reprodução assistida

102
PUC DEPARTAMENTO DE DIREITO AS TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA E AS SUAS IMPLICAÇÕES NA ESFERA DA RESPONSABILIDADE CIVIL por GISELLE CRISTINA ALVES GIMENES ORIENTADOR: KÁTIA REGINA DA COSTA SILVA 2009.1 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO RUA MARQUÊS DE SÃO VICENTE, 225 - CEP 22453-900 RIO DE JANEIRO - BRASIL

Upload: rosa-negrini

Post on 26-Sep-2015

31 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Aspectos jurídicos da reprodução humana assistida.

TRANSCRIPT

  • PUC DEPARTAMENTO DE DIREITO

    AS TCNICAS DE REPRODUO HUMANA ASSISTIDA E AS SUAS IMPLICAES NA ESFERA

    DA RESPONSABILIDADE CIVIL

    por

    GISELLE CRISTINA ALVES GIMENES

    ORIENTADOR: KTIA REGINA DA COSTA SILVA

    2009.1

    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO DE JANEIRO

    RUA MARQUS DE SO VICENTE, 225 - CEP 22453-900

    RIO DE JANEIRO - BRASIL

  • AS TCNICAS DE REPRODUO HUMANA ASSISTIDA E AS SUAS IMPLICAES NA ESFERA

    DA RESPONSABILIDADE CIVIL

    por

    GISELLE CRISTINA ALVES GIMENES

    Monografia apresentada ao Departamento de Direito da Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) como requisito parcial para a obteno do Ttulo de Bacharel em Direito. Orientador(a): Ktia Regina da Costa Silva

    2009.1

  • Aos meus pais Jos Mrio e Maria Cristina.

    querida Vov Amlia.

    Aos meus irmos Joyce e Daniel.

    Ao meu namorado Ian Borges.

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo a Deus, por conceder a vida e tudo o que nela h. Aos meus pais, Jos Mrio e Maria Cristina, essenciais na minha formao, pelo amor, educao e incentivo de sempre. Vov Amlia pelas suas histrias e ateno. Aos meus irmos Joyce e Daniel por todo o apoio e amizade. Ao meu namorado Ian pelo seu estmulo, amor e companheirismo. Agradeo professora orientadora Ktia Regina da Costa Silva e professora e co-orientadora, Caitlin Sampaio, pelas experincias e conhecimentos que contriburam de modo singular produo desta monografia. Aos meus colegas e professores da PUC - Rio. Aos funcionrios do departamento. A todos os amigos e familiares que de uma forma ou de outra me estimularam e me ajudaram.

  • RESUMO

    O presente trabalho visa abordar o recente e polmico tema da

    Reproduo Humana Assistida sob o enfoque da Responsabilidade Civil.

    No atual contexto de transformao nas famlias, faz-se necessrio um

    dilogo entre as inovaes cientficas e a adequao jurdica dos

    comportamentos delas advindos. Ganha relevo, portanto, a reflexo do

    cabimento da responsabilidade civil neste locus. Cabe ao Direito dispor de

    mecanismos assecuratrios eficientes s relaes contratuais e

    extracontratuais firmadas entre as partes envolvidas nesse procedimento e a

    proteo da vida das futuras geraes.

    PALAVRAS-CHAVE

    Reproduo Humana Assistida, Responsabilidade Civil, Biodireito,

    Biotica, Filiao e Princpios Constitucionais.

  • 5

    SUMRIO

    INTRODUO ....................................................................................... 7

    CAPTULO I: BIODIREITO: SURGIMENTO DE UM NOVO

    RAMO JURDICO E PRINCPIOS QUE O ORIENTAM 1.1 - Histrico e Princpios da Biotica .................................................... 11 1.2 - Princpios Constitucionais ............................................................... 17

    1.2.1 - Dignidade da pessoa humana ..................................................... 17

    1.2.2 - Direito vida e existncia ....................................................... 19

    1.2.3 - Direito ao planejamento familiar ............................................... 21

    1.2.4 - O conflito entre princpios fundamentais ................................... 23

    CAPTULO II AS TCNICAS DE REPRODUO HUMANA

    ASSISTIDA (RHA)

    2.1 - Consideraes Iniciais ..................................................................... 25 2.2 - A Evoluo Histrica ....................................................................... 27 2.3 - As Tcnicas de Reproduo Humana Assistida ................................ 28

    2.3.1 - Inseminao artificial ................................................................ 28 2.3.2 - Transferncia Intratubria de Gametas (GIFT) ........................... 29

    2.3.3 - Fertilizao in vitro (FIVETE) ................................................... 29

    2.3.4 - Maternidade de Substituio ...................................................... 30

    2.4 - Aspectos Jurdicos da Reproduo Humana Assistida ...................... 31

  • 6

    CAPTULO III A RESPONSABILIDADE CIVIL

    3.1 - Noes Gerais .................................................................................. 34 3.2 - A Responsabilidade Subjetiva e Responsabilidade Objetiva ............ 37 3.3 - A Responsabilidade Profissional do Mdico .................................... 43

    3.3.1 - Natureza Jurdica ....................................................................... 43

    3.3.2 A relao com o Cdigo de Defesa do Consumidor .................. 45

    3.3.3 - O nus da Prova ........................................................................ 47

    CAPTULO IV A RESPONSABILIDADE CIVIL NA

    REPRODUO HUMANA ASSISTIDA

    4.1 - O consentimento livre e esclarecido ................................................. 50 4.2 - O sigilo profissional ......................................................................... 52 4.3 - A Responsabilidade Civil das Clnicas de Reproduo Assistida e dos Bancos de Depsito de Material Fertilizante ............................................ 54 4.4 - A Responsabilidade Civil perante os doadores e receptores ............. 59 4.5 - Existe Responsabilidade Civil por dano ao embrio in vitro? ........... 61

    CONCLUSO ......................................................................................... 67 BIBLIOGRAFIA ..................................................................................... 71 ANEXOS ................................................................................................. 74

  • 7

    INTRODUO

    O problema da esterilidade fez com que inmeras pesquisas e

    avanos cientficos fossem desenvolvidos. Contudo, esse grande

    desenvolvimento tecnolgico no campo da Reproduo Humana Assistida

    trouxe consigo reflexes e discusses sobre a importncia de haver normas

    jurdicas que orientassem estas questes.

    Podemos perceber que ainda falta uma legislao especfica para

    disciplinar estas condutas. Neste sentido, leciona Paulo Nader sobre a rea

    da atuao mdica.

    Dado o grande volume de casos levados aos tribunais e a conseqente formao jurisprudencial, alm da crescente produo doutrinria, o legislador dispe de elementos para editar um estatuto de responsabilidade civil destinado s atividades na rea da sade. H especialidades novas, como a da reproduo assistida, que ainda carecem de firmeza de orientao no campo da responsabilidade civil. 1

    Sem embargo, apesar desta carncia, no h como frear o avano

    tecnolgico e a utilizao destas tcnicas de reproduo artificial. Cada vez

    mais nossos tribunais ho de se deparar com questes atinentes

    responsabilidade civil em razo de usurios que, ao se sentirem lesados por

    ato do corpo mdico, recorrero ao Judicirio para ver ressarcido seu dano.

    Assim, torna-se necessrio regular esta atividade e solucionar os

    casos concretos. Enquanto no houver previso legal, cabe aos acadmicos

    de Direito vislumbrarem possveis solues.

    1 NADER, Paulo. Curso de Direito Civil. 1 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p.386

  • 8

    Estabelece o art. 4 da Lei de Introduo ao Cdigo Civil que quando

    a lei for omissa, o juiz decidir o caso de acordo com a analogia, os

    costumes e os princpios gerais de direito. Da mesma forma, o art. 126 do

    Cdigo de Processo Civil determina que o Juiz no se exime de sentenciar

    ou despachar, mesmo na hiptese de lacuna ou obscuridade da lei, e o

    julgamento da lide recorrer analogia, aos costumes e aos princpios

    gerais de direito.

    Coube a Rudolph Von Jhering, segundo Tnia da Silva Pereira,

    demonstrar que as regras jurdicas e as solues que consagram so

    essencialmente pelo fim prtico e pelo fim social das instituies.2

    Desta forma, em razo do fim prtico devemos observar os

    Princpios Gerais de Direito, bem como os Princpios da Biotica, que

    atuam como indicadores de uma opo pelo favorecimento de um

    determinado valor.3

    Isto ocorre, pois podemos nos deparar com situaes que geram

    questionamentos sobre como agir no mundo dos fatos. Por exemplo, teria o

    nascido da doao de gametas o direito de conhecer seus pais biolgicos? E

    nesse caso, haveria alguma relao civil com sua famlia biolgica? Teria

    direito herana? Haveria algum direito civil do pr-embrio congelado em

    laboratrio, como se nascituro fosse?

    Essas questes e muitas outras permanecem sem resposta. Este

    trabalho no visa solucionar a todas elas, mas se debrua sobre um tema

    que essencial para a construo de uma soluo jurdica adequada: a

    responsabilizao daqueles que realizam as tcnicas de Reproduo

    2 PEREIRA, Tnia da Silva. O melhor interesse da criana: um debate interdisciplinar. Rio de Janeiro/So Paulo: Renovar, 2000. p.23 3 Ibid. p.25.

  • 9

    Assistida e a garantia de que a pessoa nascida das referidas tcnicas tenha

    seus direitos e a dignidade da pessoa humana respeitados.

    Apesar de todos os casos estudados envolverem questes muito

    delicadas e sentimentos profundos, o objetivo deste trabalho no analisar

    questes religiosas, ticas, de comportamento ou psicolgicas, mas sim

    focar no ponto de vista jurdico.

    O mundo cientfico evoluiu de to maneira que o direito no

    conseguiu acompanhar e nossa inteno , desta forma, trazer tona esses

    questionamentos e dvidas, na busca de um caminho que possa levar a

    algumas solues condizentes com os dias atuais.

    Diante de todo o exposto, surge uma pergunta chave: a reproduo

    assistida serve dignidade do homem ou conspira para a desumanizao? O

    que esta em jogo a vida humana cujo valor e dignidade no podem ser

    ignorados por ningum.4 Vale a pena refletirmos com algumas palavras do

    filsofo Schopenhauer:

    Queixamo-nos de que vivemos na ignorncia, incapazes de

    entender a relao entre todos os fatos da existncia, e em particular, a relao entre nossa existncia particular e o todo da existncia. No apenas a vida curta, mas nosso conhecimento dela drasticamente limitado. 5

    Para chegarmos a uma resposta, trilhamos o caminho do Biodireito,

    um novo ramo da cincia jurdica que deve pautar-se nos princpios da

    Biotica e nos princpios constitucionais, at alcanarmos o objetivo

    primordial que a situao jurdica do relacionamento mdico-paciente na

    atual conjuntura.

    4 BOLZAN, Alejandro D. Reproduo Humana Assistida e dignidade humana. So Paulo: Paulinas, 1998, p.7 5 SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre a coisa em si e a aparncia In: Strathern, Paul. Schopenhauer em 90 minutos.

  • 10

    Ao longo do trabalho, sero discutidos alguns tpicos que ajudam a

    explicar o surgimento das novas tcnicas de reproduo humana, e os

    fatores que podem facilitar o desenvolvimento de uma prtica responsvel e

    consciente. Sero enfatizados alguns aspectos do Direito de Famlia que

    tiveram grande impacto no que diz respeito filiao e presuno de

    paternidade.

    Exaustiva pesquisa de jurisprudncia ser realizada com a finalidade

    nica de identificar o posicionamento de nossos Tribunais sobre a

    responsabilidade dos mdicos e das Clnicas. perfeitamente normal a

    constatao de que o nmero de processos de responsabilidade siga uma

    curva de crescimento paralela do progresso cientfico e do aumento das

    curas que ele produz.

    O objetivo principal deste trabalho trazer em linhas gerais algumas

    questes relevantes de interesse para pacientes, mdicos e operadores de

    Direito. Esperamos mesmo com a singeleza da presente dissertao, dar

    uma contribuio, por mnima que seja, ao estudo da Responsabilidade

    Civil, a fim de possibilitar uma melhor atuao jurisdicional nas demandas

    que envolvam as tcnicas de reproduo humana assistida.

  • 11

    CAPTULO I BIODIREITO: SURGIMENTO DE UM NOVO RAMO JURDICO E PRINCPIOS QUE O ORIENTAM.

    1.1 HISTRICO E PRINCPIOS DA BIOTICA

    A temtica que desafia a reflexo filosfica e jurdica no sculo XXI

    relaciona-se com a questo da vida humana. Trata-se de saber at que ponto

    as cincias da vida, especificamente as tecnologias, alteram a natureza da

    vida humana e seus reflexos na sociedade.

    O sculo que ora finda foi marcado principalmente por trs mega

    projetos. Primeiro foi o projeto Manhatan, que descobriu e utilizou a

    energia nuclear bem como produziu a bomba atmica que destruiu

    Hiroshima e Nagasaki(1945), pondo fim II Guerra Mundial. O segundo

    grande marco foi o projeto Apollo cuja data smbolo o primeiro passo do

    homem na Lua (1969) e que jogou o ser humano no corao do cosmos. O

    terceiro e mais recente o Projeto Genoma Humano que teve comeo no

    incio dos anos 90. Esta ltima descoberta leva o ser humano ao mais

    profundo de si mesmo em nvel de conhecimento de sua herana biolgica,

    numa incessante busca de respostas atravs dos genes.6

    Olhando retrospectivamente, possvel observar como herana, no

    apenas transtornos e destruies causados por guerras mundiais, mas o

    triunfo da revoluo biotecnolgica e da fisso nuclear, a possibilidade de

    transformao do patrimnio gentico, e o crescente poder tecnolgico

    sobre o corpo e a mente. Neste contexto, se faz necessrio impor limites 6 PESSINI, Leo. Fundamentos da BIOTICA. So Paulo, 3 ed. So Paulo: Paulus, 2005. p.5

  • 12

    atuao humana, num ambiente de dilogo livre e respeitoso, em sadia

    qualidade de vida e dignidade da pessoa humana atravs das pautas

    indicadas pela biotica e pelo biodireito. 7

    De acordo com a Encyclopedia of bioethics Biotica um

    neologismo derivado das palavras gregas bios(vida) e ethike( tica). Pode-

    se defini-la como o estudo sistemtico das dimenses moraisincluindo

    viso, deciso, conduta e normas morais das cincias da vida e da sade,

    utilizando uma variedade de metodologias ticas num contexto

    interdisciplinar. 8

    importante mencionar a origem e evoluo cronolgica da

    biotica. O primeiro documento considerado como marco inicial foi o

    Cdigo de Nuremberg, elaborado em 1947, logo aps a Segunda Guerra

    Mundial, em decorrncia das atrocidades praticadas pelos mdicos nazistas

    em experincias com os seres humanos.

    Em seguida, o Relatrio Belmont foi oficialmente promulgado em

    1978. Tornou-se a declarao principialista clssica, no somente para a

    tica da experimentao humana, mas para a reflexo tica em geral. Por

    meio desse relatrio foi possvel identificar a proposta da comisso:

    articular trs princpios ticos, supostamente universais, que promoveriam

    as bases conceituais para a formulao, a crtica e a interpretao de

    dilemas morais envolvendo a pesquisa cientfica.9

    Em 1982, o Conselho da Europa elaborou a Recomendao n 934,

    que disps sobre os limites atividade de engenharia gentica,

    7 DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do biodireito. 2 ed. So Paulo: Saraiva, 2002. p.1 8 Encyclopedia of bioethics. Aput: PESSINI, Leo. Problemas atuais de Biotica. 6 edio. So Paulo, 2002. p.32 9 DINIZ, Debora ; Guilhem, Dirce. O que Biotica. So Paulo:brasiliense, 2002. p.22

  • 13

    estabelecendo que cada pas deve exercer um efetivo controle pblico sobre

    as pesquisas genticas, principalmente no tocante manipulao de genes.

    Em 1995, o Brasil promulgou a Lei de Biossegurana ( Lei n

    8.974/95), regulamentando os incisos II e V do pargrafo 1 do artigo 225

    da Constituio Federal, estabelecendo normas para o uso das tcnicas de

    engenharia gentica e liberao no meio ambiente de organismos

    geneticamente modificados(OGM) e autorizando o Poder Pblico a criar a

    Comisso Tcnica Nacional de Biossegurana (CTNBio).

    Ainda em 1996, no Brasil, o Conselho Nacional de Sade, rgo do

    Ministrio da Sade, elaborou a Resoluo n196/96, estabelecendo nveis

    de risco e fornecendo orientaes normativas para a boa conduta tica e de

    segurana a serem observadas nas pesquisas de sade envolvendo seres

    humanos.

    Em 1997 a Declarao Universal do Genoma Humano e dos Direitos

    Humanos demonstrou claramente a preocupao dos cientistas de todo o

    mundo em proteger o homem da explorao comercial. 10

    As principais caractersticas da biotica segundo Leo Pessini so:

    ser uma cincia da qual o homem sujeito e no somente objeto; ter

    como critrios: a beneficncia, a autonomia e a justia - a chamada trindade biotica _ cuja articulao assenta-se no trip, nem sempre harmonioso: mdico (pela beneficncia), paciente (pela autonomia) e a sociedade (pela justia). 11 O princpio da autonomia estabelece que, cada ser humano tem

    direito de escolha e deciso sobre sua prpria vida, bem como sobre as

    atividades que impliquem alteraes em sua condio de sade fsica ou

    mental. Assim, requer que o profissional da sade respeite a vontade do

    10 FERNANDES, Silvia da Cunha. As Tcnicas de Reproduo Humana Assistida e a Necessidade de sua Regulamentao Jurdica.Rio de Janeiro:Renovar, 2005. p.10-12 11 PESSINI, Leo. Fundamentos da BIOTICA. 3 ed. So Paulo: Paulus, 2005, p.5

  • 14

    paciente, ou de seu representante, em razo de seus valores morais e

    crenas religiosas.

    Desse princpio decorre a exigncia do consentimento livre e

    informado e a maneira de como tomar decises de substituio quando uma

    pessoa for incompetente ou incapaz.

    O princpio da beneficncia requer o atendimento por parte do

    mdico ou do geneticista aos mais importantes interesses das pessoas

    envolvidas nas prticas biomdicas ou mdicas. Neste sentido so

    formuladas duas regras como expresses complementares dos atos de

    beneficncia: maximizar os benefcios e minimizar os possveis riscos e no

    causar dano.12

    O princpio da justia entendido como a imparcialidade na

    distribuio dos riscos e benefcios, no que atina prtica mdica pelos

    profissionais da sade, pois os iguais devero ser tratados igualmente.

    O princpio da no-maleficncia um desdobramento do da

    beneficncia, por conter a obrigao de no acarretar dano intencional e por

    derivar da mxima da tica mdica: primium nom nocere 13. Tal princpio,

    encontra-se intimamente ligado ao juramento de Hipcrates, o qual afirma:

    "aplicarei os regimes para o bem dos doentes, segundo o meu saber e a

    minha razo, e nunca para prejudicar ou fazer o mal a quem quer que

    seja".

    Desta forma, a Biotica deve pautar-se num conjunto de pesquisas e

    prticas multidisciplinares, para que possa ir ao encontro de respostas para

    as indagaes formuladas em face dos avanos das cincias e tecnologias.

    12 PESSINI, Leo; BARCHIFONTAINE, Christian. Problemas atuais de Biotica. 6 ed. So Paulo: Loyola, 2002. p.46. 13 DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do biodireito. 2 ed. So Paulo: Saraiva, 2002 p.

  • 15

    Nesse contexto, surge o Biodireto, novo ramo da cincia jurdica,

    que tem por objeto a anlise, a partir de seus princpios, normas e

    metodologias, das mltiplas relaes que encontram-se vinculadas ao incio

    da vida, ao seu transcurso e ao seu fim. 14

    O Biodireito o conjunto de regras jurdicas j positivadas que

    visam estabelecer a obrigatoriedade de observncia dos mandamentos

    bioticos, voltados a impor ou proibir uma conduta mdico-cientfica, e, ao

    mesmo tempo, a discusso sobre a adequao - necessidade de ampliao

    ou restrio- desta legislao.

    Para Francisco Amaral, o Biodireito nada mais do que um frtil

    processo de mudanas jurdicas, impostas pelos problemas da sociedade

    tecnolgica, que tornou extremamente complexo o relacionamento social e

    imps crescentes desafios s estruturas herdadas do sculo XIX. A resposta

    a esses desafios exige dos juristas e, particularmente, dos atuais civilistas,

    um esforo de reflexo profunda que lhes permita, a partir do conhecimento

    do direito brasileiro na sua origem e evoluo, elaborar novos modelos que

    atendam s necessidades crescentes da sociedade contempornea. 15

    Conforme elucida o mestre Caio Mrio da Silva Pereira, a cincia biolgica tem estreita relao com o mundo jurdico:

    Quando a cincia biolgica anuncia processo de inseminao artificial, para proporcionar a gestao sem o pressuposto fisiolgico das relaes sexuais, uma srie de implicaes jurdicas eclode, como seja a indagao da legitimidade do filho, a necessidade de autorizao da mulher, a anuncia do marido, o registro do filho, afora o problema da inseminao contra a vontade de qualquer dos cnjuges, ou a sua realizao sem o conhecimento do fato por algum deles, ou a necessidade de reconhecimento ou declarao da paternidade.

    Estudos recentes na Doutrina Brasileira enfrentam com coragem aspectos

    jurdicos relevantes relativos ao tema. A ausncia de uma regulamentao legal impe o desafio ao jurista de participar das avaliaes cientficas indicando os

    14 PDUA, Amlia do Rosrio Motta de. Responsabilidade Civil na reproduo Assistida. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p.49 15 AMARAL, Francisco. A viso do Biodireito. In: Anais do Encontro Regional do Simpsio de Biotica e Biodireito. 1997, p.12

  • 16

    elementos tico-jurdicos que devero orientar a pesquisa. No deve ser ele, apenas, um mero elaborador de normas proibitivas..16

    Na viso de Caio Mrio, se de um lado as tcnicas de reproduo

    humana assistida confrontam os conceitos de incio da vida e da sua

    proteo jurdica, de outro os transplantes de rgos e tecidos e a

    possibilidade de prolongamento da vida colocaram em cheque o conceito

    morte.

    Ser preciso buscar um ponto de equilbrio entre duas posies

    antitticas: proibio total de qualquer atividade biomdica, que traria uma

    radical freada no processo cientfico, ou permissividade plena, que geraria

    insanveis prejuzos ao ser humano e humanidade.

    O surgimento dessas situaes faz com que o biodireito, pouco a

    pouco, se afirme, reunindo doutrina, legislao e jurisprudncia prprias,

    regulando a conduta humana tendo em vista os avanos da biotecnologia e

    da biomedicina.

    Cabe ao direito, por meio da lei, definir a ordem social, na medida

    em que dispe dos meios prprios e adequados para que essa ordem seja

    respeitada. Contudo, em alguns casos essa significao dificultada porque

    certos princpios estruturais do direito so fundados na representao

    implcita do destino biolgico do homem como a indisponibilidade do

    corpo ou a fronteira entre as pessoas e as coisas, o que no mais

    fundamentalmente ajustvel como o novo domnio do homem sobre os

    seres humanos. 17

    16 PEREIRA,Caio Mrio da Silva. Instituies de Direito Civil. Vol. V. 16 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. pg.9 17 Ibid.

  • 17

    Considerando que a maioria dos fatos a serem regulamentados pelo

    biodireito indita, ou seja, no cogitados pelo ordenamento em sua

    formulao original, torna-se necessria a constante observncia dos

    princpios vigentes, preservando-se os valores escolhidos pela sociedade.

    Os princpios constitucionais compreendem os valores primordiais

    de nossa sociedade, demonstrando, em sua maioria, direitos fundamentais

    do homem como o direito vida e existncia. Por sua natureza os

    princpios constitucionais devem constituir os princpios do biodireito. Em

    conseqncia, no podero as regras de biodireito preterir esses princpios.

    1.2 PRINCPIOS CONTITUCIONAIS

    1.2.1 PRINCPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

    Em se tratando de reproduo humana assistida, no podemos perder

    de vista um dos princpios bsicos do direito: o da dignidade da pessoa

    humana, consagrado no texto da Constituio Federal, em seu art. 1, III, o

    qual sempre dever servir de base para a utilizao de qualquer das tcnicas

    de reproduo artificial.

    O respeito dignidade da pessoa humana tornou-se um comando

    jurdico no Brasil com o advento da Constituio Federal de 1988. Aps

    mais de duas dcadas de ditadura sob o regime militar, a Constituio

    explicitou a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da

    Repblica. Isto significa dizer que o valor da dignidade alcana todos os

    setores da ordem jurdica.18

    18MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos Pessoa Humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 82 128.

  • 18

    O fundamento material da dignidade pode ser desdobrado em quatro

    postulados: o sujeito moral reconhece a existncia dos outros como sujeitos

    iguais a ele; merecedores do mesmo respeito integridade psicofsica de

    que titular; dotado de vontade livre; e parte do grupo social. E so base

    da dignidade os princpios da igualdade, da integridade psicofsica, da

    liberdade e da solidariedade.19

    O fundamento jurdico da dignidade humana manifesta-se no

    princpio da igualdade, isto , no direito de no receber tratamento

    discriminatrio, no direito de ter direitos iguais aos de todos os demais,

    conhecida como igualdade formal. Existe tambm a igualdade

    substancial, cuja medida prev a necessidade de tratar as pessoas, quando

    desiguais em conformidade com sua desigualdade.

    Na tutela da integridade psicofsica esto tradicionalmente

    protegidos o direito de no ser torturado e o de ser titular de certas garantias

    penais. No entanto, na esfera cvel, a integridade psicofsica vem servindo a

    garantir numerosos direitos da personalidade, instituindo hoje o que se

    poderia entender como um amplssimo direito sade, compreendida esta

    como bem-estar psicofsico e social. 20

    Atualmente, as maiores perplexidades em torno do tema dizem

    respeito ao extraordinrio desenvolvimento da biotecnologia e s suas

    conseqncias sobre a esfera psicofsica do ser humano.

    O princpio da liberdade individual se consubstancia, cada vez mais,

    numa perspectiva de privacidade, de intimidade, de exerccio da vida

    privada. Liberdade significa hoje poder realizar, sem interferncias de

    19 Ibid. 20 Definio dada pela OMS Organizao Mundial de Sade

  • 19

    qualquer gnero, as prprias escolhas individuais, exercendo-as como

    melhor convier.

    Ao direito de liberdade da pessoa, porm, ser contraposto o dever

    de solidariedade social, identificado como um conjunto de instrumentos

    voltados para garantir uma existncia digna, comum a todos, em uma

    sociedade que se desenvolva como livre e justa, sem excludos ou

    marginalizados.

    Segundo Guilherme Nogueira da Gama:

    A dignidade , portanto, um valor prprio e extrapatrimonial da pessoa

    humana, especialmente no contexto do convvio na comunidade, como sujeito moral. No h dvida que todos os interesses tm como centro a pessoa humana, a qual o foco principal de qualquer poltica pblica ou pensamento, sendo imperioso harmonizar a dignidade da pessoa humana ao progresso cientfico e tecnolgico, porquanto este deve tender sempre a aprimorar e melhorar as condies e a qualidade de vida das pessoas humanas, e no o inverso.21

    Com base no pensamento de Immanuel Kant, nos termos do

    princpio da dignidade da pessoa humana, a pessoa nunca deve ser pensada

    como instrumento (ou meio), mas sempre como um fim.22

    1.2.2 DIREITO VIDA E EXISTNCIA

    O direito vida o mais fundamental da todos os direitos, j que se

    constitui em pr-requisito existncia e exerccio de todos os demais

    direitos. 23

    21 GAMA, Guilherme Nogueira da. A nova Filiao: o biodireito e as relaes parentais. Rio de Janeiro/ So Paulo: 2003. p.131. 22 Ibid. 23 DE MORAIS, Alexandre. Direito Constitucional. 15 ed. So Paulo: Atlas, 2004. p.65

  • 20

    notria a relao entre o princpio da dignidade da pessoa humana

    e o direito vida, considerando logicamente que para que haja dignidade

    reconhecida concretamente deve ser constatada a vida que, por sua vez,

    merece ser construda e desenvolvida com respeito, garantia e promoo da

    dignidade da pessoa.24

    Jos Afonso da Silva, na tentativa de definir o que se chama vida,

    afirma que sua riqueza significativa de difcil apreenso porque algo

    dinmico:

    mais um processo (processo vital), que se instaura com a concepo

    (ou germinao vegetal), transforma-se, progride, mantendo sua identidade, at que muda de qualidade, deixando, ento, de ser vida para ser morte. Tudo que interfere em prejuzo deste fluir espontneo e incessante contraria a vida.25 A tutela da vida humana tem incio na concepo nos termos do art.

    2 do Cdigo Civil, j que o nascituro, independentemente da anlise do

    incio da personalidade jurdica, um ser humano, merecedor de toda

    proteo que se lhe possa conferir. O aborto previsto como crime nos arts.

    124 a 128 do Cdigo Penal.

    A Constituio Federal proclama, portanto, o direito vida, cabendo

    ao Estado assegur-lo em sua dupla acepo, sendo a primeira relacionada

    ao direito de continuar vivo e a segunda de se ter vida digna quanto

    subsistncia. 26

    O direito existncia, por sua vez, o direito de no ter

    interrompido o processo vital seno pela morte espontnea e inevitvel. A

    vida humana bem indisponvel, nem o seu titular pode dela dispor.

    24Ibid. 25 DA SILVA, Jos Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24 ed. Malheiros Editores, 2005. p.197 26 Acrdo do Egrgio Tribunal de Justia, relatado pelo Desembargardor Renan Lotufo, in Cadernos de Direito Constitucional e Cincia Poltica

  • 21

    Existir o movimento espontneo contrrio ao estado de morte. Nas

    palavras de Jos Afonso da Silva: Consiste no direito de estar vivo, de

    lutar pelo viver, de defender a prpria vida, de permanecer vivo 27 Porque

    se assegura o direito vida, que a legislao penal pune todas as formas

    de interrupo violenta do processo vital, incluindo o aborto e a eutansia.

    1.2.4 DIREITO AO PLANEJAMENTO FAMILIAR

    A Carta Magna dispe, no art. 226 7, que o planejamento familiar

    livre deciso do casal, fundado nos princpios da dignidade da pessoa

    humana e da paternidade responsvel.

    A paternidade responsvel representa a assuno de deveres

    parentais em decorrncia dos resultados do exerccio dos direitos

    reprodutivos, mediante conjuno carnal ou com recurso a alguma tcnica

    reprodutiva.28

    Assim, o planejamento familiar, singelamente referido no cdigo

    civil artigo 1.565 2, um direito fundamental, e ao mesmo tempo

    constitui responsabilidades no campo das relaes de parentalidade-filiao.

    Essa responsabilidade se mostra vitalcia, vincula a pessoa a situaes

    jurdicas existenciais e patrimoniais relacionadas ao seu filho, sua

    descendncia.

    27 DA SILVA, Jos Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24 ed. Malheiros Editores, 2005. p.198. 28 GAMA, Guilherme Nogueira da. A nova Filiao: o biodireito e as relaes parentais. Rio de Janeiro, So Paulo. 2003. p.453

  • 22

    Se o casal reputa fundamental para a sua felicidade e harmonia

    familiar a constituio de prole, no h como negar a possibilidade do

    recurso s tcnicas reprodutivas.29Assim, dever do Estado, garantir

    aquelas pessoas pobres na acepo jurdica do termo o planejamento

    familiar nos termos da Lei n 9.263/1996 (Planejamento Familiar), bem

    como acesso s tcnicas de reproduo humana assistida s pessoas

    carentes que no tem condies de ter filho pelo procedimento natural de

    reproduo.

    Neste sentido, a Portaria n 426 30 de 22 de maro de 2005 do

    Ministrio da Sade, institui a Poltica Nacional de Ateno Integral em

    Reproduo Humana Assistida no mbito do SUS previsto na Constituio

    Federal de 1988 (Ttulo VIII, captulo II, seo II) e nas Leis 8.080/90 e

    8.142/90.

    Observa-se, portanto, que h no Brasil previso legal para que o

    Estado proporcione aos cidados o acesso aos recursos cientficos

    necessrios e disponveis a atender o direito de gerar filhos. Diante desse

    fato, alguns hospitais pblicos passaram a oferecer servios gratuitos de

    reproduo assistida, porm com capacidade limitada de atendimento,

    insuficiente para atender a demanda.

    Desta forma, muitas mulheres sem condies de arcar com as

    despesas de tratamento em clnicas particulares de infertilidade esto longe

    de se beneficiar das tcnicas modernas de reproduo assistida, tendo em

    vista as longas filas de espera nos centros pblicos que dispem do servio,

    como j observado, evidenciando que o princpio da igualdade na sade

    pblica brasileira no est atingindo aqueles que precisam ser vistos na sua

    individualidade.

    29 Ibid. 30 A ntegra desta Portaria encontra-se no anexo I desta obra.

  • 23

    1.2.4 O CONFLITO ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS

    possvel ocorrer coliso de princpios no momento da aplicao no

    caso concreto. Os conflitos de direitos fundamentais so espcies de

    antinomias normativas para Jane Reis Gonalves Pereira que assim as

    define: As antinomias so contradies entre normas que ocorrem quando estas

    atribuem conseqncias divergentes para uma mesma situao de fato, ou seja, quando, diante de um mesmo suposto ftico, encontramos no ordenamento comandos em sentidos opostos que no podem ser efetivados ao mesmo tempo.31

    Em geral, os conflitos de direito fundamental, s podem ser

    identificados no momento aplicativo, j que as normas que os consagram

    revelam-se compatveis em abstrato.

    Essa noo pode ser ilustrada com alguns exemplos. A utilizao de

    novas tcnicas de reproduo d origem ao polmico conflito entre o direito

    identidade gentica que um direito da personalidade e o direito ao

    anonimato do doador de material gentico.

    Havendo conflito entre livre expresso da atividade cientfica e outro

    direito fundamental da pessoa humana, a soluo ou o ponto de equilbrio

    dever ser o respeito dignidade humana, fundamento do Estado

    Democrtico de Direito, previsto no art. 1, III, da Constituio Federal. 32

    Neste sentido leciona Maria Helena Diniz:

    A Constituio Federal de 1988, em seu art. 5, IX, proclama a liberdade

    da atividade cientfica como um dos direitos fundamentais, mas isso no significa que ela seja absoluta e no contenha qualquer limitao, pois h outros valores e bens jurdicos reconhecidos constitucionalmente, como a vida, a integridade

    31 PEREIRA, Jane Reis Gonalves. Interpretao Constitucional e Direitos Fundamentais. So Paulo: Renovar, 2006. p.223 32 Ibid. P.7

  • 24

    fsica e psquica, a privacidade etc., que poderiam ser gravemente afetados pelo mau uso da liberdade de pesquisa cientfica. 33

    Uma forma de solucionar estes conflitos de princpios sopesar

    bens, valores, interesses e normas atravs da ponderao. Em sentido

    estrito, pode-se definir esta operao hermenutica como a tcnica de

    deciso pela qual o operador jurdico contrapesa, a partir de um juzo

    dialtico, os bens e interesses juridicamente protegidos.

    Se de um lado a existncia de princpios j consolidados facilita de

    algum modo o trabalho do legislador, do intrprete e do aplicador do

    biodireito, de outro, a diversidade da matria, sua extrema complexidade e

    sua larga abrangncia, sem dvida, vo lhe exigir profundo conhecimento

    da cincia e do sistema jurdico que podero fornecer elementos para

    solues mais adequadas. 34

    33 DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do biodireito. 2 ed. So Paulo: Saraiva, 2002. p.7 34 BARBOZA, Heloisa Helena, Princpios do Biodireito. IN. Novos temas de Biodireito e Biotica. Org. Heloisa Helena Barboza ET AL. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. P.49

  • 25

    CAPTULO II

    AS TCNICAS DE REPRODUO ASSISTIDA 2.1 CONSIDERAES INICIAIS

    A histria da humanidade sempre revelou uma intensa preocupao

    com a questo da fecundidade. Desde o incio das civilizaes a reproduo

    humana sempre foi um tema em destaque, devido necessidade do homem

    em dar seguimento descendncia familiar, de transmitir sua tradio, seu

    nome e seus valores.35

    Diante da busca de realizao do ser humano e at mesmo de

    cobranas sociais e religiosas foram sendo feitas ao longo do tempo

    pesquisas em vrios segmentos cientficos como a Medicina, Biologia e

    Gentica com o objetivo de encontrar uma soluo para o problema da

    infertilidade. 36

    A evoluo na medicina pode ser evidenciada tanto pelo advento

    das tcnicas de contracepo, que separam o exerccio sexual da procriao,

    como pelo das novas tecnologias conceptivas, que evidenciam a

    desvinculao total entre sexo e reproduo.

    Atualmente, o casal que deseja ter filhos e no consegue obter

    resultado atravs da reproduo natural pode recorrer a intervenes

    clnicas e/ ou cirrgicas, ou tcnicas de reproduo artificial, tambm

    chamadas de reproduo humana medicamente assistida.

    35 PDUA, Amlia do Rosrio Motta de. Responsabilidade Civil na reproduo Assistida. Rio de Janeiro: Lumen Jris, 2008. p.56. 36 Ibid.

  • 26

    Quanto ao meio de inseminao, as tcnicas se dividem em dois

    grupos. As intracorpreas otimizam o encontro dos gametas dentro do

    organismo feminino como a inseminao artificial e a Transferncia

    Intratubria de Gametas(GIFT) e as extracorpreas so tcnicas de

    ectognese, nas quais o encontro dos gametas feito no laboratrio, como a

    fertilizao in vitro e na maternidade por substituio.

    Classificando quanto origem do material reprodutivo, as tcnicas

    podem ser homloga (material procede do prprio casal que tem o projeto

    parental), heterloga (material reprodutivo doado) ou de mistura

    bisseminal (mistura-se partes do esperma do marido ou companheiro e

    partes do doador, devido a insuficincia de espermatozides na ejaculao).

    Segundo Maria Berenice Dias todos esses avanos ocasionaram

    uma reviravolta nos vnculos de filiao. Todo o antigo sistema de

    presunes da paternidade, da maternidade e da filiao entrou em

    runas.37

    Hodiernamente o parentesco no mantm, necessariamente,

    correspondncia com o vnculo consangneo. Cabe ao direito identificar o

    vnculo de parentesco entre pai e filho como sendo o que confere a este a

    posse de estado de filho e ao genitor as responsabilidades decorrentes do

    poder familiar.

    O Cdigo Civil no artigo 1.597 presume como concebidos na

    constncia do casamento os filhos: havidos por fecundao artificial

    homloga, mesmo que falecido o marido; a qualquer tempo, quando se

    tratar de embries excedentrios, decorrentes de concepo artificial

    homloga; e havidos por inseminao artificial heterloga, desde que exista

    prvia autorizao do marido.

    37 DIAS. Maria Berenice. Manual de Direito das Famlias. 4ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p.320

  • 27

    2.2 A EVOLUO HISTRICA DAS TCNICAS DE REPRODUO ASSISTIDA38

    A esterilidade humana sempre foi considerada como um grande

    problema e, por outro lado, a fertilidade sempre foi vista como uma bno,

    como uma forma de imortalidade.

    At o final do sculo XV, somente a mulher era considerada estril,

    sendo inconcebvel a admisso de esterilidade do homem. Somente no

    sculo XVII foi admitido que o homem tambm pudesse ser estril.

    No final do sculo XIX, pesquisadores concluram que a fertilizao

    se dava com a unio de um espermatozide com um vulo atravs da

    relao sexual.

    Somente no sculo XX, com o conhecimento mdico mais avanado,

    que foram realizadas grandes descobertas no campo da gentica e a

    dcada de 70 foi decisiva para a evoluo da reproduo artificial.

    Em 1953, os cientistas ingleses James B. Watson e Francis H. C.

    Crick descobriram a estrutura do DNA, descoberta esta considerada como o

    marco inicial da engenharia gentica.

    Entre 1970 e 1975, diversos cientistas realizaram estudos sobre a

    fertilizao in vitro com vulos humanos, mas foi no final da dcada de 70

    que o primeiro beb de proveta nasceu na Inglaterra. Aps numerosos

    estudos, o cientista R.G. Edwargs e sua equipe viram nascer, em 1978, no

    Oldham General Hospital, em Manchester, Louise Brown, o primeiro beb

    de proveta a vir luz na histria da humanidade. 38 FERNANDES, Silvia da Cunha Fernandes. As Tcnicas de Reproduo Humana Assistida e a Necessidade de sua regulamentao Jurdica. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 23.

  • 28

    Desde o nascimento do primeiro beb de proveta, a biomedicina e

    pouco a pouco, toda a sociedade vivenciaram uma mudana repentina,

    transcendental para muitos, com conseqncias ento imprevistas. que,

    embora sempre tenha havido casais estreis, atravs do desenvolvimento da

    fecundao in vitro e tcnicas afins, a resignao deu lugar esperana. 39

    Atualmente, para quase todos os tipos de esterilidade existe uma

    tcnica apropriada. A seguir discorreremos sobre as modalidades mais

    comuns de tcnicas de reproduo humana assistida.

    2.3 AS TCNICAS DE REPRODUO HUMANA ASSITIDA 2.3.1 INSEMINAO ARTIFICIAL

    Esta foi a primeira tcnica de reproduo humana que se teve

    notcia. um processo simples e de custo baixo que visa otimizar a

    gravidez e consiste na tentativa de fecundar uma mulher por via diferente

    da relao sexual, introduzindo smen no interior de seu aparelho

    reprodutor.

    O smen preparado e colocado dentro do tero da mulher devendo

    conter uma quantidade adequada de espermatozides para que completem o

    trajeto at os vulos.

    A inseminao artificial reproduz as condies fisiolgicas da

    relao sexual. Dependendo do local onde feita a deposio dos

    espermatozides, pode ser: intra-cervical, intra-uterina, intra-peritonal,

    tubria direta e tubria indireta. 40

    39 BOLZAN, Alejandro D. Reproduo Humana Assistida e dignidade humana. So Paulo: Paulinas, 1998, p.7 40 PDUA, Amlia do Rosrio Motta de. Responsabilidade Civil na reproduo Assistida. Rio de Janeiro: Lumen Jris, 2008 p.72

  • 29

    2.3.2 TRANSFERNCIA INTRATUBRIA DE GAMETAS (GIFT)

    A Transferncia Intrafalopiana de Gametas (GIFT- Gamet Intra-

    falopean Transfer) consiste na introduo do smen nas trompas de falpio

    e a fecundao tambm natural. Consiste em obter os ocitos e os

    espermatozides (gametas) para serem introduzidos nas trompas para que

    ali- onde ocorre naturalmente a fecundao possa acontecer o processo de

    fertilizao.41

    Normalmente esta tcnica escolhida por casais que no desejam a

    concepo em laboratrio, por questes morais ou religiosas.

    2.3.3 FERTILIZAO IN VITRO (FIVETE)

    A fertilizao "in vitro", tambm conhecida como beb de proveta,

    a unio do espermatozide com o vulo no laboratrio, formando o embrio

    que posteriormente ser transferido para cavidade uterina.42

    Existem duas tcnicas a FIV clssica em que se coloca um vulo em

    contato com vrios espermatozides e a ICSI em que se injeta um

    espermatozide dentro do vulo.

    A tcnica consiste em estimular a induo de ovulao, atravs de

    medicao, extrair o vulo maduro de dentro do ovrio da mulher e colher o

    smen do genitor. No laboratrio, os vulos so colocados em um

    recipiente com os espermatozides (FIV clssica). Na ICSI apenas um

    espermatozide injetado dentro do vulo ocorrendo a fecundao e

    formando o zigoto ( pr-embrio).

    41 Ibid. P. 73 42 http://www.projetobeta.com.br acesso em 20/04/2009

  • 30

    Aps dois ou trs dias a paciente retorna para transferncia

    embrionria. Os embries so colocados dentro do tero com um catter

    especial (tubo plstico). Aps 12 a 14 dias j se pode saber o resultado

    atravs do teste de gravidez

    2.3.4 MATERNIDADE DE SUBSTITUIO

    A gestao substituta popularmente conhecida como barriga de

    aluguel ou me de aluguel. Nestes casos, dissociam-se o desejo da

    maternidade e a gravidez relativamente mulher que forma o casal com seu

    marido ou companheiro, atravs de uma cesso temporria de tero.

    As controvrsias a respeito da utilizao das mes de substituio

    so imensas, dando ensejo a grandes embates no campo religioso, tico e

    jurdico. No campo jurdico, tal possibilidade se revela prtica inimaginada

    pela legislao.

    No entanto, Resoluo do Conselho Regional de Medicina admite a

    cesso temporria do tero sem fins lucrativos, desde que a cedente seja

    parente at o segundo grau (ou seja, me, av, neta, ou irm) da me

    gentica.43

    Segundo Maria Berenice Dias, maternidade de substituio gerou

    alteraes nos vnculos de filiao e presunes de maternidade.

    a possibilidade de uso de tero alheio elimina a presuno mater

    semper certa est, que determinada pela gravidez e pelo parto. Em conseqncia, tambm cai por terra a presuno pater est, ou seja, que o pai o marido da me. Assim, quem d a luz no a me biolgica e, como o filho no tem a sua carga biolgica, poderia ser considerada, na classificao legal( CC 1.593), como me civil. 44

    43 Resoluo CFM 1.358/1992, VII 44 DIAS. Maria Berenice. Manual de Direito das Famlias. 4ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p

  • 31

    2.4 ASPECTOS JURDICOS DA REPRODUO HUMANA

    ASSISTIDA

    No Brasil, ainda no existe uma legislao infraconstitucional

    especfica que trate da utilizao e os efeitos da reproduo humana

    assistida.

    Em relao ao tema deve-se observar a Resoluo n 1.358 45, de

    11/11/1992, do Conselho Federal de Medicina que adota normas ticas

    como dispositivo deontolgico no que diz respeito regulamentao e

    procedimentos a serem observados pelas clnicas e mdicos que lidam com

    a reproduo humana assistida. No entanto, a referida Resoluo no se

    assemelha a disposies com fora de lei.

    No Congresso Nacional tramitam projetos de lei sobre a reproduo

    humana assistida, mas alguns foram arquivados sem aprovao. Entre esses

    projetos podemos destacar o PLS n 90 46, de maro de 1999, que previa

    como obrigatrio o consentimento livre e informado.

    A maioria desses projetos, bem como a Resoluo CFM n 1.358/92,

    determinam que a utilizao das tcnicas deve-se restringir ao auxlio na

    resoluo de problemas de infertilidade. Mas, deixam muito a desejar em

    relao a vrios aspectos do tema.

    Em 3 de junho de 2003, foi apresentado ao Congresso Nacional o PL

    n 1.184 47, de autoria do Senado Federal, que dispe sobre a reproduo

    humana assistida, definindo normas para a realizao de inseminao

    artificial e fertilizao in vitro. Em 13 de fevereiro de 2004, a Comisso de

    45 A ntegra deste projeto encontra-se no Anexo II desta obra. 46 A ntegra deste projeto encontra-se no Anexo III desta obra. 47 A ntegra deste projeto encontra-se no Anexo IV desta obra.

  • 32

    Constituio e Justia (CCJC) designou o relator do projeto, que devolveu o

    projeto para a CCJC sem manifestao.

    Este projeto parece ser o mais estruturado e adequado realidade que

    os demais. Contudo, infelizmente, apesar da evoluo em relao

    propositura de uma legislao infraconstitucional que regule a utilizao

    das tcnicas de reproduo assistida, ainda falta embasamento tcnico e

    humano para se tratar dessas questes.

    Vale mencionar ainda, que em 1995 foi elaborada a Lei 8.974,

    chamada de Lei de Biossegurana, que regulamenta, entre outras coisas, as

    experincias com embries humanos, clulas reprodutivas, material

    gentico, indicando o princpio de indisponibilidade de material biolgico e

    da pessoa.

    A referida lei, em seu art. 5, admite para fins de pesquisa e terapia, a

    utilizao de clulas-tronco embrionrias obtidas de embries humanos

    produzidos por fertilizao in vitro, e no usados no procedimento. Esses

    embries devem ser inviveis, ou estarem congelados h trs ou mais anos,

    uma vez que seriam diagnosticados como imprprios para a vida.

    Foi proposta pelo Procurador Geral da Repblica, Ao Direita de

    Inconstitucionalidade contra o citado art. 5 da Lei de Biossegurana

    (ADI/3510). Em julgamento de grande repercusso, o Supremo Tribunal

    Federal decidiu, por maioria, em maio de 2008, pela improcedncia do

    pedido formulado, entendendo pela constitucionalidade de pesquisa e

    terapia com a utilizao de clulas-tronco embrionrias, nas condies

    acima referidas.

    Ao se pretender legislar sobre reproduo assistida, deve-se, antes de

    qualquer coisa, partir de princpios ticos e constitucionais bsicos de

  • 33

    respeito dignidade da pessoa humana, bem como dos princpios gerais de

    direito universalmente consagrados.

    A mestra em Direito Civil, Silvia da Cunha Fernandes, na publicao

    de sua tese As Tcnicas de Reproduo Humana Assistida e a Necessidade

    de sua Regulamentao Jurdica, prope algumas sugestes de lege ferenda

    para uma legislao que regule a utilizao dessas tcnicas.48

    Dentre as diversas sugestes, a autora expe a restrio da utilizao

    da fecundao in vitro a fim de evitar a criao de embries excedentes;

    exigncia de declarao mdica do diagnstico de esterilidade do casal;

    indicao de responsabilidade civil de todos os envolvidos nos

    procedimentos de reproduo artificial; etc.

    Assim, enquanto no houver uma legislao especfica e abrangente

    sobre o tema, devem ser observadas as Resolues do Conselho de

    Medicina e o profissional da sade deve observar o Cdigo de tica

    Mdica, nos seguintes termos:

    vedado ao mdico: Art.67 Desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre

    os mtodos contraceptivos ou conceptivos, devendo o mdico sempre esclarecer sobre a indicao, a segurana, a reversibilidade e o risco de cada mtodo.

    Art.68 Praticar fecundao artificial sem que os participantes estejam

    de inteiro acordo e devidamente esclarecidos sobre o procedimento. Art. 122 _ Participar de qualquer tipo de experincia no ser humano com

    fins blicos, polticos, raciais ou eugnicos.

    Desta forma, o profissional da sade deve se pautar no senso tico e

    profissional para que os seus procedimentos e tcnicas no sejam alvos de

    lides judiciais, em especial responsabilizao na esfera cvel. 48 FERNANDES, Silvia da Cunha. As Tcnicas de Reproduo Humana Assistida e a Necessidade de sua Regulamentao Jurdica. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.p.179.

  • 34

    CAPTULO III

    A RESPONSABILIDADE CIVIL

    3.1 NOES GERAIS

    O direito, desde os seus primrdios, visa regular o comportamento

    humano, impondo regras de conduta, de modo a tornar possvel a

    convivncia em sociedade. Para atingir tal objetivo, a ordem jurdica

    estabelece deveres que podem ser positivos ou negativos.

    Enquanto a Medicina busca, atravs de seus avanos, o equilbrio

    vital, que a sade do paciente, o direito, paralelamente, busca obter esse

    mesmo equilbrio resguardando bens e valores em conflito, que implicam

    na prpria vida e sade das pessoas, atravs da proteo constitucional aos

    direitos fundamentais, assegurando sano e reparao pelo dano material

    ou moral, decorrente de sua violao.49

    O vocbulo responsabilidade definido por Plcido e Silva:

    responsabilizar-se, vir garantindo, assumir o pagamento do que se

    obrigou ou do que praticou. Em sentido geral, pois, responsabilidade

    exprime a obrigao de responder por alguma coisa. 50

    Os princpios jurdicos em que se funda a responsabilidade civil,

    para efeito de determinar a reparao do dano injustamente causado,

    provm da mxima velha romana inserta no neminem laedere (no lesar a

    ningum).51

    49 LUZ, Newton Wiethorn da;NETO, Francisco Jos Rodrigues de Oliveira. Ato Mdico: Aspectos ticos e legais. Rio de Janeiro: Rubio, 2002. P. 50 SILVA, de Plcido e. Vocabulrio Jurdico. 23 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p.1222 51 Ibid. P.1223

  • 35

    A atividade mdica manifesta-se atravs do denominado ato mdico,

    que por natureza e definio uma ao. Devido aos seus reflexos e

    possveis conseqncias no mundo jurdico torna-se necessria sua

    regulamentao.52

    A finalidade da responsabilidade civil para o jurista Paulo Nader a

    de reparao, preveno de danos e punio, conforme leciona:

    A responsabilidade civil decorre do descumprimento de um dever

    jurdico bsico definido e imposto em lei ou conveno. Assim, o agente ao violar o dever jurdico pratica ilcito extracontratual ou contratual. Haver a responsabilidade, ou seja, o dever de reparar em caso de dano ou conforme condies previstas em ato negocial.53

    Haver responsabilidade contratual, tambm chamada de ilcito

    contratual ou relativo, se preexistente uma relao jurdica entre as partes;

    por outro lado, se o dever jurdico violado no estiver previsto em contrato,

    mas sim na lei ou na ordem jurdica, a responsabilidade ser extracontratual

    ou aquiliana.54

    Assim, por exemplo, se algum atropela um homem que, no acidente

    perde um brao, o agente causador desse dano fica obrigado a repar-lo e

    sua responsabilidade extracontratual. A indenizao a ser paga no

    corresponde devoluo do brao perdido, apenas substitui, em dinheiro,

    aquilo que aproximadamente se calcula tenha sido o prejuzo da vtima do

    ato ilcito.55

    52LUZ, Newton Wiethorn da; NETO, Francisco Jos Rodrigues de Oliveira. Ato Mdico: Aspectos ticos e legais. Rio de Janeiro: Rubio, 2002 Prefcio 53 NADER, Paulo. Curso de Direito Civil.vol. 7 1 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p.9 54 FILHO, Sergio Cavaleiri. So Paulo.Editora Atlas S.A. 7 edio. 2007 p.15. 55BARATA, Maria Eliza Mazolla. A responsabilidade civil do mdico. Rio de Janeiro. 1981. 164p. Dissertao de Mestrado Departamento de Cincias Jurdicas da PUC- Rio

  • 36

    Por outro lado, na responsabilidade contratual a indenizao , por

    igual, um substituto da prestao contratada. Quando um artista, contratado

    para uma srie de apresentaes, se recusa a dar um ou mais dos recitais

    combinados, fica ele sujeito a reparar as perdas e danos experimentados

    pelo empresrio. A indenizao abranger todos os prejuzos efetivos, bem

    como o lucro que o empresrio poderia ter tido.

    Em relao ao agente, a responsabilidade civil pode ser direta ou

    indireta. Quando o dano provocado por ato do prprio agente a quem

    imputada a obrigao pessoal, tem-se a responsabilidade direta encontrada

    no art. 942 do CC/02, que mantm a responsabilidade solidria a todos que

    participem da autoria do dano.

    Na responsabilidade indireta responde-se pelo descumprimento de

    obrigao de outrem, seja em razo de obrigao legal, nos termos do

    art.932 CC/02, ou em nome do qual exerce a atividade que provocou o

    dano. Isto ocorre com os pais em relao aos seus filhos, aos tutores,

    curadores, donos de hotis e hospedarias entre outros.

    A funo da responsabilidade civil tem ntima relao com o

    sentimento de justia, para Sergio Cavalieri Filho, que assim afirma:

    O dano causado pelo ato ilcito rompe o equilbrio jurdico-econmico

    anteriormente existente entre o agente e a vtima. H uma necessidade fundamental de se restabelecer esse equilbrio, o que se procura fazer recolocando o prejudicado no statu quo ante. Impera neste campo o princpio da restitutio in integrum, isto , tanto quanto possvel, repe-se a vitima situao anterior leso. Isso se faz atravs de uma indenizao fixada em proporo ao dano.56

    Nas palavras de Maria Helena Diniz, dupla a funo da

    responsabilidade:

    56FILHO, Sergio Cavalieri. Programa de Responsabilidade Civil. 7 ed. So Paulo:Atlas S.A., 2007.p.13.

  • 37

    A responsabilidade civil constitui uma sano civil, por decorrer de

    infrao de norma de direito privado, cujo objetivo o interesse particular, e, em sua natureza compensatria, por abranger indenizao ou reparao de dano causado por ato ilcito, contratual ou extracontratual e por ato ilcito.57

    Vale mencionar que o estudo da responsabilidade civil abrange todo

    o conjunto de princpios e normas que regem a obrigao de indenizar, nos

    seguintes termos, conforme disserta o autor Slvio Venosa:

    Os princpios da responsabilidade civil buscam restaurar um equilbrio

    patrimonial e moral violado. Um prejuzo ou um dano no reparado um fator de inquietao social. Os ordenamentos contemporneos buscam alargar cada vez mais o dever de indenizar, alcanando novos horizontes, a fim de que cada vez menos restem danos irressarcidos.58

    Aps esta breve anlise, pode-se concluir que a responsabilidade

    civil pode ser direta ou indireta. Alm disso, possvel dividi-la em

    responsabilidade contratual, prevista nos arts. 389 e 475 CC/02, cuja

    obrigao pode ser de meio ou de resultado, e responsabilidade

    extracontratual, que se divide em responsabilidade subjetiva e objetiva,

    cujas principais caractersticas sero vistas a seguir.

    3.2 A RESPONSABILIDADE SUBJETIVA E A

    RESPONSABILIDADE OBJETIVA

    No parecer de Silvio Rodrigues, a responsabilidade objetiva e

    subjetiva no so espcies diversas de responsabilidade, mas apenas

    maneiras diferentes de encarar a obrigao de reparar o dano.59 Diz-se ser

    subjetiva a responsabilidade quando se inspira na idia de culpa e objetiva

    quando esteada na Teoria do Risco. 57 DINIZ. Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro vol. 7. 18 ed. So Paulo: Saraiva, 2004. p.8. 58 VENOSA, Slvio de Salvo. Direito Civil vol.4.5 ed.So Paulo: Atlas, 2005. p.14. 59 RODRIGUES. Silvio. Direito Civil vol. 4. So Paulo:Saraiva. 2003. p.11

  • 38

    A idia de responsabilidade sempre esteve ligada culpa, conduta

    voluntria do agente, motivo pelo qual este o principal pressuposto da

    responsabilidade civil subjetiva, de acordo com a Teoria Clssica.

    Os requisitos essenciais, pressupostos capazes de gerar a obrigao

    de indenizar, podem ser depreendidos mediante leitura do art. 186 do

    Cdigo Civil, quais sejam, a conduta culposa do agente, o nexo causal e o

    dano.

    J era esse o entendimento de Srgio Cavaliere Filho ao mencionar

    que h primeiramente um elemento formal, que a violao de um dever

    jurdico mediante conduta voluntria; um elemento subjetivo, que pode ser

    dolo ou a culpa; e ainda, um elemento causal-material, que o dano e a

    respectiva relao de causalidade.60A seguir analisaremos cada um desses

    elementos.

    A conduta o comportamento humano voluntrio, exteriorizado

    atravs de uma ao, comissiva ou omissiva, qualificada juridicamente.

    Esta conduta deve ser culpvel, ou seja, reprovvel.

    Para ocorrer essa censurabilidade da conduta, necessrio que o

    agente seja imputvel, tenha maturidade e sanidade mental, a fim de

    entender o carter de sua conduta e determinar-se de acordo com esse

    entendimento.

    A noo de culpa deve ser entendida em sentido amplo (lato sensu) e

    abrange toda espcie de comportamento contrrio ao Direito, seja

    intencional, no caso de dolo, ou no, como na culpa em que ocorre o

    60 FILHO, Sergio Cavalieri. Programa de Responsabilidade Civil. 7 ed. So Paulo:Atlas S.A., 2007.p.17.

  • 39

    descumprimento de um dever de cuidado, seja por imprudncia, negligncia

    ou impercia.

    Alm disso, s ser responsabilizado por omisso quem tiver o dever

    jurdico de agir, ou seja, obrigao de evitar o resultado em determinada

    situao jurdica. Assim, por exemplo, os pais tm o dever legal de

    alimentar os filhos, ento somente eles respondem pela omisso alimentar

    daqueles. Da mesma forma, somente o mdico contratado pelo paciente, ou

    que est responsvel pelo atendimento, responde pela falta deste

    atendimento, pois assumiu a posio de garantidor.

    O nexo de causalidade entre o dano e a ao (fato gerador da

    responsabilidade). Como a responsabilidade civil no pode existir sem o

    vnculo entre a ao e o dano, podemos conceituar o nexo causal como a

    relao de causa e efeito entre a conduta e o resultado.

    No haver nexo causal se ocorrer algumas das excludentes, quais

    sejam, culpa exclusiva da vtima, culpa concorrente, culpa comum, culpa de

    terceiro, fora maior ou caso fortuito.

    Existem diversas construes dogmticas, destacando-se a Teoria da

    Causalidade Adequada, Teoria da Equivalncia das Condies e a Teoria de

    interrupo do nexo causal. Mas, segundo lio de Sergio Cavalieri, os

    nossos melhores autores sustentam que a Teoria da Causalidade Adequada

    que prevalece na esfera cvel.61 Assim, em sede de responsabilidade civil,

    nem todas as condies que concorrem para o resultado so equivalentes,

    mas somente aquela que foi a mais adequada a produzir o resultado

    concretamente.

    61 Ibid.

  • 40

    Desta forma, diante de uma pluralidade de causas, imputa-se o dever

    de reparar causa que seja vinculada ao dano por uma relao de

    necessariedade, o que equivale, em regra, ao dano direto e imediato.62 Isto

    pode ser observado em deciso do TJRJ que invocou a teoria da causalidade

    adequada.

    EMENTA: responsabilidade civil. Estabelecimento Hospitalar. Remoo

    de paciente por meio inadequado. Morte da parturiente durante remoo. Responsabilidade do hospital que deu a autorizao. Se o evento no teria ocorrido sem a conduta praticada pelo agente, que seja essa relao apreciada no plano concreto, quer no plano abstrato, impe-se concluir pela existncia do nexo causal. Assim, provado ter a clnica mdica permitido que familiares a removessem em condies precrias para outro hospital, vindo esta a falecer no curso da remoo, resulta inquestionvel que essa autorizao foi a causa adequada do evento, posto que sem ela o resultado no teria ocorrido. Resulta tambm evidenciada a negligncia do estabelecimento hospitalar porque, ciente da gravidade do estado da parturiente, jamais poderia permitir a sua remoo em condies precrias.Desprovido o Recurso. 63

    Por fim, o dano pode ser definido como violao de direito alheio.

    leso (diminuio ou destruio) que, devido a um evento certo, sofre uma

    pessoa, podendo ser patrimonial ou moral. No h que se falar em

    responsabilidade civil sem dano, que deve ser certo, a um bem ou interesse

    jurdico, sendo necessria a prova concreta e real dessa leso.

    O dano patrimonial ou material corresponde a um desfalque no

    patrimnio do indivduo. Abrange o dano emergente (o que o lesado

    efetivamente perdeu) e lucro cessante (o aumento que seu patrimnio teria,

    mas deixou de ter, em razo do evento danoso).

    Destarte, nem todos os prejuzos causados s vtimas so de natureza

    material. O dano moral, por sua vez, refere-se a bens imateriais que no so

    suscetveis de avaliao pecuniria como a vida, a honra e a liberdade. Uma

    62 TEPEDINO, Gustavo et al.. Cdigo Civil Intrepretado: Conforme a Constituio da Republica. So Paulo: Renovar, 2004. p. 339. 63 TJRR, Apelao n 199700101528, Rel. Des.Sergio Cavalieri Filho, Rio de Janeiro, 29.04.1997

  • 41

    vez atingidos estes valores humanos, provocam sofrimento, angstia,

    desespero e impem reparao.

    Atualmente encontra-se superada a controvrsia sobre a

    reparabilidade do dano moral, que j foi consagrada pelo direito positivo e

    pelos Tribunais. 64

    No obstante, possvel a cumulabilidade entre dano material e dano

    moral, nos termos da Smula 37 do STJ, que estabelece: So cumulveis

    as indenizaes por dano material e dano moral oriundas do mesmo fato.

    Vistos os elementos da responsabilidade subjetiva, pode-se observar

    que a mesma no satisfaz plenamente ao anseio de justia nas novas

    relaes sociais advindas da modernidade e do desenvolvimento industrial.

    O crescimento populacional gerou novas situaes que ficavam

    desamparadas devido ao conceito tradicional de culpa.65 Assim houve um

    retorno a antiga idia romana em que no era necessrio averiguar a culpa

    como ocorria na Lei de Talio olho por olho dente por dente.

    Desta forma, visando uma soluo para as atividades no mundo dos

    negcios que implicam riscos para a incolumidade fsica e patrimonial das

    pessoas, o pensamento jurdico concebeu a Teoria do Risco ou

    Responsabilidade Objetiva para resguardar as vtimas. O legislador

    estabeleceu presunes a favor do ofendido em certos tipos de leses, em

    que h dificuldade de se provar a culpa, nos termos do art. 927 , art.931 e

    outros do Cdigo Civil.66

    64Ibid. 65 FILHO, Sergio Cavalieri. Programa de Responsabilidade Civil. 7 ed. So Paulo:Atlas S.A., 2007.p.16 66NADER, Paulo. Curso de Direito Civil. Vol. 7. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p.30

  • 42

    Maria Helena Diniz filia-se a idia de que a responsabilidade

    objetiva funda-se num princpio da equidade existente desde o direito

    romano:

    Aquele que lucra com uma situao deve responder pelo risco ou pelas

    desvantagens dela resultantes( ubi emolumentum, ibi nus; ibi incommoda). Essa responsabilidade tem como fundamento a atividade exercida pelo agente, pelo perigo que pode causar dano vida, sade ou outros bens, criando risco de danos a terceiros. 67

    Resta evidente que a principal distino entre a responsabilidade

    subjetiva e a objetiva reside no elemento culpa. Por outro lado, o autor

    Paulo Nader destaca a semelhana entre as duas responsabilidades: Na

    responsabilidade subjetiva e objetiva h um denominador comum: a

    ocorrncia de danos e o nexo de causalidade entre a conduta do ofensor e as

    conseqncias nocivas vtima. 68

    Importante mencionar que a Teoria Objetiva no substituiu a Teoria

    Subjetiva fundada na culpa e ambas convivem no ordenamento jurdico. A

    regra geral a Teoria Subjetiva, e a Teoria Objetiva atende a casos

    especficos, para os quais a teoria tradicional se revela insuficiente.

    No entanto, Sergio Cavalieri afirma que essa posio ficou abalada

    com a vigncia do Cdigo do Consumidor, Lei n 8.078/90, nos seguintes

    termos: Tudo ou quase tudo em nossos dias tem a ver com o consumo, de sorte

    que no haver nenhuma impropriedade em se falar hoje a responsabilidade objetiva, que era exceo, passou a ter um campo de incidncia mais vasto do que a prpria responsabilidade subjetiva. 69

    67DINIZ. Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro vol. 7. 18 ed. So Paulo: Saraiva,2004.p.55. 68 NADER, Paulo. Curso de Direito Civil. Vol. 7. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p.31. 69 FILHO, Sergio Cavalieri. Programa de Responsabilidade Civil. 7 ed. So Paulo:Atlas S.A., 2007.p.25

  • 43

    3.3 A RESPONSABILIDADE PROFISSIONAL DO MDICO 3.3.1 NATUREZA JURDICA:

    O vnculo que une mdico e paciente contratual, pois de um lado

    temos uma pessoa (paciente) que procura servios especializados de um

    profissional para atender seu problema de sade e de outro temos o

    profissional detentor de conhecimento especializado para ajudar na cura de

    seu paciente.70

    Segundo Maria Helena Diniz ntido o carter contratual, apenas

    excepcionalmente ter natureza delitual, quando o mdico cometer um

    ilcito penal ou violar normas regulamentares da profisso. 71

    Em relao natureza jurdica da relao contratual entre o mdico e

    o paciente os doutrinadores se dividem em duas posies bsicas: contrato

    de prestao de servio ou contrato sui generis.

    Sergio Cavalieri se posiciona em favor da classificao como um

    contrato sui generis, isto porque o mdico no se limita a prestar servios

    estritamente tcnicos, acabando por se colocar numa posio de

    conselheiro, de guardio e protetor do enfermo e seus familiares. 72

    No entanto, Paulo Nader defende em sua obra a classificao do

    vnculo de contrato de prestao de servios, pois em razo da massificao

    dos atendimentos, prestados em convnio com planos de sade,

    praticamente desapareceu a figura do mdico conselheiro e orientador.73

    70 FERNANDES, Silvia da Cunha. As Tcnicas de Reproduo Humana Assistida e a Necessidade de sua Regulamentao Jurdica. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.p.133. 71 DINIZ. Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro vol. 7. 18 ed. So Paulo: Saraiva, 2004.p. 299. 72 FILHO, Sergio Cavalieri. Programa de Responsabilidade Civil. 7 ed. So Paulo:Atlas S.A., 2007.p. 360 73 NADER, Paulo. Curso de Direito Civil. Vol. 7. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 389.

  • 44

    Slvio Venosa, por sua vez, entende tratar-se de contrato de

    prestao de servios, na maioria das vezes, intuito personae, bilateral, de

    trato sucessivo e oneroso. Ocorre que, em algumas hipteses, a existncia

    de contrato entre mdico e paciente no fica muito clara, como quando um

    mdico assiste transeunte em via pblica, ou socorre um vizinho acometido

    de mal sbito, motivo pelo qual no existe consenso na doutrina.74

    Apesar da divergncia quanto natureza jurdica, o relevante, no

    tocante responsabilidade contratual do mdico, saber se a obrigao

    gerada pela avena de meio ou de resultado.

    Entende-se por obrigao de meio, aquela em que o profissional se

    compromete a atuar com toda a prudncia e diligncia necessrias para a

    boa execuo do ofcio, utilizando-se de todos os recursos possveis a fim

    de alcanar o objetivo pretendido; porm, sem a ele se vincular. Havendo

    inadimplemento dessa obrigao dever ser analisada a conduta do

    profissional e sua relao com o resultado final.

    J a obrigao de resultado vincula diretamente o profissional

    produo do resultado. Assim, no h que se falar em anlise da sua

    conduta e, desta forma, o cliente poder exigir a produo do resultado

    inicialmente pretendido, sem o qual ficar caracterizado o inadimplemento

    da obrigao.

    A obrigao do mdico, em geral, de meio. Somente quando agir

    com negligncia, imprudncia ou impercia poder o profissional ser

    responsabilizado por sua conduta, tendo o dever de reparar os danos

    causados a seu paciente. Dessa forma, a responsabilidade do mdico, em

    regra, subjetiva devido necessidade da anlise da culpa como

    pressuposto de existncia do dever de indenizar.

    74 VENOSA, Slvio de Salvo. Direito Civil vol.4.5 ed.So Paulo: Atlas, 2005. p. 114.

  • 45

    No entanto, em alguns casos, poder ser obrigao de resultado

    como a cirurgia plstica, procedimentos tcnicos de exame laboratorial, e

    outros tais como radiografias, tomografias, ressonncias magnticas etc.75

    Nestes casos, a responsabilidade civil mdica passar a ser objetiva.

    3.3.2 A RELAO COM O CDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

    Em matria de responsabilidade mdica oportuno suscitar a

    questo sobre a possibilidade de ela ser enquadrada ou no dentro do

    Cdigo de Defesa do Consumidor.

    A proteo do consumidor definida como de ordem pblica e de

    interesse social, norteando as relaes de consumo de maneira homognea.

    Parte da doutrina, como o Prof. Gustavo Tepedino, defende a aplicao, nos

    contratos em geral, dos princpios contidos no diploma do consumidor,

    reconhecido microssistema de ordenamento civil, isto porque o estatuto do

    consumidor norma principiolgica que emana da Constituio Federal, e

    retrata prioridades de valores.76

    Segundo Cludia Lima Marques, diante de um eventual conflito de

    leis, prevalecer o Cdigo de Defesa do Consumidor que norma

    especfica em relao ao cdigo civil e tem funo social.77

    75 Ibid. p. 109. 76 PDUA, Amlia do Rosrio Motta de. Responsabilidade Civil na reproduo Assistida. Rio de Janeiro: Lumen Jris, 2008.p.156. 77 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Cdigo de Defesa do Consumidor. O novo regime das relaes contratuais.5 ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p.589.

  • 46

    O Cdigo de Defesa do Consumidor uma legislao avanada, que

    pretende atender a pessoa que se sujeita a prestao de servios ou aos

    fornecedores, sendo claro e direto em relao aos profissionais liberais, nos

    termos do art.14 4.

    Assim, como a relao que se estabelece entre o mdico e o paciente

    tm por objeto uma prestao de servios, no pode sofrer a grave pena de

    ser afastada da relao consumerista imposta pelo Cdigo de Defesa do

    Consumidor, que representa um dos maiores instrumentos de proteo e

    defesa dos direitos fundamentais no mbito dos contratos. 78

    O autor Silvio Rodrigues abraa este entendimento:

    Entre o cirurgio e o paciente se estabelece um contrato tcito em que o

    cirurgio se prope a realizar cirurgia na pessoa do paciente, mediante remunerao, e se obriga a usar toda a sua habilidade para alcanar o resultado almejado. Trata-se de contrato de prestao de servio, pois esse contrato, na linguagem daquele cdigo toda a atividade fornecida no mercado mediante remunerao( art. 3, 2). Portanto, parece-me que a relao entre paciente e cirurgio fica abrangida pelo Cdigo de Defesa do Consumidor.79

    Infelizmente, nem todos os autores admitem que a prestao de

    servios mdicos esteja regulada pelo Cdigo de Defesa do Consumidor.

    Entre eles, possvel destacar Cleonice Rodrigues Casarin da Rocha, que

    afirma o paciente no um consumidor 80

    78PDUA, Amlia do Rosrio Motta de. Responsabilidade Civil na reproduo Assistida. Rio de Janeiro: Lumen Jris, 2008.p.196. 79 RODRIGUES. Silvio. Direito Civil vol. 4. Ed. Saraiva. 2003. p.254. 80 ROCHA. Cleonice Rodrigues Casarin da. A responsabilidade Civil Decorrente do Contrato de Servios Mdicos. 1 ed. Rio de Janeiro: Forense. 2005. p.44

  • 47

    3.3.3 O NUS DA PROVA

    Uma das questes mais nebulosas da responsabilidade do mdico a

    questo do nus da prova. A problemtica reside no fato de que, em regra,

    para nascer o dever de indenizar, cabe ao paciente o nus de provar a culpa

    (imprudncia, impercia ou negligncia) do mdico, no exerccio de sua

    atividade.81

    Os juzes geralmente recorrem prova pericial para formar sua

    convico e emitir juzo de mrito sobre a conduta do profissional. O autor

    pode e deve eleger assistente tcnico para acompanhar o trabalho da percia

    mdica, a fim de evitar a solidariedade profissional e o corporativismo.

    Se o juiz entender que a natureza do caso escapa capacidade de a

    parte demonstrar tecnicamente o erro mdico, poder determinar a inverso

    do nus da prova prevista no art. 6, inciso VIII, do Cdigo de Defesa do

    Consumidor.82

    Desta forma, fica a critrio do juiz verificar a verossimilhana da

    alegao, ou seja, a probabilidade de ser verdade e a hipossuficincia do

    consumidor, que pode ser econmica (miserabilidade) ou tcnica

    (impossibilidade do consumidor provar o fato constitutivo do seu direito),

    podendo inverter o nus da prova.

    Importante mencionar que a inverso do nus da prova no implica

    na inverso das custas periciais, que continuam sendo do autor.

    81CRUZ, Alex. A responsabilidade Civil do Mdico. MDIA JURDICA MURAL Direito em Movimento. Rio de Janeiro, n.62, p.6-10, mar. 2009. 82 NADER, Paulo. Curso de Direito Civil. Vol. 7. Rio de Janeiro: Forense, ANO. p. 309

  • 48

    As decises judiciais j esto aplicando o Cdigo de Defesa do

    Consumidor nas relaes entre mdicos e paciente. Em recente acrdo o

    Tribunal de Justia de Minas Gerais admitiu alm da aplicao do Cdigo

    de Consumidor, a possibilidade de inverso do nus da prova.

    Ementa: CIVIL - AO DE INDENIZAO - SENTENA -

    NULIDADE - INVERSO DO NUS DA PROVA - ERRO MDICO - PARTO - SUTURA - ATINGIMENTO DO RETO - SURGIMENTO DE FSTULA - NECESSIDADE DE SUCESSIVAS CIRURGIAS - INCONTINNCIA FECAL - NEXO CAUSAL COMPROVADO - REPARAO DEVIDA - DANOS MATERIAIS - AUSNCIA DE PROVA DE DESPESAS - LUCROS CESSANTES - DANO MORAL - VALOR DO RESSARCIMENTO - HOSPITAL - RESPONSABILIDADE OBJETIVA E SOLIDRIA. Mantm-se a inverso do nus da prova quando existe verossimilhana na alegao e h ntido desequilbrio entre as partes, em ao de indenizao que objetiva a discusso de ato ilcito na prtica da medicina. A utilizao de fundamentos discutidos ao longo da demanda como reforo de fundamentao para exposio do entendimento do Magistrado e procedncia do pedido no pode ser considerada ilegal incluso de causa de pedir. Havendo prova conclusiva e segura de que houve erro por impercia quando da sutura do corte feito na autora, e do nexo de causalidade entre este erro e a fstula que se originou, que teve por conseqncia a necessidade de realizao de mais quatro cirurgias para completa recuperao, cabvel concluir pela responsabilidade civil do mdico e do hospital. "" imprescindvel, j na ao de conhecimento, que se comprove, de maneira cabal, em que consistiram, efetivamente, os danos, podendo-se relegar, to-somente, para a fase de liquidao, a apurao do seu quantum. No ensejam a condenao os danos meramente provveis, mas apenas os danos comprovados."" (Apel. Cv. 371.769-5, Rel. Mauro Soares de Freitas). Comprovado o sofrimento, angstia, aflio impingidos na autora em razo do erro mdico, correta a condenao ao pagamento de indenizao por danos morais, em valor que foi razoavelmente fixado. Agravo retido no provido, preliminares rejeitadas e apelaes parcialmente providas.83 ( grifos nossos)

    Em relao prescrio da pretenso indenizatria o critrio para a

    fixao do prazo ser a natureza da relao jurdica das partes, se de

    consumo, aplica-se a regra do CDC, se relao civil, a regra do Cdigo

    Civil.

    O cdigo civil, em seu artigo 206 3, V, estabelece um prazo

    prescricional de trs anos para a reparao civil. Enquanto que o Cdigo de 83 TJRJ, Apelao n1.0105.00.015918-3/001, rel: des. Alberto Vilas Boas, Rio de Janeiro, 20/10/2006

  • 49

    Defesa do Consumidor prev o prazo prescricional de cinco anos para a

    pretenso reparao dos danos causados por fato do servio nos termos do

    artigo 27 contar do conhecimento do dano e de sua autoria.

    Assim, possvel verificar a importncia e benefcios da aplicao

    da lei n 8.078/90 nas relaes entre mdico e paciente, seja em relao ao

    nus da prova ou em relao prescrio da pretenso indenizatria que

    ocorre em prazo maior.

  • 50

    CAPTULO IV

    A RESPONSABILIDADE CIVIL NA REPRODUO HUMANA ASSISTIDA.

    4.1 O CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

    O termo consentimento informado foi utilizado pela primeira vez em

    1967, antes da existncia da anestesia, pois sendo imprescindvel a

    colaborao do paciente, era praxe o cirurgio inform-lo sobre o

    procedimento que adotaria.84

    O consentimento considerado ato jurdico capaz de produzir efeitos

    na rbita do Direito. Dessa forma, o objeto jurdico do consentimento deve

    ser lcito, isto , no contrrio lei. Alm disso, o paciente deve ter

    capacidade jurdica para os atos da vida civil no momento de emisso do

    consentimento.85

    O uso do termo consentimento livre e esclarecido pretende que a

    manifestao de vontade ocorra aps pleno conhecimento da situao, suas

    reais e possveis conseqncias, completamente desprovida de induo,

    coao ou qualquer outra imposio de natureza interna ou externa.

    O Cdigo Civil de 2002, em seu artigo 15, assevera que ningum

    pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento

    mdico ou interveno mdica. Tal disposio constitui-se como direito da

    personalidade, indissocivel do indivduo, e deve ser compreendido como o

    84 PDUA, Amlia do Rosrio Motta de. Responsabilidade Civil na reproduo Assistida. Rio de Janeiro: Lumen Jris, 2008.p.86 85 BARATA, Maria Eliza Mazolla. A responsabilidade civil do mdico. Rio de Janeiro. 1981. 92p. Dissertao de Mestrado Departamento de Cincias Jurdicas da PUC- Rio.

  • 51

    direito de proteger a matria (corpo) na qual a vida se faz presente, de atos

    danosos cometidos por terceiros.86

    Alm disso, prev o nosso ordenamento jurdico que o paciente (o

    ser humano) tem o direito fundamental informao. Somente quando o

    paciente se encontrar em iminente perigo de vida, e no houver tempo hbil

    para obter o consentimento, que o mdico dever lutar pela vida e

    melhores condies do paciente mesmo sem a manifestao de vontade do

    mesmo.

    A propsito, preleciona Paulo Nader:

    Se durante um ato cirrgico autorizado o mdico constata um fato

    imprevisto e que exige outro tipo de interveno, admite-se a mudana no plano cirrgico, desde que a opo e a conduta no contrariem as recomendaes da cincia, pois se entende que no seria razovel a suspenso do ato, unicamente para as inovaes e obteno de outro consentimento. 87 No tocante s tcnicas de reproduo artificial o consentimento tem

    ainda maior relevncia, pois constitui a legitimao e fundamentao do ato

    mdico refletindo uma atitude eticamente correta. 88

    O Cdigo de tica Mdica, em seu artigo 68, prev que vedado ao

    mdico praticar fecundao artificial sem que os participantes estejam de

    acordo e devidamente esclarecidos sobre os procedimentos a serem

    executados. 89

    necessrio provar a conduta culposa do mdico para ser

    caracterizada a responsabilidade devido falta de informao e

    86CRUZ, Alex. A responsabilidade Civil do Mdico. MDIA JURDICA MURAL Direito em Movimento. Rio de Janeiro, n.62, p.6-10, mar. 2009. 87 NADER, Paulo. Curso de Direito Civil. Vol. 7. Rio de Janeiro: Forense, 2008,. p.395 88 FERNANDES, Silvia da Cunha. As Tcnicas de Reproduo Humana Assistida e a Necessidade de sua Regulamentao Jurdica. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 127. 89 Resoluo CFM n 1.246

  • 52

    consentimento do paciente. Neste sentido encontra-se a ementa do Tribunal

    de Justia de So Paulo:

    Ementa: Ao de Indenizao por Dano Moral - Erro mdico - Falta de comunicao sobre os riscos da cirurgia - Negligncia e imprudncia mdica? Paciente que deixou de produzir espermatozides - Inexistncia da prova da culpa - Recurso Improvido.90

    4.2 O SIGILO PROFISSIONAL

    O direito intimidade consagrado no artigo 5 inciso X da

    Constituio Federal. Desta forma, vedado ao mdico divulgar fato de que

    tenha cincia em razo de seu ofcio, salvo justa causa, dever legal ou

    autorizao expressa do paciente, de acordo com a Resoluo n 1.246 de

    08.01.1988, do Conselho Federal de Medicina.91

    No mbito da Reproduo Assistida o sigilo mdico deve ser

    analisado sob aspectos regulares da relao mdico-paciente. necessrio

    zelar pelo sigilo da doao, impedindo que doadores e beneficirios venham

    a conhecer reciprocamente suas identidades, e pelo sigilo das informaes

    sobre a pessoa nascida por processo de Reproduo Assistida.92

    Tambm aqui se verifica que o sigilo no absoluto, apesar de

    mantidos o segredo profissional e o segredo de justia. Na opinio de

    Sergio Cavalieri:

    em situaes especiais, pode o mdico ser levado a quebr-lo, mormente

    quando estiver em jogo outro interesse relevante - salvar a vida do prprio paciente ou de outra pessoa a ele ligada; notificar a doena infecto-contagiosa; apurar fato delituoso; realizao de percias mdico-legais e outras requisies da

    90 TJSP, Apelao n 5456724500, Rel. Luiz Antonio Costa, So Paulo, 12/03/2008 91 NADER, Paulo. Curso de Direito Civil. Vol. 7. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p.397 92PLS 90/99 Art. 8 Os servios de sade que praticam a Reproduo Assistida estaro obrigados a zelar pelo sigilo da doao, impedindo que doadores e beneficirios venham a conhecer reciprocamente suas identidades, e pelo sigilo absoluto das informaes sobre a pessoa nascida por processo de Reproduo Assistida.

  • 53

    justia. Mesmo nesses casos a revelao deve circunscrever-se ao limite do estritamente necessrio.93

    O Projeto de Lei do Senado PLS 90/99 dispe que todas as

    informaes sero sigilosas e limita a possibilidade de revel-las nos casos

    previstos em lei, que so: acesso s informaes relativas ao processo de

    RA, pelas pessoas nascidas por ele (mantidos o segredo profissional e de

    justia); ou quando razes mdicas ou jurdicas indicarem ser necessrio

    vida ou sade da pessoa gerada ou para oposio de impedimento do

    casamento, sobre informaes genticas do doador, a serem fornecidas ao

    mdico solicitante ou autoridade que presidir o casamento, sempre

    resguardada a identidade civil do doador. 94

    Na ementa abaixo possvel verificar a possibilidade de quebra no

    sigilo profissional em razo de justa causa e requisio judicial.

    Ementa: Medida cautelar. Ao de exibio de documentos. Carter

    satisfativo. Possibilidade. Sigilo profissional. Solicitaes de informaes detidas por nosocmio. Troca de bebs na maternidade. Prevalncia da busca da verdade real sobre o segredo da profisso. Sentena de procedncia mantida. Recurso improvido, com determinao. 95

    Supondo que a criana gerada por tcnica de RA alegue a

    necessidade de conhecer sua origem gentica, fundamentando-se no direito

    identidade (direito da personalidade) em preservao de sua dignidade

    humana, o mdico sensibilizado poderia fornecer os dado