resta um eu mesmo · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho...

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RESTA UM EU MESMO danilo arnaldo briskievicz

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Page 1: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

RESTA UM

EU MESMO

danilo arnaldo briskievicz

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RESTA UM

EU MESMO

danilo arnaldo briskievicz

Page 3: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

o que resta é o poema

restarão entre as coisas

os nomes de cada coisa

por entre os pensadores

ficarão entre as couves

o fertilizante de cada colheita

perpetuando a fraqueza

deixarão entre os sentimentos

as dores e sabores de cada boca

efetivando a paixão

resta um

eu mesmo

nas coisas

do mundo

Page 4: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

forno de pastora

para acelerar o coração

vento de forno de pastora

o sopro mais quente

aquece por dentro

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medida

o cachorro mede da ponta do nariz

à ponta do rabo um cumprimento

que se estende ao infinito de um lado

ao lado segundo a matemática

o cachorro não está nem aí

para a matemática

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venda

“vendo essa esquina”

dizia o anúncio

na movimentada

rota do bairro

compraram a esquina

hoje há um prédio

na esquina

vendida

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abalo

um abalo sísmico em cada entranha da alma

como se debaixo de todos os porões ainda eu

sobrevivesse aos devaneios da terra marcada

pela transitoriedade abalada

eu estou abalado nas estruturas

não como uma árvore depois da chuva

a chuva depois passar por todas as árvores

se esconder vaga no rio encanado da cidade

a cidade que me consome

e não me deixa ser eu mesmo

nem diante do espelho trago

cada imagem do dia há dias desfeita

estou tão puramente entregue ao entregue

esperando dele venha senão o sorriso

da novidade não me incomodaria

a novidade não cruza a rota da tristeza

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estrela

quando um grande amor

acaba

uma estrela morre no espaço

mas o universo não pára

por causa disso

bem sei

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virada

tirar a roupa do tempo

de cada molécula e me ver

outro depois do tempo

ao seu lado

virar a página do tempo

de revista no passado e me ver

todo depois do tempo

dado

acreditar que o tempo vário

do relógio interior

possa trazer o novo amor

claro

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chuva

a chuva na janela pequena

do banheiro

insiste em me banhar

eu não posso sair

a chuva bate forte e chama

para fora

mas a água quente é salutar

eu não posso brincar

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cama vazia

quando eu me virei para o lado

não vi seu corpo

nem queria

preferi a solidão

nem de manhã quando me virei

e não vi seu corpo

não queria

menti a superação

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situação

enquanto a chuva cai eu me visto

por dentro como a flor

sem vento se abre

para o centro

não me importo com os sons externos

nesse momento sou apenas

o vento quebrado

remoendo

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verão

no verão apenas exponho

o corpo

oco

de emoção

no verão apenas componho

o verso

torto

da sensação

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melodia

a melodia da cidade da infância

é tão profunda que corta

a entranha da alma

até calada

a sinfonia da cidade da infância

é tão conjunta que entorta

o caminho dos pés

na escada

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jura

juro não escolhi

mexer tão fundamente

ainda mais agora

no silêncio

na proteção da cidade

onde os cantos

são conhecidos

tão intensos

juro não prometi

afundar as mãos

na tristeza de ontem

aqui é agora

meu primeiro amor

foi no alto da santa rita

e por lá ficou

há tantos anos

perdi o sentido da escada

os passos se perdem

mas não se traem

aprendi mesmo

juro não entendi

a palpitação da memória

ainda buscando seu corpo

entre as andorinhas

mas algo do tempo se foi

para onde vão as pequenas memórias

essas que valem a pena lembrar

apesar de todas as juras

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apesar de todas as maldições

de todos os esquecimentos propositais

de todas as horas afogando as mágoas

apesar das fotografias escondidas

não voltam mais as horas

elas se perderam nos ponteiros

do relógio amigo que levou

de mim você de você eu talvez

ficou a sensação do tempo

de um tempo breve

belíssimo

serro, 30 de janeiro de 2010

Page 17: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

vento da praia

o vento que passa na praia

onde pastora faz quitanda

não sopra nos coqueiros

da praça joão pinheiro

é outro vento levado

trazido e jungido pelas curvas

do paneleiro e das três bicas

cozido no tempo dos pobres

o vento é sempre frio

menino que entra e mergulha

depois sai e se liberta

do fundo do rio

rola feito pedra nas margens do lucas

pois não conhece limite do curso

a liberdade do vento da praia

levanta a saia das beatas

na festa do divino se faz antigo

por que o antigo é sempre frio

e os sons da banda são tão passados

que a folia se repete há três séculos

o vento da praia é devasso

não sopra na praça

tem medo da rua da cadeia

foge pela mata de claudionor

Page 18: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

ritmo da chuva

no ritmo da chuva

a lata bate tambor

a manhã se torna

festa de ritmos

cadenciados

a chuva de verão

não sai do ritmo

Page 19: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

lição

bem cedo se aprende

com a chuva a lição

acordar é olhar a janela

para saber qual a estação

não adianta sentir frio

na época que faz verão

não adianta esperar sol

no dia em que chove assim

há na natureza algo para além

da lógica racional da mente

esperar da estação o certo

é o que se deve aprender

Page 20: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

saudade de pedra

as pedras da escadaria de santa rita

na cidade do meu interior

saíram dos rios

bem do fundo dos rios

os mesmos rios que hoje correm

miúdos feito tempo bom

nos rios as pedras rolavam para o mar

o absoluto mar do tempo

mas hoje estão incrustradas

na história da cidade

uma a uma amordaçadas

como um colar para santa rita

as pedras estão com saudade

da viagem do fundo do rio

para o absoluto do mar

quando chove no verão

as pedras transpiram

saudade de marejar

Serro 29-12-2010

Page 21: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

vasto

o passado é marca eterna

gravado feito marreta

na pedra sabão

o passado não se esquece

deixado feito trombeta

é gravação

o passado é pasto

vasto

Page 22: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

preciso

o futuro é jeito de corpo

que ainda não se deu

talvez nem se dê

impreciso

Page 23: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

o templo do mar

quando o sol bate antes de quebrar

a onda em mosaico de gotas

eu ouço a voz

de dentro

o mar é um templo

onde o tempo

cala

a fala

quando o pé ainda não encontrou o solo

do mar em apoio forte e o tempo

gravita entre o bem e o mal estar

de sempre

o mar é tempo

silêncio de templo

fala

e cala

arraial d’ajuda, 17-01-2011

Page 24: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

hibisco

a abelha percorre suas veias

as formigas sobem e descem

o beija-flor apaixonado

jura volta breve

hibiscos de tantos cores

amarelo

vermelho

cor-de-rosa

flor de praia

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sabiá

num canto de terra

entre o mar e outro mar

ele eleva sua voz

em alto tom

dissipa o som

por lados tantos

me perco em sua mensagem

musical

o sabiá canta

encanta

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pitinga

recifes cercam as ondas

até ali perto

depois é mar aberto

em pitinga

há rastafári

voo de ultraleve

contemplo

apenas

o movimento da praia

é maré que doa vida

aos de dentro

aos de fora

Page 27: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

quilombo

o gato tem nome

de terra vasta

esconderijo

chama-se quilombo

e rola na areia da praia

arredio

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retirantes

quando a maré sobe

os retirantes sedentos

voltam para ver

o que veio

o mar traz água nova

apesar de ser o fim

dos rios

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casa triste

tudo era triste naquela casa

até o vento que passava pelos corredores

escorria pelas janelas sem graça

arrepiava os pelos do cachorro

em fim de tarde na escada inacabada

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aguardo

enquanto a nuvem não arruma a chuva

esquento a memória que me trai

mas não atrai sua presença

enquanto o avião parado aguarda a hora

dependo do tempo para lhe rever

mas não posso sair por aí

desatinando

desatinado

destino

destinando

Page 31: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

atraição

ainda nem me recompunha

da perda

da vida

veio outra venda ocular

vedando

o olhar

não sei o motivo do amor

ser galopante

tão empolgante

ainda não sei o que opunha

de fato

no ato

o amor simplesmente chegou

fraco e oco

bobo e tolo

era ele de novo

eu sabia

apenas não o queria

Page 32: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

silêncio é razão

por certo não quero

mas meu querer está frágil

ando querendo que outros

queiram por mim

para que eu me deixe em paz

por medo quero apenas razões

para concordar e ser ágil

não quero controvérsia

deixem em mim

apenas eu em paz de mim

Page 33: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

missão do absoluto mar

em trancoso o mar recebe o rio

deixa-o viver em paz na maré baixa

mas quando vem a volta da lua

o mar quer apenas invadir

e se lança nos mangues

desperta os caranguejos

meche com as raízes

bem fundo

depois vai embora deixando o suor

salgado sabor pela margem do rio

recuando diante do todo poderoso

mar absoluto que tudo pode

pois mesmo na ira da invasão

leva vida que sobe pelo rio

depois se despede mansinho

cumpridor de sua missão

o absoluto tem missões

que só o mar expressa

Page 34: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

coisas

as coisas tem forma

estrutura

peso

norma

há nas coisas coisas tantas

significadas em instâncias

como a boa e doce melancia

tem sementes nas entrâncias

as coisas tem peso

caimento

subimento

elo

há nas coisas tantas coisas

revestidas de palavras doidas

como o maluco que tem boina

para o vazio da cachola

as coisas tem cheiro

apodrecimento

florescimento

inteiro

há nas coisas tempos longos

enchidos de vida em pompa

como o talher de família santa

passa de bisavó para filha em lembrança

Page 35: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

temporada

o tempo volta

a dar voltas

soltas

rodopios tontos

pontos prontos

tantos

o tempo

erra

parado

o tempo

vela

vagado

o tempo vai

em dor e ai

paz

Page 36: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

a qualquer custo

hoje não quis assistir ao jornal

a televisão estava carregada de outras coisas

preferi olhar para dentro e sentir o vento terno

do fim de tarde encontrando a noite inicial mais uma vez

hoje não quis me vestir de bem e mal

deixei a verdade da idade gritar e pronto

caído em algum canto da sensibilidade agradeci

o fim do dia precipitado em noite que o tempo me fez

hoje não quis o barulho brutal

esqueci-me da zueira do mundo em volta

optei por deixar as palavras soltas feito nuvens

no fim de tarde resgatando da noite sua insensatez

hoje não deixei o tempo passar

eu o prendi dentro da liberdade

de fazer o meu tempo na minha vida

mais uma vez a saída para me encontrar

[eu me encontro agora

dentro de mim e não me chamem

poderei evitar o ruído externo

a qualquer custo]

Page 37: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

natureza

jogar o chapéu

bem perto

de algo

que seja ao léu

deixar a onda

discreta

apagar

quem me ronda

subir a montanha

rápido

afagar

a nuvem tamanha

Page 38: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

antes

antes de mim

eu era distração

agora que sou

me faço invenção

antes de mim

eu fui percepção

agora que estou

me faço evolução

Page 39: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

rastro de chuva

a chuva passa pelo dia

deixa rastros fortes

na folha verde

em mim

a chuva não ultrapassa

a janela do quarto

apenas da mente

enfim

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além existo

a alma pulsa para além

no sofrimento

não se contenta

deseja remédio

a alma sabe mais de tudo

que eu sabendo do pouco

cravado na memória

da vida curta

a alma não resolve

apenas recolhe do tempo

o necessário para se libertar

rapidamente

a alma deseja sair de mim

para ser eu mesmo

o mais profundo

resiste ali

a alma sabe de mim

mais que de mim o corpo

o corpo é um oco passageiro

a alma sabe do cheiro do todo

Page 41: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

sossego

se sobra tempo

divago

se falta tempo

calo

o tempo some

entre uma olhada

e outra

atrapalhada

o tempo não falta

se durmo

é que o corpo

dói estar no mundo

quero apenas ausência

mas ela está para além

muito para além de mim

no tempo

o tempo corre

não pego

o tempo morre

sossego

Page 42: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

azia

o vulcão interior

ferve o humor

a fogueira queima

alastra dor

a garganta sofre

pede socorro

o estômago revolta

arregala o olho

azia

Page 43: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

gota de tempo

dentro da gota d’água

o vapor

o calor

a nuvem inicial

na gota d’água

o passado

o futuro

o mundo primordial

a gota d’água

é memória

é história

do mar abismal

eu tenho gotas d’água em mim

por isso vivo em função da paixão

do tempo escorrido na mão

na história única da encarnação

Page 44: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

de nada serviu

por entre as veias do corpo

há ainda um pouco do corte

do destino sangrando

por entre a brisa e o calor

há misturado um quê de sorte

do destino desatado

você não serviu para nada

nem para palpitar o coração

na varanda da saudade

[o que se foi foi tarde

na brisa fraca da saudade]

Page 45: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

eu sei

o vento entre os dedos

não melhora o medo

tenho fome do segredo

não contado cedo

foi paixão, eu sei...

daquelas de sótão e porão, eu sei...

Page 46: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

futilidade

o dia trouxe apenas fantasia

coisa inútil brota

depois desbrota sem raiz

ao fim das horas

o dia trouxe apenas ilusão

coisa fútil entorta

depois desentorta em mim

o orgulho de sobra

Page 47: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

grandeza

nunca tive em mim profundidade

mesmo no abismo infinito

da dor

nunca tive em mim romanticidade

mesmo no cinismo esquisito

do amor

sou apenas um vulto

sem sombra alongada

sou apenas um pouco

sem pretensão de imensidade

Page 48: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

intervalo

não sofro entre o banho

e o jantar

nem entre o almoço

e o voltar

para trabalhar

sofro quando a noite

vai afundar em saudade

num tempo tão amplo

que me perco

e perder-se é sofrer

me perco

sofro

entre dois horários certos

não há tormento

a certeza impede o tédio

Page 49: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

o depois é saudade

antes da saudade

apenas o beijo

a lembrança

dos lábios

é depois

o depois é saudade

multiplicação da ausência

dos lábios em memória

que se apaga

quer se renovar

não pode

o depois é saudade

Page 50: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

equilibrado

acordei e fui para o jardim

não encontrei nenhuma rejeição

na luta entre as flores e as formigas

joguei água sobre a terra

nem me paralisei diante da secura

necessária para uma nova era

o ar estava tão leve

o silêncio tão profundo e fértil

nasci no novo dia renovado

equilibrado entre o bem o mal

que há dentro e fora de mim

ainda sem luz para ser total

respeitando a fisionomia do mundo

repleto de acidentes de percurso

eu não quero ser bruto

o dia me devolveu o equilíbrio

em forma de som de passarinho

em mim escutei o roçar das asas

o dia amanhecei no outono iluminado

não por que o sol está mais claro e forte

mas simplesmente por que eu estou assim

equilibrado

na corda bamba

do sim ou do não

Page 51: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

resta um

resta um

eu mesmo

na tarde

na noite

basta um

seu medo

corro longe

quase dor

fica um

remendo

na hora

do amor

o medo de desamar

me afasta de você

o medo de afastar

termina em mim

resta um

eu mesmo

amargo

vazio

resta um

eu mesmo

apenas

um

mesmo

Page 52: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

jaz?

o sopro de dentro

para o mundo é alento

a fúria de sempre

para o mundo é defeito

o amor inspira

e o mundo respira

o ódio destrói

a frágil ponte entre nós

quanta diferença

entre cada um de nós

num mundo tão feroz

e você o que faz?

jaz?

vivaz?

Page 53: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

transição

devagar o dia some

poeira de horas

varridas pela noite

outra coisa entre o dia

e outro dia

perpetuar o dia impossível

passa breve ou rápido

vira outra coisa sem sol

quando em lua a noite

fere o dia

Page 54: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

por cima

por cima das nuvens do dia pleno

por trás do branco fundo

um verso escondido prestes a cair

bem em cima da folha pálida em silêncio

o verso não vai escorrer pelo telhado

nem vai chegar com barulho de tempestade

virá manso como os herdeiros da terra

para se colocar diante do antigo nada da folha

onde era nuvem

agora é poesia

onde restava eu

agora sou eu mesmo

vivo a poesia

dos dias belos

e dos dias feios

Page 55: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

por todos os lados

ainda haja saudade

ainda na insistência da mágoa

prefiro o amor puro

de puro amar

ainda na fotografia velha

resta a emoção do instante

não vou procurar pelo não vivido

me contento agora com estar sendo

livre e para sempre

um passado escrito

repleto de futuros

à frente

por todos os lados

que cabem a sensibilidade

Page 56: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

violação

o coração não enxuga

ele não é areia de deserto

de amar vivo imundo

em água de paixão

não dou voltas na solidão

encaro-a de frente rebelde

de amar torturo os puros

meu amor é violação

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vulcão

se querer é ausência em desejo

ardo em medo de arder mais

por causa da falta de seus braços

e nas horas vagas seus abraços

meu querer não faz o mundo girar

muito menos o corpo amado

como um móbile alienígena

diante de mim ficar

o querer é mais que sou

foge ás cadeias de dentro

explode feito vulcão

nas horas mais impróprias

como agora

como sempre

Page 58: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

florido

é no sorriso

me perco entre os dentes

da boca

é no florido

me deixo entre as rosas

da janela

é no conflito

me faço entre as dores

da alma

é no cochicho

me ouço entre os versos

da folha

vazio é antes

depois esvazio

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refluxo

o suor rola nas costas do homem

para por ali mesmo

não vai longe

estaciona

ao mar vão apenas os grandes rios

vertem por si mesmos

para se represar

eternamente

serei eu fluxo

ou refluxo?

Page 60: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

coxia

o som da palavra

nem antes depois também não

que havia?

sentido

depósito

frio de letras

em contraste?

além da palavra

nada há senão

vazio

além de mim

nada haverá

ido

conjuntos

infinitos

de idos

verbos e sujeitos

como eu...

Page 61: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

igual

o mundo me coube

não sei: até quando

há muito que me percebo

marginal

o mundo me ouve

não sei: até hoje?

há dias me sinto

igual

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haja coragem

cansado de encontrar

no fim do dia o mesmo

eu mesmo há muito feito

refeito e recozido

frágil a cada dia

desperto para isso

eu serei morto

há pouco

sei bem para onde vão

os sins e nãos

para o fim tumular

do silêncio

ensaio todos os dias

para o encontro fundo

entre eu mesmo

outro bom lado de tudo

mas é hora cedo

de deixar de lado

a coragem

[haja coragem]

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alheio cheiro

das boas passagens da vida

a melhor de todas

é a que volta em cheiro

de sabonete de hotel

ou de perfume alheio

[alheio sempre ao meu interior]

borbulhando em memória

de idos tempos outros

de tanto passado

que apenas sobrou

o que nem sabia que guardava

[alheio sempre ao meu baú]

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esperança é poesia

acho linda a poesia

não muda nada

nem ninguém

mas enfeita a tarde

acho bela a mania

dos intelectuais de hoje

como alguém

ceifando a esperança

os artistas são necessários

para clarear a tarde

os intelectuais não são

boas companhias para o por do sol

Page 65: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

a vizinha

a vizinha não gosta de roseiras

vai ver tem medo das besteiras

da juventude

a vizinha corta as floreiras

sei que ela tem saudade

dos amantes

a vizinha não gosta

daquilo que incomoda

como antes

as flores

as rosas

são amorosas

Page 66: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

espreme[dor]

vou espremer até o último verso

disso que agora sou um resto

vou defender meu último suspiro

como quem luta com ferido de tiro

eu quero até o resto de mim

jogado no mundo enfim

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ocultismo

ele me ensinou

cada palavra tem outras dentro

e afirmava – isso é sinal de talento

nunca acreditei na poesia das palavras ocultas

no remédio leio a caixa a receita e a bula

não confio no que vem em permuta

gosto da palavra exata

nem menos nem mais

abdico dos penduricalhos

que todo ocultismo traz

Page 68: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

santa de bronze da praça

a santa de bronze fica no alto da cidade

uns vão para um lado da praça

outros para o outro lado

a rua é mão e contramão

a praça destituída de beleza

incomum no bairro alto

tem cimento e pessoas

de fazer nada andando

uns fazem nome do pai

outros pedem um pai com nome

são meninos da periferia e do alto

eu os conheci desde sempre e agora

a praça é caminho para fora

as cidades em volta são outras

serviços vastos gentes tantas

asfalto até na porta

a praça tem uma santa de bronze

não tine nem retine sem badalo

está lá estacionada como a vida

das pessoas da praça morta

nossa senhora da conceição

toma seu bronze de manhã

e à tarde já dilatada

pede a deus o orvalho

o pardal de vez em quando virá

acredite, pois!

as asas abertas sobre seu manto

aliviará o sol na cabeça com asas de menino

Page 69: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

assim, assim...

depois da chuva

o pé-de-moleque amolece

mas não chega a escorregar

na boca da banguela

a cidade é calçada

contra os medos todos

mas não evita a assassina

calada da noite

a cidade tem crianças

tem velhos ainda infantes

gerações que de tão renovadas

reinventam o mesmo de antes

[eu nasci ali

e fiquei assim assim

com medo da verdade

em mim]

Page 70: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

de pouco, palavra

o retrato do rosto

sou eu descomposto

nem sei bem quem a foto

colocou no meu bolso

passo a vida em encosto

tiro uma janela e ponho encanto

na reforma de dentro outro

continua posto

eu sou esse mesmo

de vário, nada

de muito, cada

de pouco, palavra

Page 71: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

como era amarela

a casa amarela tem ninguém dentro

só de vez em quando quando em muito

vem um casal que já foi jovem e hoje

visita a velha casa como velhinhos bons

a casa conta de cada ruga e de cada rusga

os móveis juntam poeira para contar das estações

o quintal tem goiabeira que me viu menino

e o sagrado coração de jesus já enxerga pouco

Page 72: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

boi, bois, depois

quando caio em tarde

me levanto em relógio

é o tempo ele sempre

resgatando o sorriso

de quem viveu vários anos

os anos passam a cada segundo

mas não penso em frações

penso apenas o tempo todo

como o que passou e se foi

numa corrida de bois

dessa porção do que não volta

é que sinto falta agora basta

o relógio indica futuro nada

é estático e vai se renovar

depois

Page 73: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

pincel

pincelado fui

sem poder opinar

na tela que ainda

sou eu e flui

passando tinta

não sei se pinta

coloração nova

a tela está quase pronta

cheia de riscos

plena de vícios

coberta de ciscos

eu sei, eu vejo

onde vai pousar

em cor e descor

em dor e amor

essa tela de ousar?

vou pintando, apenas

cenas e duras penas

Page 74: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

ziguezague

profundo o rio corre

nele não se morre à toa

rio é vida não morte

rio corre não corte

vai como vai o tempo

vai vai e volta

em chuva boa

da mata

o rio faz ziguezague

envolve o olho

fica no mapa

parado em disfarce

vai como o dia vai

vai vai e torna

em rua torta

da rota

Page 75: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

fotoolho

de dentro capto

o de fora rapto

rápido

ligeiro

fração de segundos

olho no olho

cor sensação

roubo o mundo

fotografo o ato

a coisa o que passa

o que fala e gesticula

prendo para sempre o fato

olho

fotografia

sou eu brincando

magia

Page 76: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

seis e trinta

seis e trinta

toca o despertador do celular

soneca de quinze minutos

seis e quarenta e cinco

toca o despertador do celular

soneca de dez minutos

seis e cinquenta e cinco

toca o despertador do celular

ainda bem que são seis e cinquenta e cinco

Page 77: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

nota tardia

pela janela do ônibus sobreponho

corredor interno e calçadas da rua

o relance mira o ambiente pleno

lá longe a nuvem esgota sua chance

de chover em fim de tarde seca

como se a vida dependesse dela

o bem te vi tentou roubar os olhos

no fio de alta tensão da cemig

mantive a concentração na poesia

de carlos drummond de andrade

sobre o colo com alguma poesia

Page 78: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

sopro de mar

passa a hora em salvação

não há pecado aqui

nem em cima nem em baixo

nem além do equador

pudera o tempo calar

desviar da tolice o ato

o banal fica eterno

preso às coisas

num sopro de mar

num sopro de mar

Page 79: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

grito de inferno

a ordem terceira do carmo se reunia

no mês de julho para comemorar o dia

frio intenso de pessoas com medo da morte

nossa senhora ajudava quem cria

os santos gritam em suas imagens

gritam inferno e punição

mesmo durante a liturgia

Page 80: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

fios de tricô

o fio de cabelo cai e não vai

quem tem rota é o humano

cabelo é ser estranho

na natureza do mundo

quantos fios pelo chão

emendados em tricô de horas

a colcha de retalhos dos restos

invade a cidade em tapete fúnebre

o fio de cabelo cai e não sai

livre em grito de alforria

cabelo é escravo orgânico

não sabe viver em palmares

Page 81: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

mão de mãe

como se não fosse quente sua mão

o tempo considerava

era quente e úmida e sentimental

como se não tivesse na mão

um bom dia uma boa noite

como se não existisse um laço

entre as mãos se afagando

o tempo esgota a sensação

mas não escreve a verdade

a verdade é mais funda

a verdade é nossa

Page 82: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

beatices

o melhor da procissão

era o bêbado em tentativa

de seguir a linha reta

das beatas

ou sussurrando em ré

o dobrado da banda

em dó

ou olhando para o chão

enquanto o padre

mostrava o céu

o melhor da procissão

era o bêbado

Page 83: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

mentira salutar

rumino sensação para o verso

encadeado em linha

uma debaixo

da outra

não alimento a dor do mundo

oponho o verso

resistência

aderência

ao verso cabe o inverso

a mentira salutar

hospital

funeral

Page 84: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

antes fosse

antes fosse o vazio

na linha

não o caminho

de dentro

falindo

antes fosse a fé

no espírito

não o egoísmo

de sempre

surgindo

antes fosse a alegria

na vida

não a hemorragia

da dor

emergindo

antes fosse o encontro

na esquina

não a desistência

do amor

suprimindo

antes fosse

coisa e palavra

apenas

fosse

antes

Page 85: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

dia repetido

dia repetido um depois do outro

tempo perdido?

ou aviso de mudança e destino

gritando no ouvido?

Page 86: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

por sobre as nuvens

por sobre as nuvens há colinas

tantas e várias e vastas

recolho entre elas calma

miro um horizonte para baixo

entre branco total com fundo de quintal

o âmbar das ruas veicula silêncio

as fibras óticas enterradas emitem palidez

diante das veias abertas das ruas em incandescente

iluminação de poste eu apenas sei de mim

por sobre as nuvens há colinas

Page 87: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

orvalho

de manhã o orvalho

ainda tem orgulho da noite

o sol decompõe a neblina

evapora o sentimento

o dia é calor de decisão

prefiro a noite

permanência de solidão

e orvalho

Page 88: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

guerra

o livro na estante

soldado enfileirado

na guerra

o livro restante

depois da leitura

condecorado

o livro sem leitor

dói em passado

desonrado

Page 89: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

a banda anda

a banda dobra a esquina

som de procissão eterna

cruza a cidade em reza

tem bumbo pratos contrabaixo

tem maestro clarinete trombone

silencia fundo

mulher homem

a banda não se perde

vai junto do coral de dona vilma

não entra na igreja

dá meia volta e cai no mundo

os músicos do interior

são inteiros

não precisam de deus

Page 90: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

bastardo

por hoje basta

emoção demais

desgasta

por agora fica

amor demais

irrita

para amanhã quero

mais do mesmo

inteiro

Page 91: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

o que são palavras?

a puta pariu

pariu a puta

puta a pariu

a pura partiu

partiu a pura

pura a partiu

a cura saiu

saiu a cura

cura a saiu

Page 92: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

noite em sonho

na extensa noite passada

perdi de mim um tempo

um vasto tempo outro

dado por inteiro em outro ponto

é o sonho

é o sono

adjetivos

de quem dorme

a noite passou válida

permaneço vivo ainda

sobre os escombros

das estruturas adormecidas

Page 93: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

pausa

domingo é dia de pausa

não que sinta necessidade de pausar a vida para recomeçar

sei muito bem que intensa como se dá não para e estaciona

domingo é dia de aula

outro tempo passando vago e divagado entre as pernas

ou o sol se imponto no outono como recurso de caminhada

domingo é dia de sair da jaula

a rotina não prende há uma permissão para ir e vir dentro

do meu dia lento ou rápido feito apenas para mim mesmo

domingo é dia bom

gosto de bombom em páscoa

Page 94: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

a praça

a árvore emoldura a praça

debaixo uma menina com outra criança no colo

calada passa a hora em sol que espalha silêncio

o beija-flor bem sabe que é hora de roubar da menina

o cheiro dos cabelos ainda molhados da noite em amor

da criança o som da alma que acaba de chegar de outro mundo

o dia se mistura na praça

Page 95: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

pernas de ladeira

do outro lado da cidade a periferia

se esquenta no sol da manhã ainda de outono

quando em frio e inverno é mais difícil

as mães tem medo do vento cortando a alma

os pássaros ainda não sabem da duração dos dias

de seca e de desamparo para seus filhotes

comemoram as penas no corpo miúdo

não há nota dissonante no sino batendo missas na matriz

não fosse o homem de pernas tortas vencendo a ladeira

acreditaria na vida após a morte

Page 96: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

terra boa

muitos bichos dormem dentro da terra

saíra é um deles

de cor verde e azul

brilhantes

as minhocas vivem no solo

quando chove forte

elas boiam

sedentas de aventura

os peixes vivem entre terras

as margens do rios e lagos

são apenas precipícios largos

para a vida se contorcer

dentro da terra há aconchego

e desassossego

o vulcão que cospe larva

sabe disso desde cedo

Page 97: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

se chamar, eu vou

se o amor tomar as mãos e guiar

mesmo pela escuridão

eu vou

se o amor roubar as horas

diante do relógio da santa rita

eu vou

se é amor não digo não

sim digo sim veloz

eu vou

se o amor me pedir silêncio do encontro

desde que haja gemidos noturnos

eu vou

se o amor quiser partir cedo demais

abro o destino novamente outro virá

eu vou

para o amor nunca fecho as portas

o vento é sempre o mais puro

se soprou, eu vou

Page 98: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

anterior[idade]

o antes nada é

senão possibilidade

de durante

e sempre depois

o antes da fotografia

é imagem na retina

foco interior

pois

o antes da música

é contagem de tempo

a linha de acerto

das notas

o antes do amor

é deserto de angústia

tempo perdido

nada

o antes da morte

é quando resta um

eu mesmo

pronto

Page 99: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

fundo da praia

para juninho, filho de eduardo

no contorno do fundo da praia

o bairro mais fundo do vale

encontro a casa velha

com muro de pedra sabão

a dona velha na janela

se veste de fumaça de fogão a lenha

quase ausente em dissipação

se mistura ao cheiro do feijão

se ela soubesse para além da fumaça

há um mundo outro tolo e sem graça

ficaria ali estática como quem amolece

diante do tempo pedindo uma prece

no fundo da praia

há situações estranhas

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rio miúdo

os rios escorrem pelas montanhas

não se encontram antes do mar

há um alinhamento perfeito entre eles

para molhar cada parte da cidade

todos são miudinhos

nascem logo ali num desencanto de nuvem

agarrada de medo no pico do itambé

[ela precisa chover

sabe

prefere a aventura de se escurecer

em raios]

Page 101: RESTA UM EU MESMO · a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue

ausência

falta silêncio

entre as expressões do medo

falta palavra

muda em pensamento

falta promessa

certa para quem vem depois

falta conversa

honesta sobre sentimento

ausência não compromete

apenas oferece tempo

para que o novo

se manifeste

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sujeira

ainda que torne o vento

eu não restarei incólume

a pele tem sujeiras

profundas

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o que fica resta

fica um corpo

depois do poema

um doido

depois da demência

resta um pobre

depois da doença

um amigo

depois da tristeza

fica o tempo

depois da ação

um flagelo

depois da usurpação

resta eu mesmo

depois da febre

um poema

depois da sede

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DANILO ARNALDO BRISKIEVICZ nasceu em

Serro, Minas Gerais, em 1972. Filósofo de formação,

poeta nas horas vagas e incertas, historiador por vocação,

fotógrafo por paixão à imagem. Publicou livros das áreas

em que dedica seu tempo e investigação.

Acesse: http://recantodasletras.uol.com.br/autores/doserro

POESIA

1993

Identidade

1994

Tonel da memória

2000

Oratório de versos

2002

300

2004

Chão de poemas De tudo e de amor

2008

O cheiro sem cheiro da

rosa sobre a mesa

2009

Transmutação

Maresia

Cotidiano Manhã

Tarde

Noite

Cem módulos Olhos de concreto

2010

O sopro do tempo no relógio do templo

/ Infância O sopro do tempo no relógio do templo

/ Adolescência

O sopro do tempo no relógio do templo

/ Maturidade Resíduo orgânico

Pulso tempo

Grão de tempo

Vazio Espelho

2011

Humano

Entre dois pontos da mesma vida Notícia

ANTOLOGIAS POÉTICAS

2009

Mares Diversos mar de versos Vozes da alma

2010

Textos seletos

2011 Versos luso-brasileiros

HISTÓRIA

2002 A arte da tipografia e seus periódicos

2007

A arte da crônica e suas anotações

FOTOGRAFIA

2008

Serro duas vezes

2009 Rostos 1998

Urbanometria

Cor do tempo

Interior sagrado Unicidade

2010

Luz interior

Linha do tempo Paris a vista

2011

Berna na hora certa

Bruxelas eterno som de domingo Amsterdam nos trilhos do tempo

Serro olhar

ORGANIZAÇÃO E REEDIÇÃO

2008

Memória sobre o Serro antigo / Dario

A. F. da Silva – 1924

2011 Álbum do Bicentenário 1714-1914