo
de revista no passado e me ver
todo depois do tempo
dado
acreditar que o tempo vário
do relógio interior
possa trazer o novo amor
claro
chuva
a chuva na janela pequena
do banheiro
insiste em me banhar
eu não posso sair
a chuva bate forte e chama
para fora
mas a água quente é salutar
eu não posso brincar
cama vazia
quando eu me virei para o lado
não vi seu corpo
nem queria
preferi a solidão
nem de manhã quando me virei
e não vi seu corpo
não queria
menti a superação
situação
enquanto a chuva cai eu me visto
por dentro como a flor
sem vento se abre
para o centro
não me importo com os sons externos
nesse momento sou apenas
o vento quebrado
remoendo
verão
no verão apenas exponho
o corpo
oco
de emoção
no verão apenas componho
o verso
torto
da sensação
melodia
a melodia da cidade da infância
é tão profunda que corta
a entranha da alma
até calada
a sinfonia da cidade da infância
é tão conjunta que entorta
o caminho dos pés
na escada
jura
juro não escolhi
mexer tão fundamente
ainda mais agora
no silêncio
na proteção da cidade
onde os cantos
são conhecidos
tão intensos
juro não prometi
afundar as mãos
na tristeza de ontem
aqui é agora
meu primeiro amor
foi no alto da santa rita
e por lá ficou
há tantos anos
perdi o sentido da escada
os passos se perdem
mas não se traem
aprendi mesmo
juro não entendi
a palpitação da memória
ainda buscando seu corpo
entre as andorinhas
mas algo do tempo se foi
para onde vão as pequenas memórias
essas que valem a pena lembrar
apesar de todas as juras
apesar de todas as maldições
de todos os esquecimentos propositais
de todas as horas afogando as mágoas
apesar das fotografias escondidas
não voltam mais as horas
elas se perderam nos ponteiros
do relógio amigo que levou
de mim você de você eu talvez
ficou a sensação do tempo
de um tempo breve
belíssimo
serro, 30 de janeiro de 2010
vento da praia
o vento que passa na praia
onde pastora faz quitanda
não sopra nos coqueiros
da praça joão pinheiro
é outro vento levado
trazido e jungido pelas curvas
do paneleiro e das três bicas
cozido no tempo dos pobres
o vento é sempre frio
menino que entra e mergulha
depois sai e se liberta
do fundo do rio
rola feito pedra nas margens do lucas
pois não conhece limite do curso
a liberdade do vento da praia
levanta a saia das beatas
na festa do divino se faz antigo
por que o antigo é sempre frio
e os sons da banda são tão passados
que a folia se repete há três séculos
o vento da praia é devasso
não sopra na praça
tem medo da rua da cadeia
foge pela mata de claudionor
ritmo da chuva
no ritmo da chuva
a lata bate tambor
a manhã se torna
festa de ritmos
cadenciados
a chuva de verão
não sai do ritmo
lição
bem cedo se aprende
com a chuva a lição
acordar é olhar a janela
para saber qual a estação
não adianta sentir frio
na época que faz verão
não adianta esperar sol
no dia em que chove assim
há na natureza algo para além
da lógica racional da mente
esperar da estação o certo
é o que se deve aprender
saudade de pedra
as pedras da escadaria de santa rita
na cidade do meu interior
saíram dos rios
bem do fundo dos rios
os mesmos rios que hoje correm
miúdos feito tempo bom
nos rios as pedras rolavam para o mar
o absoluto mar do tempo
mas hoje estão incrustradas
na história da cidade
uma a uma amordaçadas
como um colar para santa rita
as pedras estão com saudade
da viagem do fundo do rio
para o absoluto do mar
quando chove no verão
as pedras transpiram
saudade de marejar
Serro 29-12-2010
vasto
o passado é marca eterna
gravado feito marreta
na pedra sabão
o passado não se esquece
deixado feito trombeta
é gravação
o passado é pasto
vasto
preciso
o futuro é jeito de corpo
que ainda não se deu
talvez nem se dê
impreciso
o templo do mar
quando o sol bate antes de quebrar
a onda em mosaico de gotas
eu ouço a voz
de dentro
o mar é um templo
onde o tempo
cala
a fala
quando o pé ainda não encontrou o solo
do mar em apoio forte e o tempo
gravita entre o bem e o mal estar
de sempre
o mar é tempo
silêncio de templo
fala
e cala
arraial d’ajuda, 17-01-2011
hibisco
a abelha percorre suas veias
as formigas sobem e descem
o beija-flor apaixonado
jura volta breve
hibiscos de tantos cores
amarelo
vermelho
cor-de-rosa
flor de praia
sabiá
num canto de terra
entre o mar e outro mar
ele eleva sua voz
em alto tom
dissipa o som
por lados tantos
me perco em sua mensagem
musical
o sabiá canta
encanta
pitinga
recifes cercam as ondas
até ali perto
depois é mar aberto
em pitinga
há rastafári
voo de ultraleve
contemplo
apenas
o movimento da praia
é maré que doa vida
aos de dentro
aos de fora
quilombo
o gato tem nome
de terra vasta
esconderijo
chama-se quilombo
e rola na areia da praia
arredio
retirantes
quando a maré sobe
os retirantes sedentos
voltam para ver
o que veio
o mar traz água nova
apesar de ser o fim
dos rios
casa triste
tudo era triste naquela casa
até o vento que passava pelos corredores
escorria pelas janelas sem graça
arrepiava os pelos do cachorro
em fim de tarde na escada inacabada
aguardo
enquanto a nuvem não arruma a chuva
esquento a memória que me trai
mas não atrai sua presença
enquanto o avião parado aguarda a hora
dependo do tempo para lhe rever
mas não posso sair por aí
desatinando
desatinado
destino
destinando
atraição
ainda nem me recompunha
da perda
da vida
veio outra venda ocular
vedando
o olhar
não sei o motivo do amor
ser galopante
tão empolgante
ainda não sei o que opunha
de fato
no ato
o amor simplesmente chegou
fraco e oco
bobo e tolo
era ele de novo
eu sabia
apenas não o queria
silêncio é razão
por certo não quero
mas meu querer está frágil
ando querendo que outros
queiram por mim
para que eu me deixe em paz
por medo quero apenas razões
para concordar e ser ágil
não quero controvérsia
deixem em mim
apenas eu em paz de mim
missão do absoluto mar
em trancoso o mar recebe o rio
deixa-o viver em paz na maré baixa
mas quando vem a volta da lua
o mar quer apenas invadir
e se lança nos mangues
desperta os caranguejos
meche com as raízes
bem fundo
depois vai embora deixando o suor
salgado sabor pela margem do rio
recuando diante do todo poderoso
mar absoluto que tudo pode
pois mesmo na ira da invasão
leva vida que sobe pelo rio
depois se despede mansinho
cumpridor de sua missão
o absoluto tem missões
que só o mar expressa
coisas
as coisas tem forma
estrutura
peso
norma
há nas coisas coisas tantas
significadas em instâncias
como a boa e doce melancia
tem sementes nas entrâncias
as coisas tem peso
caimento
subimento
elo
há nas coisas tantas coisas
revestidas de palavras doidas
como o maluco que tem boina
para o vazio da cachola
as coisas tem cheiro
apodrecimento
florescimento
inteiro
há nas coisas tempos longos
enchidos de vida em pompa
como o talher de família santa
passa de bisavó para filha em lembrança
temporada
o tempo volta
a dar voltas
soltas
rodopios tontos
pontos prontos
tantos
o tempo
erra
parado
o tempo
vela
vagado
o tempo vai
em dor e ai
paz
a qualquer custo
hoje não quis assistir ao jornal
a televisão estava carregada de outras coisas
preferi olhar para dentro e sentir o vento terno
do fim de tarde encontrando a noite inicial mais uma vez
hoje não quis me vestir de bem e mal
deixei a verdade da idade gritar e pronto
caído em algum canto da sensibilidade agradeci
o fim do dia precipitado em noite que o tempo me fez
hoje não quis o barulho brutal
esqueci-me da zueira do mundo em volta
optei por deixar as palavras soltas feito nuvens
no fim de tarde resgatando da noite sua insensatez
hoje não deixei o tempo passar
eu o prendi dentro da liberdade
de fazer o meu tempo na minha vida
mais uma vez a saída para me encontrar
[eu me encontro agora
dentro de mim e não me chamem
poderei evitar o ruído externo
a qualquer custo]
natureza
jogar o chapéu
bem perto
de algo
que seja ao léu
deixar a onda
discreta
apagar
quem me ronda
subir a montanha
rápido
afagar
a nuvem tamanha
antes
antes de mim
eu era distração
agora que sou
me faço invenção
antes de mim
eu fui percepção
agora que estou
me faço evolução
rastro de chuva
a chuva passa pelo dia
deixa rastros fortes
na folha verde
em mim
a chuva não ultrapassa
a janela do quarto
apenas da mente
enfim
além existo
a alma pulsa para além
no sofrimento
não se contenta
deseja remédio
a alma sabe mais de tudo
que eu sabendo do pouco
cravado na memória
da vida curta
a alma não resolve
apenas recolhe do tempo
o necessário para se libertar
rapidamente
a alma deseja sair de mim
para ser eu mesmo
o mais profundo
resiste ali
a alma sabe de mim
mais que de mim o corpo
o corpo é um oco passageiro
a alma sabe do cheiro do todo
sossego
se sobra tempo
divago
se falta tempo
calo
o tempo some
entre uma olhada
e outra
atrapalhada
o tempo não falta
se durmo
é que o corpo
dói estar no mundo
quero apenas ausência
mas ela está para além
muito para além de mim
no tempo
o tempo corre
não pego
o tempo morre
sossego
azia
o vulcão interior
ferve o humor
a fogueira queima
alastra dor
a garganta sofre
pede socorro
o estômago revolta
arregala o olho
azia
gota de tempo
dentro da gota d’água
o vapor
o calor
a nuvem inicial
na gota d’água
o passado
o futuro
o mundo primordial
a gota d’água
é memória
é história
do mar abismal
eu tenho gotas d’água em mim
por isso vivo em função da paixão
do tempo escorrido na mão
na história única da encarnação
de nada serviu
por entre as veias do corpo
há ainda um pouco do corte
do destino sangrando
por entre a brisa e o calor
há misturado um quê de sorte
do destino desatado
você não serviu para nada
nem para palpitar o coração
na varanda da saudade
[o que se foi foi tarde
na brisa fraca da saudade]
eu sei
o vento entre os dedos
não melhora o medo
tenho fome do segredo
não contado cedo
foi paixão, eu sei...
daquelas de sótão e porão, eu sei...
futilidade
o dia trouxe apenas fantasia
coisa inútil brota
depois desbrota sem raiz
ao fim das horas
o dia trouxe apenas ilusão
coisa fútil entorta
depois desentorta em mim
o orgulho de sobra
grandeza
nunca tive em mim profundidade
mesmo no abismo infinito
da dor
nunca tive em mim romanticidade
mesmo no cinismo esquisito
do amor
sou apenas um vulto
sem sombra alongada
sou apenas um pouco
sem pretensão de imensidade
intervalo
não sofro entre o banho
e o jantar
nem entre o almoço
e o voltar
para trabalhar
sofro quando a noite
vai afundar em saudade
num tempo tão amplo
que me perco
e perder-se é sofrer
me perco
sofro
entre dois horários certos
não há tormento
a certeza impede o tédio
o depois é saudade
antes da saudade
apenas o beijo
a lembrança
dos lábios
é depois
o depois é saudade
multiplicação da ausência
dos lábios em memória
que se apaga
quer se renovar
não pode
o depois é saudade
equilibrado
acordei e fui para o jardim
não encontrei nenhuma rejeição
na luta entre as flores e as formigas
joguei água sobre a terra
nem me paralisei diante da secura
necessária para uma nova era
o ar estava tão leve
o silêncio tão profundo e fértil
nasci no novo dia renovado
equilibrado entre o bem o mal
que há dentro e fora de mim
ainda sem luz para ser total
respeitando a fisionomia do mundo
repleto de acidentes de percurso
eu não quero ser bruto
o dia me devolveu o equilíbrio
em forma de som de passarinho
em mim escutei o roçar das asas
o dia amanhecei no outono iluminado
não por que o sol está mais claro e forte
mas simplesmente por que eu estou assim
equilibrado
na corda bamba
do sim ou do não
resta um
resta um
eu mesmo
na tarde
na noite
basta um
seu medo
corro longe
quase dor
fica um
remendo
na hora
do amor
o medo de desamar
me afasta de você
o medo de afastar
termina em mim
resta um
eu mesmo
amargo
vazio
resta um
eu mesmo
apenas
um
mesmo
jaz?
o sopro de dentro
para o mundo é alento
a fúria de sempre
para o mundo é defeito
o amor inspira
e o mundo respira
o ódio destrói
a frágil ponte entre nós
quanta diferença
entre cada um de nós
num mundo tão feroz
e você o que faz?
jaz?
vivaz?
transição
devagar o dia some
poeira de horas
varridas pela noite
outra coisa entre o dia
e outro dia
perpetuar o dia impossível
passa breve ou rápido
vira outra coisa sem sol
quando em lua a noite
fere o dia
por cima
por cima das nuvens do dia pleno
por trás do branco fundo
um verso escondido prestes a cair
bem em cima da folha pálida em silêncio
o verso não vai escorrer pelo telhado
nem vai chegar com barulho de tempestade
virá manso como os herdeiros da terra
para se colocar diante do antigo nada da folha
onde era nuvem
agora é poesia
onde restava eu
agora sou eu mesmo
vivo a poesia
dos dias belos
e dos dias feios
por todos os lados
ainda haja saudade
ainda na insistência da mágoa
prefiro o amor puro
de puro amar
ainda na fotografia velha
resta a emoção do instante
não vou procurar pelo não vivido
me contento agora com estar sendo
livre e para sempre
um passado escrito
repleto de futuros
à frente
por todos os lados
que cabem a sensibilidade
violação
o coração não enxuga
ele não é areia de deserto
de amar vivo imundo
em água de paixão
não dou voltas na solidão
encaro-a de frente rebelde
de amar torturo os puros
meu amor é violação
vulcão
se querer é ausência em desejo
ardo em medo de arder mais
por causa da falta de seus braços
e nas horas vagas seus abraços
meu querer não faz o mundo girar
muito menos o corpo amado
como um móbile alienígena
diante de mim ficar
o querer é mais que sou
foge ás cadeias de dentro
explode feito vulcão
nas horas mais impróprias
como agora
como sempre
florido
é no sorriso
me perco entre os dentes
da boca
é no florido
me deixo entre as rosas
da janela
é no conflito
me faço entre as dores
da alma
é no cochicho
me ouço entre os versos
da folha
vazio é antes
depois esvazio
refluxo
o suor rola nas costas do homem
para por ali mesmo
não vai longe
estaciona
ao mar vão apenas os grandes rios
vertem por si mesmos
para se represar
eternamente
serei eu fluxo
ou refluxo?
coxia
o som da palavra
nem antes depois também não
que havia?
sentido
depósito
frio de letras
em contraste?
além da palavra
nada há senão
vazio
além de mim
nada haverá
ido
conjuntos
infinitos
de idos
verbos e sujeitos
como eu...
igual
o mundo me coube
não sei: até quando
há muito que me percebo
marginal
o mundo me ouve
não sei: até hoje?
há dias me sinto
igual
haja coragem
cansado de encontrar
no fim do dia o mesmo
eu mesmo há muito feito
refeito e recozido
frágil a cada dia
desperto para isso
eu serei morto
há pouco
sei bem para onde vão
os sins e nãos
para o fim tumular
do silêncio
ensaio todos os dias
para o encontro fundo
entre eu mesmo
outro bom lado de tudo
mas é hora cedo
de deixar de lado
a coragem
[haja coragem]
alheio cheiro
das boas passagens da vida
a melhor de todas
é a que volta em cheiro
de sabonete de hotel
ou de perfume alheio
[alheio sempre ao meu interior]
borbulhando em memória
de idos tempos outros
de tanto passado
que apenas sobrou
o que nem sabia que guardava
[alheio sempre ao meu baú]
esperança é poesia
acho linda a poesia
não muda nada
nem ninguém
mas enfeita a tarde
acho bela a mania
dos intelectuais de hoje
como alguém
ceifando a esperança
os artistas são necessários
para clarear a tarde
os intelectuais não são
boas companhias para o por do sol
a vizinha
a vizinha não gosta de roseiras
vai ver tem medo das besteiras
da juventude
a vizinha corta as floreiras
sei que ela tem saudade
dos amantes
a vizinha não gosta
daquilo que incomoda
como antes
as flores
as rosas
são amorosas
espreme[dor]
vou espremer até o último verso
disso que agora sou um resto
vou defender meu último suspiro
como quem luta com ferido de tiro
eu quero até o resto de mim
jogado no mundo enfim
ocultismo
ele me ensinou
cada palavra tem outras dentro
e afirmava – isso é sinal de talento
nunca acreditei na poesia das palavras ocultas
no remédio leio a caixa a receita e a bula
não confio no que vem em permuta
gosto da palavra exata
nem menos nem mais
abdico dos penduricalhos
que todo ocultismo traz
santa de bronze da praça
a santa de bronze fica no alto da cidade
uns vão para um lado da praça
outros para o outro lado
a rua é mão e contramão
a praça destituída de beleza
incomum no bairro alto
tem cimento e pessoas
de fazer nada andando
uns fazem nome do pai
outros pedem um pai com nome
são meninos da periferia e do alto
eu os conheci desde sempre e agora
a praça é caminho para fora
as cidades em volta são outras
serviços vastos gentes tantas
asfalto até na porta
a praça tem uma santa de bronze
não tine nem retine sem badalo
está lá estacionada como a vida
das pessoas da praça morta
nossa senhora da conceição
toma seu bronze de manhã
e à tarde já dilatada
pede a deus o orvalho
o pardal de vez em quando virá
acredite, pois!
as asas abertas sobre seu manto
aliviará o sol na cabeça com asas de menino
assim, assim...
depois da chuva
o pé-de-moleque amolece
mas não chega a escorregar
na boca da banguela
a cidade é calçada
contra os medos todos
mas não evita a assassina
calada da noite
a cidade tem crianças
tem velhos ainda infantes
gerações que de tão renovadas
reinventam o mesmo de antes
[eu nasci ali
e fiquei assim assim
com medo da verdade
em mim]
de pouco, palavra
o retrato do rosto
sou eu descomposto
nem sei bem quem a foto
colocou no meu bolso
passo a vida em encosto
tiro uma janela e ponho encanto
na reforma de dentro outro
continua posto
eu sou esse mesmo
de vário, nada
de muito, cada
de pouco, palavra
como era amarela
a casa amarela tem ninguém dentro
só de vez em quando quando em muito
vem um casal que já foi jovem e hoje
visita a velha casa como velhinhos bons
a casa conta de cada ruga e de cada rusga
os móveis juntam poeira para contar das estações
o quintal tem goiabeira que me viu menino
e o sagrado coração de jesus já enxerga pouco
boi, bois, depois
quando caio em tarde
me levanto em relógio
é o tempo ele sempre
resgatando o sorriso
de quem viveu vários anos
os anos passam a cada segundo
mas não penso em frações
penso apenas o tempo todo
como o que passou e se foi
numa corrida de bois
dessa porção do que não volta
é que sinto falta agora basta
o relógio indica futuro nada
é estático e vai se renovar
depois
pincel
pincelado fui
sem poder opinar
na tela que ainda
sou eu e flui
passando tinta
não sei se pinta
coloração nova
a tela está quase pronta
cheia de riscos
plena de vícios
coberta de ciscos
eu sei, eu vejo
onde vai pousar
em cor e descor
em dor e amor
essa tela de ousar?
vou pintando, apenas
cenas e duras penas
ziguezague
profundo o rio corre
nele não se morre à toa
rio é vida não morte
rio corre não corte
vai como vai o tempo
vai vai e volta
em chuva boa
da mata
o rio faz ziguezague
envolve o olho
fica no mapa
parado em disfarce
vai como o dia vai
vai vai e torna
em rua torta
da rota
fotoolho
de dentro capto
o de fora rapto
rápido
ligeiro
fração de segundos
olho no olho
cor sensação
roubo o mundo
fotografo o ato
a coisa o que passa
o que fala e gesticula
prendo para sempre o fato
olho
fotografia
sou eu brincando
magia
seis e trinta
seis e trinta
toca o despertador do celular
soneca de quinze minutos
seis e quarenta e cinco
toca o despertador do celular
soneca de dez minutos
seis e cinquenta e cinco
toca o despertador do celular
ainda bem que são seis e cinquenta e cinco
nota tardia
pela janela do ônibus sobreponho
corredor interno e calçadas da rua
o relance mira o ambiente pleno
lá longe a nuvem esgota sua chance
de chover em fim de tarde seca
como se a vida dependesse dela
o bem te vi tentou roubar os olhos
no fio de alta tensão da cemig
mantive a concentração na poesia
de carlos drummond de andrade
sobre o colo com alguma poesia
sopro de mar
passa a hora em salvação
não há pecado aqui
nem em cima nem em baixo
nem além do equador
pudera o tempo calar
desviar da tolice o ato
o banal fica eterno
preso às coisas
num sopro de mar
num sopro de mar
grito de inferno
a ordem terceira do carmo se reunia
no mês de julho para comemorar o dia
frio intenso de pessoas com medo da morte
nossa senhora ajudava quem cria
os santos gritam em suas imagens
gritam inferno e punição
mesmo durante a liturgia
fios de tricô
o fio de cabelo cai e não vai
quem tem rota é o humano
cabelo é ser estranho
na natureza do mundo
quantos fios pelo chão
emendados em tricô de horas
a colcha de retalhos dos restos
invade a cidade em tapete fúnebre
o fio de cabelo cai e não sai
livre em grito de alforria
cabelo é escravo orgânico
não sabe viver em palmares
mão de mãe
como se não fosse quente sua mão
o tempo considerava
era quente e úmida e sentimental
como se não tivesse na mão
um bom dia uma boa noite
como se não existisse um laço
entre as mãos se afagando
o tempo esgota a sensação
mas não escreve a verdade
a verdade é mais funda
a verdade é nossa
beatices
o melhor da procissão
era o bêbado em tentativa
de seguir a linha reta
das beatas
ou sussurrando em ré
o dobrado da banda
em dó
ou olhando para o chão
enquanto o padre
mostrava o céu
o melhor da procissão
era o bêbado
mentira salutar
rumino sensação para o verso
encadeado em linha
uma debaixo
da outra
não alimento a dor do mundo
oponho o verso
resistência
aderência
ao verso cabe o inverso
a mentira salutar
hospital
funeral
antes fosse
antes fosse o vazio
na linha
não o caminho
de dentro
falindo
antes fosse a fé
no espírito
não o egoísmo
de sempre
surgindo
antes fosse a alegria
na vida
não a hemorragia
da dor
emergindo
antes fosse o encontro
na esquina
não a desistência
do amor
suprimindo
antes fosse
coisa e palavra
apenas
fosse
antes
dia repetido
dia repetido um depois do outro
tempo perdido?
ou aviso de mudança e destino
gritando no ouvido?
por sobre as nuvens
por sobre as nuvens há colinas
tantas e várias e vastas
recolho entre elas calma
miro um horizonte para baixo
entre branco total com fundo de quintal
o âmbar das ruas veicula silêncio
as fibras óticas enterradas emitem palidez
diante das veias abertas das ruas em incandescente
iluminação de poste eu apenas sei de mim
por sobre as nuvens há colinas
orvalho
de manhã o orvalho
ainda tem orgulho da noite
o sol decompõe a neblina
evapora o sentimento
o dia é calor de decisão
prefiro a noite
permanência de solidão
e orvalho
guerra
o livro na estante
soldado enfileirado
na guerra
o livro restante
depois da leitura
condecorado
o livro sem leitor
dói em passado
desonrado
a banda anda
a banda dobra a esquina
som de procissão eterna
cruza a cidade em reza
tem bumbo pratos contrabaixo
tem maestro clarinete trombone
silencia fundo
mulher homem
a banda não se perde
vai junto do coral de dona vilma
não entra na igreja
dá meia volta e cai no mundo
os músicos do interior
são inteiros
não precisam de deus
bastardo
por hoje basta
emoção demais
desgasta
por agora fica
amor demais
irrita
para amanhã quero
mais do mesmo
inteiro
o que são palavras?
a puta pariu
pariu a puta
puta a pariu
a pura partiu
partiu a pura
pura a partiu
a cura saiu
saiu a cura
cura a saiu
noite em sonho
na extensa noite passada
perdi de mim um tempo
um vasto tempo outro
dado por inteiro em outro ponto
é o sonho
é o sono
adjetivos
de quem dorme
a noite passou válida
permaneço vivo ainda
sobre os escombros
das estruturas adormecidas
pausa
domingo é dia de pausa
não que sinta necessidade de pausar a vida para recomeçar
sei muito bem que intensa como se dá não para e estaciona
domingo é dia de aula
outro tempo passando vago e divagado entre as pernas
ou o sol se imponto no outono como recurso de caminhada
domingo é dia de sair da jaula
a rotina não prende há uma permissão para ir e vir dentro
do meu dia lento ou rápido feito apenas para mim mesmo
domingo é dia bom
gosto de bombom em páscoa
a praça
a árvore emoldura a praça
debaixo uma menina com outra criança no colo
calada passa a hora em sol que espalha silêncio
o beija-flor bem sabe que é hora de roubar da menina
o cheiro dos cabelos ainda molhados da noite em amor
da criança o som da alma que acaba de chegar de outro mundo
o dia se mistura na praça
pernas de ladeira
do outro lado da cidade a periferia
se esquenta no sol da manhã ainda de outono
quando em frio e inverno é mais difícil
as mães tem medo do vento cortando a alma
os pássaros ainda não sabem da duração dos dias
de seca e de desamparo para seus filhotes
comemoram as penas no corpo miúdo
não há nota dissonante no sino batendo missas na matriz
não fosse o homem de pernas tortas vencendo a ladeira
acreditaria na vida após a morte
terra boa
muitos bichos dormem dentro da terra
saíra é um deles
de cor verde e azul
brilhantes
as minhocas vivem no solo
quando chove forte
elas boiam
sedentas de aventura
os peixes vivem entre terras
as margens do rios e lagos
são apenas precipícios largos
para a vida se contorcer
dentro da terra há aconchego
e desassossego
o vulcão que cospe larva
sabe disso desde cedo
se chamar, eu vou
se o amor tomar as mãos e guiar
mesmo pela escuridão
eu vou
se o amor roubar as horas
diante do relógio da santa rita
eu vou
se é amor não digo não
sim digo sim veloz
eu vou
se o amor me pedir silêncio do encontro
desde que haja gemidos noturnos
eu vou
se o amor quiser partir cedo demais
abro o destino novamente outro virá
eu vou
para o amor nunca fecho as portas
o vento é sempre o mais puro
se soprou, eu vou
anterior[idade]
o antes nada é
senão possibilidade
de durante
e sempre depois
o antes da fotografia
é imagem na retina
foco interior
pois
o antes da música
é contagem de tempo
a linha de acerto
das notas
o antes do amor
é deserto de angústia
tempo perdido
nada
o antes da morte
é quando resta um
eu mesmo
pronto
fundo da praia
para juninho, filho de eduardo
no contorno do fundo da praia
o bairro mais fundo do vale
encontro a casa velha
com muro de pedra sabão
a dona velha na janela
se veste de fumaça de fogão a lenha
quase ausente em dissipação
se mistura ao cheiro do feijão
se ela soubesse para além da fumaça
há um mundo outro tolo e sem graça
ficaria ali estática como quem amolece
diante do tempo pedindo uma prece
no fundo da praia
há situações estranhas
rio miúdo
os rios escorrem pelas montanhas
não se encontram antes do mar
há um alinhamento perfeito entre eles
para molhar cada parte da cidade
todos são miudinhos
nascem logo ali num desencanto de nuvem
agarrada de medo no pico do itambé
[ela precisa chover
sabe
prefere a aventura de se escurecer
em raios]
ausência
falta silêncio
entre as expressões do medo
falta palavra
muda em pensamento
falta promessa
certa para quem vem depois
falta conversa
honesta sobre sentimento
ausência não compromete
apenas oferece tempo
para que o novo
se manifeste
sujeira
ainda que torne o vento
eu não restarei incólume
a pele tem sujeiras
profundas
o que fica resta
fica um corpo
depois do poema
um doido
depois da demência
resta um pobre
depois da doença
um amigo
depois da tristeza
fica o tempo
depois da ação
um flagelo
depois da usurpação
resta eu mesmo
depois da febre
um poema
depois da sede
DANILO ARNALDO BRISKIEVICZ nasceu em
Serro, Minas Gerais, em 1972. Filósofo de formação,
poeta nas horas vagas e incertas, historiador por vocação,
fotógrafo por paixão à imagem. Publicou livros das áreas
em que dedica seu tempo e investigação.
Acesse: http://recantodasletras.uol.com.br/autores/doserro
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